Um a ç o r a n o en t r e t r ê s r e g i m e s p o l í t i c o s . Jo s é Ma c h a d o d e Se r p a (1864-1945) 1

Jo s é Mi g u e l Sa r d i c a

«O Dr. Serpa não deixou uma obra, não foi um leader. Foi apenas um ilhéu, como eu, como tu, como os demais, enamorado das ilhas, ambicioso do seu bem estar, alegria e progresso»

Carta de Euclides Costa a Manuel Greaves (1947) In Manuel Gr e av e s , In Memoriam. José Machado de Serpa. Colectânea de originais e extractos da imprensa sobre a figura do ilustre açoriano, Horta, Edição do Autor, 1948.

Sardica, José Miguel (2010), Um Açoriano entre três regimes políticos. José Machado de Serpa (1864-1945). Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 20: 179-224.

Sumário: José Machado de Serpa é um nome relativamente desconhecido na historiografia açoriana e continental. Nascido na Prainha, na ilha do Pico, em Março de 1864, bacharel de Direito pela Universidade de Coimbra, jornalista, magistrado, ensaísta e erudito, Machado de Serpa foi governador civil da Horta e deputado na Assembleia Nacional Constituinte, em Lisboa, entre Outubro de 1910 e Agosto de 1911, na conjuntura fundadora do novo regime da I República. Seria depois senador, até 1926, altura em que regressou a casa, à sua residência na Horta, para se dedicar à investigação filológica e ao jornalismo de opinião na imprensa

1 A redacção deste trabalho teria seguramente ficado mais pobre sem o auxílio do Sr. Manuel Machado de Oliveira e do Dr. Luís São Bento, Director da Biblioteca Pública e Arquivo Distrital da Horta, que me forneceram, com a simpatia, o interesse e a disponibilidade que os caracteriza, documentação e sobretudo cópias de jornais importantes e impossíveis de encon- trar em Lisboa. Aqui fica registado o meu sincero agradecimento. Naturalmente, o que haja de mais imperfeito no texto final é da minha exclusiva responsabilidade. 180 Boletim do Núcleo Cultural da Horta faialense. Morreu em Dezembro de 1945, com 81 anos de idade, ao cabo de uma longa carreira em que revelou sempre uma postura humanista, conciliadora e democrática, equi- distante tanto do reaccionarismo como do radicalismo. A sua biografia espraia-se assim por três diferentes regimes políticos: a Monarquia Constitucional, a I República e o Estado Novo. Nasceu, cresceu e educou-se durante a primeira; atingiu o apogeu da sua vida pública durante a segunda; e soube retirar-se para uma privacidade tranquila quando chegou o terceiro. Não pre- tendendo constituir-se como novo epitáfio, embora assuma o objectivo de resgatar esta figura açoriana do esquecimento, o texto procura recordar o percurso biográfico de José Machado de Serpa com a convicção de que a sua vida constitui um bom ponto de observação do que foram dinâmicas várias da história contemporânea dos Açores e do país, ao longo do arco temporal em que decorreu a sua existência.

Sardica, José Miguel (2010), An Azorean throughout three political regimes. José Machado de Serpa (1864-1945). Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 20: 179-224.

Summary: José Machado de Serpa is a relatively unknown personality in both the Azorean and Continental historiographies. Born in 1864 in Prainha (a village in Pico island), graduated in Law in Coimbra University, journalist, judge and scholar, Machado de Serpa was Horta’s civil governor and member of the National Constituent Assembly in Lisbon between October 1910 and August 1911, during the founding months of the First Portuguese Republic. Senator until 1926, he then returned to Horta, devoting thereafter to philological research and journalism in local press. He died in December 1945, at the age of 81, after a long career that always revealed a humanistic and democratic stance and a reconciling attitude, equidistant from both the reactionaries and the radicals. His biography spreads along three different political regimes: the Constitutional Monarchy, the First Republic and the New State. He was born, raised and studied during the first, reached the heyday of his public life during the second, and withdraw from all political life on the arrival of the third, becoming a discrete, though active, scholar. Unwilling to offer a mere new epitaph, the purpose of this text is to cast light on a forgotten Azorean personality and to recover his character, acts and opinions, on the basis that José Machado de Serpa’s life may be considered a privileged observation point of the dynamics driving both the Azorean and Portugal’s contemporary history along his lifetime.

José Miguel Sardica – Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa.

Palavras-chave: José Machado de Serpa, jornalismo, magistratura, Governo Civil da Horta, deputado, senador, Assembleia Nacional Constituinte, Faial.

Key-words: José Machado de Serpa, journalism, judge, Horta’s Civil Governor, Parliament deputy, senator, National Constituent Assembly, Faial. José Miguel Sardica 181

1. in t r o d u ç ã o

Na tarde do dia 17 de Dezembro de “modestamente a sua casa ainda em 1945, na casa com o n.º 40 da Rua pleno vigor, mantendo inalterável a Vasco da Gama, na freguesia das sua ideologia democrática e o seu libe- Angústias da cidade da Horta, mor- ralismo” (O Telégrafo, 21.12.1945). reu, com 81 anos de idade, uma figura Excepto pelo elogio à democracia e bem conhecida e respeitada, não ape- ao liberalismo, não muito usual na nas no Faial mas decerto entre toda prosa jornalística do tempo do Estado a população açoriana. Tratava-se de Novo, o perfil humano desenhado José Machado de Serpa, um velho era o típico da imagem dos vultos juiz há muito aposentado, antigo go- públicos do Portugal contemporâneo. vernador civil da Horta, deputado e Dois anos e meio volvidos, em 1948, senador durante a I República, que um amigo de Machado de Serpa, nos últimos anos de vida se ocupara Manuel Greaves, comporia, com re- em investigações filológicas sobre o cordações suas e testemunhos alheios, falar açoriano e em colunas de opinião um In Memoriam que serve hoje de sobre assuntos vários na imprensa principal base para o conhecimento faialense. que podemos ter deste açoriano2, cuja Nos dias imediatamente a seguir, os biografia se espraia por três diferen- jornais da Horta publicaram notas tes regimes políticos: a Monarquia biográficas e elogios fúnebres sobre o Constitucional, a I República e o finado. Contrastando com o tom mais Estado Novo. Nasceu, cresceu e edu- oficial do Correio da Horta (Correio cou-se durante a primeira; atingiu o da Horta, 18.12.1945), O Telégrafo – apogeu da sua vida pública durante a folha para a qual Machado de Serpa segunda; e soube retirar-se para uma escrevera, quase até à morte – lem- privacidade tranquila quando chegou brava-lhe “o coração afectuosíssimo”, o terceiro. A cópia de elogios coligi- o seu “valor”, “honestidade” e “espí- dos no trabalho de Manuel Greaves é rito de independência”, salientando o elucidativa das múltiplas qualidades quanto ele desprezara, pela vida fora, que distinguiram José Machado de “mandos e honrarias”, recolhendo Serpa. Era um “homem culto” e “via-

2 Para lá do trabalho de Manuel Greaves, o rios ou enciclopédias mais ou menos espe- que hoje há sobre José Machado de Serpa cializados: v. Pe r e i r a e Ro d r i g u e s , 1912: são pequenas notas biográficas, prefaciando 828, Ar r u d a , s.d., online, e Ma r q u e s , um trabalho seu, ou inseridas em dicioná- 2000: 395. 182 Boletim do Núcleo Cultural da Horta jado”, um “gentleman”, “bondoso” e lavra”, revelara sempre “inconcussa “amigo de todos”, com grande “deli- probidade”. Na vida privada, entre cadeza de trato”, “bom humor ini- amigos, admiradores e discípulos, gualável” e “feitio estóico-epicurista, falava sobre tudo – política, socie- que lhe permiti[ra] atravessar todas as dade, arte, teatro, literatura – com “o crises da vida sem uma beliscadura”. poder vibrátil da sua sensibilidade “Conversador emérito”, tinha “erudi- requintada, os horizontes vastos da ção e graça no falar”, sabendo “narrar sua cultura universalista, a sua ele- com chiste e mangar sem magoar”, gância e aprumo moral” (Gr e av e s , como recomendava a velha arte da 1948: 11, 14, 16-17, 23, 27, 34-35, farpa queirosiana, “que apaixonava 39, 48-49). a mocidade da sua época coimbrã”. Desaparecera em suma, em 1945, A sua “dicção brilhante”, a sua “ironia um homem que a todos os títulos se paciente e perspicaz”, o seu “lampejo recomendava à apreciação pública repentista” e a sua “graça intangível” de contemporâneos e vindouros. Não eram características da “fluência e pretendendo constituir-se como novo propriedade” da sua linguagem, que epitáfio, este texto procura recordar o a todos encantava, até pelo “extraor- percurso biográfico de José Machado dinário poder evocativo de homens de Serpa, com a convicção de que a e factos passados”. Por isso, diziam sua vida constituiu um bom ponto de os amigos, “manejava a nossa língua observação do que foram dinâmicas com uma notável riqueza de termos, várias da história contemporânea dos adquirida à custa de muita leitura e Açores e do país, ao longo do arco enaltecente retenção”. No foro e em temporal em que decorreu a sua exis- vários momentos políticos, em que tência. “bem servira” como “lavrante da pa-

2. as o r i g en s : o m e i o f a m i l i a r , o s e s t u d o s e a i n i c i a ç ã o c í v i c a

As chamadas ilhas açorianas “de na carreira de vapores da Companhia baixo” (Faial, Pico, Flores e Corvo) União Mercantil, inaugurada em 1857 não eram exactamente o melhor lugar (Jo ã o , 2004: 88). Ponta Delgada, em para se nascer no Portugal do ter- São Miguel, ou Angra do Heroísmo, ceiro quartel do século XIX. Lisboa, na Terceira, estavam mais próximas, e centro do poder político, mas isso não chegava para mitigar ficava a dez dias de viagem (com velhas rivalidades inter-ilhas, que bom tempo), em brigue-escuna ou condenavam os “ilhéus de baixo” à José Miguel Sardica 183 humilde condição de uma periferia o limiar da subsistência básica e o da periferia. Nos Invernos mais rigo- pouco que era exportável – a laranja rosos, o Faial e o Pico chegavam a ou o vinho, dada a crónica insuficiên- ficar isolados, como penedos perdi- cia cerealífera – não permitia nunca dos na vastidão do Oceano, colocados equilibrar a balança comercial das pela morfologia frente a frente, mas ilhas ou diversificar sequer os mer- ainda assim separados pelo mar num cados de destino (Jo ã o , 2004: 87). estreito e agreste canal, personagem As agruras da terra eram há muito (in)visível da mais famosa das obras compensadas pelas ilusões do mar. de Vitorino Nemésio. A somar à velha pesca costeira e arte- Na altura em que a Regeneração e os sanal, nos meados de Oitocentos era melhoramentos materiais do fontismo já possível, sobretudo no Faial ou começavam a dar ao continente um no Pico, ter-se “uma antevisão” da primeiro esboço de desenvolvimento época de ouro dos baleeiros, misto de “europeu”, o arquipélago ainda era agricultor e marítimo” que se tornou terra excêntrica e longínqua. Um qua- “o mais feliz dos modelos de inter- dro geral dos Açores nos meados do secção da terra com o mar no arqui- século XIX não escapa a assinalar o pélago dos Açores” (Mene s e s , 2007: tradicionalismo ancestral da agricul- 652), e que levaria Raul Brandão a tura, a indústria meramente artesanal, referir-se às populações locais como a pobreza das gentes, a rudeza do “lavradores do mar e da terra” (cit. meio e a crónica dependência face ao por Jo ã o , 2004: 84). Quanto à indús- exterior. A terra, que era escassa, difi- tria, ela restringia-se, nas nove ilhas, cilmente alimentava uma sociedade a actividades caseiras tradicionais – a que era ainda, na sua maioria, cam- tecelagem, a destilação, os laticínios ponesa e de auto-consumo, vivendo – levadas a cabo no modelo produ- muitas vezes isolada, em bolsas, den- tivo que na Europa se considerava já tro de cada ilha, onde não abundavam “pré-industrial” (Jo ã o , 2004: 85). estradas ou caminhos transitáveis 3. A principal consequência do arcaísmo Cultivava-se trigo, milho, pastel, sócio-económico da região era a forte laranja e vinho; mas os temporais e corrente emigratória, que anualmente as pragas não deixavam ultrapassar sangrava a demografia das ilhas. Em

3 Segundo Maria Isabel João, ainda em 1900, somente 14,5% na indústria (Jo ã o , 2004: 61,5% da população açoriana empregava- 78). Não era, ressalve-se, um quadro muito ‑se no sector primário, 23% nos “serviços” diferente do que se verificava no conti- (domésticos, de comércio e transportes), e nente. 184 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

1864, data do primeiro censo popu- nha, na costa nordeste da ilha do Pico. lacional português, os Açores tinham Ao tempo, a Prainha era uma das cerca de 248 mil habitantes, 5,9% do cinco freguesias do concelho de São total nacional (Ma t o s e Si l v a , 2008: Roque, e uma das quinze em que se 84). Todos os anos, antes e depois dividia a chamada “ilha montanha”. dessa data, saíam centenas e cente- Fora a segunda povoação construída nas de insulares rumo ao Brasil ou à na costa norte picoense, depois de São América do Norte, o “novo mundo” Roque, e tivera Igreja matriz – a de que tanta atracção exercia sobre aque- Nossa Senhora da Ajuda – edificada las paragens no meio do Atlântico na primeira metade do século XVIII. (Jo ã o , 2004: 77). Entre 1866 e o final O lugar era modestíssimo, e o pró- do século XIX, uma média de 3 mil prio Pico uma ilha estranha no con- açorianos emigrou anualmente, fosse texto do arquipélago açoriano. Como por pura “motivação individual”, a historiografia local já assinalou, a fosse devido à “precariedade econó- história do Pico foi sempre a de uma mica” e às “grandes clivagens sociais “contradição da imagem mais vulgar que durante décadas e até séculos da história económica dos Açores” caracterizaram a sociedade açoriana” (Mene s e s , 2007: 647): enquanto nas (Ma t o s e Si l v a , 2008: 92; Ro c h a , demais ilhas dominava o cereal, ali 2008: 288) 4. Mais do que qualquer o grande produto extraído da terra outro aspecto do quotidiano ilhéu, a era o vinho, cultivado em vinhedos emigração era o mais eloquente teste- escavados na terra negra e vulcânica. munho (e o mais imediato escape), de Inicialmente, no tempo do povoa- uma vida difícil e precária, que sem- mento, proliferara o inhame; mas a pre se apresentava “económica, social partir do século XVII, aproveitando o e culturalmente estagnada, havendo empobrecimento da economia tercei- situações de enorme pobreza para rense e rivalizando com o desenvol- uma grande parte da sua população” vimento agrícola e comercial de São (Ro c h a , 2008: 288). Miguel, o eixo Faial-Pico despontara, José Machado de Serpa nasceu a 9 de muito graças à viticultura deste e à Março de 1864, na freguesia da Prai- crescente projecção de entreposto

4 Segundo esta última autora, os valores mé- pelo censo de 1911, a população açoriana dios anuais foram de 3.400 emigrantes/ano contabilizava cerca de 242 mil habitantes, entre 1890 e 1900, 5.700 entre 1900 e 1910, menos do que o registado meio século antes e 4.400 (uma ligeira quebra), entre 1910 e (Ibidem: 268). 1920 (Ibidem: 289). O resultado é que, José Miguel Sardica 185 atlântico daquele (Mene s e s , 2007: devido a uma forte emigração causada 648-649). Assim, pela Horta chega- por sucessivos anos de más colheitas vam os víveres necessários para ali- e pela propagação do oidium, que mentar as gentes do Pico, sempre chegara em força aos vinhedos locais afectadas por crónicas crises de sub- (e também a São Miguel), a partir de sistência; em troca, dali se exportava, 1853 (Jo ã o , 2004: 80; Ma t o s e Si l v a , através da Horta, o vinho e a aguar- 2008: 87). Houve quem então falasse dente picoenses, para a América do até do fim do “ciclo do verdelho” Norte, para o Brasil, para a Inglaterra (o vinho cultivado nos terrenos de e até para a Rússia – evidenciando um lava). Mas a transplantação de cepas circuito comercial em que a riqueza americanas realizada nas décadas de vitivinícola do Pico servia de susten- 1870 e 1880 permitiu a recuperação táculo à prosperidade económica da vitivinicultura local (Jo ã o , 2004: do vizinho Faial (Jo ã o , 2004: 80; 80). Dentro da ilha, o concelho de Mene s e s , 2007: 653) 5. São Roque era o menos populoso e Em 1864, a população do Pico soma- o mais pobre, por comparação com a va 27.736 habitantes, 11,2% do total Madalena, defronte da Horta, e com açoriano. Era a terceira ilha mais as Lajes, na costa Sul. populosa do arquipélago, ligeiramente A família de José Machado de Serpa acima do Faial (que contava 26.264 não era contudo das mais pobres da habitantes), mas bastante abaixo da freguesia da Prainha. De acordo com Terceira (45.895 habitantes), e de São a sua certidão de baptismo, o pai, José Miguel (105.407 habitantes) (Ma t o s António de Serpa, era “capitalista e e Si l v a , 2008: 86) 6. O número de proprietário”, o que muito possivel- picoenses vinha decrescendo desde mente significaria um médio comer- a primeira metade do século, muito ciante local, dono de algumas parce-

5 Como conclui este último autor, “nos Aço- ou em São Miguel ou esquecendo que res, o Pico é aquela ilha que menos pode quando se estuda a história do Faial se está ser estudada de forma isolada”, formando a estudar, por seu intermédio, “parte bem “um conjunto quase inseparável” de “cone- significativa da história do próprio Pico” xões políticas, económicas e sociais” com (Ibidem: 652-653). o Faial. Infelizmente, em vista da histórica 6 Em 1911, o Pico já só teria 21.724 habi- subordinação da “ilha montanha” à “ilha tantes, e o Faial 20.362. A Terceira e São azul”, por causa da tutela administrativa Miguel, em contraste, registaram ganhos e política da Horta como capital distrital, populacionais, ascendendo a primeira a o Pico acabou por ser uma das realidades 47.953 habitantes no início da República insulares “mais lesada pela omissão da e a segunda a 116.286 (Ro c h a , 2008: 268). História” – demasiado centrada na Terceira 186 Boletim do Núcleo Cultural da Horta las de terra; a mãe, Isabel Olinda gra oferta escolar que o Pico possuía Leal de Serpa tinha por ocupação “o naqueles anos – nove escolas em governo de sua casa”. Os avós pater- toda a ilha em 1864, sete para rapa- nos, naturais da vizinha povoação de zes e duas para raparigas, onde estu- São Roque, sede do concelho, eram davam, respectivamente, 340 alunos Manuel José de Serpa e Catarina e 141 alunas (Su p i c o , 1864: 146) – Tomásia de Bettencourt; os maternos na medida em que José Machado de chamavam-se António Dias de Lima Serpa concluiu o ensino secundário e Isabel Francisca da Conceição. no Liceu da Horta. Foi no Liceu que O padrinho de baptismo, celebrado na ele averbou aliás o seu único insu- Igreja paroquial de Nossa Senhora da cesso escolar documentado, e não por Ajuda, ali mesmo na Prainha, a 19 de sua culpa. O caso é que as autori- Maio desse ano de 1864, foi o vigá- dades escolares açorianas, intrigadas rio da freguesia de São Mateus, da pelo facto de na Horta nunca ninguém vizinha ilha de São Jorge, cujo nome, reprovar, fizeram saber ao Reitor Marcelino de Oliveira Serpa, permite liceal que o corpo docente era ali imaginar tratar-se de um parente; a demasiado benévolo. O Reitor de ime- madrinha foi Bernarda de Oliveira diato pediu ao Conselho Escolar “ao Serpa, solteira, talvez irmã do vigário menos duas reprovações”. As vítimas jorgense (AUC, Certidões de Idade). foram “um pobre rapazinho de uma Nada se sabe sobre a infância de José freguesia rural faialense, que vinha Machado de Serpa, excepto que a todos os dias a pé, por falta de meios, figura do pai foi tutelar e marcante. filho de um pobre agricultor, portanto Um amigo de infância recordaria sem recomendações”… e o próprio que José António de Serpa transmi- José Machado de Serpa, “que tinha tira “a filhas e filhos a sua faísca de vindo da banda de trás do Pico e nin- inteligência e o seu senso escorreito”. guém conhecia” (Se r p a , 1987: 15). Um dos irmãos de José Machado de No Liceu da Horta fez Machado Serpa, de seu nome Vítor Machado de Serpa, com êxito, os exames de de Serpa, seria a sua companhia mais Francês (a 23 de Julho de 1878), próxima, seguindo, como ele, a for- de Filosofia (a 4 de Agosto de 1879), matura em Direito e a futura carreira de Matemática (a 7 de Agosto de na magistratura (Gr e av e s , 1948: 22). 1879), de Latim (a 29 de Julho de Não se sabe, contudo, que estudos o 1880), de Português (a 2 de Agosto pai Serpa deu aos filhos, embora se de 1880), de Introdução à História possa imaginar que alguns (todos? Natural (a 3 de Agosto de 1880), de quantos?) tenham frequentado a ma- Geografia e História (a 4 de Agosto José Miguel Sardica 187 de 1880), e de Desenho (a 5 de Agosto opúsculo intitulado A Indústria Pisca- de 1880) (AUC, Petições de Matrí- tória nas Ilhas Fayal e Pico. O facto cula, Direito). Repare-se que cinco de ter sido publicado pela Imprensa das oito cadeiras foram terminadas no Académica de Coimbra faz crer que espaço de uma só semana, no Verão se tratou, originalmente, de um tra- de 1880. Tendo decidido (ele, ou o balho ou dissertação universitária, pai por ele), prosseguir estudos supe- talvez a tese final de curso, para a riores no continente, realizaria ainda, qual o picoense escolheu estudar uma no Liceu Central de Coimbra, como realidade que lhe era familiar. aluno externo, o exame final de Filo- Motivado pelo desejo de “enaltecer as sofia (2.ª parte), a 16 de Agosto de nossas ilhas açorianas”, “pérolas ines- 1881, e o exame final de Latinidade, timáveis da coroa portuguesa”, Serpa a 6 de Outubro do mesmo ano (AUC, queria que o seu escrito fosse um alerta Petições de Matrícula, Direito). para que os poderes cuidassem sem Achando-se então “habilitado com os demora do progresso e bem-estar dos preparatórios exigidos pela lei”, Serpa povos insulares, “votados até agora apresentou, com data de 7 de Outubro a um ostracismo em extremo censu- de 1881, à Reitoria da Universidade, rável, quasi criminoso”. Nos seus ter- o pedido de admissão ao primeiro ano mos, “o arquipélago açoriano é, em da Faculdade de Direito. Ali esteve verdade, por sua natureza, rico e fértil cinco anos. A 30 de Junho de 1885, […]. Urge, porém, desenvolver todos ao completar todas as disciplinas do os elementos da sua riqueza, todos os 4.º ano curricular, sempre com a mais ramos da sua economia, a agricultura, alta classificação de “Nemine Dis- as indústrias e o comércio, sobretudo crepante”, tomou o grau de bacharel. o comércio marítimo, de resto acon- Exactamente um ano volvido, a 30 de selhado pela sua situação geográfica, Junho de 1886, finalizou os exames a meio caminho de três continentes”. das disciplinas do 5.º ano, concluindo Sem essa aposta, a emigração estaria assim a sua formatura com habili- condenada a converter-se “num mo- tação para magistrado – a carreira vimento de expatriação descomunal, que entretanto escolhera para a sua desordenado e a todos os respeitos vida profissional. A carta final de infrutíferos”. Interessava-lhe parti- curso foi emitida em Coimbra, a 6 de cularmente abordar a actividade da Dezembro de 1886 (AUC, Processos pesca, para que o elogio do trabalho de Carta de Curso). do “agricultor do mar” (como desig- Data desse ano o primeiro escrito de nava os pescadores) saísse realçado e José Machado de Serpa, um pequeno valorizado, o que seria uma maneira 188 Boletim do Núcleo Cultural da Horta de combater o preconceito classista das vendas do produto (Se r p a , 1886: que, mesmo nos Açores, havia em 26-30). A caça à baleia era fundamen- relação a uma profissão tradicio- tal no orçamento das ilhas do Faial nalmente considerada de “condição e Pico e, além disso, um escape ao baixa”. Era esse o objectivo do opús- serviço militar no continente, à “vida culo, que ele anunciava ser apenas o de caserna” em Lisboa, que era coisa primeiro de uma série “que me pro- particularmente odiada pelos açoria- ponho escrever sobre o arquipélago nos. Era essa a razão por que, “evi- açoriano” (Se r p a , 1886: VII-X) 7. tando as fileiras de Marte”, tantos O escrito tinha seis pequenos capí- ilhéus “se arregimenta[vam] nas de tulos, todos visando deixar sugestões Neptuno” (Se r p a , 1886: 32-33). práticas para o melhoramento geral Uma descrição de uma pequena comu- da actividade piscatória. Começava nidade piscatória na Horta servia a por abordar as condições da pesca Serpa de pretexto para considera- costeira no norte do Pico, onde a ções sócio-económicas. Era um meio figura social típica era o “pescador- onde “a penúria gera a imprevidên- ‑lavrador”. Para melhorar a condição cia”: demasiados filhos, “como diria daquela gente e “tonificar uma indús- qualquer malthusiano”, sem escola, tria” que, bem apetrechada, poderia comida ou habitação condigna, no ser uma importante fonte de receita meio de muita miséria moral e cor- local, sugeria que ali se introduzis- ruptora. Era por isso que a melhor sem pequenos barcos a vapor para organização da pesca, sobre ser útil, a pesca, dotados de meios que lhes era até uma “tarefa humanitária” permitissem um maior afastamento (Se r p a , 1886: 37-42). Um importante do litoral e uma maior independência entrave era porém a carga fiscal que face aos ventos (Se r p a , 1886: 19-20). impendia sobre o pescado. A taxação Especificamente para a actividade vinha desde as Ordenações Manue- baleeira, onde ainda havia “muito linas; era tempo de a reduzir, pedia a fazer”, urgia instituir uma asso- Serpa, impedindo que o “malandrim” ciação de socorros mútuos para “as do guarda-fiscal “metesse a mão na vítimas de tão arriscado trabalho”, sacola do mendigo” – porque era no ou ao menos um fundo de reserva limiar da mendicidade que viviam constituído por quotizações tiradas muitos dos “lavradores do mar”,

7 Na contracapa, indicava-se que o produto distribuídos pelas escolas primárias do dis- das vendas do trabalho reverteria para a trito da Horta, pelos alunos filhos de pesca- compra de livros sobre pesca “para serem dores”. José Miguel Sardica 189 tanto mais que, não havendo salinas pre da falsidade do anexim popular nos Açores, o sal necessário à conser- ‘quem pesca um peixe pescador é’. vação do pescado ia de Aveiro ou de O verdadeiro pescador tem neces- Setúbal, ali chegando caríssimo pelos sidade de conhecer todos os segre- impostos do frete naval (Se r p a , 1886: dos da sua arte, porque longe vai o 43-44, 46-47). tempo de surpresas em assuntos desta A terminar, Serpa fazia um elogio e ordem” (Se r p a , 1886: 58). um apelo à organização de exposições Ernesto Rebelo, que andava então sobre a pesca – como “certamens civi- a redigir as suas Notas Açoreanas, lizadores” e “museus de instrução” – ouviu falar no opúsculo de Machado lamentando que em 1883, na exposi- de Serpa – e tanto que decidiu, de ime- ção de pescaria de Londres, Portugal diato, recenseá-lo na sua própria obra. tivesse primado pela ausência. Dera- Segundo ouvira dizer, A Indústria ‑se até o caso, contava ele, burlesco e Piscatória… era apenas o primeiro ofensivo, de os promotores ingleses, de “uma série de estudos sobre inte- que tinham chegado a reservar um resses açorianos que este ilustre faya- pavilhão para a representação portu- lense se propõe dar à estampa”. Mas guesa terem, à última hora, conver- do que já era possível ler, Machado tido a estrutura num… urinol público! de Serpa revelava “notáveis aptidões (Se r p a , 1886: 52-54) Em reacção, de bom escritor e demorada atenção sugeria que as Câmaras Municipais dos recursos insulanos e da nossa do Faial e Pico, conjuntamente com maneira de viver, merecendo assim a as escolas, organizassem uma expo- boa aceitação de homens ilustrados, sição de materiais, técnicas e produ- tanto mais que a leitura desse opús- tos de pesca, em pequenos pavilhões culo é assaz interessante pela grande móveis montados “na encantadora cópia de investigação que encerra”. baía de Porto-Pim”, onde até seria Anunciando-se para breve o lança- possível realizar, em barcos de ins- mento de uma revista ilustrada na trução, demonstrações no domínio Horta – de que Serpa seria redactor, do lançamento de redes de “variados segundo Ernesto Rebelo – acrescen- feitios e espécies” (Se r p a , 1886: 56). tava este: “temos muito a aguardar Era, em suma, tempo de o progresso do levantado talento do Dr. Serpa, e chegar aos Açores e de profissiona- se, como estudante, conquistou um lizar uma actividade de que tanta nome laureado, na imprensa açoriana gente ali dependia. “É preciso” – con- a sua carreira será proveitosa e con- cluía ele – “que os nossos pescadores soante ao seu incontestável mérito” se convençam de uma vez para sem- (Re b e l o , 1887: 114). 190 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

3. a militância m o n á r q u i c a n a i m p r en s a e a magistratura Finalizada a licenciatura em Direito, dizer que a sociedade açoriana fosse, em Coimbra, a primeira nomeação ao tempo, muito politizada. Como recebida por José Machado de Serpa, no continente, o analfabetismo era logo no Verão de 1886, foi para o Tri- ali uma realidade esmagadora. De bunal da Boa-Hora, em Lisboa, onde modo que a reflexão ideológica era começavam muitos e muitos recém- apanágio de um punhado de letrados, ‑licenciados em Direito (Correio da jornalistas e influentes locais, todos Horta, 18.12.1945). Mas Serpa não convergindo – a despeito de naturais chegou a tomar posse do lugar na fricções partidárias – numa cultura capital. Apenas duas semanas depois política que era a marca-de-água do do último exame universitário reali- discurso açoriano no último quartel zado, o jovem diplomado regressou à do século XIX. Essa cultura política Horta para ali iniciar a sua carreira. era a da reivindicação de aspirações Numa pequena nota local, O Faya- autonomistas e, no limite, separa- lense escrevia: “Completou a sua tistas mesmo, perante um continente formatura em Direito o Sr. José que os ilhéus serviam com dedicação Machado de Serpa, filho do Sr. José mas do qual pouco ou nada recebiam, António de Serpa, abastado proprie- em gratidão demonstrada ou melho- tário desta cidade. O novel bacharel ramentos materiais derramados. chegou de Lisboa no paquete, assim Desde que os açorianos tinham aju- com os seus exmos. pais que esta- dado o Estado liberal a implantar-se, vam em São Miguel. A todos damos na Guerra Civil contra os absolutistas, os nossos parabéns” (O Fayalense, décadas atrás, a relação entre o arqui- 18.7.1886) 8. pélago e os poderes continentais tor- Serpa tinha então 22 anos. Para um nara-se um tema quente, de expecta- jovem diplomado que, no continente, tivas por cumprir e de ressentimentos contactara decerto com novas leitu- mais ou menos declarados. É verdade ras, novas ideias e novas expectativas que em Lisboa muita gente jamais políticas, o regresso aos Açores tinha esquecera as vivências e contributos de significar acção cívica e partici- das ilhas açorianas, e dos “bravos do pação política. Não se pode, contudo, Mindelo” que delas tinham partido, na

8 Por essa altura, como se deduz da peça decorreria toda a vida de José Machado jornalística, os pais de Serpa já teriam aban- de Serpa, com excepção dos períodos em donado a Prainha, no Pico, para fixarem que esteve fora do Faial, em comissões de residência na Horta, onde dali por diante serviço. José Miguel Sardica 191 vitória do regime monárquico consti- 94) 9. Desde pelo menos a década de tucional que chegaria até 1910. Mas 1870 que em vários jornais açorianos não é menos verdade que as recom- surgiam planos de putativos protecto- pensas desses serviços tinham sempre rados americanos ou ingleses sobre ficado aquém do merecido e neces- as ilhas, exprimindo uma espécie de sitado localmente, para que as ilhas “noção ressentida da diferença” entre açorianas pudessem, também elas, ilhéus e continentais, que reforçava usufruir do progresso que tinham aju- uma visão do mundo introspectiva dado a semear no continente depois – “uma identidade açoriana firmada de 1834. Foi assim que se forjou a a partir da ideia do insulamento” representação típica que o açoriano (Co r d e i r o , 2004: 94, 97-98). O sepa- aprendeu a fazer do continente libe- ratismo era a posição mais extre- ral – do abandono, da incompreen- mista, mas não era a corrente maio- são, da ingratidão até, potenciados ritária no pensamento ilhéu. Para a pelo isolamento das ilhas e pela sua maioria, não era preciso ir tão longe. distância em relação a Lisboa. E por Os açorianos jamais deixariam de ser causa disto, a açorianidade oitocen- portugueses – aliás, fora exactamente tista cimentou-se sobre a consciência em momentos de crise e incerteza que da descontinuidade geográfica face a eles tinham demonstrado o seu inex- Portugal continental, sobre a emigra- cedível “portuguesismo sem mácula”, ção, sobre o fascínio pela América, e tomando parte activa no desenvolvi- sobre o desejo autonómico, cuja face mento e coesão nacionais (Co r d e i r o , mais radical era o separatismo inde- 2004: 96-97). Por isso, ao invés de pendentista. exibirem ameaçadoras “inclinações Fosse no seu fácies de federalismo americanizantes” (Co r d e i r o , 2004: republicano (à Antero de Quental ou 101), muitos preferiam pedir a Lisboa Pacheco do Canto), ou de estreita- maior autonomia, ou seja, descentra- mento de relações atlânticas com os lização, adopção de legislação espe- Estados Unidos ou a Grã-Bretanha, cial e própria para as ilhas e atenções o separatismo alimentava-se de uma específicas às necessidades de desen- dura recriminação contra “a inefi- volvimento local, como ponto de par- ciente e exploradora administração [central] portuguesa” (Le i t e , 2008: 9 165), geralmente acusada de “não Como lapidarmente diria, em 1893, Aris- tides Moreira da Mota – vulto cimeiro da atender às aspirações populares de geração autonómica dos finais de Oito- progresso e de melhoria das condições centos – “o Estado não só gasta pouco com de vida [locais]” (Co r d e i r o , 2004: os Açores, mas gasta mal” (cit. ibidem: 96). 192 Boletim do Núcleo Cultural da Horta tida para uma mais profícua aprendi- mente também chamava a si o cla- zagem e exercício das liberdades e mor da autonomia municipal e local, responsabilidades que se pediam ao sem a intervenção do governo central cidadão constitucional (Co r d e i r o , (Si l v a , 2009: 52-53). Hipoteticamen- 2004: 97)10. te, projectava-se até uma futura orga- Era do caldo desta açorianidade auto- nização federal, de inspiração norte- nómica e/ou separatista que o magro ‑americana. Mas excepto por uma republicanismo local aproveitava. meia dúzia de individualidades e de As nove ilhas atlânticas não eram, pequenos núcleos partidários, nas úl- à partida, terreno favorável para o timas décadas de Oitocentos “o repu- republicanismo: não só o meio ilhéu blicanismo não teria raízes profundas era culturalmente conservador desde no arquipélago dos Açores”, sendo há muito como o peso dos partidos normalmente visto, quando saía à monárquicos (relativamente imunes rua em épocas de agitação eleitoral, aos escândalos e faccionalismos que como pouco mais do que uma vaga minavam já os seus congéneres con- “utopia sentimental” (Si l v a , 2009: tinentais), era considerável, dada a 49)11. Para agravar as coisas, é sabido ligação dos seus chefes às famílias que o PRP, no continente, era unitário mais poderosas e influentes, o que e centralista, olhando, portanto, com evidentemente coarctava a expan- desconfiança para a posição descen- são de qualquer projecto político de tralizadora e autonómico-federalista regime alternativo (Si l v a , 2009: 48). do republicanismo ilhéu. Por isso, e Foi em São Miguel que os republica- ironicamente, as mais das vezes os nos dos Açores começaram verdadei- agitadores republicanos dos Açores ramente a sua organização – aquando tinham mais pontos de contacto com das comemorações camonianas de os monárquicos autonomistas locais 1880 – com um discurso que natural- do que propriamente com o Direc-

10 Como desenvolve o autor, na geração aço- mental para o reforço dos laços da unidade riana do final do século, uma “firme con- e da solidariedade nacionais” (Ibidem: 98). testação ao poder central, vigorosa defesa 11 De acordo com a autora, uma prova da “fraca da descentralização, paulatina construção implantação dos republicanos” nas ilhas foi da ideia de unidade a partir do projecto da o escasso eco que ali teve o escândalo do fraternidade açoriana [e] crescente cons- ultimato, em 1890, ou o repúdio ciencialização da identidade açoriana, cons- pela opinião pública açoriana perante o tituem, sem dúvida, componentes funda- indiferentismo lisboeta em relação ao regi- mentais do processo autonomista que, em cídio, em 1908 (Ibidem: 53-54). última instância, era considerado funda- José Miguel Sardica 193 tório do partido instalado em Lisboa Silveira, o filho, entre 1906 e 1910 (Si l v a , 2009: 54, 56). (Le i t e , 1994: 42, 60). No micro mundo da Horta, onde José Foi decerto o conselheiro regenera- Machado de Serpa se vinha integrar, dor António Severino de Avelar quem o debate autonómico e/ou separatista tutelou a estreia pública do jovem era bem menos vivo do que em São Machado de Serpa nos circuitos da Miguel ou na Terceira. As estruturas opinião e da política faialense. Isto políticas locais, aliás, eram meras porque, na Primavera de 1888, Serpa extensões do bipartidarismo, ou rota- lançou, como director, um jornal tivismo monárquico, copiado do con- porta-voz do Partido Regenerador, tinente e mediado pelos directórios intitulado Folha Insulana. O perió- instalados em Ponta Delgada, pelo dico era semanal, e tinha escritório que as paixões políticas chegavam na Rua do Cais, na Horta. A primeira ao Faial já mitigadas. Como em Lis- aventura jornalística de Serpa não boa, ou em São Miguel, existiam ali durou muito, mas foi o suficiente para um Partido Regenerador – o centro- firmar créditos e para animar a min- ‑direita monárquico – e um Partido guada imprensa ao tempo existente Progressista – o centro-esquerda mo- na ilha. Segundo a contagem de Mar- nárquico. À chefia do primeiro ascen- celino Lima, o cronista-mor do muni- dera, em 1886, o conselheiro Manuel cípio da Horta, a imprensa só chegara Arriaga Nunes, que tratara de reorga- ao Faial em 1857, com O Incentivo, nizar o partido no distrito da Horta de João José da Graça. Na década de (Faial, Pico, Flores e Corvo). Seria 1880, existiram ali uma vintena de ele o homem forte dos regeneradores títulos; especificamente em 1888, faialenses até 1893, quando partiu havia, além da Folha Insulana, tam- para Lisboa, criando um vazio de lide- bém A Verdade, A Regeneração e rança apenas preenchido, dois anos O Independente, todos semanários mais tarde, em 1895, pela escolha políticos. Só a 1 de Janeiro de 1889 de António Severino de Avelar, um se criaria o primeiro diário faialense, protegido de Hintze Ribeiro, como O Açor, dirigido por João Pereira seu sucessor. Avelar lideraria o par- Forjaz (Li m a , 1940: 529-533; Re b e l o , tido na Horta até 1910. Na chefia do 1887: 116-119). segundo esteve o conselheiro Manuel O n.º 1 da Folha Insulana saiu a 10 de Francisco de Medeiros, até 1895 e, Maio de 1888. Serpa explicava tratar- depois, até à República, a família Sil- ‑se de “uma folha modesta, pobre de veira – Miguel António da Silveira, o colaboração”, que não se chamava pai, entre 1895 e 1906, e Miguel da Folha da Horta para que a crítica 194 Boletim do Núcleo Cultural da Horta maldizente não visse nela “uma folha o povo “inerme”, quando este apenas de couve” (!), nem Insulano, por pedia para falar com o rei. esse ser “nome bonito na popa de um Em contraste com as “reformecas” do barco das Ribeiras”. O jornal, de 4 “desastrado” governo progressista, páginas, tinha um editorial político, Serpa lembrava e elogiava a obra do escrito pelo próprio Serpa, notícias da Partido Regenerador, agora na opo- vida local, contributos literários, em sição, “ao qual o moderno Portugal prosa ou verso, e um cantinho onde deve tudo o que é”. Os Regeneradores se recenseavam os principais títulos eram o partido de Fontes Pereira de dos jornais da concorrência. Vinha Melo, “aquela formosa inteligência”, para congregar esforços, porque “não um partido “tolerante, honrado e libe- havia um jornal acentuadamente ral”, que dera ao país a paz, acabando regenerador na capital do distrito”; com “as revoluções e lutas intestinas” era portanto tempo de pôr de lado (Serpa referia-se à Regeneração, em “o azorean torpor de Bullar [por- 1851), e que depois o cumulara de que] para a frente é que é o caminho” estradas, correios, telégrafos, vias- (Folha Insulana, n.º 1, 10.5.1888). ‑férreas, escolas, institutos, indústria, O caminho imaginado por Serpa teria comércio, agricultura, exército e cré- de ser liderado pelo Partido Regene- dito. Fontes morrera pouco antes, em rador, de que ele era então militante. Janeiro de 1887; a Folha Insulana Todo o editorial do n.º 1 é dedicado prestava-lhe homenagem e declarava à situação política nacional, e não a sua fidelidade ao novo chefe nacio- local, elaborando uma cerrada crítica nal, “respeitado e querido do povo”, ao governo progressista em exercício, António de Serpa Pimentel (Folha chefiado em Lisboa por José Luciano Insulana, n.º 1, 10.5.1888). Outro dos de Castro. Era “uma administração heróis de Serpa Machado era Lopo nefasta e nefanda”, que suscitava já Vaz de Sampaio e Melo, ao tempo justos e veementes protestos por parte um regenerador da ala mais jovem dos povos, instigados pelo Partido em plena ascensão no partido, e líder Regenerador numa “significativa e da minoria da Câmara dos Deputa- louvabilíssima insurgência”. Havia dos, em Lisboa. Lopo Vaz era da boa que mover campanha contra “um escola de Rodrigo da Fonseca Maga- governo que, com medo mas sem ver- lhães e de Fontes Pereira de Melo: gonha, teima em ficar contra todas as “Aplana dificuldades, remove obstá- indicações da opinião pública” – um culos, conquista adesões, transigindo, governo “covarde e fanfarrão”, que cedendo, sempre nos limites da digni- ultimamente dera em “espingardear” dade e das conveniências patrióticas” José Miguel Sardica 195

(Folha Insulana, n.º 6, 14.6.1888). Insulana polemizava com o jornal Ao lado da política nacional, Serpa O Independente em termos revela- também se interessava pelas necessi- dores do que era o credo político de dades locais. Num escrito sobre a emi- Machado de Serpa naquele tempo. gração, afirmava tratar-se de assunto O Independente andava a criticar a “que sobrepuja todas as questões que monarquia como sistema “estacio- possam ventilar-se a propósito das nário” e adverso ao progresso dos nossas ilhas”. Era urgente estudar o povos, revelando algumas simpatias fenómeno, indagando-lhe os “moti- republicanas. Serpa, em contraste, era vos”, “inconvenientes” e “vanta- leal ao regime vigente, e muito em gens”, não olhando apenas à sangria particular ao Partido Regenerador: demográfica mas também, por exem- “imagine o colega que o primeiro plo, às remessas avultadas que dela vapor da carreira lhe trazia a nova provinham e que tanto serviam “para do triunfo da República no jardim da minorar os males da pátria querida” Europa. Pergunto eu, teríamos melhor (Folha Insulana, n.º 1, 10.5.1888). governo? A resposta afirmativa peca- À Câmara Municipal da Horta, o jor- ria por falsa se, é claro, não visasse nal pedia, não obstante “a magreza o governo actual” (Folha Insulana, dos seus cofres” e “a escassez das n.º 6, 14.6.1888). suas receitas”, a organização imediata A Folha Insulana desapareceu breve, de um serviço regular de socorro a ainda durante o Verão de 1888. Em incêndios e o abastecimento de água Janeiro desse ano, Serpa tinha sido potável (como se andava a fazer em aprovado no concurso público para Ponta Delgada), bem como uma delegado do procurador régio, com a mais eficiente distribuição da polícia classificação de Bom (As Constituin- municipal, para maior sossego e tran- tes de 1911:191). Em Julho, a máquina quilidade da Horta, por ele mesmo judiciária do Estado proveu-o no lugar descrita como “uma cidade de 8000 de juiz municipal do julgado de Nor- habitantes e de pequena extensão”. deste, na ilha de São Miguel, funções Aos Dabneys, que “vão-nos deixando que acumulou com as de conservador pouco a pouco”, era endereçado um do registo predial da Ribeira Grande sentido agradecimento, pela filan- (Ri b e i r o , 2007: 71). O primeiro des- tropia que durante décadas aquela tes lugares fora criado pelo governo família – dos cônsules americanos na de Lisboa em Fevereiro de 1887, no Horta – exercera localmente (Folha culminar de uma luta administrativa Insulana, n.º 6, 14.6.1888). Num dos que muito animou as gentes locais números de Junho de 1888, a Folha micaelenses, mas que ainda assim 196 Boletim do Núcleo Cultural da Horta ficara incompleta – e que ele trataria causar estranheza; mas talvez possa, de fazer sua quando ali aportou. porventura, ser interpretado como A história conta-se rapidamente, com uma tentativa dos poderes judiciais base na recapitulação feita pelo pró- centrais de nomearem justamente um prio Serpa (Se r p a , 1889: 45 e ss.). elemento equidistante das lutas bair- No extremo oriental da ilha de São ristas entre o Nordeste e a Povoação. Miguel, há muito que o Nordeste rei- Serpa tomou posse como juiz muni- vindicava ser comarca judicial, para cipal numa festa solene de inaugura- não depender da vizinha Povoação, ção ocorrida a 7 de Agosto de 1888. onde os nordestenses tinham de ir O povo do Nordeste acorreu em massa demandar justiça quando dela neces- e a filarmónica local compôs mesmo sitavam, com todos os incómodos e um “Hino 7 de Agosto”; o novo juiz custos de uma viagem curta mas feita fez uma “breve arenga”, após o que por caminhos quase intransitáveis. Em deu posse aos seus funcionários por 1879, Hintze Ribeiro, que fora eleito entre o aplauso geral. O tribunal fun- primeiramente deputado muito gra- cionava num anexo à Câmara Munici- ças aos votos dos nordestenses, apre- pal, um espaço em todo o caso “novo sentara um projecto legislativo em e asseado”, que Serpa logo contrastou Lisboa, de criação de uma comarca com “a maioria dos nossos tribunais, no Nordeste, separando assim as duas de que a possilguenta Boa-Hora, em localidades vizinhas e colocando-as Lisboa, é exemplo frisante” (Se r p a , em pé de igualdade. Mas a inicia- 1889: 63-65, 74). tiva não passara e a subordinação do Mas a rivalidade com a Povoação, Nordeste à Povoação mantivera-se. mesmo que mitigada por aquela con- O máximo que o governo de Lisboa quista, mantinha-se entre as gentes do acabou por conceder aos nordestenses Nordeste, dando corpo a uma “ques- fora a criação de um julgado munici- tão judiciária” que Serpa rapidamente pal, exactamente em 1887: não era o descobriu ser o equivalente micae- ideal, mas já não era mau, permitindo lense do que “na Inglaterra é o home que ali passasse a existir um juiz rule irlandês, na Áustria a questão do municipal, instância imediatamente Oriente e na Itália o poder temporal do abaixo do juiz de comarca (ou “de Papa” (Se r p a , 1889: 45). Com data de direito”) (Se r p a , 1889: 48-63). 12 de Novembro de 1888, Machado Era esse o lugar para que Serpa fora de Serpa enviou de Ponta Delgada nomeado. O facto de o cargo ter sido uma petição sobre o assunto endere- entregue a um picoense de nasci- çada ao Rei D. Luís. Com as formali- mento, e faialense de residência, pode dades suplicantes de “Súbdito fiel de José Miguel Sardica 197

V. Majestade”, e invocando o direito vera de 1890. A obra anunciava-se constitucional de petição “generosa- com um intuito pedagógico. “Sobre o mente outorgado pelo vosso sempre Nordeste”, escrevia ele, “divergem as chorado e Augusto Avô”, o juiz Serpa apreciações: se uns o avaliam lisonjei- relembrava os danos e incómodos de ramente, outros, muitos, que de resto, que continuava a padecer “o vian- pela maior parte, nunca, jamais, por dante” que do Nordeste demandasse lá passaram, fazem-se cargo de apou- a Povoação, tendo que ultrapassar a cá-lo, assoalhando, a seu respeito, cordilheira de 1200 metros que “des- falsas ideias, que o despintam atroz- liga a costa norte e sul de São Miguel”, mente”. Levado “pelo amor da ver- para mais regularmente assolada por dade”, era sua intenção rebater falsos “tufões” durante o Inverno. Não ou- e apressados juízos, “nestas descolo- sando pedir ao monarca o estabeleci- ridas considerações, debuxadas à mento da sonhada comarca judicial, lufa-lufa” (Se r p a , 1889: 8-9). apenas rogava a D. Luís que oficiasse O opúsculo começava por recordar o Ministério da Justiça para que este que no momento em que vindo das viesse a reduzir as penas de cadeia ou “ilhas de baixo” desembarcara em de multa aos nordestenses condena- Ponta Delgada, e declarara que ia para dos em sentença, tudo por causa das o Nordeste, logo houvera gente espan- “viajatas forçadas” por “caminhos tada – que “aquilo” era “um degredo”, intransitáveis” que tinham de fazer “a África micaelense” (Se r p a , 1889: (Se r p a , 1889: 67-71). Era a sua forma 9). Não era nada disso, e só a ignorân- de tomar partido a favor de quem tão cia e a má-fé dos de Ponta Delgada bem o acolhera e da localidade em podia supor tal coisa12. Chegado ao que fora colocado como magistrado. Nordeste, encontrara uma vila bem Em 1889, Serpa publicou na Tipo- aprazível e populosa, num concelho grafia Popular, em Ponta Delgada, o que tinha mais gente do que a Horta opúsculo onde contava toda esta his- ou do que Santa Maria, a Graciosa e o tória e onde aproveitava para desen- Corvo juntos. O clima era agradável, volver uma série de observações e tanto que “Pasteur ver-se-ia [ali] em corográficas e sociológicas sobre o grandes apuros para cultivar as castas Nordeste – onde viveria até à Prima- de vírus e estudar a parasiteria”. Não

12 Serpa achava que a ignorância não seria tão cimento dos recursos e gentes do país conti- grande se a “estatística” estivesse tão avan- nuava a ser “um terreno por desbravar” por çada em Portugal como lá fora. Lamenta- “muitos sábios de mão cheia e cabeça vazia velmente, esse importante ramo do conhe- de miolos” (Ibidem: 17). 198 Boletim do Núcleo Cultural da Horta abundavam as indústrias nem havia um “five o’clock tea”, “numa terra grandes riquezas, mas a agricultura essencialmente económica e onde praticada evitava grandes misérias. as senhoras escasseiam”… (Se r p a , O que sobretudo faltava eram melho- 1889: 97-99) ramentos materiais imediatos e um A lista do muito que faltava servia de substancial incremento na vida esco- alimento para a crítica à proverbial lar e cultural. Hintze Ribeiro era elo- incúria dos governos de Lisboa, e “do giado por ter desbloqueado verbas pouco caso que eles fazem das pérolas para a construção e inauguração de da coroa portuguesa” (as ilhas açoria- um cais de desembarque local, em nas) (Se r p a , 1889: 89). Ao cabo de 18 1875, e de uma pequena estação tele- capítulos de vasta e atenta observação gráfica, em 1883; mas urgia pavimen- sociológica e histórico-patrimonial tar caminhos e abrir fontes de água. (abordando a criação da vila, a popu- Faltavam também, no domínio da lação, o clima, o vulcanismo, a agri- instrução pública, escolas nocturnas, cultura e os edifícios mais notáveis), “que serviriam de muito aos adultos, Serpa fechava o seu escrito com um a não entenderem eles que a ignorân- remoque a todos os portugueses que cia dada pelo berço só a tira a cova”; desprezavam os Açores e a todos os uma biblioteca local, para “não afrou- micaelenses que desprezavam os seus xar no derramamento da instrução, conterrâneos nordestenses: “Lem- enquanto a maioria dos nordestenses, brem-se que também César alcunhou como de resto quasi toda a popula- de bárbaros os habitantes da Grã-Bre- ção rural dos Açores, ainda acredi- tanha, e que os descendentes desses tar piamente em feitiçaria e práticas bárbaros marcham hoje na vanguarda análogas”; e uma “assembleia”, um dos povos civilizados” (Se r p a , 1889: “grémio” ou um “clube”, para que 100). os nordestenses tivessem onde socia- Em 1890, Machado de Serpa terminou lizar, “recreados no jogo do bilhar a comissão de serviço em São Miguel e do voltarete, na leitura variada de e regressou ao Faial, provido no lugar jornais, e em desopilante e instrutivo de delegado do procurador régio da cavaco, um bocado das longas noi- comarca da Horta. Os seus méritos tes de Inverno” (Se r p a , 1889: 17-18, terão pesado nessa nomeação, mas 23, 27, 39-40, 86, 93). Serpa lamen- também o empenho, ou o patrocínio, tava também a inexistência de teatro, do 2.º Conde de Ávila, António José sport (nem sequer havia regatas), tou- de Ávila Jr., Par do Reino, conhe- radas, jogos, bailes ou soirées; não cido influente local e, acima de tudo, havia sequer um modesto hotel para sobrinho do todo-poderoso Duque de José Miguel Sardica 199

Ávila e Bolama, porventura o mais 18.12.1945). Até nós chegaram retra- ilustre e famoso faialense do século tos, de quem o conhecia de perto, do XIX. Numa carta de 17 de Abril de seu perfil como magistrado no Faial, 1890, Serpa reconhecia o serviço onde “poucos o igualavam na justa prestado pelo 2.º Conde de Ávila na apreciação das causas” (Gr e av e s , sua nomeação para a procuradoria 1948: 13). Em funções acusatórias, da Horta: “Agradeço, sumamente como representante da lei, “usava da penhorado, o ter-se V. Exa. dignado face austera e do rigor dos termos”; responder à minha cartinha e rece- mas foram muitas as vezes em que pa- bido de boa mente a minha pretensão. gava do seu próprio bolso as custas E pois que ela está tão bem patroci- judiciais dos mais humildes, “e da nada, limito-me a renovar os protes- sua beira, como da sua casa, nenhum tos de gratidão para com V. Exa. e a pobre saía desconfortado” (Gr e av e s , subscrever-me mui respeitosamente 1948: 35). e com toda a consideração” (cit. por Foi portanto na Horta, e da Horta, que Ri b e i r o , 2007: 71). Serpa viu e viveu os últimos anos do Aportado à Horta, Serpa iniciou as regime monárquico em que nascera, suas novas funções no princípio de crescera e se educara académica, Maio de 1890. Tinha então 26 anos. cívica e politicamente. O maior facto Durante 14 anos, serviria como dele- desse tempo na vida açoriana foi a gado do procurador régio na sede do aprovação do célebre decreto de 2 de distrito. A 30 de Junho de 1904, foi Março de 1895 – o chamado “decreto nomeado para a comarca de Santa autonómico”, concedido pelo governo Cruz das Flores, cargo onde não regenerador do inevitável Hintze Ri- se demorou, dado que requereu e beiro. Reconhecendo o princípio da obteve, em Dezembro desse mesmo descentralização e dando, finalmente, ano de 1904, o regresso à Horta, ao arquipélago um estatuto especial, passando desde então a estar inte- com poderes autónomos correspon- grado na magistratura judicial sem dentes, vertidos em novas estruturas exercício mas com vencimento (As da administração então criadas, ele Constituintes de 1911: 191-192). Já foi saudado como “o início de uma depois do 5 de Outubro, durante a nova vida política e administrativa República, seria ainda nomeado para para o almejado progresso da socie- juiz da comarca de Bragança, no con- dade açoriana” (Le i t e , 2008: 159, tinente, tendo declinado este último 162, 165). Mas o decreto, como se lugar por ser então membro do parla- veio a verificar, teve acidentada vida mento em Lisboa (Correio da Horta, e, só por si, não produziu o milagre 200 Boletim do Núcleo Cultural da Horta do desenvolvimento regional. A crise constitucional e como, a partir dela, da monarquia e os acidentes da polí- alcançar mais bem-estar e progresso, tica continentais não favoreciam a es- material e moral, para aquelas gentes tabilidade do sistema da Carta Consti- geograficamente periféricas. Ou dito tucional, o que descontentava regene- de outra maneira, era-se monárquico radores e progressistas ilhéus, dando quando ainda se acreditava que o um pouco mais de alento às causas sistema existente em Lisboa poderia radicais do separatismo ou do repu- olhar mais atentamente para as neces- blicanismo (Le i t e , 2008: 165). Neste sidades locais, ou simpatizava-se com confuso quadro, os primórdios do sé- o republicanismo, não pela sua van- culo XX foram vividos, nos Açores, guardista proposta ideológica de entre a expectativa, a crítica e o desa- per se, mas porque o republicanismo lento. A viagem do rei D. Carlos ao aparecia como a capa mais disponí- arquipélago, em 1901, ainda provocou vel e instrumentalizável para recobrir um sobressalto de devoção monár- reivindicações que eram, no fundo, quica e de patriotismo cívico. Mas foi supra-partidárias. de pouca duração e intensidade; no O caso de José Machado de Serpa é fundo, como acertadamente resumia justamente um bom exemplo desta um jornal republicano micaelense disposição mental. Serpa passou da nesse mesmo ano, “o povo ignora Monarquia para a República, que tanto o prestígio da Monarquia como serviu, depois do 5 de Outubro, em a razão de ser de uma República” (cit. cargos políticos de relevo, na Horta por Si l v a , 2009: 48). e mesmo em Lisboa. Mas as descri- O que isto significa é que para o aço- ções do seu perfil, mesmo descon- riano médio, aqui cabendo não ape- tado o tom encomiástico usado pelos nas o pequeno político, o cacique, o seus amigos, não permitem resumir- magistrado ou o jornalista local faze- ‑lhe essa passagem como uma vulgar dor de opinião, mas também o cida- operação de “adesivagem”. Euclides dão anónimo esclarecido, o problema Costa, um dos mais lúcidos compa- português não era o da opção entre a nheiros de Serpa ouvidos por Manuel Monarquia, que estava para findar, e Greaves para o In Memoriam já várias a República, que se anunciava estar vezes citado, era claro ao afirmar que para vir. Como sempre, desde que o magistrado picoense “não cultivou a modernidade liberal chegara aos a política, fazendo dela um mero des- Açores, na pessoa de D. Pedro IV, porto intelectual e estético” (Gr e av e s , durante a Guerra Civil, o problema 1948: 11). E de facto, depois da mili- era o de saber o que fazer da liberdade tância jornalística pró-regeneradora José Miguel Sardica 201 da década de 1880, nunca mais nin- mas um sincero elogio, as palavras guém o viu ou ouviu batalhar por um acerca dele ditas pelo Padre Nunes determinado partido. Ainda segundo da Rosa, ao recordar o ano de 1910 Euclides Costa, ele “não abrigava e o primeiro cargo detido por Serpa predilecções doutrinárias”; não era no novo regime: “Quando do advento “nem reaccionário, nem revolucioná- da República […] foi, como se sabe, rio. Somente democrata, um demo- feito governador civil, como pode- crata tradicionalista, sem mistérios ria ter sido elevado à presidência do nem missão, que alimentava as vir- governo central ou, se a coisa nessa tudes cívicas com o mel dos manda- hora tombasse à outra banda, a minis- mentos cristãos” (Gr e av e s , 1948: 11). tro del-Rei – tal a historicidade das Outras vozes e até a imprensa local suas linhas políticas” (Gr e av e s , acrescentam que, nas vésperas do 1948: 19). 5 de Outubro, Serpa estava “afastado Serpa não serviria indistintamente por completo dos partidos militantes Monarquia ou República porque da Monarquia”, ao mesmo tempo que era um oportunista; aceitaria servir não era ostracizado como inimigo pelo uma ou a outra, conforme sincera- pequeno grupo republicano existente mente encontrasse, numa ou noutra, na Horta (O Telégrafo, 7.10.1910; o melhor caminho e sustento para Gr e av e s , 1948: 30). Era esta equi- uma vida decente e democrática. Foi distância, esta elevação em tempos decerto esta particular forma de ser e crispados, esta demanda por uma de ver os homens e as coisas que abriu simples democracia eticamente infor- a Machado de Serpa novas oportuni- mada, para lá de qualquer mecânica dades quando, em Outubro de 1910, a e acrítica adesão partidária (e par- República triunfou sobre a Monarquia cial, portanto), que o distinguia aos Constitucional, liquidando o regime olhos dos faialenses que o viam pas- que ele tão competentemente servira, sar. Por isso não eram um reparo, no foro judicial, durante anos a fio.

4. a Re p ú b l i c a n a s i l h a s e a s i l h a s n a Re p ú b l i c a : g o v e r n a d o r civil, d e p u t a d o e s en a d o r

Acerca de nenhuma localidade em cia, um dos grandes (senão mesmo Portugal senão a Horta é tão apro- o maior) porta-vozes das novidades priado dizer-se que a República che- junto da opinião pública da ilha do gou pelo telégrafo, já que, a somar a Faial era o jornal… O Telégrafo. Na esse meio de comunicação à distân- Horta, como em todas as demais 202 Boletim do Núcleo Cultural da Horta paragens açorianas, a implantação a 13 de Novembro (Si l v a , 2009: 58, da República chegou como um facto 62). Neste último caso, aconteceu ser consumado, não suscitando especiais José Machado de Serpa o mestre-de- comoções, nem no declarado apoio à ‑cerimónias do acto, no exercício do nova ordem nem no lamento pelo fim cargo para o qual o 5 de Outubro ime- do regime monárquico. A transição diatamente o conduziu – o de gover- foi feita em sossego entre as elites e nador civil da Horta. perante a geral indiferença das mas- Além de substituir, simbolicamente, sas (Si l v a , 2009: 47)13. O republica- a chefia hereditária do Rei pela che- nismo local acolheu com natural fia electiva do Presidente da Repú- satisfação a novidade chegada de blica, o novo regime tinha, para se Lisboa, e mesmo a generalidade dos firmar, que reorganizar, desde a base monárquicos e dos católicos, pelo ao topo, a máquina burocrática do menos inicialmente, não hostilizou o Estado. Assim, nos dias imediata- novo regime, como se lhe concedesse, mente a seguir ao triunfo republicano tendo em vista o que fora a agonia em Lisboa, por todo o país foi sendo dos últimos tempos monárquicos, o removido o pessoal político monár- “benefício da dúvida” (Si l v a , 2009: quico (sobrevivendo apenas aquele 50)14. Assim, foi sem incidentes que que se “adesivou” à nova situação), as capitais distritais das ilhas reali- e empossados novos nomes, em zaram, uma a uma, as cerimónias administrações de concelho, verea- oficiais de proclamação da República ções camarárias, juntas de freguesia, no arquipélago: Ponta Delgada logo a repartições de funcionalismo público, 9 de Outubro de 1910, Angra do comissariados de polícia, conselhos Heroísmo a 16 de Outubro, e a Horta directivos de escolas, etc. A voragem

13 Como sintetiza José Guilherme Reis Leite, quicos e republicanos]; a dos expectantes, “A República foi implantada no final de que aguardam o desenvolvimento da situa- 1910 nos Açores, como no resto do país, afi- ção para depois decidirem a posição a tomar nal, por telegrama, sem resistência e até sem quanto à aceitação das novas instituições; protestos assinaláveis” (Le i t e , 2008: 166). a dos que aceitam o novo regime – sem 14 O quadro particularizado por Carlos Cor- compromissos de colaboração futura – mas deiro para São Miguel é decerto extensível que teriam preferido que a sua implantação a outras ilhas: à parte minoritárias posi- fosse resultado de uma vitória nas urnas; ções extremistas, de “oposição frontal” e a dos indiferentes, que acreditavam que a de “exaltação mitificadora dos heróis da mudança de regime em nada iria alterar as Rotunda”, o que predominou foram posi- suas condições de vida” (Co r d e i r o , 1995: ções menos radicais – “a dos ‘adesivos’, 289-290). detestados por uns e por outros [monár- José Miguel Sardica 203 da clientela nova em aceder aos luga- e fazendo fé no credo democrático, res do Estado era, no entanto, inver- na postura humanista e tolerante, na samente proporcional à distância em competência profissional e no res- relação a Lisboa. Ou seja: quanto peito que granjeara entre a popu- mais longe da capital, menos repu- lação faialense, é possível que tenha blicanos “históricos” existiam e, por- sido aquela a lógica que presidiu à tanto, mais os líderes de Lisboa esta- sua escolha para o Governo Civil da vam dependentes das próprias gentes Horta. De concreto, há alguns factos e sensibilidades locais para angaria- que é possível apurar. O novo ministro rem novo pessoal político. do Interior do Governo Provisório, o Por isso o “saneamento” geral dos conhecido António José de Almeida, monárquicos teve limites. Em alguns a quem cabia o grosso das nomeações casos tinham mesmo que ser eles a para lugares políticos e administra- continuarem em funções; e muitas tivos, tinha por programa de acção vezes o poder central em Lisboa deu “confiar o arquipélago a autênticos espaço a que fossem as sensibilidades ilhéus”, demonstrando, nesse gesto de locais a escolherem quem iria ocupar boa vontade, “os respeitos devidos a lugares e republicanizar o que ainda um povo desde séculos legitimamente não era propriamente republicano. ambicioso de possuir autonomia” Nos Açores, os cargos administra- (Gr e av e s , 1948: 10). Ora acontece tivos e políticos não foram portanto que “alguém” em Lisboa sugeriu o preenchidos por “clientes” do PRP de nome de Machado de Serpa ao novo Lisboa. O que o Governo Provisório ministro, que imediatamente enviou da República fez foi nomear nomes para a Horta “um telegrama instante” óbvios ou por alguém sugeridos, ou a convidá-lo para o lugar de gover- auscultar os poderes locais e deixá- nador civil. A Serpa não lhe agradava ‑los escolher quem queriam que ali sobremaneira o posto, mas aceitou-o, mandasse. Regra geral, “aqueles que “depois das indispensáveis conferên- não se haviam comprometido com as cias que teve com alguns membros do instituições monárquicas, velando de partido republicano” da Horta, por- forma mais ou menos visível pelos que “lhe desgostava uma recusa nesse valores republicanos” foram “os pre- momento histórico que se apresen- miados com a atribuição de cargos tava a todo o país” (Gr e av e s , 1948: políticos” (Si l v a , 2009: 59). 29-30; O Telégrafo, 7.10.1910). Não se conhecendo especial mili- Embora alguns lembrassem que “o tância política da parte de Machado seu temperamento” estava “acostado de Serpa nos anos anteriores a 1910, à nova situação”, não aceitou o lugar 204 Boletim do Núcleo Cultural da Horta por clara militância republicana – Machado de Serpa no Governo Civil caso em que o seu nome não teria pre- ocorreu logo a 6 de Outubro, pouco cisado de especiais apresentações em mais de 24 horas depois de José Lisboa (Gr e av e s , 1948: 30). Antó- Relvas ter proclamado a República nio José de Almeida não o conhecia; na varanda da Câmara Municipal de mas confiou que o dedicado açoriano Lisboa16. O acto foi em extremo con- poderia ter um bom perfil para um corrido. De acordo com a narrativa lugar chave de comunicação entre o d’O Telégrafo, Serpa teve “palavras novo regime e a realidade do distrito honrosas” para com os seus ante- açoriano das “ilhas de baixo”. Vale a cessores e fez questão de considerar pena acrescentar ainda que o anteces- aderentes ao novo regime todos os ali sor de Serpa, ou seja, o último gover- presentes. O seu discurso foi “uma nador civil da Horta do regime monár- alocução notável, repassada de fé pelo quico, empossado em Junho de 1910 futuro”: “Consola ver tanta gente” e afastado com o 5 de Outubro, fora – afirmou ele – “e de tão variada con- o conselheiro António Severino de dição, a congraçar-se aqui, a enlaçar- Avelar, o velho líder local do Partido ‑se no mesmo e único intento, qual o Regenerador que servira de patrono a de solenizar em fraternal convívio o Serpa vinte anos antes, quando este triunfo do novo sobre o velho regime. desembarcara na Horta provindo de Porque todos nos apinhoamos aqui Coimbra (Li m a , 1940: 718; La p a , para nos felicitarmos de viver na 1962: 245)15. Não é impossível ima- República e para protestarmos bem ginar que Severino de Avelar tenha servi-la”. Assinado o auto de posse, mantido sempre boas relações com o içou-se a bandeira, tocou-se o hino e o seu protegido, facilitando até a tran- novo governador civil veio à varanda, sição de poderes. agradecer as manifestações e os vivas Os contactos entre o Ministério do (O Telégrafo, 7.10.1910). Interior e a Horta foram sumamente Machado de Serpa tinha então 46 rápidos. A tomada de posse de anos. Atingira um dos mais importan-

15 Apesar do seu passado monárquico, Antó- Para Angra do Heroísmo foi escolhido Hen- nio Severino Avelar voltaria a ser gover- rique de Oliveira Braz e para Ponta Delgada nador civil da Horta durante a I República, Francisco Luís Tavares. O continente tinha entre 6 e 30 de Janeiro de 1915. 17 Governos Civis, e não os 18 actuais, 16 Serpa foi nomeado no mesmo “pacote” que uma vez que apenas em 1927 seria criado procedeu à substituição de todos os gover- o Governo Civil de Setúbal, desanexado do nadores civis do país – ao todo 21, 17 no de Lisboa. continente, 3 nos Açores e 1 na Madeira. José Miguel Sardica 205 tes lugares administrativos (e políti- A linha de acção por ele seguida nos cos) de toda a sua longa vida pública. meses em que ocupou tão importante Era um momento delicado, que reque- posto foi resumida por quem o conhe- ria pulso forte, mas também uma ceu. Por um lado, “sem se isolar do generosa atitude conciliatória entre apoio do grupo republicano” local o passado e o presente. Os Governos – que era “de bem pequena represen- Civis eram, desde que a Monarquia tação mas de antigas dedicações pela os criara, logo após a Guerra Civil, ideia” – Serpa “extraiu dele parte dos instâncias chave de mediação dos elementos para as gerências internas poderes e, sobretudo, de ligação e de e montou como pode a máquina diálogo entre o governo central e a administrativa” (Gr e av e s , 1948: 30). rede dos poderes periféricos espalha- Mas fugiu a qualquer sectarismo ideo- dos pelo país. Competia-lhes receber lógico ou partidário, agindo sempre e fazer cumprir as decisões emana- “sem arrebatos nem desmandos, sem das do “centro”, dando expressão programas nem promessas”, condu- ao desígnio mais ou menos centrali- zindo as quatro ilhas que lhe tinham zador do Estado, e, ao mesmo tempo, sido confiadas “da Monarquia para tutelar as corporações locais e capi- a República, harmonizando serena- tanear a máquina político-eleitoral mente, fraternalmente, ricos e pobres, que subordinava partidos e elites aos crentes e descrentes” (Gr e av e s , 1948: interesses daquele mesmo “centro”. 11). Foi por isso que “os partidos Numa palavra, e naquele caso e con- extintos” – as forças monárquicas – juntura, o Governo Civil da Horta “não lhe rejeitaram a sua simpatia”, seria o rosto e a voz da República nas mantendo-se benevolentes e até “acer- ilhas do Faial, Pico, Flores e Corvo. cando-se dele desinteressadamente”; O primeiro governador civil da Horta quanto à imprensa local, “manifes- tou-se com agrado e apoio ao novo fora nomeado pelo governo setem- governador” (Gr e av e s , 1948: 31). brista, em Junho de 1836; Serpa era o Serpa era, como se viu, fundamen- 39.º a ocupar o posto, na realidade o talmente um democrata conciliador 31.º nome, descontando as repetições e humanista. Como tantos outros no (La p a , 1962: 243-245)17. Portugal do tempo, manifestava uma relativa indiferença em relação à forma do regime – mas não transi- 17 António José Vieira Santa Rita foi gover- nador civil da Horta em quatro momentos gia no seu conteúdo, mostrando-se diferentes, e o Visconde de Leite Perry em avesso a qualquer tipo de sectarismo três momentos diferentes. extremista. O caso do Cemitério do 206 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

Carmo, nos finais de 1910, ilustra preferiu narrar, nas suas crónicas para isso mesmo, permitindo demonstrar o O Fayalense, os aspectos mais desca- quanto ele se distanciava do republi- racterizadores do comércio religioso canismo jacobino e radical. Certo dia, local, e guardar para si a devoção e um exaltado procurou-o, exigindo-lhe fé que ali o tinham levado (Gr e av e s , que mandasse remover a cruz de pedra 1948: 11-12). que estava no Cemitério do Carmo No Governo Civil, o dia-a-dia era por a mesma estar “contra as ideias preenchido com o expediente e com novas”. O governador civil recusou as visitas de serviço às instituições, liminarmente, dizendo: “Aceitei este associações e população perante as lugar não foi para ser nenhum operá- quais ele representava a República. rio demolidor de memórias ou cren- Não era um cargo com poderes exe- ças, mas para que a República recém- cutivos – tirando uma meia dúzia de ‑nascida possa criar adeptos leais, competências administrativas – mas simpatias do povo e melhores desti- fundamentalmente de representação e nos” (Gr e av e s , 1948: 30-31). Não de observação. Serpa era o “embaixa- partilhando do laicismo ateu que era dor” da República nas “ilhas de baixo” ingrediente ideológico central da orto- e, simultaneamente, o porta-voz, à doxia republicana do PRP, é também distância, das necessidades, anseios verdade que nunca alimentou cleri- e reivindicações dessas mesmas ilhas calismos excessivos, apesar do seu perante a República em Lisboa. Entre arreigado cristianismo. No exercício os Governos Civis de todo o país e das suas funções, encontrou certa vez o Ministério do Interior as ligações uma senhora amiga que destratou foram-se aprofundando após o 5 de Afonso Costa, qualificando-o como Outubro, produzindo um correio de um homem “mau, sem Deus, inimigo informações, recomendações, despa- dos padres, de maus sentimentos, que chos, ofícios e pedidos vários tão até dizem ter batido na mãe”. Com a mais prolixo quanto era importante, sua verve impenitente e o seu caracte- do ponto de vista político-eleitoral, e rístico sentido de humor, Serpa logo de peso, do ponto de vista demográ- retorquiu, contemporizador: “quanto fico, a cidade e região representadas. à mãe, é falsíssimo esse dito, porque Segundo o censo de 1911, o Faial ele nunca a conheceu. Era enjei- tinha 20.362 habitantes; só a cidade tado!” (Gr e av e s , 1958: 201). Todo o da Horta 6.099 (Le i t e , 1994: 17, 19; excesso, em política ou em religião, Ro c h a , 2008: 268). O declínio demo- à esquerda ou à direita, o impacien- gráfico face ao século XIX era óbvio, tava. Quando peregrinou a Lourdes, o que fazia do Governo Civil chefiado José Miguel Sardica 207 por Serpa um interlocutor secundário tava a eleição dos deputados para a na hierarquia dos 21 Governos Civis Assembleia Nacional Constituinte, o do país. órgão legislativo que, em Lisboa, iria Mas os números nunca o fizeram redigir a nova Constituição e aprovar esmorecer. Uma análise sumária dos a legislação entretanto produzido pelo assuntos tratados na correspondência Governo Provisório, dando à Repú- trocada entre o Governo Civil e Lis- blica uma legitimidade parlamentar. boa mostra o vasto âmbito da actua- O decreto tinha data de 14 de Março, ção de Serpa, entre assuntos inócuos e e Serpa, que encetou os necessários outros politicamente mais relevantes: preparativos para o fazer cumprir, inventário de bens de instituições reli- cessou funções, oficialmente, a 1 de giosas, administração de confrarias, Abril, ao cabo de quase seis meses no misericórdias ou asilos, inquéritos a cargo (La p a , 1962: 245)18. A razão supostas ilegalidades na actuação de era legal. Dado que Serpa já delibe- vereações camarárias, obras, restau- rara apresentar candidatura à eleição ros e reedificações, requerimentos para deputado, tinha de renunciar ao e petições de particulares, Câmaras, lugar de governador civil, nos termos grémios e associações, despacho de das incompatibilidades estabelecidas pensões e emissão de passaportes, pela nova lei eleitoral. Serpa ainda avisos de crédito ou ordens de paga- estava interinamente em funções mento várias, nomeações, exonera- quando, por decreto de 28 de Abril, o ções e transferências de funcionários, acto eleitoral foi convocado, em todo preocupações com a ordem pública, o país, para o dia 28 de Maio. Foi os serviços de polícia ou melhora- só na segunda semana de Maio que mentos vários há muito ansiados por entregou o lugar de governador civil populações locais (ANTT, Ministério ao seu sucessor, Augusto Goulart de do Reino e Ministério do Interior). Medeiros (O Telégrafo, 12.5.1911)19. Em meados de Março de 1911, che- Por todo o país, a escolha dos deputa- gou à Horta o decreto que regulamen- dos que iriam integrar a Constituinte

18 Ao longo de toda a I República, entre 20 meses de exercício do cargo a cada um Outubro de 1910 e Maio de 1926, a Horta (Ibidem: 243-246). teve 21 governadores civis, o que corres- 19 Goulart de Medeiros, oficialmente nomeado ponde a uma média de exercício do cargo de a 29 de Abril de 1911, seria, curiosamente, 9 meses. Por contraste, a Monarquia Consti- o governador civil que mais tempo exerceu tucional tivera 38 governadores civis em 64 funções durante a I República, tendo sido anos (1836 a 1910), o que dá uma média de exonerado apenas em Abril de 1914. 208 Boletim do Núcleo Cultural da Horta foi mais feita por plebiscito do que pelas autoridades do PRP, foram pura propriamente por eleição disputada e simplesmente proclamados vence- entre candidaturas e partidos rivais. dores, porque o governo decidira não Todo o processo foi aliás sui generis. realizar escrutínio onde quer que não O jornal O Mundo, porta-voz lisboe- existisse oposição organizada em ta da facção “afonsista” do governo, candidatura eleitoral (Ra v a r a , 1981: achava que não chegara ainda a altura 149) 20. Como resultado, 82 dos depu- de abrir a Assembleia, preferindo pro- tados da Constituinte foram procla- longar a “ditadura” administrativa mados e 136 efectivamente eleitos revolucionária. A posição não vingou, – compondo um parlamento que era mas vingou a ideia de que a escolha pouco mais do que uma assembleia do dos candidatos a deputados deveria PRP de Afonso Costa (Ra v a r a , 1981: ser, tanto quanto possível, monopo- 138). Dos quatro círculos ilhéus, lizada pelo PRP, através do seu houve eleição no Funchal e em Ponta Directório central, juntas consultivas Delgada e não foi necessário ir à urna e comissões distritais; seria a melhor em Angra do Heroísmo e na Horta. maneira de garantir candidaturas O que quer dizer que Serpa, conjunta- retintamente republicanas e de afastar mente com os outros dois deputados de São Bento “adesivos” e “reaccio- das “ilhas de baixo” no novo parla- nários” (Ra v a r a ,1981: 127,132-133). mento de Lisboa, não foi escrutinado Por isso, não havendo verdadeira- pelo voto em urna 21. Além de José mente inimigos a derrotar na urna – Machado de Serpa, os outros dois de- só em alguns círculos houve adversá- putados eleitos – ou proclamados – rios socialistas – a campanha eleitoral pela Horta eram ambos militares, o decorreu em “clima morno”, o que capitão de artilharia Manuel Goulart era sobretudo visível nas terras mais de Medeiros e o capitão de fragata distantes (Ra v a r a , 1981: 137). José António Arantes Pedroso Em 21 dos 51 círculos eleitorais do (Pe r e i r a , 1959: 81-86). continente e ilhas convocados à urna Um decreto de 9 de Junho fixava para para o dia 28 de Maio não chegou dali a dias, a 15, a reunião de todos sequer a haver eleição: os candi- os deputados eleitos em São Bento. datos, todos sufragados previamente Serpa chegou a Lisboa antes disso.

20 Dos cerca de 850 mil eleitores recenseados, 21 As ilhas elegeram, ao todo, 14 deputados só uns 60% foram às urnas para eleger os para a Constituinte: o Funchal 4, Ponta candidatos republicanos (Lo p e s e Sá, 1986: Delgada 4, Angra 3 e a Horta outros 3 int.). (Al m e i d a , 1998: 738). José Miguel Sardica 209

Em finais de Maio, um seu amigo, tuição, a 21 de Agosto de 1911 – ele Luís Ribeiro, encontrou-se com ele soube sempre combinar o interesse no Hotel Francfort, na Rua de Santa por assuntos nacionais (os que se Justa, que o picoense escolhera para discutiam em São Bento), com o sua morada em Lisboa. Foram ambos interesse e empenho nos assuntos ao Ministério da Justiça, onde Luís regionais (dos Açores) e distritais (da Ribeiro tinha assuntos a tratar com Horta). Era fiel ao perfil típico do um funcionário superior, Germano deputado ilhéu desde que havia par- Martins. Quando Germano Martins lamentarismo em Portugal: represen- avistou Serpa disse-lhe logo: “está tava a nação, mas era sobretudo um servido; pode ir-se embora”. E expli- procurador dos interesses dos seus cou a Luís Ribeiro: “Este homem é próprios constituintes, cuja voz a geo- terrível. Quer tudo para o Faial, e se grafia condenava ao silêncio pela dis- lhe mete uma coisa na cabeça, não tância em relação a Lisboa. Por isso mais a larga até a alcançar. Como Serpa mereceu elogio semelhante ao só pede coisas possíveis, adoptei o feito a tantos outros deputados faia- expediente de lhe dizer que sim, antes lenses antes dele, sendo recordado mesmo de o ouvir”. O caso é que como “um dos políticos a quem a Serpa tivera conhecimento, mal che- Horta mais ficou devendo”, neste gara a Lisboa, de um espólio de livros caso durante o regime republicano provindo das casas religiosas extintas (Correio da Horta, 17.12.1946). pela República, e deliberara logo con- Foi a 15 de Junho que compareceu seguir alguns volumes para a biblio- pela primeira vez no Palácio de São teca pública da Horta, que ele mesmo Bento, para a sessão de verificação de lamentava estar ainda tão “pobrinha” poderes. A 19, o seu diploma de de- (Correio da Horta, 17.12.1946). putado foi aprovado, conjuntamente Por este episódio se vê o espírito de com os dos colegas parlamentares missão de que Serpa se achava inves- do distrito da Horta (DANC, Sessão tido enquanto deputado da Assem- n.º 1, 19.6.1911: 3). Das 60 sessões bleia Constituinte. Ainda antes de da Constituinte, Serpa esteve presente tomar posse, e durante os pouco mais em quase todas 22. Não falou muitas de dois meses que duraram os tra- vezes e quando intervinha não dis- balhos – até à aprovação da Consti- cursava extensamente. Não era polí-

22 V. os registos de presenças no Diário da a 14.ª, a 5 de Julho, a 24.ª, a 18 de Julho, Assembleia Nacional Constituinte (DANC). a 29.ª, a 24 de Julho, a 41.ª, a 8 de Agosto, Das 60 sessões, Serpa apenas faltou a 5 – e a 47.ª, a 14 de Agosto. 210 Boletim do Núcleo Cultural da Horta tico, muito menos orador ou tribuno “o ser-se conservador não quer dizer como os próceres do republicanismo que se seja improgressivo”, explicou ali presentes; era magistrado, ou seja, (DANC, Sessão n.º 27, 21.7.1911: 8). um jurista, habituado a dissecar leis Uma das suas primeiras iniciativas na e menos o contexto sócio-político a Assembleia Constituinte, em finais de que elas se viriam a aplicar 23. Dos Junho, foi decerto fruto do lobbying seus retratos parlamentares avulta a açoriano de que nunca deixou de ser imagem de uma forma de estar “ele- porta-voz: tratou-se da apresentação vada e tolerante” (Correio da Horta, de um projecto-lei, assinado também 18.12.1945), o que não era dizer pelos colegas faialenses Goulart de pouco num tempo (não apenas o da Medeiros e Arantes Pedroso, que au- Constituinte, mas o de todo o parla- torizava o governo a criar um entre- mentarismo republicano), de aceso posto comercial, na realidade um confronto verbal e de crescente cris- “porto franco”, na Horta (e também pação partidária. Gostava de ouvir em Cabo Verde), como forma de ali os colegas, verbalizando às vezes atrair navegação e incrementar trocas “à partes espirituosos que em breve comerciais (DANC, Sessão n.º 11, lhe granjearam simpatia e o puse- 30.6.1911: 3-4). Não seria a última ram em foco pela ironia com que das suas iniciativas ou intervenções causticava alguns oradores” (Se r p a , de cariz mais extra-político. Em 1987: 15). No parlamento, dizia-se, Agosto, a propósito de um cumpri- “jamais foi aquela pessoa a que cha- mento endereçado pelo Ministro da mávamos um político, nem o conhe- Justiça, Afonso Costa, à magistratura cemos dedicado a um credo partidá- portuguesa, Serpa – inspirado pela rio” (Gr e av e s , 1948: 29) 24. No único sua própria vida profissional passada retrato político-ideológico que de si – aproveitou para lançar alguns pedi- mesmo fez na tribuna de São Bento, dos: que o recrutamento para a car- disse apenas ser conservador – mas reira fosse sempre feito por concurso;

23 Na Assembleia Constituinte, o grupo pro- comerciantes e industrias (6%), o clero, os fissional onde Machado de Serpa se incluía estudantes e o operariado, cada um com 1% – o dos “homens de leis” – representava (Lo p e s e Sá, 1986: int.). 16% do total dos deputados eleitos. Maiores 24 Nos termos de um amigo chegado, “quando eram apenas as representações dos médicos abordava os problemas políticos do nosso (21%) e das forças armadas (18%). Seguiam- tempo, ou da nossa terra, nunca o fazia com ‑se, por ordem decrescente, os professores e a visão restrita dos que não têm, ou abdica- profissões liberais (13%), os funcionários ram da sua personalidade, vivendo agarra- públicos (11%), os proprietários (8%), os dos a doutrinas ou a chefes” (Ibidem: 27). José Miguel Sardica 211 que o poder político respeitasse a n.º 27, 21.7.1911: 6-7; Ma d u r e i r a , independência do poder judicial; e 1915: 324-326). Contudo, volvidos que futuramente se viesse a fixar alguns dias, a 27 de Julho, quando um limite de idade para o exercício se discutia matéria da sua especial da magistratura, dado o desgaste predilecção – os direitos e garantias inerente à profissão (DANC, Sessão individuais a inscrever na Consti- n.º 48, 15.8.1911: 15). tuição – o seu rigorismo jurídico foi Pela sucessão e teor das suas interven- inflexível. Estava em análise a redac- ções propriamente políticas depreen- ção do n.º 16 do art.º 3.º do projecto de-se que estava disposto a ir longe de texto constitucional. A formulação na defesa da legitimidade do regime. era: “Ninguém poderá ser preso sem A 21 de Julho, por exemplo, discuti- culpa formada excepto nos casos ta- ram-se, na ordem do dia, medidas xativamente declarados na lei”. Serpa extraordinárias a tomar para comba- achou que isto era constitucional- ter focos insurreccionais e conspi- mente vago, além de politicamente rativos contra a República. “Rouco, perigoso: qual seria a lei, e quem a com má voz mas dicção correntia” faria, que regularia aqueles casos? – como registou um cronista da vida Votou então a correcção, apresentada parlamentar (Ma d u r e i r a , 1915: 324) pelo deputado António Macieira, que – Serpa apoiou publicamente um pro- viria a ser aceite na formulação final jecto legislativo de Álvaro de Castro do parágrafo – que se substituísse a que permitia um reforço das defesas expressão “nos casos taxativamente militares fronteiriças e a criação de declarados na lei” pela enumeração um tribunal especial destinado ao jul- desses casos: “alta traição, falsifi- gamento dos crimes de conspiração, cação de moedas, notas do banco embora exigisse a salvaguarda do nacional ou títulos da dívida externa, direito integral de defesa dos réus ali quebra fraudulenta, flagrante delito, levados através do competente pro- fogo posto e burla” (DANC, Sessão cesso judicial. Por ele, disse, não gos- n.º 32, 27.7.1911: 20-21; Ma d u r e i r a , tava muito de leis de excepção; mas 1915: 410) 25. em circunstâncias especiais, em que Não era contudo um puro “afonsista”. estava em causa a segurança nacio- nal, a legislação ordinária existente 25 poderia de facto não chegar: “a lei A redacção final da Constituição ainda acrescentaria o “homicídio voluntário” e o geral é muito linda, como máxima “furto doméstico”. No dia seguinte a este jurídica, mas tem os seus quindins ao debate, quando se discutiam os prazos a pôr-se em prática” (DANC, Sessão fixar para a incomunicabilidade dos detidos, 212 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

A ala mais radical do PRP não deve “o Presidente deve escolher e esco- ter apreciado sobremaneira a tomada lher bem”, não deixando fora das suas de posição de Serpa na sessão de 15 mãos o controlo sobre a principal voz de Agosto. É sabido que a Constitui- do governo (DANC, Sessão n.º 48, ção de 1911 consagrou o princípio, 15.8.1911: 11; Ma d u r e i r a , 1915: canónico nos Estados de direito, da 602) 27. separação tripartida dos poderes; mas A Constituição foi unanimemente é também sabido que, ao contrário votada na sessão de 21 de Agosto do constitucionalismo monárquico, a (DANC, Sessão n.º 56, 21.8.1911: ênfase republicana foi sempre posta 12); quando chegou o dia 24 – penúl- no poder legislativo em detrimento tima sessão – Serpa votou em Manuel do executivo, desenhando uma parla- de Arriaga, e não em Bernardino mentarização (porventura até exces- Machado, na eleição para a Presi- siva) do regime destinada, muito cla- dência da República. Bernardino era ramente, a secundarizar e menorizar o candidato de Afonso Costa e da ala a figura e os poderes do Presidente radical do PRP; Arriaga era o candi- da República 26. Talvez para tentar dato do chamado “bloco” moderado, temperar esta parlamentarização, que ou seja, da soma de sensibilidades desequilibrava a balança de poderes à direita do “afonsismo” que não a favor dos representantes da nação, tardariam a organizar-se nos parti- Serpa expressou o seu claro apoio à dos evolucionista, de António José proposta, inicialmente redigida pelo de Almeida, e unionista, de Manuel deputado Sidónio Pais e com a qual Brito Camacho. Contados os votos, nem todos concordavam, de que Arriaga triunfou com 121 sufrágios; competiria ao Presidente da Repú- Bernardino Machado recolheu apenas blica seleccionar e nomear, de entre 86 (DANC, Sessão n.º 59, 24.8.1911: os ministros, o Presidente do Minis- 4-5; Ma d u r e i r a , 1915: 684; As Cons- tério (o Primeiro-Ministro), porque tituintes de 1911: 501) 28.

Serpa afirmaria, como princípio geral, que Machado de Serpa) contra 50 (v. DANC, a Constituição deveria sempre preservar Sessão n.º 42, 9.8.1911: 13). todos “os verdadeiros direitos individuais” 27 O princípio seria vertido no art.º 53.º da (DANC, Sessão n.º 33, 28.7.1911: 16). Constituição de 1911. 26 A Assembleia Constituinte chegou a reali- 28 Recorde-se que Manuel de Arriaga era zar uma votação nominal sobre a simples natural da Horta, filho de uma família de existência de um Presidente da República fidalgos açorianos; não é improvável que no regime. A proposta a favor desse cargo Serpa também o apreciasse por causa disso. venceu por 123 votos (entre eles o de José Miguel Sardica 213

Finalizados os trabalhos da Assem- vezes que se procedesse a eleições bleia Constituinte, não houve eleições gerais de deputados 29. para a primeira legislatura ordinária Machado de Serpa foi um dos 71 da República. Tendo-se estabelecido nomes que transitou directamente da uma estrutura bicameral para o poder Assembleia Constituinte para o Sena- legislativo (Câmara dos Deputados do (DANC, Sessão n.º 60, 25.8.1911: e Senado), os deputados e senadores 15; As Constituintes de 1911: 506) 30, da primeira legislatura do regime ali ocupando lugar na primeira legis- saíram directamente dos eleitos para a latura do regime, que durou até ao Constituinte, nos termos do art.º 84.º início de 1915 31. Seria eleito mais (“Disposições transitórias”) do pró- quatro vezes, sempre para o Senado, prio texto constitucional (Al m e i d a , nas eleições gerais de 13 de Junho de 1998: 738). Assim, após um escrutí- 1915 (para o biénio de 1915-1917), nio especial para o efeito, ascenderam de 11 de Maio de 1919 (para o biénio a senadores 71 dos 234 deputados da de 1919-1921), de 29 de Janeiro de Constituinte; os restantes 163 consti- 1922 (para o triénio de 1922-1925), tuíram a primeira Câmara dos Depu- e de 8 de Novembro de 1925 (para a tados da República. O total de 71 legislatura que deveria ter terminado senadores correspondia a 3 por cada em finais de 1928, mas que o 28 de um dos 21 distritos do continente e Maio de 1926, derrubando a I Re- ilhas, a que se somavam mais 8, um pública, interrompeu abruptamente) por cada uma das 8 colónias portu- (Ma r q u e s , 2000: 37, 395; Al m e i d a , guesas; o único requisito especial 1998: 744). A assiduidade de Serpa para se ser senador era um mínimo aos trabalhos do Senado ao longo etário de 35 anos (Lo p e s e Sá, 1986: destes anos (oito no total) foi-se int.). Ordinariamente, a Câmara dos espaçando. É possível que a idade e Deputados era eleita por três anos; que a vida de açoriano deslocado em o Senado por um período de seis, com Lisboa tenham pesado; ou que o pró- a obrigatoriedade de ser renovado em prio curso político da I República, metade dos seus membros todas as com os seus vários acidentes e a sua

29 Arts. 22.º e 24.º da Constituição de 1911. 31 A legislatura deveria ter terminado no Verão 30 Serpa foi eleito Senador com 173 votos; por de 1914; mas a eclosão da I Guerra Mundial curiosidade, também ascenderam a sena- e a necessidade, a partir de Novembro, de dores os outros dois deputados do círculo analisar a posição política do país perante o da Horta, Goulart de Medeiros e Arantes conflito obrigaram à reabertura das Câma- Pedroso. ras e ao prolongamento da sessão legislativa de 1914. 214 Boletim do Núcleo Cultural da Horta crónica instabilidade, o tenha pro- fez, depois de 1911, em prol da sal- gressivamente tornado céptico e desa- vaguarda dos específicos interesses lentado. açorianos – porque muitas vezes a Em termos gerais, aliás, a relação do instabilidade em que o regime viveu regime republicano com o arquipélago paralisou qualquer reforma de fundo dos Açores foi-se deteriorando com – ou, ainda pior, começou a haver o tempo. Inicialmente expectantes uma clara desconfiança em relação acerca dos benefícios que a mudança ao eixo e ao discurso conservador- de regime em 1910 prometera, os autonomista das ilhas, encarado como açorianos vieram a perceber que o um separatismo pró-norte-americano seu grande anseio de descentralização que dissolvia a unidade nacional (Co r d e i r o , 1995: 301; Le i t e , 2008: autonómica não seria bem acolhido. 33 O PRP que chegou ao poder no 5 de 170) . Não foi seguramente um acaso que todas as viragens políticas à Outubro já não era descentralizador direita ou movimentos conservadores ou federalista como o fora no período registados entre 1910 e 1926 tenham da propaganda; e tanto que na Consti- sido olhados com simpatia no arqui- tuição de 1911 o unitarismo centra- pélago – começando na “ditadura” de lista do Estado fez lei, suscitando, dali Pimenta de Castro, em 1915, conti- por diante, um recrudescimento do nuando no Sidonismo, em 1918, e ter- discurso regionalista dos ilhéus con- minando com o apoio, mais ou menos tra a “tirania” de Lisboa, havendo até declarado, de muitas vozes locais ao quem começasse a lembrar, alimen- advento da Ditadura Militar (Le i t e , tando a oposição anti-republicana, 2008: 170) 34. que o decreto monárquico de Hintze Sendo um autonomista, embora não Ribeiro, em 1895, fora bem mais pra- um puro conservador político, Macha- zenteiro para os interesses locais do do de Serpa não deve ter ainda assim que qualquer lei republicana (Le i t e , deixado de sentir, também ele, um 2008: 166-167; Si l v a , 2009: 64) 32. crescente desencanto por um regime Por seu turno, em Lisboa, ou nada se que tão fielmente servira na sua alvo-

32 Esta última autora lembra outro motivo de blica limitou-se a elaborar, em 1913, uma agravo dos Açores em relação à República, lei transitória neste domínio; mas no fundo, surgido, logo em inícios de 1911, quando nada de muito essencial mudou nas estru- o Governo Provisório decidiu extinguir o turas administrativas açorianas (v. Le i t e , Tribunal da Relação sedeado no arquipé- 2008: 167). lago (Ibidem: 64). 34 Para o problema da relação entre os Aço- 33 Incapaz de arquitectar um novo Código res e a República v., mais extensamente, Administrativo descentralizador, a Repú- Co r d e i r o , 1999. José Miguel Sardica 215 rada. Apesar das funções em Lisboa, mais o estimavam 35. Segundo o jor- sabe-se que não perdia uma oportu- nal O Telégrafo, o seu nome terá sido nidade para regressar ao Faial, ou “por mais de uma vez” falado para para aí se demorar, em estadas que lugares ministeriais em Lisboa – mas ocupava “sentado no Largo do Infante” a hipótese nunca se concretizou, pre- na companhia de amigos (Gr e av e s , cisando o periódico que Serpa teria 1948: 26). Era na Horta que se sen- “rejeitado” o(s) convite(s) (O Telé- tia bem porque eram os hortenses que grafo, 4.1.1946).

5. o r e g r e s s o a o s Aç o r e s : A Fa l a d a s No s s a s Ge n t e s e o j o r n a l i s m o d e o p i n i ã o

Com o fim da I República, derrubada cansado, pelos bancos dos jardins da pelo golpe militar de 28 de Maio de Horta. Ali exibia lições de coisas que 1926, Machado de Serpa colocou um os rapazes apreciavam, e as envolvia ponto final na sua vida pública, reco- de um critério educativo, de conse- lhendo-se “ao remanso do seu lar” lhos prudentes e exemplos dignos de (Correio da Horta, 18.12.1945), por reter” (Gr e av e s , 1948: 40). A todos, entender que a partir daí, suspensas, novos ou velhos, conhecidos ou des- e depois substituídas, as instituições conhecidos, franqueava as portas da da República por uma situação de sua casa, na freguesia das Angústias, ditadura militar, “o clima não cor- e disponibilizava o seu gabinete de ria propício à sua formação mental” trabalho e a sua biblioteca, onde se (Gr e av e s , 1948: 27). Aos 62 anos, misturavam manuais jurídicos, obras continuando solteiro, como sempre de ciência e literatura e muitos “dou- ficou, e sem filhos, ocupou o tempo tores teólogos”, a que ele chamava da sua reforma lendo, investigando, “a herança de Coimbra” (Correio da conversando e ensinando. Estimava Horta, 17.12.1946). particularmente ver-se rodeado de Durante os últimos anos de vida estudantes, “que ganhavam luzes ao desenvolveu um particular interesse ouvi-lo, quando repousava o corpo, já por investigações sobre o folclore

35 Em Abril de 1914, em sessão camarária, em homenagem ao “ilustre faialense” foi unanimemente decidido rebaptizar o (v. O Telégrafo, 7.4.1914). Hoje, também na largo norte da cidade, que acabara então de Madalena do Pico o seu nome está inscrito ser terraplanado e arborizado, com o nome na toponímia local. de “Avenida Senador Machado de Serpa”, 216 Boletim do Núcleo Cultural da Horta popular açoriano, sobre os costumes e mite hoje um conhecimento sequen- as tradições locais e, sobretudo, pela cial e continuado do que, em vida língua – pelo falar das suas gentes, do seu autor, era já apreciado peça a nas suas múltiplas especificidades e peça. No In Memoriam de 1948, Mar- particularidades. Muitas destas inves- celino Lima declarava que A Fala das tigações iam sendo publicadas, aqui e Nossas Gentes eram “páginas de bom ali, em “linguados jornalísticos” com quilate, do mais discernido portugue- que colaborou para O Telégrafo ou o sismo”, uma “notável compilação de Correio da Horta. Para este último regionalismos filológicos, que consti- escreveu sobre “Vocabulário Regio- tuem trabalho de boa consulta, pre- nal” durante um ano, entre Março cioso para a etnografia do distrito, e a de 1940 e Março de 1941; para o todos os respeitos digno de ser arqui- primeiro escreveu mais tempo, pelo vado em volume” (Gr e av e s , 1948: menos desde 1938 até praticamente à 16). No elogio fúnebre, o Correio da sua morte, em 1945, pequenos apon- Horta lembrou que aqueles escritos tamentos, numa secção do periódico não eram “entretenimento de pouca pertencente ao «Núcleo Cultural Ma- valia, como pensam aqueles que nuel de Arriaga», ou amplas colunas, desconhecem a importância do fol- que chegavam a fazer primeiras pági- clore na história dos diversos povos” nas (Se r p a , 1987: 9) 36. (Correio da Horta, 17.1.1946). Uma vasta amostra dessas colabora- Recolhida em volume – como pedira ções jornalísticas dispersas foi final- Marcelino Lima já em 1948… – mente publicada em 1987 por inicia- A Fala das Nossas Gentes é um tiva da Câmara Municipal da Horta, pot-pourri de anotações filológicas, num volume que recebeu o mesmo de usos e costumes populares, de título dos “linguados jornalísticos” modismos linguísticos e de vocabu- originais de Serpa – A Fala das Nos- lário, entremeados de ironias, farpas sas Gentes. Esta edição póstuma per- e reflexões mais ou menos sérias 37.

36 A criação do «Núcleo Cultural Manuel de porque levava o nome de Arriaga, natural Arriaga», no início de 1940, mereceu-lhe os do Faial, figura de “alargada e apurada cul- mais rasgados elogios. Em primeiro lugar, tura”, que tanto se “alteara” no reitorado da porque era uma iniciativa que iria ter “bené- Universidade de Coimbra e na Presidência ficos reflexos neste escasso âmbito insular”, da República (O Telégrafo, 1.2.1940). permitindo agregar e dinamizar forças inte- 37 Os títulos dos vários capítulos ou textos lectuais dispersas, “que devem informar, d’A Fala das Nossas Gentes são do mais entre nós, um escol de mentalidades, evoca- diverso que se pode imaginar: “Bosquejo tivo da elite d’outrora”. Em segundo lugar, linguístico sobre os Impérios do Espí- José Miguel Sardica 217

Nas suas composições, Machado de o falar açoriano não era uma mácula Serpa invocava estar a trabalhar na empobrecedora da integridade lin- esteira de Leite de Vasconcelos ou guística. Bem ao contrário: dotava-o da “doutíssima romanista” Carolina de “certa originalidade pitoresca, a Michaelis de Vasconcelos (Se r p a , atestar a fácil adaptação dos ilhéus 1987: 211). Mas pretextava, sobre- à linguagem das gentes da estranja, tudo, escrever livremente com o com quem entretiveram convívio ver- coração. O que ele chamava uma bal mais ou menos apertado” (Se r p a , “simples apanha de termos, locuções 1987: 41-42). Dito isto, não deixava, e modismos de cor e sabor locais”, no entanto, de criticar os “anti-regio- uma recolha de “alguns insulanismos nalistas” que não gostavam dos loca- ou contribuições dialectológicas do lismos e do sotaque açoriano e que nosso povo” (Se r p a , 1987: 17-18), antes preferiam enfeitar o falar com era o alimento para afirmar, sentida- “exóticas e estrambólicas francesias, mente, “sou ilhéu! Ilhéu de nascença convictos de que dest’arte ficam sendo e vivenda e, se dão licença, de fervida todos eles, por dentro e por fora, nada vocação bairrista”, e para deixar a sua menos que uns autentiquíssimos… homenagem à terra açoriana, “a nossa Eças de Queiroz” (Se r p a , 1987: 216). terra, que outra mais impressionista e A referência ao escritor oitocentista impressível não cobre o azul celeste!” faz imaginar que Serpa talvez prefe- (Se r p a , 1987: 17). risse, em Eça, A Cidade e as Serras Sobre a língua portuguesa, seus usos, a Os Maias. Era por isso mesmo que evolução e dinâmicas nos Açores, ele admirava particularmente o portu- Serpa tinha uma visão que combinava guesismo de outro grande escritor do um modernismo aberto ao que hoje se século XIX, Camilo Castelo Branco: designaria interculturalidade com um “não deixa o nosso Camilo de ser portuguesismo patriótico nunca des- mestre de mestres lá porque, a cada mentido. Não é paradoxal que assim passo, assabóra a sua prosa com fosse. Achava, por exemplo, que a uma farta condimentação provincial, importação de “americanismos” para sendo até que não pequena parte da

rito Santo”, “Ensino do dialecto distrital”, “Terminologia agro-pecuária e meteoro- “Vocabulário regional”, “Americanismos lógica”, “Nomenclatura indumentária de populares”, “Corruptelas populares”, “O ‘fa- antanho”, “Fraseado de invenção e vulga- lar’ político”, “Regionalismos de feição rização regionais”, “A variedade dialectal amoruda” (sic), “Algumas equivalências no conjunto vocabular”, “Vocabulário ba- dialectais”, “Locuções regionais de sainete leeiro”, etc. religioso”, “Gírias, alcunhas e dicções”, 218 Boletim do Núcleo Cultural da Horta sua obra foi entretecida com mate- ocaso da vida, um activo colunista de riais linguísticos da região minhota” opinião n’O Telégrafo. Revelou-se, (Se r p a , 1987: 217). nessas páginas, um observador muito Paralelamente a estes considerandos, atento da realidade nacional e interna- havia outros, de cariz político e sócio- cional e um comentador empenhado e ‑cultural. O “falar político” – o “poli- até divertido do quotidiano faialense. tiquês” dos nossos dias – definia-o No rescaldo das eleições legislativas Serpa, saborosamente, como “a pre- de Outubro de 1938 (as segundas tensiosidade visível de tirar da panela levadas a cabo pelo regime do Estado lexicográfica nomes bonitos com um Novo), mostrou-se pessimista em pauzinho” (Se r p a , 1987: 90). Mas relação ao que delas poderia advir. pena era, e mais a sério, que “a char- Não é que desvalorizasse o meca- neca do analfabetismo” se tivesse, nismo representativo do voto; o pro- desde sempre e na generalidade, blema é que como sempre, desde o “enraizado nestes rincões atlânticos, caciquismo monárquico, passando como aliás por todo esse Portugal pelo republicano e terminando na fora”, como “uma caliginosa feno- “lista única” salazarista, a eleição menalidade” (Se r p a , 1987: 148). não representava nunca “a inteira e E nem deixava de reparar, num curioso lídima expressão da vontade popu- apontamento filológico ainda hoje lar”, em razão “do atrasado civismo pleno de actualidade, que o português do eleitorado e de outros múltiplos – açoriano ou continental – tinha a factores de ordem mesológica, tradi- mania dos diminutivos na oralidade: cional, económica e social”. Depois “a quase obrigatória desinência em de se ter inventado, dizia, o telefone, ‘inho’ logra quebrar as arestas ou a a rádio ou a televisão, ainda ninguém dureza dos termos e, derivantemente, “desenraiz[ara] da mioleira qualquer imprime certa suavidade atractiva concepção que, para apuramento ao falar, sem o temperar, todavia, de exacto da opinião pública, suplante exagerado adoçamento à moda ‘di lá’, os vários processos votativos e ple- à moda brasileira. Parece que a va- biscitários”. Serpa sabia, em todo o riante diminutiva reflecte a congénita caso, que estava a escrever sobre mansidão com que, por via de regra, matéria delicada – mas achava que entretecemos as nossas relações “com o seu quê de tino na cabeça e de orais” (Se r p a , 1987: 89). tento na língua tudo se pode escrever À parte os apontamentos postuma- e dizer sem temor das tesouras censó- mente recolhidos n’A Fala das Nos- rias e das penas do inferno” (O Telé- sas Gentes, Serpa foi também, no grafo, 4.11.1938). José Miguel Sardica 219

A aproximação e a eclosão da “mal de asneira furtar o corpo ao II Guerra Mundial suscitaram-lhe manifesto tanto quanto possível”. Por várias e preocupadas crónicas. Em isso, tinham andado bem “o piloto- Abril de 1939, analisando as vozes e ‑mor da barra” (Salazar) e “o capi- os interesses dos eixos Roma-Berlim tão da nau do Estado” (Carmona) e Paris-Londres, e as inconciliáveis na “manobra de ancoragem” àquela diferenças entre “as místicas totali- doca: “oxalá com o crescer da venta- tárias e democráticas”, achava o con- nia e das vagas nos possamos aguen- flito inevitável. “É ver, meditar e pas- tar nos ferros”. A neutralidade não mar: através das ondas radiofónicas, devia ser contudo alheamento, mas chegam até nós a enrededura maquia- “máxima vigilância”, mesmo que a vélica das chancelarias e as desmar- guerra, “sob o aspecto propriamente cadas ambições e enraivecidas amea- bélico”, não tivesse ainda chegado às ças das grandes e hegemónicas potên- ilhas, a não ser pelo altíssimo preço cias”; e “se a gente deixa de escutar a que começavam já a ser vendidos a Emissora [Nacional] para pegar nas alguns géneros (como o sabão), ou gazetas que nos traz a mala postal, pelo inusitado número de barcos que todas elas de fio a pavio cheiram a aportavam ao arquipélago. A termi- pólvora” (O Telégrafo, 22.4.1939). nar, ficava o voto de Serpa para que Em Outubro, já depois da invasão a Providência divina e as armas bafe- nazi da Polónia e do início das hosti- jassem enfim “uma das partes liti- lidades, ou seja, depois de “estoirada gantes e beligerantes”. Qual delas? a corda, inicialmente ensarilhada no “Dizê-lo aqui em público seria infrin- Corredor de Danzig”, mostrava-se gir… a neutralidade” (O Telégrafo, assustado com “o pavoroso incêndio 11.10.1939). a alastrar-se em vorazes labaredas por Serpa não confessava as suas simpa- essa dementada Europa, e quem me tias em público mas não as escondia diz que não por esse mundo fora”, ao em privado. Aos amigos dizia temer a mesmo tempo que elogiava a posição vitória nazi, e descrevia a germaniza- de neutralidade entretanto assumida ção forçada da Polónia e de todos os pelo governo português. A neutrali- países varridos pela Blitzkrieg alemã dade, dizia, era uma “doca acomo- de 1939-40 como a progressão de datícia”, que não exprimia “timidez” “hordas de força tremenda, a pisar o ou “medo”, mas “cautela” de povos solo alheio como o gado pisa o trigo que “acariciam de preferência os pro- nas eiras” – uma “avalanche irresis- cessos e realizações pacifistas”. Em- tível” que ameaçava subjugar todo pregando linguagem popular, não era o continente e que, por isso mesmo, o 220 Boletim do Núcleo Cultural da Horta fazia simpatizar com a causa dos Alia- ção” contra a qual “lavrava veemente dos, do eixo Paris-Londres (Gr e av e s , protesto”: “É que cumpre evitar des- 1948:38). A vitória das democracias, lustrantes confusões. Pedras negras, em 1945, escassos meses antes da toponimicamente caracterizadas, são sua morte, deve tê-lo deixado segu- aqueles recantos d’África destinados ramente feliz. ao degredo dos grilhetas da metró- Por entre as agruras da pré-guerra e pole. Além de que, à primeira vista, da guerra, O Telégrafo (minguado “ilha negra” induz a crer que são em número de páginas pelas neces- gente de cor os seus moradores!” sidades de racionamento de papel), (O Telégrafo, 19.12.1938). recolhia também as suas notas sobre Em Maio de 1939, deixou um ras- a vida local. O velho tribunal ao pé da gado elogio à Pan American Airways, Matriz suscitava a Serpa longínquas que se preparava para iniciar, “com recordações do tempo “em que ali me regular e prefixo itinerário”, a explo- gasiava a acusar e a empurrar para a ração comercial “deste seu e nosso cadeia certas gentes, mais ou menos aeroporto” 38. O caso servia-lhe para taradas, que mal algum me haviam louvar o espírito de iniciativa e de feito a mim”, mas que “o grave e aus- empreendedorismo dos Estados Uni- tero cariz da justiça” tinha condenado dos da América, “onde é tudo dito e (O Telégrafo, 12.5.1938). Um espec- feito, ou onde a concepção é pronta táculo no Teatro Faialense servia de realização, não enredada na teia de mil pretexto para evocar a sua história e empecilhos burocráticos e técnicos e importância “numa terra de apoucado de dificuldades sem conta que, por recenseamento de almas” e “a des- feitio ou inata calacice, nós próprios peito do intrometimento conquistador criamos… para nada fazer!”. As liga- do cinema o que, às vezes, chega a ções aéreas viriam “insuflar a esta de- causar a sua ponta de ciúme às velhas pauperada terra novos alentos e con- artes” (O Telégrafo, 8.6.1938). Um sequentes aumentos” sobre “a min- escrito de um conterrâneo que evo- guada economia local”. Com mais cava a nomenclatura colorida dada gente – passageiros, forasteiros, via- às ilhas (São Miguel, a “ilha verde”, jantes e emigrantes de visita a casa – Terceira, a “ilha lilás”, Faial, a “ilha o Faial passaria doravante a ter boas azul”, e Pico, a “ilha negra”) pro- hipóteses de se “categorizar interna- vocou-lhe uma reacção bairrista em defesa da sua ilha natal do Pico. Cha- 38 O aeroporto mencionado por Machado de mar à “ilha montanha” a “ilha negra” Serpa não é, obviamente, o actual aeroporto era uma “desavisada e feia designa- da Horta, inaugurado apenas em 1971. José Miguel Sardica 221 cionalmente” (O Telégrafo, 6.5.1939). Leitor atento das novidades locais, Em plena guerra, divertiu-o o entu- Serpa também elogiou publicamente siasmo suscitado por um desafio de os célebres Anais do Município da futebol “no inacabado e belo estádio Horta, o livro mais conhecido do da Alagoa”. O desporto, e em parti- conhecido escritor Marcelino Lima, cular , eram coisas sadias e inte- que ele considerava ser um “operoso ressantes, porque “nesse momento açorianista”, “incontestado mestre na histórico e pedibólico”, explicava arte de reavivar e restaurar as antigua- ele, “ninguém dá ouvidos às charlas lhas do seu burgo”. Sugeria mesmo inflamadas do Primeiro da Grã-Bre- que O Telégrafo transcrevesse de vez tanha ou dos ditadores do eixo ribal- em quando “alguns dos passos mais deixo! Agora não se investiga sobre o expressivos e impressivos da obra”, número de navios afundados e bom- ou que a Câmara Municipal da Horta bardeiros e caças abatidos, nem se per- distribuísse o livro para leitura e gunta – quantos raids sobre Londres estudo nas escolas do concelho, pois e Berlim? Agora apenas se indaga – o volume de Marcelino Lima conden- quantos gools?” A conclusão serviria sava, com brilhantismo, “a história da para os tempos actuais: “Desenga- ilha do Faial, desde o seu descobri- nar: a bola é tudo, e o mais são can- mento até aos nossos dias, completa, tigas com que ninguém se governa, minuciosa, metódica, limpa de erros ou tristezas que não pagam dívidas” e de superfluidades” (O Telégrafo, (O Telégrafo, 20.3.1941). 3.5.1941) 39.

6. Ep í l o g o

José Machado de Serpa faleceu de bro de 1945 (1.474 escudos), a casa nefrite crónica, a 17 de Dezembro de onde vivera, na Rua Vasco da Gama, 1945, com 81 anos. Não tendo filhos, nas Angústias (dois andares com um a herança foi para a única sobrinha pequeno quintal e cisterna, tudo no viva, de seu nome Maria Serpa Serrão valor de 9.830 escudos), um outro de Carvalho, filha de uma das suas imóvel situado na Rua de São Bento, irmãs, Germana Machado de Serpa. na freguesia da Matriz, com jardim e A sobrinha e herdeira tinha, ao tem- quintal (avaliado em 20.000 escudos), po, 51 anos, e vivia em Rabaçal, no as ruínas de uma casa situada nas concelho de Penela, no continente. Serpa deixava-lhe o vencimento res- 39 Os Anais do Município da Horta tinham peitante a 17 dias do mês de Dezem- sido publicados em finais de 1940. 222 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

Escadinhas do Carmo, também na prova de que açorianidade é um lastro Matriz (300 escudos), e ainda alguns – não um peso, mas uma marca iden- bens pessoais. Ao todo, a herança de titária – que acompanha até ao fim Serpa totalizava 33.304$26 40. todos os naturais daquelas nove ilhas. Era o que valia, na estrita óptica No seu caso, a açorianidade foi uma material, uma longa vida distribuída marca existencial e discursiva que o por três diferentes regimes políticos, motivou sempre a progredir pesso- vários espaços geográficos – o Pico, almente, a servir o arquipélago e o onde nascera, Coimbra, onde se for- país, a motivar os seus conterrâneos, mara, São Miguel ou as Flores, onde os seus amigos e as gerações mais exerceu a magistratura, a Horta, onde novas que gostavam de o ouvir. Tal- viveu e onde foi juiz, governador civil vez tenha sido essa a sua forma muito e jornalista, e Lisboa, onde serviu a própria de lidar com o que ele mesmo I República como deputado e senador definiu, quase no final da vida, como no parlamento – e inúmeras ocupa- “a nossa melancolia de gentes aban- ções, de profissão e de hobby. Na donadas no meio do oceano imenso”, diversidade destas experiências, José ou “este nosso constitucional esmo- Machado de Serpa nunca deixou, no recimento chamado torpor açoriano” entanto, de ser fiel às suas raízes de (O Telégrafo, 27.1.1939). ilhéu. Como tantos outros, ele foi a

Fo n t e s e Bibliografia

1. Fo n t e s : Processos de Carta de Curso – Faculdade de Direito (AUC-IV-2.ª D-13-3-11, 3.ª Arquivo da Universidade de Coimbra Série, Cx. 81) [AUC] Arquivo Nacional da Torre do Tombo Certidões de Idade – José Machado de Serpa [ANTT] (AUC-IV-1.ª D-5-2-68, Vol. 68, fl. 4-4v). Ministério do Reino, Livro 974 (Correspon- Petições de Matrícula, Direito, 1.º Ano dência expedida, 1900-1924) (1881-1882) (AUC-IV-1.ª D-10-3-79, Ministério do Interior, Correspondência aluno n.º 53). recebida dos Governos Civis (Horta, 1910-1911). 40 Os dados relativos ao óbito e à herança foram-me fornecidos, a partir dos registos Imprensa existentes na Horta, pelo Sr. Manuel Machado de Oliveira. Correio da Horta, Horta, 1945, 1946. José Miguel Sardica 223

Diário da Assembleia Nacional Constituinte Co r d e i r o , Carlos Alberto (1999) – Naciona- (DANC), Lisboa, Imprensa Nacional, lismo, Regionalismo e Autoritarismo nos 1911. Açores durante a I República, Lisboa, Salamandra. Fayalense (O), Horta, 1886. Co r d e i r o , Carlos Alberto (2004) – «Nacio- Folha Insulana, Horta, 1888. nalismo e cultura política nos Açores de Telegrapho (O), Horta, 1910, 1911, 1914, finais de oitocentos à primeira Guerra 1938, 1939, 1940, 1941, 1945, 1946. Mundial», in O Tempo de Manuel de Arriaga. Actas do Colóquio organizado Obras de José Machado de Serpa pelo Centro de História da Universidade de Lisboa e pela Associação dos Antigos Se r p a , José Machado de (1886) – A Indústria Alunos do Liceu da Horta (coord. de Piscatória nas Ilhas Fayal e Pico, Coim- Sérgio Campos Matos), Lisboa, Centro bra, Imprensa Académica. de História da Universidade de Lisboa e Associação dos Antigos Alunos do Liceu Se r p a , José Machado de (1889) – Notícia so- da Horta, pp. 93-106. bre a Villa do Nordeste, Ponta Delgada, Tipografia Popular. Gr e av e s , Manuel (1948) – In Memoriam. José Machado de Serpa. Colectânea de Se r p a , José Machado de (1987) – A Fala das originais e extractos da imprensa sobre a Nossas Gentes, Ponta Delgada, Brumarte. figura do ilustre açoriano, Horta, Edição Cooperativa de Imprensa e Publicidade. do Autor. Gr e av e s , Manuel (1958) – Outras histórias 2. Bibliografia : que ouvi. Obra póstuma, Horta, Edição Al m e i d a , Pedro Tavares de (org.) (1998) – da Família do Autor. Legislação Eleitoral Portuguesa, 1820- Jo ã o , Maria Isabel (2004) – «Economia e ‑1926, Lisboa, Presidência do Conselho Sociedade Açorianas em Meados do de Ministros, Imprensa Nacional Casa da Século XIX», in O Tempo de Manuel de Moeda. Arriaga. Actas do Colóquio organizado pelo Centro de História da Universidade Ar r u d a , Luís Manuel (s.d.) – «Serpa, José de Lisboa e pela Associação dos Antigos Machado de», in Enciclopédia Açoriana, Alunos do Liceu da Horta (coord. de ed. electrónica in http://pg.azores.gov.pt/ Sérgio Campos Matos), Lisboa, Centro drac/cca/enciclopedia/index.aspx de História da Universidade de Lisboa e [consultado em 3 de Setembro de 2009]. Associação dos Antigos Alunos do Liceu As Constituintes de 1911 e os Seus Deputados. da Horta, pp. 75-92. Obra compilada e dirigida por um antigo La p a , Albino (1962) – Governadores Civis de oficial da secretaria do Parlamento, Portugal, Lisboa, Gráfica Santelmo. Lisboa, Livraria Ferreira, 1911. Le i t e , José Guilherme Reis (1994) – Política Co r d e i r o , Carlos Alberto (1995) – «Regiona- e Administração nos Açores de 1890 a lismo e anti-republicanismo, 1910-1918», 1910. O 1.º Movimento Autonomista, in Arquipélago – História. Revista da Dissertação de Doutoramento, 2 Vols., Universidade dos Açores, Vol. I, n.º 2, Angra do Heroísmo, Universidade dos pp. 281-315. Açores. 224 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

Le i t e , José Guilherme Reis (2008) – «Os Pe r e i r a , João Manuel Esteves; Ro d r i g u e s , acertos da governação, a ilusão da auto- Guilherme (1912) – «Serpa, José Ma- nomia e a continuidade do divisionismo chado de», in Portugal. Dicionário His- (1895-1976)», in História dos Açores. Do tórico, Corographico, Heráldico, Biogra- Descobrimento ao Século XX (coord. de phico, Bibliographico, Numismático e Artur Teodoro de Matos, Avelino de Frei- Artístico, Lisboa, João Romano Torres tas de Meneses e José Guilherme Reis & C.ª, Vol. VI, p. 828. Leite), Angra do Heroísmo, Instituto Aço- Ra v a r a , António Pinto (1981) – «Acerca das riano de Cultura, 2.º Vol., pp. 159-184. eleições de 1911», in Clio (Revista do Li m a , Marcelino (1940) – Anais do Município Centro de Estudos de História da Univer- da Horta. Ilha do Faial, Famalicão, Ofi- sidade de Lisboa), Vol. 3, pp. 127-151. cinas Gráficas Minerva. Re b e l o , Ernesto (1887) – Notas Açoreanas, Lo p e s , Maria Teresa; Sá, Maria Marques de 3.º Vol., Ponta Delgada, Tipografia do (1986) – Exposição Comemorativa do Archivo dos Açores. 75.º Aniversário da Assembleia Nacional Ri b e i r o , Fernando Faria (2007) – Em dias Constituinte de 1911, Lisboa, Assembleia passados. Figuras, instituições e acon- da República. tecimentos da história faialense, Horta, Ma d u r e i r a , Joaquim (1915) – A Forja da Núcleo Cultural da Horta. Lei. A Assembleia Constituinte em notas Ro c h a , Gilberta Pavão Nunes (2008) – a lápis, Coimbra, França Amado Editor. «O crescimento da população e os novos Ma r q u e s , A. H. de Oliveira (coord.) (2000) destinos da emigração», in História dos – Parlamentares e Ministros da 1.ª Repú- Açores. Do Descobrimento ao Século XX blica: 1910-1926, Porto, Edições Afron- (coord. de Artur Teodoro de Matos, Ave- tamento / Assembleia da República. lino de Freitas de Meneses e José Gui- Ma t o s , Paulo Lopes; Si l v a , Susana Serpa lherme Reis Leite), Angra do Heroísmo, (2008) – «Oscilações populacionais, gru- Instituto Açoriano de Cultura, 2.º Vol., pos e comportamentos sociais (1836- pp. 265-305. -1895)», in História dos Açores. Do Des- Si l v a , Susana Serpa (2009) – «“Saúde e cobrimento ao Século XX (coord. de Artur Fraternidade”: ao serviço da República Teodoro de Matos, Avelino de Freitas de nos Açores», in Comunicação & Cultura, Meneses e José Guilherme Reis Leite), n.º 8, Lisboa, Centro de Estudos de Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano Comunicação e Cultura da Faculdade de Cultura, 2.º Vol., pp. 83-120. de Ciências Humanas da Universidade Mene s e s , Avelino de Freitas de (2007) – Católica Portuguesa / BonD, pp. 47-69. «A Ilha do Pico. A antítese da história Su p i c o , Francisco Maria (1864) – Almanaque dos Açores», in O Faial e a Periferia do Arquipélago dos Açores, estatístico, Açoriana nos Séculos XV a XX. Actas do histórico, recreativo e noticioso para IV Colóquio, Horta, Núcleo Cultural da 1865, Ponta Delgada, Tipografia da Per- Horta, pp. 647-653. suasão. Pe r e i r a , António Manuel (1959) – Gover- nantes de Portugal desde 1820 até ao Dr. Salazar, Porto, Livraria Simões Lopes.