2017 – Estado da Questão Coordenação editorial: José Morais Arnaud, Andrea Martins Design gráfico: Flatland Design

Produção: Greca – Artes Gráficas, Lda. Tiragem: 500 exemplares Depósito Legal: 433460/17 ISBN: 978-972-9451-71-3

Associação dos Arqueólogos Portugueses Lisboa, 2017

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Desenho de capa: Levantamento topográfico de Vila Nova de São Pedro (J. M. Arnaud e J. L. Gonçalves, 1990). O desenho foi retirado do artigo 48 (p. 591).

Patrocinador oficial ataegina uma divindade peninsular

Cristina Lopes1

Resumo Este artigo apresenta linhas de pesquisa relativas aos aspetos que se afiguram mais relevantes quanto à divin‑ dade peninsular Ataegina. Esta divindade surge, em muitos aspetos, como um caso excecional da religião in‑ dígena. Nomeadamente no que respeita às variantes da sua nomenclatura, possível extensão geográfica, ico‑ nografia e iconologia. Este contributo trata ainda de incluir a temática do seu culto, ainda mal compreendido, nomeadamente em Mérida, aproximada a Proserpina enquanto culto privado e ligado às elites emeritenses e à sua apropriação do Lucus Feroniae. Palavras‑chave:­ Divindade Peninsular, Divindade inominada, Ataegina.

Abstract This article presents lines of research for aspects that seem more relevant about the peninsular deity Ataegina. This divinity appears, in many respects, as an exceptional case of the Indigenous religion. Namely, in the vari‑ ants of her nomenclature, geographical extension, iconography and iconology of the divinity. This contribu‑ tion is also including the thematic of her cult, yet poorly understood, in Merida, close to Proserpina as a private worship and connected to the emeritenses elites and their appropriation of the Lucus Feroniae. Keywords: Peninsular Divinity, Innominate Divinity, Ataegina.

1. INTRODUÇÃO ro significativo atendendo à sua retraída extensão geográfica (Encarnação e Guerra, 2010, p.96) e que Ataegina destaca­‑se, no panorama das religiões pré­ atesta a importância que detinha. Destaca­‑se ainda ‑romanas, ainda com muito por revelar. A extensa que os cultos indígenas da Hispânia terão sofrido quantidade dos seus testemunhos epigráficos, bem uma progressiva romanização, que se deteta apoia‑ como a interpretatio com Proserpina integrando da no aumento dos testemunhos epigráficos no séc. assim um caracter ctónico, fazem com que ela seja II (Lambrino, 1965, p.224). um caso excecional no contexto peninsular. O tema Uma vez que se tornava uma tarefa hercúlea dispo‑ suscitou o interesse, por vezes aparentemente des‑ nibilizar de forma clara o que seria o culto a Ataegina lumbrado, de eminentes investigadores, sobretudo em todo o seu esplendor, devido ás lacunas que ma‑ desde os achados de Santa Lucía, em El Trampal, culam a informação disponível, apresenta­‑se aqui Alcuéscar, Cáceres. No entanto ao aproximarmo­ uma síntese do atual estado de conhecimentos. ‑nos desta tarefa convém esclarecer sumariamente o caracter embrionário dalgumas matérias sobre a 2. O NOME DA DIVINDADE temática em analise. Quando nos reportamos à “religião lusitana” J. de Salienta­‑se que embora existam várias linhas de Hoz (1986, p. 32), define­‑a como o conjunto de da‑ investigação em que a organização dos repertórios dos oriundos da Lusitânia referentes ao complexo é guiada por princípios muito diferentes, toda sis‑ de crenças religiosas que, embora com alguns tra‑ tematização é baseada em critérios essencialmente ços particulares, seria partilhado por diversos po‑ linguísticos. Uma vez que são eles que determinam vos pré­‑romanos de origem indo­‑europeia, dentro por via da regra, a integração das diferentes enti‑ e fora da Península Ibérica. Só em território atual‑ dades nos respetivos grupos. Esta posição, com já mente português contam­‑se cerca de 270 epigrafes grandes antecedentes, levou muitos pesquisadores registando teónimos indígenas, o que é um núme‑ a acreditar que se poderia aderir ao conhecimento da

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1185 Arqueologia em / 2017 – Estado da Questão própria natureza das divindades, através do signifi‑ do povo português (Fabião, 2011, pp. 160‑61).­ A sua cado do significado do teónimo. No entanto, vários obra Religiões da Lusitânia (1897, 1905 e 1913) ape‑ estudiosos, como Unterman (1985, p. 356) ou Hoz sar da sua considerável antiguidade e das limitações (1986, pp. 33‑37)­ alertaram sobre as dificuldades e a que lhe são inerentes viria a constituir um apoio natureza restritiva dessas abordagens. incontornável para a investigação destas matérias. Desta forma e no que respeita às fontes que pro‑ Nas suas três obras Vasconcelos organizou as divin‑ piciam o melhor conhecimento das divindades dades de acordo com a sua caracterização a partir da indígenas da Lusitânia, Hoz (1986) salienta o po‑ etimologia dos teónimos e da extensão geográfica tencial da epigrafia, reconhecendo, no entanto, as dos mesmos. dificuldades que poderão decorrer da adaptação O que impressionou Vasconcelos não foi apenas a da língua pré­‑romana à norma latina, tal como J. dispersão, a variação da escrita, mas também o epí‑ d’Encarnação (1975, p. 302, 1987ª, p.8 e 2002, p. 13). teto. Dea Sancta (quando apareceu apenas com essa Assim o monumento epigráfico enquanto fonte in‑ designação foi considerada Ataegina), uma vez que, formativa reveste­‑se de um valor fundamental nes‑ em geral, a conjugação dos dois determinativos – ta investigação. sanctus e dominus – é rara para outras divindades. O A partir de sua análise linguística, podemos ver que sufixo incomum “cina” ou “gina”, Leite Vasconcelos esta deidade peninsular aparece com várias desig‑ (1905, p.161), entendeu que este era o radical e anali‑ nações na sua nomenclatura, tais como Ataegina / sou ATAE (repetição, como uma partícula de refor‑ Ataecina / Adaecina / Adaegina ou também com a ço), GINA – Indo­‑européia que vem de GENOS – a variante com 2 tt ou 2 dd, sendo ainda usual encon‑ renascida, incluindo assim o caracter ligado à natu‑ trar o epíteto T ou Turibrig ou Dea Domina Sancta. reza e à primavera, o renascimento da Terra, não só Infra estão listados alguns exemplos: pela filologia, mas também porque está associado a daeae sanctae Turibrige Proserpina (versão latina da Perséfone). Teria sido d(eae) d(ominae) s(anctae) Turibri adotada em Mérida a partir de Turobriga e dai ter­ d(eae) d(ominae) s(anctae) T(­‑­‑­‑) A(taecinae) ‑se­‑ia distribuído ao longo da Lusitânia, devido aos deae Ataecinae Turobrigae (s)anctae deslocamentos de indígenas, sobretudo enquanto dea Ataecina Turibrig(ae?) Proserpina Ataegina Turibrig Proserpina (Garcia Bellido, 2001, d(eae) Ate(cinae) Proserpinae Tu(‑­ ‑­ ‑)­ pp. 55­‑58). Já Prósper (2002, p. 300) atribui a origem d(eae) d(ominae) (T)uri(b)ri no topónimo “Ataiko”, assim como a função prote‑ (d)o(minae) s(anctae) Tur(‑­ ‑­ ‑)­ A(taecinae) tora do povo dos Ataecini, ou dos Vetões. Outros do(minae) d(eae) s(anctae) turibri(g)e Adegine autores tais como (Untermann, 1987, p. 66) procu‑ domina (A)ttaegina (T)urubrigae raram ligar o teónimo ao irlandês arcaico adaig, com dominae Turibri (A)deginae o significado de “noite”, donde ressalta uma assimi‑ (T)uribri A(t/d)ecin(ae) lação de Ataegina à Prosérpina romana, de natureza ctónica (Prósper, 2002, p. 294). No entanto Abascal A usual junção do epíteto Turi­‑/Turobrigensis, tam‑ (2002, Luquuntur saxa, p.54) alerta que atualmen‑ bém lido como Turibrigae/Turibri (Guerra, 2002b, te o dito vocábulo irlandês só esta atestado a partir p. 155), ao teónimo tem suportado a hipótese da do seculo VIII e, portanto, excede temporalmente a existência de um santuário a Ataegina em Turóbri‑ época pré­‑romana e romana. ga, situada por Plínio na Betúria Céltica, atendendo à sua terminação céltica em briga (Vasconcelos, 1905, 3. O CULTO DE ATAEGINA p. 158). A localização de Turóbriga terá sido motivo de larga discussão académica, pois não há consenso No que respeita ao seu santuário, pelo que foi ante‑ quanto ao seu paradeiro persiste, no entanto, o ca‑ riormente exposto, este teria tido uma importância rácter lusitano de Ataegina (Abascal, 2002, p. 57). Na considerável na época pré‑romana,­ importância que época de Leite Vasconcelos, as fontes clássicas eram se transpôs para a romanidade. Acresce ainda que conhecidas e já havia elevada dispersão de achados Ataegina é a única divindade paleohispânica que (sem Santa Lucía del Trampal). O trabalho de Vas‑ existe adorada fora da Península Ibérica. E apenas concelos foi aliás um marco para o conhecimento Ilurdeda, outra divindade paleohispânica também das divindades indígenas, bem como das origens terá peregrinado, mas com um número mais re‑

1186 duzido de epígrafes. No atual estado de conheci‑ gina. Sabemos que gado foi sacrificado a Proserpine, mentos o seu culto é disperso por uma grande área mas não sabemos se eram cabras. Há na região os geográfica, que cobre aproximadamente de Beja a ex­‑votos acima mencionados e que, supostamen‑ Toledo, ou no triângulo Norba­‑Turgalium­‑Emerita, te, estão conectados ao culto, existe monumentos no entanto, há casos controversos que podem am‑ epigráficos com um encaixe, bem como cabras que pliar esse território. têm um tipo de pé que serve para encaixar a Cabrita Nos anos oitenta, a escavação conduzida por Cabal‑ no topo do referido monumento. Como evidência, lero Zoreda na igreja mozárabe de Santa Lucía de El duas peças apareceram em Malpartida de Cáceres, Trampal em Alcuéscar, Cáceres, permitiu recuperar ex­‑votos para a deusa Santa Turi Adaegina, uma ins‑ 50 epígrafes votivas e funerários reutilizados no crição de bronze com a cabra em cima, bem como edifício. 15 eram altares dedicados a Ataecina Turi‑ ex­‑votos e mais cabras de bronze ou terracota em brigensis, cerca de 20 sem inscrições e outro grupo outros lugares de adoração. Os testemunhos epigrá‑ com o nome do falecido em que não se menciona ficos, de acordo com Abascal Palazón, levaram a su‑ nenhuma divindade, possivelmente porque estão por terem existido vários centros de adoração, pelo no santuário dessa divindade. Este lugar está situ‑ menos três santuários, como poderia ser o caso de ado entre as montanhas, no vale que é abastecido Mérida e seus arredores, outro próximo de El Tram‑ por águas ferruginosas e saudáveis, ideal para um pal em Alcuéscar e Dehesa Zafrilla de Malpartida, bosque sagrado dedicado a uma divindade salutar Cáceres, onde foram encontrados os dois Ex­‑votos e infernal que protege a água, a natureza, a popula‑ sob a forma de uma cabra. No estado atual do co‑ ção, os bens agrícolas, os vivos e a vida do alem. A nhecimento, descobrimos ainda que não existe um situação geográfica privilegiada mostra que está lo‑ padrão de referência para definir os devotos de Ata‑ calizada em local de passagem que certamente seria egina, Lopes (2014, p.99). favorecido desde época Tartessica e que unia Norba a Metellinum. Este ponto é favorecido pela conflu‑ 4. SANTA LUCÍA DEL TRAMPAL ência de cinco povos, os Lusitanos, Vetões, Celtas, Turdulus e Celtiberos. O sitio de Santa Lucía del Trampal está localizada a Garcia Bellido (2001) descobriu que, nas fontes clás‑ 441 m, na meia encosta da serra da Centinela, sobre o sicas em relação a Mérida, é mencionado que numa vale onde corre o rio Aljucén. Vários cursos de água extremidade de seu território, há um “Lucus Fero‑ escorrem da montanha para o rio, sendo que perto da niae”, ou seja, um bosque sagrado. Está aninhado igreja moçárabe do local existe um deles. Para Garcia entre montanhas num vale que é alimentado por Bellido, não será surpreendente depois de conhecer águas ferruginosas salutíferas, ideal para um bosque a fonte que brota da terra ao lado de El Trampal e que sagrado dedicado a uma divindade salutar e infer‑ contem aguas ferruginosas e salutíferas, bem como a nal. Há todas as razões para acreditar que o culto em sua localização geográfica, que este terá sido um lugar época romana tinha especificidades, de acordo com de eleição para um santuário. Lugar onde a divindade o lugar e a cronologia, o que é compreensível e ates‑ ctónica entra em contato com a superfície terrestre tado pela epigrafia. Temos evidências de um culto e fertiliza­‑a. Os monumentos epigráficos deste lugar mais simplificado de Ataegina, em Mérida e áreas são, como observou Abascal, idênticos às estelas do circundantes, uma situação especial em que Atae‑ S.O. em tamanho e morfologia, medem 220 cm e são gina é adorada assimilada a Proserpina, certamente encontrados principalmente na Extremadura e nos vinculada às elites emeritensis e á sua apropriação vales dos grandes rios, mas aqui a “usual” necrópole do Lucus Feroniae emeritensis. A elite emeritense correspondente não foi encontrada. As estelas fune‑ terá apropriado o culto local, mas com formulários rárias também encontradas juntamente com altares mais fluidos, que certamente terá abrangido aspetos votivos, na igreja moçárabe, foram genericamente do culto indígena, ao que se sobrepôs. datadas por Abascal, do seculo I a inícios do seculo Quanto à cronologia das inscrições, há algumas III, baseado na forma dos altares e na sua comparação que podem ser incluídas no primeiro século, mas a com outros da região (1995, p.76). maioria são do século II e ainda existem algumas do As 15 novas lápides de Alcuéscar a Ataegina, recu‑ século III. O que é constante é o nome, o epíteto e peradas na escavação do local alteraram o anterior as cabras. A cabra é o animal que se associa a Atae‑ panorama e permitem pensar neste lugar como um

1187 Arqueologia em Portugal / 2017 – Estado da Questão importante lugar de culto. Caballero supôs que, de‑ pagão pode ser outro elemento a favor de transfor‑ vido à profusão de achados, á sua situação particular mações marcadas pelo fervor religioso que também suprarreferida, quanto à confluência de cinco povos, aconteceu na Itália nos primitivos centros de culto bem como pelas suas características físicas e econó‑ de Feroniae. Conclui­‑se que não há certeza para a micas, este poderia ser o principal santuário da di‑ proveniência dos materiais de Santa Lúcia e, portan‑ vindade. Associado a Ataegina, a cabra seria o seu to, para a valorização exata do Lucus Feroniae (Gar‑ animal consagrado, tendo sido recuperadas duas có‑ cia Bellido, 2001, pp. 58­‑60). pias de bronze e uma placa com referência à deusa. A maioria das estelas de El Trampal contém os buracos 5. ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA para o que deveria ser o ajuste das referidas repre‑ DA DIVINDADE sentações das cabritas. El Trampal está localizado a quatro quilómetros da estrada romana Emérita As‑ É possível que o culto de Ataegina, tivesse suplan‑ turicam, no ponto que uniu a Meseta com a bacia do tado ou acompanhado outro culto a uma divindade , e outra rota, supostamente uma das mais muito antiga que tivesse como animal representati‑ importante da Extremadura, que uniu Metellinum a vo a cabra. Os testemunhos para apoiar esta hipó‑ Norba passando pelo vale que separa o Montanha de tese vêm de Cancho Roano em , entre os Montánchez de El Trampal. ex­‑votos, encontrou­‑se o resto de uma cabra em Nas proximidades, em Arroyo Molinos situam­‑se bronze que mede mais de 50 cm, e abundantes res‑ ainda as ruínas do local de Los Trampales. Essas ru‑ tos faunísticos de cabra, provavelmente de banque‑ ínas possuem vestígios arquitetónicos do período tes rituais. Ataegina seria assim uma das sucessoras romano e também água mineral ferruginosa. Mais a desta importante divindade peninsular inominada. noroeste, no local de Las Torrecillas em Alcuéscar, Séculos mais tarde, a presença de Vetões na área de‑ Abascal Palazón e Caballero supõem que poderia nominaria e tornaria oficial o culto a Ataegina. Na‑ ser o local de proveniência dos materiais reutiliza‑ quele Lucus de El Trampal que manteria o conteú‑ dos em​​ Santa Lucia. A 250 m de Santa Lúcia, há ou‑ do sagrado da deidade anterior, incluindo o uso de tra ermida de Santiago, em torno da qual as estelas cabras, com a inovação dos monumentos inscritos, foram coletadas e a menos de 1 km encontra­‑se S. com o nome de Ataegina. Se a deusa anterior fosse Jorge, outro local com escórias de ferro, sigillatas e aquela descrita por Estrabão como a Deusa noturna restos romanos tardios. inominada, então este era um campo fértil para in­ De fato, na área circundante há uma ampla disper‑ terpretatio com qualquer deidade de características são de achados incluindo Montánchez e importantes semelhantes, o que parece ser o caso. Porém, cons‑ vestígios arqueológicos foram recuperados, embora tatamos que manteve seu caráter minimalista na não tenham sido detetadas estruturas importantes imagem, caráter que permaneceu na interpretação que possam ser classificadas como urbanas. Há uma de Feroniae e Magna Mater. série de lápides reutilizadas na igreja, bem como Em Santa Lucia, junto às 11 estelas de Ataegina, mármores e telhas, o que levou Caballero a supor encontram­‑se 12 anepígrafas, que de acordo com que esses materiais estariam próximos no momen‑ Garcia Bellido, seria possivelmente de outro povo to da construção. Abascal, no entanto, defendeu que que rende culto à divindade do Lucus. Seria, pois, a as 50 aras e estelas funerárias poderiam ser levadas presença de outras formas de culto num santuário de para El Trampal, do local de Las Torrecillas, que ele fronteira. Também diferindo do culto atestado com considera ter sido Turobriga e, portanto, sede do as designações de dea domina sancta, que Bellido culto e que o lugar onde esta Santa Lucia terá sido pensa tratar­‑se de outra deusa funcionalmente se‑ o Lucus Feroniae. Garcia Bellido pensa que é difícil melhante, mas não necessariamente Ataegina. Abas‑ sustentar que os 50 blocos possam ter vindo de Las cal Palazón subscreve esta posição e diz que também Torrecillas até porque as lápides funerárias usadas os epítetos sanctus/sancta não podem se inscrever são monumentais, pelo que é mais credível que o para um culto único, tal como dea domina sancta material reutilizado em Santa Lucia estivesse in situ. esta documentado na zona de Cáceres para Mercú‑ Também não subescreve a proposta de Turobriga rio e Bellona. Bellido também ressalta que é impos‑ ter sido aí porque estabelece que um topónimo em sível compreender a complexidade de um santuário brigga descreve uma cidade. A cristianização do sítio de tal longevidade e que envolveu muitos povos

1188 em contínua transformação territorial e espiritual. flores, ao lado do trono surgem duas serpentes que Supondo­‑se que Ataecina não tivesse monopoliza‑ marcam o caráter ctónico, embora a cabeça e as mãos do o culto e que não seremos capazes de reconstruir não tenham sido preservadas. Foi encontrado perto a complexidade de deidades maiores, para as quais a do santuário a Mitra, onde os cultos das divindades cultura clássica não tinha interpretatio direta. Assim místicas e ctónicas foram associados, e onde as di‑ só podemos recorrer de forma fragmentada a face‑ vindades indígenas foram frequentemente acolhi‑ tas específicas de sua personalidade através das suas das. Não conhecemos o nome que os emeritensis divindades especializadas, como aconteceu com As‑ atribuíam para designar esta deidade, embora a fun‑ tarte e Tinite, que se tornou Demeter, Afrodite, Ate‑ cionalidade fosse certamente a mesma que era dada nae ou Juno, Venus, Minerva, ou também os casos a Ataecina (Garcia Bellido, 2001, pp. 68­‑70). das divindades orientais, Cybele e Isis. Ataegina é, como foi anteriormente referido, por A população de Emérita apresenta­‑se como uma po‑ vezes identificada com Prosérpina (Lambrino, 1965, pulação heterogénea de itálicos, pessoas de fora da p. 231, Vasconcelos, 1905, p. 154), pelos seus atribu‑ Península Ibérica e indígenas. Neste cruzamento de tos infernais, mas também propiciatórios, incluin‑ tradições, encontramos muitas divindades de dife‑ do a atribuição do epíteto sancta a Prosérpina, dado rentes origens e funcionalmente pleonásticas, dife‑ como característico de Ataegina (Vasconcelos, 1905, rentes em mitos, mas com funcionalidades idênti‑ p. 155). Na sequencia desta assimilação, teria ocorri‑ cas, em um enorme caldo cultural. Não são religiões do uma transferência dos atributos de cariz não só de mistério, pois não precisavam de iniciação e às produtivo, mas também infernal de Prosérpina para vezes, encontramos adoração de deidades mistéri‑ Ataegina. J. d’Encarnação (1975, p. 117) sublinha o cas fora do contexto do ciclo iniciático. Garcia Belli‑ caracter infernal de Ataegina, rejeitando a atribuição do conclui que a interpretação romana da deidade das características agrárias que tanto tinha Vascon‑ do Lucus com Feroniae deve ter acontecido por ser celos (1915, pp. 154­‑157) enfatizado considerando­ uma divindade maior. Ressalta ainda importância da ‑a uma Deusa do renascimento e da Primavera e água, de onde resulta a consequente associação com associando­‑a a outra divindade, a saber Libera, já J. as ninfas, que, embora sejam figuras secundárias da Abascal (2002, p. 55) ressalva ainda o caracter de di‑ mitologia romana, parecem ter desempenhado um vindade lunar e a possibilidade do culto prestado a papel importante, e sobretudo a nível da iconologia, Santa Eulalia em Mérida ser a supervivência daquela porque a elas recorreram para as colocar nas moedas antes dispensado a Ataegina. da fundação de Emérita. No que respeita ao ritual, possivelmente tratava­‑se Nenhuma das estelas com dea domina sancta tem da prática dos sacrifícios, embora o seu conhecimen‑ figuração, essa não figuração parece concentrar­‑se to seja ainda bastante lacunar. Numa das dedicató‑ na área de Betúria e Lusitânia na época pré­‑romana, rias de Emérita esta revela­‑se como uma divindade onde quase não há representações de figuras huma‑ infernal à qual é feita uma devotio (Vasconcelos, nas. Existem essencialmente cabras e algumas este‑ 1905, p. 165). A escassa documentação proveniente las tem crescentes lunares. Uma estela foi encontra‑ da Lusitânia sobretudo quanto ao material disponí‑ da em Malpartida com uma figura que parece orar e vel no domínio do panteão, bem como pela falta de que Abascal (2001, p. 56) propõe ser referente a Ata‑ organização e sistematização da mesma (Hoz, 1986, egina, mas Garcia Bellido defende que não é, e que p. 46) torna difícil vislumbrar um quadro satisfató‑ este é um fenômeno idêntico ao que levou um lusi‑ rio. Sendo o sacrifício uma prática claramente docu‑ tano a colocar na Sardenha, num Ninfeu uma inscri‑ mentada na religiosidade lusitana desde Estrabão. A ção a Ataegina. Assim não parece ter existido figu‑ pratica dos sacrifícios, como é sabido, incluem ofe‑ rações da divindade no Lucus Feroniae Emeritensis rendas de cabras, ovelhas e touros, em rituais desig‑ em contexto indígena. Mas sim pelos romanos que nados suovetaurilia, nos quais são sucessivamente desde a fundação de Emérita entrou como uma deu‑ sacrificados estes animais (Hoz, 1986, pp. 47­‑48). sa adotiva, num ato comum de dominação atestado na figuração numismática das primeiras cunhagens 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS emeritensis. Uma escultura monumental do mu‑ seu de Mérida pode representar a deusa Ataegina, Ategina surge como uma divindade indígena cujo trata­‑se de uma deusa entronizada com os pés sobre culto subsistiu de forma bastante notória durante

1189 Arqueologia em Portugal / 2017 – Estado da Questão o Principado (Abascal, 2002, p. 53), afirmando­‑se santuário de Alcuéscar. Com uma situação geográ‑ como a segunda divindade indígena mais cultuada fica excecional, pois encontrava­‑se no enclave de no Sul peninsular, após Endovélico (Encarnação, cinco povos diferentes e na conexão entre a bacia do 1984, pp.50‑80),­ que surge como um caso excecional rio Tagus e do rio Guadiana. A extensão do culto pe‑ no panorama das divindades pré­‑romanas, tal como los documentos epigráficos mostra que se espalhou preconizam Schattner, Guerra, e Fabião, (2005). Re‑ através de várias zonas, como foi o caso de Malpar‑ firo ainda que sinteticamente a exposição Religiões tida em Cáceres com os Vetões, em Quintos Beja da Lusitânia – Loquuntur Saxa no Museu Nacional com uma epígrafe que sugere a existência de uma de Arqueologia, em Lisboa, e a edição do livro, co‑ faculdade com magisti ou um culto organizado, ordenado por J. Cardim Ribeiro (2002), que contem com os Celtas no território celtibero, porém o culto contributos de diversos investigadores dedicados a arreigou­‑se principalmente em na zona de Mérida esta temática, foram importantes acréscimos para e possivelmente foi reproduzida na numismática este conhecimento. Calado em comunicação priva‑ como ninfa, como Ceres e chamada Proserpina. da salientou ainda que Ataegina é considerada por Podemos supor nesta fase, o culto particulariza‑ alguns investigadores como o “par” de Endovélico, do com vários epítetos que nunca nos alcançaram, sendo que o seu culto pressupunha a realização de possivelmente um dos grandes santuários ganhou oferendas de animais, o que poderia constituir um grande importância e é no alvorecer da romanidade aspeto comum com o culto de Endovélico, atenden‑ que este culto se cristalizou na epigrafia e se expan‑ do aos elementos escultóricos associados à epigrafia diu com o epíteto concreto desse Santuário especial, deste (Vasconcelos, 1905, p. 169), bem como o carac‑ enquanto os outros desapareceram, dilatando­‑se ter ctónico de ambos. em uma vasta região. A cadeia Feroniae – Perséfo‑ Garcia Bellido (2001) considera que podemos ates‑ ne – Proserpina – Ataecina parece ser bem atestada, tar a interpretação romana da deusa do Lucus sob embora seja necessário ter em mente que o culto nomes como Ataecina, Proserpina, Feroniae, Dea em questão abrange um período de tempo de pelo Domina Sancta ou Salus Augusta, certamente en‑ menos quatro séculos, desde o primeiro século até o quanto versões da divindade que tivera um culto século III e que portanto, sofreu mutações conside‑ muito anterior e que foi tão importante que quan‑ ráveis. A origem do fenómeno estaria antes de mais do da fundação de Emérita, capital da província no ambiente religioso próprio das populações celtas de Lusitânia, foi para o panteão como Proserpina/ da Península (Almagro­‑Gorbea e Alvarez­‑Sanchis, Ataegina. Esta possui uma notória diversidade de 1993, Mantas, 1984, p. 364). atributos, nos seus vários epítetos (dea, domina, sancta…), testemunhando assim a grande impor‑ BIBLIOGRAFIA tância do seu culto (Vasconcelos, 1905, p. 173). Nas ABASCAL PALAZON, Juan Manuel (2002) – Ataecina. In inscrições desprovidas de teónimo, a sua atribuição RIBEIRO, José Cardim (coord.) – Religiões da Lusitânia – é suportada pela presença do epíteto dea sancta, Loquuntur Saxa. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, o que, segundo J. Abascal (2002, p. 53), o que não pp. 53‑60.­ constitui um critério suficientemente válido, visto ALMAGRO­‑GORBEA, Martín e ALVAREZ­‑SANCHIS, Je‑ que os elementos sanctus/sancta e deus/dea não se sus (1988) – La sauna de Ulaca. Saunas y banos iniciáticos en afiguram exclusivos de uma divindade, sendo mes‑ el mundo celtico. Cuadernos de Arqueologia de la Univerdi­ mo frequente o seu uso no Ocidente peninsular. É dad de Navarra. Navarra. ainda bem possível que, como afirma Abascal, o cul‑ to inicial fosse dos Vetões. CABALLERO ZOREDA, Luis (1987) – ‘Hacia una propuesta tipológica de los elementos de la arquitectura de culto cris‑ Existe controvérsia sobre se Sta. Lucía era o local tiano de época visigoda (Nuevas iglesias de El Gatillo y El original do espaço de culto que teria abrigado esta Trampal)’, II Congreso Nacional de Arqueología, Zaragoza, grande coleção de altares votivos. Bellido pensa que Vol.I, pp. 61­‑98. Turobriga pode estar situada em Talavedra La Vie‑ CABALLERO ZOREDA, Luis e ROSCO MADRUGA, Juan ja onde as epígrafes de Ataecina apareceram sem (1988) – ‘Iglesia visigoda de Santa Lucía del Trampal, Alcués‑ outros nomes e onde vem a lápide do bassus turo‑ car (prov. Cáceres). Primera campaña de trabajos arqueológi‑ brigensis. Mas onde o culto e numerosos vestígios cos 1983‑84’,­ Extremadura Arqueológica I, Caballero Zore‑ se materializaram, de forma mais numerosa foi no da, Luis and Sáez Lara, Fernando (1999), La Iglesia Mozárabe

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