4 INTRODUÇÃO Escrever Sobre Futebol É Ao Mesmo Tempo Um
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INTRODUÇÃO Chegar aos sete personagens desta obra foi difícil, mas, Escrever sobre futebol é ao mesmo tempo um prazer e um certamente, uma tarefa muito menos complicada do que as temor. Como diz o jornalista Paulo Vinícius Coelho, representante caminhadas de cada um dos jogadores ou ex-jogadores entrevistados maior de uma geração que valoriza a reportagem jornalística em para este trabalho. Espera-se que o resultado final deste, por outro detrimento da crônica romântica, que inventava personagens e lado, seja tão interessante quanto as histórias que cada um deles tem a dramas, "o esporte das massas é visto por quem chega ao mercado contar. como a área da qual todo mundo entende". O conhecimento geral sobre futebol faz do potencial repórter esportivo um sério candidato a jornalista sem especialidade — ou especializado em generalidades, como se costuma dizer. Um passo à frente é também uma modesta tentativa de retirar a fantasia exagerado do texto esportivo sem deixar de imergir o leitor na história. Embora muitas vezes o formato dos textos deste livro se assemelhe ao de crônicas ou perfis, trata-se de um produto essencialmente de reportagem, com apuração e seleção acurada das fontes. Um passo à frente , portanto, busca causar reflexões sobre as condições do futebol no país, mas desafia a noção de que o jornalista de esportes é, sobretudo, um palpiteiro. 4 justificar sua ausência nas convocatórias. “Mas só acontece isso SORRISO “POSITIVISTA” porque é difícil ser visto pelos técnicos de lá jogando na Bahia”, diz, ainda com olhar otimista. De fato, somente dois dos 20 jogadores convocados para o torneio, apenas dois atuam fora de São Paulo, Rio “Por que não desisto do futebol? de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Ambas as exceções, Porque sou uma besta quadrada.” todavia, são companheiros de clube de Wellington. Juca Kfouri “Lá”, nas palavras do menino, é o Rio de Janeiro. Mais precisamente, a Granja Comary, no município serrano de Teresópolis, onde todas as seleções de futebol brasileiras, da Sub-15 — para a qual o meia do Vitória postula um lugar — à profissional, de O menino Wellington é Santos no nome “e Silva na vida”, Ronaldinho, Kaká e tantos outros craques. Todos muito próximos, nas palavras do próprio, com a maturidade de seus 15 anos recém- jogando em campos dispostos praticamente lado a lado. A experiência completados. Tem o que seria o physique du rôle do jogador de ficou na memória e o desejo de voltar continua — prova disso é o futebol brasileiro: é pobre, negro, um tanto magro e aposta sua fato de que não se considera fora dos planos do técnico Leandro infância e adolescência no esporte para conseguir tirar a sua família Simpson, da equipe nacional. da modestíssima casa suburbana. É meia-direita do time infantil do “Eu sou um positivista”, continua, sem mencionar Comte Vitória. E mais do que isso, é meia-direita da Seleção Brasileira. Ao ou Kelsen. O olhar esperançoso que propõe às situações que vive é menos, pelo que declara a quem quiser ouvir. fruto não de uma vida feliz — pelo contrário, até. Wellington Embora não tenha sido convocado para o Campeonato enumera tímido as dificuldades pelas quais passa até hoje, como se Sul-Americano de 2009, realizado em novembro, o garoto ainda se não estivesse à vontade para conversar sobre o assunto. Demorou, na considera parte do melhor elenco do país em sua categoria. “Eu fui verdade, alguns dias para que quisesse falar dos obstáculos com que chamado pela última vez em janeiro...”, suspira, antes de desatar a convive diariamente. Depois, confidenciou à reportagem que a 5 diferença de cor da pele, de “educação” e de “atitude” fez com que o distância. O experiente ex-goleiro, olhar cansado, alisa tratamento mudasse. “Fiquei de saque em você naquele dia [quando carinhosamente a careca do pupilo. A improvável amizade começou aconteceu a primeira conversa]. Sério mesmo, só senti firmeza dois anos atrás, quando, ainda na categoria mirim — na qual jogam porque vi que você pega buzu, que nem eu”, revelou. garotos de 11 a 13 anos —, o menino avisou à comissão técnica que Wellington morava com a mãe em Valéria, sub-distrito precisaria largar os treinos e o esporte. O dinheiro que conseguia na situado à margem da BR-324, a 25 km do centro de Salvador. A semana acabava rápido, dizimado pelos R$ 4 diários dos quatro distância entre a casa e o Centro de Treinamento Manoel Pontes ônibus que pegava para ir e voltar e pelos lanches que fazia na saída Tanajura, em Canabrava, foi o primeiro empecilho da carreira. do centro de treinamento em Canabrava. “Imagine, véi... Valéria já é na cara de Simões Filho! Todo dia sair de A atitude provocou a compaixão de Edgar e Passarinho. lá pra cá, não tinha ônibus direto, tinha que ir pra Rodoviária Conhecedores do talento do aluno, os dois bolaram com o primeiro. Quebrança... Tinha que sair de casa umas duas horas antes”, coordenador das categorias de base do clube, João Paulo, uma forma exclama. de manter Wellington no futebol. Autorizado pelo dirigente, Edgar O garoto explicou em seguida, porém, que não foi aquele pediu o consentimento da mãe do garoto para acolhê-lo em sua casa o principal obstáculo para chegar ao Vitória. “Eu não tinha dinheiro até que o Vitória abrisse uma vaga na sua concentração de futebol pra pegar ônibus todo dia e, quando conseguia, chegava atrasado. amador — e não havia previsão de que isso fosse acontecer a curto Pensei que ia ter de parar de jogar, ficava triste com isso, porque prazo. “Conversamos com a família dele, que sabia das dificuldades. sempre foi meu sonho jogar futebol. Eu sei que sou novo, não parece Antes, ele passava o dia, fazia as refeições no CT e dormia em casa”, um tempão, mas tava complicado pensar que ia ter que parar, sabe conta. como é? Mas aí...” Wellington (foto 1) diz que o único problema de morar O discurso é interrompido pelo sorriso absurdamente um ano inteiro com o técnico foi ouvir a gozação dos colegas, que branco e um olhar carinhoso para Edgar, seu treinador, que observa a maldosamente davam outro sentido à expressão “morar junto”. “Era conversa de longe, e Carlos Passarinho, que ouve tudo a um metro de chato, né? O pessoal me sacaneava quase todo dia com isso... Acho 6 que Edgar nem sabe”, conta, antes de pedir cuidado ao falar sobre o mim. Mas é o preço que eu pago por tentar ajudar. Professor de assunto com o treinador. “Ele pode pensar que eu também brincava futebol não tem muita coisa na vida... Ganha pouco, trabalha muito... sobre isso”, justificou. Nossa felicidade é v er os meninos crescerem, darem certo, essas coisas”, diz. “Sou macaco velho, sei que dizem essas coisas por causa de alguns caras que já fizeram coisas assim, abomináveis, e mancharam a profissão da gente. Mas o trabalho da gente é maior que isso, sempre”, acrescentou. O que foi brincadeira contra Edgar rendeu problemas sérios a Deomar Santana, técnico de futebol com passagens por Bahia, Vitória e clubes menores do Estado. O professor deixou o futebol de clubes após ser acusado — sem qualquer prova — de abu sar sexualmente de um aluno. Passou a trabalhar em colégios de Salvador e se recuperou profissionalmente com a conquista de diversos campeonatos de futsal — esporte que adotou quando deixou o futebol de campo. Apesar disso, confidenciava aos mais próximos: sabia que, à boca pequena, muitos de seus alunos faziam chacota com o episódio. Morreu em 2006, aos 56 anos, vítima de problemas nos rins que o acometiam há quase uma década. Negando tudo. Assim, o Foto 1: Wellington (de costas) ainda espera retornar à Seleção profissional que participou da revelação de jogadores de muito destaque dos anos 1980 — Beijoca, Bebeto, Charles, Dico Maradona, Veterano, o téc nico sabe que o garoto ouvia tais João Marcelo, Ronaldo Passos — aos 1990 — Bebeto Campos, Jean, comentários. “É complicado... Talvez, por trás, tenham falado até de Flávio Tanajura, Paulo Isidoro — deixou a vida sem se livrar da 7 pecha que recebeu e que sempre julgou ter sido gratuita, maldosa, já vivi tudo o que eles vivem”, diz, entre saudoso e animado. “vinda de gente invejosa”, como chegou a afirmar ao autor deste livro João diz que, na área em que trabalha, esta experiência é em 2003. fundamental, já que o trabalho envolve a lida com sonhos de crianças Wellington, que não conheceu Deomar e nem incentivou e adolescentes, com as expectativas dos pais e com eventuais qualquer brincadeira maldosa que atingisse Edgar, hoje mora no excessos de treinadores nas cobranças aos seus jogadores. “É assim confortável alojamento do Vitória com outros 100 garotos. Muitos que procuro entender melhor atletas e comissão”, fala. deles ganharam leitos e comida depois de passar por situações De acordo com o coordenador, o Vitória busca cercar o semelhantes à do personagem desta história, outros saíram de uma jovem jogador de cuidados para que ele possa conciliar a futura das várias peneiras feitas pelo clube no interior do Estado e, por não profissão com as suas obrigações com o clube, sem esquecer os ter onde morar em Salvador, foram acolhidos pelo rubro-negro. prazeres da adolescência. Para isso, conta com uma assistente social e Apesar de terem sido Edgar e Passarinho os artífices de duas mulheres que atuam como mães sociais — nome dado pelo sua permanência no Vitória, Wellington também nutre imensa clube à função das duas funcionárias em referência à Lei nº 7.644, de gratidão por João Paulo, coordenador das divisões de base do clube. 18 de dezembro de 1987, que instituiu a atividade para as mulheres E não é à toa.