UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

SILVIA AMANCIO DE OLIVEIRA

A ESCRITA DE SI E A MEMÓRIA NA LITERATURA NICARAGUENSE: EL PAÍS BAJO MI PIEL: MEMORIAS DE AMOR Y GUERRA, DE GIOCONDA BELLI

Guarulhos 2020

SILVIA AMANCIO DE OLIVEIRA

A ESCRITA DE SI E A MEMÓRIA NA LITERATURA NICARAGUENSE: EL PAÍS BAJO MI PIEL: MEMORIAS DE AMOR Y GUERRA, DE GIOCONDA BELLI

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras da Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para obtenção do título de Mestra em Letras.

Área de concentração: Estudos Literários Linha de pesquisa: Literatura e autonomia: entre estética e ética Orientadora: Profa Dra Graciela Foglia

Guarulhos 2020

Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos autorais nº 9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório Institucional da UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer ressarcimento dos direitos autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico para fins de divulgação intelectual, desde que citada a fonte.

OLIVEIRA, Silvia Amancio de.

A escrita de si e a memória na literatura nicaraguense: El país bajo mi piel: memorias de amor y guerra, de Gioconda Belli / Silvia Amancio de Oliveira. – 2020. – 113 f.

Dissertação (Mestrado em Letras). – Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, 2020.

Orientadora: Profª Drª Graciela Foglia

Título em espanhol: La escritura de sí y la memoria en la literatura nicaragüense: El país bajo mi piel: memorias de amor y guerra, de Gioconda Belli

1. Gioconda Belli. 2. Autoficção / 3. Identidade narrativa. 4.Escrita de si. 5. Memórias. I. Graciela Foglia. II. A escrita de si e a memória na literatura nicaraguense: El país bajo mi piel: memorias de amor y guerra, de Gioconda Belli.

SILVIA AMANCIO DE OLIVEIRA

A ESCRITA DE SI E A MEMÓRIA NA LITERATURA NICARAGUENSE: EL PAÍS BAJO MI PIEL: MEMORIAS DE AMOR Y GUERRA, DE GIOCONDA BELLI

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras da Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para obtenção do título de Mestra em Letras.

Área de concentração: Estudos Literários Linha de pesquisa: Literatura e autonomia: entre estética e ética Orientadora: Profa Dra Graciela Foglia

Aprovado em 29 de abril de 2020.

______Profº Drº Ivan Rodrigues Martin Universidade Federal de São Paulo (presidente da banca)

______Profa Dra Leila Aguiar Costa Universidade Federal de São Paulo (membro interno)

______Profa Dra Idalia Morejón Arnaiz Universidade Federal de São Paulo (membro externo)

Guarulhos 2020

Para Wilma, Selma e Cassia, minhas fortalezas em formas de mulher.

Para meu querido pai Celso (in memorian), que me viu ingressar nessa pesquisa, mas que agora me acompanha de mais perto. Aquele que sempre esteve comigo com seu jeito de gostar e me levou literalmente aos lugares mais importantes da minha vida. Obrigada mais uma vez, pai.

AGRADECIMENTOS

À minha família, que tanto me ajuda e torce por mim nas minhas invenções, por serem pacientes e compreensivos sempre que precisei.

Aos meus pequenos sobrinhos Níkolas e Luíza, por tornarem meus dias mais leves, vivos e encantadores.

À minha orientadora, Graciela Foglia, dona de uma humanidade rara e admirável, sem a qual eu certamente não teria terminado essa pesquisa; pela orientação minuciosa e por se permitir embarcar neste estudo comigo, me acompanhando na travessia.

À professora Idalia Morejón Arnaiz, pela leitura atenta, pelos comentários, críticas e sugestões na qualificação.

À professora Leila Aguiar Costa, pelas discussões durante as disciplinas do Programa que muito contribuíram para este trabalho.

Ao professor Ivan Martin, por ter criado doces e leves lembranças nas aulas da graduação e por aceitar participar da minha banca de defesa.

Ao professor Pablo Gasparini, por ter aceitado ser suplente nas bancas de qualificação e defesa.

Ao Caio, por emprestar seu olhar, sua tranquilidade e otimismo quando mais precisei.

Ao amigo-irmão e cunhado José Paulo, disposição quando já não via saída.

À Isabella Pacetti, grande amiga há muitos anos, pela paciência e pelo incentivo nos momentos de aflição.

Aos companheiros do grupo Zorbás, por terem me tolerado monotemática e mesmo assim me deram as mãos (não só na dança) e souberam entender minhas ausências.

Às companheiras professoras da luta diária pela educação pública, gratuita e de qualidade, Ana Elisa, Natalia, Isis, Dyva, Ana Paula, Érica e Raquel.

Aos meus queridos e enérgicos alunos da EMEF Profº Aurélio Arrobas Martins, pela força que me provocam e que são meu escape nos momentos mais difíceis.

Aos amigos de escola e de vida, pelo incentivo, momentos de companheirismo e descontração.

Às minhas amigas da graduação, desde os tempos de van, Mariana, Carolina e Bárbara, por sempre estarem por perto.

Ao Raul, por ter entendido minha ausência e falta de tempo.

Aos colegas de percurso, por partilharem experiências, estímulo e alguns dessabores na trajetória acadêmica, Victor, Francielly, Ana Lúcia, André, Santana, David e Mariana Pimentel.

Aos professores das disciplinas do mestrado Ivan Martin, Leila Aguiar, Orlando Vian e Ana Cláudia Romano Ribeiro.

À Helena Meidani, pelos anos na Confraria, pelo aprendizado e apoio de sempre.

Aos funcionários das bibliotecas Mario de Andrade, Florestan Fernandes e EFLCH, por me atenderem atenciosamente todas as vezes que precisei.

RESUMO

Esta pesquisa visa analisar como se constrói a identidade narrativa do sujeito em primeira pessoa no livro El país bajo mi piel: memorias de amor y guerra (2001), da autora nicaraguense Gioconda Belli, considerando tensões discursivas na elaboração da autoimagem envolvendo dualidades como público e privado, o corpo feminino e a revolução e a relação do Eu e o Outro. Valendo-se das memórias do processo revolucionário nicaraguense, esse sujeito se vai desenvolvendo discursivamente de modo a tornar-se uma espécie de ficcionalização de si, ou seja, uma autoficção de sua imagem mediada pelo uso da linguagem. Para alcançar esse objetivo, este trabalho vale-se das reflexões sobre identidade narrativa, de Paul Ricoeur (1991, 2010), da construção do sujeito pela e na linguagem, de Emile Benveniste (1989, 1991), e de considerações sobre autoficção a partir de Serge Doubrovsky (1971).

Palavras-chave: Gioconda Belli. Autoficção. Identidade Narrativa. Escrita de si. Memórias.

ABSTRACT

This research aims to analyze how the narrative identity of the subject in first person is constructed in the book The Country Under My Skin: A Memoir of Love and War (2001), by the Nicaraguan author Gioconda Belli, considering discursive tensions on building its own self-image through dualities such as the public and the private, the feminine body and the Revolution, and the relationship between the “I” and the “Others”. Using the memories of the Nicaraguan revolutionary process, this subject is being constructed discursively in order to become a kind of fictionalization of himself, that is, a self-fiction of his own image mediated by the use of language. To achieve this goal, the present research references Paul Ricoeur's reflections on narrative identity (1991, 2010), Emile Benveniste‟s ideas on the construction of the subject by and in the language (1989, 1991), and Serge Doubrovsky‟s considerations on self- fiction (1971).

Keywords: Gioconda Belli. Self-fiction. Narrative identity. Self-portraying writing. Memoirs.

RESUMEN

Esta pesquisa pretende analizar cómo se construye la identidad narrativa del sujeto en primera persona en el libro El país bajo mi piel: memorias de amor y guerra (2001), de la autora nicaragüense Gioconda Belli, considerando sobre todo las tensiones discursivas en la elaboración de la autoimagen que incluyen dualidades como el público y el privado, el cuerpo femenino y la revolución e la relación en el Yo y el Otro. Usando las memorias del proceso revolucionario nicaragüense, este sujeto se va desarrollando discursivamente de modo a tornarse una especie de ficcionalización de si, o sea, una autoficción de su imagen mediada por el uso del lenguaje. Para alcanzar este objetivo, usaremos las reflexiones sobre identidad narrativa de acuerdo con Paul Ricoeur (1991, 2011), la construcción del sujeto a través del lenguaje según Emile Benveniste (1989, 1991) y las consideraciones sobre autoficción a partir de Serge Doubrovsky (1971).

Palabras chave: Gioconda Belli. Autoficción. Identidad narrativa. Escritura de sí. Memorias.

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ...... 8 CAPÍTULO 1 MEMORIAS DE AMOR Y GUERRA E A ESCRITA DE SI ...... 12 1.1 A escrita de si: um percurso ...... 14 1.2 A escrita quixotesca de si ...... 21 1.3 A escrita de si na América hispânica...... 30 CAPÍTULO 2 MI PIEL…………………………………………...... 43 2.1 A escrita de si no pós-Revolução: Nicarágua e literatura ...... 43 2.2 “Y Dios me hizo mujer”: Gioconda Belli …………………………………………. 50 CAPÍTULO 3 DE COMO A IDENTIDADE NARRATIVA CONSTRÓI A PRÓPRIA IMAGEM...... 64 3.1 De como a identidade narrativa constrói sua autoimagem pela dualidade público/privado ...... 67 3.2 De como estabelece relações com o próprio corpo ...... ……………. 74 3.3 De como seu corpo comporta a revolução...... ……………. 79 3.4 De como a voz narrativa constrói a si mesma através dos Outros ...... 81 3.4.1 De como constrói a mãe …………………………………………..……………. 82 3.4.2 De como constrói a imagem do primeiro marido…...... …………………. 83 3.4.3 De como constrói a imagem do Poeta…………………..……….……………. 86 3.4.4 De como constrói a imagem de Marcos...... ……………. 89 3.4.5 De como constrói a imagem de Sergio………………….……….……………. 92 3.4.6 De como constrói a imagem de Modesto ……………….……….……………. 94 3.4.7 De como constrói a imagem de Charlie, ou melhor, Carlos...... ……………. 97 DE COMO CONCLUÍMOS ESSA PESQUISA………………………...... …………. 101 REFERÊNCIAS ...... 103

7

A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la. Gabriel García Márquez, Viver para contar

8 APRESENTAÇÃO

Separando o encontro de dois oceanos, a Nicarágua, um pequeno país da América Central, chamou a atenção do mundo em julho de 1979, com o triunfo de uma revolução que reacendeu as esperanças criadas 20 anos antes na ilha de Cuba. Memórias desse processo revolucionário são narradas em primeira pessoa no livro El país bajo mi piel: memorias de amor y guerra (2001), de Gioconda Belli, autora nicaraguense que participou da FSLN (Frente Sandinista de Liberación Nacional).

Nesta obra, vê-se uma voz narradora que vai se construindo discursivamente pela linguagem de modo a tornar-se uma espécie de ficcionalização de si, ou seja, uma autoficção de sua imagem mediada pelo uso da linguagem. Tomar a escrita de El país bajo mi piel (2001) como autoficção permite desdobramentos analíticos a partir dos estudos literários; as diferentes modulações discursivas com as quais a narradora reconstrói suas memórias, fala de si e descreve os Outros são parte fundamental para a presente análise. Interessa neste trabalho analisar como e porque determinadas lembranças são narradas de modo a corroborar na construção desse eu, sujeito enunciativo que se apropria da linguagem para constituir sua subjetividade.

O percurso e a discussão teórica sobre as escritas em primeira pessoa, ou melhor, as escritas de si, estão condensadas no Capítulo 1 de modo a estabelecer um resgate da crítica literária sobre esse tipo de texto centrado no narrador em primeira pessoa, valendo-se de reflexões de Paul Ricoeur (1991, 2010) sobre a identidade narrativa, de ideias de Emile Benveniste (1989, 1991) sobre a construção do sujeito enunciativo pela e na linguagem, e das considerações de Serge Doubrovsky (1971) sobre a autoficção. Há, ainda neste capítulo, a discussão instaurada por T. S. Eliot sobre tradição literária, em que se estabelece um diálogo hipertextual entre as obras El país bajo mi piel (2001) e Don Quijote de la Mancha (2012a, 2012b).

O Capítulo 2 é dedicado à contextualização da escrita poética da autora em meio à literatura nicaraguense no período revolucionário, buscando estabelecer relações diretas entre sua produção literária e o modo como se deu sua incursão 9 pelo universo da literatura em El país bajo mi piel: memorias de amor y guerra (2001).

O terceiro e último capítulo é centrado nos elementos de contraste e dualidade construídos discursivamente pela identidade narrativa de El país bajo mi piel: memorias de amor y guerra (2001), manipulando a narrativa de suas memórias através da linguagem de modo a edificar sua autoimagem. Assim, deu-se especial atenção a como determinadas memórias e personagens são descritos e se há, ao longo da narrativa, mudanças significativas no trato dessas rememorações. Para isso, buscou-se analisar como a identidade narrativa se constrói a partir da relação entre o público e o privado, sua relação com o próprio corpo, como esse corpo comporta a revolução e, por fim, como a narradora constrói a imagem de si mesma através de seu vínculo com outros personagens de suas memórias.

Por fim, faz-se necessária aqui apenas uma breve apresentação da autora, uma vez que a presente análise pretende se debruçar apenas sobre o que a linguagem mobiliza e, principalmente, como são narradas as memórias em El país bajo mi piel: memorias de amor y guerra (2001).

Poetisa, novelista, ex-guerrilheira, publicitária e jornalista, ela nasceu em 1948 na capital da Nicarágua, Manágua, numa família abastada, católica e antissomozista. Numa entrevista em 2017, a reconhecida autora nicaraguense Gioconda Belli declarou: “Mi familia era acomodada, pero antisomocista, de un antisomocismo sin esperanza” (CRUZ, 2017).

Durante sua participação na Frente, foi correio clandestino, transportou armas e divulgou a luta sandinista em países da Europa e da América Latina, ao mesmo tempo em que angariava fundos para as ações da Frente. Por ordem de Carlos Fonseca, um dos fundadores da FSLN, exilou-se na Espanha, no México, na Costa Rica e em Cuba. Voltou para a Nicarágua em 1979, com o êxito da Revolução. Até 1986, durante o governo sandinista, ocupou cargos no Consejo Nacional de Partidos Políticos e foi líder da campanha eleitoral desse mesmo ano. Fez parte da comissão de propaganda da FSLN, inaugurou a transmissão do canal 6, nomeou o Sistema Sandinista de Televisión (SSTV) e participou do primeiro noticiário. Trabalhou na 10

Campanha de Alfabetização e nas eleições de 1984. No entanto, deixou os cargos oficiais em 1986 e se afastou da vida política.

Discordando da postura de Daniel Ortega, que começava a se mostrar distante dos ideais da luta e a priorizar vontades individuais em detrimento das do coletivo, desvinculou-se da FSLN em 1994 (FRIERA, 2017), ano em que se mudou para os EUA com seu então marido. Atualmente, é casada com o jornalista estadunidense Charlie Castaldie (ou Carlos, como o chama) e se divide entre Manágua e Santa Bárbara, em Los Angeles, EUA. Em 2014, tornou-se a primeira mulher a receber o prêmio Mérito Literario Internacional Andrés Sabella, durante a Feria Internacional del Libro de Antofagasta. É membro do PEN Club Internacional e presidenta do PEN Capítulo Nicarágua, membro da Academia Nicaraguense de Letras desde agosto de 2019 e Caballero de las Artes y las Letras da França. Até dezembro de 2016 escreveu para a imprensa internacional no periódico The Guardian e ainda hoje segue atuante no jornal nicaraguense Confidencial.

Até se aventurar na escrita em prosa, publicando La mujer habitada, em 1988, Belli só havia publicado poesia1. Traduzida para mais de 11 idiomas, seu primeiro romance teve reconhecimento internacional, sobretudo na Itália e na Alemanha, onde foi lido por um milhão de leitores em 25 edições e ganhou o Premio de La Fundación de Libreros, Bibliotecarios y Editores Alemanes e o Premio Anna Seghers de la Academia de las Artes, ambos em 1989.

Separam seu primeiro romance e as memórias aqui analisadas doze anos, tempo em que pôde reformular sua experiência revolucionária, e em que foram produzidos inúmeros acontecimentos extraliterários – nos âmbitos pessoais e

1 Ao menos três produções antecederam a publicação de seu primeiro romance: o livro de poesia Truenos y arco iris (1982), a antologia poética Amor insurrecto (1984) e De la costilla de Eva (1986). Ao romance primogênito, seguiram-se outras obras em prosa: Sofía de los presagios (1990), Waslala (1996), El país bajo mi piel: memorias de amor y de guerra (2001), El pergamino de la seducción (2005), El infinito en la palma de la mano (2008), El país de las mujeres (2010), El intenso calor de la luna (2014) e Las Fiebres de la Memoria (2018). Mesmo em meio à invenção de romances, seus versos pungentes foram publicados em Poesía reunida (1989), assim como a antología El ojo de la mujer (1991), contra el frío (1992), o conto infantil El taller de las mariposas (1994), Apogeo (1997), Mi íntima multitud (2002), Fuego soy apartado y espada puesta lejos (2006), com o qual ganhou o Prêmio Internacional de Poesía Ciudad de Melilla, Escándalo de Miel (2010), En la avanzada juventud (2012) e a antología Florilèges (2013), editada em espanhol e em francês. Em 2018, publicou o romance Las fiebres de la memoria, que foi finalista do Premio de Novela Mario Vargas Llosa em maio de 2019. Ainda em 2018, publicou Ensayos, rebeliones y revelaciones e o conto infantil La niña que tenía las lágrimas más grandes del mundo. 11 políticos – o que certamente marcam as construções enunciativas de El país bajo mi piel (2001). Lançado oficialmente em dezembro de 2000, o livro ganhava sua versão em português brasileiro2 treze meses depois. Na ocasião, a autora visitou Porto Alegre-RS para participar do Fórum Social Mundial e fazer seu lançamento, quando também concedeu uma entrevista à Folha de S.Paulo (COLOMBO, 2002). Quando perguntada pelo motivo de escrever suas memórias, a autora disse querer reivindicar a importância do romantismo na literatura e na política e, de certo modo, fugir à tendência de muitos que procuravam renegar o que foram e fizeram durante a Revolução.

2 BELLI, Gioconda. O país sob minha pele: memórias de amor e guerra. Trad. Ana Carla Lacerda. Rio de Janeiro: Record, 2002. 12

CAPÍTULO 1

MEMORIAS DE AMOR Y GUERRA E A ESCRITA DE SI

Porque a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada. Cecília Meireles

“Dos cosas que yo no decidí decidieron mi vida: el país donde nací y el sexo con que vine al mundo” (BELLI, 2001, p. 6). Assim começa a introdução de El país bajo mi piel: memorias de amor y guerra (2001). Já na primeira frase, se vê a criação de um sujeito que convoca a linguagem para que suas fundações existam, é na e pela linguagem que ele se constrói. Além disso, ele ainda admite não serem de sua jurisdição algumas de suas características, portanto, ele é tudo aquilo que o precedeu.

Enunciado em primeira pessoa, o corpus desta pesquisa traz em sua construção discursiva um sujeito que se escreve, se constrói na e pela linguagem. As diferentes modulações discursivas com as quais reconstrói suas memórias e fala de si nos permitem reconhecer estar diante de uma invenção literária que enseja desdobramentos analíticos e dá abertura a diversas considerações sobre sua composição escritural, valendo-se de conhecimentos não só dos estudos literários, mas da linguística.

No marco da crítica literária, as escritas em primeira pessoa ainda são muito discutidas, sobretudo sobre seu valor histórico ou ficcional. Costumeiramente, o livro El país bajo mi piel: memorias de amor y guerra (2001) ocupa as prateleiras de autobiografia, porque imprime características do gênero, no sentido primeiro do termo: “auto” do grego autós, que significa “por si mesmo”; bíos para “vida” e, por fim, “grafia” também de origem grega, grápho, ou “escrever”, como exemplificado na última passagem da introdução:

En estos días en que es tan fácil caer en el cinismo, descreer de todo, descartar los sueños antes de que tengan la oportunidad de crecer alas, escribo estas memorias en defensa de esa felicidad por la que la vida y hasta la muerte valen la pena (BELLI, 2001, p. 6, grifo nosso).

Além do verbo flexionado em primeira pessoa sobre o ato de registrar – grafar –, em escribo, essa passagem dá ainda indícios das circunstâncias que levaram esse narrador ao desejo de rememorar fatos pessoais passados. Corrobora para 13 essa definição, Philippe Lejeune (2008, p. 16), um dos teóricos mais enérgicos sobre o gênero, quando afirma que a autobiografia seria a “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”3.

O tempo e algumas mudanças de perspectiva dos estudos literários ampliaram a abrangência crítica aplicável às escritas de si, por isso, a análise aqui proposta foge à ideia de autobiografia porque considera o sujeito em primeira pessoa um elemento narrativo construído discursivamente, num movimento de ficcionalização de si através do uso da linguagem, a essa expectativa de análise, deu-se o nome de autoficção.

Assim, o fragmento citado ganha fôlego analítico se considerarmos que o sujeito narrativo parece dizer que o presente da escrita – marcado pela expressão “en estos días” – é carregado de cinismo e descrença, possivelmente depois de um fim de ciclo feliz, o qual justificaria a narrativa que se propõe fazer nas páginas seguintes. Ao mesmo tempo em que se constrói discursivamente, ele, o narrador, quem vai contar sua história admite que registrar estas memorias significa viver e morrer pela escrita.

Longe de ser uma prática moderna, a escrita de si tem raízes muito antigas, (KLINGER, 2006). Redigida entre 397 e 398 d.C. por Santo Agostinho, Confissões é tida como a primeira autobiografia de que se tem registro. As discussões sobre a escrita em primeira pessoa trilharam novos caminhos de análise no século XX ao confrontar diferentes perspectivas para o ato da invenção literária. Hoje, os desdobramentos desses debates teóricos tornaram possíveis o estudo não só da autobiografia, mas também da autoficção, como se verá mais adiante.

O presente capítulo pretende percorrer a discussão sobre as escritas de si no âmbito literário, problematizando o protagonismo4 ao qual a figura do autor foi

3 Na pesquisa inicial sobre o livro de Gioconda Belli, deparei-me com estudos que o classificavam como uma autobiografia e, por isso, foi o termo que adotei no projeto de mestrado. Ao iniciar pesquisas mais aprofundadas nos estudos literários, me vi diante do movediço terreno das escritas de si, mais precisamente o da autoficção, como Aos 7 e aos 40, de João Anzanello Carrascoza, ou As pequenas memórias, de José Saramago, por exemplo. 4 Como se verá, esse “protagonismo” ora foi mais intenso, ora surgiu como um antagonista. 14 sujeitada ao longo do século XX na Europa e na América Latina, sobretudo até as recentes discussões sobre o que se chamou de autoficção, a fim de que esse panorama contribua para a análise do sujeito narrativo de El país bajo mi piel (2001). Interessa-nos entender como se dá discursivamente o autorretrato do narrador através de suas escolhas narrativas, ao construir a autoimagem de uma nicaraguense de classe alta, ex-guerrilheira e participante intelectual da FSLN que se propõe contar suas memórias dos tempos de sua participação no movimento revolucionário (e os fatos que o antecederam) e suas relações afetivas.

1.1 A escrita de si: um percurso

Tomando como premissa a ideia de que a autoficção subverte as divisas da generalidade dos gêneros autobiografia e ficção sem, no entanto, pertencer a nenhum, porque justamente transita entre eles, parece-nos necessário entender, antes, como a crítica literária tratou as escritas em primeira pessoa no decorrer do tempo.

Apenas o caminho trilhado pelos diferentes olhares sobre um mesmo objeto – as escritas de si – poderia permitir que pudéssemos considerar esse tipo de construção narrativa como uma espécie de ficcionalização de si, sobretudo porque muito nos interessa explorar além da dicotomia verdade/ficção na análise do livro El país bajo mi piel: memoria de amor y guerra (2001).

Em “A escrita de si”, Foucault (2004, p. 146-147) demonstra que a escrita em primeira pessoa não é apenas o registro do Eu, mas constitui – ou, nos termos do autor, performa – a noção do sujeito. Ele afirma ainda que, ao escrever sobre si, o indivíduo contribui com sua formação, com sua constituição, num treino de si para si mesmo. Para chegar a essa formulação, resgata duas formas em que a escrita de si já figurava nos séculos I e II: os hupomnêmata e a correspondência.

Os hupomnêmata eram cadernetas individuais onde se registravam reflexões, lembretes e citações para ser relidas posteriormente, como modo de conversar com os outros e consigo mesmo. Ao contrário do que as confissões cristãs postulariam depois, sobretudo como narrativas de si em busca da purificação, os hupomnêmata 15 eram escritas que registravam o já dito, justamente como forma de constituição de si5. Nesse caso, a escrita era a concretização daquilo que mais tarde a crítica literária chamaria de “ser de papel”6, porque seria a maneira que o sujeito encontrou para dar forma àquilo de que é constituído. Nas palavras de Foucault, esse processo se assemelharia à digestão:

O papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constitui, um “corpo”. E é preciso compreender esse corpo não como um corpo de doutrina, mas sim – segundo a metáfora da digestão, tão frequentemente evitada – como o próprio daquele que, transcrevendo suas leituras, delas se apropriou e fez sua a verdade delas: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida em forças e em sangue” (FOUCAULT, 2004, p. 152, grifo nosso).

Por outro lado, a constituição de si em forma de correspondência presumia a existência e a troca com o Outro, mas não só – ela seria ainda um modo de exercício pessoal. Ao escrever uma carta, o remetente estaria praticando textualmente conselhos e narrativas que eventualmente poderiam servir a si mesmo; por isso, também se poderia falar em subjetivação do sujeito: ao (es)crever-se, o indivíduo busca na linguagem sua constituição subjetiva. Para além desse olhar para si, a correspondência seria um modo de se fazer presente para o Outro, o destinatário: “Ela [a correspondência] é uma maneira de se oferecer ao olhar do outro: ao mesmo tempo opera uma introspecção e uma abertura ao outro sobre si mesmo” (KLINGER, 2006, p. 27). Assim, para Foucault (2004), aquele que escreve exercita a prática de se mostrar e, da troca com o outro, faz sempre um modo de elaborar a própria consciência7.

Muito antes de Foucault, no século XVIII, Rousseau já defendia essa ideia de o Eu ser precedido pelo outro:

5 Anos antes, em outro campo das ciências humanas, o psicanalista Sigmund Freud escrevia “Repetir, recordar e elaborar” (1996) para também postular a constituição do sujeito por meio da revisitação da memória pela fala. Entendida por Benveniste (1991) como sinônimo de discurso e apropriação do sistema formal da enunciação, a fala seria a expressão da subjetividade do sujeito enunciativo. 6 Termo de Roland Barthes para se referir ao sujeito inscrito e construído numa narrativa. 7 Meu especial agradecimento à Profª Drª Leila Costa Aguiar por suas valiosas intervenções no trabalho final da disciplina “Tópicos Especiais em Estudos Literários: autores, temas e obras da literatura mundial: Quem sou eu, o que sou? Algumas reflexões sobre as escritas de si”, ministrada no segundo semestre de 2017 no Programa de Pós-graduação em Letras da Unifesp. 16

Uma solidão absoluta é um estado triste e contrário à natureza: os sentimentos afetuosos nutrem a alma, a comunicação das ideias aviva o espírito. Nossa mais doce existência é relativa e coletiva, e nosso verdadeiro eu não está inteiro em nós. Enfim, a constituição do homem nesta vida é tal que nunca se consegue desfrutar bem de si sem o concurso de outrem (ROUSSEAU, 1959, p. 1478 apud TODOROV, 2005, p. 100).

A existência do Eu estaria relacionada à existência do Outro, porque o Eu seria todos aqueles e tudo aquilo que o precedeu. Portanto, o Eu estaria, desde sempre, fora do si9.

Segundo Klinger (2006), os gregos viam nos humnêmata e na correspondência formas de “cuidado de si”, que, era por sua vez, um dos fundamentos da arte de viver. No entanto, o percurso da escrita de si durante o cristianismo foi voltado para uma interpretação do “conhece-te a ti mesmo” explícito no Alcibíades I, de Platão, que serviu como base para a ideologia cristã de renúncia do mundo terreno. Assim, tornou-se obrigação conhecer-se, mas se desprezou o “cuidar de si mesmo”.

A obrigação de conhecer-se é um dos elementos centrais do ascetismo cristão, mas já não como um movimento que conduz o indivíduo a cuidar de si mesmo, mas como forma pela qual o indivíduo renuncia ao mundo celeste e se desapega da carne (KLINGER, 2006, p. 28, grifos do original).

Ao separar o mundo entre os planos terreno e celeste, o cristianismo impõe ao indivíduo uma renúncia ao exercício do olhar externo, porque implanta o adestramento das vontades individuais terrenas como condição de êxito no plano divino, numa constante busca pela purificação por meio da confissão de pecados e vontades. Tem-se aí uma clara renúncia de si para alcançar uma ideia de salvação. No entanto, a mudança de paradigma se deveu ao advento do Renascimento e da Reforma Protestante, quando o homem passou a ter uma nova visão sobre si, muito mais pautada em seus interesses, e não mais regido por uma premissa divina. A título de exemplo, em Ensaios10, ao atribuir ao scriptor uma individualidade,

8 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Oeuvres complètes, tomo 1. Paris: Gallimard, 1959. 9 Trataremos dessa questão mais adiante, ao trabalhar a obra analisada aqui. 10 No aparato paratextual do Aviso ao leitor (Avis au Lecteur), Montaigne vê a escrita de si como principal agente da composição do sujeito. 17

Montaigne teria iniciado o esboço de uma escrita que mais tarde seria chamada literatura moderna, “inaugurada” por Descartes sob seu célebre Cogito ergo sum (traduzida amplamente por “penso, logo existo”) (KLINGER, 2006, p. 29).

A crítica à subjetividade defendida por Descartes seria o ponto inicial do filósofo alemão Nietzsche em Além do bem e do mal, ao defender a desconstrução da categoria de sujeito cartesiano e, consequentemente, a noção de verdade a ele associada. Para isso, Nietzsche põe em dúvida os “conceitos derivados de funções gramaticais”11, porque:

[...] antes se acreditava na “alma” como na gramática e no sujeito gramatical: dizia-se que “eu” é condição, “penso” é predicado e condicionado – pensar é uma atividade para a qual um sujeito tem de ser pensado como causa. Depois se tentou, com astúcia e tenacidade admiráveis, ver se não se podia escapar dessa rede, – se talvez o contrário não fosse verdade: “penso”, condição, “eu”, condicionado; “eu”, portanto, apenas como uma síntese realizada pelo próprio pensamento (NIETZSCHE, 1996, p. 7312 apud ITAPARICA, 2011, p. 63).

Assim, o autor postula que há um equívoco ao atribuir verdade ao sujeito, justamente por sua subjetividade. No trecho acima, a marca gramatical do sujeito só existiria porque é precedida pela ação “pensar”, e não o contrário. A figura de um ator, ou seja, daquele que atua, só existe porque há uma ação que exige sua existência. As considerações de Nietzsche em Além do bem e do mal, obra publicada em 1886, e em outros escritos foram fundamentais para uma mudança radical na noção de sujeito na linguagem.

O século XX assistiria a uma intensa discussão estruturalista sobre o sujeito, chegando a seu total esvaziamento e descentralização, respectivamente com “A morte do autor” (publicado em 1968), de Roland Barthes, e “O que é um autor” (publicado em 1969), de Michel Foucault (2011). Suas considerações foram uma resposta à supervalorização da figura do autor num contexto positivista – resultado de uma ideologia capitalista –, em que se procurava incessantemente vincular a figura humana do autor a sua obra por meio de entrevistas, biografias e outros meios

11 Expressão de Itaparica (2011, p. 61). 12 NIETZSCHE, F. W. Fragmentos póstumos. Trad. Oswaldo Giacoia Junior. Campinas: IFCH/Ed. Unicamp, 1996. 18 que lhe cedessem o centro na discussão literária (BARTHES, 2004, p. 1). Ao leitor, por sua vez, abriu-se a possibilidade de maior autonomia em relação ao texto, cujo sentido não é único, mas múltiplo, devido às leituras a que será exposto.

Foucault (2011) analisa a categoria de autor atendo-se à relação do texto com o sujeito da escrita. Tomando emprestada a frase de Samuel Beckett “Que importa quem fala, disse alguém, que importa quem fala”, ele defende que o sujeito não é regido pela escrita, mas que a domina como prática, como performance, culminando no desaparecimento do autor e dando vazão ao que o teórico chamou “função autor”, que só se constrói por meio do diálogo que estabelece com o texto.

Roland Barthes (2004, p. 2) teorizou sobre a queda da categoria autor no conhecido texto “A morte do autor”, onde sustenta que “é a linguagem que fala, não é o autor”, constatação que levaria ao conhecimento de uma “impessoalidade prévia”, ou seja, a escrita, somente ela, seria capaz de “dizer”, “performar”, sobre algo13. A linguística teria sido a chave para a morte do autor, porque vê a enunciação como “um processo vazio”, pois a linguagem está em função de um “sujeito”, e não de uma “pessoa”, por isso o autor não é senão aquele que escreve e nada mais: “a linguagem conhece um sujeito, não uma pessoa, e esse sujeito, vazio fora da própria enunciação que o define, basta para fazer suportar a linguagem, quer dizer, para exauri-la” (BARTHES, 2004, p. 3).

A enunciação de um sujeito vem à tona sem nenhuma descrição anterior, tem-se aí um exemplo do que, em Problemas de linguística geral 2 (1989), Emile Benveniste chamou de apropriação individual da língua. O sujeito se apropria da língua e se relaciona com o mundo, e só a partir da composição do sujeito, graças à mediação da linguagem, é possível atuar na escrita da própria história. O sujeito em primeira pessoa busca em sua memória fatos e episódios relevantes de um tempo passado e os organiza de tal modo a sugerir uma construção da ideia do eu, um personagem que, devido a determinadas influências, teria se constituído como sujeito predisposto a determinadas ações. Nas palavras da narradora de El país bajo mi piel, quando relata seu nascimento: “Quizás a eso [el calor de las multitudes] se

13 Tomando um termo de Plutarco, Foucault (2002, p. 147) afirma que a escrita tem uma função etopoiética: “ela é a operadora da transformação da verdade em êthos”. 19 debió mi temor a la soledad, mi amor por los hombres, mi deseo de trascender limitaciones biológicas o domésticas y ocupar tanto espacio como ellos en el mundo” (BELLI, 2001, p. 6). E ainda, esses elementos externos – as circunstâncias de seu nascimento – parecem forjar um eu idealizado, romântico que viria ao mundo na condição de um herói para libertá-lo de todo o mal:

Quién sabe qué señales se transmitirían en el líquido amniótico, pero en vez de terminar como deportista con un bate en la mano terminé esgrimiendo todas las armas a mi disposición para botar a los herederos del señor del caballo y participar en la lucha de mi país por liberarse de una de las dictaduras más largas del continente americano (BELLI, 2001, p. 6).

Assim como faz a voz na última frase da pequena introdução de El país: “escribo estas memorias en defensa de esa felicidad por la que la vida y hasta la muerte valen la pena” (BELLI, 2001, p. 6, grifo nosso). Ao defender certa felicidade (a de ver multidões celebrando o fim da ditadura somozista e “las alegrías de abandonar el yo y abrazar el nosotros”), esse sujeito anuncia a composição de uma narrativa otimista.

“A enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (BENVENISTE, 1989, p. 82), o que significa que o locutor toma a língua como instrumento para mobilizar os caracteres linguísticos de modo a ser sua expressão de enunciação. No caso da escrita em primeira pessoa, o ato individual de enunciação é ainda mais visível, porque o locutor é quem articula e mobiliza a língua para se escrever, apropriar-se dela.

Enquanto realização individual, a enunciação pode se definir, em relação à língua, como um processo de apropriação. O locutor se apropria do aparelho formal da língua e enuncia sua posição de locutor por meio de índices específicos14, de um lado, e por meio de procedimentos acessórios15, de outro [...] (BENVENISTE, 1989, p. 82).

14 Os índices específicos são o que Benveniste chamou de “caracteres necessários e permanentes” (BENVENISTE, 1989, p. 83) da enunciação: os índices de pessoa (eu-tu), os índices de ostensão de espaço (este, aqui) e as formas temporais (do presente da enunciação). 15 Segundo o linguista, a enunciação evocaria mecanismos, ou procedimentos acessórios, da língua para expressar a subjetividade do sujeito, seja por meio de asserções e interrogações ou modalidades formais pertencentes aos verbos e à composição das sentenças. 20

É por meio da enunciação que o locutor encontra expressão de certa relação com o mundo, em que a primeira condição é a necessidade de referir-se pelo discurso. Nesse sentido, tem-se no Outro a possibilidade de correferência. Como afirma Benveniste, a referência faz parte da enunciação e, sem ela, o processo pragmático de uso da língua fica inviável.

Premissa também presente no pensamento de Barthes (2004), que, ao se opor à perspectiva de que o Autor seria anterior ao livro, assim como um pai antecede a existência do filho, alega que a lógica é exatamente o contrário:

[...] o scriptor moderno nasce ao mesmo tempo que o seu texto; não está de modo algum provido de um ser que precederia ou excederia a sua escrita, não é de modo algum o sujeito de que o seu livro seria o predicado; não existe outro tempo para além do da enunciação, e todo o texto é escrito eternamente aqui e agora (BARTHES, 2004, p. 4).

Divididas em quatro grandes partes, as “memórias” de El país bajo mi piel (2001) se segmentam em pequenos relatos intitulados, na maioria das vezes, com frases que começam com a expressão “de cómo”, numa possível alusão a Cervantes, à moda de Dom Quixote. Essa constatação corrobora com as considerações de Barthes, em que considera que o texto não é uma invenção de um Autor absoluto16, mas “um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura” (BARTHES, 2004, p. 4). Essa tessitura só é possível porque o scriptor é regido pelo manejo que faz da língua, resgatando gestos anteriores de escrita e compondo, também pela escrita, novas escritas sucessivamente17. Sobre essa minuciosa teia de citações externas, o poeta, dramaturgo e crítico literário inglês T. S. Eliot fez importantes observações em “Tradição e talento individual” (1989), mostrando que o texto literário é uma composição de escritas produzidas antes18, numa defesa da ideia de tradição. Essa tradição demanda grande esforço do scriptor, tanto no sentido histórico como no sentido crítico; histórico porque, mesmo que esse scriptor se proponha a escrever sobre sua própria geração, como é o caso de Gioconda Belli em El país bajo mi piel (2001), ele recorrerá à tradição literária nacional e universal

16 Entenda-se por “absoluto” uma força única e imperiosa. 17 Nas palavras de Benveniste (1989, p. 86), “a enunciação promove a existência direta de certas classes de signos”. 18 Essa afirmação corrobora diretamente o que disse Barthes (2004) sobre a “impessoalidade prévia” de um texto, cuja escrita é mais protagonista do que o autor. 21 para compor seu texto simultaneamente à escrita. Ao escrever, o autor não pode ignorar formalmente tudo aquilo que o precedeu, de modo que sua obra, embora única e individual, carrega em si o peso de uma longa tradição. O autor se insere nessa tradição.

1.2 A escrita quixotesca de si

Um texto de Evelyn Galindo-Doucette, intitulado La hipertextualidade de Don Quijote de la Mancha en El país bajo mi piel, de Gioconda Belli (2015), estabelece uma relação hipertextual entre as duas obras, baseando-se no conceito básico de transtextualidade, que deriva cinco categorias: a intertextualidade, a paratextualidade, a metatextualidade, a arquitextualidade e a hipertextualidade, de Gérard Genette (2010)19. Para Genette, a hipertextualidade é a relação que une um texto (denominado por ele como hipertexto) e outro anterior (o hipotexto), sobre o qual é enxertado de uma forma que não a do comentário, mas visceralmente.

Com o objetivo de mostrar como a obra de Belli provém do sistema literário de Dom Quixote, Galindo-Doucette (2015) levanta algumas hipóteses de leitura. Usando os termos de Genette, a autora vê El país bajo mi piel como um hipertexto cuja estrutura narrativa depende do hipotexto Dom Quixote, de Cervantes, numa referência a elementos estruturantes – e até mesmo temática – de ambas narrativas. Galindo-Doucette (2015) chega a afirmar “El país bajo mi piel (2001) de Gioconda Belli es un texto actual que, igual a Pierre Ménard, es un palimpsesto del original Don Quijote de la Mancha”.

Estruturalmente, Don Quijote de la Mancha é dividido em duas partes, geralmente publicadas em volumes diferentes; no entanto, a primeira parte é composta por outras quatro partes, como El país. Assim, as duas obras se assemelham também na quantidade de capítulos: são mais de cinquenta breves

19 A edição aqui adotada, Palimpsestos: a literatura de segunda mão (2010), é baseada no texto GENETTE, Gérard. Palimpsestes: la littérature au second degré. Paris: Éd. du Seuil, 1982. (Points Essais) 22 capítulos intitulados com frases que resumem a narração que precedem. Aqui, nossa leitura nos permite inferir também uma relação paratextual20 entre as obras, sobretudo na construção dos títulos de seus capítulos. Por exemplo, o capítulo 1 de El país bajo mi piel é nomeado como “Donde dan inicio, con olor a pólvora, estas rememoraciones” (2001, p. 9) percebe-se a correspondência discursiva e, de certo modo, temática com o capítulo IV de Dom Quixote “Donde se cuenta la graciosa manera que tuvo don Quijote en armarse caballero” (2012a, p. 128).

O diálogo entre os textos vai além de relações paratextuais, a transtextualidade também é percebida na caracterização dos protagonistas, que compartilham de semelhante classe social. Pertencentes à classe alta de suas sociedades, em Don Quijote, o primeiro capítulo21 anuncia um homem que “[…] Tenía en su casa una ama que pasaba de los cuarenta, y una sobrina que no llegaba a los veinte, y un mozo de campo y plaza, que así ensillaba el rocín como tomaba la podadera” (CERVANTES, 2012a, p. 113-114). A construção narrativa da voz em El país bajo mi piel explicita fazer parte de uma classe social privilegiada no capítulo 322 quando relata que era sobrinha neta de Emiliano Chamorro que havia sido presidente da Nicarágua, que viveu durante a infância numa das principais regiões da capital nicaraguense, havia estudado no exterior, tinha uma babá em casa que cuidava dela e de seus irmãos “[...] Emiliano Chamorro, que fue dos veces presidente del país y se ganó el respeto y favor de Estados Unidos [...] Vivíamos en la calle del Triunfo, una calle principal en Managua”, “amplia y hermosa casa señorial de techos de tejas y gruesas paredes”, […] “Yo era una niña mimada”.

Tão cara a Dom Quixote, que em seu ócio lia “libros de caballería con tanta afición y gusto, que olvidó casi de todo punto el ejercicio de la caza, y aun la administración de su hacienda” (CERVANTES, 2012a, p. 114), a leitura também é parte da construção do sujeito narrativo de El país, quando afirma que “Durante la adolescencia me dediqué a leer. Leía con voracidad y pasmosa velocidad” (BELLI,

20 Genette (2010) define paratextualidade como elementos estruturantes que não entram diretamente no texto narrativo como títulos, subtítulos, prólogos, notas e apêndices, mas que são elementos- chaves na recepção do texto, porque guiam a leitura. 21 Capítulo primero: “Que trata de la condición y ejercicio del famoso Hidalgo don Quijote de la Mancha” 22 “De cómo una moneda me llevó por primera vez a Estados Unidos y de la primera sangre derramada que vi en mi vida”. 23

2001, p. 6). Diz que suas principais influências foram Julio Verne e era seu avô Pancho, quem lhe provia livros. Na introdução, declara que a leitura foi responsável por desenvolver sua imaginação sem travas e chegou até a acreditar que as realidades imaginárias podiam se transformar em realidade, assim como Quixote. No fim do capítulo 23, último da primeira parte, a autora estabelece uma ponte entre as fantasias e os sonhos de uma vida mais tradicional, pacata e sua realização pragmática: “En mi fantasía me visualizaba siendo la esposa mimada de un hombre bello, artista, interesante, heredero de una cabaña antigua y acogedora en la campiña inglesa” (BELLI, 2001, 84), numa referência direta aos “otros sueños propios de mi género” antes já anunciados na introdução da obra.

Em outros momentos, o gosto pela aventura – muito presente em Dom Quixote – e pelo mistério que envolvia o mundo da clandestinidade e da guerrilha são narrados em tom confidencial, carregado de entusiasmo: “Fingíamos ser estudiantes. Llevábamos ocultos dentro de cuadernos universitarios los materiales clandestinos impresos en mimeógrafo. Tras una apariencia tranquila, Managua albergaba incontables e imprevistos peligros” (BELLI, 2001, p. 37) e ainda “Igual que Camilo, Martín me atrajo al mundo secreto y quijotesco de la guerrilla, […]” (BELLI, 2001, p. 37, grifo nosso).

As imagens que associa à revolução no decorrer dos capítulos são antecipadas na introdução do livro. Sutilmente, relaciona seu envolvimento no sandinismo como uma aventura feita de “hazañas heroicas”, “fantasia” e “enfebrecidos sueños”, à semelhança entusiasta de Dom Quixote ao empreender suas andanças e aventuras. Com um olhar idealizado sobre seu passado, traz imagens de contos de fadas e da “vida real” da mulher “Sólo que mis príncipes azules fueron guerrilleros y que mis hazañas heroicas las hice al mismo tiempo que cambiaba pañales y hervía mamaderas” (BELLI, 2001, p. 6) e compara, de certa forma, sua entrada na luta sandinista à influência da literatura não somente durante sua adolescência, época em que teria tido contato com a literatura fantasiosa e aventureira de Julio Verne e outros autores por sugestão de seu avô Pancho, mas principalmente a literatura adulta com a qual reestabeleceu um vínculo forte na maioridade, fase em que, desmotivada numa vida monótona e pro forma de casal de classe média alta, redescobre a literatura crítica, a literatura latino- americana e a poesia, que teria uma importância especial de ressignificação e 24 transformação em sua trajetória. “Los sueños revolucionários encontraron en mí tierra fértil”, um corpo feminino fecundo, capaz de gerar a vida, gestar ações e engendrar uma revolução. Nesse sentido, a voz narrativa parece muitas vezes estabelecer essa relação entre o imaginário incitado pelas leituras e seu envolvimento com ações práticas no universo do sandinismo.

A dualidade entre o universo da fantasia, da imaginação, do sonho e o universo da realidade e das ações no mundo real alude igualmente à própria natureza dicotômica da voz narrativa, que por um lado é uma mulher casada, mãe de duas filhas, vivendo sob as regras de uma sociedade patriarcal e provinciana, onde o espaço acolhedor da casa permite o arrojo da imaginação e, por outro lado, uma mulher inteligente, crítica, questionadora, independente em contato direto com uma realidade de perigos que não deixavam espaço, ou mesmo tempo, para o devaneio, mas sim para a ação certa e objetiva. Nessas últimas residem as maiores e reais aventuras narradas.

He sido dos mujeres y he vivido dos vidas. Una de mis mujeres quería hacerlo todo según los anales clásicos de la feminidad: casarse, tener hijos, ser complaciente, dócil y nutricia. quería los privilegios masculinos: independencia, valerse por sí misma, tener vida pública, movilidad, amantes (BELLI, 2001, p. 6).

Não se pode deixar de notar que sua incursão no movimento sandinista acontece através de outra aventura, a relação extraconjugal com um personagem nomeado apenas como Poeta, que só será mencionado no capítulo 7. O dito Poeta não é somente o personagem responsável pela reconexão da narradora com o universo da literatura, que a conduzirá à luta armada, é igualmente alguém que desperta nela o talento e a disposição para a composição poética, de modo que esse personagem se constitui como uma metáfora da poesia, e da literatura de maneira mais ampla, e seu papel decisivo na trajetória da narradora.

Continuando no universo de Cervantes e de maneira análoga, Dom Quixote imerge de tal forma nos livros e nas fantasias e ilusões contidas neles, que esse mundo de “soñadas invenciones” acaba tornando-se real, o personagem envolto num manto de imaginação perde o contato direto com o mundo real ficcional.

Llenósele la fantasía de todo aquello que leía en los libros, así de encantamientos como de pendencias, batallas, desafíos, heridas, requiebros, amores, tormentas y disparates imposibles; y asentósele 25

de tal modo en la imaginación que era verdad toda aquella máquina de aquellas soñadas invenciones que leía, que él no había otra historia más cierta en el mundo (CERVANTES, 2012a, p. 116).

O tom idealista e romântico nas palavras do sujeito narrativo ao se referir ao movimento sandinista e à Frente Sandinista parece lhe dar um caráter menos político e objetivo e mais nostálgico, ufanista e fantasioso, “es el castillo mágico idealizado e imaginado de una joven nicaragüense” como observou Gallindo- Doucette (2015). Mas, aqui, acrescentaríamos ainda que não se trata de qualquer nicaraguense, mas de uma jovem de classe alta, de família tradicional com origem italiana, que estudou no estrangeiro, frequentadora de seletos clubes e ciclos sociais influentes, que anseia por deixar o ambiente doméstico e o papel predefinido de mulher-esposa-mãe para buscar liberdade, autonomia e aventuras em espaços tradicionalmente masculinos. De certa forma, tanto o personagem de Dom Quixote quanto o sujeito enunciativo de El país bajo mi piel são tomados, através do contato literário e da imaginação, por uma espécie de loucura que lhes permite lançar-se na aventura do desconhecido em busca de um ideal, ainda que o fim de suas histórias guardem certa dose de decepção (Dom Quixote descobre que não há mais heróis no mundo e a narradora descobre que a revolução pela qual lutou não era exatamente o que imaginava).

Essa loucura que toma os dois protagonistas é amplificada e transformada, se retomarmos a ideia de palimpsesto proposta por Genette (2010), porque o novo momento histórico e literário lhe dá novos sentidos de interpretação. Assim, em El país bajo mi piel, essa loucura tem seu sentido transformado porque é atrelada ao idealismo por mudar o contexto histórico e político, e encontra, na figura do sandinismo, o lugar para exercer suas façanhas, seus impulsos heroicos, e imaginários.

En efecto, rematado ya su juicio, vino a dar en el más extraño pensamiento que jamás dio loco en el mundo, y fue que le pareció convenible y necesario, así para el aumento de su honra como para el servicio de su república, hacerse caballero andante, e irse por todo el mundo con sus armas y caballo a buscar las aventuras y a ejercitarse en todo aquello que él había leído que los caballeros andantes se ejercitaban, deshaciendo todo género de agravio, y poniéndose en ocasiones y peligros donde, acabándolos, cobrase eterno nombre y fama (CERVANTES, 2012a, p. 117, grifos nossos). 26

Semelhante a Dom Quixote, o sujeito enunciativo de El país bajo mi piel constrói uma narrativa em que sai em busca de viver sua fantasia e, quando se propõe a escrever suas memórias, reconhece que goza de eterno nombre y fama23.

Gallindo-Doucette (2015) afirma ainda que os exílios em El país bajo mi piel valem-se da estrutura narrativa de Don Quijote. Assim como o cavalheiro andante sai justamente para servir a sua república, a protagonista de Belli também “sai”, mas para proteger-se e dar continuação à “loucura” desafiante. Realidade e idealismo se chocam constantemente nas duas obras, o que leva às personagens a breves indagações, mas que logo são sobrepostas novamente ao idealismo e otimismo. Por exemplo, ao relatar seu primeiro casamento – que, aliás, é seu primeiro impulso por liberdade24 – a narradora descreve a igreja e os convidados vestidos elegantemente, mas que o local era cercado por casas mais simples e que ambas as realidades coexistiam sem se misturar. Ela diz que sabia da pobreza por ouvir dizer pelas empregadas e choferes, mas que ninguém daquela igreja pensava no mundo dos pobres.

No fim de Don Quijote de la Mancha, o protagonista volta para casa, recupera a consciência depois de uma febre de seis dias e renuncia ao ideal cavalheiresco, se decepciona por descobrir que não mais havia heróis no mundo. Da mesma forma, a autora percebe o fracasso do idealismo do movimento sandinista, que não só começa a se dividir por volta de 1975, como a dar sinal de autoritarismo e intransigência quando vai ganhando forças. Num determinado momento da narrativa, a autora menciona algumas mudanças de atitudes dentro do movimento:

Nos desilusionábamos juntas, asombrándonos de lo mal que andaban las cosas dentro de la organización” [...] “La imagen ideal, romántica del Frente Sandinista, se nos resquebrajaba. ¿Cómo era

23 Como se constrói discursivamente, o sujeito de El país bajo mi piel (2001) faz inúmeras referências às amizades influentes que tem no decorrer da vida, sua confiança conquistada com os dirigentes do sandinismo, seus prêmios e reconhecimento na área literária. 24 Casar-se significava uma possibilidade de sair da casa dos pais e adquirir sua independência “Yo me quería casar lo antes posible. Tenía prisa por vivir, por dejar la casa de mis padres, el bullicio de mis hermanos – con el nacimiento de Lavinia, éramos ya cinco –, y empezar a vivir con plena independencia” (BELLI, 2001, p. 21). Essa independência, no entanto, viria através de um homem que se adequava aos gostos de sua família: “Recuerdo que una de las primeras cosas que pensé es que a mis padres les agradaría porque estaba emparentado con familias que pertenecían a nuestro círculo social, y mi madre insistía mucho en que compartir la misma educación y cultura era requisito esencial para un buen matrimonio” (BELLI, 2001, p. 21). 27

posible que no se les permitiera a los compañeros opinar? (BELLI, 2001, p. 80).

Num período posterior à revolução, a reação da população começava a ser sentida:

Llegué a la oficina que tenía al lado de su casa en una urbanización de clase media de Managua, compuesta por pequeñas viviendas construidas en serie. Se había trasladado allí cuando el modo de vida de los dirigentes sandinistas empezó a ser criticado por la población (BELLI, 2001, p. 60).

“Y volviéndose a Sancho, le dijo:– Perdóname, amigo, de la ocasión que te he dado de parecer loco como yo, haciéndote caer en el error en que yo he caído, de que hubo y hay caballeros andantes en el mundo” (CERVANTES, 2012b, p. 635). Em Don Quijote, também se observa um desencanto ao perceber que o ideal que o havia levado às grandes aventuras era apenas uma ilusão.

Na conclusão da narrativa de El país bajo mi piel uma referência intertextual com o clássico de Cervantes chama a atenção, na medida em que a narradora refere-se a si mesma como “quijota” para falar de sua trajetória de aventuras: “Donde esta quijota termina de contar sus memorias”, o qual se encerra com o seguinte parágrafo:

Mis muertos, mis muertes, no fueron en vano. Ésta es una carrera de relevos en un camino abierto. En Estados Unidos, como en Nicaragua, soy la misma quijota que aprendió, en las batallas de la vida, que si las victorias pueden ser un espejismo, también pueden serlo las derrotas (BELLI, 2001, p. 211).

Segundo Galindo-Doucette (2015) conclui:

La transtextualidad de Don Quijote en El país bajo mi piel nos abre un mundo dinámico de interpretación en que los textos hacen eco de otros textos y el lector, por su conocimiento personal de estos, tiene un papel interactivo central en la interpretación de las referencias intertextuales.

Retomando a ideia de tradição, T. S Eliot afirma que a apreciação de uma invenção literária se dá pelo sentido crítico exercido por meio do contraste e da comparação com escritas precedentes, porque, no que tange à linguagem escrita, passado e presente estão em constante movimento de orientação e retomada. Para que esse movimento seja possível, Eliot (1989, p. 42) também fundamenta a ideia 28 de despersonalização, ao exigir do scriptor um olhar atento ao passado para fazer bom uso da tradição a que está exposto: “o que ocorre é uma contínua entrega de si mesmo [...]. A evolução de um artista é um contínuo autossacrifício, uma contínua extinção da personalidade”. Nesse sentido, ao elaborar uma narrativa de memórias, com uma escolha de estilo de linguagem, de composição do eu-narrador, entre outras preocupações e decisões, esse scriptor em El país bajo mi piel tem a consciência de estar inserido numa tradição e, por consequência, tem maior compreensão da importância do texto, do discurso construído na linguagem escrita, ainda que esta seja uma obra escrita em primeira pessoa e uma narração de memórias. El país bajo mi piel constitui-se como uma criação ou recriação de fatos reais, onde se observa construção de personagens, elaboração de uma linguagem mais literária, com uso de metáforas, quando narra memórias pessoais ligadas a si mesma e às pessoas mais próximas, por quem demonstra um cuidado maior a partir do tratamento textual. Existe uma preocupação formal no ato de criar um relato pessoal que revela uma intenção do trabalho de criação de uma identidade narrativa. O nome e o sobrenome da autora, Gioconda Belli nunca é utilizado na primeira pessoa como apresentação de si mesma, mas está presente no discurso, sempre em terceira pessoa.

Quanto à categoria do sujeito cartesiano, o pós-estruturalismo deu vazão a novas concepções de subjetividade e escritura, daí que se tenham estabelecido os conceitos de autobiografia e autoficção.

A autobiografia, termo já muito difundido no tratamento das escritas de si, teve em Philippe Lejeune (2008), nos anos 1970, um de seus maiores defensores e expoentes. Em O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet, Lejeune dedica um capítulo à discussão das polêmicas entre autobiografia e ficção. Começa afirmando que seu posicionamento criou dois tipos de adversário: os que não acreditam na verdade e os que acreditam na literatura. Em geral, são os mesmos, mas nem sempre. Para se defender dos ataques, o autor procurou distinguir as ideias de verdade e ficção, não confrontando-as, mas justamente afirmando que são imiscíveis numa autobiografia. Ele rechaça qualquer tentativa de reduzir a autobiografia a um gênero menor, pobre ou que flerte com qualquer tipo de ficção, porque acredita que, ao estabelecer um pacto, o autobiográfico já está respaldado 29 pela verdade que se propõe nesse tipo de texto. Lejeune (2008, p. 104, grifo nosso) é contundente ao afirmar que:

O fato de a identidade individual, na escrita como na vida, passar pela narrativa não significa de modo algum que ela seja uma ficção. Ao me colocar por escrito, apenas prolongo aquele trabalho de criação de “identidade narrativa”, como diz Paul Ricoeur, em que consiste qualquer vida. É claro que, ao tentar me ver melhor, continuo me criando, passo a limpo os rascunhos de minha identidade, e esse movimento vai provisoriamente estilizá-los ou simplificá-los. Mas não brinco de me inventar. Ao seguir as vias da narrativa, ao contrário, sou fiel a minha verdade: todos os homens que andam na rua são homens-narrativas, é por isso que conseguem parar em pé. Se a identidade é um imaginário, a autobiografia que corresponde a esse imaginário está do lado da verdade. Nenhuma relação com o jogo deliberado da ficção.

É curioso que o autor reconheça que sua defesa da verdade25 e da autobiografia é suscetível a questionamentos, a ponto de, para atenuar a polêmica em que se vê envolvido, formular as seguintes perguntas: “esse conflito [sobre a verdade] não seria na verdade interior e estaria em cada um de nós? A dificuldade do diálogo não se deveria ao fato de que o conceito de “verdade” é tomado em sentidos muito diferentes?” (LEJEUNE, 2008, p. 104)26.

O autor diz ainda que é de conhecimento geral que a memória é uma construção imaginária, se se pensa nas escolhas feitas e em tudo o que se inventa a partir delas. Porém, ele vê a escrita autobiográfica como uma forma de continuação dessa construção, e não cabe vislumbrar a verdade. Nesse caso, pouco importa questionar se a voz narrativa em El país bajo mi piel diz ou não a verdade, se essa verdade é digna ou não de confiança. Esse seria um questionamento que valorizaria a figura do autor como centro de análise. Pelo contrário, a importância dessa narrativa situa-se justamente no texto em si, no discurso, na observação de uma obra que apresenta elementos de relato jornalístico, uma vez que proporciona ao leitor, por um lado, uma perspectiva objetiva de seu contato íntimo e direto com a Frente Sandinista e o movimento sandinista como um todo, fornecendo dados de valor histórico, e, por outro lado, a partir de uma perspectiva subjetiva, uma obra que

25 Leia-se “verdade” no sentido daquilo que é real, fiel e inquestionável, tal como aconteceu. 26 Em 1992, Lejeune fundou a Association pour l‟Autobiographie, um grupo não acadêmico composto por admiradores (leitores e escritores) de autobiografias, para defender esse que, para ele, é um gênero desprezado ou negligenciado. 30 possui muitos componentes literários, que vão desde a escolha da divisão temporal dos relatos até as escolhas para apresentação final dessas memórias.

Ao explicar seu descontentamento com as obras (ou seria com os autores?) que claramente frequentam a zona da autobiografia mas que se recusam a reconhecê-lo, Lejeune mostra-se incomodado com a insistência de críticos em reduzir o que ele chama “autobiografia autêntica” a uma categoria de pouco valor criativo, logo, inferior ao romance.

Sempre em meio a debates teóricos, a enunciação do sujeito em primeira pessoa ganhava em 1971 um novo paradigma com a publicação de Fils, do escritor e crítico literário francês Sergue Doubrovsky. O autor foi responsável por cunhar o termo autoficção, em “L‟autobiographie est toujours, en fait, une autofiction” (DOUBROVSKY, 197127 apud NASCIMENTO, 2010, p. 189).

A autoficção seria a pretensão de dar conta de fatos reais com traços literários; ela estaria no entre-dois, justamente na fronteira entre a autobiografia e a ficção. Nas palavras de Nascimento (2010, p. 195):

A força da autoficção é que ela não tem mais compromisso algum nem com a autobiografia estrito senso (que ela não promete), nem com a ficção igualmente estrito senso (com que rompe). Ao fazer coincidir, na maior parte das vezes, os nomes e as biografias do autor, do narrador e do protagonista, o valor operatório de autoficção cria um impasse entre o sentido literal (a referência real da narrativa) e o sentido literário (a referência imaginária). O literal e o literário se contaminam simultaneamente, impedindo uma decisão simples por um dos polos, com a ultrapassagem da fronteira. É essa ausência de compromisso com a verdade factual, por um lado, e a simultânea ruptura com a convenção ficcional, por outro, que tornam a chamada autoficção tão fascinante, e por isso mesmo defendo que não seja redutível a um novo gênero.

1.3 A escrita de si na América hispânica

Segundo Klinger (2006, p. 19), a marcada presença da escrita em primeira pessoa vem sendo uma constante na prosa latino-americana, embora esse exercício

27 DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris: Grasset, 1977. 31 também seja comum na narrativa contemporânea universal do outro lado do oceano Atlântico, sobretudo na literatura francesa28. Em seu estudo El espacio biográfico: dilemas de la subjetividad contemporánea (2002a), Leonor Arfuch atribui a proliferação de narrativas em primeira pessoa à intensa produção de escritas autorreferentes de notáveis e famosos por meio de divulgações literárias como, por exemplo, biografias (autorizadas ou não), diários íntimos, correspondências, cadernos de notas etc., bem como a exposição em outros meios como filmes autobiográficos e entrevistas midiáticas, passando mesmo ao ápice da espetacularização do eu em forma de shows – talk-show, reality show. Nas palavras de Arfuch (2002a, p. 51, grifo nosso), “también asistimos a ejercicios de „ego- historia‟, a un auge de autobiografías intelectuales, a la narración autorreferente de la experiencia teórica y a la autobiografía como materia de la propia investigación”. Assim, pautando-se nas considerações do próprio autor sobre a exposição do privado, constrói-se uma matéria de intervenção na análise literária e do próprio sujeito que a enuncia.

Estudos sobre as publicações na década de 1980 na Nicarágua mostram uma proliferação de criações autorreferenciais depois do êxito da Revolução29, por exemplo. No panorama da literatura latino-americana, sua presença já figura desde as produções da chamada formação da identidade nacional, cuja elaboração autobiográfica não permitiam discernir entre aquilo que era do âmbito individual ou o coletivo, nacional. Sobre essa questão, valem alguns apontamentos.

A discussão sobre autobiografia nos estudos literários na América hispânica teve um olhar consistente da crítica literária Sylvia Molloy. Em Vale o escrito: a escrita autobiográfica na América hispânica (2003, p. 223), a autora afirma que a

28 A autora cita como exemplos as obras La Bataille de Pharsale (1969), de Claude Simon, W ou le souvenir d‟enfance (1975), de Georges Perec, Fils (1977), de Sergue Doubrovsky, e Romanesques, de Alain Robbe-Grillet, e afirma que esses autores fazem parte do chamado Nouveu Roman, Oulipo ou Tel QueI, apontando para uma discussão de um possível “retorno do autor” no centro da vanguarda francesa como um impasse entre o estruturalismo e o formalismo. 29 Essa questão será aprofundada no Capítulo 2. 32

“América hispânica tende à reminiscência” e enumera exemplos de obras30 que tiveram no ato de relembrar a principal base para sua criação/invenção literária.

Lembrar é uma ação que remonta aos primeiros registros literários produzidos na América hispânica, passando por Comentários reales, de 1609, a Facundo, publicado em 1845. Segundo Molloy, a ficção hispano-americana em geral destaca a figura do “lembrador”, um indivíduo que relembra o passado, o revisita e relata, quase sempre com um exercício de reflexão sobre a memória (explícita ou não), o que – segundo a autora – torna a ficção hispano-americana ricamente reflexiva.

Diante de um histórico literário fundado no recontar – afinal, “Toda ficção é, certamente, lembrança” (MOLLOY, 2003, p. 224) –, a autora aponta um paradoxo: na autobiografia hispano-americana, a reflexão sobre o ato de lembrar costuma ser superficial e econômica. Justamente onde se esperariam maiores aprofundamentos sobre a memória, porque a narrativa se centra no passado de um memorator, não há a riqueza reflexiva que se vê na ficção. Duas hipóteses explicariam esse aparente paradoxo: ou o funcionamento da memória é dado como óbvio, ou a memória é relegada a uma posição utilitária. O fato é que, para Molloy, as autobiografias do século XX dão pouca atenção ao ato de lembrar-se, quando, na verdade, isso seria essencial.

Assim como outros ditos gêneros literários, a autobiografia também está sujeita às convenções vigentes no momento de sua escrita, porque o presente condiciona o resgate do passado contando não apenas aquilo que se recorda, mas quando e de onde se o recorda. Ao autobiógrafo cabe adaptar-se aos modelos de conduta ou ideias e ideais da época presente de sua criação. Molloy sintetiza bem essa afirmação quando coloca:

Dito de outra maneira, e com relação à autobiografia, cada período tem sua própria concepção de escrita autobiográfica e, mais precisamente, sua própria concepção de memória, das maneiras de recordar que farão com que a escrita do eu coincida com o que a época espera do gênero (MOLLOY, 2003, p. 225).

30 Furnes, o memorioso, de Jorge Luis Borges, Recuerdos del porvenir, de Elena Garro, Pedro Páramo, de Juan Rulfo, ou Viver para contar, de Gabriel García Márquez, por exemplo. 33

A partir dessa ponderação, a autora sublinha que os autobiógrafos hispano- americanos do século XIX escreviam textos que oscilavam entre história e ficção, mas que, para fugir da ambiguidade já tão sentida, preferiam classificá-los como produções históricas, de modo a legitimar seu valor documental.

Destaca-se aqui uma afirmação de Molloy (2003) quando, ainda se referindo aos escritos autobiográficos do século XIX na América Latina, diz que, para assegurar o compromisso com o viés histórico – consequentemente utilitário e didático –, esse tipo de escrita em primeira pessoa despreza a petite histoire e descarta as memórias de infância31. Nesses tipos de texto, evitava-se especular sobre o funcionamento ou a confiabilidade da memória, para não pôr em risco a veracidade e abrir espaço a dúvidas. Num contexto de construção de identidade e memórias nacionais, a incerteza não seria interessante nem bem-vinda. Assim, ao atribuir à lembrança pessoal – que é, aliás, a base desses escritos – uma responsabilidade histórica, certas restrições e limitações são impostas ao funcionamento do texto, como a falta de memórias sobre a infância e as reflexões sobre a confiabilidade da memória.

Alguns textos vagam entre as recordações públicas e as privadas, mas não escapam ao registro documental que lhe fora assegurado à época, evitando reflexões sobre as complexidades da memória. Tanto é que a biografia e a autobiografia tornaram-se gêneros estimados em todo o mundo, e na América hispânica ganharam proporções concretas, sobretudo ao serem usadas para a construção histórica dos países recém-formados, porque serviram para consolidar valores e formular uma nova história nacional. Como exemplo, a autora destaca

31 O capítulo 3 de El país bajo mi piel (2001) é o único em que há o relato de um episódio da infância. Como modo de justificar o seu primeiro contato direto com os EUA, conta que costumava imitar vendedoras ambulantes quando tinha três ou quatro anos, e que um dia sua bisavó, Carlota, lhe deu uma moeda como “pagamento” durante a brincadeira. Depois de mostrar o prêmio para Humberto, seu irmão, que delatou à babá que ela estava com uma moeda, a narradora diz ter engolido a moeda. Os médicos na Nicarágua queriam operá-la, mas seu pai buscou alternativas para não deixá-la com cicatrizes; assim, a enviou para a Filadélfia junto com a mãe, porque existia um médico especialista nesse tipo de caso. Mesmo relatando um acontecimento grave – e talvez traumático da infância – o que prevalece não são as sensações ruins, mas a alegria, o deslumbramento por aquele país e sua viagem. Interessante notar como descreve essa memória, porque afirma ser uma lembrança nítida ainda no presente da escrita, chega até a mencionar possível fidelidade da memória: “Conservo sí la imagen del jardín lleno de manzanos de Ravenhill. Mi mamá me tomó fotos allí que años después encontré y por las que pude darme cuenta de la fidelidad de mi memoria” (BELLI, 2001, p. 13, grifo nosso). 34 duas obras do escritor argentino Domingo Faustino Sarmiento, Facundo (1996) e Recuerdos de provincia (1998), apontando as exaustivas justificativas do autor para realocar o texto como biografia e autobiografia, respectivamente, e seu consequente caráter histórico. Exaustivas porque as contradições são evidentes: de um lado, o autor se esforça para conferir-lhe valor documental; de outro, se diz consciente das falhas apontadas pelos leitores, mas se recusa a corrigi-las, em Facundo, por exemplo.

Autobiografia e biografia seriam reavaliações de vidas passadas: aquela, recorrendo à memória, esta, a documentos. No contexto histórico-literário do século XX, qualquer elemento que sinalizasse insegurança quanto ao valor documental das biografias e autobiografias seria rechaçado.

Expostas as fissuras e as fragilidades dos textos (auto)biográficos, Molloy afirma que, nesses escritos, além de ser o produto final, a autorrepresentação também é a principal gênese, a própria causa. Dito de outra forma, a construção de si numa autobiografia é regulada sobretudo pelo presente da escrita. O autobiógrafo impõe ao passado a ordem do presente.

O passado é recriado para satisfazer as exigências do presente: as exigências da minha própria imagem, da imagem que, suponho, os outros esperam de mim, do grupo a que pertenço (MOLLOY, 2003, p. 240).

Em El país bajo mi piel, no final da introdução, a autora sugere o que seria a causa motivadora da narração de um conjunto de memórias de amor e guerra, como indica o subtítulo. Citando brevemente as alegrias e as dificuldades de momentos chave de sua vida, como a gravidez e o parto de suas filhas, a luta pelo fim de uma ditadura de 45 anos, o enfrentamento do medo, o instinto de sobrevivência, o abandono do eu em prol dos outros, a voz narrativa revela, de maneira auspiciosa, que a escrita de suas memórias se dá em defesa dessas felicidades adquiridas pela experiência de vida.

Fui parte, artífice y testigo de la realización de grandes hazañas. Viví el embarazo y el parto de una criatura alumbrada por la carne y la sangre de todo un pueblo. Vi multitudes celebrar el fin de cuarenta y cinco años de dictadura. Experimenté las energías enormes que se desatan cuando uno se atreve a trascender el miedo, el instinto de supervivencia, por una meta que trasciende lo individual. Lloré mucho, pero reí mucho también. Supe de las alegrías de abandonar 35

el yo y abrazar el nosotros. En estos días en que es tan fácil caer en el cinismo, descreer de todo, descartar los sueños antes de que tengan la oportunidad de crecer alas, escribo estas memorias en defensa de esa felicidad por la que la vida y hasta la muerte valen la pena (BELLI, 2001, p. 6).

Porém, para além desse aspecto, uma análise crítica da narrativa como um todo parece apontar para o que Molloy caracteriza nas autobiografias como uma busca de autorrepresentação. Parece haver aqui uma tentativa de entender as complexas interconexões de sua própria trajetória através do ato de tecer a memória em palavras, o que de modo geral, se diferencia das motivações do século XIX Afinal, são inúmeras e intrincadas as ligações pessoais, políticas e ideológicas entre a Nicarágua e os Estados Unidos a partir de sua própria família. O tio avô de Belli foi duas vezes presidente do país, tendo caído nas graças do governo norte-americano por tê-los cedido a perpetuidade dos direitos para construção do canal interoceânico. Mulher da classe alta nicaraguense, ela se envolve com guerrilheiros comunistas agindo clandestinamente para a derrubada de uma ditadura apoiada pelos Estados Unidos. Em meio ao movimento sandinista, se encanta por um jornalista estadunidense e por fim acaba mudando-se para esse país que não só apoiou como financiou a repressão de quase meio século em sua terra natal. Ou seja, há muito a ser revisado, digerido e reinterpretado nessa trajetória e nessas conexões contraditórias e muitas vezes incompatíveis. O sujeito discursivo parece buscar um entendimento pessoal para essa rede de contraposições e isso se dá no processo de rememoração, como uma espécie de autoanálise, uma busca de autoconhecimento e do cuidado de si.

Em outro estudo, Acto de presencia (2005, p. 19932 apud KLINGER, 2006, p. 21), Molloy afirma que a origem – entenda-se a linhagem e os valores (muitas vezes da oligarquia) – daria a definição do eu nas escritas em primeira pessoa no fim do século XIX e início do XX, que figura as peripécias pessoais numa dimensão histórica, como se se tratasse de um “olhar-testemunha”.

Esse “olhar-testemunha” é resgatado nas escritas dos sobreviventes do Holocausto e, na literatura latino-americana, nos anos de transição e

32 MOLLOY, Silvia. Acto de presencia. México: Fondo de Cultura Económica, 1996[1991]. 36 redemocratização após as ditaduras militares dos anos 1960-80. Nesse contexto, produzem-se inúmeros relatos sobre experiências de prisão, tortura e exílio.

Klinger (2006) ainda cita Silviano Santiago, que, por sua vez, pontua que o dito testemunho autobiográfico em meio às produções após 1970-80 “se pretende como testemunho de uma geração”. No Brasil, a grande produção de romances memorialistas se concentrou nos anos 1980, como também aconteceu na Nicarágua depois de 19 de julho de 1979.

A partir de uma análise das produções pós-ditadura na Argentina, Klinger (2006, p. 23) diz ter havido uma inversão. A escrita de si teria deixado de ser um meio de conservação dos valores de classe (como fora durante a construção de uma identidade nacional em alguns países latino-americanos) para dar lugar à escrita de uma geração que teve justamente mudança de valores. Em relação a esse caráter de construção histórica pela via não oficial, o livro de Gioconda Belli é um exemplo desse objetivo, guardadas as devidas proporções, sobretudo por ser uma obra publicada cerca de 22 anos depois do triunfo sandinista, em meio a outras produções em primeira pessoa sobre o mesmo período.

A memória aparece como instrumento, útil como o documento ou o registro, mas não como objeto de reflexão. Pensar a memória poderia pôr em perigo a recriação do passado e sua reivindicação de veracidade, abrindo possibilidade às dúvidas. O escritor poderia ser suspeito de ser menos um historiador escrevendo a verdade dita [...] do que um criador cheio de imaginação preenchendo as lacunas deixadas por sua memória não muito confiável. Poderia ser considerado um fabulador33 (MOLLOY, 2003, p. 237/238, grifos nossos).

Para entender o termo fabulador nas escritas de si, Paul Ricoeur (1995) distinguiu o fazer literário entre narração e narrativa. O escritor deixaria de ser visto como aquele que registra a verdade da história para dar lugar a um sujeito criador, fabulador, capaz de preencher as lacunas de uma memória pouco confiável. Fundamentalmente, Ricoeur vê que, mesmo um sujeito que se dedica ao ofício de historiador, ao debruçar-se sobre fontes documentais, já está triando seu objeto de estudo, pois é impossível que dê conta da totalidade de fatos que se referem a um

33 Molloy (2003, p. 238) destaca que o termo fabulador foi cunhado por Pierre Janet em L‟évolution de la mémoire et de la notion du temps (Paris: Chahine, 1928, p. 461). 37 mesmo evento. Essa triagem já é um tipo de mediação. Assim, o autor vê que a narração histórica não é o que efetivamente aconteceu, mas é o como tal, tal qual, como se. Quando se convoca a memória para construir a narrativa de si, não está em jogo uma proximidade com a verdade, mas como que alcançar aquilo que é revisitado pela memória, porque vem fragmentado, disperso, selecionado, incerto etc. Por isso, não se trata de uma reprodução do que aconteceu, mas de uma relação metafórica.

Essa relação é metafórica porque há uma distância entre o que realmente aconteceu e o como se tivesse acontecido. Em suma, tanto a ficção como a história são trabalhadas no regime como se, pois há uma distância entre temporalidade e ato da escrita (RICOEUR, 1995). História e ficção se misturam já na própria narração histórica.

Para Ricoeur (1995), em regime de narrativa de si ou narrativa autobiográfica, existe uma convergência entre narração de acontecimentos históricos e narrativa de ficção. El país bajo mi piel é um interessante exemplo da confluência mediada por um sujeito ficcional que recorre à história do sandinismo e à Revolução Nicaraguense organizando-a a partir de fatos e impressões de sua vida pessoal. O imaginário – as variações imaginativas, para retomar um conceito ricoeuriano – rege essas memórias e conta-as como se fossem a história do sandinismo e a da Revolução Nicaraguense.

No tempo da narrativa de ficção, há uma grande emancipação em relação à cronologia. As personagens e as ações da ficção evoluem no interior de uma temporalidade que é singular à composição do texto ficcional. Há diversas possibilidades de temporalidade, o que Ricoeur (1995) chama de “experiência temporal e fictícia”, que pode ou não ser cronológica.

Propor-se a contar uma história é torná-la narrativa, o que significa mobilizar temporalidades graças às variações imaginativas (RICOEUR, 1997), que são essenciais para o que o autor chama mise en intrigue na constituição da identidade narrativa. A mise en intrigue seria o trabalho de composição, o modo como se organiza propriamente a narrativa, tornando o que é fragmentado (sobretudo no caso das narrativas de si, cujo material é a memória) um conjunto regrado e sintetizando tudo o que é heterogêneo. A mise en intrigue em El país bajo mi piel faz 38 dele um livro de muitas nuances, porque a cada capítulo o leitor é levado a diferentes períodos da vida do sujeito enunciativo, que relata aflições, medos, dúvidas, sentimentos amorosos, curiosidades, apreensões sobre a vida pessoal e a vida na luta armada etc.

Logo, não se está nem no domínio do real, nem no da verdade, mas já há uma intervenção, por força da mediação do sujeito que escreve, quanto ao desvio do que é real, realidade, verdade (RICOEUR, 1995).

„Ese hombre era empleado de la Seguridad Somocista‟, le dije. “Lo sé porque me persiguió diariamente. Jamás olvidé su rostro”. Días después me informaron de que encontraron su expediente. Lo encarcelaron. Supongo que saldría después. La mayoría salió gracias a numerosas amnistías. Seguramente terminó en la Contra matando sandinistas (BELLI, 2001, p. 58, grifos nossos).

Na passagem acima, o uso do verbo “supongo” e do advérbio de modo “seguramente” aludem a uma clara mediação do scriptor ao evocar uma figura “histórica” e imaginar o que teria sido dela num tempo futuro, posterior ao que está sendo relatado, mas anterior ao da escrita, o que expõe uma incerteza que talvez seja o substrato de toda memória de si.

A configuração do scriptor vai se dando pelo trabalho que ele faz com a linguagem ao longo da narrativa, assumindo as funções de autor, personagem e leitor34.

A compreensão de si é uma interpretação; a interpretação de si, por sua vez, encontra na narrativa, dentre outros signos e símbolos, uma mediação privilegiada; essa última empresta tanto da história quanto da ficção, fazendo da história de uma vida uma história fictícia ou, se se preferir, uma ficção histórica, entrecruzando o estilo historiográfico das biografias ao estilo romanesco das autobiografias imaginárias (RICOEUR, 1990, p. 138).

Ao tratar da construção do Eu, da voz narrativa em primeira pessoa, Leonor Arfuch (2002a, p. 108) afirma que é “justamente a través del proceso narrativo por el que los seres humanos se imaginan a sí mismos – también en cuanto lectores/receptores”, princípio equivalente ao que Benveniste (1989) chamou de

34 A imagem de Belli sobre si é um amálgama de representações simbólicas: mulher, esposa, amante, militante, jornalista, mãe etc. 39 apropriação individual da língua. Assim, Arfuch se baseia no conceito de interdiscursividade de Michael Bakhtin (1982, p. 13535 apud ARFUCH, 2002a, p. 108) para enunciar que a construção do Eu é resultado de uma interlocução com o externo, com o outro:

[...] nunca será “unipersonal”, aunque pueda adoptar tonos narcisistas, sino que involucrará necesariamente la relación del sujeto con su contexto inmediato, aquel que le permite situarse en el (auto)reconocimiento: la familia, el linaje, la cultura, la nacionalidad. Ningún autorretrato, entonces, podrá desprenderse del marco de una época, y en ese sentido, hablará también de una comunidad (ARFUCH, 2002a, p. 108).

A título de exemplo, El país bajo mi piel é dedicado a onze mulheres que, segundo a voz narrativa, colaboraram com tarefas domésticas e, portanto, tornaram possíveis seu livro e suas “andanças da vida”. Também na dedicatória, menciona os quatro filhos e o atual companheiro. Já no decorrer das páginas, evoca diversos Outros: a mãe, os maridos e amantes, os filhos, os companheiros de guerrilha, os colegas de trabalho, além da história familiar que a antecedeu como forma de constitui-la como sujeito enunciativo. O Outro precede o Eu (NASCIMENTO, 2010, p. 192) porque a alteridade é o que dá existência ao enunciador: “Quando fala dos outros fala também (e principalmente) de si mesmo” (MOLLOY, p. 244).

Versar sobre a memória dos outros, como faz a narradora de El país bajo mi piel ao narrar experiências de sua mãe quando jovem ou ao se lembrar de uma história que lhe contara Andrea, uma companheira sandinista, é uma ruptura no trato do que até então se considerava autobiografia. No capítulo “Santuários e labirintos: os lugares da memória”, Molloy (2003) ainda afirma que a memória autobiográfica se limita à lembrança da existência daquele que a escreve, no entanto, a retomada dessa memória esbarra em lembranças que não são do próprio autobiógrafo, mas que ampliam sua visão do passado. A memória, portanto, é resgatada também por uma reflexão genealógica. Ter ouvido contar fatos de parentes próximos ou de pessoas mais velhas não constitui uma reminiscência vivida, mas um fato aprendido. Nesses casos, o autobiógrafo não tem a lembrança do fato (porque não o presenciou e, muitas vezes, nem era nascido), mas tem o conhecimento daquele

35 BAJTIN, Michael. Estética de la creación verbal. México: Siglo XXI, 1982[1979]. 40 fato e, sobretudo, tem a lembrança do ato de transmissão daquela memória alheia: “Ao apropriar-se da memória dos outros, a própria memória do autobiógrafo se expande e se torna mais poderosa” (MOLLOY, 2003, p. 258).

Podemos entender esse abismo da memória quando alguém se olha no reflexo de um espelho e, em algum momento, outra pessoa acrescenta mais um espelho ao reflexo; ao final, além de se ver, também alcança o campo de visão do outro. Tudo não passa de um “como se a memória do autor abarcasse um passado de horizontes muito mais amplos do que o da sua própria existência biológica” (MOLLOY, 2003, p. 257, grifo do original). A autora ainda adverte que antropofagizar a memória de terceiros e incorporá-la à própria (a do autobiógrafo) é o mais indireto e dissimulado dos exercícios de transcrição da vida dos outros. Um dos exemplos desse tipo de relato seria Biografia de um cimarrón, de Miguel Barnet, onde o autor aparece como uma testemunha privilegiada capaz de dar ao passado perdido pelo leitor uma aura de experiência vivida por meio de um personagem autobiográfico. Assim, a petite histoire ganha importância e é incorporada ao relato. O que antes era renegado como história se torna a própria história; eventos e nomes ilustres são equiparados e postos no mesmo plano de lembranças cotidianas e da infância.

Desde as Confissões de Santo Agostinho até a mais recente escrita de si ainda não publicada, a posição que ocupa o autobiógrafo implica diferentes visões do resgate da memória. Quer dizer que, dependendo de sua posição enquanto enuncia o discurso, maneja as memórias de modo a reiterar ou não o discurso oficial ou as anedotas familiares. Por exemplo, se no fim do século XIX e durante o XX o autobiógrafo latino-americano via sua escrita como parte de um registro histórico fundador de uma origem nacional alinhada aos ideais oligárquicos, o autobiógrafo do século XX, depois das violentas insurreições no território, viu a urgência de seu relato, que mais tarde a crítica intitulou literatura de testemunho. O presente da escrita nesse contexto de tensão e violência dá vazão a textos em que o autobiógrafo adota uma postura de única testemunha de um período, que só logrará ser preservado (e denunciado) se for registrado.

Nos textos em que se resgata a memória como testemunho, é recorrente a expressão “alcancé a ver” justamente para contar o que se viu – como testemunha secreta e privilegiada – no momento exato que ele desaparece. Nos primeiros 41 capítulos de El país bajo mi piel, a narradora fala de um fato marcante de sua infância, quando viu a parede da casa de um vizinho suja de sangue ou quando diz que, depois do terremoto de 1972, a cidade de Manágua foi devastada a ponto de não ser reconhecida 28 anos depois, quando ela retornou. Ambas as lembranças funcionam como um elo entre seu “Eu” anterior e o passado nacional: “este último olhar é um elemento constitutivo do eu” (MOLLOY, 2003, p. 263). O laço com o passado só tem valor quando em contato com o presente, num movimento de atualização do passado pelo presente da escrita.

A autora ainda aponta dois tipos de memórias que se complementam quando se deseja preservar o passado. Uma delas seria a memória individual, solipsista e responsável por guardar lembranças pessoais; a outra, a memória coletiva, aquela que conserva o passado de uma comunidade e que tem no autobiógrafo seu membro privilegiado e autodesignado.

Segundo Molloy, a fusão dessas duas memórias produz a verdadeira rememoração (Eingedenken), porque combina material do passado individual com o passado coletivo e apresenta ao leitor uma versão única dos fatos. Cabe citar Maurice Halbwachs (apud MOLLOY, 2003, p. 265), que, em La Mémoire collective, afirma que, dependendo do tipo de memória a que se recorre, o autobiógrafo adotará atitudes muito diferentes, podendo destacar marcas pessoais e de sua personalidade ou funcionando como membro de um grupo, evocando lembranças impessoais e coletivas que têm valor para esse determinado grupo a que pertence ou a cujo serviço está.

Por essa razão, reconhece-se que escritas autobiográficas usam de artifícios para estabelecer laços com seus leitores a fim de persuadi-los, proporcionando-lhes a sensação de pertencimento a um grupo; esses artifícios são dos mais diversos, como a atração de um grupo de leitores ideologicamente alinhado ao autobiógrafo, figuras contemporâneas simpáticas ou exposição de vínculos familiares, que constroem uma imagem intimista, individual e privada (MOLLOY, 2003, p. 268). Curiosamente, muitas vezes, a atmosfera íntima e privada está reservada a um lugar:

Há lugares protegidos para recordar e a partir de onde recordar; lugares privilegiados onde se escolhe inscrever estes gestos de restauração comunitária. Estes lugares – os lugares da memória – se acham, forçosamente, fora do alcance do autobiógrafo. Distanciados 42

no tempo ou no espaço, são essencialmente não atuais; nunca coincidem com o presente da escrita, ou seja, com o lócus no qual se origina o ato autobiográfico. Algum tipo de distância marca todo ato autobiográfico, em qualquer país e em qualquer época. Sua forma mais simples é geográfica: é raro (mas talvez não impossível) encontrar um escritor tão plenamente caseiro que escreva sua autobiografia no mesmo lugar onde começou sua vida. [...] No entanto, a distância do autobiógrafo é, antes de tudo, temporal e psicológica: os lugares que a autobiografia reclama para os ritos da memória estão fora de seu alcance, porque ou ficaram para sempre para trás, ou o tempo desgastou-se a ponto de deixá-los irreconhecíveis (MOLLOY, 2003, p. 269).

“As lembranças se tornam território” (MOLLOY, 2003, p. 259), e o próprio título El país bajo mi piel é um exemplo acabado. A morada de suas memórias são seu país, sua cultura, mas, acrescentadas a suas experiências externas, ganham outros significados.

Ao situar o momento de seu nascimento na própria história da Nicarágua, Belli cria um elo genético, fazendo coincidir sua gestação com a gestação da Revolução, que também foi um processo interno pelo qual ela passou: o conservadorismo, as rupturas, as baixas, os ideais, a libertação.

Depois de um hiato temporal, a obra de Belli talvez tenha sido um modo de reescrever uma história não oficial, um modo de reconstruir uma história não reconhecida e silenciada.

Para Ricoeur (1990), a construção do outro está latente porque está à espera de quem o torne história graças à linguagem. Assim, para além da enunciação de si, há também o contar o Outro (que também retorna ao si):

Vamos mais longe: enquanto cada romance desdobra um mundo do texto que lhe é próprio [...] as histórias vividas de uns são encavaladas nas histórias dos outros. Partes inteiras de minha vida fazem parte da história da vida dos outros, de meus pais, de meus amigos, de meus colegas de trabalho e de lazer (RICOEUR, 1990, p. 190, tradução de Leila de Aguiar Costa).

Por fim, T. S. Eliot (1989, p. 39) salienta: “nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos”. Assim, o autor vê na tradição a chave para a leitura do texto. 43

CAPÍTULO 2

MI PIEL…

2.1 A escrita de si no pós-Revolução: Nicarágua e literatura

Durante o século XX, minorias até então ignoradas e silenciadas passaram a reivindicar direitos, e discursos oficiais foram confrontados por narrativas que escapavam à esfera hegemônica. O confronto de discursos não se limitou ao campo político, social ou histórico, mas incluiu o narrativo, porque os discursos foram postos em tensão, o que exigiu um novo olhar para a escrita em primeira pessoa. A nova possibilidade de construir identidade já não aceitava concepções deterministas ou predefinidas, porque os estudos da linguagem discursiva haviam avançado e firmado que ela é “una construcción nunca acabada, abierta a la temporalidad, a la contingencia, una posicionalidad relacional sólo temporariamente fijada en el juego de las diferencias” (ARFUCH, 2002b, p. 21).

Cid (2009) ainda afirma que, diante desse novo cenário narrativo amplo, difuso e movediço, o que se denominava autobiografia36 teria também mudado de protagonistas. Até então de uso praticamente exclusivo do homem, a autobiografia passava a ter, com maior força, o protagonismo feminino, que trazia consigo um novo referencial de mundo, deixando de ser apenas a companheira ou o apoio do homem, como era comum. Na entrevista a Bizerra (2013) já citada no Capítulo 1, Belli diz exatamente isso: que quer contar o mundo a partir de uma visão feminina.

Sobre a invenção literária a partir da segunda metade do século XX, Gema Palazón Sáez publicou em 2006 o artigo “„El país bajo mi piel‟: memoria, representación y discurso femenino en la obra de Gioconda Belli”, onde considera o livro uma autobiografia37, uma escrita que resgata memórias escritas de longe, não só geográfica (Santa Mônica, Los Angeles, EUA) mas também temporalmente (aproximadamente 27 anos separam a escrita de Belli e boa parte de suas recordações). A autora vê na publicação de El país bajo mi piel a abertura de um espaço conflituoso no que tange a sua inscrição no discurso testemunhal da

36 Aqui, optou-se por usar o termo do próprio autor. 37 Cumpre sublinhar que Palazón Sáez (2006) não discute o gênero, sobretudo porque esse não é seu objetivo no referido artigo. 44

Nicarágua, sobretudo porque rompe paradigmas do gênero fundados em considerações de trabalhos críticos38 nas três últimas décadas do século XX. A esse momento de imprecisão, Palazón Sáez (2006a) chama de “crisis del testimonio”.

Assim como em Cuba houve grandes esforços para incentivar a produção cultural, como a criação da Casa de las Américas39, a Revolução Nicaraguense, entre outros objetivos, defendia democratizar a cultura, para o que criou ações para difusão e produção de cultura popular. Foi nessa época que se desenvolveram os chamados Talleres Populares de Poesía40, a cargo do Ministério da Cultura e sob a coordenação do sacerdote católico, poeta e promotor da teologia da libertação Ernesto Cardenal (1925-2020). Fazia parte da implantação e concretização do processo revolucionário recuperar a cultura nacional para (I) remodelá-la de modo a servir à vanguarda revolucionária e (II) construir a imagem do hombre nuevo, especialmente criada após um processo revolucionário que se acreditava eficiente, forte e bem fundamentado.

Outras ações foram implantadas como forma simbólica de legitimação da

Revolução: a criação do já mencionado Ministério da Cultura e as Cruzadas de

38 Para ficar apenas em três exemplos importantes no campo de estudos culturais estadunidenses sobre os testemunhos latino-americanos: BEVERLEY, John; ACHUGAR, Hugo (Ed.). La voz del otro: Testimonio, subalternidad y verdad narrativa. Revista de Crítica Literaria Latinoamericana, Lima, v. XVIII, n. 36, 2° sem. 1992; SKLODOWSKA, Elzbieta. Testimonio hispano-americano: historia, teoría, poética. New York: Peter Lang, 1991; e BARNET, Miguel. La novela testimonio: socio-literatura. In: BARNET, Miguel. La canción de Rachel. Barcelona: Laia, 1979. p. 125-150. 39 A organização governamental Casa de las Américas foi fundada quatro meses após o êxito da Revolução Cubana por Haydée Santamaría e se dedica desde então a desenvolver e ampliar as relações socioculturais de países do mundo inteiro por meio de festivais, exposições, discussões artísticas e prêmios literários, por exemplo. 40 Durante o governo sandinista, Ernesto Cardenal batizou de “Talleres de poesía exteriorista” aquilo que já havia desenvolvido na década de 1970 em Solentiname, um arquipélago no lago Nicarágua. Com o objetivo de ampliar seu alcance, as oficinas de poesia aconteciam em diferentes lugares da sociedade nicaraguense como cooperativas agrícolas, bairros, fábricas, exército e milícias populares. Estimulavam-se versos livres e temas que dessem relevância a problemas sociais e políticos. Membro do conselho editorial do suplemento literário “Ventana” (seção do periódico sandinista Barricada), em 1981, Belli publicou o artigo “Entre la realidad y la fantasía quedémonos con las dos”, no qual rebatia a prática das oficinas dizendo que, em nome da revolução, impunham-se limites à invenção poética (Gioconda Belli: Suplemento cultural “Ventana”, n. 13, 14 mar. 1981, p. 7 apud GONZÁLEZ, 2012, p. 66-67). 45

Alfabetização Nacional41, ações que mobilizaram quase todo o país. Segundo Palazón Sáez (2006a), essas decisões tinham o objetivo de afirmar que a transformação do país e da sociedade coincidia com o proposto pela FSLN e que, graças a seus líderes, a Revolução e seu plano de governo eram possíveis e estavam – inclusive – em curso.

Segundo Palazón Sáez (2006a), a literatura nicaraguense nos anos 1980 assistiu a um boom das produções de testemunho por incentivo do Estado e do

Ministério da Cultura42, numa clara reverberação da produção crítica que se produzia nos EUA e em Cuba.

En el caso nicaragüense, los años ochenta supusieron el desarrollo de un efervescente mundo editorial en el que las biografías de héroes y mártires, la recuperación de la lucha antiimperialista de la gesta de Sandino y los testimonios de combatientes durante la dictadura de la dinastía de los Somoza, se convirtieron en referencia cultural como forma de recuperación de la identidad nacional (PALAZÓN SÁEZ, 2006a, p. 36).

Embora muitas produções testemunhais tenham sido escritas em meados dos anos 1960, na clandestinidade ou em montanhas isoladas, a maioria delas só foi

41 Segundo Zimmermann (2002, p. 102-103), a Nicarágua tinha altíssimos índices analfabetismo: 50% nas cidades, chegando a 80% no campo (nesse caso, 100% das mulheres). De acordo com um censo de 1979, logo após a Revolução, o país tinha menos de cem escolas de ensino fundamental, e sua maioria havia sido danificada pela guerra. No início de 1980, todas já haviam sido reformadas, e outras 500 estavam construídas em áreas rurais. Os brigadistas alfabetizadores (alunos secundaristas, universitários urbanos e mais da metade mulheres) trabalhavam na alfabetização, no levantamento de dados botânicos e linguísticos e de campanhas e reuniões culturais sobretudo no campo, chegando a reduzir o analfabetismo em 13%. 42 Cabe resgatar a informação dada por Palazón de que, meses depois de 19 de julho de 1979, a antropóloga Margaret Randall foi convidada para ir à Nicarágua ministrar o curso “¿Qué es y cómo se hace un testimonio?”, o qual foi publicado por Beverley e Achugar (1992). As chamadas Brigadas Culturares também tiveram atuação fundamental na manutenção da Revolução com os Diarios de Campaña, ações de registro da experiência revolucionária promovidas pelo Ministério da Cultura e implantadas nas regiões em conflito com a Contra. Em entrevista à revista Kamchatka, a participante da Brigada Vidaluz Meneses é contundente: “En primer lugar de animación y apoyo solidario, debíamos de contribuir a mantener en alto la moral de los combatientes. En segundo lugar, aunque no lo hicieron explícito, era una manera de comprometernos participando de alguna manera en la defensa armada de la Revolución. (No ser artistas de salón) Fue el mismo sentido de las brigadas que salieron a los cortes de algodón, caña y café” (MENESES, 2015, p. 193). 46 publicada depois do triunfo da Revolução43. A propósito, foi com a Revolução que a publicação de testemunhos tornou-se um meio institucionalizado de reescrita do discurso oficial de uma “Nueva Nicaragua”, para que se pudesse conhecer a história do processo revolucionário dentro e fora do país. Whisnant (1995, p. 19644 apud PALAZÓN SÁEZ, 2006a, p. 36) considera que esse processo era resultado de dois objetivos do projeto cultural do governo sandinista: (I) a revitalização da cultura popular e (II) sua democratização, buscando estabelecer uma identidade nacional e unidade política pela exaltação da figura dos heróis e mártires nacionais em biografias populares. Assim como no século XIX, na formação dos estados liberais, se destacaram heróis e mártires, a Revolução Sandinista enaltecia os heróis decaídos do passado como Augusto Sandino – já resgatado no nome do movimento: sandinismo – e os heróis sobreviventes da luta do então presente.

Se, para os primeiros teóricos, a justificativa do testemunho era “dar voz ao subalterno”, a produção nicaraguense subverteu – em parte – essa lógica ao ser um meio de divulgação da voz de quem participou da Revolução, ou seja, pessoas em sua maioria letradas e intelectuais como, por exemplo, Carlos, el amanecer ya no es una tentación llena de humo (1979), de Tomás Borge45, e La montaña es algo más que una inmensa estepa verde (1982), de Omar Cabezas, ganhador do prêmio Casa de las Américas na categoria testemunho46.

43 Como exemplos, citam as obras Diario de un preso, de Pedro Joaquín Chamorro (1963), Noches de tortura, de Clemente Guido (1963), Doris Tijerino: Inside the Nicaraguan revolution (1978), de Margaret Randall a partir da entrevista à combatente Doris Tijerino, Y...las casas quedaron llenas de humo, de Guadamuz (1979) e Carlos, el amanecer ya no es una tentación, de Tomás Borge (1979) (PALAZÓN SÁEZ, 2006a, p. 36-7). 44 WHISNANT, David E. Rascally Signs in Sacred Places: The Politics of Culture in Nicaragua. Chapel-Hill: The University of North Carolina Press, 1995. 45 Autor também de Los primeros pasos: la revolución popular sandinista (1981) e La paciente impaciencia (1982). Palazón Saéz ainda cita outros intelectuais como Humberto Ortega, autor de Sobre la insurrección (1981) e Charlotte Baltodono, que escreveu Entre el fuego y las sombras (1988). 46 Tanto Tomás Borge quanto Omar Cabezas desempenharam altos cargos na direção da FSLN depois de 1979; este foi chefe da Direção Política do Ministério do Interior e aquele, último fundador da FSLN a falecer, em 2012, atuou como vice-secretário e presidente. 47

Como dito anteriormente, a produção testemunhal nicaraguense havia subvertido em parte a lógica da definição primeira do gênero. Em parte, porque há diversos testemunhos anônimos compilados, por exemplo, por Margaret Randall47, como encomenda institucional estatal ou iniciativa de intelectuais solidarizados com o sandinismo. Werner Mackenbach (2000, p. 11) afirma que o testemunho “pasó incluso a ser una de las prácticas culturales centrales […] fue canonizado como expresión del nacionalismo revolucionario en el campo literario”.

A definição canônica do testemunho – como a recuperação da memória coletiva de excluídos por meio de um intelectual engajado48 – dada pela crítica dos estudos culturais estadunidenses dos anos 1980-90 delimitou o gênero a uma estrutura rígida, o que acabou por excluir outras criações da época49.

Com o fim do governo revolucionário, após a vitória de Violeta Chamorro, do partido Unión Nacional Opositora (UNO), em 1990, a Nicarágua passou a ser um regime liberal e viu suas políticas públicas sofrerem mudanças significativas. Embora não houvesse mais a necessidade de “zelar” pela permanência da Revolução, outros textos foram publicados sobre as décadas anteriores, tendo alguns versado sobre a Revolução, a contrarrevolução, o recrutamento militar obrigatório ou o

47 No se puede la revolución sin nosotras (1978), Cristianos en la revolución (1983), Las hijas de Sandino: una historia abierta (1999) e Todas estamos despiertas: testimonios de la mujer nicaragüense hoy (1980). 48 De acordo com a definição de John Beverley (1999, p. 24), “Por testimonio entiendo una novela o la longitud propia de la narrativa novelada en libro o panfleto [...], contada en primera persona por un narrador quien es además el protagonista o testigo del hecho que cuenta y cuya unidad de narración es normalmente una “vida” o una experiencia vital significativa. El testimonio puede incluir, pero no está subsumido a ello, cualquiera de las siguientes categorías [...] autobiografía, novela autobiográfica, historia oral, memoria, confesión, diario, entrevista, reportaje testimonial, historia de vida, novela-testimonio, novela de no ficción o literatura factográfica... Esta situación de narración en el testimonio ha de incluir una urgencia por comunicar un problema de represión, pobreza, subalternidad, encarcelamiento, lucha por la supervivencia […]. (Tradução de Palazón Saéz, 2006a, nota 21.) Essa citação refere-se ao trabalho de BEVERLEY, John. Algunos apuntes sobre la relación literatura-revolución en el caso nicaragüense. In: ROMÁN-LAGUNAS, Jorge; ME CALLISTER, Rick (Comp.). Literatura centroamericana como arma cultural. Editorial Óscar de León Palacios: Guatemala, p. 13-27, 1999. 49 A autora cita Edén Pastora, Comandante Cero: una tragedia campesina (1988), de Berreby, Genevieve e Elie-Georges, Yo fui un contra: historia de un paladín de la libertad (1987), de Elizabeth Reimann, e Ráfaga, the life story os a nicaraguan miskito comandante (1992), de Reynaldo Reyes, J. K. Wilson e Tod Stratton. 48 exílio50. Em sua maioria, essas obras se referiam a nostalgias ou rancores dos anos de luta e revolução. Mesmo esses textos sendo ignorados pela crítica dos estudos culturais dos anos 1990, por fugir da definição canônica dos escritos testemunhais, é perceptível que houve uma continuidade de invenções literárias que formaram um novo espaço de diálogo com a história recente da Nicarágua (PALAZÓN SÁEZ, 2006a, p. 40).

Sobre o caso nicaraguense, Palazón Sáez enuncia importantes considerações sobre os textos publicados a partir dos anos 1990:

Contrariamente a la idea de que el testimonio se presenta como la voz solidaria con las comunidades oprimidas, se observa una predominancia del individualismo y una autoafirmación personal por inscribir al sujeto que testimonia en el relato de una revolución sobre la que pesaban ya muchas dudas y desconfianzas. De alguna forma, la derrota electoral de 1990 sembraba un nuevo escenario en el que la factura de la revolución fracasada hacía emerger nuevas voces para defenderse de las acusaciones, demostrar la inocencia o denunciar los abusos cometidos por la revolución (PALAZÓN SÁEZ, 2006a, p. 40).

Com uma perspectiva muito parecida, Mackenbach (2000) discute como a canonização do gênero excluiu certa invenção literária rica e diversa como a feita na América Central a partir dos governos pós-ditatoriais:

La canonización [...] no corresponde, por tanto, de ninguna manera a la realidad de la literatura testimonial en Centroamérica. Una revisión crítica del testimonio que se concentre especialmente en las relaciones entre la realidad extraliteraria y su representación y presentación narrativas en el testimonio, es imprescindible. Esta nueva lectura crítica del testimonio centroamericano demuestra que la canonización llevada a cabo en el seno del discurso literario de los años setenta y ochenta no hace justicia a la diversidad ni a las contradicciones de la literatura testimonial centroamericana y que resultó en una “memoria” excluyente que marginó las producciones testimoniales que no correspondieron a las premisas dogmáticas del discurso sobre el testimonio […] (MACKENBACH, 2000, p. 14).

É nesse contexto conflituoso aos olhos da crítica literária (nacional e internacional) que se inscreve a publicação de El país bajo mi piel: memórias de

50 Alguns exemplos são Sergio Ramírez (Adiós muchachos: una memoria de la revolución sandinista, de 1999), Alejandro Bendaña Rodríguez (Una tragedia campesina: testimonios de la resistencia, de 1991), Ernesto Castillo Guerrero (Algo más que un recuerdo, 1997) e as obras já mencionadas de Berreby, Reinmann e Reynaldo Reyes. 49 amor e guerra, publicado em 2001 por Gioconda Belli. Parte desse conflito é atribuída ao que Mackenbach (2000) chama de crise do testemunho e aos incisivos investimentos de grandes grupos editoriais51 em textos testemunhais e autores com um reconhecimento internacional já consolidado.

Nicasio Urbina (2005) vê as publicações ditas autobiográficas nos anos 200052 como resultados das condições políticas da Nicarágua “Con un gobierno neo-liberal, populista y corrupto en el poder, el de Arnoldo Alemán, estos actores de la revolución sandinista acaso ven la necesidad de explicar cómo y porqué fracasó la revolución” (2005, p. 6). Além disso, esse tipo de publicação de memórias seria resultado de uma questão geracional. Dependendo de como cada movimento acompanha o envelhecimento de seus líderes é natural que em determinado momento esses protagonistas se proponham a registar suas recordações, de modo a eternizar sua experiência e sua autoimagem (e o momento político que eventualmente relatam). Nas palavras de Urbina, o sujeito que se introduz numa proposta de escrita de si estará lidando com a reivindicação pessoal e a exploração do capital intelectual.

La escritura de memorias y autobiografías por parte de personalidades de cualquier campo, representa un acto simbiótico de acumulación y reproducción de capital cultural. Los autores aprovechan su experiencia, su protagonismo, su talento, para realizar un acto escritural que a su vez va a producir más capital intelectual y cultural. Este acto nunca es desinteresado (URBINA, 2005, p. 20).

Além disso, Franz Galich (2001, p. 1) aponta o campo movediço onde se encontra o livro de Belli na crítica literária baseada em gêneros discursivos:

[...] Gioconda Belli [...] no lo dice explícitamente, pero al ver la forma cómo está estructurado y lo que allí se cuenta, podría pensarse que se trata de los avatares de una caballera andante. Ya sólo esto nos plantea un primer problema de lectura, es decir, de recepción: ¿cómo debe leerse el libro, como autobiografía, memorias, testimonio o novela?

51 El país bajo mi piel foi publicado pela primeira vez por duas editoras: a pequena nicaraguense Anamá e a internacional e reconhecida Plaza & Janés, a qual publicou simultaneamente versões em alemão, italiano e holandês. Em 2002, o livro foi traduzido para o inglês e dado sua entrada nos EUA e na Inglaterra. 52 O autor se refere a três livros Vida perdida (1999) de Ernesto Cardenal, Adiós muchachos: una memoria de la revolución sandinista (1999), de Sergio Ramírez Mercado e El país bajo mi piel: memorias de amor y guerra (2000), de Gioconda Belli. 50

Na urgência da criação de narrativas que sustentassem a Revolução combinada ao efervescente incentivo do mundo editorial, autores como Gioconda Belli tiveram alcance notável na cena literária internacional. Reconhecida por sua escrita erótica, feminina e provocativa, a autora iniciou sua criação literária na poesia.

2.2 “Y Dios me hizo mujer”: Gioconda Belli

Dos cosas que yo no decidí decidieron mi vida: el país donde nací y el sexo con que vine al mundo. Gioconda Belli, 2001

Gioconda Belli ganhou projeção internacional por sua escrita poética carregada de sexualidade, erotismo e sensualidade. Tida como provocativa, sua poesia teria adquirido uma dimensão política, subversiva e revolucionária capaz de transcender o individualismo e dar novas formas de concepção do mundo (MANTERO, 2001, p. 71). Em se tratando de uma narração de memórias, parte de seu processo criativo foi relatado no livro El país bajo mi piel e traz, discursivamente, a construção de uma identidade narrativa – para usar o termo ricoeuriano – através de sua relação com a literatura, desde a infância com o avô à publicação de livros em diferentes idiomas.

Já no primeiro parágrafo da introdução, a narradora de El país bajo mi piel relaciona seu nascimento diretamente à história política da Nicarágua, estabelecendo desde o início da escrita – já no começo do primeiro parágrafo da introdução – a ideia de que, com seu nascimento, também irrompem esperança, urgência de mudança, desejo de revolução: “Quizás porque mi madre sintió mi urgencia de nacer cuando estaba en el Estadio Somoza en Managua viendo un juego de béisbol, el calor de las multitudes fue mi destino” (BELLI, 2001, p. 6). Ao mesmo tempo em que reconhece que, mesmo diante dessa urgência de nascer, foi uma “rebelde tardia”. Na infância, era uma “criatura modosa, dulce y bien portada”. Vinha de uma família cujos pais nem imaginavam que ela se tornaria uma “mujer revoltosa”. 51

Mesmo diante de um paradoxo político e moral53, a autora divide hoje seu tempo entre a capital de seu pequeno país de origem e o litoral de um dos maiores símbolos capitalista, os EUA. As dúvidas e as certezas da mulher, a celebração do corpo feminino, da fertilidade e da sensualidade confluem com sonhos, poesia e atuação política; talvez por isso sua escrita seja reconhecida internacionalmente; exemplo disso é ter tido algumas de suas obras traduzidas para mais de 20 idiomas.

Embora o panorama literário hoje pareça favorável para acolher uma escrita como a de Gioconda Belli, a crítica literária nicaraguense e de toda a América Latina levou uma década – mais precisamente os anos 1960-70 – para integrar à sua produção nomes de mulheres em suas análises. Por sua vez, grande parte da produção de poetisas nicaraguenses oscilava entre devoção religiosa, desamor, didática para crianças e formas de tratá-las.

A inserção de novas escritas femininas na literatura nicaraguense veio um pouco tarde, mas refletia claramente as mudanças políticas e sociais pelas quais passava o país. Justamente em 1970, Ernesto Cardenal foi encarregado por autoridades cubanas de elaborar uma antologia de poesia nicaraguense “posterior a Darío”. Três anos depois, em 1973, a Nicarágua ganhava um material que reunia parte de sua invenção poética54, entre os nomes, apenas três mulheres: María Teresa Sánchez, Mariana Sansón e Michèle Najlis. O nome de Gioconda Belli55 só viria a aparecer 25 anos depois, quando o poeta fez uma nova versão, à qual intitulou Flor y canto: antología de la poesía nicaragüense (1998)56. Em 1992, Daisy Zamora publicou La mujer nicaragüense en la poesía: antología (1992) e afirmou que, dos anos 1960 aos 1980, o crescimento da presença feminina na poesia é um reflexo direto das correntes feministas e da importante atuação de mulheres na Revolução Sandinista: “La poesía fue, pues, para algunas mujeres un acceso a la

53 Já na introdução, lê-se: “Mientras mi pueblo escribía en las paredes YANKI GO HOME, yo me enamoré de un yanqui periodista. […] Por ese hechizo mágico, como las princesas de los cuentos, ahora transcurro parte de mi vida convertida en un pájaro que canta en una jaula de oro y añora el trópico de sus orígenes” (BELLI, 2001, p. 6), numa referência a sua mudança para os EUA nos anos 1990, depois de se haver casado com Charlie Castaldie. 54 CARDENAL, Ernesto (Ed.). Poesía nicaragüense. San José: Editorial Universidad Cantroamericana, 1975 apud AVENTÍN FONTANA, 2005, p. 223. 55 Além de Belli, também aparecem Vidaluz Meneses, Daisy Zamora, Rosario Murillo, Luz Marina Acosta e Alba Azucena Torres (AVENTÍN FONTANA, 2005, p. 223). 56 CARDENAL, Ernesto (Ed.). Flor y canto: antología de poesía nicaragüense. Managua: Anama, 1998 apud AVENTÍN FONTANA, 2005, p. 223. 52 participación revolucionaria y al mismo tiempo un producto literario, verbalmente revolucionario” (ZAMORA, 1992, p. 934-935)57.

Sergio Ramírez (197558 apud ZAMORA, 1992, p. 935) reitera que os anos 1970 deram origem a uma nova tradição literária, com a incorporação de vozes femininas:

La poesía nicaragüense ha sido reconocida como uno de los fenómenos culturales más importantes de Centroamérica; una tradición firme, variada y continuada que no cede nunca en su calidad, una poesía que hasta la presente década [1970] había tenido un signo predominante masculino, o cerradamente masculino. Pero la poesía nicaragüense de la década de los setenta, [sic] será indudablemente o lo es ya, femenina. […] Cada una de las [nuevas escritoras] afirmándose dentro de un estilo muy personal de creación, comunica, sin decaimiento, verdad y frescura a su propio oficio y pueden presenta [sic] obras de juventud que son obras de madurez, todas jóvenes de la veintena que apuntalan ahora esa nueva tradición literaria nicaragüense.

Zamora (1992, p. 941) afirma que os anos 1970 foram sinônimo de rebeldia nas mais diversas formas de manifestação. A abertura de centros noturnos em que circulavam tendências hippies, beatnik, modas e vícios davam o tom da década, que acompanhava também o fortalecimento do sandinismo. No campo literário, surgiam invenções poéticas de diversos grupos, desde filhos de antigos poetas nicaraguenses, universitários revolucionários e conservadores, alguns dos quais participaram de um dos grupos mais importantes da época, a Generación Traicionada59. Paralelamente, também se formava a Frente Ventana, um grupo de jovens intelectuais burgueses e de classe média com compromisso militante com a luta do povo nicaraguense, sob a liderança de Fernando Gordillo (1941-1967) e Sergio Ramírez (1942-), com nomes como o de Michele Najlis (1946-) na poesia e Rosario Aguilar (1938-) na prosa, uma das percussoras de Gioconda Belli no campo narrativo60. Belli, que cursou os estudos primários em Manágua e depois num internato em Madri, se formou em Publicidade e Jornalismo na Filadélfia, nos EUA,

57 Daisy Zamora (1992, p. 933) começa seu ensaio afirmando que a poesia feminina nicaraguense atual teve sua origem nos grupos indígenas do norte da Costa Atlântica da Nicarágua, à margem do rio Coco, com o povo chamado mosquito ou mískitos. Relatos contam que alguns rituais têm a mulher como responsável por criar e entoar cantos e orações, desempenhando o papel de poeta, numa mescla de sacerdotisa e de xamã. 58 RAMÍREZ, Sergio. La prensa literaria. Managua, 1 nov. 1975. 59 A Geração Traicionada era um grupo de tendência burguesa, indiferente à realidade do país, irresponsável e um esboço superficial da geração beatnik (ARELLANO, 1982, p. 82). 60 Sobre Aguilar, diz Zamora (1992, p. 943): “Su obra ha contribuido a liberar y activar formas expresivas y lenguajes, géneros que, como el narrativo, en nuestro medio, suelen ser patrimonio exclusivo de escritores varones”. 53 fez parte de um grupo de mulheres estudantes ou graduadas que só foram incluídas nas letras nicaraguenses por haver tido acesso ao ensino superior, fato possível com a fundação da Universidad Centroamericana (UCA) e a ampliação da Universidad Nacional Autônoma de Nicaragua (UNAN)61.

A iniciação de Belli na produção poética veio de forma abrupta e meteórica e teve impactos fundamentais em sua trajetória. A publicação de seus primeiros poemas causou desconforto na família: seu então marido e tio ficaram horrorizados com o conteúdo dos versos, ditos “pornográficos”, porque sua escrita fugia completamente ao decoro de uma literatura escrita por uma mulher nicaraguense de classe alta.

Fundindo a origem de duas partes importantes de sua vida – a poesia e a conspiração –, a construção discursiva das memórias sobre suas primeiras publicações poéticas aparece no nono capítulo62 de El país bajo mi piel; o primeiro parágrafo garante um tom otimista e entusiasta, em que relaciona diretamente a vitalidade de seu corpo de mulher com o fazer poético; o mesmo corpo capaz de gerar é também causa e consequência da arte e da indignação; o turbilhão de sentimentos, ânsias e inquietudes percebidos em seu corpo encontra morada e expressão na poesia “Mi cuerpo celebraba su afirmación”, como se o corpo exalasse a necessidade de mudança.

No sé en qué orden sucedieron las cosas. Si fue primero la poesía o la conspiración. En mi memoria de ese tiempo las imágenes son luminosas y todas en primer plano. La euforia vital encontró cauce en la poesía. Apropiarme de mis plenos poderes de mujer me llevó a sacudirme la impotencia frente a la dictadura y la miseria. No pude seguir creyendo que cambiar esa realidad era imposible. Me poseyó un estado de ebullición. Mi cuerpo celebraba su afirmación. El simple acto de respirar me daba placer. Me tragaba el mundo por la nariz y la sensación de plenitud era tal que dudaba que mi piel pudiera contenerme. Cualquier día emergería la alegría de mis poros como un ectoplasma y flotaría bailando desnuda por las calles de Managua (BELLI, 2001, p. 31, grifos nossos).

61 Embora Belli não tenha cursado a universidade no seu país de origem, muitas mulheres só surgiram na cena literária porque estavam no ensino superior, e algumas trabalhavam também para se sustentar e continuar os estudos (ZAMORA, 1992, p. 943). 62 Capítulo 9 – “De cómo irrumpieron en mi vida la poesía y la revolución”. 54

Ao associar a euforia do fazer poético a uma função fisiológica de seu corpo, esse sujeito enunciativo constrói uma relação de codependência entre um tripé que permeia toda a narrativa: sua literatura, seu país e seu corpo. Não à toa, o título El país bajo mi piel: memorias de amor y guerra seria a síntese dessa correlação visceral. Ao narrar sua volta à Nicarágua com o triunfo sandinista, em 19 de julho de 1979, um trecho chama atenção:

Caminé hasta la oficina de inmigración. Mi piel reconocía jubilosa el calor familiar, el olor, las nubes. En el recinto grande, de techo bajo, alumbrado por luces de neón, sólo había una muchacha, vestida de verde olivo, tras un escritorio. Metí la mano en mi bolso para sacar mi viejo pasaporte. La muchacha sonrió. – No necesita pasaporte compañera – me dijo –. Éste es su país. Nunca fue tan mío como ese día (BELLI, 2001, p. 166, grifo nosso).

Essa associação muito se assemelha ao livro de 1971, Las venas abiertas de América Latina, do autor uruguaio Eduardo Galeano. A pele, assim como as veias, remete à pulsão de um corpo vivo e impetuoso, e que leva, sob sua tutela, uma nação que também pulsa por mudanças, sejam a base do amor ou da guerra. A mesma pele que protege esse país é também por ele constituída.

Além disso, diferentemente das recordações tidas como incertas e nebulosas, as memórias desse período são dadas como imagens “luminosas y todas en primer plano”, a voz narrativa parece não titubear frente à certeza de que fora uma época polvorosa, feliz, produtiva e transgressora de padrões sociais e individuais. Portanto, suas primeiras experimentações poéticas coincidem com sua aproximação intelectual e carnal com o Poeta, sua insatisfação com seu primeiro casamento e a amizade com Camilo Ortega63 – apresentado pelo Poeta – e quem a convidou para participar do sandinismo. Hesita um pouco, porque tem suas dúvidas se o método que deu certo em Cuba se sustentaria ou não na Nicarágua, e, embora assuma

63 Camilo Ortega é irmão do atual presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, que também é mencionado no referido capítulo pelo irmão porque acabara de ser preso pela Guarda Nacional. Interessante notar como Camilo é descrito pela voz narrativa: “un hombre joven, delgado, larguirucho con cara de Quijote. Ojos pequeños tras las gafas, bigote ralo. […] Su manera de ser era diferente de la de los artistas y diletantes que conocía; un reposo tenso, intenso, un aire de concentración, de responsabilidad, superior a sus años. Hablaba en voz baja. Casi en susurros. Me llamó la atención la invisible autoridad que ejercía sobre el Poeta que lucía apaciguado, serio, cosa nada común en él” (BELLI, 2001, p. 31, grifos nossos). Mais uma vez, a figura de Dom Quixote é retomada, mas dessa vez é associada a Camilo Ortega, quem a convida a se “aventurar” no mundo desconhecido e desafiador do sandinismo. 55 temer pela filha, acaba aceitando, mesmo Camilo lhe pedindo sigilo até para o Poeta.

Assim, ao mesmo tempo em que adentrava à literatura com certos assuntos revolucionários, também adentrava outro mundo: o da clandestinidade da Frente Sandinista de Liberación Nacional (FSLN). Para assegurar sua decisão de participar do movimento que, por sua vez, era visto com respeito e admiração no meio artístico, a voz narrativa menciona as leituras que a transformaram e a fizeram socialista e, portanto, a levaram aceitar o convite, uma vez que “Ya yo me había leído todos los libros necesarios para llegar a convencerme de que en Nicaragua no quedaba otra salida que la lucha armada y la revolución”.

Un libro de George Pollitzer me hizo materialista filosófica; Frantz Fanón, en los Condenados de la Tierra me aterrizó en el colonialismo y el neocolonialismo, la realidad del Tercer Mundo. Eduardo Galeano, con su libro Las Venas Abiertas de América Latina, me reveló la historia triste y sangrienta de mi región del mundo, los resultados nefastos de la doctrina Monroe, la política del Gran Garrote y la Alianza para el Progreso. Además había leído a Marcuse, a Chomsky, a Ernest Fisher, al Che. Me había convertido al socialismo (BELLI, 2001, p. 32)

Transitando pelas ruas de Manágua, vê a miséria, a desigualdade, o sofrimento e o isolamento de inúmeras famílias, essas imagens provocam reflexões e outras memórias dos tempos em que estudava num colégio de freiras e presenteava crianças pobres no Natal. O incômodo que vivencia a motiva a fazer algo para mudar aquela situação, sente sair dos ombros a culpa de seus privilégios e deixa de contemplar de longe a miséria e renuncia ao paternalismo da caridade cristã.

Dentro de mi angustia surgió repentinamente una sensación de alivio, casi de alegría. Fue como si de pronto la culpa de mis privilegios dejara de pesarme sobre los hombros. Ya no era solamente una transeúnte contemplando la miseria desde el refugio de un automóvil. Me había convertido en cómplice de quienes querían terminar con ella (BELLI, 2001, p. 32).

Em meio ao desconforto da consciência social e da vida pacata ao lado do primeiro marido, ela narra que, enquanto observava a filha brincando no gramado, versos surgiam em sua cabeça, como que pedindo para serem escritos “el verdor de la grama me provocaba frases, versos saltaban en mi cerebro como palomitas de maíz friéndose en el aceite caliente de mi vida secreta” (BELLI, 2001, p. 33). Num 56 primeiro momento não o fez, mas ao comentar com o Poeta, ele a incentivou a escrever, engrandecendo-a: “Tenés una responsabilidad histórica”64 (BELLI. 2001, p. 66).

Nota-se que ao narrar como se deu sua primeira produção poética, a identidade narrativa de El país bajo mi piel associa discursivamente o ato de escrever a um ímpeto, uma urgência arrebatadora de se expressar. Numa mescla entre a ânsia e o alívio “[os poemas] Me salían como conejos del sombrero” (BELLI, 2001, p. 66); não há, nessas memórias, menção ao trabalho artesanal da invenção poética, pelo contrário: sua produção acontece “como num passe de mágica”, tão rápido em que nem se percebe o truque. Recebe alguns elogios do Poeta, que sugere que devesse trabalhá-los mais. A euforia com a poesia e com a conspiração permite que se aproprie dos poderes de mulher para sacudir o sentimento de impotência diante da ditadura e a miséria.

Num tom soberbo e provocador, o Poeta diz que sua escrita ficará melhor “Cuando seas como nosotros – sonrió malicioso – ya todo lo que hagás va a ser bueno, pero cuando uno empieza hay que pulir, quitar” (BELLI, 2001, p. 67). Depois da crítica, a voz narrativa subverte seu discurso quanto ao fazer poético, renegando a facilidade e a leveza admitidas anteriormente para dar lugar a um processo doloroso, minucioso e difícil:

Trabajé duramente midiendo las palabras apartándome de mí misma para mirar el poema sin mí como algo aparte. Era tan difícil. Aquella metáfora tan hermosa sobraba. La tachaba. Nunca pude ser una cirujana despiadada. Me enamoraba de las palabras. Sólo el tiempo me ha permitido hacerlo con menos dolor.

Em nenhum momento ela diz ter mostrado seus poemas ao marido antes de publicá-los, ele só o soube no momento em que encontrou em sua casa o fotógrafo de La Prensa tirando o retrato da narradora “[o marido] Nos observó como quien observa animales raros en una enciclopedia” (BELLI, 2001, p. 67). Esse episódio demonstra não só um sentimento de desprezo pelo primeiro marido, mas ao que ele representa: o suposto controle do homem sobre a mulher a partir da convenção social do matrimônio.

64 Mais tarde admitiria que não esperava que ela escrevesse tão bem em seus primeiros poemas e ainda que estava brincando quando disse essa frase de incentivo (BELLI. 2001, p. 67). 57

Com o título “Una nueva voz en la poesía nicaragüense” e uma grande pintura da narradora, a repercussão de sua escrita já é sentida no dia seguinte à publicação. Sua família e pessoas próximas a ela ficam horrorizadas com a temática que trazia em seus escritos “¡Pobre de tu marido!” ou “¿Cómo se te ocurrió escribir un poema sobre la menstruación? Qué horror. Qué vergüenza” (BELLI, 2001, p. 34), lhe disse uma tia. A alta sociedade nicaraguense, estarrecida, adjetiva sua poesia como “poesia vaginal, pornográfica”, e alguns homens passaram a olhá-la com lascívia “Vos debés de ser muy apasionada” (BELLI, 2001, p. 34).

Segundo a narradora, seus poemas celebravam seu próprio sexo, prática incomum nos anos 1970. O que mais chocava em seus poemas era a audácia de celebrar seus plenos poderes de mulher, nomeava a sexualidade e a praticava com deleite. Como pareceria óbvio, seu marido reprova e tenta censurá-la (inadmissível para ela), no entanto, rendeu-se, junto com os familiares perplexos, aos elogios de grandes e célebres poetas da Nicarágua, como José Coronel, Pablo Antonio Cuadra e Carlos Martínez Rivas.

Assim, a poesia é tida pela narradora de El país bajo mi piel como mais uma maneira de subversão frente à sociedade burguesa nicaraguense e ao patriarcado: “La reacción de lo más conservador de la sociedad me hizo percatarme de que, sin proponérmelo, había encontrado otra vía para la subversión” (p. 68). Ela encontra a subversão na sensualidade e na paixão, vincula o corpo feminino ao desejo carnal e a sua potencialidade fértil, usa de imagens e sinestesias para se referir à natureza do corpo feminino como o peito, o ventre, as pernas e o cabelo.

Seu primeiro livro publicado, Sobre la grama65, foi publicado em 1972, ano em que também ganhou o Premio Mariano Fiallos Gil de Poesía, da Universidad Nacional de Nicaragua, e inclui um de seus poemas mais conhecidos: “Y Dios me hizo mujer”66, além de “De la mujer al hombre”67 e também já dava indícios de uma

65 Os poemas aqui mencionados foram extraídos do site Achtung!, dada a dificuldade de encontrar o livro no Brasil ou em formato digital (GARCÍA, 2017). 66 Y Dios me hizo mujer, / de pelo largo, / ojos, / nariz y boca de mujer. / Con curvas / y pliegues / y suaves hondonadas / y me cavó por dentro, / me hizo un taller de seres humanos. / Tejió delicadamente mis nervios / y balanceó con cuidado / el número de mis hormonas. / Compuso mi sangre /y me inyectó con ella / para que irrigara / todo mi cuerpo; / nacieron así las ideas, / los sueños, / el instinto. / Todo lo que creó suavemente / a martillazos de soplidos / y taladrazos de amor, 58 escrita engajada com o seu país em “Uno no escoge”68, que muito se assemelha ao trecho da introdução de El país bajo mi piel, mencionado como a epígrafe deste subcapítulo.

Interessante notar que em El país bajo mi piel (2001), depois do nono capítulo, o fazer poético só volta a ser mencionado muito posteriormente, no capítulo 16, justamente para tratar da publicação de Sobre la grama69. Esse capítulo inicia pungente sobre a importância da poesia em sua vida “Desde que la admití en mi vida y le di rienda suelta, la poesía se me desencadenaba a menudo por dentro como una tormenta eléctrica. Las descargas me dejaban las manos llenas de nuevos poemas” (BELLI, 2001, p. 102). Assim, essa identidade narrativa se constrói como detentora de um poder, pois é ela quem admite a entrada da poesia em sua vida a medida que considera sua criação literária um dom divino, visto que era acometida por impulso, uma inspiração súbita.

Mais uma vez, alguns de seus poemas são uma ode ao corpo feminino, à maternidade, aos sonhos, outros incitam a esperança de uma realidade melhor para o seu país. O entusiasmo e a inquietação por mudanças encontram, na relação que faz com o corpo, sua efetiva materialidade. O amor, em todas as suas faces, também é uma temática recorrente: trata do amor pelos filhos, a ligação criada na gestação, no parto e na amamentação, e também do amor entre um homem e uma

/ las mil y una cosas que me hacen mujer todos los días / por las que me levanto orgullosa todas las mañanas / y bendigo mi sexo. 67 Dios te hizo hombre para mí. / Te admiro desde lo más profundo / De mi subconsciente / Con una admiración extraña y desbordada / Que tiene un dobladillo de ternura. / Tus problemas, tus cosas / Me intrigan, me interesan / Y te observo / Mientras discurres y discutes / Hablando del mundo / Y dándole una nueva geografía de palabras / Mi mente esta covada para recibirte, / Para pensar tus ideas / Y darte a pensar las mías; / Te siento, mi compañero, hermoso / Juntos somos completos / Y nos miramos con orgullo / Conociendo nuestras diferencias / Sabiéndonos mujer y hombre / Y apreciando la disimilitud / De nuestros cuerpos. 68 Uno no escoge el país donde nace; / pero ama el país donde ha nacido. / Uno no escoge el tiempo para venir al mundo; / pero debe dejar huella de su tiempo. / Nadie puede evadir su responsabilidad. / Nadie puede taparse los ojos, los oídos, / enmudecer y cortarse las manos. / Todos tenemos un deber de amor que cumplir, / una historia que nacer / una meta que alcanzar. / No escogimos el momento para venir al mundo: / Ahora podemos hacer el mundo / en que nacerá y crecerá / la semilla que trajimos con nosotros. 69 Seus primeiros poemas foram publicados no jornal literário La Prensa por Pablo Antônio Cuadra, famoso poeta nicaraguense e diretor do jornal, por sugestão do narrador e linguista Carlos Alemán Ocampo. O momento em que conhece Cuadra é também a primeira vez que vê Rosario Murillo, sua secretária até então. 59 mulher, da fertilidade70, do desejo físico da caricia, da intimidade e da paixão sexual, numa eterna busca pela felicidade e liberdade.

Ela reúne esses poemas e, com a ajuda de um de seus clientes publicitários, Jaime Morales Carazo (patrono das artes), publica Sobre a Grama71, com arte de capa de seu amigo Róger e prólogo de José Coronel Urtecho, que escreveu “La mujer que se revela, se rebela” – frase que a narradora afirma não poder ser melhor, ao considerar sua secreta rebeldia. O livro foi lançado na Galeria Tagua, dirigida por Mercedes Gordillo, uma senhora que lutava para inserir a Nicarágua no panorama da arte latino-americana, entre amigos pintores, escritores e público. Em seus poemas, ela volta a falar de si e se reafirma como influente e popular em seu meio. Ela compara seu livro de poemas com um filho, dizendo ter vontade de cheirá-lo e dormir abraçada a ele; palavras, aliás, muito semelhantes às ditas na oportunidade do nascimento de sua segunda filha, Melissa, com o primeiro marido.

Seis anos depois de seu primeiro lançamento e de ter sua escrita reconhecida por outros autores nicaraguenses conceituados, Belli foi laureada com o prêmio Casa de las Américas pelo livro de poemas de Línea de fuego (1978). Na ocasião, a crítica Nancy Morejón escreveu o ensaio “Gioconda Belli: alfarera de su tiempo", na Revista Casa de las Américas, comentando o livro de Belli. Publicado na edição de setembro a outubro de 1978, o texto de Morejón traz algumas considerações importantes sobre o fazer literário da autora de El país bajo mi piel (2001).

Embora se trate apenas sobre a poética em Línea de fuego, os apontamentos de Morejón podem se estender a toda a produção da poeta, sobretudo porque vê em sua expressão poética uma vitalidade marcada pelo sentido de liberdade individual, afirmação da identidade e combate coletivo. Assim sendo, o livro é carregado de elementos literários e extraliterários que explicitam o teor combativo contra a tirania dos Somoza e um chamado à ação revolucionária, a começar pela dedicatória explícita “A mis compañeros del Frente Sandinista de Liberación Nacional”. E vai

70 “Yo soy” é um exemplo do teor de mais um dos poemas publicados em seu primeiro libro: “Yo soy tu cama, / Tu suelo, / Soy tu guacal / En el que derramás sin perderte / Porque yo amo tu semilla / Y la guardo”. 71 Segundo a voz narrativa, o título Sobre la grama “era mi homenaje a Walt Whitman, el primero en celebrar la maravilla de su cuerpo, la geografía y las multitudes de su tierra” (p. 102). 60 mais além, ao tratar da construção discursiva dos poemas de Belli, Morejón afirma que há uma lição formal implícita em sua profunda sensibilidade:

Gioconda Belli ha podido, y sabido, tomar a la poesía por sus bridas, llevándolas hasta sus últimas consecuencias; poniéndolas también frente a la puerta de un tiempo que reclama el concurso decidido de todas las fuerzas, materiales e intelectuales, del ser humano: “Porque he comprendido mi misión de creador, / de alfarera de mi tiempo que es el tiempo nuestro” (MOREJÓN, 1978, p. 144).

Ao se autodeclarar como “alfarera de mi tiempo”, a voz poética em Línea de fuego parece coexistir na construção discursiva da identidade narrativa de El país bajo mi piel (2001), porque traria no ato da rememoração o ofício artesanal de um oleiro, que transforma e manuseia o barro de modo a moldá-lo72.

No entanto, parece curioso que, embora se autodenomine “oleira de seu tempo”, a espontaneidade seja um dos traços observados por Morejón, que metaforiza o estilo comparando-o com um potro em fuga:

La factura de su expresión poética brota como un caudal espontáneo, no exento de programa, sin embargo; de manera que el lector menos alerta podría pensar que se ha topado con un potro desbocado, en una noche de tormenta – porque así es el encanto de la poesía de Gioconda (MOREJÓN, 1978, 144).

O fato de não demonstrar pretensões de estabelecer um estilo ou uma consciência reflexiva em seu fazer poético, porque, segundo Morejón (1978, p. 145), “En Gioconda, la poesía vuelve sobre sí misma de modo instintivo y, con sus propios recursos”, coincide com a construção narrativa em El país bajo mi piel (2001), quando o sujeito enunciativo afirma que seu processo de produção poética perpassa pelo ímpeto da escrita improrrogável.

Os ecos dos primeiros escritos de Belli também ressoariam no trato sobre seu país natal. Constante em sua escrita como uma das temáticas centrais, a Nicarágua é enunciada como um conto heroico e lírico, o que se assemelha com o discurso d‟El país bajo mi piel (2001) “El amor por su país no enturbia el canto de Gioconda

72 A imagem do poeta associado ao ceramista, àquele capaz de moldar a terra, também foi artesanalmente trabalhada pela poetisa portuguesa Sophia de Mello Andreysen. Se por um lado caberia ao artesão dar forma àquilo que está sob seu olhar, ao poeta caberia o trato e o manuseio das palavras. Assim, essa minuciosa manipulação faz com que o fazer poético tenha estrita relação com a morte e com o desejo de “não deixar esquecer”; escrever traria à tona uma ambiguidade: ao mesmo tempo em que é meio para a morte, também o é para eternização. 61

Belli lastrándolo de chovinismo anacrónico o de pintoresquismo, por ejemplo; sino que le da más condición corpórea, más encanto literario” (MOREJÓN, 1978, p. 145). De certo modo, a abordagem feita por Belli fugiria à tradição nicaraguense ao explorar a condição geográfica do país para além de suas belezas naturais; a ideia de pátria não carregaria o tom contemplativo da exuberante paisagem tropical, como feito por muitos poetas anteriores73, mas encontraria na sua história e no seu povo outra potência inventiva. Assim sendo, na poética de Belli, a “Nicaragua no es aquí tan solo un río, una bandera o un himno, sino el fervor popular en franca actitud de lucha: „¿Qué sos / sino puño crispado y bala en boca?‟” (apud MOREJÓN, 1978, p. 145). Na contramão da tradição poética nicaraguense – baseada, sobretudo, no rebuscamento e no esteticismo parnasiano –, a poética de Belli levaria a simplicidade de vocabulário e de construção de sentencias sua maior e melhor aliada para expressar sua posição política e poética. Diante de um cenário conservador, patriarcal e elitista, a simplicidade poética desempenharia um papel extremamente subversivo.

Cada signo vive en su naturaleza original y hasta primaria. Su sencillez expresa un contenido rico en complejidades, e incluso, tal empleo de las sencillez es, en la mayoría de los casos, tronantemente subversivo (MOREJÓN, 1978, p. 145).

A palavra, depois de resgatar sua função primeira de comunicação, refletiria a realidade, a experiência vital do eu-lírico que se apega às coisas, à natureza e ao eros. Para Morejón (1978), essa permissividade de abordagens seria consequência do chamado exteriorismo, um conceito de José Coronel Urtecho e definido por Ernesto Cardenal:

El exteriorismo es la poesía creada con las imágenes del mundo exterior, el mundo que vemos y palpamos, y que es, por lo general, el mundo específico de la poesía. El exteriorismo es la poesía objetiva: narrativa y anecdótica hecha con los elementos de la vida real y con cosas concretas, con nombres propios y detalles precisos y datos y cifras y hechos y dichos. En fin, es la poesía impura” (CARDENAL, 197374 apud MOREJÓN, 1978, p. 146, grifo no original).

73 Morejón (1978, p. 145) é contundente ao considerar Belli uma autora que foge à regra da tradição poética da Nicarágua “la expresión poética que Gioconda registra en este, su segundo libro, quiere salirse – y lo logra con esmero –, de toda una vertiente de la poesía que viene escribiéndose en Nicaragua desde hace mucho más de tres o cuatro décadas”. 74 CARDENAL, Ernesto. “Prólogo” In: Poesía nicaragüense (antología). La Habana: Ed. Casa de las Américas, 1973. p. VIII. 62

Embora influenciada por essa corrente, a poética de Belli transcenderia o exteriorismo, de modo a torná-la mais direta e em consonância ao compromisso político da autora; por isso mesmo Morejón adverte que, mais do que exteriorista, a poesia em Línea de fuego assumiria uma expressão conversacional, que, de certo modo, retomaria a tradição oral e o relato em crônicas da literatura nicaraguense em seus primórdios. A fluência da conversação ditaria um ritmo de prosa aos poemas, o que lhes conferiria maior vivacidade como construção enunciativa.

Acrescenta-se ainda à poética de Belli um decisivo tom intimista, aos moldes do lirismo neorromântico, em que são recorrentes imagens e metáforas sensoriais. Esse traço, no entanto, passou a ser a principal característica dada aos escritos de Belli, embora não seja seu único atributo.

A figura do eros representa uma arma certa, eficaz, não só porque provoca a consciência do leitor – quase num efeito catártico – mas também é um meio libertador da condição feminina, sempre pautada por regras e subjugada e submetida a diversas imposições sociais, políticas e de gênero.

O poema “La madre”, em Línea de fuego, é um dos exemplos de sua escrita simples, mas intimista, potencializada pelo compromisso político:

La madre se ha cambiado de ropa. La falda se ha convertido en pantalón, los zapatos en botas, la cartera en mochila. No canta canciones de cuna, canta canciones de protesta. Va despeinada y llorando un amor que la envuelve y sobrecoge. No quiere ya sólo a sus hijos, ni se da sólo a sus hijos. Lleva prendidas en los pechos miles de bocas hambrientas. Es la madre de niños rotos de muchachitos que juegan trompo en aceras polvosas. Se ha parido ella misma sintiéndose – a ratos – incapaz de soportar tanto amor sobre los hombros, pensando en el fruto de su carne – lejano y solo – llamándola en la noche sin respuesta, 63 mientras ella responde a otros gritos, a muchos gritos, pero siempre pensando en el grito solo de su carne que es un grito más en ese griterío de pueblo que la llama y le arranca hasta sus propios hijos de los brazos.

Influenciada diretamente pelas pautas feministas discutidas nos EUA nas décadas de 1960 a 1980 e sua possível incorporação à pauta revolucionária na Nicarágua, Belli traz para seus textos a discussão sobre sexualidade e gênero que vinha efervescendo a maior parte dos grupos feministas do ocidente. Se por um lado a dita primeira onda feminista nasce da luta política das mulheres pelo acesso a direitos civis, educativos e políticos, sobretudo ao sufrágio, no fim do século XIX e início do XX; por outro, a segunda onda se deu aproximadamente nas décadas de 1960 e 1970 nos EUA e na França. De acordo com Narvaz e Koller (2006, p. 649):

As feministas americanas enfatizavam a denúncia da opressão masculina e a busca da igualdade, enquanto as francesas postulavam a necessidade de serem valorizadas as diferenças entre homens e mulheres, dando visibilidade, principalmente, à especificidade da experiência feminina, geralmente negligenciada. As propostas feministas que caracterizam determinadas posições, por enfatizarem a igualdade, são conhecidas como “o feminismo da igualdade”, enquanto as que destacam as diferenças e a alteridade são conhecidas como “o feminismo da diferença”.

É a partir de 1960 que a palavra gênero é incorporada às discussões – dando origem aos Estudos de Gênero – e novas pautas são abordadas como, por exemplo, sexualidade, família, mercado de trabalho, direitos reprodutivos desigualdades legais e cotidianas. Abria-se, a partir de 1960, possibilidades de questionamentos sobre as concepções tradicionais de sexo – biológico – e de gênero como uma construção social e cultural. Baseada nas ponderações de Simone de Beauvoir, com O segundo sexo (1949), a segunda onda feminista chegaria á América Latina através de discussões em meios intelectuais e políticos, como aconteceu na Nicarágua com a Revolução Sandinista. A produção literária de Gioconda Belli parece dialogar diretamente com as demandas da segunda onda feminista ao abordar temas como a maternidade, a sexualidade e o erotismo como formas enunciativas de subversão dos parâmetros patriarcais nos quais estava pautada a sociedade nicaraguense das décadas de 1970 e 1980. 64

CAPÍTULO 3

DE COMO A IDENTIDADE NARRATIVA CONSTRÓI A PRÓPRIA IMAGEM

Após a apresentação da trajetória da escrita em primeira pessoa e suas diversas concepções ao longo dos séculos, bem como a contextualização da obra de Gioconda Belli na literatura nicaraguense até os anos 2000, faz-se necessária uma análise de El país bajo mi piel (2001) para que se evidenciem não somente os aspectos anunciados nos capítulos anteriores, como também para que novas questões sejam trazidas e investigadas.

A narrativa de El país bajo mi piel: memorias de amor y guerra (2001) parece centrar-se muito mais no sujeito enunciador do que nos acontecimentos históricos que relata: as memórias de uma mulher nicaraguense de classe alta que decide sair da passividade de seu privilégio para participar da FSLN e lutar por mudanças muito significativas em seu país, além de seus exílios, o registro sobre o terremoto na Nicarágua em 1972, o nascimento e a relação com os filhos, as relações amorosas e como os amores determinaram seus rumos e sua perspectiva a partir de uma vida tranquila e longe da Nicarágua. Valendo-se de grande parte das memórias do processo revolucionário nicaraguense do qual participou, esse sujeito enunciativo em primeira pessoa se vai construindo discursivamente de modo a tornar-se uma espécie de ficcionalização de si, a partir do modo como são resgatadas determinadas memórias de sua vida. Neste Capítulo, interessa-nos analisar como e porque determinadas lembranças são narradas de modo a corroborar com a constituição desse eu, sobretudo porque as diferentes modulações e tensões discursivas com as quais reconstrói suas rememorações e fala de si nos leva a crer estarmos diante de uma obra autoficcional.

Mediada pela linguagem, a reminiscência encontra no imaginário – ou nas variações imaginativas, para retomar um conceito ricoeuriano75 – a forma de reger essas memórias e contar como se fossem parte da história do sandinismo e da

75 Para Ricoeur (1995), a narração de ficção implica marcas figurativas e imaginativas que passam por “apresentar de novo”, (re)apresentar, revisitar. A história, por sua vez, é uma representação de um discurso e por isso mesmo dialoga com a ficção. Por outro lado, a ficção pode concorrer para contar um acontecimento histórico, porque também implica marcas da representação. 65

Revolução Nicaraguense, mesmo que esse discurso histórico sirva de pano de fundo para a projeção de um eu consciente de sua condição76 e de seu papel na história de seu país.

Como vimos, Ricoeur chama de identidade narrativa o sujeito enunciador em primeira pessoa que trilha um caminho em que se constrói narrativamente à medida que escreve e conta. No campo da linguística, essa afirmação foi reiterada nos estudos de Benveniste (1988, p. 286, grifo nosso): “É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito do „ego‟”; portanto, a subjetividade do sujeito é trabalhada na e pela linguagem, justamente porque, segundo o linguista francês, há uma apropriação individual da língua. Admitindo-se as proposições de Ricoeur e Benveniste sobre o uso da linguagem, a discussão sobre as escritas de si parece mais ampla se não as consideramos apenas autobiografias, porque admitiria dar outros desdobramentos analíticos e abertura a diversas considerações sobre sua composição escritural. Por isso, a essa potência inventiva do eu posta em uso pela linguagem, prefere-se autoficção, como foi apontado no Capítulo 1.

O termo parece adequado porque não cerceia as diversas interpretações que podem suscitar as escritas de si, sobretudo num texto tão dual e movediço como El país bajo mi piel: memorias de amor y guerra (2001). A identidade narrativa, portanto, não parece estar apenas rememorando episódios de sua história como parte de uma sequência histórica, reproduzida em texto tal e qual ocorrera no passado. O que ocorre é um processo de recriação de memórias não cronológicas de modo a produzir uma narrativa em conformidade com a construção da autoimagem da narradora, ou seja, fragmentada, descontinuada, dúbia e complexa.

As constantes dualidades criadas discursivamente envolvendo a construção de si como mulher fragmentada, dividida em duas, por meio de suas relações afetivas e do próprio corpo parecem sugerir a edificação de uma identidade narrativa que, ainda que possua intenções que podem ser interpretadas simplesmente como

76 Por exemplo, na ocasião do lançamento de seu livro na Nicarágua, Belli concedeu uma entrevista à rádio Primerísima e disse que escreveu suas memórias para um potencial público leitor de sua personalidade pública (PALAZÓN SÁEZ, 2006, p. 44). 66 um desejo de registrar experiências e pontos de vista específicos, parecem valorizar a criação e propagação de uma imagem idealizada de si mesma.

Por isso, alguns questionamentos norteiam esta análise pensando em como se constrói discursivamente a identidade narrativa de El país bajo mi piel: quem é esse sujeito? O que o leva à narrativa, e como ela é conduzida? Quanto dessa narrativa se apresenta como mera rememoração de experiências vividas e quanto dela se configura como uma construção dedicada a evidenciar certos fatos específicos e a omitir outros, optando por silêncios? Essas escolhas seriam parte essencial quando se toma uma obra em primeira pessoa sob a perspectiva autoficcional.

De modo geral, as memórias de El país bajo mi piel são resgatadas – e atualizadas – pelo uso predominante do pretérito imperfecto de indicativo (correspondente ao pretérito imperfeito do português). O manual gramatical de língua espanhola da Real Academia Espanhola (RAE) esclarece que a noção dada por esse tempo verbal “constituye una manifestación del estrecho vínculo que existe entre las situaciones pretéritas y las irreales” e “supone un alejamiento o distanciamiento del plano actual [...] que el hablante puede evocar” (grifos nossos). As palavras “irreales” e “evocar” são particularmente interessantes no contexto das escritas de si, porque remontam à dimensão da temporalidade a que se refere Paul Ricoeur, ou seja, porque somos seres de linguagem, quando escrevemos, há uma coincidência, uma atualização, entre o ato da escrita e a temporalidade daquele que escreve. Assim, “evocar” implicaria justamente as duas temporalidades a que está sujeito o narrador: o passado e o presente. Aquele que “evoca” está num presente que o remete a uma representação do passado.

Portanto, não se pode analisar de modo crítico as dualidades presentes na construção do sujeito enunciativo de El país bajo mi piel ignorando as relações contraditórias igualmente presentes no espaço que envolve esse sujeito, um espaço que tem sido forjado por incompatibilidades, incongruências e polarizações. Assim, a análise desses elementos seguirá um percurso do macro ao micro, do espaço mais amplo ao mais estreito, do público ao privado, do “Outro” para o “Eu”. De modo a trilhar uma linha analítica, este capítulo se divide em subcapítulos intitulados à moda de El país bajo mi piel e Don Quijote. 67

3.1 De como a identidade narrativa constrói sua autoimagem pela dualidade público/privado

As primeiras imagens da identidade narrativa se estabelecem na introdução de El país bajo mi piel (2001). Nesse sentido, o contato inicial com o texto tem um papel importante de antever algumas questões centrais e dar o tom de leitura, criando com o leitor uma relação confidencial. Embora a primeira frase do livro seja “Dos cosas que yo no decidí decidieron mi vida: el país donde nací y el sexo con que vine al mundo” (BELLI, 2001, p. 11), a voz narrativa vai se construindo ao longo das memórias de modo a oscilar entre uma resignação e conformismo diante dos protocolos e expectativas sociais relativos ao papel da mulher na sociedade e a transgressão de valores morais e sociais para seu gênero e classe, num jogo de dualidades temáticas e discursivas que vão reconstruindo dialeticamente essas memórias.

He sido dos mujeres y he vivido dos vidas. Una de mis mujeres quería hacerlo todo según los anales clásicos de la feminidad: casarse, tener hijos, ser complaciente, dócil y nutricia. La otra quería los privilegios masculinos: independencia, valerse por sí misma, tener vida pública, movilidad, amantes […] Creo que al fin he logrado que ambas coexistan bajo la misma piel. (BELLI, 2001, p. 6).

A fragmentação de si, ou melhor, a dualidade do eu, é discursivamente afirmada quando a narradora se apresenta como uma mulher dividida em duas, mas cuja dificuldade teria sido balancear essas dimensões num único corpo: a mulher do espaço privado, da família, da maternidade, e a do espaço público, do trabalho, da clandestinidade e das relações extraconjugais.

Portanto, a identidade narrativa busca justificar essa dualidade como forma de legitimar a contradição existente entre essas duas mulheres e duas vidas completamente opostas. Essa dualidade é manifestada já em sua origem, ou seja, no relato de seu nascimento, que teria sido determinante para sua trajetória. As condições e as circunstâncias de seu nascimento corroboram para a construção de uma imagem de si mesma como alguém predestinada a certas atividades ligadas ao povo, às multidões, à luta armada contra as injustiças, às façanhas heroicas77.

77 Essa ideia é retomada em outros momentos da narrativa, sobretudo quando se autodenomina “una quijota”, como visto no Capítulo 1, narrando com um entusiasmo de aventura os episódios ligados ao universo público e o espaço externo ao “Eu”. 68

Quando diz que o país e o sexo lhe foram impostos há, por um lado, a simples constatação de uma eventualidade do “destino”, que igualmente evidencia o desejo de construir um pano de fundo que não só justifique, mas legitime a própria imagem de si fragmentada. Porém, sua trajetória inicialmente não parece fugir da de qualquer outra jovem de classe alta em qualquer outro país da América Latina, a própria voz afirma: “No fui rebelde desde niña” (BELLI, 2001, p. 6), até sua conscientização da realidade política e social de seu país, trazida pelo contato com intelectuais de esquerda, artistas, poetas, escritores e militantes do movimento sandinista.

A entrada da narradora para a FSLN representa uma ruptura com a ideologia conservadora histórica de seu núcleo familiar e o movimento de saída para o universo público. Seu desejo de transformar seu país, a redescoberta de si mesma como mulher independente e seu contato com a literatura revolucionária e feminista a impulsionam à produção literária. Assim, sua entrada no universo público é apresentada discursivamente de maneira idealizada, na medida em que os relatos ligados a esses temas corroboram para construir a imagem de uma mulher forte, inteligente, corajosa, não só por sua atuação como guerrilheira na Revolução Sandinista, mas no seu próprio entendimento como mulher e escritora.

Como dito, a construção de dualidades no texto está também no modo como a identidade narrativa trabalha discursivamente as relações paradoxais de suas memórias.

Essas memórias estão distribuídas de maneira fragmentária no que diz respeito à temporalidade. Com 58 capítulos divididos em quatro partes78, a narrativa estabelece uma relação pendular de flashbacks, ou seja, se alterna sucessivamente entre o tempo passado e o presente da escrita, exigindo uma participação ativa do leitor no sentido de compreender e reestabelecer mentalmente a ordem temporal dos fragmentos mnemônicos. O movimento pendular da narrativa, que ora retoma um evento passado, ora descreve o presente da escrita, para além constitui como um recurso literário que cria expectativas e obriga uma participação ativa do leitor no

78 Na edição consultada aqui (BELLI, 2001): primeira parte: “Habitante de un pequeño país” (capítulo 1 ao 23), segunda parte: “En el exilio” (capítulo 24 ao 44), terceira parte: “El regreso a Nicaragua” (capítulo 45 ao 56) e quarta parte: “Otra vida” (capítulo 57 ao 58). 69 processo de compreensão, porque remete à montagem de um grande quebra- cabeça temporal.

Ao romper a lógica cronológica e intercalar narrativas que revisitam seu passado na Nicarágua ou no exílio, o passado recente e o “presente” em terras estadunidenses, propõe-se uma leitura fragmentária que remete à divisão do sujeito narrativo e de sua trajetória, que, por sua vez, se anuncia na primeira página: “He sido dos mujeres y he vivido dos vidas” (BELLI, 2001, p. 6). Essa fragmentação, que aponta para a divisão do sujeito narrativo, se apresenta estruturalmente na criação e no desenvolvimento do discurso narrativo. Como consequência, esse movimento de intercalar memórias acaba por produzir, em diversos momentos, uma expectativa que é quebrada justamente pela falta de linearidade. Algo é narrado num capítulo até determinado ponto e só será retomado muito depois na composição da narrativa, um recurso comum na criação ficcional.

Nas memórias de amor y guerra, a identidade narrativa é construída a partir do presente da escrita, ou seja, ano de 1999, vinte anos após a queda da ditadura somozista e cinco anos após romper com o partido sandinista em 1994. A ordem das lembranças e as omissões, num discurso mais subjetivo e literário das experiências pessoais, íntimas e privadas, sugerem uma escolha pelo que se decidiu ou não evidenciar, a importância de um episódio ou de um indivíduo.

A voz narrativa parece estabelecer uma dualidade discursiva, porque alterna entre o discurso mais preocupado em relatar fatos de maneira detalhada e objetiva, e, por outro lado, um discurso mais subjetivo, metafórico e repleto referências literárias. O discurso mais jornalístico caracteriza-se por ser mais descritivo, objetivo e direto, sem grandes abstrações. Parece haver uma preocupação com o registro de episódios de grande relevância histórica ocorridos na Nicarágua durante a Revolução Sandinista, assim como uma necessidade da voz narrativa de reafirmar o próprio papel e experiência nesse contexto e nesse processo.

En Nicaragua la situación se tornaba cada día más explosiva. El 22 de agosto, un comando sandinista – Tercerista – entró al Palacio Nacional mientras sesionaba el Congreso de la República, y mantuvo de rehenes a todos los diputados hasta que el somocismo accedió a liberar a los cientos de presos políticos encarcelados desde diciembre de 1974. Así obtuvieron su libertad Jacobo y Martín. Los miembros del comando eran muy jóvenes. La número dos, encargada de la negociación con Somoza, tenía veintidós años. Era 70

una muchacha delicada y pequeña que, más tarde, durante la ofensiva final fue una de las combatientes más aguerridas. Dora María Tellez, estudiante de medicina, dirigió las tropas que dominaron la primera ciudad que se liberó en Nicaragua en 1979. Su estado mayor militar estaba integrado casi totalmente por mujeres (BELLI, 2001, p. 132).

Portanto, trata-se de um discurso que, em eventos históricos como o do excerto, sugere uma preocupação e uma intenção de relatar episódios importantes de modo informativo e carregados de uma linguagem isenta, formal e impessoal. Há nessas descrições uma sequência narrativa composta de datas e descrições precisas, que poderiam ser lidas num artigo de jornal ou revista, como se a autora assumisse, nesses momentos, o seu papel de jornalista correspondente de guerra comprometida com a informação, para dar realismo aos fatos narrados.

Em El país bajo mi piel os temas do universo privado parecem ter um peso significativo, posto que são ligados ao universo no qual a narradora havia sido criada e estava socialmente inserida: a família, os amigos, os eventos da elite nicaraguense, a preocupação com o casamento, a maternidade etc.

Ao rememorar, a identidade narrativa cria um modo de reviver suas experiências de uma forma a reavaliá-las, reinterpretá-las e recriá-las literariamente pela linguagem. A narradora rompe com a ideologia política familiar, se rebela contra as instituições do casamento, priorizando interesses pessoais e o bem coletivo, colocando-os acima, até mesmo, da maternidade.

O relato quase jornalístico conduz o leitor para a realidade dos fatos históricos, dando legitimidade e ajudando a construir, associado aos relatos de linguagem mais literária, a imagem e memórias da narradora.

O discurso mais direto e jornalístico sugere uma seletividade sobre quem e o que é narrado quando remete ao tempo em que essa narradora fazia parte da FSLN. O modo impessoal parece também um recurso para evitar comprometer-se com o próprio passado, uma vez que, no momento da escrita, a narradora admite ter divergências com o movimento sandinista. A narradora, portanto, parece fazer escolhas discursivas - ou omissões - para não desvalidar sua trajetória. Afinal, ela reconhece discursivamente, no decorrer da narrativa, que sua participação no sandinismo representa sua projeção como pessoa pública, política e literária. Para 71 tanto, o último capítulo – datado de 1997 a 2000 e escrito no trânsito constante entre as cidades de Manágua, capital da Nicarágua, e Santa Mônica, na Califórnia – se encerra com as seguintes palavras:

Mis muertos, mis muertes, no fueron en vano. Ésta es una carrera de relevos en un camino abierto. En Estados Unidos, como en Nicaragua, soy la misma quijota que aprendió, en las batallas de la vida, que si las victorias pueden ser un espejismo, también pueden serlo las derrotas (BELLI, 2001, p. 211).

Importante notar que a escolha das epígrafes que introduzem cada uma das quatro partes de El país bajo mi piel sugerem também justificar a escrita das memórias de amor e guerra. As três primeiras epígrafes são atribuídas a Miguel Hernández (1910-1942), poeta espanhol ligado à causa republicana durante a Guerra Civil Espanhola e que teve reconhecimento na crítica literária apenas com o fim do franquismo. Seus poemas combativos e antifascistas foram conhecidos como “poesía de guerra” (CERVANTES, [s/d]). Ao referenciá-lo como parte paratextual de El país bajo mi piel, percebe-se uma urgência em resgatar sua importância como um poeta que morreu defendendo seus ideais79, o que se assemelha com a justificativa dada pela voz narrativa em: “Mis muertos, mis muertes, no fueron en vano” (BELLI, 2001, p. 211).

A exceção está apenas na quarta e última parte, em que há uma epígrafe de Virginia Woolf, com um trecho de Las olas (1931), e especialmente importante para pensar o desfecho do livro de Gioconda Belli. No texto de Woolf, a voz narrativa, que no começo parece resignada, “y después del incendio, quedamos reducidos a cenizas”, no exercício de autoanálise, nos efeitos da experiência e do envelhecimento, é onde encontra coragem para olhar o passado e dar continuidade à trajetória, afirmando sua vontade numa pungente sentença no tempo presente “Y no tengo miedo”.

Outras marcas linguísticas colaboram e exemplificam como a identidade narrativa se constrói através de um discurso impessoal quando trata dos assuntos relacionados às memorias de guerra ao longo da obra. O nome da personagem coincide com o da autora e aparece apenas cinco vezes no romance, das quais

79 Em 1939, foi preso na fronteira com Portugal e condenado a 30 anos de reclusão, mas não completou a pena porque morreu de tuberculose em 28 de março de 1942, na prisão de Alicante. 72 quatro são reproduções de diálogos, ou seja, é vocativo. A única exceção é a primeira vez em que o nome aparece, quando já se está encaminhando para o fim da primeira parte, no capítulo 16: “Tuve una experiencia de desdoblamiento. Una Gioconda fría, racional, tomó el control mientras la otra, acurrucada dentro de mi, temblaba en un rincón” (BELLI, 2001, p. 52). Nesse ponto, a voz narrativa toma distância e anuncia o nome usando a terceira pessoa, como se se referisse a um “ela”, e não ao “Eu”. Há aí um dado importante para a análise da escrita de si: em nenhum momento é a voz em primeira pessoa que se autodenomina Gioconda – é sempre a voz do outro que o faz. Essa afirmação permite dizer que o movimento da linguagem sempre inflete na existência de um Outro, ou seja, daquele ou daquilo que não está sob tutela do eu.

Também se constata que em nenhum momento o sobrenome Belli aparece junto ao prenome da autora; é mencionado pela primeira vez ao narrar-se a chegada de familiares Belli à América e depois num diálogo em que fala do bebê supostamente morto, “De Castro-Belli”. A única das cinco vezes em que o sobrenome Belli aparece e se refere diretamente à narradora é no início da terceira parte, embora não ao lado de seu prenome, mas vinculado a seu cargo de guerra, com o qual se firma discursivamente uma caracterização dessa identidade narrativa como uma figura pública:

Si uno tenía cualquier nivel de autoridad o reconocimiento, la gente o los compañeros le concedían el nombramiento. En esos días por donde quiera que iba me llamaban “Comandante Bell”, lo cual me parecía muy divertido (BELLI, 2001, p. 168).

Ainda que os relatos históricos que tratam da guerrilha e da luta por um ideal durante a revolução sandinista tenham o peso de conferir realidade e importância à narrativa como um todo, parece predominar na obra um discurso mais subjetivo, indireto e fortemente ligado à literariedade quando fala de temas pessoais, particulares, do universo do “Eu”, da família, das relações e das próprias experiências.

Assim, parece haver uma preocupação na elaboração da própria imagem e de sua trajetória e da imagem da família, sempre ligada aos temas do universo privado. A própria família e sua tradição, educação e história recebem uma atenção especial na narrativa. Por exemplo, uma conversa com sua mãe sobre as 73 transformações no corpo feminino durante a puberdade revela um discurso mais intimista e pessoal, com uma linguagem metafórica e ilustrativa marcada por elementos da natureza como “la luna, las mareas”, “secretos que la Naturaleza” e “crisálida” combinados com a ideia do corpo feminino como uma máquina de fiar “mi vientre tejería”:

En la adolescencia, cuando se dio cuenta de que la luna, las mareas y las hormonas estaban a punto de revelarme los secretos que la Naturaleza reserva a las mujeres, me llamó a su cuarto una tarde a mi regreso del colegio. [...] La crisálida que mi vientre tejería cada mes para recibir la vida se descartaría en forma de sangre menstrual (BELLI, 2001, p. 22).

Mais adiante, os ensinamentos da mãe sobre a relação sexual entre um homem e uma mulher também são apresentados com riqueza de metáforas sinestésicas em “cópula con colores de mito y en términos poéticos” e míticas “unión de titanes”:

Me presentó la cópula con colores de mito y en términos poéticos. Por ella deduje que era un acto grandioso, una especie de unión de titanes forjando con sus cuerpos entrelazados y desnudos no sólo nueva vida, sino lazos indisolubles de amor e intimidad. «Es el acto de unión y comunicación más profundo que puede haber entre dos seres humanos», me dijo gesticulando enfática con sus dedos largos donde brillaba el solitario que mi padre le regaló (BELLI, 2001, p. 23).

Noutro episódio, no capítulo 4, quando narra a própria experiência com o terremoto de Manágua em 1972, a literariedade vem à tona com o uso de analogias e comparações.

Serían tres minutos en total, quizá menos, lo que tomó al terremoto desbaratarlo todo; caminar sobre la ciudad como una bestia machacando edificios, postes de alumbrado, casas, las esquinas, las calles de mis recuerdos. La tierra traicionera se sacudió todas las fallas como cabellera de Medusa, y edades geológicas se vinieron al suelo en un derrumbe subterráneo que sepultó en su seno veinte mil vidas (BELLI, 2001, p. 16).

O fragmento acima não aborda o acontecido com a objetividade de discurso jornalístico, por exemplo. O terremoto, como experiência particular, é transformado numa besta que caminha sobre a cidade destruindo-a com a força de um titã. O planeta Terra é metaforizado na imagem de Medusa, que sacode seus cabelos de cobras e agitam as falhas tectônicas, causando a destruição em massa, a imagem 74 de “machacar esquinas” e a enumeração de substantivos como “edifícios”, “postes” “casas” e “calles” lhe dão tom e ritmo poético.

3.2 De como estabelece relações com o próprio corpo

Como visto, as memórias do universo privado de El país bajo mi piel prevalecem sobre as memorias de guerra, do universo público, sobretudo porque a narrativa metafórica e quase poética fica reservada aos relatos do eu narrativo. Segundo Lúcia Castello Branco, no livro O que é escrita feminina (1991, p. 14), a dita escrita feminina foi historicamente associada a temas e questões que relacionavam a mulher ao confinamento do lar:

[...] essas preferências são facilmente explicáveis por uma leitura de cunho sociológico: com um olhar histórico, não é difícil afirmar que as mulheres não escreviam textos épicos porque não iam às guerras, que sua preferência pelo gênero memorialístico ou autobiográfico se deve a seu profundo conhecimento dos universos do lar e do eu, próprios à criação de uma escrita intimista etc.

Até a emancipação feminina impulsionada pelo pensamento feminista, fundamentalmente a partir da década de 1960, quase não se falava na escrita feminina sobre temas como negócios, vida urbana, guerra, e de qualquer coisa que pertencesse ao universo exterior ao “Eu” (BRANCO, 1991, p. 14). Embora a identidade narrativa de El país bajo mi piel tenha inicialmente se adequado às exigências de sua família e classe social ao casar-se virgem aos 17 anos com um rapaz culto de seu mesmo círculo social, o contato com ideias feministas libertadoras, juntamente com a consciência sócio-política, têm papel decisivo na construção da identidade narrativa. Com o questionamento e a conscientização de si há o movimento de saída para o universo público, da guerra, do trabalho, da independência e até mesmo dos amantes.

Lugar de profunda erupção do íntimo, o corpo ganha especial protagonismo na narrativa aqui analisada.

Segundo Branco (1991, p. 15), o corpo feminino seria o meio pelo qual a voz narrativa tem contato e se relaciona com o mundo: “essa trajetória […] é certamente atravessada pelo corpo, já que o corpo está sempre aí, „esbarrando‟ no real e 75 apontando caminhos e descaminhos”. Nesse sentido, o espaço privado faz da concretude do corpo o lócus principal onde são explorados sentimentos como angústia, confinamento, prisão, solidão, conformação, entre outros. Em El país bajo mi piel, o corpo configura-se como meio intermediador das relações do “Eu” com as experiências vividas e rememoradas. O corpo é o meio pelo qual se dá a relação com o outro e com o espaço que o cerca, é o lugar onde as experiências – resultados dessas relações – são registradas, codificadas, elaboradas, questionadas e compreendidas.

La domesticidad me ahogaba. Empecé a tener pesadillas. La mitad del cuerpo se me convertía en electrodoméstico, y me agitaba como lavadora de ropa. Por esa época leí libros feministas. Germaine Greer, Betty Friedan, Simone de Beauvoir. Mientras más leía menos podía tolerar la perspectiva de años y años conversando sobre recetas de cocina, muebles, decoración interior. Me aburrían los sábados en el Country Club repitiendo la vida de nuestros padres: los maridos jugando al golf, los niños en la piscina, mientras nosotras dale otra vez con las niñeras, la píldora, el dispositivo intrauterino de cobre o los ginecólogos de moda (BELLI, 2001, p. 25-26).

Ao longo das memórias, é possível encontrar trechos em que a voz narrativa demostra insatisfação com sua vida pautada pelas convenções sociais. Nesses casos, como no fragmento acima, ela desumaniza a si mesma e compara seu corpo ao maquinário doméstico, no entanto essa relação mecânica é transgredida quando vincula o íntimo do próprio corpo80 às mudanças, à revolução, o que aponta mais uma dualidade discursiva em El país bajo mi piel, como veremos mais adiante.

Branco (1991, p. 21-22) ainda afirma que uma das características da escrita feminina é um percurso pela materialidade da palavra, que procura fazer do signo a própria coisa: “Ao procurar trazer a coisa representada para a cena textual, ao procurar fazer sua apresentação em lugar de sua representação, o que a escrita feminina busca é, em última instância, a inserção do corpo no discurso”. No fragmento abaixo, vemos como a insistência de sensações e a repetição da tomada

80 A autora de El país bajo mi piel já havia tratado desses temas do universo privado em sua primeira obra de poesias Sobre la Grama, porém de uma forma desafiadora, falando de intimidades do universo feminino que eram consideradas tabu, como o tema da menstruação e da relação dessa intimidade com o próprio corpo, a celebração dos plenos poderes de mulher, nomeando a sexualidade e o exercício do gozo, mas tratando esses temas de maneira natural, aberta e sem pudores. Como já vimos, essa quebra de expectativa e desafio da hipocrisia social chocaram a sociedade local e, ao mesmo tempo, a colocaram em destaque no cenário literário do país. 76 de consciência do próprio corpo causa a tomada de consciência de si como sujeito único; aqui, o corpo passa a ganhar protagonismo na vida da voz narrativa.

Relaciono el fin de mi infancia con el recuerdo de viajar en el asiento trasero del auto de mi papá un día cualquiera, después del colegio, y darme cuenta como si me hubiera partido un rayo, de que estaba y estaría para siempre sola en mi propio cuerpo. Todavía me parece sentir el golpe de la adrenalina, el súbito sobresalto con que tuve esta certidumbre. En un instante comprendí aterrada que nunca nadie estaría dentro de mí, sentiría lo que yo sentía, escucharía mis pensamientos más recónditos. No me podía cambiar por otra persona ni ser otra cosa que esa niña de falda escocesa y blusa blanca de uniforme. Jamás podría ver de frente mi propia cara, sino a través de los espejos (BELLI, 2001, p. 15).

Cabe notar, porém, que esse processo de conscientização do “Eu” individual e único só se dá porque esse sujeito reconhece sua fragmentação existencial “como si me hubiera partido um rayo”, fragmentação essa já anunciada anteriormente. A descoberta da individualidade aparece acompanhada de uma consciência da solidão como ser humano. A ideia de solidão vem de encontro com a sensação de medo, que já havia sido referenciada na introdução da narrativa, quando pondera que o temor à solidão estaria ligado a seu gosto pelas multidões, aos homens e ao desejo de quebrar paradigmas e transcender os limites estabelecidos socialmente para o gênero feminino, justamente pelo fato de sua mãe ter sentido as contrações no Estadio Somoza durante um jogo de beisebol, como narra na seguinte passagem:

Quizás porque mi madre sintió mi urgencia de nacer cuando estaba en el Estadio Somoza en Managua viendo un juego de béisbol, el calor de las multitudes fue mi destino. Quizás a eso se debió mi temor a la soledad, mi amor por los hombres, mi deseo de trascender limitaciones biológicas o domésticas y ocupar tanto espacio como ellos en el mundo (2001, p. 6, grifos nossos).

Outro momento em que o corpo ganha especial protagonismo é quando narra uma conversa com sua mãe sobre sexo e maternidade. A narradora revela entender as mudanças e as surpresas da puberdade a partir da compreensão do próprio corpo e, como consequência, seu reconhecimento como mulher:

No recuerdo sus palabras exactas, pero sí la sensación de maravilla y poder que me invadió. Aunque su intención era seguramente inculcarme las responsabilidades de la maternidad, sus palabras acerca del poder de la feminidad en una mente joven y sin prejuicios como la mía, despertaron ecos que trascendían la mera función biológica. Yo era mujer. En el género humano la única que podía dar vida, la designada para continuar la especie [...] Por ser esa criatura 77

espléndida todos los meses, ya pronto, mi cuerpo se prepararía para recibir la semilla germinada, acunarla y hacerla crecer en la oscuridad del vientre (BELLI, 2001, p. 22).

No pensamento acima, percebe-se uma forte relação da narradora com a concepção conservadora do que é ser mulher, porque, ao afirmar “no recuerdo sus palavras exactas”, vemos que essa visão permanece ainda no presente da escrita, uma vez que não as questiona, apesar de todas as questões feministas a que foi exposta e que diz ter sido de grande influência em sua vida. Não se pode negar que há, em seu discurso, uma forte propensão aos valores patriarcais em que ela havia nascido e se educado, e à visão que ela mesma comenta como “anales clásicos de la feminidad” (BELLI, 2001, p. 6). Esse trecho ainda antecipa outra dualidade: o mesmo corpo feminino, construído discursivamente, a serviço dos estigmas do gênero é também um potente elemento de transgressão dos valores patriarcais.

A ideia do corpo como potência também se estende ao parto, que se configura como outro evento de compreensão do “Eu”, porque o corpo atua como um elo recebendo os estímulos e as percepções externas, codificando-os de modo a permitir sentidos que ultrapassam a própria experiência, além de refletir uma anterioridade de sua existência. Por exemplo, ao relatar o nascimento de sua primeira filha, Maryam, a narradora diz que os médicos e enfermeiras comentavam o quanto ela era uma mãe jovem com 18 anos, ela, no entanto, se opõe reiterando a ancestralidade do corpo feminino: “Yo, en cambio, me sentía antigua, parte del múltiple cuerpo femenino que compartía en este rito de pasaje el poder de las convulsiones violentas de las que emergieron el mar, los continentes, la Vida” (2001, p. 24).

No decorrer da narrativa, o corpo também é o lugar da resistência e do sacrifício na luta pelas mudanças político-sociais em seu país, lugar de transformações, metamorfoses e revolução. O fato de a narradora pertencer a uma família tradicional e conhecida na Nicarágua tornava-a um alvo mais difícil e delicado de administrar para ações terroristas da ditadura de Somoza, uma vez que qualquer ataque de resultados mais sérios poderia ganhar proporções ainda maiores dentro e fora da Nicarágua, chamando a atenção da mídia internacional. Ao narrar um episódio em 1974, em que a polícia secreta da ditadura começa a persegui-la e vigiá-la constantemente de modo a ameaçá-la e dissuadi-la de se posicionar contra 78 a ditadura, o corpo feminino ganha novos significados na construção narrativa do texto.

Se por um lado a experiência de ser perseguida por estranhos lhe causava temor pelo desamparo das filhas, Maryam e Melissa, caso algo sério acontecesse, por outro sentia raiva crescente pela ditadura e um ímpeto por não retroceder e continuar lutando.

Me juré que por miedo no volvería a ser una pasiva observadora de cuanto era fallado y miserable a mi alrededor. Me haría bien, pensé, sentir en carne propia lo que significaba la vulnerabilidad de la mayoría de mis conciudadanos. La esencia de toda lucha era soportar los obstáculos, continuar. De otra manera nunca sería posible alcanzar los sueños. Si me entregaba al miedo, terminaría matando mi alma por salvar el cuerpo (BELLI, 2001, p. 55).

O corpo também é o ponto de tensão e contato direto com a ameaça e a violência do Estado autoritário “sentir en carne propia” e, ao mesmo tempo, serve de arma de luta e resistência tanto à ditadura quanto aos próprios medos e incertezas em sua participação no sandinismo.

Há ainda na obra uma constante referência ao ventre como local de refúgio, proteção e segurança em momentos difíceis de medo, solidão, ameaça e insegurança. No episódio referenciado acima, em que é perseguida até sua casa em Manágua, a narradora, tomada pelo medo, menciona o desejo de se refugiar com as duas filhas num ventre. “¡Si hubiera podido guardarlas de nuevo en mi vientre! Quería un vientre donde esconderme con ellas. La tíbia seguridade del líquido amniótico” (BELLI, 2001, p. 55). Em outro momento, falando da relação muitas vezes complicada com sua mãe, a narradora deseja as águas do ventre materno em busca de conforto e garantia de um rumo mais seguro para sua vida, uma vez que considera o útero espaço seguro e livre das ameaças e dificuldades enfrentadas no período de clandestinidade e guerrilha.

Esse corpo feminino da narradora, que ora avança, ataca, quebra paradigmas, reivindica e conquista novos espaços e ora recua e se submete aos valores mais conservadores e predeterminados dentro da sociedade patriarcal, revela justamente na contradição e na dualidade a sua humanidade. 79

Contudo, é interessante notar que um tema como a maternidade – tão representativo e simbólico do universo privado da escrita feminina – tenha se manifestado em sintonia com o tema da Revolução, de modo geral durante a Revolução Sandinista, e especificamente na narrativa de El país bajo mi piel. Discutiremos isso na continuação.

3.3 De como seu corpo comporta a revolução

Os diversos “nasceres”, físicos e simbólicos, são frequentemente materializados pelo corpo feminino ou têm relação com outra figura feminina carregada de misticismo, a mãe natureza. O discurso da maternidade também é recorrente na narrativa de El país bajo mim piel e ganha novos significados porque é estendido para além das fronteiras do lar, da família, e por isso mesmo tem seu poder numa ressignificação política.

A revolução é um tema ligado ao universo público, ao espaço externo, muito associado à figura masculina, mas que na história sócio-política da Nicarágua, quando associada à maternidade, ganha um novo significado. Sobre essa questão – a recorrente representação da maternidade vinculada à Revolução –, Palazón Sáez (2006, p. 48) afirma que tal discurso era assumido por um importante braço político da FSLN nos anos 1980, a chamada AMPRONAC (Asociación de Mujeres ante la Problemática Nacional). A figura da mãe foi ainda associada à construção da imagem da nueva mujer nicaraguense, num movimento de inovação cultural sandinista depois de 43 anos de ditadura somozista; o tema da luta, característica do universo público, é levado para o universo privado do espaço interno feminino como estratégia política de atrair maior participação feminina na luta armada. Tendo analisado fotografias que mostravam a Nueva Nicaragua, diz Kampwirth (2004, p. 1981 apud PALAZÓN SÁEZ, 2006, p. 49, tradução de Palazón Sáez):

La mujer ideal sandinista era una madre. Una mujer joven que sonreía mientras sostenía un bebé; sobre su hombro portaba un rifle […] la imagen] capturaba los límites y alcances del feminismo

81 KAMPWIRTH, Karen. Feminism and the Legacy of Revolution: Nicaragua, El Salvador, Chiapas. Athens: Ohio University Press, 2004. 80

sandinista [...] en esta imagen revolucionaria, la madre nutricia estaba armada y tenía poder. Pero era también, aparentemente, una madre soltera.

Este trecho sugere que a Revolução Nicaraguense teria legitimado o valor burguês da maternidade na medida em ele se faz útil para o próprio movimento revolucionário, como estratégia política de mobilização dos corpos femininos para a gestão de mudanças. A partir daí, o próprio discurso da identidade narrativa em El país bajo mi piel se constrói como produto desse valor revolucionário. A narradora associa a própria imagem e o próprio corpo de mulher grávida a essa gestão ou gestação de mudanças político-sociais em seu discurso. E essa associação traz como resultado o fortalecimento da figura feminina. Assim, o constante movimento entre o privado e o público encontra na maternidade e na revolução temas que unem esses dois universos.

Logo na introdução, a narradora comenta que “Los sueños revolucionários encontraron em mí tierra fértil”, numa referência direta à sua atuação como guerrilheira durante a revolução sandinista, mas também uma alusão à fertilidade feminina. Ainda comenta expressando uma clara dualidade e contraste de ideias: “Lo mismo sucedió con otros sueños propios de mi género. Sólo que mis príncipes azules fueron guerrilleros y que mis hazañas heroicas las hice al mismo tiempo que cambiaba pañales y hervía mamaderas” (2001, p. 6), em que associa os sonhos do gênero feminino a príncipes de contos de fadas.

Nesse discurso, os guerrilheiros figuram como versões alternativas dos príncipes azuis dos contos de fada que parecem existir ainda no imaginário da narradora no momento da escrita. Da mesma forma dual e contrastante, as façanhas heroicas, como referência à luta armada e clandestina, coexistem com as ações maternais de trocar fraldas e dar mamadeiras. É um discurso que não só reafirma a dualidade e a divisão do indivíduo narrador, mas que também colabora para a criação de uma imagem de mulher forte e admirável por ter a habilidade de conciliar dois universos distintos e quase inconciliáveis de ação de guerra e maternidade.

Numa outra passagem, o juramento sandinista é selado entre duas mulheres grávidas: 81

Fue Leana quien me tomó el juramento sandinista. […] Dije las palabras solemnes deprisa sin mucha ceremonia, intentando suavizar el tono rimbombante pero cuando Leana y yo nos abrazamos para sellar el pacto, me emocioné al sentir su enorme vientre rozarse con el mío; mis testigos habían sido dos niños todavía por nacer (BELLI, 2001, p. 38).

A luta, ação guerrilheira e clandestina, temas tradicionalmente ligados ao espaço externo, são levados para o espaço interno feminino, o universo privado, onde a gestação de vidas pode ser observada de maneira análoga à gestação de esperanças, transformações e lutas e, num último nível, à gestação de um novo país. A gestação de um filho, naquele contexto histórico nicaraguense, seria como a gestação do próprio processo revolucionário sandinista.

No decorrer da escrita, são diversas as passagens em que se vinculam a gestação de uma criança e a “gestação” da revolução, ambas desejadas por essa mulher capaz de ser “taller de seres humanos”, num movimento em que se pode retomar o poema “Y Dios me hizo mujer”, já comentado no Capítulo 2. A maternidade associada à luta armada e à gestação da revolução conferem força e importância à figura da mulher que, deixando de ser observadora e reclusa no espaço interno do lar, sai para a luta armada e assume o protagonismo de transformações históricas.

3.4 De como a voz narrativa constrói a si mesma através dos Outros

Mesmo numa narrativa de si, o discurso não é autocentrado, porque “O Outro precede o Eu” (NASCIMENTO, 2010, p. 192). É justamente pelo exercício e pela tensão da alteridade que se constrói o eu. Para Ricoeur (1990), a construção do outro está latente, porque está à espera que o torne história graças à linguagem. Assim, além da enunciação de si, há também o contar o Outro (que também retorna ao si).

Ilustrando o modo como se estabelece a projeção de um eu a partir da sua relação com o Outro, El país bajo mi piel é dedicado a onze mulheres, sobre as quais o sujeito que escreve declara que colaboraram com tarefas domésticas e que, sem elas, seria impossível fazer “o presente livro” e “as andanças da vida”. Também na dedicatória, menciona os quatro filhos e o atual companheiro. Já no decorrer das 82 páginas, evocam-se diversos Outros: a mãe, os maridos e amantes, os filhos, companheiros de guerrilha, colegas de trabalho etc. O Outro precede o Eu (NASCIMENTO, 2010, p. 192), porque a alteridade é o que dá existência ao enunciador. “Quando fala dos outros [o eu] fala também (e principalmente) de si mesmo” (MOLLOY, 2003, p. 244). No caso de El país bajo mi piel, a mãe e as personagens masculinas chamam a atenção, sobretudo, pela criação de contrastes e dualidades discursivas, como se verá a seguir.

3.4.1 De como constrói a mãe

Além de ter um papel importante em diversos episódios da adolescência e da idade adulta da narradora, a mãe, cuja identidade parece ser preservada, já que não é nomeada, é caracterizada como uma mulher com costumes elegantes e hábitos refinados. Seu comportamento de dama da sociedade, sua trajetória de estudos nos EUA, na escola de freiras em Riverdalle, e sua amizade com a atriz Grace Kelly parecem ser narrados com orgulho e supervalorização do status da própria família na sociedade nicaraguense.

O mesmo acontece no modo como a narradora fala de si e expõe certa preocupação com sua imagem, reafirmando ser uma pessoa influente e socialmente bem-sucedida. Essa construção discursiva de si é exemplificada quando, pouco depois de começar a namorar seu primeiro marido, eles participam de um baile em que ela é a principal atração: “El baile se ofreció en mi honor, porque ese año fui designada novia del Nejapa Country Club, especie de homecoming queen, y me tocaba a mí inaugurarlo bailando un vals con el presidente del club” (BELLI, 2001, p. 21). A narradora, frequentemente, faz referência a eventos e locais frequentados pela elite nicaraguense e, por conseguinte, ao status e à importância e privilégio a eles associados. Ao narrar que foi escolhida como a “novia del Nejapa Country Club”, a narradora parece desejar que a construção da própria imagem esteja atrelada a signos da beleza feminina e a símbolos de importância social, como um baile de debutantes no mais prestigiado clube da capital. Semelhante movimento de autoafirmação acontece também quando relata o terremoto nos EUA em 1994 e não se priva de citar o nome de uma celebridade, o ator Jeff Bridges, o qual estava abrigado junto a ela e seus familiares na casa de um amigo em comum. Ou ainda 83 quando fala do tio avô Emiliano Chamorro82, que foi duas vezes presidente da Nicarágua. Não parece ser aleatório que a narradora faça questão de associar, por aproximação, a própria imagem com a imagem de pessoas famosas, conhecidas e de importância histórica. No caso de seu encontro e das conversas com Fidel Castro, o relato não se configura como um mero relato despretensioso, na medida em que traz a importância histórica do líder cubano e a associa à própria imagem construída nesse discurso. Embora esse perfil ambicioso aparentemente contraste com o da mulher que ousou romper com os padrões e regras sociais para se juntar aos guerrilheiros clandestinos sandinistas e lutar contra Somoza, ele coincide com a vaidade que ela demonstra no próprio meio sandinista ao buscar o reconhecimento e a confiança de membros do alto escalão do movimento.

3.4.2 De como constrói a imagem do primeiro marido

Embora não relate situações extremas de insatisfação em sua vida de solteira, a narradora diz que o casamento foi o meio que encontrou para viver com plena independência. Importante notar que, mesmo a certa distância temporal sobre o episódio relembrado, a voz narrativa parece acreditar que o casamento continua sendo uma forma de viver plenamente uma independência como indivíduo, posto que não usa aspas nem sequer questiona ou pondera o trecho narrado:

Yo me quería casar lo antes posible. Tenía prisa por vivir, por dejar la casa de mis padres, el bullicio de mis hermanos – con el nacimiento de Lavinia, éramos ya cinco –, y empezar a vivir con plena independencia (BELLI, 2001, p. 21).

Aos 18 anos, numa visita à fazenda de uma amiga, conhece aquele que seria seu primeiro marido: “Era un hombre alto, delgado, los ojos pequeños tras las gafas, un poco tímido. Me gustó porque era aficionado a la lectura igual que yo. Hablamos de literatura sentados sobre la hierba viendo al río” (BELLI, 2001, p, 21). Nesse trecho, sua descrição física cria a imagem de um homem sério, tímido e calado, mas que, como ela, aprecia literatura – esse é o único momento, pelo menos no discurso da narradora, em que efetivamente compartilham um elemento em comum. Como se

82 Responsável pela assinatura do Tratado Bryan-Chamorro, em 1914, quando ministro plenipotenciário da Nicarágua. O acordo cedia perpetuamente aos EUA os direitos de propriedade exclusiva de terras e instalações para a construção do canal interoceânico no país centro-americano. 84 verá por comparação com suas outras relações, ele não parece ser física nem intelectualmente estimulante e desafiador, como os tipos que chamam a atenção da narradora, mas representa o modelo ideal de pretendente que os pais da narradora projetavam para ela: um rapaz do mesmo nível educacional e cultural e pertencente a uma família tradicional da Nicarágua. No entanto, uma característica discursiva chama a atenção sobre esse personagem: seu nome não é revelado em nenhum momento; a narradora apenas se refere a ele por seu papel social “mi marido”.

A ausência do nome próprio, para além de desumanizar a personagem, revela uma construção discursiva que sugere indiferença e desprezo por parte da visão da identidade narrativa sobre a existência dessa personagem em suas memórias. Não raro, ele é constantemente descrito como uma pessoa apática e melancólica “a pesar de su juventud, estaba ya tan fatigado de la vida” (p. 18) ou “No le interesaba salir conmigo, ni con amigos, ni siquiera ir al cine. Saber que yo estaba cerca era suficiente para él. Ni siquiera necesitábamos hablar, me decía” (p. 23). Além disso, a narradora contrastava sua própria vitalidade, otimismo e curiosidade com o pessimismo e passividade do esposo “La verdad es que éramos tan diferentes como el día de la noche. Yo era toda curiosidad, optimismo, vitalidad. Él en cambio era pesimista, soportaba la vida” (p. 28). Dessa forma, a narradora se utiliza do outro como contraponto para a construção da imagem de uma mulher cheia de vida, de desejos, de vontade de mudar o mundo. A partir desse contraste com o primeiro marido, a narradora começa a delinear, na própria imagem, o campo onde se darão as grandes transformações posteriores, que se desenvolvem do contato com outros amores. Além disso, a enumeração de características negativas atribuídas ao primeiro marido também acompanha os sentimentos que a narradora experimenta durante a rotina tediosa, enfadonha e monótona do casamento, que, diferentemente do que acreditava quando solteira, se mostrou um universo privado hostil e incômodo.

Quando já envolvida no sandinismo, a narradora revela que grande parte de sua habilidade em mentir devia ao marido, que nunca havia desconfiado de suas atividades clandestinas até ela mesma lhe contar: “Estaba segura de haberlos despistado como aprendí a hacerlo con mi marido, con el que no me crecía la nariz ni me ruborizaba o apartaba los ojos cuando inventaba menesteres o itinerarios falsos” (p. 53) e ainda: 85

Mi marido era tan poco observador que no se percataba de que las mujeres no solemos encerrarnos a leer en el baño, como es costumbre masculina. Pasarían varios años aún antes de que él supiera de mis andanzas. Y eso porque se lo dije (BELLI, 2001, p. 45).

O primeiro marido não era, contudo, simplesmente uma vítima nas mãos de uma mulher independente e que lutava para realizar seus sonhos. Ele havia tentado controlar a publicação de alguns de seus poemas, como tratado no Capítulo 1, mas a narradora já estava, então, no comando de suas próprias ações, assumindo responsabilidades e não permitindo que ninguém detivesse sua força de criação literária.

A única atitude contra a narradora que ele teria logrado foi a de afastar suas filhas num período em que, condenada à prisão na Nicarágua, ela não podia voltar a seu país para vê-las. A resposta à sua atitude vem em seguida, quando a narradora, usando astutamente uma ameaça reversa, consegue ter as filhas próximas de si depois de sete meses e exalta sua satisfação através de seu poder primitivo:

Salí a la calle más alta, más fuerte, poderosa, como una diosa antigua, torva, vengativa, que defiende a sus hijos con las armas que sean. Me sentí feliz de ser mujer, de mi instinto, de ser quien era (BELLI, 2001, p. 98).

O anúncio da separação do primeiro marido acontece quase sem nenhuma informação em meio à narração de situações ligadas ao movimento sandinista, como se essa separação fosse algo sem grande importância ou que essa voz discursiva autoficcional optasse por omitir da narrativa os detalhes. Ao comentar a separação, não a relata com detalhes ou reflexões, embora desde o início dê sinais do desgaste que isso lhe causara. Paralelamente a esse processo, as relações extraconjugais e o movimento sandinista já vinham provocando na narradora uma autoconfiança e um desejo de novas experiências que acabariam por impulsioná-la à decisão do fim do primeiro casamento.

Antes do fim de seu primeiro casamento, contudo, a relação extraconjugal com o Poeta, personagem que trataremos a seguir, tem um papel decisivo na construção da identidade narrativa,porque causa transformações significativas na narradora.

86

3.4.3 De como constrói a imagem do Poeta

A identidade narrativa, de uma mulher dividida em duas, de vidas opostas, aponta a mulher recatada tradicional, seguidora dos protocolos sociais regidos pelo patriarcado, e a mulher independente, desafiadora, que deseja os mesmos direitos dos homens, entre eles o de ter amantes: “Sin renunciar a ser mujer, creo que he logrado también ser hombre” (p. 6). No universo do “Eu” e no processo de construção da identidade narrativa, as relações amorosas da narradora, para além do primeiro casamento, criam contrastes e dualidades discursivas no ato de descrever esses homens.

Seu primeiro amante, personagem identificada apenas como Poeta, é descrito como de uma “exuberancia vital”, como ele mesmo se autoafirma, personalidade que a seduzia “[…] no era guapo pero se comportaba como si lo fuera, y uno llegaba a ver en él la belleza de su sonrisa, de sus ojos brillantes” (BELLI, 2001, p. 28). A paixão com que ele falava de um poema, de uma história ou de um prato delicioso era o suficiente para que a narradora notasse, numa comparação contrastante, a mediocridade em seu casamento.

No podía controlar su «exuberancia vital» decía cuando fingía disculparse. Así llamaba a su joie de vivre, el rasgo más atractivo de su personalidad, el que más me seducía dado el tipo de persona con la que me tocaba vivir (BELLI, 2001, p. 28). A proximidade entre eles faz com que ela o considere “enormemente atractivo y seductor”, ao mesmo tempo em que percebe em si mesma uma latente sensualidade, despertada por ele: “mi sensualidad se notaba a primera vista. Emanaba de mi piel. Hasta sus amigos lo notaban” (p. 29) “muchacha „que anda regando su sensualidad por todas partes‟” (p. 29).

Na contramão da simbologia da mulher recatada e do lar, há a “mulher fatal”, que chama a atenção por onde passa e exerce um fascínio quase místico entre os 87 homens83. No texto “La belle dame sans merci”, Mario Praz afirma que a figura da mulher fatal permeou o imaginário literário desde a Antiguidade84:

Siempre ha habido mujeres fatales en el mito y en la literatura, porque el mito y la literatura no hacen más que reflejar fantásticamente aspectos de la vida real, y la vida real ha ofrecido siempre ejemplos más o menos perfectos de femineidad prepotente y cruel (PRAZ, 1969, p. 207).

Citando inúmeras obras canônicas que comprovam sua afirmação, o autor ainda traz referências da época isabelina, em que a construção da mulher como “diabos brancos” ou “condessas insaciáveis” era inspirada nos costumes renascentistas italianos, marcados por expoentes emblemáticos como Victoria Corombone, Lucrecia Borgia ou as condessas de Challant. Mesmo com reproduções da época isabelina, a representação da mulher na época romântica foi ainda associada ao funesto, infausto. Embora muito recorrente a presença de mulheres fatais no romantismo até a metade do século XIX, Praz não vê nessa incidência a criação de um tipo, como a do herói byroniano85 (PRAZ, 1969, p. 209). Importante notar que muitas das referências trazidas por Praz são construções da figura da mulher a partir de vozes narrativas majoritariamente masculinas. Dada como provocativa, ardilosa, manipuladora, astuta e dona de uma beleza deslumbrante, a mulher foi, ao longo da história da literatura, frequentemente associada a uma figura diabólica, porque seus atributos a tornariam irresistível e causariam indubitavelmente a loucura naquele que cruzasse o seu caminho, justamente porque era vinculada a práticas que subvertiam a cultura cristã, como magia, superstições e misticismo.

Na narrativa de El país bajo mi piel, o Poeta exerce um importante papel de transformação das características da narradora, na medida em que é apresentado no discurso como o indivíduo capaz de despertar na narradora uma nova consciência, aquele que apresenta a ela um mundo completamente diverso daquele

83 Esse tema é potencialmente explorado em outro livro de Belli: El país de las mujeres (2010). 84 Para ficar apenas com alguns exemplos, o autor cita o mito de Lilith e o clássico Coéforas, de Ésquilo, além de mencionar outras invenções literárias que fizeram com que a figura da mulher fatal proliferasse a ponto de torná-la obsessiva. 85 Segundo Praz (1969, p. 221), na primeira metade do século XIX predominava o modelo do herói byroniano, jovem e belo, cujo poder de atração dominava e destruía a mulher que por ele se apaixonasse. No entanto, esses modelos se invertem na segunda metade do século, e a mulher passa a assumir o papel de mutiladora. 88 em que ela vivera até aquele momento. De uma rotina de mulher casada, com obrigações sociais, domésticas e cercada por parentes e amigos numa sociedade conservadora, a narradora é conduzida à efervescência da vida dos artistas, pintores, dos intelectuais de esquerda que discutiam literatura, política, filosofia, usavam drogas, bebiam, fumavam e viviam um estilo de vida fora do seu habitual padrão social.

El Poeta intuyó muy pronto mis conflictos de joven casada aburrida del aire pesado y estancado de su medio social. Se reía de mi buen comportamiento de colegiala de La Asunción, mis tiempos de muchacha de sociedad, novia del Country Club. […] El Poeta se autonombró mi tutor intelectual (BELLI, 2001, p. 28).

O contato com esse novo universo, mais liberal, intelectual e questionador, permite à narradora investigar seus interesses e desejos como mulher independente, mesmo estando casada, sentindo-se desejada e descobrindo seu poder de atração e sedução. O Poeta, além de ser apresentado como tutor intelectual, como ela mesma diz, torna-se seu primeiro amante. Com ele, descobre um novo significado para a paixão e para o sexo, que até então, em sua vida de casada, havia sido bem diferente das descrições que sua mãe lhe havia confidenciado, de uma união de corpos que tinha algo de sublime. Não parece um acaso o fato de que, no discurso da narradora, o indivíduo capaz de despertar os sentimentos poéticos descritos pela mãe, numa conversa sobre as descobertas do corpo durante a puberdade, seja justamente um personagem nomeado como Poeta.

Ela fala também de como o Poeta a trazia para si mesma, de como seus questionamentos despertavam nela seus próprios questionamentos, e como, a partir daí, a sensualidade feminina começa a vir à tona:

Para desafiarme, para llamarme «a mí conmigo misma», el Poeta analizaba mis negativas, mi vida, la encrucijada en que me encontraba. Se advertía a la legua que yo no sabía lo que era el amor, afirmaba. Y sin embargo mi sensualidad se notaba a primera vista. Emanaba de mi piel. Hasta sus amigos lo notaban […] Que me habían visto con esa muchacha «que anda regando su sensualidad por todas partes». (BELLI, 2001, p. 29).

Em sua primeira relação, a disparidade de sua personalidade com a do marido é o prenúncio de uma inevitável comparação entre as relações conjugal e extraconjugal, ou ainda, com qualquer outra relação. 89

Durante a descrição do primeiro beijo com o Poeta, ele se diz apaixonado pela narradora e incapaz de resistir a seus encantos físicos: “– Es que estoy enamorado de vos. Me moría por darte un beso – sonrió juquetón, sin darle mayor importancia a mi reacción, lo cual me desconcertó. Se puso a hablar de mi boca, a decir que era sensual, irresistible (BELLI, 2001, p. 28, grifos nossos). Logo em seguida, a voz narrativa reflete:

Los avances del Poeta – que me fueron escandalizando cada vez menos – me perturbaban, porque en el fondo, a pesar de mis negativas, quería que continuara, que me hiciera sentir deseable, irresistible. La sensualidad que intuía en él me provocaba una dolorosa curiosidad. Algo me decía que si me negaba a conocer esa parte de mí misma nunca me adentraría en los misterios de la vida, ni conocería el amor del que tanto había leído y que no lograba encontrar en mi relación de pareja (BELLI, 2001, p. 28, grifos nossos).

Assim, a construção discursiva desse sujeito enunciativo aponta, de um lado, um processo de autoconhecimento, e de outro, um notável desejo de se autoafirmar poderosa, desejável, irresistível e fatal aos que por ela se apaixonassem, como submetidos a seus feitiços e encantos, sobretudo porque se coloca discursivamente como uma mulher que gosta de provocar a sensualidade dos homens a seu redor. Como mencionado no Capítulo 2, o Poeta, codinome ilustrativo para sua simbologia na narrativa, é quem apresenta à narradora obras literárias que a influenciaram durante toda sua trajetória e incentivaram, de certa maneira, o início de sua produção poética e a participação no movimento sandinista. Portanto, o Poeta – e, por extensão, a poesia – simbolizam a entrada da narradora no universo público, ao espaço externo de aventuras quixotescas, seja por sua ligação ao sandinismo e à guerra, seja pelas redescobertas do amor e do sexo.

3.4.4 De como constrói a imagem de Marcos

A relação com o segundo amante, Marcos, configura-se na narrativa de maneira diferente da relação que a narradora havia tido com o Poeta e com o primeiro marido. Se com o Poeta ela tinha certa autonomia e controle sobre a relação, o que lhe permitia, com certa facilidade, interrompê-la quando necessário, com Marcos, ela é surpreendida por um amor capaz de alterar essa autonomia, esse controle e capacidade de discernimento. A narradora o conhece como um dos 90 integrantes da FSLN, com quem se comunicava por correspondência, intermediando seu contato com Martín, outro guerrilheiro clandestino.

De início, ela estabelece uma relação hierárquica de respeito a uma autoridade responsável pela estratégia do movimento revolucionário. Esse primeiro Marcos é apresentado discursivamente como um homem sério, mal-humorado e até intimidador. Posteriormente, após o fim da perseguição dos agentes de segurança de Somoza à narradora, a relação é reconfigurada, e Marcos passa a ser descrito como alguém que demonstra maior abertura e aproximação:

No lo esperaba y me sorprendió cuando Marcos salió a recibirme y me abrazó fuertemente como si yo fuera una vieja amiga que regresara después de un largo viaje lleno de peligros. Me pareció más hermoso quizá porque ahora me miraba de manera más íntima y afectuosa. Yo estaba un poco azorada. El aire de autoridad natural de Marcos me inhibía a mi pesar. No sabía cómo recuperar la espontaneidad ante él (BELLI, 2001, p. 63).

O modo como passa a descrever a “nova” relação evidencia o interesse e a paixão da narradora “Me pareció más hermoso quizá porque ahora me miraba de manera más íntima y afectuosa”, uma vez que no decorrer da narrativa ele é descrito como um de seus grandes amores.

Além de inspirar respeito por ser uma autoridade do movimento revolucionário, Marcos ainda era um homem de personalidade misteriosa, mas que, acima de tudo, demonstrava paixão pelas coisas que o rodeava:

Marcos era hombre de pasiones. La historia, por ejemplo. La conocía a fondo. Si sabíamos leerla, nos decía, encontraríamos en ella todas las claves. [...] la lectura de la historia con él fue un ejercicio que me apasionó y que me hizo desarrollar una intuición política bastante acertada (BELLI, 2001, p. 63-4, grifos nossos).

A paixão de Marcos pela leitura e pela história parece ter o mesmo poder contagiante e cativante da paixão que o Poeta já havia demonstrado pela literatura e pelo joie de vivre. O entusiasmo e ardor pelo viver, presente tanto no Poeta quanto em Marcos, sugerem a paixão pelo ser humano e pelos sonhos de um mundo melhor e mais justo. Essa paixão, que parece estar no espírito guerrilheiro, é assumida pela narradora como matéria de seu desejo quixotesco de explorar e se aventurar para além da realidade limitante de seu casamento com o primeiro marido. O sentimento de amor manifestado discursivamente pela narradora com relação a 91 esses homens que manifestam suas paixões pelas coisas da vida, e pela vida em si, parece orientar a trajetória da narradora, ora levando-a à guerra e ao combate armado, ora legitimando transgressões de regras sociais, como se o amor legitimasse tudo, até mesmo a infidelidade.

Num momento em que a relação com Marcos já trazia problemas e preocupações, a voz narrativa conta de uma visita a um bruxo nicaraguense: “Mal de varón sólo con varón se quita», me dijo una vez un brujo en Nicaragua, respondiendo a mi pedido de una poción mágica para el mal de amores” (p 107).

A mesma mulher que um dia havia conseguido administrar objetivamente seu casamento com um caso extraconjugal, encontrava-se agora entregue ao amor de Marcos, tendo que recorrer ao misticismo para buscar a solução de algo não esperado e recuperar a força e o controle de si mesma na relação, a sua força e poder de mulher fatal. O misticismo aqui e em outros momentos da narrativa parecem ser usados discursivamente para lidar com tudo aquilo que escapa ao controle e ao alcance do entendimento do senso comum. Os pressentimentos dos terremotos, as previsões de bruxos e cartomantes parecem ser usados discursivamente por essa narradora a fim de lidar com o inexplicável, com o ininteligível no campo do amor e da paixão, conferindo a esses relatos um tom mágico, misterioso, místico.

Mais adiante, já desiludida com o amor de Marcos, a narradora reflete:

Por esa época, probando antiguas estrategias de seducción, intenté recuperar la noción de mí misma, de mi poder de mujer conmocionado por el abandono de Marcos. Se despertó en mí un instinto casi masculino de conquista. Los hombres dejaron de sorprenderme. Comprobé que bastaban ciertos gestos, cierta tibieza de ojos abiertos, liberar la sensualidad con la adecuada dosis de atrevimiento o delicadeza para que me siguieran tal como si fuera el flautista de Hamelin (BELLI, 2001, p. 100).

A passagem acima, em que a voz narrativa afirma ter assumido o papel de homem no “jogo” da conquista, “[...] Se despertó en mí un instinto casi masculino de conquista”, dialoga e retoma diretamente o trecho da introdução, quando a narradora afirma ter sido mulher ao mesmo tempo em que conseguiu também ser homem, e outra passagem anterior à crise do relacionamento com Marcos, tempo em que se 92 sentia no controle, administrando bem seu casamento com as relações extraconjugais:

Cuando decidí hacer un nuevo intento por conservar el matrimonio, no entró en mis consideraciones ni mi vida clandestina ni mi amor por Marcos porque eran parte de una vida paralela, aparte, que yo administraba en otra carpeta de mi cerebro. Igual que lo hacían los hombres en mi país, que tenían amantes sin menoscabo de su matrimonio, yo había aprendido a compartimentarme magistralmente (BELLI, 2001, p. 71).

Embora a narradora reconheça que o fim de seu relacionamento com Marcos determina certo rompimento de sua lógica como mulher irresistível e poderosa, ela usa dessa constatação para construir um discurso que exalte e reafirme seu autoconhecimento e sua consciência de mulher manipuladora e sedutora. A construção discursiva do sujeito de El país bajo mi piel joga frequentemente com duas faces do modelo de mulher: de um lado, frágil e passiva, a mulher do universo privado; do outro, a mulher potente e irresistível do universo público, que se sente no controle do instinto masculino.

A paixão por Marcos a havia fragilizado, uma vez que nutria por ele uma admiração capaz de paralisar e esmorecer seu poder de sedução como mulher fatal. Apenas com o término da relação, depois da morte dele numa emboscada, a narradora consegue iniciar um novo processo de autoconhecimento. Ainda assim, a construção discursiva do amor como sentimento avassalador, inigualável e necessário à vida, como o que ela descreve sentir em relação a Marcos, parece ter o papel de legitimar as escolhas dessa narradora, que em diversos momentos da narrativa, quando tenta justificar atos socialmente repreensíveis, deixa escapar uma preocupação de ordem moralista. A legitimação do amor viria para apaziguar os conflitos internos dessa narradora dividida.

3.4.5 De como constrói a imagem de Sergio

Enquanto descreve a tentativa de superação da morte de Marcos e encerra o processo de divórcio com o primeiro marido, a narradora apresenta um novo personagem, Sergio de Castro, num período descrito como de grande instabilidade emocional e de muita tristeza. A primeira característica que a narradora atribui a ele é a sua insistência e a coragem em tomar atitudes. A sucessão de frases curtas em 93 seu discurso dá o ritmo da descrição do momento que ambos se conhecem: “En esa fiesta conocí a Sergio De Castro. Llegó y me sacó a bailar. Le dije que no, gracias, pero no era hombre que aceptara negativas o rechazos. Me tomó de la mano” (p. 107). A narração de diversas etapas em frases curtas parece mimetizar literariamente o ritmo com que as etapas de seu novo relacionamento vão avançando.

Fisicamente, ele é descrito como “un hombre alto, bien parecido, con una calvicie prematura que lo hacía interesante” e, na ocasião, o seu corpo também é recordado com detalhes “Llevaba jeans y se le pegaban al cuerpo. Cuerpo de carioca. El trasero respingado” (p. 107), mas também sua intensidade e vitalidade, características estas que admirava no Poeta e em Marcos, despertam o interesse na voz narrativa:

Desde esa noche noté la terca intensidad con que lo hacía todo, hasta divertirse; su aire de asumir el control hasta lograr lo que se proponía. Una vitalidad nerviosa, sin abandono. [...]Sergio se instaló en mi vida con una dulzura férrea. Su terquedad era encomiable. Vivía muy cerca y venía a buscarme. «Vamos al cine. Vamos a cenar. Vamos a bailar.» Ni cuenta me di cómo pasó (BELLI, 2001, p. 107, grifos nossos).

A descrição do início da relação parece sugerir que Sergio havia conquistado um espaço na vida da narradora por meio da insistência. A voz narrativa, que dizia estar sofrendo com a perda de seu grande amor Marcos, sente a solidão de ser uma mulher divorciada, não demonstrando desejo de iniciar um novo relacionamento:

Porque era un amante con firme vocación de marido, a menudo – sin saber bien a qué atribuirlo – me sentía cercada y con ganas de escapar. Rechazaba sus invitaciones argumentando reuniones, trabajo. Él no se alteraba. Nunca se alteraba (BELLI, 2001, p. 107-8).

Pelo relato dessa narradora, a insistência de Sergio é o que determina que ambos comecem a morar juntos e, por fim, se casem, tudo muito rápido. A narradora define o amor por Sergio como um amor plácido, “como una cascarita de nuez cómoda y acogedora flotando en las corrientes tumultuosas que anegaban mi vida” (p. 116). Essa imagem de calmaria no amor por Sergio contrasta sobremaneira com o amor por Marcos, que a havia devastado, e, justamente por não se encontrar numa posição de entrega absoluta, a narradora demonstra maior controle sobre os próprios sentimentos. De volta à imersão do mundo privado, da casa, do lar, a rotina 94 do casamento com Sergio é descrito de modo a evocar alguns sentimentos que a narradora havia descrito em sua experiência com o primeiro marido, como a monotonia e a asfixia de sua personalidade dentro da relação.

Se por um lado a narradora aponta características positivas como a dedicação, a bondade e os cuidados de Sergio com ela, descrevendo-o até mesmo como um exemplar avantajado do gênero masculino, por outro, não deixa de realçar as poucas características dele que a incomodam:

Nunca he tolerado la tendencia de los machos de adoptarnos a las mujeres, como si al casarse con nosotras adquirieran una hija o un ser desvalido que deben guiar por el mundo. Aunque Sergio era un ejemplar aventajado de su género y usaba métodos más sofisticados, a mí no se me escapaba el paternalismo (BELLI, 2001, p. 116).

Nesse trecho, a narradora parece fazer questão de acentuar seu incômodo diante de uma característica isolada e pouco explorada da personalidade e da imagem quase imaculada desse “ótimo marido” construída por ela até esse momento. A narradora, que no momento da citação acima está às vias de se separar de Sergio para, então, se entregar a outra paixão avassaladora e inconsequente, parece trazer para o discurso algum elemento negativo do esposo que justifique e legitime a troca do marido pelo novo amante. Aqui também pesa o amor, que, descrito como sentimento avassalador e necessário à vida, como acontecera com Marcos, tem o poder de legitimar as escolhas e ações mais intempestivas.

3.4.6 De como constrói a imagem de Modesto

A decisão discursiva de salientar a consciência sobre algumas características negativas de Sergio ocorre quase concomitantemente com a chegada de Modesto à narrativa, guerrilheiro sandinista que a narradora retrata como “una versión nicaragüense del Che Guevara” (p. 124). O uso da comparação com Che sugere uma intenção de associar sua importância política e histórica com a trajetória de Modesto, de modo a conferir uma importância especial a um personagem de papel decisivo na narrativa. O primeiro encontro entre eles é pouco nítido nas memórias da 95 identidade narrativa justamente porque ela o compara à figura de Marcos, como sendo uma referência na guerrilha e na luta sandinista.

Recuerdo poco de ese primer encuentro. Quizá por la leyenda que lo precedía, había imaginado encontrarme con otra versión de Marcos, pero Modesto no poseía un físico memorable: de estatura mediana, su piel era muy blanca, y sus rasgos finos. Los ojos negros, penetrantes, y la boca bien delineada eran su atractivo (BELLI, 2001, p. 124, grifo nosso).

Embora o tipo físico de Modesto não despertasse um interesse especial na narradora, ela busca destacar características como seus olhos e boca bem delineada, além de sua eloquência e inteligência. Da mesma forma, a intensidade e firmeza com que ele conduzia as missões sandinistas são características elencadas discursivamente de maneira a construir uma imagem encantadora o suficiente para justificar o envolvimento quase inconsequente e desmedido, fazendo-o configurar-se na narrativa como a causa, quase justa, da separação de Sergio. Essas características contribuíam para que a voz narrativa se encantasse cada vez mais e se entregasse às investidas do guerrilheiro.

Sobre estas ardientes convicciones, sobre un lecho de utopías vislumbradas y musitadas entre los dos, creció entre Modesto y yo un lazo muy fuerte. Fue ese principio ideal, vital, el que hizo del uno alimento del otro; el que nos encegueció. Sobre todo a mí, la que más tenía que apostar y perder. Después de meses de resistencia casi heroica de mi parte, meses de debatirme entre mis inclinaciones y mis deberes familiares, sucumbí. (BELLI, 2001, p. 145)

A paixão por Modesto se cria pela oposição ao que a narradora vivia com o segundo marido. Enquanto Sergio, à sua maneira, parece representado pela narradora como uma reedição do tipo de relacionamento que tivera com seu primeiro marido, evocando até mesmo sua fragilidade, Modesto, também à sua maneira própria, parece ser retratado no discurso como uma reedição de Marcos, no sentido de vir a ser uma paixão incontrolável e devastadora. Contudo, a solução para a narradora seria a confluência dos dois, para formar “un hombre perfecto”:

¡Ah, pero qué ciegos podemos ser los seres humanos cuando nos enamoramos! Yo quería a Sergio. No podía menos que quererlo, pero de Modesto me había enamorado terrible, ciega e irremediablemente. Puesta a escoger entre ambos, no sabía qué hacer. Los quería a los dos. Juntos formaban mi hombre perfecto. Desafortunadamente, no vivía en una tribu donde fuera lícita la poliandria (BELLI, 2001, p. 159). 96

No entanto, a relação com Sergio não se sustenta, e a decisão para dar fim ao casamento provoca na narradora um despertar da sexualidade e sensualidade da mulher fatal – e até cruel –, consciente de suas vontades e que anseia viver mais uma paixão:

Él se aferraba a mí, pero yo, abotagada por la intensidad de las emociones y los menesteres que cada día traía consigo, era insensible y hasta cruel. Sola y confundida rumiaba mi disyuntiva. A menudo deseaba que Sergio fuera menos bueno, complaciente, y perseverante. Habría sido más fácil rechazarlo. A pesar de su dogmatismo, de su rigidez moralista que me irritaba, Sergio era un hombre de una nobleza extraordinaria. Mucho mejor pareja, en muchos sentidos, que Modesto cuyo carácter mostraba suficientes señales de peligro como para que yo advirtiera la precaria y efímera felicidad que podía ofrecerme (BELLI, 2001, p. 159).

A paixão avassaladora por Modesto vai provocando novas impressões na narradora, que passa a questionar os comportamentos e gestos daquele homem que tanto admirava, mas que prezava por manter o relacionamento em segredo:

Modesto oscilaba en sus afectos como un péndulo desquiciado. Había momentos en que era dulce y afectuoso, pero por lo general era distante o me hacía cualquier desplante creyendo que así mantendría la apariencia de que entre nosotros no existía más que una relación profesional (BELLI, 2001, p. 177).

Mesmo diante dessa situação de desprezo, a narradora reconhece discursivamente que o relacionamento com Modesto mudou sua maneira de se comportar diante de um homem, configurando-se subjugada e submissa como um animal doméstico, um cão que suplica por carinho: “Reducida a un guiñapo de mí misma, lo seguía como animal doméstico, ansiosa de hacer méritos que me ganaran su cariño” (p. 177).

As mudanças de comportamento de Modesto provocadas pelo êxito da Revolução Sandinista – como as exigências para que mantenham o relacionamento em segredo – juntamente com a tomada de consciência quanto à posição profissional inferiorizada assumida pela narradora diante do amante em ambiente de trabalho, leva ao reconhecimento de uma dinâmica nociva entre os dois. Ao decidir pelo distanciamento, a narradora retoma o autoconhecimento por meio da reflexão: “Me obligué a mirar mi interior para descubrir sus vulnerabilidades”:

No sabía quién era realmente yo sin la referencia de alguien que me nombrara y me hiciera existir con su amor. No iba a renegar de los 97

hombres, pero ya no quería depender afectivamente de ellos o dotarles de un poder de vida o muerte sobre mí. Me obligué a mirar mi interior para descubrir sus vulnerabilidades: mi necesidad de amor como reflejo de una carencia esencial que asociaba en demasía mi poder femenino con la sexualidad, la seducción y pasaba por alto y hasta menospreciaba mis otros dones (BELLI, 2001, p. 194).

Segundo a identidade narrativa, o intervalo de três anos desde a separação até poder seguir novos rumos foi o tempo em que duraram o sofrimento, o processo de autoconhecimento e a reconstrução de si mesma.

Do processo de separação à superação das crises pessoais, a narradora sugere emergir o amadurecimento, a consciência de si mesma e a percepção da dinâmica dos relacionamentos e do seu comportamento submisso nas relações anteriores, em que ela fazia do amor e da paixão um meio de entrega e renúncia da própria identidade, o apagamento de sua faceta de mulher fatal, forte e independente, e conclui:

A las mujeres nos educan desde niñas para complacer. Nos entrenan para ser de nuestros hombres, adaptarnos a ellos. Si no nos detenemos a tiempo nos despersonalizamos. Reconocer esto me costó mucho dolor y no quería repetirlo (BELLI, 2001, p. 194).

Tanto com Poeta, Marcos e Modesto, a narradora parece se apaixonar pela paixão deles pela vida, pela poesia, pela história, pelo movimento sandinista, pelos sonhos e pela vontade de mudar o mundo, pelo desejo quixotesco de grandes aventuras. Ela se reconhece nessas paixões e se alimenta delas para a construção de sua própria trajetória. Diferente de Marcos, porém, Modesto é retratado como o amor tóxico, inebriante, que impede a visão clara das coisas, que a conduz à autodestruição. Daí a necessidade do afastamento para o resgate e reconstrução da própria identidade.

3.4.5 De como constrói a imagem de Charlie, ou melhor, Carlos

O presente da escrita de El país bajo mi piel revela um último relacionamento, dessa vez com um homem ao qual se refere na introdução como yanki periodista: “Mientras mi pueblo escribía en las paredes yanki go home, yo me enamoré de un yanki periodista” (p. 6). 98

No momento em que descreve quando conheceu seu atual marido, a voz narrativa revela seu nome, mas o modifica: “Charlie – Carlos para mí – lo conocí un medio día de 1983” (p. 20). A tradução de nome anglo-saxão para o espanhol revelaria uma intenção discursiva da identidade narrativa em conferir ao então companheiro uma latinidade, ou melhor, uma aproximação à sua própria realidade na América Central e – por extensão – à Nicarágua, numa tentativa de aproximá-lo carinhosamente de si, mas também de atenuar o peso de ter sido ligada ao movimento sandinista e estar envolvida e apaixonada por um norte-americano, símbolo do inimigo da Nicarágua, yanki, como era escrito nos muros da cidade, proveniente do país que financiou a ditadura somozista.

Na descrição física de Carlos prevalecem adjetivos que constroem a imagem de um homem forte e atraente, com “dedos anchos”:

No sólo me llamó la atención porque es un hombre muy bello con la cara viril de un galán de cine italiano, un cuerpo mediano de sólida construcción y unas manos fuertes, de dedos anchos, sino porque conversamos como viejos amigos desde el principio (BELLI, 2001, p. 20) Não parece aleatório o fato de que, além de ser chamado carinhosamente pela versão espanhola de seu nome, a discrição física da narradora parece preferir uma alusão à ascendência italiana a qualquer referência ou analogia estadunidense. Seu charme ainda se estenderia ao modo como fala inglês, “acariciando” o idioma: “Carlos hablaba un poco de español, pero preferí su inglés impecable porque nunca escuché un hombre acariciar un idioma como lo hace él con su grave y atractivo timbre de voz” (p. 20). Depois, a voz narrativa revela especial interesse em sua ascendência italiana, também compartilhada por ela. A construção de semelhanças entre ambos no sentido da ascendência italiana parece mais um recurso da voz narrativa de afastar seu amado do “peso” de ser um yanki, apaziguando, assim, as contradições internas sugeridas pela relação conflituosa entre Nicarágua e Estados Unidos.

Em comparação aos demais, o discurso em torno de seu envolvimento com Carlos parece mais cauteloso, tímido e pautado em diversas justificativas, sobretudo porque acontece num período pós-Revolução Sandinista. O fato de ela ser membro do FSLN e se relacionar com um jornalista estadunidense levantava suspeitas e causava desconforto no meio revolucionário, que se mostrava cada vez mais 99 machista e retrógrado. Enquanto o envolvimento amoroso ou sexual de membros do sexo masculino do partido sandinista não era sequer trazido à tona como questão relevante, a vida particular das mulheres do movimento era questionada e sofria intervenções. Na prática do discurso, a narradora constrói a dinâmica e o impasse do próprio relacionamento em perspectiva com a relação e com o amor proibido de personagens célebres da literatura:

No sé qué magia ejerce lo prohibido, pero los dos la sentimos. Nos miramos como debieron mirarse Romeo y Julieta o Tristán e Isolda. Las caras compungidas, tristes y desesperanzadas y los ojos encendidos de amor imposible (BELLI, 2001, p. 61).

Se num primeiro momento a narradora relata ter cedido à pressão do partido como uma reação natural da mulher submissa à autoridade masculina numa sociedade patriarcal, posteriormente há, contudo, o interesse dessa narradora em tomar as rédeas e assumir o controle através do enfrentamento dessas autoridades.

A construção de uma identidade feminina forte, emancipada, que assume o protagonismo de sua própria estória depende dessa construção discursiva que revela o embate, o enfrentamento e a luta pelo próprio espaço. O autoconhecimento e o amadurecimento como mulher independente e emancipada parecem ter aqui também um papel fundamental de impedir que os sentimentos de amor e paixão a coloquem em posição de submissão, tanto em sua relação com Carlos, quanto na relação com os demais homens de seu convívio social. A narradora chega a quebrar o paradigma machista dos protocolos sociais pedindo Carlos em casamento. Não se trata apenas de um relato, mas de uma escolha discursiva de construção da imagem de uma mulher em posição de decisão, de ocupação de espaços antes ocupados apenas por homens. Pedir o marido em casamento é um ato político, construído discursivamente, para legitimar essa nova consciência feminina e seus direitos. Ela não está mais submissa à vontade do outro, se arrisca, decide o que é melhor para si:

[fue] la etapa que me permitió amar a Carlos sin necesitarlo y construir con él una relación llena de riesgos, sin perder mi identidad [...] Ni él, ni yo, queríamos renunciar a vivir en nuestros respectivos países; no lográbamos vislumbrar quién cedería, cómo llegar a una solución de compromiso (BELLI, 2001, p. 194).

Esse movimento em direção à completa emancipação e independência feminina dentro do relacionamento e de seu posicionamento como mulher na 100 sociedade, como sugerido nesse trecho, é contemporizado pela decisão final de deixar a Nicarágua e mudar-se com Carlos para os EUA. Se o retorno à vida privada do casamento e ao convívio com a família sugere a concretização de um de seus desejos, a vida tranquila de casada ao lado do companheiro e dos filhos, por outro lado, revela-se problemática, na medida em que a imagem de força, independência e emancipação da mulher que havia sido construída ao longo de toda a narrativa é frustrada nas escolhas finais dessa narradora, quando abdica da posição de liberdade de escolha e de um modo de vida mais libertário para viver como dona de casa, sentindo-se como un pájaro que canta en una jaula de oro, no país que financiara a ditadura somozista, contra a qual ela havia lutado e feito sua história.

101 DE COMO CONCLUÍMOS ESSA PESQUISA

A análise aqui proposta centrou-se nos elementos de contraste e dualidade construídos discursivamente pela identidade narrativa de El país bajo mi piel: memorias de amor y guerra (2001) de modo a edificar sua autoimagem ao manipular a narrativa de suas memórias pela linguagem. Assim, deu-se especial atenção a como determinadas memórias e personagens são descritos e, se há, ao longo da narrativa, mudanças significativas no trato dessas rememorações. Para isso, buscou-se analisar como a identidade narrativa se constrói a partir da relação entre o público e o privado, através da relação com o próprio corpo, e como esse corpo comporta a revolução e, por fim, como constrói a imagem de si mesma através da sua relação com outros personagens de suas memórias.

Utilizando-se de um discurso mais objetivo e jornalístico para relatar fatos e personagens históricos vinculados diretamente ao sandinismo e à Revolução, a narradora reserva às experiências pessoas, àquelas do universo privado, um discurso metafórico e imerso em literariedade, construindo uma prosa poética que procura reconstituir a participação do próprio “Eu” e de seu corpo, como intermediador das experiências, no contexto de importantes transformações políticas, históricas e sociais de seu país. Parece haver também a preocupação em investigar a relação dessa mesma identidade narrativa em contraposição com o outro, buscando legitimidade em suas escolhas e ações.

O corpo feminino, elemento-chave do discurso da identidade narrativa de El país bajo mi piel, torna-se o principal vínculo entre o público e o privado, porque, além de intermediar as experiências do Eu com o mundo, ele comporta, narrativa e politicamente, a gestação da mudança, da transformação e da revolução. A preocupação de construir uma autoimagem forte, de mulher independente e consciente do poder do próprio corpo e das próprias ações parece residir também no desejo de se compreender e ser compreendida.

A identidade narrativa, que carrega em si o peso da dualidade histórica, geopolítica e familiar parece buscar no ato de narrar a oportunidade de reviver suas experiências como uma forma de reavaliá-las, reinterpretá-las e, por fim, recriá-las literariamente. Há uma trajetória curiosa de saída de um espaço conservador, ligado 102

à família conservadora e comportamentos conservadores e uma entrada no espaço externo, recém-conquistado pelas mulheres, um espaço de quebra de paradigmas sociais, um espaço de questionamento, de luta, de guerra e de libertação. A narradora rompe com a ideologia política familiar, se rebela contra as instituições do casamento, priorizando interesses pessoais e o bem coletivo, colocando-os acima, até mesmo, da maternidade. Por fim, há um movimento de retorno ao ponto inicial, na medida em que essa narradora, que vinha buscando justificar e legitimar suas escolhas libertárias, opta pela vida resignada de dona de casa.

Desde as primeiras linhas, a narradora se constrói fragmentada, partida ao meio, o que nos leva a crer que as dualidades discursivas que cria ao longo da narrativa são apenas reflexos da sua segmentação e contradição como filha, esposa, amante, mãe, militante e guerrilheira na condição de mulher imersa numa sociedade conservadora e desigual.

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