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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS – FAFIC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO SUJEITO, SABERES E PRÁTICAS COTIDIANAS LINHA DE PESQUISA COTIDIANO, IDENTIDADES E SUBJETIVIDADES

ENTRE UNIVERSOS SIMBÓLICOS E GUITARRAS DISTORCIDAS: IDENTIDADE, MÚSICA E SIGNIFICADO ENTRE OS HEADBANGERS DE MOSSORÓ/RN

LÁZARO FABRÍCIO DE FRANÇA SOUZA

MOSSORÓ - RN 2016 2

Lázaro Fabrício de França Souza

ENTRE UNIVERSOS SIMBÓLICOS E GUITARRAS DISTORCIDAS: IDENTIDADE, MÚSICA E SIGNIFICADO ENTRE OS HEADBANGERS DE MOSSORÓ/RN

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH), da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), como requisito obrigatório para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais e Humanas.

Orientador: Prof. Dr. Guilherme Paiva de Carvalho Martins.

MOSSORÓ - RN 2016 3

Ficha catalográfica gerada pelo Sistema Integrado de Bibliotecas e Diretoria de Informatização (DINF) - UERN, com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

S729e Souza, Lázaro Fabrício de França. Entre Universos Simbólicos e Guitarras Distorcidas: Identidade, Música e Significado Entre os Headbangers de Mossoró/RN / Lázaro Fabrício de França Souza - 2016. 95 p. Orientador: Prof. Dr. Guilherme Paiva de Carvalho Martins. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, (Mestrado em Ciências Sociais e Humanas) Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais e Humanas, 2016.

1. Música. 2. Heavy Metal. 3. Headbangers. 4. Identidade. I. Martins, Guilherme Paiva de Carvalho, orient. II. Título.

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Aos meus pais, Souza e Luzimar, aos quais devo basicamente tudo o que sou. Toda minha gratidão, reconhecimento e amor.

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AGRADECIMENTOS

As vitórias, as conquistas, em meio às sendas da vida, amiúde incertas e pedregosas, nunca são individuais. As trajetórias são sempre percorridas em conjunto. Há sempre alguém, direta ou indiretamente, ofertando a mão, o ombro, os braços; dando suporte, ensejando uma nova perspectiva, estabelecendo pontes. Agradecer, portanto, surge nesse contexto como uma dádiva.

Destarte, e antes de tudo, quero agradecer aos meus familiares, especialmente aos meus pais, Souza e Luzimar, que continuam a ser minhas referências e fontes de inspiração e também a minha irmã, Larissa. Toda minha gratidão, amor e admiração! À minha companheira, Shemilla, pelo amor, cumplicidade e carinho! Pela trajetória conjunta, pelos sonhos compartilhados, pelas superações. Pelo suporte e incentivo constantes! Todo meu amor! Embora não tenha religião, agradeço à Deus, inspiração divina, espécie de sopro vital que nos move e nos dá substância.

Agradeço ao meu orientador Prof. Dr. Guilherme Martins, pela parceria e credibilidade; pela paciência, pelas valiosas orientações, pelo direcionamento e pela amizade. Ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais e Humanas – PPGCISH e à Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, Instituição que tanto me orgulha ter como berço de minha formação acadêmica superior, seja a nível de graduação ou mestrado. Agradeço ao coordenador do PPGCISH, Prof. Dr. Marcos de Camargo Von Zuben, pelo fomento, pela credibilidade, por todo reconhecimento e pelas oportunidades. Por todo suporte e auxílio! Ao conjunto de Professores do Programa, pelos ensinamentos, pelo conhecimento compartilhado e construído conjuntamente.

Aos meus colegas de turma, pelas interações, pela amizade, pelo compartilhamento de perspectivas, pelos embates, pela construção coletiva de conhecimento e ciência. Ao Prof. Dr. Jean Henrique, por todo apoio e parceria, pela amizade erigida, que seguirá para a vida; pelas valiosas e necessárias contribuições e olhares, seja na qualificação, na defesa ou no decorrer de todo o processo. À Prof. Dra. Karlla Christine, pelo olhar e substantiva contribuição quando da minha qualificação. Ao Prof. Dr. Thadeu Brandão, da UFERSA, pela 7 participação na minha banca de defesa, contribuindo de forma definitiva para o melhoramento e amadurecimento do trabalho. Aos secretários do PPGCISH, Renato, Felipe e Sérgio, pelo suporte e por estarem sempre apostos e à disposição para ajudar da melhor forma.

Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, pela concessão de bolsa durante boa parte desta pesquisa.

Agradeço aos meus amigos/as, os de perto e os de longe, pela amizade e carinho.

Agradeço aos sujeitos que participaram dessa pesquisa, headbangers mossoroenses, figuras centrais nesse processo, cuja contribuição foi definitiva para os resultados alcançados.

Agradeço às inspirações poéticas, oníricas, que provêm de acordes inspirados, de melodias extasiantes, de composições tocantes. À força pujante da música, capaz de curar e embevecer. Como já nos atestara Nietzsche, em Crepúsculo dos Ídolos: “Quão pouca coisa é necessária para a felicidade! O som de uma sanfona. – Sem música a vida seria um erro”. De fato, a existência seria demasiado pobre sem a música e seu alento.

Agradeço, por derradeiro e de forma generalizada, a todos/as que, de um modo ou de outro, mais ou menos, direta ou indiretamente, contribuíram para aqui eu pudesse chegar. Toda minha gratidão e reconhecimento!

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“A inexprimível profundidade da música, tão fácil de entender e no entanto tão inexplicável, deve-se ao fato de que ela reproduz todas as emoções do mais íntimo do nosso ser, mas sem a realidade e distante da dor”. (Arthur Schopenhauer – Filósofo Alemão) 9

RESUMO

A música, enquanto expressão artística e subjetiva, surge como elemento substantivo e significante, capaz de operar em um universo simbólico, suscitando emoções, sentimentos e possibilitando as diversas expressões e nuances da “alma humana”. Percebemos e significamos a música de maneira distinta, conforme determinados códigos, aquisições, valores e experiências que se dão ao longo de nossa existência. Isso permite que se investigue e analise as relações sociais a partir da forma como a música é concebida, assimilada e significada em meio às tessituras sociais que vão sendo engendradas no cotidiano. O rock, nesse ínterim, enquanto manifestação musical, se constitui numa cultura “internacional-popular”, muitas vezes tendo sua legitimidade se estabelecendo em paradoxo às musicalidades nacionais, regionais e étnicas. O heavy metal, por sua feita, enquanto subproduto e faceta mais “pesada” do rock, faz parte desse espectro mais amplo, capaz de eclipsar e superar inclusive as noções de território. O heavy metal abrolha como um fenômeno musical global e está presente em todos os continentes do globo, sendo reconhecido e tendo adeptos em praticamente todos os países e regiões do mundo. O escopo desse empreendimento de pesquisa reside exatamente na busca da experiência e da ação humanas por meio da cultura heavy metal, do ethos e estética headbanger. Nesse direcionamento, focalizamos o desvelar dos mecanismos e estratégias utilizadas pelos sujeitos adeptos do heavy metal, os headbangers, no tecimento de suas identidades. Tangencialmente, procuramos perceber como se dá o processo de construção de laços e sociabilidades entre os integrantes dessa “cultura alternativa” e urbana.

PALAVRAS-CHAVE: Música; Heavy Metal; Headbangers; Identidade.

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ABSTRACT

Music, as an artistic and subjective expression, appears as a substantive and significant element capable of operating in a symbolic universe, arousing emotions, feelings and enabling the various expressions and nuances of the "human soul." We perceive and mean music in a different way, according to certain codes, acquisitions, values and experiences that occur throughout our existence. This allows us to investigate and analyze social relations from the way music is conceived, assimilated and signified in the midst of the social contexts that are engendered in everyday life. Rock, in the meantime, as a musical manifestation, constitutes an "international-popular" culture, often having its legitimacy establishing itself in paradox to the national, regional and ethnic musicalities. Heavy metal, in its turn, as a by-product and rockier facet of rock, is part of this broader spectrum, capable of eclipsing and overcoming even the notions of territory. Heavy metal is a global musical phenomenon and is present in all continents of the globe, being recognized and having fans in practically all the countries and regions of the world. The scope of this research is in the pursuit of human experience and action through heavy metal culture, ethos and aesthetics headbanger. In this direction, we focus the unveiling of the mechanisms and strategies used by heavy metal fans, the headbangers, in the construction of their identities. We also seek to understand the building of ties and sociabilities among the members of this alternative and urban culture.

KEYWORDS: Music; Heavy metal; Headbangers; Identity.

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SUMÁRIO

1 PROLEGÔMENO METALLICUS ...... 12

1.1 Contexto, problemática e objetivos ...... 17

1.2 Sendas Metodológicas: (Des)Caminhos e rotas de fuga ...... 21

2 INDIVÍDUO, SOCIEDADE E IDENTIDADE NO PENSAMENTO SOCIAL ... 29

2.1 A Relação Indivíduo/Sociedade no Pensamento Social Clássico: Um Esboço ...... 29

2.2 A Relação Indivíduo/Sociedade no Pensamento Social Contemporâneo: Alguns Apontamentos pela lente de Norbert Elias ...... 36

2.3 Configuração, rede, interdependência e processo ...... 37

3 HEAVY METAL, GLOBALIZAÇÃO, IDENTIDADE CULTURAL E SOCIABILIDADES ...... 43

3.1 Globalização, hibridismo e “metal pesado” ...... 43

3.2 Heavy metal e a noção de “cena musical” ...... 59

3.3 A cena heavy metal em Mossoró e o que a configura ...... 60

4 MEDIAÇÃO, SOCIABILIDADE E METAL ...... 62

4.1 Sobre a experiência dos shows: significados e perspectivas ...... 75

4.2 Heavy Metal e as diferentes gerações: assimilação e consumo ...... 78

5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES DERRADEIRAS...... 82

REFERÊNCIAS ...... 87

APÊNDICE A - ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA ...... 94

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1 PROLEGÔMENO METALLICUS

“Heavy metal é a totalidade da existência.” (Rob Halford – Vocalista da banda inglesa de heavy metal )

Segundo Oliver Sacks (2007), há diversos indícios cujos apontamentos dão conta que nós, humanos, temos, tanto quanto o instinto da linguagem, um “instinto musical”. Para ele, somos uma espécie, além de linguística, “musical”, capazes – exceto raras exceções – de perceber música, tons, intervalos entre notas, timbres, melodias, harmonia e, em especial, ritmo. Contudo, Jannoti (2014) adverte que “não há como estabelecer uma noção totalizante, imutável ou de maneira definitiva para o que chamamos de música”. Isso porque, prossegue ele, existe em torno da vivência com relações sonoras reconhecidas como música, envolvimentos sociais, estéticos, culturais e econômicos, capazes de transformar a ideia de continuidade de uma experiência tomada como ‘musical’. Percebemos e significamos a música de maneira distinta, conforme determinados códigos, aquisições, valores e experiências que se dão ao longo de nossa existência. A música também surge como elemento substantivo e significante, capaz de operar em um universo simbólico, suscitando emoções, sentimentos e possibilitando as diversas expressões e nuances da “alma humana”.

Paula Guerra (2016), socióloga portuguesa, infere que, com efeito, a música popular, bem como suas derivações, revelam uma fundamental importância na estruturação das vivências e sociabilidades culturais e lúdicas ao longo dos últimos setenta anos, sobretudo. Assim, ainda conforme a autora:

a música é um domínio de investigação que responde no essencial à relação entre a estrutura social e a música, ao desenho e configuração dos mundos da música, à estruturação social da estética musical, à oficialização dos campos musicais, ao uso da música na elaboração de distinções de status e à importância das componentes musicais na formação identitária. A acrescentar a estas dimensões, não será despiciendo realçar que as próprias modalidades e conteúdos da relação entre música e sociedade se têm tornado mais enredados acompanhando a própria complexidade de estruturação societal. (GUERRA, 2016, p. 8)

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Se, nos séculos anteriores, complementa Guerra (ibidem), a obra musical estava reservada às salas de espetáculos e direcionada a um público composto eminentemente por burgueses, hodiernamente, a música se encontra disseminada por todos os lugares, não apenas devido aos meios de comunicação social, mas pelo fato de os espetáculos “irem com as pessoas aos seus locais de trabalho”, por exemplo. Outrossim, não sendo apenas o público burguês capaz de acessar o universo relacionado à música, as camadas mais baixas também o fazem, o que enseja com que o próprio conteúdo musical e a relação entre artista, o conteúdo do seu trabalho e o público se transformem, seja alterado. Ortiz (2008, p. 12) expõe que a musicalidade dos sons e dos arranjos, a poesia das letras, a entonação da voz fazem parte de um campo de organização social, cultural e econômico, no qual a criatividade individual se encerra e se desenvolve. Criatividade difícil, negociada, mediada pela técnica e pelas leis de mercado. O rock, nesse ínterim, enquanto manifestação musical e artística, segundo Ortiz (2008, p. 12), “se constitui numa cultura internacional-popular, cuja legitimidade contrasta com as musicalidades nacionais, regionais e étnicas”. O heavy metal, por sua feita, enquanto subproduto e faceta mais “pesada” do rock, faz parte desse espectro mais amplo, capaz de eclipsar e superar inclusive as noções de território. O heavy metal surge, ainda, como um fenômeno musical global e está presente em todos os continentes do globo, sendo reconhecido e tendo adeptos em praticamente todos os países e regiões do mundo. Algumas das principais bandas do estilo lotam estádios inteiros mundo afora levando milhares de pessoas ao êxtase. Tem seu berço sobremaneira na Europa (mais especificamente na Inglaterra) e nos Estados Unidos. Descende principalmente do rock ‘n’ roll e do blues, mas mostra influências do Rythm & Blues, do Jazz, da música clássica e erudita, da música barroca e da música country. Dentre as primeiras bandas a serem denominadas heavy metal está o , considerada a precursora do estilo e cuja origem remete à classe trabalhadora inglesa do decênio de 1960. No início havia apenas o céu, em sua noturna e sombria extensão, e o desconhecido. Os mais profundos segredos da história – que só poderiam ser reanimados por forças tão antigas quanto a própria civilização – revolviam nesse inquieto limbo, onde tudo era acinzentado, fumacento, escuro e sagrado. Essas poderosas correntes 14

– por tanto tempo esquecidas e adormecidas até que a guerra, a crise e a angústia pudessem despertar e trazer à tona seus mais horrendos poderes – não possuíam definição nem emitiam sons até serem capturadas e subjugadas por uma epifania conhecida como Black Sabbath: a banda primordial, a origem do heavy metal. Desde o começo, o entusiasmo poderoso de Black Sabbath reverberava para além dos perímetros da opinião geral. Profetas criados à margem da sociedade inglesa, eles eram desempregados, socialmente desprezíveis e, ainda, moralmente suspeitos. (CHRISTE, 2010, p. 13).

Dentre os intentos precípuos do gênero sempre estiveram presentes a subversão, a transgressão, o rompimento com o status quo, muitas vezes, além de uma postura e comportamento que causassem choque, incomodasse, “mexesse” com o sistema e quebrasse padrões sociais e a ideia de ordem, um ato político, o que não significa um movimento político e organizado e/ou com fins específicos de contestação, embora isso se faça presente em um momento ou outro. O próprio fato de tratar ou se expressar, quer seja visualmente ou musicalmente, a partir de tabus, temas polêmicos, macabros e ocultos, em grande parte dos casos destinava-se a se utilizar da ficção e do sobrenatural para “chamar a atenção”, para “desconstruir” e até mesmo sensibilizar, incitar a reflexão. Expressar-se dessa maneira não necessariamente implica, especificamente, uma representação subjetiva, no que tange aos membros das bandas, enquanto sujeitos, ou se referem às suas experiências individuais, espirituais ou simbólicas. Ou seja, uma banda pode muito bem tratar em suas letras de temas ocultos/obscuros e seus integrantes (ou parte deles) professarem a fé cristã, por exemplo.

De uma forma ou outra, essa maneira de se comunicar por meio de temáticas que podem causar certa ojeriza social trouxe e – embora em menor grau hoje, até mesmo pelo maior espaço ocupado pelo estilo nos meios de comunicação de massa, a partir, em larga escala, da veiculação de grandes festivais de música, como Rock in Rio ou S.W.U, por exemplo – continua trazendo problemas para bandas e artistas, tais como reprovação pública, perseguição, estigmas e certa repulsa. Parte disso vem pelo motivo de alguns estilos dentro do heavy metal – com relevo para o black e o death metal – “dessacralizarem” e blasfemarem símbolos religiosos e o cristianismo, como nos alerta Lopes: 15

Como elemento central da discriminação [...] emerge a dessacralização de símbolos religiosos associados ao domínio do mal em diversas tradições religiosas promovida pelo heavy metal, que converte determinados símbolos dotados de significado sobrenatural malévolo, sobretudo para setores do Cristianismo, em convenções artísticas esvaziadas de periculosidade e muitas vezes positivadas – dessacralização não compreendida e suscitadora de reações negativas por parte de não participantes dessa cultura musical. (LOPES, 2013, p.1)

Como aclara Janotti (2000, p. 92), “o heavy metal surge em meio à fissura e confusão do início da década de setenta, época marcada pela perda das referências que marcaram o rock durante a década de 1970, que culminaram nos movimentos de maio de 1968”. Janotti destaca também o fato de o heavy metal fazer parte de um contexto sociohistórico em que “a tomada de consciência e a mobilização provocaram uma mostra do poder de aglutinação da juventude em busca de um espaço societal”. Ainda sob a pena de Janotti (ibidem), a despeito da efervescência e profusão do rock durante o decênio de setenta, que traz a leme novamente o vigor contestatório com alicerce no movimento punk, apenas nos anos 1980 que o heavy metal se consolida como um gênero dentro do rock. Bandas como , Scorpions, AC/DC e Van Halen, prossegue o autor, projetaram um espaço societal e de vivência dos fãs de heavy metal para além da ideia de um gênero musical, dando, por conseguinte, visibilidade. “Através dos trajes, dos shows e dos locais de encontro, os fãs de heavy metal construíram territórios existenciais, onde é possível exercitar a subjetividade fora dos espaços normatizados”. (JANOTTI, 2000, p. 92). Esse ‘neotribalismo’ traz a ideia de um imaginário metálico como meio de agregação social característica da Cultura Contemporânea.

A sociabilidade marcaria ('daria o tom') os agrupamentos urbanos contemporâneos, colocando ênfase na 'tragédia do presente', no instante vivido além de projeções futuristas ou morais, nas relações banais do cotidiano, nos momentos não institucionais, racionais ou finalistas da vida de todo dia. Isso a diferencia da sociabilidade que se caracteriza por relações institucionalizadas e formais de uma determinada sociedade (LEMOS, 1998, p. 2 apud JANOTTI, 2002, p. 92).

Ademais, no decênio de 1980, o sistema de comunicação broadcasting e a radiodifusão passam a assimilar a nova safra de bandas de heavy metal, dando visibilidade ao gênero e ampliando searas mercadológicas. Por consequência, 16 entrementes, as bandas deixaram de caracterizar e compartilhar determinadas nuances e particularidades da “tribo metálica” e do sentimento underground, ameaçando a demarcação do seu espaço tribal. É nesse cenário que é encetado o fenômeno das divisões do heavy metal em vários subgêneros. (JANOTTI, 2002). O estilo de música heavy metal é reconhecido por lojas de música, de instrumentos, grandes distribuidoras e gravadoras, pelos meios de comunicação, e, principalmente, pelo público consumidor, ratifica Campoy (2008), além de movimentar um mercado bilionário anualmente. Com a expansão e reconhecimento do estilo, já a partir dos anos 1970 e com mais força nos anos 1980, originaram-se várias ramificações culminando com a divisão em diversos subestilos. Assevera-nos Leonardo Campoy (2008) que

Durante os anos de 1980, além de sedimentar sua presença fora da Europa ocidental e Estados Unidos, o heavy metal começa a se desdobrar em uma série de subestilos. Surgem o , o doom metal, o , o , entre inúmeros outros. Essas diferenciações certamente se deram pela intenção de gravadoras e distribuidoras de especificar seus produtos, seguindo a lógica mercadológica de constantemente oferecer mais opções ao cliente.

Por outro lado, o autor supracitado mostra que são também resultado do anseio, por parte da crítica especializada e das mídias, de identificar quais seriam as “bolas da vez”, as próximas linhas-mestras da estética que dominariam o panorama do estilo, lançando mão, portanto, da invenção de rótulos que exprimiam, de modo mais claro, o tipo de som, de música, feito por esta ou aquela banda.

Mas, o surgimento desses subestilos dentro do heavy metal, acusa Campoy (2008, s/p), se deu e se dá principalmente por parte da ação das bandas e do público. Dessa forma, à medida que o número de bandas foi aumentando e a diversidade de estilos de heavy metal crescendo, as bandas e o público sentiram necessidade de caracterizar de modo mais específico o que estavam compondo, tocando, ouvindo. A assertiva do autor (ibidem) nos dá a tônica:

O thrash metal, música rápida e mal gravada propositalmente, com vocais gritados e versando sobre o caos do fim do milênio e as guerras nucleares, era visto como sendo bem diferente, por exemplo, do glam metal com seus músicos vestidos com roupas fortemente coloridas e usando laquê e purpurina nos cabelos, fazendo um metal dançante que tratava de carros, mulheres, bebidas e dinheiro. 17

Atualmente, a quantidade existente dessas diferenciações nos faz pensar se ainda é possível falar de heavy metal como um grande estilo contendo vários subestilos. (CAMPOY, 2008, s/p).

1.1 Contexto, problemática e objetivos

A despeito de certas peculiaridades e idiossincrasias, o heavy metal não é uma ilha. Por um lado, enquanto movimento cultural, o heavy metal parece seguir amiúde na contramão do que se denomina “cultura de massas”, fugindo, portanto, da adaptação e do consumo para as massas, primando pelo consumidor como sujeito e não meramente um objeto, mormente levando em consideração que se pretende, inclusive, romper com o status quo também nesse sentido. Noutras vezes, no entanto, de algum modo, parece ir ao seu encontro, assumindo padrões comerciais facilmente reproduzidos. Abda Medeiros (2008, p. 160), no que concerne à organização e produção de shows undergrounds, corrobora essa perspectiva assinalando que

[...] esses eventos configuram-se e realizam-se seguindo os princípios da filosofia denominada underground, ou seja, orientam-se pela ideia “faça você mesmo” independente de patrocinadores, apoios institucionais públicos e/ou privados, seguindo uma lógica de mercado diferenciada da difundida pela “cultura de massa”.

Ainda na perspectiva da autora, em certas ocasiões (idem) – na busca por espaços, apoio financeiro para a realização dos eventos, e igualmente nas formas de divulgação e difusão dos trabalhos produzidos pelas bandas e consumidos pela plateia e por outras bandas ligadas ao estilo – recorram às formas de produção, organização, disseminação e distribuição características da indústria cultural para o estabelecimento de trocas simbólicas e materiais, o que enseja novos laços de sociabilidade e provoca, amiúde, um enriquecimento cultural por meio desses contatos, embora possíveis antagonismos de interesses possam eclodir.

O heavy metal não deixa de ser uma faceta da indústria fonográfica e cultural. Em linhas gerais, trazemos indústria cultural aqui “como a forma sui 18 generis pela qual a produção artística e cultural é organizada no contexto das relações capitalistas de produção, lançada no mercado e por este consumida” (FREITAG, 1994, p.72). Essa mesma indústria cultural apresenta grandes mudanças, quando comparada, principalmente, com as análises de Theodor Adorno nos séculos 1940 e 1950. Farias e Costa (2016) atestam que pensar na indústria cultural, hoje, é partir de uma certa inversão metodológica que reconfigurou o acesso aos bens culturais, ou seja, se antes existiam as ditas ‘mídias de massa’, hoje temos as ‘massas de mídias’, onde o emprego de ferramentas online, por exemplo, está no ordenamento do dia.

Assim, a desmaterialização da cultura, unida ao surgimento de plataformas virtuais de distribuição em rede (gratuitas ou não) dos bens simbólicos, constituem os novos desafios para se (re)pensar a atual dinâmica de produção-distribuição-consumo da indústria cultural e, inserida nela, consequentemente, a indústria fonográfica. (FARIAS e COSTA, 2016, p. 24)

Segundo Farias e Costa (2016), para além de seu prelúdio histórico, hoje devemos considerar a indústria cultural como de base local-global, produzida por meio da dialética e a partir de aparelhos diversos de reprodução simbólica das sociedades contemporâneas. As indústrias culturais, no plural, expressam, segundo os autores, nosso novo tempo de midiatização e ciberespaço. Vertical e transversalmente a produção cultural se forja e fortalece, se reinventando e impondo formas heterogêneas e plurais de disputa por legitimidade econômica e cultural.

Diferente do que se poderia afirmar, esta indústria cultural hoje não mais se assenta completamente em bases hegemônicas do ponto de vista tecno-organizacional. Muito embora não se diga que ela inexista, percebe-se que tecnológica e organizacionalmente já não é a mesma, tal qual analisada nos anos 1940 por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. Muita coisa mudou! Falar em ‘indústrias culturais’ seria, portanto, mais apropriado, visto que, muito embora o ‘sonho’ ideal de padronização (estandardização) ainda exista, existem também formas alternativas e eficientes de driblar tais ditames. (FARIAS e COSTA, 2016, p. 23-24)

Esse “novo” contexto exige nova postura e abordagens. O Iron Maiden, banda inglesa considerada um dos maiores nomes do heavy metal mundial, já 19 tendo vendido mais de 85 milhões de lps/cds1, por exemplo, diante de um cenário rearranjado e dinâmico, passou a adotar novas estratégias mercadológicas, uma vez suas vendas de discos físicos terem diminuído. A banda passou a mapear os lugares onde suas músicas eram mais baixadas, mas ainda não tinha tocado presencialmente, e utilizou isso como plataforma para chegar a lugares onde nunca estivera antes, o que culminou numa turnê de dois anos (2012 a 2014), conforme Carrera (2014), em reportagem para o portal da Revista Época.

Foi analisando os focos de download de seus hits que o Iron definiu as cidades pelas quais passaria na sua turnê Maiden England World Tour: foram 46 shows em 24 países entre 2012 e 2014. Segundo estimativas de Musicmetric, essa estratégia levou-os a conquistar mais 5 milhões de seguidores online, a maioria na América do Sul.

Sendo assim, portanto, o heavy metal, não resta dúvida, é um fenômeno cultural e social. Tal como postulara Marshall Sahlins (1997), a cultura não pode ser abandonada, sob pena de não se compreender o fenômeno singular que ela distingue e nomeia, a saber, a organização da experiência e da ação humanas por meios simbólicos. Os significados não podem ser explicados a partir de propriedades biológicas ou físicas. As relações, coisas e pessoas que povoam a existência humana manifestam-se essencialmente como valores e significados. Pois, bem. É exatamente a experiência da ação humana por meios simbólicos, no caso específico, a cultura heavy metal, o ethos e estética headbanger o escopo desse empreendimento. Nesse direcionamento, estabelecemos como questão norteadora desse trabalho: quais os mecanismos e estratégias utilizadas pelos sujeitos adeptos do heavy metal para tecerem suas identidades enquanto headbangers? Como objetivo geral pretendemos compreender como os headbangers de Mossoró constroem suas identidades e, tangencialmente, perceber como se dá o processo de construção de laços e sociabilidades entre os integrantes dessa “cultura alternativa” e urbana. Como objetivos específicos fitamos identificar como são feitos os contatos, as trocas simbólicas e alianças entre os headbangers; como se afirmam perante o grupo

1 http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/musica/o-iron-maiden-em- numeros/n1238187087568.html 20 e se autoafirmam e qual o significado que o heavy metal tem para esses headbangers.

O interesse acerca da temática não nos é novo, nem surgiu a esmo. Ao contrário, foi fruto de maturação e inquietações que foram se acumulando ao longo dos anos e, é mister que se sublinhe, diz respeito também, por outro lado, à ligação do autor com a cena heavy metal local e com suas predileções musicais. Essa intermediação, inclusive, mostra-se presente – como poderá ser constatado nos depoimentos mais adiante – a via, par excellence, de acesso ao metal, ao contrário de outros estilos, cujo intermédio, amiúde, se dá por meio das veiculações midiáticas, com ênfase para a TV e o Rádio. Como vai nos mostrar Silva (2008), o objeto de estudo que cada pesquisador vai construindo no campo das Ciências Sociais costuma ter, geralmente, uma relação direta com seus itinerários, com sua própria vida. Não se trata, todavia, “de se deixar levar pelas vontades mais esquisitas e esdrúxulas. Antes, é uma questão de abordar cientificamente aquilo que em muitos casos nos inquieta como indivíduos participantes de um mundo social. ” (SILVA, 2008, p. 28).

Diante do já exposto, a justificativa para o presente empreendimento também se assenta na exiguidade de estudos focados, sobretudo na região Nordeste do país, em relação a um fenômeno cultural carregado de críticas sociais e simbologias, o heavy metal, que está, como disse Zagni (2009, p. 122):

[...] circunscrito a segmentos sociais específicos, com dinâmicas e códigos de conduta muito próprios e que se organizam parcialmente ao arrepio do Estado, parte sob controle deste e manifestando significativas condutas de contra-controle, construindo zonas de contato e resistência, negociação e incorporação.

Ademais, ainda em conformidade com Zagni, não é possível compreender a sociedade em sua totalidade se não entendermos suas segmentações sociais. No heavy metal, encontramos segmentos marginalizados não somente pela ordem cultural e social vigente, ou pela mídia condutora de comportamentos e atitudes, mas também pelo próprio pensamento acadêmico, fruto, em larga medida, desses mecanismos de controle. (ZAGNI, 2009). Noutra ponta, o interesse pela pesquisa apresentada também se constitui e justifica diante das inquietações de pesquisa que nos acompanham desde meados dos anos 2000, mais especificamente 2006, 2007, quando nos deparamos, ao adentrarmos no 21 universo acadêmico – e já imersos no contexto da cena heavy metal e cultural mossoroenses – com ferramentas e teorias capazes de explicar, de pensar, as sociedades e grupos sociais, os mais distintos ou específicos. As motivações subjetivas, portanto, não podem ser desconsideradas, mitigadas ou ofuscadas, mas sim somadas a justificativas mais amplas e pertinentes no delineamento da pesquisa para tornar possível uma leitura crítica e aprofundada sobre o fenômeno estudado. Em linhas gerais, buscaremos entender como as relações são tecidas entre os headbangers, como dotam esse universo de significado, procurando identificar os signos e símbolos utilizados. Tendo como norte esses questionamentos é que pretendemos construir o itinerário dessa pesquisa. É ela – a pesquisa – que nos guiará na construção da ponte que ligará os questionamentos às respostas que necessitamos.

1.2 Sendas Metodológicas: (Des)Caminhos e rotas de fuga

Empreender a tentativa de adentrar no universo heavy metal, como cientista social, já fazendo parte dele como entusiasta e apreciador do estilo, surge como uma aguilhoada à parte, ao passo em que é preciso livrar-se de alguns preconceitos, das noções e visões cristalizadas e do apego subjetivo, conquanto acreditemos que não seja mister prescindir da subjetividade headbanger, digamos, para lograr o êxito necessário na desenvolução da pesquisa e na obtenção de seus resultados. Esse foi nosso primeiro e grande desafio. Paralelo à pessoa do headbanger há a do cientista; enquanto pessoa do cientista também há a do headbanger, o que não exime a necessidade de transformar o “familiar em exótico” (DaMatta, 1978), de uma “descrição densa” (Geertz, 1989) ou de um “mergulho profundo” nas águas do heavy metal. Foi exatamente essa simbiose (aliar a perspectiva científica à subjetividade headbanger) que deu sentido às pesquisas de Sam Dunn2. Assim, em palavras de Peirano (2008, p. 3, 4), “a personalidade do investigador e sua experiência

2 Antropólogo e cineasta canadense, famoso por documentários/pesquisas sobre o universo heavy metal [como Global Metal e A Headbanger’s journey e bandas como Iron Maiden, Rush, , etc. 22 pessoal não podem ser eliminadas do trabalho etnográfico. Na verdade, elas estão engastadas, plantadas nos fatos etnográficos que são selecionados e interpretados”. De todo modo, é necessário certo “afastamento”, oportunizar o “estranhamento”, na medida em que a Antropologia deve nos desestabilizar, como aponta Goldman (2008, p. 7):

Os discursos e práticas nativos devem servir, fundamentalmente, para desestabilizar nosso pensamento (e, eventualmente, também nossos sentimentos). Desestabilização que incide sobre nossas formas dominantes de pensar, permitindo, ao mesmo tempo, novas conexões com as forças minoritárias que pululam em nós mesmos.

A pesquisa, sugere Marconi e Lakatos (1991), é um procedimento formal, que apresenta método de pensamento reflexivo, requerendo um tratamento científico e se constituindo em trilhas para conhecer a realidade ou se descobrir verdades parciais. Esse empreendimento científico se trata de uma pesquisa exploratória, descritiva, com abordagem qualitativa e com incursão em campo. A pesquisa qualitativa, conforme Minayo (1994), responde a questões particulares. Ela se preocupa, no âmbito das Ciências Sociais, com um nível da realidade social que não pode ser quantificado. Sendo assim, ela trabalha a partir de um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, correspondendo a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos tão somente à operacionalização de variáveis. Ademais, se caracteriza, outrossim, como uma pesquisa explicativa. Gil (2002) nos atesta que as pesquisas explicativas são aquelas que denotam preocupação cerne com a identificação dos fatores que determinam ou contribuem para a ocorrência de determinados fenômenos, possibilitando o aprofundamento e o conhecimento de uma determinada realidade, porquanto explique a “razão” das coisas.

No que tange aos procedimentos metodológicos utilizamo-nos, a priori, de amplo referencial teórico, como fonte de pesquisa e erudição, almejando a criação de um arcabouço intelectual necessário para a plena desenvolução do projeto. Posteriormente, tencionamos valer-nos do trabalho empírico sob a égide das técnicas de observação participante e, mormente, de entrevistas semiestruturadas. 23

Os procedimentos de observação, pesquisa e coleta dos dados foram realizados na cidade de Mossoró/RN, situada no interior do estado do Rio Grande do Norte, na região Nordeste do Brasil. A cidade se localiza estrategicamente entre duas importantes capitais, Natal (RN) e Fortaleza (CE), distante dessas 278 e 245 km, respectivamente, o que, em muitos momentos, facilita a vinda de bandas de outras regiões do país e estreita a interlocução com as supracitadas cidades. Mossoró apresentava uma população estimada, no ano de 2016, em 291 mil habitantes, segundo dados do IBGE3. A cidade, portanto, se constituiu como nosso lócus investigativo. Mossoró, no cenário rock/metal do RN, sempre se mostrou uma cena forte e constante, apresentando um bom número de shows anuais, lojas especializadas, bares temáticos e toda uma cadeia/economia criativa que se estabelece também a partir do rock/metal, muito embora nem sempre apenas deles. A opção sobremaneira por utilizar elementos da etnografia e observação participante, enquanto metodologia, se dá por acreditar que ela possibilita nos aproximarmos factualmente da realidade a qual nos propomos compreender e estudar, já que, como postula a antropóloga Urpi Uriarte (2012), a etnografia consiste numa espécie de mergulho profundo e prolongado na vida e no cotidiano desses Outros os quais buscamos apreender e compreender. Nessa perspectiva, Magnani (2002, p.17) aponta que o método etnográfico não se confunde nem se reduz propriamente a uma técnica, mas pode usar ou servir- se de várias, de acordo com as circunstâncias de cada pesquisa; é, antes de tudo, um modo de acercamento e apreensão do que um conjunto de procedimentos. Esse “modo de acercamento” ou “mergulho” tem suas fases. A primeira delas é um mergulho na teoria, informações e interpretações já feitas sobre a temática e a população específica que queremos estudar. A segunda consiste num longo tempo vivendo entre os “nativos” (rurais, urbanos, modernos ou tradicionais); esta fase se conhece como “trabalho de campo”. A terceira reside na escrita, que se faz quando se volta para a casa. Nas páginas seguintes falaremos sobre cada uma destas três fases, iniciando pela segunda, em virtude de requerer uma exposição mais detalhada. (URIARTE, 2012, p. 175)

Goldman (2008, p. 7), por sua feita, nos fala que os discursos e práticas nativos devem servir, fundamentalmente, para desestabilizar nosso pensamento

3 ftp://ftp.ibge.gov.br/Estimativas_de_Populacao/Estimativas_2016/estimativa_2016_TCU.pdf 24 e, de modo eventual, nossos sentimentos. Desestabilização, segundo ele, que incide sobre nossas formas dominantes de pensar, e que permitem, simultaneamente, novas conexões com as forças minoritárias que pululam em nós mesmos. Seguimos, então, na perspectiva de Urpi Uriarte (2012), onde, a rigor, fazer etnografia não consiste apenas em “ir a campo”, ou “ceder a palavra aos nativos” ou ter um “espírito etnográfico”. Fazer etnografia supõe uma vocação de desenraizamento, uma formação para perceber o mundo de forma descentrada, uma preparação teórica para entender o “campo” que se almeja pesquisar, um “se jogar de cabeça” no mundo que pretendemos desvendar, um tempo prolongado dialogando com as pessoas que buscamos entender, levando a cabo, seriamente, a sua palavra, encontrando uma ordem nas coisas e, depois, colocar as coisas em ordem por meio de uma escrita realista, polifônica e intersubjetiva.

O trabalho de “campo” antropológico, é relevante sublinhar, não se restringe apenas a ir e ver ou ir e coletar amostras. Envolve algo mais complexo: “uma co-residência extensa, uma observação sistemática, uma interlocução efetiva (língua nativa), uma mistura de aliança, cumplicidade, amizade, respeito, coerção e tolerância irônica” (CLIFFORD, 1999, p. 94 apud URIARTE, 2012, p. 175).

Em uma palavra, o trabalho de campo antropológico consiste em estabelecer relações com pessoas. Então, o quesito “pessoas” se torna central. O nativo do antropólogo são pessoas e não indivíduos abstratos, gente concreta, sujeitos nada genéricos [...]. (URIARTE, 2012, p. 175)

Seguimos a prescrição de Geertz (1989), procurando encarar o que sucede em campo como textos dotados de significação e relevância, buscando igualmente captar o máximo possível do discurso e das posturas nativas, procurando entender todos os elementos da cultura analisada, como algo intrínseco à realidade em questão. No entanto, também sabemos que, como delimitou Velho (1999), a ideia de se pôr no lugar do outro e de captar vivências e experiências particulares exige um mergulho em profundidade difícil de ser precisado e delimitado em termos temporais. Aqui não temos a pretensão de apresentar um quadro de verdades absolutas e um cenário cabal e definitivo. 25

Nosso intento, enquanto pesquisador, é apresentar dados honestos e que correspondem, temos ciência, a um período e contexto específicos, o que, inclusive, deixa lacunas e possibilidades investigativas outras, seja para a continuação desse empreendimento no futuro, abordando outras perspectivas, quer seja de base para outros investigadores sociais.

Fica patente nossa escolha por usar proeminentemente métodos qualitativos, o que pode ser justificado na explanação de Dias (2000), que assinala que os métodos qualitativos se mostram apropriados quando o fenômeno em estudo é de natureza social, não tende à quantificação e é complexo. Normalmente, são usados quando o entendimento do contexto social e cultural é um relevante elemento para a pesquisa. Os métodos qualitativos demandam aprender a observar, registrar e analisar reais interações entre pessoas, e entre pessoas e sistemas. No que concerne ainda à nossa pesquisa, o auxílio da etnografia dar-se-á em contexto urbano.

A etnografia urbana olha, assim, ‘de perto e de dentro’, tentando captar, mediante a experiência do trabalho de campo prolongado ou da ‘frequentação profunda’, a perspectiva dos próprios nativos urbanos (transeuntes, moradores, usuários, sujeitos políticos como associações de bairro etc.) em relação a como transitam, como usufruem, como utilizam, como estabelecem relações. Então, os resultados da etnografia urbana (e suas narrativas) são muito diferentes das realizadas a partir apenas da observação (mesmo que se trate de uma “observação encarnada”), porque usar tão somente a observação gera um discurso subjetivo, enquanto que fazê-lo através da observação-participante produz intersubjetividade. (GUBER, 2005 apud URIARTE, 2012, p. 181)

O que a etnografia urbana reflete, conforme esses autores (op. cit.), é esta intersubjetividade, onde o trabalho de campo é compreendido como uma experiência imersiva e atrelada à subjetividade, produtora, por consequência, de uma intersubjetividade. Como nos revela Uriarte (2012), a rigor, esse movimento consiste muito além do que “ir a campo”, “ceder a palavra aos nativos”, possuir supostamente um “espírito etnográfico” ou uma sensibilidade aguçada. Supõe desenraizamento, perceber o mundo de maneira descentrada, disposição mental e intelectual necessária para o entendimento das diversidades. Ademais, supõe e demanda

uma preparação teórica para entender o “campo” que queremos pesquisar, um “se jogar de cabeça” no mundo que pretendemos 26

desvendar, um tempo prolongado dialogando com as pessoas que almejamos entender, um “levar a sério” sua palavra, um encontrar uma ordem nas coisas e, depois, um colocar as coisas em ordem mediante uma escrita realista, polifônica e intersubjetiva. (URIARTE, 2012, p. 187) É necessário que se enfatize que nossa pesquisa não é eminentemente etnográfica, visto que, dados os objetivos, os esforços principais se voltam para as construções identitárias e dos processos de sociabilidade. De todo modo, os elementos da observação participante, quando utilizados dentro desse espectro, tiveram especial relevância.

O estudo da cultura heavy metal foi desenvolvido prioritariamente com os frequentadores de shows. Alguns deles, de todo modo, exercem outros papéis na cena (dono de loja especializada ou como membro de banda, por exemplo). Realizamos um programa de 11 entrevistas semiestruturadas com headbangers de idades entre 18 e 50 anos. Nas entrevistas semiestruturadas, segundo Gil (1999), o entrevistador concede ao entrevistado falar livremente sobre uma pauta específica, mas, quando este se desvia do tema original, o entrevistador busca, com foco, sua retomada. No geral, foram abordados os pontos a seguir, a partir das entrevistas:

 Primeiros contatos com o heavy metal e seu respectivo significado;  Sobre ser headbanger e seu significado;  Distinções entre o heavy metal e outros estilos musicais;  Principais dificuldades encontradas no percurso enquanto headbanger;  Círculos de sociabilidade e amizades;  Sobre a experiência dos shows e sobre a cena;  Assimilação e vivência entre gerações distintas;  Hábitos de consumo em relação ao heavy metal;

No que alude à faixa etária, para além das categorizações supramencionadas, ela surge como um ponto-chave, capaz de fornecer razoável possibilidade de compreensão acerca do universo delimitado, comunicando como as diferentes gerações que coexistem atualmente entendem, assimilam e 27 se expressam a partir do heavy metal, na medida em que nasceram e se criaram em tessituras históricas diferentes, logo, possuem cosmovisões, valores e referenciais também distintos, possivelmente.

O total de shows observados, para fins dessa pesquisa, foi de 02, sendo eles: 23º Festival Rockstage, realizado no dia 19 de dezembro de 2015, com quatro bandas: Necrohunter (PB), Matakabra (PE), Albor (RN) e Revanger (RN) e 9º Festival Valhalla, realizado dia 08 de abril de 2016, com três bandas: Pathologic Noise (MG), New Band (PB) e Vamonos Pest (RN). Ambos os shows foram feitos no Moto Clube Carcarás do Asfalto, tradicional casa de shows na cidade e que, desde 2002, abriga shows alternativos e apoia as cenas locais. Tratam-se de dois tradicionais festivais na cidade de Mossoró. O Rockstage foi realizado pela primeira vez em 2003 e, à feita, estava em sua 23ª edição, sendo promovido pela Stormblast Produções. Já o Festival Valhalla, à feita em sua 9ª edição, é um evento comemorativo e que alude ao Valhalla Rock Bar, tradicional bar temático e ponto de encontro de headbangers de Mossoró e cidades circunvizinhas.

Sendo assim, devido às demandas postas e ao tempo reservado à pesquisa em riste, a coleta de dados foi realizada no período entre dezembro de 2015 e abril de 2016. 11 sujeitos foram respondentes da pesquisa. A amostra foi estimada por conveniência, de forma não-probabilística. Consoante preceitos éticos, os sujeitos da pesquisa foram identificados por meio de categorização numérica progressiva (de Entrevistado 1 a Entrevistado 11), assegurando o sigilo do seu anonimato. Sempre que alguém foi citado por um dos respondentes, seu nome foi substituído por um asterisco (*), a fim de preservar o anonimato também de terceiros que não responderam ou autorizaram o uso dos seus nomes nesse trabalho.

No que concerne às análises, optamos por trazê-las permeando o texto, no intento de dar maior fluidez e de estabelecer, com efeito, uma maior interação e complementaridade entre referencial teórico e análises. Os dados apresentados e análises feitas estão calcados tanto nas observações de campo quanto nas entrevistas coletadas. 28

Destarte, a análise dos resultados, por meio das anotações, observações de campo e literatura, foi feita de modo a associarmos estes ao contexto social investigado, ensejando uma cosmovisão a partir dos elementos e realidades sociais abordados, procurando dar sentido e significado aos estudos empreendidos. Portanto, de perto e de dentro (MAGNANI, 2002), esforçamo-nos para contribuir de forma substancial, tentando articular teoria e dados empíricos para tornar a análise rica e relevante, até mesmo porquanto há uma carência de trabalhos e pesquisas que voltem suas energias para analisar as questões postas nesse projeto, outro ponto que justifica a necessidade dessa pesquisa.

O trabalho foi dividido em quatro capítulos. Consoante o apresentado até agora nesse primeiro capítulo ("prolegômenos metallicus"), o trabalho segue com o segundo capítulo compreendendo uma discussão que se inicia abordando a problemática da dicotomia indivíduo/sociedade no pensamento social, num percurso que parte dos clássicos até chegar ao pensamento social contemporâneo, com ênfase em Norbert Elias, trazendo conceitos e abordagens importantes para o dirimir dessas questões. Consideramos esse trajeto importante para subsidiar, mais adiante, as discussões e apontamentos pertinentes às construções identitárias e das subjetividades.

No capítulo 3, abordaremos como o fenômeno da globalização e os processos culturais híbridos impactam o heavy metal e a construção das identidades headbanger. Ademais, está igualmente em pauta a configuração de uma cena heavy metal em Mossoró e sua sedimentação a partir da ação dos sujeitos adeptos do estilo.

No capítulo 4, trabalharemos a construção da sociabilidade entre os headbangers, que se estabelece sempre por meio de uma mediação, e que se sedimenta posteriormente enquanto associação "tribal". Ainda nesse capítulo, discutiremos os shows de metal como catarse coletiva, que reitera o processo de sociabilidade, estreita os laços e ratifica a identidade headbanger. Paralelamente, faremos alguns apontamentos sobre assimilação e consumo headbanger a partir da ótica de sujeitos de diferentes gerações e perspectivas.

Respeitando as particularidades e idiossincrasias do nosso campo, temos como certo que o caminho para a consecução de nossos objetivos nessa 29 pesquisa foi longo, com passagens árduas, embora de descobertas e prazer, por outro lado. O regozijo proveniente da descoberta e do desafio sempre nos impeliu e motivou. Cremos, ainda, que o aferimento, pois, das questões erigidas, bem como a pesquisa em si, tendo como objetivo cerne a formação de um arcabouço necessário para a reflexão acerca dos problemas expostos, denotam parte da relevância e justificativa do projeto ora em voga.

2 INDIVÍDUO, SOCIEDADE E IDENTIDADE NO PENSAMENTO SOCIAL

Para Hall (2006), a questão da “identidade” – um dos grandes enfrentamentos desse trabalho – tem passado por extensa discussão na teoria social. Roberto Cardoso de Oliveira (2000, p. 07), antropólogo brasileiro, segue em perspectiva análoga afirmando que “o interesse sobre o tema da identidade tem tido ultimamente, entre nós, estudiosos de ciências sociais, uma frequência extraordinária!”. Com efeito, o argumento para tal profusão é o seguinte: “As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado” (Hall, 2006, p. 07). Essas discussões, todavia, não datam apenas de agora, mas têm gênese alhures e noutro tempo, como será explicitado a seguir.

2.1 A Relação Indivíduo/Sociedade no Pensamento Social Clássico: Um Esboço

Desde sua constituição, enquanto Ciência, a Sociologia se defronta com uma problemática cerne, a saber, “a relação da pluralidade de pessoas com a pessoa singular a que chamamos “indivíduo”, bem como da pessoa singular com a pluralidade” (ELIAS, 2004, p. 07). Não obstante se apresentar como um problema cardeal no âmbito da Sociologia, a problemática em tela perpassa as Ciências Humanas em generalidade e desemboca nos questionamentos quanto às bases sob as quais são construídas as identidades. Tal questão, também aqui 30 presente, não teve sua discussão esgotada, e ainda se pavoneia como um problema contemporâneo e epistemológico nas Humanidades. Não a esmo, autores clássicos e contemporâneos se debruçaram e irromperam seus esforços intentando responder da maneira mais satisfatória a essa questão, que ainda hoje parece controversa. Afinal, a sociedade determina os indivíduos ou o conjunto de indivíduos determina o todo social, a sociedade? São, como perguntara Elias (2004), indivíduo e sociedade, duas entidades ontologicamente distintas? E as identidades? Como surgem e se sustentam nesse bojo? A seguir, esboça-se um percurso teórico-conceitual, partindo dos clássicos, que busca, nalgum grau, auxiliar no sentido de lograr tais respostas.

O francês Auguste Comte é conhecido sobretudo como um dos “criadores” da Sociologia, ou, como ele denominava, “Física Social” e do movimento positivista. Ao abordar a relação entre indivíduo e sociedade Comte (1978, p. 76) depõe que:

[...] O espírito positivo, ao contrário, é diretamente social, tanto quanto possível, e sem nenhum esforço, precisamente por causa de sua realidade característica. Para ele, o homem propriamente dito não existe, existindo apenas a Humanidade, já que nosso desenvolvimento provém da sociedade, a partir de qualquer perspectiva que se o considere. Se a ideia de sociedade parece ainda uma abstração de nossa inteligência, é sobretudo em virtude do antigo regime filosófico, porquanto, a bem dizer, é à ideia de indivíduo que pertence tal caráter, ao menos em nossa espécie.

O individualismo é, para Comte, um constructo do pensamento pré-positivo, do espírito teológico-metafísico. O autor acreditava que tudo o que é humano além do nível meramente fisiológico provêm da vida em sociedade. Há, portanto, para esse autor, um evidente predomínio do coletivo.

Émile Durkheim, sociólogo clássico francês – também herdeiro do positivismo comtiano, em certa medida –, aponta, outrossim, para a prevalência da sociedade sobre o indivíduo, na medida em que essa dispõe de regras, normas, costumes e leis que garantem sua perpetuação. Essas regras e leis independem do indivíduo, são anteriores e exteriores a este, estão fora das consciências individuais, e circundam acima de todos, formando uma consciência coletiva. Durkheim (1999) compreende a consciência coletiva como o conjunto de sentimentos e crenças que costumam ser comuns à média dos 31 membros de uma sociedade. Os indivíduos, ao se unirem, formam esse “sistema com vida própria”, e que se torna independente dos próprios indivíduos que a compuseram. Para Durkheim, é dessa consciência coletiva que emanam os fatos sociais. O conceito de fato social é central na obra durkheimiana. O autor de As Regras do Método Sociológico (2003) assevera que os fatos sociais - objetos de estudo da Sociologia por excelência – são exatamente essas regras e normas coletivas que orientam a vida dos indivíduos. Para serem considerados fatos sociais, entretanto, algumas características devem ser observadas: os fatos sociais são “exteriores”, uma vez serem normas ou regras de conduta que não foram criadas isoladamente pelos indivíduos, mas pelo todo social, e que já existem fora dos indivíduos quando eles nascem; os fatos sociais são “coercitivos”, ao passo em que os indivíduos devem se orientar e seguir essas normas e regras instituídas, sob pena de sofrerem sanções e/ou constrangimentos. As leis mostram-se um bom exemplo do raciocínio de Durkheim. Tomazi, sociólogo brasileiro (2000, p. 17, 18), baseado no pensamento do sociólogo francês, escreve que:

Em toda sociedade existem leis que organizam a vida em conjunto. O indivíduo isolado não cria leis, nem pode modificá-las. São as gerações de homens que vão criando e reformulando coletivamente as leis. Essas leis são transmitidas para as gerações seguintes na forma de códigos, decretos, constituições, etc. Como indivíduos isolados, temos de aceitá-las, sob pena de sofrermos castigos por violá-las. [...] O que a criança aprende na Escola? Ideias, sentimentos e hábitos que ela não possui quando nasce, mas que são essenciais para a vida em sociedade. A linguagem4, por exemplo, é aprendida, em grande medida, na Escola. Ninguém nasce conhecendo a língua de seu país. É necessário um aprendizado, que começa já nos primeiros dias de vida e se prolonga no decorrer de muitos anos na Escola, para que a criança consiga se comunicar de maneira adequada com seus semelhantes. Sem o aprendizado da linguagem, a criança não poderia participar da vida em sociedade.

Durkheim (2003) assevera ainda que o indivíduo isolado é pura abstração, e o sujeito é um produto da sociedade. Alicerçada em Durkheim, Minayo (2001, p. 09) refere-se a uma consciência coletiva como constitutiva da sociedade e como uma forma de realidade tipicamente social, no sentido de que ela preexiste aos indivíduos que ali nascem e morrem. Diz ela que:

4 Grifo do autor. 32

Para o pai da sociologia, as mudanças têm uma lógica própria, independente das motivações individuais e do uso que os indivíduos possam fazer dela. A sociedade, portanto, é regida por leis particulares de reprodução e de transformação. Para Durkheim, nas sociedades modernas, movidas pela solidariedade orgânica, o todo cresce ao mesmo tempo que as individualidades das partes. Porém, a sociedade torna-se mais capaz de mover-se como conjunto, ao mesmo tempo em que seus componentes têm mais movimentos próprios, existindo uma relação de reciprocidade nos termos. (MINAYO, 2001, p.9).

A título de complementação, um conceito também importante na obra de Durkheim e que auxilia sua compreensão de sociedade é o de instituição. Compreende-se que uma instituição se dá como um conjunto de regras e normas de vida, cuja consolidação se dá fora dos indivíduos. As gerações se encarregam de transmiti-las umas às outras. A família e a igreja são exemplos de instituições. Destarte, e ao cabo, é possível ilustrar que, para Durkheim, é, sim, a sociedade que predomina sobre o indivíduo. É a sociedade, como coletividade, que condiciona e controla as ações individuais. A ênfase de sua análise não se encontra, pois, senão aí. Nas palavras de Tomazi (2010, p. 25):

Durkheim coloca a ênfase na coesão, integração e manutenção da sociedade. Para ele, o conflito existe basicamente pela anomia, isto é, pela ausência ou insuficiência da normatização das relações sociais, ou por falta de instituições que regulamentem essas relações. Ele considera o processo de socialização um fato social amplo, que dissemina as normas e valores gerais da sociedade — fundamentais para a socialização das crianças — e assegura a difusão de ideias que formam um conjunto homogêneo, fazendo com que a comunidade permaneça integrada e se perpetue no tempo.

O sociólogo alemão Max Weber gestará uma outra concepção acerca da pauta. Para Weber, a ênfase da análise deve centrar-se nos indivíduos e em suas ações. Weber determina a ação social como principal objeto de estudo e reflexão da sociologia. A meta da Sociologia, enquanto Ciência Social, seria a compreensão interpretativa de forma a explicar suas causas, cursos e efeitos. Por “ação”, Weber (2005) designará toda a conduta humana, onde os sujeitos vinculem a esta ação um sentido subjetivo. A socióloga brasileira Maria Minayo (2001, p. 11) aponta que esse tipo de abordagem, na qual Weber é vanguardista, faz parte das chamadas abordagens compreensivas, que são aquelas que colocam a ação e a interação no centro da sociologia, e entende que toda a realidade é uma construção a partir da ação social dos indivíduos e possui por isso intencionalidade e significado. Prossegue a autora: “Em um sentido mais 33 abrangente, o interacionismo simbólico, a fenomenologia, a teoria da ação são partes do pensamento fundado em Weber, no campo da sociologia” (MINAYO, 2001, p.11). Segundo as postulações dessas correntes, o ser humano é ator e autor da realidade porquanto define e cria situações5. Max Weber é o seu representante clássico. Para Weber (1991), o elemento cerne das estruturas sociais é a significação que os indivíduos lhes dão, a partir do momento em que as criam, transformam ou mantêm. Weber (2005, p. 41 et. seq.), ao analisar o modo como os indivíduos agem e considerando a maneira como eles orientam suas ações, agrupou as ações individuais em quatro grandes tipos, quais sejam: ação tradicional, ação afetiva, ação racional com relação a valores e ação racional com relação a fins. A “ação tradicional” é aquela determinada por um hábito arraigado ou um costume; a “ação afetiva”, por sua vez, é determinada por afetos, estados emocionais, sentimentos de qualquer ordem; a “ação racional com relação a valores” pode ser descrita como aquela que é determinada pela convicção e crença num valor considerado relevante; por fim, a “ação racional com relação a fins” envolve uma escolha racional; a devida consideração de fins, meios e efeitos secundários. Faz-se imperativo sublinhar que, para Weber, esses tipos de ações sociais não existem em seu “estado puro”, pois, em suas ações cotidianas, os indivíduos mesclam alguns ou vários tipos de ação social. São, assim sendo, “tipos ideais”, construções teóricas utilizadas pelo sociólogo alemão como método de análise da realidade. Pelo exposto é possível atentar que, diferentemente de Durkheim, Weber defende que as regras, normas e costumes sociais estão internalizados nos indivíduos, ou seja, são resultado do conjunto de ações individuais. Tirando por base tal internalização é que os agentes escolhem comportamentos e formas de conduta, consonantes às situações que se lhes apresentem. A ação sempre dar- se-á numa perspectiva de reciprocidade por parte de outrem. Outra perspectiva é sinalizada pelo pensador alemão Karl Marx. Para Marx os indivíduos devem ser analisados conforme suas condições econômicas e sociais, o que, em termos amplos, produziria sua existência em grupo. Marx, ao lado de seu colaborador de toda vida, Engels, em obras como O Capital (1983) e o Manifesto Comunista (1999), estava interessado sobremaneira em

5 Grifo nosso. 34 estudar as condições de existência de homens reais na sociedade. O foco da teoria marxiana está nas classes sociais, conquanto a questão da relação indivíduo/sociedade também esteja presente. Isso fica mais evidente quando Marx afirma que os seres humanos constroem sua história, mas não da maneira que querem, levando em consideração que situações anteriores condicionam o modo como ocorre a construção. Marx evidencia que existem condicionantes estruturais que levam o indivíduo, os grupos e as classes para determinados caminhos, o que não implica necessariamente a total perda de capacidade de reação e/ou transformação diante desse quadro. Em A Ideologia Alemã (1998, pp. 10, 11), Marx, exempli gratia, assinala que os homens começam a se distinguir dos animais assim que encetam a produção de seus meios de existência. Por conseguinte, produzem indiretamente sua vida material. Ainda para o autor, a maneira como os homens produzem seus meios de existência depende, antes de qualquer outra coisa, da natureza dos meios de existência encontrados e que precisam ser reproduzidos, o que representaria uma forma já posta de manifestar a vida e, principalmente, um modo de vida determinado.

O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção. [...] Essa produção só aparece com o aumento da população. Esta pressupõe, por sua vez, o intercâmbio dos indivíduos entre si. A forma desses intercâmbios se acha, por sua vez, condicionada pela produção6 (MARX, K. & ENGELS, F. 1998, p. 11)

Apesar de toda sua relevância, a visão marxiana padece de algumas críticas, sobretudo no sentido de que o materialismo de Marx se mostrara “economicista” e que o autor teria priorizado os fenômenos econômicos e preterido o indivíduo, o que redundaria numa análise reducionista, o que não pode ser levado à risca, conforme ver-se-á em seguida. Nesse sentido é mister trazer o argumento de Sandra Pires (2000, p. 32-33), que auxiliará na compreensão do projeto marxiano e da inserção do indivíduo nesse ínterim. Esclarece a autora:

Outra crítica, a esta associada, é a interpretação do materialismo marxiano como “economicismo”. A afirmativa de que a chamada “base econômica” determina a configuração superestrutural não é

6 Grifos do autor. 35

equivalente a um determinismo econômico automático e monolítico. Aliás, não foram raras as vezes em que Marx reforçou o caráter de dependência e influência recíproca entre instâncias estruturais e superestruturais. Implica apenas que Marx, no contexto da oposição ao idealismo de seu tempo (e também ao materialismo lá situado), defendia o primado do real. (PIRES, 2000, p.32-33).

A autora mostra em seguida que (op. cit.) “as ideias, as representações, os juízos, enfim, a consciência, é condicionada pelas condições concretas de existência e não ao inverso”. Continua, ainda, sublinhando que seria justamente por tal motivo que Marx afirmou que o ponto de partida não seria o indivíduo abstrato, mas sim, antes de mais nada, um ser real, corpóreo, objetivo, que tinha existência material e uma atividade vital que não poderia ser reduzida somente à consciência, embora a envolvesse, ao passo em que essa é uma característica ontológica do homem, quer seja, o fato de ter uma atividade vital, que é consciente e teleológica. Pires (2000, p. 34) segue apontando que a individualidade do sujeito não é e não pode ser dissociada da “genericidade”:

A atividade social dos homens, com sua base material, é que cria o meio onde o indivíduo vive e é apenas nesse meio, no “médium” criado pela interatividade social, que ele pode se constituir. É ela que cria as condições e os meios objetivos e subjetivos para a realização da forma própria de ser de cada singular, da individualidade entendida como a vida privada ou espiritual de cada um. Porém, ser condicionado pelas circunstâncias não significa ter uma relação passiva com o preexistente, adaptar-se ou conformar-se ao dado.

As assertivas de Pires servem como subsídio para que se perceba que em Marx o indivíduo não é um mero reflexo da sociedade, um figurante, nem teria suas individualidades canceladas por ela. O homem marxiano, destarte, é produto das condições sociais, mas, por outro viés, é igualmente um ser de criação já que elas são um produto seu. Para o pensador alemão, só é possível entender as relações dos indivíduos com base nos antagonismos e contradições existentes entre as classes sociais. Significa dizer que, para Marx, compreender e interpretar a luta de classes era condição sine qua non para a compreensão da vida social, de seus mecanismos e agentes. A luta de classes se desenvolve, para Marx, à medida que homens e mulheres buscam suprir suas necessidades, sejam elas provenientes do estômago ou da fantasia. Nesse contexto, o dinheiro é ferramenta chave e exerce forte influência na constituição das 36

“individualidades”, que como mencionara Pires (2000, p. 32) “se expressam na superioridade pessoal e social que é conferida àquele que o possui e na inversão que se processa nas qualidades humanas”, ao rumo em que tem o dinheiro o poder de transmutação. Como postulara Marx (1989, p. 232):

Aquilo que eu sou e posso não é, pois, de modo algum determinado pela minha própria individualidade. Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela mulher. Por conseguinte, não sou feio, porque o efeito da fealdade, o seu poder de repulsa, é anulado pelo dinheiro.

Defeitos e imperfeições passam a ser qualidades e qualidades passam a ser seu oposto. Nessa seara, o dinheiro é chancelado como bem supremo, passando a ser também aquele que o possui, portanto.

2.2 A Relação Indivíduo/Sociedade no Pensamento Social Contemporâneo: Alguns Apontamentos pela lente de Norbert Elias

Percebeu-se, a partir da lente dos autores clássicos supracitados que em suas postulações e argumentos sempre havia a predominância, em maior ou menor grau, do indivíduo sobre a sociedade ou da sociedade em relação ao indivíduo, o que, por óbvio, culmina com diferentes concepções identitárias. Noutras feitas, percebeu-se também uma relação determinística, de causa e efeito. Obviamente, os autores e teorias não existem fora de seu tempo, contexto e espaço, portanto são, nalguma medida, reflexos e retratos de uma época. A sociedade, no entanto, não é um ente “estanque”, e, ao contrário, está sempre em ebulição, transmutação e constantes mudanças, o que traz novas possibilidades e necessidades analíticas. A sociedade vista e analisada pelos autores clássicos, aqui utilizados, certamente diferem das mais diversas formas da estudada e vivenciada por autores modernos e contemporâneos, que partem dos estudos clássicos, buscando superá-los.

A sociologia contemporânea ainda não está, de toda feita, totalmente livre desse binarismo, mas apresenta inovações e abordagens importantes que começam a responder questões que os clássicos parecem não ter conseguido. Vale salientar que essas respostas não são simplistas, ao passo em que refutam uma relação causalista. Nas teorias sociológicas de Norbert Elias, por exemplo, 37 não é possível analisar o indivíduo e a sociedade separadamente, mas sim como um todo relacional, dentro de uma realidade multicausal, perfazendo uma configuração com interdependências e uma rede com pontos de poder e resistência.

2.3 Configuração, rede, interdependência e processo

Norbert Elias (1994), historiador e sociólogo alemão, e certamente um dos maiores estudiosos em torno desta problemática, ao reconhecer a inexistência de um modelo que permita pensar a relação indivíduo/sociedade de um modo não-dicotômico e binário, aponta que o que falta – e deve-se admitir com franqueza, diz ele – são modelos conceituais e uma visão global nos quais possa-se tornar compreensível, em termos de pensamento, aquilo que vivencia- se diariamente na realidade: compreender de que modo um grande número de indivíduos compõe entre si algo maior e diferente de uma coleção de indivíduos isolados. Ou seja, se compreender a empresa e a formação de uma "sociedade" e como sucede de essa sociedade poder modificar-se de maneiras específicas, ter uma história que segue um curso não pretendido ou planejado por qualquer dos indivíduos que a compõem. Elias empreende esforços na direção de desconstruir explicações que estejam assentadas nesse binarismo, na relação de causalidade e de determinismo, preterindo, portanto – embora sem eclipsá- las – as respostas presentes nos clássicos. Em verdade, é de lá que parte Elias, à medida em que reconhece que as respostas existentes e anteriores não davam conta de fechar a questão, mas oferecem um ponto de partida. É patente, por exemplo, a influência do pensamento weberiano nas assertivas do autor.

Elias (1994, p. 17), em sua busca por elucidar a relação entre a pluralidade de pessoas que chamamos de “sociedade”, e da pessoa singular a que chamamos “indivíduo” e da pessoa singular com a pluralidade, cujo estudo e elucubrações desembocariam principalmente em seu livro A Sociedade dos Indivíduos, postula, em certa feita, que: 38

[...] somos incessantemente confrontados pela questão de se e como é possível criar uma ordem social que permita uma melhor harmonização entre as necessidades e inclinações pessoais dos indivíduos, de um lado, e, de outro, as exigências feitas a cada indivíduo pelo trabalho cooperativo de muitos, pela manutenção e eficiência do todo social.

Continua mais adiante (idem):

Só pode haver uma vida comunitária mais livre de perturbações e tensões se todos os indivíduos dentro dela gozarem de satisfação suficiente; e só pode haver uma existência individual mais satisfatória se a estrutura social pertinente for mais livre de tensão, perturbação e conflito.

Não obstante, o mesmo Elias explana sobre as dificuldades, um “abismo quase intransponível”, onde uma das duas coisas sempre “levaria a pior”, em um jogo constante de tensão e exercício de poder.

Em seu prefácio para o livro O Processo Civilizador, Elias (2001, p. 248) atesta que enquanto o conceito de indivíduo estiver ligado à autopercepção do "ego" em uma espécie de gaiola fechada, dificilmente poderá se conceber a "sociedade" como outra coisa que não “um conjunto de mônadas sem janelas”.

Conceitos como "estrutura social", "processo social" ou "desenvolvimento social" parecem então, na melhor das hipóteses, criações artificiais dos sociólogos, como as construções "ideal típicas" de que os cientistas necessitam para instaurar alguma ordem, pelo menos no pensamento, no que parece, em verdade, ser uma acumulação inteiramente desorganizada e desestruturada de agentes individuais absolutamente independentes.

Ainda para o autor o real estado de coisas é exatamente o oposto. “A ideia de indivíduos decidindo, agindo, e "existindo" com absoluta independência um do outro é um produto artificial do homem, característico de um dado estágio do desenvolvimento de sua autopercepção.” (ELIAS, 2001, p. 248). É parcialmente dependente de uma confusão de ideais e fatos e, até certa medida, da materialização de mecanismos de autocontrole individuais – “da separação dos impulsos emocionais individuais frente ao aparelho motor, do controle direto sobre os movimentos corporais e as ações”. Mais adiante, o autor (ibidem, p. 249) afirma que “a imagem do homem como ‘personalidade fechada’ é substituída aqui pela ‘personalidade aberta’, que possui um maior ou menor grau (mas nunca absoluto ou total) de autonomia em face de outras pessoas e que, 39 na realidade, durante toda a vida é fundamentalmente orientada para outras pessoas e dependente delas”. Aqui se começa a ver conceitos importantes e imprescindíveis para a compreensão do pensamento de Elias: “A rede de interdependência entre os seres humanos é o que os liga. Elas formam o nexo do que é aqui chamado configuração, ou seja, uma estrutura de pessoas mutuamente orientadas e dependentes7.” Não existe, para Elias (1994, p. 31), um grau zero da vinculabilidade social do indivíduo, um "começo" ou um momento, um rompante, em que ele ingresse na sociedade como alguém que vem de fora, como um agente não afetado pela rede, e então comece a se vincular a outros seres humanos.

Ao contrário, assim como os pais são necessários para trazer um filho ao mundo, assim como a mãe nutre o filho, primeiro com seu sangue e depois com o alimento vindo de seu corpo, o indivíduo sempre existe, no nível mais fundamental, na relação com os outros, e essa relação tem uma estrutura particular que é específica de sua sociedade. Ele adquire sua marca individual a partir da história dessas relações, dessas dependências, e assim, num contexto mais amplo, da história de toda a rede humana em que cresce e vive. Essa história e essa rede humana estão presentes nele e são representadas por ele, quer ele esteja de fato em relação com outras pessoas ou sozinho [...]. (ELIAS, 1994, p.31).

Não é possível, ainda na acepção de Elias, compreender a sociedade por meio de uma visão estática. Por outro lado, é preciso substituí-la pela visão de um entrelaçamento incessante e irredutível de seres individuais, na qual tudo o que confere a sua substância animal a qualidade de seres humanos, principalmente seu autocontrole psíquico e seu caráter individual, assume a forma que lhes é específica dentro e através de relações com os outros. Elias, então, lança mão do conceito de “rede” para que haja maior clareza na inter-relação sociedade/indivíduo. Para ter uma visão mais detalhada desse tipo de inter-relação, podemos pensar no objeto de que deriva o conceito de rede: a rede de tecido. Nessa rede, muitos fios isolados ligam-se uns aos outros. No entanto, nem a totalidade da rede nem a forma assumida por cada um de seus fios podem ser compreendidas em termos de um único fio, ou mesmo de todos eles, isoladamente considerados; a rede só é compreensível em termos da maneira como eles se ligam, de sua relação recíproca. (ibidem, p. 35)

7 Grifos nossos. 40

Mormente nas obras Sociedade de Corte e Processo Civilizador, Elias engendra reflexões de modo a associar os sentimentos às formas civilizacionais e de comportamento empreendidas pelas sociedades no perpassar da história. É o que diz Silveira (2009):

[...] Dessa forma, para Norbert Elias, o desenvolvimento da noção de civilização na Europa, com toda sua sustentação social e econômica, correspondeu, simultaneamente, ao aumento do sentimento de vergonha e do nojo8 e da tendência de esconder, nos bastidores da vida social, a causa desses sentimentos.

Para esse autor, a ideia de certo refinamento dos costumes, do autocontrole no que concerne aos aspectos emocionais e da higiene pessoal e pública emerge como ideal da civilização ocidental, expandindo a fronteira entre privado e público, bem diferente dos costumes, e, por conseguinte, dos sentimentos vividos na Idade Média. A socióloga francesa Nathalie Heinich (2001), citando Elias, explana que uma inegável e célere evolução ocorreu no decorrer do século XVII, com uma direção claramente delimitada, pois durante o “processo de civilização”, os homens puseram-se a reprimir tudo o que sentiam em si mesmos, como se esses sentimentos estivessem intimamente ligados à sua “natureza animal”. Do mesmo modo ocorria em relação aos alimentos.

De fato, a tendência onipresente é a de aumentar o controle sobre tudo o que ligado à animalidade, tornando-o menos visível ou relegando-o à intimidade: a nudez se mostra menos, os odores corporais são dissimulados, as funções naturais tendem a ser exercidas em lugares específicos e isolados, não se cospe mais no chão, mas em uma escarradeira, não se assoa mais o nariz na manga, mas em um lenço, não se come mais com as mãos, mas com um garfo. (HEINICH, 2001, p. 12)

Percebe-se que funções outrora chamadas de “naturais” são modeladas e remodeladas consonante as figurações. Ademais, completa Heinich, a evolução dos gestos definidores dos “costumes” está essencialmente associada à evolução da sensibilidade, e, particularmente, “da intensificação progressiva e coletiva do sentimento de repugnância [...]” (op. cit.). Essa intensificação do sentimento de repugnância, especialmente, torna insuportáveis as manifestações corporais de outrem, ao passo em que os sentimentos de

8 Grifo nosso. 41 vergonha, constrangimento e pudor impelem a subterfugiar do outro suas excreções, impulsos, o espetáculo do seu próprio corpo. A bem da verdade, a partir do momento em que há uma considerável incorporação desses sentimentos, que passam a ser sentidos como naturais, emerge uma (nova) formalização no que concerne às regras de conduta e comportamento; constrói- se um consenso acerca dos gestos que convém ou não fazer, gestos esses que, em contrapartida, como pauta Nathalie Heinich, acabam por contribuir no sentido de modelar uma nova sensibilidade.

Ora, o “social”, segundo Elias, não é, senão, concebido como um sistema de relações entre grupos e indivíduos interdependentes, processos interativos perenes e complexos, dentro de contextos específicos, as configurações (ou figurações), de redes que são tecidas pelos próprios indivíduos, cheia de nós interdependentes e pontos de tensão que podem modificar a rede. Em Mozart: A Sociologia de um gênio (1995), por exemplo, Elias traz o contexto social em conexão à vida e à obra do trabalho de Mozart. A configuração (figuração) estava em mutação. De uma sociedade “da corte” a uma sociedade “burguesa”; da arte do artesão à arte do artista. A citação a seguir confere uma perspectiva panorâmica acerca do pensamento de Elias e acerca da interdependência que dá a tônica social:

Os seres humanos criam um cosmo especial próprio dentro do cosmo natural, e o fazem em virtude de um relaxamento dos mecanismos naturais automáticos na administração de sua vida em comum. Juntos, eles compõem um continuum sócio-histórico em que cada pessoa cresce como participante - a partir de determinado ponto. O que molda e compromete o indivíduo dentro desse cosmo humano, e lhe confere todo o alcance de sua vida não são os reflexos de sua natureza animal, mas a inerradicável vinculação entre seus desejos e comportamentos e os das outras pessoas, dos vivos, dos mortos e até, em certo sentido, dos que ainda não nasceram - em suma, sua dependência dos outros e a dependência que os outros têm dele, as funções dos outros para ele e suas funções para os outros. (ELIAS, 1994, p. 43)

Essa dependência não se refere apenas a seus instintos, de um lado, ou ao que se chama pensamento, presciência, ego ou superego, consoante o ponto de vista do observador, de outro, mas é sempre uma relação funcional que se baseia nas duas coisas, aponta Norbert Elias (1994). Ainda para Elias, as tensões presentes nos processos de interdependência 42

nunca emergiriam sem forças propulsoras elementares como a fome, mas tampouco surgiriam sem impulsos de prazo mais longo, como os que se expressam no desejo de propriedade ou mais propriedade, de segurança permanente ou de uma posição social elevada a conferir poder e superioridade sobre os demais. (ibidem, p. 44)

Essas tensões tendem a se ampliar e ganharem ainda mais relevo diante da sociedade contemporânea e da globalização. O crescimento das tensões sociais se dá na mesma medida em que avança a diferenciação das funções sociais e, por conseguinte, das funções psíquicas, na mesma proporção, igualmente, em que “o padrão de vida normal de uma sociedade se eleva acima da satisfação das necessidades alimentares e sexuais mais elementares”. (ELIAS, 1994. p. 44)

O indivíduo passa por uma conformação dentro da rede de relações, pois para viver nessa estrutura ele tem que seguir certo script, de modo que até a sua autoconsciência teve que renunciar a certos instintos, se conter, mantendo no sótão de si aquilo que o social não veria com bons olhos. Logo, essa autoconsciência também não escapou do processo civilizador. Quer dizer, o que era controle passa a ser também autocontrole. Uma vez mais é possível notar que Elias está reiterando a impossibilidade de separação entre indivíduo e sociedade. No caso dessa autoimagem dividida entre o eu que acredito ser o autêntico e que, portanto, só aciono quando estou em completa solidão, e um eu mais domesticado para apresentar socialmente, está a divisão das funções que esse eu desempenha socialmente, e está também a especialização do trabalho. Esse autocontrole foi sendo refinado historicamente, através de diversos mecanismos. Esse indivíduo que se cerceia cada vez mais não é vítima, é um componente dessa rede, ele tanto sofre como exerce sobre outros tais exigências de refreamento. Só é viável entender essa rede compreendendo de que maneira seus pontos se ligam, ou seja, compreendendo-a em sua interdependência e conexão.

No pensamento social contemporâneo, destacando-se aqui a Sociologia, não se concebe, principalmente levando em consideração as postulações de Norbert Elias, analisar o indivíduo e a sociedade de forma distinta, diferentemente do pensamento social clássico, que, não raro, determinava a prevalência de um sobre o outro. Não é possível analisar a relação 43 indivíduo/sociedade por um viés binário, dicotômico, causalístico ou determinista. É impossível, senão a partir das relações de interdependência, da noção de rede, cheia de pontos de tensão, relações de poder, enfrentamentos e resistências e das configurações (figurações) específicas em que operam os indivíduos. É através dessa rede de interdependência que os indivíduos estão conectados e consubstanciam, em partes, suas identidades. É a rede que perfaz o nexo da configuração, ou seja, dessa estrutura de pessoas mutuamente orientadas e dependentes. Em meio a esse jogo, os indivíduos estabelecem suas estratégias de exercício do poder ou de resistência e nascem a partir das práticas discursivas.

3 HEAVY METAL, GLOBALIZAÇÃO, IDENTIDADE CULTURAL E SOCIABILIDADES

3.1 Globalização, hibridismo e “metal pesado”

É consenso entre diversas correntes e autores das Ciências Sociais que estamos diante de uma nova contextura social, que apresenta aspectos singulares quando comparada a outras épocas. A aurora dessa mudança de paradigma, que rompe com as manifestações da sociedade tradicional, suscitou a curiosidade e interesse da Ciência, em especial das Ciências Humanas. Hipermodernidade, modernidade tardia, capitalismo tardio, pós-modernidade e modernidade líquida, além de “contemporaneidade” (denominação mais genérica e livre), são apenas algumas das alcunhas para essa nova ordenação social. Pluralidade e instabilidade são aspectos particulares de nossa época, ao tempo em que isso não constitui mais nenhuma grande novidade no mundo ocidental, uma vez que desde o advento da Revolução Francesa, as mudanças no mundo têm ocorrido numa velocidade nunca antes vista no que tange aos nascimentos, transformações e desaparecimento de grupos e formas de relações sociais, assim como a emergência, mutações e concretizações de práticas e projetos institucionais (SILVA, 2008). Segundo Zygmunt Bauman (2007), estamos diante do que ele denominou de “modernidade líquida”. Para o 44 autor, ‘líquido-moderna’ é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em rotinas e hábitos, das formas de agir e ser. A liquidez da vida e da sociedade se alimentam e se revigoram de forma mútua. “A vida líquida, assim como a sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer em seu curso por muito tempo” (BAUMAN, 2007, p.7). Fatores como a globalização e os dispositivos midiáticos ratificam esse cenário.

A globalização, enquanto fenômeno mundial, também é fator impactante sobre as identidades culturais, que são influenciadas, outrossim, pela existência de processos globais que transcendem as classes sociais, grupos e nações, como aponta Renato Ortiz (1994), ao falar da emergência de uma “sociedade global”, da “mundialização da cultura”. Na concepção de Boaventura de Sousa Santos (2002), a globalização põe o mundo diante de um fenômeno multifacetado, interligando de modo complexo dimensões econômicas, sociais, culturais, políticas, religiosas e jurídicas, o que torna as explicações “monocausais” e “monolíticas” insuficientes para dar cabo das mais diversas questões. O autor acrescenta que a globalização das últimas três décadas parece combinar “a universalização e a eliminação das fronteiras nacionais, por um lado, o particularismo, a diversidade local, a identidade étnica e o regresso ao comunitarismo, por outro” (idem). A globalização interage com transformações outras no sistema mundial que lhe são simultâneas, como o drástico aumento da desigualdade entre países ricos e países pobres, as catástrofes ambientais e os conflitos étnicos, a sobrepopulação, a acentuada migração internacional, a falência ou implosão de determinados Estados e o emergir de outros. A proliferação de guerras civis, o crime organizado, bem como a democracia formal como condição política para eventual assistência internacional, também entram nesse bojo. Na perspectiva do sociólogo português (2002), o processo de globalização, além de complexo, atravessa as mais diversas áreas da vida social, da globalização dos sistemas financeiros e produtivos à revolução nas tecnologias e práticas de informação e comunicação. Perpassa também pela erosão do Estado nacional e da redescoberta da sociedade civil ao aumento substancial das desigualdades sociais. O processo 45 de globalização está relacionado igualmente às novas práticas culturais e identitárias e dos estilos de consumo globalizado.

Não é possível sair incólume do processo de globalização, que trespassa todas as esferas e âmbitos nos níveis social, econômico, político e cultural. O heavy metal também se encontra em meio a esse cenário. Mas, se o global envolve “tudo”, as especificidades encontram-se perdidas em termos de totalidade, aponta Ortiz (1994, p.8), para depois esclarecer que ocorre justamente o inverso: “a mundialização da cultura se revela através do cotidiano”, utilizando-se amiúde de elementos locais dentro de uma perspectiva e narrativa globais. É o local influenciando o global e o global interferindo no local, numa relação dialética, articulada e interdependente, metamorfoseando as identidades ou reiterando-as, à medida em que oferece mais padrões de ser e sentir.

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (Hall, 2006, p. 13)

No âmbito da música pesada vários exemplos podem ser dados nesse sentido, a começar por bandas do próprio Brasil, como os dois maiores expoentes do metal nacional dentro e fora do país: a banda mineira e a paulista Angra, que se utilizam de elementos e batidas “próprias” da música e do folclore brasileiros em suas composições e discos, o que lhes assegura estilos singulares e reconhecimento, muito conquanto traga também como consequência certa ojeriza por parte de fãs mais conservadores, que veem essa “mistura” como algo negativo, que “corrompe” o som e se dá no intuito de deixar a banda “mais acessível, comercial e vendável”.9

9 Os headbangers, nalgumas feitas, podem se mostrar intolerantes e intransigentes entre si, a ponto de justificar ou "naturalizar", por exemplo, que alguém seja agredido fisicamente pelo simples fato de pregar que no metal deve haver espaço para todas as manifestações e expressões, incluindo as manifestações cristãs e religiosas por meio do white metal. Ou podem expressar um grande conservadorismo no que tange à política. Ou, ainda, a intolerância já supracitada em relação a quem foge do "cânone" referencial ou insere novos elementos em seu som. Ora, tudo isso atenta frontalmente contra a concepção de rompimento com o status quo e com a noção de liberdade de expressão. Desse modo, poderíamos inferir que o metal chega a implodir as bases de sua própria gênese, na medida em que seus adeptos denotam preconceito, intolerância, xenofobia. Embora não seja o mote desse trabalho no momento atual, uma pesquisa rápida tomando como base grupos de whatsapp e o maior site especializado em heavy metal da 46

A relação dialógica e de interdependência entre local e global enseja, inclusive, articulações estéticas diferenciadas. Nesse sentido, a banda israelense Orphaned Land, maior nome do metal proveniente do oriente médio, que associa elementos e influências singulares da música e cultura tradicionais do oriente médio às bases, imagem e cânone do heavy metal, é referência. A banda produz um som único, com traços híbridos, multiculturais, trazendo instrumentos nativos do oriente médio junto a guitarras, teclados, sintetizadores, baixo e bateria. Voltando ao exemplo brasileiro Sepultura, a banda gravou em 1995 o seminal álbum Roots, que marcaria peremptoriamente a carreira da banda e a alçaria à estratosfera da música pesada mundial. Roots não se tornou clássico apenas por sua música densa, mas sobremaneira por estar na vanguarda, pelas referências à cultura indígena brasileira, expressa na capa, nas letras, pelas menções a personagens brasileiras. Ademais, a banda chegou a gravar parte do álbum em uma tribo Xavante, localizada na região central do Brasil, com participação dos próprios índios da tribo. Roots também ficou marcado pelos elementos percussivos, tão caros à música brasileira, e traz, inclusive, o percussionista Carlinhos Brown como convidado especial na faixa “Ratamahata”.

Max Cavalera (2013, p.133), ex-vocalista da banda e um dos grandes responsáveis pelo seu sucesso, nos referencia acerca dessa experiência:

A experiência como um todo foi alucinante. Ninguém jamais tinha feito algo parecido. Quando voltamos pra casa pra terminar o álbum, tínhamos consciência de ter feito algo que permaneceria para sempre com a gente, não importava por quanto tempo vivêssemos. Gravar o restante das músicas de Roots foi uma grande diversão. A ideia para “Ratamahatta”, lançada como single, veio de Carlinhos Brown. Ele viajou para Los Angeles com um monte de instrumentos de percussão, como pedimos. Levou um fuldu, uma cuíca e um berimbau. Este último consiste de uma cabaça e um fio de aço. No Brasil, geralmente é tocado por negros, não é um instrumento para brancos. Por isso eu me sentia atraído por ele. Achei que seria algo diferente se conseguisse aprender a tocá-lo. Estava dentro da proposta de experimentação geral pela qual estávamos passando. Assim, ele levou aquilo tudo e entramos no estúdio: havia equipamento por todos os lados. Os instrumentos de percussão estavam em todo lugar; era como um playground.

América Latina, o Whiplash, o número de comentários preconceituosos, conservadores, machistas e de ódio pode ser assustador. 47

Roots sintetizou uma mistura rítmica, étnica, de culturas, poucas vezes empreendidas no universo metal, que é marcado por certo conservadorismo e ortodoxismo. Foi no álbum anterior, Chaos A.D., que a banda deu os primeiros indícios dos novos itinerários que pretendia percorrer, mas foi somente com o Roots que condensou mais claramente elementos locais e globais, subvertendo a ideia de homogeneização a partir dos processos de globalização.

Como sublinha Ianni (1992, p. 77)

No âmbito da sociedade global, as sociedades tribais, regionais e nacionais, suas culturas línguas e dialetos, religiões e seitas, tradições e utopias, não se dissolvem, mas recriam-se, a despeito dos processos avassaladores, que parecem destruir tudo, as formas sociais passadas permanecem e afirmam-se por dentro da sociedade global. Em alguma escala, todas se transformam, revelando originalidade, dinamismo, congruência interna, capacidade de intercâmbio.

Segundo o antropólogo Néstor Canclini (2001, p. 18), “ambivalências da industrialização e massificação globalizada dos processos simbólicos [...]”, são marcas da sociedade contemporânea e da globalização. Entrementes, a globalização apresenta igualmente “uma interação entre fatores econômicos e culturais, causando mudanças nos padrões de produção e consumo, as quais, por sua vez, produzem identidades novas e globalizadas” (WOODWARD, 2008, p. 20). Mesmo face à globalização não é possível pensarmos em uma expressão cultural única ou em homogeneização imperante. Como nos indica Ortiz (1994, p. 27), “a cultura mundializada não implica o aniquilamento das outras manifestações culturais, ela coabita e se alimenta delas”. Nalguma medida, ao menos, aspectos das culturas locais mantêm-se mesmo diante de uma tendência de homogeneização das culturas. Segundo Stuart Hall (2003, p. 45), há, de certo, dois processos opostos funcionando em meio às formas contemporâneas de globalização, o que, para ele, é algo fundamentalmente contraditório.

Existem as forças dominantes de homogeneização cultural, pelas quais, por causa de sua ascendência no mercado cultural e de seu domínio do capital, dos "fluxos" cultural e tecnológico, a cultura ocidental, mais especificamente, a cultura americana, ameaça subjugar todas as que aparecem, impondo uma mesmice cultural homogeneizante — o que tem sido chamado de "McDonald-ização" ou "Nike-zação" de tudo. 48

Em conformidade com o autor, esses efeitos podem ser vistos em todo o globo. Todavia, junto a isso processos outros estão vagarosa e sutilmente descentrando os modelos ocidentais, levando a uma disseminação da diferença cultural em todo o mundo. Stuart Hall (2003, p. 45, 46) mostra que, contudo, essas “outras” tendências ainda não têm poder de confrontar e repelir as anteriores, porém apresentam capacidade, em todo lugar, de subverter e “traduzir”, de negociar ensejando a assimilação do assalto cultural global sobre as culturas mais vulneráveis. Dessa maneira, local e global estão atados um ao outro, “não porque este último seja o manejo local dos efeitos essencialmente globais, mas porque cada um é a condição de existência do outro” (HALL, 2003, p. 45). Antes, ainda sob o olhar do autor, a “modernidade” era transmitida de um único centro. Hoje, ao revés, estão por toda a parte.

Hall (2006) postula que as identidades modernas se encontram em processo de fragmentação, onde indivíduos são descentrados de si mesmos, mas também de seu lugar no mundo social e cultural. Há um deslocamento dos “sujeitos”, uma perda do “sentido de si” estável10. Essa configuração constitui uma “crise de identidade”, segundo o autor jamaicano, dando conta de sublinhar que essa é a linha de raciocínio dos teóricos que acreditam estarem em colapso as identidades modernas diante da modernidade tardia. Sob a acepção de Hall (1990, p. 43 apud Kobena Mercer, 2006, p. 09), verbi gratia, a identidade se transmuda em querela somente em vias de crise, quando algo tido como fixo, estável, coerente, é deslocado pela experiência da incerteza e da dúvida. O colapso da identidade exsurge como “resultado das mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se provisório, variável e problemático” (Hall, 2006, p.12). Kathryn Woodward (2008, p. 08), expõe que as identidades adquirem sentido através “da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas”, ao passo em que, como atesta Velho (1999, p. 119), a cultura é

10 O mesmo Stuart Hall mostra as limitações dessa perspectiva que, para ele, malgrado parecer uma formulação simplista, possibilita esboçar um quadro coerente e aproximado pertinente às conceptualizações e mudanças do sujeito moderno e sua ligação com a formulação das identidades. Para mais cf.: HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

49 uma expressão simbólica. Ainda em consonância com o pensamento de Woodward, a construção da identidade, além de simbólica é também social. Ademais, seu caráter é eminentemente relacional, uma vez que, em grande parte dos casos, demanda, para existir, de algo fora dela, a saber, de outra identidade. “A identidade é, na verdade, relacional, e a diferença é estabelecida por uma marcação simbólica relativamente a outras identidades”. (Woodward, 2008, p. 09). Outra forma pela qual as identidades estabelecem suas reivindicações é por meio do apelo a antecedentes históricos. (op. cit., p. 11) Contudo, mesmo dentro de um grupo, sociedade, tribo ou congênere, as identidades podem não ser unificadas. Contradições podem surgir no seu interior tendo que ser negociadas. Seguindo o ponto de vista da autora Woodward (2008), pode-se dizer que a identidade se distingue por aquilo que ela não é, sendo marcadas as identidades pela “diferença”. Para Judith Butler (2003), a identidade não é algo, mas sim efeito que se manifesta num jogo de referências, em meio a um regime de diferenças. Segundo Michel Agier (2001), levando a cabo a abordagem contextual, não existe definição de identidade em si mesma. Os processos identitários não existem fora de contexto, são sempre relativos a algo específico que está em jogo. A identidade remete, portanto, a um alhures, a um antes e aos outros. Expressa o antropólogo francês (2001, p. 10) que

O processo identitário, enquanto dependente da relação com os outros (sob a forma de encontros, conflitos, alianças etc.), é o que torna problemática a cultura e, no final das contas, a transforma. O mesmo ocorre com relação à mudança em um mesmo contexto local. Em uma situação de mudança social acelerada, como a que se vive em todas as partes do mundo ao longo das últimas décadas, os estatutos sociais se recompõem e os indivíduos devem redefinir rapidamente sua posição, em uma ou duas gerações.

Mostra Agier que é nesse momento que a questão identitária torna-se um problema de ajuste, concomitantemente social na sua definição e individual em sua experiência. “A relação do indivíduo consigo próprio ao mesmo tempo que com sua cultura e sua linhagem se torna então problemática” (AGIER, 2001, p.10). Não há mais a presença de identidades totalmente coerentes e integrais, como já expunha Hall (2006, p. 84). Ainda segundo Stuart Hall:

50

Em toda parte, estão emergindo identidades que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são produtos desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado. (op. cit., p. 88)

De todo modo, há toda uma esfera simbólica e que se dá no âmbito dos signos e que assegura uma certa “unidade” em termos de uma identidade, seja ela tangente ao próprio sujeito, quer seja em seu viés grupal. Todavia, adverte- nos Hall (1997 apud Woodward, 2008, p. 30), que em todos os nossos encontros e interações, não é difícil perceber que somos posicionados diferentemente, em diferentes lugares e momentos, vistas aos diferentes papéis sociais que estamos exercendo. Contextos sociais distintos fazem com que nos envolvamos em diferentes significados sociais. Complementa Kathryn Woodward (2008, p. 30):

Em todas essas situações, podemos nos sentir, literalmente, como sendo a mesma pessoa, mas nós somos, na verdade, diferentemente posicionados pelas diferentes expectativas e restrições sociais envolvidas em cada uma dessas diferentes situações, representando- nos, diante dos outros, de forma diferente em cada um desses contextos. Em um certo sentido, somos posicionados – e também posicionamos a nós mesmos – de acordo com os “campos sociais” nos quais estamos atuando.

Há sempre uma delimitação “posicional”, pois, como nos mostra Woodward e Hall, a complexidade da vida moderna demanda esse tipo de postura, que é assumir identidades diferentes. Entretanto, essas identidades podem se chocar, estabelecendo um conflito. Isso decorre da interferência de uma identidade em relação à outra e das expectativas geradas em torno das identidades exercidas. Um profícuo exemplo pode ser visto tal qual segue:

Para ser “bom pai” ou uma “boa mãe”, devemos estar disponíveis para nossos filhos, satisfazendo suas necessidades, mas nosso empregador pode exigir nosso total comprometimento. A necessidade de ir a uma reunião de pais na escola do filho ou da filha pode entrar em conflito com a exigência de nosso empregador para que trabalhemos até tarde. (Woodward, 2008, p. 32)

Como supramencionado, alguns conflitos exsurgem a partir das tensões que envolvem as normas sociais e as expectativas geradas quanto ao exercício ou uso das identidades. Identidades diferentes (mãe e lésbica, por exemplo, ou 51 headbanger e forrozeiro) e que rompam com as expectativas engendradas serão construídas como “desviantes”, estranhas, seja pela sociedade, enquanto “todo social”, quer seja pelo grupo no qual o indivíduo se encontra inserido.

Já Anthony Giddens (2003), por sua vez, nos traz a perspectiva na qual o sujeito moderno é um ser “reflexivo” em suas práticas. Sob seu prisma, é a cognoscitividade dos agentes humanos, em sua forma especificamente reflexiva, que está envolvida de maneira mais acentuada e profunda na ordenação recursiva das práticas sociais e, por conseguinte, das identidades. Ainda segundo ele (2003, p. 03), “A continuidade de práticas presume reflexividade, mas esta, por sua vez, só é possível devido à continuidade de práticas que as tornam nitidamente ‘as mesmas’ através do espaço e do tempo”. Para esse autor cada indivíduo, no atual estágio da modernidade, desenvolve um “projeto reflexivo do eu”, que passa a ser uma demanda da própria sociedade, que a enseja por um lado e a exige por outro. Essa “reflexividade” deve ser entendida não tão somente como “autoconsciência”, mas sobretudo como “o caráter monitorado do fluxo contínuo da vida social”, onde “ser um ser humano é ser um agente intencional, que tem razões para suas atividades e também está apto, se solicitado, a elaborar discursivamente essas razões (inclusive mentindo a respeito delas)”. (GIDDENS, 2003, p. 03). Giddens, todavia, ressalta a necessidade de cautela em se tratando de termos tais como “propósito” ou “intenção”, “razão”, “motivo” e análogos, na medida em que os seus usos na literatura filosófica têm sido, amiúde, relacionados a um “voluntarismo hermenêutico”, e porquanto retiram a ação humana de sua contextualidade de espaço-tempo. Esse “projeto reflexivo do eu” pode ser compreendido como uma postura mais autônoma e refletida dos sujeitos diante das estruturas. Para Giddens (2003, p. XXXV), considera-se estrutura “o conjunto de regras e recursos implicados, de modo recursivo, na reprodução social; [...]”. A ação humana, para ele, ocorre como uma durée, um fluxo contínuo de conduta, análogo ao da cognição. A ação intencional não se compõe a partir de um agregado ou série de intenções, razões e motivos isolados. Portanto, é útil, segundo ele, falar de reflexividade como algo alicerçado na monitoração contínua da ação que os seres humanos manifestam, esperando o mesmo dos seus pares. Atesta ainda Giddens que o planejamento de vida refletido e 52 organizado passa a ser uma característica cerne na estruturação da autoidentidade.

Quanto mais a tradição perde seu domínio, e quanto mais a vida diária é reconstituída em termos do jogo dialético entre o local e o global, tanto mais os indivíduos são forçados a escolher um estilo de vida a partir de uma diversidade de opções. Certamente existem também influências padronizadoras — particularmente na forma da criação da mercadoria, pois a produção e a distribuição capitalistas são componentes centrais das instituições da modernidade. No entanto, por causa da "abertura" da vida social de hoje, com a pluralização dos contextos de ação e a diversidade de "autoridades", a escolha de estilo de vida é cada vez mais importante na constituição da auto-identidade e da atividade diária. O planejamento de vida reflexivamente organizado, que normalmente pressupõe a consideração de riscos filtrados pelo contato com o conhecimento especializado, torna-se uma característica central da estruturação da auto-identidade. (GIDDENS, 2002, p. 13)

Para Bauman (2001), um dos problemas que circundam a questão da identidade na sociedade “líquido-moderna” diz respeito à grande oferta de padrões existentes. Para o autor, a liquidez da vida e da sociedade se alimentam e se revigoram de forma recíproca. A vida líquida, tal qual a sociedade líquido- moderna, não é capaz de manter a forma ou permanecer em seu curso por um longo tempo. Um ritmo frenético instaurou-se no mundo e impulsionadas sobremaneira pela revolução digital e da informática as mudanças sucedem-se de maneira cada vez mais célere. Sendo assim, evita-se incorporar definitivamente uma única identidade, preferindo-se trocá-la, como alguns animais trocam de pele, sempre que considerar necessário e oportuno. Os indivíduos de identidade líquida, fluida, são imediatistas, vivem intensamente o presente, para sobreviver (tanto quanto possível) e para obter o máximo de satisfação possível, assevera ele. Fixar-se ao solo, num único lugar, também não é visto com bons olhos, já que o solo pode ser alcançado e abandonado a bel-prazer, quando e assim se queira. A identidade é reciclável e o Just do it 11, o ser original, é pressuposto indispensável na sociedade líquido-moderna. Colin Campbell (2004), por sua feita, postula que no contexto em riste os indivíduos se definem em termos de seus gostos e consumo porquanto sentem que é isso o que de forma mais clara sintetiza quem são, estando a real identidade nas preferências. Porém, o verdadeiro local onde reside a identidade é nas reações

11 “Faça você mesmo”, em tradução livre. 53 aos produtos, e não nos produtos em si, à medida em que a identidade é descoberta e não comprada. Desse modo, o consumo, para ele, não gera a tão propalada crise das identidades, e ao contrário, poderia inclusive ajudar a resolver tal dilema. Ainda diante do fenômeno do consumo, segundo o autor Karl Mannheim (apud NUNES, 2007), haveria uma espécie de comunhão mental entre os jovens, sociologicamente realidades tangíveis, que se aproximam e partilham referências, contribuindo para a formação de um grupo. A participação no grupo tem seu efeito socializante, onde ao lado dos dados mentais, emergem como elementos constitutivos a linguagem apropriada ao grupo, a vestimenta com suas características de moda (a marca do tênis, da camiseta, ou o corte de cabelo) e a própria gestualidade corporal, são fatores que vão moldando os indivíduos “que, por esses signos, são reconhecidos e se reconhecem. O consumo aparece como instrumento que vincula socialmente os indivíduos, dando-lhes um conjunto de características que os distinguem e os individualizam” (NUNES, 2007, p.665). Esse conjunto integrado, constituído principalmente de elementos visuais distingue de maneira imediatamente identificável determinado indivíduo e, em alguns casos, até determinados grupos, funcionando inclusive como peça de identificação.

Julgamos pertinente, nesse ponto, estabelecer certa diferenciação entre identidade e subjetividade, conceitos reiteradas vezes utilizados como sinônimos, todavia apresentam particularidades, embora estejam ligados, intercalados. Tomaz Tadeu Silva, nos faz essa distinção:

Os termos “identidade” e “subjetividade” são, às vezes, utilizados de forma intercambiável. Existe, na verdade, uma considerável sobreposição entre os dois. “Subjetividade” sugere a compreensão que temos sobre o nosso eu. [...] Entretanto, nós vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual nós adotamos uma identidade. (SILVA, 2008, p.55)

Conforme assinala Stuart Hall (2006, pp. 21-22), a identidade muda de acordo com o modo como o sujeito é representado ou interpelado. A identificação, portanto, não é automática, podendo ser ganha ou perdida, dentro do “jogo de identidades” e suas consequências políticas, constituindo-se enquanto mudança de uma política de identidade para uma política da diferença. 54

Hall ainda explana que a ideia de identidade está atrelada às conceptualizações acerca do sujeito moderno e suas mudanças históricas.

Utilizo o termo “identidade” para significar o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares, e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode “falar”. (HALL, 2008, p.112)

As identidades, continua Hall (op. cit.), são dois pontos de apego temporário às posições-de-sujeito construídos para nós pelas práticas discursivas. Tomaz Tadeu Silva também nos traz elementos interessantes e relevantes para pensarmos as conceptualizações acerca das identidades e sua relação com a “diferença”. Segundo ele (2008, p. 74), em um primeiro momento parece fácil definir identidade e diferença a partir do critério da auto- referenciação: aquilo que se é, em relação à primeira, e aquilo que não é, no que concerne à segunda. Em essência, identidade e diferença mantêm uma estreita relação de dependência. Essa relação tende a ser eclipsada devido expressarmos a identidade de maneira afirmativa.

Quando digo “sou brasileiro parece que estou fazendo referência a uma identidade que se esgota em si mesma. “Sou brasileiro” – ponto. Entretanto, eu só preciso fazer essa afirmação porque existem outros seres humanos que não são brasileiros. Em um mundo imaginário totalmente homogêneo, no qual todas as pessoas partilhassem a mesma identidade, as afirmações de identidade não fariam sentido. De certa forma, é exatamente isto que ocorre com nossa identidade de “humanos”. É apenas em circunstâncias muito raras e especiais que precisamos afirmar “somos humanos”. (SILVA, 2008, p. 75).

A assertiva “sou brasileiro”, implica em uma série de negações, manifestações negativas de identidade, de diferenças. “Por trás da afirmação “sou brasileiro” deve-se ler: “não sou argentino”, “não sou chinês”, “não sou japonês” e assim por diante, numa cadeia, neste caso, quase interminável” (SILVA, 2008, p. 75). Congenericamente, afirmações acerca da diferença só fazem sentido quando compreendidas em sua relação com as afirmações sobre a identidade, ao passo em que “as afirmações sobre diferença também dependem de uma cadeia, em geral oculta, de declarações negativas sobre (outras) identidades” (op. cit.). Posto isso, é possível inferir, sob a regência do autor, que identidade e diferença, pois, não podem ser separados; um depende do outro. Faz-se mister esclarecer 55 que identidade e diferença são forjadas no contexto das relações socioculturais e políticas; criadas através de atos de linguística. Ou seja, identidade e diferença são elementos que só encontram sentido no seio de uma cadeia de diferenciação linguística. São seres da cultura e dos sistemas simbólicos que a compõem. Silva trata de ressalvar, não obstante, que a própria linguagem, como sistema de significação, é uma estrutura instável, vacilante. A citação a seguir enseja a compreensão.

Essa indeterminação fatal da linguagem decorre de uma característica fundamental do signo. O signo é um sinal, uma marca, um traço que está no lugar de uma outra coisa, a qual pode ser um objeto concreto (o objeto "gato"), um conceito ligado a um objeto concreto (o conceito de "gato") ou um conceito abstrato ("amor"). O signo não coincide com a coisa ou o conceito. Na linguagem filosófica de Derrida, poderíamos dizer que o signo não é uma presença, ou seja, a coisa ou o conceito não estão presentes no signo. Mas a natureza da linguagem é tal que não podemos deixar de ter a ilusão de ver o signo como uma presença, isto é, de ver no signo a presença do referente (a "coisa") ou do conceito. É a isso que Derrida chama de "metafísica da presença". Essa "ilusão" é necessária para que o signo funcione como tal: afinal, o signo está no lugar de alguma outra coisa. Embora nunca plenamente realizada, a promessa da presença é parte integrante da idéia de signo. Em outras palavras, podemos dizer, com Derrida, que a plena presença (da "coisa", do conceito) no signo é indefinidamente adiada. É também a impossibilidade dessa presença que obriga o signo a depender de um processo de diferenciação, de diferença, como vimos anteriormente. (SILVA, 2008, pp. 78-79)

Dentro de toda sua complexidade, as construções de identidades, são trespassadas igualmente por relações de poder. Silva (2008) nos dá a ideia, apontando que o poder de definição quanto à identidade e de marcação da diferença é inseparável das relações mais amplas de poder. “A identidade e a diferença não são, nunca, inocentes. Podemos dizer que onde existe diferenciação - ou seja, identidade e diferença - aí está presente o poder.” (op. cit.., p. 81). O autor continua mais à frente sublinhando que a diferenciação é o processo central pelo qual a identidade e diferença são produzidas. Entrementes, há uma série de outros processos que traduzem essa diferenciação ou que com ela estabelecem uma relação estreita.

São outras tantas marcas da presença do poder: incluir/excluir ("estes pertencem, aqueles não"); demarcar fronteiras ("nós" e "eles"); classificar ("bons e maus"; "puros e impuros"; "desenvolvidos e primitivos”; “racionais e irracionais”); normalizar (“nós somos normais; eles são anormais”). A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir. Como vimos, dizer "o que somos" significa também dizer "o que não somos". 56

A identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. (Ibid., pp. 81-82)

Há uma pujante separação entre "nós" e "eles", em se tratando de construções identitárias. Demarcações e separações de fronteiras e busca de distinções que afirmam e reiteram relações de poder. Silva ainda anota que as demarcações “nós” e “eles”, para além da categoria gramatical dos pronomes, evidenciam posições-de-sujeito substancialmente marcadas por relações de poder.

A título de proposição, Michel Agier (2001, p. 12) escreve que, mais que nunca, diante da complexidade crescente das realidades locais, apresenta-se como necessário se empreender uma abordagem situacional das culturas e das identidades à feita de um instrumento de compreensão das lógicas observadas diretamente, e igualmente tal como princípio de vigilância antiexótica da antropologia, devendo o observador direcionar especial atenção para as interações e situações reais onde há o engajamento dos atores. Cabe-nos dizer, alicerçado nas elucubrações de Canclini (2006), que as identidades se reestruturam, na senda de um mundo tão “fluidamente interconectado”, em meio a conjuntos interétnicos, transclassistas e transnacionais. As formas diversas em que os membros de cada grupo se apropriam dos híbridos e heterogêneos repertórios e dos bens e mensagens disponíveis nos circuitos transnacionais engendram novas maneiras de segmentação, situando-se em meio à heterogeneidade e compreender a produção das hibridações, que está ligada aos movimentos demográficos, às diásporas, às viagens, deslocamentos nômades e as fronteiras cruzadas, oportunizando o contato entre diferentes identidades. Trazemos à baila, agora, Manuel Castells, que, a nosso entender, lança mão de uma pertinente e interessante concepção de identidade, a qual nos servirá de subsídio e alicerce teóricos. No que diz respeito a atores sociais, diz esse autor (1999), identidade é o processo de construção de significado baseado em um atributo cultural, ou ainda um conjunto desses atributos culturais inter- relacionados, que prevalecem sobre outras fontes de significado. Com efeito, conforme segue, o autor estabelece uma importante distinção entre ‘identidade’ e ‘papel social’: 57

Para um determinado indivíduo ou ainda um ator coletivo, pode haver identidades múltiplas. No entanto, essa pluralidade é fonte de tensão e contradição tanta na auto-representação quanto na ação social. Isso porque é necessário estabelecer a distinção entre a identidade e o que tradicionalmente os sociólogos têm chamado de papéis, e conjuntos de papéis. Papéis (por exemplo, ser trabalhador, mãe, vizinho, militante socialista, jogador de basquete, frequentador de uma determinada igreja e fumante, ao mesmo tempo) são definidos por normas estruturadas pelas instituições e organizações da sociedade. A importância relativa desses papéis no ato de influenciar o comportamento das pessoas depende de negociações e acordos entre os indivíduos e essas instituições e organizações. Identidades, por sua vez, constituem fontes de significados para os próprios atores, por eles originadas, e construídas por meio de um processo de individuação. Embora, conforme argumentarei adiante, as identidades também possam ser formadas a partir de instituições dominantes, somente assumem tal condição quando e se os atores sociais as internalizam, construindo seu significado com base nessa internalização. Na verdade, algumas autodefinições podem também coincidir com papéis sociais, por exemplo, no momento em que ser pai é a mais importante autodefinição do autor. (CASTELLS, 1999, p. 23)

Contudo, adverte Castells (op. cit.), identidades são fontes mais relevantes de significado do que papéis, em virtude do processo de autoconstrução e individuação que envolvem. Em linhas gerais, é possível dizer que identidades organizam significados, enquanto papéis organizam funções. O significado é definido, para o sociólogo espanhol (1999, p. 23) como “a identificação simbólica, por parte de um ator social, da finalidade da ação praticada por tal ator”. Para ele o significado, para a maioria dos atores na sociedade em rede, organiza-se em torno de uma identidade primária, que estrutura as demais e que é autossustentável ao longo do tempo e do espaço. Para Castells (op. cit, p. 24) “a construção identitária vale-se da matéria-prima proveniente da história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso”. Entretanto, esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que passam a reorganizar seu significado amparados nas tendências sociais e projetos culturais arraigados em sua estrutura social e em sua visão de tempo e espaço.

Castells (1999, p. 25) propõe distinguir entre três formas e origens a construção de identidades. São elas: 58

 Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes visando expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais;  Identidade de resistência: criada por atores sob a lógica da dominação, em condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas, criando trincheiras de resistência e sobrevivência, apresentando como basilares princípios diferentes ou opostos ao status quo;  Identidade de projeto: quando os atores sociais, usando qualquer material cultural ao seu alcance, buscam construir uma nova identidade para redefinir sua posição e situação na sociedade e, a partir de tal, transformar as estruturas sociais.

Identidades que se mostram de início como resistência podem, ao cabo, resultar em projetos, ou até mesmo tornarem-se dominantes diante das instituições sociais, transformando-se posteriormente em identidades legitimadoras para instituir sua dominação. As identidades headbangers, diante do que já pudemos observar, parecem estar mais próximas da identidade de resistência, conquanto não haja um movimento organizado ou intuito explícito, um caminho sendo percorrido, a fim de se tornar uma identidade de projeto.

Diferentemente do punk, que em muitos momentos apresenta uma proposta ideológica relativamente definida e uma cosmovisão estabelecida, o metal, salvo em poucos momentos e estilos, com especial ênfase para o thrash metal, parece não apresentar elementos políticos universais em sua composição. Desse modo, é passível de ser interrogado em relação a ser ou não um “movimento”, dada a inexistência ou exígua conotação política enquanto movimento social e político organizado e deliberado.

Em generalidade, sobretudo em “tempos líquidos”, parece haver uma busca considerável por diferenciação e distinção e, por outro lado, criando um paradoxo, uma busca por associação, aceitação e reconhecimento. Uma espécie de “diferente igual”. Vemos, amiúde, indivíduos ponderando suas ações e atitudes para que sejam consonantes e não causem perplexidade e ojeriza noutrem. Arraigadas em uma cultura e/ou consciência coletiva que sobrepõe, em maior ou menor grau, tempo, dita valores e comportamentos, parte das pessoas 59 se vê diante do dilema da “ação natural” ou da “artificialidade do agir” visando à satisfação da sociedade e em menoscabo ao seu próprio âmago. Chega a ser trivial pautar ações pelo receio do “olhar diferente” e até da exclusão social. A instauração social de pré-estabelecimentos e dicotomias e a criação de uma conjuntura social baseada nesses preceitos perfazem um amálgama no qual o indivíduo, com mais ou menos força, preocupa-se com o seu autopoliciamento e com o viver condizente com a expectativa que a sociedade ou grupo tem acerca dele. Porém, tomando como exemplo os espaços societais do heavy metal, há estruturas e normatizações que devem ser observadas, sob pena de sofrerem os “incautos” ou “negligentes” coerções e sanções dentro do próprio grupo/tribo, caso não se leva a sério o cânone comportamental a ser seguido e preconizado, contrastando com o próprio ideário de liberdade geralmente presente quando se fala em heavy metal. Ou seja, enquanto um constructo assentado em uma identidade e ética da resistência, ainda mais levando-se em consideração as gerações distintas, não há liberdade de transição e fluidez comportamental e de identidades nesses espaços societais, na medida em que parece subsumir-se empreender e denotar uma postura a partir de enunciados prescritivos, almejando manter uma “legitimidade”. Todavia, em uma analogia com o passado recente, 20 anos atrás, por exemplo, já se nota uma acentuada flexibilização nesse sentido, embora adentrar o universo heavy metal, enquanto “candidato” a headbanger ainda demande trilhar certos caminhos e passar por determinadas “aprovações”, o que, frisamos, vem perdendo cada vez mais força.

3.2 Heavy metal e a noção de “cena musical”

Outra frente trabalhada foi a noção de “cena musical”, já que o heavy metal, na maioria das vezes, se estabelece em meio às “cenas”. Acessar a concepção de “cena”, portanto, auxilia a pensar o heavy metal enquanto fenômeno social e cultural. A ideia de cena, mostra-nos Janotti (2011), foi pensada buscando dar cabo de uma série de práticas sociais, econômicas, tecnológicas e estéticas ligadas às formas como a música se faz presente nos espaços urbanos. A ideia e o termo “cena” se tornaram populares e foram amplamente utilizados por jornalistas, nos decênios de 80 e 90, assinala Janotti, para conceituar as práticas 60 musicais presentes em determinados espaços urbanos. Mas, não somente. Os desdobramentos sociais, afetivos culturais e econômicos também entram nesse rol conceitual.

Geralmente, quando existe certa efervescência na produção musical em determinado local, ela é logo nomeada, ou legitimada, pelo discurso da crítica cultural, que procura delimitar a existência de uma cena em torno de expressões musicais distintas. (Janotti, 2011, p. 11)

O autor, em outras palavras, assevera que a cena é uma forma das práticas musicais ocuparem o espaço urbano e serem foco dos processos sociais dos atores envolvidos na produção, consumo e circulação da música nas cidades. Para Straw (apud SÁ, 2012, p.151), “cena musical” remete a um “espaço cultural no qual uma gama de práticas musicais coexiste, interagindo umas com as outras através de uma variedade de processos de diferenciação e de acordo com trajetórias amplas e variáveis de mudança e intercâmbio”. A afirmação das cenas musicais ocorre através de experiências que são nomeadas e também modeladas pelos modos como músicos, público e crítica definem essas experiências. “Desse modo, compreende-se o alcance de uma cena e suas conexões sonoras, através de suas perspectivas regionais (cena indie carioca), suas ligações nacionais (cena punk brasileira) e suas conexões globais (cena heavy metal)”. (JANOTTI, 2014).

3.3 A cena heavy metal em Mossoró e o que a configura

Mossoró, em termos de cena Rock, tem cerca de 30 anos e diferentes gerações em convivência. Desde aqueles que conheceram o metal nos anos 70, até aqueles que conheceram o estilo há poucos anos. Segundo relatos dos entrevistados, Mossoró tem uma cena consolidada.

Nós temos uma cena. O que configura é ter shows regularmente com uma frequência que eu não vou estipular, mas um show por ano acho que já dá para fazer uma cena, ou dois shows por ano. Bandas locais que tocam composições próprias, temos bandas locais. Tem uma loja local, de Rock, de Metal. (Entrevistado 03, nascido em 1990) 61

À guisa de lembrete, todavia, é importante apontar que as cenas musicais alternativas – onde está inserida a cena metal – no Brasil, são, em geral, intermitentes. Isso quer dizer que há altos e baixos em sua trajetória. A cena mossoroense, mesmo assim, resiste firmemente, mantendo uma certa constância e até algum crescimento.

A cena mossoroense cresceu muito. Eu posso dizer que eu sou um dos primeiros aqui junto com *, *, *, *, *, todos nós fizemos parte da mesma geração, nós começamos praticamente o heavy metal aqui em Mossoró. Depois eu fui morar em Natal e comparando com a cena de lá eu posso dizer que Mossoró cresceu muito, muito mesmo. (Entrevistado 04, nascido em 1977)

Na composição de uma cena, é mister que haja uma consciência sobre os diversos papéis e a interdependência que a alimenta e mantêm. Público, bandas, produtores, empresas e lojas especializadas e apoiadores em geral estão entrelaçados na construção coletiva dessa teia e cenário.

Sob o prisma de Janotti (2011), as cenas incluem processos de criação, distribuição e circulação, além, por certo, as relações sociais, afetivas e econômicas que decorrem desses fenômenos. São poucos os conceitos relacionados à música, segundo ele, que se firmaram com tanta influência no imaginário de jornalistas, fãs e músicos ao redor do mundo.

Os primeiros usos do termo remetem à década de 40, quando ele foi criado por jornalistas norte-americanos, para caracterizar o meio cultural do Jazz, de modo a abranger a movimentação em torno do gênero musical. Bandas, público, locais de shows, produtores culturais, críticos, gravadoras, entre outros atores sociais, todos estavam sendo englobados dentro do universo denominado cena musical. (Janotti, 2011, p. 11)

Essa perspectiva da integração como alicerce das cenas fica bastante evidenciada até mesmo pelas falas dos entrevistados. Há a noção que, de fato, sem o apoio recíproco, sem a construção coletiva, não existe cena.

É uma questão, hoje, até bastante difícil de se responder em questão de cena. Mas já tivemos uma bastante forte, com adeptos em shows. Também não podemos dizer que não tem. Porque tem umas que estamos mantendo. E o pessoal que sempre ficamos chamando para ir nos shows. Tem pessoas que fazem. Então, se tem pessoas que fazem shows, tem bandas, lojas e vendem o produto, então existe uma cena. Se não existe banda, não tem produtor para fazer show. Se não tem o público, não tem loja. Se tem outras lojas, como em Mossoró, já tem umas três ou quatro que vendam algum segmento de rock, hard 62

rock. E alguma coisa de heavy metal. Então, existe uma cena. (Entrevistado 01, nascido em 1976)

Dentre todos esses agentes, o público, certamente, figura como um dos principais. Sem o fomento e consumo dos headbangers não há sustentabilidade possível para uma cena.

Eu também acho, Mossoró tem uma cena. Tem gente que curte as bandas locais, que apoia. Então é isso, que quando a banda lança um CD, eles compram o CD, a camisa. E tem gente que apoia a loja local, também. Porque sem público não funciona nada, então são todos elementos da cena isso aí. (Entrevistado 02, nascido em 1988).

4 MEDIAÇÃO, SOCIABILIDADE E METAL

No âmbito da música, no contexto da cena heavy metal, especificamente, a título de exemplificação, headbangers, enquanto grupo, têm parte de suas identidades denotadas desde as vestimentas até o compartilhamento do êxtase coletivo dos shows, das relações de sociabilidade, das paixões por bandas e músicos, da performance corporal12 e de uma certa perspectiva de mundo e de relacionamento com a música, a arte e com a constituição da subjetividade, por meio do que estamos denominando aqui de uma ética da resistência. Uma construção identitária que leva em consideração toda uma trajetória vivenciada e marcada por aprovações, óbices, sanções sociais e resiliências. Por outro lado, no que tange à associação entre os headbangers, ainda à guisa de ilustração, ela parece se aproximar, em grande medida, ao modelo de interação e sociabilidade concebido por Simmel. Georg Simmel, sociólogo francês de grande expressão, elaborou um conceito de sociabilidade enquanto “tipo ideal”, um “social puro”, segundo Frúgoli Jr. (2007). A saber, um conceito de sociabilidade entendido como “uma forma lúdica arquetípica de toda a

12 Segundo Bourdieu, “a arte é, também, “coisa corporal” e a música – a mais “pura” e “espiritual” das artes – é, talvez, simplesmente a mais corporal. Associada a “estados de espírito” que são também estados do corpo ou, como se dizia, humores, a música enleva, suscita o êxtase, põe em movimento, comove: em vez de estar para além, ela se situa aquém das palavras, nos gestos e movimentos do corpo, nos ritmos, a respeito dos quais Piaget afirma, em algum lugar, que eles caracterizam as funções situadas, à semelhança de tudo o que regula o gosto, na junção do orgânico com o psíquico, arrebatamentos e freadas, crescendo e decrescendo, tensões e relaxamentos.” (BOURDIEU, 2008, p. 77). 63 socialização humana, sem quaisquer propósitos, interesses ou objetivos que a interação em si mesma, vivida em espécies de jogos, nos quais uma das regras implícitas seria atuar como se todos fossem iguais”. (Frúgoli Jr., 2007, p. 09). Tal modo de associação se mostra presente, em alguns momentos, entre os headbangers, principalmente nos shows e eventos destinados ao metal. Simmel (2006) assinala que, para além de conteúdos específicos, as formas de sociação são acompanhadas pelo sentimento e satisfação de estar junto socializado, um “impulso de sociabilidade”, em sua efetividade pura, que se desvencilha das realidades da vida social e do processo de sociação como valor e felicidade, constituindo o que ele chamou de “sociabilidade”, onde se coloca à parte as motivações concretas ligadas a delimitações e finalidades específicas da vida e adquirindo da realidade um papel simbólico capaz de preencher a vida e dotá-la de significado. Porém, as formas de associações entre os indivíduos costumam igualmente levar em consideração elementos identificadores e de distinção, estabelecendo parâmetros e nortes e guiando socialidades. A forma como se acessa o heavy metal costuma se dar de forma semelhante para grande parte dos headbangers. Ao contrário de outros estilos, amparados pela indústria fonográfica de massa e que imperam no Brasil – e no Nordeste mais especificamente, como hegemônico, como o forró – o heavy metal é transmitido por meio distintos, a saber, através de amigos ou familiares próximos, por uma rede de sociabilidade, cujos pontos são reiterados pela música. Estilos como o forró e outros, como o sertanejo universitário, são transmitidos e disseminados principalmente pela mídia televisa e pelas rádios. Isso não significa, por exemplo, que o heavy metal não possa ser descoberto por intermédio dos meios de comunicação, mas sim que isso se dá na minoria das vezes. O depoimento do entrevistado 1, de 40 anos, headbanger em Mossoró desde os anos finais do decênio de 1980, aponta nesse sentido.

Comecei a me envolver com música no meio rock, heavy metal quando eu ouvi no rádio, a primeira vez, a música do Europe, The final countdown. Que tocava bastante no rádio. Estava sempre gravado pelas rádios que tocava. E uma vez, eu consegui e gravei um lado todo da fita. Com a mesma música. Tocava todos os dias na rádio. Depois, com amigos na escola, que eu estudava no Dom Bosco. Que tinham uns caras que já curtiam um som. Eles curtiam um som, mas não eram muito envolvidos. Então, era meio limitado a certas bandas. Eles só conheciam Black Sabbath e Ozzy, que já estava em carreira solo naquele ano, que era 87, 88. Nesse ano, eu mudei de rua. O meu pai comprou uma casa, que eles ainda moram hoje. Na Melo Franco. E lá, 64

nas proximidades, eu conheci um cara chamado Wilton, que tinha bastante LPs. Foi a primeira vez que tive encontro com o primeiro disco do Iron Maiden. E Black Sabbath. E alguns do U2. E Scorpions que ele me emprestou a discografia para conhecer essas bandas. Pronto. Daí para frente, eu fui conhecendo várias outras bandas (Entrevistado 1, nascido em 1976)

O entrevistado 4 faz sua explanação em caminho contíguo. Ou seja, mesmo tendo conhecido o heavy metal no Rock In Rio de 1985, foi apenas 3 anos mais tarde, por intermédio de um amigo, que se consolida sua entrada no estilo e quando ele, de fato, passa a curtir e assimilar esse tipo de música.

E o meu primeiro contato com o heavy metal eu tinha 11 anos, mais ou menos, foi quando aconteceu o primeiro Rock in Rio em 1985, que eu assisti pela televisão alguns shows e de cara já fiquei impressionado com o que eu vi. Mas, assim, eu tinha adorado o que eu tinha visto, mas não foi no momento que eu comecei a curtir. O meu primeiro contato foi esse. Quando foi em 88, eu sou vizinho de * até hoje, ele mora na frente da casa da minha mãe. E ele começou a curtir e meio que por influência dele, eu ia na casa dele todos os dias, a gente ouvia muito som junto, e peguei discos emprestados, foi mais ou menos assim. O primeiro disco mesmo que eu peguei para ouvir foi o Metal Heart do Accept e me apaixonei. E de lá para cá nunca mais deixei de ouvir esse estilo de música (Entrevistado 4, nascido em 1977).

Esse é um interessante traço presente na descoberta do metal. Não sendo um estilo de “massa”, o heavy metal depende das redes que são tecidas entre os headbangers para sua própria reprodução. Um sistema que se retroalimenta. Hodiernamente, no entanto, em tempos de vasto e amplo acesso à música, em todas as suas possibilidades de expressão e estilos, por meio dos adventos tecnológicos, plataformas de streaming e de downloads, não há uma dependência tão enfática dessa rede no que diz respeito a conhecer novas bandas ou músicas, uma vez que uma passada rápida no YouTube já é o suficiente para “garimpar” e conhecer dezenas de bandas novas, das mais diversas partes do mundo.

Para mim é tipo a dualidade do Star Wars, né? Tem o mestre e o aprendiz. Nós começamos com a indicação de um amigo, que foi o Alan, que nos apresentou as bandas, mas só fez comentários, foi um caminho de duas vias. Teve esse amigo que comentou o fato de existir o Metal e um dia eu, acidentalmente, entrei no quarto e a televisão estava ligada com uns caras de cabelo grande tocando uma música qualquer e eu achei massa, daí no outro dia na escola, um outro amigo nosso tinha assistido esse programa e ele disse que aquilo era Iron Maiden, foi seguindo esse caminho (Entrevistado 2, nascido em 1988) 65

O “mestre e o aprendiz” nessa fala do entrevistado 2 surge como emblemática e mostra como são tecidas as relações entre quem já congrega nessa tribo e universo e quem está pleiteando sua inserção. Há uma relação de respeito e uma certa hierarquia, onde os mais velhos são respeitados por sua trajetória, conhecimento de estilo e bagagem de shows, por exemplo.

[...] ele morava aqui em frente, era nosso amigo de infância, mas nós também tínhamos outros contatos. [...] Mas antes meu pai sempre escutou Rock, Dire Straits, então nós já tínhamos o ouvido para o Rock, fomos criados com isso (Entrevistado 3, nascido em 1990)

A expressão “ouvido para o rock”, presente na fala do Entrevistado 3, pressupõe que a audição e assimilação do heavy metal demanda um processo anterior de familiarização com o estilo, de depuração, de adaptação até. Não à toa, um dos principais argumentos quando alguém questiona um headbanger sobre ele gostar e ser entusiasta do metal se funda no questionamento: “como você consegue entender aquilo?”.

Comecei a curtir juntamente com * e o primo dele. Ele trazia material e pela amizade nossa juntava os amigos e era uma forma de socializar. Juntava a galera pra curtir um som, principalmente pela rádio 96, naquela época. Todo sábado já era marcado. Todo sábado eu acho que... sete e meia, não lembro bem a hora, uma hora lá, estavam os amigos, e a gente já meio que escolhia umas músicas, mas nem escolhia muito, porque a gente não sabia, aí o * dizia: "escolha essa", aí a gente ia no orelhão e já deixava as fitas k-7 preparadas para gravar. As fitas que eu tenho hoje são das músicas que a gente pedia e gravava lá na casa de *. Foi assim que eu comecei (Entrevistado 10, nascido em 1987)

Fazendo paralelo às redes tecidas, subsidiando-as, muitas vezes, encontravam-se as Rádios Alternativas. Em Mossoró, por mais de 15 anos, destacou-se a 96,5 FM, uma Rádio Comunitária e que tinha em sua grade fixa programas totalmente voltados ao Rock e ao metal, indo na contramão do que tocava na maioria das rádios locais. Até hoje, a Rádio 96 é lembrada com saudosismo e nostalgia pelos headbangers mossoroenses, uma vez que o próprio espaço físico da Rádio servia como lócus de encontro e sociabilidade e, também, sediava shows e eventos ligados ao universo da música pesada, com eventos como o Festival 96 Pro Rock, por exemplo. 66

No depoimento do entrevistado 5, nascido no ano de 1980, vemos uma perspectiva comum em algumas falas, que é a aproximação à música heavy metal, a partir de uma cosmovisão de mundo anterior.

Primordial, e até hoje eu acho que é o que me mantém, foi a questão de eu nunca me contentar com algumas situações que a vida nos coloca. Eu sempre fui assim, antes eu costumava dizer que tenho um espírito livre. Eu dizia muito isso quando eu era mais jovem. Nunca me contentei com as coisas, sempre busquei contestar. Eu acho que isso é o resultado de leitura. Aquela velha frase que eu dizia antes: “heavy metal é um complemento de ideias”. Que hoje em dia eu já penso de uma maneira diferente. Mas, eu acho que começou por aí, o primordial foi isso (Entrevistado 5, nascido em 1980)

O heavy metal, portanto, nesse contexto, complementa uma certa visão e postura diante do mundo e da sociedade, contemplando-o enquanto sujeito e dando conta de atender suas inquietações e anseios. Sobre a forma como acessou o heavy metal, mais uma vez prevalece a rede de sociabilidade e as amizades como ponte para o estilo.

No início de tudo era o rock ‘n’ roll no geral. E eu acho que o heavy metal foi uma crescente. Eu fui conhecendo, fazendo as amizades. Mas, foi a partir do Mercyful Fate. Quem me apresentou o Mercyful Fate foi o *, numa fita cassete. Não conhecia [o heavy metal]. Cara, eu não sabia distinguir o que era heavy metal, o que era rock ‘n’ roll, o que era hard. Não existia isso, para mim era tudo rock ‘n’ roll. E eu acho que até as coisas foram ficando meio chatas de lá para cá por causa dessas denominações. Então, quando eu ouvi o Mercyful Fate para mim era algo totalmente diferente do que eu já tinha escutado. Totalmente diferente em termos de concepções musicais no geral. As letras eram diferentes. O instrumental era diferente. Eu que ouvia Raimundos, que ouvia pop-rock nacional, acho que o mais pesado que eu já tinha escutado era Sepultura, o Refuse/Resist. Então, do Sepultura para o Mercyful Fate é uma diferença. (Entrevistado 5, nascido em 1980)

Se as amizades e as redes de sociabilidade estão no cerne, em se tratando do acesso ao heavy metal, por aqueles que nasceram nos anos 70 e 80, como apontam os discursos, em se tratando de headbangers mais jovens, nascidos nos anos 90, a partir de meados dos anos 90, mais especificamente, essa realidade não é tão diferente e, ao contrário, apresenta várias similitudes.

O entrevistado 9, nascido em 1996, atualmente guitarrista de uma banda de death metal da cidade de Mossoró, apresenta sua resposta à pergunta sobre como conheceu o heavy metal, por intermédio de um Professor. 67

No meu caso foi por conta de um professor que eu tive na escola, que gostava de sepultura, bandas antigas e tal. Eu o vi ouvindo a música Territory, do Sepultura. Ouvindo em sala de aula, só para ele, aí eu vi lá, achei interessante. E perguntei a ele. Isso mais ou menos em 2009. [...] Fui atrás, gostei do som. Mais para frente, estava mais interessado, aí um dia estava passando o Programa do Gordo13, na MTV, aí vi ele comentando sobre Black Sabbath, falando que era uma das primeiras bandas do gênero, aí depois eu fui fazendo a linha do tempo do metal. (Entrevistado 09, nascido em 1996)

No caso do entrevistado 9, houve uma preocupação, que se mostra mais ou menos corrente nos headbangers, de fazer esse percurso “histórico”, conhecendo e se apropriando da história ou, ao menos, dos principais nomes do estilo. O entrevistado 8, nascido em 1994, atesta que embora tenha conhecido o rock por meio da Televisão e da Internet, foi a partir de determinadas pessoas que acessou o heavy metal.

[...]O primeiro contato com o metal foi quando eu vi meu tio no carro dele, aí ele botou uma música e era Iron Maiden. Sempre que eu andava com ele, ele botava e ouvia essa música, aí não sabia que banda era essa, só sabia que era massa. E antes nunca tive contato com o heavy metal. Aí, quando o meu tio ia me pegar no colégio ou ia me dar carona, alguma coisa, aí eu escutava, escutava. Até que um dia eu perguntei a um menino que estudava comigo, eu perguntei a ele: ei, você gosta de que, boy? Ele respondeu: Iron Maiden. Aí, depois ele disse: Olha, isso aqui é Iron Maiden. Aí, quando eu voltei para o carro do meu tio, perguntei: ei, tio, isso é Iron Maiden? É, é Iron Maiden, ele disse. Massa demais, eu falei. Esse aí foi meu primeiro contato. Fui escutando Iron Maiden, achando massa e tal. Nessa época eu tinha um Ipod, aí eu pedi para esse menino que estudava comigo no colégio, que eu sabia que ele era do metal, aí eu pedi a ele: ei, *, coloque aí tudo de que você tiver de música de metal. Aí, ele colocou. Eu lembro que na época não era nem essas coisas undergrounds, era Iron Maiden, Slipknot, Metallica, Massacration, ... botou essas coisas aí. (Entrevistado 8, nascido em 1994)

Na fala do entrevistado 7, foi igualmente por meio de um parente próximo que se deu a introdução ao metal.

Eu ia para a casa do meu tio, aí tinha os pôsteres lá do Metallica, Kamelot, pôster de filme de terror, Freddy Krueger, aí ficava lá brincando no computador dele, aí tinha lá as músicas do Iron Maiden, mas não sabia ainda. Por influência de amigos eu ouvia Linkin Park, Slipknot, System Of a Down, aí com o tio de *, o filho dele estudava comigo e com *, aí eu ia para casa dele e o pai dele colocava Iron Maiden. Iron Maiden e Metallica, era isso que eu escutava. Aí, depois eu conheci * e ele chegou com o CD do Dark Side. (Entrevistado 7, nascido em 1997)

13 Programa apresentado pelo João Gordo, vocalista da banda Ratos de Porão, que era veiculado pelo MTV brasileira. 68

O que fica claro nas falas supraexpostas é que todos os respondentes, independentemente da idade, tiveram uma “mediação” no acesso ao heavy metal, uma característica que se mantêm, a despeito das substantivas mudanças relacionadas à indústria fonográfica e a forma como as pessoas conhecem ou acessam determinados estilos, bandas e artistas. Esse “mediador”, geralmente, é alguém mais velho, um amigo ou alguém da família. Esse processo é imprescindível na reprodução do estilo, que, como dito alhures, por não ter necessariamente a mídia como aliada, depende dessas relações, dessas teias, para sua própria reprodução e retroalimentação.

Após esses primeiros contatos, os sujeitos passam a atribuir substância e significado ao heavy metal, e ser um headbanger passa a remeter a uma superação, uma sublimação do estilo, que estaria para além da música, que passa a ter importância motriz na vida desses indivíduos.

Não é uma pergunta fácil. A resposta é muito mais difícil. Eu acho que ser headbanger, sem querer aqui ser contraditório, mas significa ser você mesmo. E quando eu digo contraditório é que por outro lado existe a questão da massificação, hoje em dia mais ainda, que o headbanger é todo mundo igual e todo mundo diferente, está entendendo? Camisas pretas no visual, mas, dentro ali de todo o ser que usa uma camisa preta, cabeludo, as características, tem um ser ali individual, com concepções. (Entrevistado 5, nascido em 1980)

A concepção sobre “ser um headbanger” é uma reflexão que, uma hora ou outra, é realizada pelos adeptos do estilo. Passado esse período inicial em que os sujeitos são “socializados”, internalizando concepções e valores referentes ao estilo, esses indivíduos são incorporados à “tribo”, comungando de todo um espectro de signos e aparato. Questionados sobre tal, as respostas apresentam confluências. A indumentária, o modo de se vestir e “de parecer”, continua sendo relevante na identidade headbanger. Andar ou ir a shows de preto, ostentar um cabelo grande ou alguma outra característica que remeta ao universo metal, ainda tem bastante força.

De cara, é mais que um estilo de vida, você se veste diferente, você pensa diferente dos demais. E outra coisa que diferencia muito também é porque é um público muito fiel. O público que curte heavy metal não é o mesmo que curte outros estilos de música, porque nós compramos o CD original, vamos a shows, compramos o material original da banda, oficial, e é um público mais fiel. Nisso aí não tenho dúvida. Eu acho que a amizade que é formada nesse meio é mais forte. Eu acho que todos 69

nós que curtimos o mesmo som, nós somos mais do que amigos, é como se fosse uma família. Como é que eu digo? É como uma espécie de irmandade. (Entrevistado 4, nascido em 1977)

A “fidelidade” ao estilo, denotada por meio da compra de material original, domínio da biografia da banda, conhecimento dos integrantes e suas trajetórias, exclusividade em termos de “som”, acompanhamento em relação ao que a banda faz e desenvolve, é sempre posta como um diferencial em relação a outros estilos musicais e seus adeptos. É fato que os headbangers, em generalidade, esboçam preocupação em manter um domínio razoável sobre a história, origem, discografia, membros e particularidades das bandas que mais curtem. Por exemplo, dificilmente alguém que seja fã de uma banda de forró, pagode, samba, sertanejo ou outro estilo tido como “de massa” saberia nominar membros de uma determinada banda ou grupo, para além do(s) seu(s) vocalista(s). No heavy metal isso é relativamente comum. Faz parte do repertório dos headbangers esse conhecimento. Ou seja, essa é uma particularidade que o heavy metal apresenta. No heavy metal, tal como outros estilos, o vocalista, frontman da banda, tende a se destacar mais em detrimento do todo, porém, isso não implica desconhecimento ou eclipse de outros membros da banda. Todos os integrantes têm sua parcela de visibilidade e relevância.

Para mim, é mais que só a música, porque além de ser música, é uma identidade, um lugar para pertencer. Diferente de outros estilos musicais, a gente que escuta heavy metal, pelo menos a maioria, gosta de maneira tão apaixonada que cria uma irmandade com os outros que escutam também. Foi uma das coisas que mais me chamou a atenção na cultura do metal, que eu ganhei logo de cara alguns dos meus melhores amigos.

Não obstante, para “além da música”, vemos aqui já uma referência direta a uma ideia de “pertencimento”, “um lugar para pertencer”, bem como referência clara aos círculos de sociabilidade erigidos a partir da música.

A fala a seguir do entrevistado 1 aponta para o fato de que, atualmente, na perspectiva dele, a identificação com a música já justificaria a alcunha “headbanger”, diferentemente de outras épocas.

Eu acho que, hoje em dia, não precisa ser tanto assim. Porque só o fato de você se identificar com a música e procurar conhecer as 70

bandas, você, já automaticamente, está ligado a esse tipo de música. Não é preciso andar com camisa de banda, tatuagem. Não quer dizer que você seja um headbanger autêntico. Não existe mais isso hoje. [...] Antes, existia. Porque todo mundo andava. Para você identificar um cara que curtia metal, antes, estava todo na indumentária. Não importava a hora, estava com camisa de banda, calça preta, coturno, essas coisas. Hoje, não importa tanto. Você encontra um cara “nada a ver” e o cara tem uma puta coleção de CD, DVD. E só curte rock, hard, heavy, essas coisas. Não importa muito hoje. (Entrevistado 1)

Sob a batuta de outra fala, percebemos claramente essa “viga de sociabilidade” que é erguida entre a tribo headbanger;

Cara, no fim dos anos 1980, o preconceito contra quem curtia heavy metal e se vestia de preto, ia a shows, etc, era muito maior que hoje. Éramos todos estigmatizados, associados à marginalidade e ao mal. Isso, por outro lado, criava um laço ainda mais forte entre quem curtia, porque era como se só tivéssemos a nós mesmos. Então, todo mundo tinha esse sentimento de transgressão, de liberdade, não existia – ou não se percebia como hoje – essa onda conservadora dentro do próprio metal. O metal não pode ser conservador, porque o metal já nasce transgressor, subversivo, exatamente para romper com esse conservadorismo. Aí, hoje, só o que tem é headbanger conservador. Incoerente demais. (Entrevistado 1)

O conservadorismo dentro do heavy metal, a ideia de “pureza”, de “essência”, vez por outra rendem conflituosos debates entre os adeptos do estilo. Há, como exposto anteriormente, uma certa resistência em relação àquilo que, necessariamente, não faria parte do “cânone” heavy metal. O processo de inserção e acesso ao heavy metal, por exemplo, parece não ser tão simples e direto, já que reiteradas vezes percebe-se um ranço preconceituoso que traz certas contradições para o heavy metal, uma vez que em sua matriz se mostra presente um certo ideal de liberdade, de livre manifestação, mas, concomitantemente, por outro viés, esboça um engessamento em relação à determinadas posturas e práticas.

Agora, o heavy metal tem a questão da tradição, e tudo o que é tradicional você sabe que é enraizado e complicado. Mas, eu acho que o heavy metal abrange de certa forma tanta coisa que se a gente for aqui fazer uma relação de heavy metal com literatura, heavy metal com estilos nacionais, de cada país, nós temos aí o Orphaned Land, o próprio Angra, Sepultura. Ao mesmo tempo em que ele é restringente, que ele restringe, que ele limita aquela história tradicional, ele também amplia, ele lhe dá a possibilidade de adicionar os elementos da sua cultura, aquela cultura que é de certa forma quase que intocável. [...] Ser headbanger é curtir heavy metal. Eu acho que eu acho que é quase impossível escapar desse radicalismo. Nós mesmos uma hora ou outra 71

já fomos radicais. Eu já fui muito radical. E eu tenho certeza que todos aqui já foram em determinado momento. (Entrevistado 5)

Embora haja nesse depoimento uma alusão a bandas que utilizam elementos de “fora” do heavy metal em sua composição, no sentido, nesse caso, de valorar a atitude e criatividade dessas bandas, essa mesma “criatividade” pode ser utilizada como elemento-base para macular a banda no cenário heavy metal, na medida em que a ideia de “misturar elementos” não é bem vista por parte dos headbangers. O próprio Sepultura é constantemente criticado por parcerias consideradas no mínimo “suspeitas”, ou por inserir elementos e batidas em suas músicas não comuns ao metal.

Para os headbangers, o estilo se diferencia de outros estilos musicais não apenas pelo “industriadadeiro” que é empregado ali, mas igualmente por uma fidelidade que se mostra coesa e significativa.

Eu acho que o Heavy Metal se diferencia porque o fato de ele gerar toda essa paixão, que é o que a gente tem de ser headbanger. Isso gera todo um entendimento por trás do estilo. Você não tem, por exemplo - sem preconceito - mas você não chega na livraria e tem um livro sobre a história do Sertanejo, por exemplo. Mas mesmo assim, a música em si, qualquer música merece estudo. O Heavy Metal, pelo contrário, eles estudam a diferença de sons. O que diferencia é justamente isso, o fato de gerar todo esse estudo em cima do Metal, da galera se apaixonar, de entender tudo que acontece, isso já o torna diferente. Não é porque eu gosto de Metal, mas eu vejo a música como um grande globo e 80% dele é o Metal, porque os outros estilos não têm muito estudo e estão comprimidos ali em um canto, excluindo a música clássica, que é a que tem mais estudo de todos, mas nesses estilos contemporâneos. É isso que, basicamente, diferencia. (Entrevistado 2, nascido em 1988)

É um estilo que você vê que as pessoas são mais verdadeiras, fieis à cultura, procuram conhecer mais, ver seus amigos. Fazem as rodas de bandas, formam banda, fazem fanzines, resenham para revistas. Hoje em dia, você já vê um profissional que é design, fotógrafo, que faz capa de CD. São todos ligados à mesma família. Então, hoje em dia, temos uma família muito grande. Inclusive, com internet, você tem maior contato até com o pessoal das bandas que você manda uma mensagem. E o cara, na mesma hora, vem e responde se estiver online. Quer dizer, a ligação sempre é maior nesse estilo. (Entrevistado 1, nascido em 1976)

Em todos os discursos e justificativas, a “fidelidade” ao estilo é sempre arrolada para subsidiar as falas. Do mesmo modo, a proximidade entre amigos, a rede de sociabilidade que é formada é sempre também mencionada. 72

Para quem curte heavy metal nem tudo é simples. Embora o preconceito venha se dissipando com o tempo, por razões já supracitadas alhures, ainda há os olhares “tortos” e de aversão ao estilo, todavia isso nem sempre fique caracterizado.

Quando eu comecei passei por situações bem difíceis em casa, principalmente, porque meus pais associavam o rock e o heavy metal à marginalidade e a coisas negativas, obscuras. Foi todo um processo romper com essa visão preconceituosa deles. Hoje, tanto faz eu ouvir, por exemplo, Zé Ramalho ou uma banda de death metal. Eles não só não se importam mais como apoiam e defendem até. Mas, foi um processo longo e não muito fácil, principalmente para eles. Isso tudo, claro, está relacionado a uma imagem negativa que as pessoas têm do metal e do rock. (Entrevistado 11, nascido em 1984)

Quando eu comecei a curtir eu andava muito de preto e tal. E sentia mesmo os olhares de aversão na rua. As pessoas são preconceituosas. Hoje, já mudou muito, mas ainda existe preconceito contra quem curte heavy metal. (Entrevistado 10, nascido em 1987)

Dentro de casa teve aquele primeiro baque, principalmente com o meu pai, que ficou meio assim, mas depois ele foi me entendendo e aceitando, já minha mãe entendeu logo de cara e foi tranquilo. Mas não teve nenhuma dificuldade a mais em família, só que eu notava, principalmente quando estávamos começando, a minha mãe, principalmente, quando comentava com algum amigo ou amiga dela e dizia que era “uma fase”. (Entrevistado 2, nascido em 1988)

Por outro lado, essa postura preconceituosa não chega ou ofende a todos os headbangers, como pode ser conferido conforme segue:

Para mim, do meu lado, eu nunca tive problema. Nem em casa, trabalho, nem de forma geral, sociedade, nada. Porque nunca houve, realmente, nenhum lado de preconceito. Mas, realmente, sabemos que existe. Depois que as pessoas nos conhecem, veem que não é o que é reportado por muitas pessoas que não nos conhecem. Porque [as pessoas] tem uma visão totalmente distorcida. Porque, às vezes, pessoas não nos conhecem. E falam: “porque esse cara curte rock”. E aí, fala uma bobagem. Não é bem assim. (Entrevistado 01, nascido em 1976)

A primeira coisa que a pessoa alguém fazia quando sabia [que gostava de heavy metal] era aquela cara de como se você estivesse se drogando, fazendo um ritual com sacrifício humano, alguma coisa como se fosse proibido escutar isso, e falavam que era uma fase, que iria passar. Então rolava muito esse preconceito no começo, como se fosse algo errado, então o fato de você não estar no meio do Forró, tomando whisky e essas “viadagens” você está errado, porque você está indo para um show de Metal, onde só tem homem, teoricamente, porque boa parte do público é masculino, mulher é uma espécie rara. (Entrevistado 6, nascido em 1977) 73

Mas, há aqueles que sofrem isso de modo mais intenso e direto, como fica expresso na fala derradeira, sendo violentado simbolicamente pelo preconceito e pelos olhares afoitos por fulminarem aqueles que se mostram diferente dos modelos convencionais.

No que concerne às relações estabelecidas e aos vínculos de sociabilidade, os depoimentos apontam para uma substantiva ligação entre os headbangers a partir da mediação do heavy metal.

Nisso aí não tenho dúvida. Eu acho que a amizade que é formada nesse meio é mais forte. Eu acho que todos nós que curtimos o mesmo som, nós somos mais do que amigos, é como se fosse uma família. [...] Eu lembro que quando a gente saía daqui de Mossoró ou de Natal para ir assistir um show em, por exemplo, Fortaleza, ou Recife, ou Maceió, você tinha contato com pessoal de cada cidade dessa e você tem amigos aonde você passa. E amigo de ficar hospedado na casa do cara lá e ir para show junto, de ele receber você na sua casa, de você sentar na mesa com ele para uma refeição. (Entrevistado 4, nascido em 1977)

O heavy metal, portanto, não apenas media como reitera as amizades, criando uma espécie de irmandade. Indagados sobre o círculo de amizades, percebe-se que boa parte dele é erigido a partir da música e, mais especificamente, do metal.

Sim. Hoje, praticamente 90% dos meus amigos são todos, desde que eu comecei a curtir até hoje, outros novos que surgiram esses anos todos. E todos são muito amigos. Estão sempre presentes na minha família, que conhece eles também. Conheço a família do pessoal. Outros se tornaram clientes. Mas já eram amigos antes. E assim vai. Outros que eram clientes, se tornaram amigos. E assim continua a cadeia, sempre evoluindo, chegando mais. E os mais antigos ficando mais amigos ainda, como sempre.

Sobre a necessidade de afirmação diante dos pares e de reconhecimento, há toda uma estrada que precisa ser percorrida, trilhada. De início, é possível que o headbanger neófito encontre algumas barreiras e tenho que “provar” sua “legitimidade” enquanto adepto do estilo. Isso pode incluir mostrar domínio quanto ao heavy metal enquanto estilo, sua linha histórica, além de dominar principais nomes do estilo, por exemplo.

Nesse começo, em qualquer canto que você chega como novato você tenta se afirmar para parecer bacana e ser aceito pelo grupo, mas isso 74

aí eu acho que é da Sociologia isso, né? Você quer ser aceito por aquele grupo. Então eu acho que boa parte desse extremismo inicial é meio que isso. E depois quando nós tivemos contato, vimos que não era nada disso, o pessoal é super gente boa, não tem nada desse negócio de excluir você, você vai começando a abrir mais a cabeça e a definir mais o seu estilo. Então o que muda você mais é isso, você vai ver do que você realmente gosta, vai escutando novos sons, abrindo mais a cabeça e conhecendo mais o Metal, eu sou a prova viva disso, porque eu só escutava Heavy Metal, aquele tradicional, Hammerfall, e hoje em dia eu escuto vários estilos porque eu fui abrindo a minha cabeça para isso e fui conhecendo mais afundo o Metal e entendendo o que é, de fato, e hoje escuto mais coisas. Acho que é a questão do amadurecimento. (Entrevistado 2)

Enquanto grupo, ou tribo, esses indivíduos parecem compor o que Maffesoli, sociólogo francês, denominou neotribalismo. Maffesoli enxerga o individualismo sendo substituído pela necessidade de identificação com um grupo, com uma tribo. Não se trata, no entanto, de uma nova cultura, afirma o sociólogo, mas de sua metamorfose como aspecto decisivo e factual. Desse modo, na perspectiva de Giddens (1991) é possível dizer que a partir da concepção que determinada época faz da alteridade é que se pode determinar a forma essencial de uma dada sociedade. Destarte, Maffesoli (2004) comunica que ao lado da existência de uma sensação coletiva, assistimos ao desenvolvimento de uma “lógica de rede”.

De agora em diante, parece-me que o indivíduo deve dar o lugar a outra coisa. O termo resta ainda a ser encontrado. Da minha parte, eu proponho aquele de “pessoa” no sentido etimológico do termo (persona). Isso significa que somos confrontados às “máscaras” e que nós temos menos uma identidade do que identificações. A aquisição da identidade era até agora o ápice da educação, o apogeu da socialização. (MAFFESOLI, 2004, p. 28).

Porém, para Maffesoli (2004), assistimos agora a passagem da identidade para as identificações múltiplas, passagem capaz de fundar o renascimento de formas tribais de existência. O tribalismo seria, assim, uma metáfora profícua para tentar, ao menos provisoriamente, mostrar a saturação do individualismo e sua derrocada diante do ressurgimento dos microconjuntos e de formas comunitárias.

Frequentemente, temos o hábito de insistir, nos dias de hoje, no indivíduo ou no individualismo. De fato, agora prevalecem as “afinidades eletivas” que não são mais o feito de alguns, mas o feito de 75

um grande número de pessoas, constituindo-se em tribos no seio das nossas instituições. (MAFFESOLI, 2004, p. 28)

O autor (op. cit.) complementa o raciocínio inferindo que diferentemente do contrato que manifesta aspecto racional e voluntário vem se constituindo uma outra maneira de ser e, por conseguinte, uma outra forma de socialidade.

Essa outra maneira de ser vai reinvestir os elementos que a análise social tinha deixado de lado: o emocional e o afetual. O afetual e o emocional não são unicamente da ordem do emotivo ou do afetivo, mas um clima específico baseado nos processos de contaminação, no fato de que toda uma série de “transes”, às vezes macroscópicos, frequentemente microscópicos, constitui o terreno da vida social.

Lemos (1997, s/p) inscreve que o tribalismo se refere a uma vontade de “estar junto”, onde o mais importante é o compartilhamento de emoções e sentimentos em comum. Para ele

Isso vai formar o que Maffesoli identifica como uma “cultura do sentimento”, formada por relações tácteis, por formas coletivas de empatia. Essa cultura do sentimento não se inscreve mais em nenhuma finalidade, tendo como única preocupação, o presente vivido coletivamente. [...] Maffesoli propõe analisar esta nova “ambiance” comunitária pós-moderna a partir do que ele chama de “paradigma estético”. Para Maffesoli, a socialidade tribal, gregária e empática contemporânea, que se apoia sobre as multi-personalidades (as máscaras do teatro cotidiano), age a partir de uma ética da estética e não a partir de uma moral universal.

A sociedade, grupo ou tribo, elabora a partir daí um ethos, uma forma de ser, um modo de existir.

4.1 Sobre a experiência dos shows: significados e perspectivas

Se o público headbanger é peça central na engrenagem que move as cenas, os shows de heavy metal são a máquina motriz, e lócus onde as identidades são reiteradas e expressas. Para fins dessa pesquisa, como apontado anteriormente, dois shows foram observados, sendo eles: 23º Festival Rockstage, realizado no dia 19 de dezembro de 2015, com quatro bandas: Necrohunter (PB), Matakabra (PE), Albor (RN) e Revanger (RN) e 9º Festival Valhalla, realizado dia 08 de abril de 2016, com três bandas: Pathologic Noise 76

(MG), New Band (PB) e Vamonos Pest (RN). Ambos os shows foram realizados no Moto Clube Carcarás do Asfalto, que, nos últimos 15 anos, abriga shows alternativos, apoiando as cenas locais do rock, metal, reggae e outros estilos alternativos. Os dois festivais aqui abordados se tratam de dois tradicionais eventos na cidade de Mossoró. O Rockstage foi realizado pela primeira vez em 2003 e, no momento dessa pesquisa, realizou sua 23ª edição, sendo promovido pela Stormblast Produções. Já o Festival Valhalla, à feita em sua 9ª edição, é um evento comemorativo, alusivo ao Valhalla Rock Bar, tradicional bar temático e ponto de encontro de headbangers de Mossoró e cidades circunvizinhas.

O êxtase coletivo dos shows de metal: sociabilidade e imersão

Pouco mais de 22h. Os presentes, cerca de 100 pessoas, denotam claramente ansiedade e expectativa. Os olhos parecem reverberar, da mesma forma que “brilha a chama do Metal em nossos corações”, alguém sensibiliza. Estrutura pronta. Luzes são apagadas. Headbangers14, vestidos de preto ou não, erguem os braços para uma vez mais empunharem, simbolicamente, a bandeira do Metal. Inicia-se mais uma noite de louvor ao heavy metal, um estilo de música singular, nascido no efervescente decênio de 1960, nos seus últimos anos, mais especificamente, como um movimento de contracultura. Musicalmente, em sua gênese, com bastante influência do rock, do blues e até mesmo da música clássica e erudita. Quando as luzes são acesas novamente os primeiros acordes de guitarra são entoados para deleite dos metalheads15. O pub torna-se pequeno para a euforia dos entusiastas do “metal”. Exímios batedores de cabeça, fazendo jus ao termo “headbanger”, sacodem seus pescoços, fecham os olhos, e de pelos arrepiados, abraçados e de coração em ritmo célere, absorvem toda

14 Termo usado para designar um fã do estilo musical heavy metal ou ainda qualquer uma de suas variantes, cuja tradução pode ser entendida como “batedor de cabeça”, uma alusão ao modo como os headbangers costumam manifestar sua performance corporal. Evitamos usar o termo “metaleiro”, em virtude de sua conotação um tanto quanto pejorativa entre os apreciadores do estilo. 15 Termo análogo a headbanger. 77 aquela atmosfera, de puro êxtase e significado. Os “stage diving”16, movidos a um thrash metal17 pujante, também passam a fazer parte do cenário18. Cultura, expressão, sentimentos são disseminados por meio daquela música pesada, por corpos pulsantes e mentes ativas.

Essa é apenas uma sintética e genérica descrição de ambos os shows de heavy metal aqui elencados, onde os indivíduos, como grupo, tornam-se uno, unidade, um amálgama, onde corpo e alma misturam-se numa complexa teia de significados, e embriagam-se, absortos, com a energia do ambiente. Foi em meio a simbologias e ritos, que buscamos exercer o olhar treinado sobre esse fenômeno tão curioso e singular.

Por falar em stage diving, dentro de um show de heavy metal ele tem importância ímpar na compreensão, por exemplo, do nível de autoridade e prestígio de um indivíduo dentro do grupo. Quanto mais pessoas se posicionarem para “aparar o voo”, maior parece ser o grau de sociabilidade e prestígio desse indivíduo perante o restante do grupo. O fenômeno pode também se referir à autoridade e ao status que o sujeito usufrui dentro do grupo no qual está imerso. O show é o suprassumo, o alicerce das sociabilidades desenvolvidas entre os headbangers. É a forma como esses indivíduos reiteram os laços. Parte disso advêm do êxtase coletivo que os shows proporcionam. A imersão, o balançar dos pescoços, os abraços que se dão quando as bandas executam músicas conhecidas ou clássicas, as lágrimas, a emoção, toda essa atmosfera compõem um show de heavy metal.

Os shows servem tanto para as bandas divulgarem o seu material, para a gente conhecer coisa nova, como também para fazer novas amizades, lógico, e para reunir os antigos amigos. É o momento que a gente tem para tomar uma cerveja junto, para curtir o momento. E para as bandas divulgarem o seu material, né? (Entrevistado 04, nascido em 1977)

16 Sinteticamente, pode ser definido como o ato de mergulhar do palco sobre a plateia dos shows. 17 O thrash metal é uma subdivisão do heavy metal conhecida por uma maior velocidade e maior peso do que seus antecessores. Suas origens remontam ao fim da década de 1970 e começo da década de 1980, quando um grande número de bandas começou a incorporar elementos da NWOBHM com a nova música hardcore/punk que surgia, criando assim um novo estilo. Este gênero é muito mais agressivo do que o speed metal, considerado seu predecessor. As "quatro grandes" (conhecidas como big four) bandas do thrash metal são Anthrax, Megadeth, Metallica e Slayer, que estão entre os criadores do estilo e popularizaram o gênero no começo da década de 1980.

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A forma como se “curte” o show vai mudando com o decorrer do tempo e a idade, inclusive, conquanto a perspectiva desse momento como celebração máxima continue inalterada.

O show, para mim, é uma visão romântica de ser a celebração máxima da música, do metal. Tudo o que está em torno, como você acessar um site para ler uma resenha, você comprar um CD na loja, tudo que você faz tem o objetivo de o show acontecer. Então ele é uma celebração máxima de tudo. Antes, dá para aplicar aquele gráfico da idade da pessoa, aquela curva crescente de distância do palco relacionada a idade, no primeiro show nós ficávamos no pé do palco, participávamos das rodas e tudo mais, como começamos com 13, 15 anos, então depois começamos a ficar mais distantes e hoje em dia nós ficamos lá no fundo, mesmo, nos contentamos com pouco. Mas o que mudou, além disso, no começo nós temos aquela visão empolgada, ficávamos no meio; então só o fato de estarmos ali no meio já era uma coisa massa, perfeita. (Entrevistado 02, nascido em 1988)

4.2 Heavy Metal e as diferentes gerações: assimilação e consumo

Tendo em vista termos trabalhado com diferentes faixas etárias, compreendemos que cada uma dessas gerações, a priori, concebe a experiência musical de uma forma particular e a partir de suas referências socioculturais e temporais. Assim como no universo do trabalho, onde se percebem os maiores conflitos entre gerações, nas observações e entrevistas foi possível perceber o quão diferente pode ser a concepção de música e heavy metal para cada geração. Os avanços na tecnologia, atrelado aos trâmites da cibercultura, sobretudo, mas também os novos hábitos e valores, criam uma dimensão considerável entre as gerações. Inquiridos sobre as diferenças em termos de curtir, assimilar e vivenciar o metal entre a galera “das antigas” e a galera mais jovem, temos um panorama que mostra as diferenças entre as gerações, que esboçam perspectivas distintas nesse sentido.

Eu vejo, hoje em dia, porque a fase que nós começamos era o fim do que nós chamamos de “era antiga”19, pegamos o fim dela e o começo da “nova era”, ficamos na transição. Então eu vejo que a galera de antigamente dava muito mais valor à música, porque era mais difícil de conseguir, o cara tinha que pegar uma fita, tinha um programa da rádio,

19 O entrevistado se refere ao fim dos anos 1990. 79

na 96 – tinha até o programa, também, o Detonação – então a forma que tinha para conseguir música, muitas vezes o cara não tinha como pegar um CD, por exemplo, então ele tinha que escutar na rádio, gravar em casa, na fita e reproduzi-la para o outro e tal, então eu imagino que as pessoas valorizavam isso muito mais. Nós pegamos o começo da fase mp3, mas ainda era um mp3 com internet discada, então para você baixar demorava uns três dias e você dava valor àquela música que você conseguia, ainda que por mp3. (Entrevistado 2, nascido em 1988)

As distinções entre as gerações dizem respeito sobretudo a uma cosmovisão, a uma forma de se relacionar com a cena e com o próprio heavy metal. Quanto mais velho o headbanger, maiores certamente foram os óbices que teve que enfrentar como adepto do estilo. Isso porquanto tanto o acesso à material, como à informação sobre bandas e até mesmo o maior preconceito, foram “provas de resistência” e resiliência. É o que conceituamos outrora como o desenvolvimento de uma “ética da resistência”. Essas dificuldades, inclusive, ratificavam os laços, uma vez que, diante do fato de poucos possuírem material auditivo das bandas, havia uma necessidade de reunião constante. Os headbangers se reuniam, por exemplo, sobretudo até meados dos anos 80, geralmente na casa de algum “irmão do metal” para ouvirem uma obra nova, um disco novo, ou gravar uma fita k7. Alguns atravessavam a cidade inteira, de bicicleta, a pé, ou de outra forma, levando seu material para ser compartilhado. O “corpo a corpo”, a partilha, sempre mediados pela música, estreitavam os laços, uniam corações e mentes.

Quando eu comecei no final dos anos 80, no início dos 90, as coisas eram mais difíceis. A situação econômica do país era mais difícil. Então, para você conseguir um material, era bastante difícil. Você tinha de garimpar com os amigos que tinham um pouco mais de condições que um ou outro comprava LP. Então, quem não tinha condições, como eu e outros, gravávamos em fita. Que era mais barato gravar e comprar. Mesmo que comprávamos até de outras lojas, estados do Brasil, comprávamos. Porque não tínhamos condições. Então, a galera que veio do final dos anos 2000, a situação do país já estava melhor. Já tinha uma enxurrada de lançamento. Já era CD. E o preço no país estava bem acessível. Porque estava equiparado ao dólar. Então, a situação econômica do país contribuiu para o que o maior número de pessoas tivesse mais condições de comprar e usufruir de camisa, CD. Aquela coisa toda. Diferente da minha época que era mais difícil. E a galera, agora já de... digamos 2000 até 2015 já, é que tem um pouco mais de facilidade. Porque qualquer banda hoje, que você queira conhecer, não precisa chegar a uma pessoa e pedir para gravar. Você vai no seu computador em casa, no seu celular. Digita o nome da banda e conhece tudo sobre. Hoje é mais fácil você ser um conhecedor de música da forma digital. Porque tem tudo lá. Inclusive, para você ler. Tem documentários, livros. O cara só não conhece as bandas se não quiser. (Entrevistado 01, nascido em 1976) 80

Mesmo até meados dos anos 2000, quando a internet ainda não era realidade para todos e a conexão se dava de forma discada, por pulso telefônico, ainda não era simples acessar material virtualmente.

Você tinha que escolher a música que você iria baixar a dedo. Rolava essa valorização. Mas a galera de hoje em dia tem muita facilidade para conseguir qualquer coisa, qualquer uma banda lá do Japão lançou um CD, no outro dia está no Deezer e você pode escutar. E como é muito fácil não dá valor, foi essa a explicação que eu encontrei para explicar como está hoje. Porque antigamente quando tinha show, dava 300, 500 pessoas fácil... (Entrevistado 3, nascido em 1990)

Impera entre os entrevistados com mais de 25 anos a opinião de que a geração mais jovem, diante da imensa facilidade em obter material e descobrir novas bandas, “não dão valor” como deveriam e são mais voláteis, desapegados e sem compromisso com o estilo, o que explicaria em partes, segundo os relatos, a queda de público presente nos shows nos últimos anos.

Olha, realmente, na nossa época para você pegar um material novo a gente, digamos assim, ralava muito, porque quando a gente viajava para um show, um amigo nosso que conhecia uma banda nova que estava gravada numa fita cassete. (Entrevistado 6, nascido em 1977)

Nessa fala em específico há um elemento característico e muito presente “na seleção” pela qual um indivíduo se submetia no sentido de “ingressar” no grupo, como um headbanger. Uma espécie de peneira, de crivo, onde o sujeito era “testado” em termos de conhecimento, investigado, para ver se seria, após esse processo, “selecionado” ou preterido.

Aí, às vezes, engraçado, ele não queria passar o material para você porque dizia: “rapaz, esse cara não é digno dessa banda”. Existia realmente isso. Tinha muita dificuldade. (Entrevistado 6, nascido em 1977)

Ou seja, para os mais jovens, que conheceram o heavy metal há cerca de 4, 5 anos, a principal diferença entre as gerações está, como denota a fala acima, na forma como as pessoas, de modo geral, enxergavam os headbangers, a partir de um prisma de preconceito, intolerância e estereótipo. Insta apontar que o fácil acesso a músicas, bandas e uma gama de informação de toda sorte é outro efetivo diferencial. 81

Assim, eles vieram de um tempo diferente em que as coisas eram mais difíceis, hoje em dia a gente tem internet, tudo é dez milhões de vezes mais fácil com internet. (Entrevistado 09, nascido em 1996)

A gente, pessoal mais novo, não teve aquela cultura de sacar um som por uma tape, por um vinil, que era o único meio de chegar... para você escutar aquilo dali você tinha que pegar uma fita regravada, passada. A gente não teve esse contato, a gente teve a facilidade da internet. O lado bom dessa facilidade é você ter a música nas suas mãos. "Quero escutar essa banda", você vai lá e acha. (Entrevistado 06, nascido em 1997)

Inquirido sobre se houve mudanças no comportamento de consumidor de heavy metal, o entrevistado 04 nos diz que, com o tempo, a tendência é o aumento.

Olha, você consome mais material na medida em que você melhora o seu poder aquisitivo, né? Porque você tem que comprar o CD original. Lógico, eu compro mais material do que antes quando eu era adolescente porque antigamente a gente dependia muito de mesada dos pais. E eu meu lembro que quando eu recebia mesada quando morava em Natal, a primeira coisa que eu fazia era pegar o ônibus e ir pra Whiplash comprar disco lá. E comprava o que aquele dinheiro dava. E é diferente de hoje, a pessoa começa a trabalhar, ganhar mais, aí você tem mais acesso. Eu acho que é só isso mesmo, só em relação ao poder aquisitivo mesmo, que vai melhorando. (Entrevistado 04, nascido em 1977)

De toda sorte, essa não é apenas uma faceta da realidade. Outros headbangers, por outro lado, deixam de adquirir material e até de ir a shows por se concentrarem em outras prioridades, como família, filhos, trabalho e congenéricos. Isso ficou bastante evidente em algumas conversas informais com antigas figuras da cena local que já não são tão presentes hoje.

Em relação aos mais jovens, sobretudo aos sujeitos que conheceram e começaram a ouvir o heavy metal a partir do fim do primeiro decênio do século XXI, nota-se substantivas mudanças no consumo e assimilação do estilo, que passa agora a se centrar em plataformas virtuais. O próprio YouTube20, por ilustração, trabalha com sugestões de estilos afins baseado no que você está ouvindo, o que passa a ser grande fonte de descoberta de novas bandas. Todo o processo de assimilação e consumo foi amplamente disseminado, facilitado pelas novas tecnologias de informação e comunicação e pela internet.

20 Maior portal de compartilhamento de vídeos da internet. 82

A galera nova consome menos, o consumo é internet. Mas, todo mês depois de receber o salário eu compro um cd ou mais e camisa de metal, principalmente de coisas undergrounds. (Entrevistado 09, nascido em 1996)

Enquanto os headbangers “mais antigos” expressam, em generalidade, continuar comprando material, os mais jovens admitem que o consumo se dá muito mais na esfera da virtualidade, através das plataformas de streaming e internet.

Eu compro cd de banda altamente underground, com o intuito de apoiar. (Entrevistado 06, nascido em 1997)

Eu compro de banda underground para colecionar e por questão de querer apoiar as bandas. (Entrevistado 06, nascido em 1997)

As exceções parecem surgir quando se trata de bandas mais undergrounds, ou seja, aquelas bandas que ainda não encontram ressonância entre os nomes de sucesso ou considerados mainstream. Geralmente, esse tipo de material é adquirido junto a própria banda, em shows e exibições de metal. É um consumo que vem acompanhado de uma consciência e reflexividade. Um material adquirido como forma de dar suporte, apoio, às bandas e fomentar a cena. Com efeito, por outro viés, o consumo de “material underground” é aventado, amiúde, no sentido de reafirmar as identidades e de legitimar seu lugar enquanto headbanger, enquanto “apoiador” do estilo.

5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES DERRADEIRAS

Enquanto arte, a música, certamente, ocupa espaço significativo na vida e cotidiano das pessoas, tocando-as, entretendo-as, contemplando-as. Logo, tamanho apelo não se dá a esmo, mas sim porquanto a música está presente em todas as etapas de vida dos sujeitos, desde a mais tenra infância, como elemento socializador, inclusive. O heavy metal, enquanto manifestação artístico-musical, surge nessa seara como um estilo particular, carregado de 83 nuances e matizes cujas cores são de difícil percepção, caso não haja proximidade com o estilo. Caracterizado seu surgimento no fim dos anos 1960, quase 50 anos depois o estilo não apenas mudou esteticamente, musicalmente, mas também em termos de assimilação e consumo. A despeito de muitas vezes se pretender ou ser percebido como um estilo de contracultura, o metal está dentro do contexto da indústria cultural e fonográfica de massa. Uma indústria cultural que se apresenta com nova roupagem, denotando um “tempo novo” tangente e que se apropria não apenas da midiatização e dos aparelhos de comunicação, mas sobretudo do ciberespaço, o que também oportuniza, frisamos, nossas formas de produção e consumo musical, que ocorre de maneira transversal e vertical, se empoderando e se reinventando, ao passo que impõe formas heterogêneas e plurais nessa contenda por legitimidade econômica e cultural. O heavy metal depende das redes que são tecidas entre os headbangers para sua própria reprodução, uma vez não ser um estilo de grande repercussão na mídia de massa. Por outro lado, não há uma dependência dessa rede quando se trata, hodiernamente, de acessar a música, em todas as suas possibilidades de expressão e estilos. Isso porque o desenvolvimento dos adventos tecnológicos, das plataformas de streaming e de downloads, apresentou um crescimento vertiginoso, ofertando novas facilidades e experiências. Na esteira das sociabilidades que são tecidas entre os headbangers, “os processos de atração e repulsão se farão por escolha”, conforme infere Maffesoli (2004). Consoante o autor francês, assistimos um processo que ele denomina de “socialidade eletiva”, percebendo que, embora este mecanismo sempre tenha existido, no que diz respeito à modernidade, ele foi temperado pela restrição do político que faz intervir o compromisso e a finalidade, ultrapassando de muito os interesses particulares e o localismo. O estilo, portanto, se alimenta do neotribalismo apontado por Maffesoli (2004), sempre a partir da mediação da música e de outros pares.

O heavy metal, destarte, acaba por complementar uma certa ótica e postura diante da sociedade e do mundo, atendendo inquietações e anseios. Há a prevalência da sociabilidade e das amizades como ponte para o estilo. Estando as sociabilidades, os laços, a amizade, no centro desse processo, em se tratando 84 do acesso ao heavy metal não parece haver mudanças significativas, independentemente da idade, conforme as falas e discursos dos sujeitos entrevistados, no que se refere à forma como esses indivíduos acessam o heavy metal e se consolidam no estilo. Essas formas de associações entre os headbangers costumam, igualmente, levar em consideração elementos identificadores e de distinção, estabelecendo parâmetros e nortes e guiando socialidades.

Não obstante, para “além da música”, busca-se por meio da associação grupal, encontrar um lugar que seja “seu”, onde possa se sentir parte integrante. Ou seja, é clara a ideia de “pertencimento”, a procura por “um lugar para pertencer”. O engendrar desse processo, contudo, é permeado por dificuldades e aprovações, já que reiteradas vezes, certas contradições e um ranço preconceituoso atentam contra a matriz heavy metal, que traz em sua gênese um ideário de liberdade, livre manifestações, subversão e o confronto diante do status quo. Ainda nesse direcionamento, esboça certo engessamento em relação à determinadas posturas, comportamento e práticas. Para os headbangers o estilo se diferencia de outros estilos musicais não apenas pelo “sentimento verdadeiro” que é empregado ali, mas igualmente por uma “fidelidade” ao estilo que se mostra coerente e significativa. Mesmo em um contexto que tem como estilo musical hegemônico o forró eletrônico, o heavy metal consegue estabelecer seu espaço e fomentar a formulação de grupos que se associam livremente em torno da música. Sendo assim, o heavy metal, portanto, não apenas media como reitera as amizades, criando uma espécie de “irmandade metal”.

As identidades headbangers se assentam em trajetórias vivenciadas e marcada por aprovações, preconceitos óbices, sanções sociais e resiliências. Uma “ética da resistência”, reiterada pelos laços de sociabilidade e o sentimento de pertença. Essas identidades se aproximam em avançado grau do conceito de “identidade de resistência” presente em Castells (1999), ou seja, aquelas criadas por atores que se encontram sob a lógica da dominação, em condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas, criando, a partir disso, espaços e movimentos de resistência e sobrevivência, expressando como pilares princípios opostos ou distintos do status quo. Os shows, por seu tempo, são elementos 85 centrais e operam como plataforma para uma espécie de catarse coletiva, um fenômeno que ratifica as identidades e o sentimento de comunidade.

Além de perpassar as formas como se dão os itinerários e construções dos processos identitários entre os headbangers de Mossoró/RN, perfazendo inclusive uma espécie de “sobrevoo” no que se refere aos conceitos de identidade, buscamos equacionar, outrossim, como esses indivíduos elaboram seus mecanismos de sociabilidade, como tecem seus relacionamentos e se constituem enquanto “tribo”. Há toda uma esfera simbólica, que se manifesta no âmbito dos signos e que assegura certa “unidade” em termos de uma identidade grupal, enquanto indivíduos headbangers, podendo ser percebida desde as vestimentas até o compartilhamento do êxtase coletivo dos shows, das paixões por bandas e músicos e de alguma perspectiva de mundo e de relacionamento com os pares, com a música, com a arte, com a constituição da subjetividade, por meio de uma ética da resistência. Essas identidades são, diga-se, dinâmicas, mutáveis, influenciadas por contextos e situações. Jamais definitivas ou cabais. Percebemos, igualmente, que a sociabilidade entre os headbangers se aproxima do modelo simmeliano de interação e sociabilidade. Uma sociabilidade entendida como arquétipo lúdico de socialização, sem propósitos ou interesses específicos, que não a interação em si mesma, vivenciada em espécies de jogos, atuando como se todos “fossem iguais”. É preciso sublinhar, por oportuno, que tal conceito aqui é utilizado como um tipo ideal weberiano. Tal modo de associação se mostra de forma mais evidente entre os headbangers nos shows, lócus e eventos destinados ao metal. Relevante sublinhar, por outro viés, que isso não significa que não existam estruturas hierárquicas e escalas de prestígio ou status, por exemplo. Como pano de fundo utilizamos também a concepção de “cena”, o que nos auxiliou a pensar o heavy metal enquanto fenômeno social. A ideia de cena foi pensada buscando abarcar uma série de práticas sociais, econômicas, tecnológicas e estéticas ligadas às formas como a música se faz presente nos espaços urbanos. O heavy metal se constitui em meio a culturas híbridas e em um mundo globalizado, em constante ebulição e mudanças. A ideia aqui, assim, foi esboçar uma leitura desse cenário, obviamente não de forma cabal ou definitiva, porém, ao menos, como ponto de partida para outras aventuras e pesquisas nessa temática. 86

Dessa feita, buscamos apresentar ponderações e alguns resultados, cientes, entrementes, que o trabalho apresenta lacunas e arestas, o que nos mostra não apenas o quão desafiador foi esse empreendimento, mas sobremaneira a possibilidade de estender e continuar essa pesquisa ou desdobra-la em outros objetivos, caminhos e pontos de vista. Empreender esse estudo a partir da música, como elemento mediador, como músculo que pulsa, como via de arrebatamento e transformação, tornou capaz conhecer uma faceta desses indivíduos, a forma como estruturam seu mundo e suas relações sociais, na medida em que suas vidas, suas vivências, trajetórias e experiências estão totalmente engastadas à experiência musical.

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APÊNDICE

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APÊNDICE A

ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA

Dados primários:

Data de Nascimento:

1. Como se deu o primeiro contato com o heavy metal? A partir de quem ou de que situação? 2. O que é e o que significa o heavy metal na sua vida? 3. Para você, o que é ser headbanger e o que é necessário para se ser um? 4. O que diferencia o heavy metal de outros estilos musicais? 5. Quais as principais dificuldades que você encontrou no seu percurso enquanto headbanger (dificuldades em casa, preconceito, estigmas, etc)? 6. Seus principais amigos e/ou seus principais círculos de amizade tem ligação com o universo metal local? 7. O que você considera ser uma “cena”? Temos uma “cena metal” em Mossoró? 8. Sobre a experiência dos shows: o que eles significam para você? 9. Você acha que há diferenças entre a galera “das antigas” e a galera jovem em termos de curtir, assimilar e vivenciar o metal? 10. Quais os seus principais hábitos de consumo em relação ao heavy metal? Você compra material original (cds, vinis, dvds, camisas e análogos)? Se sim, onde? Como que frequência? 11. Você baixa material pela internet ou costuma utilizar serviços de streaming? Com que frequência? 95

12. Você conhece algum poser ou headbanger “de fachada”? O que o caracteriza?