INTRODUÇÃO

Chegar aos sete personagens desta obra foi difícil, mas, Escrever sobre futebol é ao mesmo tempo um prazer e um certamente, uma tarefa muito menos complicada do que as temor. Como diz o jornalista Paulo Vinícius Coelho, representante caminhadas de cada um dos jogadores ou ex-jogadores entrevistados maior de uma geração que valoriza a reportagem jornalística em para este trabalho. Espera-se que o resultado final deste, por outro detrimento da crônica romântica, que inventava personagens e lado, seja tão interessante quanto as histórias que cada um deles tem a dramas, "o esporte das massas é visto por quem chega ao mercado contar. como a área da qual todo mundo entende".

O conhecimento geral sobre futebol faz do potencial repórter esportivo um sério candidato a jornalista sem especialidade — ou especializado em generalidades, como se costuma dizer. Um passo à frente é também uma modesta tentativa de retirar a fantasia exagerado do texto esportivo sem deixar de imergir o leitor na história. Embora muitas vezes o formato dos textos deste livro se assemelhe ao de crônicas ou perfis, trata-se de um produto essencialmente de reportagem, com apuração e seleção acurada das fontes.

Um passo à frente , portanto, busca causar reflexões sobre as condições do futebol no país, mas desafia a noção de que o jornalista de esportes é, sobretudo, um palpiteiro.

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justificar sua ausência nas convocatórias. “Mas só acontece isso SORRISO “POSITIVISTA” porque é difícil ser visto pelos técnicos de lá jogando na Bahia”, diz, ainda com olhar otimista. De fato, somente dois dos 20 jogadores

convocados para o torneio, apenas dois atuam fora de São Paulo, Rio

“Por que não desisto do futebol? de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Ambas as exceções, Porque sou uma besta quadrada.” todavia, são companheiros de clube de Wellington. Juca Kfouri “Lá”, nas palavras do menino, é o . Mais

precisamente, a Granja Comary, no município serrano de Teresópolis,

onde todas as seleções de futebol brasileiras, da Sub-15 — para a

qual o meia do Vitória postula um lugar — à profissional, de O menino Wellington é Santos no nome “e Silva na vida”, , Kaká e tantos outros craques. Todos muito próximos, nas palavras do próprio, com a maturidade de seus 15 anos recém- jogando em campos dispostos praticamente lado a lado. A experiência completados. Tem o que seria o physique du rôle do jogador de ficou na memória e o desejo de voltar continua — prova disso é o futebol brasileiro: é pobre, negro, um tanto magro e aposta sua fato de que não se considera fora dos planos do técnico Leandro infância e adolescência no esporte para conseguir tirar a sua família Simpson, da equipe nacional. da modestíssima casa suburbana. É meia-direita do time infantil do “Eu sou um positivista”, continua, sem mencionar Comte Vitória. E mais do que isso, é meia-direita da Seleção Brasileira. Ao ou Kelsen. O olhar esperançoso que propõe às situações que vive é menos, pelo que declara a quem quiser ouvir. fruto não de uma vida feliz — pelo contrário, até. Wellington Embora não tenha sido convocado para o Campeonato enumera tímido as dificuldades pelas quais passa até hoje, como se Sul-Americano de 2009, realizado em novembro, o garoto ainda se não estivesse à vontade para conversar sobre o assunto. Demorou, na considera parte do melhor elenco do país em sua categoria. “Eu fui verdade, alguns dias para que quisesse falar dos obstáculos com que chamado pela última vez em janeiro...”, suspira, antes de desatar a convive diariamente. Depois, confidenciou à reportagem que a

5 diferença de cor da pele, de “educação” e de “atitude” fez com que o distância. O experiente ex-goleiro, olhar cansado, alisa tratamento mudasse. “Fiquei de saque em você naquele dia [quando carinhosamente a do pupilo. A improvável amizade começou aconteceu a primeira conversa]. Sério mesmo, só senti firmeza dois anos atrás, quando, ainda na categoria mirim — na qual jogam porque vi que você pega buzu, que nem eu”, revelou. garotos de 11 a 13 anos —, o menino avisou à comissão técnica que Wellington morava com a mãe em Valéria, sub-distrito precisaria largar os treinos e o esporte. O dinheiro que conseguia na situado à margem da BR-324, a 25 km do centro de Salvador. A semana acabava rápido, dizimado pelos R$ 4 diários dos quatro distância entre a casa e o Centro de Treinamento Manoel Pontes ônibus que pegava para ir e voltar e pelos lanches que fazia na saída Tanajura, em Canabrava, foi o primeiro empecilho da carreira. do centro de treinamento em Canabrava. “Imagine, véi... Valéria já é na cara de Simões Filho! Todo dia sair de A atitude provocou a compaixão de Edgar e Passarinho. lá pra cá, não tinha ônibus direto, tinha que ir pra Rodoviária Conhecedores do talento do aluno, os dois bolaram com o primeiro. Quebrança... Tinha que sair de casa umas duas horas antes”, coordenador das categorias de base do clube, João Paulo, uma forma exclama. de manter Wellington no futebol. Autorizado pelo dirigente, Edgar O garoto explicou em seguida, porém, que não foi aquele pediu o consentimento da mãe do garoto para acolhê-lo em sua casa o principal obstáculo para chegar ao Vitória. “Eu não tinha dinheiro até que o Vitória abrisse uma vaga na sua concentração de futebol pra pegar ônibus todo dia e, quando conseguia, chegava atrasado. amador — e não havia previsão de que isso fosse acontecer a curto Pensei que ia ter de parar de jogar, ficava triste com isso, porque prazo. “Conversamos com a família dele, que sabia das dificuldades. sempre foi meu sonho jogar futebol. Eu sei que sou novo, não parece Antes, ele passava o dia, fazia as refeições no CT e dormia em casa”, um tempão, mas tava complicado pensar que ia ter que parar, sabe conta. como é? Mas aí...” Wellington (foto 1) diz que o único problema de morar O discurso é interrompido pelo sorriso absurdamente um ano inteiro com o técnico foi ouvir a gozação dos colegas, que branco e um olhar carinhoso para Edgar, seu treinador, que observa a maldosamente davam outro sentido à expressão “morar junto”. “Era conversa de longe, e Carlos Passarinho, que ouve tudo a um metro de chato, né? O pessoal me sacaneava quase todo dia com isso... Acho

6 que Edgar nem sabe”, conta, antes de pedir cuidado ao falar sobre o mim. Mas é o preço que eu pago por tentar ajudar. Professor de assunto com o treinador. “Ele pode pensar que eu também brincava futebol não tem muita coisa na vida... Ganha pouco, trabalha muito... sobre isso”, justificou. Nossa felicidade é v er os meninos crescerem, darem certo, essas coisas”, diz. “Sou macaco velho, sei que dizem essas coisas por causa de alguns caras que já fizeram coisas assim, abomináveis, e mancharam a profissão da gente. Mas o trabalho da gente é maior que isso, sempre”, acrescentou. O que foi brincadeira contra Edgar rendeu problemas sérios a Deomar Santana, técnico de futebol com passagens por Bahia, Vitória e clubes menores do Estado. O professor deixou o futebol de clubes após ser acusado — sem qualquer prova — de abu sar sexualmente de um aluno. Passou a trabalhar em colégios de Salvador e se recuperou profissionalmente com a conquista de diversos campeonatos de futsal — esporte que adotou quando deixou o futebol de campo. Apesar disso, confidenciava aos mais próximos: sabia que, à boca pequena, muitos de seus alunos faziam chacota com o episódio. Morreu em 2006, aos 56 anos, vítima de problemas nos rins que o acometiam há quase uma década. Negando tudo. Assim, o

Foto 1: Wellington (de costas) ainda espera retornar à Seleção profissional que participou da revelação de jogadores de muito destaque dos anos 1980 — Beijoca, Bebeto, Charles, Dico Maradona, Veterano, o téc nico sabe que o garoto ouvia tais João Marcelo, Ronaldo Passos — aos 1990 — Bebeto Campos, Jean, comentários. “É complicado... Talvez, por trás, tenham falado até de Flávio Tanajura, — deixou a vida sem se livrar da

7 pecha que recebeu e que sempre julgou ter sido gratuita, maldosa, já vivi tudo o que eles vivem”, diz, entre saudoso e animado. “vinda de gente invejosa”, como chegou a afirmar ao autor deste livro João diz que, na área em que trabalha, esta experiência é em 2003. fundamental, já que o trabalho envolve a lida com sonhos de crianças Wellington, que não conheceu Deomar e nem incentivou e adolescentes, com as expectativas dos pais e com eventuais qualquer brincadeira maldosa que atingisse Edgar, hoje mora no excessos de treinadores nas cobranças aos seus jogadores. “É assim confortável alojamento do Vitória com outros 100 garotos. Muitos que procuro entender melhor atletas e comissão”, fala. deles ganharam leitos e comida depois de passar por situações De acordo com o coordenador, o Vitória busca cercar o semelhantes à do personagem desta história, outros saíram de uma jovem jogador de cuidados para que ele possa conciliar a futura das várias peneiras feitas pelo clube no interior do Estado e, por não profissão com as suas obrigações com o clube, sem esquecer os ter onde morar em Salvador, foram acolhidos pelo rubro-negro. prazeres da adolescência. Para isso, conta com uma assistente social e Apesar de terem sido Edgar e Passarinho os artífices de duas mulheres que atuam como mães sociais — nome dado pelo sua permanência no Vitória, Wellington também nutre imensa clube à função das duas funcionárias em referência à Lei nº 7.644, de gratidão por João Paulo, coordenador das divisões de base do clube. 18 de dezembro de 1987, que instituiu a atividade para as mulheres E não é à toa. O agora dirigente chegou ao rubro-negro como atleta, que se dedicam à assistência ao menor abandonado, dando condições foi treinador das categorias inferiores por oito anos e desde 2007 dá familiares ao novo lar dos acolhidos. “Elas tentam suprir as conta das funções administrativas do futebol dos mais jovens. necessidades dos garotos e as funções que seriam da família: Segundo ele, é justamente esta multiplicidade de experiências o que o acompanham pessoalmente a questão escolar deles, como estão as ajuda nesta empreitada. “Já passei muito como atleta o que esses notas... Dão reforço escolar, marcam exames de saúde periódicos... meninos passam hoje. Já morei muito tempo em concentração e já Como se fosse uma mãe tradicional, mesmo”, informa João. disputei como atleta e técnico todas as competições que o Vitória Wellington não tem contrato com empresários, mas um disputa hoje. Tenho o que dizer se precisar dar bronca, cobrar, mas agente de jogadores já o acompanha e aconselha. O advento destes também sei que eles confiam em mim se eu der um conselho, porque profissionais fez com que os gerentes de divisões de base alterassem

8 seu modus operandi . “A gente tem de ter um bom convívio com eles, Salvador. Depois de morar 55 de seus 61 anos em uma invasão na até porque, assim como levam, os agentes também trazem jogadores capital baiana, aceitou trocar o terreno por uma pequena casa em um para o clube. O futebol, hoje, é muito comercial”, defende. conjunto habitacional em Valéria. “É longe de tudo, mas pelo menos João alerta para uma questão cada vez mais perigosa no é minha, tem tudo no lugar”, fala. futebol: o assédio praticado pelos agentes às crianças — que Maria não nega a esperança que deposita no filho. “É deveriam ver o esporte mais como diversão do que como profissão. difícil não ter ele aqui em casa, mas é o que ele gosta... Além disso, “Já no dente-de-leite [categoria de jogadores entre 7 e 9 anos], quase se tudo der certo, ele vai virar um jogador famoso, não vai passar os todos têm empresário. A gente lida bem: eles têm o espaço deles. Não perrengues que eu passei nessa vida”, declara, sem querer detalhar podem assistir a jogos e treinos no CT sem a nossa autorização. Mas, suas experiências. “É tudo coisa ruim, melhor nem lembrar. Agora já com a tecnologia, não tem como esconder muito, não é?” tá tudo bem, moço”, diz, antes de se desculpar — sem motivo — à O clima nas divisões de base do Vitória é ótimo, até por reportagem de Um passo à frente . ser distante das tensões e mudanças de técnicos e jogadores do No âmbito nacional, Wellington se inspira em Romário. profissional. Até por isso, Wellington não reclama de quase nada. Não no centroavante dos 1.002 gols, das polêmicas e das pensões Quase. “Só é ruim ficar longe da mãe, né? Ela me liga toda noite pra alimentícias, mas no zagueiro da Seleção Brasileira Sub-17 (foto 2), saber como eu tô”, fala. Perguntado se as lágrimas partem também do baiano e jogador do Vitória como ele. “Ele conseguiu o mais difícil: outro lado da ligação, ele só sorri. O menino prefere não falar do pai. subir de categoria e continuar indo pro Rio [de Janeiro]”, elogia, “Ela até hoje chora de saudade quando eu ligo, mas sempre que posso mencionando pela segunda vez a Granja Comary, em Teresópolis. No a gente se vê”, declarou, ignorando pergunta sobre a memória início do ano, quando foi convocado para o Brasil Sub-15, o menino paterna. fez a sua primeira grande viagem de avião. Sua mãe é uma Maria como a de todos os clichês, o que não diminui em nada sua história. Faxineira, comemora o fato de trabalhar em Simões Filho, bem mais perto de sua casa do que

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O Mateus baiano foi para a seleção na mesma ocasião do companheiro, e também anda esqueci do pelo técnico Leandro Simpson. Um detalhe chama a atenção, entretanto: os amigos parecem ser completamente diferentes. Aliás, Wellington não tem nada do jeito dos colegas, já completamente adaptados ao estereótipo do boleiro. Enquanto o menino de Valéria exibe semblante tímido até mesmo dentro do campo, Mateus já tem tatuagens com o seu nome e o da mãe — uma em cada um dos antebraços. Se um diz que não tem tempo para sair com meninas, o outro dedica quase todo o seu tempo livre à namorada de seis meses. “ E ao reggae”, destaca, longe do olhar do técnico Passarinho. “Estudo pela manhã e treino à tarde. Quando chega a noite, é difícil estudar, porque já estou cansado. Se

Foto 2: O colega Romário, firme na Seleção Sub-17, é o espelho de Wellington ainda fosse para namorar...”, diz Mateus.

O Vitória exige que os jovens jogadores que mor am no Wellington lamenta o fato de que a seleção principal não centro de treinamento dividam seu tempo entre o futebol e a escola estava na Granja quando por lá treinou. “O mais perto que eu — do contrário, são convidados a sair do alojamento ou arranjar uma cheguei dos caras 'top' foi conhecer o Mattheus”, ri, ao citar o filho vaga em um colégio. Wellington, na 8ª série, tem consciência da do ex-atacante Bebeto, famoso logo que nasceu. Hoje jogador da necessidade de frequentar uma sala de aula, mas reclama bastante dos divisão de base do Flamengo, Mattheus foi homenageado pelo pai horários aos quais é obrigado a se adaptar para cumprir a exigência. após o segundo gol do Brasi l contra a Holanda, na Copa do Mundo “Não dá para jogar de verdade e estudar de verdade. Só tenho tempo de 1994, com a comemoração do “embala nenê”. O filho de Bebeto é de noite, e aí já estou cansado”, lamenta. “Mas sempre me dou muito quase xará do melhor amigo de Wellington, jogador como os dois. bem, passo sempre de ano”, diz em seguida, embora ciente da

10 fragilidade do ensino público brasileiro. Talvez por ser tão ligado ao futebol do exterior, para onde O garoto já se planeja para cursar e concluir uma 1176 jogadores brasileiros se transferiram somente em 2008 — faculdade, mas não se ilude: com futebol, ensino superior só depois número recorde desde 2003, segundo estatísticas da Confederação do fim da carreira no esporte. Os profissionais do Vitória — e de Brasileira de Futebol (CBF) —, Wellington afirma não ter um clube quase todos os clubes do Brasil e da América do Sul — trabalham do coração. “Gosto do Vitória, sempre gostei. Mas, se é pra ser pela manhã e pela tarde praticamente em todos os dias, o que profissional, não quero me prender a ninguém. Não dá pra jogar bola praticamente impossibilita o estudo universitário, normalmente e ser torcedor de um time só, isso só cria problema”, fala, adaptado inflexível nas grades curriculares. Do dente-de-leite, primeira ao discurso dos jogadores da atualidade. “Essa coisa de amor à categoria de base, até o juvenil — para meninos de 16 e 17 anos —, camisa não existe. Eu quero ter respeito pelos times em que eu jogar, os treinos acontecem somente no período da tarde, deixando a manhã mas não é porque torço para um clube que não vou me mudar pra e a noite livre para a dedicação aos bancos escolares. outro”, acrescentou. Na escola, sempre que possível, o assunto dos papos é o Como não poderia deixar de ser, o garoto se vê atuando futebol — embora não o nacional. A bola que fascina, nos fora do Brasil em breve. Mas espera ter cautela na transferência. videogames e na TV, é a da Liga dos Campeões da Europa, mais “Quem sai [do país] muito cedo normalmente acaba voltando, e às tradicional e forte torneio de clubes do mundo. Não há memória de vezes, a depender do time que jogou lá fora, não volta para uma boa criança para Wellington: como o contato com o futebol das telas é equipe aqui no Brasil. Eu prefiro esperar um pouco mais por uma boa muito recente, os craques em que se inspira são os do dia, da semana, proposta”, assegura. Pouco depois, reluta. “Acho que eu só iria mudar do mês. Na hora de responder sobre um ídolo, diz que não vê razão de ideia se o contrato que me fizessem me ajudasse a melhorar as para ter de se espelhar em alguém, pois busca “um futebol único”. condições de minha mãe. Aí eu ia exigir bem menos do lugar pra ir”, Depois, entretanto, se entrega. “Tem o Cristiano Ronaldo... Ah, gosto pondera o postulante a jogador. do Kaká, também, joga muito! É o pessoal da minha posição, tenho O desejo, contudo, é o de vestir uma camisa azul e grená que olhar direito como eles jogam.” no futuro. “Eu queria ser do Barcelona. A camisa é bonita, tem o

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[argentino Lionel] Messi, que joga muito, e foi onde o Ronaldinho foi COISAS DO FUTEBOL melhor. Esse, sim, jogava demais, viu, véi?” Nos últimos dois anos, Wellington viu o fora-de-série gaúcho perder a vontade de jogar futebol, o que, segundo ele, foi crucial para a situação que vive agora, “ nunca ganhou uma na reserva do Milan, da Itália. “O cara foi duas vezes melhor do Copa do Mundo? Azar da Copa do Mundo.” mundo, foi campeão pelo Brasil, ganhou todo o dinheiro que podia, Fernando Calazans não tem nem 30 anos... Acho que enjoou dessa vida, não é fácil nem pra ele, que é craque.” Mas se o garoto um dia chegar ao patamar de um Nenhum dos estereótipos do jogador de futebol brasileiro Ronaldinho, será que pode acontecer o mesmo? “Acho que não. Se se encaixa a Felipe Albiéri. Vindo de classe média e com boa bem que a vida de boleiro é foda”, reclama, deixando escapar o educação formal, se afasta do rótulo de pouco instruído que é colado primeiro palavrão em alguns dias de conversa. E se o futebol não no futebolista do país; alto e branco, não tem o físico dos atletas mais retribuir o sorriso que distribui para todos? “Aí... Aí eu já não sei.” consagrados; expressivo e eloquente, fala de futebol sem o discurso repetido da maioria dos colegas.

O fato de não citar chavões como “os três pontos”, o treinador “professor” e o “temos que manter a humildade”,

entretanto, não distanciam Felipe da informalidade comum ao futebol. Com apenas 20 anos, o zagueiro já passou por oito clubes.

“Mas sou só 'rodado'. Nada de muita grana”, diz, antes de uma das muitas gargalhadas que soltou durante as entrevistas.

Parte da agilidade com a qual se transporta entre os dois mundos vem dos tempos de criança. Com a vontade de jogar futebol

12 posta em repouso pela infância, se aventurou por esportes conhecidos que o esporte traz consigo. “Sabe, isso é uma coisa que não posso por seu elitismo até chegar aos campos. “Como todo garoto, sempre reclamar. Minha família me apóia em tudo! Meu pai é demais, meu tive o sonho de me tornar um jogador profissional. Antes joguei tênis, avô não perde um jogo meu. Se eu for bater um baba na rua, ele vai corri de kart, mas nunca abandonei o futebol.” acompanhar”, afirma. A empreitada no kart durou pouco tempo, na correria Aos 15 anos, depois de se destacar nas peladas da cidade entre Itumbiara, terra natal, e a casa de uma tia em Goiânia. Entre os goiana, decidiu trocar a preocupação com as espinhas pelo futebol na seis e os oito anos, Albiéri só usava os pés para acelerar — e “gostava capital. As primeiras tentativas foram nos principais clubes do muito” —, mas se desiludiu. “Manda quem tem mais grana”, fala. De Estado. “Tentei a sorte no Goiás, onde fiquei pouco tempo e não deu fato, as primeiras categorias de base do automobilismo têm sido certo. Fui para o Vila Nova, onde joguei seis meses e também não muito criticadas por seus altos custos. Em média, um chassi de kart deu certo. Aí é que fui para Águas de Lindóia [interior de São Paulo], sem pneus custa R$ 5 mil, um bom motor R$ 3,5 mil, com onde fiquei dois anos. Tudo isso como jogador amador.” manutenção estimada em um terço deste valor. Para correr, um jovem Na cidade paulista, jogou no Brasilis, clube comandado piloto ainda precisa de macacão, luvas, sapatilhas, capacete, protetor por Oscar Bernardi, ex-zagueiro da Seleção Brasileira nas Copas do de pescoço e viseira, tudo isso estimado em R$ 7 mil. Mundo de 1978, 1982 e 1986, hoje empresário de jogadores — À época ainda amador, Felipe gastava menos do que os notadamente o volante Lucas, que passou pela equipe e hoje joga no valores citados, mas a quantia se tornou alta demais para as Liverpool. Felipe tomou outro rumo. “Foi aí que voltei para a minha possibilidades da família quando um primo do kartista recebeu o cidade, joguei um campeonato amador e me destaquei. Fomos diagnóstico de leucemia. “O transplante era muito caro, e toda a campeões, e pintou o convite do Itumbiara, que estava jogando a família teve de ajudar do jeito que pôde. Mas hoje, graças a Deus, ele Série C do Brasileiro de 2008. Comecei a treinar, me saí bem, e o está forte e estudando bastante.” treinador me profissionalizou.” Albiéri destaca que, desde aquela época, tem todo o “Embora sempre fosse aos jogos”, a estreia como suporte da família para continuar no futebol, mesmo com os riscos profissional não veio e Felipe não ajudou na campanha do chamado

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Gigante do Vale , que foi eliminado na segunda fase da competição, Um destes casos ainda “arrepia” Felipe, em suas próprias após uma goleada de 7 a 1 para o Atlético Goianiense — que depois palavras. Aconteceu com um amigo que jogava no Atlético . seria muito importante na carreira do defensor. “Chegou um grupo de empresários e o iludiu, dizendo que iriam levá- Felipe provou de uma das peculiaridades do futebol — a lo para a Europa. Prometeram muita coisa. Resumindo: ele rompeu inexistência de um lugar de morada fixo — quando, ao fim da contrato com o Atlético, pegou o passe [virou dono de seus direitos temporada, foi contratado pelo Juventude, que tentava retornar para a federativos] e foi na onda deles”, conta. Primeira Divisão. No time B, só recebeu elogios. “Fiquei lá um mês e Em vez de um dos grandes clubes europeus, o destino do meio. Não entendo até hoje: gostaram de mim, mas não fiquei [risos]. colega foi uma agremiação da terceira divisão da Turquia — país cuja Coisas do futebol... Só quem vive nesse mundo para entender”, seleção está na 39ª colocação no ranking da FIFA. “Ele ficou afirma. assustado lá, não conseguiu se adaptar. Nada de os caras pagarem o Esta dificuldade de compreender como se dão dinheiro prometido... O único contato que ele tinha com os determinadas decisões no futebol, segundo o goiano, existe por um só empresários dele era pelo MSN, mas os caras sumiram. Ele me motivo: nem sempre os melhores jogadores disputam partidas ou são contou que passou fome”, revela. aprovados para continuar em uma equipe — não basta só talento, Sem amparo daqueles que o levaram a terras portanto. “Tem de ter sorte. E alguém com costas quentes por trás desconhecidas e sem saber falar a língua local, apelou aos amigos. “A sempre. É o empresário.” sorte dele era que ele era muito amigo da esposa do Gilberto Silva Apesar da crença no poder do agente de jogadores, Felipe [jogador do Panathinaikos, da Grécia, e da Seleção Brasileira], prefere não ter vínculo com nenhum deles. “Tenho receio de um porque ela era psicóloga do Atlético. Eles se conheciam desde que ele desses empresários me enganarem. Muitos assinam com você e te era pequeno. Ele deu a sorte de encontrá-la no MSN e contar o que esquecem depois. Nunca passei por isso, mas tenho amigos que já se estava acontecendo.” ferraram caindo em conversa de empresários”, diz, em tom de Janaína Magalhães, então, foi a salvação do jovem revolta. jogador. “Ela avisou ao Gilberto, que, na hora, mandou uma

14 passagem da Turquia para a Grécia, onde os dois estão morando. Esse vídeos de boas jogadas suas. “Sempre tem pessoas olhando. E amigo ainda passou pelo maior apuro: quando o avião pousou, ele foi mandar por e-mail os links dos vídeos para empresários e treinadores preso porque ele não tinha os documentos certos para entrar no país, é importante para mim também. Eu não tenho empresário [fixo] um rolo grande. Voltou para a Turquia sendo vigiado por policiais no atualmente, mas tem uns por fora, sabe? Sem nada assinado. E só avião! Coisa bem doida, mesmo”, fala, tenso. “Aí ele conseguiu falar assino quando me empregarem”, diz, cheio de cautela. com a esposa do Gilberto de novo, contou a situação, e o próprio Felipe revela que a página na internet já lhe rendeu uma Gilberto ajudou com tudo o que faltava e ele pôde ir para a Grécia. sondagem da Europa — ainda que não suficientemente séria. “Foram Morou com os dois por um mês e pouco”, emenda. uns portugueses, mas não era nada concreto. Foi só perguntando A experiência do colega serve de base para que Albiéri se como estava meu contrato no momento. Não me iludo com essas mantenha distante destes profissionais. Contar a história do outro coisas, não, só acredito quando o contrato estiver assinado.” serviu de mote para a sua precaução. “Foi Deus que colocou ela no No endereço eletrônico, Albiéri divulga o gol do qual caminho dele. Mas hoje, ele está aí, desempregado. Um cara que mais se orgulha, em um campeonato de divisão de base. Ao receber a tinha tudo para ficar no Galo e não deu certo. Quando ele me contou bola de um colega na cobrança de escanteio, diz ter visto o isso, me arrepiei.” posicionamento ruim do goleiro adversário e, assim, chutou por De acordo com Felipe, muitas vezes os empresários cobertura. Um golaço. Que parece ter sido feito ao acaso. O jogador conseguem colocar jogadores ruins em bons clubes. “Tem muito isso nega. “O goleiro tava voltando, nem vi ninguém na área. Pode ver no futebol”, diz. Mas, então, não é melhor se vincular a um deles? O que bati forte na bola. Quando bati, vi que era gol. Saiu tão macia do zagueiro permanece firme em suas convicções. “Bom é. Mas Deus pé! Mas tô acostumado com acharem que foi sem querer. Fiz um sabe o que faz.” outro gol esse ano, de pênalti. Já viu que não sou zagueiro grossão, Procurando independência, o zagueiro criou um blog para né? Batedor de pênalti”, destaca, exaltando a técnica que assegura ter divulgar seu talento. No www.felipealbieri.blogspot.com , podem ser com a bola, apesar da posição em que joga, normalmente frequentada encontrados o currículo do jogador, algumas fotos importantes e pelos menos habilidosos com a pelota nos pés.

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No início d este ano, o Itumbiara fez investimentos conseguir justificar a derrota. Depois da desclassificação, houve pelo incomuns para disputar o . Gastou mais do que o menos uma alegria: o título do simbólico Campeonato do Interior do normal com a contratação e os salários de muitos dos chamados Estado de Goiás. medalhões — aqueles atletas de nome, mas com o auge no passado —, o que levou a equipe às manchetes: chegaram o goleiro Sérgio, de 39 anos, o lateral Luizinho Netto, de 35, o zagueiro Ávalos, de 31, o meia-atacante Denílson, de 32, e o centroavante Túlio — o folclórico Túlio Maravilha , de 40 anos e 27 equipes na carreira. Se a imprensa deu mui to mais atenção ao clube do que em outros anos, no que tange aos resultados, a tática se mostrou infeliz. O Tricolor da Fronteira foi eliminado na primeira fase da , perdendo para o Corinthians em casa, e, em seguida, sofreu com a desclassifi cação na etapa semi-final do Campeonato Goiano, após duas derrotas para o Atlético Goianiense. Albiéri, por sua vez, teve bem mais motivos para comemorar durante o período em que jogou com tantos veteranos. No Foto 1: Felipe fez uma das melhores partidas da carreira em semi -final que eliminou Itumbiara torneio goiano, disputou sua primeira partida como profissional, uma vitória sobre o Santa Helena por 4 a 1, “com três gols do Túlio”. No Apesar do fracasso da estratégia de encher a equipe de segundo jogo da semi-final (foto 1), esteve em campo e garante que veteranos, Albiéri comemorou a oportunidade de ouvir conselhos e atuou bem na derrota por 2 a 1, sem conseguir evitar a eliminação da compartilhar da vivência dos ma is velhos. “Pô, experiência boa equipe, que perdera por 5 a 1 na primeira partida. “Futebol é foda, demais. Jogar ao lado de Denílson, Túlio Maravilha, Caíco, Serjão [o né? Perdemos jogos bobos. É difícil até de explicar”, suspira, sem goleiro Sérgio, já citado], Ávalos... A gente sempre aprende muito.

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Todos foram bastante tranquilos, sempre dando moral, dando dicas porque todos pensavam igual, sem nenhuma vaidade. Fechamos o para nós, mais novos. Serjão e Caíco, mesmo, sempre conversaram grupo”, diz, utilizando o primeiro clichê futebolístico ao se referir à muito comigo. Foram os caras com quem mais aprendi”, declara, união do elenco para aquele campeonato. antes de acrescentar um nome à lista. “Ávalos também”, fala, se O Inhumas terminou a Segundona no sexto lugar entre 11 referindo ao companheiro de zaga no seu último jogo pelo clube. clubes. Por sua vez, o tradicional Goiânia, time exaltado por Felipe, Seu algoz no campeonato, porém, seria seu próximo ficou em oitavo, apesar de ter contratado jogadores experientes para empregador. O Atlético Goianiense se interessou pelo futebol do comandar o retorno do terceiro clube com mais títulos goianos da defensor e o contratou ao fim da disputa. O destino, entretanto, não Primeira Divisão. “Tinha muita pressão para o Goiânia voltar para a foi o time principal. “Os caras do Atlético gostaram de mim e me Primeira. Demais. E tinha Romeu, Guará, Túlio Maravilha... Todos levaram para o Inhumas, onde joguei a Segunda Divisão do Goiano”, rodados, experientes.” fala. Sim, Túlio. O próprio. Depois de jogar a Primeirona pelo O Inhumas, conhecido pelo incomum apelido de Pantera Itumbiara, o autor de mais de 900 gols na carreira se transferiu para o Avinhada , não conseguiu o acesso à elite do futebol do estado, mas Goiânia, equipe na qual fracassou, apesar de seus cinco gols nos dez Felipe considerou a experiência bastante produtiva. “É um pouco jogos que disputou. Hoje, Túlio disputa a Segunda Divisão do diferente, porque acabam as mordomias que existem na Primeira: pelo Botafogo/DF, filial com o mesmo nome viajar, ficar em hotel bom... Além disso, o salário é menor. Mas foi do clube carioca em que se consagrou, ainda na longínqua temporada bom, uma experiência legal”, declara. Segundo o jogador de 20 anos, 1995. Desde o início deste ano, o jogador é vereador pelo PMDB, o período no clube resultou em um aprendizado bastante relevante representando a capital de Goiás após receber a terceira mais para alguém tão novo. “Aprendi bastante lá. Time sem união não expressiva votação do pleito. chega a lugar nenhum... Nosso time era cheio de garotos e, mesmo Albiéri, que classifica o folclórico atacante como “uma assim, ganhamos do Goiânia, cheio de jogadores veteranos. Não figura, gente finíssima”, nunca viu dificuldade em marcá-lo em conseguimos nos classificar, mas demos muito trabalho aos outros, treinos e jogos. “Joguei com ele no Itumbiara e marquei ele depois,

17 jogando com a camisa número 900. Pô, na sinceridade... Para mim, Foto 2: No Atlético Goianiense, Felipe foi campeão goiano sub -20 marcar ele é mui to tranquilo, porque ele já não corre mais. Mas a Ainda assim, não sabe se vai poder dar os tais passos à gente tem que sempre ficar atento, porque — vacilou, ele guarda”, frente previstos. “Agora estou esperando para ver se vão me subir diz, citando uma das maneiras mais populares de anunciar um gol. [para o profissional] ou se vão rescindir meu contrato. Mas o pessoal De volta ao Atlético Goianiense (foto 2), ficou mais uma do Itumbiara está me ligando pra eu voltar. Agora, é momento vez fora do elenc o principal. “Tenho contrato de profissional, mas decisivo.” jogo pelo sub-20.” Não é uma frustração? “Mais ou menos”, Felipe diz que, neste período da carreira, é importante responde o defensor. “Mas pensei: posso dar um passo atrás agora, aproveitar as poucas chances que tem e demonstrar que, conforme para, depois, dez para a frente. Fomos campeões goianos na nossa assinala em seu currículo, é “forte na marcação e em bolas aéreas, categoria aqui e fizemos história: há 15 anos, o Atlético Goianiense tem ótima visão de jogo e bom chute de longa distância”. A não ganhava o Sub-20”, fala. possibilidade de voltar para o Itumbiara é grande, mas seu maior medo é se machucar. “Não posso fic ar muito tempo parado. Graças a Deus, não sou de contundir”, diz, embora, segundo estudos recentes, o número de lesões no futebolista começa a crescer a partir dos 26 anos 1. Com 20 anos, Felipe ainda vive a época da efervescência amorosa do fim da adolesc ência e do início da vida adulta. Apesar disso, enfrenta dificuldades para driblar a rotina severa de atleta. Sem finais de semana e feriados, muitas vezes treinando nos turnos matutino e vespertino, o zagueiro acaba sem tempo de firmar

1 Disponível em: Acessado dia 03 de novembro de 2009.

18 relacionamentos mais sérios. Pior: ainda que no início da carreira, o uma arma de Felipe, que, inclusive, se benze repetidas vezes em jogador já convive com a figura nefasta da maria-chuteira — as campo durante as partidas. Diante do que se vê no futebol atual, mulheres que buscam a ascensão social por meio de relacionamentos entretanto, Albiéri nem se diz tão dedicado assim, embora creia nos com jogadores de futebol. poderes da divindade. “Não digo que eu sou muito religioso, mas Para Albiéri, não há como escapar delas. Ainda sem status acredito muito n'Ele. Já aconteceram várias coisas que me fazem de ídolo, o defensor sabe que a aproximação repentina de mulheres confiar muito. Na minha estreia como profissional, estava no banco. tem poucas possibilidades de acontecer por motivos, digamos, O jogo era Itumbiara x Santa Helena. Estávamos ganhando de 4 a 1, honestos. Apesar da pouca idade, o jogador já consegue distinguir a com três gols do Maravilha. Eu estava aquecendo e pedi a Ele: ‘Podia admiração do interesse. E até “avaliar” as meninas, de modo que a me dar uma chance, senhor!’. Passou uns cinco minutos e um dos aproximação não se torne tão nefasta assim... “Com os consagrados nossos zagueiros foi expulso. Aí olhei pro treinador, e ele gritou: rolam as mais gatas, né? Mas sempre tem muita maria-chuteira, em ‘Felipe!’ Dei um pique que nunca tinha dado antes na minha vida”, todos os lugares. Quando você joga, não é banco, as coisas mudam. diz, rindo muito. As mulheres valorizam demais, é tirar foto... Engraçado. No Seu grau de religiosidade, no entanto, “nem se compara” Itumbiara, eu joguei o segundo jogo da semi-final. Aí o estádio tava àquele visto na maioria dos clubes brasileiros — e que se reflete na lotado. Um amigo meu me contou que, quando tomei cartão amarelo, Seleção. Segundo a revista , dos 23 jogadores que formaram o um monte de meninas perto dele xingou o árbitro todo! Os caras elenco comandado pelo técnico na última Copa das viram que eu não merecia o cartão, mas elas disseram que eu não Confederações, em junho de 2009, 12 formavam o “grupo religioso”: merecia porque era 'lindo demais' [risos], ficaram me elogiando”, os católicos Kléber, Elano, Gomes e , os auto-declarados fala, muito bem-humorado. “cristãos” Josué, Luís Fabiano e Júlio Baptista, e os evangélicos A situação de espera que passa na carreira dificulta os Kaká, Lúcio, Luisão e Felipe Melo. No comando “espiritual” das planos para o futuro, que incluem também o retorno aos estudos. multifacetadas reuniões, um pastor paranaense que viaja o mundo “Mas, se Deus quiser, vai dar tudo certo”, pensa. A religiosidade é com a Seleção, com passagens pagas pelos jogadores.

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O ex-piloto de F1 Alex Dias Ribeiro foi o fundador do Atletas de Cristo, movimento que iniciou no país a união formal “A DECISÃO FOI MINHA” futebol-religião. Desde os tempos em que militava no automobilismo, nos anos 1970, levava a inscrição “Jesus Saves” — Jesus Salva — em “Em 1969, deixei as mulheres e a bebida, mas seus carros. Depois, atuou como capelão, uma espécie de conselheiro foram os piores 20 minutos de minha vida" para assuntos espirituais, em quatro Copas do Mundo: 1990, 1994, George Best 1998 e 2002.

Entrevistado por Um passo à frente , contou que as “Meu nome mesmo é Vangleydson. Mas no futebol é dificuldades inerentes à atividade esportiva, cheia de sacrifícios e Vanvan. Apelido só pro futebol, entendeu? Entendeu direito mesmo?“ histórias de superação, fazem com que os atletas se vinculem mais Muitas vezes entrevistado e entrevistador se confundiam. Depois de facilmente àquelas que seriam as palavras de Deus. “Cara, quando uma carreira nem tão bem-sucedida assim, não fazia sentido que um você se vê sozinho em um lugar, seja a Europa ou um outro Estado jornalista o procurasse para falar de sua experiência com o futebol. do Brasil, para uma corrida, um jogo ou um ano inteiro sem ver a “Nem quando eu jogava tinha isso”, falou, desconfiado. “Como é que família, você precisa se agarrar a alguma coisa. Eu, por exemplo, faz pra eu saber quem é você?”, questionou algumas vezes. nunca fiz o jogo desses picaretas da fé, esses que pedem dinheiro, que Vangleydson Almeida Pires tem pouca instrução — dizem que o atleta tem que ganhar, que Deus é dos vitoriosos, essas “pouca sala de aula”, em seus próprios termos. Ficou claro nos coisas”, diz. primeiros diálogos, ainda por MSN, que se atrapalha com o português Felipe compartilha dos pensamentos de Alex. “Xará, não e se incomoda com isso. Teve de parar de estudar por conta do dá pra jogar futebol, passar por essas coisas que a gente passa, e ficar futebol, como acontece com a maioria dos jogadores. Mas esta não é sem acreditar em nada. Mas eu sigo o que eu penso, o meu trabalho, o a única frustração do ex-meia-atacante de 25 anos. Segundo ele, “o meu suor. Ninguém vai me dizer pra quem é que eu tenho que dar o que era pra ser o melhor momento da minha vida foi uma época que dinheiro suado que eu ganho, como tenho que gastar, essas coisas”. tive algumas coisas boas e um monte de problemas. Não sinto

20 saudade.” base do Atlético têm à disposição vestiários exclusivos para os times O cearense contou que parou de jogar futebol em júnior e juvenil, salas de musculação, alojamento com 22 leitos, para fevereiro de 2009, antes de proferir pela primeira de pelo menos dez atletas em teste — caso de Vanvan em 2002 — e sala de pedagogia, vezes a oração “mas por opção minha mesmo”. Pobre, conseguiu na qual os jogadores podem se consultar com psicopedagogas e passar pelo rigoroso funil das divisões de base, passando de mirim a psicólogas. Além disso, o CT conta com oito campos de futebol nas profissional do Fortaleza, clube de coração e que apostou nele na medidas e padrões da FIFA, todos com irrigação e drenagem de adolescência. O bom rendimento fez com que Vanvan fosse qualidade praticamente igual à da Arena da Baixada, o estádio do promovido ao elenco profissional do Tricolor Cearense. clube. Na sua preparação, estava previsto um empréstimo para Trata-se de um complexo poliesportivo, com quadras de outro clube, a fim de que o jogador ganhasse maturidade e pudesse tênis, de futebol de areia e vôlei de praia, de futsal e uma pista de voltar ao Fortaleza mais experiente e mais habituado aos incômodos corrida com 800 m. Além disso, todos os jogadores da divisão de de dentro do campo. Ao contrário da maioria dos jovens jogadores, base são matriculados em uma escola próxima ao CT, têm acesso que acabam sendo transferidos para clubes menores, jogando em irrestrito a uma capela ecumênica, à sala de TV e ao salão de jogos. O divisões inferiores do futebol estadual, Vanvan foi para o Atlético Atlético Paranaense é um dos poucos clubes brasileiros que, além do Paranaense. “Você notou que comecei em times mais ou menos futebol profissional, das categorias de base e do departamento grandes”, alerta o ex-atleta, antecipando que houve uma derrocada na médico, tem ainda setores estruturados para administração, nutrição, carreira. registros de atletas e assessoria científica — que, entre outras coisas, A oportunidade no chamado Furacão poderia ser decisiva funciona como consultoria para evitar que os jogadores do clube na carreira do ex-meia: o clube tem uma das melhores estruturas para sejam flagrados em exames antidoping. divisão de base no país. Depois de comprar um enorme terreno de um Vanvan preferiu descartar esta oportunidade. O motivo? hotel-fazenda em Curitiba, em 1996, a diretoria do rubro-negro O amor. “Meu empréstimo era de um ano. Como eu tinha minha decidiu construir o Centro de Treinamentos do Caju. As equipes de noiva aqui, que hoje é minha esposa, acabei não aguentando, sabe?

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Fui embora com seis meses”, reconhece. Sua permanência no clube Fortaleza, foi jogar no Criciúma e no Goiás, dois tradicionais clubes poderia dar outro rumo à sua carreira: dois jogadores do clube foram brasileiros e, quando voltou para o Fortaleza, perdeu o pai. Foi golpe convocados para o Mundial Sub-20 de 2003, vencido pelo Brasil. certeiro na carreira. O “primeiro técnico” da carreira era seu principal Ainda jovens promessas, o meia Fernandinho e o atacante Dagoberto incentivador. "Meu rendimento caiu muito a partir daí. Mas muito se destacaram e chamaram a atenção do elenco profissional do mesmo", afirma, enfatizando o último termo. Furacão e de outros clubes. Fernandinho hoje joga no Shakhtar Depois da morte de seu pai, de fato, o ex-jogador não Donetsk, da Ucrânia, campeão da última edição da Copa da Uefa, e passou por nenhuma grande equipe do futebol brasileiro. Seus Dagoberto foi tricampeão brasileiro pelo São Paulo nas temporadas destinos foram primeiro o Ferroviário, do Ceará, depois o Ipitanga, da 2006, 2007 e 2008. Bahia, em seguida o cearense Uniclinic, o norte-rio-grandense Vanvan reconhece que foi a grande chance da sua Baraúnas e, por fim, o novamente cearense Itapajé. Foi este clube, carreira. A paixão, entretanto, venceu o sonho. "Eu tinha muitas inclusive, que provocou o desejo de deixar o futebol. “Joguei a saudades da minha noiva, que morava aqui em Fortaleza. Era muito maioria do tempo da minha carreira em time grande, né? Quando caí longe, eu era menino, morava no clube e não podia levar ela pro para time pequeno, não me acostumei. Assim... Salários atrasados, Paraná. Lá eu tinha tudo, tudo mesmo. Voltei só por saudades dela. total falta de conforto. Ano passado, joguei a Copa do Brasil pelo Saudade mata a gente”, diz, citando involuntariamente Tanta Baraúnas. Aí tudo bem, terminou, vim embora, porque acabou meu Saudade , canção de Chico Buarque e Djavan. Se lembrasse da contrato. Quando cheguei aqui em Fortaleza, fui jogar a segunda música, talvez até pudesse se referir ao sentimento como “aquele divisão do Campeonato Cearense, num time chamado..." Veio uma poço não tem fundo, é um mundo e dentro é um mundo e dentro é um longa pausa até que se lembrasse do nome da última equipe da mundo e dentro é o mundo que me leva”, como os dois compositores carreira. “Itapajé”, recordou-se. brasileiros. As lembranças em relação ao clube, como se pode supor, A saída do Atlético iniciou o período de incessantes não são nada boas. “O salário atrasava, só tinha problema... Minha transferências — mais de uma por temporada: voltou para o mulher, claro, começou logo a me cobrar: ela me ligava todo dia

22 avisando que as nossas contas estavam atrasadas, que precisava de que nem eu”, fala. dinheiro para se sustentar e sustentar a casa... Nessas horas, passava Vangleydson explica que o fim da carreira não significou aquele filme na minha cabeça”, lembrou, referindo-se às dificuldades mais dificuldades na vida considerada normal, fora do esporte. “Parei que enfrentou no esporte. “Depois de pensar muito, falei: 'Poxa, vou de jogar, mas hoje tenho minha casa, sabe? Muito boa, mesmo, de largar. Jogar em time pequeno não dá mais'. Demorou um pouco, uns verdade”, exalta o agora secretário de uma empresa. “Apesar de minutos, eu pensei melhor e desisti da ideia. Pensei: 'Pô, eu tô novo, receber só um salário em três, quatro meses, deu pra arrumar tudo não tenho motivo pra parar agora, ainda dá pra tentar mais um pouco, direitinho. Tenho minha moto, que é meu xodó... E minha casa tentar um time grande'”, ponderou. A realidade, no entanto, superou a própria, o que é melhor coisa.” esperança e Vangleydson só esperou o fim de seu contrato com o Para Vanvan, a responsabilidade que aprendeu a ter desde Itapajé para voltar para casa. “Mas aí lembrei de tudo o que já passei que se comprometeu como noivo o ajudou a fazer melhor uso do seu por causa do futebol. E tomei a decisão de largar a bola.” O fim da dinheiro. “Muitos caras que jogaram até em time maior do que o meu carreira não poderia ser mais melancólico: um empate em 0 a 0 com o não têm casa própria, não tem um carro, um veículo qualquer. Eu sei São Benedito, no Estádio Capitão Tarcísio Araújo, com capacidade que minha moto não é nada de mais, mas se eu quiser ir ali, se para 2 mil pessoas e, “no máximo 50” presentes. precisar levar alguém numa clínica, pegar uma pessoa na rua, eu vou “Mas eu larguei por opção minha”, repete, embora saiba na hora que quiser, chego rápido. E tem gente aí que nem isso tem”, que a sua decisão não veio exatamente por vontade própria. Segundo destaca, orgulhoso do que conseguiu. ele, não faltariam propostas, caso continuasse em atividade. “Se eu O ex-jogador diz que seu melhor momento na carreira foi quisesse continuar a jogar por aí nestes times pequenos, até hoje eu em Santa Catarina. “Minha base inteira foi no Fortaleza. Em 2003, eu jogava. Mas não quero mais, porque, pra mim, jogar em time joguei a Primeira Divisão pelo Criciúma. Lá foi muito bom, cara. pequeno não tem futuro, cara. O jogador não recebe salário direito, Tinha estrutura demais”, lembra. Ele conta que o fato de poder ser quando começa a acumular dinheiro o clube ‘esquece’ de algum mês visto na TV o animou ainda mais para jogar bem e se destacar no pra te pagar, o jogador sofre muito. Principalmente se tiver família, Tigre catarinense. “Quando eu tava no Criciúma, joguei várias

23 partidas, sabe? Minha família assistia aos jogos pela TV... Joguei Campeonato Brasileiro, mostram que Vanvan não atuou em nenhuma contra Romário, que na época tava no Fluminense, joguei contra partida daquela edição da liga nacional. Suas opiniões, portanto, são aquele Santos de Robinho, Diego e Elano (foto 1), que hoje estão baseadas apenas no que viu de fora do campo, embora jure que tais todos na Seleção e na Europa, joguei contra o São Paulo de Luís experiências aconteceram. “São minhas melhores lembranças. Mas Fabiano, Ricardinho, Cicinho...", diz, acrescentando que a lista de hoje eu vejo os caras jogando pela Seleção e fico só pensando: 'Pô, bons jogadores é infinita. joguei contra esses ca ras todos e nunca vi nada de mais neles'”. Vanvan conta com orgulho que havia ficado famoso em Fortaleza. “A felicidade da minha família, que, quando terminava os jogos, me ligava. Todo mundo feliz, meus amigos também... Gente que eu nem conhecia me ligav a”, comenta, feliz. O período em que pôde disputar a Primeira Divisão do futebol brasileiro deixou marcas no jogador. Vanvan reconhece que a falta de reconhecimento foi um dos principais fatores para que resolvesse interromper a carreira. "É foda, cara... Quando você joga em time grande, você nem precisa ser conhecido, ser titular ou jogar toda hora: você tá conversando e diz que joga no Criciúma ou no Goiás, a pessoa muda logo o tratamento. Agora, vá dizer que joga no Itapajé, pra ver... Vira gozação”

Foto 1: Vanvan diz que um de seus orgulhos é ter jogado contra Elano O ex-atleta conta que o futebol também não foi só

frustração: Vangleydson considera o meio bastante humano. “Tive Uma questão chama a atenção, porém: as estatísticas da alguns colegas que marcaram a minha vida. Vários. Paulo Baier foi Futpédia Globo.com , mais amplo banco de dados sobre partidas do um deles. Aprendi muitas coisas com ele, ele me ensinou muitas

24 coisas. Ele me e nsinou que o cara só vale o que tem", confunde -se, ao Tem muitos, viu? Aquele (foto 2), do São Paulo, aquele querer dizer que o jogador só vale o que é, não o que tem de material. 'hômi'... Meu Deus, o que aquele cara tem, meu Deus, pra ser jo gador "Sabe... O cara tem sucesso, mas é muito gente boa. É um cara de time grande? Não tem nada, cara! É lento, não tem habilidade humilde demais. Demais”, diz. Paulo, hoje com 35 anos, joga no nenhuma”, critica. Atléti co Paranaense, curiosamente um dos primeiros times de Vanvan. No Criciúma, equipe pela qual jogaram juntos, Baier conseguiu se destacar e entrar no rol dos melhores jogadores do país. Ainda melhor relação Vanvan teve com Douglas, meia na época criticado po r ser “sonolento” em campo, hoje estrela do futebol brasileiro. O amigo de Vangleydson ajudou o Corinthians a retornar à Série A em 2008, continuou a atuar bem e foi vendido por R$ 11 milhões ao Al-Wasl, dos Emirados Árabes Unidos. “Jogamos juntos lá no Cr iciúma. Eu só vivia na casa dele. A mãe dele me tinha como um filho, me tratava bem, parecia que eu era da família. A gente só andava junto, um preto e um branco", fala, antes de rir frouxamente por alguns segundos. "Ele era parceiro demais", conta. Mas, s e Vanvan não vê “nada de mais” em alguns Foto 2: Para Vanvan, Washington, duas vezes artilheiro do Brasileiro, é "ruim demais" jogadores da Seleção Brasileira, o que faz um jogador se destacar tanto e ser idolatrado por tanta gente? "Nooooossaaaaaa...", diz, com Washington é conhecido pelo bom posicionamento e uma estranha pausa que parecia não ter fim. “Tem muito de sorte. Pra pelos gols que marca, embora tenha muito pouca técnica com a bola. mim, futeb ol é mais sorte do que talento. Tem muito jogador pior do No fim de 2003, descobriu que a diabetes tipo 1, diagnosticada sete que eu que deu certo. E eu tô aqui. Quando eu vejo futebol, nossa... anos antes, havia causado complicações cardíacas — uma de suas

25 artérias coronárias estava 90% entupida. O jogador teve de se afastar Vanderson, ... Mas não quis fazer isso, não. Era arriscado do futebol, colocou três stents — tubo introduzido na artéria para demais, se descobrissem, só quem ia se ferrar era eu”, lembra. impedir entupimentos — no coração, mas voltou em 2004, quando Em 2008, já próximo do fim prematuro que deu à foi artilheiro do Campeonato Brasileiro. Ele repetiria o feito em 2008. carreira, Vanvan atuou pelo Baraúnas contra o Criciúma — Nem a história do Coração Valente , como ficou justamente o clube do qual tem melhores lembranças profissionais. conhecido, enternece Vanvan. "É como eu te disse, cara. Tem muitos “Putz, fiquei muito assim... Deu frio na barriga”, ri. “Era meu ex- caras fracos jogando em time grande. E isso aí é tudo empresário, o clube, né? Representou muito pra mim, ficou marcado”, emenda. O cara consegue levar jogador ruim pra time grande, faz o cara vingar, maior incômodo do confronto, na verdade, foi a mágoa por estar no mesmo”, ataca. Para o ex-jogador, trata-se de uma “máfia”. “Muitas lado mais fraco da disputa. “Então, jogar contra o Criciúma por um vezes, o empresário coloca dinheiro no clube pra crescer o jogador time pior, time de Terceira Divisão, foi difícil demais também, porque dele. Aí, quando o cara cria nome e é vendido, ele recebe de volta o o projeto da vida da gente é jogar pelo time grande contra o pequeno, dinheiro que investiu no cara e ainda sai com lucro.” nunca fazer o contrário”, lamenta. Um destes agentes chegou a fazer uma proposta da qual O ex-jogador questiona: “Você só achou isso sobre mim? não se esquece. Vangleydson se tornaria um “gato” — jogador que Mais nada? Olha se você acha uma matéria sobre mim... Em 2007, eu adultera a idade para atuar em categorias de base inferiores. Como a fiz um golaço contra o Bahia, na Fonte Nova”. O jogo terminou 3 a 2 diferença física e de maturidade entre juvenis, juniores e profissionais para o Bahia sobre o Ipitanga, time que Vangleydson representava. O é muito grande, fraudar a identidade de um profissional para que ele gol de Vanvan foi o segundo, de empate, aos 11 minutos do segundo jogue contra atletas mais novos aumenta a possibilidade de que ele se tempo. A festa durou pouco, já que o lateral tricolor Carlos Alberto destaque e seja vendido como revelação. “Gato? Recebi muita desempatou a partida no fim daquele dia 1º de abril de 2007. “Só uma proposta... Um cara queria me levar pro Vitória, seria ótimo pra mim, coisa: minha família foi contra eu parar de jogar. A decisão de parar porque o Vitória tava em baixa, tinha caído pra Terceira Divisão, e eu de jogar, de não querer mais, foi minha, entendeu?”, lembra, pela poderia crescer junto com o time e voltar pra Primeira, que nem última vez, Vanvan.

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CHAGAS E CURAS lembra ao certo a idade que tinha quando buscou uma vaga nas divisões de base do time para qual torce. “Depois, por uma escolinha de futebol, fui convidado a fazer teste no Vitória por um rapaz do "Ganamos, perdimos, igual nos divertimos." clube. Fiz o teste, recebi elogios, mas fui considerado muito pequeno Crianças após jogo no Uruguai, para a minha idade”, relata. citadas por Eduardo Galeano A partir dos anos 1990, particularmente quando os campeonatos europeus começaram a ser transmitidos no Brasil, muitos dos clubes do país passaram a adotar os critérios que as Muitos dos amigos de Renato Silva no curso de Ciências equipes do Velho Continente utilizavam para aprovar jovens Biológicas da Universidade Católica do Salvador nem suspeitam que jogadores. E um deles, talvez o principal, seja a altura e a força física o rapaz magro e de cabelos encaracolados que fala com propriedade do garoto em questão. De certa forma, o fato de que equipes sul- de plantas, animais, vírus e bactérias lidava com um universo americanas levaram ao pé-da-letra estas orientações fez com que completamente diferente há apenas dois anos. O jovem de 19 anos muitos talentos fossem perdidos. Um caso emblemático é o de Lionel por pouco não virou jogador profissional de futebol — e não foram Messi, favorito ao prêmio de melhor jogador do mundo em 2009, que os quero-queros dos gramados que o fizeram mudar de ideia. foi recusado em três clubes da Argentina — Newell's Old Boys, River Ainda menino, Renato se destacou na seleção do Instituto Plate e Independiente — por ter uma deficiência no hormônio do Social da Bahia, o ISBA, onde estudava. Foi um habitué das seleções crescimento. Nenhuma das três agremiações quis pagar o tratamento, de futsal do colégio, atuando entre os melhores da escola desde a 3ª estimado em US$ 900 mensais — quando o peso argentino era série até o 2º ano do Ensino Médio. Os elogios e a autoconfiança o tratado em paridade com a moeda norte-americana. O Barcelona, da fizeram tomar coragem de tentar entrar em um clube de futebol. “Mas Espanha, percebeu que o menino de 13 anos e 1,40 m era especial. E fui enrolado em algumas situações e terminei largando”, conta. Messi está na Catalunha até hoje. “Eu ouvi muito isso”, conta Renato, O primeiro teste que fez foi no Bahia, mas Renato não se meia e volante. “E creio que no Vitória isso seja mais valorizado”,

27 opina, com conhecimento da causa. meses antes, Rodrigo pilotava um carro que capotou na Estr ada do “Mais ou menos um ano” depois, já com 15 anos, Silva Coco, no litoral norte da Bahia. O tempo que ficou no hospital e em foi indicado ao Bahia. Foi ao Fazendão tentar fazer seu primeiro recuperação dentro de casa o impediu de assumir a equipe de Catu. treino. Novamente, poré m, teve de voltar para casa. “Toda vez que eu ia lá, me diziam que eu tinha errado o dia, que era para voltar em outro. Aí 'larguei de mão'”, conta, na gíria baiana relativa a “deixar para lá”. Já que não havia chances no campo, Renato se manteve dividido entre os estudos e o futsal do ISBA. “Continuei no f utsal por paixão ao futebol. Continuei os estudos, mas no fundo, no fundo, ainda tinha vontade de apostar, como vim a fazer mais tarde”, conta. Foi em um legítimo baba — o jogo despretensioso, a pelada da Bahia — que Renato recebeu sua grande chance no futebol. Rodrigo Chagas, ex-lateral-direito do Vitória, estrearia como técnico profissional no Ipitanga, clube com apenas três anos de fundação. O neotreinador acompanhou uma partida disputada por Renato e s e interessou pelo talento do menino, já que a equipe precisava de Futebol, hoje, para Renato, só nos babas e nos campeonatos de faculdade jogadores para a preparação para o de 2007. “Ele me viu jogando bola em um campo em Guarajuba. Na verdade, ele já Renato conta que o início da empreitada no Ipitanga foi me acompanhava muito antes. Ele ia me levar para a Catuens e, mas animadora, apesar da inexperiência no futebol, por assim dizer, a sofreu um acidente de carro e não teve condições de entrar em sério. “No geral, fui bem recebido pelo pessoal. De inicio, só treinava contato. Mais tarde, quando ele virou técnico do Ipitanga, me nos juniores, mas, depois de duas semanas, já treinava um turn o no perguntou se ainda queria tentar jogar. Eu topei”, relata. Poucos profissional e outro nos juniores”, diz. “Só que começaram os

28 problemas, e sobrei na história”, emenda. alemão saíram. Nunca recebi uma explicação, até porque eu mesmo Os problemas aos quais o garoto se refere estavam muito não quis procurar uma... Eu ouvi e, ali mesmo, tomei minha decisão além do seu alcance. Uma confusão no estatuto do Ipitanga fez com de largar o futebol e tentar um vestibular. Já estava batendo na porta.” que, durante cerca de dois meses, o clube tivesse dois presidentes — O irmão mais velho de Renato, o jornalista esportivo e, na verdade, não tinha nenhum. O alemão Martin Winner, que vinha Leandro Silva, explica melhor a questão. “Na semana da estreia do comandando a agremiação, alegava ter dois anos a cumprir de um Baiano de juniores, por causa desse racha, não deixaram inscrever os mandato de quatro, enquanto Robson Paranhos, eleito em votação do novos contratados: só poderiam jogar os que estavam inscritos desde conselho deliberativo, queria o lugar do germânico. O resultado desta o ano anterior — que nem faziam mais parte do elenco do clube. desordem foi a existência de dois planejamentos para o Campeonato Correram atrás dos meninos pra não tomar W.O. e os garotos Baiano ao mesmo tempo. Enquanto Winner contratava jogadores do acabaram estreando com vitória. Por causa disso, acabaram dando futebol do Ceará, Paranhos tentava garimpar atletas pela Bahia. Uma prioridade aos meninos que ganharam. E depois, se eu não me equipe treinava em Santo Antônio de Jesus, outra em Madre de Deus. engano, eles nem conseguiram mais vencer. Com as dificuldades de Vingou o elenco trazido pelo brasileiro — do qual Renato não fazia estrutura e a possibilidade de atrapalhar os estudos, ficava difícil para parte. A bagunça do clube era tão grande que havia ainda um outro Renato largar tudo e ficar esperando uma oportunidade.” time, formado somente por juniores, treinando na capital baiana. Apesar de o sonho ter falado alto, Renato agiu com “Eu geralmente voltava nos finais de semana para responsabilidade, a fim de não perder tempo para se dedicar à Salvador e, numa dessas, liguei para saber o que tinham resolvido por educação. “Rapaz... Eu tomei uma decisão pensada... Até porque lá. Foi quando disseram que não era mais pra voltar: eu e mais Rodrigo foi para o Vitória treinar as divisões de base e perguntou se metade do time que treinava em Santo Antônio de Jesus nem tinha eu queria que ele me indicasse mais uma vez”, afirma. Não havia sido inscrito no campeonato, só alguns que já jogavam antes”, relata mais razão para tentar. “Já não pensava mais em jogar futebol”, diz. Silva. Depois, já no meio do campeonato, Winner deixou o clube, Leandro conta que acompanhou a carreira do caçula mas já era tarde demais para Renato. “Creio eu que os ligados ao desde o início, sempre com bastante expectativa. “Na minha família,

29 sou o único que não tem talento para o futebol, então eu sempre me chamado viesse de uma liga sem tradição no futebol, como muitas no orgulhei muito de ver tanto ele quanto Lucas, que hoje tem 24 anos. Leste Europeu. “Iria para um país periférico. Ou para um time muito Os dois sempre se destacaram nas seleções do ISBA e em outros pequeno da 'Europona'. Mas é claro que o sonho de jogar primeiro campeonatos que participavam. E o mais interessante é que Renato, numa seleção e em um time grande da Europa, uma liga inglesa ou desde muito novo, jogava junto com os mais velhos acompanhando a espanhola, era muito grande. É o sonho de qualquer um, creio eu. mim e a Lucas”, fala. Leandro diz que, nas peladas, usava o irmão Mas sempre tive vontade de sair daqui depois de virar ídolo de um como “arma secreta”. “Muitas vezes achavam que ele era 'café-com- time brasileiro, não sair no anonimato. Muito menino sai daqui sem leite', o deixavam desmarcado. Aí, ele fazia a festa. Ele sempre teve o nem jogar no profissional. É o que vem mais acontecendo”, lastima o sonho de ser jogador profissional, e a gente sempre apoiava por ver ex-jogador. que ele tinha realmente talento pra isso. Então, eu sempre Ele conta que os valores de uma transferência para um acompanhei cada oportunidade que aparecia pra ele com muito pequeno país nem seriam tão importantes. “Posso até parecer orgulho.” hipócrita para muitos, mas o que me levaria a um lugar desses seria a Desiludido com o futebol da Bahia depois de três paixão pelo futebol e a vontade de conquistar meu espaço no meio, experiências frustrantes, Renato mudaria de ideia apenas se a me tornar bem-sucedido. Não o dinheiro em si. O dinheiro viria como proposta viesse de longe. “Só voltaria a jogar se recebesse um convite consequência”, justifica, empolgado. Entre risadas, tenta acabar com pra jogar fora do país. Fora do Estado até podia ser, se fosse em um algum eventual equívoco. “Mas o futebol não foi de todo ruim”, diz. time de São Paulo, só que estou parado há um bom tempo, e minha “Morei sozinho uns tempos — mais ou menos, porque era homem idade já seria de profissional. Aqui no Brasil, vejo uma maior pra caramba lá; o sozinho era no sentido de não ter a familia cobrança quanto a isso, questão de idade, condição física... Lá fora, fisicamente ao lado. Mas, nesta ocasião, vieram amadurecimentos acho que poderia ganhar isso aos poucos e, de início, viver mais da importantes para minha caminhada atual”, afirma, se referindo ao técnica”, sonha. tempo que passou treinando no Ipitanga. Silva admite que largaria a Biologia mesmo se o Seu irmão Leandro diz que sua avaliação sobre Renato

30 não é suspeita. “É até estranho, porque hoje eu trabalho muitas vezes bom”, fala. analisando os jogadores, dizendo se é bom, se é ruim. Nunca pude Confiante no talento do caçula, Leandro acreditava que, se externar o que eu sempre vi no futebol do meu irmão porque pareço o menino recebesse chances justas, conseguiria se destacar com suspeito. Mas independente de ser da família, eu via com toda certeza facilidade. Já no convite para a Catuense, a expectativa era grande. que ele teria lugar na base do Bahia, por exemplo, vendo o pessoal da “Tinha certeza que era a hora de deslanchar. Já imaginava: uns dois mesma idade”, opina. jogos contra o Bahia, mais dois contra o Vitória e ele chamaria a Um dos motivos pelos quais Renato não se arrepende de atenção de qualquer um dos dois. Mas aí veio o acidente com ter deixado o futebol é o pouco número dos jogadores que conheceu e Rodrigo e aí não deu... Depois, o próprio Rodrigo voltou a se conseguiu seguir adiante na profissão. “No Ipitanga, teve Danilo”, interessar pelo futebol dele e o levou para o Ipitanga. Ali, a coisa lembra, se referindo ao jogador que deixou a lateral para se tornar pareceu bem mais real. Na época, o Ipitanga era considerado um time meia na equipe do Madre de Deus no Campeonato Baiano de 2009. moderno, que tinha ido muito bem nos primeiros anos, e a gente já “Muitos que conseguiram se firmar no futebol eu sei que estão em vislumbrava até que ele pudesse ser aproveitado no time principal, times de pouca expressão”, especula. porque ele já treinava entre os profissionais. Mas foi bem quando De acordo com Leandro, os convites que foram feitos por houve o racha na direção.” Rodrigo Chagas haviam dado um ânimo novo às esperanças da Uma das situações que Renato diz ter mais contribuído família em relação ao mais novo. “Quando apareceram as para sua maturidade foi um erro que cometeu. “Algo que é muito oportunidades da Catuense e, principalmente, do Ipitanga, eu achei difícil de acontecer e rolou foi a amizade que fiz com um jogador que ele ia deslanchar... Quando eu soube que Rodrigo tinha gostado chamado Anderson, lateral-esquerdo. Ainda no meu segundo treino do futebol dele, principalmente por causa dos babas lá em Guarajuba, entre os profissionais, eu dividi uma bola com ele e o machuquei no fiquei muito orgulhoso. E é engraçado, porque eu era fã de Rodrigo, tornozelo. Ele só conseguiu ter condições de jogo nos dois últimos principalmente na época do Corinthians. Ver um cara que foi da jogos do Baiano”, lamenta. Embora o lance tenha sido involuntário, Seleção Brasileira se interessaar pelo futebol de meu irmão foi muito Renato não se exime. “Tive muita culpa: a bola foi dividida, mas, por

31 frações de segundos, tirei a bola e ele pisou no meu pé, torcendo o Rodrigo até hoje, sou amigo da família. O cunhado dele, que tem dele”, diz. mais ou menos minha idade, é meu amigão, vem aqui em casa, durmo Depois, pensando melhor, reduz seu percentual de lá também, vou em aniversários da família dele... Rodrigo sempre responsabilidade pelo episódio. “Acho que não tive a culpa, mas, por demonstrou ser diferente de muitos que existem. A simplicidade e o ter sido em um treino, eu coloco uma parcela de culpa em mim, sim, caráter dele são grandes demais”, exalta. porque eu poderia ter evitado, ter deixado algo do tipo... Mas quando Hoje em dia, o único contato que o menino tem com o treinamos, pregam muito que treino é jogo e jogo é guerra, ou seja: futebol profissional é em uma pelada de férias na praia, na qual treino é guerra. Aí você vai entrando nesse clima de disputar vaga, jogam ex-atletas e jogadores em período de intertemporada. tentar pegar seu espaço. Mas é meu amigo, até hoje mantenho contato Jogadores aposentados como Elói, Edílson, Robson Luís e o ex- com ele.” goleiro Borges, além de atletas em atividade, como Nadson e o O garoto afirma que, mesmo no competitivo ambiente do goleiro Felipe, do Corinthians, costumam participar do baba. Renato, futebol, nunca tentou “passar por cima dos outros”, sempre agindo frequentador assíduo dos jogos, relata que se encantou com a eticamente com os colegas. Mas, segundo o próprio, ele era exceção. simplicidade de jogadores famosos. “Alguns podem até ser fechados “Sei que isso existia. Tinha um zagueiro do profissional que gostava com os novatos, mas não é normal. Fernando, mesmo, me de criar umas confusões para prejudicar. Uma vez, eu e mais cinco surpreendeu”, diz. Renato fala do segundo-volante revelado no jogadores saímos pra comer pizza de noite, e ele entregou a gente pra Vitória Fernando Oliveira, de 31 anos, atualmente sem clube. Com Rodrigo, alegando que não estávamos comprometidos com a passagens por Japão e Emirados Árabes, o habilidoso jogador treina preparação. Rodrigo levou numa boa, porque não tinha nada de mais, no Bahia, separado do grupo profissional e chateado com o Vitória, só falou pra não virar rotina”, lembra, ressaltando o teor acusatório que não abriu as portas de seu centro de treinamento. “O cara é muito que o colega-rival usou para denunciá-los. tranquilo, joguei do lado dele. Ele me pedia desculpas quando errava, O ex-atleta conta que a relação com o único treinador que tal. Quando acabou ele ficou conversando com o pessoal numa boa. teve no futebol extrapolou os limites do campo. “Tenho contato com Brinquei com ele e tudo, falei pra ele ir pro Bahia arrumar meu time”,

32 ri o estudante de Biologia. COM CALOR, SEM CHUTEIRA Renato confidencia que, apesar de todos os reveses na curta carreira, fica feliz em lembrar do que viveu. “Eu gosto. Isso me faz lembrar muita coisa, passa muita coisa na cabeça, coisas que já "Não se brinca de Deus" estavam guardadas lá no fundo, pois não fico conversando sobre isso , zagueiro com as pessoas. Muitos nem sabem que um dia já tentei. De tanto ser uruguaio, perguntado apaixonado pelo futebol, nem minhas decepções me fizeram parar de se brincava de Obdulio jogar meus babas, meus torneios simples de faculdades... Tudo pela Varela na infância minha alegria, porque é ali que eu me sinto feliz e livre pra fazer o que gosto”, conclui. Mundial Sub-20. Jogadores de dois times quaisquer não cansam de perder gols. E Enoque Silva irrompe na sala vazia. “Eu vejo esses jogadores na TV e penso: putz, ele é muito melhor que esses caras. Ele poderia estar aí.” Ele quem? O motorista de táxi e futuro técnico em radiologia Marcos Vinícius, que desistiu do futebol após temporadas e temporadas de dificuldades em Salvador e no Rio de Janeiro.

Diferentemente de tantos outros ex-jogadores, Vinícius não tem mágoa do futebol. Nenhuma. Ri de muitas das dificuldades

que enfrentou, embora enrubesça ao falar da pior delas: a morte de seu pai. Hoje pai de uma filha de quatro anos, se deixa levar pela

noção insana de tempo do esporte e se diz velho com somente 22

33 anos. O ritmo da carreira de Marquinhos São Paulo, como era A moça já tava pedindo a casa de volta.” Vinícius conseguiu entrar no chamado quando começou, e Baianinho, alcunha que recebeu durante Barcelona (foto), clube semi-amador, que hoje disputa a Terceira os anos cariocas, foi tão veloz e incessa nte quanto a disposição das Di visão do . “Disputamos o Carioca lá, fomos informações acima. até as quartas-de-final”, diz. Com 14 anos, jogava no Projeto Revelar, uma escolinha de futebol. Junto com outros colegas, chamou a atenção do treinador Paulo Silva, que viu nos meninos uma oportunidade de fazer dinheiro e, ao mesmo tempo, proporcionar oportunidades interessantes para as crianças no futebol. A ideia foi marcar uma espécie de turnê pelo Nordeste: dois Estados, alguns amistosos, quem sabe algum menino encanta o técnico adversário... “Primeiro, fomos a Recife. Jogamos lá contra o ICASA, do Ceará, o Náutico e o Santa Cruz. Fizemos algumas partidas, mas nenhum desses clubes se interessou por nenhum dos nossos jogadores. Fomos pra Maceió, jogamos contra o Corinthians de Alagoas, o CRB e o CSA, mas também ninguém ficou”, conta. Pri meiro projeto fracassado, nova ideia em mente. O técnico resolveu investir somente nos quatro melhores do grupo. Para Foto: O Barcelona, clube em que Vinícius jogou logo que chegou ao Rio de compensar a redução quantitativa, um lugar com mais chances de Janeiro, hoje disputa a Terceira Divisão do Campeonato Carioca sucesso: o Rio de Janeiro. “Tinha uma casa alugada para a gente no Rio de J aneiro para a gente passar uma temporada lá e ver se O professor continuava em busca de um alojamento para arrumava alguma concentração. Passamos três meses na casa e nada. os seus jogadores, mas, distante, não conseguiu. Além disso, só havia

34 um jogador em idade de acolhimento nestes locais, o próprio fiquei, fiquei... Não disputei campeonato nenhum, aí saí. Eu me Vinícius. “Ele resolveu me dar uma ajuda de custo. Pagava o aluguel mandei para o Mesquita”, conta. da quitinete, no valor de R$ 150, e me dava uma cesta básica”, Treinando o Tubarão da Baixada, ninguém menos do que lembra. Aí estava o problema. Como só o Baianinho conseguia jogar, Jairzinho, o Furacão da Copa de 1970. A primeira reação de Vinícius só ele recebia o auxílio. Mas os quatro comiam da comida que lhe era foi de surpresa, ainda na peneira. Depois, ficou envergonhado por ser enviada. “Quebrança pura”, analisa. solidário a um colega mais pobre. “Nesse dia foi uma viagem. Eu fui As condições de vida beiravam o subumano. Muito pouca ser testado e meus colegas foram junto. Tinha um que não tinha comida, bagunça, meninos sozinhos. “Ficamos nisso seis meses: chuteira: a gente não tinha dinheiro pra comprar chuteira. Aí eu disse: batalhando, batalhando, batalhando... Um sofrimento, uma quitinete ‘Ô, véi, como você vai treinar primeiro que eu, te empresto a minha num lugar apertado pra quatro cabeças morarem, um calor miserável e, quando você terminar, pego na sua mão e calço’”, diz. no verão lá do Rio”, continua. A primeira residência dos quatro Tudo bem, é de se imaginar. Afinal, os jogadores mais garotos era na Estrada do Campinho, no infernal bairro de Campo novos treinavam depois dos mais velhos e, portanto, Vinícius poderia Grande, elegantemente qualificado como “quente pra caralho” por esperar. Eis que o artilheiro do Mundial de 1970, então, surpreendeu: Vinícius. “A gente saiu e foi pra Inhoaíba, outra quitinete”, relata, “Venha cá você”. O Baianinho ficou sem graça, não dava tempo de lembrando que a mudança não foi tão grande: os bairros são vizinhos, explicar. “Tô sem chuteira”, respondeu, para receber em troca uma e o calor suburbano é o mesmo. bronca: “Não tem chuteira? Você vai jogar descalço, é? Você veio A chegada à nova casa coincidiu com a mudança de pegar uma pelada aqui, foi?” Quando explicou o acontecido ao ex- clube. Do Barcelona, equipe com apenas três anos de fundação à camisa 7 da Seleção, ouviu de volta uma apologia ao individualismo. época, chegou ao tradicionalíssimo Madureira. Apesar da história “Emprestou pra ele? Já começou bem, hein?” louvável do Tricolor Suburbano , o presente não era — e não é — Assim, não havia opção senão esperar. O tempo no bom, sobretudo para um garoto de 15 anos recém-chegado à rua aguardo, contudo, foi bem maior do que o previsto. “Terminou o Conselheiro Galvão. “Cheguei para um tempo de experiência. Fiquei, treino dos outros meninos, peguei a chuteira de volta. Só que minha

35 turma toda entrou, e eu fiquei fora. Jairzinho me deixou, me deixou... conta, sem esconder a frustração. O clube alvinegro é conhecido por Como era um peneirão, tinha muitos meninos. Eu entrei na última ter revelado Ronaldo, o Fenômeno, no fim da década de 1980, mas remessa, já tava quase escurecendo”, fala. “Aí ele me botou pra jogar. tem como última glória o título do Campeonato Carioca no longínquo Quando entrei, mandei logo uma caneta no cara”, gaba-se, citando o ano de 1926. drible em que se passa a bola por baixo das pernas — as “canetas” — A situação do Baianinho melhorou somente quando do adversário. arranjou uma namorada fluminense. “Joguei um bom tempo lá no São Apesar da habilidade que tinha, Vinícius conta que foi Cristóvão, um bom tempo. Fiz 16 anos, e com 17 arrumei uma outra característica a que encantou o treinador. “Naquela época, eu menina... Ela foi me ajudando nas questões de alimentação, mesmo, jogava muito com a mão, dava tapa na cara, ia empurrando os outros. comia melhor. Além disso, a mãe dela me ajudava com dinheiro pra Porque eu sou baixo e era muito franzino, magrinho, então precisava transporte”, recorda-se, mostrando nítida gratidão pela família que o me defender, usar o corpo pra proteger a bola, senão tomavam ela de adotou na terra ainda estranha. mim”, diz. Depois que entrou no campo, as primeiras palavras que As coisas melhoravam. A fome não era mais um ouviu do craque do passado serviram para renovar toda a esperança problema, havia conseguido se firmar em um clube, embora este que depositava no futebol. “Ouvi dele: 'Pô, o menino é bom', e eu fosse pequeno e com pouca relevância no futebol do Estado. Pelo fiquei. No outro dia, em outro treino, meti um gol. E me firmei”, menos, chamar a atenção de equipes maiores só dependia do próprio relata. Vinícius. A jornada foi interrompida por uma chamada telefônica. As condições difíceis nas quais vivia no Rio, porém, “Meu pai me ligou mandando eu voltar para Salvador, porque atrapalharam os planos de continuar sob os comandos de um Newton Mota tinha montado um clube aqui”, conta. O Real Salvador campeão do mundo. “Como lá não tinha concentração, ele me foi a alternativa de Mota, homem que coordenou a fase mais frutífera indicou para o São Cristóvão. Ele me indicou”, diz, ressaltando o das divisões de base do Vitória, à competição com os empresários. pronome. “Quando aconteceu isso, pensei: se o Jairzinho me indicou, Seu Bento José convenceu o filho a voltar. “Disse que era vai me mandar prum lugar beleza. Foi lá para o São Cristóvão”, melhor ficar mais perto de casa”, diz. Vinícius chegou em uma

36 segunda-feira. Exatamente uma semana depois, seu pai foi pai. Já pensou se eu tô lá e recebo a notícia? 'Venha pra casa agora assassinado após reagir a um assalto. “E eu fiquei aqui.” Vinícius, que que seu pai está no hospital', imagina. Eles não iam dizer que meu pai já havia voltado a ser Marquinhos São Paulo, viu seu futebol se tinha morrido”, opina. perder. “E eu gostava. Eu gosto de bola, jogo até hoje. Mas sabe o Para Marquinhos, a morte de Bento José foi, na prática, o que é desandar? Desandou tudo. Não estava acertando mais nada, não fim da sua carreira. “Eu ainda fiquei durante os 18 e os 19 anos acertava um passe que fosse”, conta. jogando bola, mas quando eu entrava no campo ou no estádio, não A experiência no Real Salvador — “um mangue retado” acertava nada. Comecei a 'comer banco'. Aí eu já tava no —, que o fez retornar à Bahia, foi tão curta que, no dia da morte do Camaçariense. Já não tava acertando mais nada”, repete. pai, Vinícius já treinava no Camaçariense, clube da Região Evidentemente, nem a compreensão e a solidariedade de seu técnico Metropolitana de Salvador. “Quando meu pai morreu, eu tava no foi suficiente para aplacar a dor. “O treinador da turma dos juniores treino. O pessoal nem me ligou. Eu vim pra casa cansado. Quando era evangélico, me ajudou bastante. Ele sentia que a minha situação cheguei em casa, vi a família toda lá. Eu vi de longe todo mundo na era complicada. Eu não chorava em casa, pra não... Era só eu, minha porta de casa, pensei: 'Será que é aniversário?' Quando cheguei mais mãe e minha irmã. Aí quando ia treinar, que ficava imaginando, eu perto, estava todo mundo chorando. Aí a casa caiu, desandou tudo. É chorava, véi.” como se todas as vigas de uma casa fossem derrubadas, como se, de “Tinha perdido o ânimo, a alegria de jogar bola, aquela repente, ficasse tudo só no bloco de sustentação...” coisa de correr com vontade, sabe? Mas nada relativo ao futebol em Quatro anos depois, Vinícius não se arrepende de voltar. si, era eu que não tava bem pra nada”, explica. O treinador colocava o “É coisa de Deus. No dia em que meu pai me ligou, eu chorei pra garoto em campo, continuava dando oportunidades mesmo com a porra pra não voltar pra casa. Pô, tinha sido indicado por Jairzinho. queda brusca de rendimento. “Depois, nem relacionado para os jogos Mas ele mandou eu vir pra cá. As coisas estavam fluindo lá, estavam eu era mais, comecei a brigar... Resolvi parar.” acontecendo. Mas Deus faz tudo certo. Eu vim, e uma semana depois O ex-atleta afirma que a decisão foi correta. “Não dava meu pai faleceu. Ainda fiquei uma semana em casa, pude ver meu para mim, a cabeça estava a mil. Dei um tempo em casa até que

37 chegou a época de servir ao exército, e me alistei. Depois, ainda no campo”, conta. tentei voltar a jogar, mas desandou mesmo. E resolvi parar. Tava A morte do pai alertou Vinícius para o nascimento da perdendo tempo, o tempo tava passando, tava ficando velho”, diz, filha, fruto de um relacionamento rápido durante o período do ano- apesar de seus 22 anos. Poucos minutos depois, entretanto, confessa novo. “Eu vinha, né? Todo fim de ano. Eu vim uma vez no réveillon, que a vontade de jogar futebol voltou. “Eu tenho vontade, hoje eu aí no dezembro seguinte voltei de novo. Fiquei com a menina e ela penso: ‘Vou me preparar um ano fazendo exercícios e fazer um teste engravidou. Eu voltei pro Rio. Meu pai mandou voltar, mas não por em qualquer lugar aí’”, sonha. causa do filho. Ele nem sabia.” Agora, vizinho da esposa no bairro do Vinícius sabe que não é mais possível voltar. Ou melhor: IAPI, planeja a compra de um lugar para “se esconder”. “Na época que a chance é remotíssima. “Eu fiquei impressionado com aquele que teve a barriga, ela era 'de menor' e o pai dela não a deixou sair de volante do Santo André, Fernando. O cara tem 42 anos, véi. Na casa. Foi uma ajuda muito grande o pai dela não querer que ela saísse Primeira Divisão. Aí eu fico imaginando em me preparar e tentar de casa. Deu tempo pra se arrumar, ganhar responsabilidade.” fazer um teste. Ainda penso assim”, diz, antes de voltar à realidade. Vinícius conta que não tem notícias dos colegas com “Eu tenho uma filha, tenho uma esposa. Então, parar... Tudo bem que quem morou no Rio de Janeiro. “Deixei todos lá, nunca mais tive no meu trabalho dá pra parar um pouco, sou eu quem faz meu contato”. As lembranças da estada no Rio se misturam: ora tensas, ora horário, então dá pra ir em uma peneira fazer um teste, mas eu penso: descontraídas. “Eu fui na 'cara dura'. Sabe como é, chamam de 'Será que vai dar? Será que ainda tem jeito?'” baiano, não-sei-o-quê, o pessoal fazia gozação, e eu ficava quieto. “Às vezes eu choro em casa, quando tô deitado, sozinho. Não tive ajuda de ninguém. Eu me acho um cara tímido, mas quando Eu não choro na frente de minha mãe, nem de minha irmã, nem de eu entrava no campo... Descontava tudo! Eu preferia dar um drible do ninguém”, revela, com os olhos vermelhos e marejados. “Às vezes eu que fazer um gol”, diz. tô assistindo um jogo e saio da sala todo assim... Fico me “Eu queria voltar. Mas eu queria assim: 'Bote o menino lembrando... Ele assistia os jogos comigo. Queria que eu jogasse que pra jogar', porque... Não gosto de treinar. Treino físico, essas coisas. nem , ficava sinalizando como ele se posicionava No Barcelona, mesmo, jogando contra o Campo Grande, demos dois

38 a zero. Aí jogamos contra o Campo Grande, tinha umas dos dois centroavantes, que tiveram passagens rápidas com a camisa arquibancadas ao redor, tudo cheio, familiares, amigos. Já tinha gente amarela, passaram por boas fases, mas se encaminham para o fim da que me conhecia, porque eu rodava muito pela cidade atrás de clube. carreira no ostracismo. O pessoal gritava 'olha o Baianinho!'”, relata. Mas estes pequenos O ex-jogador explica que mudou bastante desde a morte momentos célebres eram seguidos sempre de um problema, segundo do pai e o nascimento de Maria Eduarda, hoje com quatro anos. “Eu conta. fazia muita farra, bebia muito. Como agora trabalho direto, resolvi Novamente chamado de Marquinhos, Vinícius analisa as me segurar. Eu tenho 22 anos e sei que, normalmente, quem tem experiências do passado, sobretudo dentro do campo. “Às vezes é minha idade não quer saber de nada. Mas eu já tenho outra visão: já aquele lance: você vai pro jogo, está errando demais. Quando o outro passei tanta coisa na vida. Lá no Rio, mesmo, foi sobrevivência. olha da arquibancada, só vê o craque. O craque passa o tempo todo Tinha época de passar necessidade, mesmo. E eu pensava: 'Porra, sem pegar na bola. Quando pega, dá um passe. E todo mundo diz: olha para onde eu vim. Eu tinha minha casa em Salvador, tudo 'que passe'. Mas, se for um desconhecido lá atrás, pode jogar o que beleza, e estou aqui... Comida regrada, um calor desgraçado'. O for, mas ninguém reconhece, porque a vitrine é o outro. Eu tô ventilador mandava ar quente, parecia uma sauna. Eu brincava: 'Nem brilhando aqui, correndo, marcando, tocando e aparecendo pra sei o que eu fiz pra Deus fazer isso comigo... Nem pequei tanto assim receber, e o estrela tá aqui parado. Você não está no foco, o cara é ainda, sou novo!’ A gente se divertia também, mas tinha horas que a ele”, critica. “É questão de sorte. Às vezes você está brilhando, mas gente chorava... chorava... Cada vez era um.” já tem uma estrela acesa no time. Mas, no dia em que você não brilha, pode ser o dia em que precisam de você.” Vinícius revela uma reflexão de quando achava que o futebol era feito apenas de talento. “Eu pensava: 'vou ser jogador de futebol com certeza'. Eu via Fábio Júnior e Jardel jogando bola, ainda na Seleção! Pelo amor de Deus...”, brinca, lembrando da inabilidade

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TRANSFORMAÇÕES O dirigente se notabilizou por comandar as divisões inferiores do Vitória durante os anos 1990, em que o rubro-negro apresentou ao futebol brasileiro jogadores como Dida, Rodrigo, “O talento sem organização é um vazio, Dedimar, Flávio, Júnior, Alex Alves e tantos outros. Diante do avanço desperdício; indiscriminado dos empresários, resolveu fazer o jogo dos rivais: a disciplina sem criatividade está próxima fundar sua própria equipe, de modo que pudesse arrecadar receitas da mediocridade” Tostão por meio do seu próprio trabalho de revelar e vender bons jogadores. Não deu certo: no ano em que conseguiu se armar de maneira mais forte para a Segunda Divisão do Campeonato Baiano, o torneio foi 1.700 km separavam Ananias Monteiro de seu destino em cancelado. 2002, quando deixou a periferia de São Luís, no Maranhão, A passagem de Ananias pelo clube foi relativamente convencido de que seu futuro era a Bahia. A viagem durou dois dias, curta, se encerrando em 2005 com a chegada ao Bahia. O maranhense ele se lembra perfeitamente. E, depois de chegar a Salvador, ainda não teve o destino feliz de jogadores como Apodi, do Vitória, descobriu que seu futuro era o Bahia, assim mesmo no masculino. Guilherme, do CSKA Moscou, Guilherme, do Almería, ou Leandro Ananias foi mais um dos milhares de jogadores Lima, do Porto — este último recentemente flagrado com observados todos os dias por olheiros de todo o Brasil. Numa peneira documentos adulterados para parecer mais jovem. Ainda assim, o em seu Estado, foi visto por um empresário, que se interessou em meia do Bahia desfruta de uma ascensão na carreira — ainda que trazê-lo para qualquer lugar distante do Maranhão, cujo melhor clube, discreta. Em 2007, quando a reportagem de Um passo à frente o Sampaio Corrêa, chafurda na Terceira Divisão do futebol brasileiro. conversou pela primeira vez com o jogador, o Bahia estava na Série A Bahia foi escolhida como caminho, já que Newton Mota, C do Brasileiro, o desastre da Fonte Nova ainda não havia acontecido especialista em revelar jogadores, havia acabado de fundar o Real e o sonho imediato do atleta era assumir uma vaga entre os titulares Salvador. do Tricolor Baiano. “Já joguei na Série C e espero que [o

40 treinador] confie ainda mais no meu trabalho”, disse, à época. O meia-atacante passou por uma transformação desde que Aconteceu. chegou ao Esquadrão de Aço. De maturidade, é verdade, mas, Ainda naquele ano, Ananias recebeu a oportunidade de sobretudo, no físico. Se hoje ainda é considerado pouco corpulento, é começar uma partida como titular. Não foi bem. Hoje, diz que não possível imaginar como era quando foi apresentado no clube, doze estava maduro o suficiente. “A gente sempre acha que já pode jogar”, quilos mais magro do que os 70kg de hoje. “Eu era feinho, viu? Era argumenta. No Campeonato Baiano de 2008, passou a ser escolhido mirrado demais”, diz. O jogador agradece ao Bahia. “Eles podiam me para o '11 inicial' mais vezes. Mesmo assim, sofreu com a dispensar por ver que eu era magro, mas viram que eu tinha valor e inconstância do elenco comandado por Paulo Comelli. O treinador me ajudaram, fizeram um trabalho comigo para que eu ganhasse paulista o sacou da equipe em seu melhor momento, e o jogador não massa muscular”, conta, animado. Além disso, trocou a cabeleira conseguiu manter o ritmo de boas atuações. “Nem todo jogador é cacheada — alvo de chacota dos colegas — por um corte mais curto e igual. O professor não tem culpa, mas às vezes o atleta precisa se discreto. sentir confiante. No meu caso, pelo menos, é assim: se eu não jogo O jogador vem sendo parte da reabilitação do Bahia na bem uma partida, fico 'na pilha' para me recuperar no jogo seguinte”, Série B de 2009. Depois que voltou ao time titular com o conterrâneo diz. “Se eu fico no banco, já sofro um baque, porque fico com a Alex Maranhão, a equipe melhorou e passou a lutar mais atuação ruim na cabeça”, acrescenta. efetivamente contra o rebaixamento para a Terceirona. Aconteceu, Até chegar ao profissional do Bahia, Ananias enfrentou a entretanto, o que mais aflige Ananias: a interrupção de um bom carga pesada de treinos no clube. Os juniores trabalham praticamente momento por conta de uma contusão. Em novembro deste ano, fase no mesmo ritmo dos profissionais, se apresentando para treinos em do campeonato em que o time mais precisa de seus atletas, o meia dois períodos do dia por padrão. Além disso, conviveu com a falta de sofreu um estiramento muscular na coxa e, provavelmente, só volta a conforto e privacidade para quem mora nos alojamentos — até a jogar em 2010. “Só me resta torcer pra me recuperar logo. Se não der, reforma do início de 2009, os espaços eram pequenos e fechados, vou ter que torcer pelos companheiros, mesmo”, lamenta. cheios de beliches. Nos cômodos, dormiam até oito garotos. Ricardo Silva foi treinador dos juniores do Bahia até

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2008, quando foi contratado como auxiliar dos profissionais do rival propostas”, fala. Vitória. O ex-chefe de Ananias no Tricolor é categórico ao avaliar o Ananias confia plenamente em seu agente. “Coré tem comprometimento do ex-comandado. “Não basta saber jogar futebol, experiência, trabalha com jogadores conhecidos, já fez a vida de tem que ter respeito, comprometimento, disciplina, senão vira um Zé muito jogador. E gosta de mim, aposta no meu futebol”, diz. A Roberto da vida”, diz, citando o jogador do Flamengo famoso pela relação é mais do que profissional, é de gratidão. “Preciso retribuir a indisciplina e pelo singelo apelido de Zé Boteco . ajuda de quem acredita em mim”, declara. Tanto esforço tem um objetivo: Ananias mira a Europa, O negócio de Sérgio é, antes de tudo, com os pais dos terra prometida do futebol. No entanto, reconhece que ainda está garotos, quase sempre menores de 18 anos. Receber a autorização da longe de mudar de país. “Não consegui chamar a atenção ainda. Mas família aumenta a responsabilidade do empresário: segundo ele, a primeiro eu queria jogar com o Bahia na Primeira Divisão”, fala. Só chance de um agente enganar seu atleta é grande, se faltar caráter do se for em 2011, porque o clube não conseguiu garantir o acesso na seu lado. Segundo Coré, o fato de ter um “nome a zelar” faz com que temporada 2009 e, se fugir da Série C, terá de disputar a Segundona a assinatura de um contrato com um atleta vire realmente um outra vez no ano seguinte. “Todo mundo quer jogar num Barcelona, compromisso. “Eu recebo o dinheiro direto do jogador, mas, ao num Real Madrid, num Manchester United, pô.” mesmo tempo, não posso deixar a família de lado. Eles temem que o Seu empresário, Sérgio Coré, argumenta que ainda não é menino largue os estudos para jogar futebol e eu tento mostrar a hora de o maranhense deixar o Brasil. “Já tive jogadores nos quais trajetória de sucesso dos jogadores com quem trabalho”, conta. “Eu apostei muito e não deram certo. Mas, graças a Deus, minha margem preciso da confiança dos pais. Sem eles no apoio, não consigo de erro é pequena”, diz, apostando desde 2007 em Ananias. O ex- trabalhar”, justifica. treinador Ricardo incentiva o jogador a sair do Brasil, se receber um convite interessante financeiramente. “A maioria destes meninos vem de família humilde. A grande vontade que eles têm é a de ajudar, comprar uma casa para a mãe. Não tem como não aceitar essas

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GRANA, PRAZERES E ASSÉDIO técnica, chefiada pelo técnico Toninho Barroso, e foi admitido pela competitiva equipe de juniores do clube. Entre os jovens rubro-negros com quem Guga atuou em "O difícil não é fazer mil gols como Pelé. campeonatos daquela categoria, estavam Marcelinho Carioca, Paulo O difícil é fazer um gol Nunes, Júnior Baiano, Nélio, Djalminha... Todos jogadores que se como Pelé" Carlos Drummond de consagrariam no futuro. Entre os juniores, ganhou o Campeonato Andrade Carioca e a Taça BH de Futebol Júnior de 1986. Veio o primeiro

contato para deixar o clube. O destino seria a Europa. “Nem pensei

duas vezes. Eu não tinha contrato com o Flamengo, era só uma ajuda Gustavo Borba subverte o pensamento estabelecido sobre de custo. Então, embarquei.” a exportação de jogadores brasileiros para a Europa. O ex-jogador de “Já tinha começado sozinho nessa luta, buscando o sonho 38 anos olha os crescentes números de jogadores transferidos para de jogar futebol, então meti as caras. Fui pra França pra uma fora do país até com certo desdém: ainda em 1987, trocou o entrevista. O diretor gostou de mim e fiquei lá no Ajaccio como Flamengo pelo Ajaccio, da França, na sua primeira empreitada em experiência. Na cara e na coragem, fiz um pré-acordo com meu um time europeu. empresário, um italiano, e fui”, conta. Gustavo teve uma chegada Ainda garoto, Guga Baiano deixou as quadras e os bastante tensa. “Fui bem acolhido; o time estava na Segunda Divisão. campos de Itapetinga, que o acolhiam carinhosamente a cada aula Mas cheguei em plena guerra. Os corsos queriam independência”, perdida para o futebol. Depois de um teste do Bahia em sua cidade, relata. A Ilha de Córsega fica entre Itália e França. Após disputa rumou para Salvador atrás de uma oportunidade — à revelia de seu histórica pelo paradisíaco lugar, os franceses anexaram a ilha em pai, que via o esporte como “coisa de vagabundo”. Passou rápido por 1770. Guga deu azar de chegar justamente em um dos arroubos Bahia e Vitória e, com 17 anos, já estava no Flamengo, auxiliado nacionalistas dos locais, que queriam “se livrar” da França. “Tinha pelos contatos de um tio. Conquistou a confiança da comissão neguinho armado na rua e eu lá no meio. Mas cheguei tranquilo,

43 passei no teste e assinei co ntrato de dois anos. Nesse meio tempo, o Futsa l (foto). “Interiorzinho, cidade linda”, avalia Gustavo. “Também time caiu para a 3ª divisão, mas a gente subiu de novo para a 2ª fiz sucesso na Espanha. Joguei quase três anos, e, depois, ainda tive Divisão”, conta, orgulhoso. experiência na África. O Marrocos era coisa de louco naquela época”, emenda. Para o centroavante, com um bom empresário, o jogador pode ampliar mais seu leque de possibilidades na carreira. “Futebol é mundial, te leva para qualquer lugar do mundo. Você não precisa falar a língua. Se joga bem, vai pro Japão, Ásia, Europa. O que causou o meu retorno ao Brasil foi justamente não ter um empresário forte perto de mim”, lastima. O empresário italiano que o levou à Europa tinha sumido. “Na verdade, o grupo que veio foi de caras para conseguir levar jogador e ganhar em cima. E eu fui nessa barca”, diz. Seu pai foi atrás do filho, q ue pegava ônibus, e avisou do interesse. “Eu estava no Flamengo, vim aqui de férias, pensei: é lógico que eu vou. O pior é que tinha de ir “hoje” para o Rio e “amanhã” pegar um voo para

Foto: A pequena cidade de Salou agora não tem mais representação no futebol Berlim. Passamos uma semana em um ótimo hotel em Copacabana e de campo assinamos um pré-acordo”, fala. Neste período, começou a vida nômade do atleta. “Eu fui Gustavo conta que, na verdade, era seu pai quem tinha de negociado, emprestado para a Espanha, e passei um tempo lá”, diz. O assinar o pré-acordo, já que era menor de idade. "Mas naquela time do Salou, como a cidade homônima, é pequeno. Tão pequeno empolgação toda a gente nem pensou em resultado", diz. Talvez que hoje nem existe mais como equipe de campo, atuando apenas no justamente por não ter a orientação paterna, foi e nganado pelo

44 agente. “Nada que eu assinei valeu. Então ele recebia meu salário, carreira se tivesse recusado a proposta dos empresários europeus e pegava metade, botava no bolso dele e me dava uma merrequinha. Eu esperasse para avaliar se valia mesmo a pena. O roliço ex-atleta não podia reclamar.” lembra com tristeza de certos episódios. “Tem muita gente ruim... O período na Europa durou entre os 18 e os 27 anos. “Só Lembro de ter sido aliciado sexualmente também. Vou te dizer uma fazia vir de férias e voltar”, diz. Depois de passar por Espanha e coisa: quando eu estava no Flamengo, na porta do clube, depois do Marrocos, Guga voltou para o Ajaccio. “Só que o time não estava treino, chegavam os caras pra te abordar, não tinha jeito.” Para não se bem, ainda na Segunda Divisão. Não tinha condições, mas queria ir deixar levar por propostas indecorosas, Guga se recordou da para a Primeira, então, sobrava para os estrangeiros. Fui mandado educação que recebeu. “Senão, eu tinha ido para o outro lado, embora, rescindi o contrato, só que, neste meio tempo, meu pai tinha entendeu? Oferecem tudo a você: muita grana, drogas, sexo”, revela. ligado para lá me procurando. Tive um problema com o presidente do Gustavo acredita que poderia ter trilhado um caminho clube, nem avisei a meu pai e voltei para o Brasil”, diz. O pai não mais interessante na carreira se tivesse continuado no Flamengo. havia contado que dois olheiros estavam na região para observá-lo. “Mas não me arrependo de nada que eu fiz, sabe? Só Deus sabe a “Quando ele me avisou até dava pra voltar, mas resolvi descansar, hora certa da gente”, diz. Entretanto, alerta os jogadores de hoje para ficar em casa. Depois de uns seis meses, resolvi voltar a jogar e fui os perigos de ofertas do tipo. “É o que eu digo hoje a muita gente em para a Caldense/MG”, conta. escolinha e às pessoas que estão começando: não se pode deixar Depois de disputar o , voltou à enganar, a Europa nunca foi um mar de rosas, não. São milhares de Bahia para estudar. “Quando joguei lá em Minas, já estava brasileiros tentando, jogadores do mundo todo tentando”, lembra. desgostoso. Fiz tudo muito rápido, mas foi muito bom. Fiz Educação O baiano acrescenta que, se tivesse um bom empresário, Física e Administração, mas ainda não terminei nenhum dos dois não ficaria no trajeto França-Espanha-Marrocos, poderia sair de um cursos”, conta. Após o fim da carreira, Gustavo ficou na casa de destes clubes pequenos e arranjar um lugar de destaque em uma liga Itapetinga, onde se sentia mais “livre”. mais disputada ou de Primeira Divisão. “Poderia ser meu caso. Mas Segundo Guga, seria bem mais proveitoso para a sua seria difícil, muito difícil. É melhor ficar aqui, crescer aqui, pra

45 depois sair”, fala. Crítico, o ex-atleta aponta que o agente é aquele chefe”, fala, se referindo à briga que teve com o presidente do responsável por 80% das decisões sobre transferências. “Aliás, não. Ajaccio à época, Jean-Michel Pieteau. Vou diminuir um pouco pra não ser radical: 50% é empresário. O cara O executivo, de acordo com Guga, o criticava duramente, pode ser só um corredor, um da vida. Cafu não tinha técnica, sobretudo quando o atacante voltou da primeira estada na África. jogava só na força física. Mas o procurador pode colocá-lo onde “Qualquer jogador tem fase boa e fase ruim, e eu voltei numa fase quiser”, afirma. ruim. Esse presidente era cabeludo, maluco, engraçado, e eu já puto Com o joelho recentemente operado após lesão em um com esse cara. Ele só me cobrava, pô, pressão da porra. Reclamava: baba, comemora o fato de que só sofreu contusões agora, após 'o time não faz gol', e eu xingava o cara todo em português. Aí falei: abandonar o futebol. “Seria um negocio seriíssimo”, diz. Para ele, a 'quer saber de uma coisa? Vou pra casa, tenho meu pai pro que eu ausência de lesões durante sua atividade o ajudou a se manter nos precisar. Jean-Michel, tchau, viu?'” clubes de Europa e conhecer os lugares mais belos, por exemplo, da Depois da briga, Gustavo pôde voltar para o Brasil. Mas França. “Conheci tudo lá: joguei contra o PSG, Nice, Nantes, ficou com Salou na lembrança. “A Espanha é bom demais... O Montpellier, conheci Mônaco, fui no principado, joguei no Monte pessoal é mais coração, os franceses são muito frios. Fui bem mais Carlo, eu tenho cultura de vida. Falo francês e espanhol, aprendi acolhido na Espanha, são culturas diferentes. Na Espanha eu tive culinária — adoro cozinhar — sei tomar vinho”, lembra Guga, que mais vibração. Até jogando, mesmo, é tipo brasileiro, tem garra. As tem 38 anos. pessoas são muito boas, a língua é mais próxima. As pessoas chegam “É uma experiência pessoal minha, é um negócio que não para você e perguntam como está, se está precisando de algo... E eu tem como explicar: sou um cara realizado por causa disso, o futebol sou exatamente assim também, então me senti muito à vontade”, só foi uma passagem. O futebol me proporcionou conhecer outros explica. lugares, outras culturas, tenho amigos lá ainda... E essa é minha vida: Guga está convencido de que não é só a habilidade para é muito rápida, mas é de glórias, de felicidades. Não tive grandes jogar futebol que faz um jogador. “Não, não adianta só saber jogar, problemas no futebol. Só fui embora porque não tava aguentando você tem de ser político. Tem de saber tudo, não pode dizer não, tem

46 de ser maleável... Porque a vida realmente é instável, você vive na mão deles, dos clubes, dos empresários... Crescer no futebol envolve muitas coisas”, fala. Mas estes problemas se restringem à vida extra- campo. Com o jogo acontecendo, Gustavo não tem qualquer queixa. “O futebol em si é uma maravilha: os estádios são de outro mundo, as pessoas vão mesmo. A estrutura de um time de futebol da Segunda Divisão não é como a Segundona aqui, não deixa nada a desejar aos da Primeira Divisão brasileira.” O contato próximo com o que chama de “submundo do futebol” motivou Gustavo a participar voluntariamente de um projeto de acolhimento e apoio a dependentes químicos que querem largar o vício. Na Fazenda Esperança, próxima a Feira de Santana, Guga fala sobre futebol e coordena atividades esportivas com os internos. “Eu me sinto bem pra caramba. Todo começo de mês eu vou, vejo as pessoas tocadas pelo que eu digo. Aí eu me toco também. É muito bom, não tem dinheiro que pague isso. Eu vou e me sinto acolhido junto com eles.”

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