ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING − ESPM/RJ

MESTRADO PROFISSIONAL EM GESTÃO DA ECONOMIA CRIATIVA

RICARDO ALMEIDA DE ABREU

A CONSOLIDAÇÃO DA SOM LIVRE COMO EMPRESA LÍDER DA INDÚSTRIA DA MÚSICA BRASILEIRA A PARTIR DE SUA ADAPTAÇÃO FRENTE ÀS TRANSFORMAÇÕES DIGITAIS PÓS 2000

Rio de Janeiro

2019 RICARDO ALMEIDA DE ABREU

A CONSOLIDAÇÃO DA SOM LIVRE COMO EMPRESA LÍDER DA INDÚSTRIA DA MÚSICA BRASILEIRA A PARTIR DE SUA ADAPTAÇÃO FRENTE ÀS TRANSFORMAÇÕES DIGITAIS PÓS 2000

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Gestão da Economia Criativa pela Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM/RJ.

Orientador (a): Prof. Dr. João Luiz Figueiredo Silva

Rio de Janeiro

2019

Abreu, Ricardo Almeida de

A consolidação da Som Livre como empresa líder da indústria da música brasileira a partir de sua adaptação frente às transformações digitais pós 2000/ Ricardo Almeida de Abreu. - Rio de Janeiro, 2019. 50 p.

Dissertação (mestrado) – Escola Superior de Propaganda e Marketing, Mestrado Profissional em Gestão da Economia Criativa, Rio de Janeiro, 2019.

Orientador: João Luiz de Figueiredo.

1. Indústria da música. 2. Som Livre. 3. Streaming. 4. Showbusiness. 5. Economia criativa. I. Figueiredo, João Luiz de. II. Escola Superior de Propaganda e Marketing. III. Título. RICARDO ALMEIDA DE ABREU

A CONSOLIDAÇÃO DA SOM LIVRE COMO EMPRESA LÍDER DA INDÚSTRIA DA MÚSICA BRASILEIRA A PARTIR DE SUA ADAPTAÇÃO FRENTE ÀS TRANSFORMAÇÕES DIGITAIS PÓS 2000

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Gestão da Economia Criativa pela Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM.

Rio de Janeiro, 11 de março de 2019.

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Prof. João Luiz de Figueiredo – ESPM

Orientador (a)

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Prof. Eliana Formiga – ESPM

Avaliador 1

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Prof. Flávia Galindo – UFRRJ

Avaliador 2 AGRADECIMENTOS A todos que me apoiaram nesse desafio, em especial à minha família que é a base de tudo na vida. Todas as horas e momentos que estive ausente por estar lendo ou escrevendo parte desse material, em busca da pesquisa perfeita! À minha mãe que sempre se dedicou para eu conseguir fazer o melhor, ao meu pai que mesmo lá de cima olha por todos nós. Obrigado Fernanda, por ser essa esposa maravilhosa, e que um dia Mari e Manu sigam o exemplo e tenham suas teses defendidas pelas bancas do mundo... Aos Joãos (se assim for o plural) que me fizeram começar, e deram força para seguir nessa caminhada. João Luiz, amigo e orientador. Doutor em tudo. Aprendo com ele desde os tempos de sujinho e truco na UFRJ. João Marcos, ex-colega de trabalho e de mestrado. Mestre em alegria, bom humor e trocadilhos. João Mario, empresário de grandes artistas da MPB e amigo com muitas histórias e estórias dessa indústria maravilhosa. Ao Marcelo Soares, Henrique Jardim e todos os meus companheiros da Som Livre que me ajudam (e me aguentam!) na nossa luta diária. A todos os empresários, artistas, músicos, técnicos, compositores, operários da música que assim como eu querem ver essa indústria sempre crescendo e cumprindo o papel de entreter os milhões de brasileiros. A todos os professores da ESPM e que continuem abrilhantando essa casa com muita luz e formando os futuros profissionais, mestres e doutores desse país. Respeito enorme pela classe e por essa instituição. A todos, obrigado por tudo!

“Sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância” (Sócrates). RESUMO

Este trabalho analisa como a Som Livre se adaptou às recentes transformações ocorridas nos modelos de negócios adotados no mercado brasileiro e seus agentes na indústria fonográfica no recorte temporal de 2000 até 2018. Partimos de uma análise sobre as mudanças na organização da indústria da música, discutindo como as tecnologias digitais afetaram os diferentes agentes da indústria e como surgiram novos. Na sequência realizamos um estudo de caso da Som Livre, a gravadora brasileira que mudou completamente a direção frente às novas tecnologias e despontou como a maior empresa do segmento em música nacional. Ao analisarmos a diminuição das barreiras à entrada de novos players na indústria da música, reconhecemos que a capacidade adaptativa se tornou um forte elemento de competitividade, de maneira que analisamos esse processo na Som Livre, que no decorrer da transição do mercado físico para o mercado digital assumiu uma posição de liderança no mercado nacional. A pesquisa realizada é de abordagem qualitativa e como procedimentos metodológicos do estudo de caso destacamos a realização de revisão bibliográfica, levantamento de dados secundários da indústria da música e da Som Livre e a realização de entrevistas semiestruturadas com lideranças da empresa. Acreditamos que o trabalho realizado tem o potencial contribuir para o reconhecimento do ambiente competitivo da indústria da música no Brasil e pode ser aplicado em outros trabalhos acadêmicos ou de mercado que tenham como premissa a compreensão do setor da música no Brasil. Palavras-chave: Indústria da música. Som Livre. Streaming. Showbusiness. Economia Criativa. ABSTRACT This work analyzes how Som Livre adapts to the recent transformations in business models adopted in the Brazilian market and its agents in the recording industry with time cut from 2000 to 2018. We start from an analysis of the changes in the organization of the music industry, discussing how Digital technologies have affected the different players in the industry and how new ones have emerged. Following, we conducted a case study of Som Livre, a Brazilian record label that completely changed the direction of new technologies and emerged as the largest company in the national music segment. In analyzing the lower barriers to entry for new players in the music industry, it recognizes that adaptive capacity has become a strong element of performance, the way to analyze this process in Som Livre, which does not make the physical to market progress. Digital has assumed a leading position in the domestic market. A research is a qualitative approach and as methodological procedures of case study highlighted for bibliographic review, secondary data survey of the music and sound industry and semi- structured interviews with company leaders. We believe that the work has the potential to contribute to the recognition of the competitive environment of the music industry in and can be applied to other academic or market works that have as premise the performance of the music in. Keywords: Music Industry. Som Livre. Streaming. Showbusiness. Creative economy.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: A desverticalização da indústria fonográfica e as quedas das barreiras à entrada ...... 18 Figura 2: Mercado mundial de consumo de música gravada...... 233 Figura 3: Faturamento estimado dos principais escritórios de agenciamento artístico no Brasil ...... 255 Figura 4: Streams por distribuidor nos EUA ...... 266 Gráfico 1: Unidades vendidas de CD´s (em milhões) no período 2000-2011...... 355 Gráfico 2: Unidades vendidas de DVD´s e Blu-Rays (em milhões) no período 2000-2011 ...... 366 Gráfico 3: Faturamento das vendas de CD´s (R$ milhões) no período 2000-2012 ...... 36 Gráfico 4: Faturamento das vendas de DVD´s e Blu-Rays (R$ milhões) no período 2000-2012 ...... 37 Gráfico 5: Faturamento das vendas totais do mercado físico (R$ milhões) no período 2000-2012 ..... 37 Gráfico 6: Faturamento das vendas totais do mercado digital (R$ milhões) no período 2007-2012 .... 38 Quadro 1: Escolha de estratégia das empresas em um mercado declinante ...... 422 Gráfico 7: Evolução da receita líquida da Som Livre, 2012-2019...... 422 Gráfico 8: Evolução de assinantes de música no Brasil ...... 444

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...... 11 2 AS MUDANÇAS NA ORGANIZAÇÃO PRODUTIVA DA INDÚSTRIA DA MÚSICA NO BRASIL FRENTE AS TRANSFORMAÇÕES TECNOLÓGICAS E O PROCESSO DE ADAPTAÇÃO DOS SEUS AGENTES PRODUTIVOS A PARTIR DO ANO 2000 ...... 15 2.1 EVOLUÇÃO DAS BARREIRAS E MUDANÇA NA CADEIA PRODUTIVA ...... 16 2.2 DO NAPSTER AO STREAMING ...... 22 2.3 BLOCKCHAIN E CRIPTOMOEDAS: O FUTURO ...... 26 3 A SOM LIVRE COMO UM CASO DE SUCESSO DE ADAPTAÇÃO DAS GRAVADORAS À NOVA ORGANIZAÇÃO DA INDÚSTRIA DA MÚSICA NO BRASIL ...... 30 3.1 UM BREVE HISTÓRICO ...... 31 3.2 MOMENTO CRÍTICO E MUDANÇA DE MODELO ...... 34 3.3 A NOVA ERA COM A ASCENÇÃO DO STREAMING...... 39 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 45

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1 INTRODUÇÃO As mudanças na indústria fonográfica, desde o surgimento da música gravada, com as primeiras experiências de fonógrafos e vitrolas feitas no final do século XIX até os dias de hoje, com a música na nuvem são riquíssimos e fascinantes materiais para se entender o que pode também acontecer em outros mercados que estão em processo de digitalização. Como o período de mais de um século de mudanças é muito extenso e merece ser estudado cada um a fundo, o foco deste trabalho são os anos mais recentes. Buscar entender como aconteceram as mudanças na indústria da música desde a virada do século e como se deu a reorganização dos papéis dos agentes, especialmente o das gravadoras, é o principal objetivo deste trabalho que está dividido em dois artigos. Em nossa pesquisa optamos por realizar um estudo de caso da gravadora Som Livre, que posteriormente às transformações digitais assumiu posição de liderança do mercado brasileiro junto das multinacionais, identificadas como majors. Tal fato merece ser analisado, pois durante a primazia das vendas físicas sobre as digitais o mercado nacional era efetivamente controlado pelas majors, de maneira que nos interessa compreender como uma empresa de capital nacional conseguiu assumir posição de liderança no contexto das vendas digitais. A dissertação está estruturada em dois capítulos, sendo que no primeiro explicaremos a cadeia de valor da música, como aconteceram as mudanças e como se deu a nova forma de organização. Com uma ênfase um pouco mais teórica, buscando referências na literatura e nos pesquisadores que já fazem um trabalho relacionado com a economia criativa e derivados. O segundo irá enfatizar o caso da gravadora brasileira Som Livre e como podemos compreender suas decisões estratégicas para se adaptar ao mercado digital. Será explorado, portanto, nesse trabalho como um todo um pouco mais sobre os modelos de negócios que existem hoje no cenário musical brasileiro bem como toda a evolução que se deu na indústria da música no Brasil após o ano 2000. Principalmente tentando explicar como a democratização dos meios de produção e distribuição levou um empoderamento maior dos artistas, autores e empresários contra as gravadoras que detinham todo o poder até o final do século passado. De certa forma, as transformações da organização produtiva da indústria da música são bem estudadas mundialmente, mas 12

ainda carecemos de interpretações sobre a realidade brasileira, especialmente sobre o processo de adaptação que as empresas e os artistas tiveram de enfrentar no Século XXI. Nesse sentido, estabelecemos o ano 2000 como ponto de partida para o nosso recorte temporal, uma vez que os primeiros sinais de transformação do mercado coincidem com o fim do Século XX. Além disso, é importante enfatizar que analisaremos o mercado brasileiro, o qual é inevitavelmente afetada por questões globais, mas é igualmente atravessada por particularidades que o diferencia do global, especialmente pela importância do conteúdo nacional no mercado doméstico, pela existência de empresas nacionais capazes de disputar parcelas de mercado com as majors; e pela diversidade de modelos de negócio existentes em função da extensão e da heterogeneidade do país. Portanto, acreditamos que a transformação da indústria da música não obrigou apenas às gravadoras tradicionais a reinventarem seus modelos de negócios para sobreviverem, mas impactou os agentes produtivos em toda a rede produtiva, de modo que surgiram novas relações comerciais e novos agentes nesse mercado. De certa forma, as companhias passaram a ser menos "gravadora" de fato e mais "empresa de música", ou seja, tiveram que participar mais da carreira do artista e de etapas do negócio todo que antes não participavam, como shows e gestão de carreiras, por exemplo. Além disso, entender bem como a música passou de um modelo de negócio de bens físicos para serviços na nuvem, e ter um olhar sobre a forma que a concorrência desleal com a pirataria forçou os players desse mercado a mudarem os status quo de suas relações é um pouco do que será desenvolvido nessa pesquisa. Houve assim um enorme surgimento de novas empresas no mercado de música e que rapidamente se tornaram tão importantes quanto as tradicionais gravadoras. Empresas de tecnologia, principalmente. Mas também os escritórios de agenciamento artísticos passaram a ter receitas maiores com a produção e gestão de shows e com isso passam a ser parceiros e concorrentes das gravadoras. Essa relação complexa também será explicada e detalhada com informações e métricas importantes nesse trabalho. Uma vez que nosso foco central da pesquisa é sobre os agentes produtivos da indústria da música brasileira, a partir do estudo de caso da empresa Som Livre, podemos definir o nosso problema da seguinte maneira: como a Som Livre se adaptou frente à reorganização da indústria da música brasileira a partir do ano 2000 no contexto das transformações tecnológicas que impactaram a indústria? 13

Entender a transformação ocorrida neste setor ajuda muito a compreender o que está acontecendo agora também em mercados parecidos, como o de mídia. Não menos importante, a fase atual é rica em modelos de negócios inovadores que merecem ser bem entendidos. O principal objetivo do trabalho é de certa forma identificar as estratégias competitivas e o processo de adaptação da Som Livre frente a reorganização da indústria da música brasileira a partir do ano 2000, uma empresa nacional de capital fechado e que mudou completamente sua estratégia e modelo de atuação. Com as transformações na organização da indústria, alteram-se as configurações de poder, alguns agentes assumem novos papéis e surgem, consequentemente, novos protagonistas. Há uma nova distribuição na cadeia de valor da música, de modo que as gravadoras tradicionais são forçadas a mudar suas estruturas para se adaptarem às novas tecnologias e a democratização ao acesso de meios de produção artísticas e distribuição de conteúdo. Dessa forma, toda a cadeia de valor é impactada, de maneira que podemos estabelecer nossa hipótese de pesquisa nos seguintes termos: a reorganização da indústria música brasileira, a partir das transformações tecnológicas, viabilizou o surgimento de novos modelos de negócio em toda a rede produtiva da indústria da música a partir da capacidade adaptativa dos agentes produtivos, favorecendo a Som Livre. O trabalho, que se compõe de dois capítulos, tem primordialmente, um caráter exploratório. Inicialmente foi feita uma pesquisa bibliográfica com o objetivo principal de delimitar o processo de reorganização da indústria da música no Brasil e de como ocorre o processo de adaptação por parte das empresas e dos artistas. Após a análise do conteúdo e revisão teórica houve um levantamento de dados secundários sobre o mercado brasileiro, principalmente nas bases de dados e relatórios da pró-música Brasil (antiga ABPD) e IFPI (Federação Internacional da Indústria Fonográfica, na sigla em inglês). Essa etapa foi de extrema importância para não só identificar a tendência de queda do faturamento da indústria fonográfica como também para reconhecer a mudança do modelo de negócio das gravadoras. Nesse momento se revelou como a Som Livre assumiu uma posição de liderança do setor juntamente com as majors, de maneira que acreditamos ser de extrema relevância a realização de um estudo de caso sobre a empresa, pois ao mesmo tempo que poderemos debater as transformações na organização da indústria também poderemos discutir como 14

uma empresa de capital nacional conseguiu se equiparar em termos competitivos às majors no mercado nacional. Como de costume aos estudos de caso, realizamos entrevistas semiestruturadas com alguns dos principais executivos, artistas, compositores e outros importantes membros da indústria. Como justificativas para esse estudo, sabemos que a música é um dos setores culturais que atraem maior interesse da população brasileira e uma das evidências dessa característica é a quantidade de produções audiovisuais sobre a música brasileira e o relevante marketshare que a música nacional conquista. Entretanto, mesmo com o reconhecimento de que as atividades culturais e criativas desempenharão papel crescente na economia brasileira e mundial nos próximos anos, nota-se enorme carência no debate sobre as transformações dos negócios da música. Nesse sentido, o trabalho possui relevância ao cumprir o papel de preencher uma lacuna acadêmica, concernente ao debate das transformações dos negócios da música.

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2 AS MUDANÇAS NA ORGANIZAÇÃO PRODUTIVA DA INDÚSTRIA DA MÚSICA NO BRASIL FRENTE AS TRANSFORMAÇÕES TECNOLÓGICAS

E O PROCESSO DE ADAPTAÇÃO DOS SEUS AGENTES PRODUTIVOS A PARTIR DO ANO 2000 Desde o surgimento e massificação da música em formato digital em conjunto com as transformações tecnológicas recentes, principalmente no que tange à facilidade de acesso cada vez maior às ferramentas de produção e distribuição de conteúdo, houve uma grande mudança no cenário competitivo entre os principais atores da indústria fonográfica mundial. Selos e artistas independentes passam a ter cada vez mais possibilidades de ampliar seus espaços na nova disposição do mercado de música gravada. Buscar entender como aconteceram algumas dessas mudanças na indústria fonográfica desde a virada do século e como se deu a reorganização dos papéis dos agentes, especialmente o das gravadoras, é o principal objetivo deste capítulo. Primeiramente, será feito um breve histórico das transformações da indústria, com a explicação da cadeia de valor da música, um pequeno detalhamento de como aconteceram as mudanças e como se deu a nova forma de organização. A seguir, será explorado um pouco mais sobre os modelos de negócios que existem hoje no cenário musical brasileiro bem como toda a evolução que se deu na indústria da música no Brasil após o ano 2000. Principalmente tentando explicar como a democratização dos meios de produção e distribuição trouxe um poder maior para os artistas, autores e empresários contra as gravadoras que detinham, até o final do século passado, praticamente o monopólio destes canais. De certa forma, as transformações da organização produtiva da indústria da música são bem estudadas mundialmente, mas ainda carecemos de interpretações sobre a realidade brasileira, especialmente sobre o processo de adaptação que as empresas e os artistas tiveram de enfrentar no Século XXI. Além disso, entender bem como a música passou de um modelo de negócio de bens físicos para serviços na nuvem, e ter um olhar sobre a forma que a concorrência desleal com a pirataria forçou os players desse mercado a mudarem os status quo de suas relações é um pouco do que será desenvolvido nesse artigo. 16

Por fim, será feito o fechamento do recorte temporal com uma exploração da realidade atual que ainda está em transformação, fruto das inovações tecnológicas que não param de agregar novos caminhos para a indústria e serão a base para tentar antever uma visão de futuro. Uma vez que nosso foco central da pesquisa é sobre os agentes produtivos da indústria da música brasileira, em especial a empresa Som Livre, toda a análise mobilizada nesse capítulo ajudará a responder como a referida empresa brasileira se adaptou frente à reorganização da indústria da música brasileira a partir do ano 2000 no contexto das transformações tecnológicas que impactaram a indústria. Entender a transformação ocorrida neste setor ajuda muito a compreender o que está acontecendo agora também em mercados parecidos, como o de mídia. Não menos importante, a fase atual é rica em modelos de negócios inovadores que merecem ser bem compreendidos.

2.1 EVOLUÇÃO DAS BARREIRAS E MUDANÇA NA CADEIA PRODUTIVA

Ao longo do século XX, a indústria da música se organizou a partir da centralidade das gravadoras que por meio do controle do processo de distribuição estabeleceram barreiras de entrada no mercado e assumiram posição central na organização da indústria e na distribuição da sua cadeia de valor. A recuperação desse debate será pautada no trabalho seminal de Peterson e Berger (1975), que relacionaram a estrutura de mercado da indústria fonográfica dos Estados Unidos ao processo de inovação das gravadoras no período de 1948-1973, conforme se verifica nas seguintes palavras: “... the preponderance of evidence suggests that oligopolistic concentration reduces innovation and makes for a homogeneity of product. This relationship seems to hold for the large scale popular culture industries (…). While competition between oligopolists in these situations is intense, there is little incentive for innovate or to increase the range of alternative products marketed because each firm is trying to garner the largest share of the single mass market. Rather, each oligopolist strives for that product that which pleases the most without offending any major group of consumers. This process makes for a homogenity of product. Alternatively, when many firms successfully compete, there is a continual quest for product innovation and the single mass market tends to break up into a number of segments each representing a slightly different taste. Thus, competition makes for innovation and diversity. This association between competition and diversity has been widely noted in large scale popular culture industries…” (PETERSON e BERGER, 1975, p. 159).

Se o trabalho seminal de Peterson e Berger (1975) teve como recorte temporal o período de 1948-1973, Lopes (1992) analisou os anos de 1969-1990 e apresentou um importante contraponto as ideias dos primeiros autores. Para este, a inovação e a 17

diversidade da música não são função do nível de concentração e de competição do mercado, mas dependem do sistema de desenvolvimento e de produção utilizados pelas majors, o qual, segundo Burnett e Weber apud Lopes (1992), se caracterizou pela crescente cooptação e incorporação dos produtores independentes a partir dos anos 1980. Dessa forma, as majors mantiveram um alto nível de concentração de mercado combinada com fluxos de inovação e diversidade capazes de atender os novos padrões de gosto, especialmente dos jovens. A partir do referencial dos autores acima, Nakano e Leão (2009) sistematizaram quatro grandes fases da estrutura de mercado da indústria fonográfica, sendo a passagem de uma para a outra sempre definida pela quebra de barreiras à entrada, conforme se verifica na figura 1.

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Figura 1 - A desverticalização da indústria fonográfica e as quedas das barreiras à entrada

Fonte: Nakano e Leão, 2009. Na primeira fase, as gravadoras integravam todas as etapas produtivas como forma de reduzir a competição no mercado, especialmente em três pontos centrais ao processo produtivo: o fator artístico, merchandising e a distribuição (PETERSON e BERGER, 1975). Como o fator artístico era o mais difícil de controlar inteiramente, uma vez que as demais gravadoras conseguiam encontrar novos artistas dispostos a assinar contratos, podemos perceber que a hegemonia do mercado obtida nessa fase inicial da indústria fonográfica se consolidou principalmente pela capacidade única de algumas gravadoras em divulgar, formar público e distribuir suas músicas. É importante entendermos que essa verticalização produtiva ocorreu no Brasil em uma época em que o mercado fonográfico ainda era incipiente e controlado por gravadoras nacionais, as quais, além de produzirem o conteúdo nacional, também representavam as gravadoras multinacionais. A segunda fase emerge da incapacidade do modelo anterior em atender a diversidade da demanda, de maneira que gravadoras e produtores independentes ocuparam novas posições no mercado a partir dos novos gêneros musicais, como o rock n’ roll e o blues, nos Estados Unidos, e a bossa nova e a jovem guarda, no Brasil. Nessa 19

fase, as majors reestruturam a organização do mercado pela redução do controle criativo associada à manutenção das barreiras de divulgação e distribuição. Lopes (1992) explica a mudança de estratégia das majors da seguinte forma:

“… instead of the ‘closed’ system of in-house development and production characteristic of the 1940s and the 1950s, major record companies have established an ‘open’ system that incorporates or establishes a number of semiautonomous label divisions within each company, which then establish links with smaller independent labels and independent record producers” (LOPES, 1992, p. 57).

Assim, nessa nova organização do mercado definida como “sistema aberto” (Lopes, 1992), as majors ampliaram seus relacionamentos com outras empresas do setor, de modo que “além de contratarem alguns dos artistas de sucesso e incorporarem novos artistas aos seus catálogos, também fizeram contratos de distribuição com pequenos produtores e gravadoras independentes...” (NAKANO e LEÃO, 2009, p. 127). Para Lopes (1992), essa nova estratégia garantiu para as majors amplos benefícios financeiros através da monopolização dos processos finais de produção e de distribuição da música popular, além de ter viabilizado, através das relações com gravadoras e produtores independentes, as respostas necessárias à imprevisibilidade do mercado e garantido a incorporação rápida de novos artistas e novos estilos ao mercado popular da música dominado por elas. Ao analisar a relação entre as majors e as gravadoras independentes nessa fase da organização da indústria, Throsby (2002) identifica uma relação de simbiose entre elas, como se verifica nas suas palavras:

“The independent distribution system that had existed for many years began to break down in the 1980s and an increasing number of the independent labels agreed to be distributed by one of the major distributors. (…) In fact it has been suggested that the independent record companies act in a way that serves the potential interests of the majors. They are generally involved in developing music outside the mainstream; if their music is successful and generates new audiences, they may begin to pose a threat to the majors’ market dominance. If so, they may simply be absorbed by the majors (and in the process the sharp edge of whatever new sounds they have championed may become blunted by being re -packaged for mass taste). Thus, insofar as independents may act as a source of new talent and new sounds to feed the demands of the majors for novelty and innovation, the relationship between the two types of companies may be thought of as symbiotic rather than oppositional” (THROSBY, 2002, p. 11).

Segundo De Marchi (2011) foi nessa fase que as majors entraram definitivamente no mercado fonográfico nacional, de forma que as gravadoras de capital nacional passaram a ser definidas como “independentes”, as quais passaram a desempenhar papel 20

importante na revelação de novos artistas, porém sem condições de se constituírem como um “setor especializado que se colocasse como alternativa profissional às gravadoras multinacionais” (DE MARCHI, 2011, p. 153). Sem dúvida alguma, foi essa estratégia que permitiu às majors incorporarem rapidamente os novos movimentos da música brasileira aos seus catálogos, como a tropicália, na década de 1970, e o rock brasileiro, nos anos 1980 e começo dos 1990. Essa estruturação do mercado perdurou dos anos 1950 até o começo dos anos 1990 quando houve uma significativa redução dos custos de produção, proliferando-se a quantidade de estúdios de gravação, que por sua vez viabilizou a expansão das atividades produtivas das gravadoras independentes. Nesse sentido, Hirsch (2000) revisitou seu primeiro estudo sobre as indústrias culturais, no qual revelou que a principal fonte de vantagem competitiva das empresas atuantes nas indústrias culturais era o domínio e o acesso aos canais de distribuição (HIRSCH, 1972), para avaliar o impacto das transformações tecnológicas do final do Século XX na estruturação desse mercado. Para Hirsch (2000), a principal consequência da redução dos custos de produção foi a valorização da capacidade de distribuição como o principal fator de competitividade, de maneira que ao mesmo tempo em que a internet se apresentou como um canal de distribuição alternativo para novos artistas, verificaram-se fusões entre grandes corporações em busca da ampliação do controle da distribuição para reduzir a incerteza e ampliar a fatia de mercado. No Brasil, De Marchi (2011) pontua que na década de 1990, como resposta à redução dos custos de gravação, as majors buscaram flexibilizar suas estruturas produtivas através da implementação do CD como principal produto da indústria fonográfica; da terceirização de serviços de produção e distribuição; do enxugamento de elencos e de profissionais administrativos; e da racionalização dos investimentos em artistas nacionais. Nesse contexto, verificou-se na referida década o surgimento de um conjunto de novas gravadoras independentes no país com estruturas profissionais de produção, como a Biscoito Fino e a Deck Disc. Embora a redução dos custos de produção tenha significado a queda de uma importante barreira de entrada no mercado, o desenvolvimento da distribuição digital no início do Século XXI produziu a mais significativa transformação na indústria fonográfica, alterando significativamente a estrutura do mercado e as estratégias das gravadoras. 21

“O advento da internet e a possibilidade de desvinculação do conteúdo dos suportes físicos abriram uma nova fase, que consolidou e intensificou a abertura de mercado, principalmente para as independentes, mais ágeis em explorar as novas possibilidades tecnológicas. A combinação do acesso aos meios técnicos de produção artística e da distribuição virtual de baixo custo abriu ainda outras oportunidades, por exemplo, para artistas e grupos que, valendo-se de boa dose de espírito empreendedor, encontram acesso ao mercado fora do controle das gravadoras, sejam majors ou independentes” (NAKANO e LEÃO, 2009, p. 132).

A quarta fase do longo processo de desverticalização da indústria fonográfica, definida como “acesso livre” no esquema de Nakano e Leão (2009), representado anteriormente na figura 1, implica na expressiva redução dos custos de distribuição viabilizando o acesso ao mercado tanto para gravadoras independentes com para artistas que estabelecem seus próprios circuitos sem a intervenção de uma gravadora. De fato, as transformações tecnológicas do final do Século XX e início do XXI transformaram todas as etapas do ciclo produtivo da indústria fonográfica em informacionais, acarretando assim na progressiva deterioração da estrutura do mercado, que se assentava no controle das grandes gravadoras, conhecidas como majors, sobre a etapa da distribuição. Para Anderson (2006), a distribuição digital resolveu o problema da ineficiência distributiva, levando-nos do mundo da escassez para o mundo da abundância, no qual diversos segmentos se tornaram viáveis economicamente. Entretanto, devemos enfatizar que o advento da distribuição digital não significa o fim da relevância dessa etapa do ciclo produtivo para o sucesso do negócio. Ao contrário, a distribuição continua a desempenhar papel central na indústria fonográfica (Hirsch, 2000), porém não mais sobre o controle das majors. Se por um lado, estas ainda possuem uma capacidade única de realizar a distribuição física, por outro lado, a distribuição digital, é uma etapa do ciclo produtivo que cada vez mais é ocupada por empresas específicas, que tanto prestam serviços para as majors e outras gravadoras, como atendem diretamente artistas independentes (DE MARCHI, ALBORNOZ E HERSCHMANN, 2011). Uma tendência apontada por Throsby (2002) é a redução de artistas em busca de contratos com gravadoras na medida em que, através dessas empresas de distribuição digital, conseguem se comunicar diretamente com seu público. Houve, portanto, uma clara desverticalização na cadeia produtiva da música no mundo. Aqui no Brasil não foi diferente. A mudança na cadeia produtiva foi percebida a partir da introdução cada vez maior dos meios digitais de comunicação aliado ao surgimento de novas tecnologias que facilitaram também a captação de áudio e vídeo. 22

Primeiramente, portanto, com os aparelhos ficando cada vez mais leves, portáteis e com um custo mais acessível que geram uma possibilidade de pessoas comuns terem seus próprios estúdios de gravação em casa. Com isso, as gravadoras inicialmente perdem sua função primordial, de se gravar e produzir os álbuns. Depois, com a era digital e a internet, vem o pior pesadelo da indústria fonográfica: o mp3, arquivos comprimidos de música que passam a ser compartilhados facilmente por muita gente principalmente a partir de 1999 quando o serviço Napster populariza o compartilhamento de arquivos via internet e toma uma dimensão gigantesca.

2.2 DO NAPSTER AO STREAMING De acordo com os dados da IFPI (2018) (sigla em inglês de Federação Internacional de Produtores Fonográficos) o mercado mundial de música gravada atingiu seu ápice em 1999, com 25.2 bilhões de dólares de faturamento líquido. Foi exatamente nesse ano que surgiu o Napster. O crescimento do serviço foi muito rápido e logo gerou problemas com as gravadoras, selos e alguns artistas, que viam seus royalties irem para o ralo por conta dessa dispersão de arquivos sem qualquer remuneração. O Napster, então, passa a sofrer várias ações judiciais e foi temporariamente fechado, em 2001, mas isso de nada adianta e não freia a transformação que está acontecendo naquele momento na forma de se consumir música no mundo. A reboque do Napster surgem diversos outros serviços de compartilhamento de arquivos, como o Kazaa, Morpheus, Audiogalaxy e depois outros mais avançados como o BitTorrent e eMule. Após alguns anos de soberania dos serviços de compartilhamento, surge um sopro de esperança para a cadeia produtiva remunerada da música gravada. Steve Jobs lança a loja do iTunes com conteúdo pago e disponibiliza para download inúmeras faixas que alimentam os iPods e iPhones recém lançados. Importante salientar que no Brasil a loja do iTunes para venda de música por download só é inaugurada em 2011 e somente para usuários com cartão de crédito internacional. O download de música paga, principalmente através do iTunes da Apple, cresce no mundo de forma gradual e ajuda a segurar a queda no mercado total de música puxada pela queda da venda de CDs e DVDs. No Brasil o crescimento de download pago na Apple é muito tímido. Os consumos de música paga que mais crescem nesse momento 23

são os ringtones e ringbacktones que são os sons de chamada e toques de telefones móveis que viram uma febre entre os jovens e com uma alta adesão dos clientes pré-pagos das operadoras de telefonia. Porém, outro momento marcante nesse processo de evolução e transformações no consumo e formas de remuneração de música é o surgimento e rápido crescimento dos serviços de streaming. Com o YouTube cada vez mais sendo difundido e popularizado, o mecanismo de monetização de seu conteúdo com publicidade passa a dar um bom retorno para os detentores do conteúdo, como artistas e autores. Junto a isso, surgem os serviços de assinatura de música que criam um novo mercado para a música em todo o mundo. O gráfico abaixo ilustra bem a evolução do mercado de música no mundo desde 1999 e o surgimento dos novos modelos de consumo. Figura 2 - Mercado mundial de consumo de música gravada

Fonte: IFPI, 2018 A transformação da indústria da música obrigou as gravadoras reinventarem seus modelos de negócios para sobreviverem. De certa forma, as companhias passaram a ser menos "gravadora" de fato e mais "empresa de música", ou seja, tiveram que participar mais da carreira do artista e de etapas do negócio todo que antes não participavam, como shows e gestão de carreiras, por exemplo. Nesse sentido, a previsão realizada por diversos acadêmicos e analistas de mercado de que a tecnologia digital poderia acabar com a intermediação da música ainda não se concretizou. Pode ser que isso ainda venha a acontecer, todavia a novidade desta 24

segunda década do século XXI foi a adaptação das gravadoras e de outros agentes do mercado para continuarem a desempenhar o papel de intermediadores entre os artistas e o mercado consumidor. Segundo De Marchi (2016), configura-se uma arquitetura atual em que poucos agentes controlam os canais de distribuição de conteúdos digitais, sendo criada uma situação na qual todo produtor pode se inserir no mercado, mas o acesso ao consumidor passa a ser fortemente regulado por uma multiplicidade de novos e tradicionais intermediários. Diante da necessidade da distribuição digital, os artistas independentes e até mesmo gravadoras de menor porte recorrem aos agregadores digitais, que são empresas responsáveis pela distribuição do conteúdo digital. Portanto, concordamos com Galuszka (2015), que reconhece que no atual momento, há sinais de que as grandes gravadoras, que conseguiram adaptar seus modelos de negócio para a hegemonia da distribuição digital, aumentaram suas fatias de mercado.

It should not be surprising that articles written in the early days of the digital music market to a certain extent overestimated the positive impact of the new communication technologies on the structure of the music industry. These technologies have a democratizing potential, and they have significantly altered the ways in which music is promoted, distributed, and consumed. Nevertheless, from the perspective of 2015, it seems that the domination of major record companies, as measured by their market share, is far from over and that new mechanisms are available for them to maintain their position which were not apparent to scholars writing about the music market in the early 2000s. This change of sentiment also can be noted in the literature. (GALUSZKA, 2015, p. 258). Houve assim um enorme surgimento de novas empresas no mercado de música e que rapidamente se tornaram tão importantes quanto as tradicionais gravadoras. Empresas de tecnologia, principalmente. Mas também os escritórios de agenciamento artísticos passaram a ter receitas maiores com a produção e gestão de shows e com isso viram parceiros e concorrentes das gravadoras, ao mesmo tempo. Os escritórios de artistas, principalmente os sertanejos, tomam uma proporção que algumas vezes se tornam maiores que muitos selos ou gravadoras. Goiânia se tornou um polo desses escritórios. Lá ficam localizados os maiores do Brasil, e dois destes se destacam pela magnitude de suas operações e cast. São a Audiomix e a Workshow. Ambos começaram com artistas sertanejos, mas hoje já estão presentes em vários segmentos, como o pop, rap, hip hop, eletrônico, forró e funk. Abaixo um quadro comparativo com uma estimativa de seus faturamentos:

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Figura 3 - Faturamento estimado dos principais escritórios de agenciamento artístico no Brasil

Fonte: Estimativa própria com base em faturamentos de mercado, 2019

Portanto, acreditamos que a transformação da indústria da música não obrigou apenas às gravadoras tradicionais a reinventarem seus modelos de negócios para sobreviverem, mas impactou os agentes produtivos em toda a rede produtiva, de modo que surgiram novas relações comerciais e novos agentes nesse mercado. Com as transformações na organização da indústria, alteram-se as configurações de poder, alguns agentes assumem novos papéis e surgem, consequentemente, novos protagonistas. Há uma nova distribuição na cadeia de valor da música, de modo que as gravadoras tradicionais são forçadas a mudar suas estruturas para se adaptarem às novas tecnologias e a democratização ao acesso de meios de produção artísticas e distribuição de conteúdo. Dessa forma, toda a cadeia de valor é impactada, de maneira que podemos estabelecer que a reorganização da indústria música brasileira, a partir das transformações tecnológicas, viabilizou o surgimento de novos modelos de negócio em toda a rede produtiva da indústria da música a partir da capacidade adaptativa dos agentes produtivos. Outro grupo de empresas que cresceu muito nos últimos anos foram as distribuidoras independentes. Veja abaixo a quantidade de streams nos EUA que ilustra bem esse aumento: 26

Figura 4 - Streams por distribuidor nos EUA

Fonte: Midia Research, 2019

Ou seja, se somadas as dez maiores agregadoras e distribuidoras de conteúdo, fora as majors elas ficariam em segundo lugar, atrás apenas da Universal Music. Fato é que a concorrência monopolística transforma o artista em um recurso fundamental para as gravadoras, as quais passam a dispor de uma exclusividade na sua oferta. Nesse sentido, verifica-se que tais gravadoras desenvolveram novos modelos de negócio para monetizar a música a partir da mobilização e da criação de outros recursos dentro da empresa, como, por exemplo, a criação de áreas destinadas a cuidar das apresentações ao vivo, das vendas digitais e da utilização das músicas em outras áreas da economia criativa como cinema, televisão, games e publicidade. Em linhas gerais, cada vez mais essas gravadoras se distanciarão dos modelos de negócio originais e passarão a ser reconhecidas empresas de música que atuam em rede com produtores, artistas, outras empresas do setor e outras da mesma corporação.

2.3 BLOCKCHAIN E CRIPTOMOEDAS: O FUTURO Com a evolução do consumo da música via streaming, toda a gestão dos direitos passa a se modificar também. O controle e acompanhamento das transações financeiras, cada vez mais pulverizadas precisam ser fortemente 27

seguros e ágeis. Além disso, há uma nova ordem na cadeia da música e o blockchain pode impactar essa nova ordem em diversos aspectos. Principalmente porque há inúmeros artistas que estão interessados em diminuir cada vez mais os intermediários que ainda estão no caminho e que se permita um contato mais fácil e direto com seu público. Para aprofundar a análise dos impactos do blockchain na indústria fonográfica é extremamente importante antes buscar entender um pouco mais os conceitos de smart contracts e das criptomoedas também. Smart contracts, ou em livre tradução contratos-inteligentes, são protocolos que foram criados para gerar mais confiabilidades em transações feitas na internet, que permitem que pessoas que não se conhecem possam fazer transações mais seguras via web sem a necessidade de intermediários ou autoridade central. Dois advogados estadunidenses, Joe Dewey e Shawn Amuial (2015), explicam que como o tema é muito recente e ainda não há uma definição consolidada eles dizem que pelo menos três elementos sejam identificados para se definir um smart contract, sendo que o último é o que torna o contrato inteligente, de fato. De acordo com eles:

“While there is no universally accepted definition, most people involved with the blockchain would expect at least the following three elements in order to consider something to be a smart contract: i) the transaction must involve more than the mere transfer of a virtual currency from one person to another (i.e., a payment transfer), ii) the transaction involves two or more parties (as every contract must), and iii) the implementation of the contract requires no direct human involvement after the smart contract has been made a part of the blockchain. It’s this last element that makes these contracts “smart,” and therefore, merits a more detailed discussion.” (DEWEY e AMUIAL, 2015).

Pode-se concluir então que um smart contract é um contrato comum, entre partes, só que registrado no blockchain. Eles complementam essa definição dizendo que dessa forma os smart contracts são mais confiáveis, autônomos e autossuficientes que os contratos comuns. Além do smart contract, outro elemento importante para entender melhor um blockchain é a criptomoeda. A moeda virtual mais conhecida hoje é o Bitcoin. Porém já existem inúmeras moedas que utilizam o blockchain para serem confiáveis e seguras. As criptomoedas são consideradas blockchain públicas porque qualquer um pode acessar e efetuar transações de compra e venda. Não é restrito a nenhum grupo. Já os blockchains privados são criados por entidades ou consórcios que desenvolvem 28

plataformas de blockchain para fomentar negócios. As mais famosas são Hyperledger (fundada no final de 2015) e Ethereum (fundada em 2014). O primeiro, Hyperledger, é um projeto da Linux Foundation que tem como parceiros na plataforma “Hyperledger Fabric” a IBM, Intel e outros. Esta plataforma foi criada para o mundo empresarial que necessita que suas informações tenham acesso restrito permitindo apenas pessoas autorizadas. É possível várias entidades participarem da cadeia de valor de um ativo, mas com restrição de acesso ao conteúdo negocial de cada transação. O Ethereum é uma plataforma que permite criar aplicações públicas, incluindo contratos inteligentes. Ela possui uma máquina virtual descentralizada (EVM) que pode executar scripts usando uma rede internacional de nós públicos. Conceitualmente, o blockchain é um protocolo de comunicação que assegura autenticidade. A técnica foi inicialmente descrita por um grupo de pesquisadores em 1991, mas adaptada por Satoshi Nakamoto para criar a criptomoeda Bitcoin no final de 2008. A lógica de comunicação do blockchain é Peer-to-Peer, a comunicação ocorre entre usuários/computadores, não há um servidor central que contenha as informações transacionais. Todos que participam do processo possuem uma cópia da mesma transação. Um exemplo bem clássico foi o Napster que compartilhava arquivos de música usando os computadores dos próprios usuários como forma de armazenamento e verificação. Entretanto, se um fragmento de dado estava corrompido ou se um usuário saia da rede o aplicativo buscava automaticamente outro usuário que tinha a mesma informação intacta. Essa lógica acaba criando redundância das transações com todos os usuários envolvidos. A mecânica de armazenamento e criptografia dessas transações ocorrem da seguinte forma: Dados de várias transações (podendo ser texto, imagem etc) são processados por terceiros (mineradoras – servidores independentes que são recompensados para verificar se as suas transações são autênticas, como se fossem cartórios no mundo real) e salvos em um bloco que é conectado com o bloco anterior utilizando criptografia seguindo uma sequência. O novo bloco salva o código da criptografia do antecessor para formarem uma espécie de “corrente”. Como todos os participantes possuem uma cópia dos blocos, qualquer pessoa poderia adulterar a transação que está salva no seu respectivo computador e criar um novo bloco. Entretanto, ao fazer isso, as mineradoras verificarão se essa alteração é pertinente 29

comparando com todas outras cópias existes. Caso negativo, a adulteração é sumariamente excluída e substituída pelo cubo/transação legítimo. Com as transformações na organização da indústria, alteram-se as configurações de poder, alguns agentes assumem novos papéis e surgem, consequentemente, novos protagonistas. Há uma nova distribuição na cadeia de valor da música, de modo que as gravadoras tradicionais são forçadas a mudar suas estruturas para se adaptarem às novas tecnologias e a democratização ao acesso de meios de produção artísticas e distribuição de conteúdo. Dessa forma, toda a cadeia de valor é impactada e, como vimos, a reorganização da indústria música brasileira, a partir das transformações tecnológicas, viabilizou o surgimento de novos modelos de negócio em toda a rede produtiva da indústria da música a partir da capacidade adaptativa dos agentes produtivos. O blockchain pode impactar essa nova ordem em diversos aspectos. Principalmente porque há inúmeros artistas que estão interessados em diminuir cada vez mais os intermediários que ainda estão no caminho e que se permita um contato mais fácil e direto com seu público. Uma das primeiras hipóteses é que utilizar o blockchain possa simplificar o pagamento dos direitos artísticos e autorais de todos na cadeia. Hoje a forma como os royalties são recolhidos e repassados ainda é muito lenta, na visão principalmente dos autores e músicos acompanhantes. O uso de uma plataforma que registre todos os dados de uma obra musical e que cada vez que essa música for executada a geração de receita seja automaticamente repassada para seus detentores, através de mecanismos usando o blockchain, é o que gera esperança para que a gestão de direitos e o recebimento destes seja cada vez rápida e eficiente. A teoria, que ainda precisa ser confirmada pela prática, é que como blockchains são imutáveis e seguros, não terá mais a necessidade de muitos intermediários (como gravadoras) para recolher e repassar esses direitos. Ainda é muito cedo para sabermos com clareza como o blockchain pode, de fato, causar influência nas transformações da indústria da música. Porém já temos alguns sinais que alguns impactos podem ser mais rápidos do que se imagina. De alguma forma o uso de blockchain irá mudar mais ainda a recém-transformada indústria fonográfica.

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3 A SOM LIVRE COMO UM CASO DE SUCESSO DE ADAPTAÇÃO DAS GRAVADORAS À NOVA ORGANIZAÇÃO DA INDÚSTRIA DA MÚSICA NO BRASIL A música é a forma de entretenimento mais personalizada e acessível que existe, de maneira que deve ser considerada como o mais fundamental negócio do entretenimento. De fato, de todas as indústrias culturais, a música é aquela que exige menor quantidade de recursos para ser consumida (ainda mais se considerarmos a pirataria) e é um bem fortemente presente em outros bens e serviços das indústrias culturais (VOEGEL, 2004). O principal objetivo deste capítulo é identificar e discutir as estratégias utilizadas pela gravadora Som Livre no contexto das profundas transformações que o mercado da música sofreu nos últimos anos. Somente as gravadoras capazes de atravessar essa fase de declínio do faturamento estão sobrevivendo e conseguirão permanecer no futuro mercado fonográfico Essa investigação é de grande relevância, pois trata-se de uma das atividades culturais mais impactadas pela evolução tecnológica, a qual dilapidou antigas barreiras a entrada de novas gravadoras no mercado ao mesmo tempo em que exigiu profunda reestruturação do modelo de negócio das já existentes. A análise dos dados do mercado fonográfico revelou um ambiente competitivo atravessado por uma profunda reestruturação, uma vez que as vendas físicas, que antes compunham a principal fonte de receita das gravadoras, se caracterizam atualmente como um mercado em declínio, ao passo em que as receitas digitais e outras oriundas da participação das gravadoras em outras etapas da economia da música desempenham cada vez mais papel determinante no faturamento. Entender como a Som Livre, gravadora que faz parte do , vem ultrapassando esse período, e se tornou a líder em conteúdo nacional é um dos temas que serão vistos ao longo deste trabalho. Em primeiro lugar, vamos voltar um pouco no tempo para entender como se chegou até a liderança desse tipo de conteúdo. O surgimento da empresa e as décadas de sinergia e dependência com as outras gravadoras, por causa das trilhas de novela. A seguir, vamos aprofundar um pouco em alguns fatos e dados do caminho que a empresa tomou a partir de 2010, com a troca da equipe de gestão e o novo direcionamento na contratação de grandes artistas nacionais, principalmente no segmento sertanejo que, 31

juntamente com o surgimento de novos players no mercado da música, catapultou a Som Livre para atingir níveis de receita que não se tinha, há muito tempo. Para finalizar, vamos explorar a análise nas configurações do mercado atual, as relações de poder e os agentes. Como será que a empresa irá passar pelos próximos anos de competição com os novos concorrentes, em um mundo amplamente digitalizado e com o consumo de entretenimento, de forma geral, cada vez mais possibilitando nichos mas, ao mesmo tempo, em busca de unificação de audiência para aumentar o alcance dos artistas. Faz-se importante esclarecer, como em todos os estudos que envolvam uma análise econômica dos setores culturais, que não será realizada qualquer avaliação estética e qualitativa da música, sendo de interesse do trabalho apenas os aspectos econômicos relacionados ao seu novo fazer.

3.1 UM BREVE HISTÓRICO

Em 1969, a recém-criada Rede Globo de televisão estava indo para seu quarto ano e já se destacava com a forte audiência em telenovelas. Começam a surgir as primeiras trilhas- sonoras, mas ainda de forma desorganizada. Eis que decidem criar uma empresa para organizar e comercializar essas trilhas. Surge assim a Som Livre, fundada pelo produtor musical, que trabalhava na Globo, João Araujo. Na página da memória Globo o texto descreve esse lançamento da seguinte forma:

“A Som Livre foi criada em 1969 por , que confiou ao produtor musical João Araújo o cargo de diretor-geral da nova gravadora. O objetivo era disponibilizar para o público as trilhas sonoras das novelas e minisséries da TV Globo e, ao mesmo tempo, incentivar a música popular brasileira, abrir portas para novos talentos e revitalizar o repertório de músicos consagrados. Parte fundamental da história da MPB foi registrada pela Som Livre nas trilhas das novelas, minisséries e dos programas da Rede Globo.” (Disponível em: http://www.robertomarinho.com.br/obra/som-livre.htm) Fundada com o nome de SIGLA Sistema Globo de Gravações Audiovisuais LTDA, a marca Som Livre logo se populariza com um programa de TV chamado Som Livre Exportação, onde exibia músicos nacionais no horário nobre, toda quinta-feira 20:30h. Ele fica no ar apenas dois anos, mas marcou com episódios históricos. Comandado por e , o programa contou com a participação de grandes nomes da MPB, como Aldir Blanc, de Hollanda, Clementina de Jesus, Gonzaguinha, , Tony Tornado, , e os grupos Brazuca e , além de ter revelado uma nova geração 32

de músicos. Um dos programas mais marcantes foi quando Caetano Veloso, fez uma breve passagem no Brasil vindo do exílio em Paris, no auge da ditadura. Ao longo da década de 70 a Som Livre cumpre seu papel de prover à Globo as trilhas para novela e, eventualmente, lançam alguns novos artistas apostas da época, como Djavan, Tim Maia, , Fafá de Belém e Novos Baianos. As trilhas originais e exclusivas, com composições próprias e interpretes únicos para as novelas, aos poucos vão se tornando menos frequentes, e as trilhas com músicas comerciais, inclusive estrangeiras passam a dominar as novelas. Com isso, a Som Livre precisa reduzir seu ritmo de expansão do cast para não conflitar com os interesses de outras gravadoras que por ventura poderia deter algum conteúdo que interessava à trilha de uma novela, podendo então não autorizar sua liberação. Sendo assim, houve uma grande diminuição nas contratações artísticas na década de 80, por parte da Som Livre para continuar firme em sua missão de prover as melhores trilhas sonoras às novelas da TV Globo. Com a redução do elenco de artistas musicais, a Som Livre passou a se dedicar apenas aos programas da Globo, e pequenos lançamentos de artistas independentes. E foi justamente nessa conjuntura que a empresa tem três gratas surpresas: , Lulu Santos e Barão Vermelho. A primeira detém até hoje a marca de disco mais vendido da companhia, com quase 4 milhões de álbuns do “Xuxa 3”. Xuxa se tornou um fenômeno na TV e nas vendas de discos infantis. Já Lulu e Barão tem histórias diferentes, mas comungam a proximidade da empresa como interseção. Lulu Santos era funcionário do departamento de A&R da gravadora, quando lançou seu primeiro disco sem muita pretensão; já , o vocalista e líder do Barão Vermelho, era filho de João Araújo, presidente e fundador da empresa. Após isso, a década de 90 é o momento que os consumidores brasileiros (e do mundo todo) estão refazendo sua discoteca com os CDs. Coleções inteiras de vinis são substituídas por discos compactos mais resistentes e práticos. A Som Livre aproveita essa fase e relança vários álbuns clássicos e cria compilações e coletâneas (os famosos “best of”) de vários artistas da casa e até de alguns outros independentes. As trilhas das novelas continuam sendo muito consumidas. A venda da trilha de “Rei do Gado” de 1996 atingiu a marca de 2,2 milhões de cópias vendidas. Assim sendo, a estratégia da empresa se mantinha firme desde sua essência: Apoiar a TV nas trilhas e na programação musical e lançar projetos pontuais de carreiras artísticas, mas sem que estes comprometessem o principal negócio da empresa. A chegada do novo milênio trouxe junto o início de uma nova era para todas as empresas presentes no mercado da música. A indústria fonográfica, que até então, assumia-se quase como o sinônimo do mercado da música, pois através das redes de distribuição levavam-se poucos 33

conteúdos para milhões de pessoas com uma eficiência incomparável. Mas o oposto, levar milhões de conteúdos para uma pessoa, não era uma tarefa adequada ao modo como as majors controlaram as redes de distribuição. Assim, o mercado de massa passou a conviver progressivamente com o mercado de variedades.

“Nas últimas décadas, a indústria fonográfica se transformou significativamente. A adoção de relações flexíveis de produção, a dissociação dos fonogramas de suportes físicos (digitalização) e o desenvolvimento de novos canais de distribuição de fonogramas digitais, entre outros fenômenos, acarretaram uma mudança na própria razão de ser desse negócio. Pode-se afirmar, sem reticencias, que a fonografia deixa de ser um negócio de produção industrial de discos, convertendo-se em um comércio de distribuição de fonogramas digitais e serviços relacionados via redes digitais de comunicação. Estas transformações exigem novas estratégias de comércio e, por conseguinte, novas estruturas de produção de fonogramas, o que reconfigura o papel de cada um dos agentes envolvidos nesse mercado” (DE MARCHI, 2011, p. 145).

Um componente fundamental dessa transformação foi avanço tecnológico que possibilitou as novas formas de produção, distribuição e consumo da música como bem demonstra Anderson (2006) ao analisar as três forças da “cauda longa”.

“Quando se é capaz de reduzir drasticamente os custos de interligar a oferta e a demanda, mudam-se não só os números, mas toda a natureza do mercado. E não se trata apenas de mudança quantitativa, mas, sobretudo, de transformação qualitativa. O novo acesso aos nichos revela demanda latente por conteúdo não-comercial. Então, à medida que a demanda se desloca para os nichos, a economia do fornecimento melhora ainda mais, e assim por diante, criando um loop de feedback positivo, que metamorfoseará setores inteiros – e a cultura – nas próximas décadas” (ANDERSON, 2006, p. 24).

No mercado da música, a queda da venda dos CD’s foi o principal sintoma dessa transformação e também o principal elemento de redefinição das estratégias das majors. Segundo dados disponibilizados pela ABPD (Associação Brasileira de Produtores de Discos), a venda de CD´s no país caiu de 93 milhões de unidades vendidas em 2000 para 18 milhões em 2011, um tombo superior a 80%, e em 2018 não respondeu por mais do que 5% de todo o faturamento (IFPI, 2018). O mercado mundial de música gravada atingiu seu ápice em 1999, com 25.2 bilhões de dólares de faturamento líquido e teve quedas até o ano de 2015, quando voltou a crescer fortemente impulsionado pela monetização da música digital via plataformas de streaming, atingindo em 2018 o faturamento equivalente ao do ano de 2006 (IFPI, 2019). Uma das principais consequências que a música sofreu com a digitalização tecnológica foi a facilitação ao seu acesso, ocasionando mudanças profundas no mercado musical, tanto do ponto de vista da produção, quanto do consumo, além de potencializar a possibilidade de intercâmbio e diversidade musicais. Ao facilitar a produção e o consumo, enxerga-se uma 34

constante derrubada de barreiras físicas e simbólicas, conforme vimos no capítulo anterior deste trabalho.

3.2 MOMENTO CRÍTICO E MUDANÇA DE MODELO Com essa enorme revolução que acontecia no mercado a Som Livre também passa por grandes mudanças. Entre 2005 e 2007 a companhia vende boa parte de seu catálogo de obras e passa por uma enorme reestruturação em seu quadro. João Araújo, após quase 40 anos no comando deixa a empresa e uma junta de executivos da Globo prepara um phase-out de desligamento. Nesse momento toda a indústria fonográfica passa por uma grande crise e acontecem muitas movimentações entre fusões e aquisições das empresas. Em 2004, foi realizada a fusão entre as empresas Entertainment e a BMG, que passaram a se chamar Sony BMG e anos mais tarde, já na década de 2010 a Universal compra a EMI. As 5 principais empresas de música do mundo até então viram 3 (Sony, Universal e Warner) A transformação da indústria da música obrigou as gravadoras reinventarem seus modelos de negócios para sobreviverem. Houve também o surgimento de novas empresas no mercado de música e que rapidamente se tornaram tão importantes quanto as tradicionais gravadoras. Empresas de tecnologia, principalmente. Mas também os escritórios de agenciamento artísticos passaram a ter receitas maiores com a produção e gestão de shows. Portanto, percebe-se que a transformação da indústria da música não obrigou apenas às gravadoras tradicionais a reinventarem seus modelos de negócios para sobreviverem, mas impactou os agentes produtivos em toda a rede produtiva, de modo que surgiram novas relações comerciais e novos agentes nesse mercado. A Som Livre acompanhando a queda no mercado, tem seus piores resultados de todos os tempos. Receitas declinantes forçam uma grande mudança em sua estrutura de custos e na sua estratégia. De certa forma, ocorre o que Schumpeter define como “destruição criadora”, ou seja, o modelo vigente é destruído e surge um que se adapta a nova realidade. “Destruição criadora” foi o termo cunhado em 1942, no livro A Teoria do Desenvolvimento Econômico, pelo economista austro‐americano Joseph Schumpeter para mostrar que, ao mesmo tempo que a inovação tecnológica gera novos conhecimentos e processos, também é a responsável pela extinção de sistemas e produtos antigos. Veremos na sequências gráficos que evidenciam a passagem da indústria da música brasileira da primazia do faturamento decorrente de vendas físicas para o início de uma 35

transição para o mercado digital. O declínio forte do faturamento físico destruiu as bases do mercado e abriu possibilidades para que novas empresas se posicionassem na indústria. Importante aqui é destacar que a mudança que impactou toda o mercado fez com que as empresas passassem por grandes mudanças. Os dados que serão apresentados a seguir confirmam essa afirmação. Eles foram coletados nos anuários publicados pela ABPD (Associação Brasileira dos Produtores de Discos), uma organização que tem como filiadas as maiores gravadoras com atuação no Brasil: EMI Music, MK Music, Music Brokers, Paulinas, Record Produções e Gravações LTDA., Som Livre, Sony Music Entertainment, Universal Music, Walt Disney Records e Warner Music. Portanto, os dados não incluem a produção de outras gravadoras como a Biscoito Fino e a Deck Disc, por exemplo. Nos gráficos 1 e 2, podemos perceber a queda expressiva da venda de CD´s entre os anos de 2000 e 2011 (de 93 milhões de unidades para 18 milhões) ao passo em que a venda de DVD´s e Blu-Rays cresceu de 2000 até 2004, mas a partir desse ano retrocedeu para na sequência se estabilizar perto das 6,5 milhões de unidades vendidas.

Gráfico 1 - Unidades vendidas de CD´s (em milhões) no período 2000-2011 100

80

60

40 CD

20

0

Fonte: ABPD, 2019 36

Gráfico 2 - Unidades vendidas de DVD´s e Blu-Rays (em milhões) no período 2000-2011 8

7

6

5

4 DVD+Blu Ray 3

2

1

0

Fonte: ABPD, 2019

Já nos gráficos 3, 4 e 5, podemos perceber a variação do faturamento dessas vendas, de maneira que visualizamos um tombo do mercado físico total de R$ 891 milhões em 2000 para R$ 281 milhões em 2012. É possível perceber pelos gráficos que a queda do faturamento da venda de CD´s é parcialmente reposta pelo faturamento das vendas de DVD´s e Blu-Rays, que conforme se verifica no gráfico 6 passa a apresentar um papel mais importante dentro do mercado de vendas físicas.

Gráfico 3 - Faturamento das vendas de CD´s (R$ milhões) no período 2000-2012 1000 900 800 700 600 500 CD 400 300 200 100 0

Fonte: ABPD, 2019 37

Gráfico 4 - Faturamento das vendas de DVD´s e Blu-Rays (R$ milhões) no período 2000-2012 200 180 160 140 120 100 80 DVD+Blu Ray 60 40 20 0

Fonte: ABPD, 2019

Gráfico 5 - Faturamento das vendas totais do mercado físico (R$ milhões) no período 2000-2012 1000 900 800 700 600 500 CD+DVD+Blu-Ray 400 300 200 100 0 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Fonte: ABPD, 2019

Nos próximos gráficos, apresentamos dados das vendas digitais, os quais passaram a ser disponibilizados a partir de 2007, mas que foram melhor discriminados a partir de 2011. No gráfico 6, visualizamos um significativo crescimento do faturamento digital das gravadoras que saltou de R$ 24,7 milhões em 2007 para R$ 111,4 em 2012, destacando-se no período o resultado do último ano que obteve um crescimento de 83% na comparação com 2011. Esses dados foram certamente impulsionados pela entrada do itunes no Brasil assim como 38

pelo maior controle sobre a utilização das músicas em vídeos de propaganda e de entretenimento.

Gráfico 6 - Faturamento das vendas totais do mercado digital (R$ milhões) no período 2007-2012 120

100

80

60 Faturamento das receitas digitais 40

20

0 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Fonte: ABPD, 2019

A partir das evidências quantitativas dos dados de mercado apresentados acima associados ao contexto da mudança tecnológica, mostramos a forte redução na venda da música através dos suportes físicos e crescente relevância, embora ainda incipiente, da música vendida digitalmente. Esta, por sua vez, se diversificou para além da comercialização da música como um produto fim, de modo que as receitas da comercialização digital incluem também a remuneração das músicas sincronizadas nos vídeos de propaganda e nos games. Pelos dados não restam dúvidas de que o mercado físico da indústria fonográfica se configurou em um mercado declinante nos primeiros quinze anos do século XXI e desde então a questão sobre a capacidade de adaptação das empresas nesse mercado declinante se tornou muito importante. Em outras palavras, ao final da primeira década do século XXI, a ascensão do faturamento digital possibilitou a recuperação parcial das perdas e o surgimento das primeiras plataformas de streaming significaram uma importante alternativa à monetização da música. Mas quais empresas seriam capazes de suportar esse perído de declínio do mercado? Quais conseguiriam fazer a transição dos seus respectivos faturamentos do mercado físico para o digital? Nesse sentido, as afirmações sobre o declínio da indústria fonográfica precisaram ser relativizadas, uma vez que a crescente importância do faturamento digital sinalizou a necessidade de remodelagem dos negócios das gravadoras e não o fim da indústria fonográfica. Dessa forma, por mais que as gravadoras, especialmente as majors, tenham resistido, a reestruturação do mercado impôs a necessidade do redesenho dos modelos de negócios das 39

empresas, as quais redefiniram suas estratégias competitivas de formas diferenciadas. No Brasil, dentre os resultados desse processo podemos citar a fusão entre algumas majors; a emergência da Som Livre para liderar o mercado fonográfico nacional e outras gravadoras nacionais para ocupar nichos e até mesmo; e o redesenho dos modelos de negócio.

3.3 A NOVA ERA COM A ASCENÇÃO DO STREAMING

A evolução do consumo da música via streaming, trouxe novas receitas e abriu caminho para uma grande retomada da indústria fonográfica. Em 2008 o serviço de streaming de música Spotify foi lançado ao mercado oferecendo um vasto catálogo sob a forma de assinaturas mensais ou através do acesso gratuito em troca da inserção de publicidade. O serviço foi implementado no Brasil em 2014 e conta com o conteúdo das principais empresas titulares de direito A partir da virada da década de 2010 as empresas começam a ver suas receitas digitais crescerem vertiginosamente, e com a Som Livre não foi diferente. Mas antes de entrar no caso específico, vale entendermos um pouco como funciona esse novo formato. A música volta a ser um serviço, e não mais um produto. A Apple, ao observar a potencial de mercado dos serviços de streaming de música, lançou seu próprio serviço, o Apple Music, em 2015, para competir com os demais serviços similares, como o Spotify e Google Play. Outra grande empresa que resolveu inserir‐se nesse mercado é a Amazon que lançou o Amazon Music Unlimited em 2016, utilizando uma competição via preço ao oferecer suas assinaturas mais baratas do que seus competidores. O fácil acesso aos canais de distribuição de música digital fomentou o surgimento de um novo agente na cadeia produtiva da música gravada: os agregadores digitais. Empresas como a , Belive e CD Baby tornaram‐se uma das principais distribuidoras de uma cada vez mais crescente produção independente de obras musicais. Para o ouvinte, o acesso à música foi facilitado com a difusão dos serviços digitais de música. As facilidades e praticidades do manuseio desses serviços vêm contribuindo cada vez mais por sua popularização, auxiliando também a combater o acesso ilegal de música, por ser uma alternativa legal aos serviços ilegais de compartilhamento de arquivos. Com a difusão das tecnologias digitais de distribuição, a música passa a ser consumida sob o formato de serviço e as empresas titulares de direitos do setor fonográfico, que foram responsáveis pela implementação de 40

inovações no passado como o disco de vinil e o CD, passaram a se beneficiar do licenciamento de seus catálogos para os serviços digitais de música. A Som Livre distribui seu conteúdo através da The Orchard, que foi adquirida pela Sony Music. Portanto, há um novo caminho para centralização novamente. As empresas acabam se fundindo e se integralizando. Importante ficarmos atentos para estes movimentos mas ainda é cedo para prevermos quais serão as próximas sinergias e qual será a composição desses agentes no futuro. Ao reconhecermos a transição do mercado físico para o digital, devemos nos questionar como a Som Livre conseguiu se adaptar e como o seu modelo de negócio viabilizou que se tornasse uma empresa líder no mercado brasileiro. Essa pergunta é de extrema relevância, pois antes da transformação digital do mercado, as barreiras de entrada existentes impediam que a Som Livre se tornasse competitiva para disputar maiores fatias de mercado com as majors. Para explicar esse processo, optamos por analisar as estratégias competitivas adotadas por empresas em mercados declinantes, como era o caso da indústria da música nos primeiros quinze anos do século XXI. Porter (2004) sugere que a competição em mercados declinantes possui especificidades em comparação com os demais e que as estratégias das empresas variam muito, de forma que algumas obtêm altos retornos associados a pesados investimentos, enquanto outras evitam perdas ao saírem rapidamente do mercado. Segundo o autor, três fatores estruturais assumem importância na determinação da natureza da concorrência em um mercado declinante: as condições de demanda, as barreiras de saída e a instabilidade da rivalidade entre as empresas. A partir dessa análise, as empresas podem definir quatro estratégias: liderança, nicho, colheita e desativação rápida. Sobre o primeiro fator determinante, as condições de demanda, Porter (2004) destaca que o processo pelo qual a demanda sofre um declínio e as características dos segmentos de mercado remanescentes têm grande influência sobre a concorrência e, assim, apresenta quatro elementos que afetam esse processo: a incerteza; o padrão do declínio; a estrutura dos bolsões remanescentes de demanda; e as causas do declínio. Sobre o segundo determinante, as barreiras de saída, Porter (2004) descreve as fontes fundamentais que dificultam a saída do mercado por parte das empresas, as quais, por um lado, podem ampliar as perdas no mercado, mas, por outro lado, podem encontrar nessas barreiras a competitividade necessária para assumir a liderança desse mercado em declínio. Nesse sentido, o autor apresenta os seis fatores que dificultam as empresas em sair de mercados declinantes: a existência de ativos duráveis e especializados; a presença de elevados custos fixos de saída; as 41

barreiras de saída estratégicas; as barreiras de informação; as barreiras emocionais ou gerenciais; barreiras governamentais e sociais. O terceiro fator estruturante da concorrência em mercados declinantes, a instabilidade da rivalidade, torna-se mais intenso, segundo Porter (2004) em situações em que o uso do produto é generalizado; os custos fixos são altos; muitas empresas estão presas por barreiras de saída; uma série de empresas percebe importância estratégica em manter a posição; os poderes relativos das empresas remanescentes são relativamente equilibrados; e as empresas estão incertas quanto aos seus poderes relativos e empreendem esforços para se reposicionarem. Vale apontar, também, que a instabilidade da rivalidade pode ser ampliada em função dos fornecedores e dos distribuidores que se tornam mais relevantes na concorrência entre as empresas remanescentes. Diante desses determinantes estruturantes da concorrência em um mercado declinante, as empresas devem definir suas estratégias que, como citado anteriormente, podem ser classificadas por liderança, nicho, colheita e desativação rápida. A estratégia de liderança é adotada pelas empresas que percebem a possibilidade de obter ganhos acima da média e para isso investem em ações competitivas agressivas na área de preços, marketing, que levem a concorrência a sair do mercado; adquirem parcelas do mercado pela compra de concorrentes; e declaram de formas variadas que permanecerão no mercado. A estratégia de nicho, por sua vez, é adotada por empresas que se identificam capazes de atender segmentos ou grupos de demanda remanescentes geradores de retornos acima da média. As estratégias de colheita e de desativação rápida são adotadas por empresas que não se percebem competitivas no mercado em declínio, entretanto se distinguem pela velocidade da retirada, de maneira que na colheita a empresa reduz o investimento progressivamente até liquidar ou vender o negócio e na desativação rápida a empresa procura maximizar sua recuperação líquida do investimento vendendo o negócio no início da fase de declínio. A decisão da empresa, portanto, deve considerar as suas especificidades para aproveitar a existência de segmentos específicos e grupos de demanda remanescentes, associado a uma análise da estrutura do mercado em declínio, ou seja, se existe algum controle ou previsão sobre o ritmo do declínio. Nesse sentido, Porter (2004) apresenta uma metodologia para as escolhas das empresas, conforme se verifica no quadro 1.

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Quadro 1 - Escolha de estratégia das empresas em um mercado declinante Tem pontos fortes em Não tem pontos fortes em relação aos concorrentes relação aos concorrentes

quanto aos grupos quanto aos grupos remanescentes remanescentes Liderança Colheita Estrutura industrial ou ou favorável ao declínio Nicho Desativação rápida Nicho Estrutura industrial ou Desativação rápida desfavorável ao declínio Colheita Fonte: Porter, 2004, p. 282.

Diante do declínio da venda física e das possibilidades estratégicas apontadas acima, como as gravadoras responderam a mudança? As fusões entre majors, a ascensão de outras gravadoras para as primeiras posições do mercado, o surgimento de gravadoras independentes e a conexão direta entre artistas e consumidores são sintomas de uma mudança estrutural do mercado fonográfico. Neste trabalho nos interessa compreender o caso da Som Livre, que a partir da sua nova gestão em 2011 passou a apresentar resultados crescentes da receita, primeiramente pelas vendas físicas e depois primordialmente pelas vendas digitais, como se verifica no próximo gráfico.

Gráfico 7 - Evolução da receita líquida da Som Livre, 2012-2019.

Fonte: Elaborado pelo autor com base em números internos da Som Livre, 2019

A Som Livre percebeu na reorganização da indústria uma oportunidade para alterar seu modelo de negócio e por consequência ampliar sua competitividade no mercado, ao deixar de 43

atuar apenas na distribuição de coletâneas e de trilhas sonoras das novelas da Globo e assumir liderança na distribuição e promoção de gêneros musicais brasileiros. Mas por que as gravadoras hegemônicas responderam de maneira tão diferenciada às transformações do mercado no início do século XXI? Como desenvolveram suas ações para alcançar os objetivos estratégicos? Para responder essas questões, optamos nessa pesquisa por analisar a indústria fonográfica como um mercado em reestruturação, caracterizado pelo declínio das vendas físicas e pela ascensão das vendas digitais, de maneira que somente as gravadoras capazes de atravessar essa fase de declínio do faturamento conseguiram permanecer no futuro mercado fonográfico, cada vez mais determinado pelas vendas digitais e pela participação das gravadoras em outras etapas da economia da música. Nesse sentido, existem duas visões complementares a serem consideradas, a primeira que trata das estratégias competitivas para mercados declinantes e a segunda que aborda os recursos da empresa para redesenhar o seu modelo de negócio e permanecer em um mercado muito diferente do anterior. Com respeito às estratégias competitivas para mercados declinantes, a Som Livre, adotou uma estratégia de liderança em função da identificação de bolsões de demanda representados por estilos musicais como o religioso e o sertanejo, por exemplo, e pelo fato de possuir barreiras de saída, uma vez que desempenha caráter estratégico dentro do Grupo Globo. Dessa forma, valendo-se da concorrência monopolística, que transforma o artista em um recurso fundamental para as gravadoras, a Som Livre desenvolveu um novo modelo de negócio para monetizar a música a partir da mobilização e da criação de outros recursos dentro da empresa, como, por exemplo, a criação de áreas destinadas a cuidar das apresentações ao vivo, das vendas digitais e da utilização das músicas em outras áreas da economia criativa como cinema, televisão, games e publicidade. Em linhas gerais, cada vez mais essas gravadoras se distanciarão dos modelos de negócio originais e se transformarão em empresas de música articuladas em rede com produtores, artistas e outras empresas do setor ou do conglomerado. Os próximos anos apresentam tendência de crescimento do faturamento da indústria da música por meio da expansão da base de assinante das plataformas de streaming, de modo que as empresas que atravessaram a fase de declínio do mercado tenderão a se beneficiar de estarem posicionadas para esta fase de expansão da indústria. O próximo gráfico, revela a tendência de crescimento do número e assinantes no Brasil. 44

Gráfico 8 - Evolução de assinantes de música no Brasil

Fonte: Midia Research, 2019

Vale destacar que os pontos de queda no gráfico são devidos à recomposição de alguns serviços, com efeitos de saídas de bundles com operadoras de telefonia principalmente. A expectativa é que supere o número de lares com TV a Cabo, no Brasil e no mundo, muito em breve. Mas hoje esses serviços ainda são deficitários, principalmente devido aos gastos com tecnologia, marketing e direitos. De acordo com o relatório da IFPI (2019), o Spotify tinha no final de 2018 uma base de 191 milhões de usuários ativos no mundo todo, sendo que mais da metade desse número de não assinantes, que usam o serviço ouvindo publicidade. Os 87 milhões de assinantes geram 89% da receita.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho vimos a evolução da Som Livre e as estratégias adotadas pelas gravadoras, no Brasil para se adaptarem a um novo ambiente competitivo, definido a partir do avanço das tecnologias da informação. Nesse caminho discutimos como as progressivas quebras das barreiras de entrada no mercado erodiram as vantagens competitivas construídas pelas gravadoras ao longo do século XX, condicionando-as a desverticalizarem o processo produtivo e a redesenharem seus modelos de negócio. Na esteira desse processo, evidenciamos as quedas expressivas das vendas físicas e a ascensão das vendas digitais, reestruturando o mercado fonográfico e exigindo das gravadoras a capacidade de atravessarem esse período de transição. Dessa forma, consideramos as vendas físicas como um mercado declinante no qual as gravadoras estabeleceram seus negócios no século XX e do qual desejam migrar em direção ao mercado das vendas digitais. Além disso, evidenciamos que as gravadoras também redefiniram seus modelos de negócio e assumiram outras funções dentro da economia da música, viabilizando assim outras receitas para a empresa. As primeiras conclusões indicam que as gravadoras que permaneceram liderando o mercado foram aquelas que integram grandes conglomerados, de maneira que seus negócios se associam a outros do conglomerado ou são estratégicos para suas realizações. Houve uma nova distribuição na cadeia de valor da música, de modo que as gravadoras tradicionais são forçadas a mudar suas estruturas para se adaptarem às novas tecnologias e a democratização ao acesso de meios de produção artísticas e distribuição de conteúdo. Investigamos então as estratégias adotadas por alguns players da indústria da música no Brasil, com especial atenção ao caso da Som Livre, que de uma gravadora sem artistas em seu portfólio se tornou líder no mercado brasileiro ao lado das majors Sony e Universal. De fato, verificamos uma grande mudança na estratégia da Som Livre a partir de sua nova direção. Primeiro surgiu para atender as necessidades da TV Globo e suas trilhas para novelas. Durante muito tempo esse modelo de negócio era o que bastava para a empresa seguir, porém com toda a mudança na indústria ela se reinventou e ampliou seu escopo de atuação. Foram criados departamentos para buscar novos artistas e agenciá-los em modelos 360º pioneiros na indústria fonográfica brasileira até então. Além de entrar fortemente na produção de shows e festivais. Evidentemente, tudo isso ainda com base no apoio que tem da própria Globo. 46

De certa forma, as gravadoras que permaneceram liderando o mercado foram aquelas que integram grandes conglomerados, de maneira que seus negócios se associam a outros do conglomerado ou são estratégicos para suas realizações. Outra constatação importante presente no trabalho de pesquisa sobre as transformações na indústria fonográfica neste século que vivemos foi o surgimento de novos agentes na cadeia produtiva e a ressignificação de alguns papeis, como o da própria gravadora. Foi visto que os serviços de distribuição e os escritórios de agenciamento artísticos têm hoje importante presença e merecem um estudo aprofundado para detalhar a participação de cada um deles em todo o ciclo e mercado da música. Se por um lado as gravadoras detêm o relacionamento com os artistas, os distribuidores mantêm o contato com o cliente final e acompanha seus hábitos de consumo mais de perto. O papel da gravadora sempre teve um caráter muito mais de curadoria, de garimpar novos artistas e explorar o cast de seu catálogo com lançamentos baseados muito mais na intuição de um diretor artístico do que necessariamente nas demandas de comportamento dos ouvintes. Quando se chega ao ponto de existir um player com grande poder de concentração na distribuição ameaçar o negócio das gravadoras, e a preocupação é porque este mesmo player pode começar a fazer o papel de curadoria, já que muitos artistas novos encontram campo fértil para divulgar seu trabalho nestas plataformas. E mais do que isso, estes serviços tem poder para dominar o mercado e desenvolver criações baseadas em análise de dados puramente. Portanto, é fundamental que os executivos das gravadoras e agentes desse mercado conheçam cada vez mais sobre tecnologia e como ela pode ajudá-los a potencializar o negócio da música. Mas ao mesmo tempo, estas mesmas pessoas precisam saber lidar com um mercado brasileiro ainda atrasado em análises de dados e têm que se adaptar aos poucos à entrada de novos agentes com muito poder de influência sobre os artistas, que são os grandes escritórios de agenciamento artístico. Nesse vai-e-vem de poder e modelos de negócios surgem novas tecnologias a cada instante, bem como novos talentos da música brasileira. Ficar atento a tudo isso é um grande desafio do executivo moderno, que precisa se desdobrar para conseguir se manter atualizado em todas as frentes do conhecimento. Além disso, há um grande debate entre os modelos Cauda Longa (ANDERSON, 2006) e Blockbuster (ELBERSE, 2014); o que só reforça que não há um único caminho para as organizações que desenvolvem produtos de massa e/ou de nicho. As estratégias em alguns casos até se complementam. É certo que a queda das barreiras de custos permitiu que houvesse uma oferta muito grande de vários produtos, mas o consumo de massa pode ainda ficar restrito aos principais atores do mercado. Além disso, o cenário de risco precisa sempre ser avaliado. Na 47

maior parte das vezes, será investindo mais que se obterá o maior resultado. Cabe também reforçar que, para determinados tipos de negócios, acumular centavos em uma quantidade enorme de vendas, como por exemplo o Google com suas propagandas, é a melhor forma de se conseguir grandes retornos de escala, ou seja, o somatório pulverizado é o que conta. Já em outros, como um filme longa-metragem a que as pessoas assistem em média nos EUA, 5 por semana (Elberse, 2014) não vale a pena uma produtora pulverizar tanto assim seus recursos com o risco de não ter uma boa audiência em seu filme porque economizou demais quando não deveria. Outro ponto que vale destacar como conclusão é que o conceito de Cauda Longa faz mais sentido para os distribuidores, ao passo que a estratégia Blockbuster está mais associada aos produtores de conteúdo. Isso porque os distribuidores não carregam o risco de produzir os produtos (livros ou filmes, por exemplo). A Amazon é um exemplo de distribuidor que com seu conceito de marketplace consegue pulverizar ainda mais seu sortimento oferecendo produtos que vão desde amoladores de faca até réplicas de estátuas egípcias. Mesmo tendo percorrido um grande caminho investigativo no campo das empresas de música no Brasil, ainda há uma fronteira a ser descoberta nessa redefinição do mercado fonográfico que nos levará a continuar com a pesquisa. 48

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