FERNANDO PINTO MARAVILHA: UM ZIRIGUIDUM TROPICALISTA Leonardo Antan

FERNANDO PINTO MARAVILHA: UM ZIRIGUIDUM TROPICALISTA Leonardo Antan

REVISTA DA GRADUAÇÃO DA ESCOLA DE BELAS ARTES - UFRJ ARTIGO FERNANDO PINTO MARAVILHA: UM ZIRIGUIDUM TROPICALISTA Leonardo Antan A pesquisa busca olhar a produção dos desfiles das escolas de samba a partir do olhar da História da Arte, entendendo o carnavalesco como autor e artista. E o campo dos desfiles como pertencente ao da arte não institucionalizada. A partir dessa noção, a pesquisa analisa a trajetória do Fernando Pinto que relacionou com as ideias e conceitos do movimento tropicalista. Retrabalhando em sua obra os símbolos nacionais a partir do deboche, da crítica e da alegoria. Dialogando com uma série de artistas da arte brasileira da segunda metade do século XX. Palavras-chave: Escolas de samba, artista, carnavalesco, tropicalismo, arte brasileira. Um índio descerá de uma estrela colorida, de discussões surgidas quase vinte anos antes brilhante, de uma estrela que virá numa pelo momento tropicalista, articulando também velocidade estonteante e pousará no cora- questões-chave em sua produção, tais como pen- ção do hemisfério sul. (Um índio - Caetano sar o Brasil contemporâneo rearticulando os sig- Veloso) nos tropicais através do uso alegórico do deboche e da ironia. De modo que, em sua trajetória de Os patins deslizam sobre o chão quadriculado de dezesseis anos e quatorze desfiles assinados no branco e preto, conduzidos por estranhos índios grupo especial carioca, de 1971 a 1988, o artista punks. É calor, verão, manhã de sol forte no Rio pernambucano atualizaria questões tropicalistas de Janeiro, na Marquês de Sapucaí. É a Discoteca que foram repensadas e ressignificadas pelos in- Saci, onde índios também tocam heavy metal. É telectuais da década de 1970, no que se conven- a grande casa noturna de Tupinicópolis, a cidade cionou chamar de “cultura marginal”2. indígena pós-marajoara, retrô-futurista, símbo- lo do Tupi Power, onde, seus habitantes fazem Além das escolas de samba, Fernando Pinto atu- compras no Shopping Boitatá e Supermercado aria como diretor teatral, cenógrafo, figurinista e Casas da Onça, se hospedam no Palace Hotel Tu- coreógrafo. Ao chegar de Pernambuco em 1969, piniquim e vão à Farmácia do Raoni. Para se di- instalar-se-ia no icônico Solar da Fossa3 e duran- vertir, opções não faltam como o Cine Marajoara, te os anos 1970, além do cenário teatral, seria que tem o épico Iracema II em cartaz, o Cassi- responsável pela estética do grupo As Frenéticas, no Eldorado e até o Bordel da Uiara, comprando fazendo parte do coletivo Dzi Croquettes e assi- com a moeda guarani e sendo comandados pela nando a direção de shows e cenários de outros Tupioca dos Poderes, onde o Tupi-Cacique dá as artistas como Elba Ramalho, Simone, Chico Any- ordens. sio e Ney Matogrosso. Apesar do estranhamento inicial, com a cons- Em entrevista, o artista assumiria sua herança trução de sua “lendária cidade índia do terceiro artística: milênio”1, Fernando Pinto atualizaria uma série 139 Ano 2 | n. 3 | novembro 2017 REVISTA DA GRADUAÇÃO DA ESCOLA DE BELAS ARTES - UFRJ De certa forma, sou filho estético da Tro- via buscando encarar as questões que formavam picália, aquele movimento maldito mara- a cultura brasileira dos anos 1960, num desejo de vilhoso. Tropicália, para mim, é a curtição universalizar o Brasil, colocando-o na rota inter- em cima de tudo e de todos. Tropicália é nacional. o verdadeiro Brasil, o subterrâneo; o que todo mundo faz e ninguém mostra. (O Nas artes plásticas, Hélio Oiticica. Na música, o GLOBO, 15/02/1980) grupo liderado por Gil e Caetano. No teatro, Zé Celso Martinez. No cinema, Glauber Rocha. No Em carnavais assinados em duas fases diferentes, carnaval, Fernando Pinto atualizaria essas ques- a primeira delas no Império Serrano e a segun- tões anos depois, em 1980, em seu desfile “Tropi- da na Mocidade Independente de Padre Miguel, cália Maravilha”, para a Mocidade Independente Pinto lidaria com sintomas e processualidades de Padre Miguel, no qual articularia uma série de levantadas pelo momento tropicalista e retraba- ícones da Tropicália e da cultura brasileira, como lhados pelos artistas das gerações seguintes, nos ele bem define, numa espécie de concepção pró- anos 1970 e 1980, das quais fez parte. No presen- pria da História do Brasil: te trabalho serão discutidos três desses sintomas: as noções de brasilidade, os signos tropicais e a Se o enredo é “Tropicália Maravilha” é por linguagem alegórica. que eu sou um pouco filho da Tropicália. Quis fazer um enredo que brincasse com a Encarar o Brasil de frente natureza, a dança, a música do Brasil. Que brincasse com o Brasil mesmo, enquanto Tropicália é a primeiríssima tentativa país, mas não de uma forma ufanista e sim consciente, objetiva, de impor uma imagem a partir de um visão crítica. A tropicália é obviamente brasileira ao contexto atual da exatamente isso: curtir muito, às vezes até vanguarda e das manifestações em geral chegando ao deboche. (Folha de São Paulo, da arte nacional. (OITICICA, 1986, p.106) 08-02-80) Assim definiu Hélio Oiticica o penetrável “Tropi- No discurso do carnavalesco sobre o enredo fica- cália” que sintomatizaria as questões do momen- ria claro um caráter irônico, beirando ao debo- to intitulado tropicalista a partir de seu trabalho. che, uma leitura anti-histórica de uma manifes- Esta seria a primeira de uma série de obras que tação artístico-cultural que se pretendia “séria”. trariam questões semelhantes ao buscar repen- A Tropicália, uma forma de pensar o Brasil, seria sar a cultura brasileira a partir de 1967, evocando evocada por ele como uma espécie de comentário símbolos da nacionalidade estabelecida pelo mo- muito pessoal ao “movimento”5 numa tentativa dernismo de modo irônico e festivo, ao mesmo de atualizar o assunto para o período político-so- passo em que afirmavam que aqui era o “fim do cial de então à formação brasileira, evidenciando mundo”4. nossos principais símbolos, tais como as obras entendidas como tropicalistas. um processo que Contrapondo-se à dicotomia entre alienados Hélio Oiticica definiria como reconhecer que a e engajados, às canções de protesto e à Jovem formação brasileira “é de uma falta de caráter Guarda, a Tropicália surgiria como uma terceira incrível: diarreica; quem quiser construir (nin- 140 Ano 2 | n. 3 | novembro 2017 REVISTA DA GRADUAÇÃO DA ESCOLA DE BELAS ARTES - UFRJ guém mais do que eu, “ama o Brasil”!) tem que de Rubens Gerchman e os desfiles de Fernando ver isso e dissecar as tripas dessa diarreia – mer- Pinto, revisitados e reprocessados em diversas gulhar na merda. (OITICICA, 1973, p. 151) camadas na trajetória do carnavalesco pernam- bucano. Primeiro, no aspecto mais óbvio, das fru- A narrativa proposta em setores ou quadros se tas e faunas representadas abundantemente em articularia com a própria alegoria de um Brasil desfiles diversos, onde se destaca mais uma vez que se queria e não queria ser, segundo a concep- “Tropicália Maravilha”, com setores dedicados a ção de seu criador. Se tratando de uma constru- estes signos representados em carros alegóricos ção fantasmagórica de um Brasil que se apropria e uma visão debochada da flora brasileira a partir de uma dita história oficial, mas mergulha em do título “O cravo brigou com a rosa por causa sua merda. É um processo muito parecido com da margarida gostosa”. Fernando Pinto explica- a encenação de “O Rei da Vela”, do Teatro Oficina ria que o setor marcaria uma ode à margarida em 1967, definida como “uma farsa fantasmagó- que devia ser valorizada em seu aspecto popular, rica que satirizava a pompa oficial, ridicularizava em relação à monarquia da rosa. Essa celebração abertamente o ‘bom gosto’ e se deleitava com o irônica e divertida de uma imagem tropical esva- grotesco” (DUNN, 2009) Esse jogo complexo en- ziada poderia ser comparada às imagens colori- tre o cafona, o kitsch e o grotesco é ainda mais das e alegóricas de Glauco Rodrigues e no forte tenso se analisarmos o momento histórico dos subtexto das bananas de Luiz Henrique Amaral. desfiles das escolas de samba6 em que Fernando Além da fauna e da flora, outro signo de brasi- Pinto atuou. Assim, como Zé Celso e Caetano Ve- lidade resgatado do ostracismo pelo movimento loso, Fernando Pinto trazia o exagero à tona no- tropicalista foi a figura exótica de Carmen Miran- vamente7. Era uma referência ao teatro de revis- da. A cantora luso-brasileira seria o enredo do se- ta, estética que contribuiu para a formação num gundo carnaval da trajetória de Fernando Pinto, primeiro momento, e a partir da chamada “re- em 1972. O desfile “Alô, alô, taí Carmen Miranda”, volução salgueirense” foi colocada de escanteio. apresentado pelo Império Serrano, é provavel- mente o primeiro a abordar um ícone da cultura Relíquias do Brasil de massa, conhecida no âmbito popular. Ao tentar “impor uma imagem obviamente brasi- No depoimento para O Globo, de 1973, escrito leira”, Hélio Oiticica lançaria mão dos mais famo- diretamente pelo carnavalesco, ele fala sobre o sos clichês da identidade nacional forjados pelo processo de construção do enredo em que op- modernismo, através da arte institucionalizada, taria por uma construção não linear: “Sou uma por meio da música, do teatro e do cinema; pro- pessoa muito ligado ao teatro e vejo o carnaval cesso no qual as escolas de samba teriam papel como o maior espetáculo que a gente tem”. Várias fundamental, elevadas ao patamar de símbolos reportagens nos jornais O Globo e Jornal do Bra- da nacionalidade. sil, destacariam as referências do cinema e teatro na criação da apresentação. Essa visão do teatro Todos os ícones de tropicalidade como condição de revista e também da chanchada seria uma lin- de brasilidade, negados até então, emergiriam do guagem adotada por Fernando no sentido de va- subterrâneo destas áreas com a música de Cae- lorização do popularesco, mal visto no carnaval tano Veloso, Tom Zé e Gilberto Gil, a visualidade da época.

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