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FACULDADES INTEGRADAS HÉLIO ALONSO CURSO DE CINEMA

Bruna Ferreira Moura

A RELAÇÃO ENTRE TV LINEAR E NÃO LINEAR NO BRASIL: O CASO

Rio de Janeiro 2020

Bruna Ferreira Moura

A RELAÇÃO ENTRE TV LINEAR E NÃO LINEAR NO BRASIL: O CASO GLOBOPLAY

Artigo científico apresentado ao Curso de Graduação em Cinema das Faculdades Integradas Hélio Alonso, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em julho de 2020, sob a orientação do Prof. Fernando Morgado.

Rio de Janeiro 2020 A RELAÇÃO ENTRE TV LINEAR E NÃO LINEAR NO BRASIL: O CASO GLOBOPLAY

Bruna Ferreira Moura

Artigo científico apresentado ao Curso de Graduação em Cinema Professor orientador das Faculdades Integradas Hélio Alonso, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Membro da banca julho de 2020, sob a orientação do Prof. Fernando Morgado.

Membro da banca

Data da defesa: Nota da defesa:

Rio de Janeiro 2020 AGRADECIMENTOS

Agradeço eternamente ao meu pai, Denis Moura, e à minha mãe, Adriana Occhiuzzi, por terem sido sempre presentes em minha vida, provendo a estrutura e o estudo necessários para o meu aprendizado acadêmico. Agradeço a todas as professoras e professores que passaram pela minha vida, pois, sem eles, eu não teria chegado até aqui. Minha eterna gratidão também à minha querida avó, Maria Isabel Dias, que, além de me apresentar ao espiritismo, sempre me apoiou e ajudou em todos os momentos, me ensinando diversas lições tanto no âmbito moral quanto no âmbito escolar, como boa professora de história que é. Outra professora de história que merece todo meu amor e gratidão é a minha tia Isabella Dias, a irmã mais velha que eu nunca tive. Gratidão aos meus avós por parte de pai, Aníbal de Moura e Dione Aparecida, bem como ao meu avô Tião, ao meu padrasto Hélio Occhiuzzi, ao meu companheiro Gabriel Malveira e seu valioso apoio, aos meus irmãos Eduardo Ferreira Moura, grande escritor e restaurador que tenho como inspiração, e João Occhiuzzi, além do meu tio Sérgio Dias e todos os outros muitos membros que, juntos, ajudaram a construir o sentido de família para mim, a base de toda uma vida. A educação começou ali. Agradeço ao amigo João Paulo Medeiros que dividiu comigo toda a trajetória do ensino superior, compartilhando experiências, agregando conhecimentos e fazendo com que todo o esforço fosse prazeroso e divertido. Agradeço, em especial, ao Vicente Oliveira, que me apoiou e incentivou desde o início, tendo comprado o meu primeiro livro de roteiro. À Zaira Machado, ao grupo Cecília Rocha e a todos os amigos e irmãos da Sociedade Espírita Jorge, que me auxiliaram na manutenção da saúde física e espiritual, permitindo com que eu continuasse minha caminhada evolutiva na Terra. Por fim, agradeço ao meu orientador, professor Fernando Morgado, que acreditou na minha pesquisa, incentivando, orientando e dividindo seu conhecimento comigo. Com toda paciência, atenção e carinho, me guiou durante a feitura do presente artigo. Sem ele, o resultado não teria sido o mesmo. Muito obrigada!

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A RELAÇÃO ENTRE TV LINEAR E NÃO LINEAR NO BRASIL: O CASO GLOBOPLAY

Bruna FERREIRA MOURA1

RESUMO O presente trabalho propõe uma análise do comportamento da indústria audiovisual brasileira e suas reconfigurações diante da chegada do streaming. Pretende observar as reações do mercado com o acirramento da competição e da resposta do público. Utiliza a plataforma Globoplay para estudar as mudanças de cunho mercadológico e tecnológico, bem como os efeitos práticos das estratégias utilizadas na tentativa de fidelizar o público da TV.

Palavras-chave: TV linear; TV não linear; streaming; vídeo sob demanda; Globoplay.

ABSTRACT This article proposes an analysis of the Brazilian's audiovisual industry behavior and it’s reconfigurations given the arrival of streaming. It is intended to observe the market’s reactions with the intensification of the competition and the audience’s response. The Globoplay platform is used to study technological changes and the ones in the market, as well as the practical effects of the strategies used in the attempt to build loyalty among the TV audience.

Keywords: linear TV; non-linear TV; streaming; video on demand; Globoplay.

1 INTRODUÇÃO

As novas formas de distribuição de conteúdo, impulsionadas pelos constantes avanços tecnológicos, impactaram de forma direta a maneira como as pessoas consomem produções audiovisuais. Diversas estratégias tiveram que ser completamente revisadas por todos os agentes do setor e isso inclui, naturalmente, as grandes redes de TV aberta, que há anos concentram parte expressiva da atenção do público.

1 Graduanda em Cinema (2020) pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA). E-mail: [email protected].

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Este trabalho trata de mudanças ocorridas na televisão linear após a chegada dos serviços de streaming, que são não lineares. Nesse sentido, foca no mercado brasileiro e toma como base o caso do Globoplay, plataforma da Globo, principal empresa de TV do Brasil. O estudo busca analisar o impacto que o Globoplay provocou nos destinos da Globo e procura verificar se esse serviço digital pode ou não representar uma renovação efetiva do negócio de televisão no Brasil, onde as empresas de mídia buscam se transformar em mediatechs. Além da introdução, o presente artigo possui outras três partes: referencial teórico, que versa sobre conceitos fundamentais, tomando como base o trabalho de diferentes autores; análise e discussão, que trata especificamente da atuação da TV Globo e do Globoplay diante da crescente concorrência no setor audiovisual; considerações finais, que traz conclusões a respeito do que se pode esperar da relação entre televisão linear e não linear no Brasil a partir do que foi observado no caso analisado. Em termos metodológicos, este trabalho se baseia fundamentalmente na pesquisa bibliográfica realizada em livros e artigos publicados por periódicos e páginas de com reputação reconhecida. A pesquisa também assume um caráter ex-post-facto, visto que se propõe a analisar, a partir da experiência do Globoplay, os possíveis impactos da televisão não linear no desenvolvimento da televisão linear brasileira e vice-versa.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Antes de aprofundar a análise em torno do Globoplay, faz-se necessário discutir, à luz de diferentes autores, determinados pontos fundamentais para o presente trabalho: televisão linear e televisão não linear; streaming e modelos de vídeo sob demanda e; o histórico do .

2.1 TV linear versus TV não linear

O entretenimento serializado existe desde o século XIX. O começo se deu com o folhetim na França, onde narrativas de novelistas da moda eram publicadas no rodapé da primeira página dos jornais (BARBERO, 2001).

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Visando conquistar novos públicos e aumentar a venda de exemplares, foram adotadas variações na estrutura dos folhetins, fazendo nascer, aos poucos, uma literatura seriada. O uso de narrativas serializadas, portanto, surgiu a partir de demandas mercadológicas. Isso evoluiu da imprensa para o rádio, depois para a televisão linear e, finalmente, para as plataformas de streaming. Nas palavras de Fredini:

A linearidade é uma das características fundamentais da radiodifusão, ou seja, o envio e a recepção dos conteúdos é parte de um fluxo contínuo de informação que não pode ser alterado pelo receptor (FREDINI, 2015, p. 94).

A radiodifusão, chamada em inglês de broadcasting, baseia-se na transmissão por ondas de rádio. Ela inclui a televisão aberta, que é linear por natureza e alcança grandes volumes de audiência. Em tempo: TV linear é aquela que apresenta conteúdos previamente selecionados pelo transmissor e que são organizados em uma grade de programação. Neste sentido, apesar de não integrar o campo da radiodifusão, e sim das telecomunicações, pois pode ser transmitida através de cabo ou satélite, a televisão paga também é classificada como linear. A programação possibilita a venda de espaços comerciais nos intervalos das atrações, sendo uma forma eficaz das emissoras gerarem receita e controlarem melhor seus custos de produção. Esse modelo, porém, foi diretamente impactado pelo surgimento de novas tecnologias e pela evolução das necessidades da audiência.

Com a adoção doméstica do videocassete e do videotape, pela primeira vez, o público começou a ter controle sobre o conteúdo da televisão, sendo possível gravar programas para serem assistidos em horário mais oportuno (time-shifting) e “pulando” os intervalos comerciais. Este hábito foi muito beneficiado pela digitalização dos meios de produção e distribuição e, hoje, os chamados DVR (Digital Video Recorder) possibilitam gravar e reproduzir conteúdo em alta definição (FREDINI, 2015, p. 94).

A partir do momento em que a produção audiovisual avançou também para os meios digitais, abriu-se a possibilidade de produzir novos formatos, facilitados pela distribuição em múltiplos meios.

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É nesse contexto que surge a TV não linear. Sua definição se dá independentemente do aparelho receptor, pois o foco está na forma livre com que o espectador decide sobre o consumo que fará dos conteúdos. TV não linear, portanto, é aquela na qual a escolha do programa que será assistido é feita a qualquer hora pelo próprio espectador, ou seja, sob demanda, sem respeitar uma grade de programação. Sendo assim, é possível assistir à ou ao YouTube em um aparelho de TV sem que isso se caracterize como televisão linear, visto que não se respeita uma grade fixa. Seguindo essa lógica, hoje em dia, ao ligar seu televisor, o telespectador pode acessar, pelo menos, três modalidades de entretenimento: TV aberta (linear), TV paga (também linear) e streaming (não linear).

2.2 Streaming e modelos de vídeo sob demanda

O comportamento do público no que se refere ao consumo de conteúdo audiovisual é consequência, principalmente, das novas possibilidades abertas pelas tecnologias digitais surgidas nos últimos anos. Conforme escreve Anderson:

A grande vantagem do broadcast é sua capacidade de levar um programa a milhões de pessoas com eficiência sem igual. Mas não é capaz de fazer o oposto – levar um milhão de programas para cada pessoa. No entanto, isso é exatamente o que a internet faz tão bem (ANDERSON, 2006, p. 5).

Esse alto grau de personalização apontado por Anderson (2006) vai de encontro ao modelo de disseminação de conteúdo baseado em grandes volumes de audiência que sustentou as empresas de broadcast ao longo do século XX2. No ambiente on-line, a tecnologia mais utilizada atualmente para distribuição de conteúdo é o streaming. Diferente do processo de descarregar arquivos inteiros da Internet, o streaming permite ter acesso ao conteúdo sem que este tenha sido completamente baixado no servidor do usuário (ADÃO,

2 Sobre a produção de conteúdo baseada em grandes sucessos de público, ler: ELBERSE, Anita. Blockbusters. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.

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2007). Assim, através da Internet, visualiza-se o conteúdo conforme ele é recebido pelo dispositivo. Streaming é justamente a tecnologia utilizada pelas plataformas de vídeo sob demanda (video on demand, VoD), como, por exemplo, , HBO Go, Netflix, Globoplay, que é objeto de estudo deste artigo, entre outras. É possível separar as diversas plataformas de VoD existentes conforme seus modelos de negócio. São eles: SVoD, subscription video on demand, baseado em planos de assinatura; AVoD, advertising video on demand, financiado por anunciantes, e; TVoD, transactional video on demand, que permite ao usuário pagar apenas pelo conteúdo que deseja ver, ou seja, por transação. Por exemplo: o serviço oferecido pela Netflix se dá mediante a assinatura feita pelos seus usuários, que, em troca, recebem acesso ilimitado a uma biblioteca de filmes e séries. A Netflix, portanto, se encaixa na modalidade SVoD (MASSAROLO; MESQUITA, 2016). Todos esses modelos de negócio descritos no parágrafo anterior formam o cenário do over-the-top, mais conhecido pela sigla OTT. Procurando se adequar às mudanças do mercado, as empresas de mídia tradicional investem no desenvolvimento de suas próprias plataformas para distribuição de conteúdo on-line (MASSAROLO, MESQUITA, 2016). Assim, buscam se converter em mediatechs, trazendo a tecnologia para o centro dos seus negócios.

2.3 Breve histórico do grupo Globo

Diferente da TV paga, que distribui determinado pacote de canais para assinantes, chama-se de TV aberta aquele conjunto de emissoras transmitido de forma livre e gratuita (free-to-air) para a audiência. Trata-se de um serviço público que se sustenta através da venda de espaços comerciais ao longo da programação, o que torna ainda mais relevante a qualidade dos produtos audiovisuais para a conquista de telespectadores (DUARTE, jul-dez. 2013). No Brasil, as principais redes de televisão aberta são Band, RecordTV, RedeTV!, SBT e Globo, que é a maior delas.

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A trajetória do grupo Globo começou em 1925 com o jornal , fundado por Irineu Marinho. Após a morte prematura de Irineu, o comando de O Globo passou para seu filho, , que, quase duas décadas mais tarde, lançou a Rádio Globo (MEMÓRIA ROBERTO MARINHO, s/d). Em sintonia com as novidades da época, Roberto Marinho encaminhou ao governo federal, em 1951, o pedido de concessão de um canal de televisão. Em 1957, o então presidente Juscelino Kubitschek assinou a outorga do canal 4 do Rio de Janeiro para a Rádio Globo. Finalmente, em 26 de abril de 1965, foi inaugurada a TV Globo (MEMORIA ROBERTO MARINHO, s/d). A Globo foi a primeira emissora do Brasil a contar com uma sede especialmente projetada e construída para abrigar uma televisão (MEMORIA ROBERTO MARINHO, s/d). Com o apoio inicial do grupo de mídia estadunidense Time-Life e sob a liderança de executivos como Walter Clark e José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, Boni, a empresa cresceu muito em termos artísticos, comerciais e tecnológicos. Em janeiro de 1966, a Globo registrou seu primeiro grande êxito na busca pela audiência ao cobrir ao vivo as violentas enchentes ocorridas na cidade do Rio de Janeiro. De forma inovadora para a época, câmeras e repórteres foram colocados nas ruas, mostrando a destruição e os problemas vividos pela população (MEMÓRIA ROBERTO MARINHO, s/d). Ao longo dos anos, mais canais de televisão foram comprados e afiliados pela Globo. Na década de 1970, ela se firmou na posição de principal rede de TV aberta do Brasil (BOLAÑO, 2004; MATTOS, 2010), consolidando uma programação calcada, principalmente, no binômio jornalismo-novela com elevado nível técnico. Em 2017, a Rede Globo alcançou 98,6% dos municípios e 99,6% da população do país (GLOBO, 2017). Em paralelo ao seu fortalecimento na televisão aberta, o grupo Globo avançou para outras áreas do audiovisual, como gravações musicais, através da , e home entertainment, com a Globo Vídeo. Durante a década de 1990, o grupo Globo foi um dos pioneiros na TV paga brasileira ao abrir a programadora Globosat e participar da formação das operadoras Net e Sky. No ano de 1998, criou a Globo Filmes, que participa da produção de películas nacionais. Em 2000, pôs no ar o portal Globo.com. Já em 2011, o grupo lançou seu primeiro serviço de streaming: chamado Muu, ele foi substituído em 2014

11 pelo Globosat Play (NOTÍCIAS DA TV, 15 mai. 2014). A Globosat desenvolveu ainda outras plataformas, como Combate Play, Philos, Premiere Play e Telecine Play. O primeiro serviço de streaming criado dentro da TV aberta Globo foi Globo.tv+, lançado em 2012 e encerrado em 2015, quando nasceu o Globoplay. O sucesso na televisão aberta e a expansão para outras plataformas ajudam a explicar a manutenção da liderança do grupo Globo no mercado brasileiro de comunicação ao longo das últimas décadas. Essa expansão está, inclusive, em sintonia com o fenômeno apontado por Anderson (2006) de dispersão da audiência, fenômeno esse provocado justamente pela ampliação da quantidade de opções de informação e entretenimento que disputam a atenção do público.

3 ANÁLISE E DISCUSSÃO

Conforme dito anteriormente, o Globoplay surgiu depois de algumas iniciativas anteriores do grupo Globo no campo do over-the-top. Tudo começou na Globosat, que, em 2011, lançou o Muu. Já a TV Globo, aberta, lançou o seu primeiro OTT em 2012, chamado Globo.tv+. O Globoplay começou a ser disponibilizado no dia 3 de novembro de 2015 justamente em substituição ao Globo.tv+. Consolidou-se, assim, a possibilidade do telespectador da emissora assistir aos seus programas favoritos através do streaming por meio de computadores, smartphones, tablets e smarTVs com qualidade 4K (, 27 out. 2015). Desde que começou, o Globoplay adotou um modelo de negócio híbrido. Ao mesmo tempo em que cobra mensalidade daqueles que desejam ter acesso a todo o catálogo da plataforma, ele permite que uma parte dos seus conteúdos seja acessada de graça pelos espectadores, que, em contrapartida, são obrigados a ver também alguns anúncios. O Globoplay, portanto, combina os modelos SVoD, mantido através de assinaturas, e AVoD, financiado por anunciantes. Vale destacar que o AVoD tem enorme semelhança com o modelo que historicamente sustenta a Rede Globo, sendo esse mais um elo de ligação entre o serviço não linear (streaming) e a operação linear (TV aberta).

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O acesso gratuito a parte do conteúdo também pode ser encarado como uma espécie de degustação, pois ajuda a divulgar o catálogo completo e a atrair novos assinantes em potencial. Essa estratégia tem sido fortemente potencializada pelo uso que a Globo faz da sua programação em sinal aberto para divulgar o Globoplay, lançando mão de ações crossmedia. Isso se intensificou a partir de 2018, quando o Globoplay foi relançado. Além dos intervalos comerciais, o Globoplay passou a entrar também no conteúdo dos programas da Rede Globo. Desde 2018, a emissora exibe esporadicamente na sessão Tela quente os capítulos iniciais de séries oferecidas integralmente em sua plataforma de streaming. Essa estratégia se mostrou eficaz, por exemplo, quando os dois primeiros episódios da série The good doctor foram ao ar. Com eles, a Tela quente registrou sua melhor audiência desde janeiro de 2012 (RICCO, 13 abr. 2019). Séries nacionais produzidas com foco no Globoplay, como Assédio, Marielle – O Documentário e Ilha de ferro, também foram exibidas primeiramente em TV aberta. Seguindo essa linha, estreou, em novembro de 2019, a Sessão Globoplay, exibindo, nas noites de sexta-feira, episódios de séries internacionais que integram o catálogo da plataforma. Whiskey cavalier (Jogo de espiões), série estadunidense que teve apenas uma temporada, foi a escolhida para estrear a Sessão Globoplay. As atitudes tomadas pela Globo com vistas ao seu fortalecimento no mundo digital foram muito além da política de preços e de comunicação. Em setembro de 2018, o grupo iniciou o processo de unificação de várias de suas unidades de negócio. Esse projeto, batizado de UmaSóGlobo, envolveu TV Globo, Globosat, Som Livre, Globo.com, Globoplay e DGCorp. Ficaram de fora a , que manteve uma gestão independente, e o Sistema Globo de Rádio, que continuou sendo comandado por Marcelo Soares, mesmo executivo que lidera a Som Livre (GRUPO GLOBO, 8 nov. 2019). Entre os benefícios visados com essa reestruturação, estão a redução de despesas e a reunião de todos os conteúdos produzidos pelas várias empresas da Globo, dando maior fôlego para o grupo concorrer com gigantes internacionais como Amazon, com seu serviço Prime Video, e Netflix, que chegou ao Brasil em 2011 e tem o país como seu terceiro maior mercado, atrás apenas dos Estados Unidos e do Reino Unido (ARIENS, 12 ago. 2019). No dia 31 de março de 2020, a

13 plataforma de Reed Hastings tinha 34,3 milhões de usuários pagantes e receita de 793,5 milhões de dólares na América Latina (NETFLIX, 21 abr. 2020). Também com o objetivo de se preparar melhor para a crescente concorrência não linear, a Globo anunciou o investimento de 4,2 bilhões de reais anuais com produção de entretenimento e 1,1 bilhão de reais por ano com a compra de equipamentos e softwares (PADIGLIONE, 9 ago. 2019). Todos esses recursos se somaram às mudanças que já vinham sendo executadas no campo artístico, como, por exemplo, a ampliação do volume e da rotatividade de seriados, gênero muito valorizado pelos consumidores de serviços de streaming. Títulos como A grande família, que permaneceu 14 temporadas consecutivas no ar, deram lugar a séries menores, numa tentativa de trazer mais dinamismo para a luta pela atenção do telespectador. Isso exigiu, inclusive, a expansão da infraestrutura da emissora. Os Estúdios Globo, anteriormente conhecidos como Projac, ganharam, em agosto de 2019, um novo bloco chamado MG4. Ele reúne três estúdios que, juntos, ocupam uma área de 26 mil metros quadrados e representam um investimento superior a 200 milhões de reais (CARRO, 2019). Dessa forma, Globo poderá aumentar significativamente a sua capacidade de produção e se posicionar como uma empresa de mídia capaz de competir também no mercado digital representado pelo OTT. Em outras palavras: a Globo terá melhores condições para se firmar como uma verdadeira mediatech. Outro benefício em potencial para a emissora com essa expansão seria o reforço nas vendas internacionais, ampliando a exportação para outros países além dos que já compram muitos dos seus conteúdos, como Angola, Estados Unidos, México e Portugal (ARIENS, 12 ago. 2019). O conteúdo original brasileiro, é, sem dúvida, um importante diferencial da Globo na luta que trava contra a Netflix e outras gigantes internacionais. Essas produções nacionais, feitas a partir de um profundo conhecimento do gosto local, possuem grande força de atração sobre os telespectadores brasileiros, conforme comprovam os índices de audiência que a emissora registra há várias décadas. Não por acaso, a Globo decidiu, desde o começo, que não venderia nenhum dos seus programas para a Netflix (ARIENS, 12 ago. 2019).

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Para enfrentar grupos regionais como a Globo e ainda compensar a falta de atrações vindas de majors importantes que decidiram montar seus próprios serviços de OTT (JAIMOVICH, 11 ago. 2019; JARVEY, 8 ago. 2019), a Netflix se viu obrigada a produzir ou comprar mais produções fora dos Estados Unidos, inclusive no Brasil. Estima-se que a Netflix tenha gasto entre 10 e 15 bilhões de dólares em 2019 somente com a compra de direitos de exibição. Tal gasto levou a empresa estadunidense a fechar aquele ano com prejuízo (ARIENS, 12 ago. 2019; JARVEY, 8 ago. 2019). Percebe-se, portanto, que a televisão não linear trouxe maior dinamismo para a televisão linear e vice-versa. A televisão linear emprestou recursos e conteúdos para a televisão não linear. Em contrapartida, a televisão não linear abriu novas opções de consumo para a audiência e ampliou as possibilidades de receita para as produtoras. Por tudo isso, não é à toa que a quantidade de plataformas de OTT cresceu tanto nos últimos anos. No Brasil, já são mais de 50 em funcionamento (ANCINE, 28 mar. 2018).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que alguns possam pensar o contrário, não haverá uma substituição total da TV linear pela TV não linear. Haverá uma coexistência entre esses dois modelos, complementando-se no consumo diário da audiência e atendendo às diferentes expectativas e necessidades surgidas a partir dos avanços tecnológicos. A tecnologia, que exerce influência direta na estrutura de distribuição audiovisual e cria novos padrões de consumo, possibilita o surgimento de novas áreas de atuação e gera um dinamismo constante no mercado, como é possível observar através das diversas estratégias aplicadas pelo grupo Globo para expansão dos seus empreendimentos. O relançamento da Globoplay, com seu modelo híbrido de negócios, o projeto UmaSóGlobo, a expansão da infraestrutura de produção, os investimentos em tecnologia, as campanhas publicitárias, a Sessão Globoplay e demais ações crossmedia executadas pela TV Globo aberta foram algumas das estratégias desenvolvidas pelo grupo Globo na esteira do avanço do streaming.

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Esse plano de expansão, associado ao pioneirismo de ter entrado no mercado de streaming em 2011 e à decisão de não fornecer programas para a Netflix, deu à TV Globo as condições de que precisava para reforçar a sua posição de liderança no mercado e focar na produção de conteúdo nacional, que é sua maior especialidade. A Globo, enquanto empresa brasileira de mídia, realiza programas de sucesso há muito mais tempo que empresas estrangeiras de tecnologia como a Netflix, que, para competir no mercado nacional, precisou rapidamente partir para a compra de atrações de terceiros ou mesmo para a produção própria em larga escala, procurando, assim, alcançar o elevado nível de qualidade que promete entregar ao público. Enquanto a Netflix precisa se desenvolver mais no quesito conteúdo, a Globo pode pensar mais em tecnologia, pois ela já possui largo conhecimento e portfólio no campo artístico, em consonância com o gosto da massa brasileira. O grupo Globo, portanto, possui grandes chances de continuar sendo bem sucedido na corrida pela audiência. Os resultados analisados durante a presente pesquisa indicam que as demais emissoras brasileiras devem, assim como faz a Globo, aproximar as características já consolidadas pela TV linear ao modelo do streaming. Também devem continuar a apostar na publicidade como fonte de receita, mas combiná- la com outros modelos de negócio que permitam ao streaming gerar os seus próprios ganhos de forma direta. Por fim, entende-se que é possível uma empresa tradicional de comunicação manter sua posição de destaque mesmo diante de uma gigante tecnológica e de outros players digitais que venham a surgir. A tendência, inclusive, é que novos serviços audiovisuais continuem a nascer. Será isso que permitirá a renovação do setor. É essencial que as grandes produtoras de conteúdo encarem esse contexto com criatividade, aproveitando as grandes vantagens que já dispõem: suas marcas, seus próprios conteúdos nacionais e a longa relação de confiança que estabeleceram com o público.

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REFERÊNCIAS

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