Terra Brasilis (Nova Série) Revista Da Rede Brasileira De História Da Geografa E Geografa Histórica
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Terra Brasilis (Nova Série) Revista da Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia Histórica 14 | 2020 História da cartografia amazônica Histórias Escondidas nos Mapeamentos Fronteiriços Agências Indígenas nos Arquivos do Coronel Percy Harrison Fawcett Hidden Histories in Border Mappings: Indigenous Agencies in the Archives of Colonel Percy Harrison Fawcett Historias ocultas sobre el mapeo de fronteras: Agencias indígenas en los archivos del coronel Percy Harrison Fawcett Histoires cachées dans les mappages de frontières: Agences autochtones dans les archives du colonel Percy Harrison Fawcett André Reyes Novaes Edição electrónica URL: https://journals.openedition.org/terrabrasilis/7124 DOI: 10.4000/terrabrasilis.7124 ISSN: 2316-7793 Editora Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia Histórica Refêrencia eletrónica André Reyes Novaes, «Histórias Escondidas nos Mapeamentos Fronteiriços», Terra Brasilis (Nova Série) [Online], 14 | 2020, posto online no dia 31 dezembro 2020, consultado o 02 agosto 2021. URL: http://journals.openedition.org/terrabrasilis/7124 ; DOI: https://doi.org/10.4000/terrabrasilis.7124 Este documento foi criado de forma automática no dia 2 agosto 2021. © Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia Histórica Histórias Escondidas nos Mapeamentos Fronteiriços 1 Histórias Escondidas nos Mapeamentos Fronteiriços Agências Indígenas nos Arquivos do Coronel Percy Harrison Fawcett Hidden Histories in Border Mappings: Indigenous Agencies in the Archives of Colonel Percy Harrison Fawcett Historias ocultas sobre el mapeo de fronteras: Agencias indígenas en los archivos del coronel Percy Harrison Fawcett Histoires cachées dans les mappages de frontières: Agences autochtones dans les archives du colonel Percy Harrison Fawcett André Reyes Novaes NOTA DO AUTOR A pesquisa foi realizada com o Apoio da CAPES, por meio do Programa de Professor Visitante no Exterior. Introdução 1 No ano de 1905 o então presidente da Royal Geographical Society chamou o militar britânico Percy Harrison Fawcett em sua sala e perguntou: “você conhece alguma coisa sobre a Bolívia”? (Fawcett, 2001: 18).1 Após uma resposta negativa, o presidente falou sobre um país que não se limitava às terras altas, conhecidas como “teto do mundo”, mas se expandia a Leste por uma enorme área de florestas tropicais e planícies ainda não exploradas. De acordo com a narrativa do coronel Fawcett, o presidente pegou um grande Atlas ao lado da sua mesa e, apontando para a região amazônica, falou: “olhe para essa área! É cheia de espaços em branco porque tão pouco é conhecido” (Fawcett, 2001: 18). A área era a região de fronteira entre a Bolívia, o Peru e o Brasil, onde o mapeamento de muitos rios não passariam de um trabalho de suposição, um guesswork,2 Terra Brasilis (Nova Série), 14 | 2020 Histórias Escondidas nos Mapeamentos Fronteiriços 2 nas palavras do presidente. Apesar de desconhecida e pouco mapeada, a região teria um grande potencial econômico, pois o “fantástico preço da borracha” teria atraído novos contingentes populacionais e intensificado a disputa na demarcação dos limites internacionais. 2 Ao escutar sobre as fronteiras, Percy Fawcett interrompeu a explicação, “só um minuto”, “tudo isso é muito interessante, mas o que tem a ver comigo?” (Fawcett, 2001: 19). O presidente foi direto ao ponto. O governo da Bolívia, pelos seus representantes diplomáticos em Londres, teria solicitado à Royal Geographical Society a recomendação de um militar experiente para o trabalho na comissão boliviana: “Como você completou o nosso curso de delimitação de fronteiras com muito sucesso, eu pensei prontamente em você” (Fawcett, 2001: 19). Foi a partir desse convite que Percy Fawcett fez sua primeira viagem para a América do Sul, para atuar como chefe da comissão Boliviana de limites. Entre 1906 e 1925, quando desapareceu em busca de uma cidade perdida no território brasileiro, o militar participou de uma série de mapeamentos na região amazônica, que teriam auxiliado na resolução de conflitos relativos à demarcação dos limites. 3 A história de Fawcett é bastante conhecida por meio de uma vasta produção literária, que tem início com a publicação dos relatos do explorador por seu filho Brian Fawcett em 1953 (Fawcett, 2001). Como único filho sobrevivente, já que Percy Fawcett havia levado seu filho mais velho para sua última exploração no interior do Brasil, Brian ficou com todos os documentos do pai e publicou trechos de seus relatos ilustrados por desenhos e fotografias. Nas décadas seguintes muitos trabalhos ficcionais utilizaram esta publicação como ponto de partida para construir histórias sobre a misteriosa cidade Z, que, segundo Fawcett, estaria localizada próximo ao estado do Mato Grosso. Essas obras ficcionais, por sua vez, estimularam uma série de produções audiovisuais, tendo como exemplo mais famoso o filme A Cidade Perdida de Z, lançado em 2017.3 Nas entrevistas com o elenco do filme fica bastante evidente a sobrevivência de uma cultura celebratória da exploração em pleno século XXI (Driver, 2001). Atores e autores repetem de forma cíclica uma narrativa sobre os últimos “espaços vazios nos mapas”, onde Fawcett teria se aventurado com um “propósito quase divino”.4 Se Cook cartografou o Pacífico e Livingstone explorou o vasto continente africano, Fawcett teria preenchido espaços em branco na Amazônia, região apresentada como a “última área selvagem”.5 Terra Brasilis (Nova Série), 14 | 2020 Histórias Escondidas nos Mapeamentos Fronteiriços 3 Figura 1. Percy Fawcett com o Teodolito Fonte: Arquivos da Royal Geographical Society. Referência 058339. “Forest near Corumba”. Disponível em: https://www.alamy.com/stock-photo/percy-fawcett.html 4 Muitas imagens poderiam corroborar com essas narrativas heroicas. Como a fotografia de Fawcett mapeando espaços desconhecidos com o seu teodolito no meio da floresta amazônica (Figura 1). O grande explorador com seus instrumentos, desbravando de forma solitária um espaço vazio para colocá-lo no mapa. Mas, para além dessas narrativas populares e míticas, ainda são raros os trabalhos acadêmicos que buscam colocar os arquivos do explorador em diálogo com abordagens pós-coloniais e decoloniais contemporâneas, vigentes em campos variados como a geografia histórica (Radcliffe, 2017), a história da cartografia (Craib, 2017) e a história das ciências (Raj, 2006). Ao mergulhar nos arquivos com lentes críticas e menos celebratórias, algumas questões ganharam centralidade para estudar as práticas das explorações: quem acompanhava Fawcett? Quais técnicas e práticas cartográficas foram aplicadas nos seus mapeamentos? Qual foi o papel da troca de conhecimento na produção cartográfica sobre estes espaços “desconhecidos”? 5 Como apresentado em romances e produções audiovisuais, o explorador nomeou alguns ajudantes em seus relatos, como o britânico Mr. Fisher, que o acompanhou tanto na jornada do Alto Acre como no mapeamento do Rio Verde. Mas, embora na maioria das fotografias Fawcett apareça acompanhado de instrumentos ou poucos ajudantes, a agência indígena na exploração também aparece de forma constante em suas imagens e relatos. Um número bem maior de participantes das expedições aparece nos registros de transição das bacias hidrográficas, quando era necessário carregar as embarcações por terra. Além disso, Fawcett descreve a presença de ajudantes de diferentes etnias indígenas em seus relatos. Ao deixar Riberalta para explorar o Rio Beni até as nascentes do Abuña, em 25 de setembro de 1907, Fawcett relatou, por exemplo, como estava Terra Brasilis (Nova Série), 14 | 2020 Histórias Escondidas nos Mapeamentos Fronteiriços 4 acompanhado de um grupo com “dez índios Ixiamas e oito Tumupasa, um timoneiro e um jovem do exército para servir como intérprete” (Fawcett, 2001: 58). A presença constante dos índios, sejam hostis ou colaborativos, evidencia como, diferentemente de um “espaço vazio”, as fronteiras amazônicas continham uma diversidade populacional com um vasto conhecimento sobre o território. 6 Foi com o objetivo de estudar os arquivos de Percy Harrison Fawcett com uma abordagem menos celebratória, eurocêntrica e colonialista que submeti um projeto para pesquisar os documentos disponíveis na Royal Geographical Society e nos National Archives.6 Ao obter a bolsa de estudos tive a oportunidade de me aprofundar nos mapas, cartas, fotografias e cadernetas de campo do explorador. Este texto propõe um primeiro ensaio para uma abordagem crítica destes arquivos, buscando vestígios de trocas de conhecimento e encontros cartográficos que possibilitem identificar, nas palavras e imagens do explorador, a agência e as práticas de atores silenciados nas narrativas hegemônicas sobre as explorações geográficas. 7 Na primeira seção, gostaria de delinear algumas inspirações metodológicas que estimularam a formulação do projeto. Dois grupos bastante díspares de autores povoavam as minhas leituras no momento de concepção da pesquisa sobre Percy Harrison Fawcett. Por um lado, eu retomava a leitura do trabalho de alguns geógrafos históricos, que desde o final da década de 1990 abordam sistematicamente o desafio de revisitar os arquivos em busca de “histórias escondidas da exploração” (Driver e Jones, 2009; Konishi et al., 2015). Por outro, a leitura de autores associados ao pensamento social brasileiro nos anos 1940 também evidenciava uma intensa preocupação com o papel dos indígenas e “mamelucos” nos processos de exploração e mapeamento (Holanda, 1947; Cortesão, 2009). Pesquisando em contextos completamente diferentes, estes autores se depararam