Sociedade e Cultura ISSN: 1415-8566 [email protected] Universidade Federal de Goiás Brasil

Magno E Silva Barbosa, Attila O futebol e a sociedade global: uma reavaliação da identidade sociocultural brasileira Sociedade e Cultura, vol. 10, núm. 2, julho-dezembro, 2007, pp. 173-186 Universidade Federal de Goiás Goiania, Brasil

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ATTILA MAGNO E SILVA BARBOSA*

Resumo: O presente trabalho é uma reflexão socioantropológica sobre as mudanças ocorridas no modo de perceber o futebol como um exemplo da identidade cultural brasileira. O objetivo é demonstrar como tais mudanças são percebidas não como uma ruptura com alguns elementos constitutivos da tradição cultural brasileira, mas, sim, como uma reavaliação funcional de categoriais feita a partir da intensificação da lógica mercantil que passou a dominar o futebol mundial no período compreendido entre as décadas de 1970 e 1990. Palavras-chave: futebol; globalização; reavaliação funcional de categorias.

Introdução relacional e hierárquica passa a ser intensa- mente vazada pela lógica impessoal e igualitária. O futebol consolidou-se como um dos meios Todavia, apesar de essa imposição ser um mais importantes de promoção da auto-imagem fenômeno fragilizador do Estado-nação, as e de integração social do povo brasileiro. Entre identidades culturais locais, regionais e até outras coisas, porque permitiu a superação do mesmo nacionais parecem ser reafirmadas, caráter elitista inicial de sua prática nas primeiras contudo, sem implicar meras negações do que décadas do século XX, quando ocorreu a inser- lhes sejam exógeno. ção de jogadores negros e mestiços; fato este Nesse sentido, os valores culturais conhe- que possibilitou a comunicação de elementos cidos como jeitinho, malandragem e você culturais, como o jeitinho, a malandragem e o sabe com quem está falando?1 – que são mulatismo, percebidos e celebrados no estilo de expressões da aversão brasileira à ordem jogo criativo e inventivo praticado pelos grandes impessoal das leis – passam a estar cada vez jogadores brasileiros. Outro elemento incorpo- mais em evidência, não porque sua incidência rado foi o personalismo patrimonialista – herança esteja se intensificando, mas sim por terem sido de um patronato vinculado ao viés relacional e colocados em xeque pelas exigências do ideário hierárquico da sociedade brasileira – presente individualista e igualitário, que no Brasil tem no comportamento de alguns dirigentes. No historicamente dificuldades de se impor como entanto, à medida que o Brasil vai se submetendo eixo norteador das ações sociais. à nova ordem econômica mundial, tais carac- Este artigo está dividido em quatro seções: terísticas começam a ser ostensivamente criti- a primeira objetiva analisar as transformações cadas e repudiadas por aqueles que defendem ocorridas no futebol mundial e brasileiro nas três a lógica da modernização capitalista mundial. últimas décadas do século XX; demonstraremos, A globalização impõe de forma sistemática uma ordem socioeconômica em que a lógica 1. Aqui entendidos a partir da abstração e conseguinte trans- formação em categorias sociológicas, realizadas pela inter- * Doutorando em Ciências Sociais na Universidade Federal pretação de Roberto DaMatta (1990), em seus estudos so- de São Carlos bre a realidade sociocultural brasileira.

173 BARBOSA, ATTILA MAGNO E SILVA. O futebol e a sociedade global: uma reavaliação da identidade... na segunda, como o futebol afigura-se como um O futebol brasileiro na década de 1990 viu- elemento de certa percepção de brasilidade e se obrigado a se sujeitar de modo definitivo à como este é submetido ao processo de globa- lógica do mercado global, que já vinha se dese- lização; a terceira consiste em uma interpretação nhando no continente europeu desde a década das mudanças ocorridas na percepção dos de 1970, com a constatação de que o modelo significados que o futebol tem no Brasil, procu- inglês de gestão baseado na fórmula dirigentes rando entendê-las mais como um processo de amadores e jogadores profissionais – que reavaliação do que de eliminação de categorias inspirou a organização do futebol na maior parte simbólicas; por fim, se tecerão as considerações do mundo – entrou em descompasso com as finais. exigências estruturais impostas pela mercan- tilização crescente do futebol (Helal, 1997; Proni, O futebol no mundo globalizado 2000). Antes disto, a finalidade proeminente não era gerar lucro para particulares, mas sim A globalização como fenômeno sociológico oferecer aos seus apreciadores o acesso ao seu tem o poder de desterritorializar signos, espetáculo favorito e, como conseqüência, pro- significados e manifestações culturais caracte- duzir qualquer outra finalidade, como eventuais rísticos de um grupo social ou de uma sociedade ganhos políticos que os dirigentes pudessem ter específica e de convertê-los em elementos com as conquistas dos clubes. Segundo Helal, identificáveis em outros contextos sociais. A no Brasil, esta última situação ainda ocorre, pois, ocorrência desse fenômeno depende da criação assim como acontece em outras esferas da vida de uma linguagem cultural mundializada que seja social, a oposição entre o tradicional e o moderno a sua expressão simbólica. O objetivo é criar se mantém como elemento configurador. um território cultural onde símbolos incorporados Até a década de 1970, o caráter comercial ou não em bens materiais possam ser consu- do futebol profissional concentrava-se na sus- midos. Uma cultura mundializada só se faz tentação do sistema federativo de clubes. A sentida quando consegue enraizar em nossos desigualdade de potencial mercantil entre times hábitos mais prosaicos aquilo que ela dester- pequenos e grandes estabelecia uma relação de ritorializou. Ela necessita localizar-se em algum interdependência, na qual os primeiros revelavam lugar e manifestar-se de alguma forma. Desse jogadores para os segundos e, em troca, rece- modo, o mundo pode penetrar o nosso cotidiano biam uma compensação financeira. O futebol e, conseqüentemente, alterar a nossa compre- não era um tipo de negócio, como o que temos ensão de proximidade e distância (Ortiz, 1997). na atualidade, isto porque não havia por parte No futebol, tal situação fica evidenciada dos clubes planejamento de marketing, assim quando os meios de comunicação veiculam como qualquer outro esforço estratégico para informações sobre os principais campeonatos aumentar o tamanho da torcida. O aumento ou europeus, nos quais os melhores jogadores diminuição das receitas vinculava-se ao desem- brasileiros atuam. Dessa forma, a audiência penho da equipe na temporada. O futebol era brasileira converte-se em mercado consumidor uma atividade sem fins lucrativos, e os clubes potencial dos produtos vinculados à imagem dos dependiam da colaboração dos “sócios” para clubes europeus. A desterritorialização inten- se manter. Não havia a figura do capitalista sifica sua incidência sobre o futebol brasileiro a empreendedor. cada momento em que os jogadores mais talen- Mas, no decorrer dos anos 80, a lógica do tosos saem do país. A maior implicação dessa “futebol-empresa” se espraiou e fez aumentar situação é que tudo o que os jogadores costu- a mercantilização dos principais campeonatos mavam representar em termos de identificação europeus, que passaram a se estruturar em com a imagem do clube2 passa a deixar de ter o virtude da demanda por transmissões televi- poder referencial de outros tempos. sionadas e pelo surgimento de novas opções de 2. Como foram os casos de Pelé com o Santos, Garrincha e marketing esportivo. A globalização da econo- Nilton Santos com o Botafogo, com o Flamengo e Roberto Dinamite e Vasco da Gama, só para citarmos alguns mia, aliada a um ambiente político favorável para exemplos. a transposição das fronteiras nacionais, conduziu

174 SOCIEDADE E CULTURA, V. 10, N. 2, JUL./DEZ. 2007, P. 173-186 o futebol a uma permeabilização pela lógica de Munique, da Alemanha, e Ajax, da Holanda. valorização do capital (Proni, 2000). Esses times tornaram-se expressões nítidas da No entanto, as condições materiais que modernidade-mundo, como demonstra a viabilizaram definitivamente a transformação do crescente incorporação de jogadores estrangei- futebol em elemento constitutivo de uma iden- ros no Quadro 1. tidade global só se consolidaram na década de Um exemplo paradigmático dessa situação 1990, com a unificação da Europa e a criação ocorreu na 27a rodada da temporada 2004/2005 de uma legislação trabalhista que não mais da Liga Inglesa, quando o Arsenal venceu o distingue os trabalhadores por suas nacio- modesto time do Crystal Palace em Londres por nalidades dentro da Comunidade Européia. O 5 a 1, resultado normal devido à discrepância advento da Lei Bosman3 foi produto desse de poder econômico entre os dois times. Porém, contexto, quando passaram a ser considerados o que nos interessa é que nesse jogo foi possível estrangeiros nos clubes da Comunidade apenas testemunhar um momento de plenitude da os jogadores de origem não-comunitária. globalização. O time do Arsenal atuou sem A conseqüência visível dessa situação é a nenhum jogador de origem britânica – em campo transformação de alguns clubes europeus em estiveram presentes seis jogadores franceses, verdadeiras entidades globais, devido à quanti- três espanhóis, dois holandeses, um camaronês, dade excessiva de jogadores das mais diversas um marfinense, um brasileiro e um suíço. nacionalidades. Os maiores exemplos podem ser Com o processo de globalização, os mer- constatados nos elencos de clubes como Real cados menos sólidos ficam à mercê da lógica Madri e Barcelona, da Espanha; Arsenal, Man- mercantil, que expande o seu domínio ancorada chester United e Chelsea, da Inglaterra; Juven- em marcos regulatórios que a favorecem. No tus, Milan e Inter de Milão, da Itália; Bayern de Brasil, devido às crises econômicas ocorridas

Quadro 1 – Elencos das grandes equipes européias (1995 / 2000 / 2005) 10995 2500 200 Clube Nsacionais Esstrangeiro Nsacionai Esstrangeiro Nsacionai Estrangeiro Manchester 2222 2212141 United C2helsea 260132961 A2rsenal 233171562 R4eal Madri 2651011121 B8arcelona 163131931 J1uventus 2411111141 M2ilan 245181941 I3nter de Milão 251151491 Bayern de 1758 1412121 Munique A9jax 1631213161 Fonte: Os números referentes ao ano de 2005 foram obtidos nos sites oficiais dos referidos clubes. Os números de 1995 e 2000 foram obtidos nos sites www.zanziball.it e www.fussballdaten.de.

3. Em 15 de novembro de 1995, o Tribunal Europeu de outra equipe da Comunidade sem que fosse necessário pagar Justiça ordenou que o desconhecido médio Jean-Marc Bosman qualquer indenização ao clube de sua origem. Outro desdo- pudesse transferir-se do clube belga RFC Liège para a equipa bramento importante foi que todo jogador pertencente à francesa USL Dunkerque. Essa decisão estabeleceu que, ter- Comunidade Européia poderia atuar em qualquer país mem- minado o contrato de um jogador com um time da Comuni- bro da CE sem ser considerado estrangeiro. dade Européia, o atleta estaria livre para atuar em qualquer

175 BARBOSA, ATTILA MAGNO E SILVA. O futebol e a sociedade global: uma reavaliação da identidade... na década de 1980 e à posição ocupada na na década de 1980. Os campeonatos tornaram- economia mundial, os clubes vêm se tornando se cada vez mais deficitários. Grandes clubes meros fornecedores de jogadores. O fim da contraíram dívidas e mais dívidas. Nesse cenário, figura jurídica do “passe”, com o advento da a venda de jogadores tornou-se uma fonte de “Lei Pelé” (Lei 9.615/98), por um lado fortaleceu resolução dos problemas financeiros. Porém, nas a posição dos jogadores de talento reconhecido, décadas de 1970 e 1980, o que se negociava por assegurar-lhes que o vínculo com o clube eram os jogadores já consagrados.4 Fenômeno passa a ser regido pelo contrato de trabalho. bem diferente do êxodo iniciado no final dos anos Por outro, porém, fragilizou a posição da maioria de 1980, no qual os jogadores passariam a ser dos clubes brasileiros que investiam na revelação negociados cada vez mais jovens.5 O aumento de jogadores. O primeiro contrato profissional do fluxo de saída dos jogadores brasileiros para de um atleta não pode mais exceder dois anos o exterior a partir do ano de 19736 não se deu de duração, tendo o clube direito à indenização de forma contínua; até o ano de 1988, a saída pela transferência do jogador apenas na vigência era alternada em anos de maior e de menor fluxo. do contrato. Isso quer dizer que, mesmo quando Isto porque o êxodo dos jogadores estava consideramos a existência de uma administração vinculado diretamente à intensidade das crises profissionalizada e, em alguns casos, de um financeiras vividas pelos clubes, que, por sua suporte financeiro de investidores, a negociação vez, estavam ligadas às crises econômicas de jogadores é inerente à lógica que hoje domina vividas pelo país. Vejamos os dados sobre o o futebol. êxodo de jogadores entre os anos 1973 e 2006 Ora, o êxodo de jogadores não é um fenô- (Quadro 2). meno recente no futebol brasileiro, pois nas Diante desse quadro, os torcedores brasi- décadas de 1920 e 1930 já ocorria. Naquele leiros cada vez menos têm a oportunidade de contexto, devido à falta de profissionalização dos ver em seu time jogadores que atuem na seleção jogadores, poucos mercados eram considera- brasileira. A criação de vínculos identitários entre velmente atraentes, como o italiano, já profissio- os torcedores e os jogadores diminui à medida nalizado nos anos de 1920, o argentino, em 1931, que o tempo de permanência dos jogadores nos e o uruguaio, em 1932. O êxodo de jogadores clubes torna-se cada vez menor. O Quadro 3 se intensificou após a Copa do Mundo realizada diz respeito às convocações da seleção brasileira no Uruguai em 1930. No ano de 1931, houve a a partir da Copa de 1982, primeira em que saída de 39 dos melhores jogadores brasileiros, estiveram jogadores que atuavam no exterior,7 episódio que ficou conhecido como “invasão e por isso considerada aqui como o marco italiana”, haja vista a “presença constante de simbólico da deflagração desse processo. empresários italianos para contratar nossos O atual estágio do desenvolvimento capi- jogadores” (Caldas, 1990, p. 261). talista impõe a produção de uma identidade Assim, a profissionalização em 1933 do global baseada no consumo, pois, de outra forma, futebol do e de São Paulo, a incor- a ordem material que o caracteriza estaria poração do futebol na construção de uma identi- esvaziada de conteúdo simbólico. O objetivo do dade nacional pelo Estado-Novo e as conquistas (da Copa do Mundo) que se seguiram em 1958, 4. Falcão, transferido para a Roma, da Itália, aos 27 anos, em 1980; Zico, transferido para a Udinese, da Itália, aos 30 1962 e 1970 corresponderam à época de ouro anos, em 1983, e Sócrates, transferido para a Fiorentina, da do futebol brasileiro, na qual o êxodo de grandes Itália, aos 30 anos, em 1984. jogadores quase não existiu. Somente no início 5. Romário, transferido para o PSV da Holanda, aos 22 dos anos de 1970 tal migração voltou a ocorrer, anos, em 1988; Ronaldo, transferido, também para o PSV, aos 18 anos, em 1994; e Gaúcho, transferido porém, nesse momento, a necessidade de para o PSG, da França, aos 21 anos, em 2001. profissionalização da administração do futebol 6. Ano em que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) brasileiro foi maior, como já acontecia na passou a registrar essas ocorrências. Europa. 7. Os jogadores em questão foram Edinho, zagueiro que jogava na Udinese, e o meio-campista Falcão, que atuava na Todavia, o processo de profissionalização Roma, ambos na Itália. Até então, entre as Copas de 1930 seria lento. A crise organizacional se aprofundou e 1978, tal situação jamais tinha ocorrido.

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Quadro 2 – Êxodo de 1973 até 2006 Quadro 3 – Brasil nas Copas – Origem dos convocados, 1982 a 2006 Asno Nº de jogadore Times Times 11973 13 Copa Nacionais Estrangeiros 10974 16 10982 22 17975 5 10986 22 12976 5 10990 121 10977 8 11994 111 17978 8 193998 1 11979 5 23002 101 16980 7 230006 2 14981 15 Fonte: Confederação Brasileira de Futebol (CBF). 14982 15 12983 8 capitalismo globalizado, portanto, não é entender singularidades culturais, mas sim convertê-las 11984 7 em mercadorias. A cultura do capitalismo, pela 14985 6 sua exigência de racionalização formal e 16986 9 pragmática, define o mundo em termos de fins 19987 19 e meios objetivos e imediatos. Dessa forma, ela 17988 22 seculariza, instrumentaliza e desencanta tudo que encontra pela frente (Ianni, 1992). 19989 12 A lógica do mercado, por intermédio da 14990 13 racionalização econômica do mundo, impõe seu 16991 13 domínio a tudo o que a ela não esteja adequada. 15992 20 Tudo que por ela é tocado parece esvair-se dos 12993 32 seus significados afetivos originais, não impli- cando perda de significados, mas sim uma 17994 20 reavaliação, que significa: adequação à nova 14995 25 ordem situacional. Como nos chama atenção 11996 38 Giulianotti, 13997 55 A virada financeira pós-moderna é refletida na 10998 55 mercantilização da “herança” cultural do 18999 65 futebol. Os torcedores hostis podem voltar à 21000 70 “autenticidade” do passado, mas ainda não podem evitar o consumo de uma simulação 26001 73 mercantilizada. As camisas de futebol “clássi- 29002 65 cas”, do período anterior à época em que os nomes dos patrocinadores foram estampados 28003 85 na frente, podem ser compradas pelo correio. 27004 85 Antigas partidas são recicladas em retrospec- 24005 80 tivas na TV por assinatura. Os museus do futebol introduzem as próximas gerações de 21006 85 torcedores na arquibancada no velho estilo, Fonte: Confederação Brasileira de Futebol (CBF). por meio de modelos simulados e interativos. (2002, p. 138)

Ou seja, os significados antigos tendem a ser reavaliados porque os acontecimentos produzidos pela globalização inserem perspec-

177 BARBOSA, ATTILA MAGNO E SILVA. O futebol e a sociedade global: uma reavaliação da identidade... tivas diferentes no modo como estes devem ser apenas mais uma das referências constitutivas vivenciados. do amálgama cultural que é a aldeia global.8 A ocorrência disto só é viabilizada quando os A globalização da informação e do conheci- elementos que caracterizam o estilo brasileiro mento no futebol pode obscurecer as origens são fundidos a outros estilos identificáveis no de estilos particulares de jogo, ao mesmo tempo contexto referencial de uma cultura mundia- permitindo a sua circulação. Todavia, lugares e lizada. sociedades diferentes geram percepções diver- sas dos estilos, táticas e estéticas do futebol. A globalização permite que clubes, nações e O futebol como construção simbólica da continentes tenham a experiência dessa dimen- “identidade nacional” são exótica do futebol, ou seja, o encontro com as abordagens e filosofias do outro. (Giulia- O dilema que a situação referida na seção notti, 2002, p. 179) anterior nos apresenta é que, se por um lado os jogadores brasileiros são cobiçados por suas Nesse sentido, o apelo que o estilo criativo habilidades, por outro, existe certo receio da do futebol brasileiro desperta no imaginário dos parte de alguns treinadores europeus de que a apreciadores desse esporte ao redor do mundo resistência à rotina de treinos e a indisciplina é recorrente, e, em tempos de sujeição do futebol tática também lhes sejam inerentes. Tal visão é à lógica do mercado, os objetivos dos que nele nitidamente estereotipada, basta lembrarmos que investem é tornar o espetáculo cada vez mais jogadores extremamente habilidosos e de talento interessante aos olhos da audiência, vista e reconhecido como Zico e Romário têm uma identificada como consumidores. No futebol origem humilde semelhante, vivenciada nos brasileiro, esse processo parece tornar-se viável subúrbios cariocas – o primeiro no bairro de por conta da beleza que lhe é atribuída mun- Quintino Bocaiúva e o segundo no bairro de Vila dialmente. Na opinião do romancista e ensaísta da Penha, ambos na Zona Norte. No entanto, inglês John Lanchester: Zico tornou-se um adepto do esforço e da dedicação aos treinos e Romário um notório Nenhum outro país empenha-se tanto, ou de opositor destes. A carreira de Zico, como nos maneira tão determinada, em buscar essa beleza mostra Helal (cf. Helal, Soares e Lovisolo, no futebol quanto o Brasil. É uma coisa ideo- 2001), além de revelar o seu talento extraor- lógica, e por isso os jogadores brasileiros são dinário, mostra um estilo de esportista bem mais tão adorados. Não na América do Sul, é claro, onde são vistos antes como representantes de próximo do universo social “anglo-saxônico”, uma superpotência esportiva, mas em quase pois a ética do trabalho se apresenta como o todo o resto do mundo. Na verdade, a seleção elemento norteador. Já a carreira de Romário brasileira de futebol ocupa uma posição única nos descortina o domínio das relações pessoais. nos esportes, como exemplo de um favorito As carreiras desses jogadores demonstram que, pelo qual todos simpatizam. Em geral, os no Brasil, os códigos da impessoalidade das leis torcedores, sobretudo os de futebol, odeiam e das relações pessoais não são mutuamente os favoritos (o Real Madri na Espanha, a Juven- excludentes, mas convivem como eixos confli- tus na Itália, o Manchester United/Chelsea na tantes que norteiam as ações sociais. Todavia, Inglaterra). Mas o time brasileiro, o único a a visão estereotipada e bastante recorrente que vencer a Copa do Mundo por cinco vezes, em todos os continentes em que já foi disputada, o mercado europeu tem do jogador brasileiro é adorado. Por isso, muitos dos torcedores de não percebe as qualidades e os defeitos, na maior futebol têm, em se tratando de seleções nacio- parte das vezes, de modo individualizado, mas nais, dois times: o seu próprio e o do Brasil. (2006, p. 62) 8. Entende-se, aqui, o espaço criado pela globalização, onde valores culturais são desterritorializados de seus lugares de O ponto fundamental nesse processo de origem e reterritorializados em um contexto mundial, não mais como características culturais meramente locais, mas reterritorialização promovido pela globalização sim como referenciais da heterogeneidade cultural do mun- do futebol é tornar o estilo brasileiro de jogar do.

178 SOCIEDADE E CULTURA, V. 10, N. 2, JUL./DEZ. 2007, P. 173-186 sim como conseqüência da maneira como eles Devido a esse tipo de ocorrência, Norbert foram socializados. Elias (cf. Elias & Dunning, 1992) advoga a tese Por conseguinte, o estilo brasileiro de jogar de que a qualidade de um jogo e o prazer que é entendido por muitos como um meio através ele desperta na audiência dependem das tensões do qual certo estilo de vida, baseado no jeitinho que provoca. A sensibilidade desenvolvida em e na malandragem, manifesta e pode ser cele- uma sociedade ou grupo social determina a brado como estratégia de sobrevivência social. estética à qual os seus membros aderem. Isto é Tais características manifestam-se pela drama- crucial para entender as diferenças entre os tização do que Lívia Barbosa (1992) chama de estilos de jogo tanto entre países, como entre individualismo à brasileira, que consiste em uma regiões dentro de um mesmo país, como é o visão de indivíduo baseada na capacidade de caso do Brasil. Nesse sentido, resolver problemas por meio de uma boa con- versa, de jogo de cintura e não por regras univer- [...] a estética futebolística, um caso particular salizantes e impessoais. de estética esportiva, é algo que a perspectiva Convém lembrar que o futebol, como formalista não pode captar. Há um sentido profundo nos embates, um pano de fundo construção simbólica, possibilitou a elaboração cultural no qual os sentimentos de pertença e de “uma visão essencialmente mestiça de nossos o próprio gosto pelo futebol estão alicerçados. jogadores e de nossa cultura”. A construção do O caráter democrático – em contrapartida ao “‘futebol-arte’ foi uma corajosa afirmação do autoritarismo dos cartolas que manipulam as mestiço e negro brasileiros” (Gil, 1996, p. 25). regras – torna cada torcedor um comentador, O ‘estilo brasileiro’ tem nos jogadores negros e um crítico autorizado para falar em estilos de mestiços os seus principais artesãos, a sua jogo e associá-los a certas categorias sociais. afirmação decorre da criação de jogadas, das O futebol-arte revelaria o caráter carioca, o microinvenções do jogo, que estão associadas à futebol-força, a maneira como são os gaúchos e assim por diante. (Damo, 2001, p. 88) individualidade de determinados jogadores (Lopes, 1994). Para entender melhor isto, acreditamos ser Essa construção, possibilitada pela afirma- necessário fazer referência ao conceito de ção das figuras do negro e do mestiço, teve na dramatização utilizado por Dumont (1993) e valorização da malandragem um elemento DaMatta (1982; 1986; 1990). Para esses fundamental. Todavia, no Brasil, o futebol-arte autores, a dramatização apresenta-se como um não se apresentou como uma fórmula unívoca, traço distintivo do ritual, definido como o oposto ele foi sendo pensado e adequado aos esquemas da rotina. O ritual, por meio da dramatização, culturais das principais regiões que deram base coloca em destaque determinados elementos ou à idéia de futebol como elemento constitutivo relações de uma sociedade ou grupo social, da identidade nacional. Como mostra Giulianotti, condensando-os e expondo-os como fenômenos que individualizam uma coletividade. O ‘estilo [...] as vastas diferenças econômicas, sociais e geoclimáticas do Brasil significam que a brasileiro’ é tido como aquele que enfatiza a posição do malandro no imaginário cultural é importância de exibir-se para o público, buscando cortada transversalmente por outras tradições valorizar o espetáculo. A improvisação é o ponto regionais. Os times do Rio são verdadeiros culminante, e ela se faz presente em um drible pioneiros da estética sul-americana, através de ou em uma jogada imprevisível. As jogadas um estilo exibicionista e rítmico, fluindo entre a improvisadas e inusitadas constituem a essência construção cuidadosa e o ataque repentino. do futebol-arte. Nesse sentido, como demonstra Na imensidão urbana de São Paulo, o futebol é DaMatta (1982), o futebol é mais uma fonte de mais industrioso, rotinizado e geometricamente individualização e de expressão individual do que fixado. As equipes de Porto Alegre empregam uma abordagem mais “uruguaia”, jogando sem um instrumento de coletivização em nível astros e freqüentemente com uma determinação pessoal ou das massas, ou seja, por seu inter- violenta de vencer, não importando os meios. médio o povo brasileiro pode se sentir indivi- (2002, p. 181) dualizado e personalizado nas jogadas dos grandes craques.

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Porém, não podemos perder de vista que, individual podem usá-la, ou seja, os grandes como expressão de identidade nacional, o futebol craques. Esses jogadores podem usá-la porque foi construído a partir do eixo Rio–São Paulo. geralmente contam com a anuência da torcida Isto ocorreu devido ao fato de a cidade do Rio e, principalmente, dos dirigentes que os perce- de Janeiro ter sido capital federal até o ano de bem em situação diferenciada por causa de suas 1960 e de o estado de São Paulo exercer a qualidades técnicas e de sua capacidade de liderança econômica nacional. Tal situação teve decidir as partidas em favor do time. Por tais papel central na definição da simbologia que motivos, eles são tidos como jogadores diferen- tradicionalmente caracteriza o chamado ‘estilo ciados e que não precisam se sujeitar às mesmas brasileiro’ de jogar. Muito embora tenhamos regras que se aplicam aos demais jogadores do ciência desse fato, não podemos negligenciar grupo. Se, no futebol brasileiro, somente na que, mesmo sendo tal construção um produto década de 1990 (vide as polêmicas criadas pelos validado no referido eixo, o futebol foi incor- casos de Romário, e Djalminha)9 tal porado como uma expressão de certa noção de comportamento passou a vir à tona de forma brasilidade em todas as regiões do país; um recorrente, devido às críticas severas de boa elemento de integração nacional. Ou seja, parte da imprensa, foi porque nesta década o mesmo que estejamos diante de uma construção lado relacional da sociedade brasileira começou ideológica, nada obsta que esta também tenha a mais claramente a perder espaço diante do seus elementos constitutivos dramatizados, lado igualitário, que se impõe cada vez mais independentemente das variações culturais como condição básica da ordem social capi- existentes entre as regiões do país. talista. Peguemos, para efeito de ilustração, o caso Outra característica a ser duramente criti- da fórmula “você sabe com quem está falan- cada desde os anos 1970 é o estilo de admi- do?”, característica que, mesmo fragilizada nos nistração amadora dos dirigentes de federações dias de hoje no âmbito da sociedade, ainda se e clubes, o qual é considerado, pela maior parte faz presente no futebol brasileiro. Nas palavras da imprensa esportiva, o principal fator de de DaMatta, “a fórmula ‘você sabe com quem inviabilidade da modernização do futebol está falando?’ é uma função hierarquizadora e brasileiro. Ademais, essa desorganização do da patronagem que permeia nossas relações futebol brasileiro já era algo que a imprensa diferenciais e permite, em conseqüência, o brasileira denunciava antes mesmo da crise estabelecimento de elos personalizados em deflagrada na década de 1970. Por exemplo, os atividades basicamente impessoais’’ (1990, p. livros Os subterrâneos do futebol, escrito por 159). Ela pode ser expressa sem ser proferida João Saldanha em 1963, e O negro no futebol verbalmente, basta apenas que alguém se brasileiro, escrito por Mário Filho em 1947 e coloque em uma situação de superioridade diante reeditado em 1964, já denunciavam o arcaísmo de uma regra impessoal que, em princípio, e a obsolescência da administração do futebol deveria ser aplicada a todos. Assim como o brasileiro. Principalmente no que dizia respeito jeitinho, o ‘você sabe’ só pode existir em uni- à falta de um calendário racional nos campeo- versos contaminados pela ótica individualista, natos disputados no país, o qual tinha as datas impessoal, igualitária e anônima. Um universo dos jogos mudadas de acordo com os interesses social holista e hierárquico prescinde de qualquer dos clubes e, em muitos casos, um número um desses mecanismos, pois as posições dos excessivo de jogos, o que prejudicava o desem- interlocutores já estão previamente dadas penho dos jogadores e conseqüentemente do (Barbosa, 1992, p. 80). espetáculo. Segundo Helal: No futebol, assim como na realidade social, não são todos que podem lançar mão desse 9. Jogadores que se notabilizaram por exigir tratamento recurso com legitimidade. Somente aqueles que diferenciado em relação aos outros jogadores dos elencos das equipes em que atuavam, por se perceberem como mais são considerados como acima dos demais dentro habilidosos tecnicamente e por terem como conseqüência de uma hierarquia estabelecida pela condição disto certa anuência de dirigentes e torcedores.

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[...] o que deflagrou a crise a partir de meados Ora, os membros da imprensa esportiva da década de 1970 foram as tendências brasileira funcionam como mediadores simbó- universais à profissionalização dos dirigentes, licos11 entre o futebol e aqueles que o apreciam. à racionalização e à impessoalização na forma A interpretação dada por eles não é uma simples de gerenciar. Tendências estas que entraram decorrência de como percebem o esporte. Os em choque com a administração “tradicional”, tornando a desorganização mais evidente. discursos de modernização por eles proferidos (1997, p. 42) podem ser vistos não apenas como meras justi- ficativas de um modelo de organização do Para se ter uma idéia, somente em maio de futebol, mas também como discursos legitima- 1982, o Conselho Nacional de Desportos (CND) dores de uma ordem política e econômica aprovou o uso de publicidade nos uniformes e produzida pela globalização. Para efeito de apenas em 1987, com a Copa União organizada ilustração, a opinião do jornalista esportivo pelo Clube dos 13,10 os jogos de futebol passaram Matinas Suzuki Jr., em artigo publicado no dia 9 a ser televisionados ao vivo, isto porque a menta- de janeiro de 1997, no jornal Folha de S. Paulo, lidade tradicional via nas transmissões um estí- nos serve como uma referência da represen- mulo para a diminuição de público nos jogos que tação dominante da mídia esportiva no período fossem realizados no mesmo horário. Tais situa- pré-Lei Pelé: “A modernização do futebol é igual ções desde a década de 1970 já eram permitidas à modernização do país. Ela requer uma rede- nos campeonatos europeus, o que possibilitou finição de papéis, públicos e privados”. aos clubes importantes fontes de receita. No entanto, a imprensa especializada deve As críticas feitas pela imprensa vieram se ser considerada apenas como um dos agentes desenhando desde a década de 1970, pautadas envolvidos na negociação intensa e inacabada na convicção de que a desorganização adminis- que vem a ser a construção do futebol como trativa não consubstanciava uma visão empre- elemento simbólico da cultura brasileira. A com- sarial profissional que permitisse ao futebol preensão da dinâmica estrutural desse processo brasileiro uma maior proteção diante das crises deve estar baseada em uma perspectiva de econômicas do país. Na representação da mídia, análise na qual entender a negociação entre as a lógica dos dirigentes amadores e jogadores representações dos agentes sociais envolvidos profissionais e uma legislação esportiva produ- é fundamental para a apreensão das múltiplas dimensões que constituem o campo profissional zida por regimes autoritários eram identificadas do futebol no Brasil. Nesse sentido, a tríade como os fatores que impediam a adequação da configurada pelos atores sociais envolvidos é o organização do futebol brasileiro aos moldes fator basilar para a definição dos conteúdos preconizados pelo estilo de modernização que simbólicos das “situações rituais” que caracte- se processava nos principais campeonatos rizam as formas de representação do futebol. europeus. Pois, no Brasil, o que imperava eram Os atores sociais envolvidos nessa negociação a política da troca de favores, conciliação e de significados são os profissionais, que corres- paternalismo (Helal, 1997). pondem a todos aqueles que interferem dire- tamente no resultado dos jogos (jogadores, 10. Movimento iniciado em julho de 1987 pelos treze clu- técnicos, árbitros, dirigentes, preparadores físi- bes de maior torcida no país: Botafogo, Flamengo, Fluminense, Vasco, Corinthians, Palmeiras, Santos, São cos, fisioterapeutas etc.); os especialistas ou Paulo, Atlético Mineiro, Cruzeiro, Grêmio, Internacional e cronistas esportivos, profissionais da mídia Bahia. O objetivo principal era resolver os problemas de (narradores, comentaristas e repórteres) que sucessivos campeonatos brasileiros deficitários, em que a queda de público foi identificada como conseqüência de um atuam como intérpretes dos jogos, constituindo- calendário desorganizado e de campeonatos com número se como mediadores simbólicos entre o evento excessivo de clubes, os quais não proporcionavam espetá- culos que tivessem apelo popular devido a pouca e os torcedores, e os próprios torcedores, os representatividade de suas torcidas. Em 1987, o Clube dos 13 resolveu realizar a chamada Copa União, que inicial- 11. Os mediadores simbólicos, segundo Renato Ortiz, “são mente não teve apoio da Confederação Brasileira de Fute- os responsáveis por descolarem as manifestações culturais bol (CBF), mas posteriormente deu o seu aval, com a entra- de sua esfera particular e as articularem a uma totalidade que da de Goiás, Santa Cruz e Coritiba. as transcende’’ (1994, p. 141).

181 BARBOSA, ATTILA MAGNO E SILVA. O futebol e a sociedade global: uma reavaliação da identidade... que compartilham o universo do futebol por via [...] o que ora é visto como moderno pode se da emoção (Toledo, 2000; 2002). Infelizmente, transmutar, num momento posterior, em emble- para os propósitos deste artigo, não podemos ma do tradicionalismo. Quando foi introduzido, nos ater mais profundamente sobre essa questão, o modelo amador elitista era um signo de mas é preciso que vejamos nessa tríade de modernidade; nos anos vinte, tornou-se a bandeira do conservadorismo. Da mesma forma, autores a qual Toledo se refere o eixo central a “ética dual” foi entendida como o modelo do processo de reavaliação das categorias perfeito para a democratização do futebol simbólicas que são tidas como representações durante décadas; depois se tornou, nos anos do ‘estilo brasileiro’ de jogar. noventa, não só um modelo ultrapassado, mas a própria encarnação do atraso. E a presença A reavaliação do futebol como categoria de interesses comerciais na organização do esporte, que era vista como prejudicial nos simbólica anos sessenta, foi eleita recentemente como a O futebol adquiriu a importância que tem sua redentora. (Proni, p. 169) para os brasileiros por refletir alguns elementos culturais tidos a partir de uma construção sim- O sentido conferido por Proni à redefinição bólica como caracterizadores de um estilo de do “ideal modernizante” e à reinvenção recor- vida compreendido como sinônimo de brasi- rente da tradição corresponde a uma ruptura lidade. Os estilos de jogo e as formas de orga- seletiva, na qual elementos não mais ajustáveis nização do futebol como atividade esportiva e tornam-se inadequados diante de determinadas espetáculo retratam padrões culturais de cada situações e, portanto, passíveis de transmutação. sociedade (Lever, 1983). Ou seja, assim como Aqui recorremos ao que diz Marshall Sahlins: no futebol-arte podemos perceber a celebração “um evento é definido como a relação entre o de determinadas características culturais, tam- acontecimento e a estrutura (ou estruturas): o bém na forma de organização é possível ver o fechamento do fenômeno em si mesmo enquanto ajuste ao dilema brasileiro. Um futebol que valor significativo ao qual se segue sua eficácia transita entre a lógica da universalidade e impes- histórica específica” (1994, p. 15). A mudança soalidade das leis, caracterizadoras da moder- trazida por um evento não implica necessa- nização capitalista, e a lógica das relações riamente a eliminação das categorias anterior- pessoais e da hierarquia, reminiscências de um mente contidas na estrutura simbólica, mas, sim, sistema tradicional baseado na troca de favores muitas vezes, uma readequação do conteúdo e no personalismo patrimonialista. destas às novas exigências históricas. Tal Para Helal (1997), o “tradicional” e o situação é definida por Sahlins como uma “rea- “moderno” no futebol brasileiro coexistem de valiação funcional de categorias”. Para nós, um modo mais complexo do que o vivenciado quando consideramos essa lição, entendemos na realidade cotidiana. O “moderno” que se que as mudanças ocorridas na estrutura simbólica manifesta na exigência de um maior nível de de uma sociedade tornam os significados antigos profissionalização e comercialização tende a se inadequados diante dos novos eventos, logo, pas- misturar com uma administração baseada na síveis de modificações com vista a se reade- paixão, no relacionamento pessoal, na troca de quarem à ordem situacional. O estabelecimento favores e na proibição do profissionalismo dos de novas ordens situacionais é um fato contínuo dirigentes. Assim como a maior racionalização nas sociedades humanas, porém estas nunca são do jogo, característica também moderna, se novidades integrais, pois, como nos demonstra contrapõe aos aspectos valorizados na visão Sahlins: tradicional do futebol. Por outro lado, Proni nos [...] a ação simbólica é um composto duplo, chama atenção para o fato de que “o ‘ideal constituído por um passado inescapável e por modernizante’ vai sendo redefinido com o passar um presente irredutível. Um passado inesca- do tempo, do mesmo modo que a tradição pode pável porque os conceitos através dos quais a ser recorrentemente reinventada” (2000, p. experiência é organizada e comunicada proce- 169). dem do esquema cultural preexistente. E um

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presente irredutível por causa da singularidade de certa percepção dominante que viu no futebol do mundo em cada ação: a diferença heraclitiana um meio de manifestação de determinados entre a experiência única do rio e seu nome. A elementos culturais tidos como signos de diferença reside na irredutibilidade dos atores brasilidade. Isso significa dizer que o futebol- específicos e de seus conceitos empíricos que arte como sinônimo do futebol brasileiro foi uma nunca são precisamente iguais a outros atores ou outras situações – nunca é possível entrar construção simbólica que se fez a partir de uma no mesmo rio duas vezes. (1994, p. 189) série de oposições com o futebol europeu, que é entendido como o locus das variações do Ao mesmo tempo em que o passado se faz futebol-força (Damo, 1999). presente como referência ordenadora para as Como vimos anteriormente, a intensificação ordens situacionais de épocas subseqüentes, os da lógica mercantil advinda com o processo de significados que o caracterizavam passam a globalização da economia submete os valores estar sujeitos a modificações e readequações antigos do futebol – provenientes de uma época produzidas pelos grupos sociais e pelos indivíduos romântica em que o futebol-arte falava mais alto que vivenciam de modo particular as categorias que o futebol-força – a uma reavaliação que culturais. torna possível sua adequação às expectativas Na realidade imposta pelo capitalismo de retorno financeiro dos investidores. Assim, a global, o jeitinho e a malandragem devem ser ousadia decorrente das jogadas de efeito se vê deixados de lado no que concerne ao funcio- submetida aos esquemas táticos; a liberdade de namento da vida econômica, pois o compor- criação individual tem de ser adequada aos tamento esperado nessa esfera é a sujeição dos interesses da equipe, e o resultado passa a ser indivíduos à universalidade das leis e à racio- mais importante que jogar bonito,12 até mesmo nalidade técnica. Todavia, no âmbito de qualquer porque vários interesses passam a depender manifestação cultural que almeje conquistar o diretamente dos resultados obtidos pelos times. interesse de certa audiência, como é o caso do Isto implica dizer que certa cautela passa a ser futebol, a capacidade de improvisação não inerente ao momento de criação de esquemas precisa ser eliminada, basta apenas estar a táticos e de estratégias de jogo por parte dos serviço do coletivo, ou seja, o craque não deve treinadores. Sobre isto, o depoimento de Zico – jogar como se a vitória dependesse somente dele. um dos grandes representantes do futebol-arte Nesse contexto, desde a derrota na Copa do passado, e que em 2006 foi treinador da do Mundo de 1982, o estilo brasileiro de jogar seleção japonesa durante a Copa do Mundo –, veio assimilando gradativamente um padrão no em entrevista concedida ao canal Band Sports, qual o resultado passa a ser o objetivo maior. O em 12/7/2006, é bastante elucidativo sobre o maior exemplo disto é o título obtido na Copa do predomínio do futebol-força sobre o futebol-arte Mundo de 1994, pois a sensação que ficou para na Copa do Mundo de 2006: muitos foi certa frustração de ter visto a seleção vencer não no estilo do futebol-arte, mas, sim, Aqueles que estão achando que o futebol vai no estilo do futebol-força, que é considerado voltar àquela beleza, àquela plástica, ver uma característica do futebol europeu e não do constantemente uma atuação como a do Zidane futebol brasileiro. A campanha brasileira, apesar contra o Brasil, isso é coisa rara hoje em dia, de invicta, não conseguiu ter a adesão entusias- infelizmente para quem gosta do futebol, porque mada de outros tempos, pois o futebol apre- hoje o que predomina é a força física e a altura; sentado pela equipe do treinador Carlos Alberto é o condicionamento físico. A Copa do Mundo Parreira pautou-se pela disciplina tática e por apenas constata isto. Aqueles que estão aí acompanhando o futebol já sabiam que esse uma mentalidade defensiva com momentos equilíbrio ia acontecer, e a tendência é cada vez esporádicos de brilhantismo individual, na maioria das vezes, protagonizados pelo atacante 12. No imaginário brasileiro, jogar bonito significa dar es- Romário. petáculo para a platéia, jogando um futebol que envolva tecnicamente o adversário com toque de bola refinado e É preciso entender que a particularidade com jogadas de efeito, as quais demonstrem a criatividade do estilo de jogar brasileiro foi uma decorrência dos nossos jogadores.

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mais diminuir a média de gols em competições equipes do mudo inteiro utilizam modelos e principalmente em competições como a Copa semelhantes” (2003, p. 140-141). Nessa mesma do Mundo e a Champions League, que tem linha, Giglio nos lembra que “atualmente não muito interesse em jogo. Futebol que é bom, a podemos mais encarar o binômio futebol-arte e gente vê só nas peladas. futebol-força como uma oposição. O futebol brasileiro apresenta elementos dos dois estilos Entretanto, isto não quer dizer que no futebol de jogo, assim como o futebol europeu apresenta brasileiro as categorias simbólicas antigas algumas características do estilo brasileiro” tenham sido simplesmente substituídas por novas (2005, p. 69). que estejam em melhor sintonia com a atual Essa situação nos faz lembrar a função situação. Ao invés de eliminadas, podem estar integradora que a cultura tem. E que o processo sendo reavaliadas, pois o passado é sempre a de socialização trabalha no sentido de ajustar referência sobre a qual o presente se constrói – os comportamentos individuais às exigências a diferença é que os atores que vivenciam os significados o fazem sob as exigências de suas impostas pelos padrões culturais dos grupos épocas, sob circunstâncias históricas especí- sociais nos quais os indivíduos estão inseridos. ficas. Isto significa que, em tempos de mercan- Como se não bastasse o modo diferenciado tilização do futebol, a preocupação crescente como cada grupo social vivencia os significados com a obtenção de resultados tornou-se o contidos no esquema cultural de uma sociedade, elemento condicionante das formas de jogar; as ainda temos a incidência dos riscos subjetivos, vitórias futebolísticas hoje não mais se esgotam pois cada indivíduo pode introjetar e interpretar em uma dimensão meramente simbólica, elas de modo diferenciado as categorias que lhes são se tornaram meios de viabilização de todo um apresentadas a partir dos esquemas culturais que conjunto de interesses econômicos. Como nos lhes são mais próximos (Sahlins, 1994). diria Bourdieu (1990), o esporte, assim como a Desse modo, entendemos que, no Brasil, obra musical e o texto filosófico, mesmo que temos uma situação que se configura da seguinte tenha determinadas propriedades intrínsecas que maneira: o esquema cultural do futebol ainda definam os limites dos seus usos sociais, está fala de jeitinho, de malandragem e até mesmo aberto a uma diversidade de usos e pode vir a do indesejado você sabe com quem está ser marcado a cada instante pelo uso dominante. falando?. No entanto, o modo como estas cate- Nesse sentido, apesar das variações regio- gorias são percebidas dependem de como cada nais nos estilos de jogar que sempre estiveram região ou grupo social vivencia os dois eixos de presentes no futebol brasileiro, na atualidade, classificação que norteiam a realidade social muitos são os que se ressentem da perda dos brasileira: o relacional e hierárquico e o indi- vínculos com a plasticidade de um estilo de jogo vidualista e igualitário. Além disso, as inter- que teve nos anos de 1950 e 1960, principalmente pretações realizadas pelos grupos sociais estão no eixo Rio–São Paulo, o seu apogeu e que, por sujeitas às interpretações individuais desses dois essa razão, a imprensa esportiva dessas loca- eixos. Sempre, é claro, considerando a ordem lidades passou a identificar esse estilo como uma situacional em que tais interpretações são expressão da identidade nacional. Mas não realizadas, seja esta regional, nacional ou global. podemos esquecer que, naquele tempo, as tecnologias informacionais disponíveis não Considerações finais permitiam um intercâmbio tão intenso de infor- mações sobre esquemas táticos, estilos de jogo, A intenção deste artigo foi destacar no preparação física e, principalmente, conheci- futebol uma instância rica em significados que mento sobre as habilidades individuais de cada possibilita interpretar uma parte da realidade jogador. cultural brasileira. Parafraseando Clifford Como nos chamam atenção Soares e Geertz, é possível dizer que tanto a briga de galo Lovisolo, “hoje, se lamenta a perda de identidade, para os balineses, como o futebol para os estamos num momento em que o futebol apre- brasileiros não significam “uma imitação da senta características mais globalizadas e as pontuação da vida social destes povos, tão pouco

184 SOCIEDADE E CULTURA, V. 10, N. 2, JUL./DEZ. 2007, P. 173-186 uma mera representação, nem mesmo uma Em nosso entendimento, o futebol, como expressão delas, mas sim um exemplo delas, qualquer atividade humana, não tem nenhum cuidadosamente preparado” (1989). De outra sentido intrínseco, pois como toda atividade maneira, o fato de o brasileiro se ver como sobre a qual incide o olhar humano é o uso que possuidor do melhor futebol do mundo pode ser dela fazemos, a partir de um esquema sociocul- entendido como uma história que nós contamos tural determinado, que lhe confere significado. a nós mesmos. Isto porque nele percebemos Se hoje os usos conferidos ao jogo parecem alguns elementos que caracterizariam certas globais, é porque eles também o são e não noções de brasilidade que foram construídas apenas o são – os olhares nacional e local não como expressões de certa identidade nacional. se perdem. Se hoje o futebol é regido pela lógica Porém, tais aspectos não se apresentam de mercantil modernizadora, isso não elimina do modo estático, posto que sejam reavaliados de imaginário brasileiro a estética tradicional que o acordo com as exigências de cada mudança constituiu como estilo, apenas a reavalia funcio- ocorrida na ordem situacional; nos dias atuais, nalmente, tendo em vista sua adequação à nova carregada de sentidos globais. ordem situacional. Até porque o tear da cultura O contexto político-econômico atual não tece fios difíceis de serem rompidos por com- mais demanda a construção de uma identidade pleto. nacional – como ocorreu entre as décadas de 1930 e 1970.13 A situação atual pleiteia um engendramento de uma identidade global, um Abstract: The present article is an anthropological produto das referências criadas pela mundia- reflection about the changes occurred in the way of to realize the football while an example of the Brazilian lização a partir da seleção de determinados cultural identity. The goal is try to understand how such padrões culturais. Aí, o objetivo é colocar o transformations are realize not like a rupture with the futebol brasileiro em sintonia com as exigências constitutive elements of the Brazilian culture, but yes, impostas pela globalização, mesmo que isso like a functional revaluation of categories made as from of custe uma relativa descaracterização aos olhos intensification of the mercantile logical that passed to rule the world soccer on period that comprised between de alguns. Muito embora isto não signifique uma decades of 1970 and 1990. anulação dos significados antigos, mas sim uma Key-words: football (soccer); globalization; functional reavaliação destes, uma readequação à nova revaluation of categories. ordem situacional. O futebol, em tempos de capitalismo globa- lizado, adquiriu o caráter de um produto a ser Referências comercializado mais do que um mecanismo de BARBOSA, Lívia. O jeitinho brasileiro. Rio de expressão de identidades culturais; o principal Janeiro: Campus, 1992. interesse do mercado é extrair do futebol o BOURDIEU, Pierre. Programa para uma sociologia máximo de lucro possível. No entanto, convém do esporte. In: BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São lembrar que a obtenção de lucro só pode se Paulo: Brasiliense, 1990. p. 207-220. viabilizar porque o futebol realmente é uma fonte CALDAS, Waldenyr. O pontapé inicial: memória de expressão de identidades, pois o interesse do futebol brasileiro. São Paulo: Ibrasa, 1990. que ele desperta, na maioria dos povos que o DAMATTA, Roberto. Esporte na sociedade: um apreciam, é anterior à sua conversão em mera ensaio sobre o futebol brasileiro. In: DAMATTA, mercadoria. Roberto et al. Universo do futebol. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982. p. 19-42. 13. Por ser um dos signos de brasilidade mais expressivos, o _____. Explorações: ensaios de sociologia inter- futebol foi bastante utilizado como um meio de veiculação pretativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. ideológica nesse período, vide os casos de Getúlio Vargas no período do Estado-Novo, com a ideologia da mestiçagem ______. Carnavais, malandros e heróis: para uma servindo de suporte simbólico para a integração nacional e sociologia do dilema brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: para o projeto de modernização do país, e do general Médici, Editora Guanabara, 1990. que usou a conquista da Copa do Mundo de 1970 para exal- tar o modelo político e econômico do Estado-nação brasi- ______. O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: leiro no regime militar. Rocco, 1991.

185 BARBOSA, ATTILA MAGNO E SILVA. O futebol e a sociedade global: uma reavaliação da identidade...

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