REVISTA DA GRADUAÇÃO DA ESCOLA DE BELAS ARTES - UFRJ artigo FERNANDO PINTO MARAVILHA: UM ZIRIGUIDUM TROPICALISTA Leonardo Antan

A pesquisa busca olhar a produção dos desfiles das escolas de samba a partir do olhar da História da Arte, entendendo o carnavalesco como autor e artista. E o campo dos desfiles como pertencente ao da arte não institucionalizada. A partir dessa noção, a pesquisa analisa a trajetória do Fernando Pinto que relacionou com as ideias e conceitos do movimento tropicalista. Retrabalhando em sua obra os símbolos nacionais a partir do deboche, da crítica e da alegoria. Dialogando com uma série de artistas da arte brasileira da segunda metade do século XX.

Palavras-chave: Escolas de samba, artista, carnavalesco, tropicalismo, arte brasileira.

Um índio descerá de uma estrela colorida, de discussões surgidas quase vinte anos antes brilhante, de uma estrela que virá numa pelo momento tropicalista, articulando também velocidade estonteante e pousará no cora- questões-chave em sua produção, tais como pen- ção do hemisfério sul. (Um índio - Caetano sar o Brasil contemporâneo rearticulando os sig- Veloso) nos tropicais através do uso alegórico do deboche e da ironia. De modo que, em sua trajetória de Os patins deslizam sobre o chão quadriculado de dezesseis anos e quatorze desfiles assinados no branco e preto, conduzidos por estranhos índios grupo especial carioca, de 1971 a 1988, o artista punks. É calor, verão, manhã de sol forte no Rio pernambucano atualizaria questões tropicalistas de Janeiro, na Marquês de Sapucaí. É a Discoteca que foram repensadas e ressignificadas pelos in- Saci, onde índios também tocam heavy metal. É telectuais da década de 1970, no que se conven- a grande casa noturna de Tupinicópolis, a cidade cionou chamar de “cultura marginal”2. indígena pós-marajoara, retrô-futurista, símbo- lo do Tupi Power, onde, seus habitantes fazem Além das escolas de samba, Fernando Pinto atu- compras no Shopping Boitatá e Supermercado aria como diretor teatral, cenógrafo, figurinista e Casas da Onça, se hospedam no Palace Hotel Tu- coreógrafo. Ao chegar de Pernambuco em 1969, piniquim e vão à Farmácia do Raoni. Para se di- instalar-se-ia no icônico Solar da Fossa3 e duran- vertir, opções não faltam como o Cine Marajoara, te os anos 1970, além do cenário teatral, seria que tem o épico Iracema II em cartaz, o Cassi- responsável pela estética do grupo As Frenéticas, no Eldorado e até o Bordel da Uiara, comprando fazendo parte do coletivo Dzi Croquettes e assi- com a moeda guarani e sendo comandados pela nando a direção de shows e cenários de outros Tupioca dos Poderes, onde o Tupi-Cacique dá as artistas como , Simone, Chico Any- ordens. sio e .

Apesar do estranhamento inicial, com a cons- Em entrevista, o artista assumiria sua herança trução de sua “lendária cidade índia do terceiro artística: milênio”1, Fernando Pinto atualizaria uma série

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De certa forma, sou filho estético da Tro- via buscando encarar as questões que formavam picália, aquele movimento maldito mara- a cultura brasileira dos anos 1960, num desejo de vilhoso. Tropicália, para mim, é a curtição universalizar o Brasil, colocando-o na rota inter- em cima de tudo e de todos. Tropicália é nacional. o verdadeiro Brasil, o subterrâneo; o que todo mundo faz e ninguém mostra. (O Nas artes plásticas, Hélio Oiticica. Na música, o GLOBO, 15/02/1980) grupo liderado por Gil e Caetano. No teatro, Zé Celso Martinez. No cinema, Glauber Rocha. No Em carnavais assinados em duas fases diferentes, carnaval, Fernando Pinto atualizaria essas ques- a primeira delas no Império Serrano e a segun- tões anos depois, em 1980, em seu desfile “Tropi- da na Mocidade Independente de Padre Miguel, cália Maravilha”, para a Mocidade Independente Pinto lidaria com sintomas e processualidades de Padre Miguel, no qual articularia uma série de levantadas pelo momento tropicalista e retraba- ícones da Tropicália e da cultura brasileira, como lhados pelos artistas das gerações seguintes, nos ele bem define, numa espécie de concepção pró- anos 1970 e 1980, das quais fez parte. No presen- pria da História do Brasil: te trabalho serão discutidos três desses sintomas: as noções de brasilidade, os signos tropicais e a Se o enredo é “Tropicália Maravilha” é por linguagem alegórica. que eu sou um pouco filho da Tropicália. Quis fazer um enredo que brincasse com a Encarar o Brasil de frente natureza, a dança, a música do Brasil. Que brincasse com o Brasil mesmo, enquanto Tropicália é a primeiríssima tentativa país, mas não de uma forma ufanista e sim consciente, objetiva, de impor uma imagem a partir de um visão crítica. A tropicália é obviamente brasileira ao contexto atual da exatamente isso: curtir muito, às vezes até vanguarda e das manifestações em geral chegando ao deboche. (Folha de São Paulo, da arte nacional. (OITICICA, 1986, p.106) 08-02-80)

Assim definiu Hélio Oiticica o penetrável “Tropi- No discurso do carnavalesco sobre o enredo fica- cália” que sintomatizaria as questões do momen- ria claro um caráter irônico, beirando ao debo- to intitulado tropicalista a partir de seu trabalho. che, uma leitura anti-histórica de uma manifes- Esta seria a primeira de uma série de obras que tação artístico-cultural que se pretendia “séria”. trariam questões semelhantes ao buscar repen- A Tropicália, uma forma de pensar o Brasil, seria sar a cultura brasileira a partir de 1967, evocando evocada por ele como uma espécie de comentário símbolos da nacionalidade estabelecida pelo mo- muito pessoal ao “movimento”5 numa tentativa dernismo de modo irônico e festivo, ao mesmo de atualizar o assunto para o período político-so- passo em que afirmavam que aqui era o “fim do cial de então à formação brasileira, evidenciando mundo”4. nossos principais símbolos, tais como as obras entendidas como tropicalistas. um processo que Contrapondo-se à dicotomia entre alienados Hélio Oiticica definiria como reconhecer que a e engajados, às canções de protesto e à Jovem formação brasileira “é de uma falta de caráter Guarda, a Tropicália surgiria como uma terceira incrível: diarreica; quem quiser construir (nin-

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Ano 2 | n. 3 | novembro 2017 REVISTA DA GRADUAÇÃO DA ESCOLA DE BELAS ARTES - UFRJ guém mais do que eu, “ama o Brasil”!) tem que de Rubens Gerchman e os desfiles de Fernando ver isso e dissecar as tripas dessa diarreia – mer- Pinto, revisitados e reprocessados em diversas gulhar na merda. (OITICICA, 1973, p. 151) camadas na trajetória do carnavalesco pernam- bucano. Primeiro, no aspecto mais óbvio, das fru- A narrativa proposta em setores ou quadros se tas e faunas representadas abundantemente em articularia com a própria alegoria de um Brasil desfiles diversos, onde se destaca mais uma vez que se queria e não queria ser, segundo a concep- “Tropicália Maravilha”, com setores dedicados a ção de seu criador. Se tratando de uma constru- estes signos representados em carros alegóricos ção fantasmagórica de um Brasil que se apropria e uma visão debochada da flora brasileira a partir de uma dita história oficial, mas mergulha em do título “O cravo brigou com a rosa por causa sua merda. É um processo muito parecido com da margarida gostosa”. Fernando Pinto explica- a encenação de “O Rei da Vela”, do ria que o setor marcaria uma ode à margarida em 1967, definida como “uma farsa fantasmagó- que devia ser valorizada em seu aspecto popular, rica que satirizava a pompa oficial, ridicularizava em relação à monarquia da rosa. Essa celebração abertamente o ‘bom gosto’ e se deleitava com o irônica e divertida de uma imagem tropical esva- grotesco” (DUNN, 2009) Esse jogo complexo en- ziada poderia ser comparada às imagens colori- tre o cafona, o kitsch e o grotesco é ainda mais das e alegóricas de Glauco Rodrigues e no forte tenso se analisarmos o momento histórico dos subtexto das bananas de Luiz Henrique Amaral. desfiles das escolas de samba6 em que Fernando Além da fauna e da flora, outro signo de brasi- Pinto atuou. Assim, como Zé Celso e Caetano Ve- lidade resgatado do ostracismo pelo movimento loso, Fernando Pinto trazia o exagero à tona no- tropicalista foi a figura exótica de Carmen Miran- vamente7. Era uma referência ao teatro de revis- da. A cantora luso-brasileira seria o enredo do se- ta, estética que contribuiu para a formação num gundo carnaval da trajetória de Fernando Pinto, primeiro momento, e a partir da chamada “re- em 1972. O desfile “Alô, alô, taí ”, volução salgueirense” foi colocada de escanteio. apresentado pelo Império Serrano, é provavel- mente o primeiro a abordar um ícone da cultura Relíquias do Brasil de massa, conhecida no âmbito popular.

Ao tentar “impor uma imagem obviamente brasi- No depoimento para O Globo, de 1973, escrito leira”, Hélio Oiticica lançaria mão dos mais famo- diretamente pelo carnavalesco, ele fala sobre o sos clichês da identidade nacional forjados pelo processo de construção do enredo em que op- modernismo, através da arte institucionalizada, taria por uma construção não linear: “Sou uma por meio da música, do teatro e do cinema; pro- pessoa muito ligado ao teatro e vejo o carnaval cesso no qual as escolas de samba teriam papel como o maior espetáculo que a gente tem”. Várias fundamental, elevadas ao patamar de símbolos reportagens nos jornais O Globo e Jornal do Bra- da nacionalidade. sil, destacariam as referências do cinema e teatro na criação da apresentação. Essa visão do teatro Todos os ícones de tropicalidade como condição de revista e também da chanchada seria uma lin- de brasilidade, negados até então, emergiriam do guagem adotada por Fernando no sentido de va- subterrâneo destas áreas com a música de Cae- lorização do popularesco, mal visto no carnaval tano Veloso, Tom Zé e , a visualidade da época.

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A análise de um dos principais teóricos da Tro- ser lido como um grito de alerta à preservação picália, Celso Favaretto, destaca essa “transfor- ambiental. O desfile seria dividido em vários qua- mação do mau gosto em símbolo de contestação dros com momentos distintos, o primeiro ato é o no domínio dos comportamentos, através do uso simbólico “Mocidade abraça o índio brasileiro”, o sistemático do deboche” (2007, p.122). Além de desfile seguiria mostrando os hábitos e as cultu- obras tropicalistas já citadas, como a peça “O Rei ras indígenas antes da chegada do colonizador, a da Vela”, o tema também apareceria em artistas chegada dos “invasores” e a revolta dos nativos visuais como Rubens Gerchman e seu “Rei de contra eles. A presença do estrangeiro seria tra- Mau Gosto” e Nelson Leirner, em “Altar de ado- tada de maneira alegórica, marcando uma forte ração a Roberto Carlos”, ambas de 1966, que ar- negação da história oficial ainda apresentada por ticulavam o “mau gosto”, o “popular” e o “brega” algumas escolas do período. de maneira irônica. Nos anos 70 e 80, além de Fernando Pinto, uma Deixe nosso índio ter seu chão série de artistas refletiria sobre o tema indígena. Seja de maneira alegórica, como Glauco Rodri- Muito além da fruta, da fauna e da Carmen Mi- gues, seja nas pinturas hiper-realistas da série randa, o principal signo da brasilidade na tra- Xinguana, em 1975, do artista goiano Clóvis Iri- jetória de Fernando é, sem dúvida, a figura do garay, que também colocaria índios fora de seu índio tropical que exercia verdadeiro fascínio so- lugar esperado ao representá-los vendo televisão bre o artista, aparecendo na sua produção com ou bebendo Coca-Cola. Um processo que apare- especial destaque. Dos carnavais assinados pelo ceria no tropicalismo também como uma manei- artista, foram três desfiles dedicados aos nati- ra de valorizar esse ‘primitivo e nosso’ como ele- vos brasileiros, o que se convencionou chamar mento de subversão, inversão e transvaloração. A de trilogia indígena por alguns historiadores do utopia antropofágica reencontra no nosso passa- carnaval e que aparece declarada por Fernando do primitivo todas as qualidades necessárias ao numa edição do jornal O Globo de fevereiro de presente. 1987. A partir de uma análise mais generosa des- se recorte específico, percebe-se um certo nível Sobretudo para o carnavalesco, a questão parece de desenvolvimento e diferenças que marcaram ser o índio usado como signo popular de maneira uma espécie de continuidade desses três enredos. subversiva. Estabelecendo uma crítica ao branco através do índio, num jogo de relações que dis- O primeiro deles, realizado em 1973, no Império tancia o espectador do que está sendo falado. De Serrano, “Viagem encantada Pindorama8 aden- modo parecido ao que que termi- tro” marcaria uma abordagem do Brasil antes na a sua já citada canção “Um índio”: da chegada colonizadora. A linguagem do enre- do teria um aspecto lúdico e onírico a partir da E aquilo que nesse momento se revelará inserção das lendas e mitos indígenas. Dez anos aos povos. Surpreenderá a todos não por depois, Fernando Pinto retornaria a questão in- ser exótico, mas pelo fato de poder ter dígena em sua volta à Mocidade, após sua rápi- sempre estado oculto quando terá sido o da passagem em 1980. Abandonando a proposta óbvio. mais lúdica, “Como era verde meu Xingu” pode

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Esse caráter dúbio e crítico também apareceria Tupinicópolis não seria a possibilidade de um no trabalho de que, a partir de Brasil, mas o seu futuro. Sua fundação marca 1977, iniciaria a série “Brasil Nativo, Brasil Alie- a resposta de Fernando às questões levantadas nígena”, em que se apropriaria de cartões indíge- pelos primeiros desfiles da trilogia. Dando como nas que traziam a figura do nativo como símbolo resposta final para o problema colonial a expul- de exportação e ela mesma reproduziria as cenas são do colonizador, após sua absorção antropo- marcando um contraste, entre “colonizador” e fágica, como sugerida por Oswald de Andrade e “colonizado”. Apesar dessa tendência alegórica, realizando um desejo proposto por Hélio Oiticica os índios de Fernando Pinto não se distanciariam em seus escritos: muito da fotografia de que, com a série Marcados chamaria atenção para a dizi- Para a criação de uma verdadeira cultura mação da população indígena de maneira mais brasileira, característica e forte, expressiva etnográfica. Documentos atuais da Comissão da ao menos, essa herança maldita europeia e Verdade revelam o massacre indígena no perío- americana terá de ser absorvida, antropo- do ditatorial, além do alerta pela demarcação das fagicamente, pela negra e índia da nossa terras indígenas, em pauta na época e até hoje. terra, que na verdade são as únicas signi- Ambos os assuntos eram previstos na obra do ficativas, pois a maioria dos produtos da carnavalesco. Ao levar para avenida o enredo Tu- arte brasileira é híbrida, intelectualizada pinicópolis, em 1987, como parte final da trilogia ao extremo, vazia de significado próprio. do Tupi Power, o artista pernambucano deixaria (OITICICA, 1986, p.108) claro tais questões com a alegoria da construção de uma metrópole urbana fundada pelos índios. Tupinicópolis não confirmaria “a incompetência Onde, segundo as definições de seu próprio cria- da América católica” cantada por Caetano Veloso dor no texto da sinopse, “a cultura Tupiniquim em “Podre Poderes”, mas fundaria uma resposta falaria para o mundo via Tupinicópolis”. nova a ele e ao Brasil de então. Afinal, “só a an- tropofagia nos une”. Definida como um carnaval de “ficção científi- ca tupiniquim”, o enredo surpreenderia com o Alegria, alegoria seu último carro alegórico, que apresentaria um “plot twister” digno de roteiro hollywoodiano. O Alegoria no universo da escola de samba é o nome carro “O palácio do lixo – Tupilurb” traria o lixo usado para os carros-cenários que compõem a da cidade indígena com os escombros do Cristo linguagem e a estética dos desfiles. Enquanto na Redentor, do Elevador Lacerda e do Monumento teoria da arte pode se referir também a um con- às Bandeiras, em São Paulo, numa referência à ceito, um tipo de figura de linguagem, onde se diz cena clássica da versão original de “Planeta dos uma coisa querendo dizer outra, sendo discutida Macacos” (1968) quando ao encontrarem os des- mais amplamente na modernidade por Walter troços da Estátua da Liberdade numa praia, os Benjamin. A relação entre alegoria e Tropicália já protagonistas percebem que não estão em outro foi muito abordada, sendo apontada inicialmente planeta, como imaginavam, mas sim na própria num dos principais críticos do movimento, Ro- Terra do futuro. Os vestígios, o lixo e os mendi- berto Schwarz. Mas seriam os estudos de Celso gos desse carro alegórico têm o mesmo sentido. Favaretto que viraram canônicos sobre o assun-

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Ano 2 | n. 3 | novembro 2017 REVISTA DA GRADUAÇÃO DA ESCOLA DE BELAS ARTES - UFRJ to. A partir deles, que analisaremos a alegoria na Em Tupinicópolis, a quantidade de informação obra de Fernando Pinto. Sobretudo nos seus dois de algumas alegorias, como o Shopping Boitatá, desfiles mais reconhecidos, “Ziriguidum 2001” advém dessa construção, mas também marca (1985) e “Tupinicópolis” (1987), em que se torna- uma referência do espectador como um flâneur ria muito forte o conceito alegórico na concepção que ao ser atravessado pela Tupinicópolis é atin- da linguagem do artista carnavalesco. gido por milhões de informações. Algo muito próximo da música “Alegria, Alegria”, de Caetano “Ziriguidum 2001 – Um Carnaval nas Estrelas” Veloso, que retrata exatamente uma figura que foi realizado pela Mocidade Independente de Pa- flana pela cidade capitalista sendo bombardeado dre Miguel, em 1985, e propunha literalmente de informações simultâneas. Tanto a experiência um desfile de escolas de samba no espaço sideral. percebida na música, quanto no desfile têm um Segundo a definição do próprio artista, “nos anos quê alucinatório, o que seria uma outra caracte- 2000, cada planeta do sistema solar vai incorpo- rística da concepção de alegoria. rar o espírito da festa brasileira e estará organi- zado o carnaval cósmico”9. Resumindo o enre- A experiência de Ziriguidum e Tupinicópolis car- do, os noves planetas se juntariam a nove festas regam algo de transcendental e onírico, justapor populares brasileiras: Corsos dos mares da Lua, conceitos tão distantes no imaginário comum. Pirilampo de Mercúrio, Rancho da primavera de “Parece que estou sonhando”, dizia o próprio Vênus, Caboclinhos Marcianos, Boi-robô Satur- samba-enredo de 1987. São imagens fragmenta- no, Frevo Uraniano, Afoxé dos Filhos de Plutão, das e com associações externas, como no “pro- Júpiter e os fandangos siderais e Reisados de Ne- cesso de deslocamento do sonho, onde o ouvinte tuno. é remetido a algo remoto, advindo disso a estra- As construções alegóricas de 1985 e 1987 são nheza das imagens tropicalistas”11. Os desfiles muito aproximadas em vários sentidos, como por tratam, como as canções tropicalistas, de um de- exemplo, a noção de um “carnaval nas estrelas” senrolar de imagens, nascidas da justaposição e e uma “cidade de índio” que trazem consigo uma desejos coisificados, montando uma cena fantas- aparente simplicidade, sendo compreendidas fa- magórica12. cilmente por qualquer espectador, mas dotadas de várias camadas de significações mais densas, Nos quesitos estéticos, Ziriguidum também mar- deixando no ar uma profundidade a ser revelada. caria uma revolução na linguagem das escolas Esse efeito contraditório trata da ambiguidade de samba ao apresentar o carro alegórico “Nave sempre ressaltada pelo momento tropicalista e já Mãe”, que seria o primeiro carro acoplado da explicitada por Oswald de Andrade, em seu ma- história13, marcando uma expansão do tamanho nifesto antropófago, como a floresta e a escola, das alegorias e seu gigantismo, pois, com a nova ou o arcaico e o moderno. A cidade urbana de estrutura do Sambódromo, era necessário o re- indígenas traria essa “justaposição entre o ‘uni- pensar as formas dos carros alegóricos. Em seus verso tropical’ e o universo urbano-industrial” desfiles de 85 e 87, isso ficou claro. Suas alego- (DUNN, 2007, p.118). Onde o procedimento con- rias ganhavam novos formatos e dimensões. Nas sistiria em submeter os arcaísmos culturais à luz formas, Fernando fugia do estilo “igreja barroca branca do ultramoderno, apresentando o resul- amontoada de arabescos” e das formas naturais. tado como uma alegoria do Brasil10. As alegorias de Fernando são artificiais, abstra-

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Ano 2 | n. 3 | novembro 2017 REVISTA DA GRADUAÇÃO DA ESCOLA DE BELAS ARTES - UFRJ tas, retas, o excesso de informações não provém Sou a Mocidade, sou independente , vou a do todo da forma, mas do acúmulo de muitas qualquer lugar partes individuais. Carros como a Discoteca Saci, o Cassino Eldorado e a Nave Mãe chamam a aten- Na coluna que assinou como convidado na re- ção por seus formatos vazados e arrojados, valo- vista Veja14, o carnavalesco assumiu que enten- rizando muito mais os destaques e composições. deria o carnaval como uma reunião de muitas Esse arranjo mais dinâmico viria, provavelmen- linguagens artísticas, de maneira que ele se con- te, de uma visão futurista que se mostraria com figura como o maior espetáculo teatral-artístico uma espécie de fascínio para Fernando Pinto, e do mundo. Esta visão, explorando a festa muito que se apresentaria mais fortemente na segunda além de seu lado puramente cultural, marcaria fase de sua carreira, de 1984 a 1988. em Fernando sua participação num processo ar- tístico de seu tempo. Com vivência de teatro, Fer- Na coluna em que assinou para a revista Veja em nando Pinto articulou uma linguagem baseada fevereiro de 1985, ele declarou várias referências no palco, tendo atuado em diversas montagens entre a literatura e o cinema como Arthur Clarke, de peças, como diretor, ator, coreógrafo, cenógra- Isaac Asimov, Stanley Kubrick, os filmes da sé- fo e figurinista. rie Star Wars, Barbarela e Contatos Imediatos de Terceiro Grau. Na produção do tropicalismo A aceitação do trabalho do diretor no carnaval musical, a ideia de um futuro no sentido prático como arte seria marcada a partir da apresentação e imaginário seria presente sobretudo na obra de de 1983. Se no resultado oficial, a Mocidade Inde- Gilberto Gil, em canções como a icônica “Expres- pendente chegaria apenas em sexto lugar, a má so 2222”, “Dois Mil e Um”, “Cultura e Civilização” posição não seria tão destacada pela crítica car- e “Cérebro Eletrônico”, que buscariam lidar com navalesca, mas revoltaria, surpreendentemente, o futuro no contraste com o presente. a classe artística carioca. A repercussão renderia uma nota na coluna social do Jornal do Brasil, as- Em Tupinicópolis, além do carro alegórico da sinada por Zózimo. No quadro intitulado “Obra Tupilurb, que marcaria o tempo futuro onde a de artista”, o jornalista comentaria a polêmica do narrativa se passa, outro carro traria esse ima- papel de liderança tomado por Frederico Morais, ginário da ficção científica, o elemento chamado falando do desejo de articular eventos com a obra “Tupi Cacique”. Plasticamente, “Tupi Cacique” de Fernando. O desejo de fazer uma exposição seria um rosto indígena dourado atrás de numa seria concretizado logo após o carnaval, quando tela de computador e um teclado. A explicação as alegorias e adereços do desfile de 1983 ganha- da narração da transmissão da rede Globo o de- riam de fato status de objetos de arte ao serem finiria como “soberania e sabedoria de Tupinicó- expostos na Galeria César Arché em Ipanema, polis, o programador do grande cérebro eletrô- durante o mês de março daquele ano. A exibição nico tupiniquim, a “Tupinformática.” De modo das obras marcaria de maneira bem clara a cir- que com essa descrição, o Tupi Cacique, não se culação de Fernando Pinto pelo universo da arte configuraria como uma liderança real, mas sim institucionalizada do seu tempo, não só no tea- uma espécie de sistema central e operacional, o tro, mas nas artes visuais em geral. próprio “Cérebro Eletrônico” de Gil.

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Além desta exibição, outro marco da articulação NOTAS de Fernando Pinto com o mundo da arte seria sua atuação na decoração dos bailes do Pão de 1 Como definiria o próprio carnavalesco no texto Açúcar. No mesmo lugar, em 1984, seria criado da sinopse descrevendo o enredo em 1987. no lugar uma galeria de arte, na qual artistas 2 Segundo Coelho (2010), no contexto posterior exporiam obras especialmente pensadas para o à eclosão do movimento tropicalista em 1967, local. Descrita pelo Jornal do Brasil, o título da configurar-se-ia uma geração de artistas que op- matéria seria simbólico: “Caretas não entrem; tariam pela “marginalidade” na luta contra um Arte de vanguarda no Pão de Açúcar” e explicava sistema controlado pelo governo ditatorial. No que a iniciativa buscava uma aproximação de um entendimento proposto, haveria uma diferença público jovem, com obras de site-specific e que conceitual entre a Tropicália e o tropicalismo mu- propusessem obrigatoriamente uma participa- sical, de modo que o primeiro seria uma reunião ção com o público. de questões e modos de pensar percebido em di- ferentes obras do período e o segundo um movi- Se a cultura marginal buscava ampliar seu al- mento de fato, organizado no âmbito musical. cance com o público, numa relação direta e sem 3 Solar da Fossa seria uma espécie de pensão lo- mediação, como resposta à tentativa de controle calizada em Botafogo que abrigaria uma série de do governo militar, Fernando Pinto encontraria artistas e intelectuais nos anos 60 e 70. Por lá sua atuação e seu veículo nas escolas de samba, passariam nomes como Caetano Veloso, Gilber- dialogando diretamente com as massas, configu- to Gil, , entre outros. O Globo, rando-se como um artista afinado a sua época. Já 18.02.1973. para o carnaval, foi, paradoxalmente, o carnava- 4 Trecho da canção “Marginália II”, de Gilberto lesco mais ligado ao seu tempo e à sua geração Gil e Torquato Neto. de artistas visuais, e também mais à frente dele, 5 Não entendemos a Tropicália como um movi- contribuindo para a espetacularização da festa, mento unificado e organizado com proposições numa via outra além das “artes eruditas” do Mu- claras, mas sim uma maneira de articular uma nicipal. Fernando Pinto foi um dos carnavalescos série de problemáticas que surgiram em conver- com a maior circulação no sistema artístico, não gência nos mais diferentes trabalhos de uma mes- ligado às artes tradicionais e estabelecidas, mas ma época e seguiram sendo como uma espécie de ao cenário marginal que marcou a formação cul- “conjunto de teorias” constantemente atualizado tural carioca, atualizando as questões lançadas sobre o Brasil. (COELHO, 2010) pela Tropicália. 6 Partindo da noção desse trabalho de compreen- der os desfiles como um microcosmos da História da Arte brasileira, ao mesmo tempo pertencente Leonardo Antan é graduado em História da Arte a ela, mas autônomo, com suas próprias lingua- pela UERJ. gens e tensões. 7 Favaretto (2007) denomina isso “procedimento NOTAS cafona”. 8 “Pindorama” como lugar místico apareceria no manifesto antropófago de Oswald de Andrade no 1 Como definiria o próprio carnavalesco no texto famoso “matriarcado de Pindorama” e na música da sinopse descrevendo o enredo em 1987.

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“Geléia Geral”, de Gil e Torquato Neto: “Pindora- FERREIRA, Felipe. Escritos Carnavalescos. Rio de ma, país do futuro”. Janeiro: Aeroplano, 2012. 9 O Globo. 06-02-1985. FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. In: 10 FAVARETO, 2007, p.113 ______. Ditos e escritos III: Estética: literatura e 11 Idem, p.126. pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense, 12 Idem, p.115. 2011. 13 Acoplado é quando vários chassis e carros di- GUIMARÃES, Helenise Monteiro. Carnavalesco, o ferentes são unidos formando um só. profissional que “faz escola” no carnaval carioca. 14 Edição de número 857, publicada em 6-2-1985. Dissertação de mestrado apresentada à Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Ja- neiro. referências RODRIGUES, Jorge Caê. Anos fatais: design, mú- AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boi- sica e tropicalismo. Rio de Janeiro: 2AB, 2007. tempo, 2007. Novas ideias, 2007.

COELHO, Frederico. Eu, brasileiro, confesso mi- SCOVINO, Felipe. Táticas, posições e invenções: nha culpa e meu pecado: cultura marginal no dispositivos para um circuito da ironia na arte Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: contemporânea brasileira. Tese de doutorado Civilização Brasileira, 2010. apresentada à Escola de Belas Artes da Universi- dade Federal do Rio de Janeiro, 2007. FAVARETTO, Celso. Tropicália, Alegoria, Alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007.

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