O Mecanismo E a Midiatização Ficcional Da Operação Lava-Jato1
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O Mecanismo e a midiatização ficcional da Operação Lava-Jato1 The Mechanism and the fictional mediatization of Operation Car Wash Resumo Afonso de Albuquerque Este artigo explora o papel que a série de televisão O Mecanismo (Netflix, 2018-Pre- [email protected] sente) desempenhou como agente da midiatização da recente crise política brasileira Professor titular da Universidade Federal Flu- e, em especial, a Operação Lava-Jato. Partimos do ponto de vista de que a linha que minense (UFF). Doutor em Comunicação pela separa a facticidade jornalística da ficção é mais permeável do que costuma supor Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coorde- a literatura acadêmica. Por meio do panorama da midiatização, discutiremos como nador geral do MidiÁsia (UFF), Série Clube (UFF) a ficção seriada televisiva pode ser considerada mediadora da experiência que os e do Lamide (UFF). sujeitos têm do seu mundo. Ao analisar O Mecanismo, discutiremos como diversos setores da mídia brasileira se esforçaram para remover o PT do poder, principalmente, Melina Meimaridis ao endossar a judicialização da política. [email protected] Palavras-chave: midiatização, instituições ficcionais, O Mecanismo, Operação Doutoranda e mestre em Comunicação no Lava-Jato. Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense e graduada em Estudos de Mídia pela mesma Universidade. Pesquisadora associada ao TeleVisões (UFF) e ao projeto Série Abstract Clube (UFF). This article explores the role that the television series The Mechanism (Netflix, 2018-Present) played as a mediatizing agent in the recent Brazilian political crisis Rodrigo Quinan and, in particular, the Operation Car Wash. We start from the point of view that the [email protected] line separating journalistic facticity from fiction is more permeable than academic literature usually supposes. Through the mediatization framework we discuss how Doutorando e mestre pelo Programa de Pós- serial TV fiction can be considered a mediator of the experience that individuals have Graduação em Comunicação da Universidade of their world. In reviewing The Mechanism, we will discuss how various sectors of Federal Fluminense, onde concluiu sua gradua- the Brazilian media maneuvered to remove PT (Worker’s Party) from power, especially ção em Estudos de Mídia. Pesquisador associa- by endorsing the judicialization of politics. do ao Lamide (UFF), TeleVisões (UFF) e Série Clube (UFF). Keywords: mediatization, fictional institutions, The Mechanism, Operation Car Wash. 1. Introdução1 Lava-Jato ilustra um aspecto muito importante, mas pouco explorado, da atual crise política brasileira: o papel central “O leitor sabe que sempre apoiei a operação Lava-Jato e que a ficção televisiva teve no seu processo de midiati- que chamei Sergio Moro de ‘samurai ronin’, numa alusão zação. Apoiador de primeira hora da Operação Lava-Jato, à independência política que, acreditava eu, balizava a sua Padilha a levou para as telas, de forma ficcional, na série conduta. Pois bem, quero reconhecer o erro que cometi.” O Mecanismo (Netflix, 2018-Presente). Em sua primeira temporada, retratava de forma romântica o processo judi- cial, como uma cruzada virtuosa dos agentes da lei con- A crítica do diretor cinematográfico José Padilha ao tra a corrupção no país. Contudo, após as revelações dos comportamento do juiz Sérgio Moro à frente da Operação bastidores da Operação Lava-Jato, que dão conta da arti- culação de ações entre juízes e promotores não apenas 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de para condenar líderes petistas, mas também para atacar Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Questões Transversais – Revista de Epistemologias da Comunicação Vol. 8, nº 16, julho-dezembro/2020 O Mecanismo e a midiatização ficcional da Operação Lava-Jato 59 a sua credibilidade política, Padilha foi obrigado a rever debate sobre a midiatização e explora o seu impacto con- suas posições. creto para a democracia brasileira. A Operação Lava-Jato teve um imenso impacto na vida política brasileira. Inspirada no exemplo das Opera- ções Mãos Limpas (Mani Pulite) da Itália na década de 2. As instituições sociais ficcionais como 1990 (Kerche, 2018), ela resultou na prisão de diversos mediadoras políticos – principalmente aqueles filiados ao Partido dos Trabalhadores (PT) e seus aliados – e promoveu uma des- As séries ficcionais seriadas televisivas têm gozado de moralização das instituições da política representativa (ao grande popularidade ao redor do mundo. Em um mar de associá-las à corrupção), além de uma crescente judicia- produções disponíveis é interessante notar a forte pre- lização da política. De modo mais concreto, a Operação sença de narrativas institucionais dedicadas a representar Lava-Jato serviu como um catalisador para o golpe parla- o funcionamento de uma determinada instituição social, mentar contra o governo da presidente Dilma Rousseff, como o hospital, a polícia e o sistema judiciário. Na televi- a prisão – com base em provas e procedimentos que se são brasileira essas instituições têm recebido destaque em revelaram irregulares e mesmo fraudulentas (Meyer, dramas como: Sob Pressão (Rede Globo, 2017-Presente), 2018) – do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, que, 9mm São Paulo (Fox América Latina, 2008-2011) e Con- desse modo foi impedido de disputar as eleições presi- selho Tutelar (Record TV, 2014-2018). A despeito disso, o denciais de 2018, e finalmente a vitória de Jair Bolsonaro processo de ficcionalização dessas instituições tem desper- nas mesmas eleições. Vitorioso, Bolsonaro recompensou tado um interesse menor do que o tratamento dispensado Moro com um convite para assumir o Ministério da Jus- a elas por programas ditos informativos, como telejornais tiça em seu governo. Moro aceitou o convite. e documentários (Schlesinger et al., 1991; Tuchman, A Lava-Jato foi um processo intensamente mediatizado. 1978), uma vez que programas ficcionais são frequente- Dados da investigação foram sistematicamente vazados mente entendidos como pouco capazes de impactar na para a imprensa – inclusive uma conversa mantida pela representação da realidade (Daniel e Musgrave, 2017). presidente Dilma Rousseff com o ex-presidente Lula – vio- Esta regra não é, contudo, absoluta, como o ilustram Van lando a premissa do segredo de Justiça (Meyer, 2018). Por Zoonen (2005) e Donovan e Klahm IV (2015), para quem outro lado, Moro não se furtou a citar reportagem publi- a fronteira entre realidade e ficção é mais permeável do cada no jornal O Globo como evidência da corrupção de que se costuma considerar. Cabe destacar que, na década Lula (Dantas e Dantas, 2017). Tomados em seu conjunto, de 1990, vários autores brasileiros incorporaram a ficção os dados indicam uma articulação entre setores conserva- televisiva como elemento de análise da política. O modelo dores da imprensa, do Ministério Público e do Judiciário de Cenário de Representação da Política (CR-P) – elaborado para remover o PT da Presidência (Albuquerque, 2019). para dar conta do “exercício da hegemonia em sociedades O processo de midiatização dá conta de uma interfe- ‘media-centric’ nas quais a TV é o meio de comunicação rência crescente dos meios de comunicação nos diferentes dominante” (Lima, 1996, p. 253) – incluía a ficção televi- processos sociais. Na sua origem – e muito frequente- siva como um dos elementos da construção midiática da mente – o debate sobre o tema privilegia o papel desempe- política. Além disso, diversos autores exploraram as repre- nhado pela instituição jornalística como ator fundamental sentações da política elaboradas por telenovelas brasilei- desse processo. Este artigo explora um aspecto diferente ras em contextos eleitorais (Porto, 1998; Weber, 1990). do mesmo processo, tendo em vista o papel que obras Essa tradição de pesquisa não chegou, contudo, a fincar ficcionais desempenham como intermediários das rela- raízes no país, e um número relativamente pequeno de ções que os indivíduos estabelecem com o seu entorno. O trabalhos se seguiu a eles. argumento central do artigo é que as fronteiras entre fic- As instituições sociais desempenham um papel funda- ção e facticidade são mais porosas e permeáveis do que se mental na objetificação da realidade (Berger e Luckmann, costuma supor e que, portanto, a série O Mecanismo deve 1991). Essas organizações reforçam nos sujeitos um sen- ser entendida como um aspecto pontual de um processo timento de segurança ontológica, isto é, a ideia de que mais abrangente: o engajamento de setores da mídia bra- as coisas são como são. Contudo, no contexto da moder- sileira no esforço para retirar o PT do poder por quaisquer nidade essas entidades sociais têm se distanciado da tra- meios. O artigo se organiza em três partes: a primeira dição e sofrem de “desencaixe” ou um “‘deslocamento’ explora o papel da ficção seriada como mediadora da expe- das relações sociais de contextos locais de interação e riência que os indivíduos têm do seu mundo, valendo-se sua reestruturação através de extensões indefinidas de para tal do conceito de instituições ficcionais; a segunda tempo-espaço” (Giddens, 1991, p. 24). Esse desencaixe apresenta O Mecanismo como um esforço de ficcionali- se refere ao funcionamento das instituições sociais para zação de uma trama concreta, envolvendo as instituições além do conhecimento ou controle dos cidadãos comuns. políticas brasileiras; a terceira discute o episódio à luz do Dentre os mecanismos de desencaixe chamamos atenção Vol.