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A TV Globo e os fluxos de comunicação∗

Sergio Denicoli dos Santos 2005

Índice promover um equilíbrio da produção e circu- lação de informação entre as nações. 1 Introdução 1 Num movimento nitidamente contrário à 2 O mundo imperializado 2 tendência criticada pela UNESCO, a Rede 3 A TV Globo e as : , por meio da televisão, trabalhava contra-fluxo 6 um know-how adquirido do grupo norte- 4 Jornalismo da TV Globo 9 americano Time-Life, e criava um padrão de 5 A rede Globo hoje 12 qualidade comercial e de produção, conse- 6 Conclusão 14 guindo abrir dessa forma as portas do mer- 7 Bibliografia 15 cado internacional para programas feitos no Brasil, tendo como principal oferta as tele- 1 Introdução novelas. Ao mesmo tempo a emissora apostava no Este estudo foi desenvolvido no âmbito da jornalismo com a expansão da cobertura in- disciplina Políticas da Comunicação, do ternacional própria, não exclusivamente de- mestrado em Informação e Jornalismo, da pendente das agências de notícias dos países Universidade do Minho, em Braga, Portugal. do norte. O objetivo é perceber, a partir de meados Criou-se assim uma grade de programação década de 60, o que levou a TV Globo a de- que intercalava como âncoras os programas senvolver um fluxo de comunicação inverso feitos pela própria empresa, baseados na te- aos padrões da época. Naquele período já ledramaturgia e nos noticiários, garantindo eram embrionárias as análises que assegu- altos índices de audiência. ravam que o hemisfério norte era o grande A TV Globo completou, em 2005, 40 anos emissor de informação consumida pelo he- de existência. Nessa trajetória ela acumulou misfério sul. Isso viria a ser confirmado de- críticas sobre o comportamento político do pois por estudos da UNESCO, que publicou, grupo na qual está inserida, sobre a visão so- em 1980, um relatório que analisava as assi- cial impregnada em sua programação, mas metrias de fluxo e pregava a necessidade de ao mesmo tempo comprovou ser uma grande ∗Trabalho referente à disciplina Políticas da Co- divulgadora do Brasil, tendo exibido sua pro- municação do Mestrado em Informação e Jornalismo, gramação em todos os continentes. Universidade do Minho. Não cabe aqui analisar se o que a Globo 2 Sergio Denicoli mostrou ou mostra em suas produções cor- presentações coletivas como as leis, o sis- responde ou não fielmente à organização da tema educacional, a religião, a arte e a litera- sociedade e culturas brasileiras. Nas páginas tura. Outra, com ênfase em estudos de Max a seguir procura-se avaliar os motivos que re- Weber, considera a sociedade e, consequen- sultaram na consolidação da TV Globo, os temente a cultura, como resultado das ações meios utilizados para isso e os caminhos tri- dos indivíduos. lhados pela emissora na complexa rede inter- Os marxistas avaliam que a cultura é de- nacional de fluxos de comunicação. terminada por forças e relações de produção. Para os seguidores dessa linha, a cultura seria 2 O mundo imperializado contaminada por uma estrutura capitalista, onde uma elite detentora de capital determi- A principal base deste estudo deriva do con- naria a produção cultural. ceito de cultura. Como o termo possui diver- Tal conceito foi amplamente estudado na sas interpretações, torna-se necessária uma Escola de Frankfurt. E foram justamente breve análise de estudos que serviram e ser- dois teóricos dessa escola que criaram uma vem como base às interpretações sobre o tese que dominaria os estudos sobre cultura fenômeno. Toma-se aqui como referência as mais analisados durante o período em que conclusões de Isabel Ferin (FERIN, 2002). se desenvolvem as primeiras teorias de flu- Da antiguidade clássica à idade Média, xos de comunicação, imperialismo cultural chegando também ao Iluminismo, o conceito etc. Adorno e Horkheimer, no final da dé- de cultura foi definido como o cultivo de ca- cada de 40 criaram o conceito de indústria racterísticas espirituais, da língua, da arte, cultural. MATTELART (2002:66), escreve, das letras e das ciências, muito voltados para sobre o trabalho dos autores: um desenvolvimento das sociedades e dos indivíduos, e isso caracterizaria as respecti- “Analisam a produção industrial de bens vas civilizações. culturais enquanto movimento global de A antropologia define o conceito de cul- produção de cultura como mercadoria. tura como uma forma de classificar os ob- Os produtos culturais, os filmes, os pro- jetos e símbolos das sociedades. Tais estu- gramas radiofónicos e as revistas revelam dos surgiram no final do século XIX e foram a mesma racionalidade técnica, o mesmo influenciados por estudiosos evolucionistas, esquema de organização e planificação como Darwin. da gestão, que os do fabrico de automó- No estruturalismo, a cultura é vista como veis em séria ou dos projectos do urba- uma estrutura que influencia a ordem social, nismo”. que seriam manifestações superficiais inca- pazes de mudar a base profunda que dita as É a cultura padronizada, feita em série, regras das manifestações de âmbito cultural. transformada em mercadoria. É a crítica Na sociologia há duas importantes ver- da associação da cultura à evolução tecnoló- tentes básicas. Uma delas, onde se destaca gica. Dessa crítica surgem estudos que res- Émile Durkhein, defende que as estruturas saltam positivamente o que seria o acesso dominam o agir individual e seriam elas re- das massas à cultura, numa corrente dos

www.bocc.ubi.pt A TV Globo e os fluxos de comunicação 3 chamados Integrados. Surge também a nalização dos sistemas de comunicações e corrente dos textitApocalípticos, que vêem conduz as análises para uma nova esfera. nessa mercantilização uma ameaça à cultura De acordo com MATTELART (1991), e à democracia. (FERIN, 2002) uma das primeiras iniciativas para a dis- O fato era que a visão de cultura havia cussão da soberania dos países diante do sur- sido influenciada pelo movimento tecnoló- gimento do satélite - que tornava possível gico que surge a partir da industrialização uma transmissão mundial sem a necessidade da Europa ocidental capitalista. Segundo de uma rede de retransmissão terrestre – par- BRETON & PROULX (1997) isso acontece tiu da União Soviética, em 1972, durante quando a ideia de sociedade de massas se ex- a 27a assembleia geral da ONU. Os Esta- pande junto com o crescimento da urbani- dos Unidos sempre se opuseram à ideia de zação, a expansão dos meios de transporte, se promover esse controle, numa explícita e de comunicações e o aparecimento dos mo- então comum adversidade entre o mundo do vimentos da classe trabalhadora, mais nota- leste, socialista, e o mundo do oeste, capi- damente a partir do século XIX. Era uma or- talista. Enquanto o oeste queria avançar em dem ligada à uma burguesia industrial capi- sua propaganda, pregando o livre fluxo de in- talista. formações, o leste queria evitar que ela che- Discursos sobre dominadores e domina- gasse às suas áreas de influência. dos, esquerda e direita, comunismo e capi- Intensificam-se os estudos sobre os flu- talismo, englobam os media e situam as co- xos comerciais dos produtos culturais entre municações num contexto político e ideoló- as nações e sobre o imperialismo. Herbert gico marcado, sobretudo, pela Guerra Fria. É Schiller cria o conceito de “imperialismo uma época onde circulam publicações apai- cultural”: xonadas que funcionam como propaganda política considerada subversiva por uns e “O conjunto de processos pelos quais libertadora por outros, de acordo com a uma sociedade é introduzida no seio do ideologia dominante, mas que discutiam as sistema moderno mundial e a maneira diferenças entre as classes e as socieda- como a sua camada dirigente é levada, des. Termos como “dependência do terceiro pelo fascínio, a pressão, a força ou a mundo”, “nações subdesenvolvidas”, “face corrupção, a modelar as instituições so- imperialista do desenvolvimento do capita- ciais para que correspondam aos valores lismo”1 ajudaram a acirrar os debates. Além e às estruturas do centro dominante do disso, a tecnologia que permite a internacio- sistema ou a tornar-se no seu produtor”. (SCHILLER, 1976 apud MATTELART 1 HARNECKER & URIBE [S. 1.: s.n., s.d.]. O li- & MATTELART, 2002) vro de 63 páginas e em formato de bolso circulou em Portugal traduzido e adaptado por uma equipe de tra- balho (segundo consta na obra) que não se identificou, GALTUNG (1977) escreve que o mundo utilizando apenas o pseudónimo “Maria José”, o que é formado por nações de Centro e de Perife- retrata bem como circulavam as obras que naquela ria. O autor diz que essa relação acontece época eram consideradas subversivas. quando nações Centro emitem influências para as nações Periferia, resultando em be- www.bocc.ubi.pt 4 Sergio Denicoli nefício para ambas. Nessa relação a Perife- imperializada. Galtung afirma que o passo ria oferece, por exemplo, matérias-primas, e seguinte então é o imperialismo cultural. o Centro os bens de consumo. Isso torna-se Para TOMLINSON (1991) o imperia- um ciclo, no qual diversos tipos de imperia- lismo cultural é o domínio de uma cultura lismo criam condições para que possam se que se impõe sobre outra. Ele cita estu- instalar como consequência uns dos outros. dos da Unesco que estimam que “more than Ele lista cinco tipos de imperialismo: econô- two thirds of printed materials are produced mico, político, militar, das comunicações e en English, Russian, Spanish, German and cultural. O imperialismo das comunicações French”. Isso apesar de, segundo o autor, leva, põe exemplo, ao imperialismo cultu- existirem no mundo cerca de 500 linguagens ral, pois o Centro controla o fluxo de infor- escritas e 3 mil 500 verbais, o que configu- mações. raria um exemplo da força do imperialismo Para o autor, as condições de imperialismo cultural. surgiram a partir do momento em que as Uma outra obra de destaque é do brasi- nações Centro ocuparam fisicamente a Pe- leiro Paulo Freire. Ele aborda a questão da riferia. Com o fim do colonialismo, a inter- invasão cultural como sendo a forma dos in- ação ocorreu por meio de organizações inter- vasores imporem suas visões de mundo, im- nacionais, o que seria classificado como um pedindo o desenvolvimento da criatividade e neocolonialismo, e, segundo ele, era o que a expansão dos invadidos. ocorria na década de 70. Seriam relações sem uma presença física das nações do Cen- “Uma condição básica ao êxito da in- tro na Periferia, mas estabelecidas em âmbito vasão cultural é o convencimento por de organizações que estariam condicionadas parte dos invadidos de sua inferioridade por relações de igualdade, definidas por raça, intrínseca. Como não há nada que não etnia ou nacionalidade, mas que, no entanto, tenha seu contrário, na medida em que os funcionava na prática como um instrumento invasores vão reconhecendo-se inferio- de desarmonia entre os países por serem eles res, necessariamente irão reconhecendo a desequilibrados em termos de força econô- superioridade dos invasores. Os valores mica. destes passam a ser a pauta dos invadi- Nos anos 70 as agências internacionais de dos. Quanto mais se acentua a invasão, notícias estavam nas mãos dos países Cen- alienando o ser da cultura e o ser dos in- tro, o que, para Galtung, levou à formação vadidos, mais estes quererão parecer com de jornalistas observadores de notícias sob o aqueles: andar como aqueles, vestir à sua ponto de vista do Centro, mesmo que fos- maneira, falar a seu modo”. (FREIRE, sem elas da Periferia. Isso causou ainda ou- 1975) tro impacto: a Periferia consumia mais notí- cias sobre o que, aos olhos dela, era a parte Argentina, Chile e Venezuela também se mais importante do mundo, ou seja, o cen- voltam para análises sobre os media, obser- tro de imperialização de determinada nação vando, principalmente, a influência dos Esta- era mais lido, visto e comentado pela nação dos Unidos nos meios de comunicação. A América Latina desponta como grande gera-

www.bocc.ubi.pt A TV Globo e os fluxos de comunicação 5 dora desses estudos porque, de acordo com Reuters, e as norte-americanas Press (AP) e MATTELART (1991) a United Press International (UPI).

“Enquanto a Europa Ocidental se encon- A UNESCO torna-se o “local principal trava ainda, na sua totalidade, sob o re- de uma confrontação na qual se casavam gime do serviço e do monopólio públi- duas bipolaridades: o Norte contra o Sul, cos, os países latino-americanos, numa o Leste contra o Oeste, a segunda sobre- esmagadora maioria, viviam já, desde determinando a primeira. O Leste conse- há anos, sob o signo da pressão publi- guiu, habilmente, fundir a sua posição e citária, das lógicas de concorrência, e da a sua doutrina sobre a responsabilidade e internacionalização de sua programação, a intervenção do Estado na defesa da so- considerando-se, no entanto, subinfor- berania nacional com aquela dos países mados”. do terceiro mundo lutando pela sua auto- É quando a produção intelectual do cha- determinação cultural”. (MATTELART, mado terceiro mundo se torna intensa que os 1991) debates sobre os fluxos de comunicação gan- ham ainda mais peso nos organismos inter- Configurou-se um debate mais fortemente nacionais. ligado às questões entre norte e sul, que Para MATTELART (1991), tais debates culminou com um relatório publicado em foram influenciados por pressões dos cha- 1980 pela Comissão Internacional para o mados países não alinhados, que se reúnem Estudo dos Problemas da Comunicação, da em 1973, em Argel, e propõem uma “nova UNESCO, presidida então pelo fundador da ordem económica mundial”, visando equili- Anistia Internacional e ganhador do Prêmio brar as disparidades entre os países desen- Nobel da Paz, o irlandês Sean McBride. O volvidos e os países em desenvolvimento. Relatório Mc Bride falava dos desequilíbrios A proposta é homologada pela Assembléia de fluxos de comunicação entre os países de- Geral da ONU, em 1974. A ONU estabe- senvolvidos e os países em desenvolvimento: lece então um calendário de ações visando industrializar os países em desenvolvimento. “L’application du principe de la libre cir- A tentativa de se implementar essa nova or- culation a eu comme résultat pour des dem econômica engloba também as comu- raisons expliquées plus haut, une cir- nicações. Em 1977 a UNESCO cria a Co- culation déséquilibrée, appelée circula- missão Internacional para o Estudo dos Pro- tion à sens unique: un courant de nou- blemas da Comunicação e, em 1978, incor- velles, données, messages, programmes, pora em seus programas a ideia de “uma produits culturels, qui va presque exclu- nova ordem internacional da comunicação” sivement des grands pays vers les petits, (NOMIC). O principal alvo são as agências de ceux qui détiennent le pouvoir et les de notícias mundiais, que detinham 80% da moyens techniques vers ceux qui en sont trasnmissão de informações no planeta. Es- privés, des pays développés aux pays en sas agências eram, fundamentalmente, as eu- devéloppement”. (McBRIDE, 1980) ropéias France Presse (AFP) e a britânica www.bocc.ubi.pt 6 Sergio Denicoli

O Relatório propunha alternativas para um dos estava formado para além das fronteiras equilíbrio da circulação dos fluxos de co- norte-sul, reclamadas pela UNESCO. municação, mas foi criticado tanto pela di- reita quanto pela esquerda. “Devido nomea- “Em 1994, segundo o IDATE (Instituto damente às suas declarações polémicas bem de Investigação do Audiovisual e das Te- como ao caráter demasiado geral de muitas lecomunicações), os Estados Unidos ex- das suas análises” (BRETON & PROULX, portaram, para cima de 4 mil milhões de 1997). No entanto o estudo foi um marco dólares em filmes e “produtos” televisi- para os países mais pobres. Essas nações di- vos, para a Europa e em troca apenas im- ziam que as grandes agências modificavam portaram um valor de aproximadamente os conceitos culturais de seus países. 350 milhões de dólares. Aliás, é ne- Os Estados Unidos reagiram mal às críti- cessário que se saiba que 90 por cento das cas da UNESCO e, em 1984, deixaram de obras europeias não ultrapassam as fron- fazer parte da Organização.2 teiras de origem”. (JEANNENEY, 2003) Aliás, a essa altura, a influência norte americana nos media já operava em caráter Na América Latina, esse fluxo esta- mundial, não só englobando os países em ria sendo quebrado pela Rede Globo, um desenvolvimento. Segundo BRETON & grupo Brasileiro que utilizou a lógica norte- PROULX (1997), “os países com infra- americana e conseguiu expandir sua influên- estruturas culturais mais pobres” não eram cia para além das fronteiras do Brasil. os únicos a importar maciçamente os produ- tos americanos. Na Europa ocidental a in- 3 A TV Globo e as telenovelas: o fluência “aculturante” das empresas de co- contra-fluxo municação estrangeiras era um movimento intenso. Portanto, vê-se que a expansão im- A Rede Globo de Televisão entrou no ar em perialista não atingiu somente os países eco- 26 de Abril de 1965, 15 anos após o surgi- nomicamente mais fracos, mas infiltrou-se mento da televisão no Brasil. Naquela época também nas nações europeias, berço da ci- o país passava por um período de mudança vilização ocidental. política. Um recente golpe militar, ocorrido SCHILLER (1983), analisando aquela em 1964, e apoiado pelos Estados Unidos, época, diz que “la transformación a escala inaugurava uma nova era da história brasi- mundial está siendo activada por un conjunto leira que se refletiria também nas comuni- complejo de presiones, iniciativas y exigên- cações. cias surgidas de avances técnicos naciona- O golpe militar foi a saída encontrada les localizados en unas pocas zonas clave de pelos grupos internacionais para frearem o la industria occidental de las cuales es Nor- nacionalismo que crescia no Brasil. teamérica”. O domínio mediático dos Estados Uni- “A vitória de muitos candidatos popula- res, inclusive com a conquista de execu- 2 SOUSA, Helena – Comunicação pessoal. Braga. Portugal: Universidade do Minho, 2005. tivos estaduais, exigiria do imperialismo uma decisão drástica: liquidar o regime

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brasileiro por um golpe militar, estabe- privilegiada sobre métodos de gestão no lecendo o único regime em que desapa- sector televisivo”. (SOUSA, 1999) recem as resistências legais aos seus in- teresses e em que se torna expressamente O contrato Globo-Time Life torna-se um difícil esclarecer e mobilizar o povo”. escândalo político quando o senador João (SODRÉ, 1999) Calmon organiza a realização de um Co- missão Parlamentar de Inquérito para inves- De acordo com o autor, logo após o golpe, tigar as ligações ilegais entre a empresa e os meios de comunicação que faziam opo- o grupo norte-americano. A CPI concluiu sição ou feriam os interesses do regime fo- que a transação era ilegal, conforme conclui ram fechados e, além de utilizar a força das MELO (1988). Para ele, agências de notícias internacionais, a im- prensa estrangeira se instalou no Brasil colo- “O governo federal (gestão do Marechal cando em circulação revistas e jornais finan- Castelo Branco) fez inicialmente vistas ciados com dinheiro norte-americano, por grossas para o negócio em vigor, não meio de “testas-de-ferro”, já que a Constitu- tomando nenhuma medida coercitiva, o ição do país só permitia a grupos brasileiros que viria a ocorrer somente no governo a possibilidade de possuir um meio de comu- seguinte (gestão do Marechal Costa e nicação. Silva), que pressionou a empresa a des- A concessão da Globo havia sido outor- fazer o contrato com a Time-Life. Na gada em 1957 pelo governo federal e em verdade, o contrato entre a TV Globo e 1962, quando o golpe militar já se configu- a Time-Life Incorporated vigorou entre rava nos bastidores políticos, os detentores 1962 e 1969, tendo a empresa brasileira da comissão assinam, em Nova Iorque, con- terminado de saldar sua dívida com a or- tratos com o grupo norte-americano Time- ganização norte-americana somente em Life.(MELO, 1988)3 1975, completando assim o processo de nacionalização, sob a pressão e a égide “A implementação e a rápida expansão do governo militar”. da rede Globo, no Brasil, foram via- bilizadas pela transferência de capital e Melo refere-se que o fim do contrato com know-how do grupo Americano Time- o grupo estrangeiro deu-se não pela pressão Life para aquela empresa. Nos anos 60, do governo militar, mas pelo próprio desin- foram assinados dois contratos entre a teresse da Time-Lime. Time-Life e a Globo que se transforma- O rompimento com a Time-Life ocorreu ram em instrumentos fundamentais para porque o grupo multinacional precisou rever a empresa brasileira, porque lhe garanti- a sua estratégia na América Latina. “Os ame- ram financiamento e acesso a informação ricanos saíram do negócio com prejuízo, da 3 A obra foi escrita pelo autor por encomenda da mesma forma que também saíram das ope- UNESCO, e contém mais detalhes sobre a formação rações que haviam tentado implementar na da Globo que não eram objeto de estudo neste artigo, Venezuela, no Peru e na Argentina” (RE- mas que podem servir de aprofundamento para quem tiver interesse no tema. BOUÇAS, 2005). Ou seja, o governo militar www.bocc.ubi.pt 8 Sergio Denicoli não interveio diretamente no acordo, o que e Nova Zelândia. Faziam imenso sucesso pode levar a uma interpretação das pressões na Europa, sobretudo em Portugal. No do Marechal Costa e Silva como um proto- final dos anos 80, as produções da Globo colo governamental e não como uma pressão já eram exibidas em 128 países de todos real que tinha o intuito de realmente romper os continentes. E a lógica que a emissora o contrato. utilizava para entrar nos mercados inter- Para MELO (1988), quando o acordo nacionais era a mesma usada pelas empresas chega ao fim todo o know-how norte- cinematográficas dos Estados Unidos, deter- americano estava presente na estrutura da minando preços de acordo com os potenciais Globo, desde a planta do edifício-sede da mercados, mas em valores inviáveis para a emissora ao padrão de produção. Até mesmo concorrência. (MELO, 1988) pesquisas eram realizadas – uma coisa pouco BORELLI (2005) lembra que na verdade usual na época para avaliar programas de o mercado de telenovelas brasileiras foi inau- televisão. Com o conhecimento adquirido gurado pela hoje extinta TV Tupi, do grupo a emissora investe cada vez mais em pro- Diários Associados, criado por Assis Cha- duções próprias de teledramaturgia e jorna- teaubriant, que foi o empresário que implan- lismo e intercala essas produções com pro- tou a televisão no Brasil. A Tupi produziu gramas estrangeiros, numa grade de pro- e exibiu a primeira brasileira, em gramação que se mantém até hoje. 1951, escrita por Walter Foster e intitulada A força da emissora foi somada à força das Sua Vida Me Pertence. Anos mais tarde, em demais companhias do , que em 1969, a Tupi exportaria pela primeira vez 1988 já tinha cerca de 100 empresas, entre uma telenovela, levando a obra Beto Rock- elas “fábricas de bicicleta, firmas de micro- feller, para o mercado externo. A Globo ent- eletrônica, indústria de móveis, fazendas de rou nesse mercado mundial em 1970, export- gado na Amazónia, além das conhecidas pro- ando os direitos de emissão de Véu de Noiva. dutoras de , revistas, jornais, rádio e Em 1976 a Rede criou um setor para a co- televisão.” (MELO, 1988) mercialização internacional de seus produ- Com capital acumulado a empresa volta- tos, entrando inicialmente na América La- se também para o mercado externo, comer- tina, tendo a obra O Bem Amado sido exi- cializando sobretudo telenovelas, mas tam- bida em 17 países. Depois a RTP, emis- bém séries e musicais, divulgando a cultura sora pública de Portugal, comprou os direi- e as tradições brasileiras. tos de exibição de Gabriela e a novela fez Não havia fronteiras políticas para um enorme sucesso no país. as telenovelas da Globo, e a emissora A partir dessas duas produções de grande movimentava-se num sentido contrário audiência fora do Brasil a Globo ampliaria aos fluxos de comunicação discutidos pela cada vez mais seu alcance, participando sem- UNESCO. Melo escreve que as produções pre de feiras internacionais de televisão e da Globo ultrapassaram a Cortina de Ferro, ganhando credibilidade quanto à qualidade obtendo audiência na Hungria e na Polónia. de suas produções, segundo narra BRITTOS Chegaram à China Popular, Africa, Oriente (2005). Era o resultado de um produto tele- Médio, Cuba, União Soviética, Austrália visivo que já tinha absoluto sucesso no Bra-

www.bocc.ubi.pt A TV Globo e os fluxos de comunicação 9 sil, conhecido pela população antes mesmo 4 Jornalismo da TV Globo do advento da televisão. Desde o século XIX e com mais intensi- BORELLI (2005) conclui: dade no século XX as agências de notícias “Tradicional na história das mídias, a ori- internacionais da Europa e dos Estados Un- gem das telenovelas pode ser atribuída idos dominam o cenário do fluxo de notí- aos folhetins publicados pela imprensa cias. Mas um fator tecnológico muito im- do século XIX, às radionovelas que ga- portante na história das comunicações seria nharam força em toda a história do rádio utilizado amplamente pela Rede Globo para, no Brasil e na América Latina e, também, como ocorreu com as telenovelas, se posi- às soap operas norte-americanas, que até cionar num fluxo inverso de comunicações hoje compõem as grades de TVs e o ima- mundiais, só que dessa vez em relação ao no- ginário dos receptores”. ticiário internacional: o satélite. O telejornalismo existe na Globo desde a Sílvia Borelli destaca também que as tele- sua inauguração, em 1965. Em 1969, quando 4 novelas da Globo, mesmo tendo sido origi- a emissora coloca no ar o , nadas de um gênero universal, possuem ca- já havia sido transmitido ao vivo pelo canal 5 racterísticas próprias que difundem a cultura a enchente do em 1966 , o brasileira e que mudaram com o passar dos lançamento da Apolo 9 e a chegada do ho- anos. A pesquisadora destaca que nos anos mem à Lua. 50 e 60 as telenovelas no Brasil estavam mais 4 O Jornal Nacional é o principal telejornal da TV próximas do género original, com tendência Globo. É exibido de segunda a sábado, das 20h15 as para o dramalhão e com pouca diferenciação 21h00. Situa-se, na programação, entre duas teleno- em relação às produções de outros países la- velas e é campeão de audiência. Mas a Globo exibe hoje também os telejornais: Globo Rural, Bom Dia tinos. Ela diz que era um campo ainda ama- Brasil, , Globo Esporte, , dor, de pessoas que ainda não conheciam Fantástico, Globo Repórter, Auto Esporte e Esporte muito bem o novo veículo em que estavam Espetacular, além de quatro edições regionais diárias a trabalhar e que tinham raízes profissionais nos estados, sendo uma delas esportiva. O jornalismo da TV Globo esporadicamente está presente também em rádio e cinema. Já no final dos anos 60 nos programas Domingão do Faustão e Mais Você. A e nos anos 70 a telenovela brasileira se pro- Rede Globo mantém ainda a Globo News, um canal a fissionaliza, muito também devido à tecno- cabo que exibe 24 horas diárias de notícias. logia, com o advento de cores, do vídeo tape 5 Para MELO (1988), a enchente de 1966 foi um e da possibilidade de uma programação em marco da TV Globo na conquista pela liderança da audiência. Ele cita que a emissora colocou câmeras rede nacional. Isso influencia o conteúdo das a filmar as ruas ininterruptamente, cobrindo, ao vivo, tramas que se voltam para as realidades bra- a destruição causada pelas chuvas e a desolação da sileiras, passando a divulgar as ideologias do população atingida. Ao mesmo tempo fez uma cam- país e suas culturas. panha de solidariedade às vítimas que mobilizou a ci- Mas a Globo avançava não só no campo dade do Rio de Janeiro. As pessoas levavam donati- vos à sede da Globo e, dessa forma, a emissora teria da ficção. A realidade retratada no telejorna- ganhado a simpatia da população e alavancado a sua lismo também adquiria marcas próprias. audiência.

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O projeto MEMÓRIA GLOBO (2004) re- velando uma vocação que segue até os dias gistra que o lançamento da Apolo 9 foi a pri- de hoje. E a censura imposta pelo governo meira emissão ao vivo da Globo via satélite. brasileiro fortaleceria ainda mais o peso das Antes essa tecnologia havia sido inaugurada informações vindas de outros países, mesmo com a transmissão a partir de Roma de uma porque a censura restringia a margem de tra- entrevista exclusiva com o Papa Paulo VI, balho com as notícias do Brasil, deixando feita pelo jornalista Hilton Gomes, no dia an- por vezes buracos na programação. “Os terior ao que foi ao ar. jornais investiam no noticiário internacional Foi justamente a tecnologia da trans- como forma de despistar a censura.9 missão à distância que possibilitou à Globo Assim, o Jornal Nacional, decide fortale- pensar um jornal que unisse os estados do cer o jornalismo internacional e investe na Brasil numa transmissão em rede. Somou-se formação de correspondentes, que represen- a isso a obsessão dos governos militares de tariam a presença da emissora nos respec- mostrarem o Brasil como um país desenvol- tivos países onde a Globo decidiu instalar vido. Assim surge o Jornal Nacional. sua estrutura. Inicialmente a Globo enviava O ex-diretor da Globo, José Bonifácio de repórteres ao exterior esporadicamente, ou Oliveira Sobrinho revelou6: “Os militares utilizava jornalistas brasileiros que já viviam queriam mostrar que o Brasil era um país fora do país, caso ocorresse algo importante. de primeiro mundo e montaram a Embratel7. “A presença dos correspondentes nos locais Nós imaginamos que a primeira utilização onde se davam os fatos conferia mais vera- óbvia dos enlaces de microondas seria o jor- cidade à notícia que o mero uso do mate- nalismo”. rial das agências internacionais. Eles perso- A primeira edição do Jornal Nacional já nalizavam as notícias, tinham a visão brasi- exibia um forte noticiário internacional8, re- leira, sabiam o que era de interesse nacio- nal”. (MEMÓRIA GLOBO 2004) 6Apud MEMÓRIA GLOBO, 2003 7 No site da Embratel – www.embratel.com.br, O Memória Globo relata ainda que as acessado no dia 13 de Junho de 2005, consta que a transmissões internacionais fizeram muito empresa foi criada em 1965. Na época ela era estatal sucesso e a Globo decidiu instalar escritórios e coordenava as telecomunicações brasileiras. No dia fora do Brasil. O primeiro foi em Nova Ior- 28 de Fevereiro de 1969 a Embratel inaugurou a pri- que, em 1973. Em 1974 foi montado um meira estação de comunicação via satélite do Brasil e gradativamente foi montando uma rede nacional de escritório em Londres e, em 1977 em Pa- telecomunicações, que hoje abrange todos os estados ris, Buenos Aires e em Colónia, na Ale- do país. manha.10 Em 1982 foi inaugurado o segundo 8A edição mostrou: “A morte do campeão mun- dial dos peso-pesados, Rocky Marciano e do comen- de mais de 50 países se preparavam para disputar o tarista norte-americano Drew Pearson, conhecido no título de Miss Beleza Internacional. Pilotos de linhas Brasil pela coluna que assinava na revista O Cruzeiro. aéreas ameaçavam greve geral se a ONU não tomasse Na líbia, um golpe militar derrubou o príncipe Hassan medidas efetivas em relação ao sequestro de um avião Al Rida. Imagens da agência Visnews mostravam a norte-americano.(MEMORIA GLOBO, 2004:24,25) chegada ao Paquistão de uma caravana de chineses, 9ALVES, Rosental Calmon – Comunicação pes- montados em camelos, comemorando a reabertura da soal. Braga, Portugal, 2005 (Entrevista exploratória) Rota da Seda, fechada desde 1959. No Japão, moças 10 O escritório na Alemanha hoje está fechado. Isso

www.bocc.ubi.pt A TV Globo e os fluxos de comunicação 11 escritório nos Estados Unidos, em Washing- estrangeiras, segundo o ponto de vista de- ton. A Globo se instalou ainda em Roma e, a las”.12 partir de 2004 decidiu manter corresponden- Destacam-se, entre as coberturas feitas no tes no Oriente Médio - em Jerusalém, e na exterior, o caso Watergate e a renúncia do China - em Pequim. presidente dos Estados Unidos Richard Ni- A Rede Globo se torna assim uma porta- xon, a Guerra do Yom Kippur e a crise do voz da cultura brasileira no exterior e traz ao petróleo, a Revolução Islâmica liderada pelo país a visão do Brasil sobre os fatos ocorri- aiatolá Khomeini, a Revolução Sandinista dos no resto do mundo. A emissora seguia na Nicarágua, a aproximação do presidente a lógica de uma transmissão sob o ponto de norte-americano Ronald Reagan e do presi- vista brasileiro mesmo que utilizasse algu- dente soviático Mikhail Gorbachev, uma ent- mas imagens ou algumas informações vindas revista exclusiva feita com o líder palesti- das agências de notícias, como é prática até niano Yasser Arafat em 1979, a Guerra Irã- hoje.11 Iraque, uma entrevista exclusiva com Saddan O jornalista da Globo Maurício Kubrusly, Russain em 1981, a Guerra das Malvinas, em uma reportagem especial sobre a cultura a queda do Muro de Berlin, A Guerra do do Brasil, resumiu a política adotada pela Golfo, o fim da União Soviética, a guerra ci- emissora. “A TV exporta a cultura brasileira. vil na Iugoslávia, os atentados do 11 de Se- (. . . ) O jornalismo acompanha e revela o tembro em Nova Iorque, a Guerra no Afe- Brasil e o mundo a partir do ponto de vista ganistão, a invasão do Iraque, os atentados da cultura do país. Se não fosse assim nós de 11 de Março em Madrid. (MEMÓRIA receberíamos informações através das redes GLOBO, 2004) A morte do Papa João Paulo II, também de ocorreu porque no início dos anos 80 a Globo, vi- sando reduzir custos, concentrou em Londres sua pro- grande repercussão jornalística, levou à Itália dução jornalística na Europa, fechando os escritórios o editor e apresentador do Jornal Nacional, na Alemanha e na França, segundo o Memória Globo. Willian Bonner, que apresentou o telejornal Na época foi fechado também o escritório de Bue- ao vivo direto do Vaticano.13 nos Aires, que seria reaberto mais de 20 anos depois, Também merecem destaque as cobertu- como ocorreu com a praça em Paris, em um esquema de reestruturação da cobertura internacional, narrado ras esportivas de eventos como Olimpíadas e por Eduardo Ribeiro. Copa do Mundo de Futebol, quando a emis- 11 ALVES diz que a Globo edita suas reportagens sora desloca centenas de profissionais e rea- internacionais mesclando imagens das agências com outras de produção própria, numa lógica construída 12 Extraído do DVD Jornal Nacional – 35 anos, pelo repórter e pelo seu editor. É uma forma de re- lançado em 2004 pela gravadora . O DVD duzir custos. Ele descreve que a emissora adotou mostra os bastidores do Jornal Nacional, possui ent- o esquema da “mala de 15 mil dólares”. Em uma revistas com profissionais envolvidos na elaboração única mala é possível carregar todo o equipamento, do programa, e contém também 63 reportagens. A que custaria 15 mil dólares, que permite a transmissão matéria de Maurício Kublusly, aqui referida, foi apre- de imagens e voz de exterior para o Brasil. Antes sentada dentro da série Identidade Brasil, que mo- era necessário um grande aparato de equipamentos e strava características da cultura regional brasileira. também um maior número de recursos humanos. A 13 A transmissão ocorreu durante toda a semana em tecnologia nesse caso reduziu custos permitindo a ex- que morreu o Papa João Paulo II. pansão geográfica da cobertura da emissora. www.bocc.ubi.pt 12 Sergio Denicoli liza transmissões a partir dos países onde TV a cabo já ambicionando uma liderança, ocorrem as competições. apostando no setor que, “crescia a uma mé- dia de 4% a 6% por mês em 1997” (DIAS, 5 A rede Globo hoje 2005). Dias relata também que a Globo inves- Completando 40 anos a Rede Globo passa tiu e realmente conseguiu crescer mais que hoje por uma fase crítica devido a inves- os concorrentes, mas a velocidade com que timentos colocados em prática sobretudo promoveu essas inovações impossibilitaram na década de 90, que resultaram em apo- que as contas fossem saldadas. Além disso stas equivocadas. O grupo acumulou uma a desvalorização da moeda brasileira levou enorme dívida, agravada pela crise da eco- a uma alta do dólar, que triplicou as dívidas nomia brasileira de 2000 a 2002. “As contas da Rede. Por outro lado a crise estagnou o globais começaram a despencar, iniciando crescimento do mercado de TV paga. Uma pelas receitas líquidas, que caíram cerca de das saídas foi pressionar o Congresso Nacio- 12%. Em 2001, devido a perdas financeiras e nal para autorizar a entrada de capital estran- a problemas no mercado publicitário o grupo geiro nos media brasileiros. A Emenda Con- teve um prejuízo de cerca de 550 milhões de stitucional 222 foi aprovada e permite que as dólares”. (BAHIA apud MATTOS, 2005) empresas de comunicação tenham até 30% Segundo MATTOS (2005), em 31 de de capital externo. Um caminho que pro- Março de 2002, o balanço publicado mostrou mete redesenhar o mapa empresarial das co- que a dívida das Organizações Globo eram municações no Brasil, abrindo uma porta que de 2,63 bilhões de dólares. 84% desse to- ainda não se sabe que consequências irá ge- tal em moeda estrangeira. Em 2003 três rar. fundos de investimentos dos Estados Uni- A Globo, mesmo atravessando um período dos entraram com uma ação judicial contra a onde precisa reequilibrar as contas, continua Globo, na Corte de Falências do Distrito Sul a constituir um gigantesco império das co- de Nova Iorque. No final de 2004 a Globo municações de caráter global. Informações chegou a um acordo com os credores e está contidas no site da Rede Globo14, revelam o reestruturando o débito. que é o Grupo e o poder que ele detém. De Um dos responsáveis pela crise da Globo acordo com os dados disponibilizadas, a TV foi o setor de TV paga. DIAS (2005) diz Globo chega a 98,84% dos 5 mil e 43 mu- que a Globo era inicialmente contra a in- nicípios brasileiros. Chega também a cerca stalação de canais fechados no Brasil, para de 130 países em todos os continentes. Pos- evitar uma concorrência, no entanto, com o sui 8 mil e 700 funcionários, sendo que 4 mil passar do tempo viu que era inevitável entrar estão ligados diretamente na criação de pro- no mercado, mesmo porque estava atenta à gramas. Em 2002, 7 mil 824 funcionários essa evolução tecnológica desde a década de fizeram curso de aperfeiçoamento profissio- 70. No início dos anos 90 a Globo operava 14 www.redeglobo.globo.com acessado em 08 de um sistema via satélite de canais fechados, Junho de 2005 que tinha no seu maior concor- rente. Posteriormente entrou no mercado da

www.bocc.ubi.pt A TV Globo e os fluxos de comunicação 13 nal, o que totalizou aproximadamente 122 A Globo colocou em operação, em 1999, mil horas/aula o canal Globo Internacional que, via satélite, Em horário nobre, 88% da programação envia o sinal da emissora para 200 mil assi- exibida na Globo é de produção própria. A nantes espalhados pelo mundo. Rede conta com equipamentos portáteis que Em 2000 criou a Globo Marcas, que gere permitem transmissões ao vivo e, na sede da a licença de comercialização de produtos e emissora na cidade de , há uma serviços ligados à programação da TV, ope- Central de Transmissão e Recepção de Sinais rando também, desde 2003, no mercado in- que permite que até 44 sinais sejam exibidos ternacional. em tempo real ou gravados simultaneamente Além disso, desde 1971, a Globo mantém de qualquer parte do mundo. Além disso, as a Som Livre, uma gravadora que desenvolve centrais da TV Globo do Rio de Janeiro e e comercializa as trilhas sonoras das pro- São Paulo estão interligadas por meio de fi- duções da emissora e também DVDs. A gra- bras óticas. vadora ajudou a divulgar a música popular Em 1995 foi inaugurada no Rio de Ja- brasileira pelo mundo. neiro a CGP – Central Globo de Produção. A Rede possui ainda uma empresa de em- Com 156 mil metros quadrados de área cons- preendimentos temáticos, que mantém par- truída, possui três cidades cenográficas, dez ques infantis e comercializa eventos para estúdios, uma fábrica de cenários - que pro- shoppings, empresas, escolas, sempre divul- duz, mensalmente, uma média de 3 mil 186 gando os personagens que têm a imagem vei- metros quadrados de cenários e mil e 100 culada na emissora. metros quadrados de cidades cenográficas -, Há ainda o portal Globo.com, que admi- e uma fábrica de roupas que produz mil 750 nistra mais de 400 sites. Em muitos deles é peças por mês. possível acessar à programação da Rede. Desde sua criação até o mês de outubro A Globo possui também um projeto vol- de 2003, a TV Globo havia produzido 227 tado para as universidades, o que facilita o telenovelas e minisséries, somando 35 mil acesso de pesquisadores e estudantes. O pro- capítulos gravados. jeto atendeu, em 2003, 447 pesquisadores No jornalismo a Globo possui 600 equipes em trabalhos de conclusão de curso, disser- de reportagem, produzindo 6 horas de no- tações e teses, e recebeu 3 mil e 700 estudan- ticiários todos os dias que são exibidos em tes e professores em visitas técnicas. canal aberto. A Globo participa, em parceria com outras Na área do jornalismo internacional e 13 empresas, do Canal Futura, que transmite emissora criou, em 1998, uma agência de uma programação voltada para a educação, notícias, que fornece imagens e reportagens que é também distribuída para escolas e enti- produzidas pela Central Globo de Jorna- dades sociais. lismo, para todo mundo. O império Globo é composto ainda pela Em 1997 foi montada a Globo Filmes, que área do jornalismo impresso, mantendo já realizou mais de 23 produções e lidera vários jornais no Brasil, entre eles o Jornal O o mercado cinematográfico de filmes nacio- Globo, fundado em 1925, precursor de todo nais no Brasil. o grupo mediático. www.bocc.ubi.pt 14 Sergio Denicoli

Chega ao setor editorial com a Editora de dramalhão para outro retratado nas carac- Globo, que engloba o mercado de livros e terísticas pitorescas do país. revistas. A Globo também está no segmento Criou-se, assim, um produto inteiramente radiofónico, com a Central Globo de Rádio, diferenciado, mas com raiz em uma narrativa que possui várias emissoras, entre elas a Rá- consagrada em todo mundo e, portanto, de dio CBN – Central Brasileira de Notícias, entendimento universal. que opera no sistema all news, transmitindo Por outro lado, a tecnologia permitiu ainda uma programação de 24 horas de notícias. que a Globo estruturasse escritórios de jorna- lismo em vários países, fazendo com que as 6 Conclusão notícias provenientes do estrangeiro chegas- sem ao Brasil com a ótica brasileira, cons- Padrão de qualidade, estratégia comercial, truída por profissionais brasileiros. investimento em tecnologia e influência no A isso soma-se ainda a força política sem- meio político. Esses quatro pontos foram os pre exercida pela emissora, desde seu surgi- principais responsáveis pela ascensão da TV mento durante o período da ditadura militar Globo no mercado internacional. Isso per- no Brasil. A empresa foi o instrumento dos mitiu à emissora inverter os fluxos de comu- militares, que a utilizaram para pregar o seu nicação num período durante o qual a lógica marketing – uma propaganda que passava era de emissão de informação e conteúdos do pela impressão de um país desenvolvido, in- hemisfério norte para o sul. tegrado e moderno, e que utilizava a força da Tanto o padrão comercial quanto o pa- censura para impor essa visão. drão de produção foram adquiridos a partir A emissora expandia seu poder de pene- da fundação da TV Globo, graças ao acordo tração para além das fronteiras do Brasil, sa- feito com o grupo Time-Life, que transferiu tisfazendo os militares no desejo da ideia de para a emissora brasileira a fórmula norte- um país forte, e ao mesmo tempo conseguia americana de fazer e vender televisão. O assim dar um olhar próprio aos acontecimen- resultado foi o sucesso das telenovelas da tos, ampliando o campo de notícias para o Globo e a consequente divulgação do Brasil estrangeiro, já que a censura tornava restrito em diversos outros países. o campo de ação dentro do território brasi- O estudo focou a linha de pesquisa no leiro. fato de que programas produzidos pela emis- Portanto, aliando um boa política de ne- sora brasileira, feitos originalmente na lín- gociação, um produto bem acabado, a utili- gua portuguesa, foram exportados em um zação dos meios tecnológicos disponíveis e período em que as produções dos Estados a influência política, fez-se uma empresa po- Unidos dominavam o mercado mundial. derosa, grande e quase hegemónica em ter- A tecnologia deu o seu grande contri- mos de audiência. Um poder que já dura buto quando permitiu a criação de uma rede quatro décadas, que se viu ameaçado perante de comunicação ligando o Brasil ao mundo percalços econômicos, mas que continua in- e também os vários estados brasileiros, le- fluente e ativo. vando a TV Globo a regionalizar suas pro- duções, rompendo com um padrão caricato

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