Revista Angolana de Sociologia

7 | 2011 Lusofonia - Sociedade colonial angolana

Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/ras/80 DOI: 10.4000/ras.80 ISSN: 2312-5195

Editora Sociedade Angolana de Sociologia

Edição impressa Data de publição: 1 junho 2011 ISSN: 1646-9860

Refêrencia eletrónica Revista Angolana de Sociologia, 7 | 2011, « Lusofonia - Sociedade colonial angolana » [Online], posto online no dia 29 julho 2013, consultado no dia 26 setembro 2020. URL : http:// journals.openedition.org/ras/80 ; DOI : https://doi.org/10.4000/ras.80

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© SASO 1

SUMÁRIO

Nota do editor Paulo de Carvalho

Artigos

‘Existem [mesmo] pecados para lá do Equador’. Por uma nova teoria crítica João M. Paraskeva

Desenvolvimento e sustentabilidade ecológica Jacinto Rodrigues

Medo e vergonha: emoções comunitárias e emoções sociais António Pedro Dores

Sociedade colonial angolana

Angola: Estrutura Social da Sociedade Colonial Paulo de Carvalho

Breve análise sobre o nativismo africano: sua relação ambígua com o poder colonial português Paula Morgado

Lusofonia

A lusofonia como retrato de família numa casa mítica comum Víctor Barros

Da CPLP à Comunidade Lusófona: o futuro da lusofonia José Filipe Pinto

Literaturas lusófonas Francisco Soares

Influência da literatura brasileira na literatura angolana Anabela Cunha

Intervenções

CPLP: Paradoxo certo ou futuro incerto? Carlos Lopes

Breve ensaio sobre lusofonia: convergências e divergências Kajim Ban-Gala

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Entrevistas

Cláudio Fortuna entrevista Nataniel Ngomane - “Não sou lusófono, porque a minha matriz fundamental é bantu” Cláudio Fortuna e Nataniel Ngomane

Ana T. Solano-Campos entrevista Donaldo Macedo - Repensando a Pedagogia Crítica: Para além da decepção dos liberais, Ana T. Solano-Campos e Donaldo Macedo

Livros

Kimpa Vita, uma tragédia inacabada Simão Souindoula

O mercado publicitário e de marketing em Angola Paulo de Carvalho

Desafios para Moçambique Carlos Pimenta

A História da África Negra revisitada Júlio Mendes Lopes

Obituário

Pe. Dr. Muanamosi Matumona (1965-2011)

Nota fúnebre da Sociedade Angolana de Sociologia (SASO) Víctor Kajibanga

A propósito do passamento do Pe. Muanamosi Matumona - O Padre erudito e intelectual Paulo de Carvalho

Miscelânea

Boaventura de Sousa Santos venceu o Prémio México de Ciência e Tecnologia–2010 Boaventura de Sousa Santos

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Nota do editor

Paulo de Carvalho

1 O nº 7 da Revista Angolana de Sociologia aborda um tema controverso – a lusofonia. Optámos pela abordagem desta temática, devido à sua actualidade e à controvérsia que encerra, sobretudo (mas não apenas) nos países africanos que têm no português a língua oficial mais falada.

2 A abordagem do tema principal deste número começa com Víctor Barros, que nos apresenta a comunidade lusófona como espaço imaginário construído com base na retórica de uma língua comum e de um mito simplificador de uma história comum, absolutamente “tributários daquilo que constitui a memória histórica e colonial do Império”, bem como do humanismo universalista português, que teria permitido o “estabelecimento de relações de cordialidade e de afectividade com povos não europeus”… [p. 98].

3 Esta visão de comunidade está de acordo com as “representações luso-tropicalistas do mundo que o português criou” [p. 98]. A lusofonia seria, para Barros, uma “forma de , enquanto sede privilegiada da esfera lusófona, se afirmar como centro principal desta geografia imaginária” [p. 99]. Portanto, “esta forma de celebração discursiva da lusofonia é tributária da perspectiva colonial que, durante o Estado Novo, acompanhou a alegoria da missão colonizadora de Portugal: o mito da reprodução de Portugal em todas as latitudes do seu império” [p. 95]. Mas é preciso termos presente que o discurso sobre a lusofonia não se esgota na concepção de uma organização como a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

4 José Filipe Pinto apresenta, a seguir, elementos acerca da história da CPLP e demonstra que esta comunidade ainda não atingiu o estatuto que se pretendia com a sua criação. Sustenta a ideia segundo a qual a CPLP se deve transformar, de comunidade de países (como é actualmente) em comunidade de povos. Tal como afirma, “parece aconselhável a alteração do critério, no sentido de reconhecer aos povos e comunidades filiados na cultura lusófona ou que com ela mantêm afinidades o direito de integrarem a Comunidade Lusófona” [p. 116]. E reforça o projecto de a CPLP patrocinar ao Brasil um lugar como membro permanente do Conselho de Segurança na ONU, favorecendo a que, assim, o português se torne língua oficial da Organização das Nações Unidas.

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5 O tema central deste número encerra com dois textos respeitantes à literatura. Francisco Soares aborda a utilização do termo “literaturas lusófonas”, não esquecendo que a literatura angolana é “lusógrafa, africana e bantógrafa”, com “autores mais próximos da lusofonia, … autores mais próximos da bantufonia e escritores mais próximos de outro sistema demasiado vasto, vago e diverso para o conseguirmos estudar: o africano” [p. 123]. Segue-se Anabela Cunha, que discorre acerca da influência que a literatura angolana sofre da literatura brasileira, já a partir do movimento «Vamos descobrir Angola» e do desenvolvimento de “um fenómeno literário que era activado por um grupo de jovens cultos e de grande talento, que faziam da literatura uma das suas principais armas de combate ao regime colonial” português [p. 134].

6 Trazemos a seguir duas intervenções acerca da lusofonia – do guineense Carlos Lopes e do angolano Kajim Ban-Gala. Carlos Lopes, que além da carreira científica, é também diplomata, recorda-nos que a amizade entre países é uma “formulação diplomática desprovida de qualquer especificidade”, é algo “mais emotivo que racional” [p. 143]. Quanto à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), considera que “tem de (e deve) ser desequilibrada, no sentido em que os que têm mais devem apoiar os que têm menos” [p. 144]. Por seu turno, Kajim Ban-Gala adverte que a raiz romântica da CPLP não deve constituir “razão suficiente para selar um pacto inter-nações” [p. 147] e que “o ‘capote’ da lusofonia não pode servir para suprimir a diversidade étnica e linguística dos países de língua oficial portuguesa” [p. 148].

7 A abordagem a respeito da lusofonia encerra com uma entrevista ao moçambicano Nataniel Ngomane, que refere a existência de literaturas africanas de expressão portuguesa (no plural), mas sem chauvinismos – pelo contrário, com objectividade. Tal como o faz Francisco Soares, Ngomane chama também à atenção para o facto de África não ser um país (como erradamente se considera no Hemisfério Norte), mas um conjunto de países diferenciados económica, política e culturalmente. Depois de discorrer sobre a qualidade de ensino nos nossos países, dando conta que vem diminuindo ano após ano, Ngomane afirma-se categoricamente contra o acordo ortográfico determinado por decreto, porque “o falante é que faz a língua e o gramático tem apenas a obrigação de descrever como o falante fala, como o falante a usa, e não criar regras de uniformização” [p. 162].

8 Em função dos artigos que nos foram chegando, optámos por incluir neste número um segundo tema: a sociedade colonial angolana. Abre esta temática (à qual teremos de regressar em mais de uma ocasião) Paulo de Carvalho, com um resumo a respeito do seu livro acerca da estrutura social da sociedade colonial angolana, onde apresenta elementos respeitantes à estratificação social (com a menção às elites da sociedade colonial) e à estrutura de classes (com uma tipologia de classes sociais) no final do período colonial em Angola. Segue-se um artigo de Paula Morgado, com a menção à acção dos nativistas, na primeira metade do século XX, que era de regresso “às origens” culturais africanas. Diz-nos Morgado que os nativistas “procuravam acima de tudo diferenciar-se do ponto de vista identitário, tanto das populações rurais africanas (das quais muitos eram originários) que permaneciam rotuladas como ‘estagnadas’ e ‘primitivas’, como das populações brancas expatriadas” [p. 72].

9 Este número da Revista Angolana de Sociologia inclui ainda outros 3 artigos e uma entrevista. Para além desta entrevista (à qual me refiro em detalhe abaixo), destaca-se em primeiro lugar o artigo de João Paraskeva, onde o autor se afirma contra a sloganização da educação e a favor da revisão dos mecanismos de reprodução de classe,

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raça e género que a escola utiliza, numa era em que “a dimensão económica da educação desempenha um papel decisivo nas políticas educativas e curriculares” [p. 19]. Paraskeva propõe-nos, então, uma nova teoria crítica, que ultrapasse “as contendas críticas e pós-modernas e pós-estruturais”; perceba “as fissuras (precipitação na crítica ao reduccionismo da base-superestrutura; noção de Estado como algo realmente abstracto, fundamentalismo ou totalitarismo discursivo, totalitarismo cultural)” e actue nelas de “forma autocrítica e transformadora”; assumindo uma “posição itinerante perene”; desterritorializando-se e complexificando a “batalha pela relevância dos conteúdos da escolarização” [p. 26]. Neste artigo de leitura obrigatória, João Paraskeva aborda a actual crise do capitalismo e a necessidade de retorno ao marxismo, enquanto “quadro teórico importante para compreensão da recente crise mundial” [p. 15].

10 A seguir, na mesma senda, Jacinto Rodrigues dá conta que “o esbanjamento, o desperdício e a poluição na biosfera estão a colocar o planeta à beira de graves crises ecológicas e sociais: mudanças climáticas, desertificação, desflorestação, diminuição da biodiversidade, restrição da água potável e aumento devastador das pegadas ecológicas interferem e revelam a grave crise social do capitalismo” [p. 36]. Para acompanhar a luta pela justiça social e pelo bem-estar, Jacinto Rodrigues propõe um novo paradigma, no qual “a ecotecnologia substitua a tecnociência esgotante e a tecnosfera dê lugar a uma ecotecnosfera reciclável e renovável” [p. 36]. Para isso, sugere a adopção de políticas que considerem um “desenvolvimento ecologicamente sustentado, em que a sociedade e o território, a cultura e a civilização terão que … interagir recriando um metabolismo circular que permita a actividade produtiva dos homens, como uma actividade baseada nas energias renováveis, na reciclagem de materiais e na inclusão social” [p. 37]. E apresenta-nos exemplos que dão conta que, para salvar o ambiente, temos primeiro que proteger o povo, o que passa pela garantia de alimentação e de prevenção de doenças, pela execução de sérias políticas de combate à pobreza, de promoção do bem-estar e de promoção da cidadania.

11 António Pedro Dores fala-nos do medo e da vergonha. O medo pode ser definido como “a emoção que assinala o sentimento existente de a integridade do indivíduo estar em risco e faz disparar o coração, preparando o corpo e a mente para a acção intensa”, em contraste com a vergonha, “definida por Scheff como o sinal de presença de riscos para os laços sociais das pessoas, o que faz ruborizar a face” [p. 46]. Apresenta-nos alguns exemplos históricos e actuais das consequências do medo, como sejam o de judeus que preferiam colaborar com os nazis em campos de concentração para sobreviverem; bem como o medo presente nos imigrantes, que se coíbem de falar da sua situação e dos seus laços sociais. Mas há uma série de outros medos, que achamos devem poder ser ultrapassados pelos grupos sociais e indivíduos, em favor do seu bem-estar e longevidade.

12 A terminar, numa entrevista de cariz sociológico a não perder, trazemos Donaldo Macedo com a abordagem de uma série de práticas discriminatórias. Retenho aqui a questão linguística e, particularmente, a questão do bilinguismo, que é um sério problema no seio das crianças imigrantes (cujos pais nem sempre falam bem a língua do país de acolhimento) e a questão relacionada com a actual hegemonia da língua inglesa. É interessante constatar que enquanto aprendia a língua inglesa nos Estados Unidos (um país de imigrantes, onde se apregoam todas as liberdades e mais algumas), o entrevistado (ele mesmo imigrante) diz: “nunca me senti livre para falar abertamente na minha língua nativa, particularmente em contextos institucionais” [p. 167]. Não é,

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pois, de estranhar que conclua dizendo que apesar de ser um país que celebra os ideais da democracia, os Estados Unidos são “uma sociedade que te pressiona constantemente para que deixes de ser quem és, a fim de que possas ser” [p. 167].

13 Do ponto de vista pedagógico, Donaldo Macedo sugere que “os professores que se consideram agentes de mudança e se querem realmente marcar a diferença nas vidas dos seus alunos, devem ter em conta na sua pedagogia questões de discriminação linguística e cultural” [p. 167]. Por outro lado, para além de ensinar os programas curriculares, o professor deve ter consciência da necessidade de “proteger os alunos das condições opressivas que encontram nas escolas” [p. 169]. Quanto a nós, temos de ter consciência da necessidade de luta contra a reprodução da marginalização social para as próximas gerações. Por isso, “o grande desafio para os professores consiste em compreender como o poder dominante utiliza a educação como estratégia para a legitimação de determinadas políticas que originam um racismo descontrolado e uma verdadeira pedagogia da exclusão” [p. 171].

14 Nesta empolgante entrevista com cunho marcadamente sociológico (cuja leitura voltamos a recomendar vivamente), Donaldo Macedo discorre ainda acerca da ideologia neoliberal, do carreirismo e da falta de ética no exercício das profissões, da concentração da riqueza nas elites, da actual crise económica mundial, do colapso do capitalismo e do mito da sociedade pós-racial americana.

15 Em relação a livros, são neste número apresentadas quatro propostas, com pena do antropólogo Simão Souindoula, do economista Carlos Pimenta, do historiador Júlio Mendes Lopes e do sociólogo Paulo de Carvalho.

16 Não posso terminar, sem fazer menção à perda que a Sociologia Angolana e esta revista tiveram, durante o 1º semestre deste ano. Faleceu o Pe. Muanamosi Matumona, pastor e sociólogo que integrou o Conselho Científico da Revista Angolana de Sociologia. Deixa obra e discípulos, que esperamos sigam as suas pegadas.

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Artigos

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‘Existem [mesmo] pecados para lá do Equador’. Por uma nova teoria crítica Sins Really Exist Beyond the Equator.

João M. Paraskeva

NOTA DO EDITOR

Artigo pedido ao autor Artigo recebido a: 29/Maio/2011 Conclusão da revisão: 1/Julho/2011

Normalizar a excepção1

1 Durante muito tempo, precipitadamente se defendeu (e, porventura eu próprio, em determinados momentos, incorri nessa precipitação também) que a globalização neo- liberal tinha como um dos seus escopos a redução do papel do Estado, e, em alguns casos o extermínio do próprio Estado. Não obstante não ser uma leitura errada, a questão é todavia mais complexa. Se por um lado, isto não deixa de ser verdade, ou seja, vive-se um latente ataque ao ‘que é Estado’, por outro, eventos como as soluções encontradas para a recente desintegração e quase falência do sistema financeiro mundial viriam a comprovar que se laborava analiticamente numa meia verdade e que por isso mesmo era imperativo uma profunda complexificação da análise em torno do papel do Estado, no âmbito da globalização neo-liberal, algo que aliás alguns de nós já vinham a alertar [cf. Sommers 2000, Paraskeva 2009]. Na verdade, já nos finais da década de 90 se ia tropeçando em algumas abordagens (radicais e críticas) que davam conta ser o Estado aquele que pavimentava o terreno para o triunfalismo do

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fundamentalismo mercantilizador [cf. Sommers 2000, Paraskeva 2009, 2010a, 2010b, Harvey 2005].

2 Este fundamentalismo mercantilzador, mais do que reforçar a ideia da necessidade de se promulgar uma outra concepção e prática de Estado, abre a porta para aquilo que Giorgio Agamben [2005] denuncia por Estado de excepção, criando assim condições para o emergir daquilo que tenho vindo a denominar por neocentrismo radical [Paraskeva 2010a, 2010b]. Se, por um lado o centrismo radical, como adverte muito bem Janet Newman [2001: 46], ancorado “num discurso emergente de best value, parcerias, consultas públicas e permanente renovação democrática parece oferecer um amplo conceito de ‘gestão pelo (e para o) bem público’, indo além das formas organizacionais redutoras apoiadas no culto da eficiência, ‘downsizing’, quase mercados” promovendo uma ‘determinada’ modernização que “oferece uma imagem dinâmica do processo de gestão em si” [Newman 2001: 46], resolvendo e sedimentando determinadas prioridades que colocavam ‘esquerda e direita’ em trincheiras opostas, por outro lado o neocentrismo radical refina toda a cartografia do senso comum que servia de base ao centrismo radical. O que agora está em causa neste neocentrismo radical não é propriamente o dirimir de argumentos, por exemplo, em torno da modernização do Estado e forma(s) de governo onde determinados direitos do Estado de direito foram sendo brutalmente beliscados, mas sim a sobreposição da força ao direito. A questão vai para além da análise levantada por John Clarke e Janet Newman [1997] no seu clássico Managerial State (que tem por base estudos desenvolvidos anteriormente desde os finais da década de 80 e inícios da de 90 do século passado) onde desafiam a tensão ‘welfare sem Estado’. A grande questão é o sucumbir do Estado ante a tirania da transformação – aliás de alguma forma prenunciada na análise de Clarke e Newman [1997; cf. Clarke & McLaughlin 2001]. Consubstanciado e sedimentado que está o welfarecídio – ao abrigo de um punhado de estratégias complexas – em essência, o grande desiderato do centrismo radical – o neocentrismo radical surge como resposta a um amplo quadro de necessidades despoletadas precisamente pela consequência desse welfarecídio. Para o bloco hegemónico direitista se o centrismo radical não pode ser visto como uma crise, mas antes uma resposta à crise, o neocentrismo radical não pode ser visto como uma necessidade, mas sim uma resposta à(s) necessidade(s).

3 Como deixa dito Giorgio Agamben [2005: 1] apoiado no raciocínio de Carl Schmitt [1922], “a necessidade sobrepõe-se à lei”. Assim sendo o Estado de excepção, mais do que trazer a púlpito a contenda Schmittiana “Estado de excepção vs. soberania do Estado”, cria “um ponto de desequilíbrio entre lei pública e facto político” [Agamben 2005: 1]. No fundo, Giorgio Agamben [2005: 1] prossegue, o Estado de excepção surge como forma legal para o que não tem forma legal”. É precisamente este um dos grandes argumentos do que definimos por neocentrismo radical, ou seja, uma espécie de “terra de ninguém entre lei pública e factos políticos” [Agamben 2005: 1-2], sendo que ambos não podem ser analisados como se não se tratassem de construções sociais. Se olharmos com o devido cuidado para os mais recentes desenvolvimentos das sociedades contemporâneas (tão bem desnudado, por exemplo, nos últimos trabalhos de Boaventura de Sousa Santos [2006]) nos quais, entre outros, aspectos como oilgate, foodgate, biodisielgate, devem ser apreendidos como pontas de um atrabiliário iceberg que ousam colocar ainda mais em perigo o pouco que vai restando do murmúrio democrático, percebemos como “o Estado de excepção se impõe cada vez mais como paradigma dominante de governo das políticas contemporâneas, [uma] zona

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emaranhada de indeterminações entre democracia e absolutismo” [Agamben 2005: 2]. No momento coetâneo e através da construção de um amplo quadro de necessidades de defesa de determinados valores que muito edificam uma insultuosa eugenia ocidental, legitima-se o Estado de excepção, criando-se assim condições, não só para a naturalização e legalização da tortura e do genocídio, permitindo-se encarceramentos em massa, extermínio massivo de determinadas categorias de indivíduos, reconstrução de novas identidades (por exemplo, ganha sentido a palavra ‘detido’ e não ‘prisioneiro de guerra’, ganha sentido o sujeito colectivo como inimigo do ‘grande e imaculado ocidente, como ‘talibans’, ‘alqaeda’, ‘terroristas’), como ainda para o emergir de um amplo quadro discursivo político que atraca ainda mais o desenvolvimento social a uma mera equação económica. No fundo, como documenta Giorgio Agamben (2005, p. 4) o Estado de excepção não é uma lei especial ou específica (como, por exemplo, uma lei de guerra); pelo contrário é a suspensão (em nosso entender anulação ad eternum) da ordem judicial em si. Como documenta David Harvey [2005: 64] numa das análises mais bem conseguidas sobre a questão neo-liberal, o Estado (neo-liberal) usa o seu monopólio da violência para preservar a (sacrossanta) liberdade (do mercado) a todo o custo e a soberania do Estado sobre os bens e movimento de capitais capitula perante um mercado global. Com efeito, e como adiantam Edgar Grande e Thomas Risse [2000: 244], a globalização neo-liberal não pode ser percebida como um puro e cru aniquilamento do Estado, bem pelo contrário, em muitas áreas da política internacional – tais como políticas ambientais e dos direitos humanos – os actores transnacionais têm vindo a exigir uma maior regulação por parte do Estado e uma cooperação internacional; mais, as diferentes respostas dadas pelos sistemas políticos nacionais revelam que a globalização económica não elimina liminarmente determinadas instituições históricas; finamente, a pressão levada a cabo pela globalização tem efeitos díspares na capacidade e autonomia do Estado.

4 No fundo, o neocentrismo radical impõe-se como um neofundamentalismo [Todorov 2003: 20], em que mais do que uma sobreposição da naturalização da força e genocídio ao Direito, “a força [e podíamos acrescentar o genocídio] transforma-se em Direito” [Todorov 2003: 20]. Não estamos, prossegue Tzvetan Todorov [2003: 21], perante um bloco hegemónico “conservador, ou neoconservador ou paleoconservador, mas sim perante um bloco hegemónico neofundamentalista”. Fundamentalista porque “se reclama de um Bem absoluto que querem impor a todos e “neo” porque esse Bem é constituído já não por Deus, mas pelos valores da democracia liberal.” Estamos perante uma nova família política e “não é por acaso que vamos encontrar entre eles, tanto nos Estados Unidos, como na França (e nisto Portugal não é também excepção) um grande número de antigos trotskistas e maoistas” [Todorov 2003: 21]. Como tive ocasião de deixar dito em outro espaço [Paraskeva 2006], os melhores Marxistas encontram-se hoje na direita. Esta tensão entre força – genocídio e direito torna-se mais pantanosa, sobretudo perante a anemia dos Estados nação e o emergir de uma ainda tenra transnacioanalização.

5 Um dos bons exemplos que revela a forma como se edifica este ‘Estado de excepção’ surge bem desnudado no excelente trabalho de Naomi Klein [2007]. A autora descreve a forma como Milton Friedman (Uncle Miltie para os mais próximos) não hesitou, perante a tragédia que afectou New Orleans, aquando do furacão Katrina, em defender no Wall Street Journal (naquele que foi provavelmente o seu último escrito) que a tragédia deveria ser vista como a grande oportunidade de reformar radicalmente o sistema

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educativo. Ou seja, prossegue Naomi Klein [2007: 5], que, no entender de Milton Friedman, “em vez de o Estado investir na reconstrução do sistema público de ensino de New Orleans, deveriam ser entregues vouchers às famílias para que pudessem ‘gastar’ em instituições privadas, muitas com fins lucrativos e subsidiadas pelo Estado”. Para Milton Friedman, esta mudança fundamental deveria ser vista como uma “reforma permanente” [Klein 2007: 5]. Obviamente, prossegue Naomi Klein [2007: 5], um punhado de think tanks da direita ‘agarrou’ a oportunidade e a “administração de George W. Bush apoiou esta estratégia, injectando centenas de milhões de dólares para a conversão das escolas de New Orleans em charter schools, instituições geridas por entidades privadas, de acordo com as suas regras e financiadas com dinheiros públicos”. Acontecia assim mais um raid violento ao sistema de educação pública – no caso em New Orleans.

6 Segundo Naomi Klein [2007], tal raid insere-se naquilo que denomina doutrina de choque, uma ferramenta política conceptualizada e utilizada pelos movimentos neoliberais e que emerge com o advento do conflito no Iraque, um acontecimento onde as ‘forças aliadas’ colocaram em prática uma espécie de terapia de choque. Na verdade, o Iraque foi o ‘palco teste’ para esta terapia que se estruturou em três fases: uma primeira que acontece na sequência da própria invasão em si; uma segunda relacionada com o choque económico que advém da invasão; e uma última que se desnuda no choque que acresce das torturas em massa [Klein 2007]. Importa como aliás argumenta Naomi Klein [2007] questionar porque razão os arquitectos desta invasão se socorreram da metáfora ‘terapia de choque’? Segundo Naomi Klein [2007], vários ficheiros secretos da CIA (agora divulgados ao público) demonstram como os serviços secretos do Ocidente olhavam para a terapia de choque como uma arma política infalível e perpétua. Na verdade, em estado de choque ninguém racionalmente protege convenientemente os seus interesses. Assim, prossegue Naomi Klein [2007], promove-se a crise para implementar uma determinada terapia de choque, cientes de que só uma verdadeira crise (financeira) pode convocar a urgência de uma dada mudança abrindo assim espaço para uma determinada terapia de choque. Por exemplo, com a guerra ao terrorismo lançou-se também uma nova economia, um novo plano de negócio, rentável como nunca, um plano sempre em aberto, que nunca pode ser interrompido (pois há que acabar com o terrorismo), com fundos ilimitados, uma parte nova e permanente da economia. [Klein 2007]. Mais, segundo uma das ultimas edições da Revista TIME (2011), Bin Laden acaba por o grande responsável pelo boom da industria relacionada com mecanismos de segurança que se encontrava em crise no Ocidente. Por exemplo, hoje em dia, só nos Estados Unidos, existem 30 milhões de câmaras de segurança. A L-3 Communications, por exemplo, passou de 1,9 bilião de dólares em vendas para 16 biliões de dólares. Mais, segundo a TIME [2011: 12], ‘mesmo a estrtegia para a ‘caca’ a Bin Landen criou um novo mercado para unmanned aerial vehicles, mais conhecidos por drones. A General Atomics, responsável pela produção de unmanned aerial vehicles facturou no ano de 2011 5,9 biliões de dólares.

7 Esta teia de choque estende-se aos mais variados sectores da sociedade, entre eles o da educação.

8 O facto é que, depois de uma determinada crise estoirar quem estiver com as ideias preparadas assume o controlo da situação e lidera a mudança para o rumo que pretende. É aqui que entram instituições como a Escola de Economia Universidade de Chicago (The Chicago Boys) que ao longo dos anos vão produzindo teorias e ideias que só

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precisam de uma crise (crise essa fabricada) para que se tornem realidade [Klein 2007]. Obviamente que não se está aqui a querer edificar a ideia de que ‘deliberadamente se fomentam crises’; todavia, o facto é que o golpe do Chile foi uma crise fabricada e constitui-se assim como o primeiro caso de terapia de choque (económica) liderada pelos Chicago Boys. A guerra do Iraque foi planificada também; mais, se dermos crédito ao ex-Governador do estado do Minnesota Jesse Ventura, o 9/11 foi também ‘fabricado’, pois poderia ter sido perfeitamente evitado. Todavia, por mais paradoxal que seja, na maior parte dos casos, não se trata de fomentar uma crise deliberadamente, mas de estar num apurado estado ‘permanente de preparação intelectual para as catástrofes’. Pese embora severas resistências, o facto é que estas terapias de choque e de excepção vão sendo mastigadas como se não houvesse outro alfitete e progressivamente vão naturalizando a tragédia e diluindo toda a sua nuance de excepção. A normalização desta excepção, ou seja a naturalização da tragédia, não deixa de ser também muito bem explícita em alguns Estados membros da União Europeia. Perante a crise, as classes mais oprimidas de determinados Estados nação (Irlanda, Grécia, Portugal e Espanha) têm de vindo a sofrer de um conjunto de medidas de choque para enfrentar a crise. Como denunciou bem Joseph Stiglitz “vivemos num mundo peculiar em que os pobres continuam na verdade a subsidiar os ricos” [apud Harvey 2005: 74]. Na verdade, o capitalismo precisa mesmo de socialismo para não fracassar, como demonstram as mais recentes políticas de bailout nos Estados Unidos, Inglaterra, Portugal, entre outros. No caso, mais do que pavimentar os caminhos para o mercado, o Estado tem-no salvo da falência. Vem aqui a propósito destacar o reforço da mais recente posição de Terry Eagleton [2011] para quem, nunca como agora, o Marxismo se revela um quadro teórico importante para a compreensão da recente crise mundial. Como adverte Terry Eagleton [2011: 2], o Marxismo “é uma crítica ao capitalismo, a mais apurada, rigorosa e abrangente crítica alguma vez elaborada. É ainda a única crítica que foi capaz de operar transformações em muitas zonas do globo”.

9 É importante que a educação e o currículo incorporem nas suas agendas a problemática da financialização do capital e a forma como, pelas escolas e pelos conteúdos que estas transmitem, consegue o sistema capitalista estruturar os seus mecanismos de reprodução iníqua de classe, raça e género. Isto significa que a autonomia relativa da cultura no sistema de produção capitalista seja percebida mesmo dessa forma – como autonomia relativa – e que, como argumentam Teresa Ebert e Mas’ud Zavarzadeh (2008), o teórico público não trate as dinâmicas de classe como algo inócuo, mas sim como uma interferência decisiva nas relações sociais iníquas que têm vindo a matar a democracia todos os dias. Jacques Ranciére [2006: 1] é-nos aqui muito útil. Um grupo de jovens recusa-se a retirar o gorro na escola. A segurança social vive em deficit permanente. Os trabalhadores protestam com cartazes reclamando a defesa das suas reformas. O liceu cria vias alternativas de acesso. Reality shows, casamentos de homossexuais, inseminações artificiais aumentam de popularidade. Livro após livro, artigo após artigo, programa após programa, centenas de filósofos e sociólogos, cientistas políticos e psico-analistas, jornalistas e escritores já nos forneceram a resposta. Todos os sintomas, dizem eles, são oriundos da mesma doença. Tudo isto tem uma mesma raiz: A democracia

10 Precipitado será dizer que estamos perante um Jacques Ranciére em pura apologia ou até elogia ao extermínio da democracia. O que está em causa, para Jacques Ranciére, é esta democracia, este “reino do desejo individual sem limites na sociedade moderna” [Ranciére 2006: 1]. Esta preocupação é também bem visível em Noam Chomsky [2001], Tony Negri [2002], entre outros. O facto é que e retomando o anteriormente exposto,

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perante a iminência de colapso das democracias Europeias, o estado de excepção encontra terreno fértil para medrar. Em nome da defesa dos princípios democráticos do Ocidente, vai-se matando lentamente a sociedade democrática. É este Estado de excepção (também ele muito urdido ao nível das políticas do senso comum) que tem relegitimado o reforço de medidas para um ataque ainda mais requintado e feroz a todas as instituições de bem público e seus agentes substantivos – no qual se inserem as escolas e universidades públicas, e nisto Portugal não constitui excepção. Para nos socorrermos do raciocínio de Christian Gilde [2007: 25], “se a educação [já era] vista como terreno muito vulnerável à comercialização (aqui no sentido da mercantilização)”, não é menos vulnerável a constituir-se como dispositivo político ao abrigo das complexas políticas de excepção desenhadas pelo bloco hegemónico neocentrista radical. De ora avante produzir-se-á e será produzida ao abrigo desse Estado de excepção (como aliás têm demonstrado as mais recentes medidas educativas do actual governo português) e não só.

11 No fundo, a agenda neoliberal é uma tentativa de agarrar os ganhos históricos (ainda que momentâneos) de um capital móvel global e político e fixá-lo institucionalmente [Beck 2005]. No entender de Ulrich Beck [2005: 5], faz-se crer que “ o que é bom para o capital é bom para todos; todos ficarão mais ricos e mesmo os pobres, em última análise beneficiarão em muito. A ideologia neoliberal seduz, não porque se apoia no culto do individualismo, competitividade e egoísmo cego, mas precisamente porque promete uma justiça global”. Grande parte desta estratégia de sedução passa pelas políticas de sologanização da realidade. Com efeito, o consentimento dos oprimidos para mais opressão é conseguido através das políticas do senso-comum. É no seio destas políticas (onde os media desempenham um papel preponderante) que devemos inserir as políticas culturais de sloganização da educação, em geral e do currículo, em particular.

Slogans educacionais

12 Uma das grandes estratégias dos movimentos propulsionadores desta globalização negativa [Giroux 2009], tem sido a de inundarem o discurso educacional e curricular de buzzwords, vergando as políticas educacionais e curriculares a uma sloganização sem precedentes na história da educação. De entre os variadíssimos perigos desta estratégia, encontra-se um claro processo de de/ahistorização. Um dos trabalhos mais importantes no âmbito da linguagem da educação e decerto de entre os pioneiros, é o do convenientemente esquecido Israel Scheffler The Language of Education. Como define o filósofo norte-americano, os slogans, contrariamente às definições, não são sistemáticos [fogem até disso], não são sóbrios na forma e procuram a força do popular, vitalizam-se na e pela repetição de uma forma calorosa e têm muito pouco a ver com a ponderação. A teoria educacional conferiu-lhes sempre um lugar menor. Não têm uma forma estandarte e não evocam qualquer argumento servindo apenas para facilitar o discurso [e, claro as políticas, ou a sua ausência] ou para explicar determinados significados. Os slogans empurram o sujeito para o [conveniente] campo dos símbolos [Scheffler 1960: 36].

13 Os slogans colocam os sujeitos e a consequente interpretação que os sujeitos fazem da realidade que esses mesmos slogans pretendem construir (sempre uma construção social [Berger & Luckman 1966, Whitty 1985, Wexler 1977]) num estuário desprovido de um significado preciso, dificultando a edificação de qualquer tipo de crítica,

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independentemente de poderem vir a ser usados de uma forma inadequada, inapropriada e, até nalguns casos, insultuosa. Não deixa de ser verdade, no entanto, que, “com o decorrer do tempo os slogans frequentemente começam a ancorar-se numa interpretação mais literal tanto por parte dos apoiantes, como por parte dos críticos que representam” [Scheffler 1960: 36]. Assim, à medida que vão perdendo a capacidade de trabalhar o sujeito no campo dos símbolos, vão, concomitantemente, assumindo-se como doutrinas ou penetrando no terreno perigoso dos dogmas.

14 Na verdade, os slogans educacionais são o perfeito exemplo desta perspectiva dual. Daí que, adianta Scheffler [1960: 37] “importa lutar por uma crítica tanto do aspecto literal, como do aspecto prático dos slogans”, sobretudo porque os slogans operam no tálamo construído pela linguagem que lhes confere a sua existência e essência. Ora, a linguagem em si, como propôs António Gramsci [1957: 58], “deve ser sempre compreendida como a totalidade de determinadas noções e conceitos e não apenas como palavras gramaticalmente vazias de conteúdo”.

15 Não obstante a dimensão contextualizada da linguagem (a linguagem não é neutra), o facto é que o projecto de globalização neoliberal tem sido capaz de domesticar e naturalizar determinados conceitos, abordagens e perspectivas teóricas. Tornou-se hoje um lugar-comum em qualquer texto educacional a defesa da democracia, justiça social, igualdade, multiculturalismo, liberdade, responsabilização, mérito, meritocracia, ‘res cidadã’ e todas as suas metamorfoses ‘escola cidadã’, ‘universidade cidadã’. Quase não tem sentido escrever hoje sobre educação sem se propor ou se falar da ‘necessidade de reforma’. E no enxurro de todos estes lugares comuns grela uma nova simbologia que promove e convida os sujeitos para novas penumbras semânticas – competências, bullying, abandono, estandardes, cultura de esforço, plano tecnológico, crítico, reflexivo, mediador educacional, etc.

16 No que tange às competências e como deixa bem vincado José Gimeno Sacristán [2008] não há nada de novo na educação por competências. Mais, o universo semântico em que medra “o discurso das competências representa uma forma de entender o mundo da educação, do conhecimento e do papel de ambos na sociedade, [expressa] uma estratégia de convergência rumo a uma política comum de educação” [Sacristan 2008: 17-34] e desvia o foco de atenção da importância de se debater a relevância dos conteúdos da escolarização. Esta falta de inocência da ‘sloganização da educação’ é bem explícita ainda, por exemplo, no arame farpado que rodeia conceitos como meritocracia e competição. Nas palavras de Amartya Sen [2007: 6], “a meritocracia e, de uma forma mais geral, a prática de recompensar o mérito econtra[-se] essencialmemte subdefinida e não podemos ter certezas quanto ao seu conteúdo, e deste modo, quanto às pretensões em relação á sua justiça”. Mais, prossegue o Nobel da economia [Sen 2009: 18]: “o acto de recompensar o mérito e o próprio conceito de mérito dependem da forma como vemos uma boa sociedade e os critérios que invocamos para avaliar os sucessos e insucessos das sociedades”. Ora, estamos perante dados viciados no que tange a formas de competição endógena e exógena [cf. Ball 2008].

17 Os slogans tomaram conta dos corredores educacionais. Humanizaram-se, genderizaram-se, assexuaram-se, classaram-se, adquiriram uma espécie de cidadania educativa e curricular, mancomunando-se nas vísceras da biopolítica, como diria Foucault [1980] e encontram-se reféns de determinados cartéis epistemológicos, sobretudo nas ‘suciadades’ académicas.

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18 E, naturalmente, hoje em dia, por exemplo, ao abrigo do crítico, (ou mesmo do, nefelibaticamente, pós-crítico), do reflexivo, do mediador, da igualdade, da justiça social, da liberdade, da democracia, cometem-se os maiores historicídios. A verdade é que, se somos todos tão críticos, ou pelo menos a maioria, por que razão a teoria crítica e a prática reflexiva nunca foram nem são hegemónicas? Quem é afinal não-crítico, ou anti-crítico? Como se explica o clamor pelo pós-crítico se nunca se conseguiu (chegar a) ser crítico? Porque razão os não-críticos não se querem afirmar fora da guarida do crítico? Voltaremos a estas questões mais adiante. O que se está a passar actualmente, nos Estados Unidos permite perceber a pertinência das questões colocadas.

19 No estado do Arizona, não só se assiste a uma das leis de imigração mais ‘eugénicas’ nos Estados Unidos, como muito recentemente o governo estadual aprovou uma lei que proíbe os estudos étnicos nas escolas públicas. Segundo Tom Worn, superintendente das escolas públicas do estado de Arizona e candidato a Juiz do Tribunal Supremo, os estudos étnicos ‘estão minados pela filosofia de um bem conhecido comunista brasileiro que escreveu a Pedagogia do Oprimido onde se percebe muito bem as suas influências de Marx, Che, Engels, Lenine e que em vez de se ensinar às minorias que a América é um país de plena oportunidade para todos, ensina-se-lhes que são oprimidos e que a América é um país racista’. Segundo este Superintendente, os estudos étnicos são revolucionários, os alunos só percebem que são oprimidos neste tipo de cursos e tudo isto é um puro abuso dos dinheiros do erário público’. Para a história fica a imposição da lei que impede ‘as pessoas de serem violentas, agressivas e pouco tolerantes porque um dia leram um livro [entre muitos] e perceberam que são oprimidos’ [Worn 2010]. Como se isto não bastasse, o estado do Arizona vai classificar o sotaque do seu corpo docente. Os professores que revelarem um acentuado sotaque na língua inglesa serão penalizados, sendo afastados da leccionação da ‘língua materna’ e podendo inclusive ser despedidos [Wall Street Journal 2010]. Os estudos étnicos, assegura Worn, ‘vão contra o ideal de Martin Luther King Jr., que na sua célebre marcha sobre Washington, desafiou a nação estado-unidense a julgar as pessoas pelo seu carácter e não pela cor da pele’. Worn desafiou a nação a seguir o exemplo de King até porque ‘não somos a pessoa que a cor da pele revela’. Se isto não bastasse ‘a maioria’ do cidadão até acha que Worn has a point. No fundo, o governador do estado do Arizona e Worn limitam-se a socorrer do ‘pensamento do oprimido para oprimir’. No meio desta estratégia, não se diz, que não são todos os estudos étnicos que são proibidos. Os estudos irlandeses continuam a poder ser leccionados. Só os estudos das minorias étnicas (latinos) são proibidos. Nem Paulo Freire pensou que havia escrito uma obra tão perfeita, nem Martin Luther King Jr. julgaria que todo o seu ideal (que serviu para ajudar a libertar milhões da opressão e do racismo), servisse, anos mais tarde, para legitimar políticas contra as quais o líder dos direitos civis perdeu a vida. Ao ancorar-se uma política puramente racista num discurso que tem uma maternidade e um contexto precisamente inverso, Worn nada mais faz do que actuar ao nível do senso comum, domesticando, naturalizando e desideologizando mais do que um conceito, todo um ideal que mexeu com o mundo, conseguindo neutralizar a historicidade do conceito, ou melhor, conferindo-lhe imediatamente, no acto, um outro processo histórico. A história não é necessariamente de quem a escreve. Felizmente.

20 Com efeito, todo este processo de domesticação e de/ahistorizaração, que é no fundo uma tentativa de desideologização, é a espinha dorsal da estratégia dos movimentos hegemónicos neo radicais centristas pelo controlo do senso comum. Com efeito, como

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eu e outros temos vindo a deixar dito [Paraskeva 2010a, 2010b, Apple 1996, Giroux 2000, 2009] a globalização negativa, como descreve Giroux [2009] têm-se conseguido impor hegemonicamente pois tem ganhado a batalha do senso comum. Esta batalha, que tem muito a ver com o que se passa nas salas de aulas (forma e conteúdo) não e só cultural [Hall 1988]. É também económica e infelizmente, durante muito tempo, a esmagadora maioria dos teóricos críticos minimizou a importância que a financialização do capital tem no âmbito das políticas educacionais e curriculares [cf. Foster 2007, 2008]. Não é aliás por acaso que hoje em dia se assiste ao ressurgir da investigação no âmbito da ‘politica económica e educação’, uma área de investigação muito ignorada no âmbito do campo do currículo [cf. Huebner 1981]. É que, como muito bem, adiantou Enguita [2008], importa um sério debate sobre o que se entende por ‘economia’, até para clarificar, não propriamente o seu grau de menoridade no que diz respeito a categorias como a cultura, mas a autonomia relativa que os vários quadrantes sociais, económicos, políticos, e culturais têm nas dinâmicas de produção ideológica [cf. Apple & Weis 1983, McCarthy & Apple 1988, Paraskeva 2010c, 2010d, 2011 in press). Sobretudo numa era em que a educação é colocada no eixo ‘custo-retorno’ como forma de combater o desperdício social a política económica e a dimensão económica da educação desempenham um papel decisivo nas políticas educativas e curriculares [cf. Carnoy 2009].

21 Outras vítimas há destes processos de ahistoricidade para além de Paulo Freire e Martin Luther King Jr, como é o caso de John Dewey que chegou mesmo a insurgir-se contra a forma como algumas das suas ideias eram deturpadas convidando as pessoas a relerem e reflectirem melhor sobre o que escrevia [Scheffler 1960]. Por exemplo, se por um lado, há conceitos de Dewey que convenientemente se silenciam (habitus é um caso indiscutível), por outro há um ‘naco de conceitos deweyanos’ que foram sendo vilipendiados (ensina-se crianças e não sujeitos; público; opinião pública; experiência; democracia), isto para não dizer a forma como muitos dos estudos curriculares e da formação de professores (mesmo alguns que se abrigam no sempre interessante vocábulo ‘de avançados’) continuam a não reflectir sobre o contributo curricular de Dewey.

22 Inserida nesta estratégia de desenraização de conceitos, de cesura da sua historicidade e do conferir de uma outra mais conveniente, encontra-se um processo de esterilização ideológica, ou seja, de desideologização pura, tentando forrar o conceito numa dimensão neutra. O compromisso com o processo de desideologização dos conceitos pretende determinar a agenda de como e quem pode decidir sobre a função social da educação. Por paradoxal que pareça, de alguma forma estamos perante um ‘existencialismo de (ou essencialismo) possibilidade impossível’; ou seja a ideologia só pode ser combatida ideologicamente. Qualquer acto de desideologização é em si próprio um acto ideológico. Só a ideologia pode matar a ideologia. Sendo isto verdade, percebe- se bem um outro processo de adulteração, de esvaziamento ideológico, que não obstante estouvado, segue namorando as consciências de muitos – o exaurir de público do público e no público.

Uma educação pública publicness

23 Num trabalho muito importante e, por vezes, precipitadamente interpretado, Mariano Enguita [2008] questiona “se será pública a educação pública”. Ou seja, perante a crise

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da escola pública que tem as suas raízes nas sistemáticas politicas de desinvestimento e privatização no e do bem público levadas a cabo pelos movimentos neo-radicais centristas [Paraskeva 2010a], importa “questionar se a escola estatal é pública, se a escola pública serve o interesse público ou se se encontra subordinada a outros interesses não públicos ou até se a escola pública funciona como um verdadeiro serviço público” [Enguita 2008: 97].

24 As políticas de privatização na educação têm sido amplamente tratadas [Apple 2010, Giroux 2009, McLaren 2004, 2007, Paraskeva 2010a, 2010b, Anyon 2009, Lipman 2004] e fazem já parte do estuário educacional por esse mundo fora [Miron 2008]. Este movimento global apoia-se na visão peregrina de que o sector privado, contrariamente ao público, presta um melhor serviço (ao) público chamando a si slogans como accountability (responsabilização e prestação de contas). No fundo, o que está em cima da mesa e a noção de que as instituições públicas podem ser mais eficazes e eficientes (de novo os slogans) se se ancorarem em modelos determinados por um mercado auto- regulado. O questionar do ‘público no público’ e do ‘público do público’ abre a porta para uma outra questão extremamente complexa: publicness que se impõe já como uma dos grande slogans dos movimentos hegemónicos líderes de uma, cada vez mais, negativa globalização [Giroux 2009].

25 Muito influenciadas pelo trabalho teórico de Milton Friedman [1953, 2002] que defendia a colonização do mercado na educação pública, as políticas de privatização desaguam na educação, não só sob a forma de vouchers, charters, homeschooling, como ainda sob a forma de disestablishment de escolas (desmantelamento) (movimento que está chegar ao ensino superior, como é o caso da Mary Lou Fulton Institute and Graduate School of Education), e reforço das políticas de desinvestimento. A ideia da privatização ancora-se fundamentalmente em três grandes pilares. Os mercados nas escolas implicam o emergir de diferentes mecanismos. Um primeiro mecanismo é o da competição. Em teoria, a ideia de competição é a ameaça de que os consumidores podem adquirir bens e serviços de outros fornecedores cria um grande incentivo [para as escolas]. Um segundo mecanismo prende-se com a escolha. Ou seja os consumidores poderão escolher de entre uma oferta variadíssima a que melhor satisfaz as suas necessidades e interesses. Um terceiro mecanismo prende-se com a autonomia das escolas para desenvolver o seu próprio currículo, os seus próprios modelos de ensino e a sua própria gestão, tudo isto melhorando os resultados dos alunos [Miron 2008].

26 No caso dos Estados Unidos, as políticas de privatização têm visto grandes avanços nos últimos anos, com os governos federal e estaduais explicitamente comprometidos com a fabricação de novas políticas tendentes à privatização. Em 2002, o Tribunal Supremo dos Estados Unidos indeferiu a decisão que proibia o uso de fundos públicos por parte de instituições escolares privadas e religiosas em Cleveland no estado de Ohio – a famosa Zelman v. Simmons-Harris Act, 2002). Esta decisão abriu a porta ao financiamento público em massa de instituições não públicas nos Estados Unidos. Finalmente a lei federal No Child Left Behind cria a arquitectura legal para que mais fundos públicos sejam canalizados para instituições privadas, uma vez que determina as duas grandes medidas para salvar as escolas em crise: gestão privada e/ou conversão das escolas em escolas charter. [Miron 2008: 339]

27 Hoje em dia, as políticas de desmantelamento do bem público conhecem o seu apogeu. A administração de Barack Obama escolheu para Secretário de Estado da Educação o controverso Arne Duncan, ex-Chief Executive Officer das Escolas Públicas de Chicago, que

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durante o seu reinado impôs a ferros um plano de militarização e corporativização do terceiro maior sistema escolar dos Estados Unidos, em que 90% da população escolar é não branca. Duncan colocou as escolas públicas sob um férreo regime de gestão militar, geridas como academias militares, instituiu e expandiu drasticamente as expulsões escolares, instituiu práticas de vigilância e colocação de forças policiais nas escolas, encerrando arbitrariamente escolas e despedindo colectivos de professores das escolas. Clamando por políticas de tolerância zero, Duncan não olhou a meios para dilacerar a estrutura sindical, a desqualificação docente, promovendo desbragadamente a privatização do ensino. Actualmente Duncan tem canalizado milhões de dólares para a promoção das escolas charter (onde, na maioria dos casos, o corpo docente não pode ser sindicalizado) e consequente desmantelamento do ensino público.

28 Estas políticas invadem também o ensino superior. Muito recentemente, a Arizona State University em Tempe, no estado do Arizona, por decisão do seu Presidente Michael Crow e pela voz da Provost, Betty Capaldi informa a academia, sobre o ‘disestablishment’ da sua Mary Lou Fulton Institute and Graduate School of Education . Durante 11 anos consecutivos, a Escola de Educação da Arizona State University era, no mui apetecido ranking estado-unidense, a 11ª no âmbito das Políticas Educativas; 11ª ao nível da Formação de Professores; 12ª em Psicologia da Educação; 14ª na Formação de Professores do Ensino Básico; 17ª em Currículo e Instrução e 17ª em Supervisão e Administração Escolar e com projectos de investigação superiores a 38 milhões de dólares. Esta decisão surge na sequência de instruções recebidas pela Arizona Board of Regents que ordenou a cada universidade do Estado que reduzisse o seu orçamento salarial em 2,75% de forma a enfrentar a crise fiscal do estado do Arizona. A escola de figuras míticas da educação, como Thomas Barone, David Berliner, Gene Glass, Alex Molnar, and James Paul Gee, não encerra. Desmantela-se; precisamente, da mesma forma e pelas ‘mesmas razões’ que anos antes se havia encerrado a School of Education da University of Chicago, a escola de figuras míticas como Franklin Bobbitt, John Dewey e mais recentemente Philip Jackson. Não deixa de ser curioso todo o mais recente percurso da Escola de Educação da Arizona State University e por nós amplamente tratado num outro espaço [Paraskeva 2010b]. Não deixa ainda de ser surpreendente que bem antes desta abrupta decisão, mais precisamente a 17 de Marco, a Mary Lou Fulton Institute and Graduate School of Education estava no mercado a contratar o seu novo Dean. A Escola identificava-se como tendo “vários programas de doutoramento de prestígio internacional tendo como objectivo preparar a nova geração de investigadores e líderes educacionais inovadores capazes de lidar com a sociedade cada vez mais global” [Chronicle 2010]. Esta decisão tem sido referenciada como o bom exemplo de gestão da respublicae.

29 Esta enxurrada de acontecimentos coloca em questão a fragilidade da sloganização da educação, uma vez que o que está mesmo em causa é a autonomia das escolas, da classe docente, as liberdades académicas, etc. Não obstante, para muitos, a liberdade pura seja puro terror [cf. Spence 1998], o facto é que o educador crítico jamais pode abdicar de lutar pela tirania da liberdade e da autonomia.

30 As políticas de accountability têm contribuído para a redefinição da educação pública, assumindo-se como um acto de fé, sem o qual será impossível ‘salvar’ o público do seu propósito de ‘bem público’. Todavia, tal acto de fé, não só ignora que a crítica às políticas de accountability não negam a necessidade de accountability no sistema educacional público. Pelo contrário, o que os teóricos críticos colocam em causa é que

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tais políticas não só ignoram as dinâmicas de produção ideológica da escola [Apple 1990, Giroux 1981] como ainda se recusam a responder às seguintes questões: Accountability para quem? Accountability perante quem? Accountability para quê? Estas questões ao serem ignoradas, contribuem para que por mais paradoxal que pareça, se assista ao emergir de um sentimento de publicness no próprio âmago do público.

31 O movimento neo-liberal, argumenta Miron [2008: 345], promove um mecanismo de controlo educacional centrado na accountability do mercado. Ou seja, contrariamente a “uma prestação de contas democrática e política, a prestação de contas do mercado implica que as escolas sejam avaliadas primeiramente pelos consumidores individuais (pais e alunos)”. No fundo, “ao colocar alunos e professores (e não a sociedade) no centro da prestação de contas ou responsabilidade escolar, os movimentos neo-liberais promovem uma transformação radical nas políticas educacionais” [Miron 2008: 345] transmutando por completo o verdadeiro conceito de bem público. Público espraia-se agora num leito mais funcionalista. O grande objectivo das estratégias de mercantilização da educação (aliás, de alguma forma conseguido) é fazer com que o negócio educação seja controlado pelos consumidores e não por aqueles que o produzem [Ward & Éden 2009: 19].

32 É mesmo muito difícil compreender a forma como Barak Obama pretende reconciliar a sua visão de mudança (não só com a nomeação) de Duncan (fervoroso) apoiante de uma reforma escolar mercantilizada com políticas de tolerância zero para com a classe docente, como ainda com o emergir de políticas de disestablishment levadas a cabo por instituições públicas [Giroux & Saltman 2008]. No fundo, a administração Obama, neste particular (e não só), confunde-se com as administrações conservadoras (republicanas e democratas), não conseguindo desvincular-se de lobbies poderosos de determinados think thanks neo centristas radicais [Paraskeva 2010a, 2010b] como a Heritage Foundation, Cato Institution, Fordham Foundation, American Enterprise Institute, não obstante os exemplos de claro fracasso de algumas escolas charter, como a East Palo Alto Academy Elementary School, concebida, financiada e controlada pela Escola de Educação da Universidade de Stanford e que viu negada a renovação da sua certificação pelos membros da Ravenswood City School Board por terem considerado o projecto um falhanço completo – fracasso que coloca numa posição muito delicada uma das fervorosas defensoras e responsáveis pelo projecto Linda Darling-Hamond [Pogash 2010]. Hoje em dia, Dianne Ravitch think thank conservadora do todo poderoso Brooks Institute, e outrora grande advogada (quiçá a mais emblemática) dos projectos charter, tem estado na linha da frente, precisamente contra os projectos charter. Segundo Dianne Ravitch [2010], afinal os projectos choice multiplicam a desigualdade social, não promovem inovação alguma, não criam condições para a autonomia dos professores e deixam muito a desejar no que diz respeito à accountability, como aliás sempre comprovaram variadíssimos estudos [cf. Berends & Zottola 2009].

33 Tal como a sua antecessora, a administração de Obama parece ignorar que a desigualdade social se combate também nas escolas e pelo currículo não com discursos, mas com políticas [Anyon 1997] e se pugna por discursos transformadores, as políticas não podem ser de foro inverso. Mais, com Obama assiste-se a um No Chil Left Behind Reloaded, que é muito mais do que o complexo swing do ‘mais do mesmo’ em que se continua a ignorar como as consequências da pobreza e racismo têm inflamado os sistemas escolares nos Estados Unidos [Anyon 1997]. Ao ignorar as políticas económicas e culturais da educação [cf. Apple 1996, Giroux 2000, McLaren et al. 2004], a

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administração Obama minimiza os nexos complexos das dinâmicas de poder e riqueza e a forma como desequilibradamente se pronunciam via escolarização. Ao criar uma vi[d]a (ainda) mais verde para programas ‘anti-públicos’ o projecto social de Obama, não só reforça os perigosos programas charter e voucher [Fine 1994, Paraskeva & Au 2010], as políticas de exames nacionais [Hursh 2008], as políticas de genocídio linguístico [Macedo 2000] e o perigoso culto da necessidade da cultura do esforço, como ainda cria condições para a legitimação de um capitalismo académico sem precedentes ao nível do ensino superior público [cf. Paraskeva 2010b, 2010c].

34 Na verdade, a (re)produção das desigualdades de classe, raça e género não ocorrem sem a força criativa da cultura, ou ‘consciência prática’ como avançou Willis [1981]. O projecto Obama está ferido de injustiças materiais e não deixa ser um ataque à dignidade humana; Obama ignora que não há ‘redistribuição sem reconhecimento e não há reconhecimento sem redistribuição’ [Fraser 2000]. No fundo, e como propôs Foucault [1980], o poder cria resistência, e o legado de Obama é já uma evidência da preciosidade da teorização e prática crítica [cf. Anyon 2009] que no momento coetâneo, não só não deve ignorar a riqueza das ‘abordagens elípticas’ [Leonardo 2003] (em que ‘raçaclasse’ são tidas como dois tecidos inextricáveis para (um)a hermenêutica critica educacional), como deve saber ir ‘para além delas’, desterritorializando-se [cf. Paraskeva 2010d, 2011 in press].

35 Como metaforiza o ditado africano, ‘a árvore quando está a ser cortada observa, com tristeza, que o cabo do machado é de madeira’. Obama está amarrado aos mesmos slogans do seu antecessor. O pior inimigo do democrata Obama é mesmo o conservador Obama. Ou será o melhor amigo?

36 Este momento histórico obriga uma teoria crítica que olhe para os novos problemas com novas ferramentas [Latour 2007]. O velho jogo de relações de poder (nacionais e internacionais) foi abruptamente interrompido, iniciando-se um novo jogo [Beck 2005]. Precisamente por isto, provavelmente nunca como agora foi a teoria crítica tão importante. É que é por ela que se desloganiza a educação; é por ela e com ela que se ganha a batalha do contra-senso. A educação e o currículo têm nisto um importante papel. Sheffler [1960], sempre muitíssimo preocupado com as questões epistemológicas subsumidas pelas correntes dominantes argumentava que a racionalidade e o pensamento crítico não eram apenas objectivos centrais do processo educacional, mas eram-no precisamente porque eram a base de tudo aquilo que a educação podia aspirar. [cf. também Van Haaften & Snik 1997: 19]. O pensamento crítico é o centro da educação. As crianças deviam, desde cedo, engajar-se em diálogos críticos que se lhes relacionassem com toda a área da civilização [Sheffler 1960; cf. Van Haaften & Snik 1997].

37 Perante uma sociedade fervilhando no estuário da “arquipolítica, da para-política, da metapolítica da ultrapolítica e da pospolítica” [Žižek 2010: 8-9], onde a “invenção democrática promove um locus de poder prospectivo” [Žižek 2010: 10] importa uma nova teoria crítica que consiga analisar a complexidade das relações escola sociedade tendo em consideração as relações sociais de produção [Macrine, Hill & McLaren 2010: 2], hoje muito mais intricadas que num passado recente, quanto mais não seja dadas as nuances da imaterialização do trabalho [Hardt & Negri 2000]. A tarefa não é todavia fácil.

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Nova teoria crítica

38 Como salienta Boaventura de Sousa Santos [1999: 197], “vivendo nós no início do milénio num mundo onde há tanto para criticar, porque razão se tornou tão difícil produzir uma teoria crítica?” Mais: como perseguir uma teorização crítica que consubstancie o compromisso com uma acção política que lute pela edificação de “uma escola, um hospital, meios de comunicação que correspondam à nossa ideia de liberdade humana e de sociedade democrática?” [Tourraine 1995: 67]. Uma teoria crítica que interrompa a recriação do poder estabelecido, “recrie a sociedade e invent[e] a política [impedindo] a luta cega entre os mercados demasiado abertos e as comunidades demasiado fechadas e [ainda] a dilaceração das sociedades em que aumenta o fosso entre incluídos e excluídos, os in e os out” [Tourraine 1995: 38-39]. Como é que pelo ‘crítico’ podemos conseguir uma escolarização e uma sociedade em que o importa não é propriamente “o que o homem é [mas sim aquilo] em que o homem pode vir a ser” [Gramsci 1957: 76]. Que teoria crítica que possa permitir que os indígenas da escolarização “vejam [quase] tudo por si próprios, comparem e comparem e consigam [responder] sempre a três grandes questões; o que é que vês? O que pensas do que vês? O que consegues fazer do que vês? E assim sucessivamente até ao infinito” [Ranciere 1991: 23]. Como é que também pelo crítico, explicamos às pessoas que não tem sentido reclamar um pós-crítico se a esmagadora maioria nunca esteve, não está e, infelizmente, pelos vistos não estará em breve no crítico? Se a teoria crítica é tão ineficaz, quem tem medo dela?

39 Como trabalhar uma abordagem crítica que dilua o fosso entre teoria e investigação? Uma boa hipótese de trabalho para esta questão é-nos dada por Jean Anyon e seus colaboradores [2009] que de uma forma clara destacam a policromia da teoria crítica.

40 Segundo Jean Anyon [2009], inserir o crítico na investigação educacional implica não só revelar um invejável à vontade em lidar com as mais variadas formas críticas (e.g. marxismos estruturais e culturais, estudos culturais, pós-modernismo, pós- estruturalismo, neo-marxismsos, teorias críticas da raça, estudos pós-coloniais, estudos neo-coloniais, teorias do sul, estudos indígenas, estudos queer, estudos feministas, etc), como ainda desnudar essas variadas formas teóricas para analisar e resolver os verdadeiros problemas educacionais e curriculares. Todas as contradições e as tensões são parte integrante do trabalho intelectual que não deve nunca conduzir a uma espécie de fascismo social, muito típico em muitas academias. Lidar com tais tensões não pode ser nunca sinónimo de uma rendição às mesmas [Anyon 2009]. Não há uma única via teórica crítica.

41 Assim desnudada uma nova teoria crítica, ou uma teoria crítica renovada, não teoriza contra nenhuma outra teoria, mas confronta as contradições na educação e no currículo. O intelectual crítico não (s)vai à procura de um quadro teórico qualquer por ir; não alimenta paroquialismos académicos em que muitos académicos promovem a sua brilhantina intelectual, que é no fundo e tão só o seu frugal capital cultural (Bourdieu, 1988) com o qual fazem a corte ao poder. O intelectual crítico não divorcia a teoria da investigação, não dissocia a complexidade conceptual dos argumentos metodológicos e não foge ao empirismo crítico [Anyon 2009]. Mais, para o intelectual crítico – se quisermos intelectual orgânico [Gramsci 1957], intelectual público [Jacoby 2000], sociólogo público [Burawoy 2005] – a teoria é exactamente a evidência em si, dá- lhe forma e forma, informa, enforma e deforma a intervenção intelectual [cf. Anyon

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2009]. Os dados não são ateóricos. A teoria não existe algures num espaço inócuo e inodoro, imune à modorra da putrescência do tempo, e que vamos buscar para a colocar ao serviço dos dados e assim reanimando-a. Nesta dimensão, está-se no plano da agência intelectual crítica e ninguém, como adverte Jean Anyon [2009] vai para o terreno para ver. Vai-se para o terreno para observar. Sendo isto verdade, sendo isto o ‘futuro da teoria crítica’, todo o ostracismo que amordaça, reprime e oprime o ‘mexer’ em quadros epistemológicos não hegemónicos será sempre uma forma de fascismo social. Qualquer acto teórico nunca é, é um constante ‘inter-é’, se assim entenderem um ‘inter-ser’. Mais, é sempre um ponto de partida, uma evasão constante, e quando é algo, é porque já foi. O futuro da teoria crítica passa precisamente pela sua capacidade em aumentar o seu território porque se desterritorializa constantemente e porque estilhaça com o estático. Socorrendo-nos de Deleuze e Guattari [1980] podemos argumentar que o futuro da teoria crítica passa pela sua capacidade em construir-se de uma forma sempre desmontável, revertível, variável, com uma multiplicidade de pontos de partida e de viagem que necessariamente não são fugas. O futuro da teoria crítica é acentrado, anti-genealógico, procurando linhas e não pontos de ancoragem. [Deleuze & Guattari 1980]. É um constante desassossego, um tumulto constante, um palco geográfico de sucessivos teoricidios, uma cuba de ininterruptas linhas teóricas.

42 Teorizar é mesmo um acto de violência; são aliás sucessivos actos de violência. É um despotismo.

43 Uma nova teoria crítica como propus num outro contexto [Paraskeva 2010d] tem de ultrapassar as contendas críticas e pós-modernas e pós-estruturais; tem de perceber as fissuras (precipitação na crítica ao reduccionismo da base-superestrutura; noção de Estado como algo realmente abstracto, fundamentalismo ou totalitarismo discursivo, totalitarismo cultural) e actuar nelas de uma forma, autocrítica e transformadora; tem de assumir uma posição itinerante perene; desterritorializar-se; deve complexificar a batalha pela relevância dos conteúdos da escolarização. Hoje esta batalha é muito mais do que um acto de justiça social, é um acto de justiça cognitiva [Sousa Santos 2006]. Neste âmbito, não perde os seus nobres alicerces – ideologia, hegemonia e poder – para analisar o fenómeno educacional. A nova teoria crítica, assim tratada, assume uma intenção cosmopolita clara: deve revelar e desmantelar o muro do nacionalismo metodológico construído no seio de categorias sistémicas e rotinas de investigação das ciências sociais, para que assim se consiga trazer à luz o papel legítimo do estado nacional no sistema mais vasto de desigualdades sociais. Esta nova teoria crítica é em última análise teoria autocrítica. Investiga as contradições, dilemas dos efeitos laterais invisíveis da modernidade que se vem tornando mais cosmopolitanistas. Luta por uma definição critica de poder que reside na tensão entre a autodescrição política e observação científica social. A nova teoria crítica admite que a plataforma cosmopolita abre espaços e estratégias para a acção que a plataforma nacional não consegue” [Beck 2005: 33]

44 Este é o melhor caminho no combate aos espistemicidios. É-nos assim muito difícil compreender por que frequência teórica se outorga a tentativa de logro dos que reclamam a necessidade de ‘trazer de volta o conhecimento’ para as escolas [cf. Young 2009]. O conhecimento que segue difundido nas escolas continua [secularmente] a ser parte de uma tradição selectiva [Williams 1961, Paraskeva 2007]. A escola (re)produz um conhecimento tido como científico que expressa um realismo ingénuo (segundo o qual o conhecimento científico é o reflexo das coisas como elas realmente são); empirismo bem sucedido (de acordo com o qual

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todos os conhecimentos científicos derivam directa e exclusivamente da observação de fenómenos); experimentalismo crédulo (que assegura que a experimentação é conclusiva, pois torna possível a verificação de hipóteses); idealismo cego (que acreditam que os cientistas são seres completamente desinteressados e objectivos no exercício da sua actividade profissional), e racionalismo excessivo (argumentam que só a lógica científica nos conduz, gradualmente, à aproximação da verdade [Nadeau & Désautels 1984, Aikenhead 2009].

45 Perante a trans-secular hegemonia curricular do culto do positivismo [Giroux 1981], perante a trans-secular hegemonia curricular assente na promoção de uma passividade cognitiva [Kincheloe & Steinberg 1997], perante uma trans-secular dieta epistemológica [Kincheloe & Steinberg 2007], perante a trans-secular hegemonia curricular apoiada numa tradição selectiva do conhecimento [Williams 1961], perante uma trans-secular hegemonia curricular que se expressa um massivo genocídio cultural e linguístico; perante uma trans-secular hegemonia curricular que impõe reformas de forma e não de conteúdo, com e em que base se debate bringing knowledge back in? It never left. A coerência freireana [Freire 1987] não palmilha apenas vértices ‘teória-prática’. De que valem melhores métodos, melhores tecnologias, se o que está em causa é a relevância dos conteúdos da escolarização, um estuário de águas açudadas, que devem ser percebidos como puros epistemicídios [Sousa Santos 2006] e que não “permite ao aluno tomar decisões morais e responsáveis” [Scheffler 1977: 504]. Numa altura em que a mercantilização da educação tem arrastado consigo a mercantilização do conhecimento esta batalha é mais importante do que nunca. Perante esta tragédia, não deixa de ser alarmante que nos últimos anos se tenham criado mais museus que universidades [Touraine 1995: 52].

A teoria depois da teoria

46 Todos os debates em torno de vazios teóricos e ideológicos são, em essência, debates teóricos e ideológicos. Quando olhamos para a emblemática conferencia na Universidade de Chicago em 2003 que debateu o ‘futuro de teoria’ confirmamos como a ‘questão teórica’ é, no campo da educação, uma das questões do momento. Inquirido por um aluno sobre o papel da crítica [teórica], quando intelectuais como Stanley Fish declaram o fim da filosofia, Sander Gilman [apud Beach 2005: 1] destacou: “A maior parte da crítica – e incluo aqui Noam Chomsky – é uma pílula envenenada Devemos ter muita cautela em assumir que os intelectuais têm alguma perspicácia. Na verdade, se a história algo nos diz, é que os intelectuais não só têm errado quase sempre, como, na maioria dos casos, têm errado de uma forma corrosiva.”

47 O trabalho intelectual, entende o actual cognitivismo eugenico dominante, não tem eficácia alguma. Está amputado de uma eficiência social activa [cf. Beach 2005]. Não deixa de ser curioso que, numa altura em que os grupos oprimidos e depauperados economicamente começam a somar pontos na luta pela justiça e igualdade social e cognitiva, ‘se começa a urdir’ a ideia de que ‘ideias’, ‘ideologias’, ‘teoria(s)’, ‘critica’ não só são dejectos socialmente urdidos, como, na maior parte dos casos, são corrosivos e letais. Vozes minoritárias (na mítica conferência [e não só]) como Homi Bhabha reagiram veementemente contra a posição teórica dominante do carácter ‘enganador’ e letal da teoria e da crítica, destacando ‘o lugar crucial da teoria e dos seus usos’ [Bhabha in Beach 2005: 1]. Não obstante, vai ganhando terreno a condição passe da

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questão intelectual, ou seja, hoje em dia, “a questão intelectual percorre o terreno dos media, dos centros comerciais, das camas e dos brothels” [Eagleton 2003: 3].

48 Esta questão (que é uma questão teórica) abre a porta para se problematizar o que posso denominar ‘cinismo da negação afirmativa’ que deve ser compreendido no âmbito do choque que está a acontecer, neste momento, não só no pensamento moderno ocidental [hegemónico e contra-hegemonico] que é um pensamento abissal, mas também entre a colonialidade deste notariado epistemológico e outras formas de produzir, divulgar e avaliar o conhecimento [cf. Sousa Santos & Meneses 2009, Sousa Santos 2009a, Paraskeva 2011]. Importa perceber e assumir que a crítica anti-ocidente, a crítica anti-europeista, a teoria anti-ocidente, a teoria anti-europeista, particularmente no campo da educação, não consegue deixar de ser ocidental e europeísta (Sousa Santos, 2009b); mais, também no desafio ao pensamento hegemónico ocidental “o conhecimento [ocidental] do outro” [não ocidental] é produzido como inexistente. Segundo Boaventura de Sousa Santos [2009a: 23-24], O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis. As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo deste lado da linha e o universo do outro lado da linha. A divisão é tal que o outro lado da linha desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente e é ao mesmo tempo produzido como inexistente. Tudo o que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro. O conhecimento e o direito modernos representam as manifestações mais bem conseguidas do pensamento abissal.

49 Assim, “no campo do conhecimento, o pensamento abissal consiste na concessão à ciência moderna do monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso; [a] sua visibilidade assenta na invisibilidade de formas de conhecimento que não encaixam em nenhuma destas formas de conhecer” [Sousa Santos 2009a: 25]. No fundo, prossegue Sousa Santos [2009a: 25], “do outro lado da linha não há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos, ou subjectivos, que, na melhor das hipóteses, podem tornar-se objectos ou matéria-prima para a inquirição científica”. As linhas globais do pensamento moderno são abissais no sentido em que eliminam definitivamente quaisquer realidades que se encontrem do outro lado da linha. As linhas globais do pensamento moderno são abissais porque assentam no culto peregrino radical da negação da co-presença. Esta linha abissal separa o verdadeiro do falso, o legal do ilegal, e o outro lado da linha compreende uma vasta gama de experiencias desperdiçadas, tornadas invisíveis, tais como os seus autores e sem uma localização territorial definida [Sousa Santos 2009a: 26].

50 O que aqui temos, compagina-se com “o mito da neutralidade ideológica e a imposição de um modelo ideológico único” [Meszaros 2005: xi-xiv]. Não obstante, prossegue Istvan Meszaros [2005: xii], “todos os avanços nos poderes produtivos da sociedade, as desigualdades tornaram-se incomensuravelmente maiores e estruturalmente mais profundas”. O clássico ‘optimismo persuasor’ de John Manyard Keynes [1963], segundo o qual, o ‘problema económico da sociedade – com uma teorização completamente divorciada das dimensões sociais – será completamente resolvido para sempre de tal forma que o dilema das futuras gerações será não terem com que se ocuparem, pois estarão esvaziadas de pressões económicas que são o verdadeiro motor social’, cai por terra. A grande questão – ou uma das questões cruciais no momento coetâneo – é que a

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‘teoria ateórica’ hegemónica neoliberal “quer um ser humano que nunca existiu e que ainda não existe e que provavelmente nunca existirá: um ser humano superiormente prudente no plano burocrático e um consumidor anarca nos shopings centers’ [Eagleton 2003: 28].

51 Nas sociedades capitalistas ocidentais (e não só), os discursos e teorias de cunho ideológico liberal/conservador, destaca Meszaros [2005: 3], “dominam a avaliação de todos os valores aponto de não termos a menor suspeita de que tudo se ‘edifica’ para que se aceite de forma incontestável um quadro particular de valores sempre alicerçados num culto científico que domina precisamente porque produz a ausência de outras formas científicas. É óbvio que não estamos a reclamar uma posição fundamentalista. Como avança Terry Eagleton [2003: 6] “nem todos [os intelectuais] são cegos relativamente ao narcisismo da cultura ocidental muito preocupado com a história dos cabelos púb[l]icos enquanto metade do mundo continua destituído de saneamento básico e sobrevive com menos de 2 dólares americanos por dia”. Todavia, também é um facto que muito do modelo contra-hegemonico ocidental assenta numa plataforma ocidental, o que é profundamente problemático, precisamente porque esse modelo consegue a sua ‘hegemonicidade’, produzindo não só amnésias, mas também silêncios e ausências insultuosas para lá da sua plataforma epistemológica. Ou seja, o pensamento moderno ocidental ergueu-se e solidificou-se produzindo e produzindo-se na esfera das políticas culturais da amnésia e da ingenuidade. A eugénica ideia de que não há pecados para além do Equador, deve ser mesmo vista no âmbito dessas políticas culturais. Mais do que a defesa de um modelo de virgindade cognitiva para lá do terreno ocidental moderno, produz-se e reclama-se uma ausência de qualquer forma de episteme, o que no fundo, só comprova ‘os temores’ de que sempre houve e de que há mesmo pecados para lá do Equador. Mais do que a desastrosa defesa secular de uma teorização e intelectualidade “sem genitais” [Eageton 2003: 4], o pensamento moderno ocidental (mesmo o contra-hegemónico) sempre assumiu uma posição ancilosada com muita dificuldade de ir para alem de si próprio, de se des-ocidentalizar. Muitas das batalhas entre as correntes hegemónicas e contra-hegemónicas re-ocidentalizaram o ocidente. A nova teoria critica deve ser vista no tálamo da teoria depois da teoria.

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NOTAS

1. University of Massachusetts, Department of Public Policy. Program Chair of the AERA Special Interest Group Marxian Analysis of Society, School and Education. Encontro-me em dívida para com Peter Mclaren, Jurjo Torres Santome, Clyde Barrow, Dennis Carlsson, David Hursh, Richard Quantz e Donaldo Macedo, por alguns dos argumentos aqui tratados. Registo ainda com apreço os contributos recolhidos pelos membros do Seminar on Critical Readings in Preseent Day Thought (SCRIPT) da University of Massachusetts, Dartmouth.

RESUMOS

Este artigo propõe um caminho possível para uma análise crítica em torno dos perigos das políticas de sloganização da educação. Para a consecução deste objectivo, o artigo contextualiza tais políticas no âmbito da estratégia desenhada pelo movimento hegemónico neo centrista radical que se tem empenhado em sucessivas estratégias de desideologização do discurso e das práticas educacionais. O artigo termina propondo ainda uma nova via para a teoria crítica, uma teoria crítica renovada, com forma de reconquistar o crítico no terreno da investigação e de combater seculares epistimicídios.

This article proposes a possible way for a critical analysis about the dangers of the sloganizing politics of education. To achieve this objective, the article contextualizes such policies within the strategy designed by the neo centrist radical hegemonic movement which has been engaged in successive de-ideologization strategies of discourse and educational practices. The article ends by proposing a new path of critical theory, a renewed critical theory, as a way to regain the critical field of research and to combat secular epistimicidiums.

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ÍNDICE

Keywords: Neo centrist radical, sloganizing, de-ideologization, new critical theory, epistimicidiums. Palavras-chave: Neo-centrismo radical, sloganização, desideologização, nova teoria crítica, epistemicidios.

AUTOR

JOÃO M. PARASKEVA Professor na University of Miami, Ohio (EUA). Fundador da Revista Currículo sem Fronteiras, coordena colecções na área da educação e do currículo e pertence ainda a vários conselhos editoriais de revistas científicas, entre elas o The Journal for Critical Education Policy Studies. Membro fundador do Paulo Freire Special Interest Group na American Educational Research Association. Tem artigos publicados em revistas científicas em Portugal e no estrangeiro e tem traduzido para língua portuguesa inúmeros trabalhos de intelectuais críticos dos Estados Unidos, Inglaterra e Espanha. De entre as suas publicações destacam-se As Dinâmicas dos Conflitos Ideológicos e Culturais na Fundamentação do Currículo; Ventos de Desescolarização – A Nova Ameaça à Escolarização Pública (em co-autoria com Jurjo Torres Santomé e Michael Apple); Diálogos Educacionais e Curriculares à Esquerda (em co-autoria com Luís Gandin e Álvaro Hypolito); Um Século de Estudos Curriculares; Génese do Campo de Estudos do Currículo (Volume 1), A Gestão Científica do Currículo (Volume 2); O Rio Curricular Progressista (Volume 3); Reinventar a Pedagogia Crítica; Tensões Gerais no Campo do Currículo; General Tensions in the Curriculum Field (Estados Unidos); Currículo, Multiculturalismo e Formação Docente (Volumes 1 e 2) (em co-autoria com Júlio Diniz Pereira e Gloria Ladson-Billings) e Marxismo e Educação (em co-autoria com Wayne Ross e David Hursh). Membro do Conselho Científico da Revista Angolana de Sociologia. É membro do Conselho Científico da Revista Angolana de Sociologia. [email protected]

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Desenvolvimento e sustentabilidade ecológica Towards to an Ecological Sustainability in Africa

Jacinto Rodrigues

NOTA DO EDITOR

Artigo pedido ao autor Artigo recebido a: 19/Maio/2011 Conclusão da revisão: 24/Junho/2011

1 Tenho vindo a afirmar, ao longo de vários anos e em vários congressos e publicações1, o surgimento de um novo paradigma e o esgotamento do chamado paradigma newtoniano.

2 Este confronto de paradigmas, que se manifesta de diversas maneiras, nomeadamente conflito aberto, integração e coexistência reformista, não está ainda resolvido e a sua superação transparadigmática não se conhece ainda. Na relação entre as sociedades e civilizações não há, aprioristicamente, soluções antecipadas e as metamorfoses são um processo constante e inacabado, umas vezes adaptativas, outras rupturais e outras ainda em contínua transformação. Os avanços ou os retrocessos dependerão, em última instância, da vontade política, das inovações tecnológicas na relação com a biosfera e das novas atitudes sociais.

3 No entanto, um novo paradigma começa já a aparecer claramente, diante do falhanço do modelo tecnocientífico que, hegemonicamente, se traduz pelo esgotamento das energias fósseis, pela contaminação do planeta através de materiais tóxicos e não recicláveis e pela exclusão social que tem aumentado o fosso entre países ricos e países pobres e entre classes abastadas e classes desfavorecidas. Assim o esbanjamento, o desperdício e a poluição na biosfera, estão a colocar o planeta à beira de graves crises ecológicas e sociais: mudanças climáticas, desertificação, desflorestação, diminuição da

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biodiversidade, restrição da água potável e aumento devastador das pegadas ecológicas, interferem e revelam a grave crise social do capitalismo.

4 Um outro paradigma, em que a ecotecnologia substitua a tecnociência esgotante e em que a tecnosfera dê lugar a uma ecotecnosfera reciclável e renovável, é necessário para acompanhar a luta pela justiça e o bem-estar das populações. Caso contrário, permanecerá a sociedade consumista, esgotante, manipulável e apenas reactiva.

5 Esta reflexão, levantada pelos altermundialistas, é cada vez mais clara para os investigadores, nas universidades, nos centros político-culturais e na sociedade civil onde, cada vez mais, se torna consciente a realidade destruidora do modelo urbano- industrial tecnocientífico, incapaz de responder aos novos desafios que se apresentam à Humanidade.

6 A ecologia, uma nova ciência com consciência, tem vindo desde o século XIX a tornar-se um factor decisivo para impedir o impulso suicidário, criado pelo antigo paradigma que antagonizou o “progresso” civilizacional à natureza.

7 Podemos lamentar a lentidão de alguns decisores face aos crimes ecológicos, podemos criticar as ilusões produzidas pela feérica alienação do antigo paradigma, consumista e produtivista, como uma atitude reactiva e pessimista. No entanto, para haver mudança tem que haver uma atitude proactiva: o novo conhecimento ecológico e as novas ecotecnologias, constituem um novo saber, uma nova competência, uma nova relação social e institucional e uma nova postura capaz de responder aos novos pressupostos que enfrentamos.

8 Sabemos hoje que a sucessão dos paradigmas, no processo da história, não resulta de um “progresso linear”. As etapas não se estabelecem segundo um finalismo mecânico ou providencialista. A consciência humana terá de participar nas escolhas do processo.

9 Sob o ponto de vista ecológico e contextualizando os acontecimentos históricos da humanidade na relação com a biosfera, tal como vemos em Edgar Morin [1993], René Passet [1996], Samir Amin [1989, 1994], Majid Rahnema [2006] e Joseph Ki-Zerbo [2006], podemos considerar três grandes momentos:

10 • Uma integração adaptativa do homem ao meio ambiente, em que o homem vive em simbiose com a natureza, quase sem impacto tecnosférico e em que a economia colectora, a caça e a pastorícia constituem os elementos essenciais da sobrevivência;

11 • Um processo em que o homem rompe com a sua simbiose em relação aos ecosistemas e desenvolve uma civilização de manufactura mas ainda de impacto biosférico pouco acentuado;

12 • Um processo de máquino-factura, processo industrial em que as máquinas alimentadas dominantemente por energias fósseis e poluitivas produzem lixos tóxicos, instaurarando uma civilização que rompe com os equilíbrios ecosistémicos, gerando uma tecnosfera impossível de ser sustentada pela biosfera.

13 Encontramo-nos nesta última etapa, produzindo um metabolismo linear que, por não ser reciclável, típico do processo mecanicista e contrário ao funcionamento sistémico dos ecosistemas, não permite a regeneração da biosfera.

14 Duma forma muito concisa e apoiado por exemplos precisos, apontarei neste artigo um desenvolvimento ecologicamente sustentado em que a sociedade e o território, a cultura e a civilização terão que, sistemicamente, interagir recriando um metabolismo

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circular que permita a actividade produtiva dos homens, como uma actividade baseada nas energias renováveis, na reciclagem de materiais e na inclusão social.

15 Nesse metabolismo circular terão de desaparecer as noções de lixo orgânico e tecnológico para dar lugar a nutrientes orgânicos e ecotecnológicos, capazes de integrarem o novo ciclo (reprodutivo e regenerativo) da biosfera.

16 Pretendo apontar várias experiências práticas que existem em diversas partes do planeta e que, de algum modo, permitem visualizar um outro mundo possível. Trata-se de estimular a visualização de factos concretos que nos mostram a possibilidade, aqui e agora, de intervir no território, nas cidades e nos campos.

17 A mudança somos nós próprios que a fazemos, como dizia Gandhi.

18 Começarei, em primeiro lugar, com a experiência de Wangari Muta Maathai [2007], que iniciou o movimento do “Green Belt” (cintura verde) no Quénia e que hoje é um dos mais conhecidos movimentos internacionais. Wangari Muta Maathai defende que, com uma semente, planta ou pequena árvore, podemos iniciar a mudança. Com efeito, face ao perigo das mudanças climáticas, da desertificação e da fome no mundo, o simples gesto de plantar é o princípio duma regeneração essencial, urgente e decisiva para a mudança. Associando homens e mulheres numa tarefa comum e de interesse público, o Movimento de Wangari Muta já plantou mais de 35 milhões de árvores.

19 A mensagem essencial de Wangari é muito clara: “com o simples acto de plantar uma árvore tu podes melhorar o teu habitat. Deste modo, a população toma consciência de que pode influenciar o seu meio e isto é o primeiro passo para uma maior participação na vida da sociedade”. Ela também afirmou, neste mesmo discurso que fez ao receber o prémio Nobel da Paz que, se uma pessoa quiser salvar o ambiente, terá primeiro de proteger o povo.

20 Este exemplo de Wangari Muta Maathai revela uma forma de esperança no processo de mudança social e participada. Com efeito, qualquer cidadão com o mínimo de meios (uma semente ou uma planta) mas com a consciência de participar no bem público, pode intervir na mudança. São muitas as possibilidades que Wangari abre para esta nova militância eco-social de múltiplos efeitos na comunidade local e no planeta. A escolha selectiva de sementes, a criação de viveiros, a busca de uma maior diversidade, a plantação de ervas medicinais e aromáticas, plantas depurativas e de plantas úteis para a alimentação e a saúde como a Moringa, o Neeme e a espirulina constituem, quando plantadas de forma planeada, uma extraordinária intervenção contra a fome, a doença e a desertificação.

21 A segunda personagem que quero referir é o padre dominicano Goodfrey Nzamujo [2002], nigeriano de origem e americano de passaporte, que fundou no Benin (em Porto Novo) o Centro Agroecológico de Songhai. Este centro é um modelo de escola de formação para o “combate à pobreza, tornando os pobres produtores”. É um modelo de formação baseado no conceito agroecológico da relação integrada dos ecosistemas e sua dependência entre agricultura, pecuária e piscicultura.

22 O Centro de Songhai tornou-se, para a ONU, um “centro de excelência”. O seu objectivo é desenvolver um saber fazer, uma competência consciente dos seus objectivos que visa a autonomia utilizando ecotecnologias e uma agricultura biológica cujos nutrientes naturais promovem a sustentabilidade ecológica. Assim, o metabolismo circular, baseado no princípio de que na natureza nada se perde e tudo se transforma, tem duas vertentes interligadas, a saber:

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23 • O ciclo orgânico, onde o vegetal vai nutrir o animal que, por sua vez, vai nutrir o vegetal através da regeneração dos dejectos metamorfoseados em composto nutritivo dos solos.

24 • O ciclo ecotecnológico do agricultor e do produtor ecológico que, usando uma ecotecnologia feita na base das energias renováveis e com materiais recicláveis, realiza uma agroecotecnoprodução à escala humana e fabrica as máquinas e os utensílios múltiplos, reutilizáveis ou recicláveis. Este ciclo ecotecnológico e social reproduz uma ecotecnosfera, sem esgotar nem poluir a biosfera.

25 No primeiro ciclo, o orgânico, as próprias águas usadas são recicladas, passando em sucessivas lagunagens de plantas biodepurativas (jacintos de água, fragmitas comunis, etc.). Essa água, tornada limpa pela assimilação dos nutrientes orgânicos feita pelos ecosistemas, permite a cultura de peixes e outros fins. As plantas biodepurativas são posteriormente misturadas com os dejectos dos animais e vão ser compostados, graças aos microrganismos (os decompositores), de modo que os novos nutrientes orgânicos ajudem ao enriquecimento dos solos e à regeneração da biosfera.

26 Quanto ao segundo ciclo (o ecotecnológico), o padre Nzamujo, Doutor em Microbiologia, Electrónica e Ciências do Desenvolvimento, concebeu utensílios e máquinas que são os meios de produção apropriáveis, simples de fabricar, utilizar e reciclar.

27 Este exemplo é um exemplo que é uma matriz para qualquer tentativa de se criar um centro de formação, pois trata-se de uma escola que é uma escola de trabalho e de vida em que o aldeamento, a formação ecológica e a ecotecnologia constituem um processo integrado para o saber, o saber fazer, o relacionar-se com os outros e o alargamento da consciência.

28 A terceira personagem que aqui quero referir é o arquitecto Mick Pearce [1997]. Mick Pearce nasceu em Harare, no Zimbabué. Organizou um grupo de arquitectos para a paz “Architects for Peace”. Construiu em Harare, um edifício (“Eastgate”) de escritórios e comércio que é um símbolo no habitat, que revela um sentido cívico e ecológico do maior interesse para África.

29 Baseou-se na filosofia do biomimetismo (“biomimicry”), desenvolvido por Janine Benius, em que se considera que a próxima revolução não será fundada no que se explora da natureza mas sobre o que se aprende dela. Trata-se essencialmente de nos inspirarmos no funcionamento dos ecosistemas naturais para resolver os desafios que se colocam à Humanidade e ao planeta. Duma forma integrada e participada, articula-se a energia, a construção e a bioclimatização duma forma mais natural.

30 Na Europa, metade da energia é gasta em sistemas de aquecimento, enquanto que em África essa metade é gasta em sistemas de arrefecimento.

31 Mick Pearce conseguiu, com o edifício “Eastgate” e baseando-se no estudo e investigação à volta das formigas termiteiras, estabelecer um sistema natural de bioclimatização que permite uma temperatura constante de 27 graus, mesmo que no exterior estejam 40 graus centígrados.

32 Com esta experiência exemplar, este arquitecto veio estabelecer duas novas importantes atitudes, que são:

33 • Uma postura proactiva diante da natureza que, em vez de explorar, estabelece uma relação simbiótica que permite aprender com a natureza, aproveitando as

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potencialidades complementares para uma relação solidária do homem e da própria natureza.

34 • Mais do que investimentos tecnológicos, sofisticados, pesados e não apropriáveis, o importante são as soluções engenhosas que, partindo duma observação científica e rigorosa, permitem converter situações aparentemente antagónicas em complementaridades úteis. Com este edifício de “Eastgate”, Mick Pearce permite (através de aberturas e canais que imitam os sistemas de arejamento das termiteiras) utilizar a passagem do ar fresco para bioclimatizar; ao mesmo tempo, construindo um pátio com um pé direito alto no meio do edifício, gerou uma chaminé que retira de forma natural o ar quente. Os alvéolos existentes na zona inferior do edifício permitem a entrada do ar fresco que, de forma natural, à medida que vai aquecendo, vai subindo para a parte mais alta do edifício.

35 Com estes princípios de biomimetismo, que têm sido desenvolvidos em muitos edifícios actualmente construídos, grande parte deles com materiais naturais (terra e madeira), economiza-se 35% de energia, baixando assim também os alugueres em cerca de 20%. Este exemplo implica pensar sempre a habitação ligada à ecologia e à cidadania.

36 Estas inovações de Mick Pearce podem ainda ir mais longe, utilizando, como já se faz em muitos sítios, através de processos de ecoconstrução (uso de adobe, bambu, etc.) toiletes secas, vegetalização dos tectos, recuperação das águas pluviais, biodepuração de águas residuais e implantação de jardins bioclimáticos, úteis e agradáveis.

37 Para além dessas intervenções a nível dos dispositivos topológicos, há que desenvolver protótipos de energias renováveis, em especial fornos térmicos solares multifuncionais que, em África começam já a ser utilizados na produção de tijolos, cerâmica, siderurgia e panificação.

38 Concluindo, podemos dizer que estes são alguns passos para o início do desenvolvimento ecologicamente sustentável. Não há receitas. Há apenas caminhos experimentáveis e exigindo constantes balanços, que vão da responsabilidade do cidadão às decisões políticas das elites.

39 As intervenções poderão ser feitas pela sociedade civil, pelas empresas e pelo Estado. O processo para o novo paradigma exige muita cooperação entre os homens e os povos nas comunidades, nos países e nos continentes.

40 Acções múltiplas, locais e globais, pressupõem uma nova solidariedade em busca da complementaridade e cooperação entre as civilizações, entre os grupos sociais, entre uma nova ecotecnologia para um planeta vivo.

Síntese pedagógica

41 O desenvolvimento ecologicamente sustentável é um processo novo que se opõe às três grandes domesticações (submissão, exploração e consumismo) que os indivíduos e os povos sofreram ao longo dos anteriores paradigmas. Esses paradigmas geraram formas de poder assentes nas classes antagónicas. Em África, podemos encontrar formas exemplares alternativas, que apontam para o novo paradigma emergente.

42 1. Contra a falta de auto-estima, a dependência e a passividade, Wangari Muta Maathai desenvolve uma militância eco-social “local e global”, no interesse individual, comunitário e planetário. A Associação “Green Belt” dirige-se para a criação do equilíbrio planetário através da paz social. Wangari Muta Maathai ensina-nos que se

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pode agir na mudança com meios mínimos a favor da biodiversidade, sementes, plantas e árvores, organizando o povo contra: a fome (uma agro-floresta e agricultura), a doença (plantas medicinais e biodepurativas) e a desertificação (reflorestamento para a mudança climática).

43 O essencial:

44 Wangari Muta defende uma vontade participativa do indivíduo aos grupos, das pessoas às comunidades, com meio agro-ecológicos simples, em busca da biodiversidade, da saúde alimentar e do bem-estar.

45 O motor fundamental de mudança é a sociedade civil (cidadãos e associações).

46 2. Goodfrey Nzamujo, educador e criador duma escola comunitária de trabalho e de vida (Centro Shongai), combate a pobreza tornando os pobres produtores. Utiliza a simbiose ecosistémica do metabolismo circular na natureza para os nutrientes orgânicos (águas residuais, detritos orgânicos) e para os nutrientes tecnológicos (instrumentos, utensílios, ferramentas e ecoconstruções).

47 Criar solidariedade aprendendo a aprender, através de teoria e prática. Assegurar, pela comunidade, a sustentabilidade e ajuda do próximo e ao mesmo tempo assegurar a continuidade dessa sustentabilidade alargada a outros vindouros. É uma ajuda da comunidade para que eu possa ajudar-me a mim mesmo. Ao mesmo tempo, tendo-me ajudado a mim próprio, com a ajuda dos outros, eu ajudo o outro, para que ele se possa ajudar a si mesmo. Assim, podemos perpetuar uma ajuda que permita a outrem ajudar- se a si mesmo, de modo a que, de uma forma saudável, o indivíduo possa ajudar a comunidade a ajudar-se.

48 Através da quinta, dos ateliers e das oficinas pode-se dar conhecimento, capacitar e produzir comércio justo.

49 O essencial:

50 Articular a simbiose ecosistémica com uma cultura solidária de mútua ajuda social.

51 O motor fundamental de mudança é a escola – as instituições de formação e animação sócio-cultural.

52 3. Mick Pearce, através do Movimento Arquitectos para a Paz, no Zimbabué, construiu um edifício baseado num sistema bioclimático e ecoconstrutivo, que se opõe à dependência consumista veiculada pelas tecnologias sofisticadas e pelos materiais e instrumentos contaminantes. Criou uma ecotecnologia inspirando-se nos ecosistemas da natureza e não em máquinas esgotantes, que poluem e são a expressão duma tecnociência, já ultrapassada, do paradigma anterior. Desenvolve assim dispositivos topológicos de ecoconstrução, com energias renováveis, procurando um pensamento ecológico e sistémico em que as polaridades convergem num território ecologicamente sustentável.

53 O essencial:

54 Uma ecosofia para uma tecnosfera em equilíbrio ecológico com a biosfera, através de construções ecologicamente sustentáveis.

55 Os motores fundamentais da mudança são as empresas justas e o Estado-providência.

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BIBLIOGRAFIA

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NOTAS

1. Ver Rodrigues 1993a, 1993b, 2001, 2002, 2005, 2006, 2007a, 2007b, 2007c.

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RESUMOS

O novo paradigma ecológico terá que constituir-se com inovações ecotecnológicas em relação à biosfera e estabelecer novas atitudes sociais através de comportamentos éticos que impeçam esgotamento da biosfera, poluição e exclusão social. Em África, Wangari Muta Maatai revelou que as atitudes simples, como plantar uma árvore ou semear, associando homens e mulheres num interesse comum e público, podem contribuir para a justiça social e melhoria do planeta. O padre dominicano Dr. Ngofrei Nzamujo, criando o Centro ecológico de Songhai, no Benim, estabeleceu um modelo de escola de vida sustentável, baseando a formação, produção e o relacionamento numa actividade ecosistémica. Micke Pierce, no Zimbabwe, construiu um edifício baseado no biomimetismo (método criativo com base no funcionamento orgânico da natureza) que responde às necessidades bioclimáticas da região usando uma ecotecnologia apropriável. Estes são alguns dos passos para impulsionar um desenvolvimento ecologicamente sustentável.

The new ecological paradigm will have to constitute with ecotechnological innovations in relation to the biosphere and to establish new social attitudes through ethical behaviors that hinder exhaustion of the biosphere, pollution and social exclusion. In Africa, Wangari Muta Maatai disclosed that the simple attitudes, as to plant a tree or to sow, associating men and women in a common and public interest, can contribute for social justice and improvement of the planet. The Dominican priest Dr. Ngofrei Nzamujo, who created the ecological Center of Songhai, at Benim, has established a model of school of sustainable life, basing the formation, production and the relationship in a ecosystemical activity. Micke Pierce, in Zimbabwe, constructed a building based on the biomimicry (creative method on the basis of the organic functioning of the nature) that it answers to the bioclimatic necessities of the region using an appropriating ecotechnology. These are some of the steps for stimulate an ecologically sustainable development.

ÍNDICE

Palavras-chave: Ecologia, ciência com consciência, ecotecnologia, ecotecnosfera, inclusão social, metabolismo circular, simbiose, biomimetismo, tecnociência, tecnosfera, exclusão social, metabolismo linear. Keywords: Ecology, science with conscience, ecotechnology, ecotechnosphere, social inclusion, circular metabolism, symbiosis, biomimicry, technoscience, technosphere, social exclusion, linear metabolism.

AUTOR

JACINTO RODRIGUES Arquitecto, urbanista e ecologista, é ainda filósofo e historiador de arte. É Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (Portugal) e investigador no Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP). Estudou na Université de Paris-Sorbonne, École Pratique des Hautes Études, Université de Paris VIII, Université de Rennes 2, Universidade do Porto e Universidade Nova de Lisboa. É autor de estudos antropológicos e culturais, bem como de exposições e documentários. Em Angola, os seus

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mais recentes estudos dizem respeito a questões ecológicas e ao Deserto do Namibe. É autor, dentre outros, dos livros: Sociedade e Território - Desenvolvimento Ecologicamente Sustentado (2006), Conspiração Solar do Padre Himalaya (1999), Arte, Natureza e Cidade (1993), Ecodesenvolvimento, Arte, Urbanismo e Arquitectura (1993), Álvaro Siza, Obra e Método (1992), A Bauhaus e o Ensino Artístico (1989), Ecologia (1982), Utopia, Espaço & Sociedade (1979), Perspectivas sobre a Comuna e a 1ª Internacional em Portugal (1976), Urbanismo, uma prática social e política (1976), Urbanisme et Révolution (1973). [email protected]

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Medo e vergonha: emoções comunitárias e emoções sociais Fear and shame, emotions and social emotions Community

António Pedro Dores

NOTA DO EDITOR

Artigo pedido ao autor Artigo recebido a: 13/Maio/2011 Aceite para publicação: 17/Junho/2011

Medo e vergonha: emoções comunitárias e emoções sociais

1 Ferdinand Tonnïes enunciou os tipos de relações básicas em comunidade, a saber: as relações maternais (entre mãe e filhos), as relações conjugais e as relações fraternais (que ligam pessoas sem referência à sexualidade de cada uma). O autor referia-se a relações de empatia, sintonia e solidariedade ancoradas no instinto de reprodução, sem o qual a espécie não teria vingado. Amor é o nome das emoções que acompanham os dois primeiros tipos de relação. Amizade (um amor assexuado) acompanha o terceiro tipo.

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Quadro 1. Distinções comunidade/sociedade segundo Tonnïes

2 Esta tipologia está marcada pelo naturalismo positivista. Não contempla as relações de poder (centro, seguidores, periferia, inter-societal) nem os diferentes estados de desenvolvimento (dependente, autónomo, doente, inter-geracional). Mas tem a vantagem da validade universal para toda a espécie humana. As perspectivas centradas no poder e/ou no desenvolvimento tornam-se vulneráveis aos culturalismos etnocêntricos e/ou relativistas.

3 Para quem deseje repensar o lugar da igualdade na teoria social, revisitar e aprofundar a perspectiva do clássico alemão é uma pista. O amor, a vida que se reproduz, os tipos básicos de ligações sociais entre indivíduos, são universais na espécie humana. Como também são universais aspectos negativos como o medo, a morte, a impossibilidade prática de estabelecer relacionamentos sociais desejados, num mundo ambientalmente e socialmente imprevisível.

4 Por razões biológicas, o medo faz-se sentir de forma especialmente intensa em pessoas com responsabilidades por filhos pequenos ou quando os riscos de vida são pressentidos como eminentes. Isso é facilmente observável nos que são pais pela primeira vez e também no espírito das comunidades mobilizadas para a guerra. Só é possível mobilizar para a guerra manipulando um medo ancestral incontrolável através de poderes instituídos, que aprenderam a fazê-lo ao longo dos tempos em proveito próprio e alheio. A manipulação do medo é parte evidente do trabalho político também no caso dos estados modernos.

5 Para Thomas J. Scheff, não são o amor nem o medo as principais emoções sociais. Scheff [2002] defende ser a vergonha (contraparte negativa do orgulho) a emoção social por excelência, por a entender como sinal presciente do risco de quebra de laços sociais numa determinada situação. Activista contra a guerra, o autor refere-se à experiência pessoal de ter tido vergonha de contrariar seu pai quando foi mobilizado para a guerra. Teve então de escolher entre negar-se a combater, e ser tomado (e provavelmente abandonado) por seu pai como cobarde por se declarar objector de consciência, assumindo também a mais que certa acusação de traidor ou refractário que o Estado reservava para tais tomadas de posição, ou alistar-se como a maioria. Entende hoje ser uma das suas tarefas prioritárias a denúncia do sentimento de vergonha de ter tido vergonha de ir para a guerra – na altura, mais do que actualmente, isso seria tomado como manifestação de falta de virilidade (numa altura da vida pessoal particularmente vulnerável a tais acusações). Pensa que a tomada de consciência social da existência de um tal mecanismo de segredo social e dos modos de o revelar a cada ser humano,

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ultrapassando os traumas viciosos da vergonha de ter vergonha de não corresponder ao padrão de masculinidade dominante, serão contributos valiosos para os pacifistas porem em prática.

6 A sociedade a que se refere Scheff não é o núcleo reprodutivo em que pensa Tonnïes. É a sociedade da linha de comando que permite a um chefe militar ordenar aos chefes de família a mobilização dos seus filhos para defesa ou a honra da comunidade. O que está em causa não é a relação com a mãe, como no autor alemão, mas antes a relação com o pai (poder e desenvolvimento fora do seio familiar) e a extensão das relações fraternais entre homens ligados entre si, em forma de gerações, para trocarem recursos, incluindo filhos para guerrear. Quando a vergonha é mais forte do que o medo, as pessoas tornam-se capazes de dar a vida (num suicídio altruísta, como o classificou Durkheim) em função das necessidades sociais, tal e qual elas são dispostas pelas autoridades.

7 A tese deste artigo é a de que o medo está para a vergonha como a comunidade está para a sociedade. E que a vergonha de ter vergonha, de que nos fala Sheff, é melhor descrita como o medo de ter vergonha, isto é, o sentimento de saber ser existencialmente arriscado apresentar-se a terceiros como portador de um qualquer tipo de fragilidade (falta de virilidade, por exemplo), da qual outrem venha a servir-se para concorrer, explorar ou excluir quem tenha assinalado a sua própria fraqueza. Uma coisa é perder uma relação social importante com uma pessoa rara. Outra coisa é viver a vida como se fosse a vida de outrem (como quando se está preso, condenado, ostracizado, estigmatizado) com quem não temos relação possível, só porque a sociedade nos impôs uma posição que não é a nossa. A violência física, que põe em causa a existência dos indivíduos, não é a única fonte de medos: a violência capaz de manipular as relações sociais também causa medos, tão fortes quanto os medos dos riscos imediatos percepcionados contra a integridade física das pessoas.

8 Quando se prega um susto a alguém, provoca-se um mecanismo automático dos corpos humanos. Tal bio-mecanismo salvou, com certeza, muitas vidas aos nossos antepassados, quando os riscos directos à vida eram maiores do que hoje são (para os que vivem como aqueles que escrevem e lêem este tipo de literatura). No dia a dia continuamos a sentir medo quando nos ameaçam com exclusão por falta de disciplina ou por arbitrariedade, como na escola ou no emprego ou na família. Por mais seguro que seja o ambiente em que o susto nos seja pregado, só depois de vivermos o medo nos rimos de vergonha de não termos sido capazes de controlar tal reacção primária em frente dos amigos, de cuja benevolência não duvidamos. A um desconhecido que nos pregar um susto mostrar-nos-emos zangados, duvidaremos das suas intenções. A vergonha emerge prioritária quando não há perigo para a integridade física.

9 Da mesma forma, ainda que em sentido inverso, uma declaração de guerra suscitada ao debate público ocidental pelos respectivos governos merecerá à opinião pública resistências – dado o passivo histórico das colonizações e agressões belicistas desproporcionadas e injustas. O primeiro sentimento popular dominante será o de vergonha pelas manobras políticas para mobilizar recursos para a guerra e pelas alegações, quantas vezes inverosímeis, avançadas para justificar o injustificável. Uma vez começada a acção, porém, tudo o muda. A vergonha (o pressentimento de estar em risco a relação social entre o povo e os seus dirigentes) dá lugar ao medo – o pressentimento de estar em risco a própria humanidade, por um lado das vítimas mais directas do conflito e, por outro lado, dos povos que sustentam os poderes belicosos, assumindo com eles o desprestígio das guerras injustas.

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10 O medo pode ser definido como a emoção que assinala o sentimento existente de a integridade do indivíduo estar em risco e faz disparar o coração, preparando o corpo e a mente para a acção intensa, em contraste com a vergonha, definida por Scheff como o sinal de presença de riscos para os laços sociais das pessoas, o que faz ruborizar a face. No primeiro caso, a concentração do indivíduo fixa-se em si mesmo e na reacção automática que o assaltar antes de conseguir pensar – deixar de se mexer e resistir, atacar ou fugir. No segundo caso, a atenção da pessoa será mobilizada de modo a captar com todos os sentidos as intenções de terceiros, de modo a preparar a reparação dos laços sociais em risco, consoante a interpretação que faça da situação, com tempo para pensar.

11 Na mesma medida que comunidade e sociedade são, afinal, dois aspectos da mesma realidade (a sociabilidade espontânea da natureza humana desenvolvida e herdada através dos tempos), também o medo e a vergonha surgem confundidos um no outro, do magma emocional emergente do material de que somos feitos. Distingue uns dos outros o tempo de actuação (automático, informal e incorporado para o medo e para a comunidade; controlável através do desenvolvimento da reflexividade, da formação e do poder para a vergonha e a sociedade).

12 Tomamos para estudo três casos para ilustrar a co-presença conjugada de medo e vergonha em comunidade e em sociedade (ver quadro 2).

Quadro 2. Distinções comunidade/sociedade medo/vergonha nos casos concretos

13 Zalmen Gemma [2008] foi um judeu capturado pelos nazis e enviado para campos de concentração. Em Auschwitz tornou-se Sonderkommando, isto é trabalhador escravo que tirava os corpos das câmaras de gás e os levava para o crematório. Escreveu secretamente para dar testemunho aos vindouros do que ocorreu com ele e com milhões de outras pessoas, em segredo. Como se ninguém, ao tempo, quisesse saber. Mesmo aqueles que os viam passar pelas linhas de ferro, transportados como hoje em dia é proibido transportar gado.

14 Juntamente com a família, Zalmen foi transportado para o campo onde haveria de morrer. Ele relatou como para quem ia dentro dos comboios, desesperançados dalguma solidariedade dos que os viam passar e certos de serem imediatamente mortos pelos agentes que os acompanhavam ao menor sinal de resistência, restava a ilusão auto-

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administrada de não ser a morte o destino que os esperava, mas antes o trabalho escravo como esforço de guerra. O autor explica como os raros resistentes eram imediatamente eliminados e como quem insistia a apelar à lucidez era ignorado e mesmo reprimido pelos restantes. Pela simples razão de ser impensável aquilo que viveram.

15 O editor chama à atenção para o facto de os Sonderkommando, cativos poupados à execução imediata à chegada a Auschwitz para integrarem o funcionamento do campo, terem má fama. Espécie de traidores ou colaboracionistas. Pessoas que preferiram sobreviver do que acompanhar os seus companheiros na morte. Na verdade, como relata o texto de Gemma, à chegada do campo de concentração estes trabalhadores viviam o brutal luto da morte dos seus entes mais queridos sem terem oportunidade de ver os corpos. Manter a própria sanidade mental em tal circunstâncias reclamava já, com certeza, um esforço tremendo. Ou, por outra, a lucidez podia finalmente libertar-se do segredo social a que tinha vindo aperreada anteriormente. Era a cognição que podia fazer o luto, e não as emoções, à falta dos corpos dos seus entes queridos, perante o excesso de cadáveres com que trabalharam e perante o horror da certeza das intenções genocidas dos carcereiros. A vergonha sucedia ao medo e informava os vindouros através da escrita. (A imaginação que apresenta os Sonderkommando como pessoas que teriam de alguma forma tido alguma influência na escolha que sobre eles recaiu para se tornarem em trabalhadores, que trabalhavam em troca da benesse de estar vivo e de ter melhor alimentação do que os restantes, tal imaginação é a mesma que produz estigmas sociais em todas as sociedades do mundo. O autor não se lhe refere).

O medo dos imigrantes

16 Ao entrevistar imigrantes em Lisboa sobre o que entendem ser a justiça, em Portugal e no mundo, António Pedro Dores [2009] observou aquilo que descreveu como medo. Medo de falar das suas relações sociais actuais, incluindo relações familiares com outros imigrantes a viverem perto; medo sobretudo de falar de casos práticos de injustiça quando a tal foram solicitados. Medo de errarem o julgamento politicamente correcto que o sociólogo iria certamente apreciar na obscuridade do seu “laboratório”, sem recurso a contraditório. Medo incutido por amigos quando lhes falavam do convite de colaborarem com um estudo sociológico: para que serviria tal estudo? O medo podia ser tão forte que levou um dos nossos entrevistados a fugir perante a presença da entrevistadora no local de trabalho (um café) à hora anteriormente combinada presencialmente. O mesmo medo foi confessado noutro caso, quando o entrevistado explicou as consequências de ter confessado as suas necessidades e os seus recursos a um colega imigrante, como forma de desabafo. Isso foi utilizado pelo seu interlocutor para tirar proveito disso, em prejuízo dos interesses de quem se abriu à solidariedade alheia. Lição: há que ter cuidado com o valor operacional daquilo que se sabe e daquilo que se diz. Medo com causas múltiplas e difíceis de identificar, espelhado nas recusas em colaborar em certas circunstâncias, nomeadamente quando chegava a altura de passar das discussões doutrinárias (sobre o que entendiam por justiça) para a apresentação de casos de (in)justiça que lhes tivessem marcado a vida ou pelo menos a memória, casos ocorridos com os informantes ou com pessoas suas conhecidas ou até casos de conhecimento público e mediático.

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17 Medo confirmado por especialistas em questões de imigração. Disseram dever-se isso aos traumas porque passam os imigrantes, nomeadamente devido à necessidade de viverem durante algum tempo em contacto com o mundo do crime, que controla e explora como pode circuitos clandestinos de imigração – pois os Estados, na altura como actualmente, negligenciam a regulação de tais mercados. Medo, portanto, de serem perseguidos pelos riscos que assumiram ao imigrar, de serem alvo de armadilhas para os explorarem ainda mais, de estarem vulneráveis a um qualquer ataque administrativo, de que alguém tome pessoas que amam como moeda de troca para qualquer tipo de transacção ou chantagem.

18 Frequentemente, o medo é entendido como uma emoção que provoca forte contenção da acção – ou, em alternativa, uma forte reacção de fuga. O facto de ter sido registado um caso de fuga será suficiente este caso de medo para confirmar todos os outros casos como medo? Quando uma jovem mãe chora e se recusa a dar informações sobre casos concretos de (in)justiça de que tenha memória, estaria ela a sentir medo?

19 Este choro, ou mesmo a fuga, não poderiam ser melhor descritos como vergonha, no sentido de Scheff, sentimento de estarem em risco ligações sociais? Ou ainda, seguindo também a proposta do mesmo autor, não seria a vergonha de sentir vergonha, próprio da modernidade, por consciência da incapacidade de defesa perante a intromissão do Estado na sua vida?

20 Para considerar esta hipótese, de aquilo que parece medo e pode ser descrito consensualmente como medo ser de facto vergonha (ou vergonha de sentir e expressar vergonha), há que explicar as razões que levam tanto os actores sociais (neste caso os imigrantes) como os observadores mais solidários com eles (os especialistas sobre questões de imigração) a concordarem em encenar e reconhecer sintomas de medo, como forma de esconder a vergonha.

21 Eis uma explicação possível: o medo não é estigmatizado socialmente, nas nossas sociedades actuais, a não ser em circunstâncias institucionais muito particulares (na tropa, na polícia, em actividades desportivas violentas, nas educações mais valorizadoras das virtudes viris). As sociedades modernas, como mostra Norbert Elias, distinguem-se por serem civilizadas, isto é, por imporem a incorporação de sentimentos de repugnância individual perante a violência como regra de integração e convivialidade. Manifestar medo, portanto, é aceite como uma expressão de cultura e civilidade contra a brutalidade, seja dos tipos de sociedades historicamente precedentes, desconsideradas como subdesenvolvidas, seja dos espaços sociais anormais, incultos, marginais, criminosos, desconsiderados como perigosos e em vias de extinção, em parte pelas forças da ordem e da justiça.

22 A vergonha, essa, como mostra Thomas J. Scheff, é vergonhosa, por assim dizer. Como diria Durkheim, nas sociedades organizadas em torno de uma divisão de trabalho alargada a milhões de seres humanos, dependentes entre si do bom funcionamento da ordem e das funções institucionalmente diferenciadas, os riscos de perda das conexões sociais – por exemplo, no desemprego, na doença, na loucura – são riscos sociais relevantes: são anomia, sinal de doença social que deve ser tratada e minimizada.

23 Vergonha e medo, como qualquer outro sentimento, habitam todos os seres humanos em permanência, como refere Scheff. Ocorre em determinadas circunstâncias emergirem à superfície como um clímax, obrigando à expressão física e, portanto social, de formas de escape de tais erupções emocionais. Não havendo risco de vida, o

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medo seria uma revivescência do passado trazido à memória pelo apelo do investigador ou seria, na verdade, vergonha. Um estrangeiro sem direitos de cidadania garantidos, em processo de reintegração social numa sociedade pouco conhecida, mas que o seu interlocutor deve conhecer melhor que ninguém, obrigado a “passar no exame” (como frequentemente é entendida a prática de entrevistas pelos entrevistados com menos confiança nas suas capacidades cognitivas), apesar de ter consentido a entrevista (uma forma de testar a sua capacidade de integração social, como medir a tensão arterial pode medir o bem-estar bio-químico do corpo) a dado momento do processo a vergonha pode tornar-se compulsiva e despoletar a vergonha de ter vergonha, um processo de ocultação da vergonha.

24 Na ocasião, o resultado prático, ainda que não planeado, resulta satisfatório: trata-se na prática de romper a relação social com o entrevistador para assegurar as relações sociais permanentes. Impondo, ao mesmo tempo, a solidariedade social espontânea gerada pela exposição da fragilidade existencial de um ser humano perante os outros [cf. Goleman 2010/2006]. Aqui se separa a função do sociólogo e do polícia.

25 Ser imigrante é, ao mesmo tempo, reconhecer a superioridade da sociedade de acolhimento e a exterioridade da comunidade de acolhimento (de facto, a mesma). A vergonha (risco de falta de ligações sociais) é reparada com o medo (sinal de risco para a integridade individual) – como o vice-versa também acontece. Isso corresponde bem ao espírito de submissão do imigrante, que contrasta com a posição dos seus filhos, ditos imigrantes de segunda geração.

O romance Museu da Inocência

26 Orhan Pamuk [2010/2008] ganhou um Prémio Nobel da literatura, com uma versão revista e modernizada de Romeu e Julieta. Os suicídios dos protagonistas modernos, Kemal e Füsun, habitantes de Istambul, aparecem desencontrados, como na peça de Shakespeare, mas envergonhados em vez de trágicos. Em ambas as histórias os protagonistas não alcançam nem o poder nem o controlo das forças sociais que os arrastam para longe dos respectivos objectos de amor. Mas enquanto o autor inglês produz uma declaração de desejo de paz universal em nome do amor e contra as guerras fratricidas, ainda hoje glosada pelas rainhas de beleza e muito apreciada também nas festas de Natal, o autor turco denuncia a inocência de quem toma demasiado a sério as promessas de felicidade da modernidade.

27 Os fenómenos sociais que se opunham ao amor dos protagonistas turcos eram os habitus de classe cruzados com os padrões de comportamento de género. Ou, dito de outra maneira, a sedução da modernidade importada (da Europa ocidental e dos EUA) e a transformação emocional que tais vivências impunham a cada pessoa singular, especialmente às mulheres, sem que houvesse qualquer curso de formação ou tempo de reflexão.

28 Kemal estava noivo e sentia-se feliz pelo sucesso da sua família, dona de prósperos negócios de import-export, e pelas qualidades socialmente muita apreciadas da sua noiva. Poucas semanas antes da festa pública (para a classe burguesa de Istambul) de noivado, aconteceu uma série de encontros sexuais com a jovem Füsun, filha de família humilde ansiosa por encontrar um caminho para partilhar com a parte ocidentalizada da sociedade turca o crescimento económico e a abertura ao mundo. Na véspera do noivado, Füsun entrega o seu destino nas mãos do super feliz Kemal, que sonha fazer

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dela sua amante, antes mesmo de festejar o noivado. Eis o equívoco do protagonista, que lhe vai custar um suicídio social. A partir de então, na falta de Füsun (que desaparece), Kemal não está mais em condições de viver, embora sobreviva ao isolamento dos amigos, à ruptura do noivado, às saudades do “momento mais feliz da sua vida” que não soube prolongar, à função social de empresário que a família permite que exerça, apesar da falta de empenho.

29 Como em Romeu e Julieta, também em Istambul o amor é essencial à vida. Ao contrário do século XVI, em Istambul de meados do século XX o ambiente social é descrito como radicalmente pacífico, apesar dos bombistas mencionados aqui e ali: nenhuma pressão que não seja a da interpretação mais correcta da tradição e dos bons costumes se impõe aos protagonistas. Kemal simplesmente não se sente bem sem Füsun. Não procura nenhuma culpa exterior nem procura corrigir o seu próprio sentir. Também não pressiona Füsun (uma vez que a reencontrou a certa altura do romance) limita-se a estar presente e a pedir paciência e compreensão para os seus comportamentos bizarros: comportava-se com um cleptomaníaco (furta obsessivamente objectos tocados pela sua amada que depois exporá ao público no museu), mas compensava a família de algum modo por isso, com dinheiro e prendas. Do mesmo modo a família de Füsun jamais questiona as opções da filha – ou a filha questiona os sentimentos dos seus pais. Todos os personagens procuram a harmonia, apesar dos equívocos e dos segredos, e, em grande parte, conseguem-na.

30 O herói do romance, também narrador, abandona a vida social burguesa de que era um dos protagonistas, torna-se uma espécie de ovelha negra da família, não dá importância aos negócios, vive para a memória de um amor fugaz e para recompor o equilíbrio emocional perdido depois de tal experiência. Dedica-se à dolorosa mas transcendente tarefa de organizar visitas regulares, muitas vezes por semana, a casa de família da sua amada, entretanto casada com outro homem segundo um contrato que serviu para encobrir a castidade auto-infligida por Füsun. Ambos os heróis se suicidam socialmente. Até que uma luz se acende no fundo do túnel. O marido de Füsun quer divorciar-se para ir viver com outra mulher e assim surge a oportunidade, 9 anos depois, de o casal refazer os seus planos de vida em comum e explorar o amor interrompido. E este é o segundo grande equívoco denunciado pelo romance.

31 Füsun obriga Kemal a aceitar as suas condições para se casar. O que ele aceita de bom grado. Porém, será ela quem não resistirá ao entusiasmo sexual e fará amor com ele, pela última vez, antes de casarem, contra uma regra estabelecida por ela própria, em favor da tradição e do respeito pelas mulheres. Mata-se com um automóvel em alta velocidade contra uma árvore, como o seu amante ao lado. Mata-se de vergonha ou de medo?

32 Uma das facetas mais extraordinárias do romance é a interpretação do sentido do título, abandonada ao leitor como um enigma. Por que razão um museu com a memória arqueológica da relação de Kemal com a sua amada, reunindo objectos coleccionados por ele ao longo de 10 anos que dura a estranha e intensa relação entre os dois, se chama Museu da Inocência? E o que nos quer dizer o autor ao terminar o livro, afirmando que a vida do seu narrador foi “muito feliz”, em contraste com o fado que ela parece ser ao leitor? Nenhumas respostas evidentes são oferecidas.

33 O romance reclama a mesma intuição que fundou as modernas ciências sociais: as pessoas, e aquele casal em particular, são joguetes inocentes das mais profundas tensões sociais. A acção decorre em “sociedade”, em condições de modernidade

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idealizada, isto é abstraindo dos dramas da violência política, religiosa, de classe. Até a vergonha que o leitor sente (como o próprio Kemal chega a confessar sentir), aquando das invasões recorrentes da casa de família da sua amada, é abstraída. Como quem diz, em comunidade não há que ter vergonha. As comunidades cuidam do essencial, da sobrevivência, que é aquilo que as visitas de Kemal representavam para a família de Füsun e para ela própria. Só quando a sociedade começa a interferir mais profundamente nas relações comunitárias, libertando os indivíduos, a vergonha se expande também aos relacionamentos íntimos.

Da vergonha de sentir medo

34 Não há que ter medo, em sociedade – parecem querer dizer as teorias sociais dominantes, crentes na predestinação do progresso das instituições em sintonia com a vida, apologistas da modernidade. A catástrofe, para elas, é uma impossibilidade, é impensável. A questão a colocar é esta: não serão tais convicções apriorísticas, em si mesmas, uma forma de escamotear o medo persistente nas sociedades? No dizer de Scheff, não será isso uma expressão de vergonha de ter vergonha (ou de medo de revelar sentimentos de vergonha)? Medo das mudanças profundas impostas pela modernização (os misteriosos domínio das máquinas, fim da moral, imperialismo tentacular, por exemplo); medo da mobilização capitalista, que nos torna estranhos de nós próprios para termos acesso aos mercados globalizados, enquanto trabalhadores- consumidores (a alienação); medo do poder absoluto das instituições e da sua perversidade hostil (a banalidade do mal, de Arendt); medo de não termos porque nos envergonhar nem como o esconder. O medo é, afinal, apenas uma vestuta herança genética, com certeza útil.

35 A teoria social que auto-limita o seu campo de visão à parte construtiva da sociedade, aceita, implicitamente, servir de reforço aos segredos sociais (ocultados pelos medos e pelas vergonhas) deixando-se colonizar acriticamente por essas (e outras) emoções, em vez de as analisar, de enfrentar os respectivos incómodos e tirar os respectivos proveitos. Denunciar a guerra e escalpelizar de que modo a vergonha (da alegada falta de virilidade, mas também da falta de fé modernizadora, da culpa pelas falhas humanas) lhe esteja relacionada, é mérito de Thomas J. Scheff. A hipótese de a vergonha funcionar como biombo emocional para escamotear a perversidade humana é, sem dúvida, uma contribuição excelente a explorar e desenvolver, especialmente por ter a capacidade de se esconder a si própria, de tão discreta poder ser a reacção física correspondente ao emergir dessa emoção.

36 A dúvida colocada neste texto é se mais fundo do que a vergonha, o medo não é também ou sobretudo o fautor das guerras e das violências? E para o dominar bastará desenvolver interacções sociais mais saudáveis, ou será preciso também desenvolver novas relações de poder e de co-desenvolvimento com o meio ambiente e com os povos vizinhos e longínquos?

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Quadro 3. Análise das emoções caso a caso

Confirmação e expansão da teoria do espelho do self

37 Daniel Goleman [2010/2006] observa a necessidade vital e natural de associação dos seres humanos entre si e também a complexidade e delicadeza dos instrumentos de sintonização e harmonização de tais relações permanentemente activos (e falíveis), em função das pessoas (suas competências, potencialidades e intenções) e do meio social envolvente. Baseiam-se tais observações nos estudos das funções cerebrais, que muito progrediram nas últimas décadas. As células fusiformes e os neurónios-espelho são formas biológicas que tornam a secular teoria de Charles Cooley [1909] sobre o espelho do self (lookingglass) mais do que uma metáfora: será antes uma meta descrição de funções neurais do cérebro. Os seres humanos, muito mais que os outros primatas, vivem como mimos. Isso pode ser medido pela presença de mil vezes mais células fusiformes nos cérebros humanos do que noutros primatas. Não é apenas o valor que julgamos os outros possam dar ao nosso ser individual, como argumenta Cooley, e o medo de sermos socialmente depreciados e o prazer de sermos apreciados. É a tendência inata que temos de, por via neural, acompanharmos os movimentos, posturas, vocalizações e sentimentos dos outros seres humanos com quem entramos em processos empáticos, como a nossa forma de (con)viver. As conexões sociais não são um acrescento artificioso à natureza humana. Não são só cultura: são necessidades básicas, impulsos vitais. A sociabilidade não é uma diletância existencial: é uma expressão de vida típica da nossa espécie.

38 Há uma via inferior da vida nervosa, muito mais rápida a reagir do que a via superior, refere Goleman. A primeira reage a riscos de vida pressentidos, como quando nos assustamos, antes mesmo de termos tido tempo de percepcionar a situação. Isso não é controlável pela via superior da vida nervosa. Esta última apenas pode constatar ter ocorrido uma certa reacção do seu corpo, com as consequências decorrentes para o meio.

39 À via inferior correspondem os conceitos sociológicos de comunidade e emoção. À via superior correspondem sociedade e racionalidade. No primeiro caso referimo-nos a fenómenos ditos naturais, sem que haja hipótese de intromissão regulatória reflexiva. A

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sociedade, por sua vez, é descrita como sendo artificialmente construída e regulável institucional ou politicamente. A vida conceptual separada entre a sociedade e a comunidade, a razão e as emoções, a via superior e a via inferior, é uma ficção muito utilizada e até defendida, embora seja uma dissecação unilateral das relações humanas.

40 A teoria social está desafiada a lidar com a necessidade cognitiva de integração do conhecimento das ciências naturais sobre o comportamento social e o conhecimento das ciências sociais. Atrever-se-á a teoria social a abrir os seus campos de reflexão cognitiva, a fim de integrar, como conceitos compatíveis e distintos, os estudos da neurologia do cérebro, a psicologia e a sociologia? Se a resposta for afirmativa, isso implicará um trabalho em conjunto de noções como comunidade e sociedade, vida neural (inferior e superior), emoções emergentes (medo e vergonha), poder institucional e instabilidade da vida dependendo das condições do meio ambiente.

BIBLIOGRAFIA

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GOLEMAN, Daniel, 2010/2006: Inteligência Social. A nova ciência do relacionamento humano, Lisboa: Círculo de Leitores.

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SCHEFF, Thomas J., s.d.: “Shame and the Social Bond: a sociological theory”, current, http:// www.soc.ucsb.edu/faculty/scheff/main.php?id=2.html.

RESUMOS

Thomas J. Scheff defende ser a vergonha a emoção social por excelência. A tese deste artigo é a de que o medo está para a vergonha como a comunidade está para a sociedade. Por mais seguro que seja o ambiente social, continuamos a sentir medo quando nos ameaçam com exclusão na escola ou no emprego ou na família. Como comunidade e sociedade, também o medo e a vergonha são dois aspectos da mesma realidade confundidos um no outro, distintos pelos diferentes tempos de actuação. Tomam-se

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para estudo três casos ilustrativos da co-presença de medo e vergonha em comunidade e em sociedade. Conclui-se que a teoria social dominante se auto-limita a uma visão construtiva da sociedade, deixando-se colonizar acriticamente por emoções de vergonha e repugnância ao medo, em vez de as analisar, de enfrentar os respectivos incómodos e tirar os respectivos proveitos.

Thomas J. Scheff argues shame is the social emotion par excellence. This paper claims that fear compare to shame as community compare to society. Even in safe social environment, we still feel fear when one threatens us with exclusion from school or from work or from family bonds. As community and society, fear and shame are two sides of the same reality. They mixed each other using separated times frames references. This paper calls the study of three illustrative cases of co-presence of fear and shame in community and society. We conclude that the dominant social theory limits itself to a constructive vision of society, accepting uncritically to be controlled by emotions of shame and disgust facing fear, instead of analyzing it and confronting the discomfort caused by fears to common people, as well as to scientists and take the proceeds thereof.

ÍNDICE

Keywords: Emotions, fear, shame, community, society. Palavras-chave: Emoções, medo, vergonha, comunidade, sociedade.

AUTOR

ANTÓNIO PEDRO DORES Sociólogo. Doutor em Sociologia. Professor no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), com agregação. Investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE-IUL. Membro da Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento (ACED). Organizador dos livros Prisões na Europa. Um debate que apenas começa (Oeiras, 2003) e Ciências de Emergência (Buenos Aires, 2008); co-autor do livro Vozes contra o silêncio. Movimentos sociais nas prisões portuguesas (Lisboa, 2004); autor da trilogia “Estados de Espírito e Poder”, com os livros Espírito Proibicionista (Lisboa, 2010), Espírito de Submissão (Coimbra, 2009) e Espírito Marginal (Lisboa, 2010). [email protected]

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Sociedade colonial angolana

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Angola: Estrutura Social da Sociedade Colonial Angola: Social structure of colonial Angola

Paulo de Carvalho

NOTA DO EDITOR

Artigo pedido ao autor Artigo recebido a: 12/Maio/2011 Aceite para publicação: 24/Junho/2011

Introdução

1 Angola foi colónia portuguesa até ao ano de 1975. Pode-se aí considerar a existência de dois tipos de sociedade, designadamente uma sociedade central e sociedades (ou comunidades) periféricas.

2 Ao passo que as nas «sociedades» periféricas, os integrantes da comunidade estão unidos por laços naturais, como é o caso de vínculos de sangue e de um passado comum, as relações humanas na sociedade central inspiram-se numa compensação de interesses por motivos racionais ou numa «união de interesses com igual motivação» [Weber 1983]. É apenas a esta sociedade colonial central que este trabalho se refere.

3 A estrutura social é aqui entendida como um sistema de interdependências, distâncias e hierarquias, existente no seio de uma sociedade [Ossowski 1986]. O tema “estrutura social” será aqui abordado segundo dois pontos de vista, designadamente: o da estratificação em camadas sociais e o da estrutura de classes.

4 Uma classe social é uma categoria económica, cujos integrantes têm interesses comuns. Para que existam classes sociais, é preciso que haja mercado de trabalho e de bens, que diferencie as chances dos indivíduos e estabeleça o seu enquadramento social em

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função dos bens que possuem. É sobretudo importante se o indivíduo detém capital, ou apenas pode fazer uso da sua força de trabalho [cf. Weber 1946].

5 Já a abordagem da estratificação social tem a ver com as categorias que se criam com base no acesso diferenciado a uma série de bens sociais (como sejam a instrução académica ou o prestígio social), a deveres e responsabilidades, a direitos e privilégios, assim como ao poder social [Sorokin 1959; cf. Slomczynski 1989]1.

6 Este texto refere-se à fase final de colonização em Angola, ou seja ao final da década de 1960 e princípio da década de 1970, e assenta sobretudo em dados publicados no livro do autor sob o título Estrutura Social da Sociedade Colonial Angolana, publicado pelo Instituto de Sociologia da Universidade de Varsóvia, em língua polaca [Carvalho 1989].

Estratificação social

7 A estratificação social é o aspecto distributivo da estrutura social, Refere-se à hierarquia criada com base na distribuição desigual de bens, tais como a educação formal, a assistência sanitária e o emprego.

8 O primeiro aspecto a ter em conta quando se aborda este tema, em relação a uma sociedade colonial, é o de as pessoas que vivem nessa sociedade se agruparem consoante o facto de serem colonizadores (ou seus descendentes) ou colonizados. Na Angola colonial, a um relativamente pequeno grupo de colonizadores e seus descendentes, opunha-se um grande grupo de colonizados. Como veremos adiante, cada um desses dois grupos estava internamente diferenciado.

9 O factor primário de diferenciação desses dois grandes grupos sociais era a cor da pele. Os colonizadores eram brancos, ao passo que os colonizados eram negros. Deve considerar-se ainda um grupo intermédio de mestiços, resultado do cruzamento entre brancos e negros.

10 Dados publicados pela administração colonial2 dão conta da existência, em Angola, no ano de 1960, de mais de cinquenta mil mestiços, o que correspondia a pouco mais de 1% da população da colónia, nesse ano. 3,6% dos habitantes eram brancos e os restantes 95%, negros.

11 Dez anos mais tarde, a população urbana de Angola correspondia a 16% do total de habitantes da colónia. Os negros correspondiam a 67% da população urbana3, enquanto que os mestiços e brancos correspondiam respectivamente a 26% e 8%.

12 O factor primário de diferenciação, reconhecido pelo poder colonial até 1961, era o grau de assimilação dos colonizados, em resultado do qual se pode falar na existência de três grandes grupos sociais, designadamente os colonizadores, os assimilados e os indígenas4 [p. ex. Pélissier 1978. Cf. Dias 1984, Neto 1997, Vera Cruz 2005].

13 Mesmo depois de abolido o estatuto de assimilado (1961), manteve-se a cor da pele como factor de diferenciação social, assim como outros factores subjectivos que conduziam ao estabelecimento da diferença entre “civilizados” e “indígenas”.

14 O acesso a uma série de bens, como a instrução e a saúde, assim como a existência ou não de facilidades de acesso ao mercado de trabalho, tinham em conta tal diferença. O grau de instrução académica, assim como a aceitação dos valores da cultura europeia, continuavam a ser símbolos de assimilação. Por seu turno, o lugar de residência e a

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forma de falar e de vestir continuavam a estar de acordo com o grau de assimilação do indivíduo.

15 Podem considerar-se, de um modo geral e em termos de estratificação social, os seguintes factores de diferenciação social:

16 1- Factores primários, fora do alcance do indivíduo:

17 a) Proveniência social,

18 b) Cor da pele,

19 c) Meio em que o indivíduo cresceu,

20 d) Identificação étnica.

21 2- Factores secundários, dependentes dos anteriores e nos quais o indivíduo pode exercer alguma influência:

22 a) Grau de instrução académica,

23 b) Posição sócio-profissional,

24 c) Salário e outros rendimentos,

25 d) Meio e local de residência.

26 Todos esses factores exerciam influência no prestígio sócio-profissional do indivíduo e no seu nível de vida. Constituíam critérios de selecção, tanto para enquadramento social, como no processo de distribuição de bens. Tais processos conduziam à divisão da população da sociedade colonial angolana, em camadas sociais.

27 De um modo geral, aqueles que estavam bem colocados quanto aos critérios primários de diferenciação, viviam nas zonas urbanas, tinham proventos elevados e tinham acesso aos órgãos de poder político e administrativo, para além de gozarem de grande prestígio social. O seu poder de consumo era elevado e garantia-lhes o acesso aos meios de diversão disponíveis.

28 Em contrapartida, a maioria dos demais podia viver, quando muito, nas zonas peri- urbanas, trabalhando para aqueles. Estavam, em muitos casos, condenados a viver abaixo do “mínimo social” e como, regra geral, por razões de natureza cultural, tinham um número elevado de filhos, muito pouco podiam fazer para que a pobreza não se reproduzisse para a geração seguinte.

29 Nas áreas rurais, a baixa qualidade de vida provocava um elevado índice de mobilidade social, sobretudo nas zonas do Centro-Sul do país onde a densidade populacional era mais elevada (grupo étnico ovimbundu), para as áreas de produção cafeícula e algodoeira do norte da colónia [cf. Silva 1969] e para as áreas peri-urbanas (ao redor das grandes e médias cidades) [vide Monteiro 1973], na luta pela ascensão na hierarquia social. Essa ascensão tinha lugar, com certeza, na escala de prestígio, mas nem sempre se verificava quanto ao nível de vida real do indivíduo.

30 Interessa referir em pormenor um dos critérios primários enumerados acima, que estava correlacionado com os demais – a cor da pele. Apesar de haver autores que consideram o contrário [p. ex. Bettencourt 1965, Pinto 1995], de um modo geral, quanto mais clara a cor da pele do indivíduo, maior era na Angola colonial o seu grau de instrução académica, eram-lhe dadas mais facilidades no mercado de trabalho e, consequentemente, melhor era a sua posição sócio-profissional e maiores eram os seus rendimentos. A proveniência social do indivíduo, aliada ao grupo somático a que

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pertencia (baseado na cor da pele), determinavam em grande medida a sua posição social e o seu nível de vida.

31 Se considerarmos apenas a elite de «civilizados» e tendo como base os critérios de diferenciação social referidos acima, podem considerar-se as três camadas elitárias seguintes, na sociedade colonial angolana: a grande elite citadina, a elite intermédia e a elite “dispersa”.

32 A grande elite citadina era a fina-flor da sociedade colonial. Integravam-na, os mais dignos representantes da potência colonizadora e do mundo ocidental em Angola, designadamente todos quantos pertenciam à elite política (governador-geral da colónia e governadores dos distritos, assim como os funcionários superiores da administração e do poder judicial) e à elite militar (oficiais e funcionários superiores das Forças Armadas, da Polícia de Segurança Pública e da PIDE), assim como os dirigentes religiosos e os detentores das rédeas do poder económico.

33 Eram todos eles brancos e possuíam indicadores elevados de poder, riqueza e prestígio. Eram portugueses (nascidos em grande parte dos casos, em Portugal Continental) ou estrangeiros, de camadas sociais elevadas nas respectivas hierarquias sociais. Moravam nos bairros mais chiques das cidades e tinham um estilo de vida ostentativo, difícil de seguir por aqueles que se situavam abaixo, na hierarquia social.

34 Outra das suas características residia no facto de comungarem dos mesmos valores culturais e ser idêntica a sua forma de pensar e de agir. Em função disso e tendo em conta, tanto o nível de vida, o modo de vida e o prestígio social de que gozam os seus membros, como o facto de serem eles quem detinha o poder político-administrativo e económico da colónia, pode considerar-se a grande elite citadina como sendo um estamento (estate, état, stand). Tratava-se de um grupo fechado e estável5, podendo falar- se da existência de uma acentuada consciência de status6 no seio deste grupo elitário, que era reproduzida de geração em geração.

35 Era, pois, um grupo social bastante homogéneo, de difícil penetração para quantos o desejavam integrar. Os seus membros tinham preferências estéticas idênticas e estavam de acordo com a ordem político-social vigente. Estavam em condições de garantir aos seus filhos o que de melhor havia em termos de educação, saúde e recreio, e procuravam fazer com que os seus descendentes contraíssem matrimónio apenas no seio desse estamento ou, melhor ainda, no Ocidente.

36 A nomeação de um indivíduo que não pertencesse à grande elite, para uma função administrativa que o levasse a integrá-la, estava de acordo com uma série de requisitos de ordem cultural (estilo de vida e grau e de instrução), ideológica (a favor da colonização e da ditadura), religiosa, social e étnico-somática.

37 Pertenciam à elite intermédia, os cidadãos que possuíam indicadores elevados em alguns dos critérios de diferenciação social, mas ao mesmo tempo estavam situados abaixo em pelo menos um deles. Destacavam-se aqui, por um lado, os administradores locais do Estado, os oficiais subalternos e os agentes da PIDE e, por outro lado, os cidadãos africanos mais bem colocados na hierarquia social (por força sobretudo do seu elevado grau de instrução académica), que não se identificavam com qualquer dos grupos étnicos locais.

38 Como se pode perceber, encontrava-se nesta camada social um número maior de portugueses nascidos em Angola, de entre os quais os integrantes de elite nativa que haviam alcançado elevados índices de instrução e prestígio sócio-profissional.

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39 O que em geral caracterizava os membros dessa elite intermédia, era sobretudo um nível elevado de instrução ou de rendimentos e de prestígio, para além de um modo de vida característico dos cidadãos europeus, o que pressupunha uma grande identificação com a cultura europeia. Apesar de, em alguns casos, poderem discordar com os métodos de dominação utilizados pela administração colonial, de um modo geral estavam a favor da colonização e lutavam por a manter.

40 Era um grupo relativamente homogéneo, no seio do qual havia entretanto uma grande luta individual pela ascensão na escala social, por intermédio do aumento dos rendimentos e do prestígio e aceitação social. Logicamente, estavam privilegiados nessa luta os indivíduos de raça branca, os que eram oriundos de Portugal Continental e os que residiam nos grandes centros urbanos.

41 Se por um lado os membros da elite intermédia lutavam isoladamente pela ascensão social, por outro lado procuravam (como camada social) distanciar-se cada vez mais de todos quantos se situavam abaixo, na hierarquia social.

42 A terceira das camadas sociais aqui descritas era um grupo bastante heterogéneo. Por isso, decidimos chamar-lhe elite “dispersa”. Apesar de entre os seus membros haver uma série de diferenças quanto aos critérios de diferenciação social, unia-os o facto de falarem português7, terem uma profissão reconhecida pelo Estado e identificarem-se com aquilo a que se pode chamar de cultura luso-angolana8.

43 Integravam a elite dispersa, todos os cidadãos considerados “civilizados” que não possuíam elevados índices de riqueza, instrução e prestígio. Integravam-na, portanto, desde os funcionários públicos de baixo escalão (até ao posto de 3º oficial), independentemente da cor da pele, até aos operários não-qualificados, brancos.

44 Tratava-se de pessoas que pouco podiam fazer para diminuir os privilégios daqueles que se situavam acima, na escala social. Em fase disso, tratavam de vincar a sua posição acima daqueles que não eram considerados “civilizados”, sobretudo através da sua utilização como mão-de-obra. Por outro lado, lutavam por dar aos seus filhos a possibilidade de obtenção de um nível superior de instrução académica, que lhes permitisse ascender socialmente.

45 * * *

46 Abaixo de elite “dispersa” estava um grande grupo de nativos, que em geral se identificavam com um determinado grupo étnico. Antes do ano de 1961, eram oficialmente considerados “indígenas”. Também este grande grupo estava internamente diferenciado, sobretudo em função do meio em que vivia, factor que determinava em grande medida a possibilidade de acesso à instrução académica, ao emprego e a uma série de outros bens socialmente desejados, assim como determinava o nível de vida.

47 Em primeiro lugar, pode considerar-se uma camada de pessoas que viviam ao redor das cidades que, apesar de não terem acesso a colégios, tinham acesso a escolas primárias oficiais e (em menor grau) a escolas de nível superior ao primário. Por outro lado, apesar de não poderem recorrer a consultórios privados, tinham acesso a hospitais estatais (que existiam só nas cidades) e a enfermeiros que exerciam a sua profissão nos subúrbios.

48 Trata-se de pessoas que residiam em áreas peri-urbanas e serviam, com o seu trabalho, o poder instituído e os integrantes das camadas elitárias enumeradas9.

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49 Vinha a seguir um grupo de indivíduos que serviam as camadas elitárias, nas áreas rurais. A diferença em relação à camada anterior, consistia no mais baixo nível de vida e na menor possibilidade de acesso aos bens desejados. Se por um lado os integrantes deste grupo social podiam apenas (e quando muito) tentar concluir o ensino primário10, por outro lado os serviços sanitários a que tinham acesso eram de qualidade bastante inferior, já que nas áreas rurais não havia médicos para atender a população. As possibilidades em termos de receio e diversão eram também menores. Para além disso, os integrantes deste grupo social tinham menos possibilidade de acesso ao mercado de trabalho, devido ao facto de ser reduzido o leque de profissões que podiam exercer.

50 Abaixo deles – no entender daqueles que estavam enquadrados na sociedade colonial central – estavam todos quantos viviam nas comunidades periféricas. De facto, estas pessoas viviam em comunidades com características diferentes das da sociedade central, do ponto de vista da organização político-administrativa, social, económica e cultural. A estrutura social dessas comunidades deve ser objecto de outro tipo de estudos.

Estrutura de classes

51 Para que se possa aqui falar de uma estrutura de classes na sociedade colonial angolana, é preciso lembrar o facto de o presente estudo dizer respeito apenas à sociedade central, onde havia relações de produção do tipo capitalista11.

52 Existem várias teorias a respeito da existência ou não de classes sociais em sociedades africanas. Marek Szczepanski [1984] considera haver três grupos de teorias acerca da estrutura de classes em sociedades africanas, designadamente: (a) teorias a respeito da inexistência de classes sociais, (b) teorias que procuram justificar a existência de classes sociais devidamente consolidadas, (c) teorias que tratam da existência de classes sociais, num estágio inicial de criação e desenvolvimento.

53 Em minha opinião, no que diz respeito à sociedade colonial angolana, este último grupo de teorias está mais de acordo com a realidade, uma vez que considera que as classes sociais estão, nessas sociedades, in statu nascendi.

54 Os grupos com características de classe social são, por definição, categorias do domínio económico. Segundo Weber [1946], no sistema capitalista, as classes sociais surgem como resultado do funcionamento do mercado de bens e do mercado de trabalho. Se tivermos em conta o já referido facto de, na sociedade colonial angolana, haver relações de produção do tipo capitalista e se considerarmos que estava aí em curso um processo de urbanização e industrialização, pode considerar-se a existência de grupos sociais que tinham como factor de diferenciação, o facto de os seus integrantes possuírem meios de produção ou disporem apenas da sua força de trabalho. A grupos sociais desse tipo podemos chamar classes, do ponto de vista da teoria weberiana.

55 Trata-se de grupos que estavam ordenados de forma hierárquica, cujos integrantes estavam associados às grandes instituições sociais. Essa associação determinava um enquadramento diferente do ponto de vista político, económico, religioso e cultural12. Por outro lado, os membros de cada um desses grupos sociais identificavam-se mutuamente e tinham consciência do lugar que ocupavam na sociedade.

56 Deve referir-se um aspecto controverso, que origina a apresentação de dúvidas a respeito da existência de classes sociais em sociedades africanas, que é o da identidade

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étnica. Vejamos se tal argumento é válido. O facto de, por exemplo, um operário Bakongo se identificar com o seu grupo étnico, não implica que ele não se alie a um outro operário que se identifica com a nação portuguesa, na luta pela melhoria das condições de vida e de trabalho da sua classe social. Para além disso, se nas sociedades industriais desenvolvidas a identidade familiar ou comunitária não constitui barreira à identidade de classe, por que motivo nas sociedades centrais africanas, a identidade com o grupo comunitário ou étnico tem de constituir barreira à identidade de classe? Trata-se de duas categorias de análise diferentes, que não têm necessariamente de colidir (e não colidem) uma com a outra.

57 Recapitulando, consideramos aqui haver classes sociais na Angola colonial, que estavam num estágio inicial de consolidação e se desenvolviam em dependência do desenrolar do processo de urbanização e industrialização.

58 Não consideramos a existência de classes sociais nas comunidades periféricas, como o fizeram outros autores, para os quais existe um só tipo de sociedade, em Angola [p. ex. Milheiros 1967, Guerra s.d.]13.

59 Antes de nos referirmos à estrutura de classes da sociedade central angolana, no ano de 1970, é preciso dizer algumas palavras acerca do emprego da mão-de-obra.

60 Angola era, em 1970, um país agrário. Dez anos antes, cerca de 69% da população activa estava empregue no sector agrícola, 19% no sector do comércio e serviços e apenas 12% no sector industrial14. A estrutura de emprego da mão-de-obra modificou pouco, nesses dez anos, demonstrando ser lento o processo de industrialização. Segundo estimativas da Organização Internacional do Trabalho, a população activa estava assim distribuída, em 1970: 64% trabalhavam no sector agrícola, 22% no sector de serviços e 14% no sector industrial [Somerville 1986: 77]. Como se pode verificar, no início da década de 1970, apenas a sétima parte da população activa de Angola trabalhava no sector industrial, quando pouco menos de dois terços dessa população vivia do sector agro-piscatório.

61 * * *

62 São os seguintes, os critérios que considero para enquadramento dos cidadãos economicamente activos da sociedade central, na estrutura de classes:

63 a) propriedade dos meios de produção;

64 b) modalidade de emprego;

65 c) carácter do trabalho;

66 d) qualificações profissionais;

67 e) controlo sobre o trabalho de outrem;

68 f) ramo da economia.

69 A tipologia dessa estrutura de classes é apresentada no quadro 1. São aí indicadas as seguintes classes sociais15:

70 1- Operários agrícolas (350.000).

71 2- Protoproletariado (150.000).

72 3- Proletariado (210.000)

73 4- Mestres e capatazes (12.000).

74 5- Funcionários públicos e técnicos (35.000).

75 6- Pequena burguesia e pequenos fazendeiros (35.000)

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76 7- Burguesia e grandes fazendeiros (5.000).

77 Os operários agrícolas eram os indivíduos que trabalhavam para outrem, nas plantações e fazendas agrícolas e pastoris. Não possuíam meios de produção nem qualificações profissionais, e vendiam a sua força de trabalho. Na sua maioria, provinham das comunidades periféricas rurais. O seu trabalho era físico e era feito em condições bastante difíceis, devido ao baixo grau de mecanização da agricultura. Viviam na pobreza, abaixo do “mínimo social” e muito pouco podiam garantir às suas famílias. Eram em muitos casos obrigados a afastar-se delas por um certo tempo (enquanto durasse o “contrato” de trabalho com o patrão16).

78 Tal como sucedia com a classe dos operários agrícolas, o protoproletariado era das classes sociais menos favorecidas. Os integrantes deste grupo eram trabalhadores físicos que se empregavam nos serviços relacionados com o consumo. A diferença em relação à classe descrita anteriormente consistia sobretudo no ramo da economia em que se empregavam (neste caso, os serviços), assim como no género de serviço prestado. Para além disso, viviam em áreas peri-urbanas e não raramente se dava o caso de os seus empregos não serem fixos.

79 Eram protoproletários, os vendedores ambulantes, empregados domésticos, bombeiros (vendedores de combustíveis), engraxadores, ardinas, estivadores, auxiliares em pequenas oficinas de prestação de serviços, pescadores artesanais e outros habitantes das periferias, assim como aqueles que saíam das zonas rurais para as cidades e vilas em busca de melhores condições de vida e não possuíam qualificação para o exercício de uma profissão rentável.

80 Os operários pertenciam ao proletariado. Trabalhavam no sector industrial (que inclui o ramo da construção) e como não possuíam meios de produção, podiam portanto oferecer apenas a sua força de trabalho. Podem aqui considerar-se duas subclasses, nomeadamente:

81 • Os operários não-qualificados, que se diferenciavam dos operários agrícolas e dos protoproletários, pelo ramo de actividade económica em que trabalhavam e pelo facto de o seu emprego ter carácter permanente. Aqui se incluem, não apenas os operários assalariados, como também aqueles que trabalhavam por conta própria (por exemplo, carpinteiros, pedreiros e canalizadores que residiam sobretudo nas zonas peri-urbanas e serviam as classes médias e baixas) e constituíam uma importante reserva da força de trabalho do sector industrial.

82 • Os operários qualificados, que ao contrário dos não-qualificados, controlavam o trabalho dos assalariados que estavam sob seu comando, para além de possuírem qualificação profissional. Tal qualificação podia ser adquirida em escolas regulares ou no local de trabalho. Eles empregavam a força física em muito menor grau que os anteriores. O seu número era relativamente reduzido, em resultado do baixo grau de industrialização de Angola.

83 Os mestres e capatazes eram aqueles trabalhadores físicos que laboravam nos ramos da indústria, da agricultura e dos serviços, com o fim de controlarem o trabalho dos proletários, operários agrícolas e protoproletários. Não detinham meios de produção e possuíam experiência profissional (com o que nem sempre se aliava a qualificação profissional).

84 Apesar de, segundo os critérios adoptados, os mestres e capatazes se enquadrarem numa única classe social, a verdade é que havia ligeiras diferenças entre eles. Os

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mestres (caso dos mestres-de-obra, por exemplo) trabalhavam em geral com uma equipa de operários, que estava sob seu comando. Os capatazes, por seu turno, não tinham de trabalhar junto com aqueles que estavam sob seu comando, consistindo o seu trabalho no controlo e punição disciplinar destes. Trabalhavam em fazendas agrícolas e na construção de estradas, pontes e caminhos-de-ferro. A utilização da sua força de trabalho era indispensável no entender dos seus patrões, uma vez que os operários tinham condições de trabalho e de vida bastante difíceis; era portanto necessário quem os controlasse, para evitar distúrbios e para manter os níveis de produção pretendidos.

85 Este era um grupo relativamente pequeno. Um dos factores que determina o enquadramento desses dois grupos profissionais numa só classe, é o controlo sobre o seu trabalho e o da sua equipe.

86 O grupo de cidadãos economicamente activos, cujo trabalho era físico-intelectual ou apenas intelectual e cuja força de trabalho era utilizada nos serviços, constituía a classe dos funcionários e técnicos17. Consideram-se aqui duas subclasses, designadamente:

87 • Funcionários de baixo escalão, que eram aqueles funcionários que não tinham poder de decisão algum sobre o género do trabalho que realizavam, nem tão-pouco controlavam o trabalho de outrem. Pertenciam a esta subclasse, dactilógrafos, mecanógrafos, escriturários (até ao posto de 2º oficial), contabilistas de baixo escalão, enfermeiros, professores com grau de instrução igual ou inferior ao nível médio, independentemente do facto de se tratar de funcionários públicos ou não.

88 • Funcionários superiores, técnicos e especialistas, que faziam apenas trabalho intelectual e controlavam o trabalho de outros assalariados. Enquadram-se nesta subclasse, os funcionários com categoria igual ou superior à de 1º oficial, os especialistas e técnicos dos vários ramos. A população nativa podia ascender a esta subclasse, apenas como resultado do seu elevado grau de instrução (acima do nível médio).

89 Seguem-se duas classes integradas por indivíduos que detinham meios de produção, designadamente a pequena burguesia e a burguesia. Devido às características económicas da sociedade colonial angolana, enquadro nessas duas classes, também aqueles que investiam o seu capital em zonas rurais, designadamente os pequenos e grandes fazendeiros. Como se pode depreender, trata-se das classes superiores da sociedade colonial central.

90 Todos aqueles que utilizavam a sua força de trabalho em benefício pessoal e empregavam uma pequena quantidade de trabalhadores pertenciam à classe da pequena-burguesia e pequenos fazendeiros. Trata-se de pequenos proprietários, incluindo os detentores de profissões liberais (com grau superior de instrução académica) que trabalhavam por conta própria. Para além do que se disse anteriormente, o enquadramento dos proprietários de quintas e pequenas fazendas, na pequena--burguesia, resulta também do facto de haver entre eles e os demais, um contacto social íntimo, baseado numa mesma comunidade de interesses.

91 Os membros da classe que aqui designo por burguesia e grandes fazendeiros, detinham o poder económico na colónia. Detinham os meios de produção, empregavam uma grande quantidade de pessoas e viviam dos seus rendimentos. Era a burguesia quem regulava as relações de distribuição de bens e impunha a sua vontade às demais classes sociais. A elite política, na qual a burguesia exercia forte pressão, garantia o seu lugar de privilégio económico-social. Como resultado dos seus elevados rendimentos, o nível

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de vida dos integrantes da burguesia era bastante elevado. Pertenciam a esta classe, os proprietários de grandes indústrias, Bancos, roças e grandes fazendas. Tratava-se de uma classe puramente urbana, à qual não tinha acesso a população nativa. Como se pode depreender, a maioria dos seus integrantes era proveniente de Portugal Continental ou de outros países ocidentais e estava relacionada com o capital estrangeiro.

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NOTAS

1. Cf. também, por um lado, Davis & Moore 1945, Tumin 1953, Parsons 1966; e, por outro lado, Weber 1946, Lenski 1996, Ossowski 1957. 2. Anuário Estatístico de Angola. Ano de 1964, citado por Silva 1969, p. 86. 3. Este dado não nos deve confundir, uma vez que a grande maioria deste grupo residia na periferia das cidades e vilas e dispunha de parcos recursos. 4. O “Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique” foi aprovado através do decreto-lei nº 39666 (Lisboa, 1954). 5. Pelas suas características, compare-se este grupo com a elite do poder norte-americana, descrita por Wright Mills [1956]. 6. Vide Toennies 1978.

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7. Apesar de todos eles falarem a língua portuguesa, que era para a sua maioria a língua materna, pode-se considerar que utilizavam diferentes códigos sócio-linguísticos, designadamente um código quase-elaborado ou apenas um código restrito da língua portuguesa. Tudo indica que não houvesse, entretanto, nesta camada social, quem utilizasse um código restrito da língua portuguesa, com interferência de elementos das línguas africanas [Carvalho 1991]. 8. Acerca da fusão de culturas em sociedades coloniais, veja-se por exemplo Ribeiro 1969. Sobre essa questão, em relação à sociedade colonial angolana, vide Neto 1997. 9. A prestação de serviços a membros deste grupo social era, regra geral, de responsabilidade de integrantes dessa mesma camada. Comerciantes e outros servidores deste sector pobre da população tinham geralmente o mesmo nível de vida que os demais. 10. Só havia escolas de nível superior ao elementar, nas cidades. Cf. Heimer 1972. 11. Cf. por exemplo Zajaczkowski 1964, Heimer 1980 e 1983. 12. Neste item, tratamos apenas o enquadramento dos cidadãos do ponto de vista económico. 13. A crítica à teoria de classes sociais de Henrique Guerra é apresentada em Estrutura Social da Sociedade Colonial Angolana [Carvalho 1989: 93-104]. 14. Statistical Yearbook. 1972, tomo 3, p. 42-2. 15. Os números indicados a seguir, são estimativas feitas com base em dados estatísticos publicados pela administração colonial e por Guerra [s.d.]. Em função da falta de rigorosidade das fontes, com essas estimativas pretende-se apenas dar uma ideia aproximada da dimensão das classes sociais da Angola colonial. 16. Sobre o trabalho dos “contratados”, vide p. ex. Silva 1969, Pélissier 1978. 17. Enquadram-se nesta classe, não apenas os funcionários públicos, mas também assalariados que trabalhavam em escritórios privados ou de cooperativas.

RESUMOS

O artigo aborda a estrutura social da sociedade colonial angolana nos últimos anos da colonização portuguesa, tanto do ponto de vista da estratificação social, quanto em termos de estrutura de classes. O autor apresenta os factores de diferenciação social na sociedade colonial angolana, enumerando três grupos elitários de cidadãos considerados “civilizados”, em contraste com os considerados “indígenas”. Por outro lado, depois de enumerar seis critérios de diferenciação, o autor apresenta uma tipologia de classes sociais para as pessoas economicamente activas da sociedade colonial angolana, considerando a existência de classes sociais in statu nascendi na sociedade central.

The article discusses the social structure (social stratification and class structure) of colonial Angola in last years of Portuguese colonization. The author presents the factors of social differentiation in this colonial society, and lists three groups of people named “civilized” in contrast to those considered “indigenous”. On the other hand, the author lists six criteria of social differentiation, and presents a typology of social classes including the economically active people in the Angolan colonial society. He considers the social classes in statu nascendi in Angola.

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ÍNDICE

Palavras-chave: Estrutura social, estratificação social, classes sociais, elites, colonização. Keywords: Social structure, social stratification, social classes, elites, colonization.

AUTOR

PAULO DE CARVALHO Sociólogo. Doutor em Sociologia pelo ISCTE (Lisboa, Portugal) e Mestre em Sociologia pela Universidade de Varsóvia (Polónia). Professor Titular na Universidade Agostinho Neto. Foi Reitor da Universidade Katyavala Bwila (Benguela, Angola – 2009-2011) e dirigiu a Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto (2005-2006). É investigador no CIES do ISCTE– Instituto Universitário de Lisboa. É autor de dezenas de pesquisas sociológicas com utilização de técnicas qualitativas e quantitativas, tendo como principais áreas de investigação: a exclusão social, a pobreza, a Sociologia Política, os problemas sociais, as normas de consumo, as relações étnicas, a delinquência e a audiência de media. É autor, dentre outros, dos livros: A campanha eleitoral de 2008 na imprensa de Luanda (Luanda 2010); Exclusão Social em Angola. O caso dos deficientes físicos de Luanda (Luanda 2008), «Até você já não és nada…!» (Luanda 2007), Angola. Quanto Tempo Falta para Amanhã? Reflexões sobre as crises política, económica e social (Oeiras 2002), Audiência de Media em Luanda (Luanda 2002), Estrangeiros na Polónia. Adaptação, estereótipos e imagens étnicas (Luanda 2002 e Varsóvia 1990) e Estrutura Social da Sociedade Colonial Angolana (Varsóvia 1989). Foi agraciado com o o Prémio Nacional de Cultura e Artes de Angola, na modalidade de investigação em ciências sociais e humanas (2002). É editor da Revista Angolana de Sociologia. [email protected]

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Breve análise sobre o nativismo africano: sua relação ambígua com o poder colonial português Some theoretical considerations about African nativism: its ambiguous relationship with the Portuguese colonial power

Paula Morgado

NOTA DO EDITOR

Recebido a: 4/Maio/2011 Enviado para avaliação: 6/Maio/2011 Recepção da apreciação: 12, 28/Maio/2011 Aceite para publicação: 12/Junho/2011

Introdução

1 Entende-se por nativismo o movimento sociocultural que emergiu, nos princípios do século passado, nas colónias africanas portuguesas como resposta ao poder discricionário exercido pelas autoridades coloniais, em consonância com as sucessivas directivas metropolitanas, sobre as populações nativas.

2 Os protagonistas deste movimento foram os ditos ‘assimilados’ que, em função das duas trajectórias de vida, se foram paulatinamente desenraizando do background cultural de origem para abraçarem os valores, hábitos e comportamentos cosmopolitas trazidos pelos colonos brancos, na esteira da ocupação efectiva do Continente Africano com populações metropolitanas.

3 Todavia, no contexto da África colonial portuguesa, a adopção de costumes ocidentais por uma parcela restrita das populações locais, ao contrário do que fora defendido por muitos ‘humanistas’ europeus, não foi sinónimo de equiparação estatutária com a

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população branca das colónias. De facto, apesar destes ‘assimilados’ muitas vezes serem mais instruídos que os colonos portugueses encontravam-se, por norma, numa posição de subalternidade social e económica. A impossibilidade de progressão social pelos mecanismos legais de reprodução do poder traduziu-se num sentimento de revolta colectivo cuja expressão foi marcadamente identitária.

4 Os nativistas procuravam acima de tudo diferenciar-se do ponto de vista identitário tanto das populações rurais africanas (das quais muitos eram originários) que permaneciam rotuladas como ‘estagnadas’ e ‘primitivas’, como das populações brancas expatriadas.

5 Partindo do seu enquadramento histórico, procuraremos analisar o nativismo enquanto processo de reclamação identitária, no intuito de perceber até que ponto que estes mecanismos de construção identitária, na ânsia em se demarcarem claramente do poder institucional vigente, não terão paradoxalmente contribuído para a sua consolidação.

Antecedentes históricos

6 A colonização europeia da América, África e Ásia esteve longe de ser um processo uniforme, que aconteceu em simultâneo e de forma semelhante nos três continentes: muitas diferenças foram igualmente registadas, tanto a nível regional como local. Dos inúmeros factores implicados no modo e, na altura em que a colonização arrancou em qualquer um destes continentes, Venâncio [2004: 313] destaca quatro que considera fundamentais: “[o] nível cultural e civilizacional dos povos autóctones, a dinâmica das economias europeias, o interesse e as capacidades económicas das regiões a colonizar, [e] os meios técnicos disponíveis...”

7 Uma abordagem mais minuciosa sobre o impacto de cada uma destas condicionantes na colonização moderna1 do Continente Africano, permitirá uma contextualização das ideologias e práticas coloniais que mais directamente influenciaram o aparecimento de posturas nativistas, as quais acabaram por convergir num movimento.

O nível civilizacional do Africano

8 Nos finais do século XIX, por ocasião da Partilha de África, no decorrer da Conferência de Berlim, tanto o Africano, como o seu habitat eram uma pertença do imaginário europeu. Dito por outras palavras, antes da ocupação efectiva do Continente, uma construção ideológica do Outro Africano encontrava-se amplamente difundida, colonizando a mente de muitos Europeus.

9 Para tal, muito contribuíram os portugueses, cujo contacto com uma diversidade de realidades africanas se iniciara por volta do século XVI2, e os missionários protestantes ingleses, que por volta do século XVIII, se começaram a embrenhar nas innerlands, a partir da cidade do Cabo3.

10 Ambos (os portugueses e os ingleses) foram o garante de relatos fantásticos, que no tempo do chamado colonialismo arcaico, circulavam na Europa acerca de África. As suas experiências in loco, transportadas para a narrativa, deram lugar a um verdadeiro “discurso [sobre o] exótico” [Mouralis apud Chaves (2002) 2004: 144], que acabou por se

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consolidar hegemonicamente graças ao aval da própria ciência [Comaroff & Comaroff 1992: 220], conferindo à invenção do Africano uma legitimidade inabalável.

11 Assim, quando se deu a Corrida para África, esta última era assumida como uma terra inóspita, foco de imensas doenças, e povoada por gentes selvagens, de costumes francamente primitivos.

A dinâmica das culturas europeias

12 Nos finais do século XIX, os ideais “humanistas”, forjados na esteira da Revolução Francesa, estavam muito em voga entre as classes “mais educadas” europeias, nomeadamente através das manifestações artístico-culturais da época.

13 Porém, no que dizia respeito à colonização do Continente, o “humanitarismo”, que caracterizava estes valores dominantes, estava “tempered by ignorance and manifest racism” [Stoller, 1995: 57], pois colocava a tónica no fardo do homem branco: a sua obrigação moral era levar a luz às “trevas” africanas, dada a crença na incapacidade do Africano em operar qualquer mudança sem a intervenção da mão “civilizadora” europeia.

O interesse e as capacidades económicas de África

14 Ao contrário do esperado, houve durante muito tempo uma grande relutância quanto à concretização de um possível projecto colonial para o Continente Africano. Algumas potências europeias achavam, inclusive, que a ocupação de África era uma total loucura em termos de empreendimento e investimento colonial [Stoller 1995: 55].

15 Todavia, porque a expansão industrial europeia (nomeadamente a inglesa e, mais tarde, a francesa) pedia prementemente por “new loci for an increasing number of manufactured goods, and desired to import increased amounts of … African palm oil to lubricate industrial machines and produce candles and soap” [Stoller 1995: 53], a partilha ‘a regra e esquadro’ do Continente Africano entre as potências europeias foi uma realidade que acabou por acontecer inexoravelmente4.

Os meios técnicos disponíveis

16 A colonização de África caracterizou-se por um controlo gradual, mas cada vez mais eficaz das populações locais. Para tanto, muito contribui a medicina pública colonial, um dos tentáculos mais importantes que a administração colonial tinha sobre o terreno. E, como mostra Nuno Porto [2004: 227], para o caso específico de Angola esta dependência revelou-se desde a primeira hora: “à semelhança da ocupação do território da colónia mediante o estabelecimento de postos militares que se sucede[ra]m às campanhas militares, então designadas “de pacificação”, … [foram] sendo instaladas unidades sanitárias em sobreposição da malha militar”.

17 Ainda assim, o controlo das populações autóctones com base na informação médica foi apenas uma das múltiplas facetas do empreendimento colonial. Desde o início, as autoridades coloniais procuraram, a todo o custo, domesticar os africanos, “to regulate the behaviors, to literally “capture” the[ir] bodies” [Stoller 1995: 103]. E, no intuito de alcançar tais objectivos, os colonizadores “intervened in «native» cooking, hygiene, sexuality and work”. [Comaroff & Comaroff 1992: 41].

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18 Ainda que os desígnios europeus para África nunca se tenham chegado a concertar num projecto global de branqueamento cultural das populações nativas, muito por causa do carácter difuso das políticas coloniais aquando do seu impacto no terreno5, da falta de meios humanos e da escassez de recursos, o fomento da educação escolar, foi indubitavelmente a matriz colonial que mais se aproximou deste megalómano intento, já que claramente promovia o “reshap[ing] the cultural identities of … African societies” [Stoller 1995: 70].

19 Inicialmente, esta mesma educação esteve reservada apenas uma minoria da população. Este facto prendeu-se unicamente com um pragmatismo, fortemente marcado pelas contingências financeiras do Estado colonial6: entre outras, a necessidade de formar quadros subalternos para o preenchimento dos lugares hierarquicamente mais baixos das estruturas administrativas coloniais.

20 A formação deste contingente de subordinados (que também se destinavam, por exemplo, ao comércio), quando comparada com a práxis colonial responsável pela introdução dos impostos ou dos grupos de trabalhos forçados, não se pode dizer que tenha mobilizado formas explícitas de violência. Não obstante, na utilização de métodos educativos coercivos (que ridicularizavam os costumes locais, rotulando-os de “atrasados”, de modo a facilitar a incorporação de novos valores e códigos comportamentais) estava definitivamente implícita uma forma silenciosa de opressão. No caso das colónias portuguesas em África, como resposta as estas perniciosas práticas políticas começaram a surgir manifestações de resistência ao poder colonial que culminaram, por volta dos anos 20/30 do século XX, num movimento sociocultural denominado de nativismo [Venâncio 2004: 314].

Acerca do nativismo

21 A emergência do movimento nativista durante as primeiras décadas do século passado não é totalmente consensual. Por exemplo, de acordo com Alberto Oliveira Pinto [2006], as primeiras manifestações nativistas surgiram no Brasil e estiveram na origem do movimento que conduziu à independência desta colónia face à coroa portuguesa. Ainda segundo este autor foi graças ao intenso tráfico comercial, mormente negreiro, entre os portos brasileiros e a costa Atlântica Africana que os ideais da Revolução Francesa acabaram por se disseminar no seio da elite crioula de Luanda e Benguela que na época dominava o comércio e a administração pública local. Esta elite, contagiada por estes valores humanistas ocidentais, procurou reinventar-se identitariamente. Por intermédio da chamada ‘imprensa livre’, que acabou por se tornar o principal veículo de reclamação identitária, esta elite exprimir “exprimir o sentimento colectivo de ser portador de valores próprios” [Venâncio 2000: 59].

22 Contudo, contrariamente ao que caracterizou o nativismo do século XX, associado sobretudo a uma condição de subalternidade, estas manifestações nativistas precoces reportam-se a uma elite burguesa (que se auto-intitulava os ‘filhos da terra’) que dominava efectivamente o panorama colonial da altura. Com a abolição do tráfico negreiro, estas elites crioulas foram paulatinamente perdendo o seu poder/autonomia económico, político e social em relação à metrópole. Nos princípios do século XX, com a ocupação efectiva da colónia de Angola com população metropolitana, estas elites acabaram por desaparecer no seio da sociedade colonial [Pinto 2006]. Dentre outras coisas, a introdução do Estatuto do Indigenato terá certamente contribuido para a sua

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invisibilidade e crescente marginalização. Assim sendo, em função do lugar privilegiado que ocupavam no seio da sociedade colonial Angolana, e das suas reivindicações identitárias não patentearem uma condição de subordinação face à autoridade colonial, preferiremos denominar estas manifestações precoces de nativismo de proto-nativistas.

23 Nas décadas de 1920 e 1930, o nativismo era um movimento “em muito determinado por uma procura identitária” [Venâncio 2004: 315], visto que os seus protagonistas, pelas circunstâncias acima descritas, não se sentiam nem identificados com a cultura da potência colonizadora, nem com nenhuma das culturas locais.7 Como intermediários entre o mundo dos brancos e as populações autóctones, eram encarados com igual desdém e desprezo pelos dois pólos que colocavam em comunicação.

24 A parca formação académica, precocemente concluída, não lhes permitia almejar por uma melhoria da sua condição dentro do corpo social colonial, altamente elitizado, e contribuiu para que os mesmos tivessem “uma atitude ambígua … em relação ao sistema colonial” [Venâncio 2004: 315].

25 Desde o princípio, esta ambiguidade face ao domínio colonial Europeu denotava que os nativistas, ao invés dos protagonistas dos movimentos que lhe sucederam8, não pretendiam depor a ordem social vigente. A sua principal preocupação era potenciar mecanismos paralelos de afirmação identitária colectiva, de maneira a resgatarem algum relevo e notoriedade social.

O sincretismo religioso

26 Na demanda por uma melhoria da sua condição social, os nativistas envolveram-se muitas vezes em complexos processos de afirmação identitária, que José Carlos Venâncio [2000: 59] justifica com o desejo de se expurgarem “de elementos culturais de origem estrangeira … [nomeadamente dos] elementos religiosos conotados com a colonização ou simplesmente com a influência estrangeira”. Este traço distintivo do nativismo ficou bem patente na sua ligação a movimentos religiosos sincréticos.9

27 O proselitismo associado a movimentos religiosos sincréticos é um fenómeno que tem proliferado de forma exponencial por todo o Continente Africano10. Ao que parece, no espaço colonial português, o surgimento destes movimentos religiosos sincréticos remonta ao século XVIII, devido a um movimento que passou à história com o nome de Antonionismo. Aparentemente, uma mulher chamada Beatriz Kimpa Vita fez-se passar por Santo António, inaugurando um movimento que instaurou uma hierarquia paralela à do poder político do Reino do Congo, que estava sob a esfera de influência da coroa portuguesa [Venâncio 2004: 316].

28 A representação, ou melhor, a reinterpretação de Santo António por Kimpa Vita pode perfeitamente ser analisada à luz de um exercício de dominação: a incorporação de elementos estranhos ou estrangeiros, ou seja, da alteridade, através do mimetismo, permitiu-lhe apropriar-se de parte do poder simbólico dos portugueses, à partida fora do seu alcance, e canalizá-lo em causa própria11. E, portanto, por analogia, podemos argumentar que provavelmente objectivos idênticos monitorizaram a conduta dos protagonistas do nativismo: com a adopção de uma atitude religiosa sincretista, é bem plausível que procurassem apropriar-se simbolicamente de parte do poder colonial, com o qual buscavam sublimar o seu imaginário identitário, para saírem da invisibilidade social a que estavam sujeitos. Mais uma vez, a apropriação selectiva de elementos religiosos, dos quais aparentemente se procuravam libertar reforça a

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convicção de que os nativistas alimentavam uma postura ambígua face ao poder colonial.

A importância da literatura

29 Uma válida produção literária acompanhou a emergência do fenómeno nativista. Conforme salienta Venâncio, houve um número significativo “e títulos publicados …nos idiomas [locais] até aos anos 20 e 30”[Venâncio 2000: 84].

30 O domínio da escrita, nos idiomas autóctones, está directamente relacionado com o modus operandi das missões evangelizadoras protestantes em África e reporta-se ainda ao colonialismo arcaico. A suposta convicção de que a conversão ao cristianismo seria mais eficiente com a “tradução” da Bíblia para as línguas locais, levou os missionários a reduzirem, estas mesmas línguas, “to literate form[s]” [Comaroff & Comaroff 1992: 254], com o objectivo de procederem à alfabetização das populações nativas através destas mesmas línguas locais12.

31 A utilização destes idiomas locais como forma de expressão literária por parte dos nativistas corrobora a ideia de que a reivindicação de uma identidade própria e distinta passava fundamentalmente pela rejeição de segmentos culturais indissociáveis da cultura metropolitana. Porém, esta capacidade do colonizado em exprimir a sua modernidade13 através da escrita [autóctone] acabou por se revelar uma ‘faca de dois gumes’. Se por um lado é indiscutível que a produção literária nativista “permitiu responder ao sistema colonial com meios idênticos aos utilizados por este” [Venâncio 2004: 314], por outro concorreu para o desenvolvimento de um cadinho cultural, indispensável à consolidação da autoridade colonial. Segundo Paul Stoller [1995], a institucionalização do poder colonial foi fortemente tributária do primado de uma cultura híbrida, ou seja, o produto de uma mistura de vários repertórios culturais locais que se distinguia claramente da cultura metropolitana.

32 Ademais, a utilização por parte dos nativistas de um sistema de comunicação [a escrita], no contexto da África colonial portuguesa14, é da inteira responsabilidade dos agentes colonizadores [missionários] que acabaram por organizar de forma ‘racional’ e simplificada diversas línguas autóctones que na sua óptica se encontravam num “state of primitive disorder” [Comaroff & Comaroff 1992: 254]. A conversão de idiomas locais em caracteres escritos pode igualmente, ainda que de uma forma um pouco irónica, ter concorrido para o fortalecimento da autoridade colonial. De acordo com Jean & John Comaroff [1992: 257], “when the colonized respond in the genre of rational debate (…) the hegemony of the colonizing culture may be well on the way to instilling itself in its new subjects; that is why truly counter-hegemonic reactions so frequently seek out alternative modes of expression”.

Conclusões

33 Em síntese, o nativismo, na qualidade de movimento que reclamava visibilidade para um determinado grupo periférico no seio da sociedade colonial, no seu processo de construção identitária manteve sempre uma relação ambígua com o poder colonial. Esta ambiguidade ficou bem patente no modo selectivo com que se foi apropriando de segmentos culturais dominantes reformulando-os à luz dos seus propósitos e ambições. Ainda que as pretensões deste movimento nunca tenha sido derrubar o poder

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instituído, uma vez que os mecanismos de reprodução de poder vigentes à época excluíam sistematicamente da esfera do poder os nativistas, é pouco credível que tenham, de forma deliberada, contribuído para uma cada vez maior institucionalização da autoridade colonial. Um dos aspectos contundentes de muitos dos movimentos de resistência é que enquanto combatem algumas das facetas do poder permitem a consolidação das restantes, dificilmente chegam a abarcá-lo de forma holística.

34 O facto do principal instrumento de promoção social nativista [a literatura] se ter revelado igualmente uma alavanca preciosa na cimentação do domínio colonial não deixa de se revestir de uma certa ironia e de uma certa inquietação. No mundo global em que actualmente vivemos, a convicção de que a escrita é uma arma mais eficaz contra os desmandos dos déspotas pode não ser uma verdade tão inabalável.

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NOTAS

1. Em termos temporais, a colonização moderna de África começa com a ocupação efectiva do Continente, após a Conferência de Berlim, e por isso mesmo, contrapõe-se à denominada colonização arcaica, a qual coincidiu com “a vigência, em termos de história europeia, do mercantilismo ou do capitalismo comercial, [em que] poucos … espaços [estavam] directamente colonizados pelos europeus.” [Venâncio 1999: 151]. 2. Sobre o contributo dos portugueses na divulgação do seu conhecimento empírico das sociedades africanas, ver, por exemplo, Venâncio 2000. 3. A propósito desta questão, ver Comaroff & Comaroff 1992. 4. Sobre este assunto, ver também Venâncio 2002. 5. Para uma pesquisa mais aprofundada, ver Comaroff & Comaroff 1992: 217-233. 6. De acordo com Chabal & Daloz [1999: 12], “since [the beginning] the bureaucratic and political structures put in place were primarily designed to maintain order at the lowest possible cost”. Os Estados coloniais em África, por força da contenção de despesas, delegaram grande parte dos seus “compromissos” educativos nas várias Igrejas implantadas nas colónias [Venâncio 2004]. 7. Estes eram vistos com alguma desconfiança pelas populações de onde eram originários. Aos olhos destas, tinham voltado as costas aos antepassados, para se transformarem naquilo que Paul Stoller [1995: 153] designou por “white m[e]n with black skin”. 8. Mais precisamente, o pan-africanismo, a negritude, e por fim, o nacionalismo que acabou por conduzir à independência das colónias. 9. “Estes movimentos [sincréticos eram] … geralmente simbioses das religiões africanas com o islamismo, o protestantismo e o catolicismo” [Venâncio 2004: 316]. 10. Explorando a relação entre identidade e poder, estes movimentos religiosos sincréticos, por meio de ritos terapêuticos, procuram, inter alia, maîtriser simbolicamente o poder vigente, em prol de um reforço identitário dos seus prosélitos e seguidores, aqueles que se encontram numa situação periférica relativamente aos centros de decisão e poder. Um bom exemplo é o movimento sincrético zionista sul-africano analisado por John e Jean Comaroff [1992]. 11. Para um aprofundamento desta questão da aproriação do poder simbólico por via de processos miméticos, veja-se, por exemplo, Michael Taussig 1991. 12. Este método de cristianização implicou um “interesse” profundo por todos os aspectos da vida quotidiana das populações indígenas. A entrevista de Patrick Chabal ao pintor Malangatana releva bem esta preocupação: “as escolas da missão suíça … [tinham] um maior interesse pela cultura nativa” [Chabal 1994: 204]. 13. “Por modernidade entende-se fundamentalmente a valorização do indivíduo, enquanto sujeito progressivamente responsável pelo seu destino.” [Venâncio 2000: 54]. 14. A Guiné-Bissau será a excepção, dada a familiaridade desde os tempos pré coloniais de parte da sua população com a escrita árabe.

RESUMOS

Este artigo pretende lançar algumas pistas de reflexão sobre uma das primeiras manifestações da Lusofonia em terras africanas, que ganhou expressão fundamentalmente por via de um movimento sociocultural denominado nativismo. Mediante o enquadramento histórico deste movimento, que atingiu o seu apogeu durante as décadas de 20 e 30 do século XX, ou seja, numa

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época em que os povos Africanos se encontravam sob a égide do domínio político e económico de Portugal, procurar-se-á evidenciar a natureza ambígua do nativismo enquanto movimento de resistência à colonização portuguesa.

This article raises some issues for consideration on an early manifestation of the Lusophone culture that gained expression by means of a social-cultural movement called nativism. Through the historical background of this movement, which reached its apogee during the decades of 20 and 30 of the twentieth century, when African peoples were under the rule of Portugal, will seek to highlight the ambiguous nature of nativism as resistance movement against the Portuguese colonization.

ÍNDICE

Keywords: colonial power, nativism, syncretic religious movements, indigenous literature. Palavras-chave: Poder colonial, nativismo, movimentos religiosos sincréticos, literatura autóctone.

AUTOR

PAULA MORGADO Antropóloga. Licenciada em Antropologia e Mestre em Estudos Africanos pela Universidade de Coimbra. Investigadora do Centro de Estudos Africanos do ISCTE-IUL, no âmbito do projecto “Género e Pluralismo Terapêutico: Acesso das Mulheres ao Sector de Saúde Privado em África”. [email protected]

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Lusofonia

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A lusofonia como retrato de família numa casa mítica comum Lusophony as a family portrait in a common mythical home

Víctor Barros

NOTA DO EDITOR

Recebido a: 27/Julho/2010 Enviado para avaliação: 21/Março/2011 Recepção da apreciação: 27/4, 16 e 19/Maio/2011 Aceite para publicação: 2/Junho/2011

Considerações prévias1

1 A lusofonia ou a ideia de uma comunidade lusófona constitui o exemplo paradigmático da forma como os processos de construção e de representação identitária transportam sempre determinadas noções que buscam legitimar a discursividade subjacente à imagem daquilo que se pretende patentear. Isto significa que quando imaginamos a ideia de comunidade lusófona, não podemos dispensar duas das principais coordenadas inerentes ao processo de representação identitária: o tempo e o espaço. Mesmo quando reconhecemos que estas coordenadas estão, directa ou indirectamente, inerentes a quase todos os sistemas de representação identitária, parece pertinente salientar que neste contexto particular, elas ganham uma dimensão particularmente expressiva naquilo que constitui a combinação retórica dessas duas coordenadas no próprio processo discursivo de representação da ideia de lusofonia ou de comunidade lusófona.

2 Neste caso, o tempo (enquanto memória) constitui a categoria a partir da qual os discursos sobre a lusofonia ancoram para tentar legitimar a historicidade inerente ao processo de formação daquilo que hoje se denomina por comunidade lusófona. Isto significa que a versão actual daquilo que se propôs designar por lusofonia se inscreve

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discursivamente numa temporalidade intencionalmente insuflada pela memória histórica das relações tecidas em tempos de colonização entre Portugal e as suas antigas colónias: daí a sacralização do tempo dessa memória e da memória (actual) desse tempo, como instrumento essencial, passível de construir uma narrativa característica e legitimadora dos discursos celebratórios da lusofonia e da ideia de comunidade lusófona. Por isso, aqui, o tempo funda e outorga a sua dimensão referencial como uma das coordenadas do sistema de representação daquilo que constitui a lusofonia, ao mesmo tempo que funde sub-repticiamente as continuidades e as metamorfoses que a contemporaneidade pós-colonial e pós-independência imprimem (aparentemente) como discurso de ruptura com o tempo da representação imperial.

3 A segunda coordenada a que aludimos (o espaço), para além de materializar o contexto da representação, constitui por excelência um instrumento de fixação das referências geográficas e identitárias da “comunidade” que se pretende representar, tendo em conta a aparente articulação que se pode estabelecer – tanto por referência à língua, como instrumento de partilha, como também por referência ao mito da ideia de uma história comum. Neste contexto, tanto a língua como a memória histórica aparecem imbuídas de um alcance susceptível de suportar a definição de uma aparente unidade; uma unidade não menos paradoxal e contraditória, tendo em conta a dispersão territorial e continental dos vários espaços que preenchem a geografia da designada comunidade lusófona e as especificidades sócio-culturais e os contextos sociolinguísticos intrínsecos à historicidade que caracteriza a formação identitária de cada um desses espaços. Por isso, perante este quadro, a construção da coordenada espacial a partir da qual se imagina a ideia de uma comunidade lusófona opera tanto na sua dimensão demarcatória (ao estabelecer a língua como pauta fundamental de pertença), como também nas suas funcionalidades como espaço imaginário. Um espaço imaginário que, contudo, não pode ficar imune ao questionamento, sobretudo quando os discursos que animam a imaginação de pertença ficam insuflados somente pela propalada retórica de uma “língua partilhada” e pelo mito simplificador de uma “história comum”.

4 Os discursos celebradores da lusofonia e da ideia de representação de uma comunidade lusófona são profundamente tributários daquilo que constitui a memória histórica e colonial do império. Aliás, não podemos perder de vista que a representação cartográfica desta ideia de comunidade pisa e reproduz, praticamente, os mesmos perímetros dos espaços que enformavam a geografia imperial portuguesa. Estamos assim perante os novos desdobramentos pós-coloniais que a discursividade da memória do antigo império colonial português ganhou com os novos discursos e conteúdos que lhe foram insuflados para servir de bálsamo, tanto na forma de reconstrução da nova versão da identidade nacional portuguesa (após 1974), como também na reelaboração da nova geografia imaginária (lusófona), susceptível também de alojar as antigas colónias sob o manto de um mesmo legado que as atrela de forma umbilicalmente transversal a Portugal: a língua.

5 No Portugal contemporâneo, a reflexão sobre a identidade nacional esteve sempre presente e desenvolve-se em múltiplas direcções após a queda do império (1974-75) [Matos 2002: 123]. Neste sentido, a invenção da lusofonia não deixa de figurar como uma parte da versão da identidade nacional e, simultaneamente, uma espécie de fórmula alegórica de projecção do futuro, sem poder deixar de imaginar o passado de

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Portugal como antiga potência imperial e nação colonizadora. Daí que, mais do que propriamente uma forma catártica de exorcização dos fantasmas imperiais, a sua invenção e a ideia de comunidade lusófona funcionam como uma das versões reconfiguradas e reformatadas da mitologia de vocação imperial que, até à derrocada do Estado Novo salazarista em 1974, sempre alimentou o discurso profundamente nacionalista da identidade nacional portuguesa. Esta asserção está bem patente na forma crítica como Eduardo Lourenço problematizou a questão das imagens que a aventura colonial portuguesa impregnou na consciência nacional e a nova tentativa de conversão e de readaptação dos novos mitos para animar a identidade nacional: “As contas a ajustar com as imagens que a nossa aventura colonizadora suscitou na consciência nacional são largas e de trama complexa de mais. A urgência política só na aparência suprimiu uma questão que também na aparência o país parece não se ter posto. Mas ele existe. Querendo-o ou não, somos agora outros, embora como é natural continuemos não só a pensar-nos como os mesmos, mas até a fabricar novos mitos para assegurar uma identidade que, se persiste, mudou de forma, estrutura e consistência” [Lourenço 2007: 116].

6 Para além das versões (re)fundadoras de carácter revolucionário que, depois de Abril de 1974, acompanham a reconfiguração da imagem de Portugal e das suas antigas colónias africanas, o discurso da lusofonia não representa exclusivamente a metamorfose polida da antiga “vocação” pretensamente imperial da nação portuguesa. Ele atesta também a plasticidade da memória e as diferentes apropriações que as diversas formas discursivas de uma mesma memória ganham, de acordo com as funcionalidades políticas que se lhes incumbem de cumprir.

7 Qualquer problematização da temática em análise não pode perder de vista as duas coordenadas essenciais sobre as quais assenta, directa e indirectamente, a representação da lusofonia ou da comunidade lusófona. Sub-repticiamente, o tempo e o espaço aparecem como categorias importantes de legitimação do próprio discurso da lusofonia – primeiro, pela inscrição numa memória histórica; segundo, pela possibilidade de mapear geograficamente os pontos dispersos da cartografia que configura a ideia de uma pretensa comunidade lusófona. Este facto não só atesta bem a importância que o tempo e o espaço ganham como categorias da narrativa de representação identitária, como também corrobora a ideia segundo a qual diferentes épocas culturais engendram, politicamente, diferentes formas de combinar essas mesmas coordenadas espácio-temporais [Hall 2006: 70]2. Uma combinação que, por sua vez, não deixa de animar a ideia de uma certa geografia imaginária (lusofonia, comunidade lusófona), a partir das representações alicerçadas nas narrativas do passado e que permitem reelaborar e readaptar velhos mitos como forma de conciliar a memória imperial e colonial com o presente e o futuro e, consequentemente, continuar a nutrir o velho aforismo já conhecido sobre o papel e o lugar de Portugal no mundo.

8 Portanto, se a ideia de lusofonia reivindica um tempo e um espaço a partir do qual se torna possível imaginar uma suposta comunidade lusófona, na verdade a discursividade política a ela associada não deixa de ser também tendencialmente convocadora da necessidade de todos se reconhecerem numa mesma geografia imaginária, uma geografia imaginária que também não deixa de ser tributária de um tempo e de um espaço que, outrora, foram inscritos na identidade nacional portuguesa e que permitiu imaginar o império. Por isso, a retórica da lusofonia e de uma comunidade lusófona busca, em parte, dar sentido a uma identidade que se imagina inscrita num tempo e

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num espaço específicos, validando a tese segundo a qual todas as identidades se inscrevem e recorrerem a uma ancoragem num tempo e num espaço simbólicos [Hall 2006: 71].

1. O discurso colonial e o elogio da língua

“Aqueles que nunca atravessaram os desertos e os matos da África não podem compreender nem sequer imaginar como se dilata o coração de Portugal dentro do peito quando se aproxima de nós, do fundo da Donguena ou dos imbondeiros do Xipelongo, um pequenino preto que nos pergunta com graça ingénua: O siô passô bêm?” [Boletim Geral das Colónias 1939: 26]3.

9 A partir das considerações propedêuticas anteriormente explicitadas, propomo-nos agora fixar sucintamente a forma como o discurso colonial não deixou de manifestar a sua posição apologética quanto à necessidade de atrelar a língua à missão colonial e “civilizadora” que se inscrevia no espírito imperial do Estado Novo salazarista, sob a retórica de fazer cumprir o mito da essência orgânica de Portugal como nação. Assim, colonizar e “civilizar” eram propaladas como partes intrínsecas da essência orgânica de Portugal, como nação imperial que não se coibia de desempenhar uma função considerada histórica. Por isso, por referência ao mito da essência orgânica, a colonização e a acção de “civilizar” os indígenas parecia conferir sentido à própria razão de ser de Portugal: daí a sacralização da ideia de império como alegoria e metáfora da história de uma nação em movimento.

10 Contudo, não podemos deixar de salientar que colonizar e “civilizar” são concepções que já de per si transportam uma dimensão política hegemónica e que se instalam como noções que estabelecem os lugares e as hierarquias das relações de poder (colonizador/ colonizado) em contextos de dominação. Apesar de serem categorias que o discurso colonial veicula dissimuladamente como noções imbuídas de uma certa dimensão libertadora e emancipatória, elas acabam por mascarar uma parte importante do poder colonial e do próprio colonialismo, na medida em que fazem com que estes se tornem aparentemente legítimos e toleráveis de acordo com o que conseguem ocultar dos seus mecanismos de dominação. A fachada aparentemente libertadora que elas veiculavam inscreve-se naquilo que alimentava o discurso colonial e o próprio colonialismo como sistema (pretensamente) legítimo de poder e também como necessidade imprescindível e inquestionável da razão da força “civilizacional” que alojava numa suposta força da razão histórica portuguesa.

11 Um facto não menos importante a considerar na análise do processo colonial pode ser também identificado na forma como determinadas posições aparentemente valorativas da cultura ou da realidade indígena são discursivamente concebidas por mera referência aos intentos hegemónicos de um colonialismo que, por todos os meios, se queria actuante. Com isso queremos dizer que a identificação de determinados elementos indígenas (como a língua, por exemplo) e a tentativa da sua incorporação numa prática colonial não correspondia a um processo de reconhecimento valorativo da diferença, mas sim o estabelecimento de funcionalidades supostamente “científicas” de um saber colonial posto ao serviço da própria dominação: conhecer para dominar.

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Daí que o que estava em causa era, fundamentalmente, afirmar a subalternidade do indígena mediante a celebração real e simbólica do “prestígio de quem, pelo conhecimento da língua, soube lidar com os pretos, conquistando sempre a mais respeitosa submissão” [B.G.C. 927: 39]. Por esta razão, não faltaram posições fundamentadas sobre a importância do conhecimento, por parte dos funcionários coloniais, da “língua vernácula” da colónia onde iam exercer as suas funções, como forma de propagar a luz da “civilização” na escuridão da “barbárie”, que se imaginava caracterizar o primitivismo dos espaços coloniais africanos. Por exemplo, em 1927, esta perspectiva ficou asseverada por um tipo de discurso tendencialmente salvífico e laudatório que se traduzia nos seguintes termos: “Eis a divisa da nossa nobre cruzada, cuja finalidade gigantesca é – Rasgar ao mundo as trevas em que ainda hoje se envolve a África, abrir mil veredas por onde possa caminhar avante a roda do progresso; lançar a luz brilhante da instrução nos cérebros obscuros dos seus habitantes, ensinar-lhes os sãos princípios da sociabilidade, do trabalho e da moral cristã. Os executores e dirigentes natos dessa cruzada (…) são os nossos funcionários coloniais, que pela sua inteligente técnica administrativa, serão de certo merecedores de louvor; e por isso é para eles que vai o testemunho sincero das minhas saudações, lembrando que um dos valiosos factores da colonização portuguesa em África como em toda a parte, foi desde os seus primórdios o conhecimento das principais línguas do qual resultou a prática de saber lidar com os naturais.” [B.G.C. 1927:37].

12 Apesar desta celebração laudatória da gesta imperial portuguesa, esta asserção antecipa aquilo que viria a ser posteriormente posto em relevo pelo Estado Novo salazarista sobre a especificidade da colonização portuguesa, caracterizada fundamentalmente pela existência de uma suposta disposição ou forma de estar tipicamente portuguesa na relação com os povos colonizados.

13 O elogio da língua vinha sempre embalsamado por um discurso de pendor colonial, que reforçava cada vez mais o nacionalismo imperial salazarista por referência ao que se considerava ser a continuidade dos registos dos tempos gloriosos da gesta portuguesa da navegação pelos mares, da “descoberta” de terras e das batalhas vencidas nas diversas partes do globo. Por isso, não se obstava de propalar sistematicamente o lugar de Portugal no mundo como potência colonizadora, difusora dos valores da “civilização” e nação digna de nome no registo do livro da História que serve de lição para a humanidade, uma vez que se encontram ali “registados em caracteres inapagáveis esses épicos feitos de um povo colocado na parte mais ocidental da Europa, e que pela sua singular característica de colonizador, soube tornar-se grande, servindo de mestre e guia aos outros povos, que apareceram depois dele e trilharam pelos caminhos por ele aplanados” [B.G.C. 1927: 24-25]. Assim, entre os feitos da colonização, elogiava-se a “rara capacidade” portuguesa de integração de indivíduos nos usos e costumes portugueses, “falando até a nossa língua”, e na “boa-vontade” com que acederam a essa “transfiguração social, que até hoje, em terras que já não são nossas, no seu convívio particular se fala o português e com certo orgulho!” [B.G.C. 1928: 216]. Ainda a corroborar a tese do elogio, encontramos também a forma como, por referência à língua, se procurava reportar à memória simbólica que articula Portugal com o Brasil e com as colónias africanas, principalmente Angola, para onde seriam canalizados os esforços patrióticos da missão “civilizadora”: “a irrigar aquelas terras sedentas com a água lustral da nossa civilização, da qual esta língua, que falamos, é uma das mais vivas, das mais fortes e das mais palpitantes expressões” [B.G.C. 1931: 213].

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14 Nesta senda, a ideia de grandeza da missão colonizadora e “civilizacional” não podia dispensar a apologia da língua. Isto não significa que se estava perante um programa político e cultural estruturalmente definido e enquadrado no âmbito do projecto imperial, mas tão-somente no âmbito propagandístico e apologético sobre a necessidade de não se desconsiderar a defesa da língua, tanto como forma de reconhecimento dos vestígios de uma “civilização” que se encontrava “em todos os continentes” [B.G.C. 1935: 159], como também de engrandecimento de Portugal como pátria e potência colonial. Por isso, a apologia da língua inscrevia-se no âmbito de uma propaganda tributária da ideia de mantê-la atrelada ao império: mais do que fazer imperar as suas funcionalidades no contexto da colonização como um dos “factores que mais contribui para os estreitos entendimentos dos colonizados e dos colonizadores”, ao indígena devia ser ensinada “a língua para que ele a compreenda bem, e ensinar-lhe o melhor possível”, de modo a aprendê-la e a divulgá-la. Contudo, não podemos deixar de considerar que a apoteose discursiva desta asserção assentava em duas premissas fundamentais. A primeira, de carácter nacionalista, que acentuava a necessidade de reconhecimento do valor cimeiro da língua: “só depois dela vêm os costumes, o orgulho das tradições, numa palavra, a pátria”; a segunda, de carácter colonial, arreigava no mito assimilassionista de inculcar ao indígena “o verdadeiro sabor da língua” [B.G.C. 1935: 186-187]. Por um lado, parece fácil reconhecer que estamos perante posições discursivas que se ancoram no âmbito da propagação da importância superior da língua como “principal preocupação de quantos pretendem fazer grande a Nação”; por outro lado, alimentava-se a crença na possibilidade de elevação progressiva do indígena à “civilização” e a sua consequente libertação da “barbárie” que se imaginava caracterizar os níveis de “primitivismo” resultantes do desconhecimento da língua da “civilização”.

15 Neste nível problemático, parece pertinente não negligenciar a forma como a língua foi atrelada à ideia de resultado que se fazia revelar por mera consequência da acção colonial dos “obreiros da grandeza da Pátria” [B.G.C. 1939: 23] e do império (marinheiros, militares, fazendeiros, missionários, mercadores...). Assim, pensava-se que a partir da missão colonial específica de cada uma destas categorias, a língua se realizava e se revelava, automaticamente, como valor de civilização: é neste contexto que se exorta ao empenho da sua difusão como correlato da incumbência característica do trabalho de cada obreiro, por se considerar que não havia “benefício tão grande que se possa fazer a um povo, como a difusão da sua língua, pela qual domina sobre tudo a supremacia da raça” [B.G.C. 1939: 25].

16 Esta posição não só buscava corroborar a pretensa “vocação apostólica” de Portugal como potência colonizadora, como também pretendia validar o poder hegemónico sobre a qual se aspirava afirmar a sua suposta superioridade. Daí que qualquer posição nacionalista se revelava legítima, sobretudo quando se tratava de defender a língua, seja por meio de perspectivas propagandísticas, seja por meio de posições políticas supostamente susceptíveis de anular e exorcizar os efeitos aparentemente perversos que se imaginava resultarem da adopção ou da colagem de noções estrangeiras. Estas eram vistas como “fortíssimos atropelos à forma portuguesa” e uma “sensível manifestação de mau gosto” que não deixava de ferir o bom ouvido português: “O uso da língua estrangeira nem sequer merece ser discutido. Não há interesse que o expliquem nem aprumo patriótico que o admita. Trata-se, simplesmente, duma

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incompreensão doentia da nossa função na colónia, possivelmente baseada em fantasiosas razões de ordem comercial” [B.G.C. 1940: 107-108, B.G.C. 1941: 90].

17 Por exemplo, em 1940, na então colónia de Moçambique, podemos identificar algumas referências relativas àquilo que as autoridades coloniais consideravam ser “estrangeirismos”, manifestos na “troca deselegante do nome com o atributo”, cujos exemplos estavam patentes nalguns casos típicos como nomes de edifícios ou estabelecimentos. Na altura, uma das propostas centrais estabelecia o “uso da língua portuguesa, em nomes de edifícios, tabuletas, cartazes, marcas de fábricas e de comércio nacionais, listas de mesa de hotéis e restaurantes, e, bem assim, em todos os letreiros de carácter mais ou menos fixo e de leitura instintivamente forçada para quem passa” [B.G.C. 1940: 107-108 & B.G.C. 1941: 90]. Tudo parecia justificar a ordenação de disposições que o “culto”, a “pureza” e o “prestígio” da língua portuguesa exigiam, no sentido de combater aquilo que parecia ser presença de “estrangeirismos desnecessários” na linguagem local, como se podia testemunhar pelo desinteresse ou falsa comodidade de quem desprezava os “abundantíssimos” recursos do vocabulário português em detrimento do uso daquilo que se considerava ser o “barbarismo” dos que frequentemente utilizavam a designação “tiqueta” (do inglês ticket) para designar o cartão em que se registavam os dias de trabalho dos trabalhadores indígenas. Por isso, alertava-se para alguma atenção nos documentos oficiais e para a firmeza no combate oportuno ao que consideravam ser “vícios sustentados por ignorância, desleixo ou teimosia do exterior”. Sendo assim, os Serviços Públicos poderiam tornar-se numa verdadeira escola de protecção da dignidade intrínseca da língua, considerada então como o mais permanente e um dos mais característicos sectores do verdadeiro nacionalismo português. Nesta ordem, ficou superiormente determinado pelo então Governador-geral daquela colónia, o General Tristão de Bettencourt, que a designação tiqueta, “abusivamente” dada a cartões de trabalho indígena, fosse suprimida da linguagem oficial. Tudo isso para que seja defendida, naquele recanto do império, a riqueza, preciosa e autónoma, daquilo que se considerava ser uma aquisição de séculos: o património linguístico português [B.G.C. 1941: 141-143] 4. Esta acção tanto vinha ao encontro do nacionalismo imperial que fundamentava a necessidade de legitimação e renovação constante da presença portuguesa nas colónias, como também reflectia a ambição de fazer reproduzir Portugal em todas as latitudes do império: “Tudo quanto de qualquer modo propague e robusteça, na Colónia, o espírito nacional constitui obra salutar da nossa presença e afirmação consistente dos nossos direitos” [B.G.C. 1941: 90, B.G.C. 1940: 107].

18 Numa análise rigorosa, parece fácil diagnosticar a forma como o discurso colonial investe a língua de uma dimensão essencialista, uma vez que a sua imposição revelava o sentido colonizador de um povo que também através dela projectava a sua própria alma. Daí a sua importância como “factor espiritual” que determinava a linha demarcatória entre a simples ocupação e a verdadeira colonização, tal como se manifestava naquilo que se imaginava ser a capacidade de irradiação da língua portuguesa e a sua resistência, em todas as latitudes, entre os povos e os climas mais exóticos. Neste sentido, a língua corroborava a verdadeira vitória colonizadora por se revelar como uma espécie de vitória sobre o espaço e sobre o tempo, tanto no domínio da terra como também na penetração nas almas. Por isso se insistia na necessidade de não desvincular as colónias e os seus povos do “sangue” e da tradição expressa pela cultura da “nossa língua”. Estamos assim perante uma forma celebradora do elogio da língua e da saudação daquilo que se imaginava ser o sentimento ecuménico e o

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franciscano amor pelas gentes e culturas de outras latitudes, manifesta nesta “capacidade única” de Portugal se perpetuar noutros povos [B.G.C. 1942: 114-115, B.G.U.5 1951: 119].

19 Contudo, quando elevamos a problemática para uma dimensão mais crítica, não podemos perder de vista que, fora dos discursos propagandísticos, o manuseamento da língua constituía um dos requisitos impostos para o reconhecimento do nível “civilizacional” do indígena. Por esta razão, o enaltecimento da irradiação e defesa da língua portuguesa nas colónias não deve passar imune a uma problematização dos limites da sua real apropriação por parte dos indígenas, sobretudo quando tomamos em consideração que as determinações superiores de 1954 exigiam, entre outras condições, que o indígena falasse português para que lhe seja reconhecido o direito de cidadania [B.G.U. 1955: 393]. Para além desta dimensão supostamente valorativa da condição social e identitária do indígena, a propaganda não dispensou também a celebração do português como língua franca sem a qual teriam sido difíceis os contactos das nações europeias com os outros povos; daí a sua representação como veículo a partir do qual se estabeleceu o entendimento entre o Oriente e o Ocidente e como veículo do pensamento que serviu os interesses espirituais e mercantis da Europa, bem como o interesse comum da Humanidade nos diferentes continentes: “Tanto a África, como o Oriente, como o Brasil, como a Oceania, receberam de Portugal mais de que de outro país o património da nossa língua culta” [B.G.U. 1958: 326]. Parece inequívoco que esta ideia de património ou de legado português suportava perfeitamente a concepção de uma geografia imaginária a partir da qual se poderiam anexar as diversas periferias (antigas e então colónias) na órbita de uma língua que permitia imaginar e identificar Portugal como centro [Ribeiro 2004]. Ou seja, por referência à língua tornou-se possível imaginar o império, elaborar a narrativa da sua construção, situar os lugares onde ela se arraigou e, por fim, incorporar estes mesmos espaços numa representação que os atrelava directamente a Portugal. Este, durante o salazarismo, não deixou de incorporar e reelaborar imagens discursivas que beneficiavam a sua representação como nação de obra colonial manifesta na forma como se reproduzia nas diversas extensões do seu então mundo colonial. Por exemplo, a imagem de Portugal como nação geograficamente pluricontinental, política e humanamente multirracial [Torgal 2002: 147-165] que, a partir da década de 1950, se instala discursivamente, estabelecendo-se como a nova metáfora nacional e imperial, transportava também, directa e indirectamente, a ideia de uma suposta comunidade também passível de ser representada através da memória da língua. Aliás, a sua disseminação geográfica pelos diferentes espaços continentais e a possibilidade de identificação de um universo de falantes corroborava a formatação da ideia de uma comunidade imaginada a partir da língua [B.G.U. 1965: 118-119].

20 Vários são os registos que a partir da década de 1960 testemunham acções tendencialmente estruturadas e intencionalmente definidas no sentido de elaborar e fomentar a sedimentação do imaginado mundo português que se queria tanto como comunidade efectiva, como também afectiva. Nesta senda podemos identificar, por exemplo, a proposta lançada para a realização, em 1961, dos Jogos Desportivos do Mundo Português, a realização do I Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa, em 1964, ou ainda a identificação da necessidade de uma “maior expansão da língua pátria no Ultramar”. Fora da sua dimensão lúdica, os Jogos Desportivos do Mundo Português pretendiam encenar uma sensacional e empolgante afirmação de unidade da “Raça” e da “Pátria” através da congregação da juventude portuguesa de toda a parte da “Nação”

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e do mundo português, numa “larga e nobre” exibição nacional que testemunharia a fidelidade e a consciência que vinculava todos os portugueses. Ao tentar diluir discursivamente as fronteiras da diferença (“quaisquer que sejam as diferenças de cor, de religião”), convocava-se sub-repticiamente para a celebração da ideia de uma suposta unidade que se queria suprema, reveladora da presença viva da “perenidade nacional” e da “imortalidade triunfal da Raça”. Esta celebração desportiva seria um desfile da juventude portuguesa, unida no estímulo da mesma competição física, numa só “alma” e num só nome; ao mesmo tempo, seria também a alegoria de uma versão da identidade nacional e imperial portuguesa, veiculada em forma de espectáculo. Daí a representação da juventude do mundo português como depositária de uma expressão de solidariedade e de um sentido de continuidade daquilo que se considerava ser a alma e o destino nacionais [B.G.U. 1961: 215-217]. Entretanto, independentemente dos contornos reais da sua realização, para o propósito do presente texto, não podemos perder de vista a necessidade de problematizar e identificar as funcionalidades políticas subjacentes às propostas discursivas que alimentavam estas imagens e a forma como elas se inscrevem (com todos os seus efeitos momentâneos e os seus desdobramentos posteriores) na construção de representações postas ao serviço das demandas (reformadoras ou fundacionais) de um tempo específico.

21 O segundo registo a que nos aludimos – I Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa (realizado de 8 a 16 de Dezembro de 1964, sob o patrocínio da Sociedade de Geografia de Lisboa) – constituía o reflexo inequívoco da tentativa de fixação de uma espécie de comunidade de cultura. Uma comunidade em parte imaginada a partir de uma certa forma de essencialismo, manifesta na concepção do portuguesismo que se pensava trespassar todas as comunidades de cultura portuguesa, sacralizando assim o mito da ideia de uma solidariedade filiada neste portuguesismo e o mito do modo português de estar no mundo, firmado por todas as parte (“ao redor da terra”) e por todos aqueles que, de algum modo, estavam filiados nesse mesmo portuguesismo. Uma filiação reivindicada também por referência à concepção da ideia de uma matriz portuguesa estabelecida em terras alheias que, também à mercê da maneira portuguesa de viver, implantou nos trópicos comunidades de raiz portuguesa com o seu “milagre” do homem novo, o “homem luso-tropical”, depositário cultural da civilização portuguesa e “produto de um povo de missão” [B.S.G.L.6 1964: 358, Moreira 1964: 275]. Importa referir ainda que o referido congresso não se centrava exclusivamente nos espaços do então mundo colonial português, mas também alargava a sua abrangência representativa a outros espaços de emigração portuguesa. Contudo, o âmago da questão estava focalizado na tentativa de afirmação valorativa de uma determinada concepção de comunidades de cultura e língua portuguesa e na tentativa de fortalecimento de laços (“biológicos, étnicos, linguísticos, religiosos e culturais”) tributados por todos os “luso- descendentes”. Como corolário do primeiro congresso ficou oficialmente instituída, em Dezembro de 1967, a União das Comunidades de Cultura Portuguesa, designada como “uma instituição privada, internacional e apolítica, que tem por fim promover e assegurar as relações e a cooperação das associações, grupos e indivíduos que estejam ligados ou se interessam pela conservação e propagação da cultura portuguesa” [B.S.G.L. 1964: 399]. É neste mesmo trilho de inclinação tendencialmente luso-tropicalista que entre 12 e 22 de Julho de 1967 foi realizado em Moçambique o II Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa, com a participação de mais de mais de 180 personalidades dos diferentes pontos do mundo onde se fala a língua portuguesa, de entre eles o apóstolo do luso-tropicalismo, Gilberto Freyre [B.G.U. 1967: 157-187].

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22 Do terceiro registo referido, importa salientar o diagnóstico da Sociedade Portuguesa da Língua quanto à necessidade de expandir a língua pátria no então ultramar através da nomeação dos seus delegados nas diferentes colónias e da criação de núcleos regionais de estudo também para a recolha de material linguístico das línguas locais. A Sociedade era definida como uma “associação cultural, de carácter eminentemente popular”, criada em 1949 com sede em Lisboa, mas que também mantinha contactos com as colónias. Contudo, parecia cada vez mais premente a mediação desse contacto com os espaços coloniais através do trabalho de divulgação que o seu boletim poderia ter na difusão da língua por intermédio das autoridades militares ou dos padres das missões que ali se encontravam a prestar serviço. Outrossim, não se podia dispensar a importância assistencial e educativa das missões junto das populações, sobretudo quando se considera que, atrelado às suas actividades específicas, estava sempre presente o trabalho propedêutico do ensino e da difusão da língua [B.G.U. 1969: 211-213, B.G.U. 1970: 157].

23 Portanto, a partir deste inquérito sobre a problemática da língua podemos facilmente diagnosticar a forma como ela esteve atrelada ao discurso colonial posto ao serviço da sacralização do império e da reivindicação de uma suposta vocação portuguesa de carácter missionária, ecuménica e, em certa medida, universal e universalizante. Através do mapeamento das formas discursivas elaboradas pelo discurso colonial e colocadas em evidência directamente pela propaganda glorificadora da ideia e da representação do império, parece plausível insistir na dimensão laudatória atribuída à língua na narrativa colonial e, consequentemente, nos efeitos que a apoteose do seu elogio (enquanto mecanismo de dominação) desencadeou na colonização do imaginário, por alusão à força da incumbência pretensamente salvífica que lhe foi investida como elemento imprescindível na validação do nível “civilizacional” do colonizado. Ao celebrar o império, o elogio da língua representava-a ostensivamente como língua do império, afirmando assim a própria lógica hegemónica que alimentava o império da língua.

2. Os mitos da lusofonia: entre as malhas da língua e as memórias do império

“Portugal, deve ser uma solidariedade viva em quatro partes da terra: como se esta fôsse a própria fonte da vida nacional, tôdas as populações portuguesas terão de ajudar-se e proteger-se mùtuamente, porque a tôdas a mesma bandeira cobre e a mesma língua tem de embalar” [B.G.C. 1932: 7].

24 Para além de corresponder à matriz etimológica que lhe devolve o significado semântico, a lusofonia veicula também noções que a investem de uma dimensão afectiva, por se ancorar no discurso celebrador da existência de laços afectivos entre Portugal e as suas ex-colónias, fundamentalmente por referência à ideia de uma língua comum. Apesar de se pretender veicular uma realidade passível de ser percepcionada como comunidade de língua, o discurso da lusofonia convoca e anima, em certa medida, a dimensão sentimental que permite insuflar a imaginação da mesma como comunidade de afectos. Em tese, as comunidades de pertença são tendencialmente

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projectadas de forma real e simbólica como espaços de afectos. Neste caso, a representação da lusofonia (enquanto comunidade de língua) não podia dispensar o trabalho de convocação dos afectos como suplemento capaz de fazer irrigar o sentimento de identificação e de pertença. Estamos assim perante um processo que não deixa de revelar as metamorfoses que os usos da memória histórica ganham em função das épocas e de acordo com as funcionalidades políticas e discursivas que lhes são incumbidas de cumprir.

25 Não podemos negar que, no contexto da representação da lusofonia, a convocação dos afectos é feita por referência à história, ao passado: a um passado que sub- repticiamente é convocado para ser imaginado como uma espécie de meta-história cuja narrativa poderá tornar possível o reconhecimento de um passado comum. Para além dos processos discursivos que indirectamente sobrevalorizam esta narrativa celebradora da lusofonia, parece também possível diagnosticar o próprio uso da história como uma espécie de bálsamo com o qual se pode cingir uniforme e homogeneamente todos os antigos espaços coloniais onde ainda se fala o português. Neste contexto, é como se a simples reivindicação de uma história ou de um passado comum legitimasse automaticamente a concepção de uma comunidade que permite a inserção dos diferentes povos que falam o português numa cadeia de filiação identitária homogénea. A retórica de um passado comum enquadra-se perfeitamente nas estratégias discursivas impostas pela necessidade de uma nova forma de representação da história e, subsequentemente, pela tentativa de insuflar o passado subjacente a essa história como uma espécie de “campo comum” ou reflexo a partir do qual todos se reviam analogamente na mesma imagem. É como se uma espécie de fórmula sintética – “passado comum” – revelasse susceptível de aglomerar as memórias e as diferentes formas de representação do passado que dá forma e conteúdo a essas mesmas memórias. Por isso, quando a imagem da lusofonia fica atrelada somente à explicitação simplista da ideia de passado comum, ela simplesmente corrobora a sua própria inscrição no processo da escrita de uma nova forma de representação identitária, com todos os reflexos perversos e os seus segredos de invisibilidade a ela subjacentes.

26 Independentemente de qualquer tentativa de conceber a lusofonia a partir do aforismo da língua e de um passado comuns, não podemos negligenciar que as diferentes sociedades que formam o universo lusófono revelam, todas elas, diferentes formas de lidar com a mesma representação. Isto significa que, nas antípodas da noção de lusofonia podemos diagnosticar os paradoxos inerentes à sua representação, tendo em conta a importância atribuída às memórias nacionais de cada um dos países do espaço lusófono na animação das suas representações identitárias e nacionalistas. Sendo assim, a dimensão afectiva que a lusofonia convoca não pode estar imune ao questionamento. Os limites da sua apropriação são também moldados pela interferência e sobreposição de outras referências que são indexadas tanto no reportório da memória oficial nacional e nas representações do imaginário colectivo de cada um dos países como também na concepção das representações sociais e individuais da identidade dos sujeitos ou grupos que pertencem ao designado espaço lusófono. Mesmo quando a problemática da imagem da lusofonia é deslocada para o campo das representações sociais ou individuais, ela não é incorporada com o mesmo significado na estruturação real e simbólica das representações identitárias dos diferentes sujeitos. Por exemplo, dos resultados de um estudo sobre a lusofonia e as representações sociais de portugueses e de africanos, Joaquim Valentim [2003: 146] salienta o seguinte:

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“Mas se a lusofonia se mantém como um princípio organizador das representações sociais dos portugueses, não há concordância entre os portugueses e africanos a esse respeito: os portugueses valorizam-na, os africanos rejeitam-na. Dito de outro modo, a este nível, a valorização da lusofonia não encontra correspondência da parte dos africanos que são, em boa medida, interlocutores por excelência dessa lusofonia. Mais ainda, os africanos não só manifestam uma posição contrária à dos portugueses em relação à lusofonia, como a importância que atribuem à sua identidade étnico-nacional se encontra associada negativamente à valorização da dimensão lusófona nas representações das semelhanças dos portugueses com outros povos”.

27 Sendo assim, podemos reforçar ainda que a dimensão valorativa da lusofonia é tributária da forma como esta é assumida por cada um dos países e, sobretudo, como ela é mais incorporada ou menos incorporada nas representações da imagem e da própria identidade de cada um deles. Em parte, esta maior ou menor incorporação resulta também da maior ou menor força da memória do “lugar” hierárquico que, em tempos de colonização, mediava as relações de poder entre Portugal as suas colónias. Por outro lado, não podemos descurar os efeitos perversos que as representações hierárquicas (colónias/metrópole) postas em destaque pelo colonialismo, têm no condicionamento das modalidades de inclusão e de assunção plena de determinados legados, como todos os seus reflexos de visibilidade que se lhe podia atribuir. Esta asserção é cada vez mais pertinente quando conseguimos observar que a matriz da lusofonia se funde sobre a ideia de um legado do qual Portugal foi o grande depositário: mesmo quando não se celebra directamente, ela acaba sempre por protagonizar inconscientemente a narrativa de um centro a partir do qual se pode identificar a matriz originária da língua através da qual todos os restantes espaços do mundo lusófono se encontram vinculados. Na esteira destas ideias, Eduardo Lourenço [2004: 179] foi peremptório em sublinhar a dimensão apoteoticamente portuguesa que acompanha a força representativa dos afectos vinculados à imagem da lusofonia: “Só para nós, portugueses, a lusofonia e a mitologia da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa é imaginada como uma totalidade compatível com as diferenças culturais que caracterizam cada uma das componentes. Como portugueses, seria impossível e sem sentido não imaginar assim, pois somos o espaço matricial da língua portuguesa, levando-a connosco par as paragens que tocámos ou colonizamos, e onde estamos enquanto ela estiver e continuar a nos defini, aos nossos olhos e aos de outros, como interessados espiritual e vitalmente na sua irradiação, presença e metamorfose”.

28 A ideia de vinculação dos vários espaços a partir da referência à língua não deve exceder a representação das possibilidades de celebrar, em si mesma e com todos os seus limites, a própria comunicação. Os excessos celebratórios de vinculação cultural dos vários espaços lusófonos a Portugal através da língua acabam sempre por glorificar uma memória: neste caso uma versão presente de glorificação do passado que, por vezes, ultrapassa a simples celebração da língua comum e as possibilidades de comunicação que ela proporciona, para se cair nos excessos de imaginação de uma comunidade de cultura passível de ser concebida, interpretada e reconhecida uniformemente por referência às marcas impressas por Portugal nas extensões que formam a dita comunidade lusófona. Esta forma de celebração discursiva da lusofonia é tributária da perspectiva colonial que, durante o Estado Novo, acompanhou a alegoria da missão colonizadora de Portugal: o mito da reprodução de Portugal em todas as latitudes do seu império. E, se é verdade que a imagem da lusofonia é devedora imprescindivelmente da memória da língua como um dos reflexos materiais e

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espirituais da aventura colonial e imperial de Portugal, também não é menos verdade que ela acaba por renovar, consciente ou inconscientemente, a nova forma de readaptação da mesma memória, dotando-a de um novo sentido operatório: estimular a ideia de afectividade, de sentimentos, de aproximações e de partilha comum.

29 Sob a forma de discursos dos afectos, a imaginação da lusofonia acaba por matizar um pouco as representações da memória que estabeleciam a própria condição de subalternidade dos então espaços coloniais portugueses: da posição afirmativamente hegemónica como Portugal se assumia e se impunha com a memória de todos os seus mitos nas relações coloniais, passou-se então para uma espécie de exaltação positiva desses legados, entre eles a língua, através do discurso de celebração afectiva, da concepção da lusofonia como espaço de afectos assegurado por uma memória que se pretende partilhada. Ou seja, mesmo quando reconhecemos que, através dos órgãos de propaganda e por referência à epopeia colonial e imperial, o Portugal do Estado Novo sempre animou formas afectivas de articulação da então metrópole com as suas colónias, porém, através de uma espécie de mapeamento da geografia dos afectos, o discurso da lusofonia faz uma reconversão da memória histórica e convoca para a necessidade de reconhecimento de uma espécie de comunhão das partes do mundo lusófono: o mito da eufonia lusófona. A mitologia que anteriormente narrava a grandeza imperial e colonial de Portugal e remetia as então colónias para uma condição de subalternidade “civilizacional”, entre outras, por força do elogio da língua, é reelaborada, readaptada e posta ao serviço de um discurso que, sem desconsiderar as actuais especificidades, pretende estabelecer uma imagem onde todos, provavelmente, se podiam rever e sentir (confortavelmente) representados. Portanto, ao propor uma espécie de celebração legitimadora de uma partilha comum, não se podem negligenciar as margens de sombras produzidas por aquilo que os processos selectivos da memória narram, mas que também eclipsam e escondem. Com isto queremos chamar a atenção para os formatos discursivos que a lusofonia ganha, tanto por força da influência das reminiscências da memória colonial e imperial, como também pela importância que a percepção e a visão da sua representação ganha em função dos espaços de enunciação e das formas da sua apropriação, com todas as virtudes e todos os reflexos perversos inerentes à plasticidade da própria memória. Tal como refere Fernando Catroga, “não se pode escamotear a ambiguidade da acção da memória: se por um lado, ela pode ser definida pelo que do passado é aceite no presente por todos os que a recebem, a reconhecem e a prolongam ao longo de gerações, por outro lado, tende-se a esconder que a corrupção do tempo (e a historicidade do homem) também atravessa as reactualizações e transmissões do recordado” [Catroga 2001: 26].

30 À margem da retórica (política, jornalista, académica, etc.) celebradora e propagadora da ideia de comunidade lusófona, ficam sempre soterradas as contradições das realidades quotidianas e banais onde actuam e vincam as formas desiguais de representação identitária dos sujeitos falantes desta mesma comunidade. Apesar de a língua ser a matriz fundamental de articulação da esfera lusófona, não podemos negligenciar a influência furtiva que o senso comum e as relações ordinárias estabelecidas a partir do quotidiano exercem nas formas de apropriação, imitação e reprodução da língua através da representação pseudo-correcta do “aportuguesamento” do sotaque, principalmente no contexto das relações entre portugueses e imigrantes ou descendentes de imigrantes dos países de língua oficial portuguesa. Também à margem da retórica dos afectos, podemos diagnosticar alguns

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contextos relacionais que o quotidiano não escamoteia nas suas várias lógicas de relações de poder e até de conflito, inflamados ainda pelas contradições da permanência das velhas (coloniais) representações identitárias mal resolvidas, como também pelos choques pós-coloniais das memórias individuais e colectivas latentes à imagem reminiscente do antigo colonizador e do antigo colonizado. Portanto, parece plausível considerar que as múltiplas faces que a realidade ganha em função das diferentes lógicas através das quais os diferentes sujeitos constroem, no quotidiano, as suas relações tanto afectivas como conflituosas, não são mediadas pela retórica dos afectos que o discurso da lusofonia veicula. Por isso, uma radiografia do quotidiano se impõe como necessidade de diagnosticar as contradições entre a força retórica da lusofonia (no centro discursivo que a propala) e a fraqueza da sua inscrição (nas margens subalternas) onde os vários mitos se sobrepõem.

3. Considerações finais: “Retrato de família” numa casa mítica comum

“Herdámos um património riquíssimo de civilização: património de saber, de sentimentos, e bens, de solidariedade, de lembranças comuns” [B.G.C. 1934: 82].

31 Directa ou indirectamente, o debate sobre a lusofonia acaba sempre por exumar a matriz de pendor cultural e “espiritual” onde assenta uma parte do seu ideário. Se são já evidentes os esforços no sentido de fixação efectiva de um espaço de concertação designado de Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), no entanto, não podemos pensar que o discurso sobre a lusofonia se esgota na concepção institucional dessa organização de pendor essencialmente político e diplomático. Partindo do inquérito crítico sobre a forma como os discursos sobre a ideia de uma comunidade lusófona se alojam consciente e inconscientemente na glorificação dos mitos portugueses que sempre inflamaram a grandeza de Portugal e a legitimação da própria ideia de império, podemos então salientar que algumas das formas celebradoras da lusofonia não se conseguem desenvencilhar dos efeitos que a persistência desses mesmos mitos continuam a ter na colonização do imaginário português, enquanto espaço privilegiado de enunciação do próprio discurso sobre a lusofonia. Por um lado, não podemos perder de vista o peso que a ideia de império e a sua incorporação na identidade nacional portuguesa ganha desde as décadas finisseculares de Oitocentos (séc. XIX), sob o aforismo de fazer “cumprir Portugal” na sua tradição atlântica de manter o então império incarnado na África que, para muitos, representava o futuro indissociável da nacionalidade portuguesa, tal como salienta Maria Manuela Tavares Ribeiro [1998: 259]; por outro lado, também não é menos verdade que o mito do império como destino de Portugal foi também sacralizado pelo Estado Novo e convertido em “suporte dos discursos legitimadores do ultramar como “missão” nacional” [Rosas 1995: 20]. Sendo assim, torna-se pertinente não desconsiderar a forma como o mito do império permaneceu colado e incorporado na identidade nacional portuguesa, pelo menos oficialmente até à sua derrocada definitiva em 1974. Subsequentemente, na reactualização da nova versão da identidade nacional, o discurso sobre a lusofonia reelabora uma nova visão e uma nova imagem procedente do trabalho de revisitação da memória do passado colonial e imperial de Portugal, uma vez que a tentativa de

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estabelecimento da ponte dos afectos passou pela renovação da imagem da pátria que fomos, através da sobrevalorização das heranças culturais, entre elas a língua, legadas por Portugal nas diferentes partes da sua peregrina missão “civilizadora”. Assim, a “invenção” da lusofonia renovaria a imagem nacional através da glorificação do legado da língua, agora elevada a elemento comum e de união, reajustando Portugal consigo mesmo e com o seu presente (“de súbito reduzido à estreita faixa atlântica” [Lourenço 2007: 49]), traçando um possível futuro a construir através da geografia imaginária que a língua possibilitaria.

32 Para além do mito do império, o retrato da lusofonia alimenta-se também de um outro mito relacionado com a especificidade (excepcional) do colonialismo português: neste contexto, o legado da língua não é contextualizado como parte integrante da imprevisibilidade que caracteriza a “tragédia” da corrupção e do acaso dos processos históricos, mas sim como resultado cultural herdado do humanismo universalista português legado nos diferentes espaços de língua oficial portuguesa. Por esta razão, a narrativa que fixa a força da persistência da língua portuguesa nos antigos espaços do então império português não reconhece com o mesmo valor as influências socioculturais que, reciprocamente, esses mesmos espaços tiveram na modelação da língua portuguesa. Sendo assim, uma narrativa unidireccional acaba por fornecer condições que sacralizam o messianismo da obra colonial (visível no elogio da difusão da língua) e permitem conceber esses espaços como meros acréscimos de sobrevalorização da história colonial da antiga metrópole, através da persistência das marcas impressas pelos obreiros do império. Ou seja, consciente ou inconscientemente, uma narrativa unidireccional acaba sempre por remeter para uma posição de subalternidade as reciprocidades inerentes às relações seculares de dominação que a própria hegemonia do discurso colonial acaba por mascarar, em benefício de uma narrativa que sacraliza a herança da antiga metrópole.

33 Neste mesmo trilho encontra-se também o mito de um “mundo português”, com todas as suas adicionais representações luso-tropicalistas do “mundo que o português criou”, onde se imaginava possível identificar as constâncias e as heranças lusas que permitiam o agrupamento uniforme dos diferentes espaços num único bloco cultural. Tanto no senso comum como também nos espaços formais/oficiais de enunciação discursiva, são manifestas as reminiscências da ideologia luso-tropicalista na formatação da memória colonial de Portugal, com todas as suas persistências e desdobramentos pós-coloniais que ela ganha na celebração apoteótica e acrítica da lusofonia7. Nas malhas das representações inflamadas e embalsamadas pelo luso-tropicalismo, pode-se também identificar dois outros mitos complementares: primeiro, o da “vocação” colonial portuguesa, manifesta na sua especial propensão para o estabelecimento de relações de cordialidade e de afectividade com povos não europeus; segundo, o mito da universalidade dos valores inerentes ao processo “civilizador” e colonial português – “a acção portuguesa visava a transmissão aos povos autóctones de valores universais” [Alexandre 1979: 7]. Para além de dissimular as conflitualidades inerentes às relações de poder em contextos de dominação colonial, a perspectiva do primeiro mito acaba sempre por ganhar, consciente ou inconscientemente, versões metamorfoseadas em formatos por vezes paternalistas na memória das relações (passado/presente) dos portugueses com os povos das suas antigas colónias. A partir do mito da universalidade dos valores portugueses (entre eles a língua) difundidos pelos espaços do então império, o discurso sobre a lusofonia embala no sonho de enquadrar a imagem histórica

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de Portugal na difusão “humanista” do seu património cultural – a língua – e persiste em inflamar as afectividades entre os espaços dispersos que a língua une por força da aparente ideia de partilha de uma “história comum”. Aliás, a tão propalada ideia de uma “história comum” não deve passar à margem de uma análise crítica, sobretudo quando tomamos em consideração que a centralidade da memória do lugar (histórico) de Portugal na esfera lusófona não é concebida na mesma proporção com a memória simbólica da importância que as diferentes colónias ocupavam na propagada e no imaginário imperial, assim como na dimensão política, económica, cultural e linguística que actualmente ocupam diferenciadamente os países do espaço dito lusófono.

34 Outro mito não menos presente nos propósitos aparentemente confessos da lusofonia vem sob a forma de um certo messianismo justificador da necessidade de Portugal continuar a marcar o seu lugar no mundo. Neste caso, a lusofonia seria uma forma de Portugal, enquanto sede privilegiado da esfera lusófona, se afirmar como centro principal desta geografia imaginária através do qual se poderia mediar as relações de aproximação dos países lusófonos com outros países da Europa e daqueles com estes. É como se a lusofonia constituísse uma das razões para que Portugal continuasse a revelar a sua importância na anexação desses espaços na sua órbita e, subsequentemente, granjear algum reconhecimento exterior em benefício dessa sua posição hegemónica na articulação e organização do espaço lusófono: daí, a necessidade de continuar a marcar o seu lugar no mundo. O que não deixa de ser curioso é o facto de a realização desse messianismo português continuar dependente da necessidade de atrelar os espaços do antigo império (agora países independentes) para que Portugal afirme (novamente) o seu papel/lugar no mundo, agora sob a versão da lusofonia. Tal como assegura Valentim Alexandre, por vezes, “a análise crítica da questão colonial omite os elementos de continuidade que lhe estão subjacentes – e deixa intacta a narrativa identitária da nação portuguesa, fundada por grande parte na tradição imperial. (…) Os mitos e os traumas ligados ao império contribuíram decisivamente para conferir a essa narrativa um carácter bipolar, em que sucedem e muitas vezes se sobrepõem a crença num destino universal, numa missão a cumprir…” [Alexandre 2006: 39]. Por esta razão, Alfredo Margarido considera que “a criação da lusofonia, quer se trate da língua, quer do espaço, não pode separar-se de uma certa carga messiânica, que procura assegurar aos portugueses inquietos um futuro senão, em todo o caso razões e desrazões para defender a lusofonia” [Margarido 2000: 12]. Tudo isto sob o propósito de continuar a alimentar uma imagem idílica do mito da (excepcional) forma portuguesa de estar no mundo.

35 Parece legítimo considerar que a lusofonia não se esgota no comum uso da língua, mas sim em todos os outros desdobramentos e alinhamentos (culturais, económicos, políticos, científicos, institucionais…) que o diálogo através da língua possibilita, facilita e proporciona [Cristóvão 2005: 654]8. Importa acrescentar que são várias as encenações que hoje tentam dar um sentido festivo à lusofonia. No entanto, algumas dessas encenações actuais como, por exemplo, os designados jogos da lusofonia, não constituem uma aspiração original da contemporânea pós-colonial portuguesa. São originais enquanto motivos de celebrações daquilo que se propôs designar lusofonia. Mas quando contextualizadas como motivos ou eventos celebradores que procuram, sob o discurso da afectividade entre os povos do espaço lusófono, gerar novas formas de consenso e de imaginação de uma comunidade, os jogos da lusofonia actualizam, em parte, a versão da memória estado-novista que propalava a necessidade de organização periódica dos Jogos Imperiais Portugueses, enquanto intercâmbio desportivo entre a

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então metrópole e as colónias e “factor importantíssimo de portuguesismo, dando a este termo o sentido da criação de um espírito nacional idêntico em todos os cidadãos portugueses espalhados pelos diversos territórios de domínio lusitano” [B.G.C. 1934: 112]. Estamos cientes de que a contemporaneidade que marca os designados jogos da lusofonia ou a celebração da semana da lusofonia não correspondem aos fins patrióticos que alimentaram em parte o nacionalismo imperial do Estado Novo salazarista, cujo sonho de realização dos Jogos do Mundo Português parecia ser uma possibilidade de revelação do estímulo que nesta competição física agregava simbolicamente, “numa só alma, num só nome, num só nobre estímulo, quaisquer que sejam as diferenças de cor, de religião”, a juventude: esta seria, portanto, a expressão de “continuidade e de solidariedade da alma e do destino nacionais” e, ao mesmo tempo, o “mais empolgante testemunho de união” dos jovens de toda a parte de Portugal e do então mundo português [B.G.U. 1961: 216].

36 Entretanto, numa dimensão crítica podemos, até certo ponto, aceitar alguns limites de anacronismo que uma comparação estribada poderá eventualmente revelar. Por outro lado, parece legítimo não desconsiderar que, independentemente dos diferentes contextos temporais e dos diferentes motivos subjacentes à instituição dos jogos como modalidades de celebração dos afectos entre os povos dos espaços marcados pela presença portuguesa, estes registos acabam directa e indirectamente por se enquadrarem na matriz referencial que as englobam e as agrupam como espaços marcados por uma narrativa que as incorpora transversalmente na memória e na história de Portugal. Contudo, mesmo quando não se propala directamente as intencionalidades políticas dessas formas celebrativas, a convocação dos afectos através de encenações lúdicas não deixa de imbuir a memória da sua função religadora.

37 Em síntese, podemos considerar que a transparência relativa às funcionalidades da memória subjacentes às formas de celebração da lusofonia constitui ainda uma temática muitas vezes relegada para a periferia dos debates sobre as encenações que aspiram gerar formas de consenso e integração de vozes dissonantes. As discursividades inerentes aos actos de celebração da lusofonia podem sempre acabar por alimentar novos mitos a partir dos velhos fantasmas e fantasias que outrora povoaram e colonizaram (e que ainda colonizam) o imaginário português. Por isso, mesmo de forma lúdica, através dos jogos ou das celebrações das semanas da lusofonia, o mito de uma comunidade lusófona homogénea pode ser alimentado sempre que as formas discursivas da sua celebração inventam e convocam para uma adesão emocional (irreflectida) de identificação de todos, com base no sentido alucinatório de um sentimento de reconhecimento partilhado e consensual. Mesmo quando reconhecemos que estes contextos de identificação emocional ou sentimental não podem ser desligados também das formas subjectivas que os diferentes sujeitos experienciam na descoberta e simultânea redescoberta que um encontro casual poderá proporcionar relativamente às possibilidades de se comunicarem [Seixas 2007: 131-155], não podemos perder de vista os limites sempre questionáveis sobre a representação homogénea de uma suposta identidade lusófona. Por isso, com todos os afectos que ela convoca, o discurso sobre a lusofonia não pode ser subsidiário do mito da cordialidade e muito menos do pretenso “excepcionalismo” que se imagina ter caracterizado a relação de Portugal com os povos por ele colonizados e que, em determinadas retóricas, ganham formas discursivas saudosistas sob a forma de “encontro de culturas” [Almeida 1998: 237], tentando assim alimentar um pretenso sentido de afectividade entre os povos do universo lusófono. Neste sentido, deve-se olhar criticamente para a forma como “os

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mitos do Império – reproduzidos, recriados e manipulados até à exaustão – ocultam (hoje e ontem) a imensa diversidade dos jogos de identificação dos povos que se inscrevem nas margens da lusofonia” [Madeira 2003: 44].

38 Daí, impõe-se uma certa vigilância na exorcização dos velhos mitos em benefício do reconhecimento de um discurso renovado que não descarte o trabalho de problematizar o passado, a história e os conteúdos com que são insufladas as diferentes memórias dos diferentes países inseridos na geografia do mundo lusófono. O sonho de uma comunidade lusófona sempre esteve ligado à necessidade de afirmação de uma unidade que a partir de Portugal e do Brasil se tornava extensível aos outros países da esfera lusófona por força das “afinidades de sentimento e de cultura que iriam sobrepor-se às questões de soberania” [Pinto 2005: 307]. A ênfase posta na afectividade e na pertença a algo que é comum constitui um dos grandes artifícios da imaginação da própria ideia de comunidade de pertença. Se por um lado ela existe por se reconhecer na língua as possibilidades de comunicação (no sentido amplo que a noção de comunicação implica), por outro não podemos descartar a forma como este sentimento não se revela de forma unívoca entre os membros da sonhada comunidade.

39 Talvez um dos mitos contemporâneos da lusofonia (e que com ela arrasta outros mitos antigos) seja a ideia segundo a qual a persistência das antigas afinidades de sentimento e de cultura conseguem ultrapassar as questões de soberania. Em última análise, fica sempre a interrogação: em que medida a tentativa de consolidação política da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) se revela real a ponto da persistência das afinidades de sentimentos e de cultura se sobreporem a questões de soberania? Não podemos recusar a análise da história e das formas discursivas que os usos da memória implicam no domínio desta temática. Por isso, a tão propalada ideia de uma “história comum”, “sentimento comum”, “memória partilhada”, “afinidades de cultura”, etc., não deve passar à margem de uma problematização crítica, tendo em conta as formas desiguais de apropriação, de recordação/celebração/rememoração, como também os esquecimentos (intencionais e não intencionais) dalguns conteúdos dessa mesma história que se diz comum. Devemos ter sempre em atenção que a aparente positividade subjacente à ideia de uma “história comum” simplifica e redunda as relações desiguais que sempre marcaram os contextos de superioridade hegemónica do colonizador e de inferioridade subalterna imputada ao colonizado.

40 Contudo, não deixa de ser curiosa a forma como, em nome da retórica de uma “história comum” ou de afinidades de sentimento e de cultura, o antigo colonizado se torna discursivamente representado como o interlocutor directo e supostamente igual de uma relação outrora desigual em todas as suas modalidades práticas e simbólicas. Daí, se impor novamente a inquirição: o que é que caracteriza esta “história comum” senão as memórias das formas desiguais de relações de poder e das violências reais e simbólicas inerentes aos contextos de dominação/colonização? Não restam dúvidas que esta questão, em certa medida, condiciona e influencia a forma como os diferentes interlocutores do espaço lusófono incorporam a representação e a imagem da lusofonia como parte integrante da própria identidade nacional dos seus países. Por exemplo, nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), este facto pode ser diagnosticado através da pertinência quotidiana, simbólica e identitária das línguas nacionais em relação ao lugar oficial do português como “língua de unidade nacional” [Pérez 2000: 613], mas “não a que confere uma «unidade»”, uma vez que “o português é aí, tão somente, uma das línguas existentes” [Padilha 2005: 18]. Ou seja, tal é o limite da

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deficiente incorporação e assunção plena da ideia de uma identidade lusófona comum, em detrimento da força que as memórias e as narrativas pós-independência de cada um dos países lusófonos exercem na cristalização dos mitos que dão sentido às suas próprias identidades e representações nacionais. Este facto, para além de atestar a problemática da sobreposição das memórias e dos lugares (cimeiros ou subalternos) que determinadas referências ocupam nas narrativas identitárias, comprova também o diferente investimento que a representação e a incorporação identitária da língua ganha em função dos países e, inclusive, entre os diferentes grupos sociais ou grupos étnicos de um mesmo país [Pereira 2005: 121-142]. Tal como assegura criticamente Eduardo Lourenço [2004: 180], “nenhum dos povos lusófonos se sente empenhado, como nós [portugueses], na visão que a lusofonia induz e, muito menos, nos fantasmas não muito antigos que a assimilavam à esfera lusíada”. Aliás, não podemos perder de vista a forma como a representação da lusofonia também se entrecruza com outras memórias susceptíveis de articular uma história comum vista sob o ponto de vista da resistência anti-colonial. Por isso, embora não tendo actualmente a mesma força com que se revelou no contexto colonial, não podemos desconsiderar a importância da memória da resistência anti-colonial como uma referência a partir da qual as então colónias africanas se reviam e se representavam solidariamente, inclusive no período pós-independência, (como um conjunto – os cinco) na luta contra o colonialismo e na consolidação das independências. Sendo assim, tudo indica que “as incidências da história laboram no sentido de desagregar os «lusófonos»” [Nascimento 2007: 125].

41 Portanto, quando o discurso celebrador da lusofonia fica pela simplista ideia da retórica dos afectos, das afinidades de sentimento e de cultura, inflamando uma adesão emocional de todos perante a ideia de representação de uma unidade, fica sempre por clarificar aquilo que esta mesma retórica esconde e distorce nesta criteriosa selecção dos discursos dos afectos convocados por referência à recordação daquilo que se considera memorável e subsequente esquecimento de conteúdos não dignos de rememoração. Perante a pluralidade das memórias e histórias de cada um dos países lusófonos, a uniformidade e a direccionalidade do discurso da lusofonia dissimula uma parte substancial das conflitualidades inerentes à temporalidade das relações asseguradas pela hegemonia colonial. Sendo assim, quando a dualidade rememoração/ esquecimento fica pela convocação simplista dos afectos como sinal de ausência de conflitos, a lusofonia permanece sempre imune a uma problematização dos conteúdos que lhe dão um sentido exclusivamente celebratório.

42 Por isso, torna-se necessária a “superação definitiva das clássicas ideologias” [Neves 2000: 18], de modo que o passado possa ser trabalhado de forma mais problematizante e menos celebradora [Lança 2008: 46], uma vez que “cada acto de recordação constitui, no essencial, um refinado ensaio de esquecimento dos «actos de violência» material e simbólica inquestionavelmente envolvidos no «modo português de estar no mundo»” [Jerónimo 2009]9. Assim, mais do que tentar validar a ideia de partilha de um sentimento comum entre os portugueses e aqueles que formaram objecto da sua expansão colonial [Thomaz 2002: 57], deve-se sobretudo contextualizar as histórias e as memórias a partir das quais os diferentes países lusófonos reescrevem as suas narrativas coloniais e estabelecem as suas representações identitárias nacionais e nacionalistas pós-coloniais. O discurso da lusofonia não deve cingir-se à selecção e celebração selectiva do passado e da história mas deve passar também pelo reconhecimento das diferentes memórias e das diferentes formas de percepções de uma história (que se diz comum/partilhada), mas que ganha versões e olhares diferenciados

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de acordo com o ponto lusófono a partir do qual se lança o olhar. Possivelmente, este reconhecimento poderá facilitar a exorcização de alguns mitos e fantasmas que ainda hoje animam a narrativa hegemónica da própria lusofonia e retarda o próprio processo catártico das memórias onde se alojam estes mitos. Neste caso, “interessa lidar com subjectividades e particularidades, contextualizando de onde vêm estas relações, e não com abstractos conjuntos de países que, além da língua e de episódios históricos, não se revêem necessariamente nesse bonito retrato de família” [Lança 2008: 63] que faz da lusofonia uma espécie de casa mítica comum.

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NOTAS

1. Este trabalho contou com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Este texto retoma e amplia substancialmente a temática e o âmbito analítico de um outro artigo – “A lusofonía como espellismo dunha casa miticamente común”, publicado na revista Tempo Exterior. Revista de Análise e Estudos Internacionais, nº 19, vol. X(I), Xullo/Decembro, Galiza (Espanha): Instituto Galego de Análise e Documentación Internacional (IGADI), 2009. 2. Numa outra perspectiva analítica, veja-se Cunha 2006. 3. Boletim Geral das Colónias. Doravante, B.G.C. 4. Os itálicos são do texto original. 5. Boletim Geral do Ultramar. Doravante B.G.U. 6. Separata do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa.

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7. Na contramão dessas abordagens acríticas, vejam-se entre outros: Venâncio 1996, Margarido 2000, Almeida 2000: 161.225, Thomaz 2002, Madeira 2003, Martins 2004, Mata 2006, Castelo 2007, Jerónimo & Domingos 2007, Lança 2008. 8. Numa outra perspectiva de análise, veja-se por exemplo: Sousa 2000 e 2005. 9. Veja-se ainda os restantes artigos do dossiê sobre os usos da memória, todos interessantes pela pertinência com que abordam a problemática. Le Monde Diplomatique, nº.35 (Edição portuguesa), II Série, Setembro, 2009. E ainda: Castelo 2006.

RESUMOS

O discurso colonial hegemónico da ditadura do Estado Novo não desassociou a língua da representação e da narrativa do processo de construção imperial. Partindo da análise de um dos órgãos mais importantes da propaganda colonial salazarista, inquirimos sobre as formas de representação apoteótica da língua como expressão do “sentido colonizador” português e a consequente sacralização da ideia de atrelar as então colónias à esfera de uma “tradição” expressa pela cultura da língua. Subsequentemente, problematizamos os discursos sobre a lusofonia, tendo em atenção quer os usos que a memória colonial ganha na reconstituição parcial da versão pós-colonial da identidade nacional portuguesa, como também as ambivalências e contradições entre a ideia de uma suposta identidade lusófona e a força de outras memórias inerentes às representações identitárias dos diferentes interlocutores lusófonos.

The hegemonic discourse of colonial propaganda of the Salazar’s regime (1933-1974) has always associated the Portuguese language with the narrative of the process of historical construction of the empire. From this perspective, based on one of the most important journals of colonial propaganda of Estado Novo, we propose to analyze the feasting and proud way the language was represented as an expression of Portuguese colonialists’ sense and strategy to represent the insertion of the colonies in the imaginary tradition of the culture expressed by language of the colonizer. In the second part of this article, we will deal with the imaginary representation of lusophony from the memory’s myth of empire, emphasizing the ambivalence and contradictory force of colonial and other memories inherent to the representation and conception of the lusophone interlocutors.

ÍNDICE

Keywords: Lusophony, memories of the empire, colonial discourse, myths, identities. Palavras-chave: Lusofonia, memórias do império, discurso colonial, mitos, identidades.

AUTOR

VÍCTOR BARROS Historiador. Mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. É investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS 20) da Universidade de Coimbra. As suas áreas de investigação centram-se no domínio da História

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colonial e pós-colonial. É autor do livro: Campos de Concentração em Cabo Verde: As ilhas como espaços de deportação e de prisão no Estado Novo (Coimbra, 2009). [email protected]

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Da CPLP à Comunidade Lusófona: o futuro da lusofonia From the Community of Portuguese Language Countries to the Lusophone Community: the future of Lusophony

José Filipe Pinto

NOTA DO EDITOR

Recebido a: 2/Maio/2011 Enviado para avaliação: 4/Maio/2011 Recepção da apreciação: 24/5, 8/Junho/2011 Aceite para publicação: 14/Junho/2011

1. Introdução

1 O encerramento serôdio de um Império que o Estado Novo teimou em manter, mesmo depois do disfuncionamento do Euromundo (sistema no qual esse Império se inseria e encontrava justificação), pôs termo a um relacionamento desigual entre os povos dos territórios por onde tinha passado o movimento expansionista português.

2 No entanto, o fim desse Império não implicou o desaparecimento dos laços que a História se foi encarregando de criar entre os vários povos dominados e um povo que talvez deva ser definido como um colonizador colonizado, pois nem a descoberta da rota do Cabo nem o ouro do Brasil se revelaram suficientes para Portugal passar a integrar aquilo que é habitual designar como o centro.

3 Por isso, numa fase em que Portugal já assumira a opção europeia e vários dos países africanos de língua oficial portuguesa experimentavam sem sucesso modelos importados do Leste (o seu ponto de apoio durante a luta pela independência), a palavra ‘Lusofonia’ começou a surgir na língua portuguesa. Aparecimento, aliás, tão tímido que continua por encontrar o seu criador, embora Fernando dos Santos Neves

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pareça bem posicionado para reivindicar tal direito, até pela oposição que enfrentou e venceu quando quis baptizar como ‘Lusófona’ aquela que hoje é a Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, o principal rosto do Grupo Lusófona.

4 Na realidade, esse vocábulo ainda não surgia na Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura (editada pela Verbo em 1963 e actualizada em 1991), no Grande Dicionário da Língua Portuguesa (da Sociedade de Língua Portuguesa, coordenado por José Pedro Machado em 1989), no Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro (da Lello Editores, de 1993), no Dicionário Enciclopédico da Língua Portuguesa (das Publicações Alfa, de 1992) e no Grande Dicionário da Língua Portuguesa (publicado pela editora Amigos do Livro, em 1981).

5 De facto, a palavra só apareceria (embora sem a indicação do seu criador) mais tarde, no Dicionário Universal da Língua Portuguesa, da Texto Editora de 1995 e cuja terceira edição é de 1998; no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Livros Horizonte, 7ª Edição de 1995; e no Dicionário da Língua Portuguesa, 3ª edição, editado pela Editora Nova Fronteira em 1999.

6 O significado do termo ‘Lusofonia’ estava longe de ser consensual, porque se algumas vozes como as de Adriano Moreira e Fernando Cristóvão viam a nova palavra como um activo que importava valorizar porque representava um património de ideias, sentimentos, monumentos e documentação comum aos povos por onde passara a expansão e a evangelização portuguesa, também havia quem considerasse que “a criação da lusofonia, quer se trate da língua, quer do espaço, não pode separar-se de uma certa carga messiânica, que procura assegurar aos portugueses inquietos um futuro” [Margarido 2000:12], ou seja, a Lusofonia representava uma forma disfarçada de neo-colonialismo.

7 Santos Neves faria a ponte entre estas duas posições antagónicas, alertando para as enormes potencialidades da Lusofonia, desde que passasse “de mero mito, dúbia ideologia ou vã retórica a um Espaço Lusófono realista”, mas alertando para o perigo de a Lusofonia “não poder ser, mas não estar automaticamente excluído que seja ou se torne, uma visão retardada ou camuflada dos colonialismos políticos, económicos e culturais de antanho (Portugal) ou de agora (Brasil)” [Neves 1999: 65].

8 Nessa conjuntura, começou a surgir, ainda que paulatinamente (porque as reminiscências coloniais ainda eram vincadas), uma ideia que apontava para a necessidade de destrinçar a relação política colonizador–colonizado do relacionamento entre os povos e o reaproximar lusófono passou a ser encarado como necessário e desejável.

9 Assim, passadas pouco mais de duas décadas sobre o encerramento do ciclo imperial português, era chegado o tempo para o “reconhecimento das afinidades que existem entre aqueles que têm a língua portuguesa como língua de comunicação ou de cultura” [Venâncio 1996: 60].

10 Não constituiu, por isso, grande surpresa que, em 17 de Julho de 1996, tivesse sido instituída em Lisboa a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), através da assinatura da Declaração por parte dos Chefes de Estado de seis dos países-membros (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e Portugal) e pelo Primeiro- Ministro de São Tomé e Príncipe, em representação do Presidente da República desse país.

11 Aliás, talvez seja possível ver nessa assinatura o culminar de um processo que teve como antecedentes próximos os dois Congressos das Comunidades de Cultura

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Portuguesa, realizados em Lisboa em 1964 e na Ilha de Moçambique em Julho de 1967, e a criação do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) – um desejo materializado em 1989, em São Luís do Maranhão, que assentou numa ideia inicial de Adriano Moreira, proposta em 1988 no Recife, no Instituto , e reafirmada no discurso de recepção ao Presidente do Brasil, José Sarney, em Lisboa, na Assembleia da República, também em 1988.

12 Neste processo de institucionalização da Lusofonia, nunca poderá ser esquecida a acção de José Aparecido de Oliveira, um sonhador pragmático que, através do empenhamento pessoal junto do poder político e de uma dinamização da sociedade civil dos vários países lusófonos, conseguiu cravar uma lança na lua [Braga 1999].

13 No entanto, a afirmação da comunidade (tanto nos países-membros como nos fora internacionais) tem sido demasiado lenta, como a pouca visibilidade da organização deixa perceber, situação que levou Santos Neves a considerar a CPLP como um nado- morto, embora na esperança que, face à dureza da afirmação, os vários Estados- membros se empenhassem em provar o contrário.

14 Este ensaio procura compreender o processo que se seguiu à formação da CPLP, tanto no que diz respeito às dificuldades de afirmação como no que concerne às várias alterações estatutárias e, sobretudo, traçar o quadro relativo à situação presente da organização e perspectivar o seu futuro num Mundo globalizado, interdependente e mergulhado numa crise que destruiu o paradigma vigente e dificulta a construção de um novo modelo de relacionamento entre os povos.

15 Face ao exposto, o artigo procura resposta para a seguinte pergunta de partida:

16 • A passagem da CPLP para uma Comunidade Lusófona servirá os interesses da Lusofonia?

2. A indefinição inicial do projecto da CPLP

17 As indefinições no projecto da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa remontam à sua origem porque, embora a designação oficial aponte para uma comunidade, o artigo 1º dos estatutos defende que a CPLP “é o foro multilateral privilegiado para o aprofundamento da amizade mútua, da concertação político-diplomática e da cooperação entre os seus membros”1, ou seja, a organização foi instituída como um foro e não com uma comunidade, situação que José Aparecido de Oliveira preferia desvalorizar pois, na sua perspectiva, a CPLP enquadrava-se perfeitamente no conceito de comunidade teorizado por Ferdinand Tönnies no longínquo ano de 1887, na obra Gemeinschaft und Gesselschaft.

18 Só que Aparecido de Oliveira tinha uma perspectiva de futuro e uma nobreza de espírito e de coração que, infelizmente, estão longe de constituir a regra, mesmo para aqueles que não concordam com a posição de Hobbes, segundo a qual o homem é visto como lobo do homem.

19 Em nome da primeira dessas qualidades, nunca admitiu publicamente que, tendo consciência da impossibilidade de concretizar na íntegra o modelo que melhor servia os interesses da Lusofonia, aceitara aquilo que a conjuntura tornava possível, na esperança que o futuro lhe concedesse a oportunidade de completar o seu sonho.

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20 Não se tratava de considerar à maneira aristotélica que o óptimo era inimigo do bom, mas tão-somente de reconhecer que, passados tão poucos anos sobre o fim do Império, a CPLP teria obrigatoriamente de representar um processo e não um acto.

21 Afinal, Aparecido sabia bem que, quando assumia que a ideia da CPLP lhe tinha surgido depois do “restabelecimento da democracia em Portugal, uma vez que pretendia ajudar a constituir um espaço de cooperação em que a democracia estivesse sempre presente” 2, estava mais no campo do desejo ou da esperança futura do que no âmbito da realidade, como a situação política de vários dos PALOP fazia questão de provar.

22 A segunda qualidade mandou-o viver num silêncio dificilmente partilhado pela tristeza derivada do facto de a criatura se ter voltado contra o criador, quando viu ser inventado (à última hora e para servir interesses que nada tinham a ver com a CPLP) um critério alfabético que lhe retirou a possibilidade de ser o primeiro Secretário Executivo da CPLP, situação que o seu Brasil natal não viria a corrigir quando lhe coube designar a personalidade que deveria ocupar o cargo entretanto deixado vago por Marcolino Moco.

23 Na verdade, a CPLP não constava entre as prioridades da política externa do novo governo brasileiro, elemento que se encarregou de prolongar a fase de limbo de uma organização [cf. Chacon 2002: 47] que, desde o início, não fora vista da mesma forma por todos os Estados-membros.

24 De facto, a hierarquização das prioridades (elemento que consta em anexo) não deixava dúvidas sobre o que cada país desejava com a criação da CPLP, pois Cabo Verde, a Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe elegiam como primeira prioridade o estímulo ao desenvolvimento económico, enquanto Angola e o Brasil colocavam a cooperação técnico-cultural no lugar cimeiro e Portugal privilegiava a concertação político-diplomática.

25 Voltando ao Embaixador Aparecido de Oliveira, os Estados-membros da CPLP desperdiçaram todo o activo ou capital de entusiasmo militante, de simpatia e de competência sobejamente evidenciado nas suas visitas oficiais para apresentação do projecto (Guiné-Bissau, de 28 de Março a 5 de Abril de 1993; São Tomé e Príncipe, em 27 e 28 de Abril de 1993; Cabo Verde, de 8 a 13 de Maio; Moçambique em 1994) e nas mesas-redondas promovidas para a discussão do mesmo (no Rio de Janeiro, em Outubro de 1993; em Lisboa, em Dezembro de 1993; em Luanda, em Janeiro de 1994; em Cabo Verde, na segunda semana de Junho de 1994; um seminário em Maputo, ainda em 1994; finalmente, em Brasília, em 28, 29 e 30 de Outubro de 1994).

26 Face às indefinições indicadas, não admira que a CPLP fosse praticamente desconhecida, tanto a nível interno dos Estados-membros, como no que concerne à comunidade internacional, designadamente no que diz respeito às integrações regionais de que os vários países lusófonos faziam parte.

27 Ora, como forma de inverter essa situação, a CPLP foi procedendo a alterações estatutárias que serão objecto de estudo no item seguinte.

3. As principais alterações estatutárias da CPLP

28 As alterações estatutárias, no que diz respeito ao estabelecimento de novos órgãos, podem ocorrer aquando das Conferências de Chefes de Estado ou de Governo que se

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realizam, ordinariamente, de dois em dois anos, ou durante os Conselhos de Ministros que acontecem anualmente.

29 A maior alteração verificou-se logo em 2002, quando Timor-Leste (primeiro país independente do século XXI) foi admitido como membro de pleno direito, situação que levou a que a CPLP passasse a contar com oito membros.

30 No que concerne às alterações ao nível dos órgãos, na IV Conferência (realizada em Brasília, em 2002) foram estabelecidos como órgãos adicionais da CPLP as Reuniões Ministeriais Sectoriais e a Reunião dos Pontos Focais da Cooperação. Mais tarde, em 2005, o X Conselho de Ministros estabeleceu como órgão adicional o Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP) e o XII Conselho de Ministros, reunido em Lisboa em Novembro de 2007, tomou igual resolução relativamente à Assembleia Parlamentar da CPLP.

31 Como se constata, dos quatro novos órgãos apenas a Assembleia Parlamentar o é verdadeiramente, pois os restantes três já existiam só que não faziam parte dos órgãos previstos no acto da criação. Aliás, também a nível do Secretariado Executivo se verificou uma alteração, porque o cargo de Secretário--Executivo Adjunto (que tanta celeuma provocara, devido à incompatibilidade de Dulce Maria Pereira com o seu Secretário-Executivo Adjunto, situação que levou à divisão de pastas) terminou na Cimeira de Bissau de 2006, sendo substituído pelo de Director-Geral.

32 Com estas alterações, sobretudo a última, a CPLP procurou ganhar um maior pragmatismo porque o Director-Geral (a quem compete, sob orientação do Secretário Executivo, a gestão corrente, planeamento e execução financeira, preparação, coordenação e orientação das reuniões e projectos activados pelo Secretariado) não é indigitado por um Estado-membro, como acontecia com o Secretário-Executivo Adjunto, mas recrutado entre os cidadãos nacionais dos Estados-membros, mediante concurso público, pelo prazo de 3 anos, renovável por igual período.

33 Além disso, as reformas indicadas também procuraram resolver as dificuldades decorrentes da necessidade de articulação da cooperação bilateral com a multilateral e o problema daquele que vinha sendo apontado como um elefante branco, o IILP, pois não bastou pintar de cor-de-rosa a casa oferecida por Cabo Verde e recuperada por Portugal para que o IILP tivesse garantido um futuro da cor das suas instalações.

34 Como o anterior Secretário-Executivo Luís Fonseca denunciou, “o Instituto terá de ser tomado mais a sério pelos Estados”, pois “não se pode esperar que o Instituto possa ter o desempenho ou protagonismo que seria normal esperar-se de uma organização como essa, se não tiver os recursos – e os Estados têm sido bastante avaros em termos de disponibilização de recursos”3.

35 Aliás, parece desejável que, a exemplo daquilo que se verifica para a escolha do Director-Geral, os estatutos do IILP venham a ser objecto de alteração, terminando com a rotatividade para o cargo de Director e cedendo lugar a um concurso internacional destinado a essa selecção.

36 Para o presente artigo torna-se, ainda, importante salientar uma outra alteração estatutária que se prende com a criação do Estatuto de Observador na II Cimeira na Cidade da Praia em Julho de 1998 e, em 2005, no Conselho de Ministros da CPLP de Luanda, das categorias de Observador Associado e de Observador Consultivo, pois essa criação permitiu uma maior abertura da CPLP.

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37 Assim, logo no XI Conselho de Ministros, reunido em Bissau (Julho de 2006), foi recomendada a atribuição do Estatuto de Observador Associado à República da Guiné Equatorial e à República da Ilha Maurícia, tendo o Senegal recebido esse mesmo Estatuto na Conferência de Chefes de Estado e de Governo, realizada a 25 de Julho de 2008, em Lisboa.

38 Além disso, outros Estados, como Marrocos, Andorra e Filipinas, já manifestaram o desejo de ascenderem a essa categoria e alguns países, como a Croácia, a Roménia, a Ucrânia, a Indonésia e a Venezuela, colocam nos seus horizontes próximos a obtenção desse estatuto.

39 No que se refere à criação do estatuto de Observador Consultivo, cujo regulamento foi aprovado pela XIV Reunião do Conselho de Ministros da CPLP (Cidade da Praia, 20 de Julho de 2009), permitiu à comunidade uma maior ligação à sociedade civil, como se comprova pelo facto de quase meia centena de fundações, universidades, institutos, associações e outras instituições representativas dessa sociedade fazerem parte da lista de Observadores Consultivos.

40 Ainda no que aos Observadores Consultivos diz respeito, o facto de a CPLP ter sede em Lisboa talvez explique que a larga maioria desses Observadores Consultivos também estejam sedeados na capital portuguesa, embora nesse estatuto também se integrem fundações localizadas no Brasil, em Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Macau.

41 Talvez fruto desta abertura à sociedade civil e da pressão que esta acaba por fazer junto dos detentores do poder, não foi apenas a nível estatutário que a CPLP evolucionou, pois o mesmo se verificou no que concerne à vontade individual de vários Estados- membros, matéria que será desenvolvida no próximo ponto.

4. As mudanças derivadas das vontades individuais

42 Em 2009, o Movimento Internacional Lusófono elegeu como personalidade lusófona do ano o Embaixador Lauro Moreira, então chefe da Delegação do Brasil junto da CPLP, uma comitiva numerosa que funciona separada da Embaixada do Brasil em Portugal.

43 Essa distinção premiou o labor deste diplomata muito ligado (não apenas emocionalmente) a José Aparecido de Oliveira. Embora Lauro Moreira não o reconheça, pois coloca a questão mais do ponto de vista pessoal do relacionamento de Aparecido com algumas personalidades da nova administração brasileira, a distinção revelou que o Brasil, sob a presidência de Lula da Silva, decidira finalmente colocar a CPLP entre as suas prioridades, reconhecendo a razão que assistia a Santos Neves quando, num momento anterior, denunciara que as elites brasileiras ainda não tinham compreendido que não haveria Lusofonia sem o Brasil, mas que, sem a Lusofonia, o Brasil continuaria a ser o eterno país do futuro adiado.

44 Aliás, esta alteração não foi apenas do lado brasileiro, pois vários outros países, designadamente Portugal, a Guiné-Bissau e Timor-Leste também passariam a contar com embaixadores permanentes junto da CPLP, situação preferível àquela que se verificara na fase anterior em que as embaixadas cediam, por sua iniciativa, os embaixadores, mas podiam a qualquer momento exigir o seu regresso.

45 Aliás, nesse período, o reduzido número de embaixadores junto da CPLP fazia com que cada um deles tivesse de assessorar várias áreas, acabando por não se especializar em

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nenhuma delas. Como o povo se encarregou de proverbiar, eram “pau para toda a obra”.

46 Voltando às nomeações de embaixadores permanentes, convirá frisar que entre a nomeação de Lauro Moreira, ocorrida em Julho de 2006, e a segunda indigitação, a de Apolinário Mendes de Carvalho feita pela Guiné-Bissau em Outubro de 2007, passou mais de um ano. Este elemento volta a apontar para a forma pouco homogénea como os vários membros continuavam a ver a comunidade, até porque não parece verosímil que no conjunto dos países da CPLP fosse a Guiné-Bissau aquele que dispõe do segundo corpo diplomático mais numeroso.

47 Parece, igualmente, digno de registo o facto de estas indigitações terem ocorrido durante o mandato de Luís Fonseca como Secretário-Executivo, pois se “o hábito não faz o monge”, não é menos verdade que quando Cabo Verde indicou para o cargo um dos seus embaixadores mais conceituados, ajudou a criar condições para acabar com a ‘vida habitual’, isto é, com o marasmo que se estava a instalar na comunidade. É que Luís Fonseca, tal como Geraldo Vandré, defende a ideia que “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

48 Certamente que uma das últimas alegrias de Aparecido de Oliveira (apesar da doença severa, sempre acendia um brilho no olhar quando se falava da CPLP) foi a visita que Luís Fonseca e Lauro Moreira fizeram a sua casa para lhe dar conta dos novos caminhos que a comunidade se propunha trilhar.

49 Afinal, era o reassumir de uma ideia que fora sua, embora a modéstia o levasse a recusar protagonismos para os quais não se considerava fadado. Para ele havia figuras muito mais importantes, como “ e [que] iluminaram o caminho”4.

50 Porém, as vontades individuais já se vinham manifestando desde há vários anos, como se comprova pelas contribuições voluntárias feitas por alguns Estados-membros e destinadas ao funcionamento do Instituto Internacional da Língua Portuguesa. Nesse âmbito, o contributo tem recaído sobretudo em Angola, Portugal e no Brasil, situação que encontra justificação nas realidades económicas dos vários membros e que não parece merecer algumas reservas feitas pelos analistas.

51 Ainda no que às iniciativas individuais de cada Estado-membro diz respeito, não pode deixar de ser mencionada a decisão de Cabo Verde de inscrever na sua Constituição o estatuto de cidadão lusófono. No entanto, o exemplo não frutificou e a semente parece ter- se perdido, pois os políticos e os juristas dos oito Estados-membros ainda não conseguiram montar o Estatuto de Cidadão da CPLP.

52 Por isso, incomodado com esta morosidade voluntária, Santos Neves [2007: 3] deu largas ao seu descontentamento servindo-se das palavras de Cícero nas Catilinárias “até quando continuarão os Estados de Língua Portuguesa e respectivas burocracias a abusar da nossa paciência lusófona?”. Infelizmente, a pergunta ainda não teve resposta.

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5. De uma comunidade de países a uma comunidade de povos

53 Indicadas as características mais relevantes que têm marcado a vida da CPLP, importa, agora traçar um estudo prospectivo da comunidade, de forma a acautelar esse futuro, ou seja, como forma de dar cumprimento à Lusofonia que interessa.

54 Ora, a primeira constatação a fazer prende-se com a necessidade da CPLP (provavelmente através do IILP) investir mais na promoção da língua portuguesa ao nível das organizações internacionais, como língua de trabalho ou, preferencialmente, como língua oficial. Além disso, urge implementar uma política de ensino da língua portuguesa fora dos países da CPLP, designadamente nos países onde as diásporas lusófonas detêm uma presença significativa, ou onde camadas da população se sintam atraídas pela aprendizagem da língua de Camões, de Craveirinha, de Viriato da Cruz, de , de Baltazar Lopes…

55 Desta promoção da língua portuguesa deverá fazer parte uma estratégia lusófona que permita ao Brasil, aquando da inevitável reformulação do Conselho de Segurança da ONU, um lugar como membro permanente. Se esse desiderato for alcançado, o português tornar-se-á língua oficial da Organização das Nações Unidas.

56 De facto, convém não esquecer que o grupo designado por “Coffee Club”, formado pela Itália, Coreia do Sul, Argentina e Paquistão, pretende unir esforços no sentido de impedir que os respectivos vizinhos entrem para o Conselho de Segurança, situação que, no caso do Brasil, ainda assume mais gravidade conhecida que é a pouca vontade mexicana para que a potência emergente lusófona assuma um lugar de destaque na comunidade internacional.

57 Uma outra constatação tem a ver com uma questão que se arrasta desde os primórdios da CPLP. De facto, como a própria designação explicita, trata-se de uma comunidade de países e não de povos, factor que impossibilita a adesão de regiões com grandes afinidades com a cultura lusófona, mas com vínculo político a outros Estados, como são os casos da Galiza (a mãe da Lusofonia), de Macau, de Malaca, de Goa e de Casamansa.

58 Aliás, Fernando Cristóvão, o criador dos “três círculos da lusofonia”, reconhece a importância dessas regiões ao englobá-las, juntamente com os oito Estados-membros da CPLP, no primeiro círculo ou no núcleo da Lusofonia. Por isso, há que ter em conta as palavras do Presidente das Irmandades da Fala da Galiza e de Portugal, José Fontelo, quando não enjeita a responsabilidade de ajudar a “manter uma Lusofonia europeia coesa, de 20-25 milhões de galego-portugueses, sem esquecer os contingentes migratórios nossos que pelas Europas andam, além de outras partes do mundo” [Fontelo 2000:134].

59 Uma última constatação tem a ver com o facto de os estatutos, no artigo 6º, preverem que “para além dos membros fundadores, qualquer Estado, desde que use o Português como língua oficial, poderá tornar-se membro da CPLP, mediante a adesão sem reservas aos presentes Estatutos”, desde que a aprovação dessa adesão seja “por decisão unânime da Conferência de Chefes de Estado e de Governo”. Esta disposição estatutária poderá vir a tornar-se perigosa para a comunidade.

60 De facto, a Guiné Equatorial, um dos países interessados em tornar-se membro de pleno direito da CPLP, já instituiu o português como mais uma das suas línguas oficiais (as

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outras são o espanhol e o francês) e, por isso, deseja que esse estatuto lhe seja concedido.

61 No caso de merecer a aprovação unânime dos Estados-membros, este pedido de adesão poderá vir a traduzir-se num problema para a CPLP, uma vez que o relatório de 2010 da Fundação Mo Ibrahim, relativo à boa governação (um índice que resulta do estudo de 88 variáveis) coloca a Guiné Equatorial na 46ª posição entre os 53 países africanos, com um índice de apenas 34,7 e com o “pormaior” de nenhuma das rubricas consideradas ter obtido classificação positiva.

62 Na verdade, em África, a Guiné Equatorial detém a penúltima posição no que concerne à participação e direitos humanos com apenas 19,1; a 42ª tanto no que diz respeito à oportunidade económica sustentável como ao desenvolvimento humano, com 34,9 e 39,1, respectivamente; e a 41ª posição relativamente à segurança e primazia da lei, com 45,7.

63 Como os estatutos da CPLP, na alínea b) do número 1 do artigo 5º, estipulam a “não ingerência nos assuntos internos de cada Estado”, a comunidade não poderá a posteriori vir a exigir à Guiné Equatorial que proceda às reformas necessárias, visando alcançar a democracia

64 Assim sendo, a Conferência de Chefes de Estado e de Governo deverá ter muita atenção no que concerne não apenas a esta, mas a futuras solicitações de adesão, sendo certo que este cuidado não se destina a fazer da comunidade um compartimento-estanque (situação altamente condenável por parte de uma Lusofonia que se pretende ecuménica), mas sim a não delapidar a imagem da comunidade.

65 Aliás, os países da CPLP que já dispõem de um índice de boa governação bom ou aceitável terão de ter presentes as dificuldades que sobretudo dois dos membros da comunidade ainda apresentam nesse âmbito.

À guisa de conclusão

66 Terminada a exposição, é tempo de saber qual o sentido da resposta encontrada para a questão colocada na Introdução e que aqui se repete:

67 • A passagem da CPLP para uma Comunidade Lusófona servirá os interesses da Lusofonia?

68 Os argumentos apresentados, tanto no que concerne às dificuldades de afirmação da CPLP, como no que diz respeito às alterações estatutárias que têm vindo a ser postas em prática, numa conjuntura mundial tecida com malhas de interdependência, apontam no sentido de uma resposta afirmativa.

69 Na verdade, a exemplo do que se verificou relativamente à implementação do acordo ortográfico, quando alguns portugueses renitentes tiveram de perceber que não eram donos mas sim condóminos da língua (pois esta pertence a todos aqueles que a usam), também parece chegado o momento de os oito Estados-membros da CPLP perceberem que a Lusofonia não constitui um exclusivo ou um monopólio seu. Aliás, o facto de a designação actual ser a de uma Comunidade dos Países e não uma Comunidade de Países pode ser vista como uma visão patrimonialista e um desejo excessivo de posse.

70 Assim sendo, impõe-se a construção de uma Comunidade Lusófona onde haja lugar para países, mas também para comunidades e regiões, ou seja, para os povos que se revêem

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no passado, mas também (ou principalmente) no presente e no futuro da cultura lusófona.

71 De facto, o Estatuto de Observador Associado, apesar de constituir uma iniciativa meritória, seguiu o modelo do Estatuto de Membro da CPLP, uma vez que apenas contempla países. Este elemento circunscreve a ‘Lusofonia Oriental’ apenas a Timor- Leste, desamparando as comunidades que continuam a reclamar o reconhecimento da sua matriz lusófona.

72 Por isso, parece aconselhável a alteração do critério, no sentido de reconhecer aos povos e comunidades filiados na cultura lusófona ou que com ela mantêm afinidades o direito de integrarem a Comunidade Lusófona.

73 Não será um processo fácil, até porque alguns lusófonos parecem mais apostados em erguer muros do que em construir pontes de entendimento. Mas é um processo necessário, para que a Lusofonia atinja o patamar que, se houver vontade política, estará ao seu alcance.

74 Como o povo proverbializa: “Seja bem-vindo quem vier por bem!”

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ANEXOS

Anexo I: Hierarquização de Prioridades para cada Estado-membro da CPLP

Fonte: Ferreira & Almas 1996: 61. Anexo II: Índice de Mo Ibrahim de boa governação da Guiné Equatorial

Fonte: http://www.moibrahimfoundation.org/en/section/the-ibrahim-index

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NOTAS

1. Todas as citações dos estatutos têm por base a versão electrónica disponível no sítio oficial da CPLP: http://www.cplp.org. 2. Segundo entrevista concedida para a Tese de Doutoramento do autor – vide Pinto 2005: 308. 3. Citação feita a partir de uma entrevista concedida ao autor. Vide Pinto 2007: 233. 4. Afirmação proferida em entrevista concedida ao autor. Vide Pinto 2005: 678.

RESUMOS

A criação da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), em 1996, foi vista como a institucionalização da Lusofonia. No entanto, passados quase quinze anos sobre esse acto e apesar das várias alterações estatutárias, a CPLP ainda não atingiu a visibilidade que parecia ao seu alcance. Este artigo procura identificar as razões dessa situação e tenta mostrar que a Lusofonia só terá a ganhar com uma mudança que transforme a comunidade de países numa comunidade de povos.

The foundation of the Community of Portuguese Language Countries (CPLP) in 1996 was seen as the institutionalization of Lusophony. However, after nearly fifteen years about this Act, the CPLP, despite several statutory changes, has not yet reached the visibility that seemed possible. This article seeks to identify the reasons for that situation and it tries to show that Lusophony will profit from changing the community of countries in a community of peoples.

ÍNDICE

Keywords: Lusophony, CPLP, Portuguese language, IILP, Lusophone community. Palavras-chave: Lusofonia, CPLP, língua portuguesa, IILP, comunidade lusófona.

AUTOR

JOSÉ FILIPE PINTO Sociólogo. Doutor em Sociologia pela Universidade da Beira Interior (Portugal). Professor Associado e investigador da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Académico Correspondente da Academia Internacional da Cultura Portuguesa. É autor dos livros: O Ultramar Secreto e Confidencial (Coimbra, 2010), Estratégias da ou para a Lusofonia? O Futuro da Língua Portuguesa (Lisboa, 2009), Adriano Moreira: Uma Intervenção Humanista (Coimbra, 2007), Do Império Colonial à Comunidade dos países de Língua Portuguesa: Continuidades e Descontinuidades (Lisboa, 2005). [email protected]

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Literaturas lusófonas Lusophone literatures

Francisco Soares

NOTA DO EDITOR

Artigo pedido ao autor Recepção do artigo: 29 de Abril de 2011 Conclusão da revisão: 13 de Maio de 2011 Aceite para publicação: 13 de Maio de 2011

1.

1 Deve valer a pena perseguir o rastro desta expressão: “literaturas lusófonas”. Quando surgiu, como, os contextos em que funcionava e de que modo isso acontecia (com sentidos opostos ou concordantes para os sujeitos envolvidos, por exemplo). Mas também que termos eram usados ontem e são usados hoje para designar um sistema literário lusófono quando não se quer, ou não se pode, escrever o segundo adjectivo. Não existem estudos desses realizados e agrupados sistematicamente, porque a expressão forma-se após a(s) independência(s) (período ou época também chamado pós-colonial) e só agora começamos a meditar sobre ela com alguma insistência (pouca, diga-se, e mais movidos pela mágoa da falsificação de uma eventual solidariedade entre lusófonos). Portanto, é necessário deduzir hipóteses a partir do pouco já praticado, hipóteses que serão seminais para além de orientadoras. Como estudioso das literaturas, interessa-me a hipótese que responda a esta questão: existe um sistema literário formado pelas literaturas lusófonas?

2 A resposta assentará provavelmente sobre duas teses – uma de verificação histórica e outra que se prende com a actualidade do problema. A primeira leva-nos a perguntar pelo que se sabe acerca da literatura numa história partilhada (não propriamente

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comum, só em parte concordante, mas interseccionada). A segunda hipótese verifica-se rastreando as relações sobre as quais pode assentar hoje tal sistema, caso exista.

3 Uma tendência natural é a de pensarmos as literaturas lusófonas a partir de uma antecedência localizada. Para o caso de Angola, a partir do contacto de várias (oraturas e literaturas) com a literatura europeia na sua versão portuguesa; a partir do contacto de várias (oraturas e literaturas) exógenas com variações das culturas bantu e pré- bantu; etc. Parece-me, porém, mais acertado olhá-las de um ponto de vista alargado, como literaturas que surgem no confronto e convívio entre várias tradições, de tal maneira que nenhuma das anteriores pode reclamar absolutamente paternidade ou maternidade, sem prejuízo de serem (ou não serem) momentaneamente predominantes. Tornou-se de uso comum dizer que a totalidade é mais do que a soma das partes. Pode não ser mais numericamente, mas qualitativamente. Porque a agregação de vários elementos num todo gera coisas novas – e é justamente isso que sucede com o aparecimento das literaturas lusófonas. Na “rede de valores e elementos materiais comuns a Portugal e aos espaços tropicais colonizados pelos portugueses” havia um sistema literário a formar-se. As suas fronteiras serão sempre imprecisas e instáveis. A sua cristalização (ao ponto a que podemos levar a cristalização de uma literatura nacional) provavelmente não chegará a dar-se. Mas ele existiu e existe na medida em que se foi formando e, hoje, na medida em que fazem novos cortes-colagens com passados e presentes globalizados e lusófonos, ou melhor, lusógrafos. A sua pertinência no processo mais geral de miscigenação cultural deriva, penso, da capacidade que tem a arte para forjar novas mareações e trocas, aglutinações e justaposições das “diferentes expressões culturais” [Costa 2005: 75].

4 Houve, claro, antecedentes idênticos. É mesmo uma hipótese palpável a de que muitas ou todas as literaturas se formaram assim. Para citar exemplos ‘ocidentais’ (integrados pela semiosfera euro-americana), a Bíblia terá sido formada, principalmente, entre os legados culturais de Sumérios, Babilónios, Assírios, Egípcios e todos os que nestes influíram. A mesma Bíblia vem cada vez mais participando na formação de literaturas de todo o mundo. E de tal maneira que não podemos dizer delas que vieram daqui ou dali e se chamuscaram com a Bíblia, porque vieram dessa vasta enciclopédia cultural formada por “aqui” e por “ali”, vieram de todos esses ‘lugares’. As literaturas peninsulares (da Península Ibérica), entre as quais se inclui a portuguesa, formaram-se também no cruzamento e choque de várias culturas, oraturas e literaturas. Processos estruturalmente análogos ocorreram nos restantes países de língua oficial portuguesa e em outros. Por isso, também neles podemos ver características como as que passo a citar:

5 1. uma constante busca da inovação através da mistura, mistura na qual se destaca a de géneros literários;

6 2. a proliferação de “contaminações” aos mais diversos níveis (e de que o ponto 1 é exemplo);

7 3. uma personalização da obra que lhe garante a unidade nesse magma de diversidades;

8 4. uma grande variedade nas fontes;

9 5. o proliferar de imagens e personagens por emascaramentos e desmascaramentos;

10 6. um seguro domínio da retórica e a superação das suas limitações de obra para obra;

11 7. uma especial sensibilidade ao tópico da mudança;

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12 8. uma especial sensibilidade ao sentido viático dos homens e das “almas”.

13 Estas características são aplicadas às Metamorfoses de Ovídio [Alvarez 2001]. Algumas delas filiam-se proximamente nos “grandes poetas alexandrinos como Teócrito, Calímaco e Apolónio e em Roma se observava já desde Ennio”, como é o caso das “contaminações” por mistura de géneros literários. Por coincidência com a eclosão dos romantismos e pós-romantismos europeus, que também favorecia a mistura genológica e a liberdade pessoal (mais do que individual), todas estas características podem ser aplicadas à maioria dos escritores angolanos ou brasileiros dos séculos XIX e XX. Também neles a inovação se alimenta em boa parte da mistura de géneros literários (ponto 1); esse tipo de mistura é uma, apenas, das manifestações do predomínio da contaminatio nas obras (ponto 2); o recurso ao motivo da infância dá exemplos de personalizações (iniciáticas) das obras que lhes garantem a unidade no seio das diversidades (ponto 3); essas diversidades constroem-se por analogia e contraste com fontes e origens cada vez mais variadas (ponto 4); o jogo entre emascaramento e desmascaramento é tão incorporado que pode relacionar-se com tradições iniciáticas africanas (e eventualmente índias), com o barroco, a intensidade do Carnaval repare-se, lusófono (para além de tropical), mas também tropical (para além de lusófono) e com tradições iniciáticas globalizadas como a dos espiritismos – o chamado ‘realismo fantástico’, ou o ‘realismo animista’, reúne frequentemente os conflitos e as conjugações destas diversas origens (ponto 5); o domínio inicial da retórica é uma condição histórica das literaturas lusófonas, pois se iniciam em períodos literários em que o papel da retórica era muito valorizado (o que na África de língua portuguesa se prolongou pela formação literariamente conservadora dos padres que, por absentismo estatal, dominavam as redes de ensino locais) – mas convivem também com tradições orais em que a oratória tinha uma desenvoltura assinalável (a congolesa, por exemplo), ao mesmo tempo em que evoluem por uma ligação às oralidades que renova e reverte as retóricas da escrita (ponto 6); a especial sensibilidade ao tópico da mudança parece que desde sempre atravessa todas as literaturas lusófonas (veja-se, por exemplo, Sá de Miranda, Os Lusíadas, os romantismos locais, os modernismos, antropofagias e nacionalismos locais – ponto 7); a especial sensibilidade ao sentido viático pode-se encontrar nos romances de formação das várias literaturas lusófonas e em muitos outros, como em Angola Scenas d’África de Pedro Félix Machado, O segredo da morta de António de Assis Júnior, ou as ficções de José Eduardo Agualusa, ou O Feitiço da Rama de Abóbora de Cikakata Mbalundo, ou Puko o N’gombo: deus da verdade, de Ndá Lussolo. Está também n’Os Lusíadas, na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, está em muitos simulacros da poesia barroca, em Gomes de Amorim, em Ferreira de Castro, em Teixeira de Pascoaes, em Fernando Pessoa, entre muitos outros. Está no Diabinho da Mão Furada. Está na morna e na Claridade. Está no Orfeu. Em Jorge de Lima, por uma via1, ou na Luanda-Beira-Baía de Adonias Filho. Por razões diferentes e com diferentes funções em cada obra está lá representado, sob as mais variadas formas, o sentido viático do homem e, ou, das almas – que em Ovídio estava relacionado com a transmigração das mesmas e em todos eles com o jogo de emascaramento e desmascaramento.

14 Quer isto dizer que a matriz comum às literaturas lusófonas é, em muito, parecida com a de outras épocas, pessoas e lugares em que se viveu mais intensamente entre culturas. O que está hoje disseminado. Na actualidade, as literaturas lusófonas inserem-se na globalização a partir das aprendizagens e práticas partilhadas, ou seja, com a perspectiva de que se trata de cruzar novamente os dados e as teorias divergentes (ou

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diversos) através de sínteses personalizadas, agora enriquecidas com uma diversidade cultural maior.

15 O que lhes lega esse passado e como se relaciona com a globalização actual? Em termos literários, visto que é disso que falamos, as partilhas e actualizações podem ser observadas pelos conhecimentos e as escolhas técnicas, artísticas, poéticas, nas obras e na sua recepção Um sistema literário funciona em torno de uma constelação de conhecimentos, de uma enciclopédia, que são tecnicamente reconhecíveis pelas suas explicitações e pelos implícitos que manipulam. Os sistemas não são estanques, por isso também são instáveis, o que torna imprecisa a sua definição. Muitos dos conhecimentos são partilhados com outras entidades e outros agrupamentos, como por exemplo as literaturas de influência bantu, as literaturas latino-americanas e norte-americanas, as caribenhas, outras de inter-relação com as lusófonas na Ásia, os modernismos europeus, os romantismos europeus, a poesia japonesa, etc. O conjunto das secantes e tangentes é que vai sendo configurado de forma própria por cada comunidade literária, quer na produção da matéria-prima, quer no seu acolhimento público. É por aí que podemos começar, parece-me que de forma segura e flexível, a definir a significação do composto “literaturas lusófonas”.

2.

16 Não tenho a pretensão de traçar esse conjunto, de secantes e tangentes, no que diz respeito a todas as literaturas lusófonas. Explico porquê, se é que ainda alguém não percebe a causa: é que somos muitos, vastos e muito variados – felizmente. E usamos às vezes termos de conteúdos tão lassos, que não dá nem para puxar por um fio. Mas explico mais miudamente.

17 Pensemos o adjectivo da expressão que nos dá tema: “lusófonas”. É claro que a maioria de nós, escritores lusófonos, fala português quotidianamente e, nessa medida, somos lusófonos. Mas o que nos define, em rigor, é sermos lusógrafos. David Mestre chamou à atenção para isso, dando por título do último livro seu de crónicas literárias Lusografias crioulas [Mestre 1997]. Substituindo “lusófonas” por “lusógrafas” incluiremos mais escritores, aqueles que não são só lusófonos mas também bantúfonos ou bantófonos ou bilingues (lusógrafos e de outra fonia). Do que falamos é de literatura, arte da palavra escrita. Por aí também quadra melhor o adjectivo lusógrafa.

18 Dito isto, seja-me permitido um breve apontamento pessoal. Em 1992, para realizar uma das minhas provas públicas na Universidade de Évora, escrevi uma pequena brochura sobre nacionalidade literária. Nela procurei fixar o conceito do que chamo “diferenciação literária” [Soares 1993]. Uma vez que ensinava literaturas africanas, apercebendo-me de que havia equívocos na concepção dessas literaturas e de que tais equívocos estavam consignados na própria denominação da disciplina, concentrei parte significativa da minha reflexão sobre isso, partindo dela para o conceito que titulou o livrinho.

19 O caso é que, sendo nós cinco países africanos lusógrafos e não podendo os currículos suportar cinco disciplinas diferentes, convencionou-se ensinar tudo de uma vez. Era, portanto, necessário criar uma designação para as literaturas dos cinco países. Alguns estudiosos designavam tudo por ‘literatura africana de expressão portuguesa’. O problema começava logo pelo singular. Havendo, num dado momento, por circunstâncias históricas bem conhecidas, um pequeno sistema literário africano

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dentro da lusofonia, principalmente centrado nos grupos de estudantes africanos a viver em Lisboa e no resto da Europa, ter-se-á criado a ilusão de que ele implicava como que uma literatura única. Naturalmente que, depois das independências e com a complexificação e autonomização das respectivas semiosferas urbanas, cada país desenvolveu cada vez mais uma literatura própria. Não só: cada país vai tomando consciência das raízes diferenciadas e do percurso antigo da escrita literária no seu território. Por aí se percebe que Angola, por exemplo, foi formando o seu sistema literário desde o fim do século XVI, num caminho que a diferencia (em termos literários) de todos os outros.

20 Outro problema que se colocava era o de tais literaturas não nos apresentarem uma expressão portuguesa. Exprimiam, contrapolarmente, uma africanidade no interior da lusofonia. Pareceu-me então (parece-me ainda hoje) que a designação correcta seria “Literaturas Africanas em Língua Portuguesa”.

21 Isso não resolvia todos os nossos problemas. O maior deles, na prática, era o de ensinar cinco literaturas diferentes em três ou quatro meses. Impossível. A opção viável parece- me ser, ainda hoje, a de nos centrarmos numa das literaturas (uma das mais longas e com maior variação interna) como centralidade em torno da qual, por comparações, se vai transmitindo informação sobre as restantes.

22 Porque é que falo nisto? Porque essa experiência me preparou para pensar em literaturas lusófonas. Imagine-se que temos, em certas universidades (não lusófonas, por exemplo), uma disciplina intitulada ‘Literaturas lusófonas’. Ou imagine-se ‘Literatura lusófona’. Como ensinar isso tudo? Estaríamos, nesse caso, perante os mesmos problemas que acabo de expor.

23 Se quiséssemos ater-nos, em rigor, à designação, supondo que haja mesmo a funcionar um sistema literário lusófono, teríamos duas opções:

24 1. encontrar recorrências que permitissem estabelecer quem são os autores mais lusófonos e estudá-los só a eles;

25 2. pegar numa literatura particular e, a partir dela, estudar a inserção dos autores na semiosfera lusófona e lusógrafa.

26 Para seguirmos o primeiro caminho, seria primeiro necessário conhecer bem todas as literaturas lusófonas. Uma tarefa que, pelo ensino das literaturas africanas em língua portuguesa, eu já tinha verificado ser impossível.

27 Resta-nos então o segundo caminho. No nosso caso: a partir da literatura angolana e do que sabemos acerca das outras, encontrar obras e escritores que, sendo angolanos, inserem-se melhor nos restantes mercados lusófonos. Isso nos obriga a um contraste com os escritores que não se inserem, ou se inserem deficientemente, nos mercados lusófonos. Um tal contraste levará a que não coloquemos de lado um autor por ele ser menos ‘lusófono’.

28 Logicamente, sendo a literatura angolana lusógrafa, africana e bantógrafa (com os poucos livros bilingues que temos ainda), haverá autores mais próximos da lusofonia, como também autores mais próximos da bantufonia e escritores mais próximos de outro sistema demasiado vasto, vago e diverso para o conseguirmos estudar: o africano, mesmo que só pensemos no da África ‘negra’.

29 Há de facto, entre nós, autores que circulam mais e melhor nos mercados euro- americanos e, muito em particular, nos mercados lusófonos. O circuito comercial por eles dominado é apenas um dos indícios da sua ‘lusografia’. Sendo embora de cariz

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económico, não é menos significativo para quem estuda literatura. Porque a circulação das obras indicia que o respectivo autor domina os códigos e conhece (ou satisfaz intuitivamente) as expectativas da semiosfera lusógrafa e lusófona. Entre nós, por exemplo, é nítida a circulação lusógrafa (mas não só: a partir dela se internacionalizando cada vez mais) de nomes como os de Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Luandino Vieira, Pepetela, Manuel Rui, Ruy Duarte de Carvalho, José Eduardo Agualusa, Ana Paula Tavares, João Melo. Pelo menos estes.

30 Muitas vezes, suspeitamos de que outros nomes – entre eles destacando-se o de Uanhenga Xitu – não são divulgados e admirados nos mercados lusógrafos por racismo ou preconceito. Não tenho a certeza disso, por vezes temo até que estejamos a querer impor um gosto próprio aos outros, sem lhes darmos a suficiente e elegante atenção que, enquanto leitores, esperam. Quando visitamos outro país devemos estudar os costumes e a história desse país, para não ferirmos susceptibilidades e para melhor aparelharmos a nossa retórica. A literatura precisa de fazer o mesmo.

31 Vendo assim, para os que (como Uanhenga Xitu) tiveram acesso ao mercado português, por exemplo, há duas observações que me parecem incontornáveis. Por um lado, ele não deixou de ter sucesso [Xitu 1974, Xitu 1979, Xitu 1980, Xitu (1984?), Xitu 1978, Sá 2008]. Em termos editoriais, ele esteve particularmente activo no mercado português (em parte suportado pelas coedições, é verdade, mas só em parte) entre 1974 e 1984 – bem menos que no brasileiro, que acordou mais tarde para as literaturas africanas lusógrafas. É certo que, a partir de 1984, só em 2008 a Cotovia reeditou Bola com feitiço e Mestre Tamoda, num volume único [Xitu 2008], o que revela uma descontinuidade relativamente às edições angolanas, que deixaram de ser coedições com Lisboa. Porém, é compreensível que o seu sucesso fosse descontinuado, por causa do egoísmo natural dos leitores: é que ele não trabalha tanto com os pressupostos de um eventual sistema literário lusógrafo. O seu trabalho sobre a angolanização da linguagem, a par do de Luandino Vieira e Boaventura Cardoso, perdeu público juntamente com estes escritores (em especial com Luandino), assim que o paradigma se transformou (passou mais a valorizar a criatividade individual, algo malabarística, particularmente visível em e no primeiro Ondjaki).

32 A par desse trabalho mais distanciado de uma semiosfera lusógrafa não-angolana, as relações com os editores, a ausência de aposta do autor nas relações com editores portugueses, o facto de ele não circular nos meios em que se convive com tais editores, explicará também a descontinuidade referida. Normalmente estes editores não conhecem bem a literatura angolana, ou melhor: conhecem-na, como é de prever, pelo que lhes chega a Lisboa ou ao Porto. Não terão, portanto, uma percepção apropriada da popularidade da obra de Uanhenga Xitu entre nós. O que não é mau nem bom, no sentido moral das palavras, é só assim.

33 Se escavarmos mais um bocado, vemos que a lista citada acima (de autores mais lusófonos) inclui nomes de pessoas com formação geralmente feita na escolaridade portuguesa (colonial ou da ‘metrópole’) ou na brasileira. Possuem uma formação intelectual globalizada a partir, justamente, da semiosfera lusófona e, sobretudo, lusógrafa. Se aprofundarmos e sistematizarmos análises literárias das suas obras, observamos que (para cada geração) a maioria deles domina os cânones literários de Portugal e do Brasil (estou a comparar com os dois maiores mercados do livro neste conjunto de países).

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34 Se, porém, como disse atrás, a totalidade é mais que a soma das partes, o que vimos até aqui não basta para falarmos num sistema literário lusógrafo, não temos ainda esse ‘mais’ que se acrescenta à mera adição de partes. É preciso que surjam obras nas quais possamos encontrar os elementos novos que fazem a diferença (melhor: o acrescento) que torna a totalidade superior às partes. Elementos que não conheço ainda, ou que vislumbro muito vagamente.

35 O que noto é que alguns destes nossos escritores (como José Eduardo Agualusa) se esforçam por trabalhar referências artísticas, sociais e geográficas de vários países ou territórios lusófonos, aumentando assim a sua inserção nas comunidades onde serão lidos. No caso de Agualusa, isso nota-se mais a partir da participação no guia Lisboa africana [Agualusa et al. 1993], começando a ampliar-se em Estação das chuvas [Agualusa 1996] e ganhando vulto (lusófono) sobretudo em Nação crioula [Agualusa 1997], Fronteiras perdidas [Agualusa 1999], Um estranho em Goa [Agualusa 2000], O ano em que Zumbi tomou o Rio [Agualusa 2002], Manual prático de levitação [Agualusa 2005], Passageiros em trânsito [Agualusa 2006], As mulheres do meu pai [Agualusa 2007], Na rota das especiarias [Agualusa 2008], Milagrário pessoal [Agualusa 2010a, Agualusa 2010b]. É um esforço que aproveita, naturalmente, os respetivos percursos biográficos – o que se nota com maior clareza em Desmedida, de Ruy Duarte de Carvalho [Carvalho 2006]. O mesmo já acontecera com o acidentado percurso e a congénita ‘lira’ de José da Silva Maia Ferreira no século XIX [Ferreira 2002], mesmo com as crónicas escritas em Nova Iorque. E, no início do século XX, o mesmo sucedera (por vontade própria) com a vinda para Angola de Tomás Vieira da Cruz. Pode esse esforço conduzir, ou estará mesmo a conduzir, a um conjunto que seja mais que a soma das partes. Pode-nos levar a obras cujo interesse principal já não reside só no cordão umbilical, mas nesse espaço mental e referencial interseccionado que dá corpo à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

36 Fazendo pequenas incursões em literaturas africanas lusógrafas, encontramos casos similares. Por exemplo, José Craveirinha, Rui Knopfli e Mia Couto (Moçambique); os autores da Claridade, Corsino Fortes e Germano Almeida (Cabo Verde); Luís Cardoso e Fernando Sylvan (Timor). Fazendo incursões ainda mais rápidas, o caso de escritores hoje mundialmente famosos como Amin Maalouf ou Salman Rushdie. Ambos se criaram em países não europeus, ambos frequentaram as semiosferas e vias de globalização que tinham ao seu dispor a partir dos seus países e ambos acabaram por se afirmar como estrelas da sua ‘fonia’ europeia e, depois, no mundo inteiro. Vários dos seus livros, quando actualmente os lemos, apesar de partirem de referências localizadas, desenrolam a intriga e fazem recurso aos procedimentos que são conhecidos nessa esfera de intersecções a que chamamos, culturalmente, a globalização. Daí que seja compreensível (embora não seja rigoroso) que por vezes haja leitores dos respectivos países que os sintam menos ‘seus’. É o egoísmo do leitor quando percebe que as referências já não são só as que partilha com os outros ‘locais’. Mas o autor não é menos libanês ou indiano por isso, é mais. É indiano ou libanês, ou angolano, mais quaisquer coisas: francófono ou anglófono, lusófono, global.

37 O mesmo se passará com autores como José Eduardo Agualusa ou José Sousa Jamba (funcionando este, como se sabe, na intersecção entre Angola e a anglofonia – o que merece mais estudos e enriquece mais a cultura nacional). A edição de Patriots em paperback sai em 1992 na Penguin Books, dois anos depois da 1.ª edição, o que é suficientemente esclarecedor [Jamba 1992]. Nenhum deles é menos angolano, são angolanos mais lusófonos ou anglófonos, e globalizados enquanto autores. Isso pode ser

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visto como afastamento (o índice de globalização, pela informação acrescentada, introduz estranheza relativamente aos sistemas literários nacionais), ou como acrescento (a literatura nacional a marcar a sua presença em semiosferas mais amplas e a trazer para o país algumas formas e conteúdos novos).

38 Quer dizer que há, minimamente, um sistema e ele funciona, quer ao nível global, quer ao nível da lusografia. Só minimamente neste segundo caso. As barreiras alfandegárias, as dificuldades económicas, os fracos índices de desenvolvimento humano e social, os custos para transporte de livros e outros aspectos económicos, ou socioeconómicos (o acesso à Internet por parte de escritores e leitores de determinados países, por exemplo); o natural egoísmo dos leitores (que preferem poder projectar-se no ‘mundo’ da obra identificando-se inteiramente com ele); a ausência de uma política séria, direccionada e eficaz para o intercâmbio cultural entre lusografias – são, pelo menos estes, alguns aspectos ‘práticos’ a condicionar a efectivação mais intensa e organizada de um sistema literário na lusofonia. É um bocado como o desporto: vão circulando alguns atletas, mas não há campeonatos ou jogos da lusofonia que nos ponham numa competição saudável a todos ao mesmo tempo. Por tudo isso também, os autores mais lusógrafos tendem a rarear conforme passamos para gerações mais novas. Não fossem as fugas à falta de oportunidades e os exílios consumados, eles seriam menos ainda. E quanto menos forem menos sentido fará falarmos, não escrevo em literaturas lusófonas, mas em lusografias como um sistema ou uma semiosfera funcional no mundo de hoje.

BIBLIOGRAFIA

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XITU, Uanhenga, 1978. Manana, 2ª edição, Lisboa+Luanda: Edições 70 + União dos Escritores Angolanos

XITU, Uanhenga, 1974: Mestre Tamoda e outros contos, Lisboa: Edições 70

XITU, Uanhenga, [1984?]: Os discursos de Mestre Tamoda, Lisboa+Luanda: Ulisseia + União dos Escritores Angolanos [pref.: Salvato Trigo]

XITU, Uanhenga, 1980: Os sobreviventes da máquina colonial depõem..., Lisboa+Luanda: Edições 70 + União dos Escritores Angolanos

NOTAS

1. Ver, por exemplo, Invenção de Orfeu, ou Anunciação e encontro em Mira-Celi.

RESUMOS

O texto proposto explora algumas possibilidades de aplicação do conceito «literatura(s) lusófona(s)», experimentando possíveis fundamentos e obras exemplificativas.

The proposed text explores some possible applications of the concept of «Lusophone literature(s)”, possible pleas and experience books examples.

ÍNDICE

Keywords: Literature, lusophony, lusography. Palavras-chave: Literatura, lusofonia, lusografia.

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AUTOR

FRANCISCO SOARES Doutor em Literatura Angolana pela Universidade de Évora (Portugal). É Professor Titular na Universidade Katyavala Bwila (Benguela, Angola) e Professor Associado com agregação na Universidade de Évora (Évora, Portugal). As suas principais áreas de investigação são a teoria literária e a literatura angolana. Dentre os livros que tem publicados, contam-se Teoria da Literatura. Criatividade e estrutura (Luanda: Kilombelombe 2007); Notícia da Literatura Angolana (Lisboa 2001); A Autobiografia Lírica de «M. António»: uma estética e uma ética da crioulidade angolana (Évora 1996); Quicôla: estudo (Évora 1997); A Diferenciação Literária. Critérios e posturas (Évora 1993). É membro do Conselho Editorial da Revista Angolana de Sociologia. É membro do Conselho Editorial da Revista Angolana de Sociologia. [email protected]

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Influência da literatura brasileira na literatura angolana The influence of Brazilian literature on the Angolan literature

Anabela Cunha

NOTA DO EDITOR

Recepção do artigo: 28 de Abril de 2011 Enviado para avaliação: 30/Abril/2011 Recepção da avaliação: 5 e 12/Maio/2011 Recebido após correcções: 22/Maio/2011 Aceite para publicação: 19/Junho/2011

Origem da literatura em Angola

1 Foi na primeira metade do século XIX que surgiram as primeiras publicações “angolanas” que proporcionaram as condições necessárias para a manifestação do fenómeno literário que teria lugar em Angola durante os últimos anos do século XIX. Uma das publicações pertencentes a este período é o livro de poemas de José da Silva Maia Ferreira, Espontaneidades da Minha Alma, que foi impresso em Luanda em 1849 e possivelmente constitui até hoje o primeiro volume de poemas publicados em todos os países africanos de língua oficial portuguesa [cf. Ervedosa 1979].

2 José da Silva Maia Ferreira é, sem sombra de dúvida, elemento importante no estudo do surgimento da literatura em Angola. Ele foi o primeiro poeta “angolano” a publicar uma obra lírica em verso e, ao mesmo tempo, a primeira obra impressa em Angola. Segundo alguns autores, as obras de Maia Ferreira constituem o ponto de partida do estudo e desenvolvimento da literatura em Angola [cf. Ervedosa 1979]. Além de publicar Espontaneidades da Minha Alma, livro que ele dedicava a todas as mulheres africanas, Carlos Ervedosa [1979: 19] considera que José da Silva Maia Ferreira terá deixado vasta

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colaboração no Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro1, que terá sido naquela altura a publicação periódica mais lida e espalhada entre os portugueses, seus descendentes e nativos letrados das colónias, pelo mundo fora.

3 Segundo Francisco Soares [2000: 132], José da Silva Maia Ferreira constitui um dos fenómenos típicos de assimilação cultural do século XIX. Filho de comerciantes “angolanos” ligados ao negócio de escravos, Maia Ferreira teria recebido influências da sociedade brasileira onde viveu alguns anos até 1845, altura em que regressou para Angola. Da vasta leitura que fazia, figuravam sobretudo obras de origem brasileira e portuguesa. Assim, ao contribuir para a formação da literatura em Angola, fê-lo trazendo consigo elementos tanto da literatura portuguesa como da brasileira.

4 O Almanach de Lembranças foi um dos principais meios de difusão dos novos escritores das colónias portuguesas em África, que era acessível tanto àqueles que se dedicavam exclusivamente à literatura, como aos amadores e principiantes em literatura. Trazia informações úteis, mas que continham entre as mesmas trechos de leitura amena. No Almanach de Lembranças combinava-se “a poesia com tabelas de navegação e comboios, as charadas e as anedotas com fases da lua e o registo dos magistrados de ambos os reinos, Portugal e o Brasil” [Moser 1993: 17].

5 O Almanach de Lembranças constitui uma publicação de valor inestimável para a história da literatura em Angola, uma vez que era a única obra, editada fora de Angola, que reuniu um elevado número de colaboradores “angolanos”. Esta publicação preparou o advento das literaturas autónomas nas colónias portuguesas em África, nomeadamente da literatura angolana.

6 Segundo Gerald Moser [1993: 18], a maioria dos africanos que colaboravam nesta revista pertencia à burguesia. Essa colaboração demonstrava o quanto eles estavam interessados e envolvidos com a literatura, demonstrava ainda quanto eles gostavam de ler e de escrever textos literários. Para esses indivíduos, a literatura não era apenas uma forma de criticarem e se oporem ao regime colonial, era também uma forma de expressarem as suas ideias, os seus sentimentos e as suas aspirações.

7 Além de José da Silva Maia Ferreira, que terá começado a colaborar no Almanach em 18792, outros escritores “angolanos” colaboraram no mesmo3. Entre esses destaca-se o nome de Joaquim Dias Cordeiro da Matta, um pioneiro da literatura em Angola que viu muitas das suas obras ali impressas desde 1879 [Ervedosa 1979, Moser 1993]. Joaquim Dias Cordeiro da Matta foi poeta, novelista, pedagogo, estudioso da língua nacional kimbumdu e etnógrafo. Segundo Carlos Ervedosa [1979: 31, 32], Cordeiro da Matta era também historiador, pois publicou folhetins sobre a História de Angola num periódico daquela época. Foi ainda cronista e romancista. São da autoria de Joaquim Dias Cordeiro da Matta o livro Philosophia Popular em Provérbios Angoleneses e o Ensaio de Dicionário Português-Kumbundu. É certamente um dos grandes impulsionadores do processo de formação da literatura angolana.

Literatura e imprensa

8 Em Angola, a literatura esteve estreitamente ligada à imprensa; logo, não se pode falar de literatura sem se falar também da imprensa e vice-versa. Estas (literatura e a imprensa) caminharam juntas até ao século XX. Pedro Alexandrino da Cunha é considerado o fundador da imprensa em Angola, pois sete dias depois da sua tomada de

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posse no cargo de Governador-geral da província de Angola (6 de Setembro de 1845), mandou imprimir o primeiro número do Boletim Oficial, no quadro da aplicação do Decreto de 7 de Dezembro de 1836, que era considerado a Carta Orgânica para as Colónias Portuguesas em África. O Boletim Oficial desempenhava as funções de um jornal rudimentar e a sua publicação marcou o ponto de partida para o desenvolvimento do jornalismo em Angola. Segundo Pepetela, foi também o primeiro difusor da literatura que se fazia, sobretudo em Luanda e Benguela. Nesse jornal, publicavam-se “reportagens e anúncios, artigos e estudos tratando da política colonial ou religiosa, da economia da colónia, descrições das viagens dos exploradores e textos em prosa e verso, mais propriamente literários” [Pepetela 2010: 207].

9 Segundo Júlio de Castro Lopo, podem considerar-se três períodos distintos do jornalismo de Angola. O primeiro período começou a 13 de Setembro de 1845, com a publicação do primeiro número do Boletim Oficial. O segundo período teve inicio com o aparecimento da revista A Civilização da África Portuguesa (a 6 de Dezembro de 1866) e o terceiro período teve início a 16 de Agosto de 1923, com o início da edição do diário A Província de Angola, por Adolfo Pina [Lopo 1964: 19-20].

10 No último quartel do século XIX, surgiram em Angola uma série de periódicos, como A Aurora (1855), A Civilização da África Portuguesa (1866), O Comércio de Loanda (1873), O Mercantil (1870), O Cruzeiro do Sul (1873). Com pouco tempo de duração, nalguns destes jornais colaboraram tanto africanos como europeus até ao final do século. Entre os europeus, destaca-se a figura de Alfredo Troni, que residiu em Luanda durante muito tempo, onde fundou e dirigiu os periódicos Jornal de Loanda (em 1878), O Mukuarimi4 (talvez em 1888) e os Concelhos do Leste (em 1891). Publicou ainda várias obras literárias, merecendo destaque Nga Muturi (senhora viúva) em 1882. Veio a falecer em Luanda em 1904.

11 Segundo Manuel Ferreira, Alfredo Troni foi o percursor da narrativa angolana no século XIX. A ele seguiram-se no século XX, Assis Júnior na década de 1930 e, anos mais tarde, Castro Soromenho.

12 Entre os periódicos5 acima citados, destaca-se A civilização da África Portuguesa, um semanário fundado por Urbano de Castro e Alfredo Mântua (dois dos fundadores do jornalismo em Angola) e pelo brasileiro Francisco Pereira Dutra. Este semanário tratava de assuntos administrativos, económicos, agrícolas, mercantis e industriais das colónias portuguesas em África, especialmente de Angola e São Tomé. Durante nove anos, este semanário foi um acérrimo defensor dos interesses económicos e administrativos da colónia, lutando contra a escravatura e os abusos dos governadores.

13 Nos finais do século XIX começaram a surgir os primeiros periódicos de africanos em Angola. Entre esses periódicos, temos: O Echo de Angola, fundado em 1881, que abriu caminho para o despertar de novos órgãos da então imprensa africana. A este jornal seguiram-se, entre outros, Futuro de Angola (1882); O Pharol do Povo (1883); O Arauto Africano (1889); Muen’exi (1889); O Desastre (1889) e O Polícia Africano (1890). Estes periódicos podiam incluir textos em kimbundu, talvez para facilitar o acesso à leitura do mesmo a pessoas de várias camadas sociais e tratavam entre outros temas a linguística, história e etnografia angolana.

14 Foi através dessa imprensa que muitos jornalistas ‘angolenses’ desenvolveram as suas aptidões, contribuindo com artigos para a vida intelectual de então. Estes indivíduos encontravam-se fortemente influenciados pelas ideias liberais provenientes da Europa,

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que criticavam todos os aspectos coloniais que ferissem os princípios de justiça e a corrupção6. Entre os indivíduos que se destacaram na chamada imprensa africana, temos nomes como Matoso da Câmara, Arantes Braga, Pedro Félix Machado, Cordeiro da Matta, Sales Almeida e Fontes Pereira, que pertenciam à primeira “elite angolense”, que surgiu para as letras no último quartel do século XIX, também conhecida como a “Geração de 1880” [cf. Ervedosa 1979].

15 Muitos jornalistas daquela época desenvolviam outras actividades como o comércio e desempenhavam cargos na função pública, mas o jornalismo florescente constituía o primeiro veículo para a expressão das suas aptidões literárias. A imprensa contribuiu para a divulgação das obras literárias escritas durante os finais do século XIX e princípios do século XX.

16 O jornalismo “angolano” do último quartel do século XIX foi muito activo e brilhante. Os jornais publicados na época, apesar serem irregularmente publicados, de terem curta existência e de viverem apenas da dedicação e do entusiasmo de equipas amadoras, agitavam as cidades e vilas. A criação e o desenvolvimento de uma elite africana ou crioula7, nos finais do século XIX, foi um dos factores que esteve na base da evolução do jornalismo em Angola. O incremento da colonização europeia e o desenvolvimento do comércio interno e externo são factores que também contribuíram para a evolução do jornalismo. Segundo Henrique Abranches [1981: 53], “somente no século XIX, em plena expansão imperialista, surge um produto cultural híbrido, incompletamente sintetizado, de uma camada de pequena-burguesia angolana intelectual que gostava de se exprimir às vezes nas línguas nacionais, que se interessava pela riqueza cultural do povo de que derivara”. Certamente que entre finais do século XIX e princípios do século XX, Angola caminhava lentamente para a formação de uma literatura essencialmente africana, pois nessa época, esse grupo de intelectuais que se auto-denominava “filhos de Angola” produziu uma vasta obra literária que lançava já as sementes para a formação da literatura que exprimisse efectivamente as ideias, a cultura e a maneira de estar dos “angolanos”.

17 Com a publicação do semanário Independente, nos princípios do século XX, deram-se os primeiros passos no sentido da profissionalização do jornalismo em Angola. Com um jornalismo de carácter combativo e republicano, este semanário vibrava com o ardor da juventude que nele escrevia. Porém, o jornalismo profissional surgiria anos mais tarde, em 1923, ano em que Adolfo Pina fundou o semanário A Província de Angola. Este jornal destacou-se pela grande publicação (de princípio) de páginas literárias dominicais. Mais tarde, criou o “Suplemento de Domingo”, onde se revelaram vários artistas plásticos e escritores [Ervedosa 1979: 19-20]. Apesar de continuar ligada à imprensa, no século XX a literatura ganhou uma certa autonomia, devido à imprensa privada. Neste período, ela começou a impor-se e a conquistar o seu próprio espaço.

18 O processo de evolução da literatura foi acompanhado pelo surgimento de gerações de indivíduos que se dedicavam tanto ao jornalismo como à literatura. Nos primeiros anos de 1900, nasceu para as letras uma geração denominada “Geração de 1900”, onde se destacam indivíduos como Francisco Ribeiro Castelbranco, António de Assis Júnior e Pedro da Paixão Franco, que deram sequência ao trabalho desenvolvido pela geração anterior. Neste período podemos citar como destaque a obra de António de Assis Júnior O Segredo da Morta, que retrata os costumes angolanos de então e retrata a sociedade africana dos finais do século XIX.

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19 Nas décadas de 1920 e 1930 verificou-se um período ‘afónico’ da literatura, devido à repressão da imprensa por Norton de Matos em 1921, à evolução do regime colonial em Angola e à implantação da ditadura salazarista em Portugal8. Esta afonia foi rompida apenas na década de 1940, com as obras literárias de autores como: Castro Soromenho, Lília da Fonseca e Geraldo Bessa Víctor. Neste período iniciou-se novamente a elaboração da literatura angolana, tendo em conta toda a herança deixada pelos intelectuais de épocas anteriores.

“Descoberta” dos valores culturais angolanos

20 A literatura angolana foi surgindo paulatinamente, tendo em conta as mudanças sociais ocorridas na colónia de Angola, a uma certa tomada de consciência por parte dos africanos acerca da sua própria identidade. Essa literatura africana foi resultado de um longo processo. Os novos contornos que adquiriu distinguiam-na da literatura que se fazia no século XIX, considerada europeia9.

21 À medida que o processo de colonização se foi intensificando em Angola, também foi crescendo o processo de marginalização social e económica dos angolanos10. Começou também a verificar-se o aumento paulatino do descontentamento de uma certa camada social face à colonização. É nesse contexto que surge a necessidade de se criar uma literatura que se diferenciasse da literatura portuguesa, ou seja, que se distanciasse de tudo o que estivesse relacionado ao opressor. Foi assim que, nos finais da década de 1940, os poetas angolanos sentiram a necessidade de criar uma nova literatura que iria abrir os caminhos para uma literatura tipicamente angolana. Segundo Ana Paula Tavares [1999], a esta tomada de “posição iconoclasta” serve de esteio o modelo (literário) brasileiro.

22 Em 1948 surge o slogan “Vamos Descobrir Angola”, que dá início ao novo movimento intelectual literário da década de 1950. Na base deste movimento literário estava a criação de instituições de carácter cultural que surgiram na década de 1940. Deste movimento de novos intelectuais de Angola, faziam parte jovens negros, brancos e mestiços, que se propuseram começar a trabalhar no sentido de se criar uma literatura angolana. Este movimento começou a ser identificado nas novas obras dos poetas angolanos durante as décadas de 1950 e 1960. Segundo Mário Pinto de Andrade, este movimento “incitava os jovens a descobrir Angola em todas os aspectos através de um trabalho colectivo e organizado; exortava a produzir-se para o povo; solicitava o estudo das modernas correntes culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas criações positivas válidas; exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana, mas sem que se fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo colonialista. Tudo deveria basear-se no senso estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas” [apud Ervedosa 1979: 102].

23 Enquanto este grupo de jovens estudava o mundo que os rodeava, começava a germinar uma literatura que seria a expressão da maneira de sentir, o veículo das suas aspirações – por outras palavras, germinava nesta literatura o mundo de que faziam parte e que tão mal lhes havia sido ensinado. Nascia uma literatura de combate pelo povo que durante anos esteve ligada à guerrilha. Desenvolvia-se em Angola um fenómeno literário que era activado por um grupo de jovens cultos e de grande talento, que faziam da literatura uma das suas principais armas de combate ao regime colonial.

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24 A origem da literatura angolana está de certa forma ligada ao urbanismo [cf. Tavares 1999, Trigo 1985] e às transformações sociais que a colónia de Angola sofreu. Estas transformações, associadas a uma nova filosofia de vida, bem como ao despertar de consciência africana após a II Guerra Mundial, estavam na base do aparecimento, nas principais cidades da colónia, de instituições de carácter mais ou menos associativo11, operativas desde o principio dos anos 1940 e que possuem os seus próprios órgãos de imprensa, reservando margens de liberdade para dar espaço à “questão angolana” que entretanto ia sendo formulada de uma maneira ou de outra [Tavares 1999]. Entre essas instituições temos a Sociedade Cultural de Angola, que surgiu em 1942 e publicava a revista Cultura e a Associação do Naturais de Angola, que em 1951 publicou a revista Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola. Esta última pretendia ser o veículo da mensagem literária e ideológica dos membros dessa associação. Colaboraram nessa revista, dentre outros, “os poetas Agostinho Neto, Aires de Almeida Santos, Alda Lara, Alexandre Dáskalos, António Jacinto, Maurício de Almeida Gomes, Tomás Jorge, Viriato da Cruz” [Jacinto 1977: 7].

25 Durante a década de 1950, a literatura angolana “aparece com características de clandestinidade” [Jacinto 1977: 8]. Nessa época, as obras literárias expressavam o desejo de liberdade, os maus-tratos, o sofrimento e a discriminação sofrida no período colonial12. Contudo, também incentivavam os africanos a lutar contra o regime colonial.

26 A repressão sofrida, de certa forma, refreou o desenvolvimento da literatura angolana. Mas mesmo nas prisões, na clandestinidade e durante o período da luta armada de libertação, os intelectuais angolanos continuaram a produzir obras que caracterizam bem aquela época e contribuíram para o surgimento da literatura angolana. Segundo António Jacinto [1977: 8], “os que combatem, escrevem no intervalo da luta, cheios de esperança no futuro de Angola”. Os “poetas guerrilheiros”, como lhes chama António Jacinto [1977: 9], dedicavam-se tanto à luta armada como à produção de obras literárias. Foi dessa forma que foram escritas muitas obras literárias na década de 1960. Esta poesia de guerrilha apelava ao povo angolano a lutar com a certeza da liberdade.

27 Na década de 1970 surgiu a “Geração Silenciada”, que continuou a enfrentar dificuldades de liberdade de expressão como em épocas anteriores. Esta geração usava “uma linguagem hiperbólica, aparentemente hermética, mas que contesta e denuncia todo o sistema colonialista. É uma poesia consciente, mais significante que significativa” [Jacinto 1977: 9]. A esta geração seguiu-se a “Geração das Incertezas” na década de 1980, que foi caracterizada por dúvidas em relação ao futuro, numa época em que as aspirações de liberdade das décadas de 1960 e 1970 tinham sido alcançadas.

Influência brasileira na literatura angolana

28 Nos anos 1950 e 1960, os poetas angolanos passaram por um processo de crescimento e amadurecimento literário. Como já foi referenciado anteriormente, nessa época começam a perder a influência da literatura europeia, ao mesmo tempo que passaram a ser mais influenciados pela arte e letras brasileiras. Segundo Arlindo Barbeitos, “a literatura brasileira desempenhou um papel importante na recusa da cultura portuguesa, na medida que o Brasil sempre representou uma referência importante para os angolanos de certa camada social” [Laban 1991: 604]. As publicações brasileiras vinham normalmente do Brasil para Angola e muitos angolanos preferiam a literatura

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brasileira à literatura portuguesa, como era o caso de Arlindo Barbeitos, Mário Pinto de Andrade, Mário António, entre outros.

29 Esse novo grupo de intelectuais angolanos tinha plena consciência do movimento modernista literário e do regionalismo nordestino brasileiro, sendo influenciado por estes dois grupos. O movimento de intelectuais angolanos da década de 1950 e 1960 foi essencialmente um movimento de poetas virados para o seu povo. Neste movimento destacam-se indivíduos como António Jacinto, Viriato da Cruz, Agostinho Neto, Luandino Vieira, Mário António, entre outros, que abriram novos rumos para a literatura angolana. Os seus poemas e contos espelhavam temas como “a música, a dança e o quotidiano em mudança” [Tavares 1999].

30 No que diz respeito à literatura brasileira, nas décadas de 1920 e 1930 tem lugar no Brasil uma revolução literária com o surgimento do modernismo literário. Regista-se neste período a separação entre o regionalismo nordestino e o modernismo brasileiro. É nestes dois movimentos que a literatura brasileira encontra o caminho para a sua autonomia temática. O modernismo brasileiro era um movimento literário que, além de contribuir para a modernização da literatura brasileira, também contribuiu para acentuar o sentimento nacionalista brasileiro, uma vez que proporcionava a ruptura com a tradição cultural e literária portuguesa13. Já o regionalismo nordestino consistia num movimento literário desta região do Brasil, cujo principal objectivo era abordar os aspectos sociais da sua região, a sua identidade cultural e “imaginavam” uma sociedade onde a mistura racial seria comum [Ervedosa 1979: 105, Venâncio 1998].

31 A influência brasileira começou a chegar a Angola através de livros vindos daquele país, nas décadas de 1930 e 1940. Mesmo a maior parte dos livros que eram lidos em Angola tinham tradução brasileira. Nas suas entrevistas a Michel Laban, alguns escritores angolanos como Mário António, Mário Pinto de Andrade, Arlindo Barbeitos e Óscar Ribas [cf. Laban 1991] confirmam o facto de ter havido uma grande influência da literatura brasileira em Angola, citando como exemplo os seus casos pessoais. Devido à literatura brasileira, os angolanos alargaram as suas leituras. Os livros que liam eram dos mesmos escritores: Jorge Amado, José Lins Rego, Graciliano Ramos, que são todos grandes escritores brasileiros realistas e o neo-realistas [Laban 1997: 77]. Numa altura de recusa da influência europeia na literatura de Angola, ao lerem a literatura brasileira sentiam-na mais próxima de si do que sentiam em relação à literatura portuguesa14.

32 A influência brasileira (literária e artística em geral) que Angola recebeu do Brasil é substancialmente visível na música urbana que se fez em Angola durante as décadas de 1950 e 1960. A fascinação que certos angolanos sentiam pelo Brasil era enorme, ao ponto de que quando ouvissem música brasileira sentiam-na como sua. Segundo Costa Andrade, isto deve-se ao facto da música angolana ter influenciado a música brasileira, por intermédio dos escravos que haviam sido enviados para o Brasil nos séculos passados. Então, quando se fazia o retorno musical, os angolanos sentiam a música brasileira como algo familiar, como algo que lhes pertencesse [Andrade 1980: 26]. Em reforço dessa ideia de Costa Andrade, podemos citar Mário Pinto de Andrade, que diz o seguinte: “o imaginário do Brasil e da América do Norte, da América negra marcou esta geração. A presença dos negros americanos, que não era muito grande na época no cinema em geral, notava-se na dança, no jazz. E depois havia a recriação da música brasileira. Estávamos próximos da música brasileira, porque aí encontrávamos as nossas raízes, que eram reelaboradas. Assimila-se uma música que era nossa, finalmente” [Laban 1997: 31]. Mário Pinto de Andrade, acrescenta ainda: “Recordo-me

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de meu pai vestir os seus melhores fatos para ir às festas da Liga Nacional Africana. Havia as festas artísticas quando os filhos (a minha irmã, por exemplo) faziam um número artístico – o de , por exemplo: você vê, a influência do Brasil... A minha irmã fez a representação de Carmen Miranda, com as plumas todas e a canção...” [Laban 1997: 43]. Podemos citar ainda como exemplo o poema de Mário António “Poema da Farra” (ou “Canto de Farra”), escrito em 195215: “Quando li Jubiabá Me cri António Balduíno Meu primo, que nunca o leu, Ficou Zeca Camarão. Eh, Zeca!...”

33 Este poema de Mário António constitui um dos exemplos de como a literatura brasileira influenciou a formação da literatura angolana. A linguagem utilizada neste poema era entendida pelos angolanos da época, que recebiam influências do Brasil. Mais tarde, este poema foi composto em música e interpretado e difundido pelo compositor e cantor angolano Rui Mingas.

34 O processo de consciencialização literária e cultural em Angola ocorreu nos anos 1940 e princípios de 1950. Este processo, iniciado em Luanda, foi protagonizado por intelectuais angolanos da chamada “Geração de 50”, cujas obras demonstravam o carácter modernista que se começava a criar na literatura angolana. Estas obras literárias foram espelhadas nas revistas angolanas Cultura e Mensagem, que marcaram o início de uma nova fase literária. Com o surgimento da “Geração de 50”, podemos falar de uma literatura essencialmente angolana, marcada sobretudo, pela influência literária do nordeste brasileiro. Este grupo composto por indivíduos negros, mestiços e brancos, que além de se identificarem de certa forma com o nordeste brasileiro, sentiram a mesma angústia dos intelectuais nordestinos e viram espelhada na experiência nordestina a sua experiência [cf. Venâncio 1998].

35 A geração da década de 1950 também recebeu influências de escritores brasileiros pertencentes ao movimento modernista brasileiro, do neo-realismo português e de Cabo Verde. Os escritores cabo-verdianos foram mais influenciados pelo regionalismo nordestino do que os escritores angolanos [cf. Castelo 1998: 83, Venâncio 1998]. Alguns escritores cabo-verdianos que pertenciam ao movimento cultural e literário da Claridade tiveram um percurso literário semelhante ao dos escritores brasileiros, sobretudo da região nordeste. Este movimento cultural e literário de Cabo Verde, à semelhança do dos escritores nordestinos, tinha como principais objectivos produzir uma literatura que abordasse os problemas que retratassem a realidade social vigente na sua sociedade. A tomada de consciência literária e cultural cabo-verdiana data da década de 1930, com o lançamento da revista do movimento literário intitulada Claridade e do livro de poemas de Jorge Barbosa intitulado Arquipélago, em 1935.

36 A literatura cabo-verdiana (por se ter desenvolvido primeiro e por ter recebido também fortes influências do nordeste brasileiro) influenciou de certa forma a formação da literatura angolana. Exemplo disso é a palestra proferida nos finais de 1940 (período em que começou a vigorar o slogan “Vamos Descobrir Angola”) pelo escritor cabo-verdiano Filinto Elísio de Menezes16, pertencente à geração “Certeza”17, na Sociedade Cultural de Angola, onde falava da necessidade de se denunciar a inexistência de uma “verdadeira crítica literária” que peneirasse a literatura de louvor e de ocasião, da nova literatura que começava a nascer e que iria verdadeiramente rasgar os caminhos para uma literatura verdadeiramente angolana. Entre os escritores angolanos que além de terem

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sido influenciados pelos escritores brasileiros, também foram influenciados por escritores cabo-verdianos, temos Maurício Gomes [cf. Laban 1991: 148].

37 Na década de 1960 houve uma abertura no Brasil para autores angolanos ligados aos movimentos de libertação angolanos e para outros indivíduos que eram contra o regime colonial que não podiam editar em Angola obras contra o regime colonial. Temos o caso de dois escritores angolanos ligados ao MPLA: Costa Andrade, que edita em 1963 em São Paulo a obra Tempo Angolano em Itália, e Manuel dos Santos Lima que edita o seu primeiro romance intitulado As Sementes da Liberdade, no Rio de Janeiro em 1965.

38 Castro Soromenho, um anti-salazarista e anticolonialista, não esteve ligado directamente aos movimentos de libertação de Angola, mas tornou-se um nome importante da literatura angolana. Algumas das suas obras, que criticavam o sistema colonial português, também foram publicadas no Brasil. São os casos de Terra Morta (Rio de Janeiro, 1949), Viragem (São Paulo, 1969) e A Chaga (Rio de Janeiro, 1970). É preciso acrescentar que Castro Soromenho viveu exilado no Brasil entre finais de 1965 e 1968, data da sua morte18.

39 À guisa de conclusão, podemos dizer que a literatura criada nas décadas de 1950 e 1960 em Angola acompanhou mais ou menos a trajectória política de alguns intelectuais angolanos, durante o período colonial. Portanto, uma boa parte da geração de escritores angolanos daquela época lia regularmente autores brasileiros, não só pelo facto de se identificarem mais com a literatura brasileira, mas de certa forma, também por contraposição à influência literária europeia. Essa geração lia praticamente os mesmos livros e conhece escritores brasileiros como Jorge Amado, José Lins Rego, Graciliano Ramos, Drumond de Andrade, Castro Alves, Érico Veríssimo, entre outros.

40 Podemos dizer que o processo de formação da literatura angolana foi longo e surgiu em contraposição à literatura de influência europeia que se verificou em períodos anteriores. A literatura angolana surgiu num período marcado, sobretudo, por contestações políticas; pelo despertar da consciência dos africanos e pela luta pela independência das colónias africanas. Todos esses factores de certa forma contribuíram para aprimorar as características da literatura angolana, apesar da influência brasileira. Essa influência brasileira foi mais notória num determinado período da literatura angolana, quando os angolanos necessitavam de descobrir as suas origens e ir à busca dos valores culturais africanos, com vista à negação da influência literária portuguesa. Nessa época, o Brasil aparece como um pais “irmão”, cuja influência cultural sobre muitos angolanos já se fazia sentir desde épocas anteriores.

41 A partir da década de 1980, quando a literatura angolana começou a sofrer transformações devido ao novo contexto político e social que se vivia em Angola, essa influência terá diminuído. Contudo, ela continua registada na memória dos angolanos que se deixaram influenciar por ela nas décadas de 1950 e 1960 e nas suas obras literárias que ainda hoje são tidas como referência para o estudo da formação da literatura angolana.

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NOTAS

1. O Almanach de Lembranças foi fundado em 1850, em Lisboa, e a sua publicação estendeu-se até à década de 1930. 2. A respeito do poema “Amor e Loucura”, da autoria de José da Silva Maia Ferreira, publicado no Almanach de Lembranças em 1879, Francisco Soares [2001: 58-59] diz tratar-se de plágio, remetido por outra pessoa à revista. 3. O primeiro poema de um “angolano” publicado no Almanach de Lembranças data de 1857 e é de autoria de um “anónimo benguelense” [Ervedosa 1979: 32, Moser 1993: 18]. 4. Em kimbundu, mukuarimi quer dizer linguareiro, maldizente. 5. Para um estudo mais aprofundados acerca dos periódicos do século XIX, ver por exemplo: Silva 1993, Lopo 1952 e 1964. 6. Referência à corrupção durante a administração colonial. Ver, por exemplo, Barrabas 1995. 7. Sobre a elite crioula, ver por exemplo Dias 1984. 8. Norton de Matos dissolveu a Liga Africana e suspendeu a publicação do jornal O Angolense, em 21 de Fevereiro de 1922. Ver, por exemplo, Rodrigues 2003. 9. Sobre a origem da literatura em angolana, ver Pepetela 2010, Tavares 1999, Laban 1991 e 1997, Venâncio 1992, Trigo 1985, Ervesosa 1979. 10. Acerca da estrutura social da sociedade colonial angolana, ver Carvalho 2011. 11. Sobre o associativismo nessa época, ver por exemplo Rocha 2003, Rodrigues 2003. 12. Data dessa época, por exemplo, a obra literária Estórias de Contratados, de Costa Andrade. 13. Sobre a influência da literatura portuguesa na literatura brasileira, ver por exemplo Neves 1992.

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14. Angola e o Brasil tinham desde há vários séculos grande proximidade, devido ao tráfico de escravos e às trocas comercias. Entre esses dois territórios havia até meados do século XIX uma relação de interdependência. Ver Cunha 2000, Mello 1992. 15. Publicado primeiro em 1962, em Chingufo: poemas angolanos, Lisboa, Agência do Ultramar e no ano seguinte em 100 Poemas, ABC. Citado por Venâncio 1998: 186. 16. Separata da Revista Cultura, Luanda, 1949, citado por Tavares 1999: 126. 17. Movimento cultural e literário cabo-verdiano, que se pretendeu sucessor do Movimento da “Claridade”. 18. Acerca da edição de obras destes três escritores no Brasil, ver Mourão 1978: 130, 132, 134.

RESUMOS

A literatura angolana surgiu nos finais da primeira metade do século XX quando um grupo de intelectuais decidiu rejeitar a influência europeia e ir à busca dos elementos culturais africanos que servissem de base para essa nova literatura. Numa época em se intensificava o regime colonial português em Angola, um grupo de jovens lançou-se ao desafio de “descobrir Angola”. Essa tomada de consciência por parte dos africanos acerca da sua própria identidade, originou um novo movimento intelectual literário que teve como modelo a literatura brasileira. Sendo uma literatura de contestação feita na clandestinidade e na guerrilha, as obras literárias expressavam o desejo de liberdade, denunciavam os maus-tratos sofridos e a discriminação, incentivando os africanos a lutarem contra o regime colonial.

The Angolan literature emerged in the late first half of the twentieth century, when a group of intellectuals decided to reject the European influence and to search the African cultural elements to the basis of this new literature. At that time, the Portuguese colonial regime in Angola used to intensify its action, and a group of young Angolan persons decided “to discover Angola”. The consciousness of their own identity resulted in a new intellectual movement modelled on Brazilian literature. It was an oppositional literature produced in the underground and guerrilla, that expressed the desire of freedom, denounced the mistreatment and discrimination, and encouraged Angolans to fight against the colonial regime.

ÍNDICE

Keywords: Literature, Brazilian influence, colonization, literary movement. Palavras-chave: Literatura, influência brasileira, colonização, movimento literário.

AUTOR

ANABELA CUNHA Historiadora. Mestre em História de África pela Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e licenciada em Ensino da História pelo ISCED de Luanda. É Professora Auxiliar no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) de Luanda. As suas áreas de

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investigação são as relações entre Angola e o Brasil, o “Processo dos 50” e o degredo. Na Revista Angolana de Sociologia, publicou os artigos intitulados “O degredo para Angola na segunda metade do século XIX” (nº 2, 2008) e “Exclusão e mobilidade social entre os degredados na Angola do século XIX” (nº 5-6, de 2010). [email protected]

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Intervenções

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CPLP: Paradoxo certo ou futuro incerto?

Carlos Lopes

NOTA DO EDITOR

Texto pedido ao autor.

1 A nossa comunidade tem muitas datas de nascimento, como o filho escondido de quem não se sabe a história certa do aparecimento. Oficialmente, foi a 17 de Julho de 1996 que no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, se assinaram os documentos constitutivos da mais nova Comunidade linguística. Mas para trás ficavam versões várias de paternidade, portuguesas, brasileiras e também africanas. Em qualquer uma das versões dá-se destaque ao papel que cada parte jogou, numa animação pouco condizente com o arrastamento de todos para que de facto se investisse nesta formação como coisa principal.

2 A comunidade tem estatutos, como se deve, que determinam que se trata de “um foro multilateral privilegiado para o aprofundamento da amizade mútua, da concertação político-diplomática e da cooperação entre os seus Membros”. Estas premissas existenciais são importantes para melhor se entender o que é e o que não é a CPLP. Um foro e normalmente uma ligação ténue, não necessariamente institucionalizada de forma rígida. E um espaço que pode servir para intercâmbios e trocas de opinião e de experiência, mas não implica necessariamente uma dimensão política e regimental firme.

3 Aprofundar a amizade é algo um pouco mais emotivo que racional. Amizade entre países é uma formulação diplomática desprovida de qualquer especificidade. É o que se coloca em qualquer documento ou comunidade, até com países com os quais se mantém um intercâmbio cada dez anos. No entanto, ao ser considerado privilegiado, espera-se algo mais, que pode ser traduzido apenas num desejo não corroborado com nenhum

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arranjo preconcebido. Nada nos estatutos ou na postura da criação da CPLP deixa transparecer como poderia ser lido tal hipotético desejo.

4 A concertação político-diplomática é algo técnico e preciso, que na realidade pode ser feito por um grupo de países com interesses comuns. Parece ser certo que a CPLP conseguiu essa concertação em momentos importantes para os seus membros, embora também seja verdade que a descontinuidade geográfica da Comunidade tem sido um factor mais centrípeto que centrífugo.

5 Esta é, pois, a cooperação entre os membros. Por razões óbvias, ela tem de (e deve) ser desequilibrada, no sentido em que os que têm mais devem apoiar os que têm menos. No caso concreto da Comunidade, o índice de desenvolvimento de Portugal e o tamanho do Brasil são factores de monta para que os dois ofereçam muito mais que os demais reunidos. O veredicto nem sempre mostrou essa certeza.

6 A CPLP tem sido marcada pelo mito fundador, como o são todas as instituições e países.

7 O Brasil carrega o peso do seu desprezo aparente pela lusofonia, no momento crucial da sua fundação como a suposta vertente privilegiada. Ninguém nega o papel fundamental que algumas personalidades brasileiras (como o embaixador Aparício de Oliveira ou os Presidentes Itamar Franco e José Sarney) tiveram no cerimonial da constituição. Mas isso não chega e o Brasil enquanto país ficou sempre a dever à Comunidade um empenho mais profícuo, até bem recentemente, quando uma nova dinâmica surgiu com a administração do Presidente Lula da Silva. A vocação Atlântica do Brasil e o seu papel na emergência de um novo Sul ajudam a antever um novo papel para a CPLP.

8 Portugal fica sempre marcado pelas associações de que quer fazer da CPLP o que a Grã- Bretanha, ou a França fizeram da Commonwealth ou da Francophonie. Em ambos os casos a liderança do país europeu ancora é indisputável, mas o mesmo é difícil de imaginar no espaço lusófono. A opinião pública portuguesa revela à luz do dia aspirações que ficam encobertas em negociações delicadas sobre protagonismos. Quer muitas vezes uma política de língua imperial, uma margem de influência que irrita por se tratar de uma lembrança do colonialismo tardio.

9 Os países africanos membros da Comunidade também têm os seus sobressaltos de adolescência, querendo afirmar-se quando é desnecessário e emprestando à Comunidade um utilitarismo que esta não pode assumir por falta de meios equivalentes a outras congéneres. Estes países ainda buscam as suas identidades e pernoita na lusofonia a ideia de que ela pode contrapor a necessidade de diferenciação do recém- independente.

10 Finalmente, o último convidado da festa (Timor Leste) tem na sua liderança o desenho de contradições entre a ligação mais estreita a uma Comunidade ainda mais longínqua geograficamente e os imperativos pragmáticos da vizinhança.

11 Poderão estes paradoxos ser resolvidos com amizade? Mesmo com carradas de amizade, a realidade da descontinuidade acabará por impor-se de forma dramática e sem hesitações. A não ser que se invista seriamente num conjunto de factores que sejam de facto únicos.

12 A actual interconectividade do mundo lembra-nos que cada vaga da globalização nos aproxima mais, uns dos outros, e nos permite aceder a mais informação. Sem uma ampla liberdade e aumento das oportunidades, não podemos transformar esse desenvolvimento da informação em algo que melhore as nossas vidas e nos dê maior felicidade. Admitindo que estamos a entrar num patamar de maior conhecimento e

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individualidade, é natural que as nossas ansiedades e certezas nos projectem para redutos de segurança identitários. Cada vez mais esse desejo de encontrar referências comuns se faz com formas novas de comunicação, muitas no domínio do virtual. Uma língua e cultura com ambições globais, marcando-se num espaço com descontinuidade geográfica, só podem sobreviver e crescer com o pleno uso das novas linguagens e tecnologias.

13 A CPLP sente-se quando um grupo de cidadãos de países lusófonos encontra pontos de referência comuns. Não quando se organiza uma reunião formal de concertação político-diplomática Para fortalecer a base do relacionamento, pode-se traduzir amizade num conjunto de acções concretas A meu ver, é sobretudo na área cultural e nas indústrias criativas que se abrem potencialidades. Sem essa alavanca, a Comunidade não será muito diferente de outros agrupamentos de que nos lembramos apenas ‘quando dá jeito’.

14 As oportunidades e perspectivas da CPLP são quase ponto obrigatório nas reuniões várias dos órgãos da Comunidade. Mas o que poderá mudar o futuro comum é o engajamento concreto na utilização dos veículos da língua que possibilitem a sua sobrevivência. Os exemplos de anglicismos são a parte mais evidente de um iceberg de contradições. O paradoxo interno que demonstra o que a sociedade considera valorizante e aspira, querer ser reconhecido por quem fala inglês, não o seu parceiro da Comunidade. É uma batalha complexa, não específica ao nosso espaço, como demonstra a constante polémica do excepcionalismo cultural francês. Mas, como esse exemplo bem demonstra, a resposta está no desenvolvimento de capacidades informáticas, na dinâmica das Academias responsáveis por acordos ortográficos, no investimento forte nos intercâmbios culturais, na formatação de referências criativas ligadas às novas tecnologias.

15 A esquizofrenia é uma doença mental em que se perde o contacto com a realidade, vivendo-se num mundo imaginário, com fragmentação da personalidade. É a doença mais constrangedora porque se carrega pela vida inteira. À escala de um grupo, ninguém se atreve a falar de comportamento esquizofrénico, é demasiado pesado e negativo. Por isso mesmo, as instituições tentam sempre assentar os seus pés (neste caso, as suas decisões) em algo realizável e perene. O futuro da CPLP será aquele que assenta na possível, não esquizofrénica, ambição dos seus membros.

16 Genebra, Maio de 2007

AUTOR

CARLOS LOPES Sociólogo e Historiador. Graduado em Sociologia pela Universidade de Genebra e Doutor em História pela Universidade de Paris 1 Pantheon-Sorbonne. Possui também um Doutoramento Honoris Causa em Ciências Sociais, pela Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro, Brasil). Foi fundador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa da Guiné-Bissau. É actualmente

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Subsecretário-geral das Nações Unidas e Director-geral do UNITAR (www.unitar.org) e do UN Staff College (www.unssc.org). É autor de Contemporary Challenges. The legacy of Amilcar Cabral (Londres, 2009) e co-autor de Desenvolvimento para céticos, (São Paulo, 2006) [email protected]

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Breve ensaio sobre lusofonia: convergências e divergências

Kajim Ban-Gala

NOTA DO EDITOR

Texto pedido ao autor.

1 Ao começar a estruturar este texto tive em conta, talvez, dois aspectos. Um: que a lusofonia, tal como a angolanidade (é um exemplo) ou a bantuofonia são conceitos baseados em manifestações de sociabilidade. Acontece que, por razões que por ora vamos adiar, o factor comunicação emergiu ultimamente a propósito da criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

2 Há quem defenda, por seu lado, que estes conceitos se relacionam com o carácter da nacionalidade dos indivíduos. No plano geral, têm a ver igualmente com os seus provérbios, lendas e histórias transmitidas de geração em geração. Há ainda que acrescentar uma filosofia de vida característica de povos e suas origens.

3 As minhas notas sobre a CPLP, algumas perdidas e outras resgatadas, foram publicadas ou lidas em diferentes jornais de diferentes países. Confesso piamente que não sei dizer como procederei desta vez para acrescentar mais qualquer coisa ao convencimento do leitor. Não pretendo redigir um texto à guisa de confessionário.

4 Mais do que a língua portuguesa, essa organização tri-continental visou na sua génese criar um mercado de transacções comerciais – em que Angola, dadas as suas peculiaridades materiais, tidas como ainda por explorar em grande medida, era, pois, um alvo a conquistar.

5 Isso levou a mim e a outros observadores, a duvidarmos da real orientação da CPLP. Desde logo porque o processo que conduziu à sua constituição em organização propriamente dita começou inquinado: em alguns países, soube-se da sua fundação às vésperas. Mas os governos, mais do que as sociedades civis dos países membros, estavam com pressa.

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6 Nascem ideias, morrem ideólogos. A respeito da CPLP, advertimos por diversas vezes que a sua raiz romântica não era razão suficiente para selar um pacto inter-nações. Tem, ademais, contra si, a intangibilidade física, que leva as pessoas a circularem e a comunicarem-se intensamente, diariamente.

7 Todavia, os partidários da globalização saltaram-nos em cima. A descontinuidade geográfica, atacaram, é facilmente superável nos nossos dias pela velocidade de comunicação proporcionada pelos modernos meios de comunicação e relacionamento via Internet. Começa a partir daqui uma discussão tecnológica, mas também humanista: que é o que, na verdade, está no centro de toda a nossa argumentação?

8 A princípio, a CPLP era para ser um pacto político que perseguia, afinal, interesses mercantis. Na escala de valores assumida pela organização, a língua portuguesa aparecia numa cotação em alta, a tal ponto que se tornou o próprio pilar da sua fundação.

9 Mas se formos a ver a fundo, tal não corresponde à realidade objectiva da maior parte dos países membros: nenhum dos países, à excepção (ainda assim discutível) do Brasil e de Portugal, têm a língua portuguesa como a língua primária dos seus habitantes.

10 Vejamos o segundo aspecto, como mencionei no início. A lusofonia ou a angolanidade ou a moçambicanidade afere-se a partir da observação da prática de um conjunto de manifestações de sociabilidade das pessoas: gostos similares por comidas, o modo de prepará-las e o modo de consumi-las, por música, suas letras e melodias, e a dança – quer sejam colectivas, quer sejam individualizadas.

11 O costume de sunguinar é tipicamente africano. Tem a ver com uma quietude crepuscular das aldeias elevada a uma dimensão de lembranças e inquietações metafísicas, que ocorrem não na mesma intensidade ou pelo menos na mesma relação com a vida de um europeu.

12 É também como antecipação de boas colheitas e comida farta: no outro ângulo, muito interessante, está ligado ao ritual de iniciação sexual dos jovens. É no súnguino que as conquistas começam a desenrolar-se. No fundo, uma autorização tácita.

13 Todas essas manifestações são subsidiárias do tipo físico ou comportamental do indivíduo. Logo: um português não dançará a Njimba se não lha ensinarem e um angolano, o Vira. Um conhecido escritor angolano costuma repetir que não consegue ficar lá fora mais de três dias: tem que voltar, para “recarregar-se” com uma boa funjada.

14 Digo, a terminar, que o “capote” da lusofonia não pode servir para suprimir a diversidade étnica e linguística dos países de língua oficial portuguesa. Ou seja: a individualidade da personalidade de cada um não pode ser abolida. Noutro texto já defendi (e relembro aqui) a paridade entre o português e as línguas nacionais de todos.

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AUTOR

KAJIM BAN-GALA Jornalista e escritor. Membro da União dos Jornalistas Angolanos e da União dos Escritores Angolanos. Trabalhou na agência Angola Press e em vários jornais de Luanda. É autor de O Fervor da Kianda (Luanda, 1997), menção honrosa do Prémio “Cidade de Luanda”. Recebeu ainda o prémio da Editora Litteris (Rio de Janeiro, Brasil). [email protected]

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Entrevistas

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Cláudio Fortuna entrevista Nataniel Ngomane1 - “Não sou lusófono, porque a minha matriz fundamental é bantu”

Cláudio Fortuna e Nataniel Ngomane

NOTA DO EDITOR

Fonte: Semanário Angolense, nº 413 e 414 Data: 23 e 30 de Abril de 2011

1 Nataniel Ngomane é director da Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane, que lecciona os cursos de jornalismo, música, teatro e ciências da informação.

2 O Semanário Angolense entrevistou este académico moçambicano, aquando da sua estadia em Luanda, para leccionar seminários de Mestrado na área de Estudos Comparados, o que “sinaliza uma nova parceria, agradável e necessária, dado o facto de ambos os países falarem a língua portuguesa e terem desafios comuns para construção das respectivas nações.” C. Fortuna – Como estão a decorrer os cursos de pós-graduação, na Universidade Eduardo Mondlane (UEM), no que diz respeito ao ensino de literatura? N. Ngomane – No que diz respeito à literatura, ainda não temos, propriamente, um programa de pós-graduação. Temos uma Faculdade de Letras e Ciências Sociais que congrega, entre os seus cursos, os de Letras. Na altura em que foram produzidos os mestrados em Linguística, ainda não tínhamos um corpo docente qualificado para abrir um curso de pós-graduação em Literatura. Neste momento já estamos, mais ou menos, preparados. Ou seja, temos um corpo docente qualificado e estamos a trabalhar no sentido de produzirmos um programa de Mestrado que culmine em

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estudos de Doutoramento em literatura. Mas já temos mestrados e doutoramentos em linguística e em outras áreas, na UEM.

C. Fortuna – Sabemos que está cá para orientar alguns seminários de mestrado aqui no ISCED2. Gostávamos de ouvir de si, como é que estão a correr, e como é que surge esta parceria? N. Ngomane – Esta parceria é do tipo que acontece no meio universitário. Não sei quem foi que deu o meu nome ao ISCED. A verdade é que um dia recebi um e-mail, de uma professora que esteve aqui no ISCED, a Dra. Luísa Coelho, convidando-me para orientar estes seminários, na área da Didáctica de Línguas, para um curso de Mestrado em Literatura e Língua Portuguesa. Respondi que não entendia nada de didácticas e que a minha área era a Literatura Comparada. A professora Coelho disse- me que não havia nenhum problema, que se podia mudar o programa para Literatura Comparada, que seria bem-vinda. Como a professora Coelho terminou o contrato dela em Luanda, passei a dialogar com o Prof. Vitorino Reis que, por sua vez, me convidou para orientar um seminário de Literatura Comparada, para este curso de Mestrado. É nesse âmbito que aqui estou e tem sido uma experiência bastante rica. Moçambique e Angola têm a mesma idade como nações e têm os mesmos desafios, inclusive, na área da Educação e formação de quadros. Logo, não é muito complicado, para quem dá aulas na Eduardo Mondlane, dar aulas aqui no ISCED. Ou seja, não há diferenças significativas entre dar aulas aos estudantes angolanos ou moçambicanos, pois os grandes problemas são fundamentalmente os mesmos. Seguimos, mais ou menos, o mesmo percurso. Refiro-me particularmente à prosa, área em que mais trabalho: o inicio do romance angolano nos finais do século XIX, o moçambicano na primeira metade de XX... Existem certas proximidades, o que facilita o processo. A língua é a mesma, parte substancial das nossas culturas é bastante próxima. É só olharmos para a nossa comum matriz bantu e, mesmo olhando para a matriz portuguesa, sentimos que há uma grande proximidade. Portanto, tem sido bastante gratificante esta experiência, sobretudo a troca de experiências com colegas angolanos do ISCED.

C. Fortuna – Como avalia o grau de assimilação e de conhecimentos dos estudantes neste curso? N. Ngomane – São estudantes bastante participativos, são muito informados. Como em qualquer sala de aulas, há sempre uma ou outra informação que é nova para os estudantes. Mas, de uma maneira geral, têm informação suficiente para estabelecer o diálogo que nós queremos. E porque o objectivo último deles é produzir trabalhos de Mestrado, nós temos tentado dar o máximo de colaboração nesse sentido, procurar iluminar um pouco aquelas zonas de penumbra que os habitam, discutindo os seus projectos e ideias, clarificando aquilo que podemos clarificar a partir do nosso conhecimento, por via da oferta possível de bibliografia.

C. Fortuna – Como avalia a literatura de expressão portuguesa, ou mais concretamente dos PALOP? N. Ngomane – Não sou a pessoa ideal para fazer uma avaliação dessa natureza. Falar de uma literatura de língua portuguesa... prefiro utilizar a expressão literaturas de língua portuguesa, no plural, e não “literatura de expressão portuguesa”. Porque nós somos uma constelação de nações, uma constelação de culturas; e seria complicado procurarmos uma forma singular de nomear a nossa expressão cultural.

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Por outro lado, eu não sou, necessariamente, um indivíduo de “expressão portuguesa”. Recuso ser chamado de lusófono. Não sou lusófono, mesmo porque a minha matriz fundamental é bantu. Falo citswha3, que é a minha língua materna; falo copi4, que é a língua da minha mãe; falo xironga, que é a língua através da qual me socializei, a língua da minha infância; e tenho a língua portuguesa, que aprendi aos 7 anos, porque tinha que entrar para a escola. Não sou lusófono. Em termos culturais, o meu ideal de casamento, de morte, de convívio, de riso, é um ideal não necessariamente português, mas necessariamente bantu. “Lusofonia”, “expressão portuguesa”... são adjectivos que não têm nada a ver comigo. Daí preferir expressões como países de língua portuguesa, países africanos de língua portuguesa, literaturas africanas de língua portuguesa – e sempre no plural, evidentemente, porque Angola é diferente de Moçambique; Moçambique é diferente da Guiné; Guiné diferente de Cabo Verde; e por aí em diante. Julgo ser fundamental usar o plural, porque somos uma diversidade, para não cair no erro que muitos críticos (especialmente os de fora do nosso continente) caem, de dizer por exemplo “queremos uma cooperação entre Portugal, Brasil e África”, como se África fosse um país. Temos inúmeras diversidades no nosso continente, de Norte a Sul. E mesmo na África Austral, onde há algumas proximidades, há também diferenças abismais. Temos que olhar e perceber isso de forma bastante clara. Justamente por isso, não me sinto em condições de fazer a avaliação que me pede. Posso dar algumas ideias em torno dessa questão, o que não significa que esteja a fazer uma avaliação das literaturas de língua portuguesa no continente africano. Pensar nas literaturas africanas de língua portuguesa é um fenómeno novo, comparativamente a olhar, por exemplo, para as literaturas inglesa, francesa ou alemã, que têm longa tradição, têm muitos séculos de vida. Ao olharmos para a literatura de Moçambique, ou de Angola, vemos literaturas absolutamente novas, surgidas recentemente, ainda em fase de consolidação. Ainda assim, hoje já podemos falar destas literaturas como literaturas nacionais, embora ainda exista um discurso que procura uniformizar estas literaturas, como se se tratasse apenas de uma. Basta olharmos para as universidades pelo mundo fora, para percebermos que a maior parte delas têm áreas chamadas “literaturas africanas”, “literaturas africanas de expressão portuguesa”... Algumas chamam mesmo “literaturas lusófonas”, o que é muito discutível. Já existe uma Literatura Moçambicana, já existe uma Literatura Angolana, uma Literatura Cabo-verdiana, São-tomense... Quer dizer, essas literaturas já se afirmaram autonomamente, são literaturas nacionais. Se olharmos para as dinâmicas dessas literaturas, percebemos que têm grupos de autores que se relacionam, gerações de autores que se ligam, que se influenciam por meio de motivações diversas – seja do ponto de vista ideológico como do ponto de vista político, do ponto de vista estético ou cultural. Essas gerações produzem obras concretas, conjuntos de obras que podem ser reunidas por perspectivas temáticas, estéticas, epocais e outras. E mais do que termos autores e conjuntos de obras, temos necessariamente públicos diversos. Portanto, temos leitores para essas obras. Sendo estes três factores que configuram os sistemas literários, podemos dizer que os nossos países têm, efectivamente, literaturas. Trata-se de um passo fundamental para os países que surgiram há pouco tempo, há pouco mais de trinta anos. E isto é óptimo, se se tiver que fazer uma avaliação, para dizer o seguinte: as nossas literaturas acabam de surgir, mostram produção estética e

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temática riquíssima, e estão numa fase de consolidação. Um número não elevado (mas significativo) dos nossos autores é conhecido lá fora. No caso específico de Moçambique e Angola, posso citar alguns nomes: José Craveirinha, Noémia de Sousa, Luís Bernardo Honwana, Luandino Viera, Artur Pestana (o Pepetela), Luís Carlos Patraquim, Mia Couto, Ungulani ba ka Khosa, Manuel Rui, Eduardo White, João Melo, Paulina Chiziane, Paula Tavares, João Paulo Borges Coelho, Eduardo Agualusa, entre muitos outros. Ou seja, já temos uma série de escritores e de obras que gozam de um reconhecimento nacional e internacional, seja pelo uso dos seus textos em salas de aula, seja pela atribuição pública (reconhecimento público das suas obras) de prémios concretos. Qualquer um desses autores já terá ganho algum prémio dentro do seu país ou fora dele, por causa da obra que produz e do seu consequente reconhecimento, o que é sinal de pertença a algum sistema literário. Então, temos de facto literaturas nacionais. Não só ficamos independentes do ponto de vista político, mas também temos, de certo modo, aquilo que é fundamental em termos culturais: literaturas nacionais.

C. Fortuna – Qual é o paralelismo que podemos encontrar entre as literaturas africanas de língua portuguesa e as de língua francesa e inglesa? Quais são as diferenças e semelhanças existentes, em termos de qualidade literária? N. Ngomane – A nossa qualidade literária é boa. Muito boa, diga-se. Mas gostava de voltar a chamar à atenção ao facto de não termos uma literatura africana de língua portuguesa. Não existe uma literatura africana de língua portuguesa; existem várias literaturas africanas de língua portuguesa. Quanto à comparação em termos de qualidade, é algo muito difícil e complexo. É até perigoso, porque corremos o risco de cair em reducionismos e situações de sobrevalorização sem propósito. Não gostaria de comparar, porque as literaturas de língua inglesa pouco conheço; as de língua francesa também pouco conheço. Mas acredito que as nossas literaturas têm qualidade e têm reconhecimento público. Por isso são estudadas em várias universidades; por isso é que uma parte significativa dos nossos autores são lidos pelo mundo fora, o que é um bom indicador da qualidade das nossas literaturas. E as outras também a têm. Quando vamos para os países africanos de língua inglesa encontramos autores lidos em todo o mundo. Aqui ao lado, na África do Sul, além de Coetzee, que foi agraciado com o Nobel de Literatura de 2003, temos a Nadine Gordimer, uma grande autora sul- africana, também Nobel de Literatura, em 1991. Temos também em André Brink um grande autor sul-africano. No Zimbabwe podemos citar Nozipo Maraíre, que escreveu Zenzele (1996), um belíssimo romance. E podíamos citar outros nomes noutros países africanos, como o caso de Labou Tansi, no Congo, escritor de língua francesa. Precisamos citar N’gugi Wa Thiong’o? Wole Soyinka? Todos eles e muitos outros mostram que as nossas literaturas, de uma maneira geral (sejam de língua inglesa, francesa ou portuguesa), têm qualidade. Não há dúvida quanto a isto. Estamos a falar de literatura; poderíamos estar a falar de música, de teatro; poderíamos estar a falar de outras expressões artísticas como a dança, a pintura, a escultura. Neste domínio, das artes, acho que estamos bem. Precisamos de trabalhar mais e superar a qualidade boa de hoje, trazendo coisas cada vez melhores. Mas não restam dúvidas de que temos literatura de qualidade.

C. Fortuna – Alguns estudiosos dizem que para Angola, particularmente, a década de oitenta foi uma década de ouro, em termos de produção literária de qualidade. E havia uma

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componente muito importante para a produção literária, que é a crítica. Do que tem estado a estudar da literatura angolana, sente que a ausência de crítica literária, a sua pouca presença, diminui a qualidade da produção literária? Pelo menos da literatura produzida hoje? N. Ngomane – Sou apologista da diversidade, não de modelos únicos. Por isso, não acredito que a ideia que se tem dos anos oitenta tivesse que se manter nos anos dois mil; até porque estamos numa outra época, movida por outras forças. Cada época tem os seus valores e deve ser lida em função desses valores, de acordo com a dinâmica histórica, social e cultural dessa mesma época. Não conheço a literatura angolana. Conheço alguns autores, que já fiz referência, como o Pepetela, o Luandino, Paula Tavares, Manuel Rui, João Melo, Agualusa. O Ondjaki, por exemplo, até agora só conheço de nome. Ainda não li nenhuma obra dele. Não tenho vergonha nenhuma de dizer isto. Portanto, conheço muito pouco e muito pouco também conheço da crítica angolana. Não conheço quase nada. Logo, não me posso pronunciar sobre isso. Mas sei que há um discurso mais ou menos similar ao de Moçambique, em que inclusive se fala de uma crise da literatura. Acho que cada época é uma época; não podemos esperar que anualmente apareça um Mia Couto, um Ungulani ba ka Khosa, uma Paulina Chiziane. O que não impede que apareça um Ondjaki em Angola, ou um João Paulo Borges Coelho em Moçambique, que escreveu esse romance monumental que se chama O olho de Hertzog (2010). Quantos Camões tem Portugal? Quantos Fernandos Pessoa tem Portugal? Há toda uma dinâmica natural (embora estejamos a falar de cultura, mas a cultura tem uma relação com a Natureza), nestes fenómenos, que tem de ser lida dentro da sua própria lógica. Julgo ser isto que está a acontecer. Há sempre momentos altos e momentos baixos, em qualquer fenómeno, em que os momentos baixos não implicam necessariamente uma crise, mas um estado normal e ideal da época que se está a viver, com todas as vicissitudes típicas dessa época; com todos os problemas inerentes a essa época, enquadrados numa dinâmica mais global. No caso, a dinâmica global pode ter a ver com as crises financeiras, com os níveis e qualidades da educação não só em Angola ou em Moçambique, mas em todo o mundo. Talvez seja o caso de a gente lançar o olhar para fora das nossas fronteiras, começar a verificar o que se passa nos outros países e comparar: qual era a situação nos anos oitenta nesses países e qual é agora, nos anos dois mil? O que resulta daí? Não é um problema só de Angola, ou Moçambique; trata-se de uma conjuntura global e que, como tal, deve ser lida dentro da própria época e no âmbito da dinâmica que hoje se vive.

C. Fortuna – Mas a crítica é inegavelmente um barómetro que ajuda a medir a qualidade literária. E como a literatura é um produto vendável, surge o problema da aceitação das editoras. Não é fundamental a crítica literária, que serviria de garante para o êxito deste processo? N. Ngomane – De facto, é um elemento fundamental. Mas quanto é que ganha um critico por escrever um texto de critica? Deixa de fazer as suas coisas, escreve um texto crítico... e não recebe nada por isso. Não será, este, um grande problema? Porque as restantes profissões são pagas para fazerem o que estão a fazer. Quem é que paga a crítica? Quem respeita a critica? Quem dá valor à crítica? As pessoas pedem sempre para fazer um prefácio, uma apresentação dos seus livros. Quanto se ganha por isso? Imaginam quanto se despende para fazer isso? A sociedade valoriza a crítica? Até que ponto? Estas coisas devem ser vistas também de uma outra forma. Já houve tempos em que se vestia a camisola porque se gostava; basta ver como se fazem

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as transacções dos futebolistas. A dinâmica é outra, não vamos pensar num trabalho de crítica literária hoje, nos anos dois mil (em que as pessoas lutam para sobreviver), com a crítica que se fazia nos anos idos. Talvez seja necessário repensar um pouco isso, porque temos de facto bons críticos. Em Moçambique, falar de um Lourenço de Rosário, um Gilberto Matusse, Teresa Manjate, Francisco Noa, é falar de bons críticos. Estes dão aulas de literatura, prefaciam e apresentam livros. E isso está aí... é público.

C. Fortuna – Qual o papel que as Faculdades de Letras podem jogar para garante do desenvolvimento dos estudos literários e da critica? N. Ngomane – Esse papel é o papel geral, ou global, de uma universidade: conferir qualidade aos seus cursos. No caso da literatura, é evidente que queremos o melhor para os nossos estudantes. Queremos que eles conheçam os textos, conheçam os mecanismos para a sua compreensão e análise, sejam capazes de interpretá-los de forma adequada, vendo neles representações simbólicas das dinâmicas sócio- culturais e históricas. É papel das faculdades oferecer um ensino de qualidade, oferecer instrumentos de qualidade que possibilitem análises e pesquisas e, inclusive, processos de ensino e aprendizagem baseados na leitura de textos literários. Creio que é fundamentalmente isto que devemos oferecer e é o que temos estado a tentar, de alguma forma, oferecer.

C. Fortuna – Falou de ensino de qualidade. Recordamo-nos de que alguns, nostálgicos, dizem que nos anos oitenta havia textos de melhor qualidade, porque muitos dos escritores e dos que trabalhavam nos textos literários tinham uma base de formação colonial... N. Ngomane – É uma leitura parcial. Absolutamente parcial. Há outros elementos e factores que não têm nada a ver com o facto de se vir, ou não, de uma escola colonial. Há questões mais conjunturais, como por exemplo o facto de a maior parte dos docentes (pelo menos na minha Universidade é assim) serem assistentes estagiários, ou assistentes apenas; isto já é um elemento que coloca em cheque a própria qualidade do ensino universitário. Sabemos que a norma geral é que o docente universitário tenha o título de Doutor – porque este título, de alguma forma, implica uma experiência, implica uma leitura dos fenómenos de forma diferente. A gente cai um pouco no absurdo, quando um sujeito que termina hoje o nível secundário, amanhã está a dar aulas nesse mesmo nível. Não há aí nenhuma diferença. É lógico que aí se descubram, depois, zonas de fraqueza. O mesmo acontece no ensino universitário, ou seja, há outros elementos, outros factores de ordem social, e até de ordem económica e cultural que interferem – e não apenas a questão da qualidade, como um elemento isolado, um elemento que possa ser visto à parte. Há vários outros elementos que devem ser levados em conta na avaliação desta qualidade. Por outro lado, não é só a nível da literatura que esta qualidade baixou. Posso me dar a liberdade de dizer que há uma “inflação” de formações. A qualidade que tem a Licenciatura de hoje não tem a mesma que tinha a Licenciatura há dez anos, e isso não tem a ver com o facto de se vir de uma escola do período colonial ou não. O valor que se atribui hoje a um Mestrado não é o mesmo que se atribuía há dez ou vinte anos atrás (e estou a falar dos anos noventa e não dos anos oitenta). Portanto, é toda uma dinâmica social que não pode ser ignorada quando vamos fazer uma análise profunda dos fenómenos sociais, há toda uma série de elementos comprometidos com a dinâmica social de hoje, que é uma outra dinâmica. Estamos numa fase de mudança de paradigmas e, se calhar, ainda não percebemos que o que está a acontecer são

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mudanças de paradigmas e não falta de qualidade como tal. Essas mudanças podem ter implicações não apenas no desempenho de certas áreas como na capacidade de visão de certas pessoas, relativamente a certas coisas, pessoas se calhar guiadas por um certo conservadorismo bastante fixo, onde o valor de uma Licenciatura de hoje não é seguramente o valor de uma Licenciatura de há dez anos, o valor de uma quarta classe de hoje não é o valor da quarta classe de há dez anos, assim como não é o mesmo valor que tem o ensino médio hoje. Quais são os argumentos em relação a isto? É porque a Licenciatura de hoje, o nível médio de hoje ou a quarta classe de hoje não vêm da escola colonial? De vez em quando também gosto de colocar veneno em algumas coisas; mas envenenar desse jeito não funciona. É uma mudança paradigmática: a universidade de hoje é diferente da universidade de há algum tempo atrás. O processo de Bolonha tem a ver com o quê? Tem a ver com o ancoramento de um processo colonial? Claro que não! Há toda uma mudança global. A crise mundial tem a ver com o quê? É preciso perceber esta mudança num processo dialéctico global e tentar encaixar todos estes elementos que são bastante vulneráveis a esta dinâmica de hoje. Vejo as coisas desta forma. Há sectores mais vulneráveis e outros menos, relativamente às dinâmicas de hoje. Não creio que tal vulnerabilidade, necessariamente, tenha a ver com a mudança de um período colonial para um período não colonial, e que o período não colonial seja mais fraco.

C. Fortuna – Qual é o papel que as editoras nos nossos países devem jogar, na publicação de autores e obras literárias? N. Ngomane – Não percebo nada de editoras, logo, não estou em condições de responder a esta pergunta. Penso que esta pergunta deve ser feita às editoras ou às instituições que ditam as políticas do livro.

C. Fortuna – Existem casos no mundo em que as universidades têm as suas próprias editoras. As regras destas editoras devem ser necessariamente as mesmas das editoras independentes? N. Ngomane – Penso que não. Penso que a obrigação de uma editora universitária é editar trabalhos universitários, fundamentalmente. Se tiverem espaço para editar outras coisas, podem editar; mas fundamentalmente a sua missão é editar trabalhos científicos produzidos na universidade. Entendo as coisas dessa forma, embora nem sempre seja assim. No caso da Universidade Eduardo Mondlane, temos uma imprensa universitária que poderia editar os nossos trabalhos universitários; mas ainda não há uma política que permita isso, que permita que essa imprensa publique textos produzidos pela própria universidade – e os há bastantes. Digamos que esta seria a primeira obrigação desta imprensa universitária, editar os textos universitários: as teses de Doutoramento, de Mestrado e de Licenciatura, artigos diversos, resultados de diversos estudos e pesquisas, que deviam ser publicados. Várias imprensas universitárias (prefiro o termo imprensa universitária do que editoras), noutras partes do mundo, publicam os trabalhos universitários. Algumas, como a da Universidade de São Paulo, ou da Universidade Federal de Minas Gerais, e várias outras, têm como primeira prioridade a publicação de trabalhos universitários, numa perspectiva de divulgação dos trabalhos científicos, dos trabalhos académicos. Acho que esta é a obrigação das imprensas universitárias, que nós deveríamos abraçar com muita força, tendo em vista a divulgação dos trabalhos que temos, mesmo até para estimular a produção de mais conhecimento dentro das nossas universidades.

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C. Fortuna – Moçambique já tem um estudo da história da literatura moçambicana? N. Ngomane – Depende do que isso possa significar. Há textos que fazem referência a isso. A professora Fátima Mendonça tem textos sobre isso, e tem-se dedicado bastante ao processo de ensino da literatura numa perspectiva histórica. Tem uma série de textos que nos têm servido de suporte para o ensino da história da literatura moçambicana. Os programas de ensino têm enfocado esta perspectiva histórica. Não temos uma história da literatura moçambicana, como temos por exemplo os volumes da história de Moçambique. Não temos isso, o que também tem a ver um pouco com o facto de a nossa literatura ser uma literatura nova, o facto de termos ainda, de alguma maneira, um grupo de docentes de literatura ainda muito escasso e haver várias outras prioridades que vêm concorrendo os espaços a serem trilhados. Talvez não tenha chegado, ainda, o momento de uma história da literatura moçambicana com essa dimensão de um manual, de facto, de História da Literatura Moçambicana.

C. Fortuna – Fizemos esta pergunta porque, em 2005, o governo angolano criou uma comissão multidisciplinar de especialistas nacionais e estrangeiros para trabalharem na História da Literatura Angolana, que tinham como meta entregar o primeiro draft em 2009. Estamos em 2011 e ainda não se apresentou esse draft. Será que é uma tarefa muito complexa fazer um estudo exaustivo da literatura angolana? N. Ngomane – Não há tarefas fáceis. Não há nenhuma tarefa fácil. Você está aqui a fazer esta entrevista; não vai dizer que esta tarefa é fácil. Conduzir um carro na rua não é uma tarefa fácil; ir à escola com cinco ou sete anos não é uma tarefa fácil; não existem tarefas fáceis. Por outro lado, acredito que não será má vontade da equipa que foi indicada fazer esse estudo, que faz com que não haja respostas. Acredito que existam razões para uma ideia desta dimensão, existem certamente razões bastante profundas que seria interessante a gente saber, ao invés de especularmos. Quer dizer, se eu quero falar de um determinado grupo social, de um determinado povo, de um determinado grupo de pessoas, convém que me situe na perspectiva dessas pessoas, que esteja dentro destas pessoas para poder falar de facto, com conhecimento de causa, sobre estas pessoas. E como não conheço efectivamente ninguém dessa equipa e não sei quais são as razões que estão por detrás do atraso desse processo, se são razões de ordem profissional, se são razões de ordem económica, se são razões de ordem cultural, ou se são razões de ordem ideológica, não sei quais são as razões, várias razões podem estar na peneira, relativamente ao atraso desta resposta. Como não sei quais são essas razões, prefiro não me pronunciar, para não correr o risco de cometer barbaridades.

C. Fortuna – Professor, gostava de ouvir o seu argumento de razão em torno dos termos angolanidade, moçambicanidade ou cabo-verdianidade. Podem-se abordar as nossas literaturas nestes termos? N. Ngomane – Acredito que sim, que é possível falar-se de uma moçambicanidade literária, da mesma maneira que falamos da nacionalidade moçambicana, que digo que sou moçambicano e você é angolano. A mesma perspectiva permite que a gente fale de uma literatura moçambicana, de uma canção moçambicana, de uma obra moçambicana, de uma pintura moçambicana, de uma escultura moçambicana, de um teatro moçambicano. É possível, sim. Claro que isto não se faz da mesma maneira que a gente fala de uma madeira moçambicana que é um objecto concreto, não é? Como um tipo de árvore que nasce em Moçambique e que só lá é que nasce; não é nesta perspectiva. Mas numa perspectiva mais ampla, numa perspectiva daquilo que nós, em literatura, chamamos conceito aberto. E o que é um conceito aberto? É um conceito

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que está sempre pronto a receber qualificações e pronto a perder qualificações. Porque a ideia de moçambicanidade, angolanidade, portugalidade, brasileiridade… é uma ideia que está em permanente construção. Enquanto a gente estiver viva, está a construir isso, de acordo com a nossa visão do mundo, a nossa maneira de ser, a nossa maneira de falar, o jeito como a gente usa as palavras, o reaproveitamento que a gente faz das palavras. Talvez isso torne Mia Couto mais moçambicano do que outra coisa, embora escreva de forma similar a João Guimarães Rosa e Luandino Vieira; Virgínia Wuollf, Joyce, Proust, Faulkner… Mas cada um destes consegue ser aquilo que é: o Luandino, angolano; o Cuoto, moçambicano; o Guimarães, brasileiro; o Faulkner, americano; o Joyce, irlandês. Mas todos trabalham daquela forma. O que é que faz com que façam isso? Há um toque especial e bastante específico, que os torna diferentes uns dos outros. Isso é que faz a moçambicanidade. Mas não é uma coisa permanente e fixa, nem é concreta; é algo abstracto, algo presente no nosso imaginário e que nos acompanha, conferindo-nos esta diferença, permitindo-nos dizer: eu não sou sul-africano, swázi, zimbabweano, malawiano nem tanzaniano, que fazem parte da minha região. Não sou nenhuma destas coisas, sou moçambicano. E quando saímos para o exterior e vemos um grupo de pessoas que tem a ver connosco, rapidamente identificamos esse grupo, olhamos e dizemos logo: Aqueles são moçambicanos. Há alguma coisa que conseguimos atingir e capturar na abstracção do nosso imaginário e que permite isso. Portanto, não vejo nenhuma dificuldade em se falar de uma portugalidade, uma moçambicanidade. Esta coisa existe, mas de forma sublime, que só é possível aferi-la a partir do nosso imaginário, da nossa capacidade de olhar, ver e interpretar as coisas.

C. Fortuna – Até que ponto é que a língua portuguesa falada hoje em Angola, Cabo Verde, Guiné, Moçambique e São Tomé terá galvanizado o enriquecimento da língua portuguesa em geral? N. Ngomane – Não sei exactamente. Fala-se muito desta ideia do enriquecimento da língua portuguesa de uma maneira geral. Não sei se, de facto, estamos a enriquecer a língua portuguesa de forma geral, ou se estamos a enriquecer as nossas próprias culturas, individualmente, enquanto Moçambique, enquanto Cabo Verde… É só olharmos para o Brasil: damo-nos conta de que o Brasil realizou certas transformações na língua portuguesa, naquilo que podíamos chamar de base da língua portuguesa, a norma europeia. Hoje há várias modificações introduzidas pelos brasileiros e que não foram, necessariamente, absorvidas pela norma portuguesa, ou europeia. Então, em que medida é que significa enriquecer à língua portuguesa? Talvez se pudesse falar do enriquecimento da língua portuguesa se essas transformações operadas pelos brasileiros entrassem, de facto, no sistema linguístico da língua portuguesa. Penso que há aqui uma mudança no sentido de perspectivar a existência de uma língua portuguesa brasileira, uma língua portuguesa moçambicana, uma língua portuguesa cabo-verdiana. Tenho a impressão que, por vezes, temos medo de falar disto. Qual é o problema? Os americanos têm uma língua inglesa que não é aquela dos ingleses. Qual é o problema? Cada espaço de língua inglesa tem o seu próprio espaço de língua: os ingleses têm uma série de dificuldades de entenderem e discutirem com os americanos, nessa perspectiva de língua, porque estes inventaram uma outra forma de falar inglês. Porquê que nós não podemos abordar mais profundamente esta questão? Em Moçambique temos uma linguista, a Perpétua Gonçalves, que tem estado

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a trabalhar na perspectiva ideal, em termos de leituras das regras sintácticas, das regras morfológicas, na perspectiva de uma língua portuguesa de Moçambique, que ela chama português de Moçambique. Trata-se de uma variável que está ganhar contornos que mostram que se está a sedimentar lá uma língua que, tendo nascido daquele tronco, tem estado a ganhar a sua própria autonomia. Com as literaturas deu-se a mesma coisa: as nossas literaturas, como diz muito bem António Cândido, nasceram da literatura portuguesa, constituindo suas ramificações. Mas foram ganhando a sua autonomia, até se cortar o cordão umbilical. Não será isto que está a suceder à língua? Deixo para os linguistas a resposta para esta questão. Esta coisa de enriquecer a língua, o que é? Parece haver aqui uma tendência a um espírito agregacionista. A ideia da liberdade e da independência, da diversidade, é fundamental e enriquece – se olharmos para o enriquecimento da língua nesta perspectiva, em que ela vai autonomizando os seus filhotes, para eles crescerem e se autonomizarem relativamente à língua mãe, como ocorreu com a língua inglesa nos Estados Unidos. Mas se formos a pensar o enriquecimento da língua como reenvio, realimentação de uma língua mãe, acho que esta realimentação não existe. Exemplo disso é que aquela forma de falar que os brasileiros usam não é recuperada na Europa; e a forma de falar dos angolanos... há uma e outra palavra que a gente encontra, uma espécie de modismo, não é? Uma palavra que se usa, por exemplo, é bué, que é tipicamente angolana, usada em Portugal. Mas olho para este fenómeno como um modismo, não propriamente como uma absorção da palavra. Maningue, uma palavra moçambicana, também se usa; mas também como um certo modismo, não havendo uso generalizado. Se houvesse esta tendência, de uso geral... Há toda uma infinidade, milhões de palavras, milhões de expressões, milhões de formações sintácticas que são produzidas pelo povo brasileiro que teriam entrado na norma europeia; e não entraram nem estão a entrar. Aliás, aproveito a ocasião para dizer que acho absurda a ideia dos novos acordos ortográficos, um absurdo autêntico, porque há questões mais candentes em cada uma das nações, para serem resolvidas, do que tentar uniformizar uma coisa que não se uniformiza. Por que não vamos optar, tranquilamente, pela forma como optaram os ingleses, os brasileiros? Os americanos criaram a sua língua, têm lá a sua língua; há dificuldade de comunicação, mas entendem-se. Por que se tem que uniformizar? Isto não é possível; temos questões mais candentes internamente, relativamente a esta língua. Seja em Portugal, seja em Angola, seja em Moçambique, em Cabo Verde ou na Guiné, são questões que devem ser sistematizadas e estudadas. Agora vamos uniformizar uma coisa que não conhecemos? Quem propõe este acordo ortográfico conhece muito bem as tendências, as perspectivas e manifestações da escrita em Moçambique? Da escrita em Angola? Isto entrou na balança? Acho um absurdo. Sou pela liberdade absoluta do falante, porque quem produz a fala é o falante e não uma meia dúzia de linguistas que vão produzir uma lei de como é que se vai falar. Acho que o falante é que faz a língua e o gramático tem apenas a obrigação de descrever como o falante fala, como o falante a usa, e não criar regras de uniformização. Deveríamos repensar, por exemplo, porquê que havendo uma tendência cada vez mais galopante de se usar uma variante do português de Moçambique, ou de Angola, continuamos a submeter as crianças a avaliações com base numa norma que não usam e que desconhecem. Acho que este seria um grande problema a ser debatido e a ser colocado na balança neste momento, e não tentar criar um acordo com algo que muita gente até desconhece. Há muitos absurdos nesta história do acordo ortográfico.

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Têm aparecido textos que mostram alguns desses absurdos, na queda das consoantes disto e daquilo; quer dizer, há absurdos que acho que não foram pensados, criaram-se leis a partir de generalizações em situações que deveriam ser olhadas de forma bastante excepcional, que acabam trazendo absurdos ilógicos.

C. Fortuna – Que importância a literatura oral deve jogar nos nossos países, até em função da oralidade que é característica do nosso continente? N. Ngomane – Todas as sociedades partem de uma situação de oralidade, para chegarem a uma situação de escrita. Todas as sociedades têm, de alguma forma, uma componente de literatura oral. E esta, tal como a oralidade, é parte fundamental da cultura de qualquer sociedade, devendo-se tirar o máximo de proveito dos seus sistemas na construção da nação, dos novos sistemas culturais. Mesmo porque a literatura escrita, a música, o canto, o teatro têm tirado proveito do sistema da oralidade, inclusive do próprio sistema da literatura oral. As linguagens diversas que existem, não só na literatura oral, como também na oralidade, são fontes fundamentais para a produção de sistemas estéticos, das nossas representações culturais – seja ao nível da música, da literatura, do teatro, do cinema ou da dança. Há todo um manancial dos nossos sistemas de oralidade, com as suas diversas linguagens, que deve ser reaproveitado para produzir novas realidades culturais, novas realidades sociais, novas realidades didácticas, enfim, novas realidades de tudo e mais alguma coisa. Neste sentido, acho que vale a pena prestar atenção a estes sistemas literários e tirar proveito do que existe de bom para produzir novas coisas, um pouco na senda daquela máxima da física: no mundo nada se perde, nada se cria; tudo se transforma.

C. Fortuna – Gostávamos de ouvir a sua virtude de razão, relativamente à defesa da ideia de que as nossas literaturas deviam ser escritas nas nossas línguas nacionais… N. Ngomane – É um tópico bastante polémico, e não é uma polémica de agora, é uma polémica antiga, dividindo uma série de estudiosos. Woly Soyinka, por exemplo, defende que cada um deve escrever na língua em que se sente melhor. Concordo com ele e com as pessoas que assim fazem. Lembro-me de que Fernando Pessoa escreveu uma série de textos em inglês. E devia sentir-se bem, escrevendo em inglês. Vários outros autores escolheram uma língua para escrever. Lembro-me do caso de Ngungi Wa T’hiong, um escritor queniano que optou por escrever em kikuyo. Ngungi defende categoricamente que o africano deve escrever nas suas próprias línguas. Só que é a tal coisa… como a gente encaixa isto, numa situação em que intervêm vários e diversos outros factores? Ngungi escreve em kikuio, mas quer ser lido por gente que não lê kikuio, quer ser lido em Moçambique, por exemplo. Qualquer escritor quer ser lido e o meio kikuio é reduzido; ele escreve em kikuio e depois tem que traduzir as obras para inglês. Não sei se isto é tão confortável. Há vários outros factores que impedem que esta ideia, que é uma ideia natural, se cumpra cabalmente. Uma literatura deve falar a sua própria língua, mas os ventos da história mudaram esta lógica. Porquê que não estamos aqui a fazer esta entrevista na minha língua materna? Seria interessante! Mas como é que você, que é mucuvale ou umbundu ou kimbundu, como é que você que não fala xithswa, a minha língua materna, vai se entender comigo? A lógica da apropriação da língua portuguesa pelos movimentos de libertação africanos (a FRELIMO, o MPLA e o PAIGC) foi uma apropriação não só lógica, mas estratégica, de acordo com a realidade histórica, numa situação em que cada um de nós fala uma língua diferente. É natural que cada um de nós tivesse uma estratégia

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que nos permitisse comunicar completamente; essa estratégia foi a apropriação da língua portuguesa, que foi uma ideia fantástica! Posso ler Mia Couto da maneira como o meu irmão angolano lê Mia Couto, o meu irmão cabo-verdiano lê Mia Couto. Se eu escrevesse em xithswa ou em ronga, talvez houvesse problemas para ser entendido; só se tivesse que investir, como faz Ngungi, numa tradução. Teria dificuldades em ser lido. É uma questão bastante polémica; mas faz sentido pensar que deveríamos escrever nas nossas próprias línguas, como a literatura inglesa fala em inglês, a francesa fala em francês. É preciso reparar que as literaturas americanas não falam as línguas ameríndias, a literatura brasileira não fala tupi, não fala tupinambá e por aí fora. Têm uma realidade histórica que é, mais ou menos, similar às nossas, com a diferença fundamental de que nós não fomos dizimados como o foram os índios. Mas existe esta lógica de usar esta língua da qual nós nos apropriamos ou, como diria Luandino Vieira, este troféu de guerra. Nós temos este troféu de guerra, a língua portuguesa. E, como diz o meu conterrâneo Luís Bernardo Honwana, esta língua já não é pertença absoluta e exclusiva dos portugueses. A língua portuguesa também é nossa. Então, nós podemos escrever livremente em língua portuguesa.

C. Fortuna – Vem agora a questão da tradução. Ou seja, se o autor domina uma determinada língua nacional, mas tem que escrever em português, não há o risco de se perder alguma originalidade? N. Ngomane – Existe essa possibilidade. Mas acontece que a maior parte dos escritores, mesmo aqueles que escrevem na sua língua materna (sendo esta uma língua bantu), tem domínio perfeito da língua portuguesa. É o caso de Ngungi, que tem domínio perfeito da língua inglesa. Aliás, o grande paradoxo de Ngungi é escrever em kikuyo (porque faz questão de escrever em kikuyo) e estar radicado na Inglaterra. Quem defende que deve escrever na sua própria língua devia estar na sua própria terra; ou não? Isto é um paradoxo, que tem a ver com estas dinâmicas de hoje, tem a ver com o contexto de hoje. É um pouco aquele jogo do Velho e o mar, no célebre romance de Hemingway: quando é para dar corda, você tem de dar a corda; quando é para puxar a corda, a gente tem de puxar a corda. É um negócio de tolerância, diálogo. Dialogamos permanentemente com os ambientes, com os momentos históricos. E esta coisa do diálogo não é apenas uma questão de comunicação entre pessoas; o diálogo é uma questão também de comunicação com o meio que nos cerca, com a cultura, com as circunstâncias, com as situações. Dialogar sempre com elas. Deve haver sempre um espaço de negociação, permanentemente, sem “fixismos”. Tem que haver um espaço de negociação permanentemente, um espaço de diálogo permanentemente, exactamente para não entrar neste tipo de paradoxo: vou escrever em ronga, mas vou morar na “metrópole”. Não tem uma coisa a ver com a outra.

C. Fortuna – Para terminar, gostaria que nos deixasse um conselho, para as pessoas que gostavam de navegar para o mundo da escrita, dos estudos literários e, sobretudo, da crítica. N. Ngomane – Muita leitura. Muita leitura, muita leitura, muita leitura. É preciso ler muito. Para fazer um texto de crítica literária é preciso ler. É preciso conhecer muito bem o texto que a gente vai analisar. E é preciso, também, conhecer muito bem os instrumentos de análise, outros textos que nos fornecem instrumentos para projectar outras possibilidades e os textos que fornecem elementos para darmos os pontos de saída. Por isso, é preciso ler, ler e ler muito! É o grande conselho que se dá para se fazer crítica literária.

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NOTAS

1. A presente entrevista foi inicialmente publicada no Semanário Angolense (Luanda), nº 413, de 23/4/2011, pp. 39-40 e nº 414, de 30/4/2011, pp. 42-44. Retomamo-la aqui, com a devida vénia e agradecendo a disponibilidade manifestada pelo Director desse jornal, Salas Neto. 2. Instituto Superior de Ciências de Educação de Luanda (ISCED de Luanda). 3. Leia-se tchitsua. 4. Leia-se tchopi.

AUTORES

NATANIEL NGOMANE Doutor em Estudos Comparados de Literatura pela Universidade de São Paulo e licenciado em Linguística pela Universidade Eduardo Mondlane. Professor na Universidade Eduardo Mondlane, sendo Director da Escola de Comunicação e Artes. É Professor Visitante na Universidade de São Paulo (Brasil), Universidade do Minho, Universidade de Coimbra e Universidade de Trás-os- Montes (Portugal), Universidade de Bayreuth (Alemanha), Universidade de Nottingham (Reino Unido) e Instituto Superior de Ciências da Educação de Luanda (Angola). [email protected]

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Ana T. Solano-Campos entrevista Donaldo Macedo - Repensando a Pedagogia Crítica: Para além da decepção dos liberais1,2

Ana T. Solano-Campos e Donaldo Macedo

NOTA DO EDITOR

Fonte: http://nnest.blog.com/2011/02/28/donald-macedo/ Data: 1 de Março de 2011

1 Donaldo Macedo é professor de Inglês e Distinguished Professor de Artes Liberais e Educação na University of Massachusetts, Boston. É director do Departamento de Linguística Aplicada na University of Massachusetts, Boston. Tem publicados mais de 100 artigos e livros nas áreas da linguística, literacia crítica e educação multicultural. As suas publicações incluem Literacy: Reading the Word and the World (com Paulo Freire, 1987), Literacies of Power: What Americans Are Not Allowed to Know (1994), Dancing With Bigotry (com Lilia Bartolome, 1999), Critical Education in the New Information Age (com Paulo Freire, Henry Giroux e Paul Willis, 1999), Chomsky on Miseducation (com Noam Chomsky, 2000), The Hegemony of English (com Panayota Gounari e Bessie Dendrinos, 2003, traduzido e publicado em língua portuguesa por Edições Pedago, 2006), Howard Zinn on Democratic Education (com Howard Zinn, 2005, traduzido e publicado em língua portuguesa por Edições Pedago, 2007). The Globalization of Racism (com Panayota Gounari, 2005), Media Literacy (com Shirley Steinberg, 2007) e Ideology Matters (em co-autoria com Paulo Freire, a publicar). Estes trabalhos foram traduzidos e publicados em Cabo Verde, Grécia, Itália, Japão, Portugal, Espanha e Turquia. Donaldo Macedo recebeu uma das mais prestigiadas distinções no campo da educação, quando foi seleccionado para o Laureate Chapter of Kappa Delta Pi – International Society in Education. Entre outros que receberam esta distinção contam-se Albert Einstein (1950),

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Walter Lippman (1960), Margaret Mead (1962), Charles E. Skinner (1966) e Jean Piaget (1974). Esta distinção internacional reconhece os contributos académicos de Donaldo Macedo ao longo da sua carreira, bem como a influência que o seu trabalho tev,e tanto nos Estados Unidos como noutros países do mundo.

Solano-Campos – Em Literacies of Power (1994), você relata de forma cândida as suas experiências enquanto crescia nos Estados Unidos como aluno bilingue. Descreve o impacto que tiveram em si os seus professores, fosse pela via de uma pedagogia da exclusão ou de uma pedagogia da esperança. Fala também da luta para ter voz. Pode partilhar connosco algumas dessas experiências? D. Macedo – Permita-me começar por dizer-lhe que é com muita honra e humildade que respondo ao convite para ser entrevistado num fórum que chegará a milhares de professores que podem realmente fazer a diferença nas vidas de inúmeros estudantes imigrantes, cujos sonhos, aspirações e desejos acabam muitas vezes encurralados nas barreiras transitórias da língua inglesa. Digo transitórias porque todos sabemos que com oportunidades adequadas e uma boa instrução todos os alunos imigrantes podem aprender inglês, uma vez que, como a investigação nos mostrou, aquilo que distingue os seres humanos de outros animais é precisamente a sua capacidade para aprender línguas, não apenas uma língua materna, mas também outras línguas. O mito segundo o qual os americanos não são bons na aprendizagem das línguas está muito mais relacionado com atitudes sociais do que com as capacidades biológicas com que nascem todos os seres humanos. É extraordinário observar como na maior parte dos países africanos, mesmo as pessoas que foram excluídas da educação escolar falam duas ou mais línguas. E naqueles que costumam ser referidos como os “países mais desenvolvidos”, como são a Alemanha e a Suécia, a maior parte dos alunos que terminam o Ensino Secundário falam fluentemente várias línguas. Na realidade, nestes países considera-se que uma pessoa não teve uma educação adequada se falar apenas a sua língua nativa. É minha intenção com este exemplo destacar o impacto que as atitudes sociais têm no ensino e na aprendizagem das línguas. Tenho a certeza de que os americanos não sofrem de nenhuma perturbação genética que os torne inaptos para a aprendizagem de outras línguas. O que é determinante, isso sim, é a falta de interesse que existe nos Estados Unidos relativamente a outras línguas. Este desinteresse deve ser compreendido no contexto de uma xenofobia generalizada que constantemente molda o diálogo nacional e que faz com que a língua seja agora o último reduto no qual é possível praticar o racismo com total impunidade. Dito de outra forma, em vez de o uso obrigatório e exclusivo do inglês nas escolas ser compreendido como uma clara violação do direito dos alunos desenvolverem a literacia na sua própria língua, é promovido como sendo para o seu próprio bem. O que importa destacar aqui é a estreita ligação entre as políticas English Only e a lei anti-imigração que legaliza a elaboração de perfis raciais e promove, por exemplo, a extinção dos estudos étnicos, como sucedeu no Arizona. Como reagiriam os americanos brancos se no Arizona se propusesse extinguir os programas em estudos da mulher? Isto não é algo tão irrealista quanto se possa pensar, se tivermos em consideração as declarações de Antonin Scalia, do Supremo Tribunal de Justiça, quando afirmou recentemente que “os direitos da mulher e os direitos gay não estão protegidos pela constituição dos Estados Unidos”. Perante um cenário de discriminação linguística e cultural, a maior parte dos alunos imigrantes não se sente confortável, tanto nas escolas como na sociedade americana. Portanto, os professores que se consideram agentes de mudança e que querem

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realmente marcar a diferença nas vidas dos seus alunos devem ter em conta na sua pedagogia questões de discriminação linguística e cultural. Se aceitarmos que a motivação constitui um dos factores mais importantes na aprendizagem de uma segunda língua, então os professores devem compreender criticamente que uma sociedade que é pouco amistosa para os seus imigrantes não deve esperar que esses mesmos imigrantes estejam altamente motivados para abraçar uma cultura que, para muitos deles, particularmente os imigrantes negros, desvaloriza a sua identidade cultural, a sua língua e, com demasiada frequência, a sua dignidade. Sempre me senti perplexo e desalentado enquanto me esforçava para aprender inglês, porque embora ingenuamente acreditasse no mito de que os Estados Unidos eram um país de imigrantes que garantia abrigo, igualdade e liberdade, nunca me senti livre para falar abertamente na minha língua nativa, particularmente em contextos institucionais. A minha cultura cabo-verdiana era sumariamente desvalorizada perante a constante pressão para assimilar, o que contradizia os ideais de democracia, igualdade e liberdade. Por outras palavras, é um oximoro celebrar os ideais da democracia numa sociedade que te pressiona constantemente para que deixes de ser quem és, a fim de que possas ser. Ou seja, tu és ok, desde que sejas igual a todos os outros e aceites cegamente os seus valores, mesmo que esses valores signifiquem a acomodação de atitudes racistas e a desistência da tua língua e da tua cultura. Na verdade, pouco existe no currículo escolar que permita aos alunos imigrantes tomar consciência da ambivalência das suas almas culturalmente fragmentadas que anseiam por compreender o sentido agridoce da existência na diáspora. Pouco existe no currículo escolar que permita aos alunos imigrantes recapturar momentos da sua infância, que permanece congelada no tempo e no espaço. Pelo contrário, o que o currículo proporciona é um processo de assimilação forçada que reflecte os valores dominantes na sociedade, o que é praticamente um genocídio cultural desenhado para garantir ao grupo cultural dominante a consolidação da sua hegemonia cultural. Trata-se de um processo que, de acordo com Amílcar Cabral, consegue impor-se de forma bem sucedida sem difamar a cultura das pessoas dominadas, ou seja, consegue harmonizar a dominação económica e política dos grupos imigrantes com a sua personalidade cultural. A triste realidade é que mesmo quanto uma pessoa assimila cegamente os padrões culturais dominantes, desiste de praticamente todos os seus valores culturais e fala inglês perfeitamente, nunca é realmente aceite como um verdadeiro americano, particularmente se não for branco. Esta total fala de aceitação é, por exemplo, normalizada na própria língua inglesa quando requer a utilização de um hífen para se referir a outros grupos étnicos e culturais não brancos. São comuns as expressões Afro-americanos, Latino-americanos, Sino-americanos, entre outras, para se referirem a determinados grupos de americanos. Pelo contrário, ninguém fala, por exemplo, em Euro-americanos, Germano--americanos, Anglo-americanos ou Belgas- americanos. Por outras palavras, o processo de assimilação está repleto de falsas promessas que ocultam as suas limitações. As falsas promessas são inerentes ao mito segundo o qual a pessoa apenas se tornará verdadeiramente americana depois de renunciar à sua cultura e à sua linguagem e de se sujeitar ao processo e assimilação. Um mito que cai por terra pela divisão étnica e racial produzida pelo próprio uso da língua inglesa e pela contínua segregação de tais grupos não brancos. As limitações ficam demonstradas pelo facto de apenas as pessoas brancas gozarem do privilégio de

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serem chamadas americanas, sem nenhum hífen para marcar a diferença entre os brancos e uma etnia impura. A ideologia dominante que impõe uma assimilação cega precisa ao mesmo tempo que nos tornemos imunes à desumanização inerente ao uso da hifenização e que conduz à implementação de rankings éticos e raciais cruéis que moldam e normalizam a desigualdade. A hegemonia cultural torna-se bem sucedida quando as próprias vítimas dos processos de hierarquização étnica e racial os observam como naturais e necessários para caracterizar as pessoas. Agir de um outro modo, reivindicando vigorosamente o direito a ser apenas americano, sem qualquer prefixo étnico ou cultural, é interpretado como não necessário ou, quanto muito, como uma posição política que desnecessariamente confronta o grupo étnico branco dominante. A própria forma como uso a expressão “grupo étnico branco dominante” incomodará as pessoas que se julgam apolíticas e que, muito provavelmente, levantariam a seguinte questão: “O que quer dizer com grupo étnico branco dominante?” Por exemplo, apesar de o presidente Obama ser mestiço ainda assim não conseguiu escapar ao processo de hifenização destinado a menosprezar a autenticidade da sua cidadania, como ficou demonstrado pelas recorrentes questões acerca da sua naturalidade e da sua afiliação religiosa. Ainda que Obama seja o presidente dos Estados Unidos, um considerável segmento da sociedade espera que ele constantemente demonstre o seu patriotismo. O congressista Darrel Issa, da Califórnia, declarou-o “um dos mais corruptos presidentes da nossa era”, ao questionar o seu patriotismo, e Sarah Palin manteve as suas declarações segundo as quais o presidente Obama deveria pedir desculpa à nação americana. Em virtude destas contradições, os professores precisam de ensinar bem mais do que apenas noções gramaticais. Precisam de compreender e de partilhar com os seus alunos como o uso da língua promove determinados interesses, assinalando, por exemplo, a diferença e a estrangeiridade de alguém. Infelizmente, a diferença raramente é valorizada; em vez disso, é habitualmente usada para desvalorizar, demonizar e desumanizar. Na verdade, os alunos que experienciam este tipo de descriminação não conseguem simplesmente concentrar a sua atenção na correcta aquisição dos conhecimentos linguísticos. Com efeito, estes alunos são confrontados com um dilema linguístico e cultural que, como assinalou Albert Memmi de forma pertinente, consiste em fazer escolhas sem escolha, isto é, escolhas que não o são realmente, mas que são verdadeiramente impostas. Dito isto, é claro que está ao alcance deste alunos uma aprendizagem correcta da língua inglesa e um percurso académico bem sucedido, mas esse sucesso depende largamente da qualidade e humanismo dos professores que encontram no seu percurso de aprendizagem em língua inglesa. Eu tive a sorte de o meu caminho se cruzar com John O’Bryant, o primeiro afro-americano aleito para o Conselho Escolar da Escola Pública de Boston. Ele era orientador vocacional no Liceu Inglês de Boston quando eu fui lá aluno. Quando ele soube que o meu orientador vocacional me tinha aconselhado a não prosseguir para o ensino superior e, em vez disso, ingressar no Franklin Institute para me tornar reparador de aparelhos de TV, aproximou-se de mim e disse-me: “Não lhe ligues. Tu vais para a universidade. Estou mesmo irritado. Será que ele não viu as tuas notas? Vem ter comigo ao meu gabinete depois das aulas. Tu vais para a universidade”. Falar três línguas e ter boas notas não valeu de nada para o meu orientador vocacional. A única coisa que lhe interessou foi uma teoria

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sloganizada segundo a qual as minhas dificuldades temporárias com a língua inglesa se correlacionavam significativamente com a minha capacidade intelectual. É triste que o enorme abandono escolar que se verifica hoje entre os estudantes hispânicos (nalgumas áreas urbanas como é o caso de Bóston, aproximadamente 65% destes alunos abandona a escola no sexto ou sétimo ano) continue a ser uma evidência do mesmo tipo de práticas discriminatórias com base na língua, raça, etnia, género e classe social, enquanto característica marcante da cultura da maior parte das escolas públicas das zonas urbanas. Digo muitas vez que o facto de hoje ser professor e escritor foi um acidente da história por ter tido a sorte de conhecer John O’Bryant. Muitos dos meus amigos não tiveram tanta sorte e acabaram por engrossar as estatísticas do abandono escolar – um eufemismo para designar aqueles alunos que são excluídos do sistema. É por isso que eu sinceramente acredito que os professores podem fazer a diferença. Eu sou hoje quem sou, porque um professor marcou a diferença – John O’Bryant.

Solano-Campos – Num sistema em que os professores são sistematicamente demonizados, como podem os educadores contra-educar os seus alunos e criar estruturas que permitam às vozes submersas emergir [Macedo 1994: 4]? Qual é o seu conselho para as pessoas que corajosamente estão na linha da frente das nossas escolas e salas de aula por este mundo fora? D. Macedo – O meu conselho aos professores passa pela necessidade de compreenderem de uma forma crítica a relevância do seu papel. Mas não chega dizer que os professores são importantes. Ser relevante significa assumir responsabilidades muito para além do contrato de trabalho para ensinar uma disciplina. Significa estar politicamente consciente de que nem todos os alunos são tratados nas escolas com a dignidade e o respeito que merecem. Significa também que os professores entendam o facto de que existem sempre necessidades, desejos, sonhos e aspirações para além das barreiras temporárias impostas pela língua inglesa. Os professores precisam de rejeitar de forma apaixonada a desumanização das avaliações estandardizadas e denunciar que por detrás de cada ranking existem seres humanos, crianças e jovens em desenvolvimento que precisam de um ambiente pedagógico seguro no qual possam reflectir acerca das tensões, medos, dúvidas, esperanças e sonhos que são constitutivos de uma existência cultural ambivalente – uma existência que é quase culturalmente esquizofrénica. É estar presente sendo invisível, ou ser visível mas não estar presente. Isto é a vida imigrante – a constante gestão de dois mundos, duas culturas e duas línguas, sempre marcadas por relações de poder assimétricas. É um processo através do qual se aprende o que significa viver na periferia de uma íntima relação, embora frágil, entre um mundo cultural dominante e um outro dominado. Assim, a nossa missão como professores, para além do que se espera de nós e que consiste no ensino dos conteúdos curriculares, deve ser a de proteger os alunos das condições opressivas que encontram nas escolas. É nosso dever como professores proteger a dignidade de todos os alunos e impedir que se tornem vítimas de políticas educativas discriminatórias que muitas vezes encontram a sua justificação sob o manto da ciência e da democracia.

Solano-Campos – Como referiu, a demonização dos imigrantes é um fenómeno mundial e a ofensiva à educação bilingue é sobretudo política [Macedo 1994: 63]. Muito recentemente, as políticas de imigração no Arizona ressuscitaram tendências contra os imigrantes hispânicos que têm originado ataques contra estas pessoas não apenas por causa do seu estatuto imigrante, mas também devido à sua língua e à sua cultura. O encerramento dos estudos étnicos do Arizona e a ostensiva discriminação dos professores

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com sotaque hispânico são uma afronta à comunidade hispânica dos Estados Unidos e do mundo. Como é possível justificar este tipo de políticas discriminatórias, num tempo em que a diversidade mundial é um aspecto contemplado nos propósitos e declarações da maior parte das instituições? O que podem os professores e os alunos fazer? D. Macedo – Tem toda a razão. A demonização dos imigrantes é de facto um fenómeno mundial que se manifesta de formas diferentes em cada contexto e que, no caso particular dos Estados Unidos, tem uma longa história. É necessário compreender que esta ofensiva contra a população hispânica no Arizona não é muito diferente, por exemplo, da deportação de imigrantes que ocorreu em França. Devemos estar preparados para relacionar estes factos e perceber o paralelismo entre o encerramento dos estudos étnicos no Arizona e a proibição de construir uma mesquita em Nova Iorque. Estas ofensivas não são simplesmente manifestações ligadas a políticos ou grupos extremistas num determinado país ou cidade. Estas ofensivas encontram o seu papel estratégico no seio de uma ideologia racista que não está apenas confinada aos Estados Unidos, mas que é na verdade um insidioso fenómeno global. O que não podemos fazer é argumentar que o racismo é pior na Europa devido aos atentados a mesquitas ou às constantes ofensivas contra a população imigrante, racionalizando que, não obstante permaneça um problema nos Estados Unidos, as relações entre os diversos grupos raciais está muito melhor, tal como ficou demostrado pela eleição do presidente Obama, pelo que chegámos a uma nova era pós-racista. Uma análise honesta do racismo tanto nos Estados Unidos como em qualquer parte do mundo não se limita a comparar níveis de racismo em diversos contextos culturais e geográficos, mas, em vez disso, procura constantemente desvelar as estruturas ocultas do racismo que moldam a emergência de acontecimentos como os testemunhados no Arizona, em França ou na Alemanha. É necessário que compreendamos, tal como Jurgen Habermas nos sugeriu, que os países dominantes “têm permanecido envoltos em sucessivas ondas de perturbação política acerca de aspectos como a integração, o multiculturalismo e o papel da ‘Leitkulture’, a cultura nacional. Este discurso está, por sua vez, a reforçar tendências xenófobas entre a população mais alargada... que, ao longo dos anos, têm vindo a surgir de forma consistente nos estudos e dados de inquéritos que revelam uma silenciosa mas crescente hostilidade para com os imigrantes. Essas tendências encontraram agora uma voz: os estereótipos habituais estão a sair da rua e a entrar em talk shows [nos Estados Unidos temos o Rush Limbaugh e o Glenn Beck, entre outros], sendo também ampliados por políticos mediáticos empenhados em ganhar votos que começam a escapar-lhes para a direita política.” Este é o caso, por exemplo, da inesperada constituição do grupo Tea Party, nos Estados Unidos, e dos discursos viperinos sobre “recuperar a nação”, o que na verdade significa o regresso a uma ilusão ultrapassada, a de uma suposta América branca e homogénea. Dada a complexidade e a dificuldade de estabelecer relações entre o crescimento da direita política, a insegurança económica das classes média e baixa e a crescente ruína de largas camadas da sociedade norte-americana, apenas para favorecer o grotesco enriquecimento dos oligarcas, é de crucial importância compreender como a conjugação destes factores económicos e políticos contribui para exacerbar os fundamentos racistas da nossa sociedade. De acordo com o jornal The Nation, “aqueles que constituem 1% da população mais rica detêm 35% do total da riqueza do país… os 4% seguintes detêm 27% do total da riqueza. Isto significa que os 5% mais ricos detêm 62% do total da riqueza do país”.

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O grande desafio para os professores consiste em compreender como o poder dominante utiliza a educação como estratégia para a legitimação de determinadas políticas que originam um racismo descontrolado e uma verdadeira pedagogia da exclusão. Por exemplo, os professores devem compreender de que formas o racismo se manifesta nas políticas de exames eliminatórios que têm consequências desastrosas para os estudantes oriundos de grupos minoritários, uma vez que, em consequência de tais exames, acabam a engrossar as estatísticas do abandono escolar. Aqueles que não abandonam a escola acabam rotulados de alunos “como necessidades educativas especiais” ou crianças e jovens “em risco”. Aqui, “em risco” não passa de um eufemismo para categorizar os alunos pertencentes a grupos minoritários, mas, ainda assim, raramente questionamos “Quem está em risco”? e “Quem coloca estes alunos em risco?”. O que as universidades e as escolas normalmente fazem é conceber programas compensatórios desenhados por “especialistas” que proporcionam soluções educativas rápidas, deixando sem qualquer análise a ideologia que origina, molda e mantém as condições materiais opressivas que verdadeiramente colocam esses alunos em risco. Esses supostos “especialistas” em programas de prevenção de situações em risco, normalmente brancos de classe média, raramente se envolvem no estudo da realidade que concebem como sendo de risco e da ideologia que a origina, o que os desvia de um entendimento crítico da relação interdependente entre a designação “em risco” e as realidades sócioeconómica e sociocultural que a originam. Ao não questionarem as relações entre as realidades sócioeconómica e sociocultural e o rótulo “em risco”, os professores (apesar das suas boas intenções) podem muito facilmente focar a sua acção na “gestão” destes alunos em vez de na sua educação. Isso pode favorecer os interesses económicos desses professores, no entanto, em nada contribui para prevenir que esses alunos acabem por se juntar às estatísticas do abandono escolar.

Solano-Campos – Gostaria também de saber as suas opiniões sobre Paulo Freire. Como foi trabalhar com ele? Que memórias tem dele? D. Macedo – Antes permita-me aproveitar esta oportunidade para dizer que muito provavelmente eu não teria conhecido Freire se não tivesse sido a solidariedade e a generosidade do meu amigo Henry Giroux. O Henry e eu trabalhávamos na Boston University no início dos anos 80 e, porque eu falava português, ele insistiu comigo para que traduzisse um pequeno prefácio que o Paulo tinha escrito para o livro dele, Theory and Resistance. Ao contrário de muitos académicos que preservam os seus contactos privilegiados, o Henry ficou entusiasmadíssimo com a possibilidade de eu conhecer o Paulo. Ele nunca sentiu que ao partilhar o acesso ao Paulo poderia estar a diminuir a sua posição. Muito pelo contrário. Ele observou o convite que me estendeu para me juntar ao Paulo, ao Jim Bergin (o editor da Bergin & Garvey) e a outros colegas como a possibilidade de eu participar num encontro pedagógico que contribuiria para o desenvolvimento do projecto político progressista. E, de facto, o Henry estava certo. Esse jantar em sua casa, com o Paulo, eu, o Jim Bergin e outros amigos foi o princípio de uma longa e ininterrupta colaboração que deu origem à importantíssima colecção da Bergin & Garvey Critical Studies in Education, da qual o Henry e o Paulo se tornaram coordenadores – uma colecção que disponibilizou os livros do Paulo em língua inglesa e que contribuiu para o desenvolvimento das carreiras de centenas de educadores críticos que são hoje uma referência no campo. Eu traduzi o livro Politics of Education (1985) e publiquei, em co-autoria com o Paulo, o livro Literacies: Reading the Word and the World (1987) – obras que se tornaram leituras

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obrigatórias nesses primeiros anos da pedagogia crítica em meados da década de 80. Aliás, devo confessar que esse jantar organizado para o Paulo em casa do Henry foi de facto a rampa de lançamento para a pedagogia crítica na América do Norte. Muitos dos sonhos e projectos políticos que animaram a camaradagem durante aquele inesquecível jantar deram origem a participações em conferências (tanto nacionais como internacionais) e ao desenvolvimento de outros importantes projectos políticos. Lembro-me, por exemplo, da influência directa do Henry na reestruturação do Boston University Journal of Education que, antes do seu envolvimento, era considerada uma revista científica sem expressão, mas que depois se tornou numa importante publicação internacional, uma referência para os educadores críticos. Foi também devido à insistência do Henry que eu publiquei o meu primeiro artigo crítico no Boston University Journal of Education, intitulado “The Politics of an Emancipatory Literacy Program in Cape Verde”. Faço este enquadramento histórico porque existe na actualidade uma tentativa revisionista de criar uma história da pedagogia crítica na América do Norte, pelo que é importante destacar que Paulo Freire e Henry Giroux, juntamente com a colecção Critical Studies in Education, por eles coordenada na Bergin & Garvey, assim como o Boston University Journal of Education, constituíram sem dúvida alguma os alicerces daquilo que veio a ficar conhecido como pedagogia crítica. Devo também acrescentar que o Henry Giroux foi e continua a ser uma força inspiradora que apoiou e apoia jovens académicos que se têm tornado autores de referência. Acima de tudo, o Henry é um exemplo de coerência, lealdade e solidariedade – qualidades que hoje infelizmente são raras numa academia onde as leis de mercado e a sua falta de ética minaram aquilo que Edward Said insistiu ser sine qua non para os intelectuais, que têm de ser “movidos por uma determinação metafísica e pelos princípios desinteressados da justiça social e da verdade, denunciando a corrupção, defendendo os mais fracos e derrotando a autoridade opressora.”3 Voltando à sua questão relativa ao meu trabalho e colaboração com Paulo Freire, não há palavras para descrever como me sinto agradecido pela oportunidade de ter podido trabalhar com Paulo Freire ininterruptamente durante 17 anos. Eu traduzi muitos dos seus livros para inglês e fui co-autor de vários livros com ele. Não apenas aprendi imenso com o Paulo como aprendi também, através do nosso convívio, o que realmente significa estar comprometido com uma pedagogia humanizante. O Paulo era uma pessoa extremamente generosa e humilde, que tinha a capacidade de transformar todos aqueles que dialogavam com ele. Era impossível não recuperar a esperança ou não sentir imediatamente a sua aura de paz. A sua inabalável coerência era constantemente posta à prova, mas o Paulo emergia de cada desafio sempre mais generoso, mais terno e mais humano. A sua capacidade de observar a humanidade nos outros alimentava a expansão da sua própria humanidade. O Paulo era exactamente a mesma pessoa trabalhando com camponeses do Recife (no Brasil), proferindo uma conferência na Harvard University ou reunindo-se com presidentes e outros altos dignitários. A sua humanidade sempre caracterizou os nossos encontros e eu sinto-me grato por ter partilhado muitas dessas reuniões e ter testemunhado o seu profundo empenho para tornar este mundo, como ele diria, menos feio, mais justo e mais curvo. Qualquer pessoa era imediatamente cativada pela sua aura, pela sua serenidade e pela sua atenção. Ele era adorado tanto pelas crianças como pelos adultos e sempre mostrava um interesse genuíno pelas pessoas, procurando conhecê-

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las e aprender com elas, sentindo as suas dores e dificuldades e partilhando com elas a sua sabedoria e o seu amor. O Paulo tinha uma enorme dificuldade em dizer não e sempre via o melhor em todas as pessoas. As únicas vezes que o via dizer não era quando denunciava as horríveis injustiças sociais ou quando recusava comprometer a sua ética apenas para obter benefícios pessoais. Até ao final da sua vida, o Paulo manifestou-se cada vez mais preocupado com a expansão do sofrimento humano no mundo, reconhecendo que esse sofrimento deveria alimentar o que ele chamava de uma fúria justa – uma “ira justa” que ele observava como uma ferramenta não apenas importante, mas indispensável para todos aqueles que anseiam por justiça social e desejam recapturar a sua dignidade, evitando sucumbir ao cinismo, mesmo quando confrontados com injustiças e crueldades fomentadas por guerras, pelo racismo, sexismo, classismo e outras formas de opressão das quais não conseguem escapar. Apesar de sempre insistir na importância de ter “uma ira justa”, o Paulo nunca perdeu a esperança na possibilidade de mudar o mundo, apesar do quão difícil pudesse parecer. Conversar com o Paulo era sempre uma experiência transformadora porque em cada declaração sua havia algo a aprender. O seu desejo de justiça social destacava-se sempre e o seu compromisso e energia para lutar pela justiça social e pelos ideias democráticos moldava a sua forma de ser e de estar com o mundo. Foi um privilegio trabalhar e colaborar com o Paulo. Não apenas me senti enriquecido e estimulado pelas posições intelectuais do Paulo e pela sua sabedoria, mas o convívio com ele mudou a minha maneira de estar no mundo e com os outros. O Paulo tornou- se uma grande influência na minha vida e na minha busca pelo conhecimento pela forma como constantemente me desafiou a alcançar uma maior criticidade e clareza política. Apesar do convívio com o Paulo representar uma constante aprendizagem e expansão do conhecimento, o que era verdadeiramente transformador em Paulo Freire era que através da sua maneira de ser e de estar com os outros tornava-se claro o que significa realmente ser um pedagogo humanista, e isso fornecia-me instrumentos que me permitiam expandir a minha própria humanidade. Ao solicitar- me que fale acerca da minha relação com Paulo Feire concede-me a oportunidade de mais uma vez lhe agradecer por ter estado no mundo, por ter trabalhado dedicadamente em prol da transformação do mundo e por insistir que (não é demais repeti-lo) embora a transformação seja difícil, é possível tornar o mundo num local menos discriminatório, mais justo, menos desumanizante e mais humano. E que mudar e transformar o mundo envolve sempre um amor revolucionário instilado por uma “ira justa”, um ferveroso empenho, pela compaixão e por uma inabalável esperança.

Solano-Campos – Você tem um longo percurso académico e profissional e o seu trabalho é lido em todo o mundo. Além disso, colaborou com académicos estimados e respeitados em todo o mundo, tais como Howard Zinn, Giroux, Chomsky, Paulo Freire e Lilia Bartolomé, entre muitos outros. De que forma estas colaborações influenciaram o seu trabalho? Que conselhos daria a professores, a formadores de professores e académicos que anseiam por estabelecer relações que apoiem a sua luta contra a literacia para a estupidificação? D. Macedo – Sinto-me profundamente grato por ter tido a oportunidade de trabalhar e colaborar com Paulo Freire, Noam Chomsky, Howard Zinn, Henry Giroux, Lilia Bartolomé, entre outros. Estas pessoas são exemplos do que significa estar comprometido com uma pedagogia humanizante. Para além das suas áreas específicas de especialização, eles partilham a inabalável convicção de que, como uma vez disse , “todos nascemos poetas, mas a interferência das instituições

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impede-nos de continuarmos a ser poetas.” Eu poderia escrever livros sobre o que torna estas pessoas únicas e especiais, mas permita-me que em vez disso lhe diga que o que se tornou claro para mim através da colaboração com estes grandes educadores foi a sua enorme humanidade, o seu inabalável compromisso com a justiça social, a sua coragem para, como Paulo Feire diria, denunciar o que é horrível neste mundo e anunciar um outro mundo menos discriminatório, mais justo, menos desumanizante e mais humano. Ao trabalhar com eles eu percebi o verdadeiro significado e a importância da humildade e da coerência. Estas pessoas sempre agiram de acordo com aquilo que defendiam, nunca evitaram o debate e sempre expandiram a sua generosidade. As suas atitudes contrastam com aqueles académicos cujos projectos políticos consistem na constante promoção das suas carreiras o que, na verdade, os torna academicistas. Esta falta de humildade e de coerência é infelizmente encontrada também entre académicos progressistas que adoptam o marxismo como uma bandeira das suas críticas anti-sistema, mas que recusam, por exemplo, estar presentes em iniciativas promovidas pelas comunidades cujos interesses afirmam representar e defender tanto no seu trabalho e nas suas declarações públicas. Tome como exemplo o caso de uma organização comunitária que convida um conhecido professor afro-americano para falar aos membros da comunidade. Quando o jovem que está a organizar o evento tenta contactar o professor na universidade, acaba a falar com um agente que rapidamente o informa de que para ter o professor a discursar na sua comunidade será necessário pagar 15 mil dólares. Isto é chocante. O professor faz-se valer do seu estatuto de celebridade (essencialmente devido à sua raça e ao seu papel de representante dessa comunidade) para cobrar 15 mil dólares a uma comunidade conhecida pela elevada taxa de desemprego, pela pobreza e ela violência juvenil, apenas para proferir um discurso. A falta de coerência entre aqueles que designo de liberais burgueses torna-se evidente quando orgulhosamente proclamam, por exemplo, orientar alunos “de cor” (esta nomenclatura é em si mesma racista no sentido em que tacitamente assume que o branco não é uma cor, uma impossibilidade semântica). Ora, a branquitude tácita nessas declarações converte-se na medida segundo a qual são julgadas as outras “cores” nas suas instituições, ao mesmo tempo que estes liberais burgueses frequentemente fracassam na crítica ao racismo institucional que, por um lado, lhes garante os seus privilégios e, por outro, alimenta a sua necessidade de constantemente se publicitarem e de apresentarem como “salvadores” dos estudantes “de cor” através do seu mentorado. Esta falsa generosidade foi caracterizada por Franz Fannon como “racismo caridoso.”4 É falsa no sentido em que, como nos alerta Freire, este tipo de generosidade parte sempre dos “interesses egotistas dos opressores (um egoísmo encoberto pela falsa generosidade do paternalismo) convertendo os oprimidos num objecto do seu humanitarismo [não um autêntico humanismo], o que apenas mantém e enforma a opressão”. Ao passo que se envaidecem por serem mentores de estudantes “de cor”, estes liberais burgueses têm uma enorme dificuldade em trabalhar sob a orientação de pessoas de grupos minoritários que se emanciparam, apelidando essas pessoas de “ingratas”, “pretensiosas” e “irreverentes”. Para além do imensurável conhecimento que pude adquirir em virtude de trabalhar e colaborar com os educadores que mencionei anteriormente, eu recordo-me diariamente da convicção que todos eles partilhavam relativamente ao facto de os educadores deverem estar sempre vigilantes e nunca deixarem que o seu trabalho resvale para a falsa generosidade do paternalismo que caracteriza muitos liberais burgueses e fazedores do bem. Estes

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indivíduos apresentam-se como contra-sistema, mas na verdade certificam-se de que a sua posição privilegiada no seio do sistema (a mesma que denunciam com os seus discursos) nunca seja verdadeiramente colocada em perigo. Por exemplo, um liberal burguês tem um discurso público anti-racista ao passo que, simultaneamente, presta toda a colaboração aos administradores cujas políticas restringem a acção afirmativa e prejudicam os alunos, os funcionários e os professores “de cor”.

Solano-Campos – Em A Hegemonia da Língua Inglesa, o Donaldo, a Bessie Dendrinos e a Panayota Gounary discorrem acerca dos papéis da academia na promoção ou no silenciamento de discussões relativas à hegemonia e à ideologia. Uma das coisas que você refere é o facto de aparentemente existir uma separação entre a teoria e a prática, os académicos e os educadores. Refere também ao fabrico de intelectuais como celebridades [Macedo, Dendrinos & Gounary 2005]. Como pode a academia ser transformada no sentido de se comprometer com o diálogo crítico junto das comunidades sejam elas de onde forem? D. Macedo – O fabrico de intelectuais como estrelas é uma componente da estratégia ideológica neoliberal que reduz os valores às leis de mercado – leis enformadas pela ganância, pela competitividade e pela falta de ética (veja-se o escândalo Maldoff e o papel da Wall Street no recente colapso económico). Embora o carreirismo sempre tenha tido um peso importante no seio da academia, acredito que foi excessivamente estimulado pela degradação de valores, virtudes e ideais da democracia promovida pelo neoliberalismo – uma degradação que contribuiu parcialmente para a emergência de uma certa forma de carreirismo oportunista no seio da academia em que vale tudo, mesmo passar por cima de um projecto político que se proponha transformar o mundo num lugar menos discriminatório e mais humano. Reitero que embora o carreirismo faça parte daquilo que motiva a maior parte dos académicos, o aparecimento do discurso neoliberal, com argumentos como “o fim das ideologias” e a devoção à ética do mercado sobre a “ética universal da pessoa humana”, contribuiu certamente para exacerbar as contradições inerentes a esses académicos que não obstante abracem um discurso crítico pela justiça social traem-no de imediato com os seus comportamentos carreiristas – comportamentos esses que minam o projecto político que afirmam ter abraçado. Muitos académicos usam de um discurso crítico para afirmar o seu radicalismo, mas ao mesmo tempo usam-no para fomentar relações com progressistas com poder que os podem ajudar a ser publicados, a conseguir um emprego seguro ou ter acesso a altos cargos dentro e fora das suas instituições. Dominados por um carreirismo unicamente focado na obtenção de vantagens, esses académicos usam astutamente estratégias dissimuladas com vista a assegurar os seus objectivos carreiristas. Uma dessas estratégias é a sua típica atitude lisonjeira de classe média, baseada em objectivos pessoais preconcebidos e, por isso mesmo, narcisista e ferida de autenticidade. Um convite para jantar ou para participar nalguma conferencia dirigido a alguém influente, um presente injustificado ou uma pequena nota enviada a algum progressista numa posição com poder são comportamentos desprovidos de autenticidade. Estas atitudes lisonjeiras proporcionam aos académicos burgueses veículos para caírem nas boas graças de pessoas das quais dependem para progredir nas suas carreiras académicas e alcançarem posições de destaque. Quando estes carreiristas percebem que já não têm nada a ganhar com uma determinada relação privilegiada, o seu compromisso original com as lutas pela justiça social começa a adquirir alguma elasticidade ideológica, particularmente se têm a necessidade de ajustar os seus ditos princípios éticos a novos espaços nos quais querem penetrar – espaços nos quais possam

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engajar-se de forma mais pragmática em novas relações quid pro quo que agora superam as suas supostamente inabaláveis convicções pela justiça social. Esta dança ideológica manifesta-se de uma multiplicidade de formas. Quando geridos astutamente, estes carreiristas e trampolineiros ideológicos são grandemente recompensados pelo sistema dominante, que privilegia a acomodação intelectual em vez das convicções ideológicas. Ou seja, estas pessoas começam por mover-se em torno das suas supostas convicções de que o mundo deve ser transformado de forma que os ideias da democracia pregados pela academia sejam de facto constitutivos das vivências de todos os seres humanos e não apenas daqueles que se auto-proclamam ou que foram seleccionados para falar pelos oprimidos. No entanto, a acomodação intelectual proporciona a estes académicos elevadas recompensas através de financiamentos para a investigação e outras vantagens como promoções e acesso a posições de destaque. Uma rápida análise revela imediatamente quais os padrões na atribuição de financiamentos para a investigação, fundos que essencialmente controlados pelas agências governamentais e muito especialmente pelas fundações filantropo- capitalistas dependentes de grandes corporações. São muito claros os parâmetros segundo os quais se decide que tipo de investigação pode ser financiada e quais os projectos que para as abastadas fundações sem fins lucrativos não são prioritários. Por exemplo, está amplamente documentado que os grupos oprimidos estão suficientemente estudados, enquanto que a ganância obscena da tribo de Wall Street permanece sem qualquer estudo. Só o uso do termo “tribo” para designar um determinado grupo restrito de gestores financeiros é imediatamente considerado inapropriado e até mesmo provocador. No entanto, se o termo “tribo” for utilizado para designar um grupo de seres humanos em África ou na Amazónia, aí o seu uso já é considerado aceitável e absolutamente natural. Consequentemente, é normal estudar as práticas de leitura das crianças pertencentes às tribos índias Quechua, do Peru, mas é considerado inapropriado estudar as crescentes patologias entre os membros da tribo de Wall Street, cuja ganância, falta de compaixão e narcisismo disfuncional garantem que “1% da população detenha 35% da riqueza da nação”, o que ultrapassa 19 biliões de dólares, ao passo que 50% da população enfrenta um desemprego crónico devido às estratégias de subcontratação e à dizimação da classe média, num país onde, em 2009, “50 milhões de pessoas, incluindo crianças, viviam em centros de acolhimento.”5 Mais de 12 milhões de crianças nos Estados Unidos vão todos os dias para a cama com fome, enquanto luxuosos restaurantes de Nova Iorque servem àqueles gestores financeiros de topo (cujo escalão de impostos é inferior ao dos seus motoristas) sobremesas de chocolate embrulhadas em ouro que custam 23 mil dólares. Ao mesmo tempo, uma parte daqueles lucros obscenos apenas tornados possíveis com a complacência dos nossos políticos são utilizados por mega corporações e por essa tribo de Wall Street, para criarem importantes fundações sem fins lucrativos com as quais condicionam a actuação das instituições públicas ao preencherem certas necessidades de financiamento precisamente nas instituições onde se encontram os seus lacaios (a classe profissional) que entusiasticamente os glorificam – uma veneração que, por um lado, eclipsa um gigantesco roubo das finanças públicas pela via da diminuição dos impostos pagos por estas corporações e da concessão de enormes subsídios estatais às suas fundações e, por outro lado, mostra como esses académicos foram capturados por uma espécie de reverência e de auto-censura. Um exemplo: a Fundação Ford certamente não aprovaria o

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financiamento de uma linha de investigação que produziria abundantes evidências acerca dos negócios do seu fundador (Henry Ford) com o regime Nazi e da sua simpatia pela ideologia anti-semita. Wall Street utiliza a criação de fundações sem fins lucrativos, o que é mais uma forma de evasão fiscal, como parte de um sistema que tem entre as suas finalidades racionalizar a falta de ética através de mecanismos caridosos, como por exemplo a atribuição de financiamentos para a investigação centrada nas mesmas pessoas que as suas próprias políticas sentenciam à miséria humana, à pobreza abjecta e à absoluta dependência. O estatuto não lucrativo destas fundações permite-lhes a fuga ao pagamento de impostos e, consequentemente, agrava o subfinanciamento dos programas públicos de apoio social – programas sociais que as instituições dominantes habilidosamente apelidam de privilégios sociais. Esta nomenclatura esconde o facto de que em qualquer sociedade democrática estes supostos privilégios deveriam ser vistos como um inalienável direito dos cidadãos. Dito de outra forma, ter acesso ao programa Medicare, por exemplo, não é um privilégio, mas, muito pelo contrário, um direito que todos os cidadãos deveriam ter. É curioso que os benefícios fiscais que permitem às corporações norte-americanas não pagar os impostos que deviam nunca são apelidados de privilégios. Por exemplo, o “Government Accountability Office descobriu de duas das maiores corporações norte-americanas nunca pagaram impostos federais sobre os seus lucros desde 1998 a 2005… [e que] nem a GE (que obteve 10 milhares de milhões de dólares de lucros em 2009) nem a Exxon Mobil (que obteve 45,2 milhares de milhões de dólares de lucros em 2008) reportaram ter pago um cêntimo sequer de impostos sobre os lucros gerados em 2009.”6 Ao não pagar impostos, esta “plutocracia corporativa” acumula recursos massivos, parte dos quais podem depois ser usados na criação de fundações sem fins lucrativos. Ao fazê-lo, estas fundações garantem aos seus promotores uma imagem pública de “bons cidadãos”, embora à custa de obscenas poupanças nos impostos que deveriam pagar, e asseguram o seu endeusamento por parte tanto do público em geral, como de das instituições, incluindo as universidades, para onde canalizam a sua falsa generosidade apoiando milhares de teses de Doutoramento e outros projectos de investigação que vão desde a guerra à pobreza (devia ler-se antes “guerra contra os pobres”), à iliteracia entre as populações aborígenes da Austrália, ou ao aumento do uso de drogas nos bairros negros. Investigações que estas fundações nunca financiarão são aquelas que se detenham, por exemplo, no uso de drogas nos bairros das classes altas ou no interior de prestigiadas universidades, no estudo das relações de causa e efeito entre o comportamento criminoso dos gestores financeiros de Wall Street e o significativo aumento dos índices de pobreza, pessoas sem abrigo e toda a espécie de sofrimento humano. Ou seja, o dinheiro público dos impostos – que em vez de serem devidamente pagos funcionam como catalisadores da criação e manutenção destas fundações sem fins lucrativos – é utilizado para alcançar pelos menos dois objectivos fundamentais: (1) permitir a estas fundações sem fins lucrativos moldar a orientação ideológica da nação, através da sua suposta generosidade e (2) garantir a cumplicidade de todas as instituições e pessoas que recebem os financiamentos dessas fundações de forma a assegurar que aquela orientação ideológica mantém o seu rumo. Por exemplo, se uma equipa de arqueólogos desenhar um projecto de um milhão de dólares com vista à realização de escavações em certos locais de Plymouth

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(Massachusetts), que permitam a reconstrução e o estudo do tecido social dos índios Wampanoag, as possibilidades de obter tal financiamento diminuirão consideravelmente à medida que ficar claro que os seus principais objectivos de pesquisa são a compreensão de relações entre a destruição das estruturas sociais dos índios Wampanoag e a carnificina levada a cabo pelos colonos britânicos que, nesse contexto, devem ser adequadamente descritos como ilegais. Isto é, tal como os “ilegais” de hoje, esses colonos chegaram a Plymouth (Massachusetts) sem qualquer documentação e, pior ainda, ocuparam ilegalmente terras que não lhes pertenciam. Mas retornando ao eventual estudo de que falava, os arqueólogos aprendem que isso é assim não nos cursos de arqueologia, mas através das mensagens subtis que vão recebendo ao longo da sua socialização como arqueólogos em termos do tipo de ideologia que devem abraçar ou evitar com vista a assegurar a obtenção de financiamentos para a sua investigação e garantir recompensas por parte do sistema dominante. Outra forma de afastar a população de um entendimento adequado de como funciona a ideologia e de mantê-la subjugada é através daquilo que Noam Chomsky designa por distracção. Uma estratégia de distracção muito eficaz na academia é precisamente o carreirismo que, por um lado, profissionaliza os intelectuais através do academicismo e, por outro lado, promove a criação de celebridades. Essa é também uma forma eficiente de incorporar entre as elites académicas um pequeno número de indivíduos representativos dos grupos sociais oprimidos, mantendo os grupos oprimidos e a população em geral distraídos do facto de que por cada celebridade afro-americana há milhões de afro-americanos que permanecem encurralados em guetos, escolas disfuncionais e prisões. Neste sentido, estas “celebridades enquanto distracção” representam uma verdadeira manipulação ideológica habilmente utilizada por uma sociedade dominada pelo entretenimento, um entretenimento que diminui as nossas capacidades críticas e possibilita a emergência de estrelas apoiadas numa fama que carece de evidências substantivas do valor e do talento dessas supostas estrelas. Tomemos como exemplo a criação de Sarah Palin que fascinou a nossa sociedade com as suas atitudes típicas de reality show. Outro exemplo que podemos assinalar é aquilo que tem sido designado por factor Zsa Zsa Gabor. Praticamente todas as pessoas concordarão que Zsa Zsa Gabor é uma celebridade nos Estados Unidos, contudo poucos poderão assinalar o nome dos filmes ou qualquer outro tipo de trabalho em que se baseie o seu estatuto de “estrela”. O mesmo fenómeno tem lugar no seio da academia, embora de forma mais sofisticada. Nesse sentido, o destaque atribuído a certas celebridades académicas afro-americanas constitui não raras vezes uma estratégia manipulativa destinada a manter o racismo oculto e a proclamar o argumento de que já vivemos hoje numa sociedade pós-racial, tal como ficou demonstrado pela conversa que teve lugar na Casa Branca entre o presidente Obama, o professor da Harvard University, Henry Gates Jr. (ambos afro-americanos) e o sargento James Crowley, um polícia branco que prendeu Gates quando este tentava entrar na sua própria casa (na minha opinião, uma caso claro de perfil racial). Apesar desse encontro promovido na Casa Branca ter sido preparado para assegurar aos americanos que vivemos numa sociedade pós- racial, na qual podemos dialogar abertamente acerca das relações raciais, isso não impediu o Arizona de promover e aprovar legislação para legitimar a elaboração de perfis raciais. Não impediu o incêndio de mesquitas nem as agressões a muçulmanos e não contribuiu de nenhuma forma para aliviar o sofrimento, a miséria humana, a

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violência e falta de esperança experimentadas todos os dias por milhares de afro- americanos encurralados em guetos como Roxbury, no Massachusetts, que fica apenas a curta distância da elegante mansão do professor Gates no Harvard Yard. Essa conversa informal também não contribuiu em nada para expor a barreira invisível das ideologias de classe e de raça que constantemente enviam mensagens claras às populações branca e negra. Essa separação existe e a população negra sabe que é imediatamente suspeita quando atravessa de forma real ou figurada essas fronteiras geográficas. Ou seja, a privilegiada posição de classe de que o professor Gates goza na Harvard University e noutros círculos académicos não impediu o facto de a sua raça e a cor da sua pele serem sinalizadores que o remeteram para um perfil racial e para uma experiência de detenção, tal como frequentemente experienciado por milhões de afro-americanos quando acedem a bairros que supostamente se destinam “apenas a brancos”. Voltando à sua questão acerca das celebridades académicas, o que precisamos de questionar é o preço intelectual que esses académicos pagam quando se acomodam ao sistema doutrinal e o preço que pagam as populações oprimidas que servem de trampolim para a sua celebridade. Ou seja, é preciso que compreendamos que o carreirismo académico tende a profissionalizar os intelectuais que depois se sentem confortáveis para escrever e falar sobre crítica social, mas que ao mesmo tempo são incapazes de assumir o risco de se exporem através do activismo social, o que poderia colocar em risco os seus privilégios. Dito de outra forma, eles recusam-se a dizer a verdade ao poder. Falar verdade ao poder exige activismo e militância intelectual de forma a ultrapassar as formas de opressão por todos os meios necessários, tal como Malcolm X manifestou de forma tão corajosa. Seria inimaginável na nossa suposta sociedade pós-racial juntar o presidente Obama, Malcolm X e o tal polícia branco numa conversa informal na Casa Branca sobre as relações raciais. O facto de nem sequer conseguirmos imaginar uma situação deste tipo demonstra bem o elevado grau de domesticação a que chegámos desde os primeiros anos de luta do Movimento dos Direitos Civis. Evitar a domesticação significa não alinhar com os interesses das poderosas elites e recusar a submissão a um sistema que constantemente recompensa os indivíduos pela sua obediência e pelos seus contributos para a reprodução de uma realidade intrinsecamente discriminatória e não democrática. Significa também que as celebridades académicas constantemente violam a ética intelectual, uma vez que se espera deles que nos seus papéis de gestores e escravos do sistema doutrinal proporcionem o encobrimento moral da crueldade em larga escala provocada por guerras fabricadas, da engenharia social da pobreza e da grotesca expansão do sofrimento humano, apenas para que os oligarcas possam comer em Manhattan ultrajantes sobremesas de chocolate envoltas em ouro que custam 23 mil dólares, enquanto haitianos sem abrigo comem bolachas de lama apenas para enganar a fome.

Solano-Campos – Em A Hegemonia da Língua Inglesa, você, Bessie Dendrinos e Panayota Gounari analisam a prevalência tanto na Europa como nos Estados Unidos de um discurso linguístico que apresenta a língua inglesa como superior. Sabemos que esse discurso também se estende a outros países no mundo. O que podemos fazer perante as ameaças à solidariedade global, uma vez que os debates existentes apenas parecem levar em conta os académicos norte-americanos e europeus? Como podem os académicos africanos, latino-americanos ou asiáticos tomar parte nesses debates? D. Macedo – Parte das dificuldades que os académicos africanos, latino-americanos e asiáticos encontram em tomar parte nesses debates têm que ver precisamente com a

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hegemonia da língua inglesa. O latim desempenhou um papel semelhante durante o Império Romano, tal como o grego também foi hegemónico durante o período que durou o Império Grego. Não se trata desses académicos não estarem preocupados com as questões da hegemonia linguística e cultural. Os importantes trabalhos de Ngũgĩ wa Thiong’o acerca da descolonização da linguagem e da cultura em África ou de Renato Constantino relativamente aos múltiplos processos de colonização do povo filipino são apenas alguns exemplos entre os muitos que poderíamos citar. O problema é que as suas denúncias e preocupações em relação ao colonialismo linguístico devem supostamente ser manifestadas em língua inglesa, ou seja, na língua do colonizador, a mesma que expande a hegemonia que eles próprios denunciam e desconstroem. Para compreendermos como a hegemonia é insidiosa é necessário entender como as forças dominantes se baseiam nela para ocupar as mentes das pessoas e denegrir línguas e culturas que são sistematicamente apresentadas como inferiores e não civilizadas. É por isso que a hegemonia não é estudada de uma forma rigorosa nos Estados Unidos, como ficou claro pelo exemplo de um professor de Harvard especializado em literacia. Quando um aluno lhe dirigiu publicamente uma questão acerca da forma como esperava conciliar o seu forte apoio ao ensino bilingue nos Estados Unidos com a actual hegemonia da língua inglesa, esse professor espantosamente perguntou: “O que é a hegemonia?” Para compreenderem a hegemonia, os alunos precisam de conhecer um conjunto de literatura que trata da natureza da ideologia, políticas da língua e ética – conteúdos que devem ser trabalhados no campo dos estudos linguísticos e da educação. Além disso, é igualmente necessário compreender como a classe dominante consegue reproduzir o seu poder através da criação a manutenção de um sentimento de crise permanente. Quando se convence as pessoas de que a sociedade enfrenta uma crise gravíssima, é suposto que a classe dominante intervenha no sentido de a analisar e conter. Por exemplo, quando os especialistas manipulam as estatísticas para convencer os americanos de que a segurança social é financeiramente insustentável e de que está em perigo, é suposto que os políticos e o legislador avaliem a situação e encontrem soluções de natureza dicotómica, ou seja, ou cortando nos benefícios ou privatizando a segurança social. Manter o debate dentro destes nestes parâmetros limitados, encurralado pelas perspectivas neoliberais, significa coarctar a imaginação tornando verdadeiramente impossível perspectivar outras possibilidades. O que aconteceria, por exemplo, se Obama fosse coerente com a suas promessas e tivesse, depois de eleito, recusado o aumento das reduções fiscais aprovadas pela anterior administração Bush, o que por si só poderia gerar 4 biliões de dólares para financiar os programas sociais no espaço de uma década? Será que o Medicare estaria em crise? Que resultados alcançaríamos, como sociedade, se em vez de gastarmos biliões de dólares para fabricar guerras no Afeganistão ou no Iraque, investíssemos esses recursos no desenvolvimento de infra-estruturas e de programas sociais e educativos? Teríamos os mesmos problemas educativos que temos hoje? Será que continuaria a existir a pobreza obscena que caracteriza muitas zonas urbanas? Estas interrogações não são sequer admissíveis, uma vez que a classe dominante (o discurso académico nem sequer admite a utilização desta expressão, preferindo eufemismos como “abastada”, “rica” ou outros semelhantes) tem já como adquirido que a privatização da segurança social é o melhor caminho a seguir, responsabilizando directamente os pobres pela sua condição e por uma “catástrofe

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social” segundo a qual “os programas sociais não apenas são financeiramente ruinosos, como também são responsáveis pela diminuição dos resultados escolares dos alunos, pelos problemas relacionados com o uso de drogas e... [segundo Patrick Buchannan] por uma geração de crianças e jovens sem pais, sem futuro e sem sonhos para além da atractiva vida nas ruas.”7 Perante este cenário de ataques selectivos a muitas instituições públicas, o movimento da educação bilingue não poderia escapar ao rancor da ideologia dominante. No entanto, o ataque à educação bilingue não deve ser interpretado como uma mera crítica às metodologias de ensino das línguas. Antes de mais, este ataque à educação bilingue é fundamentalmente político. A sistemática negação da natureza política da discussão constitui em si mesma uma acção política. Para além de constituir uma flagrante desonestidade académica, apontar simplesmente alguns insucessos da educação bilingue sem analisar o pouco sucesso dos alunos oriundos de minorias linguísticas no quadro mais amplo do fracasso generalizado da maioria das escolas localizadas nas grandes zonas urbanas é desviar as atenções do essencial, quando essas escolas originaram taxas de abandono escolar na ordem dos 50% a 65% entre as escolas públicas de Boston e dos 70% em áreas metropolitanas maiores como é o caso de Nova Iorque. Apesar da abundante retórica dos educadores conservadores nas suas sistemáticas tentativas para destruir a educação bilingue, segundo eles devido ao insucesso destes programas, nada dizem acerca do muito bem documentado fracasso dos programas de ensino de línguas estrangeiras. Não obstante o fracasso generalizado desses programas nos Estados Unidos ninguém fala na sua extinção e do encerramento dos departamentos de línguas estrangeiras nas escolas. O mesmo se aplica aos departamentos de inglês. Em virtude das elevadíssimas taxas de abandono essencialmente ligadas à iliteracia e a incapacidade do ensino do inglês formar leitores competentes, também deveríamos encerrar os departamentos de inglês. É paradoxal que sejam os mesmos educadores que propõem a extinção dos programas de educação bilingue (que têm uma elevada probabilidade de produzir falantes bilingues) aqueles que reiteradamente apoiam o ensino de línguas estrangeiras, precisamente com a finalidade de fomentar o bilinguismo, mesmo apesar de o fracasso registado nos programas de língua estrangeira na formação de falantes bilingues ser comparativamente muito maior ao que o registado nos programas de educação bilingue. O movimento English Only aponta para uma pedagogia da exclusão que olha para a aprendizagem em inglês como a única possível, a verdadeira educação. O que os seus defensores nunca questionam é em que condições e por quem é ensinada a língua inglesa. Por exemplo, a insistência em submeter os alunos não falantes do inglês a um ensino da língua inglesa ministrado por educadores sem preparação adequada, que apenas cumprem alguns requisitos mínimos e que provêm de áreas tão distintas como as artes plásticas, a música e as ciências sociais torna difícil a obtenção de bons resultados. Além disso, os defensores deste movimento também falham quando não levantam duas questões que são fundamentais: em primeiro lugar, se o inglês é a melhor língua para o ensino e a aprendizagem, porque razão 60 milhões de americanos são iletrados funcionais ou mesmo iletrados? Em segundo lugar, se é o ensino apenas em inglês que garantirá às minorias linguísticas um futuro melhor, tal como sugerem educadores como William Bennett, por que razão permanece relegada para os guetos a maioria dos americanos negros, cujos antepassados têm falado inglês

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há 200 anos? Acredito que as respostas a estas questões não estão relacionadas com a língua inglesa ser ou não a melhor língua para o ensino ou supostamente garantir um melhor futuro aos alunos não falantes de inglês e uma ampla participação tanto na escola como na sociedade em geral. Este tipo de discussão assume à partida que o inglês é de facto um língua superior e que vivemos numa sociedade sem classes e sem raças. A tentativa de proporcionar metodologias mais apropriadas e eficazes para a educação das crianças e jovens não falantes do inglês não pode ser simplesmente reduzida às questões da língua, mas deve apoiar-se numa compreensão profunda dos elementos ideológicos que geram e mantêm a discriminação linguística, cultural e racial que representa, do meu ponto de vista, vestígios de um legado colonial na nossa democracia. No entanto, a simples referência ao termo colonialismo pode ser interpretada como uma provocação e algo demasiado político. A generalidade dos educadores rejeitará o uso do termo colonialismo para caracterizar a actual ofensiva à educação bilingue e aos estudos étnicos tanto pelos conservadores, como por parte de muitos educadores liberais. Alguns destes liberais esforçar-se-ão para se opor a esta caracterização do ataque ao ensino bilingue como uma forma de colonialismo, argumentando que a maioria dos educadores que se opõem à educação bilingue é apenas ignorante e carece de esclarecimento. Embora não possamos negar que de facto são ignorantes, também não devemos desperceber que a ignorância nunca é inocente, sendo sempre moldada por uma determinada predisposição ideológica. E, além do mais, nem os ataques à educação bilingue nem os actos racistas devido à ignorância farão com que as vitimas dessas acções se sintam melhor face à sua vitimização. Estas atitudes desculpabilizadoras de alguns liberais que se justificam com o argumento da ignorância para cegamente se oporem à educação bilingue não são surpreendentes, uma vez que o liberalismo clássico, enquanto escola de pensamento e ideologia, sempre prioriza o direito à propriedade privada, relegando para as margens a liberdade humana e outros direitos das pessoas. É esta posição liberal de oscilação ideológica que, por um lado, leva muitos liberais a apoiarem a educação bilingue, mas, por outro lado, a rejeitarem as ligações entre os ataques à educação bilingue e as políticas de colonialismo da língua. Enquanto pessoa colonizada, que experienciou pessoalmente as políticas linguísticas discriminatórias do colonialismo português, eu encontro rapidamente muitas similitudes entre a ideologia colonial e os valores dominantes que enformam o movimento English Only. O colonialismo impõe a “distinção” como uma ferramenta ideológica baseada na constante comparação dos outros valores culturais, inclusivamente das línguas, com os valores culturais e a língua do colonizador. Por um lado, essa comparação serve para sobrevalorizar a língua do grupo dominante, elevando-a a um nível de mistificação (por exemplo, observando o inglês como a verdadeira educação e medindo o sucesso dos programas de educação bilingue apenas em termos de sucesso na aquisição da língua inglesa) e, por outro lado, desvaloriza outras línguas faladas por um sempre crescente número de estudantes que hoje abunda nas escolas localizadas nas zonas urbanas. As posições que assumem os proponentes do movimento English Only não são muito diferentes das do colonialismo português, que procurou erradicar o uso das línguas africanas na vida institucional através da imposição aos africanos do português como única língua no sistema

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educativo, apoiada nos mitos e crenças relacionadas com a natureza selvagem das suas culturas. Se analisarmos a ideologia subjacente aos actuais debates sobre a educação bilingue nos Estados Unidos (dominados pelo movimento conservador English Only) e a recente polémica em torno da herança Ocidental versus multiculturalismo, começamos a perceber que os princípios ideológicos que enformam esses debates são coincidentes com as estruturas e os mecanismos da ideologia colonial. Do meu ponto de vista, estas leis draconianas recentemente promulgadas no Arizona, com importantes consequências para o tratamento da população hispânica, apenas podem ser compreendidas como uma forma de colonialismo interno que caracteriza a relação entre a população branca e outros não brancos residentes no Arizona. Com efeito, esta forma colonial de coexistência que estamos a testemunhar no Arizona tem precedentes históricos nos Estados Unidos, se olharmos para as políticas educacionais nas Filipinas ou em Porto Rico, depois desses territórios terem sido ocupados pelos Estados Unidos. O inglês foi imposto como a única língua de instrução nas Filipinas e foram igualmente impostos manuais escolares que apresentavam a cultura americana não apenas como a única possível, mas também como uma cultura superior, “um modelo de excelência para a sociedade filipina”. Este tipo de deseducação tornou-se tão prevalente que conduziu T. H. Pardo de Tavera, um dos primeiros filipinos que colaborou com o colonialismo norte-americano, a escrever uma carta a Douglas Mac Arthur na qual exaltava o valor da língua inglesa e a necessidade de o seu uso e ensino “serem estendidos e generalizados a todo o território filipino”. Foi este o mesmo tipo de redenção que os Estados Unidos procuraram alcançar em Porto Rico quando o comissário da educação de Theodore Roosevelt no país, Rolland P. Faulkner, ordenou em 1905 que toda a instrução ministrada nas escolas públicas deveria ser conduzida apenas em inglês e que as escolas porto-riquenhas deveriam ser “agências de americanização”. Ao deixarmos intocado e sem qualquer análise o nosso legado colonial, a escolha de seleccionar uma metodologia educativa no seio da qual os alunos são impedidos de estudar as suas próprias línguas e culturas é à partida quase inevitável, como que se não houvesse outras escolhas possíveis. É também este tipo de inevitabilidade que tem orientado as políticas educativas da administração Obama. Em vez de se prepararem para encerrar mais escolas devido ao reduzido aproveitamento dos seus alunos, como já fizeram em Central Falls, Rhode Island, como se fosse uma inevitabilidade, deveriam acabar com a pobreza e a desigualdade que caracterizam o sofrimento humano e a falta de esperança da maioria dos estudantes dessas zonas urbanas que são literalmente deixados ao abandono enquanto se privilegia a educação privada e as escolas charter. Em vez de se deixarem escravizar pelo discurso managerialista da presente reforma educativa, que apenas favorece os interesses económicos dos reformadores, mantendo a sua posição social e cultural privilegiada, os educadores precisam de criar ligações com a nossa história de forma que compreendam o nosso passado colonial que mina as nossas aspirações democráticas.

Solano-Campos – O que faz você no seu tempo livre? Como conjuga o trabalho académico com a vida pessoal? Em que está a trabalhar neste momento? O que gostaria de fazer nos próximos anos – um novo livro, viajar? D. Macedo – Esta é a questão de que menos gosto. Embora possa parecer uma pessoa muito social, na verdade sou bastante reservado. Embora fale com frequência para

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grandes audiências, habitualmente fico nervoso quando tenho de o fazer e é uma verdade que prefiro escrever do que expor-me em público. Não sou grande adepto de festas e cocktails académicos onde se fomentam relações profissionais. Em vez disso, prefiro passar o pouco tempo livre de que disponho junto da minha família e dos meus amigos que gostam de estar comigo por aquilo que eu sou, em vez de por aquilo que eu faço profissionalmente. Numa das suas questões fiz referência à minha desilusão relativamente aos académicos carreiristas, cuja ideologia vacilante é determinada por aquilo que podem ou não conseguir com determinada relação pessoal; um agitado quid pro quo que é difícil de acompanhar. Embora me sinta desiludido por uma certa falta de coerência e de convicção em muitos académicos, sou uma pessoa muito optimista que não perde a esperança facilmente nem se deixa cair no cinismo. Para isso, penso com frequência no exemplo de notáveis intelectuais como Paulo Freire, Noam Chomsky, Henry Giroux, Howard Zinn, Arundhanti Roy, Nancy Fraser, Linda Brodkey, entre outros. Infelizmente, estas pessoas representam hoje uma minoria, embora representem uma classe de intelectuais que se recusam, tal como referiu Edward Said, “ a tornar-se agente[s] ‘contratados’ de uma indústria da informação” e das instituições para as quais trabalham. O seu compromisso com a justiça social, a sua coragem de para dizer a verdade ao poder e a sua humanidade dão-me a esperança de que é possível uma sociedade mais justa. Quanto ao que eu gosto de fazer com o meu tempo livre, bem, na verdade eu não tenho muito tempo livre. Isso acontece porque em grande medida eu não concebo a minha actividade como trabalho. Eu vejo o meu trabalho como uma extensão daquilo que eu sou. Tenho um prazer enorme em trabalhar com os estudantes e com as comunidades cujas necessidades contam cada vez menos, à medida que o governo diminui progressivamente os recursos. É muito difícil para mim dizer não às solicitações das comunidades, dada a actual expansão do sofrimento humano que leva a juventude nas zonas urbanas a sentir uma cada vez maior desigualdade e, consequentemente, um desespero e uma falta de esperança cada vez maiores. Eu sou de um tempo em que se lutou contra uma guerra cruel, injusta e errada contra o Vietname, mas em que apesar de toda a opressão, as pessoas mantiveram a esperança de que uma mudança seria possível. Passei todo o último ano a trabalhar com antigos e actuais membros de gangs e, por vezes, fiquei impressionado com a total falta de esperança da juventude. Contudo, estes jovens trabalharam zelosamente para conseguirem organizar uma conferência que reuniu 350 pessoas para ouvirem o seu apelo por maior ajuda, mais respeito e maior compaixão. O que se tornou muito claro para mim enquanto ouvia estas crianças e jovens com um passado e um presente marcado pela violência é que existe sempre uma violência anterior que gera mais violência. Uma sociedade que considera descartável uma parte substancial da sua juventude é uma sociedade inerentemente violenta, como diria o meu amigo Henry Giroux. Uma sociedade que deliberadamente ignora a fome que afecta 12 milhões de crianças todos os dias é uma sociedade em crise. Uma sociedade que dedicadamente enriquece os seus oligarcas enquanto depaupera a maior parte da sua população, é certamente uma sociedade que caminha velozmente para a desumanização.

2 Apesar das minhas decisões de Ano Novo de trabalhar menos, a verdade é que as tenho ignorado, em face da crescente expansão do sofrimento humano que requer da minha parte cada vez mais atenção. Ainda assim, na última passagem do ano voltei a prometer a mim próprio que passaria mais tempo com a minha mulher, Lilia, as minhas filhas

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Vanessa e Erica e como o meu filho Alejandro, antes que ele vá para a Universidade, e com toda a família e amigos cuja lealdade, solidariedade e compaixão me rejuvenescem e inspiram, mantendo-me no caminho daquilo que verdadeiramente importa na vida: o amor, a compaixão e a determinação.

BIBLIOGRAFIA

GIROUX, A. G. (1983). Theory and Resistance. South Hadley, MA: Bergin & Garvey Publishers.

FREIRE, P. (1985). Politics of Education: Culture, Power, and Liberation. South Hadley, MA: Bergin & Garvey Publishers.

FREIRE, P. & D. MACEDO (1987). Literacies: Reading the Word and the World. South Hadley, MA: Bergin & Garvey Publishers.

MACEDO, D. (1994). Literacies of Power: What Americans Are Not Allowed to Know. Boulder, CO: Westview Press.

MACEDO, D. & P. GOUNARI (eds.). (2007). The Globalization of Racism. Boulder, CO: Paradigm Publishers.

MACEDO, D., B. DENDRINOS, & P. GOUNARI (2005). A Hegemonia da Língua Inglesa. Mangualde: Edições Pedago.

NOTAS

1. Tradução de Pedro M. Patacho. 2. No contexto político norte-americano, o termo liberal tem significado diferente daquele que o mesmo termo adquire noutros contextos políticos. 3. W. E. Said (1996) Representation of the Intellectuals, Nova Iorque: Vintage Books. 4. F. Fanon (1965). Black skin, white masks, Nova Iorque: Grove Press. 5. “Time for a Wealth Tax”, The Nation, 13 de Dezembro de 2010. 6. S. Andrew “Start by targeting corporate welfare”, The Boston Globe, 18 de Fevereiro de 2011. 7. Citado em D. Macedo.& L. Bartolomé (1999) Dancing with Bigotry: Beyond the Politics of Tolerance, Nova Iorque: Palgrave.

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AUTORES

DONALDO MACEDO Pedagogo, professor de Inglês e Distinguished Professor de Artes Liberais e Educação na University of Massachusetts, Boston. É director do Departamento de Linguística Aplicada na University of Massachusetts, Boston (Estados Unidos da América). Tem publicados inúmeros artigos e livros nas áreas da linguística, literacia crítica e educação multicultural. As suas publicações incluem Literacy: Reading the Word and the World (com Paulo Freire, 1987), Literacies of Power. What Americans Are Not Allowed to Know (1994), Dancing With Bigotry (com Lilia Bartolome, 1999), Critical Education in the New Information Age (com Paulo Freire, Henry Giroux e Paul Willis, 1999), Chomsky on Miseducation (com Noam Chomsky, 2000), The Hegemony of English (com Panayota Gounari e Bessie Dendrinos, 2003; traduzido e publicado em língua portuguesa por Edições Pedago, 2006), Howard Zinn on Democratic Education (com Howard Zinn, 2005; traduzido e publicado em língua portuguesa por Edições Pedago, 2007), The Globalization of Racism (com Panayota Gounari, 2005), Media Literacy (com Shirley Steinberg, 2007) e Ideology Matters (em co-autoria com Paulo Freire, a publicar). Estes trabalhos foram traduzidos e publicados em Cabo Verde, Grécia, Itália, Japão, Portugal, Espanha e Turquia. Donaldo Macedo recebeu uma das mais prestigiadas distinções no campo da educação, quando foi seleccionado para o Laureate Chapter of Kappa Delta Pi – International Society in Education. Entre outros que receberam esta distinção contam-se Albert Einstein (1950), Walter Lippman (1960), Margaret Mead (1962), Charles E. Skinner (1966) e Jean Piaget (1974). É membro do Conselho Científico da Revista Angolana de Sociologia. [email protected]

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Livros

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Kimpa Vita, uma tragédia inacabada

Simão Souindoula

REFERÊNCIA

Serge Mboukou (2010). Messianisme et modernité. Dona Béatrice Kimpa Vita et le mouvement des antoniens, Paris: L’ Harmattan, 170 p.

1 Uma tragédia inacabada é a grande conclusão que é tirada após a leitura da obra do congolês da margem direita, Serge Mboukou, Messianismo e Modernidade. Dona Beatriz Kimpa Vita e o movimento dos Antonianos, livro que acaba de ser publicada, em Paris, nas edições L’ Harmattan, na sua colecção “Religiões, Culturas e Sociedades”.

2 Baseada na sua tese de doutoramento em antropologia social sobre os movimentos messiânicos de África subsaariana, o autor estabelece aí, com muito alento, os parâmetros do quadro da inevitável continuidade histórica entre a extraordinária epopeia da jovem “apóstata” kongo (1684-1706) e o insuperável proselitismo ao qual assistimos, actualmente, nesta parte do continente.

3 O autor, visivelmente influenciado pela inflexível reapropriação pelo regime marxisante de Brazzaville, nos anos 70, da figura da “Profetiza Ardente”, esforça-se por analisar perspicazmente, numa metodologia comparativa, entre o agitado movimento dos “Ntoni” (1704-706) e as centenas de entidades neo-cristãs negro-africanas, os contextos históricos de emergência, o perfil dos sincretismos produzidos, as pretensões teológicas evocadas, as orientações casuísticas traçadas assim como os constrangimentos sociais e políticos suportados.

4 O Professor da universidade francesa de Metz inscreve a aparição do “cismo” da iniciada da “Marimba do Kongo” e das suas réplicas contemporâneas, na dramática crise social e politica que vivia o Reino do Kongo, antes e depois da severa derrota de Ambuila, em Outubro de 1665 – tornada mais pesada pelo forte desenvolvimento do tráfico de escravos, belicista e corruptor, assim como por uma evangelização bem fracturante e pelo relativo marasmo económico no qual mergulha a maioria dos Estados

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subsaarianos, à imagem dos gigantes tais como a Nigéria ou o Congo da margem direita, terras de todas as vocações neo-cristãs, com os seus escorregamentos regionais.

Inculturação

5 Serge Mboukou examina, em seguida, as opções dos sincretismos tomadas pela jovem profetiza kongo e os actuais “apóstolos”, ilustradas nas duas situações pela criação de ambiência de desenrolamento, verdadeiramente festivo, graças a poderosos membranofones e a uma persistente promiscuidade – que recorda as cerimónias tradicionais secretas, tais como as do kimpasi e outras animadas pelos nganga, tradi- práticos.

6 Na dinâmica desta tela de fundo de inculturação, convergente, o antigo estudante da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais da capital francesa sublinha, nos dois casos, a lealdade à figura de Cristo.

7 Como os fiéis da veloz sacerdotisa ligada a Santo António, os adeptos das capelas modernas esperam dos seus condutores, fecundidade e saúde.

8 Mergulhados no desespero social, alguns desses dirigentes (como a grande voz do século XVIII apelando ao “Kiadi”, a Misericórdia para o Reino do Kongo) sugerem igualmente, em pleno século XXI, a restauração do antigo conjunto federal.

9 As linhas de análise postas em relevo por Mboukou, antropólogo da modernidade, constituem balizas essenciais na procura de soluções para a proliferação de seitas religiosas em África – fenómeno que se exacerbou nos fins dos anos 80, a favor da liberalização do quadro histórico global do continente.

10 Esta mudança foi resultado de um conjunto de efeitos derivando da implacável mecânica da mundialização, cujo imparável desenvolvimento se fez paralelamente com a outra globalização, o bem nomeado catolicismo, que afogueou Kimpa Vita.

11 Esses desenlaces não devem inspirar-se na cruel sentença decidida contra a jovem profetiza e os seus companheiros. Devem, pelo contrário, ser resultado de diagnósticos profundos de carácter histórico, antropológico e sociológico.

Fogo da Inquisição

12 Com efeito, esta perspectiva é a única aceitável, sobre dois contextos históricos que produziram efeitos quase concordantes.

13 A tragédia da queimada de Evolulu, nos arredores da actual capital da província angolana do Zaire, é uma das páginas mais emocionantes da história de África. Foi por isso que ela suscitou vários trabalhos científicos, pedagógicos e obras literárias, tais como o do guineense Ibrahima Baba Kaké e do francês Bernard Rouzet, Dona Béatrice: la Jeanne d’Arc congolaise e a célebre peça de teatro intitulada Beatrice du Congo, do escritor ivoirense Bernard Dadie.

14 Este dramático episódio suscitou igualmente uma nova vaga de reapropriação, como a decisão tomada pelo governo de Angola, há quatro anos, de associar o nome da “vítima” dos padres italianos Bernardo da Gallo e Lorenzo di Lucca, a uma das Universidades estatais do país.

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15 Em suma, para Serge Mboukou, a história do Planalto incendiado de 2 de Julho de 1706 é de uma pertinente actualidade.

16 Com efeito, como os habitantes da Kongo dia Ngunga (Kongo dos Sinos) que se apressaram a recolher, na madrugada do dia a seguir ao fogo da Inquisição, os restos calcinados da Mártir, centenas de milhares de africanos integram hoje, piedosamente, os neo-baptistérios a fim de diminuir as suas lancinantes angústias existenciais.

17 Enfim, as cinzas, certamente quentes, da Santa Dona serão ressentidas durante o Colóquio sobre Simon Kibangu, que terá lugar em Kinshasa e Nkamba, a “Jerusalém Negra”.

AUTOR

SIMÃO SOUINDOULA Antropólogo. Conselheiro do Ministro da Cultura de Angola, Vice-presidente do Comité Científico da UNESCO “A Rota de Escravos”, consultor da União Africana, Director do International Networking Bantulink, antigo Director do Museu da Escravatura (Luanda, Angola) e antigo docente de História na Universidade Agostinho Neto (Lubango, Angola). [email protected]

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O mercado publicitário e de marketing em Angola1

Paulo de Carvalho

REFERÊNCIA

José Guerreiro (2009). A Publicidade em Angola. Contribuições. Luanda: Editorial Nzila, 223 p.

1 Este livro do publicitário José Guerreiro é a primeira referência séria (de que tenho conhecimento) à publicidade e à história da publicidade em Angola. Trata-se, portanto, de um trabalho de utilidade não apenas para publicitários e profissionais de marketing, mas também para estudiosos dessas duas áreas, das Ciências da Comunicação e da Sociologia.

2 Depois de ter feito o lançamento do livro em Luanda, José Guerreiro optou por o apresentar na Baía Farta, sua terra natal. Este livro constitui uma homenagem do autor à terra que o viu nascer e às gentes de Benguela, que ele tanto acarinha.

3 A Publicidade em Angola. Contribuições traz informação acerca do mercado publicitário em Angola, desde o período colonial até aos nossos dias, culminando com a proclamação (em 2005) da Associação Angolana de Publicidade e Marketing, cujo Presidente de Direcção é exactamente José Guerreiro.

4 Como se sabe, a evolução do mercado publicitário depende de uma série de factores, de natureza económica, política e social. No caso concreto de Angola, penso que os principais factores que, após a proclamação da independência, terão influenciado o funcionamento do mercado publicitário terão sido o sistema económico do Estado, o grau de desenvolvimento económico de Angola e a crise política que se seguiu à proclamação da independência política e só terminou 27 anos mais tarde, com o calar das armas em 2002.

5 Na I República (1975-1991), o sistema de economia centralizada pouco impulsionou o desenvolvimento do mercado publicitário angolano. Pelo contrário, o autor diz-nos ter

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a este respeito havido “estagnação” nessa fase [pág. 69]. As marcas de prestígio e notoriedade eram então as “FAPLA, a TPA, a RNA” e (para um público mais restrito) o estabelecimento de lazer de Luanda “Animatógrafo” [pág. 70]. Eu talvez acrescentasse a Cuca, a Nocal e a Eka, que nesse período estiveram também sempre no top.

6 A transição para um sistema de economia de mercado, iniciada em 1991, trouxe consigo o impulsionar do mercado publicitário em Angola. Os primeiros passos nessa direcção haviam sido dados no período 1986-1987, com a elaboração e aprovação do decreto que estabeleceu a primeira tabela de preços de publicidade nos órgãos de informação públicos2 [págs. 72-73, 115-117, 184-190]. A primeira lei geral de publicidade em Angola foi aprovada apenas em 2002 [págs. 117-119, 191-197], para um ano mais tarde ser aprovada a lei de defesa do consumidor [págs. 120-121].

7 De um modo geral, podemos dizer que a sociedade capitalista moderna determina o modo de vida e a forma de ser e de estar das pessoas3. “O crescimento é a abundância” e “a abundância é a democracia”4. Almeja-se a “felicidade total”, contribuindo para isso o rápido progresso tecnológico e a facilidade de acesso aos bens de consumo e serviços5.

8 No mundo mágico do consumo, o actual lema é “encontra-se tudo no mesmo local”. Constroem-se grandes centros comerciais (incluindo centros de luxo), vão dilatando os seus tentáculos grandes redes de supermercados e hipermercados e espalham-se bares e restaurantes de comida rápida. Para além disso, programam-se épocas de saldos, difundem-se catálogos para venda à distância, promove-se a venda através da televisão, organizam-se planos de diversão em grande escala, engendram-se planos de férias para quase toda a gente e difunde-se o eatertainment (comida + diversão). A completar o quadro de McDonaldização das sociedades6, organizam-se espectáculos grandiosos e criam-se mega-igrejas, com “tratamentos” e “curas” em larga escala e detentoras de estações de televisão que dominam o marketing7.

9 O marketing e a publicidade passaram a exercer grande influência naquilo que consumimos e em quanto consumimos. Mas, entre nós, factores como o grau de instrução, o volume de rendimentos, a origem social, o meio de residência e o sexo continuam a exercer forte influência sobre a qualidade e a quantidade do consumo. Mas um aspecto importante a reter entre nós é o consumo conspícuo, que consiste em consumir para impressionar8 e está presente no dia-a-dia de bom número de angolanos.

10 O autor d’ A Publicidade em Angola identifica alguns dos males ligados a este negócio no nosso país. Tratam-se da concorrência desleal, dumping, desrespeito pelos direitos de autor, plágio e deficiente respeito pelos princípios éticos [pág. 90]. Devemos aqui acrescentar a publicidade enganosa, como ocorre por exemplo no seguinte anúncio: “O novo Super [menção à marca] com PL3 em 12 dias restitui aos dentes a brancura natural” [pág. 66].

11 Neste seu livro, que contém subsídios para a história da publicidade em Angola e cuja leitura recomendo, José Guerreiro refere em pormenor a forma como decorreu o 1º Encontro Nacional de Publicidade em 2008 [págs. 84-91, 125-130], bem como a realização de festivais de publicidade, mostras e congressos [págs. 91-96]. É importante destacar ainda as propostas de criação de um Conselho de Auto-Regulação da Publicidade em Angola [págs. 134-139] e de um Conselho de Ética na Associação Angolana de Publicidade e Marketing [págs. 139-142].

12 Termino a apresentação deste livro, que tem a chancela da Editorial Nzila, com a menção a alguns elementos de publicidade ligada ao dia-a-dia e a regras informais:

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13 > Anúncio em estabelecimento comercial “Repara-se movéil” [pág. 178]

14 > Anúncio sobre serviços prestados por terapeuta tradicional: “Mulher que não nascem, … Doença de bronco, … Febre a marel” [pág. 180]

15 > “É proibido bater à porta na janela” [pág. 172]

NOTAS

1. Texto de apresentação do livro, feita no dia 12 de Março de 2010, na Baía Farta (província de Benguela, Angola). 2. Trata-se do Decreto executivo conjunto no 50/87, de 12 de Dezembro de 1987, dos Ministerios das Financas e do Plano, cujo texto se encontra transcrito nas pags. 184-190 do livro. 3. Cf. Max Weber, 1968, A ética protestante e o espírito do capitalismo, Sao Paulo: Pioneira. 4. Jean Baudrillard, 1995, A Sociedade de Consumo, Lisboa: Edicoes 70, p. 49. 5. Jean Baudrillard, 1995, A Sociedade de Consumo, Lisboa: Edicoes 70, p. 47-53; Janet Ford & Karen Rowlingson, 1997, “Producing consumption: women and the making of credit markets”, Stephen Edgell et. al. Consumption Matters, Oxford: Blackwell, pp. 92-112; George Ritzer, 1999, Enchanting a Disenchanted World. Revolutionizing the Means of Consumption, Thousand Oaks: Pine Forge Press. 6. George Ritzer, 1993, The McDonaldization of Society, Thousand Oaks: Pine Forge Press. 7. Cf. Bruno Ballardini. 2003, Jesus Lava Mais Branco. Ou como a Igreja inventou o marketing, Porto: Campo das Letras. 8. Cf. Colin Campbell, 1995, “Conspicuous confusion? A critique of Veblen’s theory of conspicuous consumption”, Sociological Theory, vol. 13, no 1, pp. 37-47; Karen Bettez Halnon, 2002, “Poor Chic: The Rational Consumption of Poverty”, Current Sociology, vol. 50, no 4, pp. 501-516.

AUTOR

PAULO DE CARVALHO Sociólogo. Doutor em Sociologia pelo ISCTE (Lisboa, Portugal) e Mestre em Sociologia pela Universidade de Varsóvia (Polónia). Professor Titular na Universidade Agostinho Neto. Foi Reitor da Universidade Katyavala Bwila (Benguela, Angola – 2009-2011) e dirigiu a Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto (2005-2006). É investigador no CIES do ISCTE– Instituto Universitário de Lisboa. É autor de dezenas de pesquisas sociológicas com utilização de técnicas qualitativas e quantitativas, tendo como principais áreas de investigação: a exclusão

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social, a pobreza, a Sociologia Política, os problemas sociais, as normas de consumo, as relações étnicas, a delinquência e a audiência de media. É autor, dentre outros, dos livros: A campanha eleitoral de 2008 na imprensa de Luanda (Luanda 2010); Exclusão Social em Angola. O caso dos deficientes físicos de Luanda (Luanda 2008), «Até você já não és nada…!» (Luanda 2007), Angola. Quanto Tempo Falta para Amanhã? Reflexões sobre as crises política, económica e social (Oeiras 2002), Audiência de Media em Luanda (Luanda 2002), Estrangeiros na Polónia. Adaptação, estereótipos e imagens étnicas (Luanda 2002 e Varsóvia 1990) e Estrutura Social da Sociedade Colonial Angolana (Varsóvia 1989). Foi agraciado com o o Prémio Nacional de Cultura e Artes de Angola, na modalidade de investigação em ciências sociais e humanas (2002). É editor da Revista Angolana de Sociologia. [email protected]

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Desafios para Moçambique

Carlos Pimenta

REFERÊNCIA

Luís de Brito, Carlos Castel-Branco, Sérgio Chichava, António Francisco (org.) (2011). Desafios para Moçambique. 2011, Maputo: Instituto de Estudos Sociais e Económicos

1 1. Desafios para Moçambique. 2011 é um livro recente organizado por Luís de Brito, Carlos Nuno Castel-Branco, Sérgio Chichava e António Francisco, com a participação de dezoito autores, produzido e editado pelo IESE – Instituto de Estudos Sociais e Económicos. Este instituto funciona em Maputo (Moçambique) e está aberto ao mundo através da sua página www.iese.ac.mz.

2 É o segundo ano consecutivo que o IESE lança um livro sobre Moçambique, que pretende intervir “sobre algumas das grandes questões que a sociedade moçambicana enfrenta, ou deve enfrentar”. É uma obra de intervenção política, que foi estimulada pelas reacções registadas quando do lançamento do livro referente a 2010: “as numerosas intervenções registadas … mostraram que, particularmente no seio dos jovens, a preocupação com os problemas do país alimenta o espírito de cidadania, não obstante um aparente desinteresse pela coisa pública”. Uma obra de intervenção política que não é politiqueira, conjuntural, ao sabor da ocasião, mas antes rigorosa, científica, gerando um “debate tão abrangente, inclusivo, pluralista, multidisciplinar, heterodoxo, inovador e útil quanto possível”. Gerar esse debate é “um dos papéis fundamentais dos intelectuais e investigadores na luta pela conquista, construção e exercício da cidadania” (p. 15), que em primeiro lugar tem de ser exercida no seu próprio país.

3 O tema central da obra é o Estado que, nas palavras dos autores, tem de responder “às necessidades do conjunto da sociedade e não apenas aos interesses de um pequeno grupo” (p. 16). Essa temática é brilhantemente iniciada por um texto de Óscar Monteiro que, a partir da “artificialidade histórica da construção do Estado em África” (p. 16), analisa a possibilidade de uma “refundação do Estado” de baixo para cima, assente na descentralização e na participação. O autor, caldeado na sua longa experiência política

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e na sua actividade de académico, levanta situações, formula problemas e lança desafios que, centrados sobre Moçambique, são universais e especialmente pertinentes para todos os países africanos.

4 Seguem-se-lhe dois outros artigos que analisam as experiências concretas de descentralização e um outro que trata da legislação eleitoral.

5 Porque o trabalho do IESE é multidisciplinar, muitas vezes capaz de criar novas problemáticas e de as abordar com a participação unificada de diversos saberes, após este primeiro grupo de textos sobre “Política” seguem-se outros sobre “Economia” e “Sociedade”, todos eles encastrados no tema central da obra. Os cinco estudos económicos analisam um tema central no mundo contemporâneo, particularmente acutilante em África, dada a sua dependência da ajuda externa: o financiamento do Estado. “[N]um contexto em que a decisão sobre políticas não é independente do financiamento externo, quando não é mesmo directamente condicionado … cria-se … uma situação em que o governo tende a ser mais reactivo e prestador de contas à «comunidade doadora» que aos seus cidadãos” (p. 17).

6 “Moçambique no mundo” é o objecto da quarta secção. Nela se detecta, entre outros aspectos, o conflito entre as necessidades do país e o tipo de relações externas: embora a agricultura seja, para Moçambique, a área prioritária para a cooperação, os investimentos externos “estão principalmente direccionados para a indústria extractiva e a construção” (p. 19). Na sequência desta constatação, defendem que a ajuda externa, enquanto necessária, deve “ser usada de forma a criar capacidades produtivas internas «diversificadas, articuladas e sustentáveis, capazes de alimentar a economia e satisfazer as necessidades objectivas do consumo social», cabendo ao Estado um papel de direcção estratégica do processo” (p. 19).

7 Estamos, em síntese, face a uma obra que é a resposta ao “desafio da construção de um Estado democrático” (p. 19), em que fica em aberto o que se entende por “Estado democrático”, cabendo a cada autor, na pluralidade e liberdade de conceptualização e intervenção, a apresentação científica da sua posição.

8 2. Feita a breve apresentação desde livro de leitura obrigatória para quantos se preocupam com a natureza do Estado em África, cabe dizer algumas palavras breves sobre o IESE, embora tudo o que possamos dizer esteja plasmado no seu sítio informático.

9 O IESE é uma organização moçambicana independente e sem fins lucrativos, cuja missão é a “promoção de investigação social e económica de alta qualidade e relevante sobre as problemáticas de desenvolvimento, governação, globalização e política pública em Moçambique e na África Austral, privilegiando uma abordagem de economia política, interdisciplinar e heterodoxa, e criando um espaço pluralista de estudo, debate e difusão de conhecimento e informação”.

10 O seu trabalho de investigação e divulgação tem sido notável desde a sua constituição em 19 de Setembro de 2007, sempre orientado por uma postura de rigor, interdisciplinaridade e heterodoxia, de reflexão crítica sobre a sociedade.

11 Centrados sobre Moçambique, analisam o mundo e lançam debates, reflexões e hipóteses de soluções que são universais.

12 3. Ao apresentarmos estas breves notas de leitura, esperamos estar a contribuir para que outras instituições com preocupações similares estabeleçam relações de

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cooperação com o IESE, reforçando um diálogo em rede, sobre África e em África, que é fundamental.

AUTOR

CARLOS PIMENTA Economista. Doutor em Economia e Professor Catedrático na Faculdade de Economia da Universidade do Porto. Fundador e investigador do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto. Fundador e director do Observatório de Economia e Gestão de Fraude. Tem como áreas fundamentais de investigação a globalização, o desenvolvimento em África, a economia subterrânea, a fraude, a interdisciplinaridade e a epistemologia da Economia. É autor, dentre outros, dos livros Globalização: Produção, Capital Fictício e Redistribuição, Ideias. Economia (2004), Pensar a Economia (Exercícios de Economia) (1993/1996), Salários em Portugal (1989), Economia Portuguesa. Uma Experiência, uma Análise (1984), Como fazer o Controlo de Produção (1983), Os Monopólios e a Política Antimonopolista no Portugal de Hoje (1975) e co-autor de Um Olhar sobre os Rankings (2004), A Estratégia Nacional de Portugal desde 1926 até 2000 (2002), La stratégie nationale du Portugal de 1926 à nos jours (2000), Curva de Phillips em Portugal (1983). [email protected]

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A História da África Negra revisitada1

Júlio Mendes Lopes

REFERÊNCIA

Boubakar N. Keita (2009). História da África Negra. Síntese de História Política e de Civilizações, Luanda: Texto Editora

1 O Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) de Luanda acolhe hoje a cerimónia de apresentação da obra do Prof. Boubakar Keita, História da África Negra, que surge na esteira dos mais conceituados investigadores sobre a problemática africana.

2 Esta obra, dividida em duas partes, abarca a evolução do continente desde a pré- história até às vésperas da expansão europeia do séc. XV. Nas suas trezentas páginas, o Prof. Keita deteve-se nos aspectos que explicam a singularidade histórica de África enquanto berço indiscutível da humanidade. Sobre esta temática, sistematizou as origens e a evolução do homem concentrando-se em três grandes regiões em África, em que se realizou o processo de hominização com maior coerência: o desfiladeiro de Oldoway na Tanzânia, o vale do rio Omo e Melka Kontouré, na Etiópia.

3 Quanto à Antiguidade, o Egipto faraónico é aqui tratado com pormenor e enfatiza o facto de ter lançado as bases do primeiro Estado organizado do mundo, que manteve relações com os seus vizinhos – a Núbia e o Aksum.

4 Sobre o Egipto faraónico, o livro traz informações de extrema importância. Foi o país que albergou milhares de conceituados pensadores gregos e romanos na Antiguidade, que receberam ensinamentos nos diversos domínios, como a filosofia, a medicina, matemática, astronomia, metalurgia, geometria, física e agronomia, entre outros. Não se esquece de enfatizar o ambiente que permitiu o surgimento da primeira universidade do mundo (Al Azhar). Alguns autores europeus reconhecem a importância histórica do Egipto e lamentam o facto de se o estar a negligenciar nos manuais de História, onde se valorizam mais a Grécia e Roma. O historiador francês Christian Jacq

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[1999: 12] refere-se a esse aspecto de maneira seguinte: “A ideia feita de que o Egipto é uma civilização pré-filosófica, enquanto a Grécia e Roma foram as primeiras culturas capazes de ‘pensar’ e de ‘fazer a ciência’, é uma das premissas mais falsas que possam existir. É muito lamentável que o Egipto ocupe um lugar restrito no processo educativo quando tem um papel fundamental no nosso espírito como na nossa memória mais profunda”.

5 Para dar cobertura a essas constatações, Boubakar Keita detém-se com profundidade em mais de 50 páginas da obra focando aspectos fundamentais como as três grandes fases da História egípcia (O Império Antigo, Médio e Novo) e sem perder de vista o seu imenso património e as causas do seu declínio.

6 Nas diferentes linhas da obra, verifica-se que o autor está nos trilhos de Cheikh Anta Diop (1923--1986) [1980: 68] que, nas obras que nos deixou, defendia que “a Antiguidade egípcia é, para a cultura africana, o que é a Antiguidade greco-romana para a cultura ocidental”. Sem desprimor para outros Estados, Boubakar Keita chama à atenção para a importância da Núbia ou Kush, com os seus dois principais centros urbanos (Napata e Meróe), cujo papel histórico na Antiguidade foi de vínculo real entre a África Central ou a África dos Grandes Lagos e da bacia do rio Congo – importante ponto de encontro de povos e culturas, e o mundo mediterrânico, ou ainda, entre o Sara e o deserto da Arábia, passando pelas costas do Mar Vermelho (p. 129 e seg.).

7 A segunda parte trata da chamada África Medieval e rebate o conceito de Idade Média quando aplicado ao continente. Remete-nos para a necessidade de rever a periodização clássica da história da humanidade. A obra revela ainda a imponência e a magnitude de Estados como o Gana, Sosso, Mali, Songhay, Kanem-Bornu, os Estados-haussa e o Zimbabué, desintegrados pela nova ordem mundial iniciada no séc. XV. Ao percorrer as páginas deste livro, percebe-se facilmente o imenso património deixado. Nesse particular, são abundantes as informações sobre o comércio transhariano e as cidades que cresceram em face disso, como Teghaza, Walata, Kumbi Salé, Mpoti, Gao, Djenné e Tlemence, o surgimento da primeira Universidade da África Negra (Tumbuktu), a chegada dos africanos à América antes de Cristóvão Colombo, cujo feito pertence a Aboubakar-II, imperador do Mali. Nas suas duas tentativas (1310 e 1311), a primeira expedição marítima fracassou e a segunda chegou a América.

8 Esta obra remete-nos ainda para uma reflexão sobre a necessidade da reestruturação dos programas de história em todos os níveis de ensino.

9 A introdução do ensino da história de África na escola secundária permitirá que os jovens compreendam como evoluiu o continente, os seus problemas e esperanças e que sejam capazes de considerá-lo na sua totalidade.

10 Esse desejo foi manifestado pelo então director-geral da UNESCO, Amadou Mathar Mbow [1980], quando prefaciou os oito volumes da História Geral de África. Era seu desejo ver a história de África ser amplamente divulgada em várias línguas e servisse para elaborar livros infantis, manuais escolares e programas de rádio e de televisão. Estava convicto que desta maneira jovens, escolares, universitários e adultos, de África e de outras partes do mundo, dispusessem de uma visão mais correcta do passado do continente africano e dos factores que o explicam, assim como uma compreensão mais justa do seu património cultural e da sua contribuição para o progresso geral da humanidade.

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11 Passados mais de vinte anos da publicação de tão importante obra, os livros infantis, estes manuais escolares e programas de rádio e de televisão ainda estão por se concretizar. As reformas dos programas de história ainda apresentam falhas gritantes no domínio da história de África.

12 A importância do ensino da História de África foi reconhecida pelo eminente historiador norte-americano Philip Curtin [1980: 73], ao considerar que “para os africanos, o conhecimento do passado de suas próprias sociedades representa uma tomada de consciência indispensável ao estabelecimento da sua identidade em um mundo diverso e em mutação. Longe de ser considerada uma custosa fantasia, que pode ser posta de lado até que estejam sob controlo os elementos prioritários do desenvolvimento, a história da África revelou-se nos últimos decénios um elemento essencial do desenvolvimento africano”.

13 O mesmo autor considera ainda que “é por esta razão que, na África e em outros lugares, a primeira preocupação dos historiadores foi ultrapassar os vestígios da história colonial e reatar os laços com a experiência histórica dos povos africanos que a história enquanto tradição viva e desabrochar constante, do papel dos conhecimentos históricos na elaboração de novos sistemas de educação para servir à África independente”[Curtin 1980: 7].

14 Na realidade, as obras já consagradas de autores africanos como Joseph Ki-Zerbo, Cheikh Anta Diop, Elikia Mbokolo, Theophile Obenga, Ibrahima Baba Kaké e os oito volumes de História Geral de África são importantes instrumentos didácticos que oferecem uma visão geral das sociedades africanas no passado, quer no período antes da expansão europeia, em que há um desenvolvimento endógeno e independente, como para períodos posteriores caracterizados pelo longo período do tráfico transatlântico de escravos, o processo de ocupação efectiva, a colonização, a fase da conquista das independências e a gestão dos novos Estados.

15 Com algumas diferenças de conteúdo entre os autores citados, eles cobrem em muitos aspectos as necessidades mais prementes para formação dos jovens, na medida em que os finalistas dos institutos médios enveredam pela vida profissional activa e começam a manter relações de amizade e profissionais com jovens de outros países africanos.

16 As questões levantadas pelos clássicos da História de África sugerem uma apropriação por parte dos futuros professores, juristas, economistas, médicos e engenheiros, para que não se crie neles o espírito de inferioridade diante do ímpeto das sociedades ocidentais e dos seus valores culturais. Como bem sublinhava Ki-Zerbo [2002: 9], “para os africanos, trata-se da procura de uma identidade por meio da reunião dos elementos dispersos de uma memória colectiva. Este ardor subjectivo tem, ele próprio, o seu funcionamento objectivo no acesso à independência de numerosos países africanos”. Prossegue dizendo que “a história africana deve ser uma fonte de inspiração para as novas gerações, para os políticos, os poetas, os escritores, os homens de teatro, os músicos, os cientistas em todos os campos e também simplesmente para o homem da rua” [Ki-Zerbo 2002: 38].

17 O mesmo autor insistia reiteradamente que “o conhecimento da história africana deve ser olhado como uma parte integrante do desenvolvimento, mesmo económico. Para alguém se sentir empenhado na construção do futuro é preciso que se sinta herdeiro de um passado. Importa pois que o homem de Estado africano se interesse pela história como parte essencial do património nacional que ele deve gerir” [Ki-Zerbo 2002: 36].

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Sugeria ainda que “a unidade africana pressupõe o conhecimento de toda a África por todos os africanos. Mas para isso é necessário que haja historiadores e bons historiadores africanos. Ora é impossível havê-los se, desde a escola primária e secundária, os jovens não têm nas mãos compêndios de história africana” [Ki-Zerbo 2002: 36].

18 Esta obra de Boubakar Keita vem coroar as mais de duas décadas de labuta docente e investigativa do autor que, durante estes anos, reparte entre o ISCED de Luanda e a Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto. Está no prelo o II volume desta magnífica obra, para os alunos e estudantes do nosso país e não só.

BIBLIOGRAFIA

CURTIN, P.D., 1982: “Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição à história geral”, in História Geral da África: I metodologia e pré-história da África, São Paulo: Ática + UNESCO, pp. 73-89.

DIOP, Cheick Anta, 1980: “A Origem dos Antigos Egípcios”, in História Geral da África: I metodologia e pré-história da África, São Paulo: Ática + UNESCO, pp. 39-70.

JACQ, Christian, 1999: Poder e Sabedoria no Egipto Antigo, Lisboa: Pergaminho.

KI-ZERBO, Joseph, 2002: História da África Negra, Lisboa: Publicações Europa-América.

MBOW, M. Amadou Mahtar, 1980: “Prefácio”, in História Geral da África: I metodologia e pré-história da África, São Paulo: Ática + UNESCO, pp. 9-14.

NOTAS

1. Apresentação do livro no Instituto Superior de Ciências de Educação de Luanda, no dia 14 de Outubro de 2009.

AUTOR

JÚLIO MENDES LOPES Historiador. Mestre em Ensino de História de África, Assistente de História de África no Instituto Superior de Ciências da Educação de Luanda e no Instituto Superior João Paulo II da Universidade Católica de Angola. É autor dos livros Olhar sobre África (2009) e Caminho-de-Ferro do Amboim (2002). [email protected]

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Obituário

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Pe. Dr. Muanamosi Matumona (1965-2011)

Obituário

1 Muanamosi Matumona nasceu no Uíje (Angola) em 1965 e faleceu em Luanda (Angola), no dia 13 de Abril de 2011. Sacerdote católico, jornalista e professor de Sociologia, de Filosofia Africana e de Comunicação Social.

2 Estudou Filosofia, Teologia, Sociologia e Comunicação Social em Lisboa, no Porto (Portugal) e em Roma (Itália). Pós-graduado em Comunicação Social e Doutor em Teologia Fundamental pela Universidade Católica Portuguesa, estava a preparar um segundo doutoramento (em Sociologia).

3 Foi ordenado sacerdote em 1995. Trabalhou como sacerdote na Dioceso do Uíje (Angola).

4 Jornalista desde 1982, trabalhou no “Jornal Desportivo Militar”, “Jornal de Angola”, “Jornal dos Desportos”, agência de notícias ANGOP e jornal “O Apostolado”. Trabalhou

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também na emissora provincial do Uíge da Rádio Nacional de Angola, onde produziu e apresentou o programa “Antena Luz”.

5 À data do seu passamento, era Director da Rádio Ecclesia–Emissora Católica de Angola (com sede em Luanda) e Director do jornal “O Apostolado”.

6 Foi membro do Sindicato de Jornalistas Angolanos.

7 Professor de Sociologia, Comunicação Social, Filosofia Africana e História de África Contemporânea na Universidade Agostinho Neto e no Seminário Maior do Uíje. Na Universidade Agostinho Neto, trabalhou no ISCED do Uíge e, mais tarde, na Faculdade de Ciências Sociais (em Luanda).

8 É autor dos seguintes livros:

9 - Filosofia Africana na linha do tempo. Implicações epistemológicas, pedagógicas e práticas de uma ciência moderna (2010),

10 - Os media na era da globalização. Para uma sociologia do jornalismo angolano (2009),

11 - Teologia Africana da Reconstrução como novo paradigma epistemológico. Contributo lusófono num mundo em mutação (2008),

12 - Cristianismo e Mutações Sociais. Elementos para uma Teologia Africana da Reconstrução (2005),

13 - A Reconstrução de África na Era da Modernidade. Ensaio de uma Epistemologia e Pedagogia da Filosofia Africana (2004),

14 - Jornalismo angolano. História, desafios e perspectivas (2002).

15 Foi membro do Conselho Científico da Revista Angolana de Sociologia.

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Nota fúnebre da Sociedade Angolana de Sociologia (SASO)

Víctor Kajibanga

1 A morte do padre Muanamossi Matumona surprendeu os membros da Sociedade Angolana de Sociologia (SASO), que viam nele uma das figuras promissoras da Sociologia pátria e não só.

2 Jornalista, sacerdote, teólogo, sociólogo e professor universitário, Muanamossi Matumona, inspirado no programa “Reconstrucing Africa”, debitou contributos originais à Sociologia Africana de Reconstrução e à Sociologia da Paz, conquistando o lugar de uma das figuras centrais da Sociologia Angolana da última década. Deixou livros e artigos sobre esta temática apaixonante.

3 Para além disso, debitou sérios contributos para a Sociologia do Jornalismo Angolano, tendo inclusivamente deixado dois livros sobre esta temática (de 2002 e 2009).

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4 Como sacerdote e patriota, Muanamossi Matumona defendeu a promoção da justiça e da paz para a salvação integral do homem angolano.

5 À família enlutada, à Igreja Católica, à Academia Angolana, à Rádio Ecclesia e às associações de jornalistas, a Sociedade Angolana de Sociologia apresenta as mais sentidas condolências.

6 Luanda, 14 de Abril de 2011.

AUTOR

VÍCTOR KAJIBANGA O Presidente da SASO Sociólogo, é diplomado, Mestre e Doutor em Sociologia pela Universidade Estatal de Moscovo «Lomonosov». É Professor Titular na Universidade Agostinho Neto, Decano da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, investigador no Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, investigador no Centro de Estudos Africanos do ISCTE (Lisboa) e Presidente da Sociedade Angolana de Sociologia (SASO). Foi Vice-reitor da Universidade Agostinho Neto e Decano do Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) de Luanda da Universidade Agostinho Neto. É autor do livro: A Alma Sociológica na Ensaística de Mário Pinto de Andrade. Uma Introdução ao Estudo da Vida e Obra do Primeiro Sociólogo Angolano (Luanda 2000). É Director da Revista Angolana de Sociologia. [email protected]

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A propósito do passamento do Pe. Muanamosi Matumona - O Padre erudito e intelectual1

Paulo de Carvalho

1 Como é habitual, hoje de manhã cumpri o ritual de ligar o telemóvel depois de me levantar da cama. Como tinha ficado a trabalhar até tarde, despertei pouco antes das 7 horas.

2 Entrou logo de imediato uma mensagem seca, com o seguinte teor: “Muanamosi, Director-Geral da Rádio Ecclesia, morreu ontem à noite.” Como assim? – indaguei-me. Reli a mensagem, enviada às 6h32 pelo meu colega e amigo Joaquim Paulo da Conceição.

3 O que havia a fazer, então? Nada mais poderia ser feito. O amigo Muanamosi tinha já passado para outra dimensão, uma dimensão por onde todos já passámos e onde todos nos havemos de reencontrar, independentemente da posição social que cada um ocupa deste lado da barricada.

4 Puxa, que aborrecido ele não me ter enviado o texto para a conferência que tinha ficado de proferir no Porto, esta sexta-feira. Que coisa… Teria sido tão bom o nosso amigo Kajibanga apresentar a comunicação do Padre Matumona, recordando assim a sua memória de forma exemplarmente académica.

5 Chegaram, logo a seguir, mensagens com idêntico teor, remetidas pelo também sociólogo Manuel João Fernando, pelo meu amigo Afonso Dala e pelo mano Arlindo Isabel. Não havia volta a dar. Ligar a rádio? – pensei. Não, não vale a pena – decidi. Não há volta a dar, mesmo.

6 Lá tive que dar a notícia ao Kajibanga, que está no Porto. Fi-lo por mensagem telefónica, nos seguintes termos: “Não vais poder apresentar a comunicação do Pe. Muanamosi Matumona. Faleceu ontem à noite…” E telefonei a apresentar os pêsames ao irmão do amigo Muanamosi, o Prof. Ntalani Manuel, colega da Faculdade de Economia.

7 Foi na passada quinta-feira, 7 de Abril, que tentei entrar em contacto telefónico com o Pe. Matumona. Queria abordar a possibilidade de ele presidir ao júri de licenciatura de um estudante nosso, do curso de Comunicação Social. Não consegui o contacto. Insisti

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várias vezes na sexta-feira de manhã e em nenhuma delas obtive resposta do colega. Não atendia as chamadas. Por isso, enviei a seguinte mensagem: “Sr. Padre, bom dia. Tem disponibilidade para integrar um júri, para defesa na próxima semana? Volto a ligar.”

8 Nas minhas andanças desse dia, pensei em passar pela Rádio Ecclesia para fazer o contacto. Mas não passei, porque às 12h14 (finalmente!) chegou mensagem do colega Matumona: “Estou fora da cidade, em retiro. Ligo depois do jantar, para responder. Obrigado pela compreensão.”

9 Estava tudo esclarecido. Aguardaria, pois pelo seu feed-back. Mas nesse dia não telefonou. Nem nesse dia, nem em qualquer outro. Lá fui insistindo no sábado e domingo, sem conseguir sequer ligação. Remeti mais duas mensagens, porque a decisão de composição do júri tinha de ser tomada até domingo à noite, para distribuição do trabalho, pré-defesa e defesa no espaço dos próximos 10 dias.

10 Nesse domingo, dia 10, quando eram 17h20, chegou a seguinte mensagem ao meu telemóvel: “Avisa Dr. Kajibanga que já não vou ao Porto. Estou internado Hosp. Militar. Tensão altíssima.”

11 Apanhei um susto. Não esperava. Que problemas teria ele, para lhe ocorrer um incidente destes? Como é habitual, pensei que teria sido algo passageiro. Mas é claro que tratei imediatamente de lhe retirar a tarefa de leitura de um trabalho de licenciatura, tendo assumido eu substituí-lo.

12 Dei-lhe a conhecer os dois factos – a surpresa e a decisão de o substituir eu. Dele, recebi a seguinte mensagem: “Foi surpresa.” Quer dizer que a súbita subida de tensão arterial tê-lo-á apanhado desprevenido, pois que eu saiba até não estava a tomar medicamentos com esse fim.

13 Lá prossegui eu: “Muito repouso e deixe de lado as preocupações, Sr. Padre. Precisamos de si com saúde!” E dele recebi, já à noite: “Obrigado.” Foi esta a última mensagem que recebi do colega Matumona. Depois disso lá fui insistindo diariamente, sem qualquer resultado. E do Víctor Kajibanga recebi a incumbência de obter dele o texto da comunicação, para ser apresentado na conferência do Porto. Não consegui obtê-lo. Estava a pensar passar pelo hospital na quinta-feira para tratar disso. Debalde. Era já tarde demais. Afinal, ainda que tivesse passado por lá na quarta-feira, não o teria visto, pois estava já na divisão de cuidados intensivos.

14 * * *

15 Em várias ocasiões privei com o Pe. Dr. Muanamosi Matumona. Conheci-o através dos seus escritos, que o Víctor Kajibanga colecciona. O Kajibanga conheceu-o depois numa conferência, mas eu não o conheci nessa altura pois estava na sala ao lado e ele depois desapareceu.

16 Como soube que esteve uns tempos em Roma, tive que andar à cata do endereço electrónico do Pe. Matumona para o convidar a integrar o Conselho Científico da Revista Angolana de Sociologia. Quem me ajudou a consegui-lo foram colegas do Jornal de Angola, nomeadamente o Cafussa, o Caetano e o Aleluia. E assim começou um relacionamento cordial próximo, que fomos mantendo e avivando ao longo dos últimos anos.

17 Deu-me todo o apoio, sempre que dele precisei. Também apoio espiritual dele recebi, em várias ocasiões.

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18 O nosso último convívio ocorreu durante a correcção das provas do exame de admissão ao curso de Comunicação Social da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto. Nessa altura, em Março último, rimo-nos a bom rir com os muitos disparates escritos pelos candidatos que prestaram tal exame.

19 * * *

20 O Padre Matumona era sacerdote católico na Diocese do Uíge, tendo estudado Filosofia, Teologia, Sociologia e Ciências da Comunicação no Porto e em Lisboa. Pós-graduado em Comunicação Social, tinha ainda um Doutoramento em Teologia Fundamental pela Universidade Católica Portuguesa e estava a preparar um Doutoramento em Sociologia. Depois de se ter fixado recentemente em Luanda, passou a ser docente do curso de Comunicação Social na Faculdade de Ciências Sociais da UAN, onde é regente das disciplinas de Sociologia, Sociologia da Comunicação, Retórica e Argumentação, Técnicas de Imprensa e Atelier de Jornalismo escrito e Foto-reportagem.

21 Como jornalista, trabalhou no “Jornal de Angola”, no “Jornal dos Desportos” e, recentemente, na Rádio Ecclesia, onde assumia a função de Director.

22 Erudito, com largos milhares de horas de leitura e de reflexão, o Pe. Muanamosi Matumona deixa vasta obra académica. Para além de artigos em revistas académicas, é autor dos seguintes livros:

23 - Filosofia Africana na linha do tempo. Implicações epistemológicas, pedagógicas e práticas de uma ciência moderna (2010),

24 - Os media na era da globalização. Para uma sociologia do jornalismo angolano (2009), que tive a honra de prefaciar,

25 - Teologia Africana da Reconstrução como novo paradigma epistemológico. Contributo lusófono num mundo em mutação (2008),

26 - Cristianismo e Mutações Sociais. Elementos para uma Teologia Africana da Reconstrução (2005),

27 - A Reconstrução de África na Era da Modernidade. Ensaio de uma Epistemologia e Pedagogia da Filosofia Africana (2004),

28 - Jornalismo angolano. História, desafios e perspectivas (2002).

29 Por tudo isto, espero que o ISCED do Uíge (onde leccionou durante vários anos) e a Faculdade de Ciências Sociais da UAN atribuam o nome do Dr. Muanamosi Matumona a uma sala de leitura, anfiteatro ou biblioteca. Pela obra que deixou e por ter erguido o nome da sua cidade, penso que o Município do Uíge deva também atribuir o seu nome a uma das ruas por si frequentadas.

30 Foi-se o homem, fica a obra. Rendamos homenagem ao sociólogo, jornalista, teólogo e pastor Muanamosi Matumona. Que o seu exemplo seja seguido por outros jovens que abracem as profissões de sociólogo e de jornalista.

31 Nós, que com ele privámos, orgulhamo-nos de ter conhecido e de termos como colega o Padre erudito, intelectual e, simultaneamente, jornalista desportivo que vivia o desporto com sentida emoção. Assim o recordaremos.

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NOTAS

1. Artigo publicado no Semanário Angolense, Luanda, 16 de Abril de 2011.

AUTOR

PAULO DE CARVALHO Sociólogo. Doutor em Sociologia pelo ISCTE (Lisboa, Portugal) e Mestre em Sociologia pela Universidade de Varsóvia (Polónia). Professor Titular na Universidade Agostinho Neto. Foi Reitor da Universidade Katyavala Bwila (Benguela, Angola – 2009-2011) e dirigiu a Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto (2005-2006). É investigador no CIES do ISCTE–Instituto Universitário de Lisboa. É autor de dezenas de pesquisas sociológicas com utilização de técnicas qualitativas e quantitativas, tendo como principais áreas de investigação: a exclusão social, a pobreza, a Sociologia Política, os problemas sociais, as normas de consumo, as relações étnicas, a delinquência e a audiência de media. É autor, dentre outros, dos livros: A campanha eleitoral de 2008 na imprensa de Luanda (Luanda 2010); Exclusão Social em Angola. O caso dos deficientes físicos de Luanda (Luanda 2008), «Até você já não és nada…!» (Luanda 2007), Angola. Quanto Tempo Falta para Amanhã? Reflexões sobre as crises política, económica e social (Oeiras 2002), Audiência de Media em Luanda (Luanda 2002), Estrangeiros na Polónia. Adaptação, estereótipos e imagens étnicas (Luanda 2002 e Varsóvia 1990) e Estrutura Social da Sociedade Colonial Angolana (Varsóvia 1989). Foi agraciado com o o Prémio Nacional de Cultura e Artes de Angola, na modalidade de investigação em ciências sociais e humanas (2002). É editor da Revista Angolana de Sociologia. [email protected]

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Miscelânea

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Boaventura de Sousa Santos venceu o Prémio México de Ciência e Tecnologia–2010

Boaventura de Sousa Santos

1 O Prémio México de Ciência e Tecnologia–2010 foi outorgado ao sociólogo Boaventura de Sousa Santos, pelo seu contributo para o conhecimento científico universal e, em particular, no espaço ibero--americano. Pela primeira vez, o prémio (no valor de 37 mil euros) distinguiu um cientista social. Para além disso, é também a primeira vez que é atribuído a um cientista português.

2 Trata-se de um galardão de prestígio internacional concedido anualmente a um investigador de reconhecido mérito profissional, que tenha contribuído para o avanço tecnológico ou para o desenvolvimento das ciências; que se tenha destacado pelo impacto internacional das suas contribuições; por ter criado escola; pela sua contribuição para a formação de recursos humanos; e pelo facto de o seu trabalho ter sido desenvolvido, fundamentalmente, num ou mais países das regiões Ibero- Americana e Caribenha.

3 Os contributos científicos e cívicos de Boaventura de Sousa Santos estendem-se pelos mais diversos países ibero-americanos, onde o investigador tem desenvolvido (em equipas multidisciplinares) estudos sobre a justiça e os movimentos sociais no Brasil, Colômbia, Bolívia e Equador; tem participado como consultor nos processos de revisão constitucional na Bolívia e no Equador; tem analisado os processos de consolidação e participação democrática; tem analisado os complexos mecanismos de integração das comunidades indígenas em diversos países, numa perspectiva de garantia dos direitos humanos. Tem ainda sido professor convidado para palestras e conferências em várias universidades do espaço ibero-americano na Argentina, Bolívia, Brasil, Costa Rica, Equador, México, Peru, Uruguai, Venezuela e em universidades africanas, asiáticas, europeias e norte-americanas. Foi um dos grandes impulsionadores da criação do CES- América Latina1, em Belo Horizonte (Brasil), com o objectivo de incrementar um diálogo interdisciplinar entre investigadores, compatível com a diversidade social, cultural, económica e política latino-americana. O seu empenho para consolidação do

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Fórum Social Mundial, que iniciou em Porto Alegre (Brasil) em 2001, foi amplamente reconhecido pelos movimentos e organizações sociais participantes. A sua vasta obra tem sido publicada em quase todos os países latino-americanos, com impacto crescente na teorização das ciências sociais nas comunidades académicas e, igualmente, junto dos movimentos sociais e dos governos progressistas, originando um movimento crescente de estudantes que procuram o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra para realizar estudos de pós-graduação.

4 O prémio foi instituído há vinte anos pela Presidência da República do México, com o objectivo de estreitar as relações entre as comunidades científicas e tecnológicas dos países das regiões Ibero-Americana, Caribenha e México. Em duas décadas, o Prémio México de Ciência e Tecnologia distinguiu sobretudo cientistas brasileiros (7) e espanhóis (5), tendo até ao momento sido privilegiadas as áreas das matemáticas, física e biologia.

5 Boaventura de Sousa Santos, Doutor pela Universidade de Yale (JSD, 1973), é Professor Catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Distinguished Legal Scholar da Universidade de Wisconsin-Madison (EUA) e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick (UK). É Director do Centro de Estudos Sociais (onde dirige, igualmente, o Observatório Permanente da Justiça Portuguesa) e do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra. A sua carreira estende-se por 4 décadas, afirmando-se como um dos cientistas sociais portugueses com maior projecção internacional.

6 Mais informações sobre o prémio podem ser obtidas em: http://www.ccc.gob.mx/ premio-mexico-historia-y-estadisticas

Palavras de aceitação do prémio

Boaventura de Sousa Santos

7 Señor Presidente de los Estados Unidos Mexicanos,

8 Excelentísimas Autoridades,

9 Estimados Colegas,

10 Señoras y Señores,

11 Es para mí un honor muy especial recibir este Premio. En primer lugar, por ser la primera vez que este Premio es atribuido a un científico social. En ese sentido, lo más importante para mí es que se haya reconocido la importancia y la validez epistemológica de este vasto campo del saber.

12 Particularmente importante en un contexto donde tantos cambios están convulsionando los saberes, las prácticas sociales, las instituciones, los derechos humanos, los regímenes democráticos. Importante también porque vivimos un tiempo de transición paradigmática en que la dicotomía rígida entre ciencias naturales y ciencias sociales ya no vale y da lugar a constelaciones de saberes donde se combinan de manera transdisciplinaria conocimientos de diferentes disciplinas científicas, así como conocimientos no científicos nacidos de la experiencia de los pueblos y de sus luchas.

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13 El ejemplo más contundente es quizás la cuestión ambiental. La Conferencia intergubernamental sobre el cambio climático realizada hace poco en Cancún ha mostrado que los retos que enfrentamos nos obligan a ir más allá de las disciplinas y de las soluciones técnicas que ellas nos ofrecen. Estos retos implican una dimensión de cambio civilizatorio y suponen la traducción intercultural tanto entre saberes como entre prácticas sociales y sus agentes.

14 Es también significativo que, dado el pluralismo interno de las ciencias en general, haya sido premiado el tipo de ciencia social crítica que busco realizar desde hace cuarenta años. Una ciencia social objetiva pero no neutra, una ciencia social comprometida con las luchas de los oprimidos y discriminados, con el fortalecimiento de la democracia de alta intensidad y de los derechos humanos, con la utopía de un futuro poscapitalista y poscolonial, con un horizonte de emancipación; en suma, solidaria y comprometida con la idea de que otro mundo no sólo es deseable, sino también posible.

15 En segundo lugar, es un honor recibir un Premio que pertenece por igual a los colegas y amigos mexicanos con quienes aprendí tanto y con quienes compartí tanta labor científica y lucha social. Sería imposible nombrarlos a todos. Pero no puedo olvidar a Pablo González Casanova, Rodolfo Stavenhagen, Enrique Dussel, Héctor Díaz-Polanco, Ana Esther Ceceña, Enrique Leff, Raquel Sosa, Aída Hernández, Carlos Lenkersdorf, Antonio García de León, Bolívar Echeverría, Armando Bartra, Carlos Monsiváis, Gustavo Esteva, Xochitl Leyva Solano, Hugo Zémelman y José Gandarilla Salgado. A pesar de nuestra gran diversidad de opiniones, hemos convergido en la lucha por una sociedad más justa, más libre, más intercultural, en suma, más democrática.

16 Pero, y esta es la tercera razón del honor de recibir este Premio, el conocimiento que construimos se alimenta de la sabiduría de los pueblos y de sus luchas, sean ellos campesinos, obreros, indígenas, mujeres, estudiantes, desempleados, jóvenes víctimas de la violencia del narcotráfico, emigrantes humillados. Lo aprendí muy temprano cuando, en 1970, viví en una favela de Río de Janeiro. Lo aprendí poco después en el proyecto de educación popular dirigido por Iván Illich en Cuernavaca y compartido con exilados de Brasil y de Chile, en un contexto del que México es tan justamente orgulloso, el de dar acogida a todos los exilados de las dictaduras del siglo XX, de Europa y de América Latina. Lo aprendí más tarde en mi solidaridad con la lucha de los pueblos originarios en todo el Continente y, en México, con la lucha de los indígenas y zapatistas de Chiapas y de los indígenas y pobladores de Oaxaca.

17 Y, finalmente, lo estoy aprendiendo con la lucha de tantos jóvenes, hombres y mujeres, contra la violencia del narcotráfico que asfixia el país sobre todo en el Norte. Sus opiniones y estrategias de lucha pueden divergir de las oficiales, pero convergen en el mismo objetivo que el Señor Presidente formuló en su mensaje de Año Nuevo: “vamos a derrotar a los criminales para construir finalmente un México de paz, seguro, donde nadie esté al margen de la ley y donde nadie viva con temor”.

18 Nosotros, los científicos sociales comprometidos con nuestras sociedades y sus luchas, no podríamos estar más de acuerdo si por paz se entiende una paz justa; por seguridad, una seguridad no represiva y construida a partir del bienestar de las comunidades; y por ley, una ley que sea igual para todos bajo los principios fundamentales de la Constitución respetada por todos y muy particularmente por los tribunales independientes que son sus guardianes máximos. En fin, un prolongado camino por recorrer.

Revista Angolana de Sociologia, 7 | 2011 209

19 Ciudad de México, 14 de Enero 2011.

NOTAS

1. CES é a abreviatura do Centro de Estudos Sociais (da Universidade de Coimbra), ao qual pertence Boaventura de Sousa Santos.

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