UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUITO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

RENATO RODRIGUES DA SILVA

A FORMAÇÃO DA ARISTOCRACIA NA INGLATERRA ANGLO-SAXÔNICA (SÉCULOS VII-VIII)

NITERÓI 2011

RENATO RODRIGUES DA SILVA

A FORMAÇÃO DA ARISTOCRACIA NA INGLATERRA ANGLO-SAXÔNICA (SÉCULOS VII-VIII)

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: História Social.

Orientador: Prof. Dr. Mário Jorge da Motta Bastos

Niterói 2011

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S951 Silva, Renato R. A formação da aristocracia na Ingalterra anglo-saxônica (séculos VII-VIII) / Renato Rodrigues da Silva. – 2011. 158 f. ; il. Orientador: Mário Jorge da Motta Bastos. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2011. Bibliografia: f. 147-149. 1. História Medieval – Alta Idade Média. 2. Inglaterra Anglo-Saxônica. 3. Classes Sociais. 4. Aristocracia. I. BASTOS, Mário Jorge da Motta. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. III. Título. CDD 932

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RENATO RODRIGUES DA SILVA

A FORMAÇÃO DA ARISTOCRACIA NA INGLATERRA ANGLO-SAXÔNICA (SÉCULOS VII-VII)

Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de mestre. Área de concentração: História social.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Mário Jorge da Motta Bastos – Orientador Universidade Federal Fluminense

Prof. Dr. Ciro Flamarion Santana Cardoso Universidade Federal Fluminense

Profa. Dra. Leila Rodrigues da Silva Universidade Federal do Rio de Janeiro

Niterói, 2011

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Àqueles que algum dia eu já chamei de amigo.

Às diferentes formas de Ocupação, e que a Roda da História tenha freios semelhantes aos dos carrinhos de rolimã dos subúrbios cariocas.

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Agradecimentos Agradeço aos meus pais, por serem os melhores pais do mundo. Ao meu pai, que mesmo que não fosse o meu, certamente seria um homem pelo qual nutriria a maior admiração e respeito, que faria tudo para que fosse meu melhor amigo e cujo exemplo tentaria honrar. À minha mãe, por, dentre tantas outras coisas, criar-me de modo a garantir minha independência, caráter e boa vontade. Aos meus irmãos, Lucia, Rodrigo e Raphael, por estarem sempre presentes, independente da forma. Amor fraternal tão intenso que muitas vezes apenas a lembrança de qualquer coisa (afinal, estamos juntos desde sempre, né?) já é suficiente pra espantar qualquer sensação ruim. Aos meus primos e tios, cada um responsável à sua maneira por incutir em mim cacoetes suburbanos pelos quais serei eternamente grato. Especialmente ao saudoso tio Emilson, sem o qual dificilmente saberia o quão prazerosos podem ser leituras e boas conversas; aos meus primos Beto “Rato”, por instilar o feliz padrão rubro-negro nas minhas veias; ao Wanderson “Caveira”, por ser um exemplo de que viver em dificuldades nunca é sinônimo de seguir um caminho tortuoso; ao Rodrigo “Autista”, por ser o poço que transborda juventude e vitalidade; ao queridão Keko “Paulo”, que não apenas é corresponsável pelo meu prazer na leitura, mas o responsável direto pela transmissão de valores além-humanos. Às diferentes versões do “Clube dos Cinco” pelo qual já tive o privilégio de participar. E vamos a alguns deles. Ao Felipe (estranho me referir pelo nome) “Pip”, que de tão querido e próximo, minha mente acaba cometendo o crime de pressupô-lo, quando deveria celebrá-lo. Ao “Dieguinho”, por ser tão presente, preocupado e tudo o mais, mesmo quando eu não percebia ou por algum motivo bizarro não dava valor; e que até hoje tem dificuldade em lidar com beleza, por não aceitar muito bem seu jeito próprio de ser. Ao Demétrius, pelas gargalhadas provocadas, pela presença de espírito e coragens marcantes, pela boa vontade com todos; certamente é o amigo que “chega de voadora”, de tanto que você pode contar. Ao Pelluso, por animar bastante nossos dias com seu humor peculiar e por ter a disposição e coragem de correr atrás de seus sonhos. Ao Thiago, por ser um ser humano fora de série, capaz de reunir qualidades cada vez mais raras e ainda assim ser habilidoso em campo e uma excelente companhia fora dele. Ao Alf, pelo companherismo, pelo caráter reto e por possuir um desprendimento de si que raramente deixa aparecer, mas que não deixa de ser bacana por conta disso. Ao Zé Paulo, por ter sido camarada de tantas aventuras, que precisariam de alguns livros para narrá-las. E também à compreensão de vocês nestes dois anos de separação mais nítida. Os agradecimentos mais numerosos certamente irão para o belo mundo que a UFF me proporcionou. Comecemos pelos colegas de classe, outro “clube”, no qual creio ter sido o sexto ou sétimo elemento.

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Ao Pablo, pelo grande amigo que é, dedicado, forte e em sua busca pela ética, pela bela vida, sem espaços para fascismos; sempre com conversas interessantes, sempre adicionando, aditivado ou não. Ao Ivan, amigo de opção estética, e também (quase por acaso) teórica; também sempre somando, em confluência de apreços e afetos, travando a luta que apenas quem ousaria usar uma cueca por cima das calças poderia, e de maneira absolutamente não-quixotesca. Ao Felipe, pelos monstruosos exemplos seguidos de superação e força que sempre são inspiradores para os que o rodeiam, mesmo que ele não esteja nem aí para isso. Ao Gabriel, pelas indicações mil, pela postura cândida de menino tímido, que cresce para se colocar, sem para isso fazer muita força ou empurrar alguém. Ao Luís, que poderia ter tudo, e optou por ser muita coisa. À Natália, criatura irresistivelmente simpática e feliz. Hehehe. Certamente vocês foram os responsáveis por uma fermentação intelectual ímpar para mim. Meus parceiros de cumplicidades acadêmicas – isto é, com os quais passei muitas tardes no campus entre uma conversa jogada fora e o correr com retroprojetor pra lá e pra cá – tampouco devem ser deixados de lado. Ao Gustavo, que embora não esteja mais jogando nem no time dos professores, nem no time dos solteiros, continua sendo aquela pessoa agradável de conversar e disposta ao que for para te ajudar. Ao Sandro, pelo caráter, dedicação e honra que são difíceis de colocar em papel. Ao André, que também circula em outras bandas, mas que também tentarei carregar pela vida. Ao Erick, que cada vez mais me assusta em relação as suas pretensões, e que cada vez mais gosto. À chapa ocupação, por materializar uma ação política há muito tempo ansiada pelos corações dos que nela se envolveram. Além dos já citados, ao André pela piada alucinada que tomou forma; ao Lucas Hipólito, que a sustentou com o que pôde, mesmo antes de ser uma chapa e ser apenas uma idéia de uma revista; ao Marco e Flávio por torná-la real; e aquela primeira lista tinha mais de 32 pessoas inscritas, então, por favor, compreendam algumas ausências. Minha formação intelectual ainda é tributária de companheiros que não apenas fizeram, como ainda fazem parte do meu quotidiano a partir dos grupos de estudos, e cuja presença já está sedimentada em amizade genuína. Ao camarada Marco, pela simplicidade de espírito somada à uma boa vontade rara, principalmente em fazer o que acha certo (além de ser um menino muito responsável, viu?); ao Wesley, por compartilhar de meus gostos para idiotices e também por ter saco de ler algumas bobajadas que escrevo, além de ser um bom amigo; ao Artur, vascaíno sangue bom e crítico honesto cujo apreço já é explícito; à Juliana, pela liberdade, determinação e força de vontade, talvez maiores do que a própria perceba; Mariana, por toda a atenção já dispensada, por ter coragem de ler as besteiras que escrevo (e ainda comentar!) e ser um dos grandes (sem trocadilho) motivos pra seguir adiante; pela paixão indômita que compartilhamos pela vida. Ao Flávio, que encontra ímpeto e coragem quando muitos baixariam a cabeça, e por ser criativo em um mar de tons de vii cinza-tecnocrata. Ao Tomazine, tão maneiro que consegue que sua companhia seja sempre agradável mesmo sendo do PSTU, vascaíno e euriquista. Ao João “Bonfá”, por demonstrar horizontes muito mais amplos que a maioria dos que se dedicam à Antiguidade; ao Zé, criatura inspiradora para muitos de nós (aposto que muitos desejam secretamente ser como você quando crescer, principalmente os já “adultos”). Ao Melo, por ter “rasgado o véu” quase que a dentadas, e que felizmente continua a impor-se em uma certa “terra de malboro”. Ao Fábio, nerd assumido com o qual também compatilhamos muitas referências, gibis, gostos, e sorrisos. Ao Paulo, que além de ser um baita amigão também é o responsável pelo acesso a boa parte da bibliografia utilizada neste trabalho. Sem sua ajuda certamente este trabalho seria sensivelmente mais difícil. Ao Thiago “Fofo”, à Talitinha, à Fernanda Crespo e ao Márcio, por provarem para o mundo que ainda existem criaturas cândidas e doces no mundo, à revelia do que seria o esperado. Ao Leitão, ao Taiguara e à Giovanna, por ser a personificação de que a quarta-feira de cinzas ainda não chegou. Ao professor Ciro, que tão gentilmente cedeu materiais diversos para que a pesquisa pudesse se realizar, e que também aceitou prontamente participar da minha banca e realizar intervenções essenciais ao andamento da pesquisa; também pela dedicação que sempre dedicou ao magistério, sempre inspirador. À “prima” Leila, que além de disponibilizar muito do seu tempo e de seus materiais, também demonstra quotidianamente como ser profissional e agradável são não apenas compatíveis como desejáveis. Ao professor Edmar, que também aceitou ler o material e comentá-lo, mesmo não integrando a banca, seguindo uma linha de respeito ao trabalho discente que é no mínimo admirável. Um dos maiores agradecimentos, contudo, vai ao meu queridão boleiro do subúrbio Mário Jorge (boleiro nunca vira “ex”, mas “dá um tempo”). Pelas primeiras lições de História, por me provar (pela primeira vez) que é possível ser medievalista e competente, por ser um ótimo professor e um orientador libertário. E também por demonstrar que dedos cortados de cerol são capazes de produzir quadros melhores que aqueles que conseguem escrever em três línguas antes da sua primeira meia dúzia de anos completos. Uma lista como essa não pode estar ausente ao agradecimento à minha grande companheira, Natália Simão. Dos quase sete anos que estamos juntos, estes últimos dois foram provavelmente os que estivemos mais afastados, mas nem por isso menos ligados. Agradecer ao carinho e ao cuidado são mais do que óbvios e necessários. Mas é fundamentalmente necessário agradecer a compreensão, sem a qual o amor não vive. Muito mais do que qualquer ponto de apoio, ou de equilíbrio, você é meu ponto de partida. Como anticlímax, o agradecimento à Capes pelo primeiro ano de bolsa, e à FAPERJ pelo viii segundo; sem estes, esta pesquisa seria inviável. Se esperava encontrar seu nome aqui, mas até agora nada, sinto muito, mas a lista já é a versão reduzida do que tinha pensado e pra mim sempre foi difícil lembrar de todo mundo; não leve a mal, mas nestes anos que dediquei à História, cada vez mais percebo que problemas de memória são comuns aos historiadores...

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Para jamais nos esquecermos que, embora o Olimpo alcance os confins do céu, em toda a História da Terra nunca houve um paraíso, nunca existiu um lar de deuses...

...que não fosse erguido sobre ossos humanos.

Alan Moore x

RESUMO

A dissertação tem como tema a hierarquização social da Inglaterra Anglo-Saxônica entre os séculos VII e VIII, que culmina com a formação de uma classe social específica, a aristocracia. A esta classe corresponde uma clara identidade de classe, que perpassa as facetas leiga e eclesiástica deste grupo social emergente. Paralelamente, parte do campesinato que se relacionava diretamente com a realeza estabelece relações de dependência com esta aristocracia, e sua relação com o monarca passa a ser mediada por esta classe dominante. Para tal estudo, nos baseamos em uma grande diversidade de fontes, dentre elas registros arqueológicos diversos (principalmente o enterramento de e a escavação da sede de Yavering); a Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, de autoria de Beda, o Venerável; uma carta do mesmo autor ao bispo Egberto; as hagiografias de Cuthberto e dos abades de Wearmouth e Jarrow, produzidas pelo mesmo Beda, assim como a Vita Wilfridi, de Eddius Stephanus e as anônimas Vita Ceolfridi e Navigatio sancti Brendani abbatis; a narrativa épica ; e, por último, uma compilação legislativa conhecida como Anglo-Saxon Dooms.

Palavras-chave: Idade Média; Alta Idade Média; Inglaterra anglo-saxônica; Aristocracia; Classes Sociais.

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ABSTRACT

The making of the aristocracy in Anglo-Saxon England. The theme of the present dissertation is the evolution of social hierarchy in Anglo-Saxon England between the 7th and the 8th centuries; this process brings the making of a specific social class, aristocracy. This class has a clear class identity, which goes through lay nobles as well as ecclesiastic aristocrats, which are new, ascending groups in our context. At the same time, part of the peasantry which was directly linked to the royalty becomes dependent of this aristocracy, and it’s relation to the monarch is now mediated by the ruling class. We used several sources: a great sort of archaeological records (specially the Sutton Hoo burial and the Yavering Royal Hall); the Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, written by Venerabilis ; a letter from Bede to bishop Egbert; Saint Cuthbert’s hagiography, as well as the Lives of Abbots, also from Bede; the Vita Wilfridi from Eddius Stephanus; the anonymous Vita Ceolfridi and Navigatio sancti Brendani abbatis; the epic Beowulf; and the law compilation known as Anglo-Saxon Dooms.

Key-words: Middle Ages; High Middle Ages; Anglo-Saxon England; Aristocracy; Social Classes.

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Sumário

Agradecimentos ...... vi Sumário ...... xiii INTRODUÇÃO ...... 1 CAPÍTULO I – Realeza, Aristocracia e Hierarquização Social: De Júlio César a Beda ...... 6 Introdução ...... 6 Antropologia, evolução e hierarquização social ...... 8 César, germanos e as sociedades igualitárias ...... 12 Tácito e os germanos no século seguinte ...... 19 O convite dos bretões e a chegada de Anglos, Jutos e Saxões ...... 28 Ruralização ...... 30 Geografia ...... 34 Aspectos do mundo pagão anglo-saxônico ...... 37 Evangelização ...... 43 Santos e Reis ...... 49 Dom e Hierarquias ...... 64 Conclusão ...... 68 CAPÍTULO II – A Ideologia Aristocrática ...... 70 Classes ou Estamentos? ...... 70 Classes ...... 73 Ideologia ...... 80 Infância ...... 87 Apetrechos ...... 94 a) Cavalos ...... 95 b) Armaduras, elmos, lanças, arcos, scramasax ...... 98 c) Espada ...... 103 d) Armamentos clericais? ...... 114 e) Bens de litígio, bens de prestígio ...... 116 Música ...... 118 Mulheres ...... 122 Realeza ...... 129 Morte ...... 134 Salão ...... 137

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Conclusão ...... 139 CAPÍTULO III – Aristocracia, Campesinato Livre e Camponeses Dependentes ...... 141 Introdução ...... 141 Aristocracia e Campesinato Independente ...... 148 Aristocracia e Campesinato Dependente ...... 153 Conclusão ...... 169 CONCLUSÃO ...... 171 Anexos ...... 176 Mapas ...... 176 Figuras ...... 181 Gráficos ...... 199 Bibliografia ...... 201 Fontes Primárias: ...... 201 Fontes Secundárias: ...... 201

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INTRODUÇÃO

Insatisfeitos. Duvido com toda a honestidade que um coração pode oferecer que você, que me lê, esteja plenamente satisfeito com o mundo – seja o seu mundo, seja o dos outros; já que continuamos a permitir que pessoas achem que suas respectivas vidas pouca relação tenha com as demais. Se sua pessoa batalha pelo individualismo metodológico, prezando pela originalidade de sua pesquisa, de suas ideias inéditas e ancoradas em suas próprias posições, tão suas, tão sós, parabéns. Você não está sozinho, mas envolto de outras pessoas que também juram que não sabem como ninguém nunca se interessou por seus objetos, que acham que existe “pouco investimento” ou “poucas pesquisas” na sua área – mesmo que ela abocanhe a maior parte dos investimentos públicos direcionados para pesquisa (possivelmente via manobras políticas). Talvez se você olhasse para o lado perceberia que é hábito dos historiadores produzirem seus próprios materiais, muito mais do que encontrar fartos mananciais que discorram sobre o seu assunto, tão seu, tão só. Como você. Caso se assuma como satisfeito, por afirmação pela pura negativa (ou seja, produzindo-se pela negativa) ou por efetivamente ser ingenuamente otimista a ponto de achar que o nosso é o melhor dos mundos, sinto-lhe informar, mas você não é bem-vindo. Declaro você inimigo, com letras negritadas e sublinhadas. Sinto muito, mas sua mediocridade não é bem-vinda. Se os otimistas são os que acham o nosso o melhor dos mundos, os pessimistas são os que acham que os primeiros podem ter razão. Felizmente há incomodados que estão dispostos a seguir caminhos diferentes. Embora muitos destes desejarem carreiras acadêmicas, certamente não se dedicam exclusivamente a elas, pois tem como objetivo o próprio mundo, enquanto horizonte, uma vez que o fracionamento reina no mundo das mercadorias e dos indivíduos. Estes homens que transformam indignação em ação prática geralmente são retaliados de alguma forma, seja por risadas cínicas, seja por reprovações em concursos, seja por fomentos negados – para ficar apenas em alguns exemplos “hipotéticos”. Mas estes homens contam com uma coisa rara, preciosa. A amizade, que por si só já é combustível suficiente para seguir adiante, e por prosseguir retamente, independente das respostas reativas, automáticas. As fontes são simples: incômodo, insatisfação e seus correlatos. Seja para uma semana mal dormida, para manter assiduidade com nossos problemas e estudos, seja como leitmotiv de 1 uma postura política que não vai simplesmente na contra-mão da tendência hegemônica dos historiadores e da historiografia, mas que se pretende enquanto criação, enquanto produção própria, exercício de criatividade, não sendo operários da historiografia ou latifundiários de fontes. O caminho que pretendo tomar e as discussões que desejo suscitar se inscrevem nesta perspectiva. Não aspiramos à senhoria dos registros históricos, ao dominato da historiografia ou à inscrição pétrea nos registros sociológicos. Isto é para os pobres de espírito, que desejam pouco. Nossa ambição é outra, muito maior. Ansiamos por uma vida bela, e as reflexões que ora apresentamos constituem apenas uma parte deste processo. Voltando-nos sobre conteúdo da dissertação. A hipótese geral da pesquisa é que o processo de hierarquização social ocorrida na Inglaterra Anglo-Saxônica (entre os séculos VII e VIII) culminou com a formação de uma classe social, a aristocracia. Esta se forma como classe não apenas como um grupo social dominante; entendemos que ela se produz tanto nutrindo-se vampiricamente da produção social das classes subalternas (ou dominadas) como a partir de sua constituição ideológica. Esta última é de caráter tão fundamental quanto a outra, e compreender um eixo sem o outro é não se ater ao caráter global da problemática. A concentração nestes séculos não indica que nossa pesquisa se atém a eles, muito pelo contrário; pretendemos investir na identificação de um processo de hierarquização de longa duração, de Julio César e Tácito, até chegarmos ao tempo de Beda, o Venerável. O primeiro capítulo versa justamente sobre este aspecto, e evidenciamos nele que como a própria problemática da hierarquização é uma questão de longa duração, e por isso deve ser tratada desta forma. Através dela também podemos perceber como algumas características que eram identificadores étnicos inicialmente (qualidade guerreira, posse de determinadas armas etc.) passam a ser exclusividade de uma classe. A principal hipótese deste capítulo está ligada ao entendimento de que o fenômeno histórico mais fundamental no que tange à cristalização da aristocracia foi o processo de conversão ao cristianismo, e a vitória do modelo de cristianismo romano sobre o celta. O segundo capítulo possui um corte um pouco mais transversal e sincrônico, evidenciando as características ideológicas desta aristocracia. Como defendemos que em uma sociedade não-igualitária não há ideologia que não seja vinculada a uma classe social, investimos

2 na categorização do que entendemos por classe e por ideologia, para em seguida nos debruçarmos sobre os elementos que compunham tal ideologia. Partimos da infância, por pensarmos em sua importância na formação intelectual e moral; seguimos pelos apetrechos dos “heróis” da literatura (cavalos, espadas, lanças, machados, armaduras, e a configuração destes como bens de prestígio), e mesmo a comparação destes elementos com suas vertentes eclesiásticas; passamos pela música, por gozar de prestígio entre os lazeres e gostos aristocráticos; analisamos brevemente o papel das mulheres na reprodução aristocrática; a vinculação com a realeza; a irrupção da morte, e o que esta evidencia quanto às hierarquias; por último, o espaço do salão real como espaço de escultura da classe. Um elemento fundamental do capítulo é evidenciar não apenas a ideologia como cimento social da classe, mas também evidenciar a interpenetração dos quadros leigos e eclesiásticos. O terceiro e último capítulo tenta estabelecer o quadro relacional entre a aristocracia e os campesinatos (dependente e independente). Durante todo o capítulo, investimos para a compreensão destes setores a partir de sua íntima articulação e vinculação, insistindo grandemente que uma classe social apenas se produz a partir da relação. Os dois primeiros evidenciam principalmente o caráter de processo que uma classe deve assumir no seu processo de constituição. Relação e processo. Estes são os dois principais edificadores da classe no nosso entendimento, e por isso investimos em áreas diversas para tentar resolver o problema proposto. Pensamos que, por sua necessária interação, as classes só podem ser entendidas como formas específicas da totalidade social. E aqui cabe uma pequena digressão sobre a totalidade. A totalidade que almejamos e defendemos não se constitui como a resposta definitiva e inalterável sobre determinada realidade social. Ela não é a face de Deus. Não requer toda e qualquer resposta possível, imediatamente, finalizando eventuais questões pretéritas e futuras e que ainda estão no porvir. Isto é crise de ansiedade, não a busca pela totalidade. Por defendermos fortemente a ancoragem no real, historicamente determinado, pensamos que a busca pela totalidade está ligada à compreensão do possível, do cabível e do necessário. Às perguntas que ainda não é possível responder, seja pelo pouco avanço da arqueologia, seja pela ausência de fontes, cabe elucubrar hipóteses na tentativa de resolver a questão. O que não é aceitável é assumir uma postura passiva por achar que esta totalidade é inexistente ou inacessível. Embora possivelmente limitada em comparação com trabalhos que continuem em

3 uma linha semelhante à nossa, mas que disponha de mais recurso (no futuro, digamos), este nosso trabalho não goza de menor inserção na totalidade. Ela é horizonte objetivado, não necessariamente presente. A classe não goza de exclusividade quanto ao verniz de processo e relação. Conforme o citado no início de nosso trabalho, pensamos a própria vida neste sentido. Atribuir à classe uma dimensão maior que a vida é abortá-la. Deixar de admitir a determinação da vida pela classe, um equívoco. Determinação de sua experiência de trabalho a partir da sua inserção classista é algo que encontra grande resistência em âmbitos ancorados em perspectivas não-marxistas. Porém esta afirmação soa de maneira asquerosa se alguém ousar caracterizar a própria produção artística e/ou intelectual como determinada pela sua classe de origem. Afinal, fazer isso seria surrupiar a liberdade, e todos lembram que escolheram seus objetos de pesquisa livremente, e que nada disso tem a ver com aspectos econômicos de sua vida material. Sua orientação teórica, seu empenho metodológico, isso são questões (técnico-)acadêmicas exclusivamente, não políticas. É plenamente razoável e possível, segundo este pensamento, ser marxista “só em análise”, apenas “pinçar elementos que se considere importantes e/ou eficazes” ou ser progressista em sua vida política, mas utilizar métodos que fariam Michelet efetuar mortais duplos carpados (hermenêuticos, é claro) de felicidade. É necessário, portanto, evocar Josep Fontana. Não há análise histórica – e poderíamos acrescentar, filosófica, política, sociológica etc – que esteja desconectada de um projeto societário. Não há, portanto, produção analítica desvinculada da produção (e semi-realização) de anseios e desejos; e a estes, é difícil que a conexão com a vida material concreta, histórica etc não seja razoável, por mais turrão (e ostensivamente cripto-liberal!) que se queira ser. Uma semi-acusação ou semi-indagação, normalmente lançada com olhares que tentam disfarçar sua projeção de ingenuidade sobre o autor é: “o tema não é muito amplo para um mestrado?” Cremos que sim. Somos ambiciosos, um pouco arrogantes; não somos curtos, mas às vezes grossos. Mas acima disto tudo, somos cientes de algumas coisas elementares à pesquisa histórica. Tal como a classe, a construção do conhecimento é processual, relacional. Podemos exigir que o peso do pesquisador seja congruente com o dos tomos de sua pesquisa, que ainda assim ela não teria sido respondida a ponto de encerrar as possibilidades sobre o tema. Infinitiva,

4 portanto. Tratando-se de uma temática ampla e que conjuga, expressa e articula a totalidade social, a classe torna isto ainda mais explícito. Grande demais, portanto. Não se basta. Mais tolo, contudo, é o que crê que seu relato de catar piolhos no vilarejo é autossuficiente. Tracemos agora uma equivalência simples. A dimensão do problema do pesquisador é diretamente proporcional ao tamanho de sua vida. Exagerado! Ególatra! Simplista! Talvez o seja por ora, mas vamos nos acalmar. Em primeiro lugar, assumimos que o recorte efetuado sempre mantém relação direta com os projetos daquele que opera o talho; difícil imaginar que pessoas com pequeninos projetos (para sua pesquisa, para si e para o mundo) tenham tido capacidade de transformar a práxis de um contingente significativo. A pesquisa histórica deve possuir verniz ampliado, deve afetar os que com ela entram em contato, principalmente para elucidar questões presentes prementes. Deve, portanto, alongar a vida do pesquisador, inseri-la em outras. Pouco se toca, contudo, se a esfera de ação (e análise) for pequena. Restringe-se, limita-se, castra-se. O interesse temático não surge no éter; ele é construído a partir das experiências que a pessoa vivencia. Como marcamos a questão da experiência como um pilar importante na edificação da classe, é fundamental assinalar o moto-quasi-perpétuo do processo, e pensar na influência definitivamente presente da classe na formação/processamento da experiência. Ainda é possível debater-se, questionar, etc, canibalizar-se “Calibanizando”. O que se perde de vista (talvez por olhar para o próprio umbigo) é o que se impõe: irresistível, bela, e irresistivelmente bela (mesmo estranhada, mesmo limitada) é a vida. Vita Magistra Historiae.

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CAPÍTULO I – Realeza, Aristocracia e Hierarquização Social: De Júlio César a Beda

Introdução O objeto deste primeiro capítulo diz respeito ao processo de hierarquização social ocorrido na Inglaterra Anglo-saxônica entre os séculos VII e VIII. Questão complexa, espinhosa, e infelizmente mal abordada pela historiografia. O fator que conduziu este que vos fala a estudar tal tema é uma preocupação pessoal. Como nossos estudos em humanidades (felizmente) abordam estruturas e dinâmicas presentes em nossa contemporaneidade, a forma como esta produz sua diferenciação, hierarquias etc. é alvo de inúmeros estudos e observações, o que a torna relativamente mais inteligível. O que levaria, contudo, uma sociedade alheia a hierarquias internas e pautada na apropriação coletiva de vários meios de produção a admitir1 viver de forma diferente? Como e por que os homens aceitam servir? Em qual ponto aceita-se a desigualdade social?

A principal disciplina que se dedica a estas questões - a antropologia e, mais especificamente, a antropologia política – parece fornecer em alguma medida as respostas que procuramos. Contudo, será importante destacar que o nosso estudo não se propõe a ser uma forma de exploração predatória e acrítica de conceitos de outras disciplinas. Conforme o título desta dissertação sugere, nosso contexto de análise é a alta Idade Média, na Inglaterra, majoritariamente entre os séculos VII e VIII. Os conceitos que adotaremos deverão levar em consideração as especificidades do recorte ao qual nos dedicamos, condição sine qua non para a plena captura da historicidade do processo que estudamos. O curso da apresentação dos conceitos não é algo fortuito. Nosso objeto de estudo inscreve-se nas três temporalidades reconhecidas pela historiografia desde pelo menos Braudel (média, curta e longa duração). O processo de hierarquização é algo que certamente envolve a longa duração, e por isso iniciaremos nossos estudos pela apresentação conceitual conectada ao mundo germânico.2 O fenômeno observável de maneira mais nítida a partir da cristianização, isto

1 Parte da sociedade, é claro, uma vez que para que haja ascensão de alguma fração dela, outra fatia deve submeter-se. 2 É senso comum da historiografia medieval atribuir à caracterização da Idade Média de maneira geral à filiação de pai germano e mãe romana. Tornou-se também lugar comum atribuir à Inglaterra uma relação diferenciada com o continente em função de uma ausência do elemento romano. De qualquer forma, a referência ao mundo 6

é, a crescente hierarquização social, está em gestação provavelmente desde o século I a.C., e esse será o ponto zero de onde partiremos para a compreensão do processo. Com esta ênfase no mundo germânico não pretendemos nos vincular à historiografia que entende a Inglaterra como uma terra incólume às estruturas romanas; antes, tomaremos a influência romana (principalmente no que diz respeito à estratificação social) como muito mais vigorosa a partir das investidas cristianizadoras, capitaneadas em seu início por Agostinho da Cantuária e promulgadas por Gregório Magno, em 597. Pensamos a síntese do mundo germânico com o romano, o parto da medievalidade, a partir desta premissa.3 Retomando a questão da hierarquização, o processo de diferenciação social4 não se produziu na noite dos tempos da humanidade. Tampouco a desigualdade social está inscrito em nosso DNA; não é natural ao homem; não surge necessária e espontaneamente com a invenção da agricultura. Ela é oriunda de um processo, de características e conflitos de uma determinada sociedade em um determinado contexto específico. Irreversibilidade também não é uma de suas características. No contexto a que nos dedicamos, a Inglaterra, é possível observar como a região, que chegou a passar por um processo de romanização,5 a partir da retirada das tropas e autoridades de Roma da ilha viu forjar-se uma configuração social muito próxima do que definiremos como “sociedades de chefaturas”, “revertendo” assim a ordem que um evolucionismo tacanho consideraria inalterável.6 Neste intuito, partiremos inicialmente da consideração dos germanos descritos por César, auxiliado em nossa análise pelo citado ramo da antropologia. Dele, partiremos para as considerações de Tácito sobre os povos que conservaram a designação, mas que se encontram em um arranjo social relativamente diverso daquele descrito cerca de cento e cinquenta anos

germânico aqui é necessária para entender este processo, que foi iniciado bem anteriormente ao recorte específico de nossa dissertação. 3 Com isto não pretendemos equivaler a romanização secular ocorrida no continente com a investida cristianizadora, mas pensar esta como elemento de projeção da romanidade contemporânea ao tempo de Agostinho, Gregório Magno etc. 4 Hierarquização, diferenciação, estratificação etc. são ora utilizados como sinônimos apenas para evitar a repetição de termos e uma redação, portanto, enfadonha. Com as explicações que se seguirão, será possível verificar como cada um dos vocábulos na verdade refere-se a um processo específico. 5 Muito embora este processo seja limitado em comparação com a fixação e enraizamento das instituições romanas no continente, é inegável algum nível de penetração de elementos da vida romana (cidades, estradas, villa etc). Para a produção dos mesmos, portanto, deve-se levar em conta a concentração de trabalho e de rendimentos do mesmo – elemento intrínseco a estratificação social. QUENNELL, C.H.B & QUENNEL, Marjorie. Everyday life in Roman and Anglo-Saxon Times. New York: Dorset Press, 1987. 6 Concordando com esta postura de reversibilidade, temos a monumental obra de Chris Wickham. WICKHAM, Chris. Framing the Early Middle Ages: Europe and the Mediterranean, 400-800. Oxford: Oxford University Press, 2005. 7 antes. Passaremos, a partir daí, à circunscrição da ilha que é nosso objeto de maneira mais específica. Conforme enunciamos, como este é um estudo de um processo de longa duração, mesmo que nosso objetivo último seja a caracterização da aristocracia entre os séculos VII e VIII, referenciaremo-nos também nas estruturas de poder dos séculos anteriores. Para tal, destacaremos como se inicia a infiltração de anglos, jutos e saxões na região, demonstrando um aspecto de ruralização mesmo antes da conquista do território por estas etnias; passaremos à evocação da estruturação do mundo anglo-saxônico anterior à chegada do cristianismo e em seguida trataremos do processo de conversão. Este tópico merecerá atenção especial, pois defendemos que a inserção do cristianismo nesta sociedade, longe de estabelecer apenas novas formas de piedade e sensibilidade religiosas, também carrega em seu bojo os elementos necessários à sua reprodução material. Conforme será destacado, a maneira pela qual a Igreja resolve esta questão é o estabelecimento de uma nova forma de propriedade, irrevogável (em termos jurídicos). Assumiremos a perspectiva de que esta nova forma de doação régia está ligada diretamente ao processo de complexificação social.

Antropologia, evolução e hierarquização social Iniciemos, portanto, a caracterização da tentativa de classificação que a antropologia estabeleceu para o entendimento das diversas formas societárias – sociedades igualitárias, hierarquizadas e estratificadas. Estes conceitos tomam forma mais nítida, desenvolvida e acabada em estudos mais recentes, como o de Morton Fried;7 tal acabamento é, contudo, tributário do pensamento de um homem que infelizmente é pouco conhecido no quadro das humanidades, muito embora seja citado por Charles Darwin, Sigmund Freud, Karl Marx e Friedrich Engels. Lewis Henry Morgan é requisitado por Claude Lévi-Strauss, por exemplo, como o criador da Antropologia Social, assim como um dos “grandes precursores dos estudos estruturais”8. O pensador estadunidense é ovacionado de tal maneira pela sua obra Systems of consaguinity and Affinity of the Human Family9 que, conforme é sugerido pelo título, corporifica um denso estudo

7 FRIED, Morton. A evolução da sociedade política – um ensaio sobre antropologia política. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1976. 8 LÉVI-STRAUSS, Claude. Anthropologie Structurale. Paris: Plon, 1958. p. 318. apud TERRAY, Emmanuel. O marxismo diante das sociedades primitivas. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 9 Disponível na íntegra e no original em 8 sobre o sistema de parentesco, tornando-se modelar para este tipo de estudo por um longo período de tempo10. Seis anos após a publicação desta imponente obra, Morgan “comete”11 Ancient Society12. Neste texto, o autor teria se deixado levar pelo pecado mortal, pelo inimigo número um dos antropólogos do século XX: o evolucionismo13. Tomando partida da questão, Ciro Cardoso destaca um elemento crucial para o desenvolvimento deste tipo de crítica – a escala de temporalidade. Caso saiamos das publicações de nossa disciplina e adentremos aquelas cuja natureza de dados implique, necessariamente, na adoção de uma escala dilatada de tempo (como é o caso da arqueologia e da pré-história), torna- se difícil escapar da concepção de evolução, ou pelo menos do debate envolvendo a mesma. O autor ainda destaca a ausência prévia de elementos necessários às novas formas de organização da sociedade, com os exemplos da impossibilidade de existir uma sociedade que se dedique à agricultura sem que ela seja precedida por uma organização em grupos de caçadores-coletores, e também a impossibilidade da existência de cidades sem a produção de excedentes (a partir da apropriação) dos quais ela poderá se nutrir.14 As considerações acima são fundamentais para entendermos como a perspectiva de evolução presente nas obras de Morgan e Fried são passíveis de significações diferenciadas, e não estão necessariamente descartadas como possibilidades. Se entendermos a evolução social como a forma de complexificação própria de uma determinada sociedade, levando em consideração suas especificidades, as diversas forças atuantes em sua estruturação e dinâmica, que seguem níveis de temporalidades distintos, podemos chegar a uma dialética que englobe o desenvolvimento autóctone (quando for o caso) somado às influências exteriores,

http://www.archive.org/stream/systemsofconsang00morgrich/systemsofconsang00morgrich_djvu.txt 10 Duração esta ainda maior se levarmos em consideração a influência sobre o próprio Lévi-Strauss, que por si só já conta com enorme projeção. 11 Longe de concordarmos com tal afirmação que vislumbra o essencial da obra com um aspecto deveras negativo, reproduzimos aqui o verbo cometer para evidenciar o quanto ela foi criticada; as aspas cumprem a função de demonstrar que tal perspectiva não é nossa, assim como sublinhar o caráter coloquial da expressão. 12 Igualmente disponível na íntegra em http://www.marxists.org/reference/archive/morgan-lewis/ancient-society/. A fixação do texto de Morgan em um sítio virtual dedicado exclusivamente à disponibilização de textos de autores marxistas ou cuja obra possui influência (sobre ou) dos “pais” do materialismo histórico dialético é reveladora. 13 Referimo-nos aqui a “evolucionismo” como a forma de entender o desenvolvimento das sociedades humanas suprimindo a diversidade entre as diversas formas que elas tomaram, equalizando as etapas (degraus) que desembocariam em um mesmo fim. A crítica a esta perspectiva é corrente, e a tom de exemplaridade, citamos o obra “Raça e História” de Lévi-Strauss. LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História, In Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1993. 14 CARDOSO, Ciro. Um historiador fala de teoria e metodologia. Bauru: Edusc, 2005. pp. 23-26. 9 simultaneamente conjugando questões que dizem respeito à conflitividade interna e de contato entre as comunidades15. Incidiriam, portanto, questões de média, curta e longa duração simultaneamente, resguardando sua especificidade. Deve-se contar também com articulações possíveis da sociedade em questão com outras, e as comparações entre os numerosos processos de complexificação não apenas são possíveis como desejáveis. Desta maneira, cremos investir o processo de evolução e hierarquização social de historicidade e inteligibilidade – antropológica e também sociológica. Voltemos, pois, às ideias de Morgan. Desde o sucesso de A Origem das Espécies, diversos autores tentaram aplicar às sociedades humanas as descobertas de Darwin. Engels e Marx condenaram-nas em absoluto, atribuindo aos espíritos aventureiros preguiça que gerava automatismos. Ao entrar em contato com Ancient Society, Marx teria lido-o vorazmente e produzido 98 páginas de anotações, enquanto Engels conferia à obra em questão não apenas o feito de tornar plenamente compreensível a gens grega e romana, como situava Morgan, no âmbito da história primitiva, com as mesmas honras que Darwin em relação à evolução biológica, ou a teoria marxiana da mais-valia para a economia política. O motivo de tanto reconhecimento decorreria do desenvolvimento autônomo, pelo autor (ainda que não de forma tão explícita quanto a dupla de alemães) da concepção materialista da história.16 A afirmação pode parecer exagerada aos que conhecem o materialismo histórico-dialético de Marx e Engels17. Os conceitos que são chave para a dupla de alemães naturalmente não estão presentes na obra de Morgan – mas apenas no que diz respeito ao vocábulo que designa o conceito. A essência deste está presente, porém, em outros termos. A comparação entre o entendimento do estadunidense com a perspectiva dos pais do materialismo histórico torna-se mais viável e nítida se pensarmos que

“as artes da subsistência de Morgan nada mais são do que o sistema das forças produtivas em Marx; o período étnico é o modo de produção acompanhado das superestruturas jurídicas e políticas que este suscita. Para Morgan, como para Marx, as diferentes esferas da superestrutura têm sua lógica própria e reagem através desta lógica à ação da infra- estrutura; por fim, é o próprio Marx que descobre na teoria dos sistemas de consangüinidade de Morgan sua própria teoria das ideologias. [...]

15 No sentido de sociedade. Novamente, recurso retórico visando fluidez textual. 16 TERRAY, Emmanuel. op. Cit. pp. 29-31. 17 Não é necessário ser simpático a determinada teoria para lhe reconhecer sua própria complexidade; esta é mais uma questão de honestidade intelectual do que de filiação teórica. 10

Morgan apresenta a família como elemento ativo, transformando-se com a sociedade, e o sistema de consangüinidade como um elemento passivo, só se adaptando com atraso às transformações da família; e Marx anota à margem deste texto: ‘O mesmo ocorre com os sistemas políticos, jurídicos, religiosos, filosóficos em geral’ ”18

A obra de Morgan carrega em seu bojo elementos que consideraríamos elogiáveis. Contudo, sua amplitude traz em si elementos problemáticos e já superados – a “promiscuidade” sexual original da humanidade, a anterioridade do regime matrilinear em relação ao patrilinear19 etc. Estas questões parecem-nos mais comprometedoras do que o evolucionismo possível de ser atribuído ao autor – até porque são elementos que se embasam mutuamente, em um sistema de retroalimentação. Conforme apontamos anteriormente, o evolucionismo pode (e deve!) ser contextualizado e relativizado20, enquanto os exemplos citados endereçam-se ao descarte.

Tais considerações sobre a obra de Morgan não são gratuitas; boa parte das críticas que lhe foram endereçadas tomam o mesmo destino no que tange aos conceitos já enunciados anteriormente, e daí a necessidade desta breve digressão sobre o autor estadunidense. As contribuições de Fried para os estudos voltados à hierarquização social são consideravelmente mais sistemáticos e, em função disto, mais interessantes do ponto de vista da discussão conceitual. O marxismo, por sua concepção realista da História, deve travar a discussão conceitual ancorada a realidades históricas específicas. Com esta postura não queremos negar a possibilidade de discussões conceituais; antes, ensejamos as mesmas, porém não em um caráter abstrato genérico, e sim na construção de um conceito pleno de concretude e historicidade.21 Passamos, portanto, a um breve estudo do que seria a sociedade germânica no século I a.C. A observação crítica de tal sociedade tampouco é algo fortuito. Os conquistadores do Ocidente, no fim da Antiguidade, foram os descendentes daqueles, e foi a sua interação com o mundo romano (e vice-versa, naturalmente) que daria origem à Idade Média.

18 TERRAY, Emmanuel. Op. Cit. P. 70. 19 Tal confusão, comum à época, é um dos motivos para a interpretação de matrilinearidade com sociedades matriarcais, algo já abandonado. 20 O ato de relativização ora pretendido não é o de simples contextualização com finalidade de perdoar determinadas falhas da intelectualidade de uma época, e sim o repensar do conceito que, conforme demonstra Ciro Cardoso na já citada obra, ainda possui vigor e centralidade em determinados campos de conhecimento. 21 Pela necessidade de historicizar conceitos que elaboramos a digressão anterior; eles devem ser especificados quanto ao seu movimento no que diz respeito ao que chamamos, em caráter bem lato, de “história das idéias” e também na aferição e consecutiva moldagem do mesmo à realidade à qual se refere. 11

César, germanos e as sociedades igualitárias Os relatos de que dispomos dos germanos no século I a.C. devem-se a uma espécie de “observação etnológica” (avant la lettre) atribuída a Júlio César, elaborada em sua campanha nas guerras gálicas. Algumas referências que o autor tece foram feitas em comparação à sociedade gaulesa e, em última instância, com o mundo romano do qual é oriundo. Informa-nos que

“Os germanos diferem muito em costumes. Assim, nem têm druidas, que presidam às coisas divinas, nem sacrifício. Contam unicamente no número dos deuses os que vêm, e cujo socorro lhes é abertamente profícuo; isto é, ao Sol, a Vulcano, à Lua; os outros, nem ainda por fama conhecem. Toda a sua vida se passa em montarias e no mister das armas; afazem-se de pequeninos ao trabalho e à aspereza. […]

Não se esmeram na agricultura, e a mor parte de seu sustento consiste em leite, queijo e carne. Nenhum tem campo demarcado ou de sua propriedade; mas os magistrados e os principais designam cada ano as gentes e parentelas, que vivem em comum, tanto espaço de campo para lavrar, quanto e onde parece conveniente, e os obrigam no seguinte ano a passar para outra parte. Muitas são as razões que dão desta usança, tais como: - para não trocarem, demovidos pelo hábito, o ardor guerreiro pela agricultura, não procurarem alargar cada um o seu campo, o mais poderoso a custa do mais fraco, não se ocuparem em construções próprias a guardá-los do frio e da calma, não fazerem nascer entre eles a ambição de dinheiro, donde procedem as facções e as discórdias, e conterem a plebe por um princípio de equidade, vendo cada um que iguala em riqueza ao mais poderoso. […] Quando qualquer cidade22, ou repele a guerra de invasão, ou a faz, elegem-se, para dirigi-la autoridades, que exercem o direito de vida e morte. Durante a paz não há autoridade alguma comum, mas os maiorais dos cantões e aldeias distribuem justiça entre os seus e terminam as contendas. […] Quando algum dos principais declara no conselho, que há de ser chefe de uma expedição, e que, os que quiserem segui-lo, o dêem a conhecer, levantam-se aqueles que têm confiança na empresa e no homem, prometem-lhe o seu auxílio e são louvados pela multidão; os que dentre estes o não seguem, são tidos em conta de desertores e traidores, e a ninguém mais merecem crédito em coisa alguma. Não julgam permitido violar a hospitalidade; os que entre eles se acolhem por qualquer motivo, são protegidos e tidos por sagrados; todas as casas se

22 Na tradução ora adotada, adotou-se o termo cidade para a tradução de civitates; o desejo de traduzir o mais próximo possível do original dificulta o entendimento de que o termo latino aqui parece indicar mais aglomeração populacional em determinado espaço do que propriamente uma cinrcunscrição espacial definida pela sua oposição ao campo e afastamento das atividades econômicas primárias. 12

lhes abrem, e facultam-se-lhes os víveres.”23

Analisemos, pois, alguns dos tópicos que chamam atenção da narrativa de César. A primeira referência do trecho citado aponta para a ausência de sacerdotes (druidas, pela comparação com o mundo celta) e mesmo de um número reduzido de deuses, assim como uma religiosidade marcada por um pragmatismo bem considerável. Conforme destacamos anteriormente, estes são elementos que causam estranheza a um homem romano, cuja religião inclui um número amplo de deuses; da mesma maneira, o contato com o mundo divino deve contar com a intermediação de sacerdotes, homens cujo trabalho é a vinculação e mediação com o sagrado. Pensamos que uma característica comum às sociedades pré-capitalistas em geral é a perenidade e importância do contato com o campo do sagrado; em uma sociedade tão reconhecidamente desigual como a romana, a divisão social do trabalho é um fenômeno já consolidado. Esta se expressa inclusive na presença de indivíduos cuja inserção social é voltada para esta mediação, entre os demais homens (não especialistas nos afazeres sacerdotais) e o que hoje em dia chamaríamos de sobrenatural. É compreensível, portanto, que a ausência destes

23 [21] Germani multum ab hac consuetudine differunt. Nam neque druides habent, qui rebus divinis praesint, neque sacrificiis student. Deorum numero eos solos ducunt, quos cernunt et quorum aperte opibus iuvantur, Solem et Vulcanum et Lunam, reliquos ne fama quidem acceperunt. Vita omnis in venationibus atque in studiis rei militaris consistit: ab parvulis labori ac duritiae student. Qui diutissime impuberes permanserunt, maximam inter suos ferunt laudem: hoc ali staturam, ali vires nervosque confirmari putant. Intra annum vero vicesimum feminae notitiam habuisse in turpissimis habent rebus; cuius rei nulla est occultatio, quod et promiscue in fluminibus perluuntur et pellibus aut parvis renonum tegimentis utuntur magna corporis parte nuda. [22] Agriculturae non student, maiorque pars eorum victus in lacte, caseo, carne consistit. Neque quisquam agri modum certum aut fines habet proprios; sed magistratus ac principes in annos singulos gentibus cognationibusque hominum, qui una coierunt, quantum et quo loco visum est agri attribuunt atque anno post alio transire cogunt. Eius rei multas adferunt causas: ne adsidua consuetudine capti studium belli gerendi agricultura commutent; ne latos fines parare studeant, potentioresque humiliores possessionibus expellant; ne accuratius ad frigora atque aestus vitandos aedificent; ne qua oriatur pecuniae cupiditas, qua ex re factiones dissensionesque nascuntur; ut animi aequitate plebem contineant, cum suas quisque opes cum potentissimis aequari videat. [23] Civitatibus maxima laus est quam latissime circum se vastatis finibus solitudines habere. Hoc proprium virtutis existimant, expulsos agris finitimos cedere, neque quemquam prope audere consistere; simul hoc se fore tutiores arbitrantur repentinae incursionis timore sublato. Cum bellum civitas aut illa tum defendit aut infert, magistratus, qui ei bello praesint, ut vitae necisque habeant potestatem, deliguntur. In pace nullus est communis magistratus, sed principes regionum atque pagorum inter suos ius dicunt controversiasque minuunt. Latrocinia nullam habent infamiam, quae extra fines cuiusque civitatis fiunt, atque ea iuventutis exercendae ac desidiae minuendae causa fieri praedicant. Atque ubi quis ex principibus in concilio dixit se ducem fore, qui sequi velint, profiteantur, consurgunt ei qui et causam et hominem probant suumque auxilium pollicentur atque ab multitudine collaudantur: qui ex his secuti non sunt, in desertorum ac proditorum numero ducuntur, omniumque his rerum postea fides derogatur. Hospitem violare fas non putant; qui quacumque de causa ad eos venerunt, ab iniuria prohibent, sanctos habent, hisque omnium domus patent victusque communicatur. A versão latina encontra-se em http://www.thelatinlibrary.com/caesar/gall6.shtml . A tradução adotada está presente em JÚLIO CÉSAR. Cometários sobre a Guerra Gálica (De bello gallico). Trad. De Francisco Sotero dos Reis. Rio de Janeiro: Ediouro, 1941. Capítulos XXI-XXIII; pp. 123-124. 13 profissionais seja um elemento reparado pelo romano. Não podemos nos deixar levar exclusivamente pelo que a fonte aponta, contudo. César menciona poucos deuses e o culto a estes deveria se expressar unicamente na medida em que produzem efeitos concretos. Novamente destacamos o quanto disto deriva de uma mentalidade romana; no limite estas considerações podem conduzir o leitor a concluir que, em caso de ausência prolongada de sucessos que deveriam ser lidos como intervenções divinas, os germanos abandonariam o seu já reduzido número de deuses. Tal assertiva nos parece exagerada, e as referências de César parecem apontar, sobretudo, para uma religiosidade vivenciada e experimentada sem as mediações às quais um romano estaria habituado. Da mesma maneira, o corpo de sacerdotes e os edifícios voltados ao culto religioso (de determinada divindade) existentes no mundo romano pressupõem uma perenidade das deidades. Em caso de uma pequena derrota militar, Minerva não deixaria o Senado, por exemplo. No mundo germano, aparentemente o culto a divindades não possui tamanha institucionalização. Um destes motivos está na vinculação direta deste universo com a divisão social do trabalho. A caça, a coleta e a pecuária parecem ser as atividades econômicas principais dos germanos, seguindo a linha de raciocínio apresentada por César. A orientação pela vida guerreira itinerante parece ser o fundamento desta opção; a equalização das riquezas a partir da redistribuição perene de terras aos grupos familiares, além de conter eventuais níveis de sedição interna à tribo é uma condição fundamental para sociedades que vivem em deslocamento como estas.24 Destarte, as formas de apropriação da natureza entre os germanos parecem garantir ao conjunto societário o acesso aos bens necessários à sua reprodução material. Ao tratar das sociedades que classifica como igualitárias, Fried interpreta os grupos de trabalho como voltados às atividades específicas próprias, e estes normalmente tomam o formato cooperativo. Constituem-se com a ausência de liderança previamente estabelecida, a não ser em situações bem específicas, especialmente as que desempenham um papel ritualístico fundamental no quadro do bando25. A estes grupos não é vedada a participação de nenhum membro26, e uma condição fundamental para esta abertura é a inexistência de restrição de acesso às matérias-

24 A constante redistribuição não garante, per se, o nivelamento do nível de riqueza. No nosso contexto, ela surge como um mecanismo que a proporciona, mas por sua conexão com as demais estruturas da sociedade, que conferem, em seu conjunto, a coesão e manutenção desta equidade. 25 Bando, grupo etc. São formas diferentes de nos referirmos à sociedades que ora caracterizamos, e a multiplicidade de termos busca apenas fluência textual. Os termos escolhidos o foram por indicar uma sociedade munida de uma demografia tímida, típica destas sociedades. 26 Intervindo apenas as limitações de idade e gênero. 14 primas utilizadas para as ferramentas necessárias para tais funções.27 Estas lideranças de caráter ritualístico devem ser pensadas, entre os germanos deste período, como a guerra – este caráter ritualizado (campo de manifestação de divindades) também se expressa pela importância que ele desempenha na reprodução do bando, e mesmo como a forma essencial de enlace da tribo. O “conter a plebe” proferido pelo general nos parece uma leitura latina de “garantir a união da tribo”. Como a referência à realocação das famílias demonstra, as parcelas de terra são atribuídas a parentelas. Esta referência, embora seja breve, demonstra um elemento fundamental na vivência destas pessoas, que é a articulação a partir de laços de parentesco no que diz respeito às suas atividades econômicas fundamentais. Em função do peso que a reprodução material possui nas formações sociais, não seria exagero pensar a articulação global da tribo a partir destes mesmos laços de parentesco28, sendo ela um aglomerado de famílias. Os humiliores citados por César nos parecem ser grupos familiares que ora se encontram em uma posição de menor riqueza do que as demais. Contudo, esta inserção na tribo é dinâmica, e não definitiva como seria em uma sociedade mais complexa (como a romana). Nas sociedades em que o igualitarismo é imperante, a posse individualizada de determinados itens é algo existente, desde que estes não sejam fundamentais para a reprodução social. Contudo a forma como estes circulam na comunidade é fundamental para apreendermos o porquê da propriedade não ser de fato desenvolvida no quadro geral destas sociedades. As trocas econômicas seguem aí, a linha da reciprocidade, e é esta que determina a circulação; concessões e permutas não são apenas equivalências, mas, sobretudo, equalizadoras. São um dos mecanismos principais que estes grupos desenvolvem para evitar o surgimento de hierarquias. Marshall Shalins atribui a estas trocas um princípio geral de regulação homeostática que ele denominou “reciprocidade generalizada”29 A redistribuição perene das terras entre estes germanos é claramente um destes mecanismos de nivelamento. A ausência de uma justiça comum aos “cantões” (e, portanto, aos grupos familiares) parece corroborar com esta hipótese. Aparentemente a mobilização da tribo como um todo só se constrói em situação de guerra, seja de defesa, seja a expedicionária. Em condições pacíficas,

27 FREID, Morton. op. Cit. pp. 64-68. 28 Lembremo-nos de que Marx evoca o próprio modo de cooperação como elemento de força produtiva. MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. 29 Um exemplo no qual as sociedades teriam atingido tal nível de equalização mais próximo da plenitude seria os esquimós. Este grupo é recorrente em textos antropológicos que abordam a questão da igualdade, na qual as relações entre marido e mulher são sempre lembrados. SAHLINS, Marshall. On the sociology of primitive exchange, In The relevance of Models for Social Anthropology 1. Nova Yorak: Praeger, 1965. 15 autonomizam-se os grupos de parentesco. Contudo, a peleja (que conjuga estas comunidades30) não pode ser pensada como algo fora das condições de normalidades neste contexto. A guerra, pelo contrário, constitui uma estrutura econômica tão fundamental desta sociedade a ponto dela interferir nas demais – o desprezo pela agricultura e o apreço à fúria guerreira, assim como o lançar-se contra as adversidades climáticas (criticam a possibilidade de proteger-se do frio) parecem ser formas de produzir e preservar uma disciplina e atividade corpórea capaz de ser vitoriosa em combate. A participação no embate parece ser outra forma fundamental de participar do conjunto da sociedade. Aparentemente, os poltrões não são dignos de atenção ou confiança, e não há indícios de que esta pecha social possa ser removida. Em sua investida de elencar possíveis classificações no processo de evolução social, Morton Fried define (quanto aos aspectos econômicos) as comunidades igualitárias como aquelas marcadas por permitirem o acesso indiferenciado31 aos meios de produção fundamentais à vida.32. No plano ideológico,

“uma sociedade igualitária é aquela em que há tantas posições de prestígio em qualquer grupo determinado de idade e sexo quanto pessoas capazes de preenchê-las. […] A força, a acuidade sensorial e a excelência do desempenho são pontos fortes que constituem um ideal em todas as sociedades simples; […] A maior parte das sociedades igualitárias dispõem de poderosos mecanismos nivelatórios que impedem o surgimento de diferenças muito acentuadas de habilidades entre seus membros”.

A partir do relato de César, podemos pensar no exercício perene de caça e guerra como uma das formas deste nivelamento em termos de habilidades. A ausência de sacerdotes (ausência de druidas, no texto) também parece indicar uma religiosidade que está livre de mediações, sendo todos os membros do grupo simultaneamente sacerdotes e crentes. Como a religião também contém elementos fundamentais em termos de forças produtivas (ideais), esta forma de se relacionar com o sagrado estabelece vínculos diretos, que entendemos como outra expressão do acesso irrestrito aos elementos necessários à

30 Aqui no sentido de “grupos familiares”. 31 Deixando-se de lado as questões relativas à idade e gênero. 32 Pelo menos desde a obra de Godelier sobre o ideal e o material tornou-se difícil não pensar em elementos que normalmente tomaríamos como puramente mentais, ideológicos (ou ainda “superestruturais”) postos no mesmo nível que ferramentas, técnicas etc; os meios de produção ideais são tão necessários à estruturação e dinâmica sociais quanto quaisquer outros. GODELIER, Maurice. L'idéel et le matériel: Pensée, économies, societés. Paris, Fayard, 1984. 16 reprodução social. Quanto às formas a partir das quais as sociedades igualitárias normalmente se organizam, as principais células destas formações sociais são duas, e não são cingidas, mas coextensivas. Trata-se da família e do bando - que apesar de se organizar a partir do formato desta, não é necessariamente uma família extensa, sendo normalmente um arranjo mais complexo do que isto. O nível mais alto de agregação – o bando – não é constrangido a manter-se unido indefinidamente, podendo cindir em partes diversas a formar novas células, até mesmo com identidades novas.33 Este é provavelmente um dos processos que foram recorrentes entre os germanos que analisamos em um momento posterior; boa parte das denominações que surgem nos textos de César e Tácito provavelmente representavam coalizões familiares, cuja vigência era determinada em nível conjuntural – o sucesso ou o infortúnio militar, por exemplo, é fundamental para a firmação ou a supressão destes laços. O fato de determinadas tribos referidas por César não aparecerem mais nos registros de Tácito indicam a extinção de determinado bando; isto não implica, contudo, que tenha ocorrido supressão física, podendo representar apenas a vinculação a uma outra identidade.34 Explicitamos anteriormente que aparentemente a tribo germânica apenas se une como tal para a guerra, sendo para isto eleitos líderes, aos quais é conferido direito de vida e de morte. Terminadas as incursões militares, estes retornam aos seus locais de origem e são despojados de sua(s) prerrogativa(s) anterior(es). Esta forma de liderança (marcada pela ausência de regularidade) é tipicamente encontrada pela Antropologia em sociedades sem hierarquias.35 Nelas a autoridade é carente de conotações de poder, e plena das noções de serviço; é passageira, e está ligada à situações (no nosso caso, à guerra; mas podem estar ligadas à caça, coleta, pesca), não a pessoas; e a autoridade geralmente é confinada a um grupo pequeno que, ao aumentar sua pretensão em relação à confiança depositada, perde-a paulatinamente.36 Como no contexto ora analisado a figura de liderança está limitada a uma única pessoa, o controle sobre o mesmo é potencialmente maior, e eventuais substituições igualmente realizadas de forma mais simples. Responsável pela coesão (ou dispersão) do bando, inserida no mundo do sobrenatural

33 FRIED, Morton. op. Cit. p. 74. 34 Estamos aqui equivalendo tribo a bando, na medida em que ambos representam uma comunidade que se afirma a partir da conjugação de diversos grupos familiares. 35 No sentido de “sociedades igualitárias”. Novamente constitui recurso retórico visando agilidade textual. 36 Idem. p. 88. 17

(pela presença atuante das divindades), torna-se difícil não conferir centralidade à atividade bélica. Sobre sua inserção no campo econômico, pensamo-la como um dos elementos nucleares do modo de produção, sendo uma forma de intercâmbio. Falando explicitamente dos germanos que tomam Roma de assalto,37 Marx e Engels indicam que

“[...]a própria guerra é, conforme já foi sugerido acima, uma forma de intercâmbio regular, explorada tanto mais assiduamente quanto mais o crescimento da população, dentro do rude modo de produção tradicional (o único possível para esse povo), gera a necessidade de novos meios de produção”.38

A movimentação, conquista e redistribuição de terras surgem, portanto, como propelidos pelo crescimento demográfico. Este exigiria mais bens de subsistência para a reprodução imediata das parentelas (sendo também possível o surgimento de novos grupos familiares), o que impulsionaria mais campanhas de conquista. Da mesma maneira, a escolha por atividades econômicas que exigem largas porções de terreno contribuem para que a necessidade da expansão ininterrupta seja ainda mais pungente. Infelizmente, não contamos com dados que possam corroborar esta hipótese de maneira significativa e empírica, mas ela nos soa razoável do ponto de vista lógico. Da mesma forma, não pretendemos apontar para correspondências automáticas, porém o elemento sobre o qual Fried desenvolve sua explicação para o desenvolvimento de hierarquias perenes nestas sociedades é justamente o fator demográfico. Para estes germanos, as linhas de Marx e de Fried parecem convergir no sentido de consolidar uma hipótese39 a partir da qual a liderança deixa de ser temporária, e formas de hierarquias começam a se pronunciar mais ativamente.

Para a apreensão conceitual plena desta sociedade, tecemos observações analíticas sobre o relato de Júlio César aliado a considerações gerais que a antropologia política tece acerca das sociedades tidas como igualitárias. As assertivas de Fried a respeito destas sociedades são coadunáveis com o relato dos germanos do século I a.C. A rotatividade do acesso à guerra – forma de intercâmbio e também via de prestígio e fausto – garante ao conjunto do bando a possibilidade de acesso a status àqueles que são bem sucedidos. A agricultura, segundo o

37 Apesar da citação evocar um contexto bem adiantado em relação ao ora estudado, as assertivas nela presente igualmente nos ajudam a pensar os germanos deste contexto. 38 ENGELS, Friederich e MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.p. 70. 39 Embora de difícil comprovação, pensamos que constitui direito e dever do historiador aventar hipóteses para o preenchimento das lacunas deixadas pela ausência de evidências empíricas, sempre que isto for possível. 18 generalíssimo romano, não é praticada objetivando conter possíveis níveis de entropia no seio do conjunto, ao mesmo tempo em que garante a educação física40 no exercício da caça, escola da guerra. Formulações conceituais apresentadas e relacionadas com os registros que possuímos dos germanos no século I a.C., a caracterização de tal sociedade como igualitária nos parece adequada, se não inescapável. As adequações necessárias ao longo da exposição não são “deformações”, no sentido moralista de transplantes teóricos que universalizam a categoria, tornando-a genérica e forçando recorte e o conceito até um encaixe (im)possível. O exercício efetuado é a historicização plena – de contexto e de conceito.

Tácito e os germanos no século seguinte Senador de Roma no período imperial, Públio (ou Gaio) Cornélio Tácito redige uma nova versão do que seria uma descrição “etnográfica” dos germanos. A obra conhecida como De origine et situ Germanorum teria sido redigida em cerca de 98 d.C. As observações tecidas pelo autor traduzem uma realidade que dista cerca de um século e meio das anotações de Júlio César. Na Germania (maneira pela qual a obra tornou-se conhecida) podemos vislumbrar, sobre a região próxima à Panônia, que

“É fértil em grãos, porém, não em árvores frutíferas. É fecundo em rebanhos, mas de proporções reduzidas. Os bois não apresentam pela conformatura e os adereços que lhes ornam a fronte são pobres no tamanho. Amam a abastança e são estas já citadas as suas únicas e mais gratas riquezas.”41

Sobre a forma de lidar com metais preciosos, sabemos que

“Não sei se foi por mal ou por bem, o certo é que os deuses lhe negaram o ouro e a prata. Contudo, não me atreveria a assegurar que não existia alguma mina desses nobres metais. Quem, porventura, já o

40 Não apenas nos remetemos à ginástica corpórea pura e simples, mas a uma historicização do corpo, que é atravessado necessariamente por níveis de sociabilidade. No recorte tratado, a disciplina tende a gerar corpos largos, próprios às atividades bélicas. Para um estudo interessante sobre a disciplina sobre o corpo como elemento histórico , sugerimos a leitura de GRAMSCI, Antonio. Americanismo e fordismo. São Paulo: Hedra, 2008. 41 TÁCITO. De origine et situ Germanorum. Cap. V. A tradução ora utilizada é a disponível em http://www.ricardocosta.com/. Para efeito de verificação no original, utilizamos a versão fixada em http://www.thelatinlibrary.com/tacitus/tac.ger.shtml 19

investigou? O fato é que eles não lhes emprestam o valor que lhes dão os demais povos. Entretanto, vêm-se ali vasos de prata que costumam presentear os seus embaixadores e príncipes. Porém, não os estimam mais do que se fossem de barro. Sem embargo, os que vivem em nossas fronteiras, tendo em vista o comércio, apreciam o ouro e a prata e, por isso, selecionam algumas espécies das nossas moedas. Os do interior, atendo-se à velha usança, permutam as mercadorias com a maior simplicidade, trocando umas coisas por outras. Preferem a moeda de cunho antigo […] e se inclinam mais pela prata do que pelo ouro, não em virtude de pontos de vista particulares, mas porque as moedas de prata é dinheiro mais cômodo para os que mercadejam objetos comuns e baratos.”42

As sociedades que são cobertas pela denominação “germanos” afiguram-se de maneira bem diferenciada do exposto anteriormente. Os alimentos não advêm, sobretudo, da prática da caça (embora esta não seja abandonada)43, mas da pecuária, que parece assumir paulatinamente maior importância como atividade econômica.44 As cabeças de gado tornam-se inclusive padrão de pagamento para aqueles que cometem delitos leves.45 Sobre a relação com a agricultura, o acesso às terras cultiváveis segue uma linha de repartição segundo o estatuto social dos agricultores; esta partilha é relativamente simples, muito em função do pouco esmero envolvido em aumentar a sua produtividade.46 É evidenciado, pelas passagens citadas, que o contato com o mundo romano tornou-se uma constante para os germanos, a ponto de ser coisa quotidiana o comércio entre os que viviam próximos ao limes e os que nele estavam contidos. A referência à prata também é importante no que tange esta questão. Segundo Tácito, a preferência pela moeda de prata se manifesta pela recorrência dela na troca por objetos quotidianos, que parecem ser os itens mais adquiridos por tais comerciantes. A citação do elemento “moeda” poderia indicar um padrão de equivalência entre itens diversos, sustando-se seus elementos qualitativos e estabelecendo-se o quantitativismo. Esta, contudo, não parece ser a questão para os germanos: o intercâmbio parece ter operado, no mais das vezes, pela troca de um item por outro diretamente, sem a mediação do

42 Idem. Cap. V. 43 “Quando não estão empenhados em guerras, não obstante concedem algum tempo à caça.” Idem. Cap. XV. 44 A pecuária certamente era praticada de alguma forma no período anterior, afinal, um dos alimentos essenciais na dieta daqueles homens era o queijo. 45 “Contudo, nos delitos menos graves há proporcionalidade na pena: aos convencidos ou confessos, a multa de uns tantos cavalos ou cabeças de gado.” Idem. Cap. XII. 46 Como consequência deste quase desprezo pelo setor agrícola, os germanos pareciam ignorar a existência do outono. TÁCITO. op. Cit. Cap. XXVII. 20

“padrão-prata”. Os germanos que viviam na fronteira parecem ter desenvolvido o interesse por ouro e prata no comércio, mas não como forma de multiplicação de riquezas e sim como maneira de colecionar itens diversos para posterior redistribuição. Voltaremos a esta questão adiante. Por último, gostaríamos de destacar o trecho referido à presença de embaixadores (legatis) e príncipes (principibus). Estas figuras são melhor caracterizadas em outros trechos da obra, nas quais são esclarecidos seus papéis:

“Os príncipes deliberam a respeito das coisas mais simples. As de maior importância são tratadas em assembleia geral, mas de modo que, mesmo os negócios cuja solução cabe ao povo sejam em primeiro lugar debatidos entre os maiores. […] A liberdade de que gozam os arrasta a certos abusos: não se dirigem, em conjunto, às assembleias, como o povo que venha a ser convocado para tal: reúnem-se a pouco e pouco, lentamente, no que gastam dois ou três dias. Quando acham que há número suficiente começam a deliberar, de armas na mão. O silêncio é imposto pelos sacerdotes, aos quais cabe também o direito de punir. Em seguida, o rei ou o chefe se faz ouvir na sua exposição e, após este, os demais segundo a idade, nobreza ou fama adquirida na guerra, ou de acordo com a sua eloquência, valendo nisto mais a persuasão do que a autoridade temporal do orador. Se não lhes agrada a proposição, rechaçam-na com grande sucesso. Se merece acolhimento, aprovam-na, brandindo as frâmeas. A aprovação mais honrosa é a feita com a agitação das armas.”47

A respeito da forma como são escolhidos os reis (e os príncipes), é tido que

“Os reis são eleitos conforme a sua nobreza, mas os capitães, escolhidos segundo a sua capacidade. O poder dos reis, entretanto, não é ilimitado ou absoluto e os chefes comandam mais pelo exemplo dos seus atos e pelo atrevimento das suas ações do que pela força da sua autoridade. Se se mostram ousados e destemidos e conseguem arrebatar a vitória, governam sob admiração dos povos. Entretanto a ninguém, a não ser aos sacerdotes, se consente o direito de açoitar, prender ou matar: a pena não é considerada como castigo ou execução das ordens de um comandante, mas imposta pelos deuses que, como crêem, presidem aos combates.”48

Nota-se destarte a existência de um corpo (familiar) a partir do qual são eleitos os líderes. Contudo, esta liderança implica em exercícios de posições e atos, e não em posições e atos capazes de produzir efeitos com relativa autonomia. Ainda que estas posições por si só não

47 TÁCITO. op. Cit. Cap. XI. 48 Idem. Cap. VII. 21 garantam a plena efetividade de um poder concentrado, ela expressa outras formas de diferenciação, e a prioridade ao falar (expressa na posição de ser o primeiro) no âmbito da reunião da assembleia é significativo quanto a esta ascendência. No mesmo trecho, nos é revelado que é permitido aos oradores terem autoridades temporais diferenciadas. Os critérios para estes níveis parecem ser idade, fama na guerra ou nobreza. Os primeiros itens já estavam presentes no recorte de César; afigura-se agora a existência de um setor in toto caracterizado pela ascendência sobre o conjunto da sociedade e também pela proximidade com a realeza, com a qual estabelece relações também diferenciadas. Como nos demais casos, é válido sublinhar que estes são elementos que se retroalimentam, e não manifestações estanques. O campo do sagrado agora parece demarcado de maneira mais clara. É possível observar claramente um grupo responsável pelo contato com o sobrenatural; novamente destacamos a importância fundamental do acesso ao sagrado na reprodução das sociedades no pré-capitalismo como um todo. Conforme apontado anteriormente, esta relação deve também ser inserida nos meios de produção – e a presença de sacerdotes é um indício de que o acesso a determinados meios de produção passam a se dar de forma mediada. Sobre este aspecto, voltamo-nos à especificação de outro grupo social que “agora surge” entre os germanos, os escravos. Ao contrário dos romanos

“[...] não os empregam, como nós, nos vários misteres domésticos. Cada qual tem habitação própria, seus próprios penates e se governa a si mesmo. Recebe certa quantidade de gêneros, de gado e de roupas, como um colono, e nisto se cifra a sua servidão. Os misteres da família são preenchidos pela mulher e pelos filhos. Açoitar um servo, ou metê-lo em ferros, ou forçá-lo ao trabalho é raro. Costumam matá-los, não por castigo ou por severidade, mas quando arrebatados pela cólera ou assassinam como si se tratasse de um inimigo pessoal, com a diferença, porém, de que o crime praticado contra o escravo não recebe punição. Os libertos não levam muito mais vantagem do que os escravos: uma ou outra vez conseguem gozar de valia no meio dos senhores.”49

A figura identificada por Tácito como escravo (servus) difere qualitativamente em grande medida do que fora o escravo no mundo clássico – indivíduo dessocializado, que não possui propriedade alguma (sequer sobre seu próprio corpo), que é encarado pelas camadas dominantes

49 TÁCITO, op. Cit. Cap. XXVI. Na versão da Latin Library, esta passagem encontra-se no capítulo XXV. 22 como simples instrumento de produção, bestializado etc. O personagem definido pelo historiador romano dispõe de laços de sociabilidade garantidos, está inserido em uma família, detém os meios de produção... A atribuição do status de escravo no âmbito da sociedade germânica deste período nos parece diferir radicalmente do que ela significou no mundo clássico e no mundo colonial americano. Contudo, ela representa, certamente, um estatuto social inferiorizado, e sua existência é relevante no que diz respeito à nossa análise.

A emergência de tal tipo de escravos, assim como de grupos dedicados à agricultura, é concomitante com o surgimento da aristocracia; nota-se, portanto, tratar de dois processos complementares e convergentes no tocante à sua expressão. O papel desta aristocracia parece ser, sob determinados aspectos a emulação da função do chefe. Se a este compete a ousadia e o sucesso nas batalhas, os que estão próximos a ele devem defendê-lo, salvá-lo, favorecê-lo e estimulá-lo à bravura – como é desonroso ao príncipe estar aquém dos seus guerreiros, quanto maior a ferocidade de seus consortes maior a pressão para que este seja audacioso. Esta ideologia da conquista não é alimentada apenas por estados de espírito: estes guerreiros garantem sua subsistência em banquetes na casa real, e o saque oriundo da vitória bélica é redistribuído pela figura real. É motivo de grande fausto para esta andar cercado de grandes bandos de homens; conforme a sua dimensão e fama, estes cortejos podem mesmo evitar guerras. Se o príncipe falha na batalha ou, por algum motivo, deixa de presidir à guerra, a nobreza não hesita em buscar outros príncipes que o façam.50 Soa estranho que, em uma sociedade marcada por uma posição de liderança perene (o chefe ou chief), seja facultativo à sua entourage desfazer-se com tamanha facilidade. Um dos fatores primordiais na caracterização da liderança no que Fried denominou “sociedades hierarquizadas” é, porém, a ausência de sanções efetivas para que haja obediência à figura do líder. Esta afirmação é acoplável com a forma pela qual vimos que são aplicadas as penalidades nestas sociedades: estas competem aos sacerdotes. A existência destas figuras, como já afirmamos, responsáveis pela mediação com o sobrenatural, não implica na supressão de formas outras de ritualística por outros membros da sociedade, conforme Fried assinala a respeito dos Nootka, entre os quais o chefe não trabalha de fato, mas é o responsável por iniciar ritualmente as atividades fundamentais à reprodução

50 TÁCITO. op. Cit. Cap. XIII-XV. 23 econômica do grupo (primeira expedição de pesca de uma série de outras investidas, no caso).51 De forma semelhante, podemos pensar na inserção da realeza germânica citada no campo de refrega; a guerra manteve, na passagem de César a Tácito, o seu caráter perene e de forma de intercâmbio regular. Se o sucesso ou o infortúnio das empresas militares são decididos pelos deuses, e simultaneamente os príncipes e capitães são responsáveis pelas mesmas, o exercício bélico não pode ser entendido como cindido do sagrado. No período de César, a guerra era afazer de todos. Não há qualquer menção a que a ela dirijam-se os homens postos em situações diversas quanto à logística. No relato de Tácito, sabemos que há uma distinção técnica entre cavalaria (munida de escudo e frâmea) e infantaria, cujos armamentos constituem-se basicamente de armas de arremesso.52 Muito além da distinção puramente tática, esta diferenciação parece-nos claramente vinculada aos estatutos sociais hierarquizados e às possibilidades de destreza pessoal no campo de batalha – o sucesso inflaciona a fama, e desta maneira constitui recurso para que as lideranças disputem tais guerreiros, oferecendo-lhes prendas. Aqui outra questão de fundamental importância para a caracterização de Fried das sociedades hierarquizadas se manifesta. Um dos papéis principais do chefe é garantir a integração econômica a partir do processo de redistribuição.53 Os bens devem fluir, em fluxo constante e de mão-dupla, de uma localidade para um centro, que é o grau máximo da hierarquia de uma determinada sociedade e, conforme a complexidade cresce, o grau máximo de “uma rede contingente menor dentro de uma estrutura mais ampla”.54 À liderança cabe, portanto, a generosidade, e este papel redistribuidor confere prestígio àquele que o executa, e alavanca o seu status político. A riqueza social deve movimentar-se, portanto, não sendo entesourada pelos chefes; esta afluência torna os membros das mais altas hierarquias “pobres”, segundo a análise de Fried. O mesmo ainda atribui aos que pertencem às camadas sociais mais altas nestas sociedades um esforço de trabalho ainda mais árduo do que o dos seus demais membros, pelo

51 Ao iniciar as atividades econômicas (sobre a qual incidem elementos de cunho sagrado), o chefe assume a função de principiar ritualmente estas ações. Assume, portanto, a posição de princeps. 52 Idem. Cap. VI. 53 Neste ponto a inspiração de Fried é clara e explicitamente Polanyi, principalmente a partir de POLANYI, Karl. Semantics of General Economic History. Nova York: Columbia University Council for Research in Social Sciences, 1953. 54 Em nosso contexto, contudo, este centro não é único; pensamos na existência de diversos centros, entre outros motivos, pela instituição do comitatus que analisaremos em seguida. A existência de apenas um centro parece ser elemento mais característico das sociedades orientais. FRIED. op. Cit. p. 118. 24 caráter incessante da obrigação de redistribuir e conceder. Embora suas contribuições e proposições conceituais sejam valiosos, as afirmações que ora citamos nos parecem exageradas. O que se atém em maior grau nestes loca de poder não é trabalho propriamente dito, mas sim um nível significativo de latente tensão pela constância na qual o rearranjo das lealdades é afirmado a partir destas concessões. Quanto à suposta pobreza desta nobreza, pensamos que esta realmente se afirma a partir das concessões e da redistribuição; porém atribuir-lhe a condição de pauperismo é ignorar que, nos mais das vezes, neste processo ela retém parte considerável do que redistribui;55 da mesma forma, ignoram-se diversos elementos ideológicos na constituição de tais setores.56 Verificamos, portanto, que o papel destas realezas está intrinsecamente ligado à necessidade de prover seu cortejo de guerreiros, seu comitatus. Para a manutenção deste, é necessário conceder-lhes presentes, benefícios, banquetes. Quanto maior o cortejo, maior o prestígio do príncipe, e maior a sua possibilidade de sair vitorioso do combate. A atração de guerreiros, contudo, exige a vitória na guerra, cujos despojos são o combustível deste mecanismo de força centrípeta. Em sentido contrário estava a força centrífuga que a diversidade de líderes representava, constituindo uma tensão que impedia a retroalimentação potencialmente infinita do sistema. A partir disto, gostaríamos de tecer duas observações. A primeira diz respeito aos limites destas dinâmicas. O recém citado jogo de forças impõe se não um limite, pelo menos um obstáculo a elas, e uma fonte de conflitividade. Outras limitações são o fracasso na batalha (que, se não elimina o líder fisicamente, defenestra-o da posição) ou encontrar-se sob determinadas condições ecológico-geográficas que limitem as conquistas, limites que inviabilizem a constante elástica do sistema. A segunda observação versa sobre um dos elementos que citamos, que é ofertado ao comitatus: o banquete. Ele é trabalho cristalizado (pelos alimentos entregues e por sua preparação culinária) apropriado nos níveis elevados da hierarquia, e destina-se a indivíduos já afastados de suas famílias de origem e também da atividade produtiva de maneira geral. Desejamos deixar marcado aqui como o paulatino processo de afirmação de um grupo social não pode ser entendido sem o seu respectivo

55 “De acordo com a tradição, as cidades e os indivíduos devem enviar um presente ao príncipe, seja em gado, seja em frutos. Estas dádivas todavia, posto tomadas em conta de homenagem, servem para prover as necessidades reais. Apreciam sobremaneira os presentes dos povos vizinhos que lhes são feitos não só por particulares mas também oficialmente, pelos poderes públicos, tais como cavalos escolhidos, armas poderosas, jaezes, colares. Nós já lhes ensinamos a aceitar dinheiro também.” TÁCITO. op. Cit. Cap. XV. 56 A respeito de tal questão versará nosso próximo capítulo. 25 impacto na estrutura social como um todo; ao formar-se um grupo que se abstém da atividade produtiva, outra parcela da população irá necessariamente ter o seu trabalho (ou os frutos de seu trabalho) expropriados de alguma forma. Por esta razão, as classes sociais57 devem ser analisadas sempre em suas relações; como são elementos históricos, devem ser encaradas como processo. Para a melhor caracterização do papel desempenhado por estas doações dos príncipes, abriremos a discussão acerca do conceito antropológico do dom. Formulado pela primeira vez por Marcel Mauss, o estudo do dom é iniciado com uma epígrafe que é uma citação da obra poética de uma civilização germânica, a Eda em prosa. A epígrafe aborda a troca de presentes como equivalência entre aqueles que se ofertam – desde amizade e risos até armas e roupas. A epígrafe termina com a citação de uma estrofe descontextualizada, que indica, em função da necessidade de reciprocidade, que se evite as ofertas, pois isto é preferível a gastar muito com elas.58 O conceito é de simples enunciação: o dom é um fato social total que estabelece três momentos na realização deste fenômeno – dar, receber, reciprocar. Dito desta forma, soa como algo simples e até mesmo aistórico. Os estudos de Mauss, porém, não são marcados por estas características. A caracterização do dom como um elemento que congrega uma totalidade (“fato social total”) não se resume à perspectiva de que ele atravesse as diversas dimensões da vida social, mas também a de que ele mobilize, direta ou indiretamente, o conjunto societário. Para as sociedades simples (ou igualitárias), é compreensível que o conjunto esteja envolvido diretamente nestas trocas. Com o incremento de complexidade nas hierarquias sociais, as formas de expressão do dom também ganham densidade. A doação dos chefes germanos a que nos referimos parece fundamental a esse respeito. Para conceder o banquete e garantir os laços de permanência, é necessária a extração de (mais)trabalho de uma parcela da sociedade; os guerreiros reciprocam lealdade e empenho no combate. A concessão de alimentos e, portanto, da subsistência afastada do setor produtivo é parte fundamental no adestramento e na disciplina corpórea especializada na guerra. O combustível da força centrípeta de guerreiros em direção ao chefe é diretamente proporcional à

57 Por ora adotaremos o termo “classe social” em um sentido bem lato, indicando apenas a inserção de determinados grupos no processo produtivo. A discussão conceitual acerca do que é a classe social no nosso contexto será o alvo mais preciso do nosso segundo capítulo. Por ora, utilizaremos este vocábulo assim como “segmentos sociais”, “parcela da população” etc apenas para evitar aridez vocabular. 58 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 2001. pp. 49-51. As estrofes citadas seriam 39, 41- 44, 46,48 e a descontextualizada seria a 145. 26 capacidade deste de iniciar novos ciclos de doação. A matéria-prima para estes novos ciclos normalmente está no butim, no saque, na pilhagem. O dom se manifesta, portanto, ainda como fato social total; sua historicidade também está expressa em sua indissociabilidade dos processos gerais que atravessam a sociedade na qual se materializa. Ao tratarmos de uma sociedade em processo de hierarquização, ele perpassa esta questão, e pelo papel crucial que desempenha na articulação e coesão da nascente aristocracia, não poderíamos deixar de abordá-lo, ainda que brevemente. Ele reincidirá em diversas oportunidades, nas quais evidenciaremos a sua forma de expressão e a relação desta com processos sociais mais amplos. No contexto ora tratado, ele fundamenta e articula a formação de um setor social a partir da submissão de outro, e este processo é impensável sem considerar a progressiva afirmação da divisão social do trabalho de maneira mais nítida. Ao considerar as tendências relativas à divisão do trabalho, Fried vê nas sociedades hierarquizadas a manutenção de grande parte das características da estruturação igualitária, sendo aquela divisão determinada em princípio pela idade e sexo apenas. A principal mudança quanto à produção, segundo o autor, diz respeito ao predomínio de alimentos do tipo domesticado, que permitem o armazenamento de maneira mais eficaz, e este possibilita por sua vez um aumento demográfico.59 Com o apresentado a respeito da sociedade germânica, a segunda parte possui sentido mais significativo ao nosso trabalho - embora a primeira não seja necessária e totalmente descartada. Ela também é coadunável com a citação de A Ideologia Alemã que fizemos anteriormente, na qual o aumento populacional também está vinculado diretamente à busca por novos meios de produção - obteníveis a partir da conquista. Os elementos caracterizadores da sociedade germânica descrita por Tácito são passíveis de plena interpretação pela “chave” decorrente da categoria de sociedade hierarquizada. Já o afirmamos pouco antes de adentrar o mundo descrito por Júlio César, mas cabe aqui a retomada: traçamos estes quadros amplos porque nosso trabalho se insere necessariamente em uma perspectiva de longa duração. As transformações abordadas não se manifestam abruptamente, mas foram maturadas ao longo de séculos. A explicação para o desenvolvimento destas transformações varia, e a escassez de fontes projeta este trabalho em um plano predominantemente lógico. Cabe-nos aqui, portanto, uma breve especulação. Julio César refere-se à presença de comerciantes “estrangeiros” entre os germanos,

59 FRIED, Morton. op. Cit. pp. 116-117. 27 manifestando um nível de contato de uma sociedade mais simples com uma mais complexa, e poderíamos pensar que deste contato deriva a complexificação da primeira. Se assim fizéssemos, incorreríamos no evolucionismo mesquinho que fizemos questão de criticar, por ignorar a coesão interna da sociedade mais simples quando em contato com estes elementos – por defenestrar da História a ação social, a praxis, a historicidade. Este pode ser um indício, mas não é dado suficientemente categórico para esta afirmação. Conforme elencamos anteriormente, é possível que os elementos demográficos possam ter efeito dissolvente mais significativo do que fatores exclusivamente externos. A análise da sociedade além-Reno por Tácito nos é ainda mais cara do que a relativa à apresentação por César, e isto se confirma pelas comparações possíveis entre a primeira e o quadro da Inglaterra, especialmente no período anterior ao Cristianismo. É comum à historiografia a afirmação de que a organização dos anglo-saxões (sobretudo nos séculos V e VI, anteriores à chegada do cristianismo) era muito próxima da estruturação dos germanos descritos pelo historiador romano.60 Conforme perceberemos ao longo da exposição, a afirmação não é nem um pouco despropositada. Passemos, portanto, a tecer elementos de contextualização que nos permitirão uma análise mais acurada destas propostas.

O convite dos bretões e a chegada de Anglos, Jutos e Saxões O período compreendido aproximadamente entre 400 e 600, ou seja, da retirada das tropas romanas da ilha até a chegada da missão de Agostinho ao reino de Kent, é um dos mais particularmente obscuros no que tange às fontes escritas existentes. Seria imprudente, contudo, alegar que esta faixa de tempo só é capaz de ser abordada a partir dos vestígios arqueológicos. Contamos com um registro relativamente famoso neste quadro, o De Excidio Britanniae, de autoria atribuída ao monge Gildas (c. 516-570), provavelmente no século VI. Devido à sua formação intelectual, a preocupação maior de Gildas concentra-se nos pecados dos bretões que teriam provocado a ira divina, manifesta nos ataques germânicos.61 A narrativa ainda trata de saxões sendo utilizados pela população nativa romanizada como soldados “confederados” no leste da ilha. Estes convocados teriam aumentado em número e confiança até se tornarem fortes o suficiente para se livrarem de seus empregadores. Embora

60 YORKE, Barbara. Kings and Kingdoms of Early Anglo-Saxon England. London and Newo York: Routledge, 2003. p. 15. Também em ANDERSON, Earl R. The uncarpentered world of Old English Poetry. In Anglo-Saxon England 20. Cambridge, Cambridge University Press, 2007. 61 YORKE, Barbara. Kings and Kingdoms of Early Anglo-Saxon England. London: Routledge, 2003.p. 2. 28 seja breve e lacunar, com imprecisões como a construção das muralhas de Adriano e Antonino no século IV, essa é a única narrativa que possuímos que trata das ocupações (settlements) anglo- saxônicas no período. Para montar sua versão da chegada dos anglo-saxões à ilha, Beda (c. 672 – 27 de maio de 735) recorre a Gildas, adicionando um elemento importante: o relato de Gildas não discorre sobre líderes ou chefes guerreiros entre os “confederados”; Beda identifica dois irmãos, Hengest e Horsa, que são aclamados como os fundadores da casa real do Kent.62 Yorke presume que esta informação provavelmente teria origem no abade Albino da Cantuária, que teria sido o principal informante de Beda acerca do reino de Kent.63 Em obras posteriores como a Crônica Anglo-Saxã e a Historia Brittonum, contamos com as figuras de Cerdic e Cynric, Stuf e Wihtgar e Aelle e seus filhos, fundadores, respectivamente, dos reinos de Wessex, do reino da Ilha de Wight e da monarquia do Sussex. A narrativa de Beda sobre os dois líderes, contudo, faz com que a informação deva ser levada em consideração cautelosamente, pois utiliza a fórmula que sempre é empregada na HEGA (referenciaremos doraventa a Historia Ecclesiastica desta forma) para se evitar uma indicação mais precisa, ou mesmo escrita, da origem da informação: perhibentur, que indica que a informação provavelmente tem origem na tradição oral.64 As cronologias da fundação dos reinos também são alvo de suspeitas. Ao contrário de Gildas, que estava mais próximo cronologicamente da chegada dos saxões, Beda confere datas relativamente precisas para a entrada destes como confederados: o período entre 449 e 455. A Crônica Anglo-Saxã data a chegada de Cerdic e Cynric em 494 ou 495; Dumville, contudo, questiona esta datação confrontando-a com outras listas de reis, nas quais Cerdic teria reinado entre 538 e 554, tornando a data da chegada dele e de Cynric presumível em cerca de 532.65

62 Hengest e Horsa significam, literal e respectivamente, “cavalo” (ou “garanhão”) e “égua”. Ciro Cardoso no relembra que esta “realeza dual” está ligada a algum tipo de totemismo do cavalo, expresso em algum nível na referência de Beda. Parece-nos claro que a relação que esta sociedade estabelece com determinados animais, especialmente o cavalo e o javali, dotam-nos, em determinados situações, de elementos sobrenaturais. Tal tópico será abordado mais adiante, em especial os cavalos, que serão abordados em um tópico voltado a eles no segundo capítulo. CARDOSO, Ciro. O paganismo anglo-saxão: uma síntese crítica. p. 29. In: Brathair, n. 4, 2004. Disponível em http://brathair.com/revista/numeros/04.01.2004/paganismo_anglo_saxao.pdf, capturado em 20/10/2010. 63 O próprio Beda assume esta informação no prefácio de sua Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum. BEDE. Historical Works. Trad. e ed. J.E. King. Cambridge (Mass.) – London: Havard University Press, 1994. Vol. 1, Book I, Praefatio, p. 4-5. 64 BEDE, Historical Works. Livro I, cap. 15, p. 70. 65 DUMVILLE, David. The West Saxon Genealogical Regnal List and the chronologyof Wessex. Peritia 4, p.50-56 29

Concordamos, portanto, com Yorke quando esta trata da questão apontando para a imprecisão dos elementos fundacionais, e que estes dados são mais úteis para entender como os anglo- saxões que as escreveram gostariam que a fundação tivesse ocorrido do que da maneira como ela de fato procedeu. Algumas lacunas, contudo, podem ser preenchidas. Se seguirmos a datação de Dumville, a formação do reino de Wessex teria se dado no século VI. Beda explica o fato dos reis da Ânglia Oriental serem chamados de Wuffingas por descenderem diretamente de Wuffa, o avô do rei Redwaldo, que teria morrido em 62566. Partindo das contas da expectativa média de vida, Yorke indica que Wuffa teria vivido em meados do século VI. O primeiro rei do Essex teria sido Sledd, cujo filho já seria rei em 604. Estas datas devem ser tomadas mais como índices de temporalidade do que propriamente como algo preciso; ainda assim, estes dados são suficientes para Yorke apontar como os reinos teriam sido uma criação muito mais do século VI do que propriamente do V, e que eles não estariam na origem mais remota da presença dos anglo- saxões.67 Beda diferencia em três as “tribos” que se instalaram: os saxões, os jutos e os anglos. Outras etnias germânicas também são citadas, mas essas são as mais significativas em seu relato. A interação entre as três, contudo, torna a fusão populacional um processo complexo e no qual felizmente não é muito possível (e até certo ponto desejável!) traçar origens de práticas sociais nesta ou naquela etnia. A arqueologia já chegou a identificar presença escandinava na ilha, assim como uma possível integração do sul da ilha com os francos – principalmente no reino de Kent. Não são poucas as dificuldades, contudo, para estabelecer no quadro dos itens investidos em depósitos funerários o que era produzido localmente e o que era oriundo de trocas de presentes.68

Ruralização As invasões germânicas e o início da Idade Média, na Europa como um todo, articulam- se a um processo conhecido como a ruralização do ocidente. Esta ideia, tão comum em manuais escolares, deve ser matizada. Em nosso recorte, os indícios de uma ruralização anterior à

66 BEDE, op. Cit. Book II, cap. 15, p. 292. 67 YORKE, Barbara. op. Cit. p. 4. Para uma visulização melhor das primeiras ocupações dos anglo-saxões, ver Mapa 2, página 177. 68 Apesar desta dificuldades, esta diferenciação em alguns níveis são possíveis, conforme se verá adiante por aqui e, principalmente, no próximo capítulo. 30 investida germânica são ainda mais evidentes. Antes mesmo da retirada de 410 a vida urbana (e romana) havia decaído. A população encolheu e os edifícios não passavam por manutenção; em 368 houve um grande ataque (raid) bárbaro ao qual poucas villae sobreviveram. A fragilidade então gerada estimulou e facilitou outros ataques em seguida, embora estes novos não tenham tido a magnitude dos anteriores.69 Neste quadro de violência galopante é que foram convocados os mercenários que posteriormente seriam tidos como senhores da ilha. Mudanças diversas tiveram lugar durante o século IV na Inglaterra, e o convite de estrangeiros para compor os batalhões armados dos chefes guerreiros foi apenas uma delas. Aparentemente, mudou-se também o estilo de vida, deixando-se de lado uma economia cuja centralidade radicava nas cidades para uma cuja base era essencialmente rural. Em Wroxeter e Exter as casas de pedra foram substituídas por casas de madeira, enquanto áreas de cidades foram inteiramente abandonadas ou simplesmente “ruralizaram-se”, nos fins do século IV e início do V.70 Com a perda da centralidade das cidades, as villae inicialmente obtiveram vantagens do ponto de vista de mão-de-obra, mas progressivamente inclinaram-se para a autonomização e/ou a regionalização. Nada muito diferente do quadro que encontramos na alta Idade Média como um todo, portanto.71 É perceptível uma linha de continuidade entre a ocupação rural dos períodos romano e anglo-saxão a partir de estudos comparativos que levam em consideração elementos topográficos, arqueológicos e algumas raras e escassas fontes escritas. Everitt aponta nesta direção, assim como Hooke. Não por acaso, apesar de todas as dificuldades envolvidas no processo, Rodwell & Rodwell, assim como Hooke, estabelecem limites de villae romanas congruentes com os das posses fundiárias (estates) medievais.72 As estradas romanas anteriormente ligavam as cidades aos seus entrepostos militares; no período de instalação saxônica elas eram utilizadas e mantidas apenas conforme as necessidades de intercâmbio entre os focos de ocupação e as demais localidades. Disto resulta que diversas estradas se tornaram inutilizadas. Da mesma forma, conforme à ruralização anterior à chegada de

69 WHITELOCK, Dorothy. The Begginnings of English Society. p. 14. 70 Não apenas cultivando as áreas, mas também estabelecendo aqui os tipos de relações sociais comuns ao campo. 71 YORKE. op. Cit. p. 7. 72 EVERITT, A. Continuity and Colonization. The Evolution of Kentish Settlement. Leicester, Leicester University Press: 1986; HOOKE, D. The Anglo-Saxon Landscape. The Kingdom of the Hwicce. Manchester: Manchester University Press, 1985; RODWELL, W J and RODWELL, K. A. Rivenhall: Investigations of a Villa, Church and Village. CBA Research Report n. 55, 1986. 31 anglos, jutos e saxões à ilha, estes tampouco se atinham vigorosamente à vida urbana, a ponto de Whitelock afirmar (e concordamos) que os anglo-saxões floresceram ao lado das cidades, não dentro das mesmas. Além do estilo de vida, a autora soma a este argumento o fato de que uma economia que não reforça a concentração da população dificilmente escolheria habitar prédios de pedra que não saberiam consertar. Optavam por construir com madeiras, ripas etc., e não preservaram o conhecimento dos bretões da alvenaria.73 Não por acaso, ao adotar o cristianismo, a nascente igreja precisou importar pedreiros74 do continente, que reutilizaram boa parte do material bruto lá encontrado.75 Os argumentos de Whitelock são, de maneira geral, válidos. A importação de pessoas especializadas no trabalho arquitetônico envolvendo pedras demonstra a perda de um know how específico. Contudo, não defendemos que a recusa pelos prédios de pedra sejam oriundos de uma ausência (de conhecimento, habilidade ou similar), mas que esta recusa seja produto de uma escolha consciente. O que pretendemos demonstrar adiante é que muito mais do que a simples introdução de uma nova religiosidade76 a implantação do cristianismo expressa e articula profundas transformações sociais, e aqui caberia ressaltar que a preferência por templos de pedra é um traço bem característico desta religião neste contexto.77 Se a questão fosse limitada a impossibilidades, seria difícil imaginar como reis como Offa, da Mércia, que construiu um dique que isolava seu reino dos galeses,78 não teria condições de substituir seus salões de madeira por uma morada pétrea; pensamento similar pode ser atribuído aos demais reis, principalmente os que possuíram o título de bretwalda.79 De qualquer forma, o aspecto não é unicamente cultural ou econômico; além da madeira ser um bem abundante80, a escolha pela constituição em material perecível também denota o aspecto transitório destas sedes, em função do translado quotidiano da realeza e da aristocracia.

73 WHITELOCK, Dorothy. op. Cit. p. 15. 74 Termo aqui empregados aqui com o sentido de homens que trabalham pedra. 75 Como podemos observar na hagiografia anônima de Ceolfrido, capítulo VII. 76 Para ser mais exato, em sociedades não-capitalistas de maneira geral, o termo “simples religiosidade” ou equivalente nos parece carecer de sentido, uma vez que os elementos místico-religiosos atravessam toda a sociedade, que se torna incognoscível (para os inseridos nela) se amputarmos este elemento; para o cientista social, não pode constituir a “primeira causa não causada”, mas deve-se sempre levar este elemento em consideração. 77 Não ignoramos aqui a diversidade interna à própria religião cristã, apenas evidenciamos o tipo dela que adentra a região ora trabalhada, diretamente ligada à Sé romana. 78 Ver Figura 2, página 182. 79 “Rei superior”, “rei largo” etc. Sobre este título, nos deteremos um pouco mais à frente; por ora basta saber que se trata de uma titulação honorífica de um rei que consegue trazer à sua órbita os demais reinos próximos ao seu. 80 Conforme demonstraremos no tópico “Geografia”, a seguir. 32

A administração territorial anglo-saxônica estava estruturada a partir de um grande território rural que continha diversas ocupações vinculadas e subordinadas a uma residência central, chamada pelos próprios saxões de villa quando a ela se referiam em latim, ou de tun, quando em Old English.81 Estes locais eram centros da administração real e eram visitados pelos reis e seus fiéis guerreiros, no que prefiguravam um circuito no qual se consumia localmente as rendas (em víveres diretamente consumíveis, comida e bebida) que as localidades estavam juridicamente obrigadas82 a conceder à realeza.83 Segundo Bassett, nos séculos VII e VIII os grupos de tuns reais e seus territórios dependentes formavam regiones, territórios “cortados” no seio dos reinos para propósitos administrativos.84 Tais elementos levam Yorke a duas conclusões: a primeira é que a infraestrutura administrativa dos reinos anglo-saxões foi diretamente herdada do período tardo-romano; a segunda é que seria possível interpretar os dados como uma demonstração da continuidade da propriedade fundiária mais como uma questão de unidade administrativa do que propriamente de exploração. Cabe aqui ressaltar nossa posição. A primeira conclusão a que a autora chega pode ser entendida de formas diversas, e não somos totalmente avessos a ela, desde que se deixe claro que esta “herança” não é tomada como um “peso histórico”, uma “estrutura de longa duração que determina a ação daqueles homens em primeira instância” ou algum aborto de pensamento semelhante. Defendemos que essa (e possivelmente qualquer outra herança) deva ser pensada como um processo ativo por parte daqueles que com ela se envolvem e dela fazem uso; seria no mínimo estranho, se não abusivo, defender que determinadas formas de estruturação de poder e dominação sociais são prepostos, e não produtos e pressupostos das próprias dinâmicas sociais, que envolvem conflitividade, confluências e resistências diversas. Em síntese, a herança tardo- romana provavelmente tem relação direta com o formato de conflitos e desejos por parte dos germanos que por ali se infiltraram, mas não determina diretamente como se delineiam as relações de poder. A segunda afirmação parece demandar explanações necessárias no âmbito teórico- metodológico. Para alguém que se vincula ao materialismo histórico, é comum a busca por

81 Uma outra forma de apropriação do espaço era o buhr. Ver figura 15, página 191. 82 Ainda que por um direito consuetudinário, ainda prevalecente. 83 CHARLES-EDWARDS, T. Early medieval kingships in the British Isles’ in BASSETT, S. (ed.) The origins of Anglo-Saxon kingdoms. Leicester: Leicester University Press, 1989. 84 BASSET. op. Cit. Interessante notas que o mesmo termo, regiones, será utilizado para evidenciar as dimensões das posses de Vilfrido, um dos nossos hagiografados. Maiores detalhes estão presentes no nosso capítulo III. 33 interconexões dos mais diversos setores e dimensões sociais, integrando-se (e ao mesmo tempo buscando-se) a totalidade de um determinado sistema social. Por esta razão, soa-nos estranha e quase ingênua a afirmação de que, em uma sociedade não-igualitária, determinado sistema (d)e propriedade seja mais de cunho administrativo do que necessariamente de exploração. Se a sociedade é em algum nível desigual, a administração também o é85, e é difícil pensar em processos de hierarquização que não rimem com exploração. A administração, portanto, também deve seguir a linha, e soma-se à exploração mais do que qualquer outra coisa.

Geografia A ilha da Bretanha contava com aspectos ecológicos bem diversificados entre si. Apresentava densas florestas – Selwood, Wychwood, Sovernake, Wyre, Arden, Sherwood, Epping etc. Algumas destas chegaram aos nossos dias, mas suas versões dos tempos anglo- saxônicos eram bem maiores e possivelmente mais densas. Weald, por exemplo, segundo um cronista do século IX, se estendia de Hampshire até Kent, totalizando 120 milhas de comprimento e 30 milhas de largura.86 As zonas pantanosas também ocupavam boa parte do terreno – o pântano de Romney não era drenado, e havia outra área encharcada em Somerset, desde Mendips até Tauton. Tais características reduziam sensivelmente as áreas cultiváveis, sendo estas de maneira geral pequenas, cercadas por bosques. As exceções eram as áreas que, ao contrário de seu estágio atual, eram cultivadas, como a planície de Slisbury, Berkshire Downs e North Downs. Os vales dos rios destas áreas não eram ocupados até a chegada dos anglos, jutos e saxões, que limparam a área e cultivaram o solo pesado dos vales das partes baixas dos rios. Defendeu-se, por um tempo, de acordo com Whitelock, que tal medida só foi possível pela introdução de um arado pesado que só era conhecido na Brittannia nas áreas nas quais os francos haviam se estabelecido; à época da publicação do seu estudo, tal assertiva já havia sido descartada.87 Houve um certo debate na historiografia acerca de uma possível regeneração das florestas inglesas no período saxão em comparação com o período romano, no qual este teria (ou não) um

85 Podendo ser voltada para manter esta desigualdade, aprofundá-la, ou talvez em nível programático em uma conjuntura progressista, diminuí-la. 86 WHITELOCK, Dorothy. The Begginnings of English Society. p. 13. 87 WHITELOCK, Dorothy. op. Cit. p. 14. 34 caráter mais predatório, ecologicamente falando. Há hoje em dia certo consenso de que esta recuperação pode de fato ter acontecido, mas não em níveis brutais, e também provavelmente não havia locais de instalação e colonização (nos primeiros séculos de infiltração, pelo menos) que fossem distantes de bosques.88 O que impediu que as áreas arborizadas se reprojetassem novamente não foi o uso do solo para lavragem, pelo menos nos dois primeiros séculos (V e VI). Neste período, predominou o cultivo do solo apenas em pequena escala, voltado para pequenas produções cerealíferas nas quais os produtores eram capazes de adquirir uma quantia de carboidrato próxima do mínimo. Por isto, a produção para um circuito de trocas, ainda que restrito, só foi retomada já nos estertores do sétimo século. O cultivo de grãos certamente não era visto como prioridade para os anglo-saxões nos dois primeiros séculos, e boa parte da ausência de investimento em ampliar as áreas agricultáveis pode ser explicado pela preferência pela ocupação de áreas que são facilmente trabalhadas, mas pouco produtivas.89 O que manteve as planícies incultas, os bosques, a mata etc. próximo do seu estágio na época romana não foram pessoas engajadas em atividades agrícolas, mas a utilização destas áreas como espaços de pastejado para seus animais – ovelhas, cabras, vacas e porcos. Além disto, há também os animais selvagens que também se alimentavam da própria natureza e que eram caçados: cervídeos, javalis, cabras. Ao contrário de como os animais citados anteriormente se alimentam hoje em dia no processo industrializado (com rações, basicamente), sua dieta era muito mais variada, o que permitia a utilização destes animais em ambientes bem diversos entre si. Estes deslocamentos eram sempre de curta distância, e de curta duração, muito em função da necessidade de manter a fertilidade do solo.90 Este elemento destaca a indissociabilidade da pecuária e da agricultura no que tange à economia aldeã ou camponesa, ainda que a primeira pareça ter um peso primordial. O acesso fácil à madeira pode ser uma chave importante no que tange ao entendimento dos salões reais. Estas eram majoritariamente constituídas deste abundante material, tal qual provavelmente as casas camponesas; porém suas dimensões eram significativamente maiores, e seu papel social bem diferenciado.91 Conforme o exposto acima, a opção por um material

88 DARK, P. The enviroment of Britain in the First Millenium A.D. London: Duckworth, 2000. Pp. 130-156. 89 FAITH, Rosamond. Forces and relations of production in Early Medieval England. In Journal of Agricultural Change, Vol. 9, N.1, 2009. P. 26. 90 WILLIAMSON, T. Shaping Medieval Landscapes: Settlement, Society, Enviroment. MACCLESFIELD: Windgather, 2003. Pp. 135. 91 Há um tópico no segundo capítulo voltado à investigação deste aspecto. 35 perecível está ligado à transumância típica da realeza e da aristocracia92 que aos poucos se compõe, podendo ser rapidamente construída, ou mesmo desconstruídas para ter seu material reutilizado. O aspecto demográfico é fundamental para a compreensão da relação dos anglo-saxões com o espaço da ilha. O período que estudamos é imediatamente posterior à um ciclo de peste e carestia, que produziu uma punção demográfica significativa. Esta grande epidemia européia teria sido concomitante ao governo de Justiniano (século VI).93 A ilha conta, portanto, com uma população não muito extensa, ocupando terrenos espaçados que requerem relativamente pouco investimento de trabalho, mas que garantem pouco retorno em termos de produtividade. É difícil precisar até que ponto as técnicas de metalurgia eram possíveis de ser aplicadas diretamente na produção, e o quanto o acesso a ferro era restrito. Na HEGA, ao relatar o milagre de fertilidade de Cuthberto, Beda deixa claro que o santo gostaria de ter ferramentas de ferro para lavrar o terreno, mas só de lançar os grãos ao solo na estação correta, estes brotaram, viçosos.94 Exclusivamente pelas fonte, não é possível saber se a ausência de ferro era tamanha a ponto da intervenção explícita do sobrenatural ser evocada para a constituição das forças produtivas ou se a intervenção do santo demonstra justamente a potência deste na medida em que é possível a ele abrir mão de algo que era de uso relativamente comum. Pensamos sobretudo que se trate do segundo caso (ainda que não abramos mão da sobrenaturalidade como um elemento ideológico fundamental, inclusive quanto às forças produtivas), uma vez que a arqueologia parece indicar que armamentos tendiam a ser produzidos localmente, principalmente lanças95. De qualquer forma, não pensamos que houvesse uso amplamente difundido do metal, mas não nos parece algo raríssimo.96

92 Esta transumância também está ligada à dificuldade de armazenamento da produção, que obrigava os aristocratas a consumirem in loco o excedente do qual se apropriavam. 93 CARDOSO, Ciro F. Beowulf e as estruturas da Escandinávia Pré-Viking. Texto cedido pelo autor. 94 BEDE, Historical Works. Vol. II, Livro IV, Cap. 28. 95 Mas não necessariamente apropriado pelas populações locais diretamente, em função do paulatino monopólio da atividade guerreira pela aristocracia. Nos dedicaremos de maneira mais vertical no capítulo seguinte. 96 Voltaremos a esta questão nos tópicos voltado ao estudo dos armamentos da aristocracia, no segundo capítulo. 36

Aspectos do mundo pagão anglo-saxônico97 Registros escritos sobre o paganismo (que não seja o clássico) são raros. O peso da oralidade nas sociedades que abraçaram este tipo de religião é um dos elementos responsáveis pela ausência deste tipo de intervenção.98 Tampouco é novidade que a forma pela qual os elementos pagãos foram registrados foi justamente através do exercício do combate a estas práticas. Um de nossos principais cronistas, Beda, o Venerável, anota o nome de três deusas cultuadas pelos anglo-saxões: Erce, Eostre e Hretha.99 A primeira é tida como a mãe da terra, uma divindade ligada à fertilidade; a segunda conferia nome a um festival da primavera; da última nada se sabe a respeito além do próprio nome. Em termos de evolução de vernáculo, é de fácil percepção a provável evolução do nome da primeira até o vocábulo que designa terra, e a segunda estaria ligada ao nome da páscoa na ilha.100 O Venerável ainda menciona que a primeira noite do ano novo pagão era chamada de “noite das mães”, porém cala-se a respeito dos rituais envolvidos na mesma.101 Comparando elementos da mitologia escandinava com o pouco que temos acerca dos deuses anglo-saxões, podemos elencar fatores cujos cruzamentos serão bem profícuos. Um dos deuses mais cultuados no norte da Germânia102, Freyr (cuja tradução seria senhor, ou lord) também é chamado de Yngunar-Freyr e Yngvi Freyr. Um ramo das tribos germânicas deriva seu nome, Ingvaeones, diretamente dele, e o nome de Ing é citado em um verso de uma carta escrita no alfabeto rúnico anglo-saxão.103

97 Neste tópico é nítida a influência e o débito do autor com Ciro Cardoso. Grande parte do citado aqui advém de seu artigo voltado a uma síntese do que seria o paganismo anglo-saxão, como ficará claro ao longo de nossa exposição. 98 Com isto não pretendemos apontar que no seio de uma sociedade cristianizada a oralidade perca o vigor e o viço. A própria sociedade medieval é marcada de forma veemente pela conjugação destes elementos: oralidade e cristianismo. 99 Estas referências encontram-se sobretudo na obra De Temporum Ratione, cuja redação data de 725.. As duas últimas são citadas nesta obra, em um trecho que aborda especificamente a questão acerca da origem dos nomes dos meses para os anglo-saxões: o mês de março, Hredmonath, e o de abril, Eosturmonath eram os meses nos quais eram celebrados os festivais de Hreda e de Eostre, respectivamente. MAYR-HARTING, Henry. The coming of Christianity to Anglo-Saxon England. Unniversity Park: The Pennsylvannia State University Press, 1994. p. 22. 100 Respectivamente, Erce transforma-se em earth e Eostre torna-se Easter. 101 O nome para tal noite era Modranicht. HUTTON, Ronald. The pagan religions of the ancient British isles: Their nature and legacy. Oxford-Cambridge (Mass.): Blackwell, 1995. p. 267. 102 Germânia aqui como a região a leste do reno e mesmo os países nórdicos, região da qual defende-se, hoje, que estes conjuntos populacionais seriam derivados. 103 Ing was first seen by men among the East Danes, until he afterwards departed east over the waves; the waggon followed. Thus the Heardings named the hero. Apud WHTELOCK, Dorothy. op. Cit. p. 20. 37

O javali é encarado como encarnação de elementos sobrenaturais, tanto no período de religião autóctone anglo-saxônica quanto na Escandinávia (até o tempo de Snorri Sturluson).104 Nas regiões nórdicas, Whitelock atribui-lhes ligação com paz e prosperidade, enquanto que na Inglaterra ele protegeria àquele que usa seu emblema. Voltaremos ao assunto no capítulo seguinte, no item “apetrechos”. Os reis de Wessex incluem em sua genealogia um Scyld – nome também mencionado em Beowulf. Este nome tem correspondência nas fontes escandinavas com o do marido da deusa da fertilidade, e ambas as tradições (anglo-saxônica e nórdica) designam-lhe um filho cujo nome significa cevada, o que leva Whitelock a encarar tal personagem como um traço de um antigo e esquecido culto de fertilidade.105 Os deuses que aparentemente gozavam de maior popularidade, contudo, eram o trio Woden, Thunor e Tiw. Conforme nos lembra Ciro Cardoso, até hoje subsistem cerca de meia centena de topônimos de origem indiscutivelmente pagã na ilha.106 Em nomes compostos de diversos lugares, Woden está presente, quase sempre no primeiro elemento, como em Woodnesborough; topônimos que contam com seu nome também surgem em Wormshill, Kent, Wednesbury, Wedesfield, Staffordshite, Wensley e Derbyshire.107 Thunor encontra topônimos em lugares como Thuderfield, Surrey; Thurstable, Essex; Thuderridge, Hertfordshire e, por seis vezes, antes de um segundo elemento, leah, identificado por Whitelock como uma floresta ou uma clareira na floresta. Este é um dos elementos que levam Mayr-Harting a apontar o vínculo de Thunor – o correspondente anglo-saxão do Thor escandinavo – com o carvalho. O citado nome de Thurstable, por exemplo, seria traduzido como “Pilar de Thunor”, e seu culto estaria voltado à proteção das casas – de todas as colunas usadas na estruturação das casas aristocráticas, aparentemente apenas as que margeavam os assentos de honra aristocráticos eram feitas destas árvores (carvalho), que provavelmente eram sagradas. Estas pilastras seriam os “altos pilares” – o que leva o citado autor a corresponder o “alto pilar”

104 O conhecimento que temos dos mitos escandinavos seria razoavelmente menor não fosse a intervenção de Sturluson. É de sua autoria a Edda em prosa, e seu papel como mitógrafo e “historiador” é importantíssimo. Viveu na Islândia entre 1179 e 1241. 105 WHITELOCK, Dorothy. op. Cit. p. 21. 106 CARDOSO, Ciro. O paganismo anglo-saxão: uma síntese crítica. p. 9. In: Brathair, n. 4, 2004. Disponível em http://brathair.com/revista/numeros/04.01.2004/paganismo_anglo_saxao.pdf, capturado em 20/10/2010. 107 Ainda há a existência de lugares cujos nomes foram substituídos por outros, como em Wodneslawe, em Bedfordshire, Wodnesbiorg em Wiltshire, Wodnesfeld no Essex e assim por diante. WHITELOCK, Dorothy. op. Cit. p. 22. 38 da casa aristocrática com o grande carvalho que nomeava Thurstable, sendo este a coluna da casa do próprio Thunor, sustentando o mundo.108 Ciro Cardoso identifica a incorporação do carvalho às residências como forma de se proteger do raio e do fogo coextensivo a ele.109 Além disto, fontes do século VIII apontam a preocupação da Igreja em suprimir o costume pagão de suspender o trabalho no quinto dia da semana em homenagem a Júpiter (identificado pela historiografia de maneira geral com Thunor).110 Tiw é o deus sobre o qual dispomos do menor número de informações. São encontrados topônimos remetendo a esta divindade em Tysoe, Warwickshire, Tuesley e Surrey, além dos abandonados Tislea111, em Hampshire e Tyesmere, Worcestershire. Está ligado à atividade guerreira, e é possível identificar a runa inicial de seu nome em urnas cinerárias, espadas e lanças, todos em enterramentos. Os cavalos também seriam identificados em algum nível com esta divindade, segundo J.D. Richards, apesar da dificuldade em estabelecer embasamento efetivo para tal assertiva.112 A habilidade com runas, contudo, não está restrita a Tiw. Esta era uma das características de Woden, que ainda acumulava os saberes e afazeres de poeta, viajante e de pregador de peças, o trickster. Isso não limitava, contudo, sua inserção no mundo bélico: estima-se que uma prática guerreira comum consistia em arremessar a lança e evocar o nome de Woden. Em Finglesham, foi encontrada, em uma escavação arqueológica, uma fivela de bronze dourado originária do Kent, do século VII. Tal item era estilizado de maneira a portar a figura de um guerreiro, nu exceto pelo seu elmo, cinto e as duas lanças (uma em cada mão). As cristas do elmo representariam águias. Águias e lanças são símbolos de Woden e, segundo Mayr-Harting, o fato de ser o campeão escolhido do deus levaria o guerreiro à confiança na proteção divina e ao desdenho pela armadura, a ponto de ir à refrega despido.113

108 MAYR-HARTING, Henry. Op. cit. p. 27. 109 CARDOSO, Ciro. op. Cit. p. 28. 110 WHITELOCK, Dorothy. op. Cit. p. 22. 111 Abandonados no sentido de que posteriormente o nome citado foi alterado e não se sabe onde tais locais se situavam exatamente, como anteriormente explicado nos demais topônimos. 112 CARDOSO, Ciro. op. Cit. p. 28 e RICHARDS, J.D. Anglo-Saxon Symbolism. In: Martin º H. Carver (org.). The age of Sutton Hoo. Woodbridge-New York: The Boydell Press, pp. 139-142. 113 Pensamos que o raciocínio desenvolvido por Mayr-Harting é arriscado; uma via mais interessante para aferir o argumento seria a comparação desta fivela com figurações outras de figuras guerreiras neste tipo específico de metalurgia. Se este movimento foi feito pelo autor, ele não o torna explícito Talvez o pronunciamento dos elementos citados queriam apenas evidenciar a relação com a divindade, e marcar isto a partir do sublinhar de determinados elementos, mas não necessariamente a exclusão de todos os outros. Nudez soa-nos arriscado, apesar de não improvável. MAYR-HARTING. op. Cit. p. 26. 39

Sua popularidade e importância estão impressas na recorrência com que as genealogias régias vinculam sua ascendência à figura de Woden: de oito casas régias conhecidas, apenas as de Sussex (de que não temos informações acerca de sua genealogia divina) e de Essex (vinculada a Seaxnet) não tinham como antepassado Woden. Esta configuração diz respeito a um quadro já razoavelmente definido; é possível, contudo, que inicialmente apenas a Nortúmbria fosse vinculada a tal divindade. Com maior precisão podemos assinalar que as realezas de Wessex e Kent não o alocavam em sua própria linhagem. Também no teatro do poder real anglo-saxônico, “a memória é uma ilha de edição”.114 Os santuários são elementos que inspiram cuidados ao pesquisador. Sua localização quase sempre remonta a locais afastados e raramente possuem alguma construção (e raramente foram edificados com a utilização de material não perecível). Provavelmente, sua função era o depósito de objetos sagrados, principalmente imagens de divindades e ex-votos e, segundo Ciro Cardoso, suas visitações eram restritas, individuais. Em época de festivais, utilizavam-se os salões reais ou de nobres que fossem capazes de comportar um grande número de pessoas; nestas ocasiões festivas, poder-se-ia, por vezes, em procissão, circundar o santuário e até mesmo vislumbrar as imagens ofertadas, mas nunca entrar neles – e estes santuários não eram demarcados, apartados com sinais nítidos (cercas, prédios etc.) do mundo ao redor. Faziam parte dele e nele estavam inseridos, e exatamente por serem intimamente ligados ao mundo exterior e às dinâmicas sociais que nele estavam em curso que o acesso a estes espaços era marcado por tais características. O processo de hierarquização, já em andamento quando da cristianização, produz o acesso diferenciado às condições da reprodução social, em todos os níveis da vida – econômico, político, religioso etc. Na afirmação, apenas vislumbramos o acesso ao sagrado ser diferenciado. A diferenciação do acesso ao sagrado manifesta-se sobretudo nos topônimos que dizem respeito a estes espaços. As formas pelas quais eles são designados na linguagem são ealh115 (templo); weoh (expressão limitada espacialmente ao sul do Humber); legh ou leah (clareira); por último, hoh ou hearh, que indicam um lugar de culto situado em local elevado. Estes últimos merecem maior atenção em nosso estudo. Embora não haja topônimos que associem hoh, hearh ou weoh a divindades116, eles por vezes indicam um lugar de culto especificamente étnico ou

114 CARDOSO, Ciro. op. Cit. p. 27. 115 Dos termos apresentados, é o que possui incidência mais rara, o que indica a ausência de uma edificação capaz de concentrar as atividades cerimoniais religiosas. 116 A ausência de uma ligação com uma divindade específica pode ser explicada pela possibilidade de coexistência 40 tribal117; em outras situações, indicam a posse destas áreas por determinados indivíduos.118 A indicação da pertença a uma pessoa em específico é outro índice importante, principalmente se comparado ao pertencimento a um grupo (familiar, provavelmente). Anteriormente à conversão ao cristianismo, a concessão régia de presentes assumia caráter (geralmente) vitalício, porém não hereditário. A questão parece resolvida se pensarmos que a realeza concedeu a alguém (provavelmente um sacerdote) a prerrogativa sobre aquele espaço. Assim como os germanos descritos por Tácito, os anglo-saxões também contavam com sacerdotes em sua estruturação social. Na hagiografia de Vilfrido (c. 633 – c. 709) há uma passagem na qual o navio em que se encontra o santo e seus companheiros é conduzido até a área dos saxões do sul, e a embarcação acaba sendo levada pelas águas até uma região alta; posteriormente, a água se retira. Rapidamente são cercados por uma hoste pagã, e o sumo sacerdote deles conjura encantos tentando imobilizar as mãos de Vilfrido e de seus companheiros. A feitiçaria é encerrada com a morte do sacerdote por intermédio de uma pedra lançada por um dos companheiros do hagiografado.119 O supremo sacerdote120 da Nortúmbria estava envolto em tabus correspondentes ao exercício de sua função: não era permitido que montasse um cavalo macho e tampouco que portasse armas.121 Com a decisão do rei Eduíno da Nortúmbria de abraçar o cristianismo122, Coifi, o citado sacerdote, rompe tais tabus; monta o equino de guerra régio com uma espada cingindo a seu lado e carrega uma lança até o local onde estavam os ídolos. Lá chegando,

de cultos a diversas divindades no mesmo espaço. Tal assertiva ganha consistência se levarmos em conta a afirmação de Beda que Redwaldo teria servido simultaneamente a cristo e aos deuses anteriormente cultuados, e que em um templo possuía tanto um altar dedicado ao sacrifício de cristo e outro pequeno voltado ao que ele identifica como demônios. […] ita ut in morem antiquorum Samaritanorum et Christo servire videretur, et diis quibus antea serviebat. Atque in eodem fano et altare haberet adsacrificium Christi, et arulam ad victimas deamoniorum. BEDA, op. Cit. Livro II, cap. XV. pp. 292-923. 117 Gumeninga hearh e Besinga hearh, por exemplo, que seriam traduzidos literalmente como “santuário dos Gumenings” e “santuário dos Besings”. WHITELOCK, Dorothy. Op. Cit. p. 23. 118 Peper harow, Patchway e o perdido Cusanweoh são exemplos disso; os três têm a segunda parte significando “santuário”, e a primeira se remete a um nome em caso genitivo, no caso, um genitivo de posse. WHITELOCK, Dorothy. op. Cit. p. 23. 119 […] stans quoque princeps sacerdotum idolatriae coram paganis in tumulto excelso, sicut Balaam, maledicere populum Dei et suis magicis artibus manus eorum alligare nitebatur. Tunc vero unus ex sodalibus pontificis nostri lapidem ad omni populo Dei benedicto more Davitico de funda emittens, front perforatae usque ad cerebrum magi exprobrantis insilit; quem, retrorsum exanimato cadavere cadente, sicut Gliad in arenosis locis mors incerta praevenit. Vita Wilfridi, cap. XIII. Versão em inglês em FARMER, D.H. & Webb, J.F. (trad.). The Age of Bede. London: Penguin Books, 2004. p. 121. 120 Forma normalmente traduzida para o que aparece no texto de Beda como pontifex, primus piotificum etc. A passagem deste parágrafo encontra-se em BEDA, op. Cit., Livro II, cap. XIII. pp. 280-287. 121 Non enim licuerat pontificem sacrorum vel arma ferre, vel praeter in equa equitare. BEDA, op. Cit. p. 286. 122 Processo no qual são convertidos ele e a corte. A seguir trataremos melhor esta questão. 41 arremessa a lança no templo, e exige que ele (e naturalmente os altares em seu interior) seja destruído, com fogo.123 Conforme nos lembram Ciro Cardoso e Mayr-Harting, o arremesso da lança no campo adversário – evocando o nome de Woden – é a concretização da declaração de guerra. A aceitação do cristianismo implicava, portanto, para a corte da Nortúmbria de Eduíno, uma guerra à religião anterior, muito embora esta declaração seja feita em moldes pagãos.124 A última característica importante do pouco que sabemos a respeito da religião anglo- saxônica é seu aspecto voltado ao mundo pragmático: deuses diversos para situações diversas, e encantamentos cujo número é diretamente proporcional à quantidade de situações nas quais as pessoas se inseriam. Um aspecto vital a ser mencionado neste sentido é o papel desempenhado por encantamentos associados a ervas e outros elementos naturais, revelando o quanto a natureza está associada ao mundo sobrenatural, e não apenas no que diz respeito aos animais, conforme mencionamos acima.125 Encerrada a caracterização dos elementos centrais para nossa abordagem no mundo pagão anglo-saxônico, nos dedicaremos brevemente a uma síntese do mesmo e a consequente comparação deste universo com o descrito por Tácito. Na sequência, abordaremos o processo de conversão. O mundo anglo-saxão anterior à cristianização da Inglaterra em nosso recorte é marcado, no campo político, por uma realeza guerreira cuja função é a vitória militar e a redistribuição do butim entre os seus guerreiros. Estes reis são passíveis de serem destituídos, porém o novo rei eleito deve seguir a linhagem. A definição de leis e costumes tem lugar em assembléias, prática esta que permanece mesmo após a conversão, mas de maneira diferenciada.126 Sabemos, em função da transformação das formas de propriedade que o cristianismo127

123 Accintus ergo gladio accepit lanceam in manu, et ascendes emissarium regis, pergebat ad idola. Quod aspiciens vulgus, asetimabat eum insanire. Ne distulit ille, mox ut adpropiabat ad fanum, profanare illud, iniecta in eu lancea quam tenebat: multumque gavisus de agtione veri Deu cultus, iussit sociis destruere ac succendere fanum cum omnibus septis suis. BEDA, op. Cit. p. 286. 124 CARDOSO, Ciro. op. Cit. p. 31 e MAYR-HARTING, Henry. op. Cit. p. 26. 125 Animais envoltos em uma aura mágica; plantas e ervas podem se tornar partes de feitiços; homens são vistos como descendentes diretos dos deuses; rochas e trechos de relevo altos investidos de caráter (que hoje chamaríamos de) sobrenatural. Com esta observação final, gostaríamos apenas de marcar o quanto o mundo material nesta sociedade só pode ser entendido se for conjugado com o ideológico, em uma articulação que ganhou fama especialmente a partir das publicações de Godelier, principalmente o famoso (embora infelizmente inédito em português) L'idéel et le matériel: Pensée, économies, societés. Paris, Fayard, 1984. 126 Trataremos este aspecto abaixo no tópico sobre legislação e estatutos sociais. 127 A definição da alteração nas relações de propriedade que a implantação do cristianismo encerra diz respeito não a um caractere intrínseco à religião, como forma de piedade e sensibilidade, no sentido de uma abnegação dos bens materiais em troca de um usufruto espiritual posterior. O que indicamos aqui é a necessidade material e 42 insere , que a realeza por vezes concede terras aos seus subordinados diretos como uma forma de estabelecer (e/ou reforçar) os vínculos com os mesmos. Estas concessões eram vitalícias, porém provavelmente não hereditárias. No plano religioso, contamos com a presença de sacerdotes, e mesmo o domínio de alguns tipos de espaço por parte deste setor social. O acesso aos meios fundamentais à vida, a diferenciação social e os estatutos sociais da Inglaterra saxônica nos séculos V e VI parecem não divergir tanto, portanto, em relação àquele momento abordado por Tácito. A hierarquização na ilha parece afigurar-se como um pouco mais evidenciada do que entre os germanos considerados por Tácito mas seus elementos principais são qualitativamente próximos, o que a torna diferente em número, mas não em grau. A afirmação de Yorke e de Anderson procede,128 então. Os anglo-saxões pagãos constituem uma sociedade hierarquizada.

Evangelização Os santos medievais raramente têm origem pobre. Não é diferente com os cargos episcopais, os de abade etc. A identificação do papado com famílias nobres também integra esta constante. O papa que envia a missão evangelizadora até a Inglaterra, Gregório Magno (c. 540 - 12 de março de 604) tem por origem uma família patrícia de Roma. Em 573, torna-se praefectus da cidade, cargo que o tornou responsável pelas suas finanças, prédios públicos e suprimento alimentar. No ano seguinte funda seis mosteiros nos patrimônios fundiários de sua família, na Sicília, transforma a propriedade onde residia em mosteiro e se torna um monge vinculado a ele. Ocupa alguns outros cargos nomeados pelos papas Bento I e Pelágio II, incluindo o de embaixador em Constantinopla. Retém ojeriza pelo mundo grego, e ao retornar ao ocidente (em 585), encerra-se em seu próprio mosteiro, já como abade, até ser eleito papa em 590.129 O papado de Gregório se depara com uma questão-chave em seu contexto: a continuidade da cidade eterna. A incerteza e os níveis de dificuldade nos quais Roma estava atolada não eram novidades – já havia mais de um século que as insígnias imperiais estavam no oriente e o

concreta que a religião possui de produzir e reproduzir pela sua inserção social (“mundana”). Como a difusão do cristianismo se fixa na Inglaterra do nosso contexto sobretudo a partir de mosteiros, e estes são fundados a partir de concessões régias de patrimônio fundiário em regime irrevogável, pensamos que esta nova forma de doação (até então inédita) é responsável pela mudança neste regime de propriedade. Não por acaso os leigos por ela se interessarão, conforme demonstraremos. 128 Ver nota 60, página 28. 129 MAYR-HARTING, Henry. op. Cit. pp. 51-52. 43 exarcado de Ravena era a principal sede ocidental do poder imperial. Na década em que Gregório assume a função de papa, Roma está diante de dois grandes problemas imediatos: uma crise econômica e a ameaça dos lombardos. A primeira diz respeito aos terrenos ao redor de Roma, que se faziam progressivamente mais pantanosos e inférteis, a ponto de tornar o abastecimento da cidade precário e em nível constante de carestia. Complementando a crise está a inundação do Tibre e uma peste que teria sangrado a demografia em níveis consideráveis. A segunda ameaça direta diz respeito à possibilidade de invasão e saque da cidade, conforme já acontecera diversas vezes anteriormente.130 Os problemas catalisadores da investida gregoriana possuem outros níveis além da “consciência” que não podem ser descartados. O mundo clerical franco, por exemplo, estava em uma órbita relativamente destacada da capacidade de ação papal, porém mantinha contatos e trocas de presentes com os reis anglo-saxões. Os lombardos, além da ameaça física, mantinham- se arianos. Outra questão importante que envolve o fenômeno a que ora nos dedicamos (a missão e a conversão) é a do trato com as fontes. Se seguíssemos essas, baseando-se exclusivamente nas mesmas para nossas conclusões, concluiríamos que a missão de Agostinho à Inglaterra teria como objetivo único evangelizar uma região que era conhecida apenas por ser grande exportadora de escravos.131 Limitaríamos assim a explicação histórica a aspectos morais. A Inglaterra anglo-saxônica constituía um terreno interessante de ampliação do poderio papal: os homens eram pagãos, não “contaminados” com a heresia ariana; o rei que recebe Agostinho, Ethelberto do Kent, era casado com uma princesa franca (e cristã), Bertha132; o mesmo rei era um dos citados por Beda por possuir imperium sobre os demais reinos vizinhos.133 Assim como Gregório, o citado rei mantinha contato com a Gália merovíngia, e a posição de

130 MAYR-HARTING. Op. Cit. p. 55 131 Não pretendemos anular o peso que a convivência com escravos pode ter tido em Gregório; apenas estamos demonstrando o quanto limitar-se a este elemento é perigoso do ponto de vista da análise histórica. Conforme veremos no capítulo 2 desta dissertação, a escravidão era de fato um perigo comum à vida dos anglo-saxões. 132 Filha de Cariberto I, foi até a Kent acompanhada de seu capelão Liudardo (Liudhard). Bertha ainda restaurou uma igreja romana da Cantuária (remanescente do período bretão) e a dedicou a São Martinho de Tours. A (boa) recepção da missão de Agostinho não pode ser entendida sem levar em consideração a influência de tal rainha. 133 A lista de Beda inclui outros seis reis, e tal título de honra será melhor explicado adiante, sob o nome de Bretwalda. Nam primus imperium huiusmodi Aelli rex Australium Saxonum; secundus Caelin rex Occidentalium Saxonum, qui lingua ipsorum Ceaulin uocabatur; tertius, ut diximus, Aedilberct rex Cantuariorum; quartus Reduald rex Orientalium Anglorum, qui etiam uiuente Aedilbercto eidem suae genti ducatum praebebat, obtinuit; quintus Aeduini rex Nordanhymbrorum gentis, [...] sextus Osuald et ipse Nordanhymbrorum rex Christianissimus, hisdem finibus regnum tenuit; septimus Osuiu frater eius, aequalibus pene terminis regnum nonnullo tempore cohercens. BEDA, op. Cit. Livro 2, cap. 5. 44 dominador do rei do Kent provavelmente torna a investida não apenas viável, mas interessante do ponto de vista político. Assim como a escolha do reino que seria o foco inicial do cristianismo na ilha, o homem responsável por liderar tal empreitada não pode ser encarado como uma opção fortuita. Agostinho era um monge certamente dedicado; sua experiência na gestão e administração do mosteiro de Gregório, sendo o responsável pela disciplina e patrimônio do mesmo não pode ser descartada. Os monges destas áreas estavam ligados ao papa por voto de obediência, mas também a Agostinho quando este alcança o cargo de abade.134 Ao chegarem à ilha, os monges são recebidos pelo rei do Kent ao ar livre e, embora tenha ouvido as pregações e os autorizado a pregarem aos seus súditos, não se converte de chofre. A realeza ainda concede um espaço na Cantuária para o exercício da religião.135 A definição e diferença entre o que é uma igreja e o que é um mosteiro, claro no continente nesta época, é uma zona de penumbra neste espaço que é cedido para Agostinho. O papa orienta-o a não se afastar do século, mas manter a sua austeridade monástica, e angariar rapazes no intuito de treiná-los para o ministério religioso. Quando estes desejassem casar, que o fizessem e recebessem rendas, mas morassem em casas separadas (de seus cônjuges). Tais recomendações parecem-nos pontos específicos de uma estratégia de implantação da religião136 em um contexto no qual a vitória cristã é incerta, e a reprodução dos quadros clericais ainda não se construiu de maneira clara. Com a inclusão da Inglaterra no mapa da cristandade de maneira mais definitiva, a inserção da aristocracia nestes quadros se tornará algo corrente, conforme veremos no desenvolvimento deste trabalho. A escolha de um rei que exercia imperium sobre os demais para ser o primeiro rei converso produziu consequências imediatas positivas. A fórmula utilizada por Beda para se referir a estes reis será remodelada em A Crônica Anglo-Saxã, na qual Ethelberto é elencado como bretwalda, termo que é adotado pela historiografia que trata do contexto, mesmo que este

134 MAYR-HARTING. op. Cit. p. 61. Cabe a nós ressaltar quanto destes votos de obediência estão próximos dos juramentos de lealdade característicos do mundo laico - não só no nosso recorte, mas na Idade Média como um todo. Insistiremos e marcaremos estes elementos comuns aos setores laicos e eclesiásticos – no âmbito da aristocracia – conforme forem surgindo ao longo de nossa exposição; trabalharemo-nos de forma mais acentuada no segundo capítulo, contudo. 135 BEDA, op. Cit. op. Cit. Livro I, cap. 25. pp. 106-113. Para uma visualização da planta da Igreja de Pedro e Paulo situada na Cantuária, ver figura 1, página 181. 136 E de todo a aparato material necessário a ela, como posses, mão de obra para tornar estas produtivas etc. 45 seja cunhado posteriormente.137 Tal denominação referia-se a um título honorífico que determinado rei conquistava ao submeter os demais à sua órbita de poder, e como expressão de tal subordinação havia o pagamento de tributos. Tratava-se mais de uma designação que prestava deferência a um determinado reinado já distinto pela sua intervenção e domínio sobre os demais do que uma referência efetiva a um trono, cetro e manto imperiais.138 Ao visitar o então Bretwalda (Etelberto), Redvaldo (rei da Ânglia Oriental, reino submetido ao Kent) converte-se ao cristianismo; antes de morrer, contudo, Beda relata que este teria sido convencido pela esposa a manter um altar para Cristo e outros para os demais deuses.139 O que se afigura em Beda como uma mudança de postura em relação à religião pode não ter sido assim interpretado pelos que vivenciaram o processo; além disto, devemos coligar este fenômeno com a perda de prestígio por parte de Etelberto e a ascensão de Redvaldo em relação aos demais reinos, ele próprio assumindo o título bretwalda. Sua postura em relação à religião não pode deixar de ser inserida no xadrez aristocrático e palatino140; uma vez que estava subordinado a um rei cristão, cede a uma pressão (ainda que latente, não necessariamente explícita) para adentrar os caminhos cristãos. Livre da condição de inferioridade, este poderia considerar interessante, visando à manutenção da hegemonia conquistada, a conservação de altares diversos que expressassem os reinos a ele submetidos.141 A conversão de Redvaldo é interessante para entendermos a estruturação do poder de um rei que possuísse o imperium, para usar os termos de Beda. O Venerável, contudo, narra outra conversão que é ainda mais esclarecedora: a de Eduíno. Pagão, o rei da Nortúmbria casou-se

137 A lista de tais reis compreende Aelle de Sussex (c.488-514), Ceawlino de Wessex (c. 520-593), Ethelberto do Kent (590-616), Redvaldo da Ânglia Oriental (c. 600-624), Eduíno de Deira (616-633), Osvaldo da Nortúmbria (633-642), Oswiu da Nortúmbria (642-670). A lista de Beda se encerra aqui; a da Crônica prossegue citando Wulfhere da Mércia (658-675), Etelredo da Mércia (675-704), Etelbaldo da Mércia (716-757), Offa da Mércia (757-796), Cenwulf da Mércia (796-821) e Egberto do Wessex (802-839). 138 Com isto não queremos diminuir o título ou pensar que um trono é sinônimo sociológico de uma simples cadeira no seio desta sociedade; o que queremos demonstrar por ora é que a diferenciação dos bretwalda se manifestava quase como um elogio que era reservado a poucos, e que pouca capacidade de efeitos possui. O fosso que diferencia um aristocrata da realeza tende a ser maior do que aquele que separa um rei de um bretwalda. 139 Ver nota 116, páginas 40 e 41. 140 As casas reais no período que estamos tratando são casas relativamente simples – construídas a partir da utilização principalmente de madeira, de grande extensão e que abrigavam um número relativamente alto de pessoas. Tal configuração está longe da configuração do que será um palácio no período baixo medieval ou mesmo no moderno; porém como a riqueza e a concentração de bens e de trabalho devem ser encaradas também em número relativo (mais do que absoluto), levando também em consideração fatores ideológicos, mentais etc. não nos parece comprometedor o uso da palavra (e derivados de) palácio. Tais edifícios serão melhor trabalhados no tópico “Salão” do segundo capítulo. 141 MAYR-HARTING, Op. Cit. p. 65. 46 com uma princesa cristã do Kent, Etelberga, e em sua entourage estava o monge Paulino142. As táticas e tentativas para a conversão de Eduíno foram diversas: profecias foram feitas por Paulino; Eduíno foi aconselhado pelos seus witan143; recebeu cartas e presentes diretamente do papa; e conseguiu uma vitória militar sobre o Wessex.144 O casamento data de 625, e a conversão de 628. Estas datas são reveladoras no tocante ao projeto de poder de Eduíno – o rei da Nortúmbria só se torna cristão após a morte de Redvaldo, e também em período posterior à conversão do filho deste, Eorpvaldo (rei de 624 até 627). Mayr-Harting defende que a espera pela conversão do rei nortumbriano se dá em função da postura de Redvaldo: embora não fosse contrário ao cristianismo, ao alcançar a posição de bretwalda o rei da Ânglia Oriental acabara de sair da condição de subordinado a um rei cristão (Etelberto), e não aceitaria de bom grado a postura de um subordinado seu adotando uma religião que remeteria ao seu antigo senhor. Como agravante, haveria o casamento com uma princesa do mesmo reino. O argumento do autor não nos soa desprovido de propósito; contudo, parece-nos mais um elemento político explicitamente tático (no que diz respeito às implicações concretas do casamento) do que um elemento exclusivamente ligado a uma religião que lembraria o antigo dominante.145 O casamento não pode deixar de ser interpretado como política de aliança entre os dois reinos, e a ascensão de Eduíno como bretwalda é uma conseqüência política precisa (e imediata) no que diz respeito à funcionalidade da estratégia.146 Ao assumir a coroa, unificando definitivamente os reinos de Deira e Bernícia sob o nome de Nortúmbria (em 634), Osvaldo inicia a obra de expansão do cristianismo, e seu irmão Oswiu dá prosseguimento à mesma. A simbiose de tais reinados com o enraizamento do cristianismo torna-se explícito ao pensarmos, por exemplo, nos atos de Oswiu ao finalmente deter a ameaça representada por Penda da Mércia.147 O voto do rei vitorioso o fez doar, após a vitória, doze

142 Este foi enviado pelo papa à Inglaterra na segunda investida de exportação de monges à ilha, desta vez chefiados por Melito. Tal missão realizou-se em 601, relativamente pouco tempo após a de Agostinho. 143 Em uma tradução literal, wise men, homens tidos como sábios que aconselhavam a realeza. Este conselho era formado principalmente pela alta aristocracia; com o processo de conversão, bispos também passam a integrar este fórum. 144 BEDA, op. Cit. Livro II, cap. 9-14. pp. 244-292. 145 Parece-nos, portanto, mais um desdobramento concreto e imediato do que propriamente algo cuja raiz esteja na memória ou na mentalidade de Redvaldo. 146 MAYR-HARTING, op. Cit. p. 67. 147 Rei da Mércia, Penda manteve-se pagão até a sua morte, em 655 (teria nascido cerca de 577). Seu sucesso militar realizou-se sobretudo a partir da aliança com os reinos galeses, que permitiram à Mércia abrir mão de um possível flanco e investir seus recursos em outras frentes. Dentre suas realizações estão a vitória sobre Eduíno (em 633), a vitória sobre Osvaldo (e seu assassinato na batalha, em 642) , a derrota da Ânglia Oriental, o exílio 47 grandes patrimônios fundiários e outras doze pequenas posses para a fundação de mosteiros.148 A ascensão de Osvaldo ao trono também tem outro impacto significativo no que diz respeito ao sucesso da implantação do cristianismo na ilha. Enquanto ainda era príncipe, ele se refugiou no mosteiro de Iona, que adotava o cristianismo do tipo celta. Este tipo de cristianismo seguia a orientação irlandesa; esta ilha havia se cristianizado no século V, a partir da difusão de mosteiros. A divisão continental de dioceses e cidades seria impossível,149 e a organização (e hierarquia) monástica se mostrou uma forma extremamente eficiente de conversão à religião, a partir da atividade missionária. Estas comunidades de monges se estabeleciam no interior de uma muralha que os cercavam, e os monges habitavam cabanas individuais de materiais perecíveis. Com o caráter evanescente das fronteiras e dos corpos políticos, este modelo de tornava mais adequado que o continental para a conversão. Da mesma maneira, podemos entender que a ausência de hierarquias mais significativas da Irlanda (numerosos reis e sub-reis, pastoreio também com destaque enquanto atividade econômica etc.) a torna próxima, em termos de evolução política, da própria Inglaterra anglo-saxônica.150 Ao ascender ao trono, o rei Osvaldo, como forma de demonstração de apreço por ser cuidado em Iona enquanto era refugiado, se volta para o mosteiro, e torna o monge Aidan um bispo. Aparentemente, os modos mais austeros deste contrastava com os sacerdotes vindos do continente; também foi o responsável por instituir conventos e mosteiros em propriedades reais (vills) e nos centros administrativos (tuns). Por ser o bretwalda em sua vida, Osvaldo também conseguiu facilmente que o rei Cynegils do Wessex se convertesse (em 635), assim como do Essex, por um bispo nortúmbrio, mas treinado nos costumes irlandeses, chamado Cedd. Só permaneciam não conversos os reinos de Sussex e da ilha de Wight, que seriam convertidos por Vilfrido - este ligado ao cristianismo de tipo romano.151 A presença de ambos os tipos de cristianismo (irlandês e romano) na ilha passou a ser conflituosa, e então o rei nortúmbrio Oswy (filho de Osvaldo) convocou em 664 o Sínodo de Whitby, no qual decidiu pela maneira romana de celebração de Páscoa e pela tonsura dos monges. Concordamos com Ciro Cardoso quando este aponta que esta opção provavelmente se

do rei do Wessex por três anos. Entende-se, portanto, que a Nortúmbria teria sido um dos últimos reinos a resistir ao seu avanço. 148 Respectivamente XII possesionis e XII possessiunculis. MAYR-HARTING, op. Cit. p. 99. 149 A primeira cidade da ilha, Dublin, é fundada por apenas no século X. 150 CARDOSO, Ciro F. A Cristianização da Inglaterra. Texto cedido pelo autor. P. 17. 151 Idem. 48 concretiza pela alteração nas formas de poder quando da inserção do cristianismo e da escrita na Inglaterra: a Inglaterra tendeu a estreitar as relações152 com a Gália que, embora contasse com alguma influência irlandesa, tinha em sua Igreja o caráter romano muito mais acentuado. Figuras fundamentais para a compreensão de como se estrutura este tipo de cristianismo (vencedor) neste contexto são as dos santos.153 Iniciemos, portanto, uma digressão acerca das hagiografias de que dispomos para, em seguida, tratarmos da relação destas figuras com a realeza em nosso contexto.

Santos e Reis De origem aristocrática nortumbriana,154 Vilfrido tornou-se monge e bispo, sendo treinado primeiramente por monges irlandeses, em Lindisfarne, e posteriormente, em Roma. Esta vita foi escrita por Eddius Stephanus, um fervoroso seguidor, e foi a primeira hagiografia a ser transposta também para o anglo-saxão. A versão latina que utilizamos foi capturada no endereço eletrônico que disponibiliza a Monumenta Germanica155 pela sua confiabilidade. Vilfrido, com o suporte e o encorajamento da rainha Enfleda da Nortúmbria, segue até Cantuária e Roma, onde estuda as Escrituras e as Leis Canônicas. Em seu caminho de volta, ficou por três anos em Lyon, onde pôde vivenciar o estilo de vida do bispo da cidade, um aristocrata envolvido com “duques” e “condes” como seus pares sociais. Da mesma forma, pôde observar o trabalho no dia-a-dia da Igreja local. É provável que tenha se tornado monge neste período. Quando retorna à Inglaterra, recebe de Alcfrido, sub-rei de Deira, a abadia de Rippon, onde introduz a Regra de São Bento. A participação do monge é importante na contenda disputada no Sínodo de Whitby156

152 Desde pelo menos a conversão. Conforme o exposto, desde a missão agostiniana já há a presença de princesas enviadas para o estreitamento destas relações. 153 Após o Sínodo, percemos um aumento significativo quanto ao número de Igrejas na ilha. Pensamos nisso não apenas por conta da vitória de um modelo menos campestre de cristianismo, mas também conectado à afirmação mais nítida da aristocracia, assim como a integração desta com a Igreja. Ver Mapa 4, página 179.. 154 No primeiro capítulo, é anunciado que o santo teria aprendido, antes de entrar na vida eclesiástica, a montar e a portar armas, para que não se sentisse envergonhado quando os companheiros do rei o visitassem em na propriedade fundiária de seu pai. Cap. I (II na versão latina) - […] tamen arma et equos vestimentaque sibi et pueris eius adeptus est, in quibus ante regalibus conspectibus apte stare posset. 155 http://bsbdmgh.bsb.lrz-muenchen.de/dmgh_new/app/web?action=loadBook&bookId=00000753. Está inserida em “6. Passiones vitaeque sanctorum aevi merovingici IV”, in “Scriptores Rerum Merovingicarum”. 156 Este sínodo visava, entre outras coisas, a unificação da data para a comemoração da Páscoa, uma vez que parte do processo de cristianização da ilha fora feito por monges irlandeses que seguiam datação diferente da romana para esta celebração (os irlandeses apenas contavam os dias, podendo a festa ser realizada mesmo durante a semana). Também foram decididas questões relativas à forma de tonsura dos monges, em que também emergiu vitorioso o lado romano. 49

(664), no qual Vilfrido assume o papel de “porta-voz” do lado romano. Após o sínodo, ajudado novamente por Alcfrido, foi escolhido Bispo de York157. Ao viajar para ser consagrado na Gália, Oswiu apontou Chad (formado nos moldes irlandeses) como bispo da Nortúmbria158. Tal eleição expressa algum nível de tensão entre pai (Oswiu) e filho (Alcfrido); ao retornar, Vilfrido se encerrou em seu mosteiro, em Ripon. O então arcebispo da Cantuária, Theodoro, considerou a consagração de Chad como não- canônica, por ter sido realizada por bispos cismáticos. Chad é reconsagrado e transferido para Lichfield, a nova sé da Mércia, enquanto Vilfrido era entronizado bispo de York e encarregado de toda a Nortúmbria. Ascendem ao trono (neste ínterim) Egfrido e sua rainha Etheldreda, da Ânglia Oriental, e decidem ceder ao hagiografado extensas posses de terra. Sua diocese (e “jurisdição”) torna-se de tal monta ampla que é congruente com o reino. É restaurada em seguida a igreja de York (iniciada por Paulino), e erigidas novas edificações em Ripon e Hexham. Estas construções eram ricamente adornadas, assim como “financiadas” de maneira igualmente generosa, inclusive em terras que os bretões deixaram quando partiram em direção ao oeste. Somam-se a estas algumas áreas próximas de Hexham, doadas pela rainha; o rei novamente cede patrimônios mais distantes, situados na região dos Peninos. Abades e abadessas entregam suas posses (entre elas os mosteiros, naturalmente) a Vilfrido em retorno à proteção do bispo.159 Os nobres enviam seus filhos para que Vilfrido seja seu tutor – tanto para serem clérigos quanto para retornarem instruídos e crescidos para o serviço régio como guerreiros.160 Os presentes de Vilfrido eram de tamanha escala que ele era o maior em grandeza.161 O bispo nortumbriano possuía, então, patrimônio fundiário compatível com o dos bispos merovíngios; mesmo no período anterior à fusão de Deira e Bernícia nenhum bispo havia sido tão poderoso. Tamanho poder chamou a atenção, e o arcebispo Theodoro quis dividir a sua diocese, argumentando que era grande demais para apenas um homem pastoreá-la. Sem o favor real – o rei (Egfrido) casara-se novamente e a nova rainha tinha pouco apreço por Vilfrido – partiu para Roma para apelar pessoalmente ao Papa e evitar sua deposição. No caminho, passa pela Frísia e,

157 Capítulos XI-XII. 158 Oswiu era rei da Nortúmbria, que fora formado da fusão dos reinos de Deira e Bernicia. 159 Capítulo XXI. 160 Estas crianças eram enviadas independente de sua destinação final ser o corpo eclesiástico ou leigo. Esta criação fora de casa acaba aproximando estas duas facetas da aristocracia, e o fenônemo da criação exógena à família será melhor discutida no segundo capítulo. 161 Capítulo XXI. 50 entre os francos, é recebido por Dagoberto II, que lhe oferece a Sé de Estrasburgo em retribuição ao anterior socorro de Vilfrido – que lhe enviara suprimentos diversos, incluindo armas e homens armados, para retomar seu reino.162 Roma decide em favor de Vilfrido, mantendo-o no episcopado, mas dividindo as dioceses, para as quais ele próprio apontou os ocupantes, que lhe estavam subordinados na prática. Egfrido inicialmente recusa-se a recebê-lo de volta, e então o hagiografado é instalado como bispo de Sussex, onde se manteve de 681 a 686. Buscando uma reconciliação, Theodoro acerta com Aldfrido, novo rei da Nortúmbria, a realocação de Vilfrido em York (em dimensões reduzidas se comparada ao que era a jurisdição do episcopado anteriormente) e também oferece ao hagiografado os mosteiros de Ripon e Hexham. Após cinco anos, o santo é novamente exilado, e o motivo da contenda está em Ripon, que teria tido parte de suas terras confiscadas pelo rei e a gestão do mosteiro passada das mãos de Vilfrido para as de Ethelwino, como uma forma de minimizar os danos a este por ter tido sua sé conquistada pela Mércia, em 692163. Novamente exilado, o hagiografado radica-se então na Mércia, atuando no episcopado de Leicester por um período de dez anos (692-702), nos quais provavelmente fundou seis mosteiros. Em 703, há um novo concílio que tenta internar Vilfrido no mosteiro de Ripon, com a condição de que abrisse mão de seu episcopado, de suas posses e do controle de seus mosteiros. O que seus inimigos perseguiam de fato era a anulação dos privilégios papais concedidos às suas fundações. Tendo novamente apelado a Roma, a despeito de seus 70 anos164, foi inocentado e teve seus privilégios confirmados. Antes de morrer, Vilfrido escolhe seus sucessores e divide seus bens em quatro partes: uma para a Igreja de Roma, uma para os pobres, uma para os seus que compartilharam o exílio com ele e outra para os abades de Hexham e Ripon, “para que pudessem perpetuar a amizade de reis e bispos”.165 As passagens destacadas da vida do santo são reveladores no que tange à associação entre realeza, aristocracia laica e eclesiástica. Com sua origem em berço de alta estirpe, aprendeu os códigos e valores leigos. Ao adentrar a vida clerical, soube utilizar-se da relação com os diferentes tronos para o simultâneo alargamento de suas posses e propriedades e o enraizamento do cristianismo a partir da fundação e difusão de mosteiros. É justamente sobre este ponto que

162 Capítulo XXVIII. 163 Capítulos XLIII-XLV. 164 Capítulos L-LIV. 165 Ut cum muneribusregum et episcoporum amicitiam perpetrare potuerint. Capítulo LXIII. 51 agora traçaremos uma análise. No período de Tácito e também no período pagão da ilha, conforme demonstramos, a circulação de bens possuía seu vértice nos líderes militares (Tácito) e na realeza (Inglaterra). O período de conquista, com grande probabilidade, constituiu-se em um período de grande atrativo por parte da figura régia (na Inglaterra) – vitoriosos, os reis teriam à sua disposição um acervo razoavelmente amplo de bens com os quais remunerariam os guerreiros a eles vinculados – e a fama de sua glória pessoal também constitui um dos elementos-chave de atração de novos guerreiros, o que por seu turno torna as vitórias mais viáveis e inicia novos vínculos de doação. Um dos itens mais valiosos (e por isso desejado por guerreiros) era a doação de patrimônio fundiário. No período pagão, por exemplo, estas concessões eram provavelmente restritas a mais alta aristocracia166, e provavelmente eram vitalícias, mas não hereditárias. Sob determinadas circunstâncias – especialmente a quebra do laço de fidelidade àquele que concedia – implicavam na suspensão da concessão. As poucas informações de que dispomos acerca destas propriedades, denominadas pela historiografia de folclands, advêm de sua comparação com o que se convencionou denominar booklands. Estas seriam caracterizadas, conforme o próprio nome denuncia, pelo registro escrito da concessão; a ponta da pena acaba por talhar em pedra este movimento de doação – que passa a ter caráter definitivo, perpétuo. Esta forma de propriedade adentra o mundo anglo-saxônico juntamente com o cristianismo. A cruz adentra a Inglaterra juntamente com a pena e o papel da propriedade.167 Estas concessões em regime de jus perpetuum são inicialmente direcionadas aos mosteiros, buscando garantir a sua reprodução quotidiana e autônoma a partir da concessão de terras e, naturalmente, da mão de obra capacitada para torná-la produtiva. Desta maneira, a realeza cede simultaneamente um terreno e uma prerrogativa até então sua – a taxação de homens, que até então eram ligados diretamente ao monarca, mas que doravante passam a ser dependentes do mosteiro, que atua como elemento mediador entre estes e a realeza. O responsável pela administração de tais patrimônios passa a ser o abade do mosteiro. Conforme já demonstramos anteriormente, apesar da distinção relativamente nítida em termos de cargos no plano jurídico, a ordem secular e a regular não eram rigorosamente e dicotomicamente

166 Nobreza, portanto. A distinção que fazemos entre aristocracia e nobreza é que tomamos esta como o píncaro daquela no que diz respeito à sua inserção na pirâmide social. A nobreza toca a realeza, enquanto a aristocracia pode constituir-se de elementos de origens menos abonadas. 167 JOHN, E. Reassessing Anglo-Saxon England. Manchester-New York: Manchester University Press, 1996. 52 diferenciados, sendo que grande parte dos bispos já ocupava o abaciado em alguns mosteiros antes de assumirem seus respectivos episcopados. Seguindo esta linha de raciocínio, torna-se cristalina a caracterização do episcopado como uma aristocracia propriamente dita, por ser detentora de terras e homens subordinados, e com redes de sociabilidade diretamente vinculadas à realeza. Quando um rei morria, o seu sucessor costumava renovar as concessões por booklands com relativa rapidez; quando estes não o faziam, acionar a sé papal parece ter sido um dispositivo concretizável. Nas diversas vezes em que leigos e clérigos tentaram (e algumas vezes conseguiram) destituir Vilfrido de suas posses, estas rapidamente foram retomadas ou concedidas outras em dimensões similares a partir de intervenções papais. Sempre foram destacadas nestas interferências papais (normalmente a partir de cartas) a importância de Vilfrido para o estabelecimento da norma romana em detrimento do forma celta, de origem irlandesa. As famílias que eram próximas à realeza não apenas adotam o cristianismo quando da conversão desta; muitas delas começam a semear mosteiros em suas propriedades. Até então, estas provavelmente eram do tipo folcland, e com a fundação de edifícios monásticos passam a tornar as áreas dedicadas à ação da ordem regular inalienáveis. Os indivíduos que assumem a condição de abades e de responsáveis pela administração destas propriedades procedem daquelas mesmas famílias, e poderíamos somar ao exemplo de Vilfrido o de Cudberto, o de Bento Biscop, o de Eosterwino, de Ceolfrido e de Brandão. A hagiografia de Cudberto - ou Cuthberto (c. 634–687), De Vita et miraculis sancti Cuthberti, episcopi Lindisfarnensis168 nos brinda com a caracterização deste como aristocrata a partir dos símbolos de poder deste setor social: ele possuiu lança e cavalo169, quando criança brincava de brigar170 e era conhecido por ser robusto e forte171. Os relatos que estão contidos na hagiografia retratam uma concepção da organização e hierarquia do mundo sobrenatural muito próxima daquela que o santo vivenciou – ao ver a alma de São Aidan (que fora bispo de Lindisfarne) migrar (deixando o mundo terreno), é relatada a visão de “homens poderosos” e de “salões do Paraíso e de seu rei”.172 O hagiografado é curado de um tumor no joelho a partir da intervenção de um “cavaleiro” de “aparência e vestes nobres” que montava um “alazão de beleza

168 Disponível em http://oll.libertyfund.org/?option=com_staticxt&staticfile=show.php%3Ftitle=1915&chapter=113214&layout=ht ml&Itemid=27. 169 Capítulo VI. 170 Capítulo I. 171 Capítulo VI. 172 Capítulo IV. Respectivamente, magníficos viros e superniae mansionis. 53 incomparável”173; boa parte de seus milagres restauram saúde e força. As passagens que tornam explícitas as relações entre a aristocracia e o preenchimento dos quadros eclesiásticos estão, por exemplo, nos capítulos XXIII e XXIV da mesma hagiografia, que contam com a presença da abadessa Aelffleda, que é irmã do rei Ecgfrido (Ecgfrith)174. Para que o hagiografado participasse da realização de um sínodo presidido pelo arcebispo Theodoro (sancionado pela presença do rei citado), a narrativa nos informa que teriam ajoelhado diante de Cudberto reis, bispo e numerosos personagens devotos e influentes, todos pedindo a presença do santo. Em tal sínodo ele é eleito por consenso dos bispos175. Bento Biscop é descrito como sendo de nobre linhagem, um dos thanes do rei Oswiu, que teria recebido aos 25 anos um conjunto patrimonial condizente com a sua posição.176 Ao adentrar a vida religiosa, viaja até Roma; retornando à Nortúmbria, é recebido pelo seu rei, Egfrido, que o acolhe e, depois de conhecer a quantidade de relíquias e livros sagrados trazidos de Roma e de outros lugares, doa-lhe setenta lotes de terra para a edificação de um mosteiro em honra de São Pedro177. Para completar esta empreitada, Biscop faz nova visita a Roma e retorna à Nortúmbria com livros, relíquias, cantos dos salmos (inclusive com um cantor para que estes fossem recitados da maneira correta), muitas iconografias e uma carta de privilégio do Papa Ágato. Esta epístola contou com a permissão e mesmo a exortação e desejo (segundo a fonte) de Egfrido, e seu conteúdo tornavam a missiva garantia da segurança e independência do mosteiro contra interferências externas178.Ao ver a edificação tomando forma, o rei Egfrido doa-lhe mais quarenta lotes de terra, para que fosse dedicasse um mosteiro a São Paulo179. Bento ainda realiza outra expedição a Roma, na qual retorna com presentes para as Igrejas e dois mantos. Ele os quais utiliza para adquirir três lotes de terra do rei Aldfrido e seus conselheiros – o rei Egfrido, anterior a Aldfrido (que generosamente já havia doado 110 lotes de terras) havia sido morto em batalha180. Os mantos são utilizados, portanto, para estabelecer novos vínculos com a realeza a

173 Capítulo II. Respectivamente equitem; induntum vestimentis et honorabilem vultu; e por fim euum [...] incomparandi decoris. Talvez por receio de repreensão por parte de leitores que duvidassem de anjos cavaleiros, o autor recomenda a leitura do livro dos Macabeus, no qual estes afiguram desta forma para defender tanto Judas Macabeu quanto o próprio Templo. 174 Capítulo XXIV. 175 Capítulo XXIV. 176 [...]terrae suo gradui competentem illo donantem[...]. Capítulo I. 177 Capítulo III e IV. 178 Capítulo VI. 179 Quadragenta adhue familiarum data possessione. Capítulo VII. 180 Respectivamente terram trium familiarum e os conselheiros figuram na fonte como consiliriis. 54 partir do processo de doação e contra-doação. Ao perceber que a morte se aproximava, Bento insiste para que a eleição do novo abade observasse a sua retidão de vida, nos moldes monásticos, e que se deixasse de lado a estirpe ou a influência familiar, suplicando aos monges que nunca escolhessem para si “um pai [...] pelo seu nascimento”.181 É possível notar, portanto, a mudança na perspectiva de afluência de concessões para uma mais comedida, pelo menos no princípio do novo reinado. Também é fundamental ressaltar o crescimento do papel dos conselheiros, uma vez que a decisão, na fonte, parece ter sido tomada a partir do convencimento da realeza e de todos os conselheiros. Da mesma maneira, relíquias parecem ter um papel decisivo na vinculação a esta nova realeza a partir dos laços de doação e reciprocidade. Ainda que construídos, para a afirmação de tais relações (entre abade e rei) foi necessário a concessão de duas relíquias para a obtenção de apenas três lotes de terra, muito pouco perto dos 110 que já foram cedidos em outro momento (pelo rei anterior). A nova postura da aristocracia laica em relação ao mundo eclesiástico182 diz respeito à interferência direta do setor clerical no mundo laico. Esta assertiva torna-se ainda mais explícita se levarmos em consideração o aconselhamento de Bento para não escolherem abades pela sua inserção social, mas pela observância da regula. Esta inquietação parece não ser apenas uma possibilidade remota: é possível que já houvesse testemunhado experiências parecidas em outras regiões (homem viajado que era). Da mesma forma, não é possível descartar que esta fosse uma possibilidade recalcitrante quando de sua administração abacial, da qual (hipoteticamente) teria conseguido se evadir. A enumeração destas possibilidades não exclui que todas acontecessem, e isto inclusive o é mais provável. A narrativa que retrata a regência abacial de Bento menciona o caso de Eosterwino, homem marcado pela força física, fala gentil, que também deixa de ser thane real abandonando as armas e engajando-se na batalha espiritual183. Trata-se, pois, de mais um exemplo de um nobre que adentra a vida monástica, demonstrando a simbiose entre essas, conforme o proposto. Ceolfrido, também de origem nobre, ainda jovem adentrou um mosteiro fundado a partir de

181 Hdeoque multum / caretote fratres semper, ne secundum genus umquam, / ne deforis aliunde, uobis patrem quaeratis. Capítulo XI. 182 No nosso recorte deve ser pensado sobretudo no sentido de mundo monástico, devido ao processo de afirmação e difusão do cristianismo estar ligado à ordem regular. 183 Capítulo VIII. 55 doação real184 para se redimir do assassinato de seu parente e rival, o rei de Deira.185 Não tardou para que tal mosteiro ampliasse suas posses a partir da doação de presentes do rei e de outros (seguindo o exemplo da realeza), totalizando cinqüenta lotes de terra186. Na sequência da narrativa, o santo comenta seu desgosto com os ataques amargos dos nobres que adentram a vida monástica mas não eram capazes de suportar a disciplina da regula187. Neste período de monacato, o abade ao qual Ceolfrido estava submetido era Bento Biscop. No relato ora tratado, podemos recuperar a defesa dos privilégios aos dois mosteiros188 por este, a partir da argumentação de que se tratava de um mosteiro em dois lugares, e por isso deveria ter apenas um cargo abacial e ambos deveriam ser protegidos pelos mesmos privilégios (privilegium)189. Tal defesa passa a ser necessária em outro momento, quando, para proteger o mosteiro de ataques externos190, Ceolfrido busca outra carta de privilégio com o papa191. Uma das características principais atribuída a Ceolfrido é a sua generosidade. Tal qualidade na hagiografia, contudo, está sempre ligada à retribuição de ofertas a ele dedicadas: primeiramente, somos informados que o santo era generoso por ajudar os pobres entregando-lhes o que lhe pediam e também recompensando os presentes que a ele (santo) eram destinados.192 Em seguida, o hagiografado é caracterizado por uma generosidade tão grande que, ao ser presenteado, não importando o status da pessoa, ele não apenas recompensa como se empenha em conceder um presente superior em valor.193 Anos e anos volvidos, Ceolfrido parte em nova expedição, deixando um mosteiro com

184 Trata-se do que tornou-se o mosteiro duplo de Wearmouth e Jarrow. 185 Vita Ceolfridi. Capítulo II. Disponível em http://ia311217.us.archive.org/0/items/venerabilisbaeda01bede/venerabilisbaeda01bede_djvu.txt. 186 Idem. Capítulo VII. 187 Idem. Capítulo VIII. 188 Os dois mosteiros citados são os de Wearmouth e Jarrow, conhecido como “mosteiro duplo”. Embora constituissem dois edifícios distintos, estavam submetidos à mesma autoridade espiritual, ao mesmo abade. 189 Idem. Capítulo XVI. 190 No extrato citado, é claro que esses ataques ocorrem a partir do enriquecimento do mosteiro. Observação importante também é a de que a caracterização destas investidas como “externas” aqui só afiguram para que retomemos como as mesmas são representadas pelas fontes; conforme pretendemos demonstrar, estas movimentações só podem ser entendidas como externas se cingirmos radicalmente o mundo clerical do leigo, o que nos parece exagerado. Estas interferências parecem-nos investidas intestinas ao setor aristocrático, e que pouco diferem de outras manifestações que podemos observar no continente, por exemplo. 191 Idem. Capítulo XX. 192 Idem. Capítulo XIX. 193 [...]Sed quod ipse cum his esset iturus / consulte ad tempus celauit, ne, uidelicet, si palam uulgaretur / quod proposuerat, uel prohiberetur et retardaretur ab / amicis, uel certe a pluribus ei pecunia largiretur, quos ipse / remunerandi nec spatium nec facultatem haberet. Hanc / etenim semper habebat consuetudinem animi dapsilis, ut si / quid ei muneris ab aliqua siue maiorum seu minorum / personarum daretur, nequaquam inremuneratum dimitteret, / sed ampliori sepius largitorem suum gratia donaret. Idem. Capítulo XXII. 56 seiscentos monges e cento e cinqüenta lotes de terra.194 Se esta materialidade, crua em seu aspecto quantificado, soa por demais cinza (e concordamos), são necessários elementos do campo ideológico para este santo se constituir como aristocrata. O relato não nos deixa dúvidas quanto à esta caracterização ao saltar de um barco, montar seu cavalo e partir cavalgando em uma de suas viagens.195 A disposição dos parágrafos acima assume um caráter didático. Evidenciamos a caracterização de Ceolfrido como generoso e, logo em seguida, demonstramos a prodigalidade do mesmo em termos quantitativos (e “simbólicos”) porque estes elementos não podem ser entendidos separadamente. Prosseguindo em nossa exposição acerca dos ciclos de doação e reciprocidade e sua necessidade e importância para a reprodução da aristocracia, a vida deste santo conjuga exemplos fundamentais quanto às formas de receber e reciprocar presentes. A doação pressupõe sua resposta, em nível equitativo. Assim, A concede à B, que necessita reciprocar à A em igual medida, minimamente.196 Ao retornar algo equivalente à A, B equipara-se à A, que tendencialmente concede outro item à B, iniciando novo ciclo. Em termos lógicos (e até mesmo abstrata e exageradamente funcionalista), a lógica do dom é esta. Historicamente, ela cresce em complexidade e exige contextualizações. No caso citado de Ceolfrido , a ação de doar a pessoas com poucas rendas e posses e que, portanto, não teriam capacidade de retribuir o que lhes fora ofertado, gera uma situação de dependência dos depauperados em relação àquele que lhes fazem concessões. Levando em consideração o processo de que tratamos (ainda que de maneira breve) anteriormente, no qual parte dos súditos reais passava a ser dependente das abadias em decorrência das concessões de terras,197 parece- nos claro que essas tendiam a reforçar ainda mais os laços de dependência pessoal. Interessante e reveladora é a enunciação de que Ceolfrido não se importava com o status da pessoa que o presenteava; ele sempre tentava devolver-lhe um presente de valor superior. Os vínculos citados também são válidos para os laços inter-aristocráticos, conforme desenvolvido

194 Idem. Capítulo XXXIII. 195 Conforme verificaremos no segundo capítulo a posse e o manejo do cavalo é um dos índices característicos da auto-referenciação aristocrática, possuindo portanto uma inserção considerável no plano ideológico da mesma. Vita Ceolfridi. Idem. Capítulo XXVII. 196 Muito mais do que o estabelecimento de uma relação bilateral, o que desejamos apontar com esta afirmação é apenas uma afirmação com caráter didático. Conforme nossa análise demonstra, a relação de doação é mais tridimensional do que euclidiana. Seguiremos utilizando uma situação hipotética na qual constam apenas dois intervenientes apenas porque pensamos que desta forma ela se torna mais compreensível. 197 A partir das concessões em regime perpétuo, esta condição de dependência tende também a perpetuar-se. 57 anteriormente. O ato de devolver um presente de valor superior indica a requisição da posição de superioridade social em relação aquele que teria concedido algo ao santo, criando a obrigação de uma nova concessão para sanar o desnível da relação, ou admitindo-se a posição de inferioridade na vinculação. Incapacidade de equiparação de presentes é, portanto, equivalente a ocupar uma posição hierarquicamente inferior àquele com o qual se relaciona. A afluência de gifts parece-nos muito menos uma questão de humildade e muito mais um exercício de autoridade. Outro exemplo fundamental para a compreensão de que aquilo que é descrito como expressão de humildade pode, ao contrário, configurar-se como manifestação do exercício de uma posição de ascendência encontra-se na HEGA, em um relato sobre o bispo Aidan.198 Esse recebe do rei Oswino um cavalo de excelente qualidade, mas, ao encontrar-se com um homem pobre, concede-lhe o animal. Quando o rei doador toma conhecimento do ato, o bispo é cobrado e recriminado, uma vez que haveria cavalos de menor valor para serem doados aos pobres, e aquele havia sido especificamente selecionado para o uso pessoal do bispo.199 Após uma lição de moral condensada em apenas uma frase (“é o filho daquela égua mais caro a você do que um filho de Deus?”)200 o rei se arrepende e pede perdão, ajoelhado aos pés do bispo. A narrativa, conforme já sabemos, parte de uma fonte eclesiástica, e carrega sobretudo suas tintas nos tons que são capazes de descrever a superioridade do corpo eclesiástico em relação ao mundo laico. Mais importante que isso, contudo, é a postura do bispo em relação a um presente doado pela própria realeza; a reação exasperada de Oswino é reveladora, pois a doação a um indivíduo de baixa estirpe de um fabuloso animal transforma o que objetivava reproduzir um vínculo pessoal entre aristocratas em uma afirmação da superioridade do receptor pela emulação do presente concedido e, em última instância, do seu doador. A concessão em regime perpétuo parece ter interessado a leigos que buscavam sua própria autonomização, de maneira a garantir sua reprodução a partir da inserção em uma nova forma de poder que se instalava. Desta forma, muitos mosteiros teriam sua origem em uma pressão aristocrática leiga, e não em um exercício pleno de religiosidade. Estas afirmações, tenazes, pareceriam agudas e incisivas a ponto de machucar os ouvidos daqueles que pensam que

198 BEDE. Op cit.. Vol. 1, Book III, Cap. XIV. Pp. 396-397. 199 Numquid non habuimus equos viliores plurimos, vel alias species quae ad pauperum dona sufficerent, quamvis illum eis equum non dares, quem tibi specialiter possidendum elegi?. Bede, op. Cit. Livro III, cap. XIV, p. 396. 200 Numquid tibi carior est ille filius equae, quam ille filius Dei? Idem, p. 396 e 398. 58 a História deve englobar apenas o sentimento e a festividade.201 Felizmente, esta obervação é quase inescapável; antes mesmo de ser aventada por qualquer historiador, esta é uma das principais reclamações de Beda em sua epístola enviada ao bispo Egberto. A própria função da carta é explicitamente demonstrar a necessidade de que o clero (regular, especialmente) atenha- se aos seus preceitos religiosos, e que mantenham o decoro que lhes é cabível. Segundo Beda, a este bispo competia uma jurisdição que continha diversas vilas e aldeias, cuja extensão total não era capaz de ser percorrida por um homem mesmo no decorrer de um ano inteiro,202 e por isso o cargo episcopal devia contar com ajudantes.203 Deter patrimônios destas dimensões parece ter sido uma possibilidade que gerou grande interesse nos leigos, uma vez que

“[...] há outros culpados de ainda mais graves pecados; os quais, embora sejam homens laicos não acostumados com a regra da vida religiosa nem nutrindo amor pela mesma, dão dinheiro aos reis e, sob o pretexto de construir mosteiros, compram para eles próprios terras nas quais terão melhor liberdade para o exercício de sua luxúria; e isto eles conseguem a partir de editos reais para a posse hereditária, e buscam também cartas de seus privilégios, como se fossem verdadeiramente dignos de Deus, com a confirmação dos pontífices, abades e dos poderios seculares. Então, tomam posse de terras e vilas, e doravante estão livres do serviço divino e humano, e sendo laicos mantêm o comando sobre os monges, e são obedientes apenas aos seus vícios; ou melhor, não são monges que eles congregam […]. Com estas perversas companhias eles enchem as celas [...] e os mesmos homens estão com suas esposas e gerando filhos e, em outro [momento], estão ocupados com seus afazeres nos limites dos mosteiros. Com a mesma tolice procuram lugares, conforme dizem, para a fundação de mosteiros para as suas esposas, as quais, com idêntica imprudência, mesmo sendo mulheres laicas, tornam-se superiores das servas de Cristo”.204

201 Neste trecho nos referimos sobretudo à historiografia francesa, principalmente os que seguiram a linha inaugurada por Le Goff, nas mentalidades, e posteriormente transmutadas na História Cultural (sobretudo a partir da influência de Roger Chartier). Esta linha por nós agora criticada se afina sobretudo a uma antropologia ligado ao simbolismo, às subjetividades etc, e deixam muitas vezes de vincular estes elementos às estruturas sociais. Nesta linha poderíamos citar os recentes exemplos de Jean Claude Schmitt e Joseph Morsel. 202 Independente da precisa veracidade ou não que uma afirmação desta encerra, o registro é digno de nota para indicar a amplitude do patrimônio fundiário detido por tal bispo. A expressão pode traduzir apenas uma forma poética de expressar tal referência. 203 Et quia latiora sunt spatia locorum, quae ad gubernacula tuae dioecesis pertinent, quam ut solus per omnia discurrere, et in singulis viculis atque agellis verbum Dei praedicare, etiam anni totius emenso curriculo, sufficias, necessarium satis est. BEDE, op. Cit. Vol. 2, Epistola ad Ecgberctum Antistitem, 5. 204 At alii graviore adhuc flagitio, cum sint ipsi laici et nullius vitae regularis vel usu exerciti, vel amore praediti, data regibus pecunia, emunt sibi sub praetextu monasteriorum construendorum territoria in quibus suae 59

O trecho citado da carta torna claro como uma das estratégias deste novo setor social está ligada à locupletação das formas de poder outras que se anunciam nesta sociedade – e não apenas no que diz respeito ao mundo masculino, como a missiva transparece.205 E, é importante destacar como estas posições não estão ligadas apenas ao que é estabelecido pela regra específica da vida monástica; ao que parece, os guerreiros tornavam-se com certa facilidade abades e mesmos bispos. Como confirma novamente Beda,

“[...] é comumente dito de alguns bispos que eles, no serviço de Cristo, não são homens de religiosidade ou de continência;206 mas que são homens dados ao riso, brincadeiras, fábulas, comilanças, embriaguez e outras formas de vida incorreta; [homens] que preferem quotidianamente encher seus ventres com bródios a preencher a mente com sacrifícios celestes”.207

É necessário ser crítico em relação às afirmações do Venerável. Conforme realçamos algumas vezes, os braços laico e clerical, embora em nossa análise (e principalmente no próximo capítulo) sejam entendidos como razoavelmente confluentes no que diz respeito à sua inserção na sociedade, eles ainda são propensos a conflitos de ordens das mais diversas. Em uma carta cujo explícito intento é o estímulo da vida clerical nos estóicos moldes monásticos - até por Beda praticamente desconhecer existência outra que não esta – o exagero pode constituir recurso retórico. Mesmo que descartássemos o que o autor considera elementos de devassidão, a informação acerca da tática para manutenção das propriedades nos soa plena de sentido. Temos isto em mente não por tratarmos a aspiração a uma perene posição de prestígio como inerente,

liberius vacent libidini, et haec insuper in jus sibi haereditarium edictis regalibus faciunt ascribi, ipsas quoque litteras privilegiorum suorum quasi veraciter Deo dignas, pontificum, abbatum et potestatum saeculi obtinent subscriptione confirmari. Sicque usurpatis sibi agellulis sive vicis, liberi exinde a divino simul et humano servitio, suis tantum inibi desideriis laici monachis imperantes deserviunt: imo non monachos ibi congregant [...] Horum distortis cohortibus, suas quas instruxere cellas implent, [...] iidem ipsi viri modo conjugis ac liberorum procreandorum curam gerunt, modo exsurgentes de cubilibus quid intra septa monasteriorum geri debeat, sedula intentione pertractant. Quin etiam suis conjugibus simili imprudentia construendis, ut ipsi aiunt, monasteriis loca conquirunt, quae pari stultitia cum sint laicae, famularum se Christi permittunt esse rectrices. Aqui em uma tradução livre nossa. BEDE, op. Cit. Vol. 2, Epistola ad Ecgberctum Antistitem, 12. 205 No próximo capítulo abordaremos uma outra dimensão possível de tratamento às mulheres no mundo aristocrático. 206 No sentido de assenhoramento de seu corpo e paixões, retidão, etc. 207 Quod non ita loquor, quasi te aliter facere sciam, sed quia de quibusdam episcopis fama vulgatum est, quod ipsi ita Christo serviant, ut nullos secum alicujus religionis aut continentiae viros habeant: sed potius illos qui risui, jocis, fabulis, comessationibus et ebrietatibus, caeterisque vitae remissioris illecebris subjugantur, et qui magis quotidie ventrem dapibus, quam mentem sacrificiis coelestibus pascant. Tradução livre nossa. BEDE, op. Cit. Vol. 2, Epistola ad Ecgberctum Antistitem, 4. 60 mas pelo próprio modus vivendi destas pessoas. Conforme já abordamos, a doação de terras já contava com (limitado) nível de disseminação. O caráter perene da posse parece-nos a fixação de um velho costume, a doação régia – de terras.

O trono engloba cedendo, e doando tenta submeter. Conforme os exemplos citados acima, o conflito está presente nas concessões e a apresentação lógica do dom anteriormente exposta demonstra suas limitações. A leitura que se faça dos mundos leigos e eclesiásticos deste período, sem considerar um em relação ao outro é certamente alijada. Deve-se levar em consideração suas confluências e embates, e as doações e contraprestações que os caracterizam. A forma de concessão se altera ao se alterar a sociedade. A compreensão das relações entre os setores laicos e clericais torna-se mais nítida ao analisar a legislação disponível. Passemos, portanto, a ela.

Legislação, estatutos sociais e wergeld O corpus normativo sob a forma de leis de que dispomos é a compilação conhecida como Anglo-Saxon Dooms.208 O primeiro conjunto de leis posto por escrito não por acaso data do reinado de Etelberto (560-616), rei do Kent, o primeiro monarca anglo-saxão a ser convertido ao cristianismo. Pena e tinta não se limitam ao registro das propriedades; elas (felizmente) também recordam o programa legislativo aprovado na assembléia do reino. A primeira frase do documento no qual estão presentes as leis que seriam vigentes no reino de Etelberto estabelece que estas foram firmadas “nos dias de Agostinho”.209 O primeiro item trata especificamente dos valores atribuídos às propriedades, e os valores destas são determinados a partir da qualidade da pessoa à qual se vinculam. A propriedade tida como de Deus e da Igreja é a que goza de maior prestígio, sendo seguida pela do bispo. A segunda lei já trata de violações à vontade régia – se alguém faz algum mal a uma pessoa convocada pelo rei. A tendência de alocar os elementos eclesiásticos à frente dos laicos não apenas mantém- se, mas parecem acentuar-se com o tempo. No registro das leis de Withraed (690-725), à “convenção deliberativa” dos “grandes homens” (great men) comparece Birhtwald, arcebispo, o citado rei, e Gybmund, bispo de Rochester, assim como “todo grau da igreja daquela província

208 Disponível em http://www.fordham.edu/halsall/source/560-975dooms.html 209 In the days of Augustine. 61 falou em uníssono com o povo obediente”.210 Nesta assembléia,211 os “grandes homens decretam, com o sufrágio de todos”.212 Apesar da indicação da possível participação ativa (votante) no que tange às assembleias do reino por parte de todos os seus habitantes, a qualidade social diferenciada dos mesmos torna-se evidente quando observamos a evolução do wergeld. Significando literalmente “o preço do homem”, o wergeld (ou wergild) constitui-se como uma espécie de “tabela de reparação”, que fixava valores detalhados para uma composição pecuniária alternativa a ser paga em decorrência da autoria de injúrias e lesões corporais. Os valores estipulados variavam consoante à origem social dos envolvidos, e por isso ela é reveladora da estruturação hierárquica desta sociedade. Nas leis de Etelberto, podemos observar que, embora estas definições não sejam tão explícitas como serão posteriormente, elas expressam a diferenciação também quanto ao local da injúria. Se um homem assassina outro no tun real,213 deve pagar ao monarca 50 shillings214 Caso o mesmo ocorra no âmbito de um tun de um aristocrata,215 ele deverá pagar a este 12 shillings.216 Aparentemente, no que diz respeito aos tuns e à justiça a eles atribuídos, interpretamos o pagamento de um valor mais elevado quando da violação da lei em um espaço de exercício de poder direto da realeza como uma forma do monarca garantir e reservar à sua posição a função de supressor das potenciais fraturas sociais, sendo o responsável pela coesão do reino. Como a logística desta sociedade (e do pré-capitalismo em geral) impede a garantia plena da efetividade destas leis, e, como se torna explícito pela existência de tuns de nobres, a realeza parcela algumas de suas funções e as distribui seguindo a lógica do dom, visando, além do estabelecimento do vínculo pessoal com seus próprios guerreiros, uma maneira de exercer seu poder, ainda que de forma mediada. Ao fazê-lo, contudo, conforme demonstraremos, acaba por solapar progressivamente sua base de poder. Este primeiro conjunto de leis não traz em si, direta e explicitamente, a quantia pecuniária estabelecida para cada estatuto social; percebemo-la, contudo, de forma indireta. O adultério prescreve penas diferenciadas: aquele que se deitar com a rainha deve 50 unidades da moeda

210 […] every degree of the church of that province spoke in unison with the obedient people. 211 Curioso que apenas nestas leis, as mais tardias do nosso recorte é que há a clara menção da assembleia e de sua constituição. 212 There the great men decreed, with the suffrages of all[...]. 213 Foco político-administrativo, conforme abordamos no tópico “Ruralização”. 214 The Laws of Aethelberht, King of Kent. Nº 5. 215 Eorl, na fonte. 216 The Laws of Aethelberht, King of Kent. Nº 13. 62 citada;217 ao que se deita com a esposa de um aristocrata estipula-se multa de 12 shillings;218 ao que dormir com a esposa de um camponês livre (ceorl) a quantia devida é 6 shillings, se for a consorte de um escravo de segunda classe, apenas a metade de um shilling, e se for de terceira classe, aproximadamente um terço da mesma moeda. Em quase sessenta anos de processo histórico, torna-se cristalina a diferença entre a aristocracia e os homens livres. A primeira das leis dos reis Hlothhaere e Eadric (673-686) trata do caso do escravo de alguém assassinar uma pessoa do nível de um eorl; o pagamento de 300 shillings deve ser efetuado pelo dono do escravo. No caso do assassínio de um homem livre (também por parte de um escravo) a taxa devida pelo dono do escravo é de 100 moedas. Neste período, portanto, o valor de um nobre é o triplo do de um livre. No âmbito da já citada assembleia de Withraed, que tem lugar apenas quatro anos depois da legislação citada no parágrafo anterior, podemos observar (ainda que não mais a partir do wergeld) que o fator pelo qual os homens livres devem ser multiplicados para que cheguem à estatura de um aristocrata sofreu um aumento considerável. Nesta assembleia é determinado o número mínimo de pessoas que garantem que a palavra de um indivíduo é verdadeira, utilizando- se principalmente do mecanismo do juramento. Para que a palavra de um homem livre seja considerada inquestionável, este deve reunir-se com outros quatro homens de qualidade idêntica à sua em um altar, e todos devem prestar juramento.219 O número de clérigos necessários para assegurar veracidade ao seu juramento é o mesmo.220 Estrangeiros (provavelmente pelo princípio da hospitalidade), nobres, diáconos e outros cargos clericais não necessitam de outra voz além da sua própria para que o seu juramento seja válido.221 Os verbos vertidos por bispos e reis (e a fonte os apresenta nesta ordem) devem ser considerados, mesmo sem juramento, inquestionáveis. As fontes são cristalinas no que tange à progressão da hierarquização social – nobres que equivaliam a três homens livres passam, em pouco tempo, a ter seu quilate correspondendo a quatro destes; da mesma forma, há uma hierarquia clara no interior da Igreja.222 A depreciação da

217 Idem. N. 10 218 Idem. N. 13 219 The Laws of King Wihtraed. n. 21. 220 Pela quantidade de membros envolvidos no juramento, pensamos tratar-se das camadas clericais inferiores, como párocos locais. The Laws of King Wihtraed. n. 19. 221 Idem. n. 20,18 e 17. 222 Não negamos a presença de hierarquias no seio da Igreja; pelo contrário, o que as fontes demonstram é a presença destas. De qualquer maneira, isto não elimina o argumento de que as altas camadas clericais eram ocupadas por grandes aristocratas. 63

“qualidade” de homem que não está submetido a um aristocrata (exceto pela realeza)223 tem relação direta com outro processo que também transparece nestas fontes. A equivalência do bispo à posição real nos é significativa a respeito deste tema. Com a entrada e fixação do cristianismo na ilha, a realeza passa a ceder permanentemente.224 Cede terras e súditos, ao mesmo tempo em que o processo de autonomização dos leigos é acelerado; são concedidas prerrogativas que anteriormente eram exclusividades do trono, como o exercício da justiça, por exemplo (como demonstra a existência de tuns aristocráticos). Identificamos, portanto, um processo convergente, ainda que oposto em suas respectivas inserções sociais: ao conceder o direito de exploração dos camponeses que lhes eram diretamente vinculados para os aristocratas, transformando os campesinos em apenas em uma força de trabalho cujo objetivo é a reprodução de uma aristocracia que emula as funções e atividades régias. Neste movimento, os monarcas também se limitam. Esta conclusão decorre da forma assumida pela reprodução dos laços de subordinação dos guerreiros aos seus reis. Estes devem alimentar constantemente o ciclo de doações que, quando assumem um caráter definitivo e irrevogável, restringem sensivelmente as possibilidades de concessão. Estamos longe, contudo, de esgotarmos a questão da realeza. Retornaremos à mesma no próximo capítulo e no seguinte. Por ora, podemos adiantar que ao alienar seus homens, os reis enfraquecem-se.

Dom e Hierarquias O período anglo-saxão pagão, conforme o exposto, está socialmente próximo ao mundo dos germanos descrito por Tácito. A partir do apresentado, uma das características fundamentais destas sociedades é a posição do chefe como o vértice da distribuição do produto social. No mundo de Tácito encontramos diversos chefes militares disputando esta função. Na Inglaterra de nosso período, esta disputa permanece, mas sobretudo a partir das disputas entre as realezas (em

223 Nos referimos aqui à subdvisão do campesinato proposta por João Bernardo. De um lado, há os camponeses dependentes, caracterizados pelo vínculo de dependência a um aristocrata, e cuja inserção no processo produtivo a partir da divisão social do trabalho limita sua atividade à produção direta. Por outro lado, estão os camponeses independentes, pequenos proprietários diretamente vinculados à realeza e que ainda participam da guerra. BERNARDO, João. Poder e Dinheiro. Do Poder Pessoal ao Estado Impessoal no Regime Senhorial. Porto: Afrontamento, 1995. 224 Não pretendemos ir contra todo o apresentado anteriormente. Para a sustentação da realeza, deve haver doações, e estas já apresentavam caráter permanente, exceto no que diz respeito a patrimônio fundiário e o paralelo acesso à exploração do trabalho camponês. Estes só assumem caráter permanente na doação à Igreja. 64 especial as da heptarquia225). Em seu estudo sobre as formas que as sociedades que podem ser classificadas como “de chefia” assumem para a manutenção do poder do chefe, Timothy Earle elenca diversos fatores para explicá-las. Entre elas destacam-se o dom (gerando dívidas), o uso de força interna, a expansão da população dependente (dele), a criação (ou apropriação) de princípios de legitimidade e o controle sobre a produção e/ou distribuição interna de bens de prestígio. De todos os citados, e também do teor geral de seu artigo transparece a concepção de que muito mais do que o estabelecimento e/ou criação de fontes de poder, aqueles que o detém o fazem sobretudo a partir da exclusão dos demais grupos societários a estas fontes. Na Inglaterra anglo-saxônica percebemos todos os citados itens com plena realização. Aparentemente, a citação deste parágrafo e desta frase em seguida parece indicar o estabelecimento de um modelo e, a partir dele, tentar enquadrar o real. O movimento na realidade é mais complexo do que este: as formas a partir das quais se estruturam as sociedades de chefia elencadas por Earle na verdade já foram apresentadas em grande medida aqui (e as que não foram, serão; se não em seguida, pelo menos no próximo capítulo, de maneira mais detida). Citamo-nas e concordamos com a mesma a partir de um movimento de maior fôlego e amplitude. Voltemos ao dom em um primeiro movimento para repensar estes elementos citados por Earle. No registro de Tácito, os chefes guerreiros (e entre eles o monarca) eram a fonte a partir da qual os itens eram (re)distribuídos e parte de sua ascendência sobre as famílias que constituíam sua comunidade advinha justamente de sua inserção nelas a partir destes laços. O dom é um dos mecanismos de manutenção da estrutura social tal como ela se apresenta, por vezes contendo, por vezes promovendo conflitividade com o intuito de reproduzir a comunidade. Ele expressa e em certa medida promove as relações de poder. Na Inglaterra, a despeito do processo de cristianização ele mantém o mesmo verniz. Os casos citados a respeito do cavalo real doado a Aidan, assim como a ação de Ceolfrido de retribuir presentes esforçando-se para exceder o recebido em valor são significativos de que em uma sociedade na qual o gift tem destaque e a desigualdade se aprofunda, ele está inserido neste aprofundamento assim como nas relações que o constituem. O dom, portanto, parece acompanhar (produzindo e reproduzindo) o nível de hierarquização social. Nunca, contudo,

225 Forma como são conhecidos os reinos de Kent, Ânglia Oriental, Nortúmbria, Sussex, Essex, Wessex e Mércia. 65 possui verniz passivo – ele parece-nos se manter como um dos pilares estruturantes da sociedade. Combalida, por estar enfraquecida em termos materiais; parcelada, por aos poucos atribuir suas prerrogativas a outros. Estas adjetivações não são suficientes para suprimir a realeza da Inglaterra Anglo-Saxônica do período. Ao contrário, todas as formas de poder e propriedade atravessam-na, e a aristocracia, leiga ou eclesiástica, se afirma material e simbolicamente a partir da proximidade com a (e da emulação da) mesma. Embora sua capacidade de exercício de poder esteja diluída, ainda possui vigor que não pode ser desprezado. É requisitada a sua anuência – muito embora algumas vezes possa ter sido mais fruto de pressões do que de uma iniciativa régia. A realeza deste período, por ainda exercer centralidade, pode ser considerada como uma chefatura, e esta sociedade como uma sociedade hierarquizada. Constitui, contudo, uma sociedade consideravelmente mais complexa que a registrada por Tácito, apresentando mediações outras entre seus homens que não seja exclusivamente o chefe. Com isto, a monarquia passa a apoiar-se sobre dois pilares no exercício de seu poder: o primeiro é esta aristocracia a ela vinculada pelos laços de doação e contraprestações, tendente à autonomização a partir da coligação com os quadros eclesiásticos226;o segundo é o setor da sociedade que está diretamente vinculado ao setor produtivo e à realeza, os camponeses pequenos proprietários livres que desfrutam desta relação também direta e específica com o monarca e mantêm sua qualidade guerreira. Este último setor é o que denominaremos de campesinato independente, a partir da leitura de João Bernardo227. A população dependente da realeza, portanto, é independente no que tange à aristocracia228. Como indicamos, a aristocracia emula em muitos aspectos as características da realeza – e aqui não pensamos que seja diferente. Concordamos com Earle que a expansão da população dependente a si é uma das formas fundamentais da reprodução destes chefes; conforme a aristocracia apropria-se de elementos até então exclusivos do monarca, este é um dos fatores que a acompanha.

226 A assertiva tenciona indicar uma alteração na forma pela qual a aristocracia se produz socialmente a partir da fixação do cristianismo. Os chefes militares e as realezas do período de tácito já vinculavam seus guerreiros a partir destes vínculos de doação e contraprestações - no caso, de serviço militar, que é algo que perdura por toda a Idade Média, estando presente não apenas no recorte de nossa dissertação. 227 BERNARDO, João. Poder e Dinheiro. Do Poder Pessoal ao Estado Impessoal no Regime Senhorial, Parte I, Capítulo V. Porto: Afrontamento, 1995. pp. 77. 228 Não queremos aqui indicar que o rei não é um aristocrata; a nossa diferenciação aqui entre o monarca e a aristocracia tenciona apenas tornar nosso posicionamento quanto a questão mais nítido. 66

A complexificação social, portanto, parece-nos ligada à concessão de prerrogativas régias – em níveis diretos na forma de tributos, assim como mais sutis, como a administração da justiça, conforme a legislação expõe. A aristocracia, portanto, partilha as funções do que eram do chefe, e se apropria das mesmas. A diferença do regime político anterior, em termos do nível de hierarquias internas é sensível e está em curso; parece-nos, contudo, ser constituída mais em grau do que em gênero. Esta afirmação não pressupõe uma diferenciação nítida e definitiva entre elementos quantitativos e qualitativos; pelo contrário, pensamos que com o avanço do número relativo de aristocratas, há uma correspondente diferenciação nas formas que as relações de poder desta sociedade. Em nosso recorte este processo está em curso; contudo não possui contornos nítidos a ponto de abandonarmos a proposição de uma sociedade hierarquizada. A Inglaterra anglo-saxônica dos séculos VII e VIII encontra-se, portanto, mais hierarquizada do que fora no seu período pagão. Contamos portanto, com uma sociedade tripartida: aristocratas (dentro dos quais constam a realeza), camponeses independentes e dependentes. Conforme o enunciado no título de nossa dissertação, nossa principal investida é no sentido de caracterizar a aristocracia; contudo, só podemos entender a mesma a partir das relações que este tece com os demais segmentos sociais, com a sua inserção na totalidade da sociedade.229 A categorização sociológica do que são estes três setores merece atenção especial. Trabalharemos as mesmas como classe, classificação que normalmente é negada ao período pré- capitalista de maneira geral. Adotamos este conceitos por alguns motivos. O primeiro deles é evidenciar a nossa filiação teórica com o materialismo histórico e o caráter conflitivo que a História assume a partir desta; o segundo é que pensamos os estatutos sociais como relação e processo, característica fundamental às formações das classes sociais; o terceiro é que pensamos que na formação destas hierarquias estão implicados elementos diversos, de ordens materiais e ideais, indissociáveis em sua caracterização. Nem só de definidas hierarquias, portanto, vive uma classe. A ela é necessário também reproduzi-las, sancioná-las, retransmiti-las etc. Se neste primeiro capítulo nos concentramos de maneira mais veemente no que poderíamos pensar como elementos mais materiais que embasam a constituição da aristocracia, no capítulo seguinte nos dedicaremos à afirmação ideológica da

229 Esta relação, de maneira mais ampla e precisa, será o alvo das considerações do nosso terceiro capítulo. 67 mesma, retomando a discussão a respeito do conceito de classe no nosso contexto, e naturalmente discutindo as relações entre ideologia e classe.

Conclusão As novas formas de propriedade inseridas pelo cristianismo parecem-nos como um elemento de fundamental importância na constituição e cristalização do setor social que se afirma, a aristocracia. Ele se caracteriza por estar afastado da atividade laboral; por viver a partir da extorsão do trabalho e do produto do trabalho de homens que lhes são dependentes (em forma de tributos); pela relação diferenciada com a realeza; pelo progressivo (embora nunca definitivo) monopólio de inserção em uma das formas de intercâmbio regulares e fundamentais desta sociedade, a guerra. Os tópicos ora listados não constituem uma checklist, exposição dimensional e estáticas dos elementos constituintes desta camada social. Eles se coadunam, sobrepõem, inter- relacionam, etc. É impossível, por exemplo, entender a exclusividade dos bens de prestígio, a relação com a realeza e a inserção na guerra sem os pensar agrupadamente. Estas transformações contudo não se expressam a partir da negação do que fora a sociedade no período anterior; pelo contrário, elas se dão a partir delas. Por isso, mantém-se como fundamentais as questões da realeza e do dom e contra-dom envolvendo a mesma; em sua consolidação, a hierarquização atravessa, apoia-se e se expressa nestes pontos fundamentais.

Hastings, topônimo da famosa batalha na qual os anglo-saxões deixaram de ser definitivamente os senhores da ilha, passando ao tal “feudalismo de importação”, merece ser relembrado. Normalmente, seu nome é ligado ao predomínio de dinastias que ligavam sua estirpe régia à Hengest ou Horsa - os dois primeiros líderes militares míticos que teriam garantido a vitória dos saxões quando eram subordinados aos bretões. O que talvez seja interessante destacar é que esta civilização não passou incólume às investidas cristianizadoras, e, portanto, em certa medida, latinizadoras, em um movimento de síntese próximo aos episódios ocorridos no continente. Não seria estranho, portanto, ligar Hastings a hasta, ao mundo romano. Se o avanço da historiografia for sinônimo do estabelecimento de pedigrees de práticas sociais, poderíamos pensar que, longe de identificar exclusivamente uma germanização do cristianismo, o processo ocorrido na Inglaterra Anglo-Saxônica identifica uma latinização do mundo germânico – isto é, uma síntese civilizacional entre mundo entre o mundo germânico e o

68 romano. Ainda que o mundo romano não seja o clássico - o que torna esta síntese digna de nota e mesmo de diferencial em relação ao ocorrido no continente – este processo sintético deve ser comparado com estudo com perspectivas similares voltados ao continente. A partir disto, poderemos avaliar até que ponto a Inglaterra Anglo-Saxônica é efetivamente diferenciada da Europa como um todo.

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CAPÍTULO II – A Ideologia Aristocrática

Classes ou Estamentos? Iniciemos nossa exposição citando um sociólogo que define estamentos, classes ou partidos como “fenômenos de distribuição de poder dentro de uma comunidade”; ainda segundo o mesmo, o estamento denomina “os grupos de status e que são normalmente comunidades”, e a situação de status seria todo “componente típico do destino dos homens, determinado por uma estimativa específica, positiva ou negativa, da honraria”.230 A citação de Weber, em uma dissertação voltada especificamente para a teoria e prática (ou prática teórica) marxista não é apenas uma provocação ou uma investida infantil clamando por atenção. O tópico ora desenvolvido diz respeito à reflexão acerca de conceitos-chave para o que a tradição convencionou chamar de pré-capitalismo, mas cuja discussão e mesmo aplicação parecem ter se dado de maneira descuidada, nas raras vezes em que isto se realizou. O debate, no entanto, é fundamental. É compreensível, contudo, em um momento em que são priorizadas análises microscópicas – quando não nanohistóricas! – de elementos que se proclamam como outsiders, que a definição da maneira como se organizam os diferentes grupos sociais e como estes se relacionam seja deixado de lado. O intuito do nosso trabalho é trazer isto à baila, e nos esforçar por combater o paradigma do pensador-avestruz.

A apresentação inicial do conceito de Weber de estamento em nosso texto se dá em função de que, segundo este autor, no período ao qual nos referimos por ora – a Idade Média – teriam existido apenas estamentos, e não classes. De maneira bem sintética, podemos entender que para este autor, o que delimita o estamento é a ordem social, enquanto o que delimita a classe é a ordem econômica. Na classe weberiana está pressuposto que os indivíduos pertencentes à mesma devem ter um componente causal nas suas possibilidades de vida, e este componente é representado por motivações puramente econômicas de posse de bens ou oportunidades de renda, e também que este componente esteja representado sob as condições de mercado de produtos ou mercado de trabalho.231 Para o mesmo autor, há congruências entre o número de situações de classe (que são definidas a partir da relação de proprietário ou de não-

230 WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. P. 212. 231 Idem. 70 proprietário no que diz respeito à distribuição da propriedade entre as pessoas) e o número de classes propriamente dito; a condição da classe está ligada, portanto, à circulação de bens, e intimamente ligada ao mercado, o que leva o autor a concluir que a “situação de classe, nesse sentido, é, em última análise, situação de mercado”. E prossegue em sua análise, diferenciando a classe do estamento:

“[...] quando um grupo de pessoas é descartada por convenções ou por lei das oportunidades de usar em seu benefício os bens e os serviços no mercado, como acontece com os escravos, em termos técnicos não são uma ‘classe’ mas um ‘estamento’.”232

O que criaria a classe, então? Uma demanda econômica clara, ligada aos interesses existentes no mercado. O conceito de classe, portanto, se insere na esfera da circulação, e só pode ser utilizado quando há uma clara racionalidade no que diz respeito a esta circulação, o que só pôde ser atingido na sociedade capitalista, daí sua inaplicabilidade às sociedades estruturadas de formas outras.

As sociedades estamentais, segundo o autor, são orientadas pela convenção, ordenadas pelo costume e expressam condições e formas de consumo (economicamente) irracionais, não dispondo os grupos sociais, portanto, de sua própria capacidade aquisitiva. A orientação econômica se construiria no sentido de manutenção do status, pois estamento significa, por esta lógica, grupos de status, cujas distinções são estabelecidas e garantidas por convenções ou leis que objetivam em última instância a imobilização que a idéia de ordem (aqui tomada como sinônimo de estamento) sugere. O peso das próprias convenções e das leis é o que permite, segundo Weber, a dominação estamental, que é entendida como a “probabilidade de encontrar obediência dentro de um grupo determinado de mandatos específicos (ou para toda classe de mandatos)”. Vale lembrar que a formulação destas linhas gerais, para Weber, não dizem respeito a uma realidade histórica específica, mas são tipos (ideais, é claro), construtos intelectuais a partir dos quais construímos o nosso conhecimento histórico. Da mesma forma, estes tipos, pela própria constituição metodológica, não se referem a uma realidade histórica determinada (específica), e por isso acabam por se tornar, se isso não significar o desterro de Weber para a História, ahistóricos.233 A sociologia weberiana utiliza, portanto, um método não-realista por

232 Idem. 233 Sedi Hirano prefere a utilização do termo poli-histórico pela inserção múltipla do próprio conceito HIRANO, 71 assim dizer, e se ancora fortemente nas questões, definições e relações jurídicas.

Se iniciamos a exposição do posicionamento de Weber acerca destes conceitos com definições suas, faremos o mesmo com o revolucionário alemão: “as categorias econômicas mais não são que abstrações destas relações reais e que são unicamente verdadeiras enquanto essas relações sociais subsistirem”, e condena

“os que vêem nessas categorias econômicas leis eternas e não leis históricas, que o são unicamente para um certo desenvolvimento das forças produtivas, [e] incorrem no erro dos economistas burgueses.”234

O objetivo desta citação inicial é, além de contrapor os posicionamentos epistemo- metodológicos de Marx e Weber, apontar, dentro desta contraposição, que o filósofo da práxis defende que qualquer categorização deve ser historicizada, deve ser ancorada no real e verificável no mesmo. A impossibilidade de generalização ahistorizante e ahistoricizante torna necessário que os conceitos sejam “ajustados” dialogicamente à realidade social em questão. Ao referir-se ao pré-capitalismo, contudo, Marx utiliza o termo estamento; para Engels, em uma tentativa de sistematizar apontamentos de Marx, a revolução burguesa destrói os estados e seus privilégios, fazendo com que a sociedade burguesa não conheça outra coisa a não ser as classes.

Também pertence a Engels a tentativa de conceituar os estamentos como “estados no sentido histórico, como estamentos do Estado Feudal, estamentos com privilégios concretos e rigorosamente delimitados”.235 A organização dos privilégios calcados em uma tradição, em elementos que apontam para o passado parece ser um ponto de encontro entre as duas correntes; contudo, para Weber estes elementos parecem criar o estamento (juntamente, é claro, da ordem jurídica), enquanto que para o materialismo histórico o estamento é a expressão, historicamente determinada, da produção social, das relações de produção, do modo de apropriação da produção e da força de trabalho, das formas de propriedade, dos instrumentos de produção, da divisão social do trabalho, ou, dito de maneira mais simples: um dos elementos, ainda que multiplamente conectado e com uma gravidade importante, do modo de produção. Dentro da filosofia da práxis

Sedi. Castas, Estamentos e Classes sociais. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1973. 234 Remetemo-nos, aqui, à carta de Marx a Annenkov, datada de 28 de dezembro de 1846, disponível em http://www.scientific-socialism.de/FundamentosCartasMarxEngels281246.htm. Vale ressaltar, contudo, que a crítica é endereçada a Proudhon, e esta mesma formulação será novamente apresentada em A Miséria da Filosofia. 235 Apud HIRANO, Sedi. op. Cit. p. 45. 72 o conceito de estamento nos parece, portanto, mais interconexo do que na teoria weberiana. Estudaremos, detalhadamente, a seguir a problemática da classe dentro do marxismo. Adiantamos, contudo, que pelo apresentado até agora, dentro da lógica marxiana, classe e estamento não são necessariamente excludentes, mas podem mesmo ser conceitos complementares.

Classes Uma lamentação comum em eventos que congregam estudiosos que seguem a linha do materialismo histórico é a ausência de uma conceituação acabada e sistemática, por parte de Marx, do conceito de classes sociais.236 O momento mais próximo disto teria ocorrido no último capítulo redigido de O Capital, concentrado sobre as formas nas quais seriam encontradas as classes naquele determinado estágio de desenvolvimento do capitalismo. Infelizmente, o manuscrito se encerra muito antes da ideia estar completa.

A maturação do pensamento de Marx parece ter seu ápice quando este redige O Capital, e em grande parte isto de fato procede. Vejamos a maneira pela qual o autor aborda esta temática na obra em questão:

“Os proprietários de apenas força de trabalho, os proprietários de capital, os proprietários de terras, cujas respectivas fontes de renda são o salário, o lucro e a renda da terra; em outras palavras, os trabalhadores assalariados, os capitalistas e os proprietários de terras constituem as três grandes classes da sociedade moderna baseada no modo capitalista de produção.”237

A ideia inicialmente proposta é a de que a classe derivaria direta e exclusivamente do processo de produção. Esta concepção aparentemente é combatida pelo autor no mesmo fragmento de capítulo, pois logo em seguida ele anuncia que o que constituía a classe “em um primeiro relance é a identidade da renda ou das fontes de renda”; em seguida inicia a crítica a esta mesma enunciação, porque desta forma a própria ideia de classe admitiria a fragmentação da mesma, e médicos e oficiais, por exemplo, estariam alocados em classes diferentes.238 Outro

236 Lamúrias estas que encontram eco mesmo na síntese de Tom Bottomore sobre o pensamento marxista. BOTTOMORE, Thomas. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. Verbete “Classe”. 237 http://www.marxists.org/archive/marx/works/1894-c3/ch52.htm 238 Idem. Penúltimo e último parágrafos. 73 elemento interessante que esta passagem carrega, contudo, é ser suficiente para combater a ideia de que o marxismo seria simplório ao avaliar a sociedade sempre dicotomizando-a em duas fatias que se confrontam perenemente.

A derivação mecânica da classificação classista a partir da mera inserção no mundo do trabalho também é combatida por Marx em outra obra, O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. Ao avaliar a participação dos camponeses no processo revolucionário abordado na obra, Marx lê a situação da classe camponesa em uma dimensão dupla:

“Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos membros vivem em condições semelhantes mas sem estabelecerem relações multiformes entre si. Seu modo de produção os isola uns dos outros, em vez de criar entre eles um intercâmbio mútuo. Esse isolamento é agravado pelo mau sistema de comunicações existente na França e pela pobreza dos camponeses. Seu campo de produção, a pequena propriedade, não permite qualquer divisão do trabalho para o cultivo, nenhuma aplicação de métodos científicos e, portanto, nenhuma diversidade de desenvolvimento, nenhuma variedade de talento, nenhuma riqueza de relações sociais. Cada família camponesa é quase auto-suficiente; ela própria produz inteiramente a maior parte do que consome, adquirindo assim os meios de subsistência mais através de trocas com a natureza do que do intercâmbio com a sociedade. […] Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem em condições econômicas que as separam umas das outras, e opõem o seu modo de vida, os seus interesses e sua cultura aos das outras classes da sociedade, estes milhões constituem uma classe. Mas na medida em que existe entre os pequenos camponeses apenas uma ligação local e em que a similitude de seus interesses não cria entre eles comunidade alguma, ligação nacional alguma, nem organização política, nessa exata medida não constituem uma classe. São, consequentemente, incapazes de fazer valer seu interesse de classe em seu próprio nome, quer através de um Parlamento, quer através de uma Convenção. Não podem representar-se, têm que ser representados. Seu representante tem, ao mesmo tempo, que aparecer como seu senhor, como autoridade sobre eles, como um poder governamental ilimitado que os protege das demais classes e que do alto lhes manda o sol ou a chuva.”239

As considerações apresentadas requerem uma breve exegese. Caso a questão que gostaríamos de destacar fosse exclusivamente a caracterização dos camponeses simultaneamente como classe e não-classe, bastariam apenas duas frases. O que sobressai com o trecho citado,

239 http://www.marxists.org/portugues/marx/1852/brumario/cap07.htm 74 contudo, é que ao citar a incapacidade de fazer valer seus interesses de classe, os campesinos estão sendo comparados aos proletários, e estes possuem uma consideração mais elogiosa dos revolucionários alemães, e conjugam os dois elementos considerados fundamentais (neste trecho) para sua categorização como classe.

A última consideração nos remete àquela que foi uma das primeiras obras dos fundadores do materialismo histórico. Em A Ideologia Alemã, contamos com uma valiosa (embora breve) apreciação do processo pelo qual a classe burguesa se forma e desenvolve, assim como daquele pelo qual a posição individual acaba por ser subsumida à inserção na classe:

“Das muitas burguesias locais das diversas cidades nasceu pouco a pouco a classe burguesa. As condições de vida dos burgueses singulares, pela oposição às relações existentes e pelo tipo de trabalho que daí resultava, transformaram-se em condições que eram comuns a todos eles e, ao mesmo tempo, independentes de cada um individualmente. Os burgueses criaram essas condições na medida em que se separavam da associação feudal, e foram criados por elas na medida em que eram determinados por sua oposição contra a feudalidade então em vigor. Com o estabelecimento do vínculo entre as diferentes cidades, essas condições comuns desenvolveram-se em condições de classe. Condições idênticas, oposição idêntica e interesses idênticos também tinham de provocar, necessariamente e em todas as partes, costumes idênticos. A própria burguesia desenvolve-se apenas progressivamente dentro de suas condições; divide-se novamente em frações distintas, com base na divisão do trabalho, e termina por absorver em si todas as preexistentes classes de possuidores […]. Os indivíduos singulares formam uma classe somente na medida em que têm de promover uma luta contra uma outra classe; de resto, eles mesmos se posicionam uns contra os outros, como inimigos, na concorrência. Por outro lado, a classe se autonomiza, por sua vez, em face dos indivíduos, de modo que estes encontram suas condições de vida predestinadas e recebem já pronta da classe a sua posição na vida e, com isso, seu desenvolvimento pessoal; são subsumidos a ela. É o mesmo fenômeno que o da subsunção dos indivíduos singulares à divisão do trabalho e ele só pode ser suprimido pela superação da propriedade privada e do próprio trabalho. “240

A formação da burguesia como classe foi acompanhada pela divisão do trabalho, pelo embate contra as hierarquias sociais (que acabaram por uni-la como classe em definitivo), mas também pela experiência, pela vivência, pelo costume. Em sua constituição, a classe já

240 ENGELS, Friedrich & MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. pp. 63-64. O grifo em “classe” na primeira frase é dos próprios autores. 75 estabelecida engloba em si os indivíduos, e os determina buscando a sua reprodução a partir de meios diversos. A união da classe burguesa se dá, sobretudo, segundo a lógica proposta, quando há a necessidade do embate de um inimigo aos seus interesses de classe; em períodos de relativa comodidade das relações inter-classistas os setores (e indivíduos) burgueses ocupam-se da concorrência e das disputas internas à classe.

Três considerações derivam do exposto. A primeira é a que a burguesia possuiu um momento de classe universal no combate contra a aristocracia; a segunda é que ela pode se mobilizar novamente (em níveis universais) no combate a possíveis levantes da classe trabalhadora; e a terceira é a ausência de unidade interna da classe exceto por momentos bem específicos, que seriam caracterizados como de possíveis transições.241 Crucial é destacar que Marx trata especificamente da burguesia. Quando esta ascende como classe dominante, a forma de exercício de poder sobre a classe subalterna transforma-se: no pré-capitalismo de maneira geral, a dominação é pessoal, e o fetichismo é religioso; no capitalismo, a dominação é abstrata242 e o fetichismo está consubstanciado na mercadoria. Se a classe burguesa é composta, em situações corriqueiras, por indivíduos competitivos com seus pares, estes o são por terem estabelecido uma sociedade na qual há processos individualizadores que induzem à própria competitividade; em outras palavras, esta condição de relativa conflitividade interna diz respeito à historicidade própria da burguesia. Não podemos universalizar estas características a todas as classes existentes, até porque se levarmos em consideração o apresentado sobre os camponeses no Dezoito Brumário de Luís Bonaparte ou nas reflexões a respeito da classe operária no mesmo contexto, as concepções acerca da burguesia ajudam na compreensão desta especificidade. Para a configuração do que entendemos como classe em nosso contexto, atribuiremos ao conceito uma dimensão dupla, convergente com a exposta acerca do setor campesino, mas com especificidades relacionadas ao nosso quadro de análise, radicalmente distinto daquele no qual se inscrevem os camponeses franceses (na medida em que neste o capitalismo avançava).243 A nossa

241 Tanto a que originou o capitalismo como a passadas e eventuais futuras tentativas dos trabalhadores de instituírem uma nova forma de sociedade. 242 Por dominação abstrata não nos referimos a uma forma de poder que rejeite ou não necessite de formas concretas de exercício do mesmo, mas do domínio impessoal das mercadorias e do capital, que alija os humanos de suas potencialidades. 243 Assumimos aqui a perspectiva de que fenômenos sociais de maneira geral são bem diversos no quadro capitalista e nas diversas formas societárias que o antecederam. Explicaremos como entendemos esta diferenciação no que 76 proposição para o conceito converge a presente no Dezoito Brumário na medida em que pensamos que um dos elementos fundamentais para a constituição de uma classe é a oposição de interesses, modos de vida, cultura e condições econômicas de uma classe específica em relação às demais. Concordamos, também, que para a instituição plena de uma classe social, esta deve ser formada por indivíduos de maneira ampla, extrapolando os níveis de circunscrição puramente locais e que formam uma determinada coalizão, que faça valer seus interesses de classe, produzindo as condições sociais necessárias para a reprodução de seu próprio setor. Constituição plena. Ao leitor atento é perceptível a ausência da adjetivação grifada no texto de Marx. Com isto poderíamos pensar que negamos às camadas sociais que não contemplam o segundo conjunto de caracteres (citados no parágrafo anterior) a plenitude da categoria, sendo, portanto, um conceito de aplicação e cabimento insatisfatórios. Pensamos, contudo, que esta possível ausência de integridade da categoria “classe” revela suas possibilidades de utilização no campo heurístico. Sobre este tema, temos a valiosíssima contribuição de Edward Palmer Thompson, que identifica a classe como um conceito que indica um ator social (coletivo, naturalmente) com todos os elementos citados anteriormente e que é colocado no fim de um processo de luta244; simultaneamente, a classe para o autor pode ser um importante instrumento de pesquisa por evidenciar a linha teórica seguida na medida em que é sublinhada a conflitividade no desenvolvimento histórico.245 A citação ao artigo de Thompson objetiva reiterar nossa posição de que podemos entender, no recorte no qual nossa pesquisa se insere, a classe a partir destas duas possibilidades simultaneamente, mas referindo-se a estratos sociais diferentes. Buscaremos demonstrar como a aristocracia, a partir de elementos de auto-referenciação, de sua experiência e mesmo de sua “internacionalização” (expressa no deslocamento entre os reinos)246 possui uma identidade própria, que extravasa os limites locais e que criam as circunstâncias de sua auto-reprodução (ideológica).247 As bases sobre as quais ela se apóia não

tange à classe em seguida. 244 A lógica dialética da História defendida pelo autor leva, necessariamente, a que este fim retorne ao próprio processo como agente interventor e criador de novos processos de lutas, que fortalecerão a classe a assim por diante. É claro que não é um caminho único e retilíneo, sem retrocederes etc. 245 THOMPSON, E.P. Algumas considerações sobre classe e “falsa consciência” in Aspeculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. 246Demonstraremos, no tópico dedicado à realeza, como os guerreiros emeriti ao não poderem mais ser remunerados pelo monarca, os deixam buscando quem possa fazê-lo, passando de um reino a outro. 247 De forma alguma entendemos que uma classe se (re)produz sem seu relacionamento (de exploração ou de ser espoliada) pelas demais; o que queremos destacar é como este é um processo que se manifesta em diversos 77 serão novidade se as pensarmos em uma perspectiva de longa duração, como foi abordado no primeiro capítulo; o que se anuncia com ineditismo é a exclusão de outros membros da sociedade das vias que permitiriam o acesso a ela. Desta maneira, os fatores que outrora eram edificadores étnicos248 – qualidade guerreira, vínculo diretamente estabelecido com a realeza, acesso a bens de prestígio a partir da guerra, enterramentos com suas respectivas armas etc. – agora são experiências restritas (ou em processo de restrição) a um setor, e passam a defini-lo e diferenciá- lo daquele que se encontra submetido ao próprio (os camponeses). Desta forma, buscaremos demonstrar como a aristocracia forma-se como classe em sentido pleno. Pretendemos indicar, ainda que não de maneira mais exaustiva, como este processo da formação da classe aristocrática impede a formação plena do setor camponês dadas as especificidades históricas do processo de afirmação da classe dominante. A afirmação de que a aristocracia é compatível com uma completude de classe nos induz a uma questão importante e polêmica no quadro do materialismo histórico: todos os elementos citados convergem para a tal identidade de classe; seria tal conjunção de fatores sinônima da tão discutida “consciência de classe”? Espinhosa, esta discussão já envolveu fileiras de militantes que discutiam sua importância para o processo revolucionário que aboliria a sociedade de classes. Dos rios de tinta que correram, o volume relativo dedicado a alguma sociedade pré-capitalista constituiria talvez um filete – o que é plenamente compreensível, uma vez que o objetivo destas discussões é a práxis249 imediata, envolvendo questões prementes em sua urgência. As discussões são voltadas ao estudo do papel do entendimento acerca de sua própria inserção na organização do trabalho, no processo produtivo, na classe e, por fim, no modo de produção no seio da sociedade capitalista. A estruturação desta se concretiza principalmente pelo que chamamos de coerção econômica – despojados de qualquer outra possibilidade de subsistência, os trabalhadores vêem-se obrigados a vender sua força de trabalho a capitalistas, detentores dos meios de produção, instrumentos de trabalho, matéria-prima etc. O trabalhador só é capaz de adquirir elementos fundamentais à sua produção e reprodução a partir do mercado e

níveis, especialmente a relação da classe consigo mesma (entre seus membros), que é o elemento central deste capítulo. 248 WELLS, Peter S. Beyond Celts, Germans and Scythians – Archaeology and Identity in Iron Age Europe. London: Duckworth, 2004 e HÄRKE, Heinrich. “Warrior Graves”? The Background of the Anglo-Saxon Weapon Burial Rite. In Past & Present, 126. Oxford: Oxford University Press, 1990. 249 Adotamos o termo práxis pela sua evocação de militância política em função de um posicionamento teórico- político claro, e vinculado mormente ao materialismo histórico. 78 do comércio, e daí sua necessidade em oferecer-se ao capitalista para que, em troca da exploração de sua força de trabalho, seja entregue a ele seu salário. Na modernidade, portanto, a coação à inserção no modo de produção está diretamente ligada a fatores econômicos; não há necessidade imediata de recorrer a elementos extra-econômicos. Com esta afirmação não pretendemos negar a elementos políticos, culturais etc. um papel importante na afirmação e reprodução do capitalismo, mas sublinhar que mesmo que um número significativo de indivíduos (trabalhadores) tenha plena ciência de toda a sua estruturação e dinâmica, eles ainda assim estariam englobados pelo sistema e obrigados a recorrer ao comércio para adquirir seus itens de subsistência, e para tal vender sua força de trabalho. Conhecimento e saber não permitem alternativa societária, a não ser que sejam transformados em combustíveis à ação prática com este objetivo. O poder nesta sociedade, portanto, pode ser passível de entendimento holístico sem que com isto seja necessariamente posto em cheque. O avanço do conhecimento científico250 também permite uma distinção qualitativa dos saberes que a humanidade produziu acerca de si mesma em relação aos períodos anteriores. A conjugação destes fatores possibilita a existência da “consciência de classe”, no sentido em que os atores sociais entendam racional e perfeitamente o seu papel no edifício social, e o quanto disto deriva da sua inserção no processo produtivo. As classes subalternas no pré-capitalismo são caracterizadas de maneira diferente dos proletários modernos. Geralmente possuem acesso direto ao meio de produção fundamental (a terra), detém a posse dos seus instrumentos de trabalho etc. As taxações que incidem sobre eles incidem sobre as rendas do seu trabalho ou diretamente sobre uma parte do seu tempo de trabalho – dias devidos de serviço, por exemplo. O enquadramento nas relações de poder não pode ser entendido, portanto, como exclusivamente detido sobre o campo econômico, e por isso a tradição do materialismo histórico convencionou estudar a exploração do trabalho nestas sociedades a partir da coação extra-econômica. Uma das formas de expressão desta é a religião: ela tinge a visão de mundo dos homens com elementos sobrenaturais e sagrados, e vincula formas de poder diversas a eles. Este é um fenômeno que acontece em todas as classes, embora com diferenças diversas em suas manifestações devido aos condicionantes de classe. Conforme pretendemos demonstrar, a aristocracia do nosso recorte tem uma identidade de si clara; porém não há elementos que

250 Vinculado dialeticamente ao avanço do capitalismo. 79 indiquem que ela entenda que sua posição social derive de sua inserção no processo produtivo. Poderíamos reter a ideia de que a ela é possível atribuir uma consciência de classe, mas que esta é marcada por uma especificidade, cuja maior característica é uma identidade e autoformação ideológica a partir de elementos diversos. A quantidade de exegeses necessárias, aliada a eventuais confusões derivadas de leituras voltadas à contemporaneidade nos faz abandonar tal premissa, preferindo a ideia de uma identidade de classe. Não é possível trabalhar esta autoidentidade e formação de classe em nível ideológico se deixarmos de lado as considerações a respeito do que entendemos por ideologia. Fá-las-emos imediatamente, portanto.

Ideologia Um professor de biologia, ao dar aula para o Ensino Fundamental ou Médio, pode ser facilmente posto em maus lençóis ao ver-lhe formulada a seguinte questão, proposta por um de seus alunos: “O que é vida?” Se a disciplina for História, a questão com mágico efeito de “emudecimento” diz respeito ao conceito de tempo; à Geografia, a questão se vincula, naturalmente, ao espaço. A dificuldade na qual esbarraria um bom profissional destas áreas não diz respeito exclusivamente a uma incapacidade em níveis teórico-conceituais, mas à enorme quantidade de possibilidades que se erigem a partir destas questões. A hesitação, para um profissional de qualidade, não advém da falta de conhecimentos a respeito da questão, mas da amplitude dos mesmos. Como é de se esperar, cabe-nos a síntese e o posicionamento, e um exercício interessante seria a explicitação desta afirmação. Deparamos com semelhante problema ao elaborar esta introdução, na qual caberia explicitar como utilizaremos o conceito de “ideologia”, questão central deste capítulo. Poderíamos tratá-la sob diversos ângulos, assim como desenvolver uma linha de raciocínio que elaborasse uma espécie de genealogia do conceito, acompanhando seu desenvolvimento em meio a um campo conceitual bem tensionado e aguerrido. Sim, a Ideologia é um campo de batalhas. Muito diverso dos que Marx tanto descreveu e denunciou n'A Ideologia Alemã, nas quais há refregas campais onde ninguém se fere ou morre exceto aqueles elementos típicos de determinadas formas de pensar, nos quais o embates travados no campo das ideias são os responsáveis diretos e imediatos pela transformação da

80 sociedade.251 A ideologia faz parte do mundo, torna-o cognoscível, confere sentidos, abrange a cultura, os valores, hábitos, modos – cogitandi, vivendi, operandi, “morrendi”etc.252 Jamais será “epifenomênica”.

Em sua sanha por combater o idealismo reinante, que tornava o mundo material derivativo do espiritual e, por consequência, um reflexo secundário de “vontades superiores”, os “pais fundadores” do materialismo histórico estabeleceram o conjunto de pontos a partir dos quais seria gerada a ideologia. Temos que

“a produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade e com as relações materiais dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens ainda aparece, aqui [neste estudo], como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo vale para a produção espiritual, tal como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. […] Totalmente ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui [na análise de Marx] se eleva da terra ao céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar-se aos homens de carne e osso; […]. Também as formações nebulosas na cabeça dos homens são sublimações necessárias de seu processo de vida material, processo empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais. A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, bem como as formas de consciência a elas correspondentes, são privadas, aqui [na lógica de Marx e Engels], da aparência de autonomia que até então possuíam. Não têm história, nem desenvolvimento; mas os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar.”253

Uma recorrente crítica ao trecho citado (e à filosofia marxiana em geral) deriva da utilização do verbo “emanar” na tomada de posição quanto à origem das ideias (o mundo material, a estruturação e organização da vida) etc. Tal proposição, tão duramente criticada, encerraria o determinismo mecanicista econômico de Marx e Engels. O trecho selecionado,

251 ENGELS, Friedrich & MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. p. 85. 252 Cabe aqui, contudo, uma ressalva importante. A enumeração de aspectos que poderíamos tratar como extra- mentais correspondem ao nosso entendimento que estes elementos não podem ser entendidos separadamente, autonomamente. Se os enumeramos, era apenas para reforçar a conexão dialética entre ideologia e práticas sociais – muito embora elas não sejam automáticas ou determinantes, como veremos ao comentar o caso da lealdade guerreira à realeza, por exemplo. 253 Engels & Marx. op. Cit. pp. 93-94. 81 contudo, se lido até o final com a atenção digna das próprias possibilidades que gesta, afirma não apenas a imperiosa necessidade da formulação ideológica no processo da vida material (“formações nebulosas como sublimações necessárias”), mas também o caráter necessariamente dialético do processo – o pensar produz efeitos concretos, que lhes são exteriores. A autonomia que é negada anteriormente ao “mundo das idéias”, portanto, se afigura para nós no sentido da crítica a uma autonomia absoluta que perde de vista, inclusive, a materialidade de seus mecanismos de produção e difusão, sem que se deixe de reconhecer à ideologia, contudo, a sua própria capacidade produtiva.

Adotamos, portanto, neste estudo, a perspectiva de que não é possível abordar os fenômenos ideológicos em separado do conjunto da vida social. Em uma sociedade marcada por profundas clivagens sociais, e, portanto, diferenciada em suas condições de vida, é razoável que surjam diferentes formações ideológicas que, dialeticamente, retroalimentem as diferenciações sociais. A questão não é colocar a economia acima da ideologia ou vice-versa. Para o materialismo histórico, a vida deve estar acima de tudo. Cabe, contudo, em um capítulo voltado para a temática da ideologia, estabelecer os parâmetros e objetivos com os quais trabalharemos. A tal linha evolutiva citada, por demais longa e provavelmente enfadonha, será deixada de lado em prol da enumeração dos critérios utilizados – além, naturalmente, dos já brevemente apresentados na referência a Marx e Engels. Em sua obra dedicada ao estudo da ideologia, Terry Eagleton enumera dezesseis possibilidades de definições do termo, das quais por ora destacaremos: a) o processo de produção de significados, signos e valores na vida social; b) um corpo de ideias característico de um grupo ou uma classe social; c) ideias que ajudam a legitimar um grupo político dominante; d) ideias falsas que ajudam a legitimar um grupo político dominante; e) processo de identidade; f) ilusão socialmente necessária; g) a conjuntura (no sentido de conjunção) de discurso e poder; h) o veículo pelo qual atores sociais conscientes entendem o seu mundo; i) conjunto de crenças orientados para a ação; j) o processo pelo qual a vida social é convertida em realidade natural.254 No capítulo dedicado à definição do próprio conceito, Eagleton substitui a emissão de uma fórmula definitiva elencando possibilidades, tomando o cuidado de enumerar quais dentre elas são comutáveis e articuláveis. Consideremos as que acabamos de elencar, levando em

254 EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Boitempo editorial, 1997. pp. 15-16. 82 consideração a natureza de nossa pesquisa. Conforme o título do capítulo e o posicionamento explicitado acima, entendemos que seja impossível, em uma sociedade dividida em classes255 (e marcada por uma crescente divisão social) pensarmos em termos da existência de uma ideologia única que atravesse toda a sociedade. Cada um destes setores tem sua própria ideologia (pela própria vivência diferenciada), muito embora alguns possam compartilhar de alguns elementos no seio das mesmas.256 O nosso estudo verterá, sobre a ideologia da aristocracia, e o estabelecimento dos itens enumerados acima está diretamente ligado a esta proposição. Desta maneira, o item “b”, “ um corpo de ideias característico de um grupo ou uma classe social” parece-nos adequado e de grande importância em nosso estudo.257 Os itens “c” (ideias que ajudam a legitimar um grupo político dominante) e “d” ( ideias falsas que ajudam a legitimar um grupo político dominante) aparentemente são auto-excludentes. Se tratássemos aqui da sociedade industrial, a dúvida não seria dirimida em sua totalidade; de qualquer forma, no nosso recorte, ela adquire verniz próprio. As ideias que uma sociedade nutre (e/ou pode nutrir) acerca de si própria diferem radicalmente se forem elaboradas em nossa contemporaneidade ou no século XV, por exemplo. A existência da História, crítica, científica, nos nossos termos só é possível com o advento da ciência moderna; além disto, os sentidos da História (felizmente) ainda estão hoje em disputa. A diferença é que, com o aparato crítico do qual já dispomos, podemos considerar melhor o posicionamento acerca destes fatores na composição da paisagem ideológica dos que discutem. Tal preparação, contudo, era inexistente no período que trataremos, e daí a diferenciação muito nítida entre ideias sobre a sociedade (produzidas no bojo do processo histórico) e ideias falsas sobre o mundo não nos parece exatamente procedente.258 Com isso não queremos negar ao conjunto societário capacidades

255 Utilizando aqui exclusivamente por efeito didático a divisão mais simples possível entre sociedades sem classes e com classes como a mutação e o abandono da sociedade tribal em prol de uma mais hierarquizada. Anteriormente já exploramos esta questão de modo mais detido, e aqui optamos pela simplificação para que o ponto central (presença ou não de hierarquias perenes) fosse mais intensamente focado. 256 Conforme o apontado no tópico voltado à discussão do conceito de classe, esta unificação da ideologia expressa- se sobretudo ao nível da aristocracia; aos camponeses dependentes, pela própria circunscrição e delimitação territorial, pensamos que o nível de homogeneização ideológica seja consideravelmente mais ralo que o do mundo aristocrático. 257 Com isto não queremos indicar a inexistência de elementos comuns aos diversos setores sociais; reconhecemos a existência dos mesmos, mas pensamos que estes adquirem tons diferenciados em sua expressão conforme a inserção social. O cristianismo de um aldeão dependente certamente será exercido e vivenciado de maneira diversa de um bispo cujas posses fundiárias são maiores que as do rei com o qual se vincula, por exemplo. 258 Em síntese, apenas com o surgimento e exercício do conhecimento científico que é possível a uma sociedade 83 intelectuais sofisticadas, mas conferir à sua própria intelectualidade historicidade e materialidade. Outro passo necessário consiste em considerar a inserção social dos agentes históricos, e com isso as formas e os circuitos de difusão da ideologia que era por eles produzida. Grande parte dos elementos que trataremos aqui diz respeito a uma aristocracia paulatinamente mais voltada para si (no sentido de blindar seus processos formativos aos seus próprios membros), e os tópicos aqui tratados, assim como os textos primários que nos servimos para a elaboração do trabalho, são escritos por aristocratas e voltados para o mesmo setor social, em um processo infinitivo de auto-formação. Também aqui é necessário pontuar como que, por exemplo, o tema da legitimação, um topos razoavelmente corrente na historiografia tupiniquim (a julgar pelas atas e apresentações em congressos), parece-nos sem sentido frente a um discurso plenamente afinado à uma postura naturalizante, da mesma forma que soa-nos estranho ter de explicar a alguém cuja vida de privilégios vem de berço o porquê de viver-se tão bem. Legitimação frente ao conjunto populacional geral não pode ser uma das formas destas produções escritas pela sua restrição na circulação; auto-legitimação nos parece indicar uma espécie de análise de consciência por parte daqueles que detém o poder que, para ser gentil, seria anacrônico.259 A questão ganha complexidade na medida em que deixamos os elementos puramente escritos. A cultura material que analisaremos, isto é, os vestígios arqueológicos, ajudam-nos a pensar outras formas de circulação da própria ideologia. Espadas, lanças etc. são normalmente marcadas, carregam padrões e códigos – se não soldados, ao menos cravejados. Seria irresponsável não pensar que, mesmo que não fossem ricamente adornadas, o porte destas armas já carregam em si uma transmissão de ideologia clara – ascendência social (diferença de acesso à riqueza e ao status guerreiro) e violência potencial. Estas veiculações são mais nítidas no exemplo citado, mas também são atribuíveis ao pensarmos na poligamia (masculina) aristocrática, na proximidade à realeza e em todos os tópicos que abordaremos adiante. É difícil pensar, portanto, que o que se desloca apenas internamente à classe nos registros escritos (ou cantados) não sejam projetados e expressos em outras formas de contato da aristocracia com a

desvendar sua próprias estruturação e dinâmica. Destarte, os intelectuais anteriores à ciência não são capazes de produzir ideias que expliquem a sociedade e seu conjunto que não envolvam elementos sobrenaturais (por exemplo) levando-nos a crer que a diferenciação rígida entre ideias verdadeiras ou falsas que ajudem a determinar a ordem dominante irrelevante. 259 Escolhemos citar os itens levantados por Eagleton que envolviam a legitimação por entendermos que a recorrência se manifesta forte a ponto de ser tomada praticamente como lugar comum nos encontros de medievalística. 84 classe subordinada a ela. Se é possível pensar em legitimação para o nosso recorte, ela deve ser pensada de forma multiarticulada, levando em consideração todos os pontos de contato entre o setor aristocrático e o campesino, o que demandaria uma pesquisa de amplo fôlego cujo produto final não é o principal eixo de nosso trabalho. Portanto, deixaremos esta questão de lado. Conforme a ideia desenvolvida acima, também defendemos o aspecto essencial da naturalização das condições sociais. Não no sentido de atribuí-las à natureza das coisas, à natureza humana ou algo que o valha. Porém, nossa investida projeta-se, sobretudo, na pressuposição. Sob capitalismo, a “utensilhagem mental” (em termos medianos) tem dificuldades em fechar seu circuito e torná-lo operante enquanto o mercado – a circulação de mercadorias – estiver ausente da paisagem ideológica. Sob o contexto pré-capitalista, não pode estar ausente o elemento que hoje chamaríamos de sobrenatural. Não pretendemos, com tal afirmação, partir para o estabelecimento de analogias e esquematismos automáticos entre a forma mercadoria e o sobrenatural; estamos apenas destacando o quanto do modus cogitandi destas sociedades é tributário e tinto de elementos sobre-humanos, da mesma forma que se deve conceder destaque à inserção destes elementos nas relações do período, sendo esta forma de mediação cumulativa com outras possíveis. Esta mediação, contudo, é essencial, por ser o elemento em questão um pressuposto de todas as práticas sociais de nosso recorte. É neste sentido que entendemos o ponto “f”, da “ilusão socialmente necessária”, isto é, que a ideologia (de classe) sobre a qual nos debruçaremos diz respeito a algo pressuposto (cuja explicitação é desnecessária para os atores sociais envolvidos), e esta pressuposição é necessária no sentido da estruturação das relações de poder e dominação social vigentes, uma vez que é o eixo articulador do pensamento desta sociedade. A “ilusão” aqui não é renunciada para evidenciar o ancoramento destas formas de pensar no mundo sobrenatural. Os itens “h”260, “i”261 e “j”262 podem ser soldados aos anteriores sem problemas, uma vez que as ponderações possíveis acerca dos itens inclusos neles já foram mencionadas. A única explicitação que cabe é ressaltar o elemento “consciente” no item “h”, uma vez que “consciência” e “racionalidade” são plenamente conciliáveis com o fenômeno do fetichismo.263

260 “O veículo pelo qual atores sociais conscientes entendem o seu mundo”. 261 “Conjunto de crenças orientados para a ação.” 262 “O processo pelo qual a vida social é convertida em realidade natural.” Repetimos as colocações em nota para evitar que seja necessário ao leitor retornar páginas atrás para identificar o assunto. 263 Pensamos ser difícil alguém negar racionalidade a um grande empresário ou equivalente no mundo contemporâneo; tampouco seria difícil negar a esta mesma pessoa o apartamento dos demais seres humanos, 85

A “conjuntura (no sentido de conjunção) entre discurso e poder” aqui será entendida como o elo entre esses elementos, a dialética como condição de existência dos mesmos, e não uma necessária e automática superposição entre discurso e práxis. O item “a” - o processo de produção de significados, signos e valores na vida social - parece-nos convergir para o elemento “e”: “processo de identidade”. O objetivo de abordar a ideologia no sentido que lhe atribuímos ao longo deste capítulo é o de captar a formação de uma identidade aristocrática, na qual convergem elementos diversos. Um tópico importante a ser ressaltado é que, apesar de possuírem algumas especificidades, a aristocracia eclesiástica compartilha, quanto aos aspectos essenciais, de elementos identitários da aristocracia leiga. Ambas confluem, no nosso entendimento, para a formação de uma ideologia aristocrática. Trataremos, neste capítulo, entre outras coisas, de objetos. Não apenas no sentido do conceito de certas filosofias que tratam do que é exterior ao sujeito, mas na acepção da palavra na sua caracterização atribuída pelo senso comum mesmo. O que não podemos perder de vista, contudo, é que objetos, em sentido amplo, são pluridimensionais – são cruzes, martelos, estolas, espadas; simultaneamente, são relações sociais, expressam, apresentam, representam, (re)criam e produzem porque há, em cada um deles, muito da sociedade que os produziu, investido, petrificado, discernível. Há, em cada machado, osso ou pedra remanescente do período, sua própria medievalidade. E ela não está expressa apenas eu seus tons, cores e padrões inscritos, bordados. Ela está expressa principalmente naquilo que cala, no que oculta. Mas a humanidade é grande demais para se esconder: como um gato que deixa sua cauda visível ao se dispor atrás de uma pedra, os objetos trazem e traduzem expressões daquela era perdida. O desafio ao lidar com eles é a recuperação.264 Ao decifrar objetos, devemos recuperar humanidade.

Estabelecido nosso posicionamento acerca do tema da ideologia, seguiremos nosso estudo para uma análise da infância no âmbito da aristocracia, porque atribuíamos a esta um caráter fundamental no processo de difusão da ideologia; passaremos a uma análise do que

fenômeno cuja essência tende à exponenciação em nossa modernidade líquida, ou pós-moderna. A ideia de modernidade líquida traduz aqui apenas a idéia de pronunciamento cada vez mais evidente e poderoso de tendências do capital já analisadas por Marx, mas que atravessam as raias do absurdo em nosso mundo. Conforme apresentamos anteriormente, racionalidade e consciência não são sinônimos de liberdade. 264 Aqui a polarização destes verbos (que poderiam ser tomados como sinônimos) estabelece que a abordagem histórica não deve limitar-se a reconstruir os mundos pretéritos, mas estabelecer sua própria historicidade, favorecendo a compreensão (nossa e dela) e não a reprodução da vida passada. 86 chamamos de “apetrechos” da aristocracia, nos referindo especificamente aos ornamentos bélicos que traduzem sua condição social e ao mesmo tempo expressam sua afirmação quasi monopolística da atividade guerreira. Seguiremos, então, a um breve estudo da música neste período, assim como das mulheres, da realeza e do salão; a forma escolhida para enumeração diz respeito ao entendimento de que estes são elementos fundamentais para a afirmação da ideologia aristocrática no período de que estamos tratando – os guerreiros derivam sua posição do relacionamento direto com a realeza, e ambos convivem quotidianamente nos salões. Às mulheres é reservado um espaço para a discussão da circulação destas não apenas como bens de prestígio, mas também como elemento fundamental na reprodução da aristocracia no sentido mais básico da palavra. Nossa análise da ideologia aristocrática não estaria completa se não levássemos a cabo uma análise sobre a morte neste período e neste setor da sociedade.

Infância A Idade Média não conheceu crianças. Gregos e romanos as conheceram, mas a eles teria se seguido um intervalo, entre os séculos V ao XV, em que haveria apenas adultos em miniaturas. Não há tenra idade quando ela é Média. Esta afirmação pode ser encontrada em um dos trabalhos seminais da historiografia contemporânea, a obra de Philippe Ariès e Pierre Riché acerca da infância e de seu caráter histórico. Recorre-se mesmo à afirmação de que a afeição e o amor às crianças teriam sido despercebidos, sufocados ou mesmo inexistentes durante este período. A infância só teria voltado a ser percebida por volta do século XVII.265 O sucesso da idéia foi grande, celebrada em sua época de lançamento, nos anos sessenta (no Brasil seria editado passados quase vinte anos). Na década seguinte, a idéia ainda vigorava, como podemos constatar na obra de Barbara Greenleaf, segundo a qual “as pessoas consideravam a infância um breve e sem importância prelúdio para a vida adulta [...] eles tanto ignoravam quanto batiam ou as criavam sem cuidado... Quando sérios pensamentos eram direcionados a elas, as pessoas ou as concebiam como adultos em miniatura, ou como animais peculiares e ainda em formação”.266 Estudos outros felizmente seguiram divergentes caminhos, criticando as posturas

265 Para tal perspectiva nos baseamos em duas edições: ARIÈS, P. História Social da criança e da família. Rio de Janeiro: Livros técnicos e científicos, 1981; ARIÈS, P. Centuries of Childhood: A Social History of Family Life. New York: Alfred A. Knopf, 1962. 266 GREENLEAF, Barbara. Children Through the Ages: A History of Childhood. New Yok: McGraw-Hill , 1978, p. Xiii. Aqui em uma tradução livre minha. 87 anteriores e demonstrando, a partir do contato com a Antropologia, como estas relações são mais complexas, e a própria documentação de época parece expressar o reconhecimento, em algum nível, da diferenciação entre a vida adulta e a fase infantil, ainda que, naturalmente, de maneira diversa da forma como a encaramos na nossa contemporaneidade. É mister ressaltar aqui, neste sentido, os trabalhos de Bárbara Hanawalt267 e David Herlihy.268 Os anglo-saxões teriam, segundo um artigo dedicado ao tema, uma postura dúbia e até certo ponto dicotômica em relação às suas crianças, uma vez que eles reconheciam em certos níveis a especificidade desta fase, porém não as tratariam muito bem, segundo Mathew Kuefler.269 Talvez o caminho mais interessante não seja a simples comparação entre as formas de encarar as crianças270 e as práticas decorrentes destas (e vice-versa) com as de outras sociedades, as nossas em especial, mas primeiramente entender a sua dinâmica e funcionamento dentro de um quadro sociológico mais amplo para, a partir daí, estabelecer tal comparação. Por mais simples e óbvio que isto possa parecer (conectar a infância e a instrução com outras dimensões sociais), é válido lembrar quão (relativamente) recente é a obra de Bourdieu e Passeron sobre o papel desempenhado pela educação na reprodução das classes sociais na moderna sociedade industrial.271 As fontes com as quais trabalharemos não tratam explicitamente da questão da infância, como seria de esperar. Contudo, podemos perceber algumas menções diretas e indiretas à mesma, e nos revelam elementos cruciais na exposição de uma lógica mais ampla. O setor eclesiástico, por exemplo, admitia a presença de monges e freiras crianças, chamadas de seculares.272 Um dos principais cronistas da época e autor de algumas de nossas fontes, Beda, o Venerável, teria ingressado, segundo o próprio, na vida monástica com sete anos

267 HANAWALT, Bárbara. The ties that bound: Peasant Families in Medieval England. Oxford: Oxford University Press, 1986. 268 HERLIHY, David. Medieval Children in Essays in Medieval Civilization: The Walter Prescott Webb Memorial Lectures. Austin and London: University of Texas Press, 1978. 269 KUEFLER, Mathew. “A Wyred Existence”: attitudes toward children in Anglo-saxon England in Journal of Social History, Vol. 24, No. 4 (Summer, 1991). Fairfax: George Mason University Press, 1991. p. 823. 270 Deixaremos claro, mais uma vez, que ao tratarmos “criança” aqui estamos nos referindo aos infantes aristocratas. Não se trata de uma generalização que enquadre a primeira fase da vida em toda a sociedade; antes, nosso objetivo está ligado ao entendimento dos condicionamentos de classe já no início do processo de socialização. 271 BOURDIEU, Pierre; PASSERON, J.C. A Reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. É mister ressaltar que o revolucionário italiano Antonio Gramsci já havia trabalhado com o tema, mas sua inserção no meio acadêmico ainda não possuía a projeção que ora assume. 272 Traduzimos por seculares o que a historiografia inglesa costumou chamar de oblates, que significa uma pessoa que se oferece para trabalhar em um mosteiro e nele viver, mas sem estar sob votos monásticos ou totalmente submetido à regra monástica. Também pode significar um membro leigo de qualquer associação católica devotada a um serviço religioso específico. 88 de idade. “[O autor] Que nasceu no território do mesmo mosteiro [mosteiro dos apóstolos Pedro e Paulo], quando tinha sete anos, fui entregue pelas mãos da minha família para ser criado pelo reverendíssimo abade Bento, e depois Ceolfrido.”273 O mesmo autor cita a presença de crianças em vários lugares, inclusive uma que não chegava aos três anos de idade, chamado Ésica,274 e também figura em sua crônica a filha de uma freira no mesmo convento.275 Não queremos, contudo, apontar que tais crianças, os “seculares”, eram tratadas da mesma forma que os demais monges e freiras. A existência de uma regra específica para eles, que os obrigava a estar sempre na presença de algum mestre, obviamente um adulto, sob sua supervisão, demonstra que seu cuidado se dava de maneira diferenciada. Ao contrário, contudo, do que determinada corrente historiográfica sugere, e o caminho tomado por ora por nós poderia sugerir, a educação e o letramento não eram exclusividades das camadas clericais. Como exemplo, poderíamos citar a Vita Sancti Guthlaci auctore Felice, na qual um nobre do século VII, de ascendência real da Mércia, descreve sua dedicação ao aprendizado na infância: “este infante de maravilhosa natureza foi instruído nos nobres ensinamentos dos antigos nos salões de seu pai.”276 Os tais salões reais citados nesta fonte certamente contavam com a figura de bispos e clérigos outros (eram espaço de circulação de aristocratas em geral), e a educação poderia ter sido efetivada pelas figuras da Igreja, caso não fosse explicitado na fonte que se trata de “nobres ensinamentos dos antigos”277. A conduta das crianças também parece ser algo de certa forma esperado, de maneira que, em sua infância, Cuthberto (como aristocrata leigo) brincava e competia com as demais crianças em jogos de pulo, corrida, entre outros exercícios, incluindo brigas.278 Já Guthlaco é elogiado em sua hagiografia por agir de maneira diferente das crianças de sua idade; ele nunca teria causado problemas para seus pais ou zeladores ou para os bandos de crianças de sua própria idade, não imitando a imprudência típica de sua faixa etária. Tampouco imitava os diferentes cantos de

273 Qui natus in territorio eiusdem monasterii, cum essem annorum septem, cura propinquorum datus sum educandus reuerentissimo abbati Benedictio, ac deinde Ceolfrido; cunctumquee x eo tempusu itae in eiusdem monasteriih abitatione peragens. [..]. BEDE. Historical Works. Trad. e ed. J.E. King. Cambridge (Mass.) – London: Havard University Press, 1994. Vol. 2, Book V, Cap. XXIV. Pag.: 382. 274 Erat in eodem monasterio puer trium circiter, non amplius, annorum Aesica nomine[..]. BEDE. Op cit.. Vol. 2, Book IV, Cap. VIII. Pag.: 48. 275 Quaedam de numero virginum quae erat filia ipsius canalis [...]. Idem. Vol. 2, Book V, Cap. 3, pág. 208. 276 Cap. XI: this infant of marvellous nature was instructed in the noble learning of the ancients in his father’s halls. Apud BRENTANO, R. (ed.). The Early Middle Ages: 500-1000. New York: Free Press, 1964. pag. 218. 277 Pensamos aqui que estes ensinamentos dizem respeito a um estilo de vida anterior à cristianização. 278 FARMER, D.H. & WEBB, J.F. (trad.) The age of Bede. London, Penguin Books, 2004. Pag.: 45. 89 diferentes pássaros, e ainda era prestativo com seus pais, obediente aos idosos, afetivo com seus irmãos e irmãs de criação.279 Da mesma maneira, Eddius Stephanus, ao tecer sua Vita Wilfridi demarca o grau de singularidade que a infância do santo reserva. As hagiografias do período parecem apontar claramente para o entendimento de que o comportamento a ser esperado pelas crianças é bem singular, reconhecendo assim, em algum nível, guardadas as devidas proporções do weltanschauung do período medieval, uma psicopraxia diferenciada quanto aos infantes. A proteção jurídica voltada às crianças era inequívoca. Figuram na documentação: apoio e suporte pela família do pai às crianças caso o mesmo morresse quando jovens,280 a despeito do direito de permanecer com a mãe;281 a família do pai deveria administrar as posses do mesmo até que os herdeiros menores pudessem assumi-las legalmente;282 eram elas as primeiras a terem pagas as suas partes no wergeld, dentro de vinte e um dias a partir do assassinato;283 possuíam ainda direito a uma parte da propriedade fundiária do pai mesmo não estando em seu testamento;284 tinham o direito de usufruir do apoio do pai em casos de divórcio;285 e suporte da coroa caso fossem abandonados por ambos os pais.286 Destacam-se ainda as indicações etárias mínimas para imputabilidade legal: para um rei do Wessex do século VII, dez anos era a idade a partir da qual alguém podia ser responsabilizado por roubo,287 e os contemporâneos reis do Kent, Hlothhere e Eadric, consideravam a mesma idade (dez anos) para que um garoto pudesse administrar seu próprio patrimônio fundiário.288 A cobertura jurídica não era capaz, contudo, de acabar com os problemas que a infância podia enfrentar. Além dos óbvios índices de infanticídio e de mortalidade infantil;289 comuns ao mundo medieval como um todo, crianças ilegítimas tinham poucos direitos.290 O grande espectro que as assombrava, contudo, era o da escravidão. Elas poderiam ser reduzidas à escravidão e

279 Cap. XII-XIV; Apud Brentano, p. 218. 280 Ine de Wessex, 7.2. in WHITELOCK, Dorothy (ed.). English Historical Documents, Vol.1. London: Constable, 1979. pag. 403. 281 Hlothhere and Eadric, 6, Idem, pag. 394. 282 Idem. 283 LOYN, H. Kinship in Anglo-Saxon England in Anglo-Saxon England nº: 3. Cambridge: 1974. p. 204. 284 Idem, p. 207. 285 Ethelbert, 78 a 81. WHITELOCK, op.cit., p.403. 286 Ine, 26, Idem. P. 402. 287 Ine, 7.2 Idem, p. 400. 288 Hlothhere and Eadric, 6, Idem, pag. 394 289 A proibição legal desta prática consta em Ine, 26. Idem. 290 Ine, 27. Idem. 90 imediatamente vendidas como tal como punição ao roubo;291 e também poderia sem vendidas como tal se os pais fossem extremamente pobres.292 As guerras intestinas ao conjunto de reinos, assim como aquelas travadas com os reinos celtas também contribuíram sensivelmente para o apresamento relativamente farto de escravos, e o destino de muitos deles foi o continente.293 Com este dado em mente, é razoável conferir um mínimo de plausibilidade ao relato de Beda acerca da motivação do papa Gregório I para a conversão da Inglaterra, de que seria a numerosa quantidade de jovens escravos anglo-saxões em Roma o fator primário de sua iniciativa. Se assim for, seria razoável pensar que muitos dos que provocaram a piedade de Gregório tenham sido escravos dos próprios clérigos, uma vez que esta prática, além de comum, manteve-se por um bom tempo. No início do século VIII, o arcebispo da Cantuária tentou inutilmente libertar uma escrava chamada Eppa, originária do Kent, de nobre extração e que pertencia ao abade de Glastonbury.294 A norma jurídica parece capaz de nos esclarecer uma série de questões. Associada à garantia de subsistência das crianças encontra-se o problema da posse de terras. Os meios legais visam, de certa maneira e pela própria característica de ser generalizada (nos liames de vida do rei e da amplitude do reino295), a subsistência não de uma criança específica ou de um conjunto delas, mas a garantia da reprodução de determinado modus vivendi, que é possível devido à estruturação e distribuição das formas de status, riqueza e poder no interior do quadro societário. Em outros termos, as leis esforçam-se para reproduzir a classe dentro de seus termos especificamente político-econômicos. A escravidão inspira cuidado. Uma característica importante da mesma no mundo clássico é que virtualmente qualquer pessoa poderia ser reduzida a ela independente de sua inserção na sociedade.296 No contexto de nossa análise, a questão merece mais cuidados. Conforme citamos anteriormente, uma nobre era mantida como posse do abade de Glastonbury. O arcebispo da Cantuária, contudo, esforça-se por libertá-la. Detemos poucas referências claras e diretas quanto à questão da escravidão, e, dentre essas, poucas são as que mencionam tal destino

291 Ine, 7.2. Idem, p. 400. 292 PELTERET, D. Slave raiding and slave training in early England in Anglo-Saxon England nº: 9. Cambridge, 1981, p. 103. 293 Idem. Pp. 104-105. 294 Idem. P. 112. 295 Em nosso recorte as leis eram estabelecidas pelos reis, e poderiam ser alteradas pelos seus sucessores; da mesma forma, só eram válidas na jurisdição coberta pela realeza, o reino. 296 Como um exemplo famoso, poderíamos citar a redução de Platão à condição escrava. 91 acometendo homens de alta extração social. Sim, homens, pois aparentemente são mais abundantes as referências às mulheres.297 Os dados de que dispomos sugerem que os aristocratas derrotados não sobreviviam à refrega, de maneira geral. Destarte, poderíamos indicar que a escravidão nos remete a um problema, um medo simultaneamente de gênero e de classe. A criação fora de casa era uma possibilidade para determinadas crianças. Apesar de haver controvérsia quanto a constituir ou não um costume, (termo que prevê uma constância, amplitude e reprodução mínimas) sua existência é dada como certa. Jack Goody afirma que tanto recepção e cuidado fora de casa (como forma de “adoção”) constituíam expressões fundamentais tanto da sociedade anglo-saxônica quanto da Viking,298 ao passo que Dorothy Whitelock duvida de um hábito de “adoção” com tamanha difusão, mas reconhece que jovens nobres podem ter sido criados na corte, enquanto os da Igreja poderiam ser criados como comensais episcopais299. Quanto às famílias camponesas, é provável que o nível de forças produtivas obrigassem a participação efetiva das crianças (a partir de uma certa idade, naturalmente) no processo de produção doméstico. Parece-nos arriscado a afirmação de que “as crianças aldeãs tenham sido enviadas a famílias mais abastadas para conseguirem rendas extras para sua família de origem”.300 Amas-de-leite também parecem ter sido um hábito na aristocracia, uma vez que, inicialmente proibida, posteriormente foi autorizada pela Igreja. Em uma carta endereçada a Agostinho, o papa Gregório I condena o costume;301 nas leis de Ine de Wessex, descobrimos que a alta aristocracia, os nascidos entre os gesiths, normalmente possuem “cuidadoras” para seus filhos.302 A figura mítica de Beowulf também cresceu longe de casa. O próprio nos informa que possuía “sete invernos quando o senhor dos tesouros, o gracioso governante das gentes, recebeu- me de meu pai. O rei Hrethel me teve e me manteve, deu-me riqueza e comida, manteve em

297 Assim como ouro, anéis, espadas, escudos e outros itens adornados, as mulheres disponíveis aos anglo-saxões parecem ser motivo de grade fausto. Este ponto será alvo de atenção mais detalhada à frente. 298 GOODY, J. The development of the family and marriage in Europe. Cambridge: Cambridge University Press , 1983. p. 68. 299 Por comensais, traduzimos household,que pode significar tanto o conjunto de pessoas que habitam determinado local como o mesmo incluindo os servos e criados em geral. WHITELOCK, Dorothy. The Beginnings of English Society. London: Penguin Books, 1952. 300 GREENLEAF, B. Op. Cit. P. 35. 301 Plummer. Op. Cit. P. 55 302 Ine, 67. WHITELOCK. Op. cit. Pag. 406. 92 mente nossos laços familiares.”303 Kuefler nota que, assim como Beowulf sugere, esta relação social parece estar imiscuída no sistema relativamente complexo de parentesco anglo-saxônico. O autor, contudo, conclui que esta prática deve ter entrado em decadência por ter sido proibida pela Igreja, mesmo reconhecendo que estava visivelmente difundida pelos tempos normandos, e que, apesar da citação de Beowulf e do caso de Alfredo, posterior ao nosso recorte, tal medida não deveria ser utilizada nas casas régias. Chega à conclusão de que o debate está longe de ser encerrado, e que é impossível ser conclusivo em relação à questão.304 Parece-nos razoável pensar que a criação externa em casas reais fosse uma das medidas que a aristocracia possuía de aproximar-se da realeza, tanto em nível físico direto, quanto na forma do parentesco (ainda que de laços teoricamente “artificiais”), e dispor das benesses que tal proximidade encerraria. A mesma medida poderia ser pensada para níveis interaristocráticos externos à realeza, determinada pela capacidade atrativa que o poder encerrado por tais aristocratas exerceria. O importante a ser ressaltado neste ponto é que a circulação de crianças no âmbito aristocrático permite-lhe internalizar desde muito cedo valores, códigos e condutas, não apenas através de ensinamentos “formais”, “transmitidos”, porém também experimentados, na medida em que estão inseridos nos mesmos espaços que os guerreiros, excetuando-se o campo de peleja. Os fatores elencados anteriormente nos levam a crer na dureza da vida infantil aldeã, já que as crianças neste meio provavelmente estariam também envoltas em algum tipo de serviço e trabalho, e é provável que aprendessem, a partir do momento em que o desenvolvimento corporal o permitisse, o ofício dos pais, tendendo à reprodução de similares experiências e expectativas. Há alguns pontos discutidos pela historiografia acerca dos sentimentos que os pais nutrem pelos filhos, de quanto de amor ou de proximidade era corrente em determinados contextos etc.305 Nossa pesquisa, contudo, distancia-se deste psicologismo social regressivo, e avança em outros sentidos. A circulação em diversos ambientes de homens de poder (comensais episcopais e salões régios) e a decorrente coexistência com monges e freiras, por um lado, e guerreiros e rainhas, por outro, e a necessária interpenetração dos quadros (o religioso não se reproduz na mesma medida

303 BRENTANO, Op. Cit. P. 246. 304 I was seven winters old when the lord of treasures, the gracious ruler f peoples, received me from my father. King Hrethel had and kept me, gave me wealth and food, bore in mind our kinship. KUEFLER, Op. Cit. P. 830. 305 KUEFLER, Op. Cit. P.p. 824, 828, 830. GREENLEAF, op. cit. são exemplos de tais tentativas. 93 em que o laico306) são fatores que nos levam a considerar que homens como Beda, que adentra a vida monástica muito cedo e praticamente não sai de seu mosteiro, sejam uma exceção à regra. Parece-nos difícil defender que a parcela mais ampla da camada social aristocrática não tenha experimentado, ou pelo menos que lhe tenha sido negado a possibilidade de experimentar, espaços de sociabilidade de natureza “laica” e eclesiástica. A infância possui grande peso nas teorias de desenvolvimento cognitivo contemporâneas. Não há dúvida acerca de sua gravidade. Com este tópico, não procuramos sugerir que elementos- chave e essenciais são construídos logo no início da vida de alguns indivíduos inseridos em um determinado grupo social e que a partir dali estes fatores se bastam, reproduzindo-se com moto perpétuo próprio. Contudo, pareceu-nos elementar iniciar nossa exposição acerca da manufatura do herói a partir do momento em que os signos e significados, códigos e conduta de heroísmo são introjetados, e nos saltou aos olhos como a infância poderia ser um locus interessante de análise do papel social dos heróis e de como eles surgem. Parece-nos que uma “pedagogia aristocrática”, se o termo não soar necessariamente imperativo ou evocativo de uma comparação rasa com nossa contemporaneidade, constituiu uma das pedras de toque da reprodução heróica.307. As incisivas afirmações de Ariès e Riché já não fazem mais sentido, ao menos em nosso estudo. Reconhece-se algum espaço para a infância, ainda que de maneira naturalmente diferente da nossa. O que parece “desaparecer”, na verdade, é a adolescência.

Apetrechos São raros os heróis de mãos nuas. Se pensarmos na idade média com aqueles velhos olhos que vislumbram cavaleiros, dragões, cavalos, lanças, escudos, capa e espada, se torna ainda mais difícil esta visualização. Caso pensemos nela como o período de domínio feroz de uma

306Aqui é válido remetermos ao trabalho de João Bernardo, que vale a pena citar o original: “[...] os dignitários eclesiásticos e os grandes senhores laicos pertenciam às mesmas famílias. O que se passou, em todas as variantes sem excepção, foi que das famílias detentoras dos maiores conjuntos senhoriais saíam os elementos que iam ocupar a esmagadora maioria dos lugares de bispo, abade, abadessa.” BERNARDO, João. Op Cit. Pp. 199. 307 Cabe-nos aqui ressaltar que não há distinção, no exposto por nós, entre reprodução objetiva e subjetiva de tal aristocracia. Poderíamos supor, inicialmente, que esta “pedagogia” estaria na base da constituição dos elementos culturais subjetivos na construção da identidade da mesma. Não queremos anular este argumentos, apenas agremiá-lo com a noção de que, paralelamente a isto, as crianças brincam, e, como parecem atestar as fontes, de pular, correr, e lutar. O desenvolvimento subjetivo vem acompanhado do desenvolvimento corporal adequado, enquanto que na classe servil parece-nos que, além da necessidade de trabalho a partir de determinada idade, a subnutrição característica acabaria por dificultar o desenvolvimento corpóreo similar ao das crianças aristocráticas. 94 aristocracia que espolia e saqueia os frutos do trabalho camponês, percebemos como tal ataque feroz tampouco pode se constituir de maneira branda; também são necessários couraças e castelos, crucifixos e igrejas. Tão efetivo na reprodução das desigualdades quanto a efetivada, a violência potencial se torna uma ferramenta extremamente capaz no poderio dos heróis. Boa parte dos bens de prestígio que tanto almejam os guerreiros deste período são itens bélicos; outros auxiliam na guerra; os demais são motivos de fausto e todos são peças importantes no xadrez social. Tentaremos caracterizar alguns destes itens a seguir, relacionando suas manifestações na literatura com seus vestígios arqueológicos.308

a) Cavalos Em suas batalhas contra os reinos anglo-saxões, os vikings parecem ter apresado um grande número de cavalos. A maneira e constância com as quais agiam desta forma parecem indicar que as casas reais (e algumas igrejas e mosteiros, a pedido destas) estavam criando este tipo de animais.309 O uso difundido da montaria favorece, a partir desta situação, a conclusão de que o uso de equinos era fundamental para os guerreiros anglo-saxões. Em Beowulf, há três famosas passagens em que são citados cavalos: a doação de oito destes ao protagonista,310 o repasse destes a Hygelac e Hygd311 e a emulação de velocidade dos guerreiros que comemoram a morte de Grendel.312 Como podemos observar, a doação dos animais consta dentro de um quadro de presentes mais amplo, e no mais das vezes os demais presentes são tidos como possuidores de uma distinção qualitativa superior. Ainda assim, como nos lembra Jennifer Neville, tais presentes de rei tão afamado e generoso não podem ser apenas bestas ignóbeis.313 Eles também são mearas, montarias para os heróis celebrados pela poesia, e

308 Para uma imagem destes guerreiros, ver Figuras 3 e 4 (páginas 183 e 184); para uma reprodução das covas onde estes registros arqueológicos foram encontardos, Figura 24, página 196. 309 HARRISON, Mark & EMBLETON, Gerry. Anglo-Saxon Thegn – 449 – 1066 a.d. Oxford: Osprey Publishing, 1998. P. 12. 310 Protetor de homens, ordenou / o lorde [Hrothgar] que ao salão fossem levados / oito corcéis. Rédeas com placas de ouro / todos, sobre o assoalho do salão, tinham. / E somente um deles possuía sela / com arreios de ouro habilmente ornados: / era o assento real nos jogos de espadas. RAMALHO, op. cit. V: 1034-1040 311 Então, ágeis, (ouvi dizer assim) / quatro corcéis de acastanhada cor / acompanhavam aqueles adornos.- / cavalos que o herói concedeu ao príncipe, / mais tesouro. Em seguida A Hygd (eu ouvi assim), ele / deu um precioso colar (de pescoço, / anel – tão maravilhoso atavio, / presente de Weahltheow, filha de príncipe) / e, mais, três belos corcéis com brilhantes arreios. Idem, V.: 2167-2171 e 2177-2181. 312 Guerreiros tão bravos punham / seus corcéis de cor em uma corrida: /amistosa disputa em áreas pulcras. Idem. V.: 866-868. 313 NEVILLE, Jennifer. Hrothgar’s Horses: Feral or Thoroughbred? In Anglo-Saxon England, n. 35, 2006. P. 136. 95 parte dos maneirismos aristocráticos que caracterizam Hrothgar e o seu povo como nobres. As relações entre homens e equinos não se construíram sempre desta forma. Há indícios de que no período pagão houvesse mesmo consumo de carne de cavalos, ainda que este consumo provavelmente tenha se constituído mais voltado para o âmbito ritualístico.314 O cristianismo parece ter se manifestado contra este prática, que parece ter subsistido em algum nível, uma vez que é possível encontrarmos reclamações papais acerca de cristãos anglo-saxões que ainda consumiam, em 786, carne de cavalo, coisa que nenhum outro cristão faria.315 Não queremos aqui apontar algum tipo de sobrevivência pagã, apenas demonstrar como provavelmente a figura equina ainda era investida de cores e tons que poderiam inspirar o sobrenatural.316 Não foi só a postura dos homens em relação a estes animais que foi alterada. A própria estatura destes também parece ter sofrido mudanças: os cavalos “selvagens” mediam em média 110 centímetros de sua espádua até o solo.317 As escavações no cemitério de Eriswell em RAF Lakenheath encontraram dois cavalos com as suas rédeas muito elaboradas, que mediam respectivamente cerca de 145 centímetros e 130 centímetros; as escavações de Sutton Hoo também encontraram, em meio a um funeral rico do século VII, um cavalo com ornamentações cuja estatura atingia aproximadamente 140 centímetros.318 O crescimento dos animais, uma vez domesticados, deve-se, segundo a autora do artigo a um cuidado que se resume à alimentação cuidadosa (não o deixando solto pelas florestas etc.) e ao cruzamento com indivíduos mais formidáveis. Se o argumento estiver pleno de razão (e assim o parece), podemos estabelecer que a endogamia aristocrática extravasa os indivíduos humanos e, além dos cavalos, poderíamos também pensar nos demais artefatos, uma vez que o ouro319 pode ser refundido e remoldado,

314 BOND, J.T. Animal Bone in Anglo-Saxon Cremations. World Archaeology, vol. 28, n. 1. 1996, p. 83. O mesmo artigo, ao analisar as escavações nos sítios de Spong Hill e Sancton I notam que, em grandes áreas nas quais há grande enterramento ou depósito de homens e seus itens enterrados (chamados no artigo de “cemitérios públicos”) encontram-se ofertas de cavalos tanto no enterramento de homens quanto no de mulheres – em Sancton I, sete mulheres e oito homens foram encontrados com restos de cavalos; em Spong Hill, aproximadamente 13% dos homens e 11% das mulheres eram acompanhados por restos de cavalos. Tais sítios se concentram sobretudo do século V ao início do sétimo século. 315 HUNTER-BLAIR, Peter. Northumbria in the days of Bede. London, Gollanez, 1976. 316 A proposta ora defendida é a de que, por circularem entre aqueles que ocupam os mais altos cargos na hierarquia social e serem possuídos pelos mesmos, e a nobreza é encarada como possuidores de dons místicos (pela sua capacidade real de efetivação de poder), estes animais também são fetichizados. Pela análise materialista de sociedades pré-capitalistas, parece-nos razoável pensar que não havia objeto de poder, enquanto exercia o mesmo, que não fosse fetichizado desta maneira. 317 NEVILLE, Jennifer Op. Cit. P. 138. Exemplares deste tipo de animal ainda seriam encontrados no nosso recorte, segundo a autora do artigo. 318 Idem. P. 141. 319 E também outros metais menos nobres, mas afeitos à função bélica, como o aço, por exemplo. 96 assim como as linhagens que dele se folheavam. Os maiores cavalos, que aparentemente pertenceriam aos mais altos graus da aristocracia, parecem também circular no mundo eclesiástico. Beda registra a doação de um cavalo de excelente qualidade320 do rei Oswino ao bispo Aidan,321 que, ao encontrar um homem muito pobre, doa-lhe o cavalo, e por tal ato é cobrado e recriminado pelo doador do equino real,322 uma vez que há cavalos de menor valor para serem doados aos pobres, e aquele havia sido especificamente selecionado para ser posse pessoal do bispo.323 Este bispo é reconhecido (no âmbito clerical) pelo que hoje chamaríamos de humildade e parece ser modelar quanto ao empenho nesta qualidade. Para além do destaque da passagem para a humildade e desprendimento do bispo, também é digno de nota como a ausência de apego ao presente (aqui manifesto na forma de “redoação” aparentemente fora do circuito aristocrático) provoca a ira daquele que o entrega. Das hagiografias trabalhadas, a de Cuthberto, a de Vilfrido, as vidas de abades de Beda, a vida anônima de Ceolfrido, além do relato da viagem de Brandão, todas elas tratam, direta ou indiretamente, de aristocratas que possuíam cavalos. Cuthberto, progressivamente, deixaria de usar o seu para andar mais a pé324 em um voto de humildade; Vilfrido aprendeu a vestir, a se armar e a montar para não se sentir envergonhado na presença real;325 os abades Bento, Eosterwino, Sigfrido e Ceolfrido (esse tanto na sua vida anônima quanto na hagiografia coletiva dos abades), retratados por Beda, eram da alta aristocracia e são referenciados como possuidores de equinos; Brandão é ligado à linhagem de Eogeno e é pai espiritual de trezentos monges,326 dado a partir do qual é difícil imaginar que não possuísse ou pudesse adquirir tal animal. Se em seu passado mítico os anglo-saxões foram liderados por Hengst e Horsa, que significam literalmente “cavalo” (ou “garanhão”) e “égua”, em combate direto eles não eram utilizados. A aristocracia valia-se dele para transporte, além de diferenciaram-se internamente, uma vez que sua qualidade é visualmente nítida. Poderíamos falar em uma cavalaria anglo-

320 Equum optimum, quando da doação. 321 BEDE. Op cit.. Vol. 1, Book III, Cap. XIV. Pp. 392-399. 322 Equum regium, no momento da recriminação. 323 Numquid non habuimus equos viliores plurimos, vel alias species quae ad pauperum dona sufficerent, quamvis illum eis equum non dares, quem tibi specialiter possidendum elegi?. Bede, op. Cit, p. 396. 324Cuthberto Cap.: 9. 325Este vive no patrimônio (estate) do pai, onde era visitado com frequência por companheiros do rei e também os servis eorum, servos destes. Vilfrido. Cap. II. 326Brendan Cap.:1 97 saxônica sem problemas, desde que tenhamos em mente que tal termo é quase sinônimo de uma nobreza327 que lutava a pé. Por paradoxal que o termo possa parecer, ele parece nos auxiliar no sentido de tornar clara e visível a distinção interna no âmbito da classe, elemento que parece ser um fator importante inclusive para desvendarmos os jogos de poderes, as disputas internas à aristocracia.

b) Armaduras, elmos, lanças, arcos, scramasax Na poesia épica, cabe ao rei fazer o herói. Não como descendência, mas como elemento onipresente, ao qual normalmente o herói acode. Outra possível forma de entender a anunciação é que o rei, em nosso período, é o responsável por equipar seus guerreiros com a doação dos armamentos.328 Entre os presentes apresentados no poema Beowulf, os armamentos sempre são espadas, cotas de malha (ou armadura de anéis) e elmos (e todas em número igual de registros). É válido ressaltar este aspecto, uma vez que outros tipos de equipamentos – escudos, lanças, facão (seax) e arco – são citados no poema, e mesmo na mão de nobres, porém não figuram como presentes régios. Desta maneira, fica nítida a apreciação que tais elementos deveriam ter no âmbito aristocrático, assim como o desejo de possuí-los. Os elementos do conjunto que costumamos chamar “armadura” estão dentre os itens mais raros dentre os vestígios arqueológicos. Os elmos e cotas de malha (ou armadura de anéis) que chegaram aos nossos dias compõem os itens escavados em apenas alguns sítios, quase todos vinculados à alta aristocracia, tocando a realeza ou sendo a própria.329 Parte desta raridade deve-se, em grande medida, à concomitante concentração de bens e da atividade bélica, assim como ao controle (visando o afunilamento) das possibilidades de produção de bens bélicos considerados típicos do alto escalão societário. Não se trata apenas de uma “concentração de capital simbólico” pela aristocracia; pensamos aqui que esta é uma possibilidade teórica aceitável, mas pretendemos ir além da mesma, vinculando a mesma à

327Pensamos aqui a nobreza como o ápice da aristocracia, sua parcela mais alta hierarquicamente, beirando a realeza. 328 Como dizemos, esta é a forma pela qual o épic do nosso recorte entende isto. Como veremos adiante, grande parte do armamento circulante era construído localmente. 329 Como exemplo, citaríamos os sítios de Benty Grange e Sutton Hoo. BRUCE-MITFORD, R.L.S. Aspects of Anglo-Saxon archaeology: Sutton Hoo and other discoveries. Gollancz: London: 1974; HÄRKE, Heinrich. The circulation of weapons in anglo-saxon society in Rituals of Power: From Late Antiquity to the Middle Ages. Boston: Frans Theuws, 2000. 98 reprodução destas classes. Os itens tratados aqui não constituem apenas saberes ou algo vinculado exclusivamente ao campo mental; antes, constituem-se como apetrechos bélicos, cuja qualidade implica em aumento (ou redução) das probabilidades de sobrevivência à peleja, aquisição do butim e da pilhagem – elemento fundamental nas ditas “sociedades heróicas”. Encerram simultânea e dialeticamente aspectos simbólicos e práticos, indissociáveis em sua materialidade e historicidade. Elmos são itens que raramente chegam até nós. Mais interessante do que isso é o dado de que, dos poucos que sobraram, os mais simples são os mais numerosos.330 Apesar de se tratar de um dado um tanto quanto óbvio, faz-se mister ressaltar o quanto da distinção interna à aristocracia era exteriorizada em termos de arranjos qualitativamente diferenciados - e este escalonamento não se limita aos elmos, estando presentes nos demais “apetrechos”. O tipo mais simples é como o encontrado em Benty Grange, em Derbushire, no século XIX. Sua armação em formato de domo é composta por tiras de ferro que partem do topo do elmo. Os Laings afirmam que o espaço entre as tiras era preenchido por placas de chifres (horn plates), ornamentadas com rebites prateados, e que a tira que protegia o nariz era decorada com uma cruz de prata; na crista estaria presente um javali também de prata. Um outro tipo de elmo foi encontrado em Sutton Hoo.331 Montado por placas e não por tiras, este elmo contava também com motivos de javali nas sobrancelhas e com o que parece ser a cabeça de um pássaro na talvez única tira do elmo, que cobre desde o conjunto boca-nariz- bigode até o cume da cabeça. Este elmo também conta com uma placa facial e com cobertura para os lados da face e a nuca. Parece mais ser um objeto ritualístico do que efetivamente uma peça de batalha fundamental – e os Laings chegam a afirmar, a partir dos dados arqueológicos, que os elmos eram raramente utilizados pelo guerreiro anglo-saxão comum.332 Concordamos com os autores exclusivamente por conta da adjetivação que empregam – o guerreiro comum (ordinary Anglo-Saxon warrior), uma vez que, com o processo de hierarquização e verticalização das relações sociais, o acesso a bens como esses tendem a estar cada vez mais restritos. Concomitantemente, ainda que o elmo de Sutton Hoo seja mais uma máscara do que um elmo propriamente dito, parece-nos arriscado transbordar esta linha de pensamento para categorizar

330LAING. Op. Cit. p. 50 331 Ambos os elmos podem ser visulizados na figura 27, página 198. 332 LAING. op. Cit. p. 53. 99 todos os itens de proteção craniana.333 A lógica da ausência vestigial indicando ausência histórica leva os Laings também a caracterizarem a armadura corporal como raramente utilizada, mesmo considerando as cotas de malha encontradas em Sutton Hoo, Benty Grange e no Kent.334 Os mesmos autores chegam a afirmar que todos os guerreiros carregavam escudos, sem exceção. Em geral, mediam até 1 metro de diâmetro, com o centro de metal (mormente ferro), parte que normalmente chega até nós. Em uma tumba de Petersfinger, em Wiltshire, foi encontrado um escudo cuja madeira resistiu ao tempo (em termos relativos, naturalmente). Parece ser constituído de camadas (sheets) fixadas conjuntamente, algo próximo ao que chamamos de “madeira compensada”. Muito provavelmente, era côncavo e coberto de couro. O invólucro de couro do escudo de Sutton Hoo era ornamentado, mas é certa a existência de outros lisos.335 Pontas de lanças são os itens mais comuns em cemitérios;336 demonstrando a versatilidade da arma, usada tanto no fazer bélico quanto na caça. Uma lança típica de arremesso, conhecida como angon, adaptada do modelo romano (provavelmente os pilla) também são encontrados nas tumbas dos mais ricos.337 Arcos eram usados, apesar de nenhum ter sobrevivido razoavelmente íntegro – previsivelmente, uma vez que é totalmente composto de material orgânico. Na Ilha de Wight, no cemitério de Chessel Down, foram encontrado traços de um arco de 1,5m de comprimento; no mesmo cemitério é possível encontrar pontas de flechas. Na arte anglo-saxônica, é razoavelmente comum encontrar figurações de homens caçando com arcos curtos – o que pode indicar sua aplicação direta à caça.338 Machados também formam, conforme o indicado, um grupo de armas que são mais difíceis de serem encontradas, e por um tempo a historiografia atribuiu a restrição da presença

333 Härke afirma que os elementos simbólicos de status podem ter sido muito mais importatnes do que seu desempenho na guerra. HÄRKE, Heinrich. “Warrior Graves”? The Background of the Anglo-Saxon Weapon Burial Rite. In Past & Present, 126. Oxford: Oxford University Press, 1990. p. 26 334 LAING, op. Cit. p. 53. 335 LAING, op. Cit. p. 54. Ver figura 10, página 188. 336 Em uma amostra de 47 cemitérios espalhados pelo território anglo-saxão, que corresponderiam aos três primeiros séculos da ocupação saxônica, Härke encontra um total de 589 enterramentos com lanças; 317 com escudos; 76 com espadas; 30 com o seax, 14 com o machado e apenas 7 com ponta(s) de flecha. A aparente maior abundância da espada não a torna menos prestigiosa qu as demais, como demonstraremos a seguir. HÄRKE, Heinrich. op. Cit. p. 26. Table I. Ver Gráfico 1, página199. 337 LAING, op. Cit. p. 54. Para pontas de lança ornamentadas, ver Figura 26, página 197. 338 LAING. Op. Cit. p. 54. 100 deles ao sul da ilha como indicativo de que a colonização (razoavelmente numerosa) desta região teria se devido aos francos.339 Com o posterior desenvolvimento da arqueologia, descobriu-se áreas outras nas quais o item foi devidamente encontrado, e perdeu-se o sentido do argumento.340 A arma que deu origem à parte do nome da etnia, o scramasax, consistia numa espada curta, curva, mais próxima do que conhecemos como facão, com uma lâmina única e com a ponta inclinada para frente. O exemplar mais bem preservado que encontramos foi localizado no Tamisa, e parece corresponder a cerca do ano 800. Apesar de muito posterior ao período pré- cristão, ele conta com o alfabeto rúnico inscrito no dorso, em prata, assim como está confeccionado em bronze e em prata. Tal lâmina mede 81,1 centímetros.341 Estes facões (saex, sax ou scramasax, sendo esta também a forma pela qual Gregório de Tours se refere às adagas dos francos) figuram em algumas outras inumações, várias delas com inscrições em old english ou em runas. Kendric342 e Schubert343 sugerem que estas armas foram produzidas com requinte por toda a Inglaterra, e atribuem à Nortúmbria a produção de algumas em específico. Uma carta da abadia de Wearmouth e Jarrow refere-se ao envio de quatro destes facões – “feitos segundo nossos costumes”344 – como presentes para aristocratas estabelecidos na região do Reno (Rhineland).Como ambos os autores apontam, o envio de tais itens a uma região reconhecida pela produção de armas de alta qualidade parece indicar que tais facões deveriam gozar de renome fora da ilha.

A diferenciação diacrônica das armas que acompanham os corpos é de vital importância: machados e conjuntos que indicam atividade de arqueiro são mais comum em enterramentos mais antigos (sobretudo dos séculos V e VI); os seaxes aparecem apenas no século VI, e em quantidades pequenas, sendo sua frequência mais elevada verificada no século VII. Alguns autores chegam a elocubrar, a partir destes indícios, as razões das transformações, mas todos eles as vinculam a práticas de luta, e o argumento para por aí.345

339 EVISON, V. I. The fifith-century Invasion South of the Thames. London: Athlone Press, 1965. p. 36. 340 Este argumento também foi desenvolvido por Evision, e da mesma maneira deixado de lado, no que diz respeito ao uso de arcos e flechas. As pontas das últimas foram achadas também em áreas de ocupação inicial angla tão ao norte quanto Derbyshire. HÄRKE, Heinrich. Op. Cit. p. 28 341 LAING. Op. Cit. p. 54. Ver Figura 9. Para outras imagens de Scramasaex, ver figuras 16 e 17, página 192. 342 KENDRIC, T.D. Anglgo-saxon art to A.D. 900. London: Methuen, 1938. p. 398. 343 Apud DAVIDSON, opc. Cit., p. 41. 344 Cultellos nostra consuetudine factos. Monumenta Moguntina, Berolini, 1866, Epistola 77, p. 215. Apud DAVIDSON, op. Cit, p. 41. 345 Härke, Laing & Laing e Harrison & Embleton, para citar exemplos. 101

O ponto levantado por esta parte da historiografia não é necessariamente irrelevante, mas de certa monta ele diz respeito mais a uma postura de recuperação e reconstrução dos eventos do que uma explicação efetiva. Como pensamos as lógicas e dinâmicas sociais interconexas, esta alteração no modus pugnandi societário deve ser acompanhada de transformações outras (e provavelmente provocada por estas). Desta maneira, a hipótese que aventamos acerca desta questão é que, com a especialização cada vez maior dos grupos aristocráticos na atividade bélica, os apetrechos que deles disporão para este afazer serão cada vez mais especializados e diferenciados ao máximo daqueles disponíveis para os não-aristocratas. Conforme indicamos, arcos e machados346 podem ser armas adaptadas das necessidades produtivas dos homens mais pobres que estão inseridos diretamente no setor produtivo. Além disto, no levantamento feito por Härke, nos kits de armas encontrados em enterramentos anglo-saxões, a maioria das tumbas que continha machados trazia em si apenas eles (em oito enterramentos); um par de tumbas continha um machado e uma lança; apenas uma com um machado e uma lança mais um escudo; apenas uma com uma espada, um seax, um escudo, duas lanças e um machado. Para se ter noção da magnitude destes números, os enterramentos com apenas uma lança totalizam 237 casos, enquanto os que continham simultaneamente um escudo e uma lança, 139.347 Esta hipótese deve se somar à perspectiva de que boa parte destes enterramentos contém indivíduos não-aristocráticos, e a prática da inumação de armamentos era difundida socialmente de tal forma a ser encarada como uma distinção simultaneamente étnica e social,348 e de grande peso ideológico. Tantos homens armados, neste momento, parecem indicar muito mais a fyrd geral do que a fyrd.349 De qualquer maneira, parece-nos razoável supor que, no âmbito ideológico, a união entre estes homens e suas armas nem a morte era capaz de superar. Com sucesso, contudo, ela impiedosamente aparta as diferentes classes sociais a partir da ritualização

346 Ainda que boa parte dos machados encontrados arqueologicamente seja de refino estilístico próximo ao dedicado às espadas, por exemplo, estes se encontram sob a identidade categorial (“machado”) das ferramentas dos trabalhadores. 347 Lamentavelmente o autor não enumera o total de corpos que não estariam armados neste cemitério, para que dispuséssemos de estatísticas ainda mais precisas e possibilidades melhores de testarmos nossas hipóteses. HÄRKE, op. Cit. p. 34. Ver gráfico 2, página 199. 348 Concomitantemente concentrando distinções para o exterior e para si próprios; a primeira provavelmente herdada do continente, a segunda certamente proporcionada pelo processo de hierarquização social. Cabe aqui também a explicitação que entendemos o segundo elemento como mais significativo em nossa análise. Para maiores considerações sobre o aspecto étnico, conferir a obra de Härke. 349 Mesmo com a concentração da atividade militar nas mãos da aristocracia, subsiste em nosso recorte espaço- temporal a possibilidade de convocação de todos os homens para a guerra, sendo este conjunto mais amplo chamado de general fyrd pela historiografia, enquanto que o conjunto de guerreiros que formavam a aristocracia constituiria apenas a fyrd. Para uma imagem desta fyrd mais restrita, ver Figura 3, página 183. 102 que a envolve.

c) Espada As espadas certamente são objetos de grande admiração, seja por parte do público leigo, seja por parte de especialistas. É abismal a diferença entre a quantidade de livros e artigos que são produzidos (em termos historiográficos) sobre o assunto e os raros que tratam mesmo de outros apetrechos de guerra, como elmos, lanças, armaduras, escudos e machados. Tal abismo se torna evidente neste mesmo trabalho, no qual o tópico a respeito do tema é significativamente mais amplo do que os demais. Esta diferença pode ser devida a fatores diversos. Destacamos aqui a facilidade. Trata-se de um material com mais chance de sobrevivência vestigial, arqueológica. As fontes escritas do(s) período(s) que se referem às espadas geralmente tecem considerações diversas sobre as mesmas, e, portanto, novamente abundam as possibilidades. Não podemos descartar, contudo, o fetichismo que os próprios objetos encerram, seja ele na forma que representavam quando de sua produção, com caráter que beira (e por vezes adentra) o religioso-sobrenatural, seja no contemporâneo, aliado ao centralismo cada vez mais gritante do trabalho com as fontes pelo historiador. Ou seja, este volume historiográfico se concretiza em razão de uma facilidade - para quem tem dificuldade em lidar com as fontes ou para lidar com considerações de caráter conceitual ou teórico. O conhecimento sobre o tema deve ser extenso, no sentido de congregar os setores possíveis, especialmente os voltados ao estudo da poesia, da literatura e o da arqueologia, uma vez que os elementos que podemos destrinchar a partir deles não eram estranhos às pessoas que viveram em nosso contexto de análise, que provavelmente conheciam o processo de produção das espadas e ouviam histórias nas quais ela figurava.350 A importância da literatura também se revela quando levamos em consideração que os ouvintes das histórias que eram narradas sabiam manejar armas, e por isso elas não podiam soar demasiadamente estranhas à audiência.351

Dados Arqueológicos

350 DAVIDSON, Hilda Ellis. The Sword in Anglo-Saxon England. Woodbridge: The Boydell Press, 1994, pag. 5. A versão original deste livro data de 1962, mas a versão na qual nos baseamos é a revista e atualizada pela autora no ano citado. Além do caráter seminal da obra, ineditamente sistemático a respeito do assunto, devemos boa parte deste trecho à autora, pela qualidade e amplitude de ideias. 351 Idem, p. 3. 103

As espadas recuperadas pela arqueologia possuem duas origens possíveis: os rios ou os enterramentos. A maioria daquelas de que dispomos é oriunda das inumações; infelizmente, o depósito no leito aquífero, em meio às opções citadas, é o que melhor conserva o item, especialmente a lâmina. Grande parte dos equipamentos também parece ter sido intencionalmente inutilizada: diversas espadas tiveram suas lâminas aquecidas e dobradas,352 e o elmo de Sutton Hoo foi golpeado por uma lança. A hipótese explicativa que Davidson aventa é que o conhecimento de que uma arma valiosa estivesse enterrada em tal local atrairia saqueadores. A inutilização garantiria assim a manutenção do depósito, além de “matá-la”, assegurando o preparo para o uso do morto na próxima vida.353 A presença desta arma na tumba está diretamente relacionada ao status do guerreiro que a possuía em vida, e um dos indícios para aferir tal afirmação está nas estatísticas a respeito do enterramento nos cemitérios e a proporção do total destes em relação aos que continham espadas – o percentual máximo atingido é de 60% dentre os que detinham armas em suas posses mortuárias.354 Ainda que o percentual neste sítio em específico tenha atingido a maioria dos locais escavados, esse é o que apresenta a menor proporção de homens com armas em relação aos que não as detém.

Aspectos da produção A apresentação dos aspectos envolvidos na produção de tais itens objetiva demonstrar não apenas a mobilização de recursos envolvidos na confecção de uma espada, mas também o quanto de recurso pôde ter sido mobilizado em vão na tentativa de produzir-se uma lâmina de qualidade ímpar. Ao abordamos o processo também seremos capazes de identificar quais os recursos que

352 Idem, p. 6. 353 Idem, pp. 10-11. 354 Exemplos em percentuais aproximados em sítios arqueológicos: Gilton, 10% (106 sepulturas, 49 com armas, 5 com espadas); Horton Kirby, 60% (115 túmulos, 10 com armas, 6 com armas); Alfriston, 23% (151 sepulcros, 38 com armas, 9 com espadas); Petersfinger, 25% (64 túmulos, 12 com armas, 3 com espadas); Brighthampton, metade (54 sepulcros, 6 com armas, 3 com espadas). DAVIDSON, op. Cit. p. 9, nota 2. Outras percentagens interessantes, não levantadas pela autora, seriam as de membros que portavam armamentos no seio geral dos cemitérios. Fazendo estes cálculos, chegamos aos seguintes números aproximados: Gilton, 46%; Horton Kirby, 8,6%; Alfriston, 25%; Petersfinger, 18,75%; Brighthampton, 9,4%. Tal questão não entra no campo de atenção da autora por este estar tomado pela espada. Em outro levantamento, realizado em 47 cemitérios, Härke contabiliza em um total de enterramentos com armas de 702, apenas 76 deles possuíam espadas (10,8%). HÄRKE, Heinrich. “Warrior Graves”? The background of the anglo-saxon weapon burial rite. In Past and Present, nº 26. Oxford: Oxford University Pres, 1990. Ver gráficos 3 e 4, página 200. 104 eram passíveis de obtenção por parte da aristocracia. O metal-base para a confecção da lâmina era o ferro, que pode ser obtido a partir do aquecimento do respectivo minério à temperatura de 500ºC, empregando-se de carvão (de origem vegetal) em uma fornalha na qual o ar deve ser impulsionado, seja por vias naturais, seja por um fole. Para obter um ferro de melhor qualidade, uma temperatura acima de 1100ºC é desejável.355 As poucas forjas de pedra são em sua maioria remanescentes do período romano; como exemplos poderíamos citar a fornalha de solda em Corstopitum (na região que posteriormente será conhecida como Nortúmbria) e o forno de eixos de Glamorgam (em território hoje pertencente a Gales).356 A grande maioria dos objetos de metal não foi esculpido ou trabalhado de maneira simples, mas foi firmada a partir de pedaços diversos de metais variados que foram martelados e só então cortados para adquirirem a forma desejada. O mesmo provavelmente aconteceu com os metais preciosos, não só pela escassez como pela facilitação para o trabalho com os mesmos – se o metal deve ser torcido além de um determinado ponto seu stress interno deve ser aliviado pelo processo de “recozimento”, no qual se aquece o mesmo acima de sua temperatura de recristalização. É compreensível a reutilização de materiais e seu aspecto de grande valor. Não queremos aqui impor uma lógica de oferta e procura entre os bens disponíveis na sociedade e sua respectiva valoração. A lógica não se estrutura a partir da valoração diferenciada levando em consideração a sua escassez, pelo menos não diretamente no aspecto que hora tratamos. Se os metais aqui tratados têm tamanha relevância e cuidado, isto não se dá apenas pela sua relativa escassez, mas pela possibilidade de transmutar-se em bens de prestígio fundamentais para a diferenciação e auto-referenciação dos aristocratas. A localização que Davidson estabelece para as boas fontes de minério se refere às jazidas em que um ferro de elevada qualidade favorecia a sua transformação em aço, e a técnica de fundição e refino parece ter se complexificado (próximo a Petleywood, Sussex).357 Um problema que surge deste tipo de argumentação é que tais minérios podem ter procedência de localidades outras, acessíveis via tributo, via doação, ou via tributo travestido de doação.

355 DAVIDSON, op. cit. p. 16. 356 DAVIDSON, op. Cit. p. 16. 357 DAVIDSON, op. Cit. p. 16. 105

A grande questão na forja era a distribuição de carbono (entre 0,7% e 1,0% de carbono no aço) na lâmina: o método dos artíficies era a tentativa e erro, nos quais suas perícia e experiência eram os fatores determinantes. 358 Dimensões Os germanos da era da migração parecem ter se encantado com o gladius romano, que por ser uma arma curta possuiria melhor manejo quando do choque e do combate corpo-a-corpo direto. Não podemos deixar de lado também o quanto de exótico e prestigioso (mas não necessariamente prestigioso por ser exótico) havia, para um guerreiro ou chefe germânico, na posse de um gládio. Reter a arma no inimigo derrotado nos parece algo bem desejável em uma sociedade guerreira como esta. O argumento de que as espadas curtas presentes em ricas tumbas podiam assumir uma função mais simbólica do que de instrumentos guerreiros de fato359 tem todo o sentido, desde que com isso não deixemos de apontar o seu caráter prático ou que simplesmente nos esqueçamos dele. As espadas da época da migração variam entre 85 e 95 cm de tamanho; as espadas francas merovíngias possuem média de 85 cm;360 as anglo-saxônicas, 90 cm. A largura da lâmina varia entre 4,5 e 5,5 cm, e todas as medidas não levam em consideração o cabo na medição. 361 Marcação: As lâminas de espadas raramente possuem alguma forma de marca estampada; as que possuem, contudo, trazem elementos interessantes à tona. A primeira de que trataremos foi recuperada do Tâmisa e está marcada por dois “sinetes” redondos, um logo abaixo do outro, próximos ao cabo, e aparentemente folheados a ouro com a mesma matriz utilizada na confecção de moedas que datam de cerca de 700 (tanto as moedas quanto a lâmina encontram-se no British Museum atualmente). O desenho de ambas (moedas e lâmina) é o de uma figura draconiana com a cabeça voltada para o lado direito. A estampa na lâmina não parece contudo ser marca do artesão; aparentemente, a lâmina foi reaquecida e unida ao símbolo.362 Outra espada cuja marca aparentemente foi adicionada pelo seu dono foi encontrada no rio Lark e consta, atualmente, da coleção do Cambridge Museum. Nela visualizam-se três figuras

358 DAVIDSON, op. Cit. p. 23. 359 Idem, p. 31. 360 Idem, pp. 38-39. 361 ARNOLD, op. Cit, p. 79. Ver figura 21, página 194. 362 DAVIDSON, p.49. 106 de javalis, duas de um lado e uma de outro, e a arma é datada do século VII.363 O javali aparece simultaneamente como símbolo de bravura e de proteção, como atestam os elmos, tanto o citado em Beowulf quanto o achado na sepultura de Benty Grange, além daquele do Sutton Hoo.364 Tais símbolos poderiam adquirir dois sentidos possíveis segundo Davidson: a proteção de (ou por) elementos sobrenaturais ou a marca de propriedade. Uma via mais interessante nos parece ser a aproximação e a simultaneidade dos dois elementos: ao mesmo tempo em que os símbolos “lançam encantos” eles demarcam a posse do objeto. Convém ressaltar que, em aspecto mais amplo, em dadas sociedades não-capitalistas, aos homens de poder, prestígio e status são atribuídas cores de sobrenaturalidade e, como afirmamos acima, defendemos que estes são elementos que se retroalimentam e se reforçam. É lícito que ao pensar a história de forma materialista atribuamos , a partir de seus efeitos produzidos pelo seu domínio sobre todos os homens, um verniz extra-humano ao dominador, deixando sempre claro que este verniz, de caráter ideológico, também é capaz de produzir efeitos concretos. O que é ornamental não pode ser separado do que é simbólico. A relação entre a expressão de posse dos objetos e os contextos aos quais pertenceram não integra a análise de grande parte da historiografia sobre o tema. Deixa-se de lado, desta forma, a relação entre a marcação de espadas (algo relativamente raro) com a alteração das formas de propriedade no seio da sociedade; apenas é citado o fato de que nenhuma delas pertence a enterramentos régios, o que pode ser entendido como um dos elementos componentes da autonomização aristocrática. Empunhadura: Não só de metal vive a espada. Boa parte dos adornos das empunhaduras eram de materiais orgânicos – o que é uma pena do ponto de vista arqueológico, já que poucos resistiram até nossos dias.365 O conjuntos de cabos dos séculos VI e VII já são elaborados, mas os do século VIII em diante tornam-se mais complexos em um ritmo acelerado – e a decoração passa a contar com ouro, prata e jóias (folheados e incrustados nas armas).366 As lâminas, mesmo as com padrões desenhados no seu corpo, parecem ser produzidas em

363 Idem, p.50. 364 BRUCE-MITFORD, R.L.S. The Sutton Hoo ship burial II. London: 1978. p. 138-231. 365 Um exemplo é o chifre da “pira crematória” do cemitério de Snape. Cf. CARNEGIE, S. & FILMER-SANKEY, W. A Saxon “cremation pyre” from the snape anglo-saxon cemetery, . In Anglo-saxon Studies in Archaeology and History, nº 6. Suffolk: 1993. 366 DAVIDSON, op. Cit. p. 67. 107 loci específicos, enquanto os cabos variam em espécie, estilo e composição a ponto de dificilmente terem um número limitado de zonas de origem. Simultaneamente, as empunhaduras parecem pertencer a agremiações367 (workshops) inseridas nas cortes régias.368 Em algumas ocasiões também figuram espadas que contam com anéis presos ao seu cabo. Reservamos a estes aros uma seção a seguir, visando à elucidação de sua importância e funcionamento nesta sociedade. De qualquer forma, por ora podemos ressaltar que podem indicar uma equalização qualitativa de itens diversos, na figura de presentes, geralmente com caráter de remuneração, criando e estruturando continuamente as relações de lealdade nas quais o anel surge como a figuração da aliança jurada entre os aristocratas.369 Bainha O material utilizado para a confecção das bainhas também era orgânico, geralmente de madeira, o que ocasionou que quase todas se perdessem, restando apenas seus encaixes de metal. A borda (contorno) e a boca das bainhas (de metal) que sobraram carregam quase sempre motivos de animais – a encontrada no cemitério de Abingdon possui uma cabeça humana com dois pássaros circundando-a – 370 e aquela oriunda de uma escavação em Brighthampton possui animais diversos, mais estilizados e, por isso, com identificação mais difícil de ser realizada.371 Cruzes em alto relevo adornam as bainhas encontradas em túmulos anglo-saxões: as presilhas da beirada da bainha de Sutton Hoo são ornadas desta maneira; a de Brighthampton possui uma pequena cruz elevada em prata. Quanto aos depósitos em Sutton Hoo, adicionam-se a estas duas colheres de prata inscritas com o nome do Apóstolo Paulo e cinco pares de pratos que Arnold relaciona como uma interpretação da refeição eucarística.372 Muito cuidado se tomou para que estas espadas tivessem seu depósito final respeitado. Davidson, contudo, aponta que a presença das cruzes em tais bainhas devia ser uma das formas

367 O uso de tal termo intenciona realmente aproximar estes grupos de artificies (que certamente não possuíam sua esta atividade como única de suas vidas) das guildas baixo-medievais, para que sejam feitas as devidas considerações, com aproximações e distinções. 368 DAVIDSON, op. Cit. p. 71. 369 RAW, Barbara. Royal Power and Royal Symblos in “Beowulf”. In the age of Sutton Hoo Martin Carver (ed.). Suffolk: St. Edmunsbury Press, 1995. 370 Resta a dúvida se os animais representados poderiam ser a representação das figuras correspondentes ao que na mitologia nórdica são conhecidos como Hugin e Munin, os corvos de . 371 DAVIDSON, op. Cit. p. 89. 372 ARNOLD, op. Cit. p. 164. Podemos manter à mente a ideia de que tais itens relativos à comensalidade poderiam também indicar a importância e a vitalidade deste rito no âmbito da sociedade em questão, como uma das formas principais de sociabilidade no salão (hall) régio e que não necessariamente personificam a essência das virtudes cristãs ou um referencial bíblico de tipo neo-testamentário. Para imagens destes objetos, Figuras 11 e 23, páginas 188 e 195. 108 de proteger a espada, assim como o javali teria protegido o guerreiro em vida.373 Esta hipótese carece de coerência interna – a proteção parece ter como alvo o guerreiro em vida, do contrário estes motivos poderiam ser adicionados após a morte do mesmo, hipótese que os vestígios materiais não parecem indicar. Os dados citados, recolhidos diretamente da disciplina arqueológica parecem fundamentar um elemento ao qual nos referenciávamos anteriormente. A impressão de elementos que diferenciam as espadas de outras, “personalizando-as” é congruente cronologicamente com o processo de autonomização aristocrática, já em curso no contexto anterior à introdução do cristianismo na ilha. A inscrição destes elementos parece-nos apontar de certa forma não apenas a expressão de uma determinada pessoalidade em um objeto, porém também a concentração desses como objetos que denotam prestígio e status por determinada persona. 374 A singularidade representada no conjunto articulado de bainha, empunhadura, e mesmo as eventuais marcações parecem vincular exclusividade de posse àquele item, uma vez que por seu ineditismo ele seria facilmente reconhecível e atribuível ao seu possuidor. Conforme demonstraremos a seguir, estes itens podem ser doados a outrem, porém suas particularidades visíveis podem denunciar quem a possuía anteriormente (especialmente no caso de espadas famosas), e isto pode ser encarado como elemento de prestígio para espadas que pertenceriam a reis ou guerreiros afamados, ou de litígio, caso fosse uma espada roubada de um túmulo, como Davidson apontou. De qualquer forma, a consideração do processo de produção de singularidades neste bélico bem de prestígio indica já o elemento da apropriação de determinados bens em caráter definitivo, a ponto de lhes ser forjada a pessoalidade na forma de padrões, geralmente curvilíneos. No período cristão, os aristocratas requerem da realeza a doação de bens imóveis; no período anterior, aparentemente o desejo é por bens móveis que condigam com sua condição de guerreiros e permitam-lhes se reproduzir como tais.375 Aspectos Literários: As variações dos vocábulos empregados para designar a ferramenta bélica a que ora nos

373 DAVIDSON, op. Cit. p. 93. 374 Para imagens de outras formas de marcação de lâminas e bainhas, ver Figuras 18, 19 e 22; páginas 193 e 195. 375 Com isto não pretendemos ignorar o que já afirmamos anteriormente, que estes guerreiros também requisitam terras e que estas são doadas, embora não em caráter hereditário. A afirmação aqui sugere apenas que a concessão de armas parece antecedê-las, e esta doação assume um ritmo já diferenciado das terras, uma vez que estas retornam à realeza quando da morte do guerreiro, e as espadas costumam acompanhar estes em seus túmulos. 109 referimos nas fontes latinas alto medievais são relativamente poucas. Podemos encontrar, por exemplo, arma e gladius, que aparecem nas hagiografias do período, embora variem entre as armas dos guerreiros com os quais os santos convivem e as “armas espirituais” dos mesmos (não por acaso muito próximas em sua configuração das que os laicos utilizavam) com as quais combatem demônios e forças malignas. A De vita et Miraculis Sancti Cuthberti, Episcopi Lindisfarnensis apresenta, por exemplo, duas vezes a palavra arma, uma como prece do santo contra uma doença e outra no sentido de armamento contra elementos malignos. Não por acaso, na mesma passagem está a citação ao gladius espiritual (esta palavra figura três vezes no texto, e as outras duas são espadas de aristocratas leigos).376 Já em Beowulf os termos dedicados à espada contabilizam um total de 22,377 sem contar as ocorrências cuja formação morfológica já se constrói na base de adjetivação.378 A palavra sweord conta com 37 ocorrências em todo o corpo do poema, e outras 6 variações.379 Forma outra de designar as espadas, mæl, figura 9 vezes no épico; se somarmos as construções já devidamente adjetivadas, chegamos a um total de 20.380 O vocábulo mece surge 7 vezes, e mais duas devem ser somadas se levarmos em considerações as adjetivações381. O conjunto universo de vocábulos do poema agrupa 16.405 palavras, e as aqui citadas totalizam 53 (sem as variações) ou 72 (com as adjetivações) representando, respectivamente, 0,3 e 0,4% do total do léxico utilizado pelo poeta. Tais cifras podem soar desprezíveis e mesmo levar a um raciocínio de que este seria um dado a ser abandonado, tamanha a sua insignificância. Porém, os dados quantitativos devem ser aliados aos qualitativos, para que possamos ter melhor ciência de suas proporções. Não é possível a significância sem a significação.

376 Capítulo XVII: (…) verum intrante eam milite Christi armato galea salutis, scuto fidei, et gladio Spiritus, quod est Verbum Dei (…) A versão em inglês consultada é FARMER, D.H. The Age of Bede. New York: Penguin Books, 2004. P.: 17. 377 Beaduleoma, beadumece, beag, brand, ecg, guthbill, guthsweord, heoru, heoruwæpen, hildebil, hildeleoma, hildemece, hilting, isen, laf feole, laf fyres, laf hamera, mece, secg, sweord, wæpen, wigbill. ROBERTS, Jane. Anglo-saxon vocabulary as a reflection of material culture in CARVER, Martin (ed.). The Age of Sutton Hoo. Suffolk: St. Edmundsbury Press, 1995. P. 200. 378 Hæfmece, hiltsweord, mathumsweord, sigmece, byrnsweord, brogdenmæl, hringmæl(ed), malsweord, sceandenmæl, wægsweord, grægmæl, scirmæld, wundenmæl, wyrmfah, bradsweord. Idem. 379 1 Guthsweord v.2154, 1 athsweord v.2064, 1 wægsweord v.1489, 1 sweordfrecan v.1468, 1 sweordbealo v.1147, 1 madthumsweord v.1023. 380 1 mælceare v. 189, 1 undermæl v. 1428, 3 hringmæl, v. 1521, 1564, 2037, 1 wundenmæl v. 1531, 2 bro(g)denmæl v. 1616, 1667, 1 sceadenmæl v.1939, 1 grægmæl v. 2682 e 1 mælgesceafta v. 2737 381 Hildemeceas, v.2202 e hæftmece, v.1457 110

Nos dicionários de Bosworth e Toller, mæl é traduzido como “medida”, “marca”, “sinal”, e por isso é provável que as espadas em questão apresentem alguma sorte de sinais ou marcas – o que, conforme nossa demonstração anterior, faz todo o sentido, arqueologicamente falando, para além da composição literária e estético-estilística. O raciocínio que desenvolvemos estabelece no quadro literário o uso de ambiguidades e jogos de palavras a partir do leque de sentidos que as próprias podem assumir e, levando em consideração tratar-se de uma narrativa “mítica”,382 chegaremos à conclusão de que os questionamentos e dúvidas dos autores se somam e se complementam muito mais do que se excluem para a melhor compreensão do poema. Aos ricos e diversificados padrões de metalurgia e trabalho com pedras preciosas (jewelcrafting) corresponde à diversidade no léxico anglo-saxão para as designar. Da mesma maneira, não se pode também deixar de destacar o peso e relevância destes instrumentos na vida destes homens, a ponto de gerarem inúmeras palavras para se nortearem no “mar de lâminas” que frequentavam. A espada Hrunting383 é apresentada, por exemplo, ao lado dos adjetivos hringmæl,384 wundenmæl, stih e stylecg, os últimos significando “dura” e “com ponta de aço” (steely-edged), além de possuir padrões inscritos na própria lâmina (pattern-welded blade), o que parece denotar uma espada de grande qualidade. Além daqueles adjetivos, soma-se a ela a expressão atertanum fah, sendo fah usado no corpo do poema para se referir a algo brilhante, como o elmo do javali385 ou o teto adornado de ouro de Heorot.386 O adjetivo fah (ou fag) também pode se referir a manchas ou tinturas – o lago no qual Beowulf entra (éwældreore fag), literalmente “manchado com sangue de carnificina”.387 A expressão atertanum fah parece indicar “brilhantes [ou tintas] com galhos de veneno”, sendo “galhos de veneno” um keening para serpentes – ao mesmo tempo evocando o aspecto mortífero dos animais e o padrão metálico que “serpenteia” pela arma.388

382 E que portanto remonta à tempos remotos, o que carrega necessariamente consigo temas realmente de tempos outros, mas que fala sobretudo a respeito do momento em que são produzidas. 383 Hrunting é a espada que era de Unferth, o homem que a princípio questiona as possibilidades de Beowulf enfrentar Grendel, por saber que o protagonista teria perdido para Brecca em uma competição de natação. Posteriormente ele muda de opinião acerca do herói e chega a lhe emprestar sua própria espada. Beowulf, versos 505-528 e 1455-1457. 384 Estas “espadas com anéis” possuem registro arqueológico de fato. Ver Figura 20, página 194. 385 Beowulf, v. 305. 386 Beowulf, v. 927. 387 Ou “(...) manchado / do sangue (água sob o céu) da peleja” na tradução de Ramalho. v. 1631-1632. 388 “(...) Uma efígie -/ - venenosos galhos – vinha no gume / que, de ferro feito, fortalecera-se / cintilante, com o 111

Ainda são relacionados à mesma espada os adjetivos beadoleoma389 (literalmente, luz de batalha), wrættum gebunden, “espada de aço/ornamentada com anéis (ornatos/curvos [...]”,390 na excelente tradução de Ramalho, uma vez que contempla a dificuldade em adaptar wraet, que pode se tratar de qualquer peça de artífice de alta qualidade (aparecendo duas vezes para descrever o tesouro de dragão),391 mas também algo que esteja cravado na espada. Davidson atribui o emprego do termo à ornamentação no cabo da espada, o que complementaria o wundenmæl para a descrição total da arma. Talvez pela beleza singular que o(s) poeta(s) quis(eram) atribuir à empunhadura da espada que ela também seja referida como hæftmece, traduzida por Klaeber como “espada com empunhadura” (hilted sword).392 Outra espada digna de menção no poema é a encontrada por Beowulf no pântano onde estava a mãe de Grendel. Da sua “avalanche” de adjetivos393 destacamos o fato de ter sido forjada por gigantes (giganta geworc),394 sua invencibilidade (sigeeadig),395 além da repetição dos padrões curvos (hringmæl e brodenmæl), que mesmo com toda a sua qualidade teve a lâmina desfeita ao entrar em contato com o borbulhante sangue da mãe de Grendel.396 Não por acaso que o derretimento da lâmina é muito próximo do processo de forja da mesma,397 com altas temperaturas, avermelhamento da lâmina e outros elementos envolvidos. Podemos verificar, como foi dito anteriormente, como este saber estava razoavelmente difundido em meio à parte da aristocracia, a ponto de o bardo conhecer razoavelmente como uma lâmina se comporta quando se encontra bem aquecida, incluída aí a coloração resultante. Como a lâmina perde-se, Beowulf entrega, junto à cabeça da mãe de Grendel (espetada em uma lança carregada por quatro

sangue das batalhas.” RMALHO, op. Cit. v. 1457-1460. 389 KLAEBER, op. Cit, v. 1523. Em Ramalho, verso 1522, taduzido como “lâmina de luta”. 390 RAMALHO, op. Cit. v. 1532-1534. 391 KLAEBER, op. Cit. v. 2771 e v. 3060. 392 Davidson encara tal tradução como complexa, uma vez que em outras partes do poema hæft é utilizado para designar “grilhões” e “cativo”. Além de não termos grandes objeções à tradução de Klaeber, esta nota de Davidson parece elucidar mais do que complicar o que sabemos a respeito da arma, uma vez que pode indicar, além de uma bela empunhadura, uma arma não escorregadia, e portanto, confiável. 393“Vira o carão u'a espada de vitórias, / entre as armas – lâmina artificiada / por gigantes. Gume rígido, glória / de lutadores. Excelente e esplêndida, / era a melhor espada, e a maior. Obra / de gigantes, nunca os homens, nos jogos / de gládios, conseguiram combater co'ela / De Scyld esse herói chegara-se, então / (irado estava – letal e implcacável) / à arma p'lo cinto que lhe cingia o cabo / anelado. (...)”. RAMALHO, op. Cit. v. 1557-1567). 394 KLAEBER, op. Cit. v. 1562. 395 Idem. v. 1567. 396 Idem. v. 1605. “Então, devido ao sangue derramado, / na luta, a liquescer do prélio a lâmina / pôs-se - gélidos pingentes (de pugna / cruentos) derretidos, (…)” RAMALHO, op. Cit. v. 1606-1609. 397 DAVIDSON, op. Cit. p. 18. 112 guerreiros), o cabo da espada dos gigantes a Hrothgar.398 A espada do protagonista é a última a ser tratada. Nægling está com certeza sob a posse de Beowulf quando este foi rei. Aparentemente, esta é a “espada magnífica”399 dada a Hrothgar como parte da recompensa por ter matado Grendel. Esta espada, assim como outros presentes400 do rei socorrido pelo protagonista, foram entregues por Beowulf a Hygelac, seu rei; o acesso aos bens entregues (excetuando-se, naturalmente, os que foram re-doados por Hygelac) foi garantido após a coroação de Beowulf. Um dos aspectos interessantes a respeito de Nægling é referido na passagem na qual Beowulf está prestes a entrar no pântano da mãe de Grendel. Ao tomar a espada Hrunting emprestada com seu dono (Unferth) Beowulf dá instruções a este para que, caso ele não volte, os tesouros concedidos na noite anterior por Hrothgar (a Beowulf) sejam entregues a Hygelac (tio de Beowulf e seu rei). A “mui pulcra arma”401 - uma espada especial entregue a Beowulf por Hrothgar - contudo, deveria ser entregue a Unferth, como forma de restituição à espada de Unferth, que estaria perdida junto ao corpo de Beowulf no fundo do pântano.402 Antes de descer até o fundo do pântano, o herói do poema certifica-se de que o favor seja devolvido, e que outro homem de igual estatuto não seja prejudicado. Destino final A espada, arma sempre recheada de adjetivos e tão decantada, encontrava seu destino em dois rumos possíveis depois da morte do guerreiro que a empunhava: o enterramento junto aos diversos bens que o aristocrata decidia levar consigo; a outra possibilidade era mantê-la circulando – seja por meio de doações (ou contra-doações), seja por pilhagens ao final das batalhas (saque ao corpo derrotado). Seja qual fosse o seu destino, este tipo de arma seguia a lógica de circulação geral de bens de prestígio da aristocracia, restrita a ela e, provavelmente, aos seus mais poderosos expoentes.

398 “(...) Tão valentes / quanto um rei, a cabeça carregavam / com dificuldade. Até o dourado / salão os varões, portanto, seguiram - / destes, quatro a cabeça carregavam, / na lança, haste assassina, efiada.” RAMALHO, op. Cit., v. 1634-1639. 399 RAMALHO, op. cit. v. 1020. 400 Infelizmente, no poema não há precisão a respeito de quantos e/ou quais presentes teriam sido entregues ao seu rei. Resta a dúvida se Beowulf haveria entregue todos ou apenas alguns e, se assim tivesse agido, quais teria retido. 401 RAMALHO, v. 1486. Em Klaeber, wrætelic wægswerod, v. 1489. Além da aliteração produzida pela proximidade de “wæ” e “wræ”, o uso de wræt parece indicar padrões que imitam o movimento da água. DAVIDSON, op. Cit. p. 145. 402 Uma vez que Beowulf está com a espada de Unferth, caso ele falhe a espada estaria perdida no fundo do pântano junto ao corpo do herói. 113

Ela distingue seu portador em meio a seus pares, tornando estas relações, (aparentemente horizontais) inclinadas ou pelo menos clivadas. Por ser essencialmente um apetrecho de guerra, sua qualidade também pode significar um passo adiante para o sucesso militar, condição sine qua non para a reprodução deste setor da sociedade. A historiografia pouco se refere, contudo, ao papel desempenhado por esta arma no processo de redução à dependência do campesinato independente no período em questão. Esta lacuna na historiografia faz eco com a progressiva ausência de tais armas na parte da fyrd não composta por aristocratas. Aos não-aristocratas cada vez mais compete a lança, arma paulatina e progressivamente adaptada da atividade de caça, fundamental a todos os setores sociais – tanto os banquetes reais precisavam viabilizar-se, quanto os trabalhadores necessitavam de nutrientes diversos à sua atividade laboral. A relação da espada com as demais armas, segundo Davidson, é explicada sem desconsiderar a utilização e importância de lanças, arcos, machados etc.. Porém, só a espada mantém-se como a arma do líder, um tesouro pessoal que é (e simboliza) a sua própria necessidade em um mundo em conflito. Além de seu aspecto prático e de sua eficiência, mantém seu aspecto cerimonial, na condição de arma dos deuses e/ou heróis do passado. Tal armamento manifesta-se em diversos momentos e expressões da vida do guerreiro – lealdade ao senhor e rei, no calor da batalha, no alcançar da vida adulta, nos últimos ritos fúnebres, sem nunca sair de perto dele.403 A espada é versátil. Ataca, simboliza, defende. E sintetiza.

d) Armamentos clericais? No tópico “apetrechos” nitidamente a nossa ênfase incidiu sobre a parte leiga da aristocracia, os guerreiros. Será que estes elementos, tão claros ao mundo guerreiro, estariam presentes no mundo clerical? De que forma? Presente em nossa mente deve estar o tópico acerca da infância. Nele defendemos a interiorização dos valores de modus vivendi guerreiro nos homens desde a tenra idade, vivida em salões e mansões, régias ou não, nos quais estes guerreiros circulavam, no passado e no presente, de carne e osso ou de contos e cantos. Cuthberto, Vilfrido, Bento, Ceolfrido... todos saíram

403 Carregavam-na no salão real e nas assembléias (apesar de serem proibidas de serem sacadas nesta); à noite, ficavam presas acima de suas cabeças. DAVIDSON, op. cit., p. 211. 114 destes ambientes. Teriam eles carregado consigo estes valores ou mesmo o porte e a habilidade do manejo? Ao voltar à ilha de Farne, para sua batalha espiritual contra demônios, Cuthberto é um miles armado com elmo (da salvação), espada (do espírito) e escudo (da fé).404 Vilfrido, em sua turbulenta vida, uma vez, ao estar em um local inóspito, cercado por uma hoste pagã, estava acompanhado por um cortejo de homens muito bem armados, que obedeceram aos seus conselhos;405 um de seus subordinados retirou um garoto ressurrecto de sua família, que vivia entre os bretões, à força, utilizando-se do cavalo como meio de deslocamento rápido.406 Eosterwine, conhecido pela força física, decidiu deixar de ser thane real e abandonar as armas para se engajar na batalha espiritual;407 Ceolfrido, ao deixar a comitiva que o acompanhava em sua última visita a Roma deixa sua irmandade monástica e parte montando em seu cavalo;408 os quatorze monges escolhidos por Brandão para o acompanharem em sua viagem são seus “caríssimos amigos guerreiros”.409 Cuthberto carrega os apetrechos; Vilfrido detém poder sobre eles; Esoterwine e Brandão recorrem a elementos próximos; Ceolfrido não apenas detém um dos itens citados como ainda sabe manejá-lo perfeitamente, mesmo sendo idoso.410 É fundamental notar que, dos três vocábulos citados por Cuthberto (espada, escudo e elmo), dois são itens raros mesmo entre a própria aristocracia, e poderíamos considerá-los bens de prestígio. Tal caracterização parece-nos razoável e ilumina sua significação múltipla: o santo não é “qualquer” guerreiro espiritual; ele está muito bem preparado, detém um bom grau de invulnerabilidade e de capacidade de ataque; seus dispositivos são capazes de inspirar terror naqueles que não são seus aliados e que, apesar

404 […] verum intrante eam milite Christi armato galea salutis, scuto fidei, et gladio Spiritus, quod est Verbum Dei, [...]CUTHBERTO, cap. 17. 405 VILFRIDO, cap. 13. 406VILFRIDO, cap. 18. O trecho anterior à nota acima poderia nos levar ao raciocínio de que a obediência destes homens armados presentes na hagiografia seria uma das formas de produção ideológica que buscasse afirmar a ascendência do braço eclesiástico sobre o leigo. Este trecho, talvez possa prosseguir na mesma linha, estando a obediência entranhada de tal monta que o guerreiro obedece o que ele pensou que o santo lhe ordenaria fazer mesmo sem que este o fizesse. Independente desta questão, o que estes trechos parecem nos elucidar é como o braço religioso não pode ser pensado sem o laico, e, uma vez cristianizado, vice-versa. 407VITA ABBATORUM, cap. 8. 408 VITA ABBATORUM, cap. 17. 409 Combellatores mei amantissimi […] BRENDANIS. Cap. II. 410Poderíamos pensar aqui que este seria um dos topos comum ao fenômeno da santidade, a vitalidade corporal que parece derivar muito mais da santidade do que da vitalidade própria da fisiologia humana. Ainda assim, este elemento não destrói nossa argumentação, mas ajuda a ancorar a espiritualidade em sua própria concretude e historicidade, conferindo a uma vida que estaria em estado terminal capacidades que lhe seriam típicas quando em sua plenitude. 115 de não estarem presentes no contexto dado pela fonte, existem. Significação não muito diversa do que poderíamos esperar de fenômeno semelhante no mundo laico. Espirituais ou não, clérigos certamente detêm armamentos. A divisão que a Baixa Idade Média e a Idade Moderna consagraram, de condenação por parte da Igreja e execução da pena pelo braço laico, não pode desonerar a primeira da execução do ato. Na mesma miopia analítica incidiríamos se pensássemos braços cobertos por estolas e vestes monásticas muito diversos dos que ostentam escudos e espadas. Seria mais profícuo pensar em um conjunto amplamente articulado, interconexo do que em dicotomias definitivas.411

e) Bens de litígio, bens de prestígio A circulação de bens de prestígio é, por definição restrita, o que pode conduzir à ideia de que qualquer bem que seja escasso possa se tornar um elemento de distinção social, e até à ideia de que mesmo um item normalmente abundante possa assumir esta condição quando sua disposição é rara. Esta é a base para um dos argumentos de João Bernardo, inclusive para indicar como a posse de alimentos em períodos de carestia poderiam transformar víveres em bens de prestígio.412 Nossa posição diverge. Pensamos em víveres e bens de quotidiano em contraste com bens de prestígio e, sob a ameaça de parecer funcionalista, em tom didático teríamos os víveres e a espada, por exemplo, como elementos que circulam em veias e artérias respectivamente. Inscrevem-se, portanto, em níveis de circulação específicos. Não pretendemos com isso negar a possibilidade de elementos estranhos ao sistema manifestarem-se. O que pretendemos evidenciar é que o citado exemplo de João Bernardo é válido para pensarmos nos embates que são erigidos a partir da necessidade de subsistência imediata e o quanto isto pode afetar e alterar as relações de poder em determinado contexto. Contudo, bens de prestígio não são itens necessários à reprodução fisiológica, mas elementos necessários à reprodução de classe, enquanto projetores e formas de expressão de status, poder e riqueza. A amplitude de circulação reduzida é fenômeno fundamental para os bens de prestígio, e se a escassez representa algo de fundamental para a caracterização dos mesmos enquanto tal, esta

411 Não negamos, contudo, a possibilidade de conflito este estes setores. 412 BERNARDO, João. Poder e Dinheiro. Do Poder Pessoal ao Estado Impessoal no Regime Senhorial, Séculos V- XV, vol. 1. Lisboa: Afrontamento, 1995. 116 limitação não diz respeito exclusivamente à produção, mas à sua circulação. É imprescindível ressaltar que a presença de variados metais típicos da fundição de ferro foram achados em diversos sítios arqueológicos datados entre os séculos V e VII – é o caso de Little Totham (Essex), Romsey (Hampshire),413 West Stow,414 Catholme415 e Sutton Courtenay,416 em presença tão maciça que levou um arqueólogo a afirmar que “todo homem poderia ser seu próprio ferreiro”.417 Com maior sobriedade, ao analisar os dados do sítio de Mucking (em Essex), McDonnell afirma que os trabalhos de forjaria e fundição ocorriam na mesma localidade “para satisfazer às necessidades locais”.418 Arnold ainda nos lembra que aos grandes depósitos de ferro em Weald ou na Floresta de Dean não corresponderam nenhuma fundição em larga escala. Em termos de possibilidades, as espadas, as armaduras e os elmos não seriam bens com tamanha dificuldade de serem produzidas – em números absolutos, não necessariamente com a qualidade épica dos poemas que deles tratam. A possibilidade de produção é real, mas as formas de circulação do bem acabam por ter suas implicações na produção. Também não devemos esquecer que o processo de formação da aristocracia também tem ligação com o progressivo monopólio da atividade bélica por parte dos seus membros.419 Deve-se pensar esta “escassez programada” do potencial bélico – em termos de homens participantes da peleja e deste tipo de armamento específico – como uma das formas de expressão do crescimento do poder aristocrático, assim como a forma de projetar violência (em termos reais, potenciais e simbólicos) para a manutenção desta concentração de status, riqueza e poder. A caracterização de um item específico como bem de prestígio possui, portanto, laços mais estreitos com a maneira como estes itens – em sua forma, não em sua especificidade – se inserem em outros fenômenos, como o fetichismo religioso. Bens de prestígio estão intimamente vinculados a fatores ideológicos, e não podem ser qualitativamente determinados como oriundos de escassez, mas como fruto de um sucesso particular, o sucesso da aglutinação dos monopólios

413 MCDONNELL, G. Iron and its alloys in the fifth to eleventh centuries AD in England. World Archaeology, 20, 1989. 414 MACALISTER, F. 'The Slags', in West Stow: The Anglo-Saxon Village, in East Anglian Archaeology 24 (Gressenhall, 1985), p. 69. 415 LOSCO-BRADLEY, S. Catholme. Current Archaeology 59, 1977. 416 LEEDS, E.T. & HARDEN, D.B. The anglo-saxon Cemetery at Abingdon. Berkshire, Oxford. 1936 417 LEEDS & HARDEN, op. Cit, p. 24. 418 MCDONNELL, op. Cit., p. 83. No original, “on a small scale to satisfy local needs”. 419 Parece-nos salutar indicar, em conjunto com a paulatina (porém nunca absoluta) exclusão dos não-aristocratas da atividade bélica, a possibilidade de concentração de saberes no que tange à produção dos armamentos ora tidos como bens de prestígio -espada, elmo e armadura. Se assim pensarmos, o citado argumento de McDonnell a respeito dos trabalhos envolvendo metais restrito à necessidades locais ganha ainda mais peso. 117 de uma classe (e conseqüentemente, cm a expropriação de outra), em conjunção com a divisão social do trabalho.

Música Conforme o já explicitado, um dos objetivos destes tópicos é evidenciar o intercruzamento dos mundos laico e eclesiástico no que tange à aristocracia. Um tópico dedicado à discussão do papel da música está voltado de maneira bem explícita a este objetivo, e mesmo que ambos os setores guardem suas especificidades quanto à forma pela qual se relacionam com a mesma, é certo que compartilham o afeto por ela. As constantes narrativas que se afiguram no âmbito de nossas fontes, muitas delas em Beowulf, são acompanhadas pela melodia emanada de instrumentos musicais, mais especificamente da harpa. Considerando todas as poesias, são computadas 17 (dezessete) referências em Old English para hearpan, 3 (três) para hearpe, e um para o tocador da harpa, hearpera. Destas 21 (vinte e uma) referências, 7 (sete) são voltadas para versões em Old English para salmos originalmente em latim, no qual as palavras latinas normalmente usadas são ou cithara ou psalterium, que o poeta traduziu por hearpe. Das 14 (catorze) referências restantes, 5 (cinco) estão presentes em Beowulf, sendo 4 (quatro) no último terço do poema, no qual se encontra o dragão, e apenas uma nas primeiras partes, nomeadamente o trecho em que a harpa enraivece Grendel, ocasionando sua primeira invasão a Heorot: “Nas sombras, sofria selvagem ser: / feroz monstro ferido com o fervor / da alegria que, todo dia aguda, / saía do salão. Lá, soava o som / das cordas da harpa.” (versos 87- 91). O que se obtém acerca da harpa nesta passagem é que ela é tocada em um salão de alegre cacofonia, e que ela é acompanhada por uma composição poética, a qual é descrita com verbos de fala mais do que de canto (saegde, reccan), apesar de a performance ser chamada de canção (sang). As alegrias do salão, da qual a harpa é apenas uma parte, é contrastada com a escuridão do lado de fora do mesmo.420 Parte da historiografia que o aborda o trata como um dos temas nos quais se manifestaria uma dicotomia que seria recorrente no poema, entre civilização e caos, luz

420 OPLAND, Jeff. Anglo-Saxon Oral Poetry: a study of tradition. Connecticut: New Haven, 1980. Pp. 192-199; PAGE, Christopher. Anglo-Saxon Hearpan: their terminology, technique, tuning and repertory of verse, 850- 1066 118 e escuridão, criação e destruição.421 Algo que poderia ser apreendido do trecho citado é que a harpa produzia som com alcance suficiente para todo o salão e além. O que os estudos de reconstituição arqueológica nos indicam, contudo, é que harpas e liras anglo-saxônicas provavelmente projetam uma sonoridade mais “frágil”, e sua execução deveria ser voltada para audiências mais “íntimas”.422 As demais citações a harpas presentes no poema figuram de maneira indireta, muito em função do recurso estilístico dos keenings, que se constituem de breves descrições referentes a ações ou características marcantes do referente, utilizadas no lugar do substantivo. Um exemplo seria a via de baleias423 que é nada menos do que o oceano. Ao iniciar a narrativa da Batalha de Finnsburh, o bardo toca sua “lígnea / peça de prazer, a harpa um poeta dedilhava.”.424 A tradução que utilizamos optou por verter diretamente o que, no original, seria uma joy-wood (gomenwudu greted).425 Ao recontar suas aventuras para o rei Hygelac, Beowulf menciona que após a derrota de Grendel e de sua garra estar pendurada no salão, “às vezes, varão à harpa vertia / (à lígnea peça de prazer) ledice”.426 Apesar da repetição do arranjo pelo tradutor, no original o que era gomenwudu greted se torna hearpan wynne, evidenciando-se a ligação da harpa com a alegria e, segundo Boenig, também reforçando a contraposição entre a luz projetada pela harpa e a alegria do salão com a escuridão do mundo externo a ele.427 À aproximação das passagens nas quais o dragão atacará o reino de Beowulf, o poema assume um tom melancólico: “Longe não vai das costas / o tilintar de anéis junto ao abatido / herói. A harpa não exala alegria: / som de peça de prazer não mais sai. / E o falcão vôo já não faz no salão. / Lesto corcel já não corre na corte”.428 O keening presente neste trecho para designar o instrumento é gleobeames, em inglês moderno “song-beam”, o que leva Boenig a afirmar que provavelmente aqui se explicita que a função principal do instrumento era o acompanhamento da voz humana.429

421 BOENIG, Robert. The anglo-saxon harp in Speculum, vol. 71, n.: 2. Medieval Academy of America, 1996. P 292. 422 PAGE, op cit, p. 90. 423 RAMALHO, op. cit. V: 11. 424 Idem. V. 1064-1066. 425 Idem. No original em Old English, verso 1065. 426 Idem. V. 2103-2104. 427 Estas ligações estariam presentes principalmente a partir de termos como feorran rehte e syththan mergen com. BOENIG, op. cit. P. 293. 428 V. 2261-2266. 429 BOENIG, op. cit. P. 293. 119

Três liras chegaram a nós, até o momento, a partir de escavações arqueológicas, todas elas no período anterior à Segunda Guerra Mundial. Uma manteve-se, durante todo o período da Guerra, na Inglaterra, e é oriunda das escavações do sítio de Sutton Hoo. As outras duas estavam sob domínio alemão: uma foi destruída quando do bombardeamento aliado a Colônia, tendo a segunda um final mais peculiar. Quando os soldados russos ocuparam Berlim, quebraram o jarro no qual ela estava preservada em álcool, beberam o líquido que preservava o artefato e destruíram o instrumento.430 A lira sobrevivente, durante muito tempo, foi identificada como sendo uma harpa.431 Grande parte desta identificação se justifica pela recorrência da temática das harpas em fontes diversas. Tal apontamento acabou por gerar argumentos circulares: a arqueologia demonstrava a veracidade das fontes que atestava os achados arqueológicos e assim por diante. O problema de identificá-la como harpa ficou evidente pela sua singularidade, descrita nas palavras do organologista Jeremy Montagne, como “sido restaurada como uma harpa totalmente improvável, de um formato não conhecido em outro local ou tempo.”432 Além deste item, o sítio arqueológico contém uma longa lista de itens raros e exóticos: um estandarte de ferro, de design bem peculiar; um cetro de pedra ornamentado com um cervo de bronze sobre um anel também de bronze; espada, escudo e elmo, tão elaborados a ponto de alguns autores descreverem sua origem como exterior à Inglaterra, mais especificamente, da Suécia; uma bacia (bowl) copta, um par de colheres bizantinas com inscrições em grego identificadas como “Paulo” e “Saulo”; dois copos de beber produzidos a partir dos cornos de um auroch, um animal há muito extinto quando do enterro de Sutton Hoo;433 um grande prato bizantino marcado com a inscrição do imperador Atanásio I e alguns outros pratos bizantinos não marcados; moedas de origens diversas e outros itens, cujo conjunto será analisado mais detalhadamente adiante. O que desejamos levantar a partir destas referências é como é mais comum, pelo menos no quadro da inumação real na qual nos baseamos, que itens a princípio alienígenas àquela sociedade foram justamente os que parecem ter sido escolhidos para serem enterrados com a figura que dificilmente não encararíamos como régia. A posse de tais itens parece-nos um dos

430 BOENIG, op. cit. P. 300. 431 Ver Figura 8, página 187. 432MONTAGNE, Jeremy. The World of Medieval and Renaissance Musical Instruments. Woodstock, N.Y., 1976. P. 13. 433 EVANS, Angela Care. The Sutton Hoo Ship Burial. Londres: British Museum Press, 1994. P. 65. 120 elementos fundamentais na afirmação do poder real e de sua diferenciação no seio da aristocracia. Destarte, a hipótese da “harpa” na verdade ser uma lira “não-doméstica” (no sentido de oriunda de fora da ilha) toma forma e ganha força. Em sua síntese dos estudos até então voltados à compreensão da organologia e musicologia a partir das escavações de Sutton Hoo, Boenig chega à conclusão de que todos os dados de que dispõe quando da redação de seu artigo são inconclusivos.434 Tal avaliação nos parece derivar, sobretudo, de sua preocupação central de avaliar a existência efetiva, concreta e vestigial, das harpas citadas frequentemente pela poesia anglo-saxônica. Caso o estudo do autor se orientasse mais pela maneira como tais instrumentos e a música que proviam se relacionavam com as questões de poder da sociedade em que se inscreviam, seu trabalho atingiria metas mais claras. A conclusão do autor, contudo, não deixa de ter seu tom de poesia: “Os potentados enterrados em Sutton Hoo e Taplow devem ter tomado suas rotas através da escuridão com elas [as liras], mas talvez tenham deixado as quotidianas harpas angulares ou triangulares em seus salões na esperança que os bardos as usariam para cantar seus feitos gloriosos”.435 A dança parece ter sido algo que não mereceu atenção dos quadros normativos em nosso período de estudo, (in)felizmente. As fontes que abordamos sequer contêm referências à mesma. A prática, contudo, não parece ser inexistente. A primeira referência que se faz a ela encontra-se em uma tradução para o Old English de uma regra de Chrodegang, bispo de Metz, segundo a qual os sacerdotes não deveriam envolver-se em celebrações, como as nupciais, nas quais as pessoas obscenamente moviam seus corpos em danças e “saltos”.436 O original franco remete a meados do século VIII, e, portanto, a introdução de tal medida na ilha pertence a um período além do nosso; registra-se aqui, contudo, que não deveria ser algo de extraordinário nos períodos anteriores. A musicalidade também tem importância nos setores eclesiásticos. A vinda de João, o “arquicantor”437 da Igreja de Pedro, até os reinos anglo-saxões é registrada em três fontes diferentes: a Historia Ecclesiasticca, de Beda,438 a Vida dos Abades,439 também de Beda, e a

434 BOENIG, op. cit. P. 315. 435 Idem. P. 320. 436Ubi obscene motus corporum choris et saltantionibus efferuntur, apud STANLEY, Eric. Dance, dancers and Dancing in Anglo-Saxon England in Dance Research: The journal of the Society for Dance Research, vol. 9, n.: 2. Edinburgo: Edinburgh University Press, 1991. 437 O termo em latim é archicantator. 438 HEGA, op. cit. IV, cap. 18. 439 Cap. VI 121 anônima Vida de Ceolfrido.440 A viagem de João tinha como objetivo ensinar os cantos e salmos à maneira romana, como as três fontes fazem questão de ressaltar. Poderíamos entender que havia formas outras concorrentes à da Igreja de Pedro em termos de cânticos e entoação de salmos; se levarmos em consideração que este evento acontece logo após o Sínodo de Whitby, no qual os partidários da regra romana e irlandesa (ou celta) se enfrentam441 e o partido romano é vitorioso, teremos ainda mais indícios para assim pensar. A música está presente tanto nos espaços clericais quanto nos leigos; salmos e bardos parecem ter, guardadas as devidas proporções, as mesmas funções. A Música parece deter uma parcela importante no quadro de gostos (e lazeres) aristocráticos. Com isso, não pretendemos ignorar o quanto de originalidade ou de importância detem o louvor para a adoração à divindade cristã no âmbito do cristianismo; todavia relacioná-lo com formas outras de expressão musical no nosso contexto de transformação societária nos soa como uma forma importante de ancoramento do louvor, conferindo-lhe materialidade e historicidade, a partir da sua relação com sua inserção de classe.

Mulheres A inserção de um tópico acerca de mulheres em uma seção voltada para objetos de prestígio pode soar um tanto quanto descabida, e por isso explicações mínimas são necessárias. Conforme citamos acima, aparentemente as mulheres foram mais vítimas da escravidão no mundo anglo-saxônico do que os homens, em função destes geralmente serem assassinados ao sofrer revezes no campo de batalha. Entre os enterramentos, há alguns indícios de mulheres que eram assassinadas para seguirem com o marido à vida após a morte. Em Finglesham (no Kent), Fathingdown e Mitcham (esses em Surrey) foram encontrados corpos de mulheres contorcidos, o que poderia indicar corpos enterrados vivos. Os enterramentos orientados por esta lógica seguem duas vias prováveis: uma é a do enterramento juntamente à senhora442(caso encontrado em Sewerby, Leste de Yorkshire)443 e o outro é o caso de estupros por diversos homens seguido de morte quando do

440 Cap IX. 441 As questões principais debatidas no Sínodo foram o cálculo da data da páscoa e, de maneira ligeiramente mais lateral, a forma da tonsura dos monges. 442No sentido de condição social, “senhora” como “aristocrata”. 443 Esta ossada foi encontrada sem qualquer item, e sobre ela havia uma rocha cuja intenção parecia ser a de impedir 122 saque ou pilhagem de uma vila – caso das mulheres de dezesseis e de trinta e poucos anos de Worthy Park, em Hants.444 As complexas relações de gênero também se expressam por vias outras. Há indícios, ainda que não definitivos, do costume da poliginia445 (polygyny) manter-se a despeito da cristianização. O termo mais correto, contudo, no lugar de poliginia seria o de concubinato, uma vez que o primeiro poderia levar à compreensão de que múltiplos casamentos legalmente válidos seriam permitidos a um homem, mesmo que nem todas as esposas desfrutassem de um mesmo estatuto, cabendo a alguma dentre elas papel e definição (mesmo “jurídica”) diferenciados.446 O conceito de concubinato parece mais adequado, remetendo à relação entre um homem que é casado com uma mulher e mantém, no entanto, mulheres outras em sua morada sob a sua guarda e que são também suas parceiras sexuais, podendo mesmo ter filhos com elas, que serão, contudo, considerados bastardos, o que revela o seu estatuto social diferenciado.447 Da mesma maneira, o concubinato não se afigura como aceito e divulgado juridicamente, porém é reconhecido conforme o costume. As mulheres quase não constam nas fontes legais de nosso período de estudo. Aparentemente, praticamente não são entendidas como pessoas jurídicas, estando sempre submetidas ao mund448 de algum homem. A inserção feminina se projeta justamente quando, por algum motivo, elas escapam a este alcance. Sua presença é quase sempre contingente, portanto, e merece destaque em nossa análise a forma através da qual parecem adquirir uma expressão superior, como é o caso quando se tornam responsáveis pela proteção dos filhos em caso de viuvez.449 As viúvas parecem gozar de maior liberdade também devido à possibilidade de acumulação de riquezas advindas de presentes de casamentos anteriores, e também parecem poder optar por um segundo ou terceiro casamento, ou ainda entrar para a vida eclesiástica,

o corpo de sair da tumba. Abaixo dele fazia o corpo de uma mulher idosa, ricamente adornada, com itens diversos de alta qualidade, e cuja datação é idêntica a do outro. Ver figura 6, página 186. Para a comparação entre uma tumba masculina e femina de membros de alta extração, ver figura 25, página 197. 444LAING, Jennifer e LAING, Lloyd. Anglo-Saxon England. Lonon: Routledge, 1990. pp. 81-83. 445 Sistema poligâmico no qual um homem pode casar com uma pluralidade de mulheres. Evitamos o termo poligamia uma vez que este indica apenas o casamento de um com diversos, sem a especificação da proporção entre os sexos envolvidos. 446 FORD, C.S. ; BEACH, F.A. Patterns of sexual behavior. Londres: 1952. 447 ROSS, Margareth C. Concubinage in Anglo-Saxon England. in Past and Present, n. 108. 1985. P. 5. 448 Esta palavra em Old English tem signifcado simultâneo de “mão” e “proteção”. 449Aethelbert, 79 e 80; Hlothhere and Eadric, 6. WHITELOCK, D. Op, cit. 123 conforme aponta Ross. As evidências de que mesmo uma mulher inserida na Igreja ainda estaria submetida ao mund de homens mais poderosos (fosse ele o rei, o bispo ou o possuidor laico do patrimônio no qual o mosteiro fora edificado) levou Liebermann a afirmar que o cargo de abadessa não poderia nem sequer adquirir tons de autoridade eclesiástica. Concordamos, contudo, com Ross, em que na prática havia mulheres que exerciam tais cargos desfrutando de poder efetivo, como foram os casos das nortumbrianas Aebbe de Coldingham e Hild de Whitby.450 A mudança no status da mulher sob a guarda de um homem alterava consideravelmente o status do guardião. As leis de Etelberto impõem o pagamento de determinada quantia a um homem traído, e tal quantia deveria ser paga exclusivamente pelo amante.451 Caso este quisesse se casar com a esposa de um homem casado, o pecúnio total deveria ser a soma do wergeld do próprio amante adicionado da compra de uma nova esposa para o marido abandonado452 Caso uma mulher ainda não casada se deitasse com um homem, supostamente deveria ser capaz de angariar a quantia devida pela infração sozinha.453 A inserção social de mulheres que deixam sua família454 deve ser observada, contudo, com cuidado. Soma-se à forma de deslocamento voluntário, o involuntário, especialmente as capturas de guerra. E as relações jurídicas daí derivadas parecem estar submetidas a relações de poder mais amplas, mais especificamente a capacidade de poder do “proprietário” e o seu consentimento em não em desfazer-se do(a) cativo(a). Relembramos aqui a já citada passagem em que o abade Beorwoldo de Glastonbury, no início do século VIII, recusa-se a se desfazer da posse de uma jovem capturada, mesmo com sua parentela oferecendo-lhe uma quantia equivalente ao wergeld do mais alto escalão do Kent.455 Tendemos a considerar que Eppa, a mencionada jovem, fosse de extração nobre, não apenas pelo valor do wergeld mas pela capacidade de sua família de angariar tamanhos recursos. As leis de Etelberto, as primeiras (cronologicamente) às quais temos acesso após o processo de conversão ao cristianismo, concede-nos elementos a partir dos quais podemos pensar

450 ROSS, op. cit. P. 9. 451 Aethelbert, 31. WHITELOCK, op. cit. 452 Idem. 453 Aethelbert, 73. Idem. 454 Por “família”, “parentela”, “parentes” e correlatos, nos referimos ao termo que a historiografia inglesa utiliza como kin. Diversificamos as entradas em português objetivando não diversidade semântica exclusivamente, mas tentando evitar uma redação excessivamente enfadonha. 455 S. Bonifatiie et Lulliie pistolae, WHITELOCK, op. cit. p 794-795. 124 o casamento no âmbito de uma sociedade que transita de antigos costumes em direção a outras formas normativas. Nota-se, primeiramente, a ausência de termos como (riht)aew, que indicam casamento ou desposamento legal. As mulheres aparecem apenas como propriedades do marido, apesar de o próprio corpus legal nos informar que o casamento se afigura quase que como um contrato, com o homem literalmente pagando o relativo preço da esposa aos homens sob cuja proteção ela se encontrava. O vínculo poderia ser desfeito por consenso ou exclusivamente pela vontade da esposa.456 O mesmo conjunto de leis promulgadas pelo citado rei reconhece um número diverso de maneiras através das quais um homem pode ligar-se a uma mulher, mas não reconhece o concubinato. Em fins do século VII, as leis de Withraed, cuja datação remonta a 695, estabelecem que os homens que vivem em coabitação ilícita deviam regularizar suas relações. Ross observa, a partir de e concordando com Liebermann, que a coabitação ilícita (unrihthaemed maen) se contrapõe em nível moral ao casal cuja relação é a prescrita pela normativa (rihtgesamhiwan), e a significação projetada sobre os ilícitos é a de concubinato. A autora ainda relaciona a ausência do tema nas leis ao fato de que, apesar de constituir, segundo sua análise, numa relação caracterizada pela perenidade e pelo seu caráter público, não chega a estabelecer-se laços formais nos quais figurariam, entre outras coisas, a troca de presentes. Formais ou não, as relações entre estes homens e suas concubinas geravam descendência. Nota-se, inclusive, uma preocupação com a inserção social desta; aparentemente, caso o pai o indicasse em testamento ou reconhecesse a paternidade, ainda que bastardo o filho inserir-se-ia na parentela do pai. Em caso de posicionamento negativo do pai, prescreve-se a seguinte fórmula: “Quem gerar uma criança ilegítima e não a reconhecer, não possui direito ao seu wergeld quando de sua morte, mas o senhor e o rei [o têm]”.457 Desta lei podemos concluir que, em nosso contexto, os homens dificilmente deixam de estar circunscritos de alguma maneira a algum grupo familiar; da mesma forma a apropriação do wergeld parece derivar simultaneamente desta inserção familiar e das relações de poder (mais ou menos explicitamente conflituosas) estabelecidas. Desta maneira, o “preço do homem”, tabela de valores relacionados à reparação de eventuais danos infligidos aos indivíduos, também parece conter os níveis da entropia social,

456 ROSS, op. cit. P.11. 457 Ine, 27. WHITELOCK, op. cit. 125 principalmente os derivados do fenômeno histórico conhecido como faida.458 Esta lei de Ine prescreve que mesmo aqueles não inseridos em grupo familiar algum são cobertos pela necessidade de prestação pecuniária em caso de assassínio. O endereçamento do montante devido também merece melhor detalhamento. Ao colher a quantia relativa aos bastardos, a realeza com ela traça um laço de parentesco “artificial” que, aparentemente, é unilateral: o rei tem acesso à riqueza representada por aquele indivíduo, mas não há nada que indique (nesta lei e no conjunto das fontes das quais dispomos) que estes indivíduos se vinculem de maneira mais próxima à realeza ou que tenham acesso a alguma benesse desta relação. Esta inserção nos grupos familiares evidenciada pelo wergeld remete-nos a outra questão, voltada à perspectiva de longa duração assumida no capítulo anterior. As primeiras leis de Kent (Etelberto e Ine) apontam que em boa parte das infrações cometidas, uma parcela (se não a totalidade) da soma devida seja entregue à realeza. Se a lógica do wergeld nas sociedades germanas em períodos anteriores era a comutação da vingança de sangue por pagamentos, tentando reparar a família que sofreu a agressão, poderíamos pensar que o pagamento à realeza constituía o reconhecimento da afirmação e ascendência desta sobre os grupos familiares. Desta maneira, a realeza também está inserida em todas as parentelas, de maneira a ser o chefe de cada uma delas e, portanto, de todas elas.459 O poder, portanto, não se ergue a despeito das relações familiares, mas a partir dos mesmos. Na legislação primeva acerca do tema sexual é mencionado apenas o termo haeman, de semântica congruente ao termo haemed, ambos significando relações sexuais com uma coabitante da casa (ham). Estão inseridos na mesma árvore morfológica derivada de “habitação”460 (ham) as palavras casamento461 (hiwung), família462 (hiwan) e lote de terra (hid).

458 Em inglês feud (normalmente mal traduzida como “feudo”), este fenômeno diz respeito ao direito e dever do membro de uma família agredida de retaliar a família agressora em igual medida. Nota-se a espiral interminável que tal medida representa, e os homens que a vivenciaram parecem ter percebido este potencial, estabelecendo medidas de combate a esta possibilidade. A mais importante delas é o citado wergeld. 459 Em função do quadro apresentado no tópico “geografia” do capíulo anterior, pensamos tamém que estas taxações são uma maneira de garantir a captura de recursos, que não são pujantes em nosso recorte. 460 Traduzimos por ora habitação ou casa os termos home e estate em inglês. 461 “Marriage.” 462 “Family” ou “household”. Optamos pela tradução por família objetivando tornar claro o quanto o conceito de família é extenso e extensivo quando comparado com a moderna família burguesa, da mesma maneira que evidenciando que a contiguidade espacial e os laços que permitem a subsistência dos homens e mulheres na sua inserção na sociedade tendem a ser de fato encarado como familiares em algum nível, o que pode ser um fator chave no entendimento da naturalização das relações humanas e da concretização do fetichismo (normalmente 126

Esta indiferenciação desaparece nos momentos finais do século VII, quando os reinos já adotaram o cristianismo. Passa-se a considerar a consorte legítima como rihthiwa, rihtaethelcwen, rihtaew ou aew, e o casal legalmente casado, rithgehiwan ou rihtgesamhiwan. Aos que se relacionam ilicitamente (ato considerado concubinato, conforme acima demonstrado) resta apenas a negação e alguma forma de pecha social, e lhes adiciona o prefixo un (unrihthiwa, unrihtaethelcwen, unrihtaew, e unrithgehiwan e unrihtgesamhiwan, respectivamente).463 À alteração social correspondeu uma mudança etimológica. A questão familiar também esteve presente no mundo clerical. A comunidade monástica frequentemente teve suas altas posições ocupadas e passadas de irmão para irmão464(abade), e de irmã para irmã465(abadessa). Há a defesa de certa parte da historiografia, a partir de uma carta posterior de Beda, de que tais passagens se devam ao fato de que a parentela tende a administrar os mosteiros como extensões de suas posses e bens.466 Se seguirmos a premissa de que o concubinato manteve-se como costume, ao menos inicialmente, a despeito da proibição, ainda que posteriormente tenha sido sucessiva e progressivamente podado de acordo com o sucesso do cristianismo e de suas ações normativas, chegamos à conclusão de que é possível que a instauração da monogamia possa ter gerado um descompasso entre o número de mulheres “desposáveis” e a quantidade de jovens guerreiros capazes de lhes conceder um lar, uma vez que estes tendiam, como apontamos anteriormente, a perecer (jovens) no campo de batalha.467 Em seu estudo acerca da cristianização da Inglaterra, Henry Mayr-Hartin aponta que o sucesso de mosteiros duplos pode ter sido motivado pelo crescente contingente de jovens nobres incapazes de encontrar um marido compatível com sua condição social.468 Há, também, testemunhos do período posterior ao que estudamos, que indicam que os reis usavam os conventos como depositários de princesas, incentivando um tipo de agamia, constrangendo sensivelmente a possibilidade de homens alheios à sua parentela clamarem pelo trono. A indicação de mulheres da casa régia para ocuparem altos cargos eclesiásticos também

considerado religioso neste contexto). 463 ROSS, op. cit., p. 22. 464 BEDA. Op. cit. Livro III, cap. 23. 465 Idem. Livro IV, cap. 26 e Livro V, cap. 3. 466 ROSS. Op. cit. .p. 29. 467 Esta afirmação contudo, não deve ser interpretada como definitiva e peremptória, pois apesar dos elementos presentes nos artigos citados, ainda são imprecisos os dados que dispomos acerca das taxas de natalidade e do número médios de filho, que poderiam compensar a elevada mortalidade. Ainda assim, na ausência de dados mais firmes, optamos por desenvolver a hipótese, cuja aferição está condicionada a estudos posteriores. 468 MAYR-HARTIN, Henry. The coming of Christianity to Anglo-Saxon England. p. 250. 127 pode ser considerada como uma estratégia não apenas de ocupação de toda e qualquer posição de poder disponível, mas de seu controle direto. Se atribuirmos crédito aos correspondentes de Bonifácio na ilha enquanto este estava em suas missões no continente, perceberemos que muitos dos mosteiros fundados em terras régias eram não só ocupados pela parcela feminina da parentela real, mas também estavam submetidos às supervisões e demandas do rei.469 O controle do mund de uma mulher que entrava na vida monástica também sofria revezes consideráveis. Beda nos brinda com o relato de Aethelthryth, filha do rei Anna da Ânglia Oriental, que se retirou para Coldingham e, posteriormente, para Ely com o apoio de Vilfrido e Abbe, irmã de seu marido Egfrido da Nortúmbria e abadessa de Coldingham, e contra os desejos do próprio Egfrido.470 Fontes e historiografia parecem assentir que quando uma mulher se retirava para a vida monástica, ela se encontrava sob jurisdição do senhor da terra na qual o mosteiro fora fundado e, caso ela própria fosse a dona das terras, especialmente na condição de abadessa, ela estaria subordinada à figura do bispo local ou do rei. Não seria exatamente impreciso considerar que nos primeiros momentos da Igreja anglo-saxônica, os guardiães das religiosas fossem seu próprios parentes; com o florescimento da rede monástica e a complexificação da Igreja e de suas relações, afirmações deste porte sem um suporte documental mais efetivo se tornam excessivamente incertas. Vislumbramos dados que nos permitem identificar não só a manutenção, pelo menos por uma fatia de tempo considerável após a cristianização, da instituição do concubinato aliada à do casamento, da mesma maneira que um movimento de reconhecimento dos filhos bastardos e de seu potencial acesso à herança. As sucessivas investidas da Igreja poderiam resultar em uma redução significativa do surgimento de eventuais herdeiros e o aumento da possibilidade de alienação de bens em seu benefício. Não pretendemos aqui indicar que os homens da Igreja deliberadamente planejaram contra a instituição do concubinato para que suas posses fossem ampliadas, minimizando (se não eliminando!) elementos moralistico-normativos que acompanham estes homens e mulheres. O que desejamos sublinhar nesta discussão é a impossibilidade de defenestrar as conseqüências sociais, em um espectro amplo, de tais medidas. O concubinato, conforme delineado brevemente, manifesta-se então como uma das formas essenciais de entender a inserção feminina no mundo anglo-saxão, seja pela presença,

469 YORKE, Barbara. Kings and Kingdoms in Early Anglo-Saxon England. New York: Routledge, 1990. 470 ROSS, op. cit. P. 30. 128 seja pela negação ou condenação da instituição. As formas familiares apresentadas são restritas à alta aristocracia, e assumem as características não apenas de fausto, mas de elementos fundamentais na reprodução (no sentido mais literal da expressão) no cume deste grupo. Em nosso contexto, o gênero deve articular-se com a classe.

Realeza O Senhor do Escuro, em sua sede de poder, criou diversos anéis e os distribuiu entre as criaturas de maior poder entre todas as raças: nove anéis para os humanos, sete para os anões, três para os elfos, e um para si, que lhe permitiria exercer o controle sobre os demais e, consequentemente, o domínio sobre os que viviam. Este é o enredo de uma das aventuras de literatura infanto-juvenil mais famosa em nossa contemporaneidade, especialmente após a projeção hollywoodiana. A confecção de mundos de fantasia não era a única paixão de J.R.R. Tolkien. O autor dedicou um tempo significativo de sua vida ao estudo das tradições inglesas, e é autor de um ensaio dedicado ao poema épico Beowulf.471 A sociedade anglo-saxônica certamente teve peso considerável na confecção da “Terra-Média” de Tolkien. O poema inicia com a breve descrição do reinado de Scyld Scefing, “chefe dos Danos”, que “foi bom rei” e que, passados 23 versos de sua apresentação, “fez jornada/ derradeira: sob a égide de Deus,/ partiu Scyld. Intrépido, pereceu.” Em sua nave, com alguns itens de seus tesouros, “puseram/ o homem que em vida, os anéis de honra dava”.472 Quando a comitiva de guerreiros capitaneada por Beowulf chega até Heorot, palácio de Hrothgar, é recebida por um guerreiro da estirpe dos Vendels;473 que caracteriza o rei Hrothgar (descendente do rei citado anteriormente) como “danês amigo, o que dá anéis de honra,/ poderoso dentre o povo de Scyld.” Ao mencionar o mesmo governante deixando seus aposentos em direção ao salão para testemunhar o resultado da pugna entre Beowulf e Grendel, o poeta o descreve como “guardião de anéis”.474A doação de anéis nos parece, portanto uma das funções régias no nosso recorte.

471TOLKIEN, J.R.R. The monsters and the critics. Londres: Harper Collins, 1997. O artigo original é de 1936. 472RAMALHO, Erick (ed.). Beowulf – Edição bilingue. Belo Horizonte: Tessitura, 2007. Respectivamente, v. 4, 12, 26-28, 25-26. 473No original, wendlas, provavelmente habitantes das área hoje conhecida como Vendyssel, parte norte da atual Dinamarca. Há hipóteses de que este povo fosse pelo menos aparentado com o povo germânico conhecido como vândalos. Ver RAMALHO, op. cit. P. 198, nota 6. 474 RAMALHO, op.cit. v. 921. 129

Assim como na obra de fantasia que abre este tópico, para exercer seu poder, a realeza deve dominar os anéis. Nem só de anéis vivem os guerreiros. Como vimos, Beowulf recebeu do rei que era açoitado por Grendel uma insígnia de ouro, elmo, espada magnífica e cota (armadura) de ouro adornadas; oito corcéis, com rédeas enfeitadas com placas de ouro (ainda que somente um deles fosse adornado com arreios de ouro ricamente trabalhados), todos impecáveis. Além disto, distribuiu ouro entre os companheiros de viagem do herói. A riqueza móvel, portanto, é recorrente no poema e suas citações são numerosas, como já apontamos. As menções à doação de terras, no entanto, são menos freqüentes. Podemos encontrar referência, por exemplo, acerca de como viviam Hrothgar com seus guerreiros assim que edificara Heorot, o salão dos salões: “Lá dentro, dividia ele, dando a todos,/ jovens e velhos, o que de Deus vinha,/ exceto as vidas dos homens e as terras.”475 Ao retornar ao reino de seu tio Hygelac e distribuir presentes advindos do tesouro da mãe de Grendel e das posses de Hrothgar, o tio de Beowulf “cedeu-lhe sólio, e salão, e, mais, sete mil medidas de solo”.476 Ainda acerca do rei e de seu sobrinho, “ambos, por direito ancestral, ali / tinham, naturalmente, terras (mais, / porém, possuía Hygelac, por ter / posição superior).”477 As sete mil medidas de solo mencionadas são a tradução de hide, que, apesar de muito bem adaptada, foi mal interpretada pelo tradutor, uma vez que ela se refere à medida de solo necessária à reprodução de uma família aldeã. Destarte, Beowulf teria acesso ao sobre-trabalho produzido por cerca de sete mil famílias, o que caracteriza um patrimônio fundiário de enormes proporções, mesmo levando-se em consideração os domínios reais.478 Vejamos, por exemplo, o caso de um santo pertencente ao nosso período de análise, Vilfrido. Ao voltar de Roma pela primeira vez, recebe do rei Alhfrido dez “lotes” (hides). Em seguida, o mesmo rei concede a ele o mosteiro de Ripon e novos trinta lotes, apontando-o como abade.479 Parte da fama do santo advém das muitas fundações de igrejas e mosteiros que realizou. Se considerarmos a doação dos quarenta lotes e da abadia cedida pelo rei Alhfrido,

475 Idem. V. 71-73. 476 Idem. V 2199-2200. 477Idem. V.: 2201-2204. 478 Para efeitos de comparação, quando da conversão do Kent, a ilha de Tanatos contava com seiscentos (600) lotes; já o reino da Mércia teria em sua parte norte cinco mil (5000) lotes, e na parte sul, sete mil (7000). Respectivamente, HEGA, Livro I, Cap. XXV; Livro III, Cap. XXIV. 479 Vita Wilfridi, cap. VIII. Versão em inglês em FARMER, D.H. & Webb, J.F. (trad.). The Age of Bede. London: Penguin Books, 2004. 130 certamente poderíamos considerá-lo como um grande senhor fundiário. Contudo, levando em consideração que, após ser nomeado bispo da Nortúmbria recebeu doações diversas ulteriores às primeiras citadas, feitas tanto pelo novo rei Egfrido e por sua rainha Etheldreda, da Ânglia Oriental, em regiões abandonadas pelos bretões e naquelas próximas aos montes Peninos, quanto por abades e abadessas que buscavam a proteção do hagiografado,480 teremos ciência de quão vasto era o patrimônio de tal santo. Nenhum bispo nortumbriano havia sido tão rico, e a imensidão de suas posses nos faz mesmo crer que pudesse rivalizar com alguns reis. A criação das igrejas pelas quais ganhou fama se deu, sobretudo, nestas áreas doadas. O cotejamento dos setores laicos e eclesiásticos aqui se faz essencial, uma vez que é a partir da infiltração do cristianismo na ilha que surge um novo regime de propriedade, denominado booklands, em oposição ao anterior, denominado folclands. As booklands foram uma forma de apropriação fundiária desenvolvida pela Igreja, que atribuía à concessão um caráter perpétuo, registrando-a por escrito (daí seu nome) a partir do que era ditado pelo rei, aconselhado pelos seus witan.481i Ficavam, portanto, o rei e seus sucessores impedidos legalmente de reclamar as terras de volta e de requisitar do seu beneficiário contingente para participar das expedições militares. A justificativa para a perpetuidade da posse das terras derivava da necessidade de recursos para manter bibliotecas, escolas, scriptoria e, naturalmente, os clérigos. Esta possibilidade de doação sem retorno parece ter sido significativamente palatável à aristocracia. Como percebemos em Beowulf, a doação de terras e salão parece ser uma das condições para a criação e manutenção de sua própria entourage. Os banquetes quotidianos que pululam pelo poema e pelas demais fontes devem sustentar-se na apropriação do sobre-trabalho de outros setores sociais que não a própria aristocracia: os camponeses dependentes. Parece, portanto, que estes processos são convergentes: a autonomização aristocrática crescente (a partir da doação de terras); a entrada em um regime de dependência (em relação à ascendente aristocracia) do campesinato, que até então se relacionava diretamente com a realeza, e a conseqüente debilitação do poderio real. O início do século VIII nos parece emblemático nestas questões: Beda, em uma famosa carta, lamenta que boa parte dos nobres estabeleça mosteiros em suas posses apenas em função

480Idem, cap. XXI. 481 Literalmente, wise men, homens sábios. Formavam o conselho real composto pelos grandes dignitários do reino, tanto laicos quanto clérigos. 131 das vantagens legais que os mesmos envolviam, tornando possível a homens sem vocação chegarem a ocupar cargos de prestígio no quadro eclesiástico. A Nortúmbria, reino no qual Beda se insere, atravessa um momento de decadência quando este redige sua Historia Ecclesiasticca, ao passo que a Mércia estava em ascensão. O motivo principal aventado por Eric John deste processo é justamente a incapacidade régia de remunerar os guerreiros emeriti (jovens guerreiros que já haviam provado suas capacidades militares ao rei), uma vez que a principal forma de doar à aristocracia laica (neste período) é a concessão de patrimônio fundiário vitalício, mas não hereditário; grande parte das terras do reino, neste momento, no entanto, fora concedida à Igreja em regime de ius perpetuum, sob a forma das citadas Booklands. Desapontados com a incapacidade de remuneração do rei da Nortúmbria482, os emeriti embainham suas espadas e partem em busca de um rei capaz de retribuir materialmente os seus esforços bélicos. A Nortúmbria perde sua hegemonia sobre os demais reinos (bretwaldaship483) quando o rei se torna incapaz de reproduzir ampliadamente os vínculos da dádiva. A estrutura de poder nos parece baseada no círculo do dom (dar, receber, devolver) e aqui ela é rompida, e com ela a organização do poder e da dominação, da riqueza e do prestígio. Não seria também exagerado, seguindo este mesmo raciocínio, pensar as doações (e as conseqüentes relações internas ao reino e as relações entre reis) como prestações do tipo agonísticas, ou seja, o potlach, que organiza e reordena as redes sociais, hierarquizando-as em benefício dos mais generosos. O vértice da hierarquia estaria na mão de quem se mostrasse mais capacitado a doar. A circulação dos guerreiros em busca de reis mais bem capacitados a prover-lhes guerra evoca dois fenômenos fundamentais em nossa perspectiva, e que são interligados. O primeiro é que este fenômeno indica um nível de homogeneização considerável dos diferentes reinos (no que tange à estruturação e dinâmica das relações de poder), o que lhes permitia o trânsito entre eles sem que com isso haja diferenças significantes a ponto de serem registradas. Derivada desta, a segunda diz respeito ao que parece ser a plena ciência da aristocracia em relação às sua posição de classe como algo que não está restrito a uma determinada localidade, em oposição ao campesinato, cujo limite é a própria aldeia. A transumância aristocrática - que pressupõe também

482 Já na descrição de Tácito podemos encontrar referências que abordam a tendência de guerreiros a abandonar seus chefes e vincularem-se a senhores que lhes proviam de guerras (e os despojos desta) mais frequentemente. Novamente aqui encontramos outro elemento que reforça a hipótese desenvolvida no primeiro capítulo, a de que a realeza mantém seu status de chefia. 483O Bretwalda pode ser entendido como aquele rei que consegue submeter (sempre em regime honorífico, não hereditário) os demais reinos. Recebe deles como forma de reconhecimento de sua superioridade presentes e tributos, conforme abordado no capítulo anterior. 132 a receptividade e hospitalidade na outra ponta do processo - é um grande indício desta identidade de classe.484 Numerosos trabalhos insistem no estudo da realeza com a atenção voltada às manifestações das tais “virtudes cardeais”, sendo as mais observadas no nosso período de estudo a fortitudo e a sapientia.485 Todos os trabalhos que abordam o tema encontram na figura do rei Hrothgar a encarnação da sapientia, o homem mais idoso e sábio cujos dias de excelência atlética já haviam passado, enquanto a figura de Hygelac expressa a do jovem rei indômito e de capacidade física heróica, porém destituído do que a experiência ou a predestinação podem lhe trazer. O único homem capaz de fazer convergir estes valores seria Beowulf, atleta tenaz e de “forte mente”. O protagonista do épico se afigura, portanto, como o grande exemplo de aristocrata (leal, destemido, honrado, forte) e de rei (com as mesmas qualidades, adicionada a de justo, pelo papel de divisor e doador), atingindo a segundo posição a partir da primeira.486 Não há problemas grandes na análise de realezas (sejam elas medievais ou não) levando-se em conta estes elementos, como valores morais, virtudes, princípios etc, desde que se o faça relacionando- o com a prática efetiva do poder, em outras dimensões e fontes. A realeza prossegue como um pólo de centralidade relativamente estendida. Ela se expressa como um vértice a partir do qual a aristocracia se referencia e, em alguns níveis, chega a mediar as relações internas à mesma, especialmente as conflituosas. Concomitantemente, a realeza não se basta. Apóia-se no quadro social como um todo, por um lado nos guerreiros terratenentes, por outro no campesinato independente. Conforme esse foi progressivamente submetido àqueles a instituição régia viu estreitar-se o seu quadro social de apoio. Fica claro, portanto, o quanto o poder da realeza está relacionado à sua configuração como aristocrata, na

484Conforme apresentado no tópico voltado à discussão conceitual, não somos necessariamente contra a ideia de que haja uma consciência de classe por parte desta aristocracia, deste que matizada em alguns aspectos. 485 CÂMARA, J.R.C. de C. R. da. O poder real na Inglaterra Anglo-Saxônica: uma leitura de Beowulf in Brathair, n. 3, 2003. Também em MEDEIROS, Elton. O rei, o guerreiro e o Herói: Beowulf e sua representação no mundo germânico. USP: Tese de doutoramento, 2006. Esta tese, a despeito de sua recente defesa, encerra problemas que talvez sejam oriundos das perspectivas teóricas assumidas pelo autor. A premissa geral que orienta a tese é que a produção literária é fruto diretamente derivado de um meio, sendo a produção artística praticamente epifenomênica. Não é identificado pelo autor a produção, a circulação e a apropriação (simultâneas no caso de um poema versado cantado pelo scop, o bardo) como também produtora de efeitos. As formas artísticas tornam- se portanto via de mão única, sendo efeitos apenas. Ainda que admita em alguns momentos particulares que o poema também seja capaz de produzir efeitos, especificamente de caráter moral-normativo, no âmbito mais geral a tese do autor acaba por incidir na unilateralidade. 486 Convém aqui o apontamento de que o próprio nome do poema e do protagonista, Beowulf, consiste num keening, e parece-nos uma síntese de “bee” e “wulf”, sendo o “lobo do mel” o urso, um dos signos de realeza no contexto analisado. 133 disputada condição de primus inter pares. A relação de doação parecer ser a medida pela qual se media esta relação de primus inter pares. Ela é uma das formas capaz de articular realeza, aristocratas e homens dependentes na síntese social que é a doação de terras. Como dizemos, os reis não se bastam. Concordamos portanto, com outro poeta, quando este diz que “Um galo sozinho não tece uma manhã. Ele precisará sempre de outros galos.”487

Morte A inumação, durante o período pagão, foi mais difundida na região ao sul do Tâmisa (áreas de domínio majoritariamente saxão),488 na qual o corpo era acompanhado por itens diversos identificados como bens necessários ao conforto no pós-vida. A cristianização pareceu diminuir a quantidade de itens enterrados em conjunto com o corpo; porém, mesmo nos enterramentos dos séculos X e XI em Saffron Walden é possível encontrar ossadas acompanhadas de itens quotidianos.489

Alguns enterramentos eram distintos dos demais (mesmo dentro de um mesmo cemitério), caracterizados pela presença de um montículo. Até o século VII, os corpos eram majoritariamente alocados em pequenos montes preexistentes, alguns pré-históricos inclusive; deste século em diante, os montes passaram a ser produzidos, como os de Kingston Down ou os de Taplow. Ao citar este fenômeno, os Laings vinculam esta prática (utilização de montes já existentes) como forma de poupar energia ou de sobrepor sacralidades diferentes.490 O segundo raciocínio nos parece mais válido do que esta espécie de “marginalismo sacro” apresentada na primeira formulação. Além do mais, deve-se lembrar o processo de hierarquização que a sociedade atravessa: a própria ideia de adição de novos montes (artificiais) para a reprodução e ampliação de enterros com estas características parecem-nos uma forma vital de inserção da aristocracia que surge nas formas de poder vinculadas ao sagrado. A passagem de poucos até uma pluraridade relativamente extensa nos parece relacionado com práticas que anteriormente

487 João Cabral de Melo Neto. Tecendo a manhã. 488Como já destacamos no capítulo anterior, estas divisões étnico-geográficas devem ser matizadas e não levadas me consideração referências intransponíveis e absolutas. 489LAING, op. Cit. p. 80. 490A ideia é de que a estes montículos era reservada alguma forma de sacralidade no momento anterior à instalação anglo-saxônica; ao assentarem-se, esta sacralidade teria sido reconhecida e apropriada. LAING, op. Cit. p. 81. 134 eram vedadas à realeza e que progressivamente passaram a ser extensivas à aristocracia.

Os enterramentos em barcos eram extremamente raros e os casos conhecidos até agora são apenas os de Sutton Hoo e o de Snape, ambos na Ânglia Oriental. Sua raridade está necessariamente ligada à sua suntuosidade, o que requereria grande concentração de bens e posses nas mãos da realeza. Válido e necessário lembrar que o reino no qual estes enterramentos “náuticos” foram enterrados eram regiões que, além de manter o comércio e a troca de bens com as porções continentais francas, também são espaços nos quais os aparelhos náuticos possuíam grande importância. Parece-nos que o barco tenha sido enterrado pela sua importância concreta e por ser índice de prestígio para os reis que neles foram inumados.491

A cremação tinha como objetivo libertar a alma do corpo. Tal prática pode ser entendida como uma garantia contra almas penadas e mortos-vivos, e inclusive alguns corpos parecem ter sido decapitados para evitar que os mortos andassem. Algumas tumbas, principalmente em Surrey, contêm um segundo crânio, o que pode ser identificado com o aspecto sacro da cabeça ou com os troféus de guerra. A segunda alternativa nos parece mais viável, já que a primeira carece de caráter documental primário para sua própria enunciação, enquanto que a segunda nos parece mais verossímil e se tratando de uma sociedade tão marcada pelo belicismo.

A variação entre cremação e inumação dos corpos foi gradativamente cedendo lugar ao definitivo enterramento.492 O estabelecimento deste último como decisivo certamente está ligado ao triunfo do cristianismo. Ainda que trate de uma época na qual o costume de inumação estava prevalecendo, Beowulf nos brinda com duas descrições de cremação corpórea fúnebre: a do fundador mítico da linhagem dos Scyldings, Scyld Scefing, e a do próprio Beowulf.493 Ambos foram colocados em suas respectivas naus, às quais foi atirado fogo; elas estavam atulhadas dos grandes tesouros que ambos recolheram em vida. Tanto a descrição da nave quanto dos tipos de itens nela embarcados são similares na literatura e nos sítios arqueológicos onde encontramos enterramentos em barcos, principalmente no de Sutton Hoo.

O maior tesouro, no entanto, estava protegido pelo antagonista que acabou encerrando a vida do protagonista do épico. Viu-o Beowulf ao atacar e matar o dragão que atormentou seu reino depois de cinqüenta anos de seu reinado: a serpente maligna guardava tesouros

491 LAING, op. Cit. p. 81. 492 Para a comparação georgáfica destas práticas, ver Mapa 3, página 178. 493RAMALHO, op. Cit. Versos: 61-52; 3137-3166. 135 inumeráveis. Ao ferir de morte a serpente, contudo, o herói foi atingido letalmente, e pediu a Wiglaf, seu fiel guerreiro, o único que não o abandonara ao batalhar contra o dragão, que o arrastasse pelo covil do monstro para vislumbrar suas riquezas: “(…) urge-me ver / seu tesouro, sob a rocha gris. Traz-me / a riqueza antiga, os artefatos raros: / contemplar jóias coruscantes quero.”494 Com a ajuda de seu companheiro, então “via ele as jóias, já que o dragão / não mais estava naquela morada / onde a espada o extinguira.”495 Também lamenta não poder passar seus pertences a um filho (por não possuí-lo).496 Em compensação, “Colar do pescoço tirou o príncipe – / de ouro. Deu-o ao jovem de elmo dourado [Wiglaf] / (lutador, com anéis e arnês, de lança). / Urgiu para que bem o usasse(...)”. É fundamental relembrar que o elmo, os anéis, o arnês e a lança, todos foram entregues a Wiglaf por Beowulf, como rei provedor. O desfecho da vida de Beowulf é digno de nota, porém não é de todo inédito no quesito aristocracia. Se percebemos, em Beowulf, a pressão pela doação de ouro, anéis, armaduras e armamentos pelo rei aos seus guerreiros, as instruções deixadas por Vilfrido em seu leito de morte confirmam o jogo de doações para o mundo clerical. Em seus momentos derradeiros ordenou que seu tesouro (ouro, prata e pedras preciosas) fosse separado em quatro pilhas: a primeira deveria ser entregue às igrejas, particularmente às que são dedicadas à Mãe do Senhor e a São Paulo; a segunda aos pobres de sua diocese; a terceira aos abades de Hexham e Ripon, para que tivessem algo em mãos que os ajudassem a assegurar o favor dos reis e bispos; a última para aqueles que trabalharam com ele no exílio mas que até então não tivessem sido agraciados com a terras.497 Os “dois mundos” (laicos e eclesiásticos) não apenas reproduzem formas semelhantes de

494RAMALHO, op. Cit. V: 2746-2749. 495RAMALHO. op. Cit. v. 2776-2778. 496Desejava dar, / agora, a filho meu, estas mi'as armas, / mas o fado, do corpo meu, não fez fruto - / não hei herdeiros. RAMALHO, op. Cit. v. 2730-2733. 497(…) et omne aurum et argentum cum lapidibus pretiosis in consppectu eorum deponere et in III partes secundum suum iudicium dirimere iussit, qui nihil moratus, praecpto sancti patris oboediens, sic omina eonplevit. Sanctus autem pontifex noster ad fideles testes dixit: 'Scitote, fratres mi dilectissimi, cogitationem meam, quam ante olim cogitavi, ut sancti Petri apostoli sedem iterum appellarem et viderem, unde liberatus fui frequenter, Deoque volente, vitam meam illic finirem, et unam optimam ex his IIII partibus ad munera offerenda per ecclesias sanctorum mecum deducere donaque portare ad ecclesiam sancta Mariae matris Domini dedicatam, ad sanctum Paulum apostolum munera pro anima mea offere. (…) Ex tribus vero aliis partibus unam pauperibus populi mei pro redemptione animae meae dividite; alteram autem partempraepositi coenobiorum duorum sepre dictorum inter se dividant, ut cum muneribus regum et episcoporum amicitiam perpetrare potuerint. Tertiam vero partem his, qui mecum longa exilia perpessi laboverunt, et quibus terras praediorum non dedi, secundum uniuscuiusque mensuram dispertite illis, ut habeant, unde se post me sustentent. Retirado da internet no sítio citado/ versão em inglês em FARMER, D.H. The Age of Bede. New York: Penguin Books, 2004. P.: 178. Cap. LXIII. Para a visulização de um artefato encontrado emu ma tumba de santo, ver a figura 5, página 185. 136 presentear e remunerar, mas claramente também o fazem entre si, inclusive como estratégia clara e deliberada por parte dos grandes senhores clericais. Se Beowulf recompensa com armaduras, espadas e elmos, os bens de prestígio aristocráticos por excelência desta sociedade, Vilfrido vislumbra os demais itens de prestígio (que também são fartamente encontrados em tumbas e enterramentos) como formas de garantir a reprodução da própria Igreja, uma vez que essa também está inserida no xadrez aristocrático e, portanto, deve seguir as regras do jogo. Ao longo deste capítulo, demostramos pouco a pouco como, ao contrário do que irão propor as figurações da dança macabra em fins do período medieval, no nosso recorte a morte não iguala os homens, mas, antes, a forma como os homens dispõem-se na mesma ajuda a reproduzir as formas de distinção social, simultaneamente materiais e simbólicas, práticas e sobrenaturais, na imanência da vida e na transcendência da Criação.

Salão Como vimos, o mundo dos reis e heróis é povoado de espadas, lanças, armaduras e antagonistas. Seu mundo é o do campo de batalha e da refrega. Mas, na maior parte do seu tempo estes homens estão em salões, banqueteando, embebedando-se e requerendo a distribuição de riquezas e despojos. A construção do que seria o maior salão do mundo nos é apresentada em Beowulf da seguinte maneira: “Então ele [Hrothgar] gerou, em sua cabeça, a idéia de construir um salão de hidromel muito suntuoso igual a ele ninguém jamais veria. Lá dentro, dividia ele, dando a todos, jovens e velhos, o que de Deus vinha, exceto as vidas dos homens e as terras. As ordens dadas (eu ouvi dizer), para essa construção, por toda a Terra, mundo-médio, (lar humano) migraram. Rápido, veio o reconhecimento: aquele salão era superior. Hrothgar chamou-o Herot, o Salão das Hastes, pelo poder que lá havia em suas palavras, que eram soberanas. Então pagou sua promessa: proveu anéis (tesouro) ali, no banquete. Altas

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torres o salão tinha, e amplas – soerguidas: não havia chegado a hora em que chamas hostis e, entre genro e sogro, ódio viriam. Nas sombras, sofria selvagem ser: feroz monstro ferido com o fervor da alegria que, todo dia aguda, saía do salão. Lá soava o som das cordas da harpa”498

A passagem citada parece-nos reveladora do conteúdo esperado no âmbito do salão, que pode ser sintetizado na idéia de generosidade régia. O palácio499 deve contar com hidromel, pagamento de promessas, harpas, e alegria. O salão ainda aparece no épico como salão de dádivas,500 o salão de ouro501 e o dourado salão.502 Traço comum das narrativas épicas, o “exagero” e o “maravilhoso” também se fazem presentes em Beowulf. Chegaram a tornar-se motivo de chacota acadêmica aqueles que creditavam algum nível de historicidade às informações presentes no poema. O avanço das pesquisas calcadas na arqueologia foi o responsável pela mudança neste quadro. Hoje, sabemos que o salão real de Cheddar possuía 78 pés de comprimento; os salões (quatro) localizados na escavação de Old Yavering possuíam tamanhos variados, o maior com cerca de 80 pés de comprimento por 50 de largura; o grande salão de Thetford chegou a 110 pés de comprimento.503 Como vimos anteriormente, o elemento-chave para a compreensão da função da harpa reside no seu complemento por uma série de elementos outros, dentre os quais o canto, e o que parece ter sido a alegria que a música proporcionava, tanto em ambientes leigos quanto clericais. Talvez esta também seja a chave principal para entender os halla do mundo anglo-saxônico. Mais importante do que medidas, do que estabelecer se conviviam no mesmo espaço homens e animais etc., parece-nos ser a compreensão das articulações entre os elementos que lá se apresentavam. Desta maneira, estes espaços, ocupados por homens dos setores laicos e eclesiásticos, loci privilegiados da doação (especialmente as de anéis), de criação de crianças e do cantar do

498 RAMALHO, op. cit. V. 67-91. 499 Não queremos aqui apontar uma grande suntuosidade marcando tais espaços, e, por isso, serem caracterizados como palácios. O termo aqui será utilizado exclusivamente para tornar a leitura menos árida em função da repetição de termos. 500RAMALHO, op. Cit. v. 838. 501Idem. v. 1254. 502Idem. v. 1636-1637. 503 HUME, Kathryn. The concept of hall in Old English Poetry. In Anglo-Saxon England, vol. 3, 1974. P. 64. 138 bardo acompanhado de melodiosa música parece-nos um espaço de sociabilidade de grande destaque na configuração da aristocracia. O recontar dos feitos heróicos, traço fundamental da ideologia dos heróis, constitui um importante traço da memória social, de maneira que os bardos se afiguram como depositários desta “memória de guerreiros”. Não podemos esquecer, contudo, que já em nosso período de análise ser guerreiro está cada vez mais intimamente ligado a ser aristocrata, isto é, a gozar de uma determinada inserção no processo produtivo e a ser capacitado desde a tenra idade na destreza bélica. Não nos parece exagerado, portanto, vincular esta “memória heróica” a uma “memória de classe”. A transmissão geracional desta memória nos parece fundamental na criação de desejos e a geração, congregação e direcionamento de aspirações, e estes elementos são essenciais na formação e reprodução da ideologia desta aristocracia. O mundo de fora do salão, ou do alcance régio imediato, se afigura, conforme apontamos, no mundo da escuridão, da tristeza etc. A caracterização deste universo diz respeito a um grupo social que entra progressivamente na dependência de aristocratas,e estes estabelecem-se como instância mediadora entre a realeza e uma parcela de seus súditos. Este setor já não mais frequenta o salão; caem no oposto diametral da alegria, da glória, da fortuna. Os limites do palácio parecem formar uma espécie de permeabilidade seletiva, nas quais apenas determinadas células sociais são permitidas. Simultaneamente, os frequentadores do salão são homens que foram atraídos pela capacidade régia, mas a perspectiva de que determinados aristocratas conseguiam impor sua presença aos reis não pode ser descartada. A realeza, como apontamos, é palco de conflito, e seu trono e local de poder se afiguram como elementos-chave para a constituição desta aristocracia. O salão, como espaço de relações sociais, é usina de experiências, artesão de expectativas, escultor de classes.

Conclusão Ao topicalizar elementos que fundamentam a ideologia aristocrática, é de fácil conclusão que esta goza de privilégios concretos e delimitados, embora não com o nível organizacional que encontramos no final da Idade Média. A organização destes privilégios está calcada sobre as relações de doação que são articuladas no âmbito real, uma tradição de longa data. A

139 disponibilização destes privilégios504 é um costume que se acopla a uma tradição já estabelecida, e por isso têm sucesso em cristalizar-se. Coligando-se o exposto no primeiro capítulo com o que foi apresentado neste, podemos pensar estes estatutos como a expressão, historicamente determinada, da produção social, das relações de produção, do modo de apropriação da produção e da força de trabalho, das formas de propriedade, da divisão social do trabalho, ou, dito de maneira mais simples: um dos elementos – importante porém não o único ou determinante – do modo de produção. Pensamos portanto, que aos poucos a classe aristocrática, em seu processo de afirmação, também converge para a formação estamental. Pensamos portanto que os elementos explanados ao longo deste tópico são fundamentais para a compreensão da ideologia como prática social, que extrapola os limites do puramente intelectual ou ideal. Ela não está atrelada exclusivamente à difusão da legitimação, tampouco à propalação de violência. Coerção e consenso não são um par conceitual apartados, complementares apenas pela sua separação dicotomizante. Preferimos pensá-los como o exercício duplo de uma só variante, a dominação social. Os dados levantados acerca do papel social da espada nos permitiriam uma visibilidade mais acurada desta interseção (tamanha a ponto de quase ser uma superposição): cingi-la à cinta - enquanto a outros é vedada esta possibilidade - carrega em si uma capacidade de projeção daqueles que a observam (mas não a detêm) de pensar nas consequências que o saque da bainha pode acarretar em uma disputa de poder. Esta potencialização da violência só pode ser efetuada, contudo, se algum corte já tiver sido operado pela espada – interiorizações de efeitos possíveis só fazem sentido uma vez que estes efeitos tenham sido experienciados. Inicialmente coerção, posteriormente difusor do consenso (pela violência potencial), o porte das armas restritos aos guerreiros (aristocratas) veicula o tom que pensamos este par conceitual, que só faz sentido em sua complementaridade e articulação.

504Recorremos novamente ao termo não por insuficiência vocabular, mas por evidenciar que este é o termo presente tanto na nossa documentação de época ao se referir às concessões de terra aos mosteiros quanto na problemática conceitual acerca do estamento. 140

CAPÍTULO III – Aristocracia, Campesinato Livre e Camponeses Dependentes

Introdução O Brasil, em 2011, ano de conclusão deste trabalho, é um país no qual transformações-chave se consolidam, e que terão impacto grande na próxima década que se inicia. Tal prognóstico está longe de ser montado exclusivamente por ser o primeiro ano da década, ou o ano em que o lulismo – como fenômeno social amplo, amparado por medidas e ações políticas muito além do carisma weberiano – será testado para além do homem que empresta nome ao próprio fenômeno. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, a assertiva inicial não indica que o governo Dilma irá produzir uma ruptura ou sequer seguir uma linha de mudanças sociais significativas em relação à tônica dos dois mandatos presidenciais anteriores. Tais transformações, na realidade, estão inseridas em um processo de maior duração, iniciadas pelo menos na década de 1990. A década neoliberal foi fundamental para inserir o país em uma relação de dependência (ainda mais explícita) ao governo ianque, para atacar direitos sociais, além de privatizar diversas empresas estatais superavitárias (Vale do Rio Doce), abrir outras ao mercado financeiro (Petrobrás) e, por fim, sucatear tantas mais cuja resistência organizada de seus trabalhadores impediu que tivessem sua venda efetivada. A lei que impedia a criação de novas escolas técnicas é apenas um exemplo de abandono a locais nos quais o governo encontrava resistência. De qualquer forma, o grande capital internacional interfere cada vez mais no funcionamento do país, e insere o Brasil em um novo projeto de divisão internacional do trabalho. A década seguinte não foi palco de automutilações das capacidades públicas tal qual a anterior, pelo menos não de maneira tão explícita. Contudo, o setor bancário, que lucrava muito bem nos idos tucanos, conseguiu bater seus próprios recordes, tornando-se em 2010 as empresas que mais lucraram no país, superando inclusive o ramo de petróleo.505 Outro recorde, mais importante considerando o tema geral do nosso capítulo, diz respeito às safras anuais. Em 2010 o país alcançou não apenas índices de crescimento inéditos neste ramo (11,6%), mas também um

505 Referindo-se ao segundo trimestre do ano. As posições são em 1º o Itaú Unibanco, seguido (em ordem) por Bradesco, Santander. A empresa de capital misto (público e privado) Banco do Brasil ficou de fora do pódio, contentando-se com o 4º lugar. O segundo ramo mais lucrativo (no mesmo período) foi o de Petróleo e Gás. http://noticias.r7.com/economia/noticias/bancos-registram-maiores-lucros-entre-empresas-brasileiras-no- segundo-trimestre-20100823.html 141 patamar novo em números absolutos em toneladas de cereais, oleaginosas e leguminosas – 149,5 milhões.506 Os índices de lucro recorde de um setor que é fundamental no processo de expansão do Capital em suas mais variadas formas (bancos), aliado a uma produção de alimentos sem igual, “nunca antes vista na história deste país”, e mesmo índices de urbanização ímpares507 podem conduzir a uma imagem conclusiva de desenvolvimento e de uma potencial melhora na qualidade de vida do cidadão comum frente a esse desenvolvimento. O processo, contudo, é complexo, e escamoteia elementos diversos. Os níveis crescentes de urbanização não revelam (diretamente) que uma de suas causas está no abandono de pequenos proprietários rurais (de economia familiar) de suas posses, coagidos em geral pelos grandes latifúndios. Estes tendem a ser monoliticamente monocultores, voltados para o mercado externo em sua imensa maioria. Os pequenos proprietários que resistem, cuja maior luta é pela defesa do acesso à terra e ao trabalho são criminalizados pelos grandes conglomerados midiáticos. Atualmente contabilizando mais de dois milhões de pessoas mobilizadas sob sua bandeira, a luta do MST508 se reflete na vida urbana não apenas no que diz respeito a alimentos de melhor qualidade e menor preço,509 mas também tem relação direta com a tentativa de frear o êxodo rural e a explosão demográfica urbana. A questão agrária brasileira, portanto, se posta porta a fora, arromba a janela dos lares tupiniquins. Essa questão felizmente não é negligenciada pela historiografia, e os posicionamentos ideológicos (felizmente) afloram. É interessante que, mesmo imersos em um contexto como o nosso, os acadêmicos brasileiros dedicados ao medievo – mundo cujas cores agrárias eram muito mais acentuadas do que as nossas510 –, e em especial à Alta Idade Média tratem muito pouco das

506 http://www1.folha.uol.com.br/mercado/855775-safra-nacional-bate-recorde-e-cresce-116-em-2010.shtml 507 Em 2000, a população urbana era de 81%; agora atinge 84%. http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1766&id_pagina=1 508 http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1493 509 Desde 2007, o Brasil se tornou o maior importador mundial de venenos agrícolas. Como conseqüência direta, há aumento grande no número de abortos nos lugares dominados pela soja; outros estudos do Instituto Nacional do Câncer e da Universidade Federal do Ceará colocam o aumento do uso de agrotóxicos como responsável pelo aumento do número de câncer (a maioria, naturalmente, de estômago). Esta denúncia está presente em artigo de João Pedro Stédile, na revista Caros Amigos, edição de Novembro de 2010, e foi reproduzida, na íntegra, em http://refletindomuito.blogspot.com/2010/12/revista-caros-amigos-novembro-2010.html. STÉDILE, João Pedro. Todos os dias o povo come veneno. Quem são os responsáveis? 510 Com tal afirmativa não queremos indicar que a produção de alimentos medievais e a que se concretiza no âmbito capitalista se dêem de maneira semelhante. No universo contemporâneo, alimentos são, antes de tudo, mercadorias; o trabalho agrícola produz bens qualitativamente equitativos com qualquer outro bem, pois são a cristalização de trabalho abstrato, e só podem ser comparados quantitativamente. No seio do capitalismo, a diferença, como valor de troca, entre uma obra de Shakespeare e um desentupidor de pia diz respeito apenas ao gênero numérico, sendo o preço uma forma de medir este diferencial. No pré-capitalismo em geral, e o medievo 142 questões relativa ao mundo camponês. Boa parte desta exclusão certamente se deve às dificuldades impostas pelos resquícios e fragmentos de outrora que a caprichosa fortuna nos concedeu. A distância dos acervos notariais (um oceano nos separa dos mesmos!), que mesmo paulatinamente vencida pela Internet, nos conduz ao trabalho com fontes lacunares, com relatos que (propositadamente) revelam pouco ou nada do mundo camponês, além de registros arqueológicos muito menos evidentes do que os que a aristocracia produziu certamente conduzem o foco de análise para os estratos sociais511 mais altos. Mesmo pretéritas há mais de um milênio, as aristocracias medievais são vencedoras sobre os camponeses que submetem, e em certa medida, mesmo sobre os historiadores. A dificuldade é tamanha que levou um grande medievalista do século XX, Jacques Le Goff, a escrever um artigo que versa justamente sobre esta grande elisão, ainda que em nível bem específico.512 Se pensarmos que a lógica do pensamento aristocrático, em linhas bem gerais, tende a negar um papel ativo no mundo (no que concerne à estruturação societária) aos camponeses513, essa ausência se justifica, e se compreendermos, conforme o capítulo anterior tentou demonstrar, que a consolidação (ideológica) aristocrática depende diretamente de seus progressivos e cumulativos (embora não definitivos) monopólios, temos elementos razoáveis para articular a compreensão deste fenômeno. Apresenta-se, diante de nós, portanto, uma medievalidade “estranha”, ou pelo menos estranhada. Conhecemos melhor a menor parte da população, e rios de tintas sobre ela correm, enquanto contamos apenas com filetes destinados a uma parcela significativa do quadro social, e de importância crucial para a estruturação societária. Em síntese, a face da Idade Média conta com uma verruga de maiores dimensões que o próprio rosto. Uma autocrítica faz-se necessária, uma vez que esse trabalho mesmo é dedicado ao

não é exceção, predomina o valor de uso, e a equivalência geral dos bens inexiste. Alimentos são produzidos, em sua grande maioria, para serem consumidos sem a mediação direta e necessária de um mercado. 511 Tal qual nos capítulos anteriores, esta expressão aqui é utilizada para evitar a repetição da expressão “classes sociais”, visando tornar a leitura menos árida. 512 “Não há camponês nem mundo rural na literatura dos séculos V e VI” LE GOFF, Jacques. L. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1980. PP. 121-133. 513 Em nosso recorte, mesmo à aristocracia seria supostamente vedado um papel extremamente ativo no que concerne à mudança no destino dos homens. À wyrd (uma forma de destino inescapável) estavam submetidos os homens e mesmo os deuses. Pensamos que este fado com cunho “imobilista” pode estar diretamente ligado à própria significação do tempo que a aristocracia cunha, eternizando sua condição (linhagens aristocráticas que sempre assim o teriam sido, e que se extinguirão apenas por batalhas, por exemplo) e, por conseqüência, o daqueles a ela submetidos, embora isso não seja explicitamente reconhecido pela própria aristocracia. CARDOSO, Ciro. A Cristianização da Inglaterra. P. 15. Texto cedido pelo autor. 143 estudo da formação da classe aristocrática, especificamente. Poderíamos, novamente, argumentar sobre as dificuldades, mas é necessário sublinhar um aspecto essencial da forma como entendemos classe. Entendemo-la como relação e processo, para utilizar a formulação da excelente síntese crítica de Ellen Wood acerca das proposições de Thompson sobre o tema.514 Se o autor britânico, ao inclinar-se sobre um contexto diverso e posterior ao nosso, estabeleceu a formação da classe operária inglesa em seu amplo conjunto de relações (dos seus integrantes entre si, com o restante da sociedade etc.), em nosso recorte esta multiplicidade de laços também devem ser observados. A aristocracia, no capítulo anterior, foi analisada no que diz respeito à formação de seus próprios quadros, à sua experiência direta e até em manifestações de seu quotidiano; em suma, em sua dinâmica interna. Este capítulo investirá na análise da relação da aristocracia com dois setores do campesinato do período, o dependente e o livre. Tentaremos demonstrar como a Inglaterra Anglo-Saxônica dos séculos VII e VIII pode ser entendida como uma sociedade tripartida, ou uma sociedade de três classes. Cabe-nos aqui rememorar rapidamente o porquê destes campesinatos serem identificados enquanto classes (distintas, inclusive). O primeiro elemento é a explicitação de um pressuposto teórico, isto é, assumir a História enquanto relações de grupos extra-individuais, e estas interações possuem caráter conflitivo (ainda que não necessariamente explícito ou abertamente rebelde). Pensamos porém, que a análise mateiralista da História não pode apenas nutrir-se de pressupostos, encastelando-se em um âmbito aquém da discussão. Estes pressupostos devem traduzir-se materialmente; para o marxismo um movimento fundamental é por os seus pressupostos, ancorâ-los e testá-los e, sendo o caso de não terem substância concreta, real, substituí-los por outros que assumam este sentido. Este é um dos objetivos das explanações que seguirão nos tópicos a seguir. Neste sentido, cabe-nos enunciar o que buscamos a seguir, e o porquê deste conceito ser pleno de sentido para além de uma simples tomada de posição teórico-política. Na citada passagem acerca dos camponeses no 18 Brumário,515 Marx defende que os camponeses são e não são uma classe ao mesmo tempo. Este paradoxo se constituiria uma vez que este grupo compartilha formas de existência (ou produção) muito similares, mas esta semelhança

514 WOODS, Ellen. Classe como processe e como relação. In: Democracia contra o capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2003. 515 Capítulo II, tópico “Classes”, página 74. 144

(principalmente pelo caráter semi-insular destas comunidades aldeãs) por si não é capaz de fazer com que este grupo produza uma atuação política unida ou tampouco inequívoca. Ao analisarmos isso anteriormente, deixamos claro o quanto este caráter de “não-classe” do campesinato é identificado por este ser contemporâneo do operariado, este sim, um ator social bem organizado (para além das condições de existência semelhantes), com atuação e mesmo representação política. Ressaltamos também que o próprio Marx apenas identifica o fenômeno histórico das classes sociais somente a partir da existência concreta de uma classe universal, que existe e luta enquanto tal, e que se identifica desta maneira. O conceito de classe é filho da própria luta de classes. Poderíamos pensar, portanto, que a classe seria um fenômeno específico e adstrito ao capitalismo, especialmente no que tange às classes subalternas. No capítulo anterior demonstramos a existência de uma identidade de classe realmente existente e significativa no tocante à aristocracia; apontamos a inexistência de tal fenômeno no que tange ao campesinato, principalmente o dependente. A questão ganha ainda mais complexidade quando nos aproximamos de maneira mais vertical das fontes de época. Grande parte das fontes das quais nos servimos são hagiografias, as famosas vidas de santos. Sendo assim, o foco delas certamente não está na vida camponesa, e podemos vislumbrar aspectos desta principalmente de maneira incidental ou lateral. Os vocábulos que designam a condição social do camponeses (famulus, servus) não se restringem a uma posição social, sendo também adjetivos (ou adjetivos substantivados) dos homens santos. A Navigatio sancti Brendani Abbatis e na Vita Ceolfridi possuem estes vocábulos, mas todos demovidos do sentido de categoria social. A Vita Cuthberti conta com uma passagem na qual são utilizados servus e famulus para se designar um homem de extração social inferior;516 a Vita Wilfridi no segundo capítulo menciona os servos dos companheiros do rei (regalibus sociis e servis eorum), assim como é dito que o hagiografado aprendeu a armar-se e a seus “servos” (pueris). Não há indício (vocabular) que poderia potencialmente unir estas diferentes condições, e mesmo identificar formas de trabalho e de vivência próximas nestas hagiografias. A Historia Ecclesiastica e a Vita Abbatorum tampouco ajudam neste sentido; pelo contrário, tais quais as outras hagiografias, ao generalizar (ainda que em nível discursivo) uma condição social, dilui-se o caráter exploratório da relação entre as diferentes classes. Desta maneira, a equalização vocabular também demarca

516 Vita Cuthberti, capítulo XXV. 145

(por paradoxal que seja) as hierarquias terrenas, uma vez que alguns são apenas servus, e outros servus Dei, com uma nítida clivagem social presente na relação com a divindade.517 A legislação também reconhece estatutos diversos: as leis mais antigas às quais tivemos acesso (de Etelberto, 560-616) reconhecem a existência de homens (men),518 homens livres (Freeman),519 ceorl,520, escravo (esne).521 As leis de Hlothhaere e Eadric (673-686) reconhecem também “escravo” (esne)522 e “homem livre” (freeman)523; já as leis de Wihtraed (690-725) reconhecem apenas (além dos níveis aristocráticos) apenas os homens dos estatutos de ceorl (ceorlish man).524 Poderíamos pensar que esta redução de estatutos enumerados apontam necessariamente para uma homogeneização total dos homens subordinados; isso, contudo, seria, além de improvável, impossível de confirmação ou de negação plena se tomarmos apenas estas fontes como parâmetro. Outro indício nos parece mais interessante para complementar os dados que até agora apresentamos. Outro vocábulo que permeia as fontes, que incide no que nos referimos anteriormente como menção indireta ao campesinato, aparece nas fontes. Ele não é terra, mas sim família. Todas as apresentações da palavra terra estão ligados à família na Vita Ceolfridi; assim como a maior parte dos presentes na Vita beatorum abbatum. As demais fontes não tem uma correlação tão expressiva quanto estas. De qualquer forma, poderíamos pensar que a presença deste vocábulo indica um elemento articulador fundamental na vida camponesa: a família. E de fato este é um pensamento procedente, desde que se tenha em mente que os formatos assumidos por esta podem variar grandemente, e as relações que disso decorreriam também serem diversas. Por que então definir o campesinato independente enquanto classe, se mesmo as condições de vida são aparentemente distintas, e a legislação de época transparece estatutos que reconhecem esta diversidade no interior do mundo campônio? Como atribuir a coisas tão disformes e aparentemente distantes e mesmo distintas entre si uma homogeneidade? A resolução da questão toma tons aparentemente simples se levarmos em consideração que classe, além de processo, também é relação. O campesinato torna-se conceito possível e

517 Estas questões serão mais esmiuçadas no tópico voltado ao campesinato dependente. 518 Etelberto. 5, 10, 13, 14, 17, 18, 20, 21, 85, entre outros. 519 Etelberto. 4, 6, 9, 31. 520 Etelberto. 15, 16. 521 Etelberto, 85. 522 Hlothhaere e Edric. 1 e 3. 523 Hlothhaere e Edric. 3 e 5. 524 Wihtraed. 21. 146 viável se pensarmos nele em contraposição à aristocracia. Mesmo que as formas desta contraposição e desta tensão variem grandemente, eles comungam de uma relação de dependência pessoal, estão dispostos em pólos diferenciados no processo produtivo (e portanto, também experencial) e foram, em sua própria velocidade (correspondente à historicidade525 do processo) paulatinamente expropriados de suas prerrogativas (e mesmo direitos, pensados consuetudinamente) anteriores. O conceito ganha vivacidade e concretude uma vez que é contemplada e buscada a totalidade social, na medida em que esta expõe as correlações dos grupos para além de suas circunscritas esferas. A necessidade de contraposição e de agrupamentos, que de início podem parecer uma violência contra estes próprios grupos, é o elemento que determina mesmo a possibilidade de criação e efetivação de conceitos. São estes agrupamentos e contraposições que permitem por exemplo, arrolar coisas tão distintas quanto a luz solar e uma árvore sob o mesmo “teto conceitual”, natureza;526 ou ainda, perceber as miríades de dispersos e isolados pingos que alegram e/ou atrapalham a vida das pessoas como “chuva”.527 A homogeneidade não se expressa, portanto, em trabalhos equitativamente realizados; este é um fenômeno típico do capitalismo. A homogeneidade é relacional, na medida em que a relação estabelecida é de expropriação e exploração, que assumem vernizes distintos, mas que agrupadamente são varioções de um mesmo tom. O campesinato dependente, portanto, não está limitado a uma relação de trabalho, mas também se constitui na medida em que se contrói uma relação de exploração (em um nível de imediatismo, de curta duração), de expropriação (se lembrarmos do processo de longa duração em curso e dos progressivos monopólios da aristocracia), e de contraposição de formas de vida e de interesses materiais. A categorização do campesinato livre enquanto classe nos parece ainda mais fácil de ser explicada. Embora haja diferenças de fortuna e de estilos de vida no seio deste grupo (conforme demosntraremos mais detalhadamente adiante), sua homogeneidade é mais significativa. Esta se expressa no que diz respeito ao acesso aos bens de produção fundamentais (são em geral

525 E portanto, à conflitividade, resistência etc. 526 A “natureza” normalmente é tomada como algo essencialmente contraposto ao produzido pela ação humana; pensamos, contudo, que este “conceito quotidiano” (em termos de Vygotsky) pouco transparece o quanto há de fato de social na relação homem-natureza, bem mais complexa do que uma definição de dicionário. 527 Tal imagem poética não aspira ao ineditismo; antes, ela foi retirada do texto presente em http://diasmartins.net/ivan/2011/03/do-tunel-do-tempo-mais-exatamente-da-epoca-dos-embates-na-lista-do- cahis/ 147 pequenos proprietários); seus membros se vinculam diretamente à realeza, sem a intermediação de um aristocrata; ainda participam de outra atividade econômica fundamental, a guerra. Desta maneira, por não compartilhar dos mesmos processos de desapropriação de prerrogativas que os dependentes atravessaram, a identificação deste como grupo se torna ainda mais simples, tendo a realeza como vértice da relação do conjunto societário.528 Desta forma, encontraríamos três grupos contrapostos: a aristocracia, o campesinato livre e o dependente. Os dois primeiros gozam de uma maior homogeneidade que o terceiro, o que não indica que a este não seja cabível um agrupamento. Possuem interesses distintos, formas de vida divergentes, inserções no processo produtivo também diferentes. Experiências múltiplas, inseridas no cojunto de suas relações sociais. Não nos parece descabido encarar cada um destes grupos como um conjunto que “se delineia segundo o modo como homens e mulheres vivem suas relações de produção e segundo a experiência de suas situações determinadas, no interior do ‘conjunto de suas relações sociais’, com a cultura e as expectativas a eles transmitidas e com base no modo pelo qual se valeram dessas experiências em nível cultural”.529 Classes, portanto. Examinemo-nas mais proximamente.

Aristocracia e Campesinato Independente O campesinato continental é, de maneira geral, pouco explorado pelos medievalistas dedicados à primeira metade da Idade Média; o campesinato independente, praticamente ausente. Em nosso contexto, e na historiografia dedicada ao tema, a figura do camponês independente felizmente é recuperada, muito em função da manutenção de um status social que, comparado ao do mesmo setor no Ocidente europeu, demonstrou considerável longevidade.

Quanto à caracterização desses camponeses, destaque-se que distavam de maior equidade no que se refere à concentração de riquezas e de poder, em grande medida pela própria transformação da exploração de sua própria mão de obra. Anteriormente à efetivação da aristocracia enquanto força social dominante (fenômeno mais claro no período posterior aos séculos V e VI) o rei e sua corte itinerante eram mantidos diretamente pelos súditos junto aos

528 Não pretendemos com isso isolar este campesinato das demais classes, pensando nela como isolada dos demais grupos mesmo em termos de intercâmbio. O que pretendemos com esta assertiva é evidenciar a ligação com a realeza, um dos pilares para a caracterização deste grupo. 529THOMPSON, E.P. Algumas considerações sobre classe e 'falsa consciência’ in As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. pp. 277. 148 quais se estabeleciam (temporariamente, naturalmente). Quando se iniciou a sua transformação, esse sistema experimentou a passagem da sustentação direta à tributação. Neste primeiro período (principalmente no período pré-cristão) eram entregues víveres necessários para a manutenção da corte régia por um dia e uma noite; com a submissão do campesinato (principalmente a partir dos séculos VII e VIII) os reis recebiam uma quantidade fixa, anual, de produtos eminentemente alimentares. Em outras palavras, a extração de sobretrabalho reconfigura-se, e a realeza passava a ser um grande proprietário fundiário.530

Juntamente à entrega do imposto531, esses camponeses deviam serviços, principalmente em transportes (daqueles mesmos produtos), e a construção e manutenção de pontes e de fortificações.532 Estavam diretamente ligados ao monarca e, em função desta posição especial parece terem gozado de direitos que dos quais já estariam excluídos os camponeses submetidos à dependência de um aristocrata. Entre eles estariam a autonomia na exploração de suas terras e a participação na atividade bélica.533

Essa autonomia residia em dois fatores: o rei apenas estipulava o montante do tributo em produtos, sem interferir diretamente no processo produtivo; havia uma separação física entre as propriedades reais e as do campesinato independente. Essas últimas geralmente não eram apropriadas por famílias, mas sim a partir de um formato de aldeias,534 e algumas vezes mesmo

530 A liberdade e/ou independência destes camponeses é caracterizada por eles serem pequenos proprietários de terras, vinculados diretamente à realeza. Este vínculo permitia a eles a participação no serviço militar, podendo até mesmo ser capazes de adquirir algum bem de prestígio (além de eventuais remunerações em terras) que pudesse(m) projetá-los rumo à aristocracia. BERNARDO, João. Poder e Dinheiro. Do Poder Pessoal ao Estado Impessoal no Regime Senhorial. Porto: Afrontamento, 1995. P. 76. 531 Configuramos aqui como imposto o pagamento devido à realeza para diferenciá-lo em relação às rendas devidos aos aristocratas. 532 STENTON, Frank. Anglo-Saxon England. Oxford: Oxford University Press, 1971. P. 306. Stenton atenta também para o fato de que estas fortificações (posteriormente posses de aristocratas) deveriam apresentar-se como melhores garantias de defesa e proteção aos que dela dependiam, superiores à própria realeza, distante e itinerária. Whitelock aponta a diversidade destes serviços, que variavam conforme a própria geografia do reino. Entre seus exemplos estão a manutenção (em víveres e também em consertos) de uma guarda marítima próxima à Cornualha, ao invés de serviços de construção de pontes. WHITELOCK, Dorothy. The Begginnings of English Society. London: Penguin Books, 1991. P. 65. 533 João Bernardo, concordando com Abels, identifica a inexistência de provas da participação do campesinato independente nos afazeres militares. Aqui assumimos postura diferente, inclusive em função dos dados arqueológicos citados no capítulo anterior, que atestam a presença maciça de lanças junto a corpos masculinos que são normalmente identificados como de não-aristocratas. ABELS, R.P. Lordship and Military Obligation in Anglo-Saxon England. Berkeley : University of California, 1988. 534 Com isso, não negamos a possibilidade destas aldeias se organizarem a partir de suas estruturas familiares; na verdade o provável é que isso aconteça. O que pretendemos evidenciar na passagem é a amplitude relativa do processo de apropriação dos meios de produção, em comparação com as famílias nuclearmente assentadas do período posterior, do campesinato dependente. 149 em grupos de aldeias. Os tributos régios eram então levados (o serviço de transporte mencionado anteriormente) até uma localidade em que o rei possuísse casa.535

A autonomia e, com ela, a independência teria começado a eclipsar-se a partir de dois processos, opostos quanto à sua origem social, mas complementares no que diz respeito à sua plena efetivação. João Bernardo distingue entre um processo interno ao campesinato independente e outro externo a ele.

A categoria que ora estudamos congrega fortunas muito diversas. Alguns membros desta classe eram abastados o suficiente para possuir vastas terras e numerosos escravos. Blair aponta que, além de fazendeiros, alguns eram joalheiros, ferreiros, mercadores, e que podiam arrendar e/ou vender suas terras, transações que permitiriam até mesmo ascenderem aos níveis mais baixos da aristocracia.536 Este processo é explicado com maior detalhamento por João Bernardo, que acompanha o rompimento das unidades familiares, com a transformação dos escravos domésticos em casati,537 ao mesmo tempo em que camponeses clientes pobres perdiam a autonomia e eram reduzidos à dependência, por vezes mesmo perdendo a sua liberdade. Por estes processos que alguns camponeses livres alargavam suas posses, surgindo então “domínios”538 no seio do campesinato independente. Estas propriedades tendiam a ser relativamente pequenas, se comparadas com as oriundas do dito processo externo.539

A decomposição, a partir do exterior, do campesinato independente diz respeito à relação entre a realeza e a alta aristocracia, quando aquela concede a esta direitos que até então eram exclusivos da Coroa - inicialmente o recebimento de tributos e serviços. Contando com uma grande fratura (e ausência de coesão) interna, o campesinato estava fragilizado como classe social, impedido de lutar contra estas possibilidades, ao mesmo tempo em que os monarcas expandiam seus laços pessoais (e mesmo familiares) com estas concessões.540

535 BERNARDO, João. Op. Cit. P. 76. 536 BLAIR, Peter H. An introduction to Anglo-Saxon England. London: Cambridge University Press, 1959. P. 260. 537 Escravos casati são escravos assentados em pequenos lotes de terras, nos quais constituem família e devem parte da renda – em moedas e/ou produtos e/ou trabalho – ao seu senhor. 538 Domínio aqui assume o sentido de uma propriedade fundiária com homens dependentes que a tornam produtiva, devendo estes homens rendas a quem estivessem submetidos. Em outras palavras, os campônios independentes mais ricos estabeleciam com os mais empobrecidos, quanto ao aspecto de exploração do seu trabalho, relações similares às tecidas entre aristocratas e camponeses dependentes. Em alguns casos, poderíamos mesmo implicar que o surgimento de algumas famílias aristocráticas e de outras dependentes têm esta gênese. 539 BERNARDO, João. Op. Cit. P. 78. Este processo externo será explicado imediatamente adiante. 540 Idem. 150

Ambos os processos foram paulatinos e diversos nos diferentes reinos, e devem ser levados em conta em seus desenvolvimentos específicos. No Wessex do século VII, por exemplo, um ceorl (camponês livre) tinha um wergeld fixado em duzentos shillings, da mesma maneira que na Nortúmbria e na Mércia. No Kent, porém, esse valor era de apenas cem shillings. É necessário, contudo, ter em mente a proporção representada por estes valores absolutos (relativizando-os); no Wessex, Nortúmbria e Mércia, no contexto citados, o valor do ceorl corresponde a um sexto do wergeld de um nobre; no Kent, a um terço.541

Em suma, poderíamos definir o processo de desagregação interna como um fenômeno relativamente adstrito à esfera do campesinato livre, no seio do qual surgem pequenos aristocratas e algumas famílias dependentes. O processo externo diz respeito ao âmbito aristocrático, alheio ao mundo camponês, e daí seu nome (embora diga respeito ao próprio). A tendência dominante, parece-nos inequívoca, e concordamos com João Bernardo quando este afirma que as velocidades diferenciadas destes processos é diretamente proporcional ao grau de diferenciação interna do campesinato independente em cada região. Quanto maior a diferença de riqueza, mais dificuldades os empobrecidos teriam para contribuir para o tributo coletivo (uma vez que se empenhavam em garantir pagamentos de origens diversas – à realeza e ao camponeses livres enriquecidos). Além disso, essa dificuldade facilitava o estilhaçar da coesão no próprio processo de trabalho, uma vez que os tributos eram coletivamente devidos e entregues, mas os serviços de trabalho eram prestados pelas famílias que o devessem (naturalmente, as menos abastadas). Concordamos, portanto, com João Bernardo quanto à complementaridade destes processos e que o processo de desagregação externo facilitava e acelerava o interno.542

O brilhantismo da análise de Bernardo decorre não apenas de recuperar o processo em sua articulação global, mas de investir-lhe tons que não poderíamos deixar de identificar como um processo de luta de classes. Os não-aristocratas (a maioria da sociedade) não afiguram como capachos ou como entes historicamente passivos diante das investidas aristocráticas. Pelo contrário, o protagonismo do processo reside neste âmbito, como classe, que é ativa em sua

541 Mesmo se levado em consideração os valores absolutos, deve se considerar a variação regional do shilling: enquanto esse valia no Wessex cinco moedas de prata (com o wergeld correspondendo, portanto, a mil moedas de prata), no Kent ele equivalia a vinte moedas de prata, totalizando o wergeld do ceorl um valor de duas mil moedas de prata. BLAIR, Peter H. op. Cit. P. 260. 542 BERNARDO, João. Op. Cit. P. 79. 151 existência. Por isso o autor concede uma primazia ao processo interno de desagregação em relação ao externo, embora eles apareçam na análise de maneira articulada e complementar.

Cabe, contudo, uma crítica ao seu trabalho nesse tópico: o campesinato independente aparece quase sempre como um elemento externo ao que o autor denomina “regime senhorial”, e a luta dessa classe contra ele é a luta de um agente externo ao próprio regime. Pensamos de maneira diferente. Para efeito de comparação, citamos um exemplo mais próximo de nossa postura que analisa um contexto diverso do nosso.

Ao analisar as ditas “comunidades de aldeia” do norte da península Ibérica, Reyna Pastor identifica estas associações de famílias camponesas (baseadas no cultivo da terra e/ou na criação de gado) como sendo uma das características mais importantes e generalizadas do campesinato europeu. A autora alarga bastante o período de existência histórica dessas comunidades, estando elas já estabelecidas no período anterior a César entre os germânicos, e ainda vigentes no norte da península Ibérica no período de sua análise (a Idade Média Central). As características mais marcantes destas comunidades (familiares, produtivas, normativas etc) não apenas teriam sido muito semelhantes entre si, como suas práticas comunitárias, sua organização social, sua solidariedade etc. teriam se desenvolvido anteriormente ao desenvolvimento de suas congêneres aristocráticas. Sua longa experiência histórica, contudo, não implica, segundo a mesma autora, em um imobilismo, mas apenas a manutenção, a partir da sua capacidade de resistência, de suas linhas de força fundamentais.543

Quando esta resistência comunitária contra ser posse de um (ou mais de um) senhor é vencida, estilhaçando-se os laços de solidariedade, as comunidades são absorvidas pela aristocracia. Contudo a autora ainda destaca que, apesar de todas as modificações próprias e variadas que a condição de dependência supõe, as novas comunidades que deste processo surgem preservam sua organização em torno da aldeia.544

Muito embora a autora esteja preocupada com um contexto bem distinto do nosso, não podemos deixar de apontar que suas observações também são pertinentes para o nosso quadro. João Bernardo reconhece a importância e o protagonismo do campesinato independentes; contudo, considera-o um agente exterior ao regime social que é em parte produto de sua própria

543 PASTOR, Reyna. Resistencia y luchas campesinas en la época del crecimiento y consolidación de la formación feudal; Castilla y León, siglos X-XIII. Madrid: Siglo Veintiuno, 1993. Pp. 7-9 544 Idem. P. 9. 152 ação. A proposta de Pastor é distinta e insere estas comunidades independentes diretamente na esgrima social. Parece-nos estranho que uma das bases fundamentais do exercício de poder da realeza, instituição-chave para o recorte, e mesmo para a compreensão plena desta sociedade, o campesinato livre esteja situado “fora” do regime social que se estabelece.

Aristocracia e Campesinato Dependente A produção social total de uma determinada sociedade está diretamente vinculada às suas relações de produção-exploração, assim como às suas forças produtivas. Sobre esta primeira assertiva, há alguns pontos que devemos esclarecer. O primeiro ponto diz respeito à impossibilidade de cindir o conceito de relações de produção da sua própria essência enquanto experiência social – a exploração. Deixemos claro que esta conjugação inescapável (relações de produção - relações de exploração) diz respeito às sociedades que não se enquadram no que a Antropologia costuma qualificar como sociedades igualitárias. Nestas, pelo contrário, o conjunto de relações está sempre ativo e (a expressão não nos parece exagerada) em militância vigilante contra o processo de hierarquização.545 Nas sociedades nas quais as clivagens sociais estabelecem-se de maneira mais nítida, as relações de produção, entendidas de modo amplo,546 tendem a expressar, produzir e a reafirmar as emergentes relações de exploração. Tal observação pode soar pueril, mas ela é fundamental para realçar não apenas a fluidez e dinâmica das relações de produção (tomando-as em perspectiva processual), como também para atrelá-la a um entendimento de que a dinâmica social que envolve as relações entre aristocratas e camponeses é conflituosa. Retomaremos este tema adiante. O segundo ponto a ser explicado com maior detalhe diz respeito às forças produtivas. Não pensamos que as forças produtivas de determinado contexto estejam dicotomicamente cindidos das relações de produção; antes, ambas só atingem um grau razoável de inteligibilidade pensadas em relação e também observando o caráter poroso que determinados conceitos podem

545 Este é o tema central da obra de Clastres “A Sociedade contra o Estado”, na qual defende a possibilidade da existência civil sem a presença do Estado, identificando este processo empiricamente nas sociedades indígenas da América do Sul. CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado – Pesquisas de Antropologia Política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978. 546 Não limitadas ao campo que hoje em dia consideramos como econômico; entendo que as relações de produção conjugam elementos de todas as dimensões sociais – políticas, econômicas, culturais, mentais etc. 153 ter.547 Esta pequena digressão pode parecer repetitiva, enfadonha etc. Sua enunciação, contudo, está ligada à renitente necessidade de afirmar que a aristocracia só se estabelece como tal, só se forma desta maneira, a partir da sua inserção direta na relação que estabelece com o conjunto do corpo societário. E o pedaço deste corpo que agora nos debruçaremos é um dos mais fundamentais para a constituição aristocrática. Os aspectos apresentados no capítulo anterior derivam da capacidade aristocrática de extração e concentração de sobre-trabalho. Esse sobre-trabalho tem sua origem justamente na expropriação do trabalho camponês, ou nos rendimentos deste mesmo trabalho. Há muita discussão em torno de como compreender conceitualmente o setor do campesinato submetido à aristocracia, o que é admissível na medida em que as formas dessa apropriação são variadas no tempo e no espaço.548 As disputas e críticas foram suficientes inclusive para que alguns autores repensassem suas classificações. Chris Wickham, por exemplo, defendia a ocorrência, na Inglaterra, da transição do meio de extração de excedente via taxação (tributo) para uma de tipo “feudal”, na qual o excedente era diretamente transferido para a classe que possuía a terra a partir das pessoas que trabalhavam nela. A preocupação do autor inglês se dá sobretudo na transformação do imposto em renda, uma apropriação que passa a ser privada. Mais recentemente, em Framing the Middle Ages, ele deixa claro que ambos os regimes (baseada no tributo e a “feudal” não são mais do que diferentes exemplos na forma de extrair excedentes dos camponeses e ssão sistemas que fagocitam e ampliam, em uma duração mais prolongada, os impostos (taxation) no período pós-romano.549 A perspectiva assumida mais recentemente pelo autor converge com a inclinação de outro (já citado), que também extrapola esta concepção para o continente e para a alta idade média européia como um todo: João Bernardo assume não apenas uma postura similar, mas de certa forma complementar à de Wickham.

547 Marx, por exemplo, cita como as relações de produção (no texto, como “modo de cooperação”) também são forças produtivas. MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. Já citamos no segundo capítulo como a teoria marxista coloca os conceitos em constante articulação, e é nesta perspectiva que pensamos o par “relações de produção” e “forças produtivas”. 548 Poderíamos acrescentar que estas diferenciações são resultantes da diversidade dos conflitos sociais que indicam a formação destas entidades sociais divergentes quanto ao processo produtivo, aristocracia e homens dependentes. 549 WICKHAM, Chris. Framing, p. 60. Sobre a mudança de perspectiva do autor, ver FAITH, Rosamond. Forces and Relations of Production in Early Medieval England. Journal of Agrarian Change, 2009. P.24. 154

O autor português estabelece, desde o início de sua obra, que sua atenção estará voltada para o funcionamento efetivo das relações sociais no seu período de análise, e não para as definições jurídicas contemporâneas, uma vez que o direito é “uma técnica classificadora que, por um lado, arrasta a herança de formas jurídicas anteriores e, por outro lado, serve ao grupo social que a usa, ou para defender o seu estatuto numa situação de declínio, ou para afirmar um estatuto superior quando se encontra em ascensão.”550 A dinâmica das relações, suas práticas cotidianas etc. são os elementos primordiais para o autor. O objetivo da obra de João Bernardo é o estabelecimento do que caracteriza como “regime senhorial”, cuja constituição na Europa da Alta Idade Média é abordada a partir da análise das suas diversas variantes regionais. No que se refere à Inglaterra, na ilha é possível vislumbrar alguns elementos que teriam sido obscurecidos em outras regiões (principalmente no que diz respeito ao campesinato independente). O historiador português se concentra sobretudo nas relações de exploração-produção. Para destacar o aspecto da exploração, intrínseca ao regime que progressivamente se estabelece, o autor qualifica a principal classe subalterna de “classe servil”. Em outras palavras, a questão da submissão de uma classe pela outra a partir da apropriação do excedente é o elemento-chave para a compreensão da interação entre as classes sociais neste contexto. A complementaridade da análise de João Bernardo em relação à de Wickham se expressa em alguns pontos. O primeiro e fundamental deles é o destaque para a existência de camponeses dependentes que estariam submetidos à realeza (a partir de domínios fundiários), recebendo o monarca não apenas tributos dos independentes, como também os frutos de outras categorias sociais exploradas pela mesma – isto é, a realeza contava com fruição dos produtos do trabalho de ambas as categorias, além do originado por algumas formas de trabalho escravo. Seguindo ainda elementos complementares das obras, o estudo do autor luso nos ajuda a compreender melhor que a análise de Wickham a forma pela qual a aristocracia progressivamente se torna detentoras de terras. Ao analisar a transferência dos rendimentos dos camponeses para a elite, Wickham deixa claro não se tratar de uma exploração sistemática do solo, uma vez que não consistiam apenas de pagamento de rendas por parte dos camponeses ao senhor que diretamente os controlam, mas estas também eram apoiadas pela rapina do trabalho (além dos frutos deste) dos camponeses.551 Rosamond Faith, ao comentar a obra, concorda com

550 BERNARDO, João. Op cit. P. 11. 551 WICKHAM, Chris. Framing. 2005. Pp.321-322. 155 este aspecto, adicionando ainda que o que os reis ou chefes poderiam requerer não estava economicamente determinado, mas sim culturalmente. A autora justifica esta afirmação a partir do argumento de que os bens adquiridos pela realeza por esta via eram majoritariamente víveres de consumo imediato (pão, cerveja, carne etc), conhecidos como feorm, que possuem o sentido de garantia de hospitalidade. Esta obrigação de alimentar (ou de garantir o banquete, como a mesma admite) não se tratava “de um tributo a um conquistador, um imposto (tax) pago a um estado, ou uma renda paga ao senhor das terras (landlord)”. Faith (no mesmo parágrafo) relembra que a feorm manteve-se como a base da economia doméstica da coroa e dos mosteiros por um bom tempo, mas diz que há poucas evidências de que ela era paga a outros que não fossem a realeza ou aos grandes aristocratas clericais. Ainda assim, reconhece que boa parte da historiografia identifica a entrega deste pagamento a grandes senhores leigos.552 As análises de Wickham e de Faith não são totalmente equivocadas, mas certamente estão incompletas. Um dos fatores principais para a constituição do campesinato dependente e, portanto, da ascensão da aristocracia553 – é o elemento considerado por João Bernardo como “externo” na desagregação do campesinato independente: a concessão pelo monarca, a fiéis seus, do direito de receber tributos e serviços que outrora eram prestados à realeza, incluindo aí até mesmo os proventos da administração da justiça.554 Ao repartir entre a aristocracia tais prerrogativas, o rei não lhe concedia diretamente um patrimônio fundiário, mas o exercício de um poder sobre o conjunto de terras e camponeses independentes (que passariam, portanto à dependência); a forma como este poder se materializava era sobretudo a cobrança de tributos. Além do pagamento em espécie, os camponeses também deviam serviços; os grandes proprietários esforçavam-se por transformar esses serviços (basicamente de construção de pontes e de manutenção de fortificações) em fainas agrárias em suas posses. Os senhores também teriam sido hábeis em aproveitar todo e qualquer atraso no pagamento de tributos para transformá-los em serviço agrícola.555

552 FAITH, Rosamond. Forces and Relations of Production in Ealry Medieval England. Journal of Agrarian Change, Vol.9 Nº. 1, Janeiro 2009. P. 31. 553 Não como um processo automático, cujo impacto econômico (concentração de sobre-trabalho) irá mecanicamente estabelecer, incluindo seus níveis culturais, a determinação da aristocracia; entendemos aqui este elemento como condição necessária, mas não como condição (autos)suficiente e determinante. 554 É importante ressaltar que o autor português trata desses proventos, mas pouco se atém à administração da justiça em si, como se pouca coisa fosse. A ação da realeza nesse nível é inquestionável, e diz respeito à promulgação da própria legislação, conforme expomos. Porém, é razoável pensar que inclusive no âmbito da justiça passasse a ocorrer a intermediação aristocrática entre a realeza e seus súditos. 555 BERNARDO, João. Op. Cit. P. 78. 156

Em síntese, não apenas os rendimentos do trabalho da classe submetida eram progressivamente transferidos da realeza para a aristocracia, mas também o direito sobre o trabalho propriamente dito. Com a entrada na dependência, os camponeses perdem a autonomia na organização do próprio trabalho, uma de suas características principais quando se relacionavam diretamente com o monarca, ainda livres.556 Peter Hunter Blair defende a perspectiva de que a concessão aos aristocratas materializa- se em função da crescente complexidade administrativa na qual a realeza se inseria, uma vez que passavam a dominar áreas maiores a partir da conquista e/ou submissão de outros reinos. Desta maneira, a concessão da tributação seria fruto da impossibilidade do recurso a outra forma de administração.557 João Bernardo critica severamente essa afirmação, pois essas concessões ocorriam desde o princípio do século VII; além disso, a presença de intermediários por si só não garantiria que os reis deixassem de se apropriar dos tributos. Como argumento que favorece esta última enunciação, o autor português evoca a lembrança de fiéis domésticos régios que realizavam esta intermediação sob forte pressão da lealdade, uma vez que não haviam se autonomizado plenamente (e, portanto, continuavam a freqüentar o entourage régio, de mais fácil controle pela proximidade física). O aspecto fundamental para o autor português seria, do ponto de vista da Coroa, a promoção de sua projeção familiar através dessas concessões, encaradas por ele como vassalidade. Ao conceder terras o rei exigia a lealdade daquele guerreiro, e com a família deste estabelecia laços de parentesco “artificiais”. Ao fazê-lo, a realeza estabelecia a obrigatoriedade não apenas da defesa do território (pelos que recebiam a terra), mas também a fiscalização do imposto e a paulatina apropriação deste em forma de renda. Desta maneira, a realeza se fazia presente ou pelo menos tentava garantir a aquisição de seus bens consuetudinariamente devidos. A crítica de João Bernardo tem o seu valor, mas o argumento de Blair não é totalmente inválido. Conforme o apresentado, a demografia da ilha, seus meios de comunicação e deslocamento etc, dificultam de fato qualquer forma de centralização mais direta.558 Embora realmente as concessões sejam anteriores ao apontado por Blair, também o é a instituição do

556 Idem. 557 BLAIR, Peter H. An introduction to Anglo-Saxon England. London: Cambridge University Press, 1959. P. 262. 558 Com isto não apontamos que a “normalidade” de qualquer sistema humano seja a centralização, e que, por conta de determinadas “disfunções” aconteça períodos intermitentes de descentralização. O que desejamos indicar aqui é o quanto determinadas limitações técnicas, além da forma mesma de lidar com uma natureza que ainda lhe escapa (e esmaga) podem influenciar em tomadas de decisões e estabelecimento de modus operandi. Em suma, trata-se de não separar as relações de produção das forças produtivas. 157 bretwaldaship,559 que torna o argumento mais plausível. Da mesma forma, a crítica de Bernardo parece carecer um pouco do aspecto relacional, uma vez que contempla apenas a via pela qual a família real projetou-se sobre as aristocracias, mas não percebe (pelo menos explicitamente) que ao fazê-lo estas aristocracias também se inserem em relações familiares com a realeza. Conforme tentamos demonstrar aqui, esse fenômeno tem relação direta com a erupção da aristocracia como força e classe social; estas concessões também devem ser encaradas como parte disto, e mesmo uma forma de conflito entre aristocracia e realeza. Este conflito se torna nítido na medida em que rememoramos o capítulo anterior, no qual delineamos o quanto a realeza deve equilibrar as doações para a aristocracia tentando preservar a sua base de poder mais direta – o campesinato dependente. Não por acaso, as regiões nas quais a aristocracia se torna poderosíssima tendem a ver a figura régia enfraquecida, quando não substituída.560 Formas do Trabalho: Um dos pontos de convergência da historiografia que trata de nosso recorte é a grande variedade de estatutos sociais que estavam diretamente ligados à produção. Em outras palavras, os setores não-aristocráticos não compartilhavam da relativa homogeneidade e coesão típicas de sua contraparte no espectro social.561 Conforme já mencionamos anteriormente, a existência de escravos em nosso contexto é aceita, hoje em dia, sem grandes problemas. A convergência historiográfica, no entanto, torna-se difícil quando a discussão consiste em determinar o ponto no qual se encerrou a escravidão e iniciou-se alguma forma de relação social que permita caracterizar uma das partes como campesinato. Grande parte da discussão é alimentada pela imprecisão das fontes que, como é comum no pré-capitalismo, informam-nos muito melhor acerca de determinadas questões do que de outras. Não pensamos, contudo, que a multiplicidade de referências acerca dos estatutos sociais na historiografia seja fruto direto e unilateral do que é apresentado pelas fontes. Conforme insistimos anteriormente – mais ainda no primeiro capítulo do que no segundo –

559 Conforme o explicado nos capítulos anteriores. 560 Como exemplo novamente citamos o caso da Nortúmbria de Beda, que perde o bretwaldaship para a ascendente Mércia. 561 Embora tal assertiva possa ser interpretada como uma forma de indicar o processo de fragmentação das famílias camponesas (o que de fato ocorreu, principalmente em uma perspectiva de longa duração), o que desejamos salientar aqui é que enquanto a aristocracia possui uma relativa homogeneidade e identidade que transcende, inclusive, os limites geopolíticos de cada reino, o campesinato progressivamente tende a se atomizar, enraizando- se localmente, com pouco contato com o “mundo” além da aldeia. 158 estamos diante de um mundo em transformação; o que está expresso nas fontes traduz essa realidade mutável com suas velocidades diferenciadas quanto à sua própria afirmação, com conseqüências sociais diversas. A concessão de terras da realeza tendia à concentração fundiária na medida em que as famílias aristocráticas delas se nutriam a partir da exploração das famílias camponesas, que eram os atores históricos que efetivamente com ela lidavam. T. H. Aston e Ignácio Álvarez Borge indicam, a partir das leis de Ine, a existência de domínios territoriais (ou direitos senhoriais) aristocráticos preexistentes, que as booklands só teriam confirmado e assinalado rumo à perpetuação.562 Os primeiros grandes domínios, segundo o autor espanhol, não podem ser associados unicamente à Igreja, uma vez que essas concessões muitas vezes seguem o modelo conhecido no ocidente como eigenkrche, ou “igrejas privadas”, por meio do qual a aristocracia dotava-se de um instrumento de dominação social poderoso.563 Este poder, que garantiria a extorsão do sobre-trabalho camponês seria uma forma de transformar o que era tributo régio em direito senhorial. Além do caráter eminentemente econômico, Borges ainda remete ao caráter político que as concessões (booklands) possuem, uma vez que também expressam direitos políticos retidos pela aristocracia, assegurando sua superioridade.564 Em toda a análise do autor espanhol acerca do poder e da economia anglo-saxônica do período não há destaque para a figura dos escravos. Grande parte da historiografia concede à região estudada mais minuciosamente por Borges (Wessex) a primazia na transformação de grande parte da força de trabalho doméstica em escravos casati.565 Complementariam essa fonte de força de trabalho em benefício da aristocracia os camponeses independentes que teriam se empobrecido a ponto de se projetarem em relações de dependência. O trabalho que deviam no domínio senhorial (terras sob a autoridade direta do senhor, bem próximas às suas moradias) era restrito aos que recebiam do senhor a casa em que habitavam (independentemente de sua origem social). Desta maneira, quando as concessões englobavam aldeias inteiras, provavelmente os habitantes dessas não deviam serviço nos

562 ASTON, T.H. The origins of the manor in England with a postscript. In ASTON, T. H. (ed.), Social Relations and Ideas, Cambridge, 1983. BORGE, Ignacio Álvarez. Comunidades locales y transformaciones socials en la alta edad media. Logroño: Universidad de La Rioja, 1999. 563 BORGE, Ignacio Álvarez. Op. Cit. P. 41. 564 Idem. P. 121. 565 Escravos casati são escravos assentados em pequenos lotes de terras, nos quais constituem família e devem parte de seu trabalho ou do produto do seu trabalho ao seu senhor. Sobre esta origem social, ver POSTAN, M.M. and HATCHER, J. Population and class relations in feudal society. Past and Present , 1978. 159 domínios de seus novos senhores – e possivelmente aí reside a explicação para o fato de as áreas de cultivo dominial serem reduzidas nesses ambientes.566 Percebemos, portanto, uma tendência à equalização e homogeneização desses diversos estatutos sociais. A diferença de origem parece ser apagada com o tempo, mais precisamente de meados do século VII em diante. Talvez seja este um dos motivos pelos quais as fontes que trabalhamos sejam muito pouco eloqüentes a respeito destes critérios.567 De qualquer forma, elas nos dão pistas sobre as quais nos debruçaremos agora. A maior parte das fontes de que nos servimos são de origem eclesiástica, muitas delas hagiografias. Não é de se estranhar que as palavras servus, famulus etc. sejam utilizadas em sua grande maioria para representar a humildade dos santos e de seus subordinados e para designar o seu vínculo com Deus. Todas as referências a essas palavras (servus e famulus) na Navigatio sancti Brendani Abbatis568 e na Vita Ceolfridi569 não indicam automaticamente a posição social do indivíduo.570 A Vita Cuthberti conta com uma entrada de servus e duas de famulus que não são relativas à divindade. Referem-se ao mesmo episódio, narrado no capítulo vinte e cinco, no qual um homem que está na aldeia (Villa) de um dos comensais régios pede ao santo que vá até este patrimônio para abençoar suas terras e casa, assim como cuidar de um de seus dependentes. Ao chegar lá, Cuthberto depara-se com o tal homem doente e o cura a partir da aspersão de água. No dia seguinte, seu senhor (domino, na fonte) o encontra em saúde plena.571 Da mesma maneira, encontramos na Vita Wilfridi, em um mesmo capítulo, duas passagens que tratam do tema. A hagiografia relata que Vilfrido era visitado na casa do pai (paterna rura) pelos companheiros do rei (regalibus sociis) e também pelos servos desses (servis eorum), e que tratava a todos com humildade. No mesmo capítulo é mencionado que o santo aprendeu a vestir-

566 Este parágrafo é uma síntese do pensamento de João Bernardo, expresso em JOÃO BERNARDO. Op. Cit. P. 80. 567 Não estamos de forma alguma aqui assumindo que a aristocracia do período nutria uma inclinação no sentido de compreender os estatutos sociais vigentes em sua sociedade; apenas desejamos apontar como uma repetição de léxico sistemática pode nos fornecer algumas pistas. 568 Tanto servus quanto famulus possuem nove entradas na fonte; na última, seis são indicações de servos da divindades, e três são referências aos monges da comitiva como servos de Brandão. 569 Servus conta com o total de oito entradas, sendo cinco relacionadas ao verbo servir (no sentido de trabalho monástico), uma no sentido de ser servo do papa (em uma missiva ao próprio) e duas auto-relacionadas ao Papa, que se considera “o servo dos servos de Deus” (servus servorum Dei. Cap. 39.) 570 Um fenômeno interessante é perceptível por esta observação: ao atribuir aos santos de origem aristocrática e muitos deles riquíssimos (não apenas aos citados imediatamente próximos a esta nota, mas aos demais citados ao longo da dissertação) um vocábulo que indica uma qualidade social inferior, os redatores das hagiografias generalizam a condição de inferioridade. 571 [...] occurrit illi comes quidam Egfridi regis, rogavitque obnixe, ut ad benedictionem dandam in villulam suam domumque diverteret. [...] erat enim jam vespertina hora. Qui etiam silentio transegit noctem, et visitanti se domino suo salvus mane apparuit. Cap. XXV 160 se e a armar a si e a seus “servos” (pueris) não se sentir envergonhado na presença régia. Uma questão surge em função de puer poder tanto significar escravo como jovem. A indicação de que ele se arma e a eles pode parecer transparecer que são apenas jovens, mais do que de um estatuto social. Defendemos, contudo, que o jogo de palavras utilizado pelo hagiógrafo aponta para as duas coisas; os sentidos parecem se complementar para afirmar uma incapacidade social. Já a passagem que explicita a humildade do santo deixa claro que se trata da qualidade do indivíduo, embora não seja nítido se seriam escravos ou homens atados à terra – ou seja, por mais que esteja transparente tratar-se de alguém em uma posição de dependência, o nível em que esta se estabelece não é claro.572 A Historia Ecclesiatica também não conta com nenhuma grande entrada para estes termos que sejam esclarecedores. A Vita Abbatorum incorre no mesmo problema. O termo que se demonstrou mais apropriado para a pesquisa nas fontes - visando esclarecer um pouco melhor a questão relativa à forma do trabalho - foi terra. Além de representar de maneira articulada as relações entre as classes, as entradas nas quais tal palavra se encontra foram de certa forma esclarecedoras. A vida de Vilfrido, por exemplo, nos remete a sinônimos e formas correlatas do vocábulo que indicam a extensão de suas posses: territorium573 e regiones574. As adjetivações também são interessantes: o santo recebe dez lotes de terra (terra tributariorum) para fundar um mosteiro, seguida por uma segunda doação de mais trinta (terra mansionum).575 Essa última qualificação é novamente repetida quando recebe de um rei uma vila (villam suam propriam) e mais oitenta e sete lotes de terra (terra mansionum). A Vita Ceolfridi conta com diversas menções ao vocábulo terra, mas apenas três não são relacionadas à terra em oposição ao mundo celeste ou a vias aquáticas; estas três estão relacionadas a lotes de terras, e o vocábulo que vem em conúbio com ele é o mais revelador

572 Capítulo II. 573 Vita Wilfridi Episcopi Lindisfarnensis. Capítulo XL, no qual ele aceita parte do territorium de um aristocrata (e nele funda um mosteiro), e capítulo XLV, no qual há a remoção (considerada) injusta das terras e posses da Igreja de São Pedro (se referindo à posição ao qual estava vinculado). No último caso, os termos originais, territoriis et possessionibus suis injuste privatur, nos é revelador da importância da riqueza móvel e imóvel expressa na reclamação de Vilfrido. 574 Idem. Capítulo XVII, ao enumerar, diante da aristocracia leiga e eclesiástica, durante a sagração da igreja de Ripon, as terras doadas pelos reis anteriores e que foram doadas naquele momento, com o consenso e assinatura de bispos e nobres. [...] consensu et subscriptione episcoporum et ominium principium [...]. 575 Idem. Capítulo VIII. 161 possível: familia.576 Da mesma forma, na Vita Beatorum Abbatum, há nove relações da palavra terra, das quais sete contam com o complemento familia, indicando se tratar de patrimônios familiares ou que contam com famílias.577 Da vida dos abades constam outras indicações interessantes no que tange a essas terras. A concessão dos demais lotes citados na hagiografia dos abades, já se encontra sob o efeito de outra lógica ou dinâmica. O capítulo nove da narrativa nos brinda com o relato de uma concessão de três lotes de terra em troca de dois mantos de produção estrangeira.578 Já no capítulo quinze, há quatro ocorrências da palavra, três explicitamente citando terras familiares e uma se referindo à terra mencionada anteriormente (ou seja, terras anteriormente referidas e classificadas como familiares). Interessante ressaltar que, dos três conjuntos de terra que passam ao domínio eclesiástico, apenas um é doado, o último citado no capítulo. Os dois anteriores advêm de trocas: o primeiro é oriundo da troca do lote de oitos famílias por um trabalho de cosmógrafos romanos, entregue ao rei Aldfrido;579 o segundo remonta à troca destes mesmos oitos lotes de terras (somado a um “preço digno”580) por outro conjunto fundiário, que contava com vinte lotes de terras que seriam mais próximos do mosteiro.581

576 Vita Ceolfridi. Capítulos I, XI e XXXIII. 577 As “terras” sem a indicação explícita de se tratarem de terras familiares estão ambas presentes no primeiro capítulo do texto. [...] iuxta ostium fluminis uiuri ad aquilonem, iuuante se ac terram tribuente uenerabili ac piissimo gentis illius rege aecgfrido [...];nique cum esset minister oswiu regis, et possessionem terrae suo gradui competentem illo donante perciperet [...]. As demais encontram-se no capítulo IV ([...] tantamque apud eum gratiam familiaritatis inuenit, ut confestim ei terram septuaginta familiarum de suo largitus, monasterium inibi primo pastori aecclesiae facere praeciperet.); no capítulo VII ([...] rex ecgfridus non minimum delectatus, terram, quam ad construendum monasterium eidonauerat, quia bene se ac fructuose donasse conspexit, quadraginta adhuc familiarum data possessione, augmentare curauit.). As cinco menções restantes estão detalhadas no parágrafo seguinte. 578 Adtulit inter alia, et pallia duo oloserica incomparandi operis, quibus postea ab aldfrido rege eiusque consiliariis, namque ecgfridum potquam rediit iam interfectum repperit, terram trium familiarum ad austrum uuii fluminis, iuxta ostium conparauit. 579 Segundo o relato, o rei não apenas era versado em assuntos da intelectualidade como se interessou pela tal cosmografia, a ponto de abrir mão do lote citado para adquiri-la. 580 O termo original utilizado é pretio digno, que é normalmente traduzido como a fair balance of money, a fair quantity of money etc. Optamos por excluir o termo “dinheiro” porque primeiramente, como a própria fonte deixa claro, muitas vezes o que era utilizado para conseguir doações régias eram bens outros que não apenas moedas (forma geral do dinheiro no pré-capitalismo, embora seja necessária uma pesquisa muito mais ampla para afirmar seguramente se tratar de “a forma dinheiro”). Pelo que observamos na lógica aristocrática até então, o que tende a ser mais valorizado parecem ser bens (geralmente tidos como exóticos) carregados de elementos sobrenaturais, em detrimento das moedas. O dinheiro, que no capitalismo adquire feições de equivalente universal, parece ter função diversa em nosso contexto – apesar de, em alguma medida, haver equivalência no momento da troca, como expõe a fonte, mas não perpassando necessariamente pela mediação aurífera. 581 [...] dato quoque cosmographiorum codice mirandi operis, quem romae benedictus emerat, terram octo familiarum iuxta fluuium fresca ab Aldfrido rege in scripturis doctissimo in possessionem monasterii beati pauli apostoli compararit; quem comparandi ordinem ipse, dum aduiueret, benedictus cum eodem rege aldfrido taxauerat, sed priusquam complere potuisset obiit. Uerum pro hac terra postmodum, osredo regnante, 162

Três intervenções se fazem necessárias acerca deste levantamento. Apesar de não tornarem cristalinas questões como as formas de exploração do trabalho, ou a forma mesmo do trabalho nestes domínios, alguns elementos podem ser extraídos destas referências. O primeiro deles é o reconhecimento do aspecto central que a família assume no que diz respeito à ocupação (e, conseqüentemente, à exploração) do solo. Parece-nos que, aos olhos da aristocracia, toda aquela diversidade de estatutos sociais, reconhecida mesmo no âmbito do direito, se esvai no que diz respeito à submissão econômica no sentido mais restrito. Em outras palavras, muito embora seja possível encontrar fortunas diversas no interior de um mesmo conjunto de homens dependentes (que não constituíam, portanto, um bloco monolítico), esses parecem convergir para uma homogeneidade não apenas pela contraposição à aristocracia, mas na própria forma pela qual se estruturam, na qual a família parece ser a célula nuclear.582 Apesar disto, ainda há o problema da distinção jurídica (e, portanto, também política) que separa estas famílias. Este ponto é esclarecido na medida em que o consideramos sob uma perspectiva processual e em uma duração um pouco mais alongada. A legislação de Etelberto do Kent, por exemplo, de fins do século VI e início do VII, admite uma série de diferenciações punitivas em relação aos escravos. Tais sanções diferenciadas permanecem nas leis de Holthhaere e Eadric, também reis do Kent entre 673 e 686. Já as leis do rei Withtraed, de 690 a 725, sequer contam com a presença do elemento escravo em suas considerações diretas. Em outras palavras, poderíamos aí ter um indício de um processo da progressiva irrelevância do trabalho escravo, e, caso esta hipótese seja comprovada ulteriormente por outras pesquisas, poderíamos pensar que esta irrelevância se constitui em função do peso que o campesinato dependente adquire com o avançar dos anos. Uma questão que pode ser levantada versa acerca da interpretatio desses processos. Não seriam as tais terram familiarum uma realidade coeva aos autores das hagiografias, que acabaram projetando-as sobre as formas anteriores de ocupação do solo? Mesmo que essa afirmativa tenha sentido, e seja de fato procedente,583 ela parece mais confirmar a nossa hipótese

ceolfridus, addito pretio digno, terram uiginti familiarum in loco qui incolarum lingua ad uillam sambu ce uocatur, quia haec uicinior eidem monasterio uidebatur, accepit. Vita abbatorum, Cap. XV. 582 Conforme o exposto na introdução, ainda que a família seja o elemento nuclear nesta organização, esta pode assumir formas diversas, e relações múltiplas são possíveis a partir destes diferentes formatos. 583 Aparentemente não o é, uma vez que a historiografia tende a concordar com Beda (por motivos além da própria afirmação do autor, como o amparo pela arqueologia estratigráfica, por exemplo), em que era em face do 163 de que este tenha sido o resultado do processo,584 uma vez que as fontes nas quais tais referências são encontradas são majoritariamente do fim do período por nós tratado. A segunda intervenção diz respeito às terras que serão (ou são) doadas pela realeza para a construção de mosteiros. A Vilfrido, primeiramente, foram concedidos dez lotes tributarium, e depois trinta mansionum. A indicação de uma terra de onde eram originários os tributos nos inclina a interpretar aqueles primeiros lotes como a materialização do direito de exploração do trabalho do campesinato até então independente. O segundo lote já não permite uma indicação tão precisa como o primeiro. De qualquer forma, é interessante notar como a primeira doação feita, justamente no momento de surgimento do mosteiro, submete-lhe um conjunto populacional que provavelmente antes não conhecera outro senhor que não a própria realeza, evidenciando o caráter qualitativamente diferenciado daquela doação.585 Em terceiro lugar, uma questão que talvez a inversão sintática seja capaz de elucidar: terra familiorum, a terra das famílias enseja, em sua constituição genética, que haja familiae terrae, uma família da e para (aquela) terra. Em outras palavras, tais famílias tendiam a estar enraizadas, encerradas em aldeias ou vinculadas a vilarejos, adstritas geográfica e também socialmente. A indistinção e a reunião destes termos nos parecem, portanto, nítidas. O quarto e último apontamento diz respeito à troca mencionada nas vidas dos abades. Se, anteriormente, segundo a mesma hagiografia, teriam sido doados setenta586 e quarenta lotes,587 os abades precisariam conceder uma contraprestação para conseguir mais posses, e assim dois mantos seriam trocados por três lotes de terra – um número aparentemente pequeno diante das concessões anteriores. Da mesma forma, trocou-se a obra elaborada por um cosmógrafo romano, que interessava muito ao rei Aldfrido (segundo a fonte, ele era bem instruído nas escrituras) por

tamanho da família que o costume anglo-saxão fixava a dimensão de determinada faixa de terra ou domínio político. Esta passagem está presente em BEDA, Historia Ecclesiastica, Livro I, Capítulo XXV. Ao falar da ilha onde Agostinho desembarca, Tanatos, esta parece contar com seiscentas famílias (e lotes de terra). Na fonte: [...] Esta utem ad orientalem Cantia plagam Tanatos insula non modica, id est, magnitudinis iuxta consuetudinem aestimationis Anglorum, familiarum sexcentarum. 584 Conjunto de famílias dependentes com importância maior do que o trabalho escravo ou outras formas de trabalho que gozassem de maior liberdade. 585 O que desejamos evidenciar aqui é que, conforme já apontado anteriormente, é provável que a realeza houvesse concedido direitos de apropriação anteriormente, em caráter vitalício mas não hereditário. O que o tributarium parece destacar, no nosso contexto, é que se tratava não de uma realocação de uma concessão anterior, mas da concessão de um novo grupo, até então independente. 586 [...] tantamque apud eum gratiam familiaritatis inuenit, ut confestim ei terram septuaginta familiarum de suo largitus, monasterium inibi primo pastori aecclesiae facere praeciperet. Cap. IV, grifo nosso. 587 [...] rex ecgfridus non minimum delectatus, terram, quam ad construendum monasterium eidonauerat, quia bene se ac fructuose donasse conspexit, quadraginta adhuc familiarum data possessione, augmentare curauit. Cap. VII. Grifo nosso. 164 oito lotes de terras; essas foram trocadas, somadas a um “preço digno”, por outros vinte lotes de terras que seriam mais próximos ao mosteiro. O primeiro elemento que nos chama a atenção é a progressiva austeridade das doações régias. Ela parece-nos advir menos de uma mudança do modus operandi da realeza do que do seu depauperamento a partir das doações anteriores. Como uma das funções régias, conforme destacado anteriormente, era a doação de presentes (que chegou mesmo a constituir um de seus pilares de sustentação), parece-nos razoável pensar que, pela paulatina incapacidade de doação (de terras e homens), a realeza de certa maneira passa a exigir uma contrapartida imediata nestas concessões, objetivando reproduzir o ciclo de doações, seja para leigos, seja para eclesiásticos.588 O segundo elemento é justamente a possibilidade de intercâmbio dos lotes de terra. Se as formas de trabalho que os valorizavam não eram razoavelmente uniformes – algo impossível de afirmar peremptoriamente, mas que se pode indicar com base nos indícios – pelo menos a apropriação das rendas vinculadas àqueles parece que o teriam sido. Trocas sugerem sempre algum nível de equivalência. O intercâmbio dos oito lotes, acrescido do “preço digno”, por vinte lotes não parece ter indicado nenhum prejuízo direto a nenhuma das duas entidades históricas envolvidas na negociação. O que se destaca, contudo, é que, para que fosse possível a troca, era necessário que os lotes (e, por conseqüência, a taxação das pessoas dependentes que ali trabalhavam) envolvidos na transação não fossem radicalmente distintos, pois se o fosse haveria que se promover mudanças na forma de apropriação de ambos, o que não parece ter sido o caso. Se não se trata de um dado a representar uma homogeneização das formas de trabalho, pelo menos indica uma forte tendência de homogeneização em relação às formas pelas quais tinham os seus rendimentos apropriados. Temos, por um lado, indícios de uma progressiva convergência das formas de trabalho; por outro, da paulatina homogeneização da forma como esse trabalho era extorquido por parte das elites. Este é o processo também identificado por Wickham em sua obra, mas que não é objeto de consenso na historiografia. O agravamento das forças produtivas ocorrido após a retirada romana (e que só teria sido recuperado após um par de séculos da instalação anglo-saxônica) teria sido o responsável,

588 Pretendemos nos afastar aqui de uma posição que interprete a exigência de presentes por parte da realeza como uma forma automática de garantir tesouros e expandir suas riquezas, única e exclusivamente porque seria da natureza de uma determinada posição de poder. O que parece-nos novo no contexto é a suspensão da dilação temporal que o dom antes encerrava – terras ou armamentos por uma futura lealdade cedem lugar a um intercâmbio imediato – ainda que com conseqüências sociais razoáveis, já que ao contrário do capitalismo, a troca é plenamente pessoalizada. 165 segundo Rosamond Faith, por impor sérias restrições ao desenvolvimento de relações verdadeiramente “feudais” nos séculos V ao VIII. Para a autora, a grande dificuldade deste tipo de interpretação (que supõe a feudalização do período inicial anglo-saxão) reside na reduzida capacidade da aristocracia de extrair excedentes. Essa dificuldade decorreria do fato de que o campesinato (peasantry) teria sua atividade econômica baseada principalmente na pecuária, mais do que no cultivo do solo, de maneira que a própria produção de excedentes seria muito limitada. Os camponeses manteriam as elites pela entrega periódica de certo número de cabeças de gado, concessão essa culturalmente mais próxima da hospitalidade devida ao chefe do que propriamente do pagamento de rendas a um senhor de terras. Segundo a mesma autora, a terra estaria de fato mais ligada a um conceito de uso comum do que propriamente ao de posse. Uma mudança de concepção só seria ocorreria posteriormente ao período de 800, quando teria lugar a intensificação de investimento camponês e senhorial no sentido de uma economia mais cerealífera. Sua exposição é encerrada apontando que, para se pensar o diferentes modos de produção e relações de produção não é possível “ignorar os diferentes meios de produção que formam sua base”.589 A crítica da autora à proposição de Wickham (que acaba por aplicar-se à nossa) tem o seu sentido, mas encontra limites muito sérios. Analisar as relações de produção em um determinado contexto tendo como bases exclusivas a forma do trabalho e os meios de produção de base, em detrimento de focar como as relações de exploração e expropriação se manifestam, não nos parece a melhor forma de (re)pensar determinado(s) modo(s) de produção. Parece-nos mais interessante levar em consideração todos os elementos em um conjunto articulado, no qual a família desempenha um papel central na inserção no aspecto produtivo, independente de sua efetivação ser em um âmbito de cultivo ao solo ou de rebanho. Defendemos, portanto, a centralidade da exploração das classes subordinadas para a definição geral do sistema. Quanto à possibilidade limitada de extração de excedentes por parte da aristocracia – que seria, portanto, relativamente mais pobre do que as suas congêneres continentais – a perspectiva merece algumas considerações. A primeira é entender a riqueza possível comparativamente no seio de determinado quadro social – por mais que os principais tributos fossem pagos em gado por um bom tempo, o excedente extorquido era suficiente, por exemplo, para que os reis

589 O argumento da autora não parece se restringir ao nosso contexto, assumindo um verniz teórico. FAITH, Rosamond. Op. Cit. P. 39. 166 obtivessem artefatos de produção longínqua, conforme demonstramos no segundo capítulo a partir principalmente da trocas de presentes com outras realezas.590 Estes artefatos também circulavam entre a aristocracia, certamente introduzidas neste circuito a partir de doações régias, mas também circulavam interaristocraticamente. Lembremos da existência de aristocratas que possuíam riquezas (e modus operandi) semelhantes ou até mesmo superiores às das realezas. Ademais, sob perspectiva comparativa, é possível vislumbrar Offa da Mércia (757-796) tratando de igual para igual com Carlos Magno,591 o que parece desmentir qualquer entendimento de pobreza relativa.592 Outro ponto fulcral, que não pode ser esquecido em nossa análise, é que um dos elementos fundamentais na entrada de dependência por parte do campesinato é a perda de sua qualidade guerreira. Apesar de, mesmo em períodos mais tardios encontrarmos a obrigação do manejo de armas para a defesa do reino, essa característica foi drasticamente alterada. Esta obrigação é conhecida como fyrd. Conforme demonstramos anteriormente, o afazer bélico faz parte do quotidiano aristocrático. No período inicial da entrada dos germânicos na ilha, a fyrd parecia contar com um número amplo de homens, que parece reduzir-se na medida em que a aristocracia requer para si o monopólio da violência. Como conseqüência deste processo, temos uma bifurcação no conceito: passar a existir a fyrd geral (general fyrd) e a selecionada (select). A primeira indica o conjunto de homens armados do reino, enquanto a última refere-se ao conjunto de habitantes armados cuja função reside especificamente na defesa.593 Voltados apenas para a autodefesa, provavelmente pegando em armas em situações nas quais o seu território imediato demandasse uma urgente composição guerreira, os camponeses estavam afastados (mas não eliminados) da possibilidade de, através do saque e pilhagem, alargar suas posses e/ou conseguir

590 Boa parte das sedes reais que foram melhor escavadas encontram-se próximas aos portos comerciais. Ver mapa 5, página 180. 591 CARDOSO, Ciro. A Cristianização da Inglaterra. Texto Cedido pelo autor. P. 19. 592 Além da Mércia, Offa dominava outros reinos, que, uma vez submetidos, pagavam-lhe tributos. Poderíamos pensar então, que o poderio equivalente ao de Carlos Magno só teria sido alcançado por reis anglo-saxões que foram capazes de tamanha façanha. Mas terá sido o ocorrido com Carlos Magno tão diferente disto? Será que o índice de grande poderio na Alta Idade Média também não pode ser entendido como uma realeza capaz de submeter diferentes regiões, concedendo terras a aristocratas, o que impulsionava novas conquistas? Se levarmos em consideração o período do início da Idade Média até as passagens dos séculos VIII para o IX, veremos que tanto Offa quanto Carlos Magno, enquanto senhores de larguíssimas extensões, constituem mais exceções que regras no que tange ao poderia régio. 593 EMBLETON, Gerry & HARRISON, Mark. Anglo-Saxon Thegn – 449 – 1066 A.D. Oxford: Osprey Publishing, 1998. P. 8. Discordamos, contudo, com o autor na medida em que este lê a redução da fyrd como uma forma de conseguir um exército mais bem preparado, com melhores provisões, mais especializado etc. Como estamos tentando demonstrar, este é um processo amplo e mais complexo do que uma disposição puramente militar. 167 algum bem de prestígio que pudesse projetá-los em direção à aristocracia.594 O campesinato dependente é, portanto, caracterizado pela sua inserção nas relações de dominação-produção como uma classe que, apesar de provavelmente heterogênea, estava submetida a formas de exploração correlatas, e cuja célula produtiva estava baseada na família. A rapina do sobre-trabalho desta classe é o ponto fundamental para o estabelecimento da aristocracia, concentrando também prerrogativas que cristalizavam, simultaneamente, a sua função social e a disposição de dependentes daqueles camponeses. O aldeamento da classe, que a atomiza e a formata em níveis locais, torna mais raro o contato com outras localidades e a amplitude de visão de classe.595 Ao contrário da aristocracia, que se projeta em relações além-reino e mesmo extra-ilha, o campesinato provavelmente não desenvolveu qualquer forma de identidade de classe.596 O controle do espaço e do tempo (através de genealogias, por exemplo), tão fundamentais na formação e na experiência de classe da aristocracia parecem-nos ausente do mundo camponês. Alguns dos principais elementos que fomentam a formação da classe aristocrática são também os responsáveis pela incapacidade de formação de classe do campesinato, em termos identitários e políticos, pelo próprio formato que a expropriação e exploração deste assumem. Uma última reflexão que nos cabe diz respeito justamente a este caráter “incompleto” das classes camponesas. No que tange ao processo interno à própria aristocracia, evidenciamos o quanto desta identidade se faz presente e mesmo necessária na sua constituição como classe. Já que tal identidade não se produz nos setores camponeses, por que conceituá-los como classe? Em primeiro lugar, conforme já destacamos, o vocábulo tem conotação política explícita, e denota claramente a nossa inserção teórica, o caráter conflitivo que a História assume etc. Mas, há outro aspecto que nos parece mais importante. Conforme a consideração de Marx acerca dos campônios franceses(tal qual citada na introdução deste capítulo), os nossos também ao mesmo tempo são classe e não o são. A análise, por assumir esta lógica dialética, não é contraditória;

594 Uma questão espinhosa no que diz respeito à possibilidade de ascensão social reside em pensar até que ponto o bem de prestígio é capaz de produzir uma transferência de uma classe social para outra. Pensamos que, em nosso contexto, isso pode soar não de todo despropositado. Em um plano lógico, poderíamos pensar que um homem que se destacasse pela destreza nas armas em determinada campanha de defesa (e consequentemente saqueasse os corpos adversários, adquirindo assim insígnias aristocráticas) pudesse ser pinçado para integrar a corte e o salão régios. Contudo, esta hipótese é de difícil comprovação, e surge nesta nota apenas como um elemento que possa integrar uma reflexão mais ampla e detida sobre o tema. 595 O intercâmbio, contudo não cessa, apenas escasseia. 596 Não negamos, contudo, a possibilidade da existência de identidades locais, mas isto na verdade converge com o nosso argumento. 168 antes, ela expressa as contradições presentes e imanentes do processo histórico ao qual ela se refere. Sobressai em nossa exposição sobretudo o seu caráter positivo, pelo próprio caráter eminentemente relacional, e cujo horizonte é a própria totalidade social, ou o modo de produção.

Conclusão O estudo do campesinato conta com diversas dificuldades, conforme explanamos ao longo deste capítulo. Nota-se tal aspecto inclusive na diferença de material produzido nesta dissertação a respeito do mesmo – um capítulo bem menor do que os demais. Contudo, pensamos que mesmo nos demais, ele esteve presente, ainda que sub-repticiamente, subterrâneo. A saída que encontramos para superar o limite da análise foi constituí-la a partir da análise do próprio limite, isto é, adquirindo um tom essencialmente relacional. A emergência da aristocracia está intimamente ligada ao processo de desagregação do campesinato independente e à capacidade aristocrática de enquadrar parte deste campesinato em relações de dependência pessoal a partir de concessões régias. Estas concessões são anteriores ao período por nós estudado, porém não apenas ganham importância como passam a adquirir caráter perpétuo com a introdução das booklands, inicialmente utilizadas para a edificação de mosteiros. A irrevogabilidade de tais concessões tendeu a produzir diversas cristalizações. Primeiramente cristalização da condição de dependência de homens dos quais a extração de sobre-trabalho não possuía mais término visível. Também tende a se tornar pétrea a aristocracia oriunda deste processo, que contava com membros eclesiásticos e laicos indistintamente, que freqüentavam ambientes próximos e que eram originários, de maneira geral, das mesmas famílias. Em último lugar, estas concessões tendiam a imobilizar o patrimônio régio, tornando cada vez mais complicado iniciar novos ciclos de dádivas e garantir o apoio da aristocracia. O processo, contudo, não se encerra em nosso recorte. Ainda há uma camada de não- aristocratas livres; o campesinato independente ainda é uma realidade, ainda que em vias de enquadramento em áreas diversas, e tendencialmente se encaminhando ou para a submissão ou para a aristocracia (embora estes sejam minoria). Apenas pensando estes setores articuladamente é que somos capazes de uma compreensão mais efetiva e plena desta realidade. Estamos diante de três formas diferentes de se inserir no processo produtivo, de possibilidades de experiência e vivência, de se conceber

169 enquanto ente social, de circulação, de acesso a bens, a prestígio e status etc. Estas três classes são fundamentais, em sua complementaridade, para conceber a lógica social vigente. Esta complementaridade, contudo, não se expressa por uma reciprocidade equitativa, em que indivíduos qualitativamente idênticos em suas potencialidades negociam clara e racionalmente a organização social. Esta complementaridade é justamente o que nos permite perceber como este é um processo no qual a violência é fundamental; caso não fosse, a principal expropriação que os aristocratas impõem aos seus dependentes não seria a perda da qualidade guerreira. Complementam-se na medida em que sua própria historicidade só pode ser apreendida em caráter de relação, e também de processo. Nenhuma classe é uma ilha.

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CONCLUSÃO Uma rápida olhadela no índice deste trabalho já é revelador quanto às possibilidades de trabalho em história medieval. A dificuldade em abordar o campesinato torna o último capítulo diminuto em relação aos anteriores. Esta disparidade de dimensões, todavia, não traduz apenas um fracasso de possibilidades. Tanto do primeiro quanto no segundo capítulo tratamos, ainda que lateralmente dos dois tipos de campesinatos que nos deparamos. Esta forma de argumentação não está calcada em um descuido, mas objetiva evidenciar o quanto é necessário entender o conjunto articulado que determinada sociedade representa, para a partir disto compreender efetivamente o papel de cada peça no xadrez social. A tentativa de enquadrar os anglo-saxões como um reino bárbaro, desprovido totalmente de romanidade (equivalendo-se esta a intelectualidade), parece-nos equivocada, sem sentido. Tampouco podemos atribuir a esta sociedade a liberdade que alguma vez já projetaram sobre a idade média. O mundo sobre o qual nos debruçamos certamente está carregado de violência, de uma progressiva desigualdade, de uma paulatina cristalização das formas de poder e dos grupos com acesso a ele. Talvez conte com formas de resistência à esta mesma violência, mas que a natureza das fontes trabalhadas, assim como o caráter inacabado do processo estudado, não nos permite vislumbrar. Não há dúvidas, contudo, quanto à consolidação desta aristocracia, a partir da extração de sobre-trabalho camponês. O quantum absoluto do conjunto de bens possíveis de extorsão pode parecer pequeno frente ao mundo no qual a classe dominante é capaz de almoçar comida chinesa onde ela só é chamada de comida, fazer um lanche aos pés da Torre Eiffel, e cear com vinho do Porto, em um local no qual ele é apenas um item de produção local, tudo no mesmo dia. A comparação histórica, contudo, não se pode produzir apenas nestes níveis; ela deve acima de tudo, considerar e ponderar as historicidades envolvidas. Circulando de aldeia em aldeia, consumindo localmente seus excedentes, dormindo sob tetos de madeira - pelo próprio caráter temporário que o deslocamento impinge, cingindo e exibindo suas armas, a aristocracia se produz. Embora seccionado em estudos capitulares, demonstramos como determinado fenômeno social é simultâneo em sua própria multidimensionalidade. Em nosso recorte, assim como provavelmente no pré-capitalismo como um todo, a indissociabilidade das frações do social grita, e caso alguma faceta tenha sido deixada de lado, a análise perde força.

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Pensamos, contudo, que estes três capítulos foram capazes de elucidar diversas questões convergentes. O primeiro demonstra como as novas formas de propriedade tenderam a catalisar um processo já em andamento, as concessões régias e a submissão de uma parte dos súditos, que se tornavam camponeses dependentes. O terceiro apresenta como, em paralelo a este processo (ou mesmo antecedendo o mesmo, segundo a linha de João Bernardo) o campesinato independente perde coesão interna, alguns destes se projetam sobre os demais como aristocratas, e sua capacidade de resistência é fortemente abalada. Conforme o exposto acerca da demografia, o fator humano sempre foi o primordial em termos de forças produtivas em nosso recorte, o que converge para a compreensão da gravidade que a perda de coesão de um grupo de homens representa. Em outras palavras, a perda da coletividade parece implicar diretamente na perda de força, e aqui obtemos parte (vital) da resposta da pergunta levantada no início do primeiro capítulo: como e por que os homens passam a servir? A aristocracia, contudo, goza do processo inverso. Ela se mantém unida enquanto classe, independente de se situarem no ambiente leigo ou eclesiástico. Isso não significa que aristocratas não se confrontem entre si, ou que haja total convergência de interesses e práticas entre eles. Há nitidamente preocupação de uma lado e conflitos de outro, dentre tantos relatados por Beda – a reclamação do Venerável acerca dos beberrões que adentram a vida monástica é apenas um exemplo. Porém, o que parece ficar mais nítido em um escopo sociológico mais amplo é a capacidade de movimento aristocrática: guerreiros mal (ou não) remunerados buscam outros reis; santos se vinculam a diferentes reis e reciprocam presentes; santos são recebidos no continente por outros aristocratas, dos quais também recebem presentes. Não é apenas pelos cavalos que a aristocracia domina o espaço. As genealogias também são outra constante. Curioso que parte das que temos acesso são produzidas pelos eclesiásticos; da mesma maneira, este também produzem hagiografias, e ambos constituem formas de perpetuar a memória de determinados grupos. A hagiografia mais nitidamente possui caráter normativo que as genealogias, mas ambas estão ligadas a um processo de produção de uma memória social; como o apresentado no capítulo dois, esta memória é entrelaçada de historietas que reforçam o interlace dos dois braços aristocráticos. Em outras palavras, constituem uma forma efetiva da aristocracia produzir-se no tempo, prospectivamente e retroativamente. O domínio do tempo e do espaço se mostrou uma forma fundamental na ideologia

172 aristocrática. Tão importante quanto são seus privilégios e monopólios (especialmente da qualidade guerreira). Todos estes foram construídos a partir da expropriação do restante da população, um processo difícil de ser encarado como pacífico. Para a percepção destas expropriações, a visão do processo de hierarquização na longa duração foi essencial. Concordamos, portanto, com Timothy Earle quando este, ao estudar as sociedades de chefia (ou a passagem para esta) estabelece a importância fundamental da exclusão de parte da sociedade das formas de poder, sejam elas ritualizadas ou não. Citamos rapidamente, no terceiro capítulo, a luta do MST e a expropriação dos camponeses brasileiros. Na Inglaterra dos séculos VII-VIII, a expropriação era de determinadas qualidades, possibilidades, e atava o homem à terra. A contemporânea diz respeito ao processo de proletarização dos camponeses brasileiros. Se antes, sua entrada na exploração mais direta o estabelecia como camponês propriamente dito, categoria sociológica “clássica”, agora ele passa pela perda desta mesma qualidade, pelas transformações que o capitalismo impõe ao campo. Com isso não defendemos que a luta do MST seja válida apenas pela preservação de uma categoria social, incorrendo em um certo museologismo social, mas defendemos a existência do movimento pela sua importância social que extravasa as questões especificamente campônias. Apenas a título de exemplo, a Escola Semente da Conquista, localizada em Santa Catarina, no assentamento 25 de maio, obteve a melhor nota do Enem no estado.597 No que diz respeito à aristocracia estudada, a classe se expressa e se constitui como um processo identitário de exclusão. E a classe pensada como forma revolucionária? Terá ela também esta característica, será ela também necessariamente negativizante e excludente? A primeira coisa a ser evidenciada na resposta é que a classe proletária em momento algum é apontada por Marx como essencialmente revolucionária – ela é potencialmente revolucionária. Em seu movimento equalizador, o capital tende a homogeneizar o mundo, derrubando barreiras e limites à sua própria reprodução, que é também necessariamente expansão. Em outras palavras, a proletarização dos trabalhadores surge como tendência massiva. Como conseqüência, na outra ponta do processo, uma elite cada vez mais abastada, nutrida por uma concentração de riqueza ímpar na história humana. Seguindo esta linha, difícil pensar que seriam os capitalistas os interessados em barrar o avanço do capital. Se há algum ator social que tem interesses efetivos em estabelecer uma postura

597 http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2010/11/480588.shtml 173 anticapitalista e superar a atual ordem social, ela seria o proletariado. Marx não leva esta postura a estas classes; pelo contrário, ele é levado a estas conclusões pelas próprias. Durante boa parte de sua vida, ela era um organismo pulsante em sua própria fecundidade. E hoje? Há certo consenso que a esquerda conta com uma dificuldade de uma ampla articulação desde pelo menos a década de 1990. Paradoxalmente, a própria esquerda insiste na necessidade de um programa comum para a transformação efetiva da realidade.598 O Brasil, particularmente, vive um momento de desagregação ainda mais forte a partir da eleição de Luís Inácio Lula da Silva para a presidência do país. O cenário seria desolador. Mas uma luz surge, agora, neste exato instante. Enquanto escrevo, há milhares de Egípcios nas ruas, que já enfrentaram policiais, tropas de choque, granadas de gás lacrimogêneo, toda a sorte de apetrechos e veículos anti-povo, o próprio exército, homens utilizando munição letal, e mesmo a visão de amados sendo mortos. Nada disso os impediu de se manter unidos, de ocuparem suas praças, lançar prédios públicos ao fogo (literalmente), e de exigir sua liberdade e a saída do ditador. Os gritos não são de ameaças aos policiais ou aos militares, mas de “Junte-se a nós! Somos irmãos!” Depois de um de seus discursos, a palavra de ordem mais gritada era “Fora!”; a segunda, “Revolução!”. Antes que seja enforcado, Mubarak acaba de renunciar.599 O levante egípcio não se produziu a partir de uma identidade de classe, e até o fechamento deste capítulo não havia qualquer direcionamento neste sentido ou mesmo em sentido explicitamente anti-capitalista. Os manifestantes são sobretudo contra o “estado de emergência permanente” no qual estão inseridos. A questão é que a importância geopolítica do Egito está diretamente ligada a um país central para o capitalismo, e uma luta direta contra um ditador que é apoiado por tal país (Estados Unidos) pode assumir contornos diversos.600 Durante anos a fio, o regime foi o de exceção, e a vida política manteve-se imobilizada, suspensa. Não é por acaso que muitos manifestantes dizem estar se sentindo vivos pela primeira vez na vida.601 Com a garantia da saída do ditador, o Egito torna-se novamente terreno fértil. É

598 Como exemplo, temos a entrevista de Chico Alencar, reportagem de capa - na qual está escrito “As esquerdas precisam de uma plataforma comum” em letras garrafais - na revista Caros Amigos de Fevereiro de 2011. 599 Este parágrafo obviamente foi o último a ser escrito, justamente pela necessidade de mantê-lo o mais atualizado o possível. 600 O apoio dos EUA ao Egito se concretiza pelo controle do canal de Suez e pela contenção de potenciais ameaças a Israel que um governo popular árabe poderia representar. 601 http://www.guardian.co.uk/global/2011/feb/10/egypt-miracle-tahrir-square Artigo de Slavoj Zizek. Concordamos com o autor em seu último parágrafo, no qual ele afirma ser crucial que esta sensação de avivamento não seja 174 possível optar por manter-se capitalista, como também é possível a opção por um caminho diferente. Para garantir que tudo aconteça, sem que nada mude, certamente haverá envio de tropas diversas de vários lugares, “para assegurar a paz”. A possibilidade de resistência contra isto certamente estará na capacidade de coesão a articulação dos egípcios. Esperamos sobretudo que seja feita a opção pela mais plena realização humana, para que as contradições nas quais estamos inseridos sejam superadas, e que o potencial da humanidade seja libertado. Mas para isso não basta o Egito, e por isso não apenas esperamos, mas agimos. Superamos as classes, relegando-as ao passado.

soterrada por uma cínica realpolitik. 175

Anexos

Mapas

Mapa 1 LAING, Jennifer e LAING, Lloyd. Anglo-Saxon England. Lonon: Routledge, 1990.

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Mapa 2 O mapa representa a distribuição das primeiras ocupações (settlements) dos Anglo-Saxões na Inglaterra. ARNOLD, C.J. An Archaeology of the Early Anglo-Saxon Kingdoms. London: Routledge, 2005. p.60.

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Mapa 3 . A imagem da esquerda demosntra a distribuição da cremação, enquanto o da direita os enterramentos. Enquanto a cremação é mais comum na parte oriental da ilha, as inumações aparecem de maneira mais generalizada. ARNOLD, C.J. An Archaeology of the Early Anglo-Saxon Kingdoms. London: Routledge, 2005. p.59.

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Mapa 4 Distribuição espacial de fundações de igrejas em quatro recortes do sétimo século. ARNOLD, C.J. An Archaeology of the Early Anglo-Saxon Kingdoms. London: Routledge, 2005. p.69.

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Mapa 5 Distribuição de sedes reais escavas e portos de comércio. ARNOLD, C.J. An Archaeology of the Early Anglo-Saxon Kingdoms. London: Routledge, 2005. p.226.

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Figuras

Figura 1. Reprodução da planta da Igreja de São Pedro e São Paulo. HUNTER-BLAIR, Peter. Roman Britain and early England – 55BC-A.D.871. New York: The Norton Library, 1963. P. 227.

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Figura 2 As marcas residuais do dique de Offa. YORKE, Barbara. Kings and Kingdoms in Early Anglo-Saxon England. London, Routledge, 1990. P. 94.

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Figura 3 Uma representação da Fyrd do século IX, em treinamento. Neste contexto, pelo processo por nós apresentado ao longo da dissertação, participavam apenas os homens que mantiveram o estatuto guerreiro. EMBLETON, Gerry et HARRISON, Mark. Anglo-Saxon Thegn AD449-1066. Oxford: Osprey, 1998

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Figura 4 Representação contemporânea do que seria um thegn do início do oitavo século. EMBLETON, Gerry et HARRISON, Mark. Anglo-Saxon Thegn AD449-1066. Oxford: Osprey, 1998

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Figura 5. Cruz de São Cuthberto. LAING, Jennifer e LAING, Lloyd. Anglo-Saxon England. Lonon: Routledge, 1990. P. 112.

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Figura 6. Esqueleto contorcido de uma mulher enterrada viva em Sewerby, Yorkshire. A coluna parece ter sido esmagada por uma pedra que teria sido jogada sobre ela para evitar que ela se erguesse. LAING, Jennifer e LAING, Lloyd. Anglo-Saxon England. Lonon: Routledge, 1990. P. 81.

Figura 7. Corno de beber encontrado em Sutton Hoo. LAING, Jennifer e LAING, Lloyd. Anglo-Saxon England. Lonon: Routledge, 1990. P. 73.

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Figura 8. Uma tentative de reconstrução da lira de Sutton Hoo. LAING, Jennifer e LAING, Lloyd. Anglo-Saxon England. Lonon: Routledge, 1990. P. 56.

Figura 9. Scramasax de ferro, compost de bronze, cobre e prata. 81,1 cm de comprimento, encontrado no rio Tâmisa. LAING, Jennifer e LAING, Lloyd. Anglo-Saxon England. Lonon: Routledge, 1990. P. 54.

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Figura 10 Escudo encontrado em Sutton Hoo, em uma cópia que emula sua restauração. LAING, Jennifer e LAING, Lloyd. Anglo-Saxon England. Lonon: Routledge, 1990. P. 53.

Figura 11. O “prato de Anastácio”, encontrado em Sutton Hoo. Com 72,4 centímetros de diâmetro, este disco de prata conta com duas marcas que identificam a prodção ao imperador bizantino Anastácio I.

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Figura 12. Reprodução da estrutura de uma habitação saxônica. Nota-se a semelhança com as longhouses escandinavas. QUENNELL, C.H.B & QUENNEL, Marjorie. Everyday life in Roman and Anglo-Saxon Times. New York: Dorset Press, 1987. P. 142.

Figura 13Reprodução da lateral das habitações. Destaca-se o peso fundamental da madeira nas construções, que utilizavam poucos materiais além deste (palha, entre as poucas variações).

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Figura 14 Reconstrução de uma construção (provavelmente uma longhouse) de Cowdery's Down, em Hampshire. ARNOLD, C.J. An Archaeology of the Early Anglo-Saxon Kingdoms. London: Routledge, 2005. p.74.

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Figura 15. Reprodução do que seria um típico burh anglo-saxônico. EMBLETON, Gerry et HARRISON, Mark. Anglo-Saxon Thegn AD449-1066. Oxford: Osprey, 1998.

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Figura 16. Exemplos de espadas de seaxes de lâmina marcada, que nos parecem indícios de uma autonomização aristocrática. Estas personalizações aparentemente são uma forma de imprimir a posse definitiva do guerreiro sobre o objeto, de maneira similar às doações em jus perpetuum que se pronunciavam sobre esta sociedade. DAVIDSON, Hilda Ellis. The Sword in Anglo-Saxon England. Woodbridge: The Boydell Press, 1994.

Figura 17. Seax Achado no Tâmisa, provavelmente de fins do século V Nota-se como os padrões são apenas rúnicos, e não possuem a mesmo nível de personalização dos desenhados acima, de períodos posteirores.. EMBLETON, Gerry et HARRISON, Mark. Anglo-Saxon Thegn AD449-1066. Oxford: Osprey, 1998.

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Figura 18. Fenômeno semelhante ao das figures do seaxes, mas agora representando diferentes espadas saxônicas. DAVIDSON, Hilda Ellis. The Sword in Anglo-Saxon England. Woodbridge: The Boydell Press, 1994.

Figura 19 Exemplo de espada encontrada em leito de rio que, apesar do desgasta, manteve em algum nível os padrões da lâmina. Esta, em contraponto aos desenhos acima, não possui runas nela inscritas. DAVIDSON, Hilda Ellis. The Sword in Anglo-Saxon England. Woodbridge: The Boydell Press, 1994.

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Figura 20. Representação das espadas que continham anéis incrustados em seus cabos. Conforme o exposto no tópico referente a elas, seriam outra forma de congregar presentes régios, personalizando-as e mesmo diferenciando positivamente aquela arma de aristocratas rivais. Elemento discursivo de superioridade social, portanto. DAVIDSON, Hilda Ellis. The Sword in Anglo-Saxon England. Woodbridge: The Boydell Press, 1994.

Figura 21. Espada encontrada em depósito fluvial, sem restauro. DAVIDSON, Hilda Ellis. The Sword in Anglo- Saxon England. Woodbridge: The Boydell Press, 1994.

194

Figura 22. Exemplos de desenhos presents em duas diferentes bainhas, que reforçam a idéia da personalização das espadas. DAVIDSON, Hilda Ellis. The Sword in Anglo-Saxon England. Woodbridge: The Boydell Press, 1994.

Figura 23 Elementos decorativos da espada encontrada no sítio de Sutton Hoo.

195

Figura 24 Representação de uma inumação de um cemitério Anglo-Saxão primevo, em Sancton, Humberside. ARNOLD, C.J. An Archaeology of the Early Anglo-Saxon Kingdoms. London: Routledge, 2005. p.158.

196

Figura 25 Representação de um cova masculina (esquerda) e feminina (direita) de fins do sexto século em Holywell Row, Suffolk. ARNOLD, C.J. An Archaeology of the Early Anglo-Saxon Kingdoms. London: Routledge, 2005. p.198.

Figura 26 Diferentes partes de uma ponta de lança altamente estilizada, típicas de enterramentos pertencentes a pessoas da mais alta extração. A reprodução mais abaixo é a dela completa. EMBLETON, Gerry et HARRISON, Mark. Anglo-Saxon Thegn AD449-1066. Oxford: Osprey, 1998.

197

Figura 27 Elmos de Benty Grange (esquerda) e Sutton Hoo (direita). YORKE, B.A.E. Kings and kingdoms of early Anglo-Saxon England. London: Routledge, 1990. P. 91.

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Gráficos

Gráfico 1

Gráfico 2

199

Gráfico 3

Gráfico 4

200

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