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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

VALTER GOMES DIAS JUNIOR

POESIA E IDENTIDADE EM CASTRO ALVES

JOÃO PESSOA

2010

VALTER GOMES DIAS JUNIOR

POESIA E IDENTIDADE EM CASTRO ALVES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal da Paraíba, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Letras, na área de concentração Literatura e Cultura.

ORIENTADORA: Profa. Dra. Zélia Monteiro Bora

JOÃO PESSOA

2010

D541p Dias Júnior, Valter Gomes.

Poesia e identidade em Castro Alves / Valter

Gomes Dias Júnior.- João Pessoa, 2013.

217f.

Orientadora: Zélia Monteiro Bora

Dissertação (Mestrado) – UFPB/CCHLA

1. Castro Alves, Antônio Frederico de, 1847-

1871 - crítica e interpretação. 2. Literatura brasileira

- crítica e interpretação. 3. Literatura e cultura. 4.

Poemas abolicionistas. 5. Identidade nacional.

UFPB/BC CDU:

869.0(81)(043)

VALTER GOMES DIAS JUNIOR

POESIA E IDENTIDADE EM CASTRO ALVES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal da Paraíba, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Letras, na área de concentração Literatura e Cultura.

BANCA EXAMINADORA

______Profa. Dra. Zélia Monteiro Bora – UFPB (Orientadora)

______Profa. Dra. Maria Bernardete Nóbrega – UFPB

______Profa. Dra. Sueli Meira Liebig – UEPB

______Prof. Dr. Expedito Ferraz Júnior – UFPB (Suplente)

À minha mãe, Tereza Maria Mesquita Quirino, num gesto de carinho, por sua presença amável e fortificante, em cada momento de minha vida.

Às minhas tias-avós, Maria da Glória Correia Lima de Mesquita (in memorian) e Maria da Conceição Correia de Lima de Mesquita (in memorian), fontes incansáveis de estímulo ao avanço de todas as minhas perspectivas.

AGRADECIMENTOS

 A Deus – razão maior de minha existência;

 À minha querida orientadora, Profa. Dra. Zélia Monteiro Bora, minha grande mestra, pela partilha de conhecimentos, pela paciência, pela atenção e, sobretudo, pela prestimosa dedicação. Meu estimado e fervoroso agradecimento;

 À Profª. Danielle Rodrigues Pereira Veloso, minha grande amiga, pelo cuidadoso zelo na correção desta dissertação e por sua inigualável solidariedade;

 À Hilda Cordeiro, minha grande e inseparável amiga do curso de Pós-Graduação em Letras, por ter sempre acompanhado meus passos nessa caminhada, pelos conselhos, pelo apoio, pelas fortes palavras de autoestima, e por juntos termos construído uma história de solidariedade e fraternidade, meu inesquecível agradecimento.

RESUMO

A Independência do Brasil em 1822 serviu de estímulo à recente nação a (re)definir os traços constitutivos do novo país, quanto à raça e à cultura, especificamente, à sua identidade nacional. No panorama literário, o Romantismo Brasileiro foi o movimento que fortificou esse ideal de nacionalismo erigindo símbolos que edificariam a emergente nação. É nesse panorama que o poeta baiano Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871), jovem estudante de Direito, desenvolve através de sua produção poética lírico-dramática problemas sociais da nação em busca de uma identidade nacional. A crítica sobre a sua produção é unânime em considerá-lo como um dos mais nacionalistas românticos. Caracterizado como o poeta dos escravos, a sua produção engajada é melhor ressaltada através dos livros A Cachoeira de Paulo Afonso (1876) e Os escravos (1883). Uma leitura aprofundada de seus poemas abolicionistas revela, além de uma cuidadosa elaboração formal, através de um equilíbrio entre os gêneros lírico, dramático e trágico, uma visão sobre a condição do escravo enquanto sujeito. Sua visão pode ser considerada como exclusiva dentro da Literatura Brasileira do século XIX, uma vez que predomina a visão do negro como sujeito apesar dos condicionamentos que inspiraram a grande produção abolicionista escrita por brancos.

Palavras-chave: Castro Alves – negro – identidade nacional – poemas abolicionistas – trágico – lírico – dramático – subjeito.

ABSTRACT

The Independence of in 1822 was an incentive for the recent nation to (re)define the new country’s constituent lines, with relation to race, culture, and specifically, to its national identity. In the literary panorama, The Brazilian was the movement that fortified that ideal of nationalism, erecting symbols that would build the emergent nation. It is in that panorama that the poet from Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871), young student of Law, develops through his lyrical-dramatic poetic production, nation social problems searching for a national identity. The criticism about his production is unanimous in considering him as one of the most romantic nationalists. Described as the slaves' poet, his engaged production is pointed out better through the books A Cachoeira de Paulo Afonso (1876) and Os escravos (1883). A close reading of his abolitionist poems reveals, besides careful formal elaboration, through a balance among the lyrical, dramatic and tragic genres, a vision about the slave's condition while human beings. His point of view can be considered as exclusive in , since he presents black people as subject in spite of the restraints that inspired the great abolitionist literary production written by white people.

Keywords: Castro Alves – black slave – national identity – abolitionist poems – tragic – lyrical – dramatic – subject.

S U M Á R I O

1 INTRODUÇÃO...... 10

2 A EMERGÊNCIA ESTÉTICA DO NEGRO E O ROMANTISMO...... 22 2.1 Perspectivas Românticas ...... 41

3 A POÉTICA DE CASTRO ALVES: UMA REVISÃO CRÍTICA...... 55 3.1 Representações do Gênero Lírico na Poesia Castroalvina...... 65 3.2 Poesia do Heroísmo...... 74 3.2.1 Patriotismo e Poesia Épica...... 77 3.3 Dramaticidade e Nacionalismo...... 82 3.4 Poesia Social e Condoreirismo...... 88

4 ARQUEOLOGIA DA IDENTIDADE ESTÉTICA NA POESIA SOCIAL DE 94 CASTRO ALVES......

5 CONCLUSÃO...... 152

6 REFERÊNCIAS...... 154 6.1 Fontes Primárias ...... 154 6.2 Fontes Secundárias...... 154

7 ANEXOS...... 161 7.1 Anexo 1 – A canção do africano...... 162 7.2 Anexo 2 – Mater dolorosa...... 163 7.3 Anexo 3 – A cruz da estrada...... 164 7.4 Anexo 4 – A criança...... 165 7.5 Anexo 5 – Bandido negro...... 166 7.6 Anexo 6 – Tragédia no lar...... 168 7.7 Anexo 7 – Navio Negreiro...... 174

7.8 Anexo 8 – A tarde...... 181 7.9 Anexo 9 – Maria ...... 182 7.10 Anexo 10 – O baile na flor...... 183 7.11 Anexo 11 – Na margem...... 184 7.12 Anexo 12 – A queimada...... 185 7.13 Anexo 13 – Lucas...... 186 7.14 Anexo 14 – Tirana...... 187 7.15 Anexo 15 – A senzala...... 188 7.16 Anexo 16 – Diálogo do Ecos...... 189 7.17 Anexo 17 – O nadador...... 191 7.18 Anexo 18 – No barco...... 192 7.19 Anexo 19 – Adeus...... 193 7.20 Anexo 20 – Mudo e Quêdo...... 194 7.21 Anexo 21 – Na fonte...... 195 7.22 Anexo 22 – Nos campos...... 197 7.23 Anexo 23 – No monte...... 199 7.24 Anexo 24 – Sangue de africano...... 199 7.25 Anexo 25 – Amante...... 200 7.26 Anexo 26 – Anjo...... 200 7.27 Anexo 27 – Desespero...... 201 7.28 Anexo 28 – História de um crime...... 203 7.29 Anexo 29 – Último abraço...... 204 7.30 Anexo 30 – Mãe penitente...... 205 7.31 Anexo 31 – O segredo...... 206 7.32 Anexo 32 – Crepúsculo Sertanejo...... 209 7.33 Anexo 33 – O bandolim da desgraça...... 209 7.34 Anexo 34 – A canoa fantástica...... 211 7.35 Anexo 35 – O São Francisco...... 212 7.36 Anexo 36 – A Cachoeira...... 213 7.37 Anexo 37 – Um raio de luar...... 214 7.38 Anexo 38 – Despertar para morrer...... 215

7.39 Anexo 39 – Loucura divina...... 216 7.40 Anexo 40 – À beira do abismo e do infinito...... 217

10

1 INTRODUÇÃO

A discussão sobre a Identidade Nacional, na América Latina, vem-se mantendo por um período de pelo menos quinhentos anos e ainda rende diversos posicionamentos e posturas vinculadas a análises específicas dos processos de estruturação das culturas nacionais. Esse debate ganhou maior respaldo desde o momento em que a independência das colônias espanholas e portuguesas tornou-se um fato resolutamente marcante na construção das novas nações. Porém, a solidificação dessa transformação baseou-se nos interesses de grupos sociais privilegiados que se destacaram como os “pais da nação” e que contaram com o apoio econômico de grupos hegemônicos.1 Desempenhando, desde então, um papel relevante na formação nacional, esses grupos possuíam múltiplas perspectivas sobre a definição dos termos nação e identidade. No Brasil, o Romantismo, como movimento estético e político, através do Indianismo como bandeira ideológica, iniciou o questionamento sobre a nossa identidade. Nesse sentido, faz- se mister destacarmos que o presente estudo sobre identidade apresenta-se como uma tentativa de entendimento de como o problema acerca da mesma foi delineado através da poesia social do poeta Castro Alves, especialmente no que se refere à abolição da escravatura como uma motivação estética. Nesse caso, a problemática em questão visa ao estudo das motivações, sobretudo, literárias que levaram à construção da chamada poesia abolicionista, como uma representação simbólica do debate sobre a identidade nacional narrada a partir da perspectiva do escravo. É importante ressaltarmos que não se encontra em jogo em nosso texto a análise ideológica da posição do falante, no caso a voz poética que delimita os espaços, o tempo e as imagens dos diversos poemas. Tal posicionamento seria extrapolar os limites temporais sob os quais o poeta Castro Alves encontra-se inserido. No campo concernente às identidades coletivas, pode-se dizer que o problema de inclusão social do negro no projeto de nação, na época do poeta em questão, gerou uma série de tensões, causadas pela sua condição de escravo. Uma barreira que permaneceu latente mesmo depois da independência do Brasil. Diante dessa complexidade, o conceito de identidade como “uma entidade abstrata não apreendida em sua essência”,2 torna-se possível apenas quando categorias como: poder, raça, classe e outras textualizações encontram um modelo de identidade certamente

1 Destacamos com o termo “grupos hegemônicos” a pluralidade das elites existentes na nação. 2 Cf. Renato Ortiz, Cultura Brasileira & Identidade Nacional, São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 138. 11 ausente do contexto histórico em que se deu o Romantismo no Brasil. Vinculado às abordagens sociais, históricas, antropológicas e, sobretudo, literárias, o problema da identidade nacional no Romantismo não pode ser separado de dicotomias como branco x negro ou indígena; campo x cidade; cristão x não cristão e pobre x rico. A partir do momento em que buscamos contrapor essas diferenças existentes entre povos ou culturas adentramos em uma outra perspectiva de identidade: a de alteridade. Quando um “eu” é orientado, estimulado ou, no caso do Brasil Colônia, forçado a conhecer, apreender a cultura do “outro” existe todo um processo de identificação e (re)definição do perfil deste “eu” em função do “outro”. Gilberto Mello Kujawski, em seu livro A identidade nacional e outros ensaios: somos muitos, somos um? (2005), atestou que o processo de identidade brasileira deu-se incipientemente a partir do primeiro contato entre os portugueses e nativos brasileiros, no caso, os índios. Isso porque aqueles impuseram sua cultura, sua língua, sua religião, seus hábitos, enfim, sua própria identidade aos nativos que, além de passarem por um processo de aculturação, foram submetidos ao severo e desumano regime de colonização. Em seu livro Literatura e Identidade Nacional (1992), Zilá Bernd, versou sobre a problemática da identidade acerca da ideia da aceitação da diferença do “outro”, ou seja, “a identidade é um conceito que não pode afastar-se do de alteridade: a identidade que nega o outro, permanece no mesmo”,3 portanto, “excluir o outro leva à visão especular que é redutora: é impossível conceber o ser fora das relações que o ligam ao outro”,4 uma vez que “a consciência de si toma sua forma na tensão entre o olhar sobre si próprio – visão do espelho, incompleta – e o olhar do outro ou do outro de si mesmo – visão complementar”.5 Todavia, não foi esse direcionamento que nossos escritores românticos tiveram no momento de erigir o perfil da identidade brasileira. Nem todas as representatividades raciais foram reconhecidas como identidades. Mesmo que a contemporaneidade constatasse a importância do negro para o espaço sociopolítico da nação, tal fato não ocorrera nos séculos XVI, XVII e VIII, permanecendo assim como um apêndice de uma suposta identidade nacional e hegemônica para aqueles que viveram anterior ao período da abolição da escravatura. Ao mesmo tempo, tentou-se criar conceitos hegemônicos de identidade, negando-se a condição de sujeito a grupos étnicos como os índios e os negros.

3 Cf. Zilá Bernd, Literatura e Identidade Nacional, Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1992, p. 15. 4 Idem, ibidem. 5 Idem, ibidem. 12

Partindo desses critérios, observamos que a (re)atualização da leitura sobre o problema da identidade brasileira, dentro do panorama literário, nomeou, sem grandes dificuldades, o índio como símbolo idealizado da almejada identidade nacional, como pressupunha o Indianismo. Diferente da realidade, a sua criação o tornou como um ser detentor de um caráter nobre e até certo ponto indomável e dotado de liberdade, opondo-se assim ao negro. Na Literatura Brasileira, muitos foram os poetas e prosadores que escolheram o indianismo como modelo estético. Sobre isso, Nelson Werneck Sodré se posiciona:

Se existiu manifestação típica do pensamento nacional, foi o indianismo um dos seus exemplos mais expressivos. Valorizando o índio, os românticos traduziam a realidade do país. Não teriam tido importância se não tivessem seguido as tendências dominantes no Brasil da segunda metade do século XIX. Brasil ainda suficientemente colonial para fazer da valorização literária do índio um tema supremo.6

Podemos verificar que o presente comentário reforça os estudos crítico-analíticos acerca do índio brasileiro, ratificando, dessa forma, a intenção de exaltá-lo. Comentando a essencialidade do índio como modelo de uma identidade, , observando as contradições da utilização do índio como modelo essencial de identidade nacional afirmou que “o instinto de nacionalidade que se manifestara nas obras destes últimos tempos, conviria examinar se possuímos todas as condições e motivos históricos de uma nacionalidade literária”,7 visto que “não é lícito arredar o elemento indiano da nossa aplicação intelectual. Erro seria constituí-lo um exclusivo patrimônio da literatura brasileira”.8 Em face ao exposto, encontram-se em questão os fatos e as causas que levaram o índio a ter sido tão escolhido na Literatura Brasileira, ao contrário do negro. Como podemos observar, o questionamento de Machado de Assis “soa no vazio” uma vez que tornar o negro em objeto de especulação literária era praticamente impossível pelo fato de tanto os poetas quanto os prosadores românticos serem em sua maioria oriundos de famílias escravocratas.9 Do exposto, podemos afirmar que a exclusão da subjetividade do negro, no panorama literário do Romantismo, ocorreu por interesses econômicos e políticos, pois o escravo, como era

6 Cf. Nelson Werneck Sodré, História da Literatura Brasileira: seus fundamentos econômicos, 4. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 269. 7 Cf. Machado de Assis, Notícia da Atual Literatura Brasileira – Instinto de Nacionalidade (1873), In: ______. Crítica & Variedades, São Paulo: Globo, 1997, p. 18. (Obras Completas de Machado de Assis). 8 Idem, p. 19. 9 Cf. Nelson Werneck Sodré, Op. Cit., p. 268. Ressaltamos que a visão do referido autor é pautada numa vertente marxista tradicional, por analisar a condição social do negro do ponto de vista do conflito entre as classes sociais; privilegiando, portanto, o efeito das ideologias racistas, em vigor durante o período do Romantismo Brasileiro. 13 concebido, não passava de “mercadoria”, de “massa bruta”, de “coisa” a ser encaminhada ao trabalho para gerar lucro aos seus senhores. Mas, esse regime torna-se contraditório diante de uma recém-conquistada independência política, cujas definições e abordagens suscitavam perfis de identidade nacional que ratificassem a noção de liberdade no país. Por isso, “a imagem de um país livre criada pelos poetas contrasta com a situação de escravo; os símbolos da natureza se chocam com a realidade social”.10 Diante desse contexto histórico arraigado nas causas político-sociais, salientamos que, no Brasil, a poesia de cunho social enveredou por um processo de denúncia do sistema escravocrata e em defesa da subjetividade do negro brasileiro. Será na pessoa do poeta Castro Alves que o nacionalismo romântico e a defesa do escravo encontrarão expressão literária definida. De acordo com Fernando Azevedo, um crítico do começo do século vinte,

A voz de Castro Alves repercutiu tanto mais poderosamente quanto respondia ao sentimento nacional de um povo idealista e compassivo, sacudido, no acesso das lutas políticas por um ideal simples e acessível e orientado, por índole e por tradição, no sentido dos princípios liberais.11

Fernando Azevedo, ao tentar esclarecer a proposta ideológica do referido poeta, ratifica um fator importante que a crítica contemporânea ainda mantém: a importância do caráter social de sua poesia abolicionista. Esse foi inter-relacionado ao projeto de nacionalismo empregado pelo Romantismo como um sentido simbólico de crítica ao sistema político tradicional, visando a substituí-lo pelas construções de uma nova ordem moderna, democrática, abolicionista e republicana. Porém, distintamente das demais colônias hispânicas, a evolução da ex-colônia portuguesa frente ao ideário de nação independente, consolidou-se muito mais graças à regularidade política do governo civil12 do que pela divisão interna entre as elites locais,

10 Cf. Dante Moreira Leite, Romantismo e Nacionalismo. In: ______. O amor romântico e outros temas. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1979, p. 47. 11 Cf. Fernando de Azevedo. A poesia social no Brasil (1925). In: ______. Ensaios. São Paulo: Comp. Melhoramentos de São Paulo, 1929, p. 94-5. 12 José Murilo de Carvalho destaca: “se a nação evitou inicialmente instabilidades e rebeliões, não chegou a ter uma única mudança irregular e violenta de governo e conservou sempre a supremacia do governo civil.” José Murilo de Carvalho, A construção da ordem & Teatro das sombras, 2. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 13. Entretanto, o mencionado autor faz uma ressalva a essa consolidada estabilidade gerada dentro do governo monárquico, no Brasil, ao referir-se à abdicação do trono brasileiro feita por Dom Pedro I, em 1831, e a antecipação da maioridade de Dom Pedro II, em 23 de julho de 1840, o qual, com 14 anos, se tornaria imperador brasileiro. Ver José Murilo Carvalho, Op. Cit., p. 13. 14 compostas predominantemente por donos de terras, pequenos comerciantes e a igreja. Essa consolidação foi efetivada graças à vinda da família real de Bragança para o Brasil, em 1808. Como consequência, a ideologia colonial da corte serviu à unificação do país, instaurando-se assim, um regime monárquico que direcionou as bases sociais, políticas e econômicas da nação brasileira. Fortaleceram-se, portanto, as ideias de ordem e as situações de mercado, gerando com isso a solidificação dos sistemas políticos de domínio, sobretudo, a manutenção da escravidão. Dante Moreira Leite, em seu livro O amor romântico e outros temas (1979), comentando a edificação política da nação, propõe enxergarmos o nacionalismo como uma reivindicação social e universal. A partir daí, “o nacionalismo perde o seu caráter conservador e retrógrado e adquire um conteúdo realmente coletivo, abrangente e comum a todos os brasileiros”,13 posicionando-se assim como um horizonte no entendimento do sempre atual debate sobre o problema da identidade brasileira. As características dessa sociedade foram, por isso, marcadas pela manutenção desigual de parâmetros de cidadania que passaram a ser medidos pelas noções de raça e classe social. Mediante esse processo, os descendentes de portugueses “brancos” e católicos estabeleceram-se no topo da escala étnica e social como os mais abastados frente a um número bastante significativo de excluídos sociais de origem indígena e negra pertencentes a uma massa socialmente indistinta marginalizada e ausente do processo de construção nacional. Tais mecanismos de exclusão dificultaram-lhes a mobilidade social, enquanto no primeiro reinado a escravidão foi mantida como um fator essencial para a construção da mencionada ordem nacional. Entre as instituições que defendiam a manutenção da escravidão, destaca-se o papel da Igreja Católica cujo projeto ideológico a manteve sempre ligada à coroa por todo período colonial, como demonstram as revisões historiográficas.14 Como é devidamente (re)conhecido, o processo de escravidão, nas Américas, distingue-se dos modelos escravocratas, nas sociedades greco-romanas e durante a Idade Média, pela elaboração de um pensamento europeu sistematizado que contribuiu para implantação e disseminação do racismo nas sociedades europeias e americanas, como parte de um pensamento que se estruturou ao lado da implantação

13 Cf. Dante Moreira Leite, Romantismo e Nacionalismo. In: ______. O amor romântico e outros temas. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1979, p. 48. 14 Ver Robson Pedrosa da Costa, “As ordens religiosas e a Escravidão Negra no Brasil”. In: Revista de Humanidades, UFRN, Caicó (RN), v. 9 n. 24, sep./out, 2008. Disponível em: Acesso em: 15/01/2010. 15 do capitalismo no século XIX. Dessa maneira, “por volta de 1860, todavia, as teorias racistas tinham obtido o beneplácito da ciência e plena aceitação por parte dos líderes políticos e culturais dos Estados Unidos e da Europa”.15 Assim não parece estranho, que a organização política na formação nacional brasileira ascendesse progressivamente, tendo a Igreja através de seus padres e bispos como expoentes e praticantes de uma política interessada em subjugar o escravo, como se encontra reiterado nos seguintes termos: “[...] por considerar os escravos eleitos de Deus e escolhidos, à semelhança de Cristo, para salvar a humanidade pelo sacrifício. [...] Ou seja, a escravidão não é condenada pela Igreja desde que moderada, justa, racional, rentável e equilibrada”.16 Apesar de confirmar a ideia de que a escravidão era necessária ao apogeu do lucro, a Igreja assume uma postura contraditória ao endossar cada vez mais os inominados abusos cometidos contra negros e índios através de bulas papais expedidas desde o século XVI contra a escravidão.17 Nesses termos, a existência da escravidão era apoiada pela Igreja como um fator racional dentro da organização social, política e econômica da própria nação. Por isso, para se consolidar a referida organicidade do sistema escravista, todo e qualquer tipo de desmando do senhor para com o escravo era lícito:

A relação dos senhores com a massa escrava baseia-se no princípio do use e abuse. A duração da jornada de trabalho não conhece limites e, sobretudo nas épocas de corte e moagem da cana, passa das 15 horas diárias. Em geral, a labuta vai de segunda a segunda com cinco dias de descanso por ano: Natal, Epifania, Páscoa, Ascensão e Pentecostes.18

Em virtude do apresentado, a escravidão negra, no Brasil, perdurou por um período de trezentos anos, sendo este o último país das Américas a decretar a sua abolição. Enquanto isso, a visibilidade do negro como sujeito social era praticamente inexistente da perspectiva dos grupos economicamente privilegiados pelo sistema escravocrata, já que eles detinham parâmetros legais fundamentados basicamente no antigo Direito Romano, no qual se definia o escravo como coisa,

15 Ver Thomas Skidmore, citado por Augusto Buonocore, “Racismo e ideologia do colonialismo”. Revista Espaço Acadêmico, n. 51, agosto/2005, mensal, Ano V. 16 Cf. Emilio Gennari, Em busca da Liberdade: traços das lutas escravas no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 27. 17 Dentre muitos documentos emitidos pela Igreja Católica contra a escravidão, destacamos a bula Cum Sicuti (1591), do papa Gregório XIV, a Commissum Nobis (1639), de Urbano VIII, a Immensa Pastorum (1741), de Bento XIV, In Supremo (1839), de Gregório XVI e In Plurimis (1888), de Leão XIII. 18 Cf. Emilio Gennari. Op. Cit., p. 22. 16

“uma propriedade”. Assim, percebemos a que ponto chegou a preocupação da elite brasileira para manter ao máximo a escravidão como um sistema político e econômico sob o qual se organizava toda a sociedade na tentativa de manutenção do status quo das classes dirigentes. Em 1825, como “mercadoria”, os negros podiam ser:

Apalpados, a qualquer hora do dia ou de noite, desde que lhes era proibido, sob pena de açoites o uso de qualquer arma, não só o uso de qualquer arma de defesa como trazerem paos. Era também proibido ao escravo não só a eles como a todo o negro ou homem de cor estar parado nas esquinas sem motivos manifestos a até dar assobios ou qualquer outro sinal.19

Sob essa realidade, o clima de tensão causado por fugas, violências e insurreições, principalmente na Bahia, através dos levantes Nagôs, em 1826, 1828, 1830 e a Revolta dos Malês, em 1835, tornou cada vez mais impossível a permanência do sistema escravocrata, especialmente após a pressão política e armada perpetrada pela Inglaterra, desde a emancipação dos escravos nas colônias britânicas (1833). Então, tendo por égide a causa abolicionista, os ingleses colaboravam através dos policiamentos das costas contra a liberação de “carga” clandestina mantida por traficantes de escravos. Protagonistas desse momento histórico, onde a manutenção da escravidão era praticamente impossível, possivelmente motivada pelas ideias do liberalismo inglês, (conhecida a todos os intelectuais da época) surgem como contemporâneos abolicionistas as figuras de Castro Alves (1847-1871) e (1849-1910). Nomeados como um dos mais destacados abolicionistas da época, cujas ideias influenciaram toda uma geração de abolicionistas. Joaquim Nabuco certamente motivou ainda mais os pensamentos abolicionistas em Castro Alves, seu contemporâneo. Então, adeptos das mesmas ideias da época, especialmente a abolição da escravatura, os dois homens sintetizam as opiniões estético-políticas do século em que viveram como fatores discursivos essenciais para solidificação do projeto de criação de uma nação livre e democrática. Por isso, enquanto a influência literária de Castro Alves delineou-se através da publicação e apresentação de poemas nos teatros, grêmios acadêmicos e ruas de Salvador, a atuação política

19 Cf. Gilberto Freire, Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcalismo rural e desenvolvimento do urbano, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1977, v. 2, p. 150. 17 de Joaquim Nabuco, em , apesar de suas contradições,20 serviu de referencial persuasão a outros intelectuais respaldados numa visão menos conservadora, representada pela constituição norte-americana e, sobretudo, pelo seu sentido de democracia.21 Mediante essa perspectiva, entendemos que a visão mais pragmática sobre a humanidade do negro e o seu lugar na sociedade como defendera Castro Alves, foi amplamente influenciada pelo Abolicionismo de Joaquim Nabuco, já que os dois eram contemporâneos e pertenciam às jovens elites nordestinas comprometidas com o desejo de lutarem pela modernidade nacional, veiculada, na época, pela Escola de Direito de Recife. Em acréscimo a esses atributos, ambos estavam familiarizados com a oratória apregoada por essa escola da qual faziam parte e por isso vislumbravam uma noção de modernidade distanciando-se do conservadorismo das elites mais tradicionais, como se pode verificar através de seus discursos. Embora não seja necessário aqui um aprofundamento detalhado sobre as ideias de Joaquim Nabuco e sua influência no abolicionismo de Castro Alves, verificamos que há uma gradação e um amadurecimento de ideias do poeta sobre o escravo, quando o referido romântico enfatiza a necessidade de reconhecimento do negro como um sujeito. Esta gradação será notada entre os primeiros e os últimos poemas escritos por ele, sobre a abolição dos escravos. Desse modo, o corpus a ser analisado nesse trabalho engloba as seguintes obras: os poemas abolicionistas de A Cachoeira de Paulo Afonso (1876) e Os escravos (1883). Um outro ponto de encontro entre os abolicionistas é a marcada tendência tanto de um quanto do outro em apresentar seus discursos enriquecidos por um potencial revolucionário para época, muito embora ambos fossem condicionados a não exercer tal postura diante da sociedade em que viviam e das posições sociais que ocupavam. Certamente menos pragmático e acima de tudo por vislumbrar provavelmente as contradições que cercavam o discurso abolicionista, Castro Alves, ao contrário de Joaquim Nabuco, não adentra a carreira pública e opta pelo ardor nômade, itinerante e escandaloso da vida poética, talvez por sentir nela o despojamento e o distanciamento da vida ambígua e comprometida da carreira política e de suas sucessivas alianças a posições cada vez mais conservadoras distantes dos anseios populares. Ao contrário de Joaquim Nabuco,

20 As contradições que procuramos ressaltar são o fato de ele ser monarquista, liberal e americanista, mesmo sendo abolicionista, por esse perfil, ele não foi aproveitado na ordem republicana brasileira. 21 Ver Resumo de dissertação de Aires José Rover. In: ______. “Abolicionismo e Americanismo em Joaquim Nabuco” Disponível em: , Acesso em: 15/01/2010. 18

Castro Alves não viveu para ver a emancipação dos escravos, mesmo assim, não deixou de tanto proferir e desejar ardentemente a liberdade àqueles que não a tiveram. Comungando com essa vertente, entendemos que nosso estudo ajudará a aprofundar não apenas a taxionomia sobre o debatido tema de Identidade brasileira, mas aproximar-nos-á de uma postura vinculada à complexidade do âmbito social, especialmente, no tocante aos poemas de Castro Alves que retratam uma representação do negro dentro de um viés literário. A crítica acerca da poesia castroalvina tomou mais impulso a partir do século vinte; e dentre muitas, destaca-se, por exemplo, a de Gregory Rabassa quando expõe que:

Sua mensagem visa a mostrar os efeitos desastrosos da instituição da escravidão sôbre o futuro da sociedade brasileira, num todo. Não é puramente altruísta, mas põe grande ênfase no futuro do Brasil. Castro Alves sente que, enquanto existir escravidão no país, não poderá haver um progresso verdadeiro.22

A observação de Gregory Rabassa explora posicionamentos interligados a rupturas sociais da nação brasileira, reforçando, dessa forma, a necessidade, observada pelo poeta, de erigir a escritura da identidade do negro no cenário nacional; entendendo que a liberdade é uma condição intrínseca ao progresso. Contudo, para alcançá-la seria preciso alçar passos mais ousados contra o opressivo sistema sociopolítico e econômico vigente no país. Em face ao exposto, observamos, através da poética castroalvina, sugestões de possíveis soluções textuais à visível e tangível problemática brasileira sobre a inserção do negro na sociedade brasileira como um sujeito. Mediante essa proposta, notamos “que para resolver o problema de Escravidão, Castro Alves chega a apelar para a [...] República”.23 Com tal postura, Castro Alves assume a posição de precursor de uma realidade que assaz posterior ao tempo do poeta concretizar-se-ia. Mesmo assim, ele referenciou a futura condição política da nação e a abolição da escravatura com a autenticidade de um profeta: “Ele verbera o crime e amaldiçoa a perversidade. Sua voz, de acentos dramáticos, é a um tempo, lamentosa, vingadora e consoladora”.24 Serão claramente esses acentos dramáticos que reforçaram o caráter social da poesia de Castro Alves, pois “o verso dramático tem em si a função de provocar uma impressão imediata e

22 Cf. Gregory Rabassa, O negro na ficção brasileira. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1965, p. 88. 23 Cf. Afrânio Peixoto. Castro Alves: o poeta e o poema. São Paulo: Ed. Nacional, 1976, p. 123. 24 Cf. Jamil Almansur Haddad. Revisão de Castro Alves, São Paulo: Saraiva, 1953, v. 2, p. 11. 19 coletiva sobre um amplo número de pessoas [...]”;25 e tal efeito foi muito bem explorado pelo poeta, quando este se imiscuiu na problemática social vigente na época, denunciando-a através da dramaticidade de sua produção literária. Dessa forma, Castro Alves visou a concretizar a verdadeira função social da poesia: “afetar a fala e a sensibilidade de toda a nação”.26 Ante a presente proposta, observamos que este romântico se propõe, através da representação literária do negro brasileiro, discutir e construir esteticamente um perfil de identidade de um sujeito em uma nova sociedade a qual ele via como republicana. Em linhas gerais, propomo-nos a aprofundar as possíveis motivações que influenciaram a produção da poesia social de Castro Alves. Para chegarmos a essa perspectiva, consideraremos o seguinte aspecto: Definir em que consiste a elaboração da poesia social. Nesse caso, retomaremos as teorizações empreendidas principalmente pelo Romantismo alemão, entre elas, as de Goethe & Schiller, presentes no ensaio Sobre poesia épica e dramática (1993), as de Schiller, observadas em Acerca da arte trágica (1792) e as de Hegel, pontuadas na Estética: Poesia (1835). Todos esses textos nos servirão de apoio à elucidação do fenômeno poético em seu sentido formal. Ou seja, como a poesia era concebida em termos formais na época de Castro Alves, especialmente a dramática, utilizada como estrutura dos poemas abolicionistas. Nesse sentido, podemos afirmar que, todos os referidos títulos convergem para a ideia de que o ponto de partida da ação dramática é o conflito. Daí afirmarmos que esse estilo de poesia toma como empréstimo o sentido do texto dramático em si, estruturando-se a partir de um processo dialético em que temos a escravidão como tese, a indignação contra esse sistema como antítese e a abolição da escravatura como síntese, constituindo-se assim uma hipótese presente na elaboração dos poemas. Partindo dessa ideia, dando ao escravo a subjetividade negada como pessoa, Castro Alves explora esses recursos estéticos com a finalidade de sensibilizar o leitor ou o ouvinte a fim de “educá-lo”, tal qual fazia o teatro com sua plateia. Diante disso, estudar os elementos constitutivos da poesia dramática, observar o quão esta repercute no contexto sociopolítico que vigora na época e explorar a subjetividade do indivíduo que é evidenciado através da voz poética são categorias estético-analíticas mais essenciais à evolução do estudo da presente dissertação.

25 Cf. T. S. Eliot. De poesia e poetas. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 27. 26 Idem, p. 34. 20

Consoante toda a abordagem exposta, o ponto de partida desse trabalho será demonstrar como as poesias abolicionistas de Castro Alves, especificamente as obras A Cachoeira de Paulo Afonso (1876) e Os escravos (1883), expressam esteticamente uma discussão sobre o problema da identidade nacional. Por isso, deter-nos-emos ao referido corpus objetivando discutir os seguintes fatores: I – o problema da subjetividade relacionada ao perfil do negro representado através dos poemas sociais castroalvinos e demonstrar como esteticamente o projeto poético situa-se no projeto romântico de identidade nacional. II – a forte posição de Castro Alves diante do regime escravocrata ao assumir uma postura abolicionista para época, somando-se a isso uma visão republicana acerca do que se vivia e se almejava. III – a relevância da dramaticidade das cenas descritas no universo da escravidão como significativo processo de representação da construção da identidade nacional brasileira, uma vez que pondo em destaque o sofrimento do escravo, Castro Alves almeja que ele seja reconhecido como sujeito, como um dos edificadores da identidade nacional brasileira. Os referidos fatores, que são mencionados e postos em discussão por críticos como Jamil Haddad,27 Afrânio Peixoto28 e ,29 compreendem mais que uma análise sobre a poesia do poeta, sugerem a contribuição dada por Castro Alves aos estudos sobre o Romantismo, na Literatura Brasileira. Em termos estruturais, nosso trabalho está dividido em três capítulos: O primeiro destina-se a apresentar como se construiu a conjuntura política e literária vigente na época de Castro Alves e que servira de motivação estética ao poeta. O segundo apresenta uma revisão crítica da poesia de Castro Alves, partindo do viés de como os críticos da Literatura Brasileira analisaram e teceram comentários sobre a produção literária de Castro Alves; visando, dessa forma, a apresentar os primeiros traços ou nuances de uma identidade nacional, que começou a surgir em sua poesia de forma significativa. Ainda no mesmo, enfocaremos o processo estético-conteudístico da produção literária de Castro Alves como marcas de uma nova proposta poética na literatura.

27 Ver Jamil Almansur Haddad, Revisão de Castro Alves. São Paulo: Saraiva, 1953, v. 1, 2, 3. 28 Ver Afrânio Peixoto, Castro Alves: o poeta e o poema. São Paulo: Ed. Nacional, 1976. 29 Ver Jorge Amado, ABC de Castro Alves, Rio de Janeiro: Livraria Martins, 1960. 21

O terceiro capítulo aspira a estruturar a arqueologia simbólica da identidade nacional, através dos artifícios dramáticos expressos pelos poemas, resultando na chamada poesia social de Castro Alves. Resumindo, aliados a todas essas motivações, propomo-nos a uma leitura dos poemas do poeta como uma construção estética que visava a chamar atenção sobre a necessidade da emancipação do escravo, considerando o problema como essencial na construção de uma nação livre e democrata, apresentando, então, os traços inerentes à sua identidade.

22

2 A EMERGÊNCIA ESTÉTICA DO NEGRO E O ROMANTISMO

No presente capítulo, destacamos o debate, no Brasil, sobre a construção do caráter nacional brasileiro, no século XIX, pois tal temática emergia, no panorama social e literário, com a finalidade de discutir os elementos de formação nacional. Iniciamos a referida discussão partindo do pressuposto de que o “significado fundamental de “nação”, e também o mais ventilado na literatura, era político”.30 Diante desse conceito, expomos que foi justamente um projeto político que levou os intelectuais brasileiros da época, como Domingos José Gonçalves de Magalhães31 (1811-1882), Francisco de Sales Tôrres Homem32 (1812-1876) e Manuel José de Araújo Porto Alegre33 (1806-1879), a (re)pensarem os elementos caracterizadores da nação brasileira proporcionados pela Independência do Brasil, ocorrida em 7 de setembro de 1822. Ratificamos a presente asserção coadunando-a ao posicionamento de Antonio Candido que contextualiza significativamente a observação:

Um elemento importante nos anos de 1820 e 1830 foi o desejo de autonomia literária, tornado vivo depois da Independência. Então, o Romantismo apareceu aos poucos como caminho favorável à expressão própria da nação recém-fundada, pois fornecia concepções e modelos que permitiam afirmar o particularismo, e portanto a identidade, em oposição à Metrópole, identificada com a tradição clássica.34

A referida citação sugere que a emergente nação estimulou na jovem intelectualidade brasileira uma problemática: erigir uma literatura “autenticamente brasileira”, pois em mais de dois séculos de colonização, a literatura produzida no Brasil era tida como uma produção de Portugal,35 prestigiando assim a Metrópole. Politicamente, tal postura não se apresentava com um

30 Cf. Eric Hobsbawn, Nações e Nacionalismo desde 1780 (1990), 4. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 31. 31 Domingos José Gonçalves de Magalhães, primeiro e único barão de Araguaia e depois visconde de Araguaia, foi médico, professor, diplomata, político, poeta e ensaísta brasileiro. Fundador da corrente Romântica, no Brasil, com a publicação do livro Suspiros Poéticos e Saudades (1836) e junto a Francisco de Sales Tôrres Homem e Manuel José de Araújo Porto Alegre idealizaram e fundaram, em 1836, a Niterói, revista brasiliense de ciências, letras e artes. Da qual se editou apenas dois periódicos, mas em ambos todos os três contribuíram com artigos sobre economia, ciências e música. 32 Francisco Sales de Tôrres Homem, o visconde de Inhomirim, foi advogado, jornalista, diplomata, escritor, médico e político brasileiro. Foi um dos poucos negros que assumira posição de destaque no Império Brasileiro, chegando inclusive a ser senador do Império de 1868 a 1869. 33 Manuel de Araújo Porto Alegre, primeiro e único barão de Santo Ângelo, foi escritor, político, jornalista, pintor, caricaturista, arquiteto, crítico, historiador de arte, professor e diplomata. Fundador da Revista Guanabara, que divulgava o gênero literário romântico, e da Revista Lanterna Mágica. 34 Cf. Antonio Candido, O Romantismo no Brasil, 2. ed., São Paulo: Humanitas, 2004, p. 19. 35 Ver Antonio Candido, O Romantismo no Brasil, 2. ed., São Paulo: Humanitas, 2004. Antônio Soares Amora, O Romantismo: (1833-1838/ 1878-1881), São Paulo: Cultrix, 1967, v. II. 23 pensamento errôneo, porém, não condizia mais com o momento que recentemente eclodira no país, já que “o sentimento mais forte que aparece na idéia de nação também é o de pertencer”.36 Logo, libertar-se do jugo da Colônia propugnando um critério eminentemente de originalidade nacional era o almejado por uma geração não apenas de jovens intelectuais, mas pela nação brasileira como um todo. Em face ao exposto, constata-se a ideia de que “ser original é ser nacional; esse critério diferencia uma nação da outra, individualiza-a num conjunto maior”.37 Mesmo que saibamos que podem ser elencados diversos termos que visam a distinguir as nações entre si, como cultura, educação, etnia, religião, língua, entre outros elementos distintivos, mas o desejo de país livre, como o que já existia nas demais nações europeias, funciona como categoria universal no processo de construção e individualização de uma identidade nacional. Todavia, faz-se mister ressaltarmos que essa iniciativa de individualizar a nação não se destina a aproximar-se de uma ideia centralizadora, exclusivista e de plena soberania,38 vincula- se a erigir uma “identidade essencialmente nacional”, mesmo que não seja alcançada em sua totalidade, mas, a partir de então, inicia-se um processo de diferenciação entre os paradigmas e as características nacionais imposto pela Metrópole e os critérios de originalidade assumidos, a partir de então, pela ex-Colônia, na condição de nação em processo de crescimento social, cultural e econômico. Diante dessa limitação de plenitude e ao mesmo tempo do ensejo de distinguir-se dentro de um universo de nações, desejamos evidenciar que “a nação é uma comunidade política imaginada – e imaginada como implicitamente limitada e soberana”,39 pois os elementos de nacionalidade são imagens defendidas como “nossa identidade”, porém não alcança a completude de autenticidade uma vez que “mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a maioria de seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de comunhão”.40 A década de vinte e de trinta, no século XIX, retratou momentos decisivos, no que se refere ao avanço sociopolítico e literário do Brasil. Desde a independência do Brasil em sete de

36 Cf. Bernardo Ricupero, O Romantismo e a Idéia de Nação no Brasil (1830 – 1870), São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 8. 37 Cf. Maria Eunice Moreira, Nacionalismo Literário e Crítica Romântica, Porto Alegre: IEL, 1991, p. 35. 38 Sobre esse aspecto Dante Moreira Leite, em seu livro O caráter nacional brasileiro (2007), alertava que o nacionalismo diverge em duas vertentes: uma saudável e outra mais agressiva e doentia. O mesmo exemplifica que esta última corresponde a uma excessiva afirmação de poder e grandeza como fora o caso do nazismo, na Alemanha, e aquela, mesmo sendo de difícil conceituação, consistiria a uma oposição crescente e constante ao expansionismo de outras nações que oprimem o desenvolvimento das singularidades das demais nações. 39 Cf. Benedict Anderson, Nação e Consciência Nacional, São Paulo: Ática, 1989, p. 14. 40 Idem, ibidem. 24 setembro de 1822 à abdicação do trono brasileiro por Dom Pedro I, em 1831, o país vivenciara um sentimento de ufanismo à pátria que engendrou na jovem geração de intelectuais brasileiros o desejo de erigir uma literatura exclusivamente brasileira. Em função do relatado, Gonçalves de Magalhães, Araújo Porto Alegre e Tôrres Homem dirigiram-se ao Instituto Histórico da França com a finalidade de apresentarem três comunicações que serviram como fontes esclarecedoras para o público francês interessado em conhecer a realidade literária no Brasil.41 Gonçalves de Magalhães propugnava a ideia42 de que “uma poesia cantada, espontânea e original, existente primitivamente no Brasil, e inspirada nas belezas da natureza virgem do País, fora asfixiada por uma literatura erudita, de cunho clássico imitada de Portugal e de França”.43 Isso seria o início de uma ruptura com o passado e uma aspiração ao futuro, já que havia, a partir de então, o lato desejo de libertar-se da inspiração das musas clássicas, ao cotejá-las com o aprazível da realidade brasileira. Essa comparação serviu, outrossim, para forjar os primeiros traços de uma identidade criteriosamente nacional. Toda essa reflexão posta em discussão por Gonçalves de Magalhães e seus colegas intelectuais contribuiu para consolidar um movimento que abria uma nova página na literatura brasileira: o Romantismo. A intenção destes era que essa corrente literária fosse reconhecida como produções brasileiras, por isso Gonçalves de Magalhães empenhou-se em pesquisar minuciosamente dados históricos, apurados por autores anteriores ao jovem intelectual, cujos registros fundamentariam a “problemática” sobre a qual Magalhães debruçou-se em discorrer.

41 Ver Antônio Soares Amora. O Romantismo: (1833-1838/ 1878-1881), São Paulo: Cultrix, 1967, v. II. Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos, 11. ed., Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007. Antonio Candido, O Romantismo no Brasil, 2 ed., São Paulo, Humanitas, 2004. Bernardo Ricupero. O Romantismo e a idéia de Nação no Brasil, São Paulo: Martins Fontes, 2004. Nelson Werneck Sodré, História da Literatura Brasileira, 4. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. Maria Eunice Moreira, Nacionalismo Literário e Crítica Romântica, Porto Alegre: IEL, 1991. José Veríssimo, História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908), São Paulo: Letras & Letras, 1998. 42 É importante ressaltarmos que a ideia defendida por Gonçalves de Magalhães não era detentora de um caráter tão elevado de novidade. Antonio Candido asseverara que “Magalhães foi um caso interessante de renovador sem força renovadora.” Cf. Antonio Candido, O Romantismo no Brasil, 2. ed., São Paulo, Humanitas, 2004, p. 24. Isto se concebeu pelo fato de poetas, prosadores e críticos literários europeus, como o francês Ferdinand Denis e o português , corroborarem a iniciativa de erigir-se uma literatura eminentemente brasileira. Entretanto, ao Magalhães “receber na França o impacto das novas tendências não perdeu a dicção neoclássica, mas incorporou concepções e técnicas que foram reveladoras no Brasil: sentimento religioso como garantia da alta função moral da poesia; imitação direta da natureza, não dos textos clássicos, a fim de poder manifestar a originalidade do gênio; rejeição das formas fixas a favor de estrofes livremente organizadas, em poemas sem molde prévio, para assegurar liberdade ao discurso.” Cf. Antonio Candido, Op. Cit., p. 25. Mesmo o referido vate não ter apresentado ideias tão inovadoras, mas foi o primeiro brasileiro a empenhar-se conscientemente na construção de nossa heterogênea identidade brasileira. Diante disso, obteve o seu espaço reconhecido e registrado no cânone literário brasileiro. 43 Cf. Antônio Soares Amora, Op. Cit., p. 86. 25

Para isso, o mesmo abeberou-se dos estudos e tratados escritos respectivamente por Friedrich Bouterwek, Simonde de Sismondi, Ferdinand Denis, Almeida Garrett, Schlichthorst, Diogo Barbosa Machado e o Cônego Januário da Cunha Barbosa,44 para que exercesse sobre eles uma criteriosa análise a ponto de concluir “quais os fatos históricos verdadeiros e quais os fatos estéticos de valor, sobre os quais faria suas reflexões e provaria sua tese, que era, [...], a da existência de uma literatura brasileira”.45 Baseando-se nas leituras e (re)leituras desses antecessores, Magalhães reconheceu dois aspectos essenciais à confecção de seu trabalho: o apego à natureza, pelo fato de ela “excitar a sensibilidade, estimular a imaginação, empolgar a emoção e elevar o espírito”,46 a (re)definição do herói brasileiro: o índio, e a preocupação em interligar as letras do Brasil ao panorama dos acontecimentos políticos contemporâneos.47 Essas tendências serviram para legitimar a ideia de originalidade que já detinha a Literatura Brasileira e cuja estrutura levá-la-ia a nortear-se a fim de libertar-se da opressão colonial à qual se mantivera presa; e “o critério da originalidade, assentado na manifestação da cor local, é definidor do autor nacional”.48 Mediante essa consciência e após a sistemática pesquisa, Gonçalves de Magalhães adentrou a história da Literatura Brasileira ao inaugurar o Romantismo Brasileiro somando suas ideias na publicação, em 1836, da obra Suspiros Poéticos e Saudades e da Niterói – Revista Brasiliense, marcos inaugurais da mencionada corrente estética, nos quais o referido poeta e pesquisador debruçou-se em teorizar e expor quais seriam os elementos constitutivos desta literatura, perfilhando dessa forma, como afirmara o autor do conceito de nação imaginada, uma consciência eminentemente nacional. Os artigos escritos na Niterói serviram para “recuperar o terreno que nos separa de outros povos, “mais adiantados”, ou seja, é a concepção de “nação nova” que inspirou a maior parte dos artigos publicados na Revista Brasiliense”,49 por esse

44 Ver Antônio Soares Amora. O Romantismo: (1833-1838/ 1878-1881), São Paulo: Cultrix, 1967, v. II. Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos, 11. ed., Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007. Antonio Candido, O Romantismo no Brasil, 2. ed., São Paulo: Humanitas, 2004. Bernardo Ricupero, O Romantismo e a idéia de Nação no Brasil, São Paulo: Ática, 2004. Maria Eunice Moreira, Nacionalismo Literário e Crítica Romântica, Porto Alegre: IEL, 1991. 45 Cf. Antônio Soares Amora. Op. Cit., p. 102. 46 Idem, p. 103. 47 Ver Maria Eunice Moreira, Nacionalismo Literário e Crítica Romântica, Porto Alegre: IEL, 1991. 48 Idem, p. 36. 49 Cf. Bernardo Ricupero, O Romantismo e a Idéia de Nação no Brasil (1830 – 1870), São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 92. 26 motivo que a mesma propugnara a epígrafe: “Tudo pelo Brasil e para o Brasil” como uma forte marca de almejo pelo crescimento. No que se refere ao conceito de “comunidade imaginada”, podemos afirmar que ele também se refletiu sobre a estrutura de nacionalidade do Brasil, pois o povo que foi erigido como representação de nossa identidade não abrangia a pluralidade de raças que aqui havia; fortificando apenas uma: o índio – o nativo das terras brasileiras. Mesmo assim, não se pode deixar de observar, ao reportarmo-nos à realidade brasileira, que o caráter de construção de nossa identidade consistiu em desvincular-se de uma nação portuguesa que oprimia em busca do desenvolvimento nacional. Em virtude dessa proposta, Dante Moreira Leite asseverou que “a ideologia nacionalista antecede a formação do Estado nacional, os teóricos do nacionalismo precisam buscar as raízes históricas, e até míticas, de um espírito nacional que justifique e garanta a nação”.50 É notório que esse desejo ganhara força e muito mais respaldo na gênese da Revolução Francesa do século XVIII, todavia o desejo de autoafirmar e definir uma “identidade autêntica” é bem anterior a esse episódio sociopolítico, visto que, vemos registros constantes, na literatura universal, de fatos ou até mesmo ações concretas de um processo de distinção entre povos e nações. É o que verificamos nesse excerto de A Prosopopéia (1601), de Bento Teixeira, obra épica do período colonial que visa a enfocar os feitos de um “herói brasileiro”, nesse caso D. Jorge de Albuquerque Coelho, terceiro donatário da Capitania de :

Cantem Poetas o Poder Romano, Sobmetendo Nações ao jugo duro; O Mantuano 51 pinte o Rei Troiano, Descendo à confusão do Reino escuro; Que eu canto um Albuquerque soberano, Da Fé, da cara Pátria firme muro, Cujo valor e ser, que o Ceo lhe inspira, Pode estancar a Lácia e Grega lira.52

50 Cf. Dante Moreira Leite, O caráter nacional brasileiro, 7. ed., São Paulo, UNESP: 2007, p. 32. (A 1ª edição é de 1954) 51 Mantuano é uma referência a Públio Virgílio Marão (71-19 a. C.), nascido em Mântua, norte da Itália, autor de A Eneida, obra que narra os feitos heróicos do príncipe troiano Enéias. 52 Cf. Bento Teixeira, Prosopopéia (1601), Rio de Janeiro: INL, 1972, p. 19, Canto I, I. Faz-se mister evidenciarmos que a referida obra exalta a figura de um colonizador, que moldará a recém-conquistada terra brasileira ao perfil da nação portuguesa, por isso não podemos afirmar com tanta veemência que seja uma representatividade do nacionalismo, mas um registro esboçado de um parâmetro de uma futura identidade brasileira. 27

Observamos, no referido fragmento, um desejo de ruptura com as potências nacionais clássicas erguidas sob a glória e a honra de seus heróis para evidenciar uma outra pátria, que se encontra visceralmente interligada às suas origens, exaltando o seu próprio herói, como explicita o texto “Que eu canto um Albuquerque soberano”, “Da Fé, da cara Pátria firme muro”, que apresenta um certo nativismo, um sutil amor à pátria, entretanto observa-se que se enceta um processo de uma autoafirmação de uma identidade nacional, uma vez que o eu poético sugere que um valor mais alto que o da glória das nações clássicas antigas está se erguendo, como observamos por parte da voz poética que conjetura o surgimento de uma nação e um caráter literário superiores ao enunciar: “Cujo valor e ser, que o Ceo lhe inspira, Pode estancar a Lácia e Grega lira.” Essa busca às origens possui a precípua finalidade de adentrar o progresso e efetivar-se como nação, já que “o único nacionalismo historicamente justificável era aquele ajustado ao progresso – isto é, aquele que alargava, e não restringia, a escala da operação humana na economia, na sociedade e na cultura”.53 Veremos que, no Brasil, essa operacionalização humana tendeu a construir uma consciência eminentemente nacional, a qual não se distinguia apenas pelo seu grau de diferenciação ou autenticidade, “mas pelo estilo em que são imaginadas”.54 Por esse motivo, a jovem intelectualidade da época destinou-se a construir e, sobretudo, a discutir o problema da identidade para a recente nação independente; e este se definiu ao “trazer para o texto os elementos particulares do país: a natureza, a história, as personagens primitivas”.55 Essas categorias surgiram como “verdadeiros” símbolos da identidade brasileira. Foram exaltadas de tal forma, a ponto de tornarem-se significativamente mitos56 de uma nação. Daí surgiram obras como Suspiros Poéticos e Saudades (1836), de Gonçalves de Magalhães, Canção do exílio (1843), Sextilhas de Frei Antão (1848), Primeiros Cantos (1846), Juca Pirama (1851), Os Timbiras (1857), todos de Gonçalves Dias, O guarani (1857), Iracema (1865), Alfarrábios

53 Cf. Eric Hobsbawn, Nações e Nacionalismo desde 1780, 4 ed., São Paulo: Paz & Terra, 2004, p. 116. 54 Cf. Benedict Anderson, Nação e Consciência Nacional, São Paulo: Ática, 1989, p. 15. 55 Cf. Maria Eunice Moreira, Op. Cit., p. 35. 56 Sobre esse aspecto, Dante Moreira Leite, em seu livro O amor romântico e outros temas (1979), alertara que a designação de mito não é apropriada para se discorrer sobre as categorias constituintes do Romantismo, pois o referido termo veicula uma ideia pejorativa de não-verdadeiro, não-autêntico. Tornar-se-ia verdadeiro exclusivamente para as consciências mistificadas ou enganadas, por isso, a preferência pelo termo símbolo a mito é semântico-estilisticamente mais adequada. Todavia, ressaltamos que o emprego do referido vocábulo nesse trabalho acadêmico visa a explorá-lo como uma estrutura que ascendia em ritmo progressivo ao da recente e emergente nação brasileira. Logo, fazer uso dele é uma iniciativa de maximizar a importância que estes tiveram na composição de uma nova página da Literatura Brasileira: o Romantismo. 28

(1873), Ubirajara (1874), todos de José de Alencar. Esses e muitos outros títulos do Romantismo brasileiro destinaram-se a registrar através de seus nativos e sua flora as características de uma nação recém-independente. Diante dessa proposta de construção e afirmação dos símbolos da nação, aspiramos a observar os critérios que levaram a intelectualidade da época a definir o que seria efetivamente visto e aceito como brasileiro tanto sob o prisma social como literário, outrossim, o que fora exprobrado por esses intelectuais como irrelevante, quiçá, como inaceitável, visto que “o deslumbramento com o progresso e o verniz de civilização encobrem problemas graves, como a escravidão”.57 Essa exclusão já percebida por Machado de Assis, no ensaio Instinto de Nacionalidade (1873), certamente é também observada pelos poetas da terceira fase do Romantismo Brasileiro, sobretudo Castro Alves. Tal perspectiva é motivada por uma concepção menos mítica, mais realista e inclusiva, ou seja, relacionada a uma definição de identidade nacional que privilegie a presença do negro como subjetividade. Um artigo da Revista Niterói, publicado no segundo e último número do referido periódico, intitulado Considerações econômicas sobre a escravatura (1836), escrito pelo mulato Tôrres Homem, posicionou-se contra a escravidão, ao defender opiniões precípuas que apontavam a escravatura como “um efeito deletério, favorecendo atitude contrária ao espírito de iniciativa, de desdém pelo trabalho industrial e a inovação, [...]”58 ou seja, economicamente, o trabalho escravo seria muito pouco produtivo, ele nos afastava de adentrarmo-nos no progresso da indústria.59 Porém, essa limitação de desenvolvimento, constatada no ensaio de Tôrres Homem, não causava tanto impacto na elite escravocrata brasileira, pois se a mesma lograra manter-se sólida e estável por um período de mais de trezentos anos, nesse sistema político de opressão, foi devido à escravidão. Sob a égide desse regime político, a elite brasileira constituíra sua formação e obtivera-se no poder.60

57 Cf. Ubiratan Machado, A vida literária no Brasil durante o romantismo, Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001, p. 19. 58 Cf. Bernardo Ricupero. Op. Cit., p. 93. 59 Para ratificar essa ideia, Tôrres Homem apoiou-se em Gustave de Beaumont e Aléxis de Tocqueville ao considerar “que os Estados Unidos, divididos entre sul escravista e o norte livre, ofereciam exemplo notável dos resultados da adoção de uma ou outra forma de trabalho. Em poucas palavras, o norte seria industrioso e próspero, o sul, rotineiro e pobre. Quanto ao Brasil, nota acuradamente um divórcio entre “o Brasil político e o Brasil industrial”. No primeiro Brasil, que outros depois chamarão de país legal, os progressos, beneficiados pelo exemplo europeu, teriam, em poucos anos, sido consideráveis. O “desenvolvimento industrial porém foi retardado pelo monstruoso corpo estranho implantado no coração de sua organização social. A posse de escravos tem evidentemente impedido de trilhar a carreira da indústria”.” Idem, ibidem. 60 Ver José Murilo de Carvalho, A construção da ordem: a elite política imperial – O teatro das sombras: a política imperial, 2. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 29

Além do mais, “numa sociedade voltada quase toda ela para a exportação de mercadorias trabalhadas pelo braço escravo, poucos podiam questionar a instituição servil”.61 E como poucos, ou reduzindo a uma categoria imensamente insignificante, questionavam a escravidão; a Revista Brasiliense ganhou mais destaque, quando Gonçalves de Magalhães defendeu “o conceito de literatura como expressão de um povo”,62 expondo o que “ele tem de mais sublime nas idéias, de mais filosófico no pensamento, de mais heróico na moral, e de mais belo na natureza; é o quadro animado de suas virtudes e de suas paixões, o despertador de sua glória, e o reflexo progressivo de sua inteligência; [...]”,63 em síntese, as qualidades desse povo seriam evidenciar as características de uma nação, entretanto o mesmo não se posicionou em relação aos problemas da escravidão brasileira. E como esse caráter eclodia em amplas proporções, faltava um órgão que se comportasse como um pesquisador de nossa história nacional, diante isso, inaugurou-se no Rio de Janeiro, em 21 de outubro de 1838, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), tendo sua sede na instituição de onde se originara: a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN)64 e era composto de cinquenta sócios, no entanto o maior de todos os contribuintes do IHGB foi o imperador D. Pedro II, que, através desse órgão, financiara as obras de intelectuais que elevassem o nacionalismo brasileiro:

O mecenato de D. Pedro II era exercido por meio de bolsas de estudo, viagens ao exterior, sinecuras, financiamento ao estudo, edições de livros, subsídios. Difícil determinar o número de beneficiados, nos mais diversos ofícios. Ofereceu subsídios ao editor Paula Brito, assim como à revista Guanabara, de Gonçalves Dias, financiou viagens de estudo de dezenas de escritores, pintores e músicos, concedeu pensões especiais, algumas vitalícias, como a que recebia a poetisa gaúcha Delfina Benigna da Cunha.65

Devido a tamanho compromisso, exatificava-se um elevado sentimento de reconhecimento para com a pessoa do monarca, logo eram comuníssimas as longas e expressivas dedicatórias a ele. Contudo, D. Pedro II ansiava por um agradecimento mais consubstancial; que seus favorecidos evidenciassem o que o império galgava e o indiscutível poder da nação:

61 Cf. Bernardo Ricupero, Op. Cit., p. 94. 62 Cf. Maria Eunice Moreira, Op. Cit., p. 55. 63 Cf. Domingos José Gonçalves de Magalhães, Discurso sobre a história da literatura do Brasil. In: ______. Opúsculos Históricos e Literários, Rio de Janeiro: Garnier, 1865, Tomo VIII, p. 241. 64 Ver Antônio Soares Amora. O Romantismo: a literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1967, v. II. Bernardo Ricupero. O Romantismo e a idéia de Nação no Brasil, São Paulo: Martins Fontes, 2004. 65 Cf. Ubiratan Machado, Op. Cit., p. 99. 30

Não bastava conhecer o caráter nacional – uma das preocupações máximas do imperador; era necessário também preservá-lo de influências nefastas e consolidá-lo por todos os meios, inclusive por intermédio da dignidade do ofício de escrever. Para isso, Pedro II estava disposto a jogar com todas as armas de que dispunha: da influência pessoal do mecenato.66

Partindo dessa observação, nenhures foi mais importante na divulgação do nacionalismo brasileiro que o IHGB. A partir daí, intelectuais de todo o Brasil filiaram-se ao instituto, comprometidos, em difundir os aspectos erigidos pelo romantismo como retratos de nossa realidade: o passado histórico cultural, a fauna e a flora brasileiras, a linguagem, os costumes e, sobretudo, o mais evidenciado de todos, aquele que ocupara o espaço que os cavaleiros medievais lograram na Europa: o índio.67 Nenhum outro elemento romântico ganhara mais ênfase quanto este último. Em virtude disso, pode-se observar que os intelectuais, em evidência no período, escreviam e publicavam à sombra do imperador e sua corte que, por sua vez, não evidenciava esforços para que pelo menos as medidas legais contra a escravidão fossem postas em prática. Como a corte não se pronunciava, os intelectuais que viviam diante de sua órbita muito menos, assim o negro continuava “invisível”. Por isso que Dante Moreira Leite68 advertira sobre a distância temporal e espacial que as produções literárias indianistas assumiram no século XIX, em relação à realidade do momento. Pelo fato de o índio não apresentar nenhuma ameaça à ordem vigente, uma vez que o mesmo era visto como uma imagem de um passado que não perturbava o regime político da época presente, então, evidenciá-lo tornou-se uma particularidade do romantismo. Com isso, problemas sérios pelos quais atravessara a nação eram conscientemente olvidados, como as rivalidades entre os

66 Cf. Ubiratan Machado, Op. Cit., p. 88-9. 67 Sobre este símbolo romântico e a tendência indianista, Nelson Werneck Sodré expusera que “o indianismo não era apenas uma saída natural e espontânea para o nosso romantismo. Era, mais do que isso, alguma coisa de profundamente nosso, em contraposição a tudo que, em nós, era estrangeiro, era estranho, viera de outras fontes. O indianismo era nativista, efetivamente, não por coincidir com a fase da autonomia – e não com os acontecimentos – e dela provir, como conseqüência direta, mas porque, logo após o processo da Independência, desenvolveu-se entre nós um nacionalismo vesgo, vago e virulento, traduzido em jacobinismo desenfreado, de que as nossas rebeliões provinciais mostraram traços evidentes. Indicar que o Brasil podia subsistir sem o português, e que podia viver de seus elementos próprios, dos que estavam na tarefa de colonização mas não eram lusos, constituía um tema excelente e peculiar à época. Dos três grupos humanos que haviam colaborado na obra da colonização, entretanto, excluído o português, contra o qual se voltava aquêle extremado nativismo, só o índio servia como fundamento para uma temática rica e agressiva.” Cf. Nelson Werneck Sodré, História da Literatura Brasileira, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 278. 68 Ver Dante Moreira Leite, O caráter nacional brasileiro, 7. ed., São Paulo: UNESP, 2007. 31 partidos Liberal e Conservador, durante o período regencial (1831-1840). As frequentes insurreições de cunho republicano, as crises econômicas pelas quais passara o Brasil e, sobretudo, as pressões nacionais e internacionais, principalmente por parte da Inglaterra, contra a escravidão. Os problemas mencionados eram as únicas evidências que atestavam o declínio da ordem vigente. No entanto, foram os mais fortes embates que sofrera o país; após a Inglaterra ter enriquecido seus cofres pessoais com a escravidão, e quando não havia mais o que usufruir dela, a mesma pressionou intensivamente o Brasil para o seu fim, enquanto o sistema político da escravidão impedia o processo de industrialização da nação, levando a Inglaterra, a maior potência mundial, na época, a lograr prejuízos substanciais, já que não tinha como investir industrialmente no Brasil. Em face dessa problemática, coube às produções poéticas e narrativas indianistas distanciar a Literatura Brasileira das divergências sociopolíticas que vivenciara. Enquanto se verificava esse distanciamento, do ponto de vista ideológico, alguns textos já denunciavam a manutenção da escravidão. Então, com a perspectiva de uma produção indianista, construíram-se textos que além de abordar a melodiosidade das estruturas fanopaicas, desenvolveram muito bem a criatividade estético-conteudística das imagens melopaicas.69 Podemos explorar tais elementos, como exemplo, no excerto de Juca-Pirama (1851), de Gonçalves Dias, cuja organicidade das ideias e das figuras de linguagem transmitem o quanto o silvícola tendeu a ser (re)definido:

No meio das tabas de amenos verdores, Cercados de troncos – cobertos de flores, Alteiam-se os tetos d’altiva nação; São muitos seus filhos, nos ânimos fortes, Temíveis na guerra, que em densas coortes Assombram das matas a imensa extensão.70

Estes versos hendecassílabos apresentam-nos a cerimônia realizada pelos índios, cuja intenção é destacar a bravura, a nobreza e, sobretudo, o poder da tribo dos Timbiras, que é evidenciado através das qualidades dos mesmos e do ambiente silvestre onde eles se encontram. A metonímia destacada nesse verso “Alteiam-se os tetos d’altiva nação” mostra-nos que o espaço para abrigar índios destemidos deveria ser grande na mesma proporção que eles eram.

69 As imagens melopaicas são geradas pela presença de elementos que se aproximam pela sonoridade no poema, já as estruturas fanopaicas correspondem justamente ao campo das metáforas, das imagens que são construídas no poema. Todas elas são categorias definidas por Ezra Pound. Ver: Ezra Pound, ABC da Literatura, São Paulo: Cultrix, 2006. 70 Cf. Gonçalves Dias, Poesia e prosa completas, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998, p. 379. 32

Esse modelo de exaltação ao índio manteve-se durante anos na temática do Romantismo Brasileiro, gerando inclusive uma saturação de tal proposta. A obra a Confederação dos Tamoios (1856), de Gonçalves de Magalhães, livro financiado pelo imperador D. Pedro II, foi considerada por nossos críticos brasileiros como “um anacronismo no estágio já avançado do nosso romantismo”.71 O enfoque no índio foi sendo alterado de sintonia, outrora, observava-se a imagem do índio altivo e destemido, logo após, iniciou-se a registrar imagens de um índio cuja altivez não era posta em destaque, como por exemplo, a pintura Moema (1866), de Vítor Meireles, que retrata uma índia morta, da mesma forma, o quadro de O último tamoio (1883), de Rodolfo Amoedo, que possui tema similar à imagem de Moema. Com isso, exatificamos que a temática vai cedendo espaço para uma outra proposta textual, ou seja, a estruturação da subjetividade do negro, o qual obteve uma abrangência de ideias quando se insere no contexto abolicionista almejado nos fins do século XIX. Adentraríamos, assim, uma nova proposta de identidade nacional a qual atingiu espaços consideráveis na pessoa do poeta Castro Alves:

Com Castro Alves, o nacionalismo romântico encontra, provavelmente, a sua expressão mais autêntica e mais completa. Algumas de suas poesias mais belas adquirem dimensão e profundidade exatamente porque contrastam a situação presente com os símbolos estabelecidos pelos poetas anteriores.72

A observação de Dante Moreira Leite explora a noção de que o negro, como símbolo de uma realidade atual, passa a obter visibilidade no panorama da identidade nacional brasileira com a poesia castroalvina pelo fato de esta enfocá-lo dentro de um universo abolicionista, enxergando-o, dessa forma, como um ser humano. A partir de então, inicia-se a solidificar o grande mérito da proposta de Castro Alves que é o fato de ele conseguir evidenciar a subjetividade do negro como um ser ontológico, numa proposta de arte literária poética, desvinculando o negro da imagem de mercadoria a qual a sociedade escravocrata atribuiu-lhe. Apreendemos que muitos outros autores brasileiros, antecedendo o poeta romântico, abordaram o universo do negro.

71 Cf. José Aderaldo Castelo, A literatura brasileira: origens e unidade (1500-1600), São Paulo: EDUSP, 1999, v. I, p. 225. 72 Cf. Dante Moreira Leite, Romantismo e Nacionalismo. In: ______. O amor romântico e outros temas, São Paulo: EDUSP, 1979, p. 47. 33

As primeiras referências ao negro na Literatura Brasileira derivam-se da influência dos textos ibéricos cujas referências remontam ao século XVI.73 Entretanto, a presença do negro, na sociedade portuguesa, data do século XV. Sua permanência nela encontra-se narrada ao lado de relatos sobre a escravidão em Lisboa. No século XV, a literatura da Península Ibérica ainda se encontrava atrelada à proposta clássica da imitação de temas tradicionais, especialmente ao amor cortesão, embora já existissem na sociedade daquela época elementos que foram usados com grande propriedade pelos escritores posteriores, tais quais a crueldade do tráfico negreiro, o duro tratamento imposto aos cativos e o desrespeito para com as famílias.74 Um outro aspecto sobre o qual Sayers chama a atenção é o próprio estilo de representação sobre o sujeito que normalmente era representado de forma realista ou satírica, a exemplo da obra Cancioneiro Geral, de Garcia Resende. O teatro e as novelas picarescas de Gil Vicente foram também outra fonte de representação, onde os negros figuravam com papeis secundários. A representação deles, contudo servirá à criação de personagens planos e estereotipados a serem utilizados como personagens “tipos” na pantomima e depois em romances escritos no século XIX. Indubitavelmente, a inclusão literária do negro em Portugal, no século XV, não constituirá nenhum dilema, uma vez que ele mesmo de forma marginalizada também era visto como uma figura característica da vida portuguesa composta por nobres arruinados, sacerdotes venais, ciganos, judeus agenciadores de casamento e assim por diante.75 A relevância de tal representação prende-se ao fato de o negro ser exposto como um ser humano com falhas, fracassos e inteligências ou como outras personagens. Posteriormente, foi introduzido por Gil Vicente três personagens negros, na literatura teatral: o negro amoroso em Frágua de Amor, o negro de ascendência nobre, na Nau de Amores, e do liberto que se tornou ladrão, no Clérigo da Beira. Em resumo, na obra de Gil Vicente, os negros cantam, amam, filosofam, enquanto parodiam tanto as baladas populares, quanto os cânticos religiosos. Por isso, é relevante destacar que a sua participação como personagem nas peças teatrais de Gil Vicente será sempre em comédia, um gênero de menor importância. Tal fato, entretanto, não chega a totalizar um prejuízo tão acentuado à identidade da personagem, visto que só através do século XVII é que o problema da escravidão do homem negro atinge proporções mais

73 Cf. J. P. Oliveira Martins, apud Raymond S. Sayers, O negro na Literatura Brasileira, Rio de Janeiro: o Cruzeiro, 1958, p. 24. 74 Cf. Raymond S. Sayers, Op. Cit., p. 25. 75 Idem, p. 29-30. 34 desumanas e violentas. Observa-se, no entanto, que imagens mais positivas do negro literário aparecem à medida que estes vão se tornando, na vida real, protagonistas de sua própria narrativa como foi o caso do mulato português Afonso Álvares que retratou o negro como polido, respeitoso e diligente, muito embora a condição de mulato no período era tão marginalizada quanto a do negro, uma vez que ser mulato(a) pressupunha a existência de filhos não legalizados pelo casamento, assim como o provável pertencimento do indivíduo a camadas mais pobres da sociedade. Enquanto a Literatura Portuguesa introduziu variantes temáticas que serviram a uma caracterização mais realista da personagem negra, a Literatura Espanhola do século XVIII apresentou outros de caráter mais associado ao papel trágico desempenhado pelo escravo nas sociedades americanas. À medida que o tráfico e o sistema escravocrata fortaleceram-se de forma generalizada nas Américas, a resistência contra eles foi intensificada através da literatura como uma das formas de denúncia social nas colônias. Essas críticas foram retomadas ainda no século XVI por precursores como: Lope de Vega e padres espanhóis como foram os casos de: José Antonio Saco; Frei Tomás Mercado; Bartolomé de Albornoz. Esses religiosos atacaram o argumento de que os negros entravam para o reino de Cristo quando escravizados pelos cristãos.76 Outros como foi o caso de José de Anchieta limitaram-se a dar informações de caráter numérico sobre a população. Embora, contraditoriamente, não tenha se expressado pelas condições subumanas dos escravos, ele preocupava-se com as suas almas. Dentre os supracitados religiosos, mesmo não se observando nitidamente um discurso contra a escravidão, muito menos um de cunho abolicionista, verifica-se na oratória de Vieira uma sensibilidade em relação aos maus-tratos a que foram submetidos os negros.77 Pois, a argumentação de José de Anchieta foi utilizada também pelo Padre Antonio Vieira, cuja retórica, presente no sermão Décimo Quarto, justifica o abuso praticado pelos portugueses como uma arbitrariedade “bíblica”, lembrando que “a mãe de Cristo os havia escolhido especialmente por filhos, e que isso que pode parecer desterro, captiveiro e desgraça, [...], não é senão milagre e grande milagre”. Para Vieira, “a paciência no sofrimento, a aceitação na tortura e o agradecimento na morte estavam escritos muito antes deles terem vindo ao mundo e, portanto, não haveria nenhuma outra maneira de salvação. Vieira chega a tal ponto na sua exaltação da

76 Ver Raymond S. Sayers, O negro na Literatura Brasileira, Rio de Janeiro: o Cruzeiro, 1958, p. 30-53. 77 Ver , Dialética da Colonização, 4. ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 144. 35 sorte e felicidade dos negros escravos que, depois de uma descrição realista dos trabalhos e horrores das caldeiras de um engenho insinua que ele os inveja: n’essa triste servidão de miserável escravo, tereis o que eu desejava sendo rei.78 Inscrito sob praticamente a mesma argumentação a qual se basearam as visões literárias sobre os negros, considerando-os humanos, Vieira lhes atribuiu essa mesma discursiva humanidade e igualdade perante Deus, entretanto, ele nunca chegou a posicionar-se para a libertação dos escravos-negros. Mediante o exposto, aproximamo-nos do discutido por Eva Bueno acerca do negro como personagem, e observamos que a representabilidade deste elemento no universo literário colonial e romântico ocorrera não apenas de forma parca, mas timidamente. Por causa disso, propusemo- nos a delinear a imagem desse negro que outrora foi pouco referenciado, mas a contemporaneidade visou a registrar a contribuição da representação na construção simbólica da nação brasileira. Reforçamos mais nossas abordagens partindo de como este elemento é visto e até idealizado no Sermão XIV do Rosário (1633), de Padre Antônio Vieira:

Não se pudera, nem melhor nem mais altamente, descrever que coisa é que ser escravo em um engenho do Brazil. Não há trabalho, nem gênero de vida no mundo mais parecido à Cruz e Paixão de Christo, que vosso em um d’estes engenhos. [...] Bem- aventurados vós se soubereis conhecer a fortuna do vosso estado, e com a conformidade e imitação de tão alta e divina similhança aproveitar e santificar o trabalho! Em um engenho sois imitadores de Christo crucificado: Imitatoribus Christi crucifixi, porque padeceis em um modo muito similhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua Paixão. A sua cruz foi composta de dois madeiros, e a vossa em um engenho é de três. Também alli não faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paixão: uma vez servindo para o sceptro de escarneo, e outra vez para a esponja em que lhe deram o fel. A Paixão de Christo parte foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descançar, e taes são vossas noites e os vossos dias. Christo despido, e vós despidos; Christo sem comer, e vós famintos; Christo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes affrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, também terá merecimento de martyrio. Só lhe faltava a cruz para a inteira e perfeita similhança o nome de engenho; [...] Mas para que esta primeira parte da imitação dos trabalhos da cruz o seja também nos afectos (que é a segunda e principal); assim como no meio dos seus trabalhos e tormentos se não esqueceu o Senhor de sua piedosíssima Mãe, encomendando-a ao Discípulo amado, assim vos não haveis de vós de esquecer da mesma Senhora, encomendando-vos muito particularmente na sua memória, e oferecendo-lhe a vossa.79

Assim, é visível, no texto de Padre Antonio Vieira, um olhar solidário diante da crueldade a que foi impelido o negro, no momento em que o sermonista identifica seu sofrimento ao de

78 Eva Paulino Bueno, O padre Antonio Vieira e a escravidão negra no Brasil, In: Revista Espaço Acadêmico, ano III, n. 36, maio de 2004, mensal.Disponível em: Acesso em: 20/01/10. 79 Cf. Padre Antonio Vieira, Sermão XIV do Rosário (1633), Lisboa: Lello & Irmãos, 1951, v. XI, p. 309-11. 36

Cristo. O mencionado escritor barroco se utiliza de um discurso conflitivo e cria um sentido de identidade de um sujeito que até então tinha sido considerado “inexistente” pela sociedade. Observamos, com a referida comparação, que Vieira desenvolve um processo de construção da identidade desse negro, mesmo que, no caso da colônia, houvesse a tendência sociopolítica de negar a existência deste enquanto sujeito. Gregory Rabassa, ao analisar a produção literária de Antônio Vieira, asseverou que ele “sentia que a escravidão negra era um bom substituto para a escravidão índia, que condenava”.80 É evidente que a afirmação de Rabassa desconsidera o período histórico sob o qual Vieira estava inserido. Embora não possa considerá-lo um progressista a rigor, se pensarmos na conjuntura como um todo, verificamos que a sua posição, como já exposto através do sermão Décimo Quarto, reconhece para época uma subjetividade presente no escravo que lhe é negada como ser humano detentor de uma alma. Com esses argumentos apresentados, Emílio Gennari acreditava que a produção de Vieira era uma justificativa da igreja católica em legitimar a escravidão, pois a mesma, como proprietária de escravos, não estabeleceu oposição ao referido sistema, no entanto dirigia-se aos senhores de engenho solicitando-lhes um determinado controle em relação aos castigos e maus- tratos, porque “enquanto aos cativos se recomenda a submissão com a promessa de um futuro glorioso nos céus, os senhores são ameaçados com os castigos divinos e terrestres (a rebelião e a sedição) caso não diminuam os maus-tratos”.81 Como podemos observar, algumas das leituras contemporâneas sobre Vieira extrapolam uma contextualização mais profunda do homem da época e da conjuntura como um todo em que ele viveu. Ao confrontá-las, observamos que a sua postura ambígua reflete as próprias contradições da Igreja católica frente ao problema, pois a mesma era latifundiária e possuía, como toda a sociedade, escravos. Nesse caso, Vieira continuará com a representação de sua história e com as contradições de uma época, sobre a qual o julgamento do milênio atual permanecerá como vazio, uma vez que as injustiças passadas não podem devolver ao passado a sua restituição, substituindo a história de uma sociedade mais justa por aqueles que foram vítimas do sistema e dentro dele pereceram. Então, sobre ele e todo o continente pesa o condicionamento de duas ideologias até os nossos dias inextinguíveis: o sistema capitalista, o colonialismo e as suas correlações com o racismo. A

80 Cf. Gregory Rabassa, O negro na ficção brasileira, Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1965, p. 82. 81 Cf. Emílio Gennari, Em busca da liberdade: traços das lutas escravas no Brasil, São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 27. 37 descrição da retórica de Antônio Vieira exprime “mutuamente o discurso da sensibilidade [...] e o discurso do entendimento, capaz de acusar o caráter iníquo de uma sociedade onde homens criados pelo mesmo Deus Pai [...] se repartem em senhores e servos”.82 Outros contemporâneos de Vieira não deixaram também de reportar-se esteticamente aos negros. Gregório de Matos em seu poema Epílogos expôs uma visão de ojeriza ao negro: “Dou ao demo os insesatos, / Dou ao demo a gente asnal, / Que estima por cabedal / Pretos, Mestiços, Mulatos”,83 mas tal posiconamento também não seria de espantar, pelo fato de ele ter nascido numa abastada família baiana, dona de escravos. João Adolfo Hansen expôs que Gregório de Matos sempre procurou afetar as aparências, dentre elas, poderíamos citar diversos tipos como aqueles identificados a seres vulgares, por isso, ele criticou:

[...] categorias sociais como “negro”, “pardo”, “índio”, “cristão-novo”, “judeu”, “comerciante”, “mulato”, “ourives”, “prostitutas”, “sodomitas” são a principal matéria satírica, porque identificados a vulgares viciosos. Vulgares porque doutrinados como naturalmente baixos, sem discrição; vulgares porque não sabem o seu lugar; vulgares porque pecam contra a natureza; vulgares porque se apropriam da convenção do “discreto” para com ela obter distinção e impor a classificação negativa a concorrentes.84

Unindo-se ao posicionamento de João Adolfo Hansen, Haroldo de Campos expusera opinião similar acerca da produção de Gregório de Matos no período colonial, pois o referido crítico enfocara a imagem do poeta como,

um aristocrata decadente [...], doutor por Coimbra, identificava-se com o "ideal de chevalier" (filho d'algo) e repudiava o "vil cotidiano dos outros homens", procedendo segundo os critérios da hierarquia estamental, que rebaixava tanto a atividade mercantil quanto o trabalho manual; que discriminava (inclusive por preconceito racial) o onzenário judeu e o mestiço arrivista, ávido de ocupar postos em tese devidos apenas aos "homens bons", brancos, pouco importando se a pessoa discriminada era nativo ou estrangeiro, [...]85

A visão de Haroldo de Campos serve para reforçar que a imagem que Gregório de Matos fazia do negro estava longe de colocá-lo como sujeito, visto que o poeta era conhecedor da

82 Cf. Alfredo Bosi, Dialética da Colonização, 4. ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 144. 83 Cf. Gregório de Matos, Epílogos, Disponível em: < http://www.revista.agulha.nom.br/gregoi01.html > Acesso em: 20/07/09. 84 Cf. João Adolfo Hansen, Floretes agudos e porretes grossos, Disponível em: Acesso em: 20/07/09. 85 Cf. Haroldo de Campos, Original e Revolucionário, Disponível em: Acesso em: 20/07/09. 38 necessidade econômica que o negro tinha na Colônia, portanto não haveria condições de evidenciar o escravo como elemento constituinte de nossa identidade brasileira. Porém, distanciando-se um pouco dos mencionados críticos, José Veríssimo afirmou que em algumas fases da produção poética de Gregório, ele “lastima, é certo, os negros e teve uma vez expressões de comiseração pelos escravos (pelo que já o deu a crítica indígena por abolicionista)”.86 Observemos, então, uma outra visão da produção poética dele acerca do negro, quando ele se dirige às mulatas; em um de seus poemas como em muitos, ele referenciou-lhes:

É parda de tal talento, Que a mais branca e a mais bela Poderá trocar com ela A cor pelo entendimento: É um prodígio, um portento; E se vos espanta ver Que adrede me ando a perder, Dá-me por desculpa amor, Que é fêmea trajada em flor, E sol metido em mulher.87

A imagem da mulher observada no excerto acima explora a visão voluptuosa do poeta em relação às mulheres negras e mulatas. A visível isotopia cromática no texto serve para construir os efeitos gradativos que o desejo de luxúria expresso pelo eu poético visa a enfatizar. O enfoque dado, logo no início do texto, à cor da mulata associa e, ao mesmo tempo, serve para criar, de forma velada, o estereótipo de que as mulheres pardas são talentosas nos envolvimentos sexuais. O eu poético sugere, então, que a mulher branca troque com ela sua cor pelo conhecimento que uma mulata detém acerca das artes do amor. O poeta desenvolve a conclusão de que não há como não se entregar, ou como ele mesmo emprega no texto, de adrede (de propósito) se perder com uma mulher dessas, pois metaforicamente “é uma fêmea trajada em flor”, ou seja, em beleza; “é um sol metido em mulher”, significando dizer um ser irradiante de volúpia. Essa denominação sugere a exploração sexual que as escravas sofriam com seus senhores, postura essa verificada não apenas no período colonial, porém durante todo regime escravocrata. Gregório de Matos,

86 Cf. José Veríssimo, História da Literatura Brasileira, São Paulo: Letras & Letras, 1998, p. 93. 87 Cf. Gregório de Matos, In: Sayers, R. S., O negro na Literatura Brasileira, 1956, p. 78. Gregory Rabassa mesmo reconhecendo a delicadeza que Gregório de Matos referenciou as mulatas, não deixou também de observar que ele “também cantava em termos elogiosos as mulatas, por terem sido aquelas que o iniciaram nas artes do amor.” Cf. Gregory Rabassa, O negro na ficção brasileira, Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1965, p. 83. 39 como oriundo do referido sistema, possivelmente usufruiu também dos prazeres proporcionados pelas mulatas. Outro contribuinte do retrato do negro brasileiro na fase colonial foi João Antônio Andreoni. Sayers vem a afirmar que este escritor complementou o quadro do negro urbano na sociedade brasileira, ao escrever o livro A Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas (1711), pois “Andreoni, analisando essa sociedade de base agrícola, revela compreensão mais completa da importância do negro”.88 “Compreende-se, assim, que os negros merecessem melhor trato; eram propriedade valiosa”.89 Constata-se tal observação de Sayers através do texto do próprio autor quando ele menciona que “os escravos são as mãos, e os pés do senhor do engenho; porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. E do modo, com que se há com eles, depende tê-los bons, ou maus para o serviço”.90 A observação da imagem descrita por Andreoni levou críticos, como Alfredo Bosi, a refletirem sobre a relação existente entre o escravo e o senhor de engenho não era apenas da necessidade de um para com o outro ou da importância do negro, no sistema colonial em si, mas no que se refere à sua atuação enquanto sujeito, verifica-se que essa condição foi intencionalmente reduzida à categoria de objeto, pois quando Andreoni descreve o processo de plantio da cana-de-açúcar, o mesmo põe em sequência uma gradação de ações que evidencia o objeto como agente e não o sujeito como autor da ação, através de estruturas textuais como “a terra roça-se (quem roça?), queima-se (quem o faz?), alimpa-se (quem?)”.91 Essa isotopia reducionista soma-se às sugestões metonímicas de o escravo ser as mãos e os pés do senhor de engenho engendrando um certo paradoxo, pois se alguém é tão insignificante a ponto de excluir a sua subjetividade, não se deveria reconhecê-lo como essencial ao processo de crescimento e

88 Cf. Raymond S. Sayers, Op. Cit., p. 82. 89 Idem, p. 83. 90 Cf. André João Antonil, Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas (1711), Salvador: Progresso, 1955, p. 47. Acerca da obra em questão, Alfredo Bosi expusera que “em momento nenhum do seu longo discurso em torno da vida nos engenhos Antonil se pergunta sobre a natureza, a origem ou a licitude da escravidão em si mesma. O cativeiro aparece-lhe como uma questão de facto sobre cujo mérito não cabe discutir. Certamente essa posição faria parte da sua “objetividade”. A escravidão existe, a escravidão é útil ao comércio do açúcar, que outro predicado ainda se lhe deve atribuir?” Cf. Alfredo Bosi, Dialética da Colonização, São Paulo: Companhia das Letras, 4. ed., 2006, p. 162. (O grifo e as aspas são do autor) Todavia, Bosi também sugere que Andreoni expõe que o senhor de engenho deveria comportar-se com benevolência para com o escravo, pois tal postura refletiria em benefício do senhor, observemos: “ser paternal, ser benévolo com o escravo, é caridade útil, que, cedo ou tarde, reverterá para o bem do fazendeiro.” Cf. Alfredo Bosi, Op. Cit., p. 163. 91 Cf. Alfredo Bosi, Op. Cit., p. 165. 40 lucro e de uma nação. Essa visão já abriria espaços para um futuro e um reconhecimento da identidade de um sujeito sobre o qual poderíamos expor com propriedade que foi o maior construtor da nação brasileira. Diante dessa perspectiva oposicionista entre a necessidade e o caráter de propriedade do escravo, Gilberto Freyre afirmou acerca do período escravocrata, na colonização brasileira: “Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na sua verdade, um processo de equilíbrio de antagonismos. [...] Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo”.92 É importante ressaltar que essa relação conflituosa não se comportou dessa forma exclusivamente no período colonial, reportamo-nos, mais uma vez, como já exposto nesse trabalho, ao pensamento de Gilberto de Melo Kujawski que sugere a existência de uma continuidade do processo de dominação que ocorrera na Colônia para o Brasil – Império; porque os antagonismos vivenciados no período colonial perpetuaram-se na recém-independente nação brasileira. Isso, de acordo com Leite (1979), gerou um conflito ainda maior sobre o que existira, porque “a imagem de um país livre criada pelos poetas contrasta com a situação de escravo; os símbolos da natureza se chocam com a realidade social”.93 A formação dos séculos XV, XVI, XVII e XVIII, na Europa e os seus conflitos de ordem social e racial repercutiram de forma contundente sobre a colonização do continente americano, especialmente na criação da identidade de seus sujeitos, suas relações sociais, sobretudo, intelectuais. Dessa correlação, foi tecida a realidade, como também a dos seus textos, como representações de manifestações de poder e violência sistematizada pelos Estados Europeus. A literatura não poderia constituir-se como um campo à parte das discussões, mas um campo entre o histórico e o político. Ela surge, nas Américas, sob uma racionalidade permeada por uma prática aliada à propagação da violência de certos indivíduos sobre outros, como um conceito para legitimar a posição da empresa colonizadora europeia sobre os demais sujeitos. Essa racionalidade foi inegavelmente preconizada pelo Racismo como uma justificativa aglutinadora, inicialmente, expressa como ódio e rejeição ao outro e depois de forma mais sofisticada, como um discurso científico. Dessa maneira, poetas e prosadores herdaram esses condicionamentos e frequentemente os representaram em suas obras limitando-os ao seu tempo.

92 Cf. Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala (1933), 49. ed., São Paulo: Global, 2004, p. 116. 93 Cf. Dante Moreira Leite, Romantismo e Nacionalismo. In: ______. O amor romântico e outros temas, 2 ed., São Paulo: EDUSP, 1979, p. 47. 41

2.1 Perspectivas Românticas

Qual a diferença sobre a forma de pensar e conceber o mundo de acordo com a perspectiva romântica? O que resultou do Romantismo no que se refere aos posicionamentos sobre as causas sociais, especialmente sobre a abolição da escravatura? Ao tentar definir o significado do homem romântico, do qual o poeta Castro Alves é herdeiro, tomamos como referencial determinados pontos específicos debatidos por Arthur O. Lovejoy.94 Definir o homem romântico para Lovejoy significa descrevê-lo sob perspectivas múltiplas. Uma pluralidade que reunia rótulos como liberais, conservadores, revolucionários e reacionários; preocupados com Deus, enquanto outros eram ateus. Alguns começaram as suas vidas como católicos devotados e viveram como ardentes revolucionários e morreram como conservadores. A expressão romântica ganhou domínio mais acentuado entre 1780 e 1850. Ser romântico era afinar-se com o sentimento de inadequação com as ideias dominantes do Iluminismo e das sociedades que o produziram. O Romantismo, acrescenta Lovejoy, refletiu a própria crise do Iluminismo. O sentimento de crise e o de revolução estiveram juntos abrangendo os sentidos teóricos, sobretudo, poéticos. Entre muitos, um dos expoentes partidários dessas mudanças foi o francês (1802-1885), cujo sentimento de iconoclastia encontrava-se representado pelo lema: “Destruamos as teorias, as poéticas e os sistemas”,95 como uma das teorias sobre o Drama Romântico, o prefácio de Cromwell (1827). As fontes teóricas usadas por Victor Hugo foram baseadas nos estudos de Chateaubriand, Mme. Staël, , os irmãos Schlegel, os Sismondi e, sobretudo, Sthendal.96 Ainda para Hugo, o drama romântico “seria uma nova forma de poesia fruto dos tempos modernos que deveria superar por completo as velhas manifestações clássicas que se prendiam em demasia a regras fixas”,97 pois “os tempos primitivos são líricos, os

94 Ver Arthur O. Lovejoy: “On the Discrimination of Romanticisms”. In: The Romantic Era. Disponível em: Acesso em: 20/01/10. 95 Cf. Victor Hugo, Do Grotesco e do Sublime: Tradução do Prefácio de Cromwell, Tradução e Notas de Célia Berrettini, 2. ed., São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 64. 96 Ver Andrey Pereira de Oliveira, Victor Hugo e o Manifesto do Drama Romântico. In: Revista Espaço Acadêmico, ano IV, n. 46, Março de 2005, Mensal, ISSN 1519.6186. Disponível em: Acesso em: 20/01/2010. 97 Idem, ibidem. 42 tempos antigos são épicos e os tempos modernos são dramáticos. A ode canta as eternidades, a epopéia soleniza a história, o drama pinta a vida”.98 A criação moderna, na perspectiva de Hugo, possuía uma nova noção sobre o “belo”, que abandonando a sua concepção clássica, “humaniza-se” especialmente ao conviver com a própria fealdade da vida. Ou seja, a nova proposta assevera que “tudo na criação não é humanamente belo que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz”.99 Aliados a essas propostas estéticas, o cristianismo de Hugo completaria esteticamente a visão de um mundo mais justo firmado em contrastes absolutos. Enquanto procedimento artístico, o drama romântico na proposta de Victor Hugo, caracterizava-se pela mistura dos gêneros, só assim podendo realizar uma pintura total da realidade como busca de uma poesia completa.100 No Brasil, a proposta social do Drama Romântico terá adeptos importantes, sobretudo na poesia social de Castro Alves, entretanto os precursores da temática crítica sobre os efeitos da escravidão sobre os indivíduos e a sociedade podem ser estudados nos textos de Joaquim Manoel de Macedo e no teatro de . Embora não constitua para nós estudo obrigatório sobre a obra desses dois autores para contextualizarmos a problemática em Castro Alves, entendemos que uma rápida abordagem sobre Martins Pena, é relevante pelo seu caráter pioneiro no teatro brasileiro e, acima de tudo, pelo seu valor ideológico. Estreando com a peça Os dous ou o inglês maquinista (1842), Martins Pena, primeiro dramaturgo do teatro nacional brasileiro, foi um dos primeiros a referenciar o negro no panorama teatral na época do Império brasileiro. Segundo Vilma Arêas, essa comédia “marca o ponto de inflexão da obra de Pena, [...] esboça em vários momentos uma comédia de meios-tons, refinada [...]”.101 Isso se deve ao fato de ela explorar os maiores vícios da realidade brasileira como:

A política do favor como mola social, a corrupção em todos os níveis, a precariedade e atraso do aparelho judicial, a exploração exercida por estrangeiros e a má assimilação da cultura européia importada, que o inspirou a escrever irônicas paródias da ópera, como O diletante, ou dos melodramas levados à cena por João Caetano. Acrescentem- se a esse rol o contrabando de escravos, os mecanismos da contravenção, a servidão por

98 Cf. Victor Hugo, Op. Cit., p. 40. 99 Idem, p. 26. 100 Ver Andrey Pereira de Oliveira, Op. Cit., In: Revista Espaço Acadêmico, ano IV, n. 46, Março de 2005, Mensal, ISSN 1519.6186. Disponível em: Acesso em: 20/01/2010. 101 Cf. Vilma Arêas, A comédia no Romantismo Brasileiro: Martins Pena e Joaquim Manoel de Macedo, p. 206. Disponível em: Acesso em: 20/07/09. 43

dívida, comportamentos sexuais e familiares, etc. Esses e outros aspectos que percorriam a sociedade brasileira de alto a baixo são exibidos no palco.102

Mediante o exposto, observamos que a comédia de Pena inscreve as primeiras produções literárias do Romantismo com uma crítica ao abuso das autoridades em manter a prática do tráfico negreiro, muito comum na época. Isso é o que observaremos no excerto abaixo extraído da peça Os dous ou o inglês maquinista (1842):

Felício – Sr. Negreiro, a quem pertence o brigue veloz Espardate, aprisionado ontem junto quase da Fortaleza de Santa Cruz pelo cruzeiro inglês, por ter a bordo trezentos africanos? Negreiro – A um pobre diabo que está quase maluco... Mas é bem feito, para não ser tolo. Quem é que neste tempo manda entrar pela barra um navio com semelhante carregação? Só um pedaço de asno. Há por aí além uma costa tão longa e algumas autoridades tão condescendentes!... Felício – Condescendentes porque se esquecem de seu dever! Negreiro – Dever? Perdoe que lhe diga: ainda está muito moço... Ora, suponha que chega um navio carregado de africanos e deriva em uma dessas praias, e que o capitão vai dar disso parte ao juiz do lugar. O que este há de fazer, se for homem cordato e de juízo? Responder de modo seguinte: Sim senhor, Capitão, pode contar com a minha proteção, contanto que V. S. ... não sei se me entende? Suponha agora que este juiz é um homem esturrado, destes que não sabem aonde têm a cara e que vivem no mundo por ver os outros viverem, e que ouvindo o capitão, responde-lhe com quatro pedras na mão: Não senhor, não consinto! Isto é uma infame infração da lei e o senhor insulta-me fazendo-me semelhante proposta! – E que depois deste aranzel pega na pena e oficia ao Governo. O que lhe acontece? Responda. Felício – Acontece o ficar na conta de íntegro juiz e homem de bem. Negreiro – Engana-se; fica na conta de pobre, que é menos que pouca coisa. E no entanto vão os negrinhos para um depósito, a fim de serem ao depois distribuídos por aqueles de quem mais se depende, ou que têm maiores empenhos. Calemo-nos, porém, que isto vai longe. Felício – Tem razão. (Passeia pela sala.)103

Sobre o fragmento acima, Miriam Garcia Mendes observou que os negros, na peça aparecem como figurantes (pretos de ganho, pretos dos manuês, escravos da casa), não sendo sequer mencionados na lista de personagens.104 Porém, além dessas características, há algo que a mencionada crítica considerou como curioso, pois,

102 Cf. Vilma Arêas, A comédia no Romantismo Brasileiro: Martins Pena e Joaquim Manoel de Macedo, p. 202. Disponível em: Acesso em: 20/07/09. 103 Cf. Martins Pena, Os dous ou o inglês maquinista (1842), ato único, cena I, p. 2-3, Disponível em: Acesso em: 02/04/09. 104 Ver: Miriam Garcia Mendes, A Personagem Negra no Teatro Brasileiro, São Paulo: Ática, 1982, p. 28. 44

No esplêndido quadro de costumes que Martins Pena compõe nesta comédia, além das referências às atividades dos traficantes de escravos e seus estratagemas para burlarem tanto a repressão inglesa quanto a brasileira, existem cenas que mostram o relacionamento senhor/escravo com bastante clareza. Assim, embora não possamos dizer que a peça contém personagens negras (são apenas figurantes), as cenas [...] mostram a preocupação do autor com o problema do cativeiro.105

Diante do apresentado, é visível também no desenrolar do drama a utilização da proposta de Victor Hugo, principalmente, o humanismo cristão em defesa do negro como sujeito, mesmo que ele apareça como figurante, já que essa categoria obedecia à conjuntura da situação na qual vivia o negro, então, ocorrer um processo de ênfase sobre a identidade humana do sujeito negro, ausente na época. Ainda consoante à posição de Miriam Garcia Mendes acerca do texto, verifica- se que “o jovem (Felício, personagem sobre o qual se encontram representadas as idéias do autor) demonstra um espírito cívico, que era o de Martins Pena, não concordando e mesmo condenando o que vinha sendo feito abertamente ou sob as vistas complacentes das autoridades”.106 Embora muitas produções dramáticas do Romantismo destinavam-se a fazer o público sorrir, principalmente na comédia Os dous ou o inglês maquinista (1842), pois “o interesse central da comédia se fixa [...] nas trapalhadas e complicações decorrentes das intenções de Clemência a respeito do casamento da filha e dela própria, das tentativas do inglês para obter financiamento do seu invento, de Felício casar com a prima”,107 vemos que,

Martins Pena deixa perceber, através da personagem Felício e sua conversa com o traficante de escravos Negreiro (já é sintomático o nome), a sua posição sobre o problema do cativeiro: se não o ataca ostensivamente, pelo menos não o vê com simpatia. O que já era muito numa época em que as preocupações sobre o assunto se centravam no repúdio à repressão dos ingleses ao tráfico negreiro dentro das águas territoriais brasileiras.108

Diante da asserção de Miriam Garcia, vemos que as relevâncias ou as pequenas referências aos negros, no Brasil, ganham espaços através de questionamentos sobre sua condição humana e seus direitos civis na nação. Sob essa perspectiva, vislumbram-se a discussão da ideia de uma identidade presente a partir de então na personagem do negro e que é criada pela

105 Cf. Miriam Garcia Mendes, A Personagem Negra no Teatro Brasileiro, São Paulo: Ática, 1982, p. 29. 106 Idem, p. 30. 107 Idem, p. 33. 108 Idem, p. 28. 45 elaboração das concordâncias e discordâncias do enredo. Paul Ricoeur já afirmara em seu estudo sobre identidade nacional que “la identidad del personaje será entendida a partir de las discordâncias y concordâncias que abren y cierran la historia”.109 Tal afirmativa pode nos servir de respaldo do entendimento do diálogo entre Felício e Negreiro ora tratado como objeto por uma sociedade cujas bases econômicas relacionadas estavam a uma estrutura “feudal” e escravagista. Após meados do século XIX, a abordagem sobre o negro adquire direcionamentos cuja autoria foi assinalada por um poeta negro, filho de uma escrava. É o caso de Luís Gama que, dentre a sua produção, destacamos toda a subjetividade em defesa da condição do negro, no poema No cemitério de S. Benedito da cidade de S. Paulo (1859), publicado no livro Primeiras trovas burlescas de Getulino (1859). O poeta distingue-se dos demais autores românticos, principalmente por não ser oriundo de família abastada como seus contemporâneos, pelo fato também de ele ser negro, ex-escravo e um advogado abolicionista inserido numa sociedade escravocrata, racista e discriminatória contra homens negros que emergem a uma posição ocupada preferencialmente por brancos. Filho de um fidalgo português com uma negra africana alforriada da nação Nagô, Luís Gama vivenciou, com toda a clareza o que a escravidão pôde proporcionar, ou seja, ele sentiu fortemente as consequências de ser escravo, pois aos dez anos de idade foi vendido pelo próprio pai para pagar uma dívida de jogo que adquirira. A poesia do referido poeta é a expressão de uma voz poética negra acerca dos sofrimentos atribuídos a negros, como o poeta. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira ao analisar a produção de Luiz Gama destacara que:

Sua poesia ofereceu uma visão de identidade sem a pretensão da solução prototípica absoluta e dissolvedora das tensões. A poesia de Gama é plural, multifacetada, resolve- se em acréscimo e não em exclusão: a sua identidade poética firmou-se também pela absorção do outro e não apenas pela confirmação de si mesmo. Motivou, enquanto grafologia dos sentidos, leituras plurais. Sem ornamentos. Há o deslocamento do olhar dominante e também o deslocamento da visão imposta ao culturalmente subjugado.110

O exposto além de contextualizar o estudo sobre o resgate da subjetividade do negro dentro do processo de identidade de um sujeito, enfoca uma leitura ainda não observada nas

109 Cf. Paul Ricoeur (1992) apud Zélia Monteiro Bora, Naciones (re)construídas: política cultural e imaginación, Valladolid, Universitas Castellae, 2002, p. 11. 110 Cf. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira, Luiz Gama: um poeta como um certo tipo de homem, p. 4. Disponível em: Acesso em: 30/07/09. 46 produções literárias da época a de diversificar o olhar atribuído ao negro, uma vez que até então o referido indivíduo era visto apenas como escravo, mas Gama o evidencia, humanizando-o, dando-lhe a subjetividade que outrora lhe negaram (Ver poema abaixo). Há uma pluralidade de imagens, como já mencionada, que envolve a identidade desse indivíduo; construindo acerca desse escravo, um sujeito que é referenciado por uma voz poética que pretende, com isso, superar os paradigmas atribuídos ao negro pelo colonizador português. Isso tudo é o que podemos visualizar nos versos abaixo descritos:

Também do escravo a humilde sepultura Um gemido merece de saudade: Ah! Caia sobre ela uma só lágrima De gratidão ao menos.

Dr. B. Guimarães

Em lúgubre recinto escuro e frio, Onde reina o silêncio aos mortos dado, Entre quatro paredes descoradas, Que o caprichoso luxo não adorna, Jaz de terra coberto humano corpo, Que escravo sucumbiu, livre nascendo! Das hórridas cadeias desprendido, Que só forjam sacrílegos tiranos, Dorme o sono feliz da eternidade.

Não cercam a morada lutuosa Os salgueiros, os fúnebres ciprestes, Nem lhe guarda os umbrais da sepultura Pesada laje de espartano mármore. Somente levantando um quadro negro Epitáfio se lê, que impõe silêncio! — Descansam neste lar caliginoso O mísero cativo, o desgraçado!...

Aqui não vem rasteira a vil lisonja Os feitos decantar da tirania, Nem ofuscando a luz da sã verdade Eleva o crime, perpetua a infâmia.

Aqui não se ergue altar, ou trono d'ouro Ao torpe mercador de carne humana, Aqui se curva o filho respeitoso Ante a lousa materna, e o pranto em fio Cai-lhe dos olhos revelando mudo A história do passado. Aqui, nas sombras Da funda escuridão do horror eterno, Dos braços de uma cruz pende o mistério, 47

Faz-se o cetro bordão, andrajo a túnica, Mendigo o rei, o potentado escravo!111

Observamos que o direcionamento individual dado ao negro serviu para encadear um sentimento de comiseração em relação a ele. As imagens antitéticas entre o nascer livre e o sucumbir escravo, em ser sepultado numa cova a qual não é marcadamente diferenciada das sepulturas luxuosas, e o fato de sua lápide generalizar o ser que está lá, o mísero cativo, geram uma reflexão acerca da existência desse sujeito, e diante dela é suplicado um sentimento de piedade para com uma vida que dilacera a condição humana. É visível no apelo do eu lírico em que se reconheça a identidade daquele “humano corpo” enquanto sujeito. Estes versos da epígrafe introduzem essa ideia: “Caia sobre ela uma só lágrima,”, “De gratidão ao menos”. A poesia de Gama sugere que “auto-imagem o intelectual negro oitocentista foi capaz de projetar, enquanto indivíduo isolado e enquanto ser social, membro da comunidade negra escravizada”.112 Desse sugestionamento da produção de Luís Gama, questionamos se esta influenciou de forma direcionada a produção de Castro Alves e que relações ela teria com o abolicionismo do poeta baiano? Mesmo que Castro Alves tenha conhecido Luís Gama, porém não houve um envolvimento direto da poesia deste com a daquele, entretanto pelo fato de Luís Gama ser um homem combativo, principalmente pela sua própria história de vida, sua loquacidade e sua incontestável posição em relação à campanha abolicionista, caber-lhe-ia o título de poeta dos escravos, obedecendo primeiramente a uma cronologia, pois sua poesia foi precursora na temática da emancipação dos escravos, satirizando o sistema escravocrata e denunciando os crimes da escravidão. Após as observações pontuadas acerca da produção de Martins Pena e Luís Gama, começamos a verificar algumas composições que percorrem abordagens distintas sobre o negro- escravo das que os referidos autores mencionaram. Referimo-nos à publicação da obra Demônio familiar (1857), de José de Alencar, o qual se referiu ao escravo de maneira particular, ou seja, dando-lhe o papel de personagem, e principalmente protagonista, da peça. O romancista cearense não aspirou a destacar a escravidão frente a uma visão abolicionista, porque “sua oposição à escravidão, tal como demonstra no seu drama, não se baseava nos males que afligem os negros,

111 Cf. Luís Gama, Trovas burlescas e escritos em prosa. Org. Fernando Góes. São Paulo, Cultura, 1944. p.128-129. Disponível em: Acesso em: 02/04/09 112 Cf. Heloisa Toller Gomes, O negro e o romantismo brasileiro, São Paulo: Atual, 1988, p. 87. 48 mas se fundamentou na influência perniciosa da instituição sobre as famílias dos donos de escravos”.113 Nesse ponto, a situação da escravidão já se tornara um fardo demasiadamente pesado, as sucessivas revoltas, crimes de morte e roubos contra os senhores e feitores atestavam de forma violenta o teor das relações entre senhor e escravo. Uma das maneiras de atacar o escravocrata é o fato de o escravo estar em convívio constante com seu senhor. Por esse motivo, que a peça Demônio familiar destinar-se-á a retratar o negro no ambiente de seu senhor, pois, como já pontuado, a própria sociedade se afligirá com o mal que ela mesma criara, a escravidão. Essa foi a forma que José de Alencar utilizou para registrar sua oposição a essa instituição.114 Portanto, discuti-la na peça do mencionado escritor é apresentar possíveis possibilidades de almejar o seu fim. Sábato Magaldi é, além de Gregory Rabassa, outro crítico que discuti a escravidão na mencionada peça conferindo-lhe também esse caráter pernicioso: “A nosso ver, é impossível não distinguir na peça a condenação ao cativeiro, embora o autor o tenha feito com as armas do ficcionista. [...] Alencar estigmatiza, genericamente, a sociedade escravocrata, pelos males que a afligem”.115 Coadunando-nos à observação de Magaldi sobre a peça, entendemos que mesmo que a escravidão apresente-se prejudicial à sociedade, as soluções para o seu fim são abordadas, na peça em questão, de maneira sutil, sem que realmente fique registrada, no texto, a necessidade de extinguir a problemática. A personagem principal Pedro se enquadra como um escravo da casa, aquele que gozava da confiança e do afeto de seus senhores. Condições essas que levaram ao título da comédia e à discussão dessa proximidade do escravo aos seus donos. Uma vez que, “o personagem que dá título à peça é um escravo que traz muitos prejuízos ao seio da família, assim ilustrando a versão que dá Alencar aos danos da escravidão”.116 Porém, Araripe Júnior observara que a maldade de Pedro não é um produto da escravidão; “é um produto da família brasileira; eis o grande engano. Quando muito seria uma recriminação à relaxação dos nossos costumes, e, neste caso, tanto o papel assentaria num fâmulo ou num filho-família de sentimentos menos elevados”.117 Miriam Garcia Mendes corroborando por um pensamento similar a Araripe Júnior asseverara que o autor de Demônio familiar (1857) “pretende, de fato, mostrar a sociedade, simbolizada na família de

113 Cf. Gregory Rabassa, O negro na ficção brasileira, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1965, p. 90-1. 114 Idem, p. 90. 115 Cf. Sábato Magaldi, Panorama do teatro brasileiro, São Paulo: Dif. Européia do Livro, s./d., p. 94-5. 116 Cf. Gregory Rabassa, Op. Cit., p. 91. 117 Cf. Afrânio Coutinho, Obra crítica de Araripe Júnior, Rio de Janeiro: MEC/Casa de Rui Barbosa, 1958, p. 176. 49

Eduardo, afligida pelos males provenientes de uma situação que ela mesma criou, mas [...] alforrias individuais não são uma solução”.118 Realmente, não são, mas é relevante salientar que José de Alencar não deixou de enxergar a escravidão como uma problemática, e dessa dever-se-ia buscar possíveis condições de a referida instituição não se apresentar mais como um problema à sociedade. Diante disso, o autor da peça sugere, numa postura não muito distante de um viés escravocrata:

[...] Eduardo: Ah!... Escutem-me, senhores, depois me julgarão. É a nossa sociedade brasileira a causa única de tudo quanto se acaba de passar. Alfredo: Como? Vasconcelos: Que quer dizer? Azevedo: Tem razão, começo a entender! Eduardo: Os antigos acreditavam que toda a casa era habitada por um demônio familiar, do qual dependia o sossego e a tranqüilidade das pessoas que nela viviam. Nós, os brasileiros, realizamos infelizmente esta crença; temos no nosso lar doméstico esse demônio familiar. Quantas vezes não partilham conosco as carícias de nossas mães, os folguedos de nossos irmãos e uma parte das afeições da família! Mas vem um dia, como hoje, em que ele, na sua ignorância ou na sua malícia, perturba a paz doméstica; e faz do amor, da amizade, da reputação, de todos esses objetos santos, um jogo de criança. Este demônio familiar de nossas casas, que todos conhecemos, ei-lo. Azevedo: É uma grande verdade. [...] Eduardo: Todos devemos perdoar-nos mutuamente; todos somos culpados por havermos acreditado ou consentido no fato primeiro, que é a causa de tudo isto. O único inocente é aquele que não tem imputação, e que fez apenas uma travessura de criança, levado pelo instinto da amizade. Eu o corrijo, fazendo do autômato um homem; restituo-o à sociedade, porém expulso-o do seio de minha família e fecho-lhe para sempre a porta de minha casa. (a Pedro) Toma: é a tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje em diante, porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão uma conta severa de tuas ações. Livre, sentirás a necessidade do trabalho honesto e apreciarás os nobres sentimentos que hoje não compreendes. (Pedro beija-lhe a mão) [...]119

Esses fatos servem realmente para reforçar que a iniciativa de Eduardo em alforriar o negro Pedro, dando-lhe a liberdade, não era apenas uma forma de a família de Eduardo estar livre dos infortúnios sofridos pelas consequências dos atos do escravo, mas também uma sutil possibilidade da qual deveria ser o fim da escravidão: a liberdade dos escravos. Seria também uma forma de a própria sociedade posicionar-se, através do drama de José de Alencar, diante do que representa a escravidão, já que aquela mesmo sendo a favor desta, a via como uma

118 Cf. Miriam Garcia Mendes, A Personagem Negra no Teatro Brasileiro, São Paulo: Ática, 1982, p. 42. 119 Cf. José de Alencar, O demônio familiar (1857), In: Flávio Aguiar (Org.), Comédias, Ato IV, Cena XVII, São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 273-6. 50 problemática, no seu convívio familiar. Devido a isso, José de Alencar ao retratar essa influência, não deixou de conceder traços moralizantes na construção da dramaturgia romântica, em especial, no que se refere às problemáticas sociais. José Veríssimo, sobre esse posicionamento, asseverou:

Para o teatro, principalmente, levou Alencar as predisposições moralizantes que, sobre serem muito do gosto do nosso romantismo, excetuados os poetas da segunda geração romântica, são da índole do gênero. Acentua deliberadamente as preocupações morais e didáticas com que nascera o nosso teatro, apenas em Martins Pena atenuadas pelo caráter de farsa do seu e pelo que havia na sua veia de nativo e popular. O fito do teatro, segundo se lhe depreende da obra, deve ser a discussão dos problemas de ordem moral que interessam à sociedade contemporânea.120

A asserção de José Veríssimo constata a força que provinha do teatro, já que esse substituíra as idas à igreja, a qual era o único estilo de vida social que desfrutavam jovens e mulheres. “O teatro era um caso à parte. [...] Desfrutava de um prestígio e de uma força social sem paralelo, com extraordinária repercussão na vida das pessoas”.121 Por isso, que o mencionado espaço estava sempre aberto a posicionamentos que constatavam a ideologia vigente na época, seja em nível social, político, econômico, ou religioso. A peça Demônio familiar (1857) pode não enxergar o negro como um sujeito ou um ser construtor de sua própria identidade, muito menos um ser visto com sentimentos inteiramente humanos, como o escravo abordado por Castro Alves e como os demais autores românticos o viram, mas ela explora a ideia de que a escravidão não é algo benéfico; abre-se, então, o questionamento do que deveria ocorrer com a mesma. Todavia, José de Alencar não expõe, na mencionada peça, o fim da escravidão, pelo fato de ele não se desvincular de sua postura escravocrata totalmente. Anos depois, ao escrever a peça Mãe (1860),122 de forte visão escravocrata, e também por ter escritos cartas a favor da escravidão123 (todas da década de 60), dirigidas ao imperador Dom Pedro II, ele se mantém numa postura de não-defesa da abolição da escravatura, mesmo em Demônio familiar (1857), haver a sutil sugestão do fim da escravidão e de alguns críticos a respeito da peça comungarem de mesmo ponto de vista, como Sayers que afirma que o personagem Pedro, por ser escravo, “não poderá ser responsabilizado por nenhuma de suas ações; somente quando liberto poderá tornar-se um

120 Cf. José Veríssimo, História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908), São Paulo: Letras & Letras, 1998, p. 273. 121 Cf. Ubiratan Machado, A vida literária no Brasil durante o romantismo, Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001, p. 282. 122 Ver João Roberto Farias (Org.), Dramas, São Paulo: Martins Fontes, 2004. 123 Ver Tamis Parron (Org.), Cartas a favor da escravidão, São Paulo: Hedra, 2009. 51 homem e um ser responsável”.124 Em síntese, a peça reforça a ideia expressa por Sayers que “em vez de apresentar uma análise construtiva de uma tese social, o entrecho se degenera numa sucessão de cenas sádicas, em que o negro é vítima de escusas crueldades por parte dos senhores brancos”.125 Crueldades essas que ganham força maior quando nos referimos a autores que enfocaram os escravos, não como influenciadores no meio ao qual estavam inseridos, mas como vítimas da complexidade social que o sistema escravocrata regia. Referimo-nos a , autor de Mauro, o escravo (1864). Poema que narra o desejo de vingança de Mauro pelo assassinato de sua irmã Maria, cometido por Lotário. O poema retrata também a problemática das negras- escravas serem abusadas sexualmente pelos senhores e filhos de senhores-de-engenho. A mensagem ganha uma proporção muito mais coletiva que individual, concentra-se muito mais na denúncia, no repúdio à escravidão e, sobretudo, no sentimento de vingança gerado pela maldade alheia. Fagundes Varela, diferenciando-se de seus contemporâneos, almejou retratar um escravo destemido, capaz de honrar sua raça pela coragem e pela bravura. Essa estrutura rompe com o idealismo romântico, pois enquanto os autores anteriores exploravam a força e a coragem dos silvícolas, através dos traços constitutivos da raça deles, esse romântico enfoca o negro na plenitude de suas ações, na perspicácia de suas intenções e, sobretudo, na fortaleza de seu caráter.

Observemos, então, as particularidades que o retratam:

XI Oh! Mauro era belo! Da raça africana Herdara a coragem sem par, sobre-humana, Que aos sopros do gênio se torna um vulcão. Apenas das faces de um leve crestado, Um fino cabelo, contudo anelado, Traíam do sangue longínqua fusão. 126

No referido fragmento, ocorre a exaltação do mulato Mauro, postura até então não visualizada nas produções literárias anteriores. Mauro é apresentado com uma identidade heróica, como o próprio texto menciona herdara uma coragem sobre-humana. Observaremos mais adiante que a postura de herói será reforçada pela coragem do negro em lutar pela honra da irmã e pela

124 Cf. Raymond Sayers, O negro na Literatura Brasileira, Rio de Janeiro: Edições o Cruzeiro, 1958, p. 277-8. 125 Idem, p. 261. 126 Cf. Luís Nicolau Fagundes Varela, Vozes da América: poesias, 1864, Disponível em: Acesso em 10/05/2009. 52 vingança de sua morte. Sobre esses traços pouco trabalhados na personagem negra do romantismo, Bosi afirmara que Mauro, de Varela “acabou dizendo mais da visão romântica do herói rebelde que das angústias do negro nas condições em que este penava”.127 O heroísmo de Mauro é algo que, no texto, dá uma imagem de escravo, não submisso, aquele que pela honra não mede consequências:

XXII Não creias que eu tema! não creias que escravo Suplícios me curvem, ai! não, que sou bravo! Por que me condenas? que culpa me oprime, Senão ter vedado que um monstro cruento, De fogos impuros, lascivos, sedento, Lançasse a inocência nas lamas do crime?

XXIII Oh! sim, sim, teu filho, no lúbrico afã, Tentou à desonra levar minha irmã! Ai! ela não tinha que um mísero irmão!... Ergui-me em defesa; teus ferros esmagam, Humilham, rebaixam, porém não apagam Virtudes e crenças, dever e afeição! 128

O discurso da defesa de Mauro em favor de sua irmã abre espaços a uma nova formação literária acerca do negro brasileiro, porque posiciona o eu lírico quanto à construção de uma nova identidade do negro, que mesmo sendo humilhado pelos ferros da escravidão, não sente suas virtudes, crenças e deveres apagados diante deles. Ergue-se com esse posicionamento um sujeito que reclama direitos em benefício de si próprio que se torna extensivo também ao seu grupo, já que o negro não aceitara que a ameaça que sofrera sua irmã seja ignorada e olvidada pela justiça. A afirmação de Mauro serve como ênfase ao conflito existente entre escravidão e dignidade humana. Sendo dessa antitética estrutura que se erigirá uma complexa, todavia, visível identidade negra. É valendo-se do discurso de respeito ao “outro” e de honra que visualizaremos caminhos ainda não observados acerca do negro, na Literatura Brasileira. Vemos, com essa reverberação, um escravo que se considera mais livre que um homem livre, uma vez que aquele além de não aceitar os erros cometidos pelo branco rebela-se contra eles, irrefutavelmente.

127 Cf. Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, São Paulo: Cultrix, 1994, p. 119. 128 Cf. Luís Nicolau Fagundes Varela, Op. Cit., 1864. Disponível em: Acesso em: 10/05/2009. 53

A representação poética contra o sistema da escravidão exposto por Fagundes Varela é um exemplo de como algumas inconformadas vozes poéticas posicionavam-se diante desse regime. Inconformação tal vivenciada por Castro Alves desde a sua primeira manifestação literária contra os abusos do sistema escravocrata. Contudo, é importante ressaltar que vários foram os fatores que motivaram o poeta a assumir uma postura abolicionista. Dentre eles, podemos apresentar o próprio caráter do movimento abolicionista:

O abolicionismo é, assim, uma concepção nova em nossa história política, e dele, muito provavelmente, como adiante se verá, há de resultar a desagregação dos atuais partidos. Até bem pouco tempo a escravidão podia esperar que a sua sorte fosse a mesma no Brasil que no Império Romano, e que a deixassem desaparecer sem contorções nem violência. A política dos nossos homens de Estado foi toda, até hoje, inspirada pelo desejo de fazer a escravidão dissolver-se insensivelmente no país.129

Levando-se em consideração esse desejo de ruptura estabelecido pelo posicionamento de Joaquim Nabuco e a produção literária brasileira, na época de Castro Alves, sobre a representação estética do escravo, entendemos que cada um dos autores consultados apresenta diferentes perspectivas baseadas nas posições ocupadas por eles mesmos. Como enunciadores das representações do negro, observamos que eles variam entre as seguintes imagens: martirizados como no Sermão Décimo Quarto (1633), seres voluptuosos como no excerto de Gregório de Matos, seres coisificados como em Cultura e Opulência no Brasil (1711), seres injustiçados e por isso observados como seres humanos merecedores de terem seus direitos mantidos, como a peça Os dous ou O inglês maquinista (1842), pessoas dignas de misericórdia e compaixão, como no poema No cemitério de S. Benedito da Cidade de São Paulo (1859), destruidores da moral como na peça Demônio familiar (1857) e também heróis e vingadores como no poema Mauro, o escravo (1864). Todas essas representações criaram identidades marcadas e fixas com o resultado de que o “lucro” dessas produções literárias resulta na construção de argumentos e posturas abolicionistas, durante todo o desenrolar dos trezentos anos de escravidão negra no Brasil. Unindo-se à proposta estético-abolicionista dos textos analisados, no presente capítulo, e também a posicionamentos de abolicionistas como Joaquim Nabuco, Castro Alves foi construindo sua voz poética em cima da necessidade básica que permeia todo e qualquer homem: a liberdade. Essa basilar condição de vida foi também discutida por aquela instituição que um dia

129 Cf. Joaquim Nabuco, O Abolicionismo (1884), Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 3. 54 havia defendido a escravidão: a Igreja. Essa durante anos emitiu bulas papais que condenavam e proibiam o sistema escravocrata, dentre elas, a Bula In Supremo escrita pelo Papa Gregório XVI, em 3 de dezembro de 1839 que condenava e proibia a escravidão; a encíclica In Plurimis, escrita em 5 de maio de 1888, pelo Papa Leão XIII, que pediu aos Bispos do Brasil extensivo também ao Imperador D. Pedro II e sua filha, a Princesa Isabel, que eles o ajudassem na luta definitiva pela abolição da escravatura.130 Coincidentemente, a erradicação da mesma veio dias depois, em 13 de maio do mesmo ano, porém, não se concretizou oriunda de uma solicitação papal. Observemos, como um exemplo, o discurso enfático e definidor de Gregório XVI acerca do tráfico de escravos: “Nós, julgando as mencionadas ações indignas do nome cristão, condenamo-las com nossa apostólica autoridade. Proibimos e vetamos com a mesma autoridade a qualquer eclesiástico ou leigo defender lícito o tráfico dos negros”.131 Todos esses discursos foram os elementos contribuintes para que a produção literária de Castro Alves venha a se afirmar fortemente abolicionista, apresentando com ela uma abjeção ao que representou a escravidão durante séculos. A partir dessa postura libertária, abolicionista e que sinalizava a construção de uma identidade nacional brasileira, adentrar-nos-emos numa revisão crítica de toda a produção castroalvina, visando a apresentar o quanto suas obras literárias aspiravam a propostas que se aproximavam, em sua temática, à imagem da identidade de um sujeito livre em todas as condições humanas.

130 Ver Gregório XVI e Pio IX, Documentos da Igreja, São Paulo: Paulus, 1999. Leão XIII, Documentos da Igreja, São Paulo: Paulus, 2005. 131 Idem, p. 52. 55

3 A POÉTICA DE CASTRO ALVES: UMA REVISÃO CRÍTICA

Apresentar as abordagens ou os posicionamentos acerca da poética castroalvina é o esteio central deste capítulo. Destarte, exploraremos as opiniões de autores que convergem em suas ideias ou divergem entre si em alguns pontos, ao analisar a poesia de Castro Alves. Mesmo havendo discordâncias entre os críticos, observamos que, devido à notoriedade tão celeremente alcançada por ele, os analistas de sua produção literária assumiram uma opinião unívoca ao se tratar da originalidade deste romântico; apesar de a crítica conhecer e apreender que a poética castroalvina assaz tenha haurido a produção de poetas e prosadores anteriores ou contemporâneos à época de Castro Alves. Em sua Revisão de Castro Alves, Jamil Haddad elenca essas fontes.132 José de Alencar, apresentando-se como a primeira crítica sobre o estilo e a produção do poeta romântico, ao escrever uma carta aberta para Machado de Assis, em 22 de fevereiro de 1868, publicada no jornal do Correio Mercantil, no Rio de Janeiro, não deixou de reconhecer o talento e a originalidade do poeta que estava em ascensão, por isso o referido romancista viera a afirmar que as mencionadas características seriam posteriormente reconhecidas:

Ilmo. Sr. Machado de Assis. – Recebi ontem a visita de um poeta. – O Rio de Janeiro não o conhece ainda; muito breve o há de conhecer o Brasil. Bem entendido, falo do Brasil que sente; do coração e não do resto. – O Sr. Castro Alves é hóspede desta grande cidade, alguns dias apenas. Vai a São Paulo concluir o curso que encetou em Olinda. – Nasceu na Bahia, a pátria de tão belos talentos; a Atenas brasileira que não cansa de produzir estadistas, oradores, poetas e guerreiros. – Podia acrescentar que é filho de um médico ilustre. Mas para quê? A genealogia dos poetas começa com o seu primeiro poema. E que pergaminhos valem estes selados por Deus? – O Sr. Castro Alves trouxe-me uma carta do Dr. Fernandes da Cunha, um dos pontífices da tribuna brasileira. Digo pontífice, porque nos caracteres dessa têmpera o talento é uma religião, a palavra um sacerdócio. – Que júbilo para mim! Receber Cícero que vinha apresentar

132 De acordo com Jamil Almansur Haddad, há em Castro Alves, “direta ou indiretamente, 68 referências à Bíblia, 27 a Victor Hugo, 24 a Byron, 18 a , 7 a Shakespeare, 14 a Goethe, 13 a Homero, 12 a e Lamartine, 11 a Ésquilo, 9 a Chateaubriand, 8 a Dante e Edgard Quinet, 7 a Tasso; 6 a Octave Feuillet; 5 a Alfred de Vigny, 4 a Virgílio, Heine, Milton, Camões e Pelletan; 3 a Ovídio, 2 a Mickiewickz, Lavater, , Teófilo Braga, Tomás Ribeiro, Humboldt, Anacreonte, Safo, Petrarca, Dumas Filho, Platão, Beecher Stowe, Herculano, André Chenier e Villemain; 1 a Soares dos Passos, João de Lemos, São Francisco de Assis, Antar, Filinto Elísio, Beaumarchais, Bourgeois, Sócrates, Bouillet, Fafontaine, Newton, Henschell, Desoby e Bachelet, Cousin, Troplong, Mme. de Staël, Molière, Bouchard, Garret, La Morvonnais, Rousseau, Maquiavel, Canning, Alfieri, Aristóteles, Quintana, Nathaniel Lee, Lucano, Lutero, Eugéne Sue, Cícero, Beranger, Hoffman, Horácio, Sillery, Volney, Bocage e Copérnico. Evidentemente, a intensidade de uma influência não pode ser expressa apenas através desses indícios numéricos. Todavia para uma primeira impressão, de todo aproximativa, são bastante significativos.” Cf. Jamil Almansur Haddad, Revisão de Castro Alves, São Paulo: Saraiva, 1953, v. 3, p. 11. 56

Horácio, a eloqüência conduzindo pela mão a poesia, uma glória esplêndida mostrando no horizonte da pátria a irradiação de uma límpida aurora!133

A apologia direcionada a Castro Alves, que se fortalece bem mais ao compará-lo a Horácio, deveras não se apresenta como exagero, porém trata-se do reconhecimento de um grande escritor, como foi e ainda é José de Alencar, para com a qualidade do trabalho e o talento de um jovem poeta que almejava emergir no panorama literário brasileiro. O autor de O guarani (1857) ao observar na produção do poeta características da identidade nacional brasileira, acrescentou que essa categoria tornar-se-ia o traço essencial da individualidade e da originalidade do emergente autor, uma vez que “palpita em sua obra o poderoso sentimento da nacionalidade, essa alma da pátria, que fez os grandes poetas, como os grandes cidadãos”.134 A observação do escritor cearense confirma que a contribuição da poética castroalvina reforçaria a representação de problemas relacionados à nossa constituição como nação procurando suscitar o sentimento de patriotismo o qual sempre esteve presente na poética do romântico baiano, como também destaca que a excelência intelectual de Castro Alves foi prematuramente despertada. Por esses motivos, o romancista endossou junto a Machado de Assis a vocação literária do jovem, como atesta a citação que segue:

Não somos homens debalde: Deus nos deu uma alma, uma individualidade. – Depois da leitura do seu drama, o Sr. Castro Alves recitou-me algumas poesias. “A Cascata de Paulo Afonso”, “As Duas Ilhas” e “A visão dos Mortos” não cedem às excelências da língua portuguesa neste gênero. Ouça-as o senhor, que sabe o segredo desse metro natural, dessa rima suave e opulenta. – Nesta capital da civilização brasileira, que o é também de nossa indiferença, pouco apreço tem o verdadeiro mérito quando se apresenta modestamente. Contudo, deixar que passasse por aqui ignorado e despercebido o jovem poeta baiano, fora mais que uma descortesia. Não lhe parece? – Já um poeta o saudou pela imprensa; porém, não basta a saudação; é preciso abrir-lhe o teatro, o jornalismo, a sociedade, para que a flor desse talento cheio de seiva se expanda nas auras da publicidade.135

Em face ao exposto, observa-se que a iniciativa de José de Alencar em apresentar o poeta baiano à sociedade fluminense, através também dos meios de comunicação de massa, e principalmente em apresentá-lo aos espaços de apreciação da arte de modo geral seria mais possível por intermédio da opinião e, sobretudo, da crítica de Machado de Assis acerca da

133 Cf. José de Alencar (1868), apud Pedro Calmon, Castro Alves: o homem e a obra, Rio de Janeiro: José Olympio, 1973, p. 302. 134 Idem, p. 304. 135 Idem, p. 305. 57 produção literária de Castro Alves. Na época, nenhum outro homem havia alcançado tanta notoriedade e eminência na função de crítico quanto o introdutor da corrente do Realismo (1881), no Brasil. Daí o escritor cearence vir a reforçar o pedido de análise e crítica das obras castroalvinas por Machado de Assis:

Lembrei-me do senhor. Em nenhum concorrem os mesmos títulos. Para apresentar ao público fluminense o poeta baiano, é necessário não só ter fôro de cidade na imprensa da Corte, como haver nascido neste belo vale do Guanabara, que ainda espera um cantor. – Seu melhor título, porém, é outro. O senhor foi o único de nossos modernos escritores, que se dedicou sinceramente à cultura dessa difícil ciência que se chama crítica. Uma porção de talento que recebeu da natureza, em vez de aproveitá-lo em criações próprias, teve a abnegação de aplicá-lo a formar o gosto e desenvolver a literatura pátria. – Do senhor, pois, do primeiro crítico brasileiro, confio a brilhante vocação literária, que se revelou com tanto vigor. – Seja o Virgílio do jovem Dante, conduza-o pelos ínvios caminhos por onde se vai à decepção, à indiferença e finalmente à glória, que são os três círculos máximos da divina comédia do talento. – José de Alencar.136

A argumentação de José Alencar, de certa forma, estimula Machado de Assis a concordar com ele, uma vez que o jovem além de receber, do autor de renomadas obras indianistas, primorosos elogios por suas composições lírico-dramáticas, é comparado a Dante – o que já lhe vale mais que uma criteriosa análise de suas produções – mas calorosas palavras parabenizando-o por ser tão jovem e já tão notável. Outrossim, ainda cedo o poeta baiano viera a conhecer os três círculos máximos da divina comédia do talento, porque como poeta em ascensão foi amado, invejado, glorificado e também sofrera indiferença de alguns que também buscavam a notoriedade que ainda mancebo alcançara Castro Alves.137 Já Machado de Assis, em 29 de fevereiro de 1868, quando respondeu à carta que José de Alencar o enviara felicitou-se por a ele ter sido incumbida a tarefa de avaliar a produção de um poeta que já havia recebido o reconhecimento devido:

Exmo. Sr. – É boa e grande fortuna conhecer um poeta; melhor e maior fortuna é recebê-lo das mãos de V. Ex.ª, com uma carta que vale um diploma, com uma recomendação que é uma sagração. A musa do Sr. Castro Alves não podia ter mais feliz

136 Cf. José de Alencar (1868), apud Pedro Calmon, Op. Cit., p. 305. 137 No que se refere a essas fases da vida do poeta, faz-se mister destacarmos que a glória de Castro Alves foi reconhecida não apenas por ilustres críticos da época em que ele vivera, mas também pelo próprio povo, dentre estes, os jovens estudantes das Faculdades de Direito de Recife e de São Paulo. Dentre seus rivais, o maior foi , poeta que se fizera conhecido antes de Castro Alves, mas não obtivera simpatizantes tanto quanto o baiano; ambos tiveram diversas divergências, e estas rivalidades estenderam-se até entre suas amadas. Ver Jorge Amado, ABC de Castro Alves, Rio de Janeiro: Livraria Martins, 1941. 58

intróito na vida literária. Abre os olhos em pleno Capitólio. Os seus primeiros cantos obtêm o aplauso de um mestre. [...] Escolhendo-me para Virgílio do jovem Dante que nos vem da pátria de Moema, impõe- me um dever, cuja responsabilidade seria grande se a própria carta de V. Ex.ª não houvesse aberto ao neófito as portas da mais vasta publicidade. A análise pode agora esmerilhar nos escritos do poeta belezas e descuidos. O principal trabalho já está feito. Procurei o poeta cujo nome havia sido ligado ao meu, e, com a natural ansiedade que nos produz a notícia de um talento robusto, pedi-lhe que me lesse o seu drama e os seus versos. [...] V. Exª. já sabe o que é o drama e o que são os versos, já os apreciou consigo, já resumiu a sua opinião. Esta carta, destinada a ser lida pelo público, conterá as impressões que recebi com a leitura dos escritos do poeta. Não podiam ser melhores as impressões.138

O comentário de Machado de Assis além de ratificar a posição de José de Alencar acerca da produção e do estilo de Castro Alves, expõe a intenção do eminente crítico de demarcar com mais detalhes sua opinião: “Achei uma vocação literária, cheia de vida e robustez, deixando antever nas magnificências do presente as promessas do futuro”.139 Machado de Assis evidencia bem mais sua análise sobre o poeta quando expõe: “achei um poeta original. O mal da nossa poesia contemporânea é ser copista – no dizer, nas idéias e nas imagens. Copiá-las é anular-se. A musa do Sr. Castro Alves tem feição própria”,140 por esses fatores que “se se adivinha que a sua escola é a de Vítor Hugo, não é porque o copie servilmente, mas porque uma índole levou-o a preferir o poeta das Orientais ao poeta das Meditações”.141 Ou seja, “não lhe aprazem certamente as tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer antes as cores vivas e os traços vigorosos da ode”.142 O insigne romancista aprofunda-se mais no perfil literário do jovem quando critica sua produção poética com um olhar assaz analítico, ao pontuá-la da seguinte forma:

O Sr. Castro Alves canta simultaneamente o que é grande e o que é delicado, mas com igual inspiração e método idêntico; a pompa das figuras, a sonoridade do vocábulo, uma forma esculpida com arte, sentido-se por baixo desses lavores o estro, a espontaneidade, o ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duas qualidades da poesia: a forma e o estro. Os verdadeiros poetas são os que as têm ambas. Vê-se que o Sr. Castro Alves as possui; veste as suas idéias com roupas finas e trabalhadas. O receio de cair em um defeito não o levará a cair no defeito contrário? Não me parece que lhe haja acontecido isso; mas indico-lhe o mal, para que fuja dele. É possível que uma segunda leitura dos

138 Cf. Machado de Assis, Castro Alves (1868). In: ______. Críticas & Variedades. São Paulo: Globo, 1997, p. 117-9. (Obras completas de Machado de Assis) 139 Idem, p. 119. 140 Idem, p. 120. 141 Idem, ibidem. (O grifo é do autor) 142 Idem, ibidem. 59

seus versos me mostrasse alguns senões fáceis de remediar; confesso que os não percebi no meio de tantas belezas.143

A análise de Machado de Assis realmente vem a confirmar o conceito de originalidade que tanto associaram a Castro Alves, e mesmo que se verificassem hiatos em sua produção, esses passariam despercebidos devido à qualidade exuberante de seu trabalho e sua eloquência, como também, as indiscutíveis opiniões de dois grandes escritores da época, homens que se posicionaram como artífices da produção literária brasileira; e coadunando-se a eles não poderia faltar um adequado público que julgasse o estilo da produção literária castroalvina, fornecendo- lhe o mérito devido. Acompanhando uma linearidade cronológica acerca da originalidade do poeta, verificamos que diversos outros críticos ratificaram a conjetura machadiana, levando tal ideia a assumir um caráter eminentemente indubitável. Joaquim Nabuco (1873), renomado crítico e historiador da Literatura Brasileira, afirmou que “Castro Alves representava a independência das letras. Não quis ele ser outra coisa no mundo senão poeta. Amar e cantar – eis o ideal de sua mocidade, ideal com que morreu”.144 Com isso, o desejo de liberdade registrado em sua poesia serviu de modelo a gerações futuras e principalmente a observações de críticos que muito se envolveram com seu estilo. Rui Barbosa (1881) não se afastou da simpatia que ilustres escritores anteriormente mencionados tiveram, pois ele referiu-se ao poeta como um homem que realmente soube trabalhar o caráter de humanidade em sua poética:

O mais íntimo de sua alma, impetuosamente apaixonada pela verdade, pelo belo, pelo bem, comunicou sempre com as alturas alpinas do seu gênero por um jacto contínuo dessa lava sagrada, que fazia dos seus lábios uma cratera incendiada em sentimentos sublimes. Aos que não estremecem a esse influxo, não me incumbo de demonstrá-lo. [...] O encanto daquele órgão irresistível, um desses que transfiguram o orador ou o poeta, e fazem pensar no glorioso arauto de Agamenon, imortalizado por Homero, Taltíbios, “semelhante aos deuses pela voz”.145

Acreditamos que a comparação estabelecida por Rui Barbosa em relacioná-lo a um deus não tenha realmente se tornado um exagero apologético, uma vez que figuras mais tradicionais no

143 Cf. Machado de Assis, Castro Alves (1868). In: ______. Críticas & Variedades. São Paulo: Globo, 1997, p. 120. (Obras completas de Machado de Assis). 144 Cf. Joaquim Nabuco, Castro Alves (1873), apud Pedro Calmon, Para Conhecer Melhor Castro Alves, Rio de Janeiro: Editores Bloch, 1974, p. 65. 145 Cf. Rui Barbosa, Elogio de Castro Alves – Discurso pronunciado na comemoração do décimo aniversário da morte do poeta. (1881), Rio de Janeiro: Edição da Organização Simões, 1953, p. 9. 60 círculo literário, antes dele, como José de Alencar e Machado de Assis reconheceram não apenas a qualidade do trabalho do poeta, mas também seu dom natural para a arte literária. Rui Barbosa (1881) empenha-se bem mais ao detalhar a contribuição de Castro Alves para a Literatura Brasileira quando comenta:

Bem pouco valeria Castro Alves, se a estabilidade do seu nome se achasse ligada às feições específicas e aos transitórios destinos dessa fase literária a que entre nós se imprimiu o selo da influência e do nome de Hugo. Na sua personalidade esses não passam, a meu ver, de traços acidentais. O que faz a sua grandeza, são essas qualidades, superiores a todas as escolas, que, em todos os estados da civilização, constituirão, e hão de constituir, o poeta, aquele que, como o pai da tragédia grega, possa dedicar as suas obras “ao Tempo”: sentiu a natureza; teve a inspiração universal e humana; encarnou artisticamente nos seus cantos o grande pensamento da sua época.146

A asserção de Rui Barbosa em caracterizar o poeta como um homem original, ou seja, detentor de “qualidades superiores a todas as escolas”, e como um literato contextualizado à sua época deveras concede a Castro Alves o perfil de homem moderno e poderíamos inclusive denominá-lo de um homem à frente de seu tempo, pois sua poesia, inspirada nas causas sociais, abriu na Literatura Brasileira, em especial no Romantismo, uma nova página no fazer poético brasileiro: a chamada fase condoreira que tão bem enfocou o perfil da identidade brasileira. Já, nos princípios do século XX, após a Literatura Brasileira ter tomado rumos estético- conteudísticos diferentes, com o Parnasianismo, o Simbolismo e com a emergência de uma produção literária moderna contextualizada às realidades sociais e políticas do século XX, (1906), em seu discurso de posse à Academia Brasileira de Letras, afirma que “qualquer que seja a nossa atitude vindoura, teremos sempre nas quarenta páginas do Manuscrito de Stenio os estímulos mais nobres do passado”,147 expondo com essas palavras seu apreço por Castro Alves, e ainda vindo a acrescentar: “De mim, não o justifico, apenas admiro-o”.148 E essa admiração não se resumiu apenas em seu discurso de posse, uma vez que, no ano seguinte, Euclides da Cunha (1907) endossando não apenas seu posicionamento acerca da produção

146 Idem, p. 12-3. (O grifo é do autor) Consoante , o apreço que Rui Barbosa externara por Castro Alves é também devido ao fato de ambos terem sido amigos e colegas próximos na Faculdade de Direito e quando Castro Alves separou-se de sua amada Eugênia Câmara, foi Rui Barbosa que atenção lhe dera ao recebê-lo na república de estudantes em que morava, na Rua da Ladeira, em São Paulo. Ver: Alberto da Costa e Silva, Castro Alves: perfis brasileiros, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 134. 147 Cf. Euclides da Cunha apud Pedro Calmon, Para Conhecer Melhor Castro Alves, Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1974, p. 59. (O grifo é do autor) 148 Idem, ibidem. 61 castroalvina, e de autores que antecederam sua crítica, como Rui Barbosa, afirmou que “Castro Alves não era apenas o batedor avantajado dos pensamentos de seu tempo. Há no seu gênio muita cousa do gênio obscuro da nossa raça”,149 ou seja, o poeta foi além de original nas ideias de seu fazer poético, um construtor do perfil da identidade nacional. Euclides da Cunha vem mais uma vez a confirmar sua posição quando comenta:

Quando releio o lírico suavíssimo da Volta da Primavera, da Adormecida, desse surpreendente poema de duas páginas O Hóspede, e dos Murmúrios da tarde, ou do Gondoleiro do Amor, – que é o próprio vidente arrebatado da Ode ao Dous de Julho, das décimas que imortalizaram Pedro Ivo, da Deusa Incruenta, ou do Coup d’étrier, e vou, de um salto, das páginas por onde os versos vão derivando, docemente, como as plantas que arrasta a correnteza, para as rimas furiosas, que se entrebatem e estalam e estrepitam com o estampido estupendo das queimadas! estou em que Castro Alves foi também altamente representativo da nossa raça.150

O argumento de Euclides da Cunha demonstra não apenas a afinidade do escritor moderno com as produções castroalvinas, mas destaca a importância que teve o poeta como um dos grandes edificadores da ideia de nação no seu tempo e para a posteridade, pois como o autor de Os sertões (1902) afirmara, os posicionamentos e os comportamentos da modernidade são motivados por significativas contribuições que outrora serviram para a evolução do pensamento humano. José Veríssimo (1916), enfatizando o posicionamento desse crítico, citou que “com Castro Alves pode dizer-se que se alarga a nossa inspiração poética, objetiva-se nosso estro e os poetas entram a perceber que o mundo visível existe. Poeta nacional, se não mais nacionalista, poeta social, humano e humanitário [...]”.151 Ele assim o foi pelo fato de enxergar todos em plena igualdade, como seres humanos que eram. Verificamos que José Veríssimo inova a crítica sobre o poeta ao correlacionar nacionalismo, humanismo e poesia social, pois, juntos destacam-se como um perfil permanente da crítica contemporânea. Enquanto a crítica brasileira elevava o nome de Castro Alves ao patamar merecido, além- mar, a crítica portuguesa não deixou também de reconhecer o mérito do poeta. Eça de Queirós ao ler o poema Aves de Arribação (1870) a Eduardo Prado detivera-se em dois únicos versos: “Às

149 Cf. Euclides da Cunha, Castro Alves e seu tempo (1907) (Discurso proferido no centro acadêmico onze de agosto de São Paulo), São Paulo: Edição Grêmio Euclydes da Cunha, 1919, p. 22. 150 Idem, p. 23-4. (Os grifos são do autor) 151 Cf. José Veríssimo, História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908), São Paulo, Letras & Letras, 1998, p. 331. 62 vezes quando o sol nas matas virgens”, “A fogueira das tardes acendia,” levando-o a asseverar: “Ahi está, em dois versos, toda a poesia dos trópicos”.152 Dessa forma, não apenas Castro Alves era reconhecido, mas a poesia brasileira estava também sendo valorizada no meio literário português. Antônio Nobre (1920), outro grande nome da Literatura Lusitana, poeta tão ilustre quanto Castro Alves, expôs que o romântico baiano foi “o maior poeta brasileiro”,153 por causa da importância que ele obteve enquanto poeta nacional e idealizador de um discurso de uma nação moderna e de cidadãos emancipados. No Brasil, a crítica em relação à produção de Castro Alves continuava atuante, pois Tristão de Ataíde (1921), especificando o estilo do poeta baiano, afirmou que “em nenhum poeta é tão profundo esse sentimento brasileiro como em Castro Alves”.154 Do presente, constatamos que mesmo cem anos depois, a crítica mantém-se praticamente unânime sobre o papel representado pela poética castroalvina como uma poética comprometida com o problema da nacionalidade. Diante de tal fator, Afrânio Peixoto (1922), às vésperas do Movimento Modernista, com a Semana de Arte Moderna de 1922, concordando com a posição dos críticos que o antecederam expusera que “entre os maiores elogios que tem Castro Alves merecido, está certamente este: foi um poeta brasileiro! [...] Daí a sua originalidade: no Brasil não quis ser grego, latino, francês ou lusitano – foi brasileiro”.155 Agripino Grieco (1932), quando avaliou a poesia de Castro Alves, também observou o forte vínculo existente entre a poética deste com poetas europeus, mesmo assim, reconhecera que tal postura não diminuía a força substancial de sua obra. É relevante enfatizarmos que nesse período o limite entre o nacional e o importado era o critério através do qual a criação literária era avaliada. Ou seja, quanto mais as questões nacionais, mais original o escritor seria. Pautando-se nisso, Agripino Grieco (1932) afirmou que o referido romântico “não compôs a sua originalidade imitando meio mundo”.156 Ele reforçara, na poesia brasileira, o caráter de procura por uma

152 Cf. Afrânio Peixoto, Paixão e Glória de Castro Alves (1917), In: ______. Castro Alves: o poeta e o poema (1922), 5. ed., São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p. 107. 153 Cf. Antônio Nobre (1920), apud Pedro Calmon, Para Conhecer Melhor Castro Alves, Rio de Janeiro: Editores Bloch, 1974, p. 54. 154 Cf. Tristão de Ataíde (1921), apud Pedro Calmon, Para Conhecer Melhor Castro Alves, Rio de Janeiro: Editores Bloch, 1974, p. 54. 155 Cf. Afrânio Peixoto, Castro Alves: o poeta e o poema, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p. 174-5. 156 Cf. Agrippino Grieco, Evolução da Poesia Brasileira, Rio de Janeiro: Ariel Editora, 1932, p. 53. 63 identidade nacional como uma essência, cuja discussão foi construída e solidificada por nossos primeiros autores românticos. Ante todo esse exposto, detemo-nos à crítica de José Veríssimo, pelo fato de ela lançar as bases principais que consolidaram o perfil do poeta e a sua inspiração para modernidade como “Poeta dos Escravos”. Enquanto os poemas reunidos no livro Os Escravos (através de poesias escritas entre 1865 e 1870) reiteram o seu compromisso estético com a causa abolicionista. Em um país cuja população contava com 205.906 habitantes dos quais 78.855 eram escravos e 10.732 libertos, causava-se pouca comoção entre os intelectuais o papel do negro na sociedade. A grande maioria deles portava-se sob diretrizes cujas características mais gerais eram representadas por uma visão predominantemente racista. Sob essa conjuntura, Castro Alves era uma exceção, enquanto a população negra foi mantida majoritariamente analfabeta.157 A criação poética abolicionista de Castro Alves era ainda uma reformulação estética nova diante de um modelo de nacionalidade hegemônica apregoada por um grupo social que obtivera títulos imobiliários por ocasião das leis abolicionistas de 1871, 1885 e 1888 e que buscavam identidade com “grupos nativos, particularmente, índios e mamelucos – era esse o tema no Indianismo –, e manifestavam “um desejo de ser brasileiro”, ignoravam no seu projeto político de nacionalidade o negro/o escravo e a escravidão, naturalizando a violência na sociedade. Violência pautada na cor, marca forte no estabelecimento das desigualdades, na delimitação de universos distintos, sociedade na qual as distâncias sociais não eram discutidas e as cenas cotidianas de violência com escravos pareciam não constranger.158 Dessa mesma maneira que os rumos da política direcionavam-se cada vez mais para uma postura abolicionista, as disposições abriam caminho para uma diferenciação dentro da proposta romântica, cuja “reformulação” era conveniente a outros intelectuais em nome das inovações estéticas. Essas disposições deram a Castro Alves um campo aberto às novas motivações temáticas contidas na concepção de arte militante, como concebia :

A arte não é, como querem ainda alguns sonhadores ingênuos, uma aspiração e um trabalho à parte, sem ligação com as outras preocupações da existência... As torres de ouro ou de marfim, em que os antigos se fechavam, ruíram desmoronadas... Só um louco – ou um egoísta monstruoso – poderá viver e trabalhar consigo mesmo, trancado a sete chaves dentro do seu sonho indiferente a quanto se passa lá fora, no campo vasto

157 Cf. Cléria Botelho da Costa, Justiça e abolicionismo na poesia de Castro Alves. In: Projeto História, São Paulo, n. 33, dezembro/ 2006, p. 179-194. 158 Idem, p. 179-194. 64

em que as paixões lutam e morrem... em que se decidem os destinos dos povos e das raças...159

Ante os argumentos apresentados, podemos afirmar que a concepção de arte militante deu a Castro Alves total autonomia à sua produção abolicionista e direcionada à construção simbólica de um sentido de pertencimento a todos que ocupassem o espaço nacional. Dessa maneira, Castro Alves alcançaria através do Romantismo uma postura literária antecipando-se a outros poetas sociais, afastando-se do Indianismo como uma proposta esteticamente ultrapassada para seu tempo. Detentores de uma megalomania redentora e impulsionada pelo desejo de construírem uma nova nação, os intelectuais profundamente afastados dos anseios populares, presenciaram a fundação da imprensa que assumiu abertamente o movimento abolicionista. No jornal paulistano, a Luz, Castro Alves publicou os seus primeiros poemas abolicionistas, enquanto A Canção do Africano (1863) foi publicada no jornal acadêmico A Primavera; e as publicações dos seus poemas aliavam-se às suas aparições em público em teatros e em comícios. O esforço de Castro Alves era comum para que o Brasil saísse de sua situação territorial para se transformar em uma nação. Aos poetas românticos, coube a tarefa de, através do Romantismo, declararem a independência literária. Assim, voltaram-se para compreensão do passado do país e de sua natureza. Entretanto, o projeto estético de Castro Alves procurava atender ao senso de identidade nacional que provinha do povo e de suas necessidades de integração. Não lhe bastava o seu lugar como um “redentor simbólico” da sociedade com uma missão meramente intelectual. Tal era a afinidade que os intelectuais sentiam com o poder e com seus representantes diretos e indiretos que o povo e as suas necessidades pareciam cada vez mais distantes deles. No que se refere à produção social do poeta, destaca-se com assaz força a poesia em defesa do negro, em contraposição ao sistema político da escravidão, emerge-se com esse estro um novo perfil de “identidade literária”, até então, pouco mencionada no Romantismo brasileiro. Nelson Werneck Sodré, reconhecendo a importância e a qualidade da contribuição do referido romântico, principalmente no que se refere ao domínio primoroso das diversidades dos gêneros literários, a serviço da estética romântica, afirmou que “em Castro Alves existe tudo o

159 Cf. Cléria Botelho da Costa, Justiça e abolicionismo na poesia de Castro Alves. In: Projeto História, São Paulo, n. 33, dezembro/ 2006, p. 182. 65 que o romantismo podia apresentar de grande. A sua poesia salva a escola de perder-se na monotonia superficial e amorosa, sem profundidade e sem grandeza”.160 Além de manifestar uma opinião um tanto quanto generalizada acerca de todo o fazer poético castroalvino, o mencionado crítico procurou ainda mais detalhar sua visão analítica sobre os gêneros literários trabalhados pelo poeta, quando citou: “lírico, seus versos de amor guardam ternura e sensualidade; épico, suas estrofes são como hinos e conservam o frêmito que as impulsiona; descritivo, sabe mostrar os quadros da natureza em pinceladas de palavras que cantam”.161 E em todos esses caminhos, vemos que o autor interliga-as ao sentimento de liberdade o qual ele sempre se empenhou em registrar. Esse realmente será o veículo mais forte de sua inspiração poética. A perspectiva de Werneck Sodré tende a tornar exclusivo cada um dos gêneros cultivados pelo poeta levando a enfatizar a importância da poesia social sobre a lírica. Tal perspectiva foi possivelmente endossada por sua concepção sobre literatura engajada. O presente trabalho, entretanto, considera o aspecto lírico da poesia de Castro Alves como uma faceta essencial em termos estruturais na composição da dramática poesia abolicionista.

3.1 Representações do Gênero Lírico na Poesia Castroalvina.

Como já exposto, a produção poética de Castro Alves recebeu bastante influência de poetas e prosadores estrangeiros e brasileiros. Porém, além deste vínculo literário, não podemos deixar de constatar que sua poesia muito se envolvera com fatos de suas experiências interpessoais e coletivas. Seu estro lírico, como as demais obras, não fugiu a esse perfil, pois apresenta liames com suas vivências e suas leituras. Iniciaremos explorando sua produção da fase da mocidade e poemas que manifestam o espírito juvenil do poeta, como desde cedo ele “já apresenta na sua poesia ainda infantil as marcas que serão definitivas em toda a sua obra poética”.162 Faz-se mister também ressaltarmos que o período da adolescência está internamente interligado à corrente romântica que pertencera Castro Alves. Jamil Haddad (1953) mencionou inclusive que o “Romantismo é imaginação e sensibilidade e classicismo é razão; o que vale dizer que o primeiro é a adolescência e o segundo,

160 Cf. Nelson Werneck Sodré, História da Literatura Brasileira, 4. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 309. 161 Idem, ibidem. 162 Cf. Jorge Amado, ABC de Castro Alves, Rio de Janeiro: Editora Martins, 1941, p. 46. (A primeira edição é de 1941). 66 a idade adulta, por isso num romântico típico, tal seja Castro Alves, vamos encontrar também um típico adolescente”.163 A asserção do crítico, acerca do comportamento do eu poético castroalvino, sugere-nos a natural carga sentimental que servirá de esteio à sua produção, assumindo assim uma atitude impetuosa e marcante na sua produção, como as características de seu individualismo literário, típico do Romantismo, como será discutido. Enveredando pelos meandros da subjetividade e da autoafirmação, Castro Alves delineou os traços de sua inspiração literária. Procurou explorar fortemente a curiosidade de seu espírito juvenil em função do que apreendia e acreditava.164 Seu perfil frente a essa postura da mocidade é também uma afirmação de sua originalidade como símbolo de um sentimento que o identifica como jovem de uma determinada época uma vez que,

O adolescente moderno, marcado principalmente por aquela “crise de originalidade juvenil” de Maurice Debesse, não é original nem revoltado por um determinismo de seu funcionamento glandular, mas o é por ser filho do Romantismo, da Revolução Francesa, do Liberalismo, das leituras posteriores a Rousseau.165

A afirmação de Jamil Haddad contextualiza o que Castro Alves descrevera em seu poema Mocidade e Morte (1864), que escrevera aos dezessete anos, explorando toda uma insatisfação com a realidade que se lhe apresentava, proporcionando-lhe inquietação e torpor. O poema foi escrito quando surgiram as primeiras ameaças de tuberculose nele, levando-o a registrar, no referido texto, a imensa perda que seria se um jovem tão talentoso quanto ele viesse a perecer. Constatamos tal asserção nos versos que se seguem, em protesto à própria condição natural da vida:

[...] Morrer... quando este mundo é um paraíso, E a alma um cisne de douradas plumas: Não! o seio da amante é um lago virgem... Quero boiar à tona das espumas. Vem! formosa mulher – camélia pálida, Que banharam de pranto as alvoradas. Minh’alma é a borboleta, que espaneja O pó das asas lúcidas, douradas....

163 Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., v. 2, p. 69. 164 Ver Jamil Almansur Haddad, Revisão de Castro Alves, São Paulo: Saraiva, 1953, v. 1, 2, 3. Jonas Correia, Sentido Heróico da Poesia de Castro Alves, Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1971. Afrânio Peixoto, Castro Alves: o poeta e o poema, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. Eugênio Gomes (Org.), Castro Alves: antologia poética, Rio de Janeiro: Biblioteca Manancial, 1971. 165 Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., v. 2, p. 70. 67

E a mesma voz repete-se terrível, Com gargalhar sarcástico: – impossível!

Eu sinto em mim o borbulhar do gênio. Vejo além um futuro radiante: Avante! – brada-me o talento n’alma! E o eco ao longe me repete – avante! – O futuro... o futuro... no seu seio... Entre louros e bênçãos dorme a glória! Após – um nome do universo n’alma, Um nome escrito no Panteon da história. [...] 166

É nítido nos versos acima o sentimento de amor à vida que o eu lírico apregoa. O poema também se constitui como um autêntico hino de louvor à vida, cujos prazeres o eu poético evidencia e almeja. Ao especificar bem mais a proposta do referido canto, verifica-se que o enfoque estende-se outrossim à existência humana e à mocidade do presente frente a um porvir de glórias e conquistas. Dessa forma, o texto transforma-se num registro do despontar da maturidade de um jovem romântico cuja existência protagoniza os males e o sentimento de morte tão presente na vida de milhares de jovens. No caso da própria experiência de vida do poeta, vemos que esse despertar para existência foi acompanhado pelo desejo profundo de liberdade e uma liberdade que se tornou política através da escrita de poemas antiescravocratas. Provavelmente, o reconhecimento do poeta quanto à sua futura enfermidade levou-o a compor opiniões decisivas sobre o que é viver e o porquê de senti-lo. , ao discutir e analisar os direcionamentos do poema em questão, escreveu observações importantes acerca de como a enfermidade influenciou emocionalmente a vida e a obra de Castro Alves:

[...] no dia 9 de novembro de 1864, ao toque da meia-noite, na sotéia em que morava, o poeta, que sem dúvida se balançava na rede, fumando muito, sentiu doer-lhe o peito, e um pressentimento sinistro passou-lhe na alma. Pela primeira vez ia beber inspiração nas fontes da grande poesia: essa a importância do poema "Mocidade e Morte" na obra de Castro Alves. Uma dor individual, dessas para as quais "Deus criou a afeição", despertou no poeta os acentos supremos, que ele depois saberá estender às dores da

166 Castro Alves, Espumas Flutuantes e outros poemas (1870), 3. ed., São Paulo: Ática, 2004, p. 55-6. Hildon Rocha ao analisar o poema proposto expôs com muita veemência que se tratava de um texto de grande valor documental acerca da vida do poeta e da doença do poeta, vindo diante disso a observá-lo partindo do seguinte viés: “A beleza dos versos e o auto-reconhecimento (sinto em mim o borbulhar do gênio), mostram que o poeta tinha bastante consciência de si como ser altamente dotado. E essa consciência acentuava ainda mais a violência da fatalidade que se denunciava nas hemoptises que o acometeram. O exemplo de Álvares de Azevedo, antevendo a morte, deve ter carregado ainda mais a atmosfera romanticamente desesperada de “Mocidade e Morte”. Cf. Hildon Rocha, Notas, In: Castro Alves, Castro Alves: antologia poética., Rio de Janeiro, Biblioteca Manancial, 1971, p. 55. Na noite em que o poema foi produzido, Castro Alves o intitulava de “O Tísico”, por conta da dor no peito que sentira, alterando logo depois para “Mocidade e Morte” 68

humanidade, aos sofrimentos dos negros escravos (O Navio Negreiro), ao martírio de todo um continente (Vozes d'África). Não era mais o menino que brincava de poesia, era já o poeta-condor, que iniciava os seus vôos nos céus da verdadeira poesia. Naquela mesma noite escreve o poema, tema pessoal, logo alargado na antítese mocidade-morte, a mocidade borbulhante de gênio, sedenta de justiça, de amor e de glória, dolorosamente frustrada pela morte sete anos depois. 167

Ratificando a citação do poeta pernambucano, poderíamos afirmar que o poema é outrossim um canto à liberdade, dentre a maior de todas as condições dela, a da vida humana, pois estilisticamente o texto constrói-se em cima de um diálogo entre o eu poético e uma certeza invisível do término de sua própria vida.168 Daí a apreensão da antítese “mocidade e morte”; porque enquanto o eu poético declama pela vida e pela glória, a voz da morte o impele a reconhecer e acreditar que este desejo é embalde mera idealização onírica. Entretanto, é visível a não aceitação do eu poético, enquanto humano e mortal, ao destino que a morte quer conceder- lhe, quando aquele chega a asseverar “Eu sinto em mim o borbulhar do gênio”, “Vejo além um futuro radiante:”, “Avante! – brada-me o talento n’alma!”. Ante esses versos, indagamos: a qual futuro a voz poética refere-se, sabendo que a morte é inevitável? Sugere-se que o poeta dirige-se à vitória do texto poético enquanto contribuinte para a evolução da ação e do pensamento humano. Depreendemos também do texto, como um todo, que a antítese existente entre “mocidade e morte” será o recurso estilístico que desencadeará a proposta temática do poema, uma vez que “a antítese dominava o pensamento romântico, com efeitos propícios à oratória que se caracterizavam pela prontidão do enunciado, a surpresa, o imprevisto, o insólito”.169 Esse recurso estender-se-á simbolicamente ainda para sua produção social, em que estabelecerá a oposição existente entre o regime escravocrata e a abolição da escravidão, com processos que metaforicamente representam vida e morte, por isso “a assimilação de sua poesia depende em grande parte da maneira de compreender ou acompanhar as antíteses em todas as suas ramificações”.170

167 Manuel Bandeira, Castro Alves, Disponível em: Acesso em: 29/12/09. 168 Neste ano em que se descobrira sua doença (mortal na época), deu-se também como o período de composição dos seus poemas abolicionistas. 169 Cf. Eugênio Gomes, Castro Alves e o Romantismo Brasileiro, In: Castro Alves, Castro Alves: antologia poética, Rio de Janeiro: Biblioteca Manancial, 1971, p. 28. 170 Idem, ibidem. 69

Não podemos deixar de ressaltá-las, já que elas serão bastante profícuas à sugestão dada por Castro Alves como uma nova proposta ao lirismo romântico brasileiro: o culto à vida. Distinguindo-se da tendência que o antecedeu, o Ultrarromantismo, ele ama e louva a existência humana e acredita que a morte, categoria que levou o segundo segmento do Romantismo a ser conhecido como Mal do Século, não pode e não deve se constituir como um desejo superior à vida. O poeta em nenhuma fase de sua vida deixou-se conduzir pelo anseio à morte, nem diante de grandes e irreparáveis perdas, como o falecimento de sua mãe, oriundo de tuberculose, quando era ainda uma criança de doze anos, em 1859, e nem diante do suicídio de seu irmão mais velho, José Antônio de Castro Alves, em fevereiro de 1864, meses antes de o poeta escrever “Mocidade e Morte”. C. A.171 “suportaria o golpe com a mesma galhardia e coragem com que atravessaria todos os momentos maus de sua vida. Sofreu, sem dúvida, [...]. Mas não se desesperou. Mais moço que o irmão já era muito mais homem que o outro, [...]”.172 Dentro desse contexto de amor à vida e à liberdade e no panorama antitético ao qual ele se encontrava, observamos o perfil e a forte personalidade do poeta solidificarem-se, pois “o futuro poeta conciliará essas antíteses em seu temperamento cândido e impetuoso, melancólico e arrebatado”.173 Explorando ainda mais seu “temperamento”, em função da representação literária, é relevante adentrarmos a produção lírico-amorosa do poeta, cujos versos imortalizariam não apenas a qualidade poética de C. A., mas os sentimentos que dele emanavam em louvor à beleza de suas mulheres amadas, que especificamente eram as morenas brasileiras, e C. A. movido pelo sentimento libertário logo tratou de unir essa categoria ao fervor social. Rui Barbosa (1881), havendo chegado a essa mesma inferência, asseverara: “pulsa liberdade até nas suas canções de amor”.174 Segundo Lilia Silvestre Chaves, versos que ilustrariam bem a asserção do referido crítico da poesia castroalvina seriam esses excertos do poema O laço de fita (1868):175

Meu ser, que voava nas luzes da festa, Qual pássaro bravo, que os ares agita, Eu vi de repente cativo, submisso Rolar prisioneiro Num laço de fita.

171 De agora em diante usaremos as iniciais C. A. para designar Castro Alves. 172 Cf. Jorge Amado, ABC de Castro Alves, Rio de Janeiro: Editora Martins, 1941, p. 48. 173 Cf. Lilia Silvestre Chaves, Prefácio de Espumas Flutuantes, In: Castro Alves, Espumas Flutuantes, 3. ed., São Paulo: Ática, 2004, p. 22. 174 Cf. Rui Barbosa, Elogio de Castro Alves (1881), (Discurso pronunciado na comemoração do décimo aniversário da morte do poeta.) Rio de Janeiro: Edição da Organização Simões, 1953, p. 65. 175 Ver Lilia Silvestre Chaves, Prefácio de Espumas Flutuantes, In: Castro Alves, Op. Cit., p. 17. 70

E agora enleada na tênue cadeia Debalde minh’alma se embate, se irrita... O braço, que rompe cadeias de ferro, Não quebra teus elos, Ó laço de fita! [...]176

A imagem de liberdade construída funde-se à de aprisionamento pela beleza da amada metonimicamente evidenciada, pois o eu lírico assume-se como ser de força, “qual pássaro bravo, que os ares agita”, “O braço que rompe cadeias de ferro”, ou seja, aquele que é detentor de fortes provas de liberdade como destruir prisões de ferro, vê-se agora envolvido e capturado por um detalhe da beleza da amada: o laço de fita. Essa reflexão acerca do enleado jogo de ideias entre liberdade e formosura feminina levou Jorge Amado (1941) a declarar que C. A. “tomaria da liberdade como se ela fosse u’a mulher, de esgalgo corpo e de perfeito rosto e a ela dedicaria toda a sua vida, os seus mais belos versos, em função dela viveria”.177 Reforçando mais esse caráter de dedicação do poeta a ambas categorias que se tornaram fontes de sua inspiração poética, o mencionado crítico baiano expusera que “jamais as mulheres tiveram mais carinhoso amante, jamais a liberdade teve tão ardente noivo”.178 As percepções de C. A. acerca da existência humana, das injustiças e também do acentuado desejo pela mulher, em especial, a brasileira, serão traços de individualidade em sua poética. Além das indicações à beleza do corpo da mulher desejada, não se pode deixar de notificar o perfil de amor carregado de metáforas que se contrapõem entre si e que se evidenciam em sua poética, como os termos astro – na treva, canção – no silêncio, brisa – nas calmarias, abrigo – no tufão.179 Essas mudanças de temperamento amoroso indicariam claramente a variação afetiva dos sentimentos de C. A. Isso reforçaria o que Jorge Amado (1941) comentara sobre o seu comportamento sentimental e poético: “ele era forte como o tufão quando se jogava contra as injustiças e [...] era brando como a brisa quando a sua voz se dirigia a tímidos ouvidos”.180 Outro elemento de similar importância que o da formosura feminina associada ao sentimento de liberdade seria a referência à natureza. Teríamos assim uma nova categoria a

176 Lilia Silvestre Chaves, Prefácio de Espumas Flutuantes, In: Castro Alves, Op. Cit., p. 52. O referido poema intertextualiza uma das personagens de mais destaque para Alfred de Musset: Pepita, cujo nome é referenciado por Castro Alves em O laço de fita, que é um diminutivo de Pepa. 177 Cf. Jorge Amado, ABC de Castro Alves, Rio de Janeiro: Editora Martins, 1941, p. 25. 178 Idem, ibidem. 179 Essas metáforas estão presentes em “O gondoleiro do amor” (1867), que fora dedicado a Eugênia Câmara, por isso o mesmo tem como subtítulo “Dama-Negra”. 180 Cf. Jorge Amado, Op. Cit., p. 22. 71 aprofundar análises e pesquisas sobre ela: a natureza castroalvina. Essa categoria serviu para solidificar bem mais o desejo de liberdade e a luta por esse alcance que o poeta tanto endossou. Logo, a ênfase nos ambientes da natureza, pois lá ele encontraria forças para lutar por esse anseio e também obteria razões suficientes para acreditar nesse desejo, uma vez que esse espaço o libertaria. Coadunando-se a esse critério, em uma recente (re)leitura da poética abolicionista de C. A., Lilia Silvestre Chaves (2004), no prefácio do livro Espumas Flutuantes, proferira que: “seu lirismo individual funde-se ao social e revolucionário. Numa vida em que o amor e a luta social entrelaçam-se, de maneira indissociável, a obra se confunde, e os dois temas tornam-se um só”.181 Ou seja, na obra de C. A. tudo aspira ao mesmo ideal: a liberdade, como único meio de estruturação e resgate da subjetividade do ser humano e será justamente nas referências ao espaço da natureza que observaremos esse desejo mais evidente. Em todas as cidades em que morou, como Curralinho, Salvador, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, C. A. buscou vivenciar a força da natureza sobre si. Com isso, o poeta erigia o viés que viria a solidificar o sentimento mais arrebatado pela natureza: o nacionalismo. Com essa categoria, C. A. desenharia ou pintaria, através da poesia, o que fortemente havia de “nacional”: a natureza. Abordar essa categoria corresponderia ao lugar onde melhor se refletiria a vocação nacionalista de C. A. Como ressaltou o crítico Agripino Grieco (1932): “Deixa realmente ver a floresta e o campo, respirando-se em seus versos realmente o verão e a primavera do Brasil”.182 Detalhando mais acerca dessa categoria, o mencionado estudioso expõe:

Sem excessos regionais ou dialetais, quase sempre ridículos e à margem da arte, é ele o nosso poeta que possui mais cor local, é o mais brasileiro de todos. Descrevendo, mesmo quando ia às audácias cromáticas, não era um simples pincel sem inteligência. Fez, por assim dizer, uma interpretação amorosa da nossa natureza. Nas estradas do nosso poeta as árvores são classificadas a rigor, são mangueiras, ipês, jequitibas, facilmente reconhecíveis. Há, nos seus cantos rústicos, a transparência do ar e as vibrações da luz. [...] Achava no orvalho matutino um sangue vivificador e, aos seus olhos, os bois como que ainda ruminavam as geórgicas do Virgílio. Via, na alcova suspensa das ramagens, cada casal de pássaros confundir-se num só pássaro palpitante. As flores sangrentas pareciam-lhe o parto da terra, da terra fecunda, concubina do sol. Correndo o campo, tudo se lhe afigurava motivo de arte, matéria plástica para os seus dedos ágeis. Pode concluir-se, quanto ao Castro Alves panteísta, que sem ele não

181 Cf. Lilia Silvestre Chaves, Prefácio de Espumas Flutuantes, In: Castro Alves, Espumas Flutuantes, 3. ed., São Paulo: Ática, 2004, p. 17. 182 Cf. Agripino Grieco, Evolução da Poesia Brasileira, Rio de Janeiro: Ariel Editora, 1932, p. 48. 72

teríamos sentido tão intensamente as belezas do Brasil, ou melhor, é por seus olhos que todos nós ainda hoje estamos vendo tais belezas.183

O posicionamento de Agripino Grieco (1932) não apenas ratifica o caráter intencional do nacionalismo de Castro Alves como também visa a inserir estilisticamente a natureza no sentimento do eu poético, unindo-os numa percepção de construção de uma identidade brasileira. Reforçando o argumento de Agripino Grieco, Édison Carneiro (1947) afirmara: “O campo era o “ninho do poeta” – e Castro Alves o procurava como se tentasse voltar ao útero materno. [...] Filho da natureza, era Mowgli, o menino-lobo de Kipling, vagando pelas florestas brasileiras”.184 Mowgli criou-se entre os lobos. Ele era humano, mas sua identidade era mais animal devido a sua comunicação plena com os animais. Faz-se mister observarmos também que a referência à natureza não é uma questão individual, nem preferencial, mas parte de uma convenção romântica. Para o homem romântico, a volta à natureza era a volta à essência primordial da qual emana a vida. Como uma essência, a natureza seria o mais eficaz e sofisticado símbolo de resistência do poeta romântico contra a sociedade organizada, mecanizada ou escravista (como no caso do Brasil). Toda essa entrega ao aprazível ambiente natural fortalecia o poeta diante das injustiças e das maldades do mundo e serviria para reerguê-lo das dores acometidas a ele pela humanidade, tornando-o assim mais varonil. Evidencia-se outrossim a relação direta de Castro Alves com a vitalidade da natureza, com a qual ele se mistura, fornecendo-lhe assim não apenas uma, contudo pluralidades de nacionalidades em sua poesia, já que a natureza em seu estro trifurca-se em: “ora universal, ora nacional e em alguns momentos sincrética de nacionalismo centrípeto e ecumenicidade centrífuga”.185 Isso é devido às influências existentes em sua poética, como: Lamartine, Ferdinand Denis e Chateaubriand.186 Em 1826, Ferdinand Denis publica um resumo da história literária do Brasil, junto com a de Portugal, em que incita o sentimento nacionalista nos brasileiros. “Começa por proclamar que a América deve enfim ser livre em sua poesia como em seu governo. E para que se consiga esse objetivo, recomenda o abandono do obsoleto aparato mitológico e a entrega em plenitude à

183 Cf. Agripino Grieco, Castro Alves, In: ______. Vivos e Mortos, Rio de Janeiro: Schmidt, 1931, p. 11-2. 184 Cf. Édison Carneiro, Trajetória de Castro Alves (1947), Rio de Janeiro: Editoria Vitória, 1947, p. 138. 185 Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., v. 3, p. 46. 186 Idem, p. 44-5. 73 natureza americana”.187 Isso porque “as selvas da América conferiam ao continente a marca da personalidade e o sentido da vocação”.188 Origina-se de Ferdinand Denis o ufanismo nacionalista visível na escritura do Hino Nacional, como “nosso céu tem mais estrelas”, “nossos bosques têm mais vida”, “nossa vida mais amores”, do qual nossos primeiros românticos, Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias, orientaram-se. Porém, essa busca por uma representatividade pode ter encontrado seu esteio em Denis, mas adquiriu a prática em Chateaubriand, porque “o móvel oculto de ambos era diverso, pois no primeiro havia um espírito de americanidade, ao passo que no segundo transparece a vocação para o exótico, [...]. Numa palavra, um fazia a América pela América, o outro fazia-a pelo exotismo”.189 Poderíamos dizer até que com Chateaubriand Castro Alves descobre a América, apresenta-nos suas singularidades, é uma autêntica proposta de fincar raízes. Observa-se isso nos versos do poema América (1865) que tão bem ilustram essa intenção:

À tépida sombra das matas gigantes, Da América ardente nos pampas do Sul, Ao canto dos ventos nas palmas brilhantes, À luz transparente de um céu todo azul,

A filha das matas – cabocla morena – Se inclina indolente sonhando talvez! E a fronte nos Andes reclina serena E o Atlântico humilde se estende a seus pés. [...] 190

Averiguamos, nos mencionados versos, que Castro Alves aprende com Chateaubriand que a natureza na poesia não pode ser construída de uma invenção, mas “verificada “in loco” e transposta na sua verdade vital para a moldura do poema”.191 O próprio poeta projetou essa ideia quando afirmou: “Vou nestes oito dias ver de perto a queda gigantesca do São Francisco. Fazer- me de Chateaubriand deste outro Niágara”.192 “Castro Alves extrai de Chateaubriand savanas e crocodilos com os quais sincretiza a natureza brasileira”.193 Com isso, obteríamos não apenas uma americanidade, mas também a proposta de uma universalidade, a qual o poeta compreendeu deste francês, mas fortaleceu-se com Lamartine, pois nesse o nacionalismo de cunho universalista adquire uma tônica assaz panteísta: em toda efusão da natureza atribui-se a ação e a presença de

187 Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., v. 3, p. 45. 188 Idem, p. 53. 189 Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., 1953, v. 2, p. 52. 190 Cf. Castro Alves, América (1865), In: ______. Espumas Flutuantes, São Paulo: Ática, 2004, p. 210. 191 Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., 1953, v. 2, p. 76-7. 192 Idem, p. 77. 193 Idem, ibidem. 74

Deus haurida pelo ambiente natural, é o que se verifica mais claramente nos livros Espumas Flutuantes (1970) e Hinos do Equador (1921), que seria um tipo de religião da natureza, bem outrossim ao estilo de .194 “É o momento em que Deus único embora se multiplica e vibra em cada folha de árvore, em cada lasca de pedra, em cada raio de lua, em cada fibra de homem”.195 Seria uma personificação da natureza de maneira em que nela tudo emanaria a força divina, registrando-se assim as fortes marcas do nacionalismo brasileiro na poética castroalvina. Entretanto, a imagem panteística presente nos primeiros versos de Castro Alves sofrerá consideráveis evoluções no decorrer de sua obra. No tocante ao livro Os escravos (1875), veremos construções de imagens que vão além de uma efusão emocional da força de Deus sobre a natureza para transformarem-se em cenários que se concatenam em sintonia com a proposta abolicionista, sugerida pela voz emissora. Ante toda essa proposta, vemos que o papel da natureza na construção do nacionalismo abordado por C. A. é apresentar o perfil de representação de nossa identidade brasileira. Verificamos também que o tema sobre a natureza evolui para o problema social da escravidão quando o poeta insere a idéia de liberdade e de plenitude de vida, nas poesias, aos negros escravizados que apenas conhecem e vivenciam o aprisionamento de sua existência. Além de a natureza ser abordada nos poemas abolicionistas como projeto do nacionalismo brasileiro, notamos que este também ganhou muita significância através da produção patriótica de C.A.

3.2 A Poesia do Heroísmo

Castro Alves referenciou, através dos poemas Pedro Ivo (1865) e Saudação a Palmares (1870), algumas personalidades importantes da nacionalidade brasileira como Pedro Ivo,196 e Zumbi,197 o próprio povo em si, evidenciando, sobretudo, seus feitos e seus pensamentos, mas faz-se mister ressaltarmos que dentre esses, houve um, reconhecido em sua importância apenas pelo poeta, em sua infância, que despertara nele o sentimento patriótico e nacionalista: seu tio, o

194 Ver Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., 1953, v. 2, p. 46. 195 Idem, ibidem. 196 “Pedro Ivo: Pedro Ivo da Silveira (1811-1851), militar e revolucionário pernambucano. De idéias liberais, era capitão da artilharia quando aderiu à revolução Praieira de 1848. Comandou o ataque ao Recife; vencido, fugiu para Alagoas, depois para a Bahia e, afinal, para o Rio de Janeiro. Morreu a bordo do navio que o levaria para a Europa. Por sua coragem, tornou-se uma figura lendária”. Nota de Lilia Silvestre Chaves, In: Castro Alves, Espumas Flutuantes e outros poemas, São Paulo: Ática, 2004, p. 82. 197 Zumbi dos Palmares (1655-1695) foi o último dos líderes do Quilombo dos Palmares. 75 alferes João José Alves. Homem de personalidade forte e arredia sempre se posicionou como um cidadão adverso a toda e qualquer forma de dependência do povo e da nação aos jugos dos dominadores ou colonizadores,198 em outras palavras, o ideal de liberdade e rebeldia já existia na família de C. A., e o alferes não era ídolo somente para seu sobrinho, era dos estudantes, dos soldados, dos vagabundos da cidade e de todos os pobres; era amado pela gente anônima da terra, pelos homens das ruas e das praças.199 Mesmo havendo na genealogia200 do poeta símbolos vivos que muito intervieram em sua formação humano-cidadã, não podemos deixar de mencionar as guerras, os movimentos, as insurreições que definiram o século XIX, no Brasil. Desde o auge da Independência do país, em 7 de setembro de 1822, como a Guerra dos Periquitos que fornecera a independência da Bahia, em 2 de julho de 1823, encontraremos fervores libertários que serviram de exemplos201 aos estudos e às produções literárias do baiano. Dentre essas duas, a guerra de independência da Bahia, que rendeu os belíssimos versos dos poemas Ao dous de julho (1867) e Ode ao dous de julho (1868), foi a que mais estimulou a inspiração poética de C. A., pois na liberal Bahia, os ex-donos da terra resistiram à independência proclamada por Dom Pedro I, em 1822. Então, homens e mulheres, destas, em especial, Maria Quitéria, lutaram pela liberdade sob o comando do Major Silva Castro, avô materno de C. A., o qual fez com seu batalhão todo o itinerário das lutas da independência, chegando ao dois de julho cobertos de feitos: “fora uma epopéia escrita com sangue no recôncavo

198 Sobre este aspecto Jorge Amado relatara que o tio paterno de Castro Alves rebelara-se insurreto no teatro São João, da Bahia, ao assistir a uma peça que enfocara a chegada dos portugueses, em especial, a pessoa do primeiro governador-geral do Brasil: Tomé de Sousa. Ele “descia da caravela para a terra nova e era uma esbelta e rica figura altiva e desdenhosa. Aos seus pés, os índios da terra curvaram-se em adoração.” Este gesto foi motivo para vaias e gritos de estudantes, mas João José ousou atirar-se ao palco e retalhá-lo com punhal em mãos, em nome da liberdade, da nação brasileira. Com isso, eclode em todo o teatro um sentimento nacionalista que ecoará no pensamento de Castro Alves, o qual já era propenso a este sentimento, desde a fase pueril até a maturidade. Cf. Jorge Amado, ABC de Castro Alves, Rio de Janeiro, Livraria Martins Editora, 1941, p. 28-9. 199 Cf. Jorge Amado, Op. Cit., p. 30. 200 “Castro Alves provinha de uma família que dera combatentes à Independência na Bahia (1823) e à República Bahiense (1837).” Edison Carneiro, Trajetória de Castro Alves: uma interpretação política, Rio de Janeiro, Editoria Vitória, 1947, p. 16. 201 Dentre estes fervores libertários, cita-se a Guerra do Paraguai (1864-1870) como aquela que bastante interesse nacionalista despertara em Castro Alves, chegando inclusive a homenagear Maciel Pinheiro em uma de suas poesias por ele ter sido um combatente na Guerra do Paraguai. Apesar de as revoluções populares (como a Cabanada no Pará (1833), a Farroupilha (1835-1845), a Sabinada, na Bahia (1837), a Balaiada, no Maranhão, (1839), a revolução liberal em Minas Gerais e em São Paulo (1842) e a Praieira, em Pernambuco (1848-49), que surgiram anteriores e posteriores ao nascimento de Castro Alves, cessarem, observar-se-á, na poesia de Castro Alves, uma tônica similar a que defendera o poeta em seu estro, ou seja, a revolução, a possível República. Cf. Edison Carneiro, Op. Cit., p. 15- 6. 76 baiano”.202 Acrescentam-se também a esse panorama brasileiro as revoltas que eclodiram no mundo ocidental e que despertaram os olhares203 da massa popular na nação brasileira:

Este quarto de século se caracterizou, por um lado, pelo esmagamento das insurreições de 1848 em Paris, Berlim e Viena, pela liquidação do levante dos poloneses contra o Czar (1848) e da República de Roma (1849), pela reação e pela demagogia mais desenfreadas, pela implantação de governos tirânicos e ditatoriais, como o de Napoleão III (1851), e, por outro lado, pela publicação do Manifesto Comunista (1848), pela unificação da Itália sob o comando de Garibaldi (1860), pela fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864), pela vitória de Lincoln e das forças progressistas na guerra civil americana (1865) e pela ressurgência do movimento democrático nas barricadas da Comuna de Paris (1871).204

Aliando-se a esse panorama histórico, editar-se-ão obras que desempenharam considerável substrato ao perfil literário que se erigia neste século. Joaquim Nabuco chegara a definir que “As Palavras de um Crente de Lamennais, a História dos Girondinos de Lamartine, o Mundo Caminha de Pelletan, os Mártires da Liberdade de Esquiros eram os quatros Evangelhos da nossa geração, e o Ashaverus de Quinet o seu Apocalipse”.205 Essas obras, das quais Castro Alves abeberou-se, exerceram influência sob o viés que o poeta sempre enfocou: a liberdade. Em virtude disso, surgiram poemas de uma vertente heróica que são distribuídos em dois paradigmas: o patriótico e o épico.206 Do primeiro, teríamos produções como Ode ao Dous de Julho (1868), A Maciel Pinheiro (1865), Pedro Ivo (1865), Ao Dous de Julho (1867), dentre outros. Quanto ao segundo, seriam os poemas O livro e a América (1870), Quem dá aos pobres empresta a Deus (1867), Jesuítas (1868) e outras tentativas de criação de um poema épico brasileiro,207 no qual C. A. foi bem sucedido por neles fortalecer o nacionalismo brasileiro. Iniciaremos pelas primeiras que foram os poemas patrióticos, os quais foram movidos pelo fervor nacionalista da Guerra do Paraguai (1864-1870).

202 Cf. Jorge Amado, Op. Cit., p. 14. 203 Dentre estes, não se poderia deixar de inserir os olhares do próprio poeta baiano. 204 Edison Carneiro, Op. Cit., p. 16. (Os grifos são do autor) 205 Joaquim Nabuco, Minha Formação, São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 19. 206 Cf. Jonas Correia, Sentido Heróico da Poesia de Castro Alves, Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1971, p. 33. 207 Todos os poemas aqui citados compõem o livro Espumas Flutuantes (1870). É relevante evidenciarmos que nosso trabalho não objetiva um estudo da natureza épica nos poemas de Castro Alves. 77

3.2.1 Patriotismo e Poesia Épica

Castro Alves foi considerado um dos poetas mais patrióticos de seu tempo. Afrânio Peixoto (1922) comentou que “seu maior título (de glória) é o de ter posto seu talento ao serviço da causa da emancipação e da pátria”.208 Reforçando essa asserção, Édison Carneiro (1947) expusera que “era com carinho, mas também com ânimo varonil, que considerava o seu país”.209 Daí surgirem versos como:

Era no dous de julho. A pugna imensa Travara-se nos cerros da Bahia... O anjo da morte pálido cosia Uma vasta mortalha em Pirajá. “Neste lençol tão largo, tão extenso, “Como um pedaço roto do infinito... O mundo perguntava erguendo um grito: “Qual dos gigantes morto rolará?!...”

Debruçados do céu... a noite e os astros Seguiam da peleja o incerto fado... Era a tocha – o fuzil avermelhado! Era o Circo de Roma – o vasto chão! Por palmas – o troar da artilharia! Por feras – os canhões negros rugiam! Por atletas – dous povos se batiam! Enorme anfiteatro – era a amplidão!

Não! Não eram dous povos, que abalavam Naquele instante o solo ensagüentado... Era o porvir – em frente do passado, A Liberdade – em frente à Escravidão, Era a luta das águias – e do abutre, A revolta do pulso – contra os ferros, O pugilato da razão – com os erros, O duelo da treva – e do clarão!... [...]210

A beleza das imagens metafóricas, como “Era a tocha – o fuzil avermelhado!”, e as personificadas atribuídas aos combatentes e à batalha de Pirajá enalteciam o sentimento patriótico que o poeta enfoca no poema. Dois de julho de 1823 foi a data da Independência da Bahia, que é

208 Cf. Afrânio Peixoto, Castro Alves: o poeta e o poema, 5. ed., São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p. 117. 209 Cf. Edison Carneiro, Op. Cit., p. 54. 210 Castro Alves, Ode ao dous de julho (1868), Espumas Flutuantes e outros poemas, 3. ed., São Paulo: Ática, 2004, p. 123-4. No tocante à segunda estrofe, há certa troca de informações retificada por Édison Carneiro, relacionada a nomes de batalhas, o que não vem a desmerecer a narrativa sobre a bravura dos brasileiros contra as tropas imperiais. Ver Édison Carneiro, Trajetória de Castro Alves, Rio de Janeiro: Editoria Vitória, 1947, p. 58-9. 78 retratada nessas estrofes, explorando a ideia de que a liberdade só é alcançada frente a uma revolução. Observamos também que as antíteses da última estofe, como porvir e passado, Liberdade e Escravidão, acentuam a não aceitação à opressão e à escravidão. O poema traz à memória a história de uma guerra, que no decorrer dos tempos tornou-se uma lenda viva no imaginário dos baianos ao se enfocar a liberdade. Sobre ela, Pedro Calmon comentara: “Anualmente, a data produzia o efeito mágico da provocação; inimigo ad portas, os netos chamados à trincheira dos avós”.211 E para que todo este vigor da magia continuasse vivo, era necessário que as vozes da mocidade trouxessem-no à lembrança como símbolo de resistência e de luta pela vida.212 Todo esse caráter de luta por mudanças, de anseio por liberdade despertara em Castro Alves uma nova consciência: a República. Mas, para chegar a ela, o poeta provavelmente assimilou de Lamartine, no livro História dos Girondinos (1847), as primeiras aspirações ao regime republicano: “a República é o regime da Revolução, a única forma de Governo que conviria às fortes épocas de transformação”.213 O poeta, baseando-se ainda nas ideias expressas por Lamartine, compreendera que essas mudanças deveriam ser pautadas em aspectos bem específicos, como:

No império de três soberanias morais: a do direito sobre a força, a da inteligência sobre os prejuízos, a dos povos sobre os governos; e no desenvolvimento de três revoluções: a primeira nos direitos, a igualdade, a segunda, nas idéias, a razão substituindo a autoridade, e a terceira, nos fatos, o reino do povo. A grande revolução seria ainda um Evangelho de direitos sociais. Um Evangelho de deveres. Uma carta da humanidade.214

Em síntese, a citação enfatiza o ideal de uma nação que foi assaz refletida na poética castroalvina, em prol de uma pátria onde os direitos de todos os cidadãos fossem garantidos. Porém, faz-se mister lembrarmos que ela está substancialmente inerente à ideia de uma Revolução social, nunca acontecida no Brasil, no entanto vislumbrada por ele: “não é possível amar uma sem possuir o culto da outra”:215

República!... Vôo ousado Do homem feito condor! Raio de aurora inda oculta

211 Cf. Pedro Calmon, Op. Cit., p. 99. (O grifo é do autor) 212 Idem, ibidem. 213 Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., v. 3, p. 26. 214 Cf. , História dos Girondinos (1847), apud Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., v. 3, p. 26. 215 Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., v. 3, p. 27. 79

Que beija a fronte ao Tabor! 216 Deus! Por qu’enquanto que o monte Bebe a luz desse horizonte, Deixas vagar tanta fronte, No vale envolto em negror?!... [...]

Foi uma luta de bravos, Como a luta do jaguar, De sangue enrubesce a terra, – De fogo enrubesce o ar! ... Oh!... mas quem faz que eu não vença? – O acaso... – avalanche imensa, Da mão do Eterno suspensa, Que a idéia esmaga ao tombar!...

Não importa! A liberdade É como a hidra, 217 o Anteu,218 Se no chão rola sem forças, Mais forte do chão se ergueu... São os seus ossos sangrentos Gládios terríveis, sedentos... E da cinza solta aos ventos Mais um Graco apareceu!... [...]219

O poema intitulado Pedro Ivo (1865) é considerado como “um remoçado Jeremias, para quem – Pernambuco, que dorme, deixa de ser a cidade condenada; será a cidade que desperta”.220 E realmente esse despontar é constatado com as lutas, propostas na escritura do poema, contra um sistema que aprisiona a dignidade humana e a liberdade. Isso indica como bem assimiladas foram as obras História dos Girondinos (1847) e História dos Mártires da Liberdade (1851) por Castro Alves, visto que o poema abordado representa um retrato dos ideais registrados nesses livros. Trata-se de um canto à liberdade, mais especificamente de um “hino condoreiro”, que persiste insistentemente num ideal, não deixando jamais de acreditá-lo, como podemos averiguar nos versos: “A liberdade é como a hidra, o Anteu,”, “Se no chão rola sem forças,”, “Mais forte do chão se ergueu...”.

216 “Tabor: Monte em que Jesus se transfigurou (revestiu-se dos dotes do corpo glorioso). Em termos cronológicos, a transfiguração, no Tabor, precedeu à crucificação no Calvário”. Nota de Lilia Silvestre Chaves, In: Castro Alves, Espumas Flutuantes e outros poemas, São Paulo: Ática, 2004, p. 87. 217 “Hidra: Na mitologia grega, nome de um gigante que era um lutador invencível, pois sua força vinha da terra. Hércules o sufocou com seus braços, mantendo-o erguido, com os pés fora do chão”. Nota de Lilia Silvestre Chaves, In: Castro Alves, Op. Cit., p. 88. 218 “Anteu: Na mitologia grega, serpente fabulosa, de muitas cabeças. Quando se cortava uma delas, cresciam duas outras em seu lugar”. Nota de Lilia Silvestre Chaves, In: Castro Alves, Op. Cit., p. 88. 219 Cf. Castro Alves, Espumas Flutuantes e outros poemas, 3. ed., São Paulo: Ática, 2004, p. 87-8. 220 Cf. Pedro Calmon, Op. Cit., p. 99. (O grifo é do autor) 80

Outras produções poéticas que também se enquadraram nesse viés libertário foram os poemas épicos, como Quem dá aos pobres empresta a Deus (1867), Jesuítas (1868) e O livro e a América (1870), cujas disposições estruturais apresentam confluências entre o épico e o lírico, das quais podemos destacar a forte subjetividade e o sentimentalismo do lirismo com a exaltação épica do indivíduo, características essas que serão observadas nas análises posteriores do “modelo” de poesia abolicionista. Por isso, ao se tratar de uma produção de teor épico, torna-se necessário evidenciarmos que o herói de destaque em sua poesia será o “povo”, especificando ainda mais este na pessoa do negro escravizado. Ante toda essa proposta, Jonas Correia afirmou que “com estes poemas de vibração e calor épicos, extrapassando as lindes da concepção e da feitura dos poemas patrióticos, Castro Alves atinge as raias da epopéia”.221 Da mesma forma, como em suas demais produções literárias, muito o poeta abeberou-se de outras fontes para compor seus épicos. Dentre tantos, poderíamos citar O Mundo Caminha (1858), de Pelletan, que se trata de um “evangelho do Progresso, uma das crenças tão fundamentais do século”.222 Nessa obra, “o homem acreditava em sua onipotência e assenhoreava-se da natureza”.223 Teríamos, então, uma visão do porvir enleada a uma luta pelo mesmo, adentrando-se assim à modernidade, ao crescimento intelectual e tecnológico, ou melhor, ao avanço de todas as condições que inseridas estão na realidade humana. Castro Alves entende que quem deve substancialmente marchar são a Pátria, o Brasil e a América, livres que ainda estão novos diante da existência da humanidade, por isso ele reproduzirá no poema O livro e América (1870) o progresso, não apenas no mundo, mas especificamente na América:

Talhado para as grandezas, P’ra crescer, criar, subir, O Novo Mundo nos músculos Sente a seiva do porvir. – Estatuário de colossos – Cansado de outros esboços, Disse um dia Jeová: Vai Colombo, abre a cortina De minha eterna oficina... Tira a América de lá. [...]

Filhos do séc’lo das luzes! Filhos da Grande nação!

221 Cf. Jonas Correia, Sentido Heróico da Poesia de Castro Alves, Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1971, p. 34. 222 Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., 1953, v. 3, p. 29. 223 Idem, p. 31. 81

Quando ante Deus vos mostrardes, Tereis um livro na mão: O livro – esse audaz guerreiro Que conquista o mundo inteiro Sem nunca ter Waterloo...224 Eólo 225 de pensamentos, Que abrira a gruta dos ventos Donde a Igualdade voou! [...]226

A força das palavras originária dos versos indica a urgência que se fazia de mudanças, pois séculos haviam se passado seguindo um mesmo parâmetro de vida; era necessário “crescer, criar, subir” como vemos no poema acima. E, como é difícil inserir vicissitudes no mundo antigo, depositaríamos então as esperanças no mundo novo: a América. Lá se conduziria o progresso em todas as suas instâncias, dentre estes, o avanço da intelectualidade, como vemos no verso “Tereis um livro na mão:”, o qual proporcionaria a igualdade entre os homens. Esse ideal o poeta registrou com muita clareza em sua poesia social, quando anteviu a abolição da escravatura, à medida que enxergou o negro como homem, estruturando assim uma identidade humano-social totalmente adversa aos padrões de uma sociedade escravocrata, de uma elite opressora e discriminatória. Todavia, torna-se mister defendermos a ideia de que mesmo Castro Alves tendo sido o primeiro branco dentro do cânone literário, de família escravocrata, a defender a causa da abolição da escravatura, não foi o primeiro homem a erguer a voz contra esse sistema escravocrata inserido no Império que levava o país ao atraso moral em todas as instâncias da sociedade, visto que muitos outros abolicionistas precederam o pensamento e as ações do poeta dos escravos. Argumentaremos com mais riqueza de detalhes sobre a poesia social no final deste capítulo e também no próximo. Adentremo-nos agora às produções dramáticas do autor que não deixaram também de explorar o caráter libertário destinado à humanidade, abrangendo assim o ideal republicano e a erradicação da escravidão. Com isso, tais dramas encaixar-se-iam muito bem numa proposta épica de louvor à pátria e à dignidade humana.

224 “Waterloo: Cidade da Bélgica, perto de Bruxelas, onde ocorreu a Batalha de Waterloo (18 de junho de 1815), em que Napoleão Bonaparte foi derrotado pelas forças aliadas da Bélgica, Grã-Bretanha, Hanôver e Países Baixos”. Nota de Lilia Silvestre Chaves, In: Castro Alves, Op. Cit., p. 44. 225 “Eólo: O mesmo que Éolo; pai dos ventos na mitologia grega. Vento forte”. Nota de Lilia Silvestre Chaves, In: Castro Alves, Op. Cit., p. 44. 226 Castro Alves, O livro e a América (1870), In: ______. Espumas Flutuantes e outros poemas, 3. ed., São Paulo: Ática, 2004, p. 42-4. (O grifo é do autor) 82

3.3 Dramaticidade e Nacionalismo

O teatro, no século XIX, desempenhava fundamental papel no convívio da sociedade. Era o ambiente propício para as famílias de nome, os homens eminentes, moças casadoiras, estudantes das faculdades e todas as demais classes fazerem-se apresentar em público e conhecerem pessoas que pudessem despertar interesse financeiro, social e até emocional. “Todas as classes o apreciam, frequentam-no, têm nele a sua localidade, apesar do calor”.227 O teatro foi nesta época o local onde o mundo gerava reflexão e atitude de seus ouvintes. Os aplausos correspondiam ao auge da aspiração dos escritores. O Romantismo, como corrente recrudescente da modernidade, soube bem utilizá-lo como uma tribuna da qual sairiam grandes pensadores nacionais. Castro Alves realmente compreendera que no teatro a história se construía, a vida se narrava e a sociedade se desmascarava. Ele já havia aprendido através da leitura das obras de Victor Hugo a superioridade do drama nas produções literárias, porque este chegara a declarar no prefácio de Cromwell (1827) que nenhum outro gênero representou melhor as aspirações ao futuro que o drama. O Romantismo foi uma corrente que realmente trouxera uma roupagem nova ao estilo dramático, já que inserira nele a associação entre o grotesco e o sublime, o cômico e o solene, o belo e o feio. Victor Hugo que foi um dos introdutores dessa categoria procurou, sobretudo, enfatizar o grotesco para que esse adquirisse uma imagem mais agradável chegando assim a erigir-se à posição de belo.228 Logo, “o dramaturgo sentia-se então no dever de introduzir em cena um exército de títeres, gnomos, corcundas e bruxas”.229 E Castro Alves não se eximiu desse novo fazer dramático. Compôs três peças teatrais: Gonzaga e a Revolução de Minas (1867),230 Uma página da escola realista (1870),231 Don Juan ou A prole dos Saturnos (1921). Nas três produções, encontraremos exemplos do feio, do grotesco, ou seja, do incomum em cena. A primeira peça foi bastante admirada por renomados críticos da época. José de Alencar chegou a declarar “o assunto, colhido na tentativa revolucionária de Minas, [...], foi enriquecido pelo autor com episódios de vivo interesse. – O Sr. Castro Alves é um discípulo de Victor Hugo,

227 Cf. Charles Ribeyrolles apud Ubiratan Machado, Op. Cit., p. 281. 228 Um dos grandes exemplos na Literatura Universal disto seria o conto A bela e a fera (1740), de Gabrielle- Suzanne Barbot, Dama de Villeneuve. 229 Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., v. 3, p. 81. 230 Apesar de ter sido escrita em 1867, ela só chegara a ser publicada postumamente em 1875. 231 Publicado junto com a primeira edição de Espumas Flutuantes. 83 na arquitetura do drama, como no colorido da idéia”.232 E aditando-se a esse comentário, José de Alencar complementa: “um dia, quando o Sr. Castro Alves reler o Gonzaga, estou convencido que ele há de achar um drama esboçado, em cada personagem desse drama”.233 Ratificando essa opinião, Machado de Assis, ao responder a carta que Alencar o enviara falando sobre o poeta, expôs: “O drama, esse li-o atentamente; depois de ouvi-lo, li-o, e reli-o, e não sei bem se era a necessidade de o apreciar, se o encanto da obra, que me demorava os olhos em cada página do volume”.234 Com certeza, Machado de Assis deixou-se admirar pela forte fusão de ideais que perpassa pela obra, pois nela o vate reúne “o lirismo do mais ardente com a paixão da liberdade mais completa. Um drama de amor e de política. Abolição e idílio, república e gorjeios de namorados. Sonhos de redenção e sonhos de amor”.235 Essa é realmente a grande proposta do texto unir em cena “a tradição política e a tradição poética, o coração do homem e a alma do cidadão. A circunstância foi bem aproveitada pelo autor; o protagonista atravessa o drama sem desmentir a sua dupla qualidade de amante e de patriota”.236 Além de verificar a singularidade da proposta do primeiro drama castroalvino, não podemos deixar de evidenciar a presença de uma personagem instigante para época em todas as camadas da sociedade: o afrodescendente. Não apenas pela inserção dele na peça, mas pelo que se suscitava com sua participação: a abolição. Observamos, com isso, o caráter de inovação que o

232 Cf. José de Alencar, Carta Aberta de Literatura – Um Poeta (1868), In: Pedro Calmon, Castro Alves: o homem e a obra, Rio de Janeiro: José Olympio, 1973, p. 304. 233 Idem, p. 305. Porém, o crítico não deixa de alertar que “– olhos severos talvez enxerguem na obra pequenos senões. – Maria, achando em si forças para enganar o governador em um transe de suprema angústia, parecerá a alguns menos amante, menos mulher, do que devera. A ação, dirigida uma ou outra vez pelo acidente material, antes do que pela revolução íntima do coração, não terá na opinião dos realistas, a naturalidade moderna.” Idem, ibidem. 234 Cf. Machado de Assis, Castro Alves (1868). In: ______. Críticas & Variedades. São Paulo: Globo, 1997, p. 120. (Obras completas de Machado de Assis) 235 Cf. Jorge Amado, Op. Cit., p. 108. Mesmo reconhecendo o caráter lírico e revolucionário do drama, Jorge Amado outrossim apresenta uma crítica sobre o gênero em questão quando expõe: “Evidentemente Gonzaga não está em absoluto na mesma altura literária dos poemas de Castro Alves. Ele não era um dramaturgo, nasceu mesmo foi poeta, e, fazendo exceção da intenção libertária que ditou o drama, o que “Gonzaga” possui de melhor é a força poética que o atravessava, por vezes sendo ele um verdadeiro poema. Fora disso é oratório e sem real interesse teatral hoje. Na época, no entanto, não era ele tão despido assim de interesses.” Idem, ibidem. Essa mesma falha quanto à fusão de gêneros foi também observada pelos primeiros críticos ilustres da peça. José de Alencar expusera: “Há no drama Gonzaga exuberância de poesia. Mas deste defeito a culpa não foi do escritor; foi da idade. Que poeta aos vinte anos não tem essa prodigalidade soberba de sua imaginação, que se derrama sobre a natureza e a inunda? – A mocidade é uma sublime impaciência.” José de Alencar, Carta Aberta de Literatura – Um Poeta, In: Pedro Calmon, Op. Cit., p. 304. Machado de Assis, ao responder a correspondência do ilustre crítico corroborara: “O poeta explica o dramaturgo. Reaparecem no drama as qualidades do verso; as metáforas enchem o período; sente-se de quando em quando o arrojo da ode. Sófocles pede as asas a Píndaro. Parece ao poeta que o tablado é pequeno; rompe o céu de lona e arroja-se ao espaço livre e azul. Esta exuberância, que V. Exª. com justa razão atribui à idade, concordo que o poeta há de reprimi-la com os anos. Então conseguirá separar completamente língua lírica da língua dramática.” Cf. Machado de Assis, Castro Alves (1868). In: ______. Op. Cit., p. 120. 236 Cf. Machado de Assis, Castro Alves (1868). In: ______. Op. Cit., p. 121-2. 84 romântico fornecera ao teatro brasileiro, principalmente quando sabia ele que com isso sujeito a críticas poderia sofrer sua produção dramática, pois o negro era sistematicamente evitado na cena nacional, e muito mais seria se colocado dentro de um panorama que reivindicasse mudanças no sistema político da escravidão. Nisso estaria a grande importância literária, social e, sobretudo, revolucionária da obra, visto que “no teatro da sociedade branca do Brasil, estaria realizado o princípio hugoano com a simples introdução do negro”.237 Nesse drama, Castro Alves realmente reunira todo o seu ideal de futuro. E pensando desta mesma forma, Rui Barbosa expusera que era um drama que havia de perdurar: “Não mais escravos! Não mais senhores [...] é o brado que reboa da alma flamejante do Gonzaga; é a nota perene em toda a obra poética e dramática de Castro Alves”.238 Em síntese, “a peça, de cunho político e intenção republicana, era abertamente abolicionista e apresentava um exemplo claro de como a escravidão deformava as criaturas e abalava os valores humanos”,239 ou seja, Gonzaga “é a epopéia da moral burguesa, com o sonho de vê-la transposta para a sociedade dos escravos”,240 por isso vem a ser um drama que se destina a conscientizar e moralizar através da crítica de que a liberdade é um direito extensivo a todos. A princípio não se faz muita ligação do título com a escravidão, porém Castro Alves, na peça, transparece que a luta pela liberdade do Brasil está nitidamente projetada ao da luta pela abolição do cativeiro, ou seja, homens livres são seres impulsionadores para uma nação livre. Castro Alves propõe, com isso, a imagem idealizada de uma nação: o verdadeiro caráter nacional brasileiro – a liberdade. Vejamos um excerto em que o discurso de liberdade é altamente conflitante:

Gonzaga (a Luís): Vem cá! (Aos companheiros) Vêem este homem? Cláudio: Por Deus! É um negro. Gonzaga: Sabem a que classe pertence? Cláudio: Um escravo ou um liberto. Gonzaga: Que é ainda um escravo, se este homem tiver a desgraça de ter mãe, filho, irmã, amante, uma mulher, uma família, enfim, algum desses fios que prendem o

237 Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., v. 3, p. 82. 238 Cf. Rui Barbosa, Elogio de Castro Alves, (Discurso pronunciado na comemoração do décimo aniversário da morte do poeta.) Rio de Janeiro: Edição da Organização Simões, 1950, p. 51-2. 239 Cf. Alberto da Costa e Silva, Castro Alves: perfis brasileiros, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 67. Faz- se mister apresentar que a referência à República em Castro Alves era intencionalmente de viés abolicionista. O poeta reporta-se à luta dos Inconfidentes como símbolo de luta pela Independência, mas esta dissociada da abolição da escravatura não corresponderia ao ideal pleno de liberdade galgado por ele. Sobre este aspecto, Afrânio Peixoto já expusera: “Se a Independência viesse, como veio, seria incompleta, sem a Abolição; e como esta tardava, sob a Monarquia, seria talvez mister apelar para a República... Esta como a propaganda social se alçava à florescência de uma obra de arte.” Afrânio Peixoto, Castro Alves: o poeta e o poema, 5. ed., São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p. 147. 240 Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., 1953, v. 3, p. 87. 85

homem à vida como a estrela ao firmamento. E sabeis por quê? É que a mãe de cujo seio ele saiu é escrava e o fruto murcha quando o tronco sofre, é que a mulher que ele tem no coração é escrava e o verme que morde o coração mata o corpo, é que o filho de seu amor é escravo, e o ninho desaba quando o passarinho estrebucha na agonia. E sabem o que este homem quer? Qual é o único sonho de sua noite, a única idéia de seu cérebro? Perguntem-lhe. Cláudio: Talvez o amor, a ventura sob a forma de um beijo. Luís: Perdoe, meu senhor. Engana-se. Não! [...] Cláudio: Posição, grandeza, talvez uma farda de governador. Ainda não? Com mil diabos, és difícil de contentar. Gonzaga: Enganas-te. Ele quer pouco, quer o que todos nós temos, quer sua família, quer sua filha.241

A voz de solidariedade para com a dor do negro acompanhará toda a poética de Castro Alves. O excerto explora sentimentos de saudade, carência, fragilidade humana que até então não eram retratados com tanta ênfase ao negro, pois este é exposto com a finalidade de entendermos os traços de sua subjetividade, de sua individualidade, de sua própria história. A condição de escravo é criteriosamente perceptível não apenas pelo fato de o discurso das personagens reconhecer a realidade daquele indivíduo como a de um negro-escravo, mas pelo fato de este demonstrar que está preso às suas dores, às suas ansiedades. Isso, realmente, é o que caracteriza a sua adesão incontestável a um homem ser escravo. A referência acentuada aos sofrimentos vivenciados pelo negro, estrutura bem a constatação a que Antonio Candido chegara sobre a poética castroalvina: “só Castro Alves estenderia sobre o negro o manto redentor da poesia, tratando-o como herói, amante, ser integralmente humano”.242 Diante desse fato, é aceitável a asserção de que C. A. tenha idealizado o negro na Literatura Brasileira. E para constatar tal informação, destacamos o posicionamento de Antonio Candido no que se refere ao ideal almejado por C. A. com o negro-escravo:

É um ideal de justiça pelo qual se luta, [...] A idealização, porém, agindo no terreno lírico, permitiu impor o escravo à sensibilidade burguesa, não como espoliado ou mártir; mas, o que é mais difícil, como ser igual aos demais no amor, no pranto, na maternidade, na cólera, na ternura. [...] Castro Alves se tornou o poeta por excelência do escravo ao lhe dar, não só um brado de revolta, mas uma atmosfera de dignidade lírica, em que os seus sentimentos podiam encontrar amparo; ao garantir à sua dor, ao seu amor, a categoria reservada aos do branco, ou do índio literário.243

241 Cf. Antônio Frederico de Castro Alves, Gonzaga ou A revolução de Minas (1867). In: Elizabeth R. Azevedo (Org.), Castro Alves Teatro Completo, Ato I, Cena III, 2004, São Paulo: Martins Fontes, p. 21-3. 242 Cf. Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos, 11. ed., Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007, p. 590. 243 Idem, p. 592. 86

A afirmação de Antonio Candido justifica o diálogo das personagens acerca do negro. O poeta trabalhou e enfatizou a dignidade que Fagundes Varela explorara em Mauro, o escravo, porém ele não apenas denunciou as injustiças, mas foi o único que amparou a dor do negro ao reportá-la ao espaço da abolição da escravatura, e ainda o concedeu o lugar, como Antonio Candido mencionou, do índio, dentro do universo de idealização romântica. Será mediante esse prisma que analisaremos sua produção poética abolicionista no capítulo posterior, destacando os elementos impulsionadores, as características poéticas norteadoras de sua produção literária, como também abordaremos os fatos históricos que serviram como base para a construção da abolição da escravatura. Observamos também que esse desejo de liberdade no drama castroalvino não se destina apenas à erradicação de um sistema opressor da escravidão, mas à construção de uma nação brasileira que ora perpassa pelo individual e insere-se no coletivo, como também a uma entrega total de um amor sem barreiras. É o que vemos nas obras Don Juan e a Prole dos Saturnos (1921)244 e Uma página da escola realista (1870). Em ambas encontraremos o forte elo estabelecido com Byron e Musset, porque Don Juan “seria um drama ultra-romântico, com o seu toque de gótico”,245 uma peça que realmente retrata os amores impossíveis e vistos com extremos maus olhos pela sociedade conservadora e manipuladora, já que uma das protagonistas Ema, para escapar do esposo simula a morte, apelando para ciência, ao tomar uma substância química que deixa seu corpo em estado de completa inércia, assemelhando-se com a imagem de alguém que realmente está morta. Tudo isso para viver seu clandestino amor por um médico que é quem lhe fornece a substância e por quem ela está bastante apaixonada.246 Diante do contexto, observamos a forte referência com o romance vivido entre Pórcia, tia materna de Castro Alves, e Leolino Canguçu cujo relacionamento foi retratado como ofensa

244 Esse drama foi escrito logo após o êxito da peça Gonzaga ou a Revolução de Minas. A data precisa de escrita não se sabe ao certo, por isso segue a data da publicação da referida obra. Trata-se de um drama inacabado, o que se conhece dele são os dois primeiros quadros que se passam num velório e num cemitério. “Ao que tudo indica Castro Alves avançara mais na composição da peça, porém os originais foram esquecidos numa caixa de chapéu, no Rio de Janeiro. Um rascunho deixado pelo poeta com indicações das cenas do terceiro quadro mostra o médico acompanhado de duas mulheres a quem igualmente ama: a que retirara do sepulcro e uma outra. Com cada uma delas tem um filho. O ambiente é de desvario, com ameaças, tentativa de assassinato e seqüestro de crianças.” Ver: Alberto da Costa e Silva, Castro Alves: perfis brasileiros, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 78. 245 Idem, p. 77. 246 Observa-se também pelo contexto uma intertextualidade com a história de amor e fuga entre Romeu e Julieta, de Shakespeare, de quem diversos poetas e prosadores abeberaram-se ao compor suas produções literárias. 87 inadmissível entre as tradicionais famílias da Bahia.247 Contudo, Castro Alves não enxergava por esse ângulo, pois a sua condição de poeta reservava “a missão de violar a paz dos lares brasileiros com a mensagem de que o amor deve ser gozado em plenitude e liberdade, sem restrições, limitações, deformações”.248 Por isso, ele compôs a peça Don Juan que representa muito bem “uma justificativa do adultério como solução aos problemas da alma”.249 Porém, mesmo que os dramas castroalvinos apresentem fortíssimas sugestões de liberdade em todas as instâncias da vida, adequando-se bem às propostas românticas, observamos que a corrente à qual pertencera o poeta apresentou ênfases excessivas em sua estrutura textual, gerando assim exageros que destoariam um tanto da realidade nacional vigente e até da vida da população. O próprio Castro Alves chegou a sugerir quais seriam esses exacerbos em momentos de crítica literária: “o convencional, o inverossímil, o melodramático, a ausência de idéias sacrificando o efeito cênico e (não se pasmem!) o exagero declamatório”.250 A sua peça Gonzaga (1867) em alguns momentos peca na “falta de fundamentos na verdade histórica, não realizaria o princípio de verossimilhança, se fôssemos comparar o drama com a história verdadeira”.251 Porém, essa possível ruptura tem a sua necessidade; visto que, como já exposto, seria um avanço ao porvir, à modernidade e, sobretudo, à liberdade. Dentro desse modelo, que se firmou o drama e a poesia social castroalvina. Essa que será o objeto de estudo de nosso próximo tópico apresentará o que de mais autêntico de futuro o poeta dos escravos acreditara: a independência do homem em todos os seus aspectos e para isso, toda e qualquer base de aniquilamento desta deve ser extinta. Baseando-se nisso, Castro Alves escreve uma página na literatura brasileira com sua poesia condoreira.

247 Jorge Amado descreve esse envolvimento entre Pórcia e Leolino detalhadamente. Cf. Jorge Amado, Op. Cit. p. 10-12. 248 Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., v. 1, p. 177. Jamil Haddad observara também que essa postura de Castro Alves “retomava, de certo modo a tradição de Gregório de Matos, raro poeta nosso para quem o sexo publicamente existia e que por isso mesmo foi coroado de uma legenda desmoralizadora. Era preciso que essa mesma legenda não viesse a desmoralizar a Castro Alves também e para conseguir-se esse efeito seria preciso pregar pelo Brasil obtuso do tempo o evangelho da decência do ato sexual, mesmo fora da moldura hierática do casamento. Todos os biógrafos contam a história de um exame seu na Faculdade de Direito de São Paulo e em que a dissertação teria versado sobre o poder marital. E respondeu à argüição: ‘O poder marital é odiosa restrição à liberdade da mulher... ‘e prosseguindo em considerações que os cronistas não dizem quais tenham sido e que se vê participarem mais do poético humano que do ortodoxalmente jurídico. Este episódio merece referência, todavia somos frontalmente contrários à idéia de considerá-lo mera anedota, evasiva simples de estudante mal preparado para as provas, pois essa resposta é, como sintoma, uma das revelações mais sérias de todo o “pathos” de Castro Alves, adquirindo sentido iluminante quando se a encadeia com uma série de dados que podem apontar-nos a maneira por que na sua vida e na sua arte, encarava o problema dos direitos femininos ao amor, ao sexo e à vida total.” Idem, p. 177-8. 249 Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., v. 1, p.179. 250 Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., v. 3, p. 82. 251 Idem, ibidem. 88

3.4 Poesia Social e Condoreirismo

Inserir a poética de C. A. na discussão sobre identidade nacional é explorar toda a complexidade de uma pluralidade ideológica, política e social. Dessa forma, estabelecemos a correlação entre criação literária e discussão estética sobre a identidade nacional através da poesia social, que ganhou muito mais destaque e respaldo a partir do século XIX. O Romantismo, tendo Castro Alves como maior representante dessa produção, não se eximiu de retratar esses anseios sociais, que se posicionou como uma paixão que visa a coadunar razão e emoção. O poeta desse estro portar-se-á como um profeta252 e numa postura de abnegação, denunciará as injustiças e os crimes oriundos do sistema escravocrata, anunciando assim a boa nova com a abolição da escravidão. Esse estilo de poesia tão arraigado às causas sociais tem sua origem em poetas e prosadores europeus, mais especificamente nos franceses como Victor Hugo, Alfred de Vigny, Lamartine, Edgard Quinet e muitos outros que relacionaram sua inspiração literária a uma coletividade vista à margem da sociedade dominante e opressora. Teríamos, então, uma composição de obras interligadas ao seu tempo, dando-lhes um caráter de modernidade e sobretudo assaz contextualizada com a realidade que circunda a vida das camadas vistas como minorias sociais, no Brasil eram a maioria, mas atingem um determinado contingente que impossivelmente poderia passar despercebida pelos olhares críticos e analíticos daqueles que erigiam uma nova página na literatura, não apenas por retratar a vida destes, mas por opinar e agir diante de ações que restringiam a dignidade do homem e aniquilavam o seu maior direito: a liberdade. Em consequência disso, essas ideias tão rapidamente alcançaram espaços tão significativos na vida política, social, literária e filosófica. O homem de pensamento

252 Jamil Almansur Haddad apresentou Castro Alves como autêntico hebreu, e o próprio poeta apresentava-se como tal, porque acreditava ele que o homem dessa nacionalidade tinha postura profética e agia também como um. “No hebraísmo, a crença não reponta apenas como valor teórico, não é apenas princípio ou idealidade; é inexoravelmente e sobretudo ação. O princípio ético não valerá nada, enquanto não for transposto para a vida, enquanto não for expressão de conduta, enquanto não for prática pura. E o profeta em Israel é o homem iluminado do espírito como ainda o primeiro na fé e na ação. É o homem que lança a idéia e vai propagá-la entre os homens. Profeta é o homem da luta, o homem do sofrimento pela luta. “Profeta é aquele nascido para destruir e construir, assim como para edificar e plantar” sugere Jeremias. Profeta é o porta-voz, o eco, a ressonância, de vindouras aspirações coletivas. Profeta, sugere Isaías, é “aquele que virá anunciar a boa nova aos mansos, consolar os homens de coração turbado, PROCLAMAR A LIBERDADE DOS ESCRAVOS, ABRIR O CÁRCERE AOS PRISIONEIROS, consolar todos os que sofrem”. Castro Alves é o profeta. Ele vem falar da hora da ressurreição à parcela da espécie humana espisinhada, escravizada, terrivelmente torturada. Para ele, as idéias de judeu e negro se associam estreitamente. Vê em ambos a mesma predestinação, o mesmo destino para sofrerem a perseguição e o ódio sem complacência dos homens de outras raças.” Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., v. 2, p. 11-2. (O grifo é do autor) 89 revolucionário no século XIX não apenas registrou posicionamentos críticos ou demonstrou sua indignação contras as injustiças, mas contribuiu com o avanço de toda uma civilização. Daí a produção literária da época servir de esteio a essa postura:

Victor Hugo pensava que todo o verdadeiro poeta devia abranger, além dos pensamentos que lhe vêm da verdade eterna, a somma de idéas de seu tempo. Preocupado com a função social do poeta que devia ser, a seu juízo, não somente um eco ou reflector de aspirações, mas, pela sua intuição divinatória, um mago annunciador de verdades e esperanças, elle queria que se projectassem, na poesia lyrica, com as sombras do passado as sombras dos acontecimentos que estão por vir... Não que procurasse no poeta o propagandista, de espírito sectário, capaz de suffocar a sua sensibilidade nas garras de uma theoria, mas um espírito preccupado com os destinos do homem e disposto a abrir o seu coração, menos ao ensinamento das doutrinas do que às idéas vivas e errantes que se adquirem, na luta e na visão das realidades tangíveis, ... O poeta, “homem no mundo dos homens” como exigia Kipling, commovido diante do espectáculo da vida urbana, feita de fartura e misérias, passa do sentimento da piedade pelos opprimidos ao da revolta contra os oppressores: a inspiração, dos pequenos ou grandes quadros de angústias sociais, se levanta, impetuosa, nas sátiras e nas invectivas, para se librar, mais alto, nas largas suggestões panorâmicas de reforma social.253

Será assumindo essa acepção, explorada por Fernando Azevedo, que surgirá no Brasil, em meados do século XIX, uma poesia cujo nome proferiu-se, no meio literário e acadêmico, como Condoreira.254 Aquela que explorava imagens de liberdade como isotopias255 que ecoavam em todo o fazer poético do vate. Segundo Sílvio Romero, “duas foram as áreas temáticas fundamentais da poesia condoreira: a guerra do Paraguai e o abolicionismo”.256 No Brasil, “foi

253 Cf. Fernando Azevedo, A poesia Social no Brasil, In: ______. Ensaios (1925), São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1929, p. 90-1. 254 No que se refere à denominação do Condoreirismo e ao que o estilo representava, José Veríssimo discorrera comentários bastante críticos, retirando-lhe assim uma possível beleza expressa pelo termo: “Denominação aliás, como tantas outras invenções na nossa literatura, de pouca propriedade. [...] Demais não foram nem Tobias, nem Castro Alves os inventores desse falso gênero de poesia enfática e declamatória. Antes deles, Pedro Luís publicara os seus poemas Nunes Machado, A sombra de Tirandentes, Os voluntários da morte (1863), Terribilis Dea, justamente na diapasão que devia dar àqueles dois poetas o epíteto extravagante de condoreiros. [...] o condoreirismo não era uma novidade na nossa poesia, mas apenas o exagero, sob a influência do entusiasmo patriótico do momento e da retórica hugoana, desse defeito do nosso estro poético. Dos chamados condoreiros apenas dois, os já nomeados Tobias Barreto e Castro Alves, lograram distinguir-se por outras partes que essa falaz poesia, entre os que, como eles, presumiam reproduzir aqui a Victor Hugo, quando não faziam senão contrafazer-lhe os mais patentes defeitos.” Cf. José Veríssimo, História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908), São Paulo: Letras & Letras, 1998, p. 322-3-5. (O grifo é do autor). Mesmo diante da crítica ao Condoreirismo, José Veríssimo não deixou de reconhecer o grande talento verbal que tinha Castro Alves, como também a sua imensa contribuição estética no processo de emancipação do escravo brasileiro. 255 Isotopia, consoante Greimas, é o “conjunto redundante de categorias semânticas que torna possível a leitura uniforme do relato, tal como resulta das leituras parciais dos enunciados, após a resolução de suas ambigüidades, a qual se orienta pela investigação da leitura única”. Cf. Algirdas-Julien Greimas, Sémantique structurale, Paris, Larousse, 1966, apud Jacques Dubois et alli, Retórica da Poesia, São Paulo: Cultrix, 1980, p. 32. 256 Cf. Domingos Carvalho da Silva, A presença do Condor (Estudo sobre a caracterização do Condoreirismo na poesia de Castro Alves), Brasília: Clube de Poesia de Brasília, 1974, p. 15. 90

Tobias Barreto, mestre e fundador da escola condoreira e autor de famosas odes marciais que retumbam no seu livro póstumo Dias e Noites (1903)”.257 A crítica muito associou a terminologia “condoreira” ao termo hugoano, intencionada assim a direcionar a poesia social brasileira ao padrão e à classificação determinadas por Victor Hugo. Entretanto, Euclides da Cunha (1907), contrariando a opinião de Machado de Assis, que afirmara que o poeta dos escravos teria tomado o autor de La Légende des Siècles (1859) como “mestre” em sua inspiração condoreira, expõe que:

Os grandes pensamentos, sociais ou políticos, que agitou, não lhe advieram, como em geral sucede, de longas ou bem acentuadas correntes, nos agrupamentos que o rodeiavam. Pertenciam, plenamente generalizados, à sua época. Nasciam do patrimônio comum das conquistas morais da humanidade. A sua grandeza está nisto: ele os viu antes e melhor do que os seus contemporâneos.258

Euclides da Cunha (1907) aprofunda-se mais em suas observações ao afirmar com bastante convicção que o Condoreirismo que o poeta baiano nos apresenta através de sua poesia é inato à nossa realidade social:

Os que lhe denunciam nos versos a autoridade preponderante de Victor Hugo, esquecem-lhes sempre que ela existiu sobretudo por uma identidade de estímulos. Não foi o velho genial quem nos ensinou a metáfora, o estiramento das hipérboles, o vulcanismo da imagem, e todos os exageros da palavra, a espelharem, entre nós, uma impulsividade e um desencadeamento de paixões, que são essencialmente nativos.259

Mediante o exposto, observamos que Euclides da Cunha acreditava em um hugoanismo tipicamente brasileiro, aquele que realmente retratasse não apenas nossas aspirações, anseios ou que fosse registro de nossa história, mas que fosse uma forte marca de nossa “autêntica identidade”. A discussão deixada em aberto e ao mesmo tempo proposta por Euclides da Cunha já aponta para a natureza de nossa cultura, expressa entre o pensamento europeu e um esforço seletivo e criador de um caráter nacional. Por isso, ele endossou a ideia de que o nosso hugoanismo é símbolo vivo de nossas realidades populares, como se pode verificar na citação que segue:

257 Cf. Domingos Carvalho da Silva, A presença do Condor (Estudo sobre a caracterização do Condoreirismo na poesia de Castro Alves), Brasília: Clube de Poesia de Brasília, 1974, p. 15. 258 Cf. Euclides da Cunha, Castro Alves e seu tempo (1907) (Discurso proferido no Centro Acadêmico Onze de Agosto de São Paulo), São Paulo: Edição do Grêmio Euclydes da Cunha, 1919, p. 11. 259 Idem, p. 22. 91

Eu poderia recitar-vos um sem conto de trovas sertanejas, onde as metáforas e as alegorias, e até as antíteses, se acumulam, alguma vez belíssimas, e detonam e fulguram, sempre a delatarem uma amplificação, o eterno aspirar por um engrandecimento; e uma afetividade indefinidamente avassaladora e crescente. E não já nas quadras, em que os bardos roceiros têm estimulante dos desafios recíprocos, senão na trivialidade do falar comum, exprimindo os atos mais vulgares, desde o nosso caipira, que, ao procurar em qualquer cômodo exíguo um objecto, nos diz, num largo gesto, que está campeando, como se o rodeassem os sem fins dos horizontes vastos; [...]260

Torna-se, portanto, evidente que o Condoreirismo, para Euclides da Cunha, é um registro de nossa identidade, mesmo que bastante arraigado esteja ao estilo francês, como foi associado. O referido crítico moderno procurou, numa postura bastante social, nacionalizar o modelo hugoano; dando-lhe assim as feições de nosso povo. Mesmo que o Condoreirismo seja a expressão hugoana da poesia brasileira ou “o romantismo épico francês trasladado para os trópicos”,261 porém, no Brasil, foi enriquecido com a inserção da campanha abolicionista atribuída por Castro Alves,262 sem desvincular-se daquela postura de ser a “escola da ênfase, das metáforas arrojadas, da antítese vertical, dos apelos ao Direito e das invocações à liberdade”.263 No entanto, Mário de Andrade (1937) observou que a loquacidade do poeta não o distanciou do negro escravizado: “Castro Alves jamais ergue os escravos até sua altura, mas se abaixa até os seus irmãos inferiores”.264 Defendeu a causa da abolição da escravidão com uma vivacidade que denunciava a força de seu gênio. “Cumpre reconhecer até a habilidade com que o grande poeta usa todos os recursos intelectuais insertos na Poesia ou deformadores dela, pra nos infundir piedade pelo escravo e asco pela escravidão”.265 Diante disso, Mário de Andrade chegou inclusive a afirmar que “suas líricas de melhor carícia nacional não será nos versos de amor (talvez demasiadamente sentidos...), que iremos

260 Cf. Euclides da Cunha, Castro Alves e seu tempo (1907) (Discurso proferido no Centro Acadêmico Onze de Agosto de São Paulo), São Paulo: Edição do Grêmio Euclydes da Cunha, 1919, p. 22-3. (O grifo é do autor) 261 Cf. Domingos Carvalho da Silva, A presença do Condor (Estudo sobre a caracterização do Condoreirismo na poesia de Castro Alves), Brasília: Clube de Poesia de Brasília, 1974, p. 28. 262 Ver: Domingos Carvalho da Silva, Op. Cit., 1974. 263 Cf. Fausto Cunha, O Romantismo no Brasil: de Castro Alves a Sousândrade, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971, p. 20. No que se refere aos arroubos das características do Condoreirismo, Mário de Andrade não deixara de registrar severos comentários acerca do mesmo, dizendo que “o condoreirismo levou Castro Alves a imagens de um mau gosto repulsivo, mas, a meu ver, o maior mal dessa oratória é que Castro Alves, como Rui Barbosa, foi um encompridador.” Cf. Mário de Andrade, Castro Alves. In: ______. Aspectos da Literatura Brasileira (1931), 4 ed., São Paulo: Livraria Martins – MEC, 1972, p. 122. 264 Cf. Mário de Andrade, Castro Alves. In: ______. Aspectos da Literatura Brasileira (1931), 4. ed., São Paulo: Livraria Martins – MEC, 1972, p. 111. 265 Idem, p. 114. 92 encontrar, mas justamente na vida dos escravos”.266 “E quando a poesia assume compromissos com a vida, inserindo-se deliberadamente no tempo histórico e social, a eloqüência aparece, mais que recurso, como força realmente poética”.267 Daí estruturar-se, então, a poesia social. Aquela que assume “o perfil do povo”, que externa sua alma, que lhe é um advogado de defesa; “igual ao rifle, à metralhadora e ao punhal, a poesia é também uma arma do povo. Era como uma luz que rasgava os caminhos, levantava os homens e os elementos”.268 Nesse caso, como ressalta Fernando Azevedo (1925) “a poesia procurava naturalmente acomodar-se às novas circunstâncias para abeberar-se nelas: de um problema interno que ela refletiu, em crise aguda de solução, passa alargando o espírito de justiça e de humanidade, [...]”.269 Em função de tal perspectiva, Castro Alves deixou-nos um verdadeiro legado de denúncias contra o sistema escravocrata. Ele incitou-nos o sentimento de comiseração ante o sofrimento a que foi subjugado o escravo. Mário de Andrade, comungando desse mesmo viés, criticou o referido sistema político da escravidão expondo de que maneira a poesia social castroalvina retratou a época em questão:

Se no amor o seu ópio foi a sinceridade sem mentiras, no ideal social foi a piedade. Usou e abusou da piedade. O escravocrata não é uma circunstância defeituosa da sociedade, é um criminoso feroz, um monstro vil. A igualdade humana não é uma necessidade moral, é uma conquista.270

Acreditando nesse ideal, Castro Alves lutou através de sua escrita poética para a emancipação da escravidão, concedeu direitos humanos a quem nunca os teve, foi em vida um jurista que julgara desumano e indigno os maus tratos a que o homem negro era impelido. Com essa crença, ele registrou nas obras Os Escravos (1883) e em A Cachoeira de Paulo Afonso (1875) seu protesto, sua opinião e acima de tudo sua luta contra a opressão humana. Então, partindo dessa conjuntura, propomo-nos a analisar as duas mencionadas obras, como a representação da discussão sobre o caráter nacional brasileiro acerca do romantismo brasileiro e da produção literária castroalvina. Para isso, adentrar-nos-emos agora no estudo da

266 Cf. Mário de Andrade, Castro Alves. In: ______. Aspectos da Literatura Brasileira (1931), 4. ed., São Paulo: Livraria Martins – MEC, 1972, p. 114. 267 Cf. Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos 1750-1880, 11. ed., Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007, p. 588. 268 Cf. Jorge Amado, ABC de Castro Alves, Rio de Janeiro: Livraria Martins, 1941, p. 32. 269 Cf. Fernando Azevedo, A poesia Social no Brasil, In: ______. Ensaios (1925), São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1929, p. 95. 270 Cf. Mário de Andrade, Castro Alves. In: ______. Op. Cit., p. 111. 93 obra Os Escravos (1883), que mesmo tendo sido publicada após A Cachoeira de Paulo Afonso (1875), foi escrita primeiro que esta. Logo, obedecendo a uma ordem cronológica e atendendo também ao perfil evolutivo do tema, iniciaremos pelos textos que o poeta encetou a partir de 1863, em Recife, e finalizou-os em 1868, em São Paulo, para depois os textos escritos no sertão baiano, A Cachoeira de Paulo Afonso. Períodos estes em que C. A. almejava se fazer conhecido com sua produção poética, partindo, portanto, da Academia de Direito que foi o espaço intelectual da época.

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4 A ARQUEOLOGIA DA IDENTIDADE ESTÉTICA NA POESIA SOCIAL DE CASTRO ALVES

Castro Alves, ao escrever os poemas de Os Escravos (1883), buscou, como já observado por Euclides da Cunha, produzir traços vivos de nossa identidade nacional determinando o lugar “histórico” do homem negro, até então ostracisado pela sociedade que lhe negava identidade humana. Mas, no que concerne ao desenvolvimento estilístico da temática abolicionista de Os Escravos (1883), entendemos, através de sua produção entre 1865 a 1870 que a elaboração do conteúdo poético correspondente ao período obedece a uma ordem de influências ideológicas e teóricas que determinam o que denominamos, em nosso trabalho, como a poesia abolicionista e sua identidade estética e ideológica. Entendidas aqui como as tendências motivadoras que influenciaram a criação literária sobre o estilo castroalvino, dentre tantas, é relevante ressaltar o esteio literário que foi Victor Hugo sobre a produção do poeta dos escravos, especialmente, no que se refere ao poder de síntese. Nesse sentido, “os processos da imaginação em Castro Alves recordam os de Victor Hugo”,271 isto é, “tratando desse último, Mabilleau revela o seu processo essencial imaginativo e que três fases consubstanciam: a) ele simplifica os objetos; b) ele aumenta-os; c) ele os opõe. Em Castro Alves, a mesma coisa: a esquematização, a hipertrofia, e a antítese”.272 Jamil Haddad aprofunda as estruturas que os aproximam destacando “o caráter ótico dos dois, ambos visuais em grau altíssimo; o amor do vocábulo que os marcava; o caráter da imaginação de ambos que na nomenclatura de Ribot seria a plástica; a esquematização de suas composições [...]”.273 Toda essa fusão de imagens servirá para compor toda a plasticidade da poesia social da terceira fase do Romantismo Brasileiro, especificamente, no que se sugere pelas acepções de cor, som e movimento. E essas categorias afuniladas à criticidade do conteúdo fornecerão ao poema a terminologia de poesia condoreira. Outro grande influenciador das posturas assumidas pelo hugoano baiano foi Henri Heine. Este se condicionou mais que um contribuinte à produção de Castro Alves, foi o poeta, junto a Victor Hugo, que fortaleceu o viés social e libertário na inspiração poética do autor de Espumas

271 Cf. Jamil Almansur Haddad, Revisão de Castro Alves, São Paulo: Saraiva, 1953, v. 3, p. 79. 272 Idem, ibidem. 273 Idem, ibidem. 95

Flutuantes (1870). Por isso, a presença das referências deste alemão no livro de Os escravos (1883) como a própria epígrafe que abre a referida obra:

Des fleurs, des fleurs! Je veux em couronner ma tête pour le combat. La lyre aussi, donnez-moi la lyre, pour que j’entonne um chant de guerre... Des paroles comme des étoiles flamboyantes, qui en tombant, incendient les palais et éclairent les cabanes… Des paroles comme des dards brillants qui pénètrent jusqu’au septième ciel, et frappent l’imposture qui s’est glissée dans le sanctuaire des sanctuaries… Je suis tout joie, tout enthousiasme, je suis l’épée, je suis la flame!... (Henri Heine)274

É visível no trecho selecionado por C. A. o arrebatado desejo de luta por mudanças e de interferência contra uma postura que ameaça o direito de liberdade do ser humano, como também se verifica a força que as palavras imprimem sobre isso. O excerto certamente reproduz a proposta ideológica e estética da obra que concedeu ao baiano a antonomásia de poeta dos escravos, pois foi nessa acepção antitética de “incendiar palácios e iluminar cabanas” que a poesia social castroalvina foi tecendo o ideal de luta pela liberdade dos negros escravizados. Com tal postura, observaremos o grau criticamente reflexivo que os poemas do poeta baiano alcançam ao analisá-los em caráter evolutivo de tempo e, sobretudo, de ideias. Para chegarmos a essa perspectiva, foram selecionados sete poemas da mencionada obra: A canção do africano (1863), Mater dolorosa (1865), A cruz da estrada (1865), A criança (1865), Bandido negro (1865), Tragédia no lar (1865) e Navio Negreiro (1868). Principiemos, então, pelo primeiro, A canção do africano (1863) (Ver anexo 1), para que tal asserção seja ratificada com a ascensão de nossos estudos analíticos acerca da poética em questão. Este poema, por caracterizar-se como produção literária da terceira fase do Romantismo Brasileiro, apresentará estruturas formal-conteudísticas pertinentes a esse período. Quanto à forma, podemos identificar uma composição em que as duas primeiras e as duas últimas estrofes são compostas pela mesma quantidade de versos, levando-as assim à classificação de sextetos ou sextilhas, e as quatro estrofes centrais são formadas por quartetos ou quadras, e estas correspondem significativamente ao momento em que o eu poético testemunha o sofrimento do escravo. Os versos heptassílabos ou redondilhas maiores caracterizarão a correlação entre o

274 Cf. Castro Alves, Os Escravos (1883), In: ______. Castro Alves: Obra Completa (1960), Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1966, p.191. Tradução de Lilia Silvestre Chaves: “Flores, flores! Quero com elas cingir-me para o combate. A lira também, dai-me a lira para que eu entoe um canto de guerra... Palavras como estrelas flamejantes, que, ao cair incendeiem os palácios e iluminem as cabanas... Palavras como dardos brilhantes que penetrem até o sétimo céu, e firam a impostura que se insinuou no santuário dos santuários... Sou todo júbilo, sou todo entusiasmo, sou a espada, sou a flama!...” In: Castro Alves, Espumas Flutuantes e outros poemas, São Paulo: Ática, 2004, p. 179. 96 popular e o erudito, como um projeto romântico, mais tarde retomado pelo modernismo, tendo a voz do intelectual pertencente à elite como poeta. Isso põe em evidência o quanto as tradições populares da cultura brasileira, enfatizadas pelos românticos, eram bem abordadas em poemas que apresentassem a métrica já citada, assim como, observa-se uma melhor sintonia entre o sentimento proferido pelo eu poético dentro da estrutura formal do texto. Porém, não só essa categoria de estilo colaborava para a inserção da cultura popular nas artes verbais, mas também o ritmo da poesia e vocabulários específicos da linguagem popular. Se a proposta textual era compor uma canção ou uma cantiga, já que esta, segundo a tradição estético-medieval europeia, era a fusão da música com a poesia, exatificar-se- ia criteriosamente que o poema teria uma estrutura ritmada, já que a finalidade era a melodia e a ênfase nas percepções sensoriais do som, não poderíamos deixar de mencionar uma categoria essencial ao entendimento do texto. A busca por essa tendência não se concretiza apenas no âmbito das artes poéticas, mas também, no campo das composições musicais, o que levou estas a fundirem-se àquelas, propondo, no Romantismo Brasileiro, as canções de métrica popular. Observamos essa proposta através da contribuição analítica de Alfredo Bosi sobre o seguinte posicionamento:

A renovação nas camadas sonoras atingiu o cerne do verso, o ritmo, distendendo-o em função da melodia que, veículo mais adequado às efusões do sentimento, contou com a preferência dos poetas e, naturalmente, dos compositores: Chopin, Liszt, Berlioz, Schubert, Schumann, mestres de uma nova e difusa sensibilidade musical. Renascem, por outro lado, formas medievais de estrofação e dá-se o máximo relevo aos metros breves, de cadência popular, os redondilhos maiores e menores, que passam a competir com o nobre decassílabo.275

Confrontando essa proposta musical da poesia do Romantismo com a terminologia apresentada por Décio Pignatari, em seu livro O que é comunicação poética (2004), sobre o ritmo da poesia, observamos que A canção do africano (1863) é uma produção ritmada por apresentar- se não apenas como o gênero canção, mas como a fusão de elementos essenciais à estruturação poética, por exemplo, as imagens conotativas, dentre elas: as assonâncias, aliterações e metáforas, como veremos nas discussões sobre os poemas. Por isso, aproximamo-nos consideravelmente dessa postura analítica da poesia a partir do conceito estabelecido pelo autor do livro citado, que afirma que o “ritmo é um ícone que resulta da divisão e distribuição no tempo e no espaço – ou

275 Cf. Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, São Paulo: Cultrix, 1994, p. 97. 97 no tempo e no espaço – de elementos ou eventos verbovocovisuais (= verbais, vocais, visuais)”.276 O poema em questão está imensamente interligado a essa classificação. O termo “ícone”, que conceitua a categoria de ritmo, é apontado por Pignatari como elemento pertencente ao eixo das similaridades, quando ele afirma “ícones os signos por similaridade”,277 isto é, de imagens e metáforas, enfim, “é o eixo de seleção, [...], chamado paradigma ou eixo paradigmático”.278 No texto em análise, essa similaridade é encadeada com a sonoridade que as palavras possuem no poema, visto que as imagens agrupam-se entre si, gerando a musicalidade pretendida pelo poeta. Observa-se, na primeira estrofe, que os espaços mencionados, como “Lá na úmida senzala,”, “Sentado na estreita sala,”, “Junto ao braseiro, no chão,”279 encadeiam imagens de lugares que, consoante a terminologia poética de S. R. LEVIN,280 são equivalentes semânticos posicionais entre si, levando à construção de um cenário que vai ritmicamente reduzindo-se e que apresentam termos que se aproximam entre eles. Destacamos, nessa imagem, não apenas a gradação decrescente, entretanto o efeito redutor que se encadeia gerando um ritmo linguístico e a imagem negativa a que foi impelido o escravo. Isso nos leva a visualizar o quanto o espaço a que se destinava o negro era consideravelmente insignificante, devido à ínfima condição a que ele foi forçosamente inserido. Ao escandirmos o poema, verificamos que o ritmo classifica-se, segundo a taxionomia dos gregos como um anapesto, ou seja, com uma sílaba longa acompanhada de duas sílabas breves, isso seria o que Pignatari chamou de ritmo ternário descendente, embora também tenhamos visualizado o ternário ascendente em versos como “De um lado, uma negra escrava”,281 porém há uma predominância daquele em vez deste. E o fato de a métrica ser heptassílaba, leva-nos a afirmar que houve uma sequência apurada da pretendida e concretizada canção. Canção essa que se reproduz bem mais com o auxílio das rimas emparelhadas em AA e CC e as rimas opostas em BB, nas sextilhas. Corroboram essa musicalidade as rimas em pares dos quartetos correspondentes à canção da escrava. Toda a forma estabelece sintonia com os

276 Cf. Décio Pignatari, O que é comunicação poética?, São Paulo: Ateliê Editorial, 2004, p. 21. 277 Idem, p. 14. O grifo é do autor. 278 Idem, p. 13. 279 Cf. Castro Alves, Os Escravos (1883), In: ______. Castro Alves: Obra Completa (1960), Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1966, p. 201. 280 Cf. Samuel R. Levin, Estruturas Lingüísticas em Poesia, São Paulo: Cultrix, 1975, p. 33-8. 281 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 201 98 elementos textuais, poderíamos dizer que temos o desenvolver de um acoplamento poético,282 todavia este se tornaria mais consistente, ao visualizarmos a fusão de forma e significado compondo uma unidade poética no texto. Do ponto de vista fônico e semântico e segundo a classificação de Levin, diríamos que há um acoplamento nos equivalentes em oposição que se fundamenta através dos termos “cantar” e “não escutar”. Devemos observar que, na segunda estrofe, uma negra escrava, ao fitar seu filho, procura cantar à meia voz, esconder dele o lamento, a tristeza e o sofrimento causados pela condição de escravo, e essa mesma estrutura é recuperada já no final do poema, na antepenúltima estrofe, em que o eu lírico leva o leitor à reflexão e também o leva a sentir e perceber quão desumana é a situação do escravo brasileiro. A valorização desses sentidos é reforçada através da musicalidade que é assaz enfocada, no poema, pelo ritmo do mesmo explorando assim, as estruturas melopaicas do texto; já no que se refere ao campo das imagens e das metáforas, destacamos as categorias fanopaicas,283 que juntas construíram a beleza estética da produção poética. Ainda no tocante à edificação das fanopeias, identificamos que as metáforas e as símiles não apenas serviram para a estruturação do estilo semântico, como também se posicionaram como elementos classificadores da valorização das tradições populares de um povo. “Para marcar-lhe o gosto popular, não falta aos versos de “A canção do africano” sequer a palavra “papa-ceia” para designar a estrela Vesper”,284 isto é, estrela da tarde ou estrela d’alva. Será não apenas na construção da imagem que ratificaremos o gosto pelo paradigma popular, constrói-se também na linguagem simples, a qual servirá de fundamento para a abordagem da temática que vem a criticar fortemente o regime político e econômico do Brasil, ou seja, a escravidão, porque “é na sua simplicidade que reside a contundência da mensagem antiescravocrata”.285 Todas as categorias relacionadas ao ritmo e às imagens sonoras do poema contribuirão entre si para gerar a dramaticidade da angústia e do lamento da escrava presentes no contexto antiescravocrata da mensagem. O fato de este texto artístico apresentar-se também como uma canção servirá, através

282 Ver: S. R. Levin, Estruturas Lingüísticas em Poesia, São Paulo: Cultrix, 1975. Segundo o autor, acoplamento corresponde a palavras que se aproximam entre si pela similaridade ou pela oposição semântica entre seus termos. 283 As estruturas melopaicas são geradas pela presença de elementos que se aproximam pela sonoridade no poema, já os termos fanopaicos correspondem justamente ao campo das metáforas, das imagens que são construídas no poema. Todas elas são categorias estabelecidas por Ezra Pound. Ver Ezra Pound, ABC da Literatura, São Paulo: Cultrix, 2006. 284 Cf. Alberto da Costa e Silva, Castro Alves: perfis brasileiros, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 29. 285 Idem, ibidem. 99 da musicalidade, para despertar no leitor o sentimento que o poeta expõe na poesia. Shiller (2008) informa-nos que “uma canção, uma ode, podem imitando, pôr-nos diante dos olhos o atual estado anímico do poeta, enquanto determinado por circunstâncias específicas (estado quer de sua própria pessoa, quer de uma pessoa ideal)”.286 Daí entendermos que o estado d’alma deste artista da palavra envolve-se com o sofrimento do escravo, levando-nos a entender que da mesma forma que o poeta é livre, o escravo tem o direito de voltar a ser como um dia ele foi, por isso, o negro vir a externar, no poema, “Lá todos vivem felizes”.287 A canção do africano, como o primeiro poema de Castro Alves (2006) de cunho abolicionista, publicado em maio de 1863, n’A Primavera, um jornal de acadêmicos de Direito,288 demonstra que a idade não foi uma limitação para o despertar da consciência crítica, analítica e, sobretudo, humana do vate. Devido a isso, Costa e Silva veio a afirmar que “como poesia, “A canção do africano” [...] é importante como documento, pois nos mostra que, aos dezesseis anos, numa época em que a luta contra a escravidão ainda não chegara às ruas e não passava de preocupação de alguns poucos, Antônio já era abolicionista”.289 Aproximando-nos dessa visão crítica acerca da composição do poema, destacamos também a leitura de Eugênio Gomes o qual se refere ao poema A canção do africano como um “texto de incontestável valor histórico que contém o primeiro brado em versos do Autor, fora do âmbito colegial, contra a escravidão”.290 Logo, torna-se essencial evidenciar o poema como um forte registro da tentativa de incluí-lo no discurso sobre a identidade nacional que alçava seus primeiros passos diante da realidade humano-social marginalizada do negro-escravo. Em virtude desse fato, é que se reforça a ênfase no sofrimento, o lamento da canção do escravo proporcionado pelas referências à sua memória seletiva, no que se refere às saudades da terra natal; as antíteses dos equivalentes em oposição, como “cantar” e “não o escutar”, como “Esta terra é mais bonita”, “Mas à outra eu quero bem” geram no poema um acentuado efeito dramático. Ressalta-se, com tal adversidade, a indignação expressa pelo eu lírico diante de um destino que o angustia e que chega ao ponto de dilacerar a dignidade humana. Essa postura

286 Cf. , Acerca da arte trágica (1792), In: ______. Teoria da Tragédia, 2. ed., São Paulo: EPU, 2008, p. 105. 287 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 202. 288 Ver Alberto da Costa e Silva, Castro Alves: perfis brasileiros, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 29. 289 Idem, ibidem. 290 Cf. Eugênio Gomes, Notas, In: Castro Alves, Castro Alves: antologia poética, Rio de Janeiro: Biblioteca Manancial, 1971, p. 59. 100 vincularia o poema a uma abordagem de cunho moral. Foi justamente com essa finalidade de moralizar que a realidade aviltante vivenciada pelo negro adentrou as linhas da poética nacional. A inconformação expressa pelo canto da escrava, nos quartetos do poema, por não poder viver em sua terra-mãe, a partir do momento em que ela compara sua escravidão no Brasil com sua liberdade em sua pátria, incita uma sequência de reflexões sobre o discurso proferido, dentre elas, as noções de racismo, ideologia social, política e a de humanidade exploradas pelo sentimento de comiseração. Isso proporciona um lamento, uma revolta, uma inquietação cuja ênfase de sentimento tem seu teor abrandado, ou melhor, cerceado, castrado pela preocupação da escrava-mãe em ter que acordar o seu filho que repousa em sono com o canto de sofrimento que ela manifesta de forma acentuada e indignada. Essa percepção não é de estranhar não apenas pelo elo familiar existente no discurso da escrava-mãe, mas também pelo fato de tratar-se de uma produção textual vinculada à corrente literária do Romantismo; visto que nesta, mesmo que se abordem temáticas conflituosas e por demais críticas, no tocante ao contexto político, não deixaria de relacionar o conteúdo proposto com as características constitutivas do Romantismo: o sentimentalismo e o subjetivismo. Diante dessa mesma acepção, Jamil Haddad comenta:

Na vida do escravo, um dos detalhes que mais exaltavam a sensibilidade e a demagogia de poetas e romancistas era o das relações de família. Principalmente o drama da separação imposta entre mães e filhos, marido e mulher, desagregando irreparavelmente uma possível união familiar. [...] Como a situação tocara a sentimentalizada autora de “A Cabana do Pai Tomás” e o compadecido Castro Alves. Um de seus primeiros poemas sobre o assunto do escravo (“A Canção do Africano”) ilustra a condição dolorosa da mãe no pressentimento da separação do filho.291

A afirmação de Haddad desenvolve uma problemática que, na época em que foi escrito A canção do africano (1863), não deveria mais existir: a separação entre mãe e filho escravos, presente nos versos “E a cativa desgraçada”, “Deita seu filho, calada,”, “E põe-se triste a beijá- lo,”, “Talvez temendo que o dono”, “Não viesse em meio do sono”, “De seus braços arrancá- lo”.292 Consoante Haddad, “o legislador também se preocupara com o dramático destas contingências”,293 pois José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), quando redigiu a Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a

291 Cf. Jamil Almansur Haddad, Revisão de Castro Alves, São Paulo: Saraiva, 1953, v. 1, p. 154. 292 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 202. 293 Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., v. 1, p. 155. 101 escravatura, em agosto de 1825, expôs no artigo 9o que “nenhum senhor poderá vender escravo casado com escrava sem vender ao mesmo tempo e ao mesmo comprador a mulher e os filhos menores de 12 anos”.294 Fortalecendo a proposta do patriarca da independência, “em 1862 um projeto malogrado do Senador Silveira da Mota pretendia obviar esse mal”,295 mas desde meados da década de vinte que esses deveres só existiam no papel, porque, na prática, verificavam-se ações totalmente opostas ao que se era exigido pelo poder legislativo. Então, diante da atitude de não se respeitar a relação existente entre mãe e filho escravos é que o eu poético demonstra o quanto o escravo se apresenta como um ser devotado aos seus semelhantes de raça, uma vez que a escrava beija e abraça seu filho consternadamente. Isso fornecerá mais espaço à discussão da problemática do cativeiro, evidenciando assim a defesa de um sujeito que busca a liberdade. Embora o negro, o escravo exilado, “reconhecendo” que o ambiente de beleza da terra de exílio seja superior ao da terra natal, prefere o retorno a casa, por lá viver como homem livre. Averiguamos esse fato nos versos “Minha terra é lá bem longe”, “Esta terra é mais bonita,”, “Mas à outra eu quero bem!”, “Lá todos vivem felizes,”, “A gente lá não se vende”.296 Mediante tais constatações, é que se observa o quanto o referido poema se aproxima de uma poesia de cunho social, já que o mesmo explora a sensibilidade dos homens que compõem a nação, afetando-os quanto à maneira de falar e essencialmente quanto à forma de pensar. Corroborando a presente afirmação, citamos o conceito de poesia social através do posicionamento de que:

[...], ela produz uma diferença na fala, na sensibilidade, nas vidas de todos os integrantes de uma sociedade, de todos os membros de uma comunidade, de todo o povo, independentemente de que leiam e apreciem poesia ou não, ou até mesmo, na verdade, de que saibam ou não os nomes de seus maiores poetas. A influência da poesia, na mais distante periferia, é naturalmente muito difusa, muito indireta e muito difícil de ser comprovada. [...] Assim, se rastrearmos a influência da poesia através dos leitores mais afetados por ela às pessoas que jamais leram nada, a encontraremos presente em toda parte. Pelo menos a encontraremos se a cultura nacional estiver viva e sadia, pois numa sociedade saudável há uma influência recíproca e uma interação contínuas de uma parte sobre as outras. E isso é o que eu entendo como a função social da poesia em seu mais amplo sentido: é isso o que, proporcionalmente à sua existência e vigor, afeta a fala e a sensibilidade de toda a nação.297

294 Cf. José Bonifácio de Andrada e Silva, (1825), apud Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., v. 1, p. 155. 295 Cf. Jamil Almansur Haddad, Op. Cit., v. 1, p. 155. 296 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 201. 297 Cf. T. S. Eliot, De poesia e Poetas, São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 34. 102

A afirmação de Eliot realmente contextualiza a intenção social identificada n’A canção do africano e ainda abre espaço a uma categoria específica dentre os estilos de poesia que se definem através do viés social; será justamente o poema dramático, pelo fato de que este “tem em si a função de provocar uma impressão imediata e coletiva sobre um amplo número de pessoas reunidas para assistir a um episódio imaginário encenado num palco”.298 Um poema com uma mensagem de valor tão conspícuo, como é o do texto em análise, não foi escrito para ser declamado em voz baixa para um indivíduo isolado, muito menos para ser enunciado a um pequeno e restrito grupo de pessoas; ele foi composto para ser representado, dramatizado e, sobretudo, vivenciado na totalidade de acepções que a poesia oferece. Verificamos que, ao iniciar a leitura, o eu lírico situa o leitor no cenário em que ocorrerá a história, no caso do poema, a senzala. Logo após, temos o desenrolar das ações da personagem: a escrava que se lastima por ter sido retirada de sua terra-mãe, e a mesma sente uma profunda tristeza por não poder concretizar o desejo de um dia retornar à terra de origem. Tristeza essa que se amplia numa proporção inquietante, porém toda a isotopia de angústia, de dor e de violência sentida contra a vida humana torna-se interrompida, limitada, ou melhor, abafada pelo medo, pelo receio de que o bem maior da escrava, seu filho, seja contaminado por esse clamor. Então, constatamos com muita nitidez uma grande antítese emocional: a da tentativa de expor os sentimentos contra a de suprimi-los, por razões inquestionáveis. Essa problemática gera um teor dramático na mensagem do poema, e essa dramaticidade toma fortes proporções no momento em que a dura realidade da condição de escravo leva a mãe da criança a parar de cantar. Observamos que essa isotopia de dor, manifestada através do canto da mulher, está relacionada e acompanhada de uma isotopia cromática proposta no poema, pois o fogo do braseiro, a luz que clareia a senzala, leva a negra a momentos de reflexão, ao saudosismo, a externar seus sentimentos; sendo a mesma luz que, ao se apagar, reporta a escrava à sua situação de propriedade, de ser coisificado, de objeto. Verificamos ainda que a antítese entre “fogo do braseiro” (luz) e o “apagar do mesmo” (escuridão) se posiciona como um acoplamento em oposição, reforçando assim o caráter trágico da mensagem: a luz leva à esperança, ao desejo idealizado e a falta da mesma ocasiona a perda do sonho já mencionado. Nesse momento, seria o leitor que deveria tomar partido da situação, uma vez que o cenário de tristeza está destinado a sensibilizar, afetar a fala, as emoções de todo aquele que

298 Cf. T. S. Eliot, De poesia e Poetas, São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 27. 103 testemunhar a agressão a que são submetidos os negros, erguendo-se em favor destes, através da adesão, com a “política” da causa abolicionista. Proposta a qual Castro Alves incorporou-se com maestria e muita dignidade, através da escritura de seus poemas. Adentraremos os demais textos com a finalidade de apresentar o quanto o poeta dos escravos evidenciou sua preocupação em forma de protesto e de luta pela causa do outro: o escravo. As estrofes do poema Mater dolorosa (1865) (Ver anexo 2) mostram o quanto o nível argumentativo de Castro Alves evoluiu em complexidade e profundidade. No primeiro poema analisado de 1863, observamos uma sutil temática de separação entre mãe e filho; nesta, a problemática ganha proporções muito maiores, podemos até afirmar que adquire um caráter de dramaticidade tão elevado que serve deveras para apresentar quão monstruosa foi a escravidão no Brasil. No texto, a mãe-escrava mata o filho para poupar-lhe dos horrores do cativeiro. Por isso, vemos como tão bem contextualizado está o excerto de Nathaniel Lee posto como epígrafe no poema. A mãe lastima-se por sua ação, entretanto a mesma vê quão necessária ela é. Na primeira estrofe, já existe o indicativo de que o inocente encontra-se morto. A repetição sequenciada do vocábulo “dorme”, que se posiciona como metáfora de “morrer”, é reforçada pelo eufemismo “sono eterno”. Contudo, o texto esconde uma dura e trágica realidade, a morte não soa como algo destrutivo e negativo, pois o eu poético metaforiza o termo “céu” como um berço, que acalenta e fornece carinho, refere-se às estrelas associando-as a uma mãe disposta a guarnecer toda a ternura ao filho carente. Com a morte, a criança despertaria da gentil crisálida metamorfoseando-se em borboleta e longe da mãe carnal ela encontraria a alegria que próximo dela não vivenciaria, por isso a solicitação de que a criança se afaste. E tal pedido é endossado pelo termo “longe”, pois, dessa forma, com a morte, a criança seria feliz, conseguiria florir. O emprego dos advérbios de lugar “longe” e “além”, os quais se portam como equivalentes semânticos posicionais entre si, intensifica o dramático sentimento da genitora de distanciar-se do seu filho. O ato, no texto, é metaforicamente justificado, porque o eu poético encaminha o menino à “única solução viável”, do que ser mais uma vítima do “feral tufão”, ou seja, da cruel e sangrenta escravidão. Verifica-se que o termo “tufão” é detentor de uma carga semântica assaz forte, pois se trata de um fenômeno que avassala vidas, principalmente as indefesas. No que se refere ao garoto, ele seria mais que um ser inerme, seria uma vítima a mais do sistema escravocrata. À medida que se adentra na leitura, observamos outrossim que as imagens conflituosas ganham dimensões, gera-se no contexto a compaixão pela dor da mãe em cometer o 104 crime, como também o temor pela escravidão que impele uma mãe-cativa a abruptamente assassinar seu filho. Essa estrutura concretizaria certamente a finalidade da ação dramática. Ela “decorre essencialmente num meio repleto de conflitos e de oposições, porque está sujeita às circunstâncias, paixões e caracteres que se lhe opõem”.299 Essas acepções produzirão o efeito trágico da cena. Toda essa interação comunga do que afirmara Aristóteles de que a “tragédia é aquela cuja composição deve ser, não simples, mas complexa, aquela cujos fatos, por ela imitados, são capazes de excitar o temor e a compaixão”.300 Não podemos deixar de ressaltar o grau de complexidade da mensagem do poema. O eu poético explorou bastante a compaixão quando a escrava pede ao filho que não a maldigas, que Deus lhe perdoe pelo crime cometido, pois a necessidade do mesmo urge diante da fera que está metaforizada através da escravidão. Schiller não deixou também de evidenciar a importância de se ressaltar o efeito compassivo no ambiente trágico. Podemos dizer que ele realmente definiu bem mais a proposta ao afirmar que essa categoria consistiria na finalidade do referido gênero:

Se o fim da tragédia é despertar o afeto da compaixão, sendo a sua forma, porém, o meio pelo qual atinge esse fim, a imitação de uma ação comovedora terá de ser o concerto fundamental de todas as condições sob as quais se desperte mais vivamente o afeto compassivo. Por isso, a forma da tragédia é a mais apropriada para despertar o afeto compassivo.301

A citação do teórico alemão deveras contextualiza com o que ocorre nas estrofes em análise. Instiga-se a compaixão ao se observar que a liberdade da criança e a felicidade da mãe apenas serão alcançadas com a morte daquela. Sua genitora refere-se-lhe até como um pobre inocente que mesmo sendo tão indefeso já está maldito, mesmo que, para ela, ele seja metáfora de aurora, para o mundo, ele não passaria de “noite”, ou seja, aquele que nunca enxergaria luz no espaço da escravidão. A dramaticidade da mensagem aprofunda-se com a recorrência das reticências uma vez que elas evidenciam o sentimento de dor da mãe após as súplicas de perdão dela ao filho e a Deus; após a vontade de fazê-lo dormir e após a ânsia de liberdade almejada por ela a ele. O poema é concluído retomando a primeira estrofe, apresentando assim uma ideia cíclica do que deve acontecer. Do início ao fim do texto, a criança deve morrer, para o seu próprio bem,

299 Cf. Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Estética: Poesia, Lisboa: Guimarães & Cª. Editores, 1980, p. 279. 300 Cf. Aristóteles, Arte Retórica e Arte Poética, 16. ed., Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p. 258. 301 Cf. Friedrich Schiller, Acerca da Arte Trágica (1792), In: ______. Teoria da Tragédia, 2. ed., São Paulo: EPU, 2008, p. 110. 105 justamente para que não lhe seja atribuída a identidade de escravo. Existe uma forte recusa a aceitar essa identidade individual, podemos então afirmar que essa renúncia seria uma oposição a alguém sair da condição animalizante fornecida pelo sistema político da escravidão para inserir- se numa identidade propriamente humana, que apenas seria alcançada com a morte; e esta no texto é sinônimo vivo de liberdade e, através dela, a criança obteria sua identidade: a de uma pessoa livre e não a de escravo. Observaremos o texto A cruz da estrada (1865) (Ver anexo 3) em que a temática de liberdade está também bastante associada à da morte. No recente poema mencionado, vemos que as epígrafes de Lutero e de sintetizam a mensagem central do poema de C. A. Ambas referem-se àquele, o negro, que lutou na vida e adquiriu a liberdade após a morte. Na primeira estrofe, o eu poético quando se refere a um passante que atravessa o sertão, solicita-lhe que não interfira no sono daquele que lá repousa, pois seria aquele o único ambiente de sossego que havia encontrado. A cruz localizada em pleno ermo seria a imagem de que ali um escravo encontrou a paz. A visão desse objeto contextualiza o que Alfredo Bosi comentara sobre o assunto: “A imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós”.302 Então, revertendo tal conceito para a mensagem do poema, obtemos a ideia de que a cruz é símbolo de que a vida do negro é retratada com sofrimento e a sua imagem insere-nos ao contexto da realidade da escravidão, deixando claro que a existência do mesmo, nesse regime político e no âmbito da sociedade, não encontraria outra simbologia que não fosse a condição de escravo, de ser humilhado. Daí destacarmos a antítese existente entre a presença do caminheiro e a da natureza. A ação humana reportaria à do opressor, quanto à da natureza representaria a força de Deus apaziguando o sofrimento do escravo. No poema, o eu poético indica metaforicamente o que a vida representou ao negro: “o velar de insônia atroz”. Daí se externar a desnecessariedade da presença humana, presente na frase “não precisa de ti”, já que dificilmente se pode saber a verdadeira intenção do homem. Então, todos os animais e plantas referenciados no texto indicarão a vontade de Deus sendo complacente à dor do falecido: “Deixa-o dormir no leito de verdura,”, “Que o Senhor dentre as selvas lhe compôs.”, “O gaturamo 303 geme, por ele, à tarde,

302 Cf. Alfredo Bosi, O ser e o tempo da Poesia, 7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, p. 19. 303 Gaturamo: Nome comum a diversas aves da família dos Tanagrídeos. Associa-se também à voz das aves, o canto e o gorjeio que fazem para o escravo. 106 no sertão.”, “E a juriti, do taquaral no ramo,”, “Povoa, soluçando, a solidão.”.304 Dessa estrutura, chegaríamos mais uma vez ao universalismo proposto e já discutido, no presente trabalho, por Lamartine e de quem Castro Alves abeberou-se substancialmente. O universo da natureza não serve apenas de cenário para o enredo, ele posiciona-se como agente significativo tanto no fazer poético do texto como na construção da coerência do sentido do mesmo. Isso geraria a categoria panteística, a qual já foi bem elucidada no segundo capítulo, que dará o enlace necessário ao desfecho da história. Todo esse panteísmo indicaria que a sociedade nada fez pelo negro, todavia Deus não se esqueceu de receber e acolher mais um inocente e vítima do sistema escravocrata. É o que se destaca e se reforça nos versos: “Quando, à noite, o silêncio habita as matas,”, “A sepultura fala a sós com Deus.”, “Prende-se a voz na boca das cascatas,”, “E as asas de ouro aos astros lá nos céus,”.305 A natureza personifica a vontade de Deus, com uma forte animização, ao abraçar aquele que sofre e dar-lhe o descanso merecido e que, por anos, foi-lhe usurpado. Em síntese, o poema e a análise, por nós proposta, corroboram o que Domício Proença Filho afirmara sobre o texto em questão. O “poema, A cruz da estrada, situa a redenção pela morte, onde o escravo encontraria a sua plena liberdade: não há lugar para ele nessa sociedade, mas em compensação, a natureza cuida de seu túmulo e dele será o seu reino dos céus”.306 E realmente se observa que esse reino dos céus veio com a liberdade. Daí o eu poético mais uma vez endossar a não interferência do caminheiro no sono do escravo, como claramente se afirma no texto, a liberdade, através de uma imagem animizada, desposou-o. O texto, mesmo fornecendo um apaziguamento à condição do escravo, que seria a morte, apresenta também uma relação problemática do escravo com sua realidade social. Seria a noção de que por nunca chegar a ser um homem livre, caber-lhe-ia o idílico ambiente de uma pseudoliberdade, já que é complexo falar de uma plenitude desse direito em quem nunca o vivenciou em vida. Portanto, a sugestão de ruptura com a escravidão permanece ainda num plano idealizado. Isso não é de estranhar nas primeiras produções lírico-sociais de Castro Alves. Esses textos quando compostos, em 1865, retratariam os primeiros pensamentos do poeta acerca da situação do regime político que vigorava na época e também da condição dos cativos que

304 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 217. 305 Idem, ibidem. 306 Cf. Domício Proença Filho, A trajetória do negro na literatura brasileira, Estudos Avançados, São Paulo, Jan/Abril, 2004. Disponível: Acesso em: 01/02/2010 107 presenciava. Não há como esperar uma postura de revolta nestes primeiros textos, visto que a imagem escravocrata estava pouco a pouco sendo tecida e discutida. Porém, a partir do dia 30 de junho de 1865, iniciamos a perceber uma nova postura na poesia social castroalvina até então não observada. Ao negro será emprestada a voz poética para poder expor o que deveras almeja que aconteça com a escravidão. Isso é o que se verificará em A criança (1865) (Ver anexo 4). O título desse poema é romanticamente sugestivo, pois, para época, denota sensibilidade, que é um universo perceptível à identidade de uma criança. No aspecto formal, podemos afirmar que o texto harmoniza-se com o título, pois ambos aproximam-se na pequenez física. Por outro lado, o tamanho deste poema, que é composto por quatro sextilhas, não diminui a grandiosidade e principalmente a criticidade da mensagem poética proferida. E tal dimensão inicia a ser percebida a partir da interdiscursividade desse poema de C. A. com a epígrafe de Victor Hugo pelo fato de ela demonstrar não apenas um liame temático e estético entre si, mas uma aguda perspicácia em tecer a proposta do texto com a mesma riqueza de imagens e sentidos. A proposta de C. A. é mais forte ainda pelo fato de a criança do romântico francês ser grega de olhos azuis e a de C. A. ser negra. Para Heloísa Toller Gomes,

O poema pode ser dividido em três movimentos distintos embora bem articulados: o primeiro (primeira estrofe) corresponde à inquietação do poeta diante da tristeza da criança, que associa à aparente calma da natureza. Aqui já se anuncia a violência que ressurgirá, implacável, na última seção do poema: “O areal da estrada/ Luzente a cintilar/ Parece a folha ardente de uma espada”.307

Comungamos da opinião da autora, uma vez que iniciar a primeira estrofe por uma indagação estrutura essa inquietação do eu poético com os desejos e sentimentos de uma criança. A pergunta feita pela voz enunciadora com o verbo “ter” semanticamente deduz que o ser questionado não se encontra emocionalmente bem e isso, diante do enunciador, não condiz com o que se espera do bem-estar de uma criança. Por isso, o eu poético sugere algumas sutis indicações do que poderia ter ocorrido, conforme foi apontado pela autora através dos versos “O areal da estrada”, “Luzente a cintilar”, “Parece a folha ardente de uma espada”.308 Mesmo diante dessa prolepse, isto é, dessa antecipação de fatos, a voz enunciadora apresenta uma visão de oposição e

307 Cf. Heloisa Toller Gomes, O negro e romantismo brasileiro, São Paulo: Atual, 1988, p. 72. 308 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 215. 108 de prelúdio diante do sentimento de tristeza, pois a mesma pronuncia que “Morno é o vento”, “À sombra do palmar”, “O lavrador se inclina sonolento”.309 Isso representa que não há ambiente para tristezas, porque a natureza levemente acalenta quem perturbado está. Constrói-se assim uma antítese entre a tristeza da criança e a tranquila e viva alegria da natureza. Com esse recurso estilístico, “Castro Alves deleitava-se em estabelecer paralelismo de idéias ou simplesmente de palavras, processo temerário pelo que pode haver de automático ou mecânico em suas enunciações”.310 Mesmo se apresentando com certa ousadia de estilo, não se pode deixar de reconhecer que com tal postura o poeta não apenas enriquece a força inspiradora de seu estro, como também desenvolve a complexidade de sua proposta temática. Mantendo a sintonia com essa oposição de imagens o eu poético endossa, a partir da segunda estrofe, quão triste é uma alvorada em sombras, uma ave sem cantar, o veado estendido nas alfombras. Essas expressões geram uma isotopia de consternação e desânimo isto é, os termos em destaque aproximam-se por serem equivalentes semânticos posicionais entre si. Eles estão associados fanopaicamente à criança que, mesmo sendo símbolo de vivacidade, não se encontrava representando o que realmente é. O universo imagético do poema levou Heloísa Toller Gomes a afirmar que “em sua parte central (segunda e terceira estrofes), o poema joga com diversas noções recorrentes do código romântico”,311 dentre elas, a autora destaca os seguintes versos “Mocidade, és a aurora da existência”, “Criança, és a ave da inocência”,312 que são metáforas bastante comuns a essa corrente literária. A comparação da criança com a aurora e a ave sugere a condição de liberdade de um indivíduo, pois o pássaro é livre para voar e não há nada que aprisione os primeiros raios da aurora. No entanto, tais imagens geram uma ironia pelo fato de essa realidade não ser vivenciada por uma criança negra dentro do sistema escravocrata. Constatamos também que essa última construção metafórica servirá como justificativa para os questionamentos e as propostas que se seguem na terceira estrofe, uma vez que o eu poético questiona à criança se os motivos de suas lágrimas são pelo fato de ela não ter colhido um ramo de baunilha ou uma flor gentil da granadilha. Notamos que todo o instante a criança é tratada com as marcas individuais de sua puerilidade, que não é de estranhar, pois corresponderia bem à sua identidade infantil. O eu poético chega inclusive a propor-lhe gradativamente alguns

309 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 215. 310 Cf. Eugênio Gomes, Castro Alves e o Romantismo Brasileiro (1966), In: Castro Alves. Op. Cit., p. 54. 311 Cf. Heloisa Toller Gomes, O negro e romantismo brasileiro, São Paulo: Atual, 1988, p. 72. 312 Idem, ibidem. 109 mimos em função de ele receber um riso, que ele metaforizou de “estrela no horizonte da alma”. Essa sugestão ainda é fortalecida pela anáfora do verbo “dou-te”. Porém, a quarta e última estrofe, opõe-se a toda essa carga de subjetividade e sentimentalismo que o poema abrangeu. A criança chora por sua mãe ter sido vítima dos açoites dados pelos vis algozes, por isso as lágrimas desconsoladas. As reticências, que indicam a retórica da sugestão, nessa estrofe, exploram ainda mais essa carga de sentimento carregado de dor abrindo espaço ao último questionamento feito pelo eu poético. Mas que vem a surpreender pelo tom sisudo, diretivo e bastante adulto de uma criança que “responde, reivindicando (não pedindo) vingança”.313 Surge assim uma subjetividade inesperada a qual emana do sentido que o poeta fez emergir, mas assaz condizente com o sistema escravocrata. Pois, o que se pode esperar de uma criança vítima dos horrores da escravidão? Com toda a certeza, a puerilidade registrada em sua voz seria incoerente com o que ela vivenciara e principalmente sofrera. Castro Alves, a partir de então suscita, no poema, um sentimento de revolta que não apenas seria oriundo do sofredor, mas também de quem testemunhou atrocidades tão injustificáveis no âmbito do cativeiro. Pode-se fortalecer tal sentimento através da oclusividade presente na aliteração da consoante “t” no verso “E vagas tonto a tatear à noite.”,314 pois a repetição dessa paronomásia aliterativa315 fornece um efeito sonoro que sugere as batidas do coração, esclarecendo os sentimentos de angústia que afloram com as perguntas e as enunciações. Daí também, constatarmos uma tão forte intertextualidade com o texto de Victor Hugo. Em ambos, observamos a sutileza da introdução do texto, com o seleto vocabulário aprazível do ambiente da natureza, associando-o à criança, e ao mesmo tempo o tom impactante do que esta vem a solicitar com forte desejo de revolta. Compreendemos que seja também através da fusão dessas duas categorias que Antonio Candido veio a afirmar que “Castro Alves se tornou o poeta por excelência do escravo ao lhe dar, não só um brado de revolta, mas uma atmosfera de dignidade lírica, em que os seus sentimentos podiam encontrar amparo”.316 Heloisa Toller Gomes, após ter também citado Antonio Candido em seus estudos, complementa-lhe as palavras: “Não é só o escravo surrado a suplicar clemência que emerge de seus versos, mas também – e

313 Cf. Heloisa Toller Gomes, Op. Cit., p. 72. 314 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 216. 315 Segundo Décio Pignatari, a aliteração é um dos tipos de paronomásia. Ver Décio Pignatari, Op. Cit., p. 19. 316 Cf. Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos (1750-1880), 11. ed., Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007, p. 592. 110 principalmente – o ser humano ultrajado prestes a se voltar contra os algozes”.317 Para a recém- referenciada estudiosa, “este também é o tema do vigoroso poema “Bandido negro” o qual, por sua mescla de elementos dramáticos, narrativos, históricos e fantásticos, assume a feição de uma balada”.318 Na primeira estrofe do poema Bandido negro (1865) (Ver anexo 5), o eu poético apresenta aquele que será personagem central do texto: o bandido negro cujo termo já aponta para um ser fora da lei; mas este é mencionado como um homem destemido, potente que imprime medo a todos os seres da natureza pela sua presença, ou seja, ele surge no poema como um herói épico. Dele virá o grito de mais impacto e coragem que é enunciado no texto: o de vingança. Esse brado materializa-se muito mais no refrão do poema, que é um quarteto pleno de recursos sonoros, entre eles as anáforas e as paronomásias aliterativas, isto é, a melopeia nesses versos e no poema como um todo é muito perceptível. “O refrão ponteia a musicalidade do poema e adquire crescente intensidade à medida que a ação se desenvolve”.319 Concordamos com a opinião de Heloísa Toller Gomes pelo fato de essa estrofe ser formada por eneassílabos e por isso as sílabas fortes incidem nas terceira, sexta e nona sílabas, gerando assim um ritmo ternário descendente bastante sonante. Além disso, a oclusividade do fonema surdo /k/ presente nas palavras “cai” e “cresce” fornece um efeito de explosão, sugerindo e fortalecendo através desse recurso a destruição do sistema da escravidão. Há uma aproximação entre a mensagem proferida e esse recurso aliterativo, pois ambos transmitem força. A partir do refrão, constatamos a coragem do negro e principalmente a oposição exposta do que se viu no passado e do que se espera do futuro. “É o refrão, aliás, que sintetiza, assinala e reitera a mensagem bélica do poema: mensagem de saudação à revolta não em favor do negro, mas de autoria deste”.320 E isso realmente é onde está a primeira inovação da poesia social castroalvina – o fato de emprestar-se a voz poética ao negro com o intuito de insurgir-se contra o escravocrata. A partir dessa estrofe, observa-se um negro não mais submisso, subserviente ou propriamente escravo; verifica-se alguém que emerge de um anonimato, de um processo de opressão para rebelar-se contra o opressor. Erige-se com tal postura uma nova identidade negra, a

317 Cf. Heloisa Toller Gomes, Op. Cit., p. 72. 318 Idem, ibidem. 319 Idem, p. 75. 320 Idem, ididem. Os grifos são do autor. 111 de justiceiro, com uma reação imediata e violenta e de não aceitação do regime do cativeiro. Ou seja, o negro critica o sistema da escravidão com a finalidade de modificá-lo e exige um tempo presente de mais humanidade. Daí a antítese no acoplamento dos equivalentes em oposição dos verbos “cair” e “crescer”. Esse jogo de contrários intensifica-se pelo fato de o verbo “cair” aparecer uma vez nos dois primeiros versos do refrão e o “crescer” duas vezes nos dois últimos, isto é, o início de queda alimenta o desejo de vingança em maiores proporções. Percebemos isso através de expressões como “seara vermelha” e “vingança feroz”. A imagem da seara tomada pelo sangue justifica a ferocidade da vingança. Isso contextualiza bem quando Alfredo Bosi diz que “a imagem amada, e a temida, tende a perpetuar-se: vira ídolo ou tabu. E a sua forma nos ronda como [...] obsessão”.321 No caso deste poema, a imagem da seara banhada em sangue é uma vivaz obsessão, pois o negro, no texto, por um longo período tombou na condição de escravo, mas agora procura vencer a problemática, vingando-se da mesma. A bravura que se registra no texto não ficou apenas no espaço da idealização romântica, pois, como já noticiado pela própria história, muitas foram as insurreições motivadas por negros nas propriedades dos senhores-de-engenho. C. A. procurou narrar episódios similares, dentre tantos, trouxe a proposta do épico Bandido negro. Nesse caso, a epopeia “não conhece [...] a separação entre o sentimento e a ação, entre os fins interiores perseguidos de forma consequente e os acidentes e acontecimentos exteriores”.322 Hegel diz que “encontraremos na poesia épica não só a identidade substancial da vida e da actividade objetivas, mas também a liberdade nas manifestações desta vida e desta actividade, liberdade que as faz parecer uma emanação da vontade subjetiva dos indivíduos”.323 Com toda a certeza, o poema em questão caracteriza-se como retrato vivo dessa proposta hegeliana. As características destemidas presentes na personagem central do poema visam todo o instante à liberdade, como forte marca de sua subjetividade. Notamos, na terceira estrofe, que existe uma preparação das ações; o escravo concentra suas forças não apenas em uma ação, mas em várias, como: “Somos negros... o raio fermenta”, “Nesses peitos cobertos de horror.”, “Lança o grito da livre coorte,”, “Lança, ó vento, pampeiro de morte,”, “Este guante de ferro ao senhor.”.324 Além disso, a metonímia presente nos termos “peitos cobertos de horror” explora uma ideia metafórica de um coração exausto de

321 Cf. Alfredo Bosi, O Ser e o Tempo da Poesia, São Paulo: Companhia das letras, 2000, p. 20. 322 Cf. Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Op. Cit., p. 132. 323 Idem, p. 141. 324 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 218. 112 opressão e aniquilamento, prestes a emitir seu brado de revolta, ou seja, temos um comportamento épico que se alterna para um dramático, com o desejo de morte contra o senhor- de-engenho. A partir de então, para demonstrar tal capacidade, o eu poético apresenta os autores do feito de lançar o guante de ferro ao escravocrata, como bravos heróis e destemidos homens de fibra: “Eia! ó raça que nunca te assombras!”, “P’ra o guerreiro uma tenda de sombras”, “Arma a noite na vasta amplidão.”, “Sus! pulula dos quatro horizontes,”, “Sai da vasta cratera dos montes,”, “Donde salta o condor, o vulcão”.325 Percebamos que os termos selecionados sugere um sentido de coletividade que desperta uma isotopia de grandiosidade, de força impactante e sobretudo de um caráter nobre que remete à imagem do africano como guerreiro. E não cessa apenas assim, pois quando o proprietário de escravos questiona quem são aqueles que se erguem sequiosos e nus; eles replicam como os que romperam abruptamente as algemas para reivindicarem por justiça contra os crimes de assassinato e estupro cometidos aos seus semelhantes. O impacto e a vibração desse contexto proferido pelo negro são tão fortes que justificam bem eles fanopaicamente se autoafirmarem como “cães”. O verso “Oh! não tremas, senhor, são teus cães”326 explora fonemas plousivos como /t/ e /c/ que juntos acentuam a fúria que desponta das palavras enunciadas por estes cães. Os negros se autoapresentam metaforicamente como cães ferozes porque há séculos esperam sedentos por vingança. Vemos que essas ações manifestadas, no presente, indicam traços de um “novo” estilo de gênero: o dramático, e pelo fato de o texto ser de cunho moral articulará comportamentos que irão gerar a proposta dramática, e uma das categorias que mais se aproxima dessa proposta é o conflito. Hegel já asseverava que esse seria o ponto de partida da ação dramática, ou seja, constitui “a condição do seu desenvolvimento ulterior”.327 Logo após a exposição do conflito, “o segundo [é] o choque, a luta de interesses e todas as complicações que daí resultam”.328 É por isso que o eu poético constrói posturas que do início ao fim da narrativa explorarão toda a relação conflituosa existente entre o escravo e o senhor-de-engenho e principalmente o resultado desse conflito: a vingança. Assim podemos observar nos versos: “Meus leões africanos, alerta!”, “Vela a noite... a campina é deserta.”, “Quando a lua esconder

325 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 218. 326 Idem, p. 219. 327 Cf. Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Op. Cit., p. 292. 328 Idem, ibidem. 113 seu clarão”, “Seja o bramo da vida arrancado”, “No banquete da morte lançado”, “Junto ao corvo, seu lúgubre irmão.”.329 Verificamos com a metáfora presente nos termos “leões africanos” que se enrijece a ira dos negros escravizados que aguardam o momento de externar o brado em nome da liberdade. Toda a narratividade das ações destes homens é compartilhada com o cenário da natureza, uma vez que o eu poético personifica todos os seres, em favor da causa abolicionista, cuja luta antecede gerações de escravos: “Vão brandindo essas brancas espadas”, “Que se amolam nas campas de avós”.330 Então, o texto não poderia concluir de outra forma que não fosse pelo refrão em que articula o sangue do escravo à sua luta pela vida. Constrói-se dessa maneira uma nova identidade negra nas poesias castroalvinas: a de herói. Por isso que Heloísa Toller Gomes afirmou que dentre tantos estudos sobre o negro na literatura romântica, “o negro de Castro Alves destaca-se por sua dignidade humana e, sobretudo, por sua potencialidade de ação diante do próprio destino e do futuro”.331 Mas, muitas dessas ações dramáticas quando não se articulam a uma imagem de revolta, exploram a compaixão humana perante os crimes da escravidão. É o que averiguamos em Tragédia no lar (1865) (Ver anexo 6). O mencionado poema reafirma o conceito de que o drama incorpora os demais gêneros e também “a teoria expressa por Victor Hugo em seu prefácio do Cromwell, do drama romântico, do drama como “arte integral”.332 Este poema explora muitas das categorias do lirismo e da dramaturgia. Pelo título, captamos a finalidade da composição textual: uma tragédia, que se opõe à delicadeza contida na locução adverbial “no lar”, pelo fato de relacionar o horror da natureza trágica ao sutil e meigo espaço. O título desenvolve um acoplamento através de seus equivalentes em oposição. Os versos heptassilábicos da primeira estrofe apresentam um ritmo irregular no conjunto dos versos, ou seja, não há uma cadência que nos possibilite classificar o ritmo em binário ou ternário. Essa classificação seria possível caso ela fosse feita isolando verso a verso, mas na coletividade não. No entanto, verificamos que o ritmo está sempre em condição ascendente, que é bastante propício para uma tragédia. Logo nessa primeira estrofe, é descrito o cenário da senzala carregado de imagens reducionistas e cuja aparência estreita é reforçada pela luz do candeeiro e da fogueira, porém este mesmo ambiente antiteticamente não deixa de ser a casa do cativo, a única conhecida e vivenciada pela condição do escravo. Segundo Lilia Silvestre

329 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 219. 330 Idem, ibidem. 331 Cf. Heloisa Toller Gomes, Op. Cit., p. 75. 332 Cf. Lilia Silvestre Chaves, Comentário Crítico, In: Castro Alves, Espumas Flutuantes e outros poemas, São Paulo: Ática, 2004, p. 194. 114

Chaves, o ambiente é “assombrado pelo som ameaçador do vento que se esgueira pelas frestas do sapé”.333 Realmente, corroboramos a autora, por causa da presença da paronomásia aliterativa do fonema fricativo /s/, no verso “No sapé se esgueira o vento”.334 Trata-se de uma sonoridade sibilante, sugerindo assim a ação de o vento esgueirar-se. Será esta ameaça que se aproximará da personagem central da peça: uma mãe africana, a qual se encontra sentada próximo ao fogo de uma candeia embalando o seu filho. Hegel expusera que “o actor deve ser o instrumento que o autor maneja, uma esponja que absorva todas as cores e as restitua integralmente”,335 isto é, “o actor [...] entra, por assim dizer, na obra de arte com toda a sua personalidade e tem a missão de se identificar completamente com o caráter que representa”.336 É assim a negra do poema em questão: uma escrava que absorverá toda a brutalidade a ela impelida e por ela replicada. O filho dessa escrava, apresentado como inocente, diverte-se acalentado pela canção angustiada de sua mãe. Seu sorriso não é de estranhar pelo fato de ele não saber o que lhe espera e principalmente por ser um bebê, isto é, um ser ainda não conhecedor da maldade do mundo. Porém, Lilia Silvestre Chaves afirma que “por momentos, [ele] sente frio (ou será algum presságio?)”.337 Mesmo indagando, a autora sugere a resposta, ao exemplificar seu pensamento através dos versos “Mas treme e grita gelado”, “Se nas palhas do telhado”, “Ruge o vento do sertão”338 e diante deles não há como realmente não assinalarmos a presença de uma prolepse, ou seja, de uma antecipação do que ocorrerá. As seis estrofes da canção marcam bem o caráter das cantigas populares por serem quadras em redondilha maior. Novamente, não há como visualizar no conjunto dessas quadras se o ritmo é binário ou ternário, mas ele é marcado, como já mencionado, por pausas ascendentes. São estrofes que, além de explorarem as categorias fanopaicas e melopaicas, acentuam bem o sentimento de autocomiseração da mãe escrava, pois são enunciações que brotam como um soluço, isto é, sem facilidade, sem livre passagem. O vocábulo “lacerante” que qualifica o substantivo “soluço” fortalece a dificuldade da fala. As anáforas dessa canção que finalizam uma quadra e introduzem a seguinte dão um efeito cíclico ao sentimento da mãe, ou seja, a dor por ela sentida não tem fim. Essa canção desenvolve um acoplamento devido aos equivalentes em

333 Cf. Lilia Silvestre Chaves, Comentário Crítico, In: Castro Alves, Espumas Flutuantes e outros poemas, São Paulo: Ática, 2004, p. 194. 334 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 207. 335 Cf. Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Estética: Poesia, Lisboa: Guimarães & Cª. Editores, 1980, p. 315. 336 Idem, ibidem. 337 Cf. Lilia Silvestre Chaves, Comentário Crítico, In: Castro Alves, Op. Cit., p. 194. 338 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 207-8. 115 oposição “natureza” e a “condição do cativo”. Aquela possui tudo: beleza, alegria e, sobretudo, liberdade, esta o que tem é tristeza, solidão, prisão, dor, enfim nada. Mais uma vez, Shiller (2008) informa-nos que “uma canção, uma ode, podem imitando, pôr-nos diante dos olhos o atual estado anímico do poeta, enquanto determinado por circunstâncias específicas (estado quer de sua própria pessoa, quer de uma pessoa ideal)”.339 O que C. A. idealiza, neste momento, seria a possibilidade de a negra partilhar da mesma liberdade que a natureza. Abruptamente, a canção para e o verbo “cessou” indicando seu fim é seguido de uma reticência que fornece suspense ao momento. O ritmo do primeiro verso por ser ternário ascendente amplia esse suspense. Adentram-se, nesse momento, homens trazidos por uma linda cavalhada. Lilia Silvestre Chaves afirma que “o adjetivo “linda” sugere a aparente tranquilidade do acontecimento. Como se não houvesse nada a temer a respeito do que está por acontecer...”.340 Deveras, existe tal sugestão, mas o pequeno verso “De estranho viajor” que vem logo em seguida quebra a sequência dos decassílabos dessa estrofe introduzindo a imagem de pessoas não confiáveis. Os versos “Figuras pelo sol tisnadas, lúbricas,”, “Sorrisos sensuais, sinistro olhar”, “Os bigodes retorcidos,”,341 que apresentam os homens que estão chegando, exploram bastante a aliteração do fonema fricativo /s/ que volta a sugerir o tom de ameaça que foi destacado anteriormente. Esta ameaça é perceptível quando o eu poético dirige-se à escrava e indaga-lhe o porquê de ela tanto tremer, se a noite estava calma e tudo aparentava está bem. A inquietação da mãe escrava nesses versos amplia-se e tal comportamento opõe-se à natureza permanecer insensível ao que vai se suceder: “Um bulício remoto agita a palma”, “Do vasto coqueiral.”, “Tem pérolas o rio, a noite lumes,”, “A mata sombras, o sertão perfumes,”.342 Esse efeito entre a tranquilidade da natureza e agonia da escrava gera um acoplamento com equivalentes em oposição. Esse contraste é deveras inquietante. Em seguida, “lentamente, a voz [do poeta] penetra no pensamento da africana, descrevendo o pressentimento que a fez estremecer: para o negro, existir é crime, “ter um filho é roubo”, e o amor materno “uma loucura!”.343 As imagens ganham mais intensidade à proporção que o eu poético discute a problemática evidenciando as disparidades da escravidão. Ele menciona que para o escravo não há luz, por este

339 Cf. Friedrich Schiller, Acerca da arte trágica (1792), In: ______. Teoria da Tragédia, 2. ed., São Paulo: EPU, 2008, p. 105. 340 Cf. Lilia Silvestre Chaves, Comentário Crítico, In: Castro Alves, Op. Cit., p. 195. 341 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 209. 342 Idem, ibidem. 343 Cf. Lilia Silvestre Chaves, Comentário Crítico, In: Castro Alves, Op. Cit., p. 195. 116 ser marcado cromaticamente na cútis e na alma pela escuridão, por ser comparado fanopaicamente a uma pedra que é pisada por toda humanidade, por ser comparado a Cristo que verga a cruz do sofrimento. Essas imagens contextualizam as palavras de Hegel: “a acção dramática processa-se assim essencialmente por um conjunto de conflitos”.344 Esse conflito expande-se cada vez mais, uma vez que “o poeta questiona a humanidade, a religião, procura fundir poesia e realidade, falando para si, evocando a transfiguração e calvário de Cristo pela redenção dos homens “Era o relampejar da liberdade”, “Nas nuvens do chorar da humanidade,”.345 Após esse momento, há uma forte pausa no texto, o eu poético dirige-se agora ao leitor e convida-o a testemunhar a cena que está por vir, mas junto ao convite vem a advertência:

Leitor, se não tens desprezo De vir descer às senzalas, Trocar tapetes e salas Por um alcouce cruel, Vem comigo, mas... cuidado... Que o teu vestido bordado Não fique no chão manchado, No chão do imundo bordel.

Não venhas tu que achas triste Às vezes a própria festa. Tu, grande, que nunca ouviste Senão gemidos da orquestra Por que despertar tu’alma, Em sedas adormecida, Esta excrescência da vida Que ocultas com tanto esmero? E o coração – tredo lodo, Fezes d’ânfora doirada Negra serpe que enraivada, Morde a cauda, morde o dorso E sangra às vezes piedade, E sangra às vezes remorso?...

Não venham esses que negam A esmola ao leproso, ao pobre. A luva branca do nobre Oh! senhores, não mancheis... Os pés lá pisam em lama, Porém as frontes são puras Mas vós nas faces impuras Tendes lodo, e pus nos pés.346

344 Cf. Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Op. Cit., p. 288. 345 Cf. Lilia Silvestre Chaves, Comentário Crítico, In: Castro Alves, Op. Cit., p. 195. 346 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 210. 117

A criticidade e a força destas redondilhas maiores têm a finalidade de conscientizar o leitor contra a escravidão. A maior parte dos versos dessa primeira estrofe possui um ritmo binário ascendente, marcando, assim, a força do chamado da voz enunciadora ao leitor. Na época de C. A., não era qualquer pessoa detentora da habilidade da leitura. Percebemos nitidamente nos versos que o convite é feito a um leitor com vestidos bordados, que trocará o conforto de seus tapetes e salas pelo espaço pequeno e imundo do bordel. Há uma quantidade grande de equivalentes semânticos posicionais entre si na primeira estrofe. Os vocábulos “senzalas”, “alcouce cruel”, “imundo bordel” aproximam-se pelo mesmo sentido e ao mesmo tempo, através de um acoplamento com equivalentes em oposição, distanciam-se de termos como “tapetes e salas” e “vestido bordado”. Segundo Lilia Silvestre Chaves, a voz poética “denuncia as aparências, denuncia os contrates entre as vidas de seres humanos cuja única diferença é a cor. Mas o escuro do seu poema é reservado aos brancos. Dá um grito contra o preconceito”.347 Realmente, o leitor é questionado se ele não sente remorso por ser indiferente à dor humana do escravo e caso ele seja, o impuro será ele que não reconhece a dignidade do negro. Após todo um discurso de cunho moral e principalmente de uma tentativa de conscientização, a voz poética apresenta e reitera o convite carregado de metáforas e hipérboles e sem receio para assistir à imagem dos escravos em pleno auge do sofrimento: “Vinde ver como rasgam-se as entranhas”, “De uma raça de novos Prometeus”, “Ai! vamos ver guilhotinadas almas”, “Da senzala nos vivos mausoléus.”.348 Estes versos metaforizam o negro como criaturas já mortas, habitantes de vivos mausoléus. Seres que não vivem por serem destituídos de vontade própria. As imagens fanopaicas desses versos são assaz fortes. Percebamos quão sofrível é que um ser humano seja compreendido como um novo Prometeu. Um ser pertencente às narrativas mitológicas gregas que passou a eternidade em sofrimento, por ter o fígado diariamente devorado por um abutre. A interjeição “Ai!” surge como espanto, como angústia diante do que os olhos testemunharão. Nesse momento, o algoz exige da mãe a criança para mostrá-lo a seus futuros compradores, ela entra em completa agonia ao pressentir o que vai acontecer. Ela clama à Virgem

347 Cf. Lilia Silvestre Chaves, Comentário Crítico, In: Castro Alves, Op. Cit., p. 196. 348 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 211. 118

Santa,349 em prece, com os olhos para que a livrasse daquele mal. Contudo, infelizmente o pedido não é atendido. Sobre esse aspecto, Lilia Silvestre Chaves (2004) afirmara que parecia que “o poeta quis imprimir um sentido de absoluta solidão e impotência aos escravos, de revolta contra Deus. Está aí todo o trágico da situação daqueles seres humanos”.350 E realmente, a sensação de solicitar algo com toda a carga emotiva, principalmente a do desespero e não o obter constitui uma autêntica ação dramática e daí a concretização de uma tragédia, pois essa, de acordo com os postulados de Schiller (2008) é “uma imitação poética concatenada de acontecimentos (de uma ação completa), mostrando-nos seres humanos em estado de sofrimento e tendo em mira suscitar a nossa compaixão”.351 O poema claramente suscita esse sentimento de comiseração diante do sofrimento da mãe e ele ainda ganhará proporções maiores quando a escrava se mostrar adversa à ação do senhor. Dessa forma, a cena adquirirá uma completude perfeitamente trágica, uma vez que para se chegar à “intensidade e à veracidade das representações trágicas, exige-se ainda, completude. Tudo quanto deve provir de fora, a fim de levar a alma à tencionada emoção, tem de ser esgotado na representação”.352 Schiller reforça a ideia de que para se chegar a essa plenitude é necessário que haja uma interação entre os fatores internos e externos em toda a extensão do drama ou da poesia dramática, sem faltar nenhum elo dessas determinações, por isso que o eminente teórico ainda vem criteriosamente a complementar:

Sem essa completude não se reconhece, de modo algum, a veracidade de uma descrição, por que só a semelhança das circunstâncias, as quais temos que conhecer completamente, pode justificar nosso juízo sobre a semelhança dos sentimentos, pois a paixão só se origina da união das condições externas e internas. [...] Essa totalidade da descrição só é possível graças à concatenação de várias representações e intuições isoladas, que se comportam entre si como causa e efeito, e que, na sua interdependência, perfazem um todo para a nossa compreensão. Todas essas

349 Sobre este aspecto de os negros clamarem por um Deus católico, Jamil Haddad comenta: “Na senzala, a religião é igual à da casa grande, o poeta dava aos seus negros a religião dos brancos. Faltou-lhe vocação e engenho para descobrir o miraculoso veio lírico de sua Bahia de Xangô e Dona Janaína. Esta deveria repugnar aos seus requintes de branco e aristocrata, pois chega a condenar o culto da raça que o inspirava: “Nem mesmo Deus eles tinham, sim! porque um resto de idolatria pelos fetiches do Congo, misturados com um bocado de história de feiticeiros e um copo d’água benta que um padre lhes atirou à cabeça não era religião...” – A velha ama Leopoldina devera ter-lhe contado alguma coisa dos mitos de sua raça. Mas em vão. [...] Os negros de Castro Alves invocavam o Deus romano e o Jeová hebraico. Em certas condições, muito mais impressiva e verdadeira teria sido a invocação do Alá arábico, culto verdadeiro dos Hussás, os mais culturizados entre os escravos, fomentadores de insurreições [...]”. Cf. Jamil Almansur Haddad, Revisão de Castro Alves, São Paulo: Saraiva, 1953, v. 1, p. 191. 350 Cf. Lilia Silvestre Chaves, Comentário Crítico, In: Castro Alves, Op. Cit., p. 196. 351 Cf. Friedrich Schiller, Acerca da Arte Trágica (1792), In: ______. Op. Cit., p. 104. 352 Idem, p. 101. 119

representações para que nos comova vivamente têm de produzir uma impressão imediata sobre a nossa sensibilidade e, dado que a forma narrativa sempre enfraquece essa impressão, deve ser suscitada por uma ação atual.353

Podemos deduzir que os fatores internos dessa tragédia seriam os sentimentos de medo da escrava em perder seu filho e os externos seriam a tentativa dos algozes de comprar e usurpar a criança da mãe. Mas, o esgotamento da completude trágica, no texto, seria a embalde luta conflituosa da escrava africana pela posse do filho e coadunando-se a isso os sentimentos que, logo após a perda, impetuosamente afloraram. Afirmamos que, com essa última ação, a tragédia alcançaria a plenitude de sua unidade. Hegel inclusive já afirmava que “a ação dramática processa-se assim essencialmente por um conjunto de conflitos, e a verdadeira unidade só pode resultar do movimento total, do movimento de todos”.354 O poema Tragédia no lar não apenas explora todas essas relações como faz com que as referidas ações suscitem o sentimento de temor da escravidão, de revolta da condição dos escravos e de piedade diante do sofrimento deles. No texto, o que imprime bem mais esses sentimentos seria o diálogo suplicante da escrava para que não levassem seu filho. Ela inclusive apela à solidariedade, “Senhor, por piedade, não...”, “Vós sois bom... antes do peito”, “Me arranqueis o coração!”;355 apela ao bom senso, pelo fato de a criança ainda ser um bebê, “Apenas sabe rir... é tão pequeno!”, “Inda não sabe me chamar?... Também”,356 apela principalmente à razão pedindo aos algozes que se coloquem no lugar de sua dor: “Senhor, vós tendes filho... quem não tem?”, “Se alguém quisesse os vender”, “Havíeis muito chorar”357 e por fim reitera o pedido fechando a estrofe ciclicamente ao apelar mais uma vez à emoção: “Deixai meu filho... arrancai-me”, “Antes a alma e o coração!” Porém, toda a súplica para os senhores de escravos é em vão: “– Cala-te, miserável! Meus senhores,”, “O escravo podeis ver...”.358 De todas as comparações feitas pela escrava, evidenciamos aquela que abrange o destino de uma coletividade: “– Senhores! basta a desgraça”, “De não ter pátria nem

353 Cf. Friedrich Schiller, Acerca da Arte Trágica (1792), In: ______. Op. Cit., p. 101-2. 354 Cf. Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Op. Cit., p. 288. 355 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 212. 356 Idem, ibidem. 357 Idem, ibidem. 358 É importante salientarmos novamente, como foi exposto na análise de A canção do africano (1863), que essa prática de vender menores de quinze anos sem a companhia da mãe e do pai já havia sido decretada como ilícita na monarquia brasileira desde 1825 por José Bonifácio de Andrada e Silva, patriarca da independência. O poema Tragédia no lar (1865) posiciona-se como um registro histórico de que a lei no Brasil facilmente era burlada sob as vistas e as conivências das autoridades civis locais e nacionais. 120 lar,”, “De ter honra e ser vendida”, “De ter alma e nunca amar!”.359 Nesses versos, o pedido agonizante da negra ganha mais intensidade devido à sua respiração ofegante. Nesse instante, o eu poético desenvolve uma criticidade fortemente contundente contra o regime da escravidão: a voz da escrava não fala apenas por ela, mas por uma pluralidade de negros que nada lhes resta. Nada é válido e suficiente para fazer os algozes, que são metaforizados como sepulcros, mudarem de ideia. Por isso, a mãe ante os choros do filho retira-se de sua posição de exacerbada subserviência, externando sua agressividade tal qual a imagem metafórica de um jaguar, na mata, prestes a atacar e dilacerar aqueles que a ameaça. Observemos as frases “[...] Já vistes”, “Bramir na mata o jaguar”.360 A assonância vocálica do fonema /a/ fornece uma abertura bucal, a qual se aproxima do ato de a escrava bramir. Nesse instante, a africana que antes era vítima, emerge como guerreira, como animal feroz em defesa de sua espécie. E belissimamente, o eu poético ilustra a cena vitalizando os sentimentos da mãe que passa a agredir a turba de senhores de covardes, por roubarem corações humanos. O verso “Vós roubais os corações!...”361 que materializa a recente informação além de explorar o recurso metonímico sugere reflexão ao ouvinte pelo fato de ele ser concluído por uma reticência e a interjeição marca bem o estado emocional de angústia da enunciadora da frase. A negra convoca num forte brado mais escravos para luta, entretanto os cativos sem armas tombam diante das chicotadas. O desfecho dessas ações explora ainda mais a compaixão do leitor e o horror pelos imperdoáveis crimes da escravidão. A imagem agita a alma e atordoa a consciência de quem a testemunha, restando apenas o galopar dos cavalos com os homens raptando o inocente indefeso que não cessava de chorar. O grito estridente e enaltecido do bebê adentrava fortemente nos ouvidos de quem o escutava, acompanhado, ao mesmo tempo, pelos golpes violentos dos açoites que vibravam sempre mais a cada chibatada, à medida que ecoava a gargalhada ensandecida da mãe que sofria avassaladoramente por ter o filho roubado e a vida para sempre destruída. Podemos deduzir que este poema ilustra bem um episódio trágico-dramático, uma vez que conforme Hegel “o número de actos mais conforme à estrutura do drama é de três, o primeiro expõe o nascimento do conflito; o segundo o choque, a luta de interesses e todas as complicações que daí resultam; o terceiro mostra que levada essa luta ao paroxismo, termina pelo desfecho”.362

359 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 212. 360 Idem, p. 213. 361 Idem, ibidem. 362 Cf. Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Op. Cit., p. 292. 121

Contextualizando essa teoria, o primeiro no texto corresponderia à tentativa de vender a criança, o segundo à iniciativa desesperada de a mãe do garoto apelar exaustivamente a Deus e ao bom- senso dos compradores para que a mencionada ação não ocorresse; e por fim o terceiro ato seria a luta braçal pela posse da criança após as excessivas súplicas da mãe terem sido ignoradas e desprezadas pelo senhor-de-engenho, que oferece a criança e negocia a venda, e pelos compradores. Obtém-se, com isso, o término do poema, registrando o tom trágico e dramático da história. O poema Tragédia no lar (1865) apresenta-se como um dos primeiros brados de misericórdia do poeta em favor da condição oprimida do escravo, apesar de o texto explorar uma relação individual entre mãe e filho, vemos mais adiante, nas produções castroalvinas, que o sentimento de compaixão estendeu-se a uma pluralidade muito maior do que em casos isolados das vivências do negro. Outro exemplo em que se poderia confirmar o projeto de elaboração poética, encontra-se representado em Navio Negreiro (1868). O poema Navio Negreiro (1868) (Ver anexo 7) se apresenta como produção literária da terceira fase do Romantismo Brasileiro e tornou-se conhecido no meio acadêmico-literário como a produção da fase áurea do poeta, principalmente porque foi composto em São Paulo para registrar em meio aos intelectuais da época que o recebiam e o prestigiavam a qualidade de seu trabalho literário. O respeito que obteve o poeta pela excelente poesia foi algo que elevou o nome de Castro Alves à categoria de gênio da Literatura Brasileira. Jorge Amado inclusive comentou que “a cidade de São Paulo, bela adormecida no bosque à voz romântica dos seus poetas, despertou cavalheiro da liberdade ao clarim da voz de Castro Alves”.363 Como nos reportamos a um texto de vertente social, em defesa do maior direito das condições da vida humana, a liberdade; não nos eximiremos de inter-relacioná-lo a características essenciais à produção de uma poesia que registra a problemática de uma época. Dentre as referidas abordagens, destacamos a plasticidade textual presente nas imagens conotativas, as diversidades das isotopias que, no texto, representam a multiplicidade de ações, de percepções sensoriais e da variação de sentimentos, e, principalmente, os elementos fundamentais à constituição de um poema que enfatiza o sentimento de indignação de uma sociedade através da dramaticidade e da tragicidade das cenas. Esses, por sua vez, são observados não apenas na

363 Cf. Jorge Amado, ABC de Castro Alves, Rio de Janeiro: Livraria Martins, 1941, p. 127. 122 individualidade do seu gênero, todavia na fusão estético-conteudística deste com o gênero épico presente no poema em análise. Será essa fusão que enaltecerá a discussão pretendida na implícita antítese percebida nas entrelinhas do texto: liberdade x escravidão. Essa categoria de fundir gêneros distintos fez do Romantismo, não apenas o brasileiro, mas também o europeu, sobressair-se e diferenciar-se acentuadamente das demais propostas estéticas anteriores. Para contextualizar essa asserção do enriquecimento do texto, posto em análise, através da plasticidade das antíteses, destacamos dois grandes nomes da literatura universal romântica que se posicionam como essenciais à compreensão de uma produção dramática, sobretudo, tomando como referencial alguns aspectos teóricos referentes aos estudos de Goethe e Schiller. Ambos diferenciaram, no ensaio Sobre Literatura Épica e Dramática (1827), as características constitutivas dos dois gêneros. Dentre muitas, “a grande diferença essencial, porém, baseia-se no fato de que o épico expõe os acontecimentos como inteiramente passados, e o dramático os apresenta com inteiramente presentes”.364 Será essa nítida oposição entre passado e presente que observaremos um acentuado crescimento do gênero dramático, levando o leitor a sensibilizar-se com o que lê e até a dialogar com a narrativa, no momento em que ele se posiciona como um defensor daquele que está sendo injustiçado e, sobretudo, escravizado, visando com isso a censurar a escravidão como regime desumano e indigno. Notamos esse envolvimento através dos seguintes versos da terceira estrofe da quinta parte do poema: “São os filhos do deserto”, [...], “São os guerreiros ousados”, “Que com os tigres mosqueados”, “Combatem na solidão...”, “Homens simples, fortes, bravos...”, “Hoje míseros escravos”, “Sem ar, sem luz, sem razão...”.365 A oposição das ações, no passado e no presente, destaca os gêneros observados no poema; ontem, eram bravos guerreiros; ou seja, os negros eram exaltados coletivamente como guerreiros, e essa terminologia é um elemento essencial para a formação de um poema épico, pois, conforme Hegel, “o conjunto da concepção do mundo e da vida de uma nação que apresentado sob a forma objectiva de acontecimentos reais, constitui o conteúdo e determina a forma do épico propriamente dito”.366 Agora, em oposição a essa apresentação de bravura, hoje, no poema, eles são apresentados como míseros

364 Cf. Wolfgang Goethe & Friedrich Schiller. Sobre Literatura Épica e Dramática (1797). In.: ______. Goethe e Schiller: Companheiros de Viagem. São Paulo: Nova Alexandria, 1993, p. 203. 365 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 248. 366 Cf. Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Op. Cit., p. 129. 123 escravos, sem ar, sem luz e sem razão, isto é, estilisticamente, o eu lírico enfatiza o caráter redutor a que se transformou a vida dos negros escravos: em nada. Em virtude disso, deter-nos-emos a abordar e, sobretudo, a discutir os acontecimentos que surgirão no poema Navio Negreiro com a finalidade de visualizar a unidade dramática pretendida pelo autor do texto e destacada como essencial pelos teóricos já mencionados. Também, como já citado, faz-se mister evidenciarmos tal proposta unitária, pondo em relevância a sequência em que se deram os fatos. Castro Alves soube interligá-los de maneira tão coesa que a dramaticidade pretendida alcança níveis de percepção até então pouco explorados pelos autores românticos brasileiros. O poema é dividido em seis partes, as quais poderiam também ser consideradas como seis cantos, segundo a linguagem épica, ou seis atos, conforme o estilo dramático, no entanto fugiria um pouco do padrão estabelecido na composição de um texto deste gênero, pois segundo Horácio, a tragédia deve ser escrita determinantemente em cinco atos. Portanto, fazer uso da terminologia épica enquadrar-se-ia bem nessa proposta textual, pois o poema é uma produção épico-dramática. Épico, por exaltar o povo africano e narrar um episódio de sua história e dramático pelo fato de as ações dessa história reportarem-se a um destino que os negros tenderam a negá-lo e repeli-lo, mas são arrebatavelmente postos frente a ele, apresentando, assim, as cenas de horror e de crueldade que a história sociopolítica brasileira tentou omitir, e a literatura procurou expor. Esse posicionamento reforça a idéia de que “os primeiros acontecimentos e empreendimentos dos povos são, geralmente, mais de natureza épica do que de dramática”.367 Porém, a ação conflituosa já descrita dos negros fundamentaria o fazer dramático em si: “a ação dramática processa-se assim essencialmente por um conjunto de conflitos, e a verdadeira unidade só pode resultar do movimento total, do movimento de todos”.368 Por conseguinte, aproximar-nos-emos desse viés totalizador apresentado por Hegel para que a unidade dramática pretendida seja mais que destacada, seja discutida como elemento que afete não apenas os objetivos do texto, mas a totalidade de um indivíduo que observa ou participa de um fazer dramático. O poema de Castro Alves corrobora a proposta de Hegel por expor os instantes totalizadores para logo após delimitar-se aos movimentos de cada personagem que juntos condensariam a intencionalidade do drama. No que se refere à primeira parte do poema, o

367 Cf. Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Op. Cit., p. 280. 368 Idem, p. 288. 124 eu lírico faz uma descrição do cenário, exaltando a beleza da natureza, já que “nos decassílabos da primeira parte, alonga-se a maioria das vogais, a fim de que cada verso, lido mais lentamente, cresça, e nos dê do alto-mar o movimento”:369 “Stamos em pleno mar... Doudo no espaço”, “Brinca o luar – doirada borboleta –”, “E as vagas após ele correm... cansam”, “Como turba de infantes inquieta”.370 Nessa estrofe, o estilo romântico do fazer poético inicia-se a destacar. Vemos a expressividade da plasticidade das imagens através da natureza metaforizada e, sobretudo, personificada, pois o luar como uma borboleta doirada brinca loucamente no espaço, as vagas (as ondas) marítimas correm e cansam-se como um grupo de príncipes inquietos. Então, como necessário a uma produção dramática, o cenário é apresentado, todavia, verificamos uma oposição de estilos na proposta deste cenário. Ao reportarmo-nos aos espaços grandiosos, infinitos, como o céu e o mar, vemos o espaço de uma produção épica ser mencionado, contudo, ao restringirmos os cenários a poucos espaços, especificamente, os menores, vemos o desenvolver da ação trágica. Segundo Goethe e Schiller, no ensaio já referido, “o poema épico apresenta alguém que age em torno de si: batalhas, viagens, toda sorte de empreendimento que exige uma certa amplitude física”;371 porém “a tragédia alguém conduzido para dentro de si, e as ações da verdadeira tragédia, por isso só precisam de pouco espaço”,372 ou seja, delimita-se e restringe-se mais, assim facilmente, intensificar-se-ia a cena a qual se deseja evidenciar, apresentando-se os movimentos de ação e reação de indivíduos que juntos, mais uma vez, reforçariam o caráter totalizador pretendido pela ação do drama, como já citado por Hegel. Ainda, na primeira parte, o narrador verifica a aproximação de uma embarcação, na qual se apresentará o cenário da tragédia, pois lá ocorreram ações que caracterizarão a dramaticidade analisada e estudada nesse trabalho. E, a unidade de lugar na tragédia, como também, a unidade de tempo consistem em regras tão precisas como a unidade de ação, portanto a concatenação das três implicaria numa verdadeira unidade do gênero trágico. O espaço da tragédia no poema será o brigue (o navio) que conduz pelos mares os negros escravos. O próprio é mencionado na terceira estrofe da primeira parte do poema e sem fugir da

369 Cf. Alberto da Costa e Silva, Op. Cit., p. 98. 370 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 244. 371 Cf. Wolfgang Goethe & Friedrich Schiller. Sobre Literatura Épica e Dramática (1797). In.: ______. Op. Cit., p. 204. 372 Idem, ibidem. 125 plasticidade do romantismo, ele é metaforizado às andorinhas que roçam nas vagas (ondas) do mar, é comparado a corcéis que galopam, voam levantam o pó dos desertos marítimos sem traços deixar: “Donde vem?... Onde vai?... Das naus errantes,”, “Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?”, “Neste Saara os corcéis o pó levantavam,”, “Galopam, voam, mas não deixam traço.”.373 Ainda nesse primeiro plano de aproximação do navio, o narrador ouve o despontar da sonoridade da cantiga, oriunda do brigue veleiro, então, aquele solicita do navio que o espere, para que ele possa participar e vivenciar da poesia, ou seja, da cena que está por apresentar-se. O narrador chega a lamentar o fato de não poder acompanhar o movimento do navio, que é metaforizado como “doudo cometa”, devido sua ágil velocidade. Isso já reporta a tentativa de construção da unidade de ação que é representativa do gênero trágico, por fazer com que ações totalizadoras de indivíduos diferentes unam-se para gerar a unidade trágica. É o que percebemos nos seguintes versos: “Oh! Quem me dera acompanhar-te a esteira,”, “Que semelha no mar – doudo cometa!”.374 Porém, para que se condensem os movimentos, o narrador roga ao “Albatroz, águia do oceano” que conceda suas asas para que possa se unir à melodia, à poesia que o atrai, dentro de uma perfeita unidade: “Albatroz! Albatroz! águia do oceano,”, “Albatroz! Albaltroz! dá-me estas asas...”.375 Consoante a análise de Antônio Candido acerca do Navio negreiro, de Castro Alves, esses espaços da natureza compõem mais que o cenário da história, mas um jogo de elementos que opõem amplitude e reducionismo, antíteses essenciais que servem de esteio àquela oposição que se apresenta implícita na obra: liberdade x escravidão. Vejamos, então, a contribuição do referido crítico literário acerca do presente texto em análise:

É através de perspectivas, distâncias e aproximações que o assunto é apresentado. Mas tão importantes quanto elas são o espaço e os elementos que o povoam: mar, céu, noite, lua, ondas, estrelas formam um quadro adequado ao titanismo da composição. Esses elementos emprestam uma dimensão enorme à cena e aos protagonistas, e seu efeito provém da maneira pela qual são usados como recursos de fatura, que parece baseada numa espécie de “lei” fundamental: o jogo de extremos, que se aproximam, se cruzam ou se repelem, criando grandes contrastes, que Castro Alves aprendeu com seu mestre Victor Hugo. Sob este aspecto, o princípio que serve de esteio ao poema é uma antítese implícita: liberdade x escravidão.376

373 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 244. 374 Idem, p. 245. 375 Idem, ibidem. 376 Cf. Antonio Candido, Navio Negreiro. In: ______. Recortes, São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 50-1. 126

Comungando desse viés de aproximação do eu lírico, ou seja, do narrador à embarcação, como frisou Antonio Candido, vemos que será na segunda parte do poema que a unidade de ação vai se estreitando mais, o narrador após exaltar a beleza da natureza passa a enaltecer os traços humanos através dos feitos dos marinheiros identificados pela sua nacionalidade. Esse viés leva- nos mais uma vez a destacarmos a presença do épico na unidade de ação que se constrói para compor o quadro do fazer dramático. A estética dessa segunda parte do poema com suas décimas em redondilha maior dão-nos a impressão de uma canção popular, o que nos leva também a perceber a iniciativa do Romantismo em retratar um povo através de cantigas populares. Versos importantes de serem destacados são aqueles os quais Castro Alves generaliza o marinheiro como um amante da poesia do mar, ou seja, são aqueles que totalizam a ação das personagens para que sejam vistas numa unidade, mesmo que, logo após ele, especifique os feitos dos espanhóis, dos ingleses, dos italianos, dos franceses e, sobretudo, dos gregos helenos, será na abertura desse canto que vemos as ações das personagens em busca da glória: “Que importa do nauta o berço,”, “Donde é filho, qual seu lar?...,”, “Ama a cadência do verso”, “Que lhe ensina o velho mar!”, “Cantai! Que a noite é divina!”, “Resvala o brigue à bolina”, “ Como um golfinho veloz.”.377 Em oposição ao destaque de beleza dado na primeira e segunda partes do poema, chegamos à terceira parte a qual o “albatroz” já está mais do que próximo ao navio, posiciona-se dentro do brigue veleiro e choca-se ao perceber que a música que ouvira não é de louvor ou de alegria, mas de morte, e vem mais ainda a escandalizar-se com o quadro de amarguras, com as cenas infames e vis que presencia e diante de tamanha barbárie, clama por Deus. Chegamos à tragédia propriamente dita, pois como diz Goethe e Schiller, no ensaio Sobre Literatura Épica e Dramática, “a tragédia apresenta um sofrimento limitado à pessoa”.378 E, tal sofrimento será limitado ao negro escravo para o qual se desenvolverão as cenas de horror e vileza no porvir da ação dramática descrita. Antes disso, é importante ressaltar o sentimento de indignação do eu lírico com o que presencia: “Mas que vejo eu ali... que quadro de amarguras!”, “Que cena funeral!... Que tétricas figuras!...”, “Que cena infame e vil!... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!”.379

377 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 245. 378 Cf. Wolfgang Goethe & Friedrich Schiller. Sobre Literatura Épica e Dramática (1797). In.: ______. Op. Cit., p. 204. 379 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 246. 127

Castro Alves como bom aprendiz da literatura social de Victor Hugo, não deixou de dar sua impressão sobre a ação que se desenvolveu e que ainda viria a explorar muito mais. Victor Hugo (1822) considerava que a atitude de um poeta era fazer da poesia uma profunda descrição do eu. Vejamos o que discorre o mesmo sobre a ação do ser poético:

Em suas poesias, o poeta incluiria conselhos à época atual, os esboços sonhadores do futuro; o reflexo, seja deslumbrante, seja sinistro, dos acontecimentos contemporâneos; os panteões, os túmulos, as ruínas, as lembranças; a caridade para com os pobres, a ternura para com os miseráveis; as estações, o sol, os campos, o mar, as montanhas; os olhares furtivos no santuário da alma, onde se percebe num altar misterioso, como por uma porta entreaberta de capela, todas as belas urnas de ouro: a fé, a esperança, a poesia, o amor; enfim, o poeta faria em sua poesia a profunda descrição do eu, que talvez seja a obra mais ampla, mais geral e mais universal que um pensador possa fazer.380

Constatamos que será em todo o poema que C. A., a exemplo do projeto esboçado por Victor Hugo, incluirá a sua opinião acerca da escravidão, pois aquele a vê como um regime sociopolítico-econômico desumano, injusto, que aniquila o maior de todos os direitos da vida humana: a liberdade. Será esse viés de aniquilamento reforçado e evidenciado a partir da quarta parte do poema em que o narrador descreve com riqueza de detalhes os horrores da escravidão. A isotopia cromática presente nas cores vermelha e negra fundem-se com a isotopia de sonoridade proporcionada por termos como “tinir de ferros”, “estalar de açoite” e “dançar”. Ambas compõem o quadro da cena que se apresenta como algo difícil de acreditar como real, pois ela é vista como um sonho, porém, aludindo-se à Divina Comédia, de Dante; esse sonho é tido como algo dantesco, tenebroso, que do alto tombadilho (lugar mais alto do navio) avistam-se legiões de homens negros a banharem-se de sangue, por terem sido açoitados, e, com isso, são destacados pelo efeito de luz no contraste da cor da sua pele escura como a noite e o vermelho de seu sangue que escorre pelo corpo. Ainda nessa primeira estrofe, temos as ações proporcionadas pelos movimentos dos negros, que dançam com o estalar do chicote, e o destaque da imensidão da cena, por serem muitos escravos, já que o eu lírico, através da plasticidade da hipérbole, refere-se a estes como legiões. Na segunda estrofe, verificamos que o narrador apela à sensibilidade do leitor ao descrever crianças que regam o sangue vertido das tetas de suas mães, moças nuas que são

380 Cf. Luiza Lobo, Teorias poéticas do romantismo, Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987, p. 130-1. 128 arrastadas em ânsias e mágoas vãs naquele turbilhão de fantasmas. Metáfora forte a que são comparados os negros, como fantasmas, como se vida não mais tivessem e são insignificantemente fantasmas, seres vãos. Nessa estrofe, o destaque no desespero, na fome, na miséria, no caráter de aniquilamento da liberdade e, acima de tudo, no caráter zoomórfico a que são comparados os negros, já que o narrador não se refere às mães das crianças com seios, mas com tetas como os animais. O negro é visto como fantasma, ou seja, como um ser etéreo, sem corpo, sem alma. Como o próprio narrador mencionara, é uma imagem por demais dantesca, referindo-se ao inferno, onde as almas padecem sem salvação. Nessa estrofe, a ênfase no desespero leva o leitor a indignar-se com o que vê, apelando para a sensibilidade humana. A cena trágica que descrita foi reporta-se bem ao que um dos grandes teóricos do Romantismo Alemão expusera acerca do teatro: “O teatro apresenta-nos uma variegada cena de sofrimentos humanos. Leva-nos a aflições alheias e nos recompensa o sofrimento do movimento com voluptuosas lágrimas e um maravilhoso acréscimo em coragem e experiência”.381 Na terceira estrofe, quanto maior for a expressão de sofrimento e de dor dos negros, mais maus-tratos receberão. Constatamos que a orquestra a que se refere o eu lírico são metaforicamente os gritos e lamentos dos negros diante da agressão proporcionada pelo chicote, o qual também é metaforizado pela imagem da serpente que faz doudas espirais. Fica claro nas ações desempenhadas, nessa estrofe, que a crueldade é algo que proporciona um grande prazer ao agressor por seu sadismo incomensurável, se um velho negro vier a resvalar no chão, será bem mais chicoteado para que seus gritos não deixem de compor a sonoridade da orquestra e a unidade de ação essencial no fazer dramático não seja interrompida. Observemos: “Se o velho arqueja... se no chão resvala,”, “Ouvem-se gritos... o chicote estala.”, “E voam mais e mais...”.382 Reparemos que quem “arqueja” ou o que é “arquejado” é que está “fora do ritmo” nesta “orquestra”. O voar do chicote determina o ritmo da orquestra, visto que “voar” significa deslocar algo em uma determinada velocidade pelo ar. Assim, o som da orquestra se dá não apenas pelos gritos do escravo, mas, também, pelo deslocamento do chicote. A violência da cena é assaz repugnante e indigna, porém ao mesmo tempo é necessário enfatizar a angústia e a agonia para que o leitor sensibilize-se diante do absurdo do regime escravocrata que se iniciava com o mortal translado marítimo. O poema data de abril de 1868, e nessa época já se havia passado

381 Cf. Friedrich Schiller, O Teatro considerado com instituição moral (1784). In: ______. Op. Cit., p. 41. 382 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 247. 129 dezoito anos da lei Eusébio de Queirós, a qual proibia o tráfico de escravos da África para o Brasil. Contudo, clandestinamente, a prática permanecia, tornando a travessia ainda mais dramática para o escravo, como uma “carga”, e os traficantes não hesitavam em desfazerem-se dos infelizes jogando-os ao mar. A ênfase na isotopia sonora da quarta estrofe através de ações como chorar, gemer, cantar e rir reforça o caráter de tragicidade já destacado e ainda, nessa estrofe, constata-se também que os maus-tratos físicos e emocionais levavam os escravos a um estágio de resistência física praticamente impossível de suportar: “A multidão faminta cambaleia,”, “E chora e dança ali!”, “Um de raiva delira, outro enlouquece...”, “Outro, que de martírios embrutece,”, “Cantando, geme e ri!”.383 As debilidades físicas e mentais do escravo instigam ainda mais o sadismo do perverso capitão que grita: “Vibrai rijo o chicote, marinheiros!”, “Fazei-os mais dançar!...”.384 Diante disso, o eu poético encerra a quarta parte do poema ressaltando o terror dantesco para um ouvinte ausente, fechando a dramaticidade da cena. Ainda, referindo-se a essa parte do texto, é relevante enfatizar as possíveis interdiscursividades presentes nesse poema. Para Alberto da Costa e Silva,

essa passagem tem sido considerada como um débito de Castro Alves para com vários poemas, como “Les négres et les marionnettes”, de Pierre-Jean de Beránger, “The slave ship”, de John Greenleaf Whittier, e, com mais insistência, “Das Sklavenschiff”, de .385

Agora, Costa e Silva ressalta que “é possível que o trabalho do alemão tenha sido a fonte do brasileiro. Mas foi só isso”,386 uma vez que “ao escrever seu poema, Castro Alves talvez se tenha lembrado daquele de Heine, mas criou a sua cena, a sua própria cena dolorosa e dramática, de escravos a dançar no tombadilho, a poder do chicote”.387 Heloisa Toller Gomes, inclusive sobre este poema, afirmou que:

O tema do poema é mais do que a cena dantesca a bordo, abarcando a escravidão no seu todo, a degradação à pessoa humana e o ultraje à própria natureza. Também a pátria se mostra degradada pela escravidão. Na última sessão do poema, a denúncia deixa de ser generalizada (“ó rudes marinheiros,/ Tostados pelo sol dos quatro mundos!”) e dirige-se contra o país explicitamente. A vergonha não é privilégio de grupos escravistas, mas

383 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 247. 384 Idem, ibidem. 385 Cf. Alberto da Costa e Silva, Op. Cit., p. 104. 386 Idem, p. 104. 387 Idem, p. 104-5. 130

atinge a pátria no seu todo, representada pela bandeira prostituída. O poema é mais ousado do que a poesia abolicionista de outras literaturas. Em seu estudo “Castro Alves and the New England abolitionist poets”, de Thomas Braga afirma que nem Henry W. Longfellow nem John Greenleaf Whittier, poetas abolicionistas norte-americanos, “nacionalizaram” o navio negreiro que descrevem.388

A análise de Heloisa Toller Gomes vem a confirmar o caráter de originalidade com que C. A. abordava a temática da escravidão em relação aos poetas de língua inglesa, mesmo que ele tenha abeberado de outras fontes abolicionistas, a sua produção se mostra mais marcante por reportar-se a uma realidade brasileira. Orientando-se por esse mesmo viés, Jorge Amado endossa o valor poético e ideológico de o Navio Negreiro:

Nesse poema, negra, que vai da mais doce emoção ao falar do mar e dos marinheiros aos mais terríveis gritos de dor ao contar do sinistro bailado dos escravos, que vai do mais puro lirismo ao dizer da virgem negra na cabana à mais terrível apóstrofe ao pedir a Colombo e ao Andrada que apaguem a sua obra manchada pelos escravocratas, nesse poema ele sobrepujou a si mesmo. É quase inconcebível o reunir de tanta beleza e tanta emoção. A língua portuguesa se enriquece com ele e a humanidade também. É um canto de dor e de revolta como poucos se hão escrito. Igual a ele na sua obra só mesmo aquele painel gigantesco que são As vozes d’África.389

A opinião de Jorge Amado é incontestável no que se refere a caracterizar o poema como um canto de dor e de revolta, porque o texto sugere e apresenta o que de mais reflexivo há sobre a realidade horrenda da tortura física e mental expressa pela seguinte apóstrofe: “Senhor Deus dos desgraçados!”, “Dizei-me vós, Senhor Deus!”, “Se é loucura... se é verdade”, “Tanto horror perante os céus...”.390 Mas, inverte-se o cenário da natureza exaltado, no início do poema, para posicionar um protesto cósmico contra a iniqüidade desencadeada em alto mar: “Ó mar! Por que não apagas,”, “Co’a esponja de tuas vagas,”, “De teu manto este borrão?...”,“Astros! noite! tempestades!”,“Rolai das imensidades!”,“Varrei os mares, tufão!...”.391 É ainda nessa parte do poema que se destaca a antítese entre a imagem do negro livre na África contrastada com a dele escravizado e maltratado nos sórdidos porões dos navios negreiros. Como atributos épicos o eu poético exalta os feitos do povo africano, sua história, seus costumes, suas mulheres e seu heroísmo:“Ontem a Serra Leoa,”, “A guerra, a caça ao leão,”, “O sono dormido à toa,”, “Sob

388 Cf. Heloisa Toller Gomes, Op. Cit., p. 69-70. 389 Cf. Jorge Amado, Op. Cit., p. 134-5. 390 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 248. 391 Idem, ibidem. 131 as tendas d’amplidão...”.392 Entretanto, o leitor logo em seguida se depara com antíteses deveras impactantes. Antonio Candido elenca precisamente esse universo antitético através dos seguintes confrontos:

Acrescentamos o efeito de certas antíteses que exprimem a antítese básica liberdade x escravidão e se encontram na quinta parte do poema: movimento livre do guerreiro ou caçador x restrição imposta pelas cadeias; espaço aberto que serve de imenso abrigo x porão apertado, infecto e imundo; perigo afrontado voluntariamente na caça às feras x perigo imposto das doenças do cativeiro; existência como força de vida x morte no navio e sepultamento no mar. Este movimento das antíteses, das oposições que não se cruzam nem se unificam, gera estrofes admiráveis:

Ontem a Serra Leoa, A guerra, a caça ao leão, O sono dormido à toa Sob as tendas d’amplidão! Hoje... o porão negro, fundo, Infecto, apertado, imundo, Tendo a peste por jaguar... E o sono sempre cortado Pelo arranco de um finado, E o baque de um corpo ao mar...393

Podemos verificar que o crítico contextualiza bem esse universo estilístico que encadeia acoplamentos com equivalentes semânticos em oposição. Todas essas antíteses reforçam bem mais o desenrolar do conflito entre a liberdade e a escravidão. Salientamos ainda que essa dualidade é muito bem sugerida pela plasticidade das imagens, dos movimentos e dos sons dados à cena pelo poeta, levando o leitor a um processo crítico formulado pela reflexão sobre os eventos. Esse acentuado destaque por esse jogo de oposições exemplifica o conflito definido por Hegel (1980) como condição basilar da ação dramática:

A progressão verdadeiramente dramática consiste na precipitação irresistível para a catástrofe final. Isto explica-se muito simplesmente pelo papel capital que o conflito nela desempenha. Por um lado, tudo tende para a explosão deste conflito e, por outro lado, o desacordo e a contradição entre maneiras de pensar, fins e actividades contrárias exigem uma solução, de modo que tudo converge para este resultado. 394

Tomando-se em consideração a presente citação, observa-se que o modelo teórico proposto por Hegel possibilita o entendimento do conflito entre escravidão e liberdade utilizado por C. A. Resultando assim em traços de uma ação dramática condensados por C. A.:

392 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 249. 393 Cf. Antonio Candido, Navio Negreiro. In: ______. Op. Cit., p. 52-3. 394 Cf. Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Op. Cit., p. 291. 132

A poesia dramática não se contenta com a descrição de uma só situação; se exprime o mundo interior da alma e do espírito, exprime-o em acção, num conjunto de fins e de caracteres diversos, unidos por laços internos à acção que dá ao drama uma amplidão muito maior que a do poema lírico. 395

É indiscutível notar como essa expressão do mundo interior da alma e do espírito realmente retrata o conceito de identidade enquanto igualdade humana entre os sujeitos. Tal aspecto encontra-se explicitada através de uma ação ética simbólica, através da qual o poeta espera convencer seus leitores sobre a necessidade da emancipação de milhares de pessoas. A identidade coletiva pressupõe a identidade individual que, por sua vez, sugere um sentido de Identidade Nacional relacionado ao princípio de liberdade e justiça garantido a todos. Nesse ponto, aproximamo-nos bem mais da crítica que o eu lírico tece no último canto do poema que subtende a ideia de um país beneficiar-se do trabalho escravo. Ainda na primeira estrofe da sexta parte do poema, vemos como o eu lírico transfere a denúncia contra a escravidão à nação, por essa ter “prostituído” sua bandeira ao deixar seu povo viver sob a condição de escravo: “E existe um povo que a bandeira empresta,”, “P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...,”, “E deixa-a transformar-se nessa festa,”, “Em manto impuro de bacante fria!...,”, “Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta”.396 A metonímia da nação brasileira presente no termo “bandeira” surge de maneira bastante singular e apropriada, pois é uma forma de imprimir nesta, que é símbolo de uma identidade coletiva, a vergonha que a escravidão marcou na nação. Uma vergonha capaz de esmagar a inteligência humana: “Fatalidade atroz que a mente esmaga!”. Diante do presente fato, o eu lírico clama aos heróis simbólicos da nação brasileira nas pessoas de Andrada397 e Colombo,398 que se levantem da etérea plaga;399 a fim de intervirem no processo da escravidão. Todo esse apelo do eu lírico é motivado pelos crimes cometidos aos escravos, para que, após tanto expor os conflitos vivenciados dentro do navio negreiro, a tragédia chegue a uma solução, ao seu verdadeiro apaziguamento, ou seja, que os momentos conflituosos produzem o necessário fim. Verifica-se na opinião de Hegel que se posicionou expondo que mesmo a tragédia sendo dialética, chega-se a sua verdadeira síntese:

395 Cf. Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Op. Cit., p. 290. 396 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 250. 397 Referência a José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), o “Patriarca da Independência” 398 Referência a Cristóvão Colombo (1451-1506), descobridor da América. 399 É uma referência à região onde vivem os heróis mortos. 133

A acção dramática não se limita, porém, à calma e simples progressão para um fim determinado; pelo contrário, decorre essencialmente num meio repleto de conflitos e de oposições, porque está sujeita às circunstâncias, paixões e caracteres que se lhe opõem. Por sua vez, estes conflitos e oposições dão origem a acções e reacções que, num determinado momento, produzem o necessário apaziguamento.400

Diante do exposto por Hegel, chegamos à conclusão que esse apaziguamento conduzido pela ação trágica, no poema Navio Negreiro, é, sem dúvida, o fim do regime escravocrata, com a liberdade pretendida e idealizada pelo poeta. Com isso, afirmaríamos que os três números de atos mais conformes à estrutura do drama chegariam à sua concretização. Foi Hegel quem definiu em três o número de atos: “o primeiro expõe o nascimento do conflito; o segundo o choque, a luta de interesses e todas as complicações que daí resultam; o terceiro mostra que levada essa luta ao paroxismo, termina pelo desfecho natural”.401 No poema Navio negreiro, o nascimento do conflito surge com as consequências da escravidão, o segundo elemento seria o escandalizar-se com os horrores promovidos pelo regime escravocrata e daí o despontar da oposição liberdade x escravidão. Daí, chegaríamos ao desfecho natural da idealizada abolição da escravatura, que é o propósito de Castro Alves em defesa da identidade de um sujeito: o negro brasileiro. Com toda essa abordagem, chegaríamos à pretendida unidade dramática, apontada predominantemente por Hegel, ao afirmar que a necessidade de se fazer uma poesia dramática de cunho trágico, para o Romantismo Brasileiro, em especial para C. A., é para erguer uma luta pelas causas sociais, a luta pela liberdade, como foi tão bem trabalhada pelo mesmo no poema, de vertente social e dramática, Navio Negreiro. Vemos que esse apelo pela liberdade continuou soando num vazio por muito tempo, pois de 1868 até a abolição da escravatura em 1888, passaram-se vinte anos ainda de subjugação do escravo ao jugo do escravocrata, mesmo assim C. A. continuou a endossar sua voz abolicionista, e em 1870 o poeta escreve o último de seus poemas abolicionistas: A Cachoeira de Paulo Afonso. Após a sua chegada de São Paulo, C. A. concluiu o livro de A Cachoeira de Paulo Afonso (1876), sua visão sobre as questões nacionais, sobre toda a abolição da escravatura, em julho de 1870, no sertão baiano, na fazenda Santa Isabel do Paraguaçu. O livro consta de trinta e três poemas, os quais estão interligados uns aos outros por apresentarem-se como uma narrativa lírico-dramática, dando assim uma sequência ao enredo, os poemas foram analisados em

400 Cf. Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Op. Cit., p. 279. 401 Idem, p. 292. 134 conjunto, mas em alguns detivemos mais observações, como A tarde, Maria, O baile na flor, A queimada, Lucas, A senzala, Diálogo dos ecos, No barco, Mudo e quedo, Nos campos, No monte, Sangue de africano, Amante, Desespero, Mãe penitente, Crepúsculo sertanejo, A cachoeira. O ambiente aprazível da natureza servirá de cenário onipresente, vivo e envolvente no enredo de uma narrativa lírica que se inicia como livro, terminando como um canto de denúncia e ao mesmo tempo como uma ode à liberdade e à dignidade humana do ser escravo. Nos poemas mencionados, características simbólicas de uma identidade individual e coletiva serão tecidas e expostas em discussão e partindo das quais o eu poético emprestará a voz poética à reflexiva consciência do negro escravizado. Diferente da efervescência de São Paulo que, na época, se destacava com um dos pólos mais escravagistas do país por sua produção cafeeira, a fazenda, o campo mantêm-se como uma atmosfera propicia à reflexão. C. A. inicia-o por uma expressiva epígrafe de Henri Heine a qual simboliza fortemente a mensagem como um todo do poema:

Je ne sais vraiment si j’aurai mérité qu’on dépose un jour un laurier sur mon cercueil. La poésie, quelque soit mon amour pour elle, n’a toujours été pour moi qu’un moyen consacré pour un but saint. Je n’ai jamais attaché un trop grand prix à la gloire de mes poèmes, et peu m’importe qu’on les loue, ou qu’on les blâme. Mais ce sera un glaive, que vous devez placer sur ma tombe, car j’ai été un brave soldat dans la guerre de dèlivrance de l’humanité. Henri Heine (Reisebilder)402

A citação de Heine realmente ilustra a proposta do poema de A Cachoeira de Paulo Afonso (1876), como dos demais poemas com a sintetização de seu projeto poético social. A categoria que fornecerá mais substanciação à estruturação do ser marginalizado, que é o negro, será o agradável espaço da natureza, onde C. A. resgatará a imagem do escravo, enriquecendo-a como ser humano. Para C. A., “o mundo adquiria, então, um significado misterioso, uma espécie de cumplicidade profunda com a alma do poeta, rompendo-se as barreiras entre ambos”.403 Dentre essa abordagem, faz-se mister destacar o espaço das florestas o qual introduz a narratividade do poema em questão e que vai, posteriormente, fundir o discurso abolicionista

402 Tradução de Lilia Silvestre Chaves: “Não sei realmente se terei merecido que um dia depositem um louro sobre meu ataúde. A poesia, qualquer que seja meu amor por ela, nunca foi para mim senão um meio consagrado para um fim santo. Nunca dei grande valor à glória de meus poemas e pouco me importa que sejam exaltados ou execrados. Mas será um gládio, que deveis pôr sobre minha tumba, pois fui um soldado na guerra de libertação da humanidade.” Cf. Castro Alves, Espumas Flutuantes e outros poemas, 3. ed. São Paulo: Ática, 2004, p. 241. 403 Cf. Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos, 11. ed., Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007, p. 595. 135 explorado no texto com as características do sujeito enunciador e construtor de sua identidade. Encetemos, então, a análise do texto que já inicia pela descrição das belezas da natureza as quais são vislumbradas no horário da tarde expondo a riqueza da selva brasileira com sua fauna e flora que compartilham o mesmo universo em harmonia. O primeiro poema, intitulado A tarde (Ver anexo 8), composto em sete oitavas com versos decassílabos, apresenta não apenas o cenário do enredo, mas também funciona como retrato de um ambiente puro que envolve pela sensorialidade auditiva, como os versos “E d’araponga o canto, que soluça,”, “Acorda os ecos nas sombrias grotas;”404 e pela percepção visual que aguça a curiosidade pelo desconhecido e o inusitado dos trópicos, como os versos “Hora meiga da Tarde! Como és bela”, “Quando surges do azul da zona ardente!”, [...], “E, – prendendo-te a trança a meia lua,”, “Te enrolas em neblinas seminua!...”.405 Ou seja, todos os elementos que, na natureza, estão inseridos comungam do mesmo sentimento e do mesmo desejo de vivenciar o que da vida há de mais pleno: “E a pedra... a flor... as selvas... os condores”, “Gaguejam... falam... cantam seus amores!”.406 Tudo aspira pela mesma naturalidade e singularidade da natureza; e essa postura personificada será o elemento mais significante que o eu poético manterá até o fim da narrativa lírica, articulando-lhe também a união do seu sentimentalismo com o ambiente acolhedor da natureza. Essa se torna tão protagonista e essencial no desenrolar da narrativa lírica quanto o enredo e as próprias personagens do poema. O poema realmente a referencia de forma que a mesma chega a ser exaltada, porém tal fato não retira do poema a intenção abolicionista, a qual o poeta atribuiu-lhe. Heloisa Toller Gomes expusera que “novas leituras têm sugerido novas dimensões – principalmente sociais – em poemas antes vistos predominantemente como flores de retórica, mesmo quando a sua intenção explícita é a causa abolicionista”.407 Affonso Romano de Sant’Anna, em sua leitura analítica acerca do poema em questão, não se afasta do posicionamento de Heloisa Toller Gomes, ao declarar que C. A. “politiza a lírica erótica e dá um sentido social àquilo que em outros autores não passaria de conflitos psicologizantes”.408 Isso significa dizer que o pensamento social não se

404 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 273. 405 Idem, ibidem. 406 Idem, ibidem. 407 Cf. Heloisa Toller Gomes, O negro e Romantismo Brasileiro, São Paulo: Atual, 1988, p. 67-8. 408 Cf. Affonso Romano de Sant’Anna, Canibalismo erótico na sociedade, apud Heloisa Toller Gomes, Op. Cit., p. 68. 136 extingue apenas pelo fato de a natureza ser mencionada como uma possível protagonista de uma história. A mesma não deixa de exercer papel de destaque na produção castroalvina, ou poderíamos dizer até nas produções românticas brasileiras. Fausto Cunha inclusive viu no poema em análise um “desdobramento plástico de uma idéia vagamente abolicionista [...] onde a natureza é a personagem central e triunfante”.409 Realmente, como já pontuado, não se retira dela a importância de sua presença na construção da história, contudo, não se pode atribuir-lhe, como Fausto Cunha, a essencialidade da discussão, pois a mensagem antiescravagista não desaparece do texto pela singular onipresença da natureza, pelo contrário, acredita-se que a mesma reforça a dramaticidade das cenas, servindo também como crítica pela sua omissão diante dos horrores praticados pelos escravocratas. Entretanto, C. A. construiu, além das abjetas imagens proporcionadas pela escravidão, uma comunhão entre o sentimentalismo do escravo e a natureza. Tal liame não serviria para que o negro não fosse visto como escravo, mas principalmente como ser humano. Por isso, a descrição dos espaços, da flora e da fauna brasileiras, reporta-se à construção de um quadro, no qual se delineiam cores, movimentos, formas e corpo de uma história. O eu poético ilustra as passagens e os ambientes associando-os à sua memória seletiva, referindo-se a um passado significativo e marcante, repleto de lembranças que retratam a inocência de um tempo que foi apresentado como casto e belo. Além disso, o poeta contribui também para erigir os ricos traços da nação brasileira, através do subjetivismo atribuido à natureza, tal proposta se exatifica nos versos que seguem:

[...] Eu amo-te, ó mimosa do infinito! Tu me lembras o tempo em que era infante. Inda adora-te o peito do precito No meio do martírio excruciante; E, se não te dá mais da infância o grito Que menino elevava-te arrogante, É que agora os martírios foram tantos, Que mesmo para o riso só tem prantos!...

Mas não m’esqueço nunca dos fraguedos Onde infante selvagem me guiavas, E os ninhos do sofrer que entre os silvedos Da embaíba nos ramos me apontavas; Nem, mais tarde, dos lânguidos segredos De amor do nenúfar que enamoravas...

409 Cf. Fausto Cunha, apud Heloísa Toller Gomes. Op. Cit., p. 68. 137

E as tranças mulheris da granadilha!... E os abraços fogosos da baunilha!... [...]410

A natureza de outrora resgata através da memória do eu poético não apenas uma beleza que se apresentava como encantadora e saborosa, que é também sugerida pela ênfase nas exclamações e nas reticências, como se observa nos versos “E as tranças mulheris da granadilha!...”, “E os abraços fogosos da baunilha!...”, no entanto, ela é vista como um cenário ilustrativo de algo bom que não volta mais: “Tu me lembras o tempo em que era infante.” O próprio poema esclarece que esse sentimento ficou apenas guardado nas memórias do passado, ao se opor passado e presente, vemos que a natureza não comporta mais o sentimento de acolhimento de antes: “É que agora os martírios foram tantos,”, “Que mesmo para o riso só tem prantos!...”. Com essas imagens, o eu poético antecipa informações que em poemas posteriores serão apresentadas vinculadas à natureza com abjeção e dor, será nesse momento que se adentrará no contexto da escravidão e cuja presença será sentida pelo homem-escravo, de maneira desumana e injusta. A apresentação desse espaço mantendo essa sintonia de ações servirá justamente para construir a questionadora antítese das próximas estrofes que recebem por título o nome de uma das protagonistas da história Maria (Ver anexo 9). Dela torna-se importante mencionar que é apresentada no poema como uma escrava morena e mucama, ou seja, características que põem em questão a sua provável identidade mestiça, talvez mulata fato que não chega a alterar a sua condição social de escrava. Entretanto, o fato mencionado sugere uma dura realidade da complexa sociedade escravagista exposta por um adágio de Antonil que reflete os diferentes graus de exploração da mulher negra: a mucama – escrava doméstica diferente da escrava negra da senzala. Essa observação ganhará mais importância quando chegarmos à exposição e à discussão do que com Maria ocorrera, tendo por testemunha a natureza. Voltando ao espaço da natureza, observaremos que essa imagem de suposta “liberdade” da escrava contrasta com o meio ambiente e a construção da mencionada oposição foi gerada pela tranquilidade do ambiente da natureza, presente no primeiro poema, contra o comportamento inquieto e assustado da escrava Maria, no poema em seguida e em cujos versos explora-se a sutileza desse comportamento: “Mimosa flor das escravas!”, “O bando das rolas bravas,”, “Voou

410 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 274. 138 com medo de ti!...”, “Levas hoje algum segredo...”, “Pois te voltaste com medo”, “Ao grito do bem-te-vi!”.411 Esses versos antecipam que algo negativo ocorrera com a escrava e o eu poético tentando suavizar a informação, que ora se apresenta implícita, indaga-lhe se são amores que a deixaram irrequieta: “Serão amores deveras?”, “Ah! Quem dessas primaveras”, “Pudesse a flor apanhar!”, “E contigo, ao tom d’aragem,”, “Sonhar na rede selvagem...”, “À sombra do azul palmar!”;412 e ainda na estrofe que se segue o eu poético sugere o sentimento de felicidade proporcionado pelo convívio com os seres da natureza: “Bem feliz quem na viola”, “Te ouvisse a moda espanhola”, “Da lua ao frouxo clarão...”, “Com a luz dos astros – por círios,”, “Por leito – um leito de lírios...”, “E por tenda – a solidão!”413 Essa proposta de comunhão com a beleza e a tranquilidade da natureza perfaz-se no poema que segue, intitulado O baile na flor (Ver anexo 10). Esse sugere a delicadeza do espaço através do imaginário que é construído no texto com a finalidade de explorar as riquezas da natureza com imagens de movimentos, cores, sons e tamanho. As palavras no poema estão dispostas em formato de uma flor, de maneira que o conteúdo e a forma fundem-se para atingir a intenção do texto, ou seja, apresentar a natureza como um espaço onde tudo e todos convivem em “harmonia”. A plasticidade a qual C. A. utiliza para compor o cenário é assaz subjetiva; interage- se a imensidão do rio com a delicadeza de bromélias, silfos e fadas – o grande harmoniza-se com o pequeno sem distinção – cardumes de vaga-lumes enriquecem a presença de uma simples flor quando eles ilustram-na com suas luzes ao dançarem ao seu redor, ao som da orquestra dos grilos. O pequeno nesse ambiente torna-se imenso e significativo, gerando assim um ritmo de movimentos e cores que vão pintando um quadro natural. A natureza em sua singeleza assume um contexto que envolve e cativa o expectador, sendo também sublime no que ela representa para a existência da vida. Porém, essa mesma imagem de culto à vida não se repete no próximo poema chamado Na margem (Ver anexo 11), uma vez que nele a escrava Maria inicia o processo de expressar sua insatisfação com a vida pela consciência de sua situação. Ela entra numa canoa lembrando os tempos de infância quando remava alegre pelo Rio São Francisco, o qual deságua na Cachoeira de Paulo Afonso, mas hoje lhe pede que o mesmo lhe retire sua mocidade triste: “Tu, que outrora levavas minha infância”, “– Pulando alegre no espumante dorso”, “Dos cães-marinhos a

411 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 274. 412 Idem, p. 275. 413 Idem, ibidem. 139 morder-te a proa, –”, “Leva-me agora a mocidade triste”, “Pelos ermos do rio ao longe... ao longe...”,414 quando, diante desse fato, os passarinhos que chilravam próximo às flores do rio indagam-lhe o motivo de ela chorar, aonde ela ia tão triste e se ela algum segredo tinha, se ela algum amor não tinha, um amor a quem se prender e também se consolar. Tais cenas prenunciam mais uma vez o que possivelmente ocorrera com a pobre escrava, todavia ainda não é chegado o momento de revelá-lo. E o próximo poema cujo título é A Queimada (Ver anexo 12) viria a sugerir uma possível resposta, pois nele se apresentam as cenas de uma queimada nas matas; seria como se o eu poético sugerisse que o ocorrido com Maria apresenta-se como uma desagradável ideia que assusta, a de violentada, pois a queimada representa uma forte violência contra a natureza. O fragmento ilustra a agonia e o desespero da natureza frente à queimada de suas matas como se travasse um pugilato entre ela e o incêndio, principalmente pelo fato de este ser animalizado ao ser comparado a um leão ruivo ensanguentado, nada ao ser redor é mais forte que ela: “e o cedro tomba...”, “Queimado..., retorcendo na hecatomba”, “Os braços para Deus.” Diante dela, rivais unem-se: “A corça e o tigre – náufragos do medo –”, “Vão trêmulos se unir!”:

O incêndio – leão ruivo, ensangüentado, A juba, a crina atira desgrenhado Aos pampeiros dos céus!... Travou-se o pugilato... e o cedro tomba... Queimado..., retorcendo na hecatomba Os braços para Deus.

A queimada! A queimada é uma fornalha! A irara – pula; o cascavel – chocalha... Raiva, espuma o tapir! ... E às vezes sobre o cume de um rochedo A corça e o tigre – náufragos do medo – Vão trêmulos se unir!

Então passa-se ali um drama augusto... N’último ramo do pau-d’arco adusto O jaguar se abrigou... Mas rubro é o céu... Recresce o fogo em mares... E após... tombam as selvas seculares... E tudo se acabou!... 415

Nesse contexto de intimidação diante de um ser que se apresenta superior e arrasador foi que se construiu a história da frágil escrava Maria, a qual é induzida por sutis metáforas a um

414 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 276. 415 Idem, p. 277-8. 140 tempo, como pontuado no poema Maria, e ora por fortes sugestões de dor, como observado no poema Na margem. Nesse ínterim, insere-se na narrativa a presença da personagem Lucas, através do poema que leva seu nome (Ver anexo 13), sendo apresentado não como um simples escravo, mas como um homem sertanejo, ou seja, sua identidade no texto não é de africano, mas de brasileiro de viço e vitalidade que surge em meio ao incêndio cantando tiranas de amor à Maria:

Quem fosse naquela hora, Sobre algum tronco lascado Sentar-se no descampado Da solitária ladeira, Veria descer da serra, Onde o incêndio vai sangrento, A passo tardio e lento, Um belo escravo da terra Cheio de viço e valor... Era o filho das florestas! Era o escravo lenhador! Que bela testa espaçosa, Que olhar franco e triunfante! E sob o chapéu de couro Que cabeleira abundante! De marchetada jibóia Pende-lhe a rasto o facão... E assim... erguendo o machado Na larga e robusta mão... Aquele vulto soberbo, – Vivamente alumiado –, Atravessa o descampado Como uma estátua de bronze Do incêndio ao fulvo clarão. [...]

E o sertanejo assim solta a tirana, Descendo lento p’ra a servil cabana... 416

Averiguamos no excerto que C. A. fornece a Lucas expressões vivas, características de sua raça, mas, além disso, faz-se mister ressaltarmos que o escravo, mesmo sendo referenciado como tal é um ser de singular beleza, provido de insólita alegria, pois ser escravo sempre representava ser alguém destituído de identidade e até da própria existência humana. E esse mesmo sentimento vivaz o leva até à senzala onde Maria residia, que ele ironicamente abranda o termo chamando-a de cabana e ilustrando-a como aprazível ambiente de moradia (Ver anexo 15): “Ei-la a casinha... tão pequena e bela!”, “Como é singela com seus brancos muros!”, “Que liso

416 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 278-9. 141 teto de sapé doirado!”, “Que ar engraçado! que perfumes puros!”.417 Porém, a mencionada beleza é abruptamente substituída pela inconveniente tristeza, logo no poema que segue chamado Diálogo dos Ecos (Ver anexo 16) e as reticências e as exclamações presentes nesse texto sugerem bem a angústia sentida por Lucas:

Como a casa está tão triste! Que aperto no coração!... Maria!... Ninguém responde! Maria, não ouves, não?... Aqui vejo uma saudade Nos braços de sua cruz... Que querem dizer tais prantos, Que rolam tantos, tantos, Sobre as faces da saudade Sobre os braços de Jesus?... Oh! quem me empresta uma luz?... Quem me arranca a ansiedade, Que no meu peito nasceu? Quem deste negro mistério Me rasga o sombrio véu?...

E o eco responde: – Eu!... [...] 418

Após Lucas deduzir que algo negativo acometeu-se à Maria, a voz personificada do eco responder-lhe-á que a escrava foi vítima de um braço robusto e feroz, ou seja, um eufemismo usado na época para estupro, impelindo-a assim ao sofrimento. Ante isso, Lucas em um uníssono brado ruge e proclama: “E rugiu: “Vingança! guerra!”, “Pela flor, que deixaste,”, [...] “Eu juro guerra de morte”, “A quem feriu desta sorte”, “O anjo puro da terra...”419 Em virtude dessa fala, Jorge Amado pronunciara que “Castro Alves amava, amiga, armar os negros para a vingança e a revolta”.420 O crítico, na verdade, quer evidenciar que o papel do escravo nunca foi de inércia. Ele então insiste pela presença de Maria, quando mais uma vez o eco sugere-lhe correr para então alcançá-la no rio que se arrojavam as vagas, e essas curvam-se timidamente diante do intrépido nadador que se lança nas águas para aproximar-se da canoa que conduzia Maria (Ver anexo 17), com rosto pálido e esquálido. Já no barco (Ver anexo 18), dar-se-á todo o diálogo e desfecho da narrativa, nele se perceberá o discurso dramático em proporcional ascensão, explorando assim sentimentos de tristeza, raiva, angústia, desilusão e, sobretudo, ira. Jorge Amado pronunciando-se

417 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 280. 418 Idem, p. 281-2. 419 Idem, p. 282-3. 420 Cf. Jorge Amado, Op. Cit., p. 163. 142 mais uma vez acerca do poema em questão comentara que “é qualquer coisa de terrivelmente triste o diálogo dos dois escravos”,421 e realmente o é, pois no primeiro momento do encontro ela se abraça a Lucas em prantos caindo-lhe nos braços e exclama:

“Maria, fala!” – “Que acordar sombrio”, Murmura a triste com um sorriso louco, “No Paraíso eu descansava um pouco... Tu me fizeste despertar na vida...

“Por que não me deixaste assim pendida Morrer co’a fronte oculta no teu peito? Lembrei-me os sonhos do materno leito Nesse momento divinal... Qu’importa?...

“Toda esperança para mim ‘stá morta... Sou flor manchada por cruel serpente... Só de encontro nas rochas pode a enchente Lavar-me as nódoas, m’esfolhando a vida.

“Deixa-me! Deixa-me a vagar perdida... Tu! – Parte! Volve para os lares teus. Nada perguntes... é um segredo horrível... Eu te amo ainda... mas agora – adeus!” 422

Percebemos pelo contexto que a angústia de Maria é oriunda de valor moral, ela se considera metaforicamente “flor manchada por cruel serpente...” e só a enchente pode lavar suas nódoas e esse será o motivo que desencadeará a trama: a perda da moral. Que perda maior poderia destruir uma mulher no século XIX? A perda da virgindade, com certeza, foi a maior. Schiller, em seu ensaio Acerca da Arte Trágica (1792), expôs que a relação com a moral pode ser tão receptiva pelo lado do prazer como também pode misturar-se “aos mais torturantes sofrimentos da sensibilidade”.423 Essa imagem servirá para provocar no interlocutor, e no próprio leitor, compaixão, a qual do ponto de vista realista já constitui um impacto social motivado por condição de universalidade que liga a escrava à condição de mulher violada duplamente como uma mulher e uma escrava, respectivamente. Schiller ante isso, mais uma vez, esclarece que “a compaixão ascende a um grau bem mais elevado quando tanto quem sofre como quem causa sofrimento dela se tornam objetos”.424 Junto à compaixão suscitada pela fala de Maria, surge a inquietação de Lucas que recusa as despedidas de Maria quando esta o diz “Adeus” (Ver anexo

421 Cf. Jorge Amado, Op. Cit., p. 162. 422 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 285-6. 423 Friedrich Schiller, Acerca da Arte Trágica (1792), In: ______. Op. Cit., p. 87. 424 Idem, p. 93. 143

19) e exige que lhe detalhe a história, porém ela se exime disso, então ele a ameaça em se matar, jogando-se no rio, caso a história não lhe seja revelada (Ver anexo 20):

“Maria! – diz-me tudo... Fala! Fala Enquanto eu posso ouvir... Criança, escuta! Não vês o rio?... é negro!... é um leito fundo... A correnteza, estrepitando, arrasta Uma palmeira, quanto mais um homem!... Pois bem! Do seio túrgido do abismo Há de romper a maldição do morto; Depois o meu cadáver negro, lívido, Irá seguindo a esteira da canoa Pedir-te inda que fales, desgraçada, Que ao morto digas o que ao vivo ocultas!...”

Era tremenda aquela dor selvagem, Que rebentava enfim, partindo os diques Na fúria desmedida!... Em meio às ondas Ia Lucas rolar... Um grito fraco, Uma trêmula mão susteve o escravo... E a pálida criança, desvairada, Aos pés caiu-lhe a desfazer-se em pranto.

Ela encostou-se ao peito do selvagem – Como a violeta, as faces escondendo Sob a chuva noturna dos cabelos –! Lenta e sombria após contou destarte A treda história desse tredo crime!... 425

Maria, então, narra-lhe, com extremo pesar, sua história, informando-lhe que se banhava nua na fonte (Ver anexo 21), quando de repente salta-lhe um homem branco, levando-a a correr exaustivamente pelos campos da floresta e essa, infelizmente, não se apresenta favorável ao seu desespero (Ver anexo 22): “Saltei as torrentes”, “Trepei dos rochedos”, “Aos cimos ardentes,”, “Nos ínvios caminhos,”, “Cobertos de espinhos,”, “Meus passos mesquinhos”, “Com sangue marquei!”, [...], “Debalde! A floresta”, “– Madrasta impiedosa –”, “A pobre chorosa”, “Não quis abrigar!”426 Então, já nos montes da floresta, no poema cujo título é No monte (Ver anexo 23), ela é vencida pelo cansaço, pela resistência, pela luta contra o seu próprio dono e finalmente expira de tortura, nesse momento, ela cobre sua face para concluir sua narrativa:

425 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 288. 426 Idem, p. 291. 144

“E agora está concluída Minha história desgraçada. Quando caí – era virgem! Quando ergui-me – desonrada!” 427

A fala lamentosa e cheia de vergonha da escrava põe em questão um critério, na época, visto importante para a sociedade branca: a virgindade. Sabemos bem que os negros como propriedade do senhor-de-engenho poderiam ser vítimas de sua nefasta brutalidade tendo-lhe sua honra desflorada, contudo é necessário ressaltar que Maria é morena e mucama, com longas tranças em seus cabelos, ou seja, uma mulata, uma moça que possivelmente foi criada vivenciando os costumes da Casa-Grande, não é de espantar que a mesma tenha assimilado uma relativa identidade que não estava desconexa de sua realidade. Por isso, refutamos de Édison Carneiro quando ele vem a criticar o poema de A Cachoeira de Paulo Afonso (1876) ao expor que:

O drama só seria um drama para os brancos, e assim mesmo para os brancos da cidade, já orientados por um sentimento mais humano nas relações com os seus semelhantes. O defloramento de escravas pelo senhor, ou pelo sinhô-moço, era mais do que comum. Era difícil que as negras bonitinhas chegassem à puberdade, sequer ainda virgens. Por outro lado, os negros em geral não tinham o preconceito do hímen – produto da submissão da sociedade à Igreja Católica – e é improvável que dois namorados negros, que se amassem como Castro Alves pretendia nos fazer acreditar, ainda estivessem esperando alguma coisa de sobrenatural para fazer o amor como a natureza manda. O tema era falso, mas ainda mais falsa era a maneira de explorá-lo.428

Embora o desfloramento da mulher negra fosse comum, ele não passava de uma violência moral e física, especialmente, por não ser levado em consideração o sentido de consentimento já que a escrava era vista como coisa. A leitura de Édison Carneiro configura-se como uma leitura da perspectiva do patriarcalismo onde a sexualização da mulher, especialmente, da mulher de cor, tornou-se “naturalizada” pelo hábito da violência e autoritarismo por parte do senhor-de-engenho. A ênfase que C. A., ao contrário, destaca sobre o corpo violado da mulher negra reitera o sentido de identidade daquela que situa como o ser ainda mais explorado da hierarquia social: uma mulher negra. As observações de Édison Carneiro realmente não se destinam a enxergar o negro com os olhos de C. A., primeiro porque o poeta humanizou um ser que a sociedade coisificou, mesmo que não houvesse no convívio entre os negros a preocupação ou mesmo o preconceito para com a

427 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p.292. 428 Cf. Édison Carneiro, Trajetória de Castro Alves, Rio de Janeiro: Editoria Vitória, 1947, p. 90. 145 imagem do hímen associada à honra, não significa dizer que o escravo não conservasse esses costumes consigo. Em segundo plano, verificamos a intenção do poeta em denunciar as injustiças do sistema escravagista e as relações sociais oriundas dele. No que se refere ao poema de A Cachoeira de Paulo Afonso (1876), a apresentação do estupro seguido de desvirginamento forçado de Maria, pelo filho do senhor-de-engenho provocaria em Lucas um sentimento de revolta ante o anúncio exterior que lhe causara torpor e ódio; logo o escravo vem a bradar em uníssonas palavras pela vingança, através do poema Sangue de africano, cujo título distingue claramente o “eu” do “outro” (Ver anexo 24):

Aqui sombrio, fero, delirante Lucas ergueu-se como o tigre bravo... Era a estátua terrível da vingança... O selvagem surgiu... sumiu-se o escravo.

Crispado o braço, no punhal segura! Do olhar sangrentos raios lhe ressaltam, Qual das janelas de um palácio em chamas As labaredas, irrompendo, saltam.

Com o gesto bravo, sacudido, fero, A destra ameaçando a imensidade... Era um bronze de Aquiles furioso Concentrando no punho a tempestade!

No peito arcado o coração sacode O sangue, que da raça não desmente, Sangue queimado pelo sol da Líbia, Que ora referve no Equador ardente.429

Observamos pelas quadras acima que o eu poético atribui o sentimento de vingança como único sentimento possível diante de tanto ultraje, aliás, texto e realidade encontram-se quando confrontamos a pretendida vingança de Lucas frente às inúmeras violências perpetradas pelos escravos. Tais argumentos sobre a violência serviria ainda mais para que a sociedade avaliasse o mal social sobre a escravidão. Como orientação para explicar o comportamento de Lucas que desconstrói a imagem de escravo, buscando nas origens de sua linhagem, no caso dele a Líbia, a força que redefiniria sua identidade, que agora se apresentava metaforicamente como de um negro guerreiro e destemido: “Era um bronze de Aquiles furioso”, “Concentrando no punho a tempestade!”. Tudo isso seria

429 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 293. 146 típico, como ilustra o poema, do sangue de sua raça, ou seja, “Sangue queimado pelo sol da Líbia,”, “Que ora referve no Equador ardente.” E diante do que ouve, ele pede a sua amada que cesse a história e denuncie-lhe o nome do criminoso (Ver anexo 25), porque “Se a justiça da terra te abandona,”, “Se a justiça do céu de ti se esquece,”, “A justiça do escravo está na força...”, “E quem tem um punhal nada carece!...”.430 A vingança, que para ele seria o mais nobre dos presentes à amada, deixa-o sedento, ansioso pelo amanhã, a fim de que ele possa alterar o fim do mencionado desfecho, mas Maria, na condição agora de conselheira, pois ela o lembra da condição social de ambos, suplica, através do poema Anjo (Ver anexo 26), que ele não manche suas mãos num crime; diante disso, em tom de revolta ele se desespera. Todo o instante o ritmo do poema é alternado pela fala mansa dela e a fala vingadora, audaz, instantânea da dele. Após ouvi-la, ele lhe questiona exclamativamente quem lhe falou em crime e replica-lhe dizendo que ela não sabe o que é crime, através do poema Desespero (Ver anexo 27): “Crime! Pois será crime se a jibóia”, “Morde silvando a planta, que a esmagara?”, “Pois será crime se o jaguar nos dentes”, “Quebra do índio a pérfida taquara?” 431 E após esses questionamentos, ele exclama-lhe que ela para falar em crime ao cativo é porque nada sabe sobre o que é ser escravo. Então, ele encadeia diversas definições conceituando o ser escravo de forma arrebatadora, chocante, abjeta e principalmente em caráter de revolta; então, ele a questiona quem lhe falara de crime, se foram os próprios criminosos, é porque eles zombam da sorte de sua amada, então ele a questiona se vale a pena morrer todos os dias debaixo do chicote, enquanto a fronte do assassino não vem a revelar-lhe um só remorso. Jorge Amado, mais uma vez, ao analisar o poema, em estudo, contribui criteriosamente ao afirmar que “esse diálogo entre os dois, ela tentando fazer com que ele desista da vingança, ele a lhe perguntar se foram os senhores que lhe ensinaram tantas idéias falsas, vale tanto pela beleza dos versos como pela consciência que o poeta empresta ao escravo”.432 Nesse trecho, reitera-se o sentido de identidade que antecede a experiência de Lucas antes do violento translado como escravo. No caso de Maria, a indefinição racial é mais aceita do lado escravo do que do branco. Enquanto para o homem branco, ela foi considerada objeto da volúpia masculina, para Lucas, viria a se tornar esposa, compartilhando assim da herança racial violada que representava Maria, a que é chamada de irmã, mãe e amante. A força que emanam das palavras de Lucas que visam a

430 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 293. 431 Idem, p. 294. 432 Cf. Jorge Amado, Op. Cit., p. 163. 147 conscientizar e principalmente gerar a compaixão no ouvinte não apenas são valiosas, como se faz necessário asseverarmos que a fala do escravo é um documento em favor dos direitos humanos:

“Não! Tudo isto é mentira! O que é verdade É que os infames tudo me roubaram... Esperança, trabalho, liberdade Entreguei-lhes em vão... não se fartaram. Quiseram mais... Fatal voracidade! Nos dentes meu amor espedaçaram... Maria! Última estrela de minh’alma! O que é feito de ti, virgem sem palma?

“Pomba – em teu ninho as serpes te morderam. Folha – rolaste no Paul sombrio. Palmeira – as ventanias te romperam. Corça – afogaram-te as caudais do rio. Pobre flor – no teu cálice beberam, Deixando-o depois triste e vazio... – E tu, irmã! e mãe! e amante minha! Queres que eu guarde a faca na bainha! [...]433

Os versos exploram a beleza de uma singular força, além de mostrarem a insatisfação do escravo diante de ter tão pouco, já que lhe retiraram esperança, trabalho e liberdade, e mesmo assim resolveram não apenas roubarem-lhe, mas impiedosamente conspurcarem-lhe o que mais precioso possuía, que seria a alegria de Maria. Percebemos que o amor que ele tinha por ela era algo puro, sublime como a própria beleza da natureza, pois ele a metaforiza de pomba, folha, palmeira, corça e flor. Diante disso, ele se revolta mais ainda em saber que toda essa pureza foi manchada, então, exige dela mais uma vez que lhe revele o nome do homem que para ele já era considerado um assassino. Ante as demasiadas insistências, ela resolve revelar-lhe antes de lhe contar outra dramática história: a do assassinato da mãe de Lucas (Ver anexo 28). Maria relembra-lhe o dia em que sua mãe arquejava deitada no chão de uma estreita senzala, à hora da morte, soluça pelo perdão do filho por tê-lo feito pagar pelos seus erros (Ver anexo 30):

Porque eu pequei... e do pecado escuro Tu foste o fruto cândido, inocente, – Borboleta, que sai do – lodo impuro... – Rosa, que sai de – pútrida semente!

Filho! Bem vês... fiz o maior dos crimes:

433 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 295-6. 148

– Criei um ente para a dor e a fome! Do teu berço escrevi nos brancos vimes O nome de bastardo – impuro nome. 434

O depoimento da mãe de Lucas, posto através da fala de Maria, revela duplamente a perspectiva cristã da qual o poeta não pode livrar-se. Nela, a mãe ignora o seu estupro e assume sozinha “o crime” da concepção de um filho bastardo, vítima, então, de uma dupla violência. A dramaticidade da cena explora tamanha compaixão, quando a criança sussurrando em seu ouvido perdoa-lhe e ela agradece metaforicamente caracterizando o perdão de esmola, ou seja, o último benefício a ela concedido. Após o perdão do filho (Ver anexo 32), a mãe penitente revela-lhe que estava morrendo por ter sido vítima da raiva e do ciúme de sua senhora, a esposa do senhor-de- engenho, que penalizou a escrava pelas infidelidades de seu marido, e já naquele momento Lucas sugere vingança à mãe, porém ela pede-lhe que perdoe o crime que nela foi cometido, visto que ele é filho do marido da mulher que a matou, consequentemente também irmão do filho branco do senhor-de-engenho. Sua mãe pede-lhe que ele não a vingue e ele lhe jura, fazendo-a, com isso, agradecer novamente pelo pedido, quando então a criança cai em prantos abraçando o corpo frio e morto de sua mãe. Lucas dialoga novamente com sua amada questionando-lhe o que tem o perdão do passado com o crime do presente; ela volta a dizer-lhe que a vingança nada lhe dará em troca; daí lhe é revelado que seu agressor é o seu próprio meio-irmão, filho branco do senhor- de-engenho. Em virtude disso, Lucas revolta-se por não poder mais levar adiante o seu desejo de vingança; ele se torna alienadamente impotente diante dos fatos que assolam suas gerações. Tais imagens serviriam outrossim para endossar a opinião que ora se apresenta nesse trabalho em oposição às observações de Édison Carneiro, quando o mesmo expõe que:

Todo o drama de sedução – e a promessa feita por Lucas à mãe agonizante – está contido na longa e improvável reposta de Maria, quando o namorado, compreendendo afinal a situação, lhe pergunta quem fora o autor da sua densonra. A resposta de Maria – uma resposta cheia de evasivas para prolongar o poema – não poderia, logicamente, resultar no desespero de Lucas, nem esse desespero poderia se resolver no simples desejo de morrer junto com a amada, a não ser num poema escrito por nada, sem o impulso imperioso da inspiração, - um poema que parece impossível em Castro Alves.435

Discordando do exposto por Édison Carneiro, a resposta da negra poderia, sem restrições, gerar o desespero de Lucas. Ambos são vítimas da escravidão e por isso não se enxergava outra

434 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 299. 435 Cf. Édison Carneiro, Op. Cit., p. 90. 149 possibilidade de fuga do sentimento de dor senão a morte. Continuarem vivos seria motivos suficientes para que a negra fosse sucessivamente violentada pelo seu dono, e consequentemente gerar-se-iam mais raiva, ódio e desengano com a própria vida, na relação entre os dois. A racionalização da opinião de Édison Carneiro distancia-se da reflexiva carga sentimental e subjetiva que C. A., e até mesmo a própria corrente romântica em si intencionaram atribuir às personagens por meio de seus sofrimentos. O ritmo dramático do poema é alterado novamente, quando o eu poético refere-se ao entardecer (Ver anexo 32), sem deixar de associá-lo à tristeza do momento que se vivenciou, quando o eu poético transfere para o canto dos pássaros o mesmo lamento: “A tarde morria! Nas águas barrentas”, “As sombras das margens deitavam-se longas;”, “Na esguia atalaia das árvores secas”, “Ouvia-se um triste chorar de arapongas”.436 Toda a natureza começa a interagir com o momento dos dois escravos: “E o tímido bando pedindo outras praias”, “Passava gritando por sobre a canoa!...”.437 A tristeza paira novamente sobre eles, a canoa (Ver anexo 34) que os leva vai descendo o caudaloso rio São Francisco (Ver anexo 35), expandindo cada vez mais o suspense que se sucede, gera-se assim uma forte antítese entre a onipotência vibrante do rio que estava levando os amantes ao precipício da Cachoeira de Paulo Afonso (Ver anexo 36) e o sentimento de medo e assombro observado nos pequenos detalhes dos seres que compõem a imensidão do cenário da natureza. Impossibilitados de obterem justiça real ou moral para os violentos eventos desencadeados sobre a mãe e a amada respectivamente Lucas dirige-se para o conforto da morte, último alento possível de filhos bastardos e, como suas mães, escravizados e violentados fisicamente, psicologicamente e moralmente:

Mas súbito da noite no arrepio Um mugido soturno rompe as trevas... Titubantes – no álveo do rio – Tremem as lapas dos titães coevas!... Que grito é este sepulcral, bravio, Que espanta as sombras ululantes, sevas?... É o brado atroador da catadupa Do penhasco batendo na garupa!... [...]

A cachoeira! Paulo Afonso! O abismo! A briga colossal dos elementos! As garras do Centauro em paroxismo Raspando os flancos dos parcéis sangrentos.

436 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 302. 437 Idem, p. 303. 150

Relutantes na dor do cataclismo Os braços do gigante suarentos Agüentando a ranger (espanto! assombro!) O rio inteiro, que lhe cai do ombro. [...]438

No excerto, os sentimentos gerados, a partir da primeira estrofe, sugerem o medo frente à aproximação da cachoeira; as imagens que lhe são atribuídas geram todo paroxismo pretendido pelo eu poético. A grandiosidade das metáforas, como comparar a cachoeira ao abismo, servirá mais uma vez para gerar impotência diante do destemido. O tempo então passa, Maria adormece e Lucas a acorda quando mais próximos estão de encontrar-se com a cachoeira, cena retratada no poema Despertar para morrer (Ver anexo 38). O escravo, através do poema Loucura Divina (Ver anexo 39), então lhe sugere preparar-se para o “himeneu”, a grande festa de casamento dos dois que será celebrada na caída, levando-o assim a afirmar que estão mais próximos da liberdade, porque a morte desposá-los-a. Os escravos chegam então ao desfecho da narrativa, constatado no poema À beira do abismo do infinito (Ver anexo 40), com a sugestão da liberdade alcançada com a morte de ambos na cachoeira: solução estética da vitória, quando então, os amantes tornam-se inseparáveis. O drama chega ao fim, procurando livrar-se do sentimento de compaixão fornecendo-lhe assim uma solução para a dor que aniquilava o pensamento e o sentimento dos dois: a liberdade com a morte. O poema corresponderia a um “lancinante grito de protesto, [...] um canto de esperança, um canto de futuro”439 contra o sistema da escravidão. inclusive chegou a comentar que “é na peça inicial d’A Cachoeira de Paulo Afonso, onde ele, já na posse da imaginosa língua da força de sentimento e visão grandiosa que lhe caracterizam o gênio”.440 Ainda registrando a inquestionável originalidade de C. A., este crítico assevera:

Castro Alves, abolicionista desde 1865, agiu a princípio contra o seu meio, antecipando-se de quase três lustros à organização da propaganda libertadora, criando um espírito público e um sentimento antiescravista, formando uma consciência nacional acessível à injustiça da escravidão, ou, pelo menos, deslocando da periferia para o centro da nossa consciência a monstruosa iniqüidade do fato. Esta não é a única, mas é uma das suas glórias mais legítimas e imperecíveis.441

438 Cf. Castro Alves, Op. Cit., p. 306-8. 439 Cf. Jorge Amado, Op. Cit., p. 164. 440 Cf. Xavier Marques, Vida de Castro Alves, 3. ed., Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 30. 441 Idem, p. 135. 151

A asserção de Xavier Marques comunga da opinião de muitos outros críticos que analisaram a produção de C. A., como já pontuados nesse presente trabalho, e que enveredaram pelo viés de nacionalidade que detinha o poeta. Ele, como um homem preocupado em registrar não apenas os fatos de seu tempo, mas também os traços vivos da discussão sobre as incongruências e as discrepâncias da nação brasileira, contribuiu para que o Brasil hoje seja uma nação que luta em prol da dignidade humana e dos direitos do cidadão. Aí reside a originalidade deste que foi construtor do nacionalismo brasileiro.

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5 CONCLUSÃO

A contribuição do poeta Castro Alves ao Romantismo Brasileiro é avaliada em função do caráter inovador caracterizado por sua poesia abolicionista. Como constatamos através de nosso estudo, o perfil estrutural dessa poesia dá-se através do inter-relacionamento entre os gêneros: lírico, trágico e dramático. A adesão do poeta a esse modelo estético, cuja aplicação incide sobre a formulação de uma crítica ao sistema escravagista, foi baseada nos pressupostos estéticos adotados pelo poeta francês Victor Hugo. Tal modelo visava a suprir a defasagem do modelo Indianista especialmente em prover respostas críticas adequadas que representassem o sentimento de indignação frente ao problema da escravidão. Assim, partindo desses princípios, nosso presente estudo buscou entender como os signos liberdade x opressão e vida x morte foram contextualizados nas diferentes imagens verbais utilizadas nos poemas, principalmente pelo fato de o poeta estruturar uma ideia de subjetividade simbólica do negro politicamente negada na época da escravidão. Castro Alves mesmo não tendo sido o primeiro poeta da Literatura Brasileira a abordar a temática da escravidão e da sua erradicação através da poesia social, visto que Luis Gama o antecedeu, o seu mérito deve-se à sua abordagem realista e por vislumbrar ideologicamente um novo modelo simbólico de nação brasileira como democrática e republicana. Ainda do ponto de vista estético, sua poesia distingue-se pela fusão entre os gêneros lírico, dramático e trágico, fornecendo à discussão sobre a abolição da escravatura maior complexidade, uma vez que os três gêneros exploram, através da leitura, a compaixão do leitor pelo sofrimento do negro escravizado e a abjeção e torpor pelos absurdos oriundos do sistema escravocrata. Outrossim, a ênfase nessas categorias concedeu à produção literária castroalvina o caráter de moderna e a Castro Alves a tão justa e valiosa perífrase de poeta dos escravos. Podemos, portanto, afirmar que toda a conjuntura estética e política do movimento do Romantismo serviu para contribuir simbolicamente na construção do caráter de identidade nacional. A tentativa de erigir símbolos que representassem a nação fortaleceu o ideal da mesma e a produção castroalvina mesmo sendo a última do veio romântico, foi a que gerou maior discussão no meio literário, pois a ideia de nação livre contrastava com a situação da escravidão discutida pelo poeta.

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Dos recursos imagísticos utilizados pelo poeta, a natureza é a mais destacada. Os poemas dos livros A Cachoeira de Paulo Afonso (1876) e Os escravos (1883) posicionam não apenas como produções estéticas, mas como estudos simbólicos sobre vertentes sociopolíticas e ideológicas de uma época. Os respectivos livros abrem, portanto, espaço à discussão da problemática pretendida no plano estético dos poemas. Alguns estudos críticos, evidenciados no primeiro capítulo, referenciam a importância da poesia abolicionista pelo seu teor crítico frente aos abusos da mencionada instituição social, além de resgatar a identidade do negro como ser humano. Podemos constatar ainda que a crítica acerca de sua produção poética tem se permanecido unânime ao atribuir-lhe originalidade e perspicácia na discussão da abolição da escravidão, no debate da contribuição das obras do poeta para o fortalecimento do nacionalismo brasileiro e na argumentação acerca da liberdade humana. Seu estro, mesmo recebendo uma amálgama de influências de autores europeus, sobretudo de Victor Hugo, acrescenta traços específicos de originalidade. Sua produção literária funde-se então entre os gêneros e as ideias libertárias. Os poemas lírico-amorosos, os poemas de exaltação à natureza, as peças dramáticas, sua poesia social em si, abordam a temática da liberdade como intrínseca à necessidade humana e aos direitos do homem na sociedade e, principalmente, servem para estruturar o nacionalismo, fortificando assim o patriotismo. Em síntese, reconhecemos o quão comprometido foi Castro Alves com a causa abolicionista, como debate essencial sobre a identidade nacional em sua época. Daí a escritura de A Cachoeira de Paulo Afonso (1876) e Os escravos (1883) ainda servir a um debate sobre a humanização do negro-escravo, não deixando de ser evidenciada também pelo sentimentalismo, pelo lirismo e pela dramaticidade das cenas de sofrimento. Indubitavelmente, os poemas se contrapõem ao atraso moral e social da época. A reivindicação pela evolução e renovação do pensamento humano atinge não apenas uma pluralidade de sujeitos brasileiros, mas o sistema sociopolítico e econômico vigente no século XIX, com a finalidade de impor uma imagem positiva ao futuro da nação. Com essa visão crítica, defendemos a presente proposta em nosso trabalho e almejamos, com ela, termos contribuído para os futuros estudos sobre o Romantismo, na Literatura Brasileira, e principalmente para o avanço na discussão sobre identidade nacional vinculada à poética de Castro Alves e veiculada pela mesma como um debate sempre em aberto.

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161

A N E X O S

162

Anexo 1: A canção do africano

(1)Lá na úmida senzala, Sentado na estreita sala, Junto ao braseiro, no chão, Entoa o escravo o seu canto, E ao cantar correm-lhe em pranto Saudades do seu torrão...

(2)De um lado, uma negra escrava Os olhos no filho crava, Que tem no colo a embalar... E à meia voz lá responde Ao canto, e o filhinho esconde, Talvez p’ra não o escutar!

(3)“Minha terra é lá bem longe, Das bandas de onde o sol vem; Esta terra é mais bonita, Mas à outra eu quero bem!

(4)“O sol faz lá tudo em fogo, Faz em brasa toda a areia; Ninguém sabe como é belo Ver de tarde a papa-ceia!

(5)“Aquelas terras tão grandes, Tão compridas como o mar, Com suas poucas palmeiras Dão vontade de pensar...

(6)“Lá todos vivem felizes, Todos dançam no terreiro; A gente lá não se vende Como aqui, só por dinheiro”.

(7)O escravo calou a fala, Porque na úmida sala O fogo estava a apagar; E a escrava acabou seu canto, Pra não acordar com o pranto O seu filhinho a sonhar!

163

(8)O escravo então foi deitar-se Pois tinha de levantar-se Bem antes do sol nascer, E se tardasse, coitado, Teria de ser surrado, Pois bastava escravo ser.

(9)E a cativa desgraçada Deita seu filho, calada, E põe-se triste a beijá-lo, Talvez temendo que o dono Não viesse, em meio do sono, De seus braços arrancá-lo! 442

Recife, 1863.

Anexo 2: Mater Dolorosa

Deixa-me murmurar à tua alma um adeus eterno, em vez de lágrimas chorar sangue, chorar o sangue de meu coração sobre meu filho; porque tu deves morrer, meu filho, tu deves morrer. Nathaniel Lee

(1)Meu filho, dorme, dorme o sono eterno No berço imenso, que se chama – o céu. Pede às estrelas um olhar materno, Um seio quente, como o seio meu.

(2)Ai! borboleta na gentil crisálida, As asas de ouro vais além abrir. Ai! rosa branca no matiz tão pálida, Longe, tão longe vais de mim florir.

(3)Meu filho, dorme... Como ruge o norte Nas folhas secas do sombrio chão!... Folha dest’alma como dar-te à sorte?... É tredo, horrível o feral tufão!

(4)Não me maldigas... Num amor sem termo Bebi a força de matar-te... a mim... Viva eu cativa a soluçar num ermo... Filho, sê livre... Sou feliz assim...

442 Cf. Castro Alves, Os Escravos (1883), In: ______. Castro Alves: Obra Completa. Organização e Estudo Crítico de Eugênio Gomes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1966, p. 201-2. 164

(5)– Ave – te espera da lufada o açoite, – Estrela – guia-te uma luz falaz. – Aurora minha – só te aguarda a noite, – Pobre inocente – já maldito estás.

(6)Deus me perdoa... me perdoa já. Perdão, meu filho... se matar-te é crime... A fera enchente quebraria o vime... Velem-te os anjos e te cuidem lá.

(7)Meu filho dorme... dorme o sono eterno No berço imenso, que se chama o céu. Pede às estrelas um olhar materno, Um seio quente, como o seio meu. 443

Recife, 7 de junho de 1865.

Anexo 3: A cruz da estrada

Invideo quia quiescunt. Luthero: Worms.

Tu que passas, descobre-te! Ali dorme O forte que morreu. Alexandre Herculano (Tradução)

(1)Caminheiro que passas pela estrada, Seguindo pelo rumo do sertão, Quando vires a cruz abandonada, Deixa-a em paz dormir na solidão.

(2)Que vale o ramo do alecrim cheiroso Que lhe atiras nos braços ao passar? Vais espantar o bando buliçoso Das borboletas, que lá vão pousar.

(3)É de um escravo humilde sepultura, Foi-lhe a vida o velar de insônia atroz. Deixa-o dormir no leito de verdura, Que o Senhor dentre as selvas lhe compôs.

443 Cf. Castro Alves, Os Escravos (1883), In: ______. Castro Alves: Obra Completa. Organização e Estudo Crítico de Eugênio Gomes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1966, p. 202-3. 165

(4)Não precisa de ti. O gaturamo Geme, por ele, à tarde, no sertão. E a juriti, do taquaral no ramo, Povoa, soluçando, a solidão.

(5)Dentre os braços da cruz, a parasita, Num abraço de flores, se prendeu. Chora orvalhos a grama, que palpita; Lhe acende o vaga-lume o facho seu.

(6)Quando, à noite, o silêncio habita as matas, A sepultura fala a sós com Deus. Prende-se a voz na boca das cascatas, E as asas de ouro aos astros lá nos céus.

(7)Caminheiro! do escravo desgraçado O sono agora mesmo começou! Não lhe toques no leito de noivado, Há pouco a liberdade o desposou. 444

Recife, 22 de junho de 1865

Anexo 4: A criança

Que veux-tu, fleur, beau fruit, ou l’oiseau merveilleux? Ami, dit l’enfant grec, dit l’enfant aux yeux bleus, Je veux de la poudre et des balles. 445 Victor Hugo (Les Orientales)

(1)Que tens criança? O areal da estrada Luzente a cintilar Parece a folha ardente de uma espada. Tine o sol nas savanas. Morno é o vento. À sombra do palmar O lavrador se inclina sonolento.

(2)É triste ver uma alvorada em sombras, Uma ave sem cantar, O veado estendido nas alfombras. Mocidade, és a aurora da existência, Quero ver-te brilhar. Canta, criança, és a ave da inocência.

444 Cf. Castro Alves, Os Escravos (1883), In: ______. Castro Alves: Obra Completa. Organização e Estudo Crítico de Eugênio Gomes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1966, p. 216-7. 445 Tradução de Lilia Silvestre Chaves: “Que queres, flor, belo fruto, ou o pássaro maravilhoso?/ Amigo, diz a criança grega, diz a criança de olhos azuis,/ Eu quero pólvora e balas”. In: Castro Alves, Op. Cit., p. 204. 166

(3)Tu choras porque um ramo de baunilha Não pudeste colher, Ou pela flor gentil da granadilha? Dou-te, um ninho, uma flor, dou-te uma palma, Para em teus lábios ver O riso – a estrela no horizonte da alma.

(4)Não. Perdeste tua mãe ao fero açoite Dos seus algozes vis. E vagas tonto a tatear à noite. Choras antes de rir... pobre criança!... Que queres, infeliz?.... – Amigo, eu quero o ferro da vingança.446

Recife, 30 de junho de 1865.

Anexo 5: Bandido negro

Corre, corre, sangue do cativo Cai, cai, orvalho de sangue Germina, cresce, colheita vingadora A ti, segador a ti. Está madura. Aguça tua fouce, aguça, aguça tua fouce. (E. Sue, Canto dos filhos de Agar.)

(1)Trema a terra de susto aterrada... Minha égua veloz, desgrenhada, Negra, escura nas lapas voou. Trema o céu... ó ruína! ó desgraça! Porque o negro bandido é quem passa. Porque o negro bandido bradou:

(2)Cai, orvalho de sangue do escravo, Cai, orvalho, na face do algoz. Cresce, cresce, seara vermelha, Cresce, cresce, vingança feroz.

(3)Dorme o raio na negra tormenta... Somos negros... o raio fermenta Nesses peitos cobertos de horror. Lança o grito da livre coorte, Lança, ó vento, pampeiro de morte, Este guante de ferro ao senhor.

446 Cf. Castro Alves, Os Escravos (1883), In: ______. Op. Cit., p. 215-6. 167

(4)Cai, orvalho de sangue do escravo, Cai, orvalho, na face do algoz. Cresce, cresce, seara vermelha, Cresce, cresce, vingança feroz.

(5)Eia! ó raça que nunca te assombras! P’ra o guerreiro uma tenda de sombras Arma a noite na vasta amplidão. Sus! pulula dos quatro horizontes, Sai da vasta cratera dos montes, Donde salta o condor, o vulcão.

(6)Cai, orvalho de sangue do escravo, Cai, orvalho, na face do algoz. Cresce, cresce, seara vermelha, Cresce, cresce, vingança feroz.

(7)E o senhor que na festa descanta Pare o braço que a taça alevanta, Coroada de flores azuis. E murmure, julgando-se em sonhos: “Que demônios são estes medonhos, Que lá passam famintos e nus?”

(8)Cai, orvalho de sangue do escravo, Cai, orvalho, na face do algoz. Cresce, cresce, seara vermelha, Cresce, cresce, vingança feroz.

(9)Somos nós, meu senhor, mas não tremas, Nós quebramos as nossas algemas P’ra pedir-te as esposas ou mães. Este é o filho do ancião que mataste. Este – irmão da mulher que manchaste... Oh! não tremas, senhor, são teus cães.

(10)Cai, orvalho de sangue do escravo, Cai, orvalho, na face do algoz. Cresce, cresce, seara vermelha, Cresce, cresce, vingança feroz.

(11)São teus cães, que têm frio e têm fome, Que há dez séc’los a sede consome... Quero um vasto banquete feroz... Venha o manto que os ombros nos cubra. Para vós fez-se a púrpura rubra, Fez-se o manto de sangue p’ra nós. 168

(12)Cai, orvalho de sangue do escravo, Cai, orvalho, na face do algoz. Cresce, cresce, seara vermelha, Cresce, cresce, vingança feroz.

(13)Meus leões africanos, alerta! Vela a noite... a campina é deserta. Quando a lua esconder seu clarão Seja o bramo da vida arrancado No banquete da morte lançado Junto ao corvo, seu lúgubre irmão.

(14)Cai, orvalho de sangue do escravo, Cai, orvalho, na face do algoz. Cresce, cresce, seara vermelha, Cresce, cresce, vingança feroz.

Anexo 6: Tragédia no lar

(1) Na senzala, úmida, estreita, Brilha a chama da candeia, No sapé se esgueira o vento. E a luz da fogueira ateia.

(2) Junto ao fogo, uma africana, Sentada, o filho embalando, Vai lentamente cantando Uma tirana indolente, Repassada de aflição. E o menino ri contente... Mas treme e grita gelado, Se nas palhas do telhado Ruge o vento do sertão.

(3) Se o canto para um momento, Chora a criança imprudente... Mas continua a cantiga... E ri sem ver o tormento Daquele amargo cantar. Ai! triste, que enxugas rindo Os prantos que vão caindo Do fundo, materno olhar, E nas mãozinhas brilhantes Agitas como diamantes Os prantos do seu pensar...

169

(4) E a voz como um soluço lacerante Continua a cantar:

(5) “Eu sou como a garça triste “Que mora à beira do rio, “As orvalhadas da noite “Me fazem tremer de frio.

(6) “Me fazem tremer de frio “Como os juncos da lagoa; “Feliz da araponga errante “Que é livre, que livre voa.

(7) “Que é livre, que livre voa “Para as bandas do seu ninho, “E nas braúnas à tarde “Canta longe do caminho.

(8) “Canta longe do caminho. “Por onde o vaqueiro trilha, “Se quer descansar as asas “Tem a palmeira, a baunilha.

(9) “Tem a palmeira, a baunilha, “Tem o brejo, a lavadeira, “Tem as campinas, as flores, “Tem a relva, a trepadeira,

(10)“Tem a relva, a trepadeira, “Todas têm os seus amores, “Eu não tenho mãe nem filhos, “Nem irmão, nem lar, nem flores”.

(11) A cantiga cessou... Vinha da estrada A trote largo, linda cavalhada De estranho viajor, Na porta da fazenda eles paravam, Das mulas boleadas apeavam E batiam na porta do senhor.

170

(12) Figuras pelo sol tisnadas, lúbricas, Sorrisos sensuais, sinistro olhar, Os bigodes retorcidos, O cigarro a fumegar, O rebenque prateado Do pulso dependurado, Largas chilenas luzidas, Que vão tinindo no chão, E as garruchas embebidas No bordado cinturão.

(13) A porta da fazenda foi aberta; Entraram no salão.

(14) Por que tremes mulher? A noite é calma, Um bulício remoto agita a palma Do vasto coqueiral. Tem pérolas o rio, a noite lumes, A mata sombras, o sertão perfumes, Murmúrio o bananal.

(15) Por que tremes, mulher? Que estranho crime, Que remorso cruel assim te oprime E te curva a cerviz? O que nas dobras do vestido ocultas? É um roubo talvez que aí sepulta? É seu filho... Infeliz!...

(16) Ser mãe é um crime, ter um filho – roubo! Amá-lo uma loucura! Alma de lodo, Para ti – não há luz. Tens a noite no corpo, a noite na alma, Pedra que a humanidade pisa calma, – Cristo que verga à cruz!

(17) Na hipérbole do ousado cataclisma Um dia Deus morreu... fuzila um prisma Do Calvário ao Tabor! Viu-se então de Palmira os pétreos ossos, De Babel o cadáver de destroços Mais lívidos de horror.

171

(18) Era o relampejar da liberdade Nas nuvens do chorar da humanidade, Ou sarça do Sinai, – Relâmpagos que ferem de desmaios... Revoluções, vós deles sois os raios, Escravos, esperai!......

(19) Leitor, se não tens desprezo De vir descer às senzalas, Trocar tapetes e salas Por um alcouce cruel, Vem comigo, mas... cuidado... Que o teu vestido bordado Não fique no chão manchado, No chão do imundo bordel.

(20) Não venhas tu que achas triste Às vezes a própria festa. Tu, grande, que nunca ouviste Senão gemidos da orquestra Por que despertar tu’alma, Em sedas adormecida, Esta excrescência da vida Que ocultas com tanto esmero? E o coração – tredo lodo, Fezes d’ânfora doirada Negra serpe, que enraivada, Morde a cauda, morde o dorso E sangra às vezes piedade, E sangra às vezes remorso?...

(21) Não venham esses que negam A esmola ao leproso, ao pobre. A luva branca do nobre Oh! senhores, não mancheis... Os pés lá pisam em lama, Porém as frontes são puras Mas vós nas faces impuras Tendes lodo, e pus nos pés.

(22) Porém vós, que no lixo do oceano A pérola de luz ides buscar, Mergulhadores deste pego insano Da sociedade, deste tredo mar.

172

(23) Vinde ver como rasgam-se as entranhas De uma raça de novos Prometeus, Ai! vamos ver guilhotinadas almas Da senzala nos vivos mausoléus.

(24) – Escrava, dá-me teu filho! Senhores, ide-lo ver: É forte, de uma raça bem provada, Havemos tudo fazer.

(25) Assim dizia o fazendeiro, rindo, E agitava o chicote... A mãe que ouvia Imóvel, pasma, doida, sem razão! À Virgem Santa pedia Com prantos por oração; E os olhos no ar erguia Que a voz não podia, não.

(26) – Dá-me teu filho! repetiu fremente O senhor, de sobr’olho carregado. – Impossível!... – Que dizes, miserável?! – Perdão, senhor! perdão! meu filho dorme... Inda há pouco o embalei, pobre inocente, Que nem sequer pressente Que ides... – Sim, que o vou vender! – Vender?!... Vender meu filho?!

(27) Senhor, por piedade, não... Vós sois bom... antes do peito Me arranqueis o coração! Por piedade, matai-me! Oh! É impossível Que me roubem da vida o único bem! Apenas sabe rir... é tão pequeno! Inda não sabe me chamar?... Também Senhor, vós tendes filhos... quem não tem? Se alguém quisesse os vender Havíeis muito chorar Havíeis muito gemer, Diríeis a rir – Perdão?! Deixai meu filho... arrancai-me Antes a alma e o coração!

(28) – Cala-te miserável! Meus senhores, O escravo podeis ver... 173

(29) E a mãe em pranto aos pés dos mercadores Atirou-se a gemer.

(30)– Senhores! basta a desgraça De não ter pátria nem lar, De ter honra e ser vendida De ter alma e nunca amar!

(31)Deixai à noite que chora Que espere ao menos a aurora, Ao ramo seco uma flor; Deixai o pássaro ao ninho, Deixai à mãe o filhinho, Deixai à desgraça o amor.

(32)Meu filho é-me a sombra amiga Neste deserto cruel!... Flor de inocência e candura. Favo de amor e de mel!

(33)Seu riso é minha alvorada, Sua lágrima doirada Minha estrela, minha luz! É da vida o único brilho... Meu filho! é mais... é meu filho... Deixai-mo em nome da Cruz!...

(34) Porém nada comove homens de pedra, Sepulcros onde é morto o coração. A criança do berço ei-los arrancam Que os bracinhos estende e chora em vão!

(35) Mudou-se a cena. Já vistes Bramir na mata o jaguar, E no furor desmedido Saltar, raivando atrevido. O ramo, o tronco a estalar, Morder os cães que o morderam... De vítima feita algoz, Em sangue e horror envolvido Terrível, bravo, feroz?

(36) Assim a escrava da criança ao grito Destemida saltou, E a tuba dos senhores aterrada Ante ela recuou. 174

(37) – Nem mais um passo, cobardes! Nem mais um passo! ladrões! Se os outros roubam bolsas, Vós roubais os corações!...

(38) Entram três negros possantes, Brilham punhais traiçoeiros... Rolam por terra os primeiros Da morte nas contorções ......

(39) Um momento depois a cavalgada Levava a trote largo pela estrada A criança a chorar. Na fazenda o azorrague então se ouvia E aos golpes uma doida respondia Com frio gargalhar!...447

Recife, julho de 1865

Anexo 7: O Navio Negreiro (Tragédia no Mar)

1.a

(1)‘Stamos em pleno mar... Doudo no espaço Brinca o luar – doirada borboleta – E as vagas após ele correm... cansam Como turba de infantes inquieta.

(2)‘Stamos em pleno mar... Do firmamento Os astros saltam como espumas de ouro... O mar em troca acende as ardentias – Constelações do líquido tesouro...

(3)‘Stamos em pleno mar... Dois infinitos Ali se estreitam num abraço insano Azuis, dourados, plácidos, sublimes... Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?...

447 Cf. Castro Alves, Os Escravos (1883), In: Castro Alves, Obra Completa, Rio de Janeiro: Aguilar, 1966, p. 207- 13. 175

(4)‘Stamos em pleno mar... Abrindo as velas Ao quente arfar das virações marinhas, Veleiro brigue corre à flor dos mares Como roçam na vaga as andorinhas...

(5)Donde vem?... Onde vai?... Das naus errantes Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço? Neste Saara os corcéis o pó levantavam, Galopam, voam, mas não deixam traço.

(6)Bem feliz quem ali pode nest’hora Sentir deste painel a majestade!... Embaixo – o mar... em cima – o firmamento... E no mar e no céu – a imensidade!

(7)Oh! Que doce harmonia traz-me a brisa! Que música suave ao longe soa! Meu Deus! Como é sublime um canto ardente Pelas vagas sem fim boiando à toa!

(8)Homens do mar! Ó rudes marinheiros Tostados pelo sol dos quatro mundos! Crianças que a procela acalentara No berço destes pélagos profundos!

(9)Esperai! Esperai! deixai que eu beba Esta selvagem, livre poesia... Orquestra – é o mar que ruge pela proa, E o vento que nas cordas assobia...

(10)Por que foges assim, barco ligeiro? Por que foges do pávido poeta? Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira Que semelha no mar – doudo cometa!

(11)Albatroz! Albatroz! águia do oceano, Tu, que dormes das nuvens entre as gazas, Sacode as penas, Leviatã do espaço! Albatroz! Albaltroz! dá-me estas asas...

2.a

(12)Que importa do nauta o berço, Donde é filho, qual seu lar?... Ama a cadência do verso Que lhe ensina o velho mar! Cantai! que a noite é divina! 176

Resvala o brigue à bolina Como um golfinho veloz. Presa ao mastro da mezena Saudosa bandeira acena Às vagas que deixa após.

(13)Do Espanhol as cantilenas Requebradas de languor, Lembram as moças morenas, As andaluzas em flor. Da Itália o filho indolente Canta Veneza dormente – Terra de amor e traição – Ou do golfo no regaço Junto às lavas do Vulcão! Relembra os versos de Tasso

(14)O Inglês – marinheiro frio, Que ao nascer no mar se achou – (Porque a Inglaterra é um navio, Que Deus na Mancha ancorou), Rijo entoa pátrias glórias, Lembrando orgulhoso histórias De Nélson e de Aboukir. O Francês – predestinado – Canta os louros do passado E os loureiros do porvir...

(15)Os marinheiros Helenos, Que a vaga iônia criou, Belos piratas morenos Do mar que Ulisses cortou, Homens que Fídias talhara, Vão cantando em noite clara Versos que Homero gemeu...... Nautas de todas as plagas! Vós sabeis achar nas vagas As melodias do céu...

3.a

(16)Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! Desce mais, inda mais... não pode o olhar humano Como o teu mergulhar no brigue voador. Mas que vejo eu ali... que quadro de amarguras! Que cena funeral!... Que tétricas figuras!... Que cena infame e vil!... Meu Deus! Meu Deus! Que horror! 177

4.a

(17)Era um sonho dantesco... O tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho, Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar do açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar...

(18)Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães: Outras, moças... mas nuas, espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs.

(19)E ri-se a orquestra, irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais... Se o velho arqueja... se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais...

(20)Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali! ......

(21)Um de raiva delira, outro enlouquece... Outro, que de martírios embrutece, Cantando, geme e ri!

(22)No entanto o capitão manda a manobra E após, fitando o céu que se desdobra Tão puro sobre o mar, Diz do fumo entre os densos nevoeiros: “Vibrai rijo o chicote, marinheiros Fazei-os mais dançar!...”

(23)E ri-se a orquestra irônica, estridente... E da roda fantástica a serpente Faz doudas espirais! Qual num sonho dantesco as sombras voam... Gritos, ais, maldições, preces ressoam! E ri-se Satanás!...

178

5.a

(24)Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade Tanto horror perante os céus... Ó mar! por que não apagas Co’a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão?... Astros! noite! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão!...

(25)Quem são estes desgraçados, Que não encontram em vós, Mais que o rir calmo da turba Que excita a fúria do algoz? Quem são?... Se a estrela se cala, Se a vaga à pressa resvala Como um cúmplice fugaz, Perante a noite confusa... Dize-o tu, severa musa, Musa libérrima, audaz!

(26)São os filhos do deserto Onde a terra esposa a luz. Onde voa em campo aberto A tribo dos homens nus... São os guerreiros ousados, Que com os tigres mosqueados Combatem na solidão... Homens simples, fortes, bravos... Hoje míseros escravos Sem ar, sem luz, sem razão...

(27)São mulheres desgraçadas Como Agar o foi também Que sedentas, alquebradas, De longe... bem longe vêm... Trazendo com tíbios passos, Filhos e algemas nos braços, N’alma – lágrimas e fel. Como Agar sofrendo tanto Que nem o leite do pranto Têm que dar para Ismael...

179

(28)Lá nas areias infindas, Das palmeiras no país, Nasceram – crianças lindas, Viveram – moças gentis... Passa um dia a caravana Quando a virgem na cabana Cisma da noite nos véus...... Adeus! ó choça do monte!...... Adeus! palmeiras da fonte!...... Adeus! amores... adeus!...

(29)Depois o areal extenso... Depois o oceano de pó... Depois no horizonte imenso Desertos... desertos só... E a fome, o cansaço, a sede... Ai! Quanto infeliz que cede, E cai p’ra não mais s’erguer!... Vaga um lugar na cadeia, Mas o chacal sobre a areia Acha um corpo que roer...

(30)Ontem a Serra Leoa, A guerra, a caça ao leão, O sono dormido à toa Sob as tendas d’amplidão... Hoje... o porão negro, fundo. Infecto, apertado, imundo, Tendo a peste por jaguar... E o sono sempre cortado Pelo arranco de um finado, E o baque de um corpo ao mar...

(31)Ontem plena liberdade, A vontade por poder... Hoje... cum’lo de maldade Nem são livres p’ra... morrer... Prende-os a mesma corrente – Férrea, lúgubre serpente – Nas roscas da escravidão. E assim zombando à morte, Dança a lúgubre coorte Ao som do açoite... Irrisão!...

180

(32)Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se eu deliro... ou se é verdade Tanto horror perante os céus... Ó mar, por que não apagas Co’a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão?... Astros! noite! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei, os mares, tufão!...

6.a

(32)E existe um povo que a bandeira empresta P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!... E deixa-a transformar-se nessa festa Em manto impuro de bacante fria!... Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta, Que impudente na gávea tripudia?!... Silêncio!... Musa! chora, chora tanto Que o pavilhão se lave no teu pranto...

(33)Auriverde pendão de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra, E as promessas divinas da esperança... Tu, que da liberdade após a guerra, Foste hasteado dos heróis na lança, Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!...

(34)Fatalidade atroz que a mente esmaga! Extingue nesta hora o brigue imundo O trilho que Colombo abriu na vaga, Como um íris no pélago profundo!...... Mas é infâmia de mais... Da etérea plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo... Andrada! arranca este pendão dos ares! Colombo! fecha a porta de teus mares! 448

São Paulo, 18 de abril de 1868.

448 Cf. Castro Alves, Os Escravos (1883), In: Castro Alves, Obra Completa, Rio de Janeiro: Aguilar, 1966, p. 244- 51. 181

A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO449

Anexo 8 A TARDE

(1)ERA A HORA em que a tarde se debruça Lá da crista das serras mais remotas... E d’araponga o canto, que soluça, Acorda os ecos nas sombrias grotas; Quando sobre a lagoa, que s’embuça, Passa o bando selvagem das gaivotas... E a onça sobre as lapas salta urrando, Da cordilheira os visos abalando.

(2)Era a hora em que os cardos rumorejam Como um abrir de bocas inspiradas, E os angicos as comas espanejam Pelos dedos das auras perfumadas... A hora em que as gardênias, que se beijam, São tímidas, medrosas desposadas; E a pedra... a flor... as selvas... os condores Gaguejam... falam... cantam seus amores!

(3)Hora meiga da Tarde! Como és bela Quando surges do azul da zona ardente! ...Tu és do céu a pálida donzela, Que se banha nas termas do oriente... Quando é gota do banho cada estrela, Que te rola da espádua refulgente... E, – prendendo-te a trança a meia lua, Te enrolas em neblinas seminua!...

(4)Eu amo-te, ó mimosa do infinito! Tu me lembras o tempo em que era infante. Inda adora-te o peito do precito No meio do martírio excruciante; E, se não te dá mais da infância o grito Que menino elevava-te arrogante, É que agora os martírios foram tantos, Que mesmo para o riso só tem prantos!...

449 Cf. Castro Alves, A Cachoeira de Paulo Afonso (1876), In: Castro Alves, Obra Completa, Rio de Janeiro: Aguilar, 1966, p. 271-311. 182

(5)Mas não m’esqueço nunca dos fraguedos Onde infante selvagem me guiavas, E os ninhos do sofrer que entre os silvedos Da embaíba nos ramos me apontavas; Nem, mais tarde, dos languidos segredos De amor do nenufar que enamoravas... E as tranças mulheris da granadilha!... E os abraços fogosos da baunilha!...

(6)E te amei tanto – cheia de harmonias A murmurar os cantos da serrana, – A lustrar o broquel das serranias, A doirar dos rendeiros a cabana... E te amei tanto – à flor das águas frias – Da lagoa agitando a verde cana, Que sonhava morrer entre os palmares, Fitando o céu ao tom dos teus cantares!...

(7)Mas hoje, da procela aos estridores, Sublime, desgrenhada sobre o monte, Eu quisera fitar-te entre os condores Das nuvens arruivadas do horizonte...... Para então, – do relâmpago aos livores, Que descobrem do espaço a larga fronte, – Contemplando o infinito..., na floresta Rolar ao som da funeral orquestra!!!

Anexo 9 MARIA

(1)ONDE VAIS à tardezinha, Mucama tão bonitinha, Morena flor do sertão? A grama um beijo te furta Por baixo da saia curta, Que a perna te esconde em vão...

(2)Mimosa flor das escravas! O bando das rôlas bravas Voou com medo de ti!... Levas hoje algum segredo... Pois te voltaste com medo Ao grito do bem-te-vi!

183

(3)Serão amores deveras? Ah! Quem dessas primaveras Pudesse a flor apanhar! E contigo, ao tom d’agarem, Sonhar na rede selvagem... À sombra do azul palmar!

(4)Bem feliz quem na viola Te ouvisse a moda espanhola Da lua ao frouxo clarão... Com a luz dos astros – por círios, Por leito – um leito de lírios... E por tenda – a solidão!

......

Anexo 10 O BAILE NA FLOR

QUE BELAS as margens do rio possante, Que ao largo do espumante campeia sem par!... Ali das bromélias nas flores doiradas Há silfos e fadas, que fazem seu lar... E, em lindo cardumes, Sutis vaga-lumes Acendem os lumes P’ra o baile na flor. E então – nas arcadas Das pet’las doiradas, Os grilos em festa Começam na orquestra Febris a tocar... E as breves Falenas Vão leves, Serenas, Em bando Girando, Valsando, Voando No ar!...

184

Anexo 11 NA MARGEM

(1)“VAMOS! VAMOS! Aqui por entre os juncos Ei-la a canoa em que eu pequena outrora Voava nas maretas... Quando o vento, Abrindo o peito à camisinha úmida, Pela testa enrolava-me os cabelos, Ela voava qual marreca brava No dorso crespo da feral enchente!

(2)Voga, minha canoa! Voga ao largo! Deixa a praia, onde a vaga morde os juncos Como na mata os caititus bravios...

(3)Filha das ondas! andorinha arisca! Tu, que outrora levavas minha infância – Pulando alegre no espumante dorso Dos cães-marinhos a morder-te a proa, – Leva-me agora a mocidade triste Pelos ermos do rio ao longe... ao longe...”

(4)Assim dizia a escrava... Iam caindo Dos dedos do crepúsc’lo os véus de sombra, Com quem a terrar se vela como noiva Para o doce himeneu das noites límpidas...

(5)Lá no meio do rio, que cintila, Como o dorso de enorme crocodilo, Já manso e manso escoa-se a canoa. Parecia, assim vista ao sol poente, Esses ninhos, que tombam sobre o rio, E onde em meio das flores vão chilrando – Alegres sobre o abismo – os passarinhos!......

(6)Tu – guardas algum segredo?... Maria, ‘stás a chorar! Onde vais? Por que assim foges, Rio abaixo a deslizar?

(7)Pedra – não tens o teu musgo? Não tem um favônio – flor? Estrela – não tens um lago? Mulher – não tens um amor?

185

Anexo 12 A QUEIMADA

(1)MEU NOBRE perdigueiro! vem comigo. Vamos a sós, meu corajoso amigo. Pelos ermos vagar! Vamos lá dos gerais, que o vento açoita, Dos verdes capinais n’agreste moita A perdiz levantar!...

(2)Mas não!... Pousa a cabeça em meus joelhos... Aqui, meu cão!... Já de listrões vermelhos O céu se iluminou. Eis súbito da barra do ocidente, Doudo, rubro, veloz, incandescente, O incêndio que acordou!

(3)A floresta rugindo as comas curva... As asas foscas o gavião recurva, Espantado a gritar. O estampido estupendo das queimadas Se enrola de quebradas em quebradas, Galopando no ar.

(4)E a chama lavra qual jibóia informe, Que, no espaço vibrando a cauda enorme. Ferra os dentes no chão... Nas rubras roscas estortega as matas..., Que espadanam o sangue das cascatas Do rôto coração!...

(5)O incêndio – leão ruivo, ensangüentado, A juba, a crina atira desgrenhado Aos pampeiros dos céus!... Travou-se o pugilato... e o cedro tomba... Queimado..., retorcendo na hecatomba Os braços para Deus.

(6)A queimada! A queimada é uma fornalha! A irara – pula; o cascavel – chocalha... Raiva, espuma o tapir! ... E às vezes sobre o cume de um rochedo A corça e o tigre – náufragos do medo – Vão trêmulos se unir!

186

(7)Então passa-se ali um drama augusto... N’último ramo do pau-d’arco adusto O jaguar se abrigou... Mas rubro é o céu... Recresce o fogo em mares... E após... tombam as selvas seculares... E tudo se acabou!...

Anexo 13 LUCAS

(1)QUEM FOSSE naquela hora, Sobre algum tronco lascado Sentar-se no descampado Da solitária ladeira, Veria descer da serra, Onde o incêndio vai sangrento, A passo tardio e lento Um belo escravo da terra Cheio de viço e valor... Era o filho das florestas! Era o escravo lenhador! Que bela testa espaçosa, Que olhar franco e triunfante! E sob o chapéu de couro Que cabeleira abundante! De marchetada jibóia Pende-lhe a rasto o facão... E assim... erguendo o machado Na larga e robusta mão... Aquele vulto soberbo, – Vivamente alumiado – Atravessa o descampado Como uma estátua de bronze Do incêndio ao fulvo clarão.

(2)Era uma dessas cantigas Que ele um dia improvisara, Quando junto da coivara Faz-se o Escravo – trovador.

(3)Era um canto languoroso, Selvagem, belo, vivace, Como o caniço que nasce Sob os raios do Equador.

187

(4)Eu gosto dessas cantigas, Quem me vem lembrar a infância, São minhas velhas amigas, Por elas eu morro de amor... Deixai ouvir a toada Do – cativo lenhador –

(5)E o sertanejo assim solta a tirana, Descendo lento p’ra a servil cabana...

Anexo 14 TIRANA

(1)“MINHA MARIA é bonita, Tão bonita assim não há; O beija-flor quando passa Julga ver o manacá.

(2)“Minha Maria é morena, Como as tardes de verão; Tem as tranças da palmeira Quando sopra a viração.

(3)“Companheiros! o meu peito Era um ninho sem senhor; Hoje tem um passarinho P’ra cantar o seu amor.

(4)“Trovadores da floresta! Não digam a ninguém, não!... Que Maria é a baunilha Que me prende o coração.

(5)“Quando eu morrer só me enterrerm Junto às palmeiras do val, Para eu pensar que é Maria Que geme no taquaral...”

188

Anexo 15 A SENZALA

(1)QUAL O VEADO, que buscou o aprisco, Balindo arisco, para a cerva corre... Ou como o pombo, que os arrulos solta, Se ao ninho volta, quando a tarde morre...,

(2)Assim, cantando a pastoril balada, Já na esplanada o lenhador chegou. Para a cabana da gentil Maria Com que alegria a suspirar marchou!

(3)Ei-la a casinha... tão pequena e bela! Como é singela com seus brancos muros! Que liso teto de sapé doirado! Que ar engraçado! que perfumes puros!

(4)Abre a janela para o campo verde, Que além se perde pelos cerros nus... A testa enfeita da infantil choupana Verde liana de festões azuis.

(5)É este o galho da rolinha brava, Aonde a escrava seu viver abriga... Canta a jandaia sobre a curva rama E alegre chama sua dona amiga.

(6)Aqui n’aurora, abandonando os ninhos, Os passarinhos vêm pedir-lhe pão; Pousam-lhe alegres nos cabelos bastos, Nos seios castos, na pequena mão.

(7)Eis o painel encantado, Que eu quis pintar, mas não pude... Lucas melhor o traçara Na canção suave e rude... Vêde que olhar, que sorriso S’expande no brônzeo rosto, Vendo o lar do seu amor... Ai! Da luz do Paraíso Bate-lhe em cheio o fulgor.

189

Anexo 16 DIÁLOGO DOS ECOS

(1)E CHEGOU-SE p’ra a vivenda Risonho, calmo, feliz... Escutou... mas só ao longe Cantava mas juritis... Murmurou: “Vou surpr’endê-la!” E a porta ao toque cedeu... “Talvez agora sonhando Diz meu nome o lábio seu, Que a dormir nada prevê...”

(2)E o eco responde: - Vê!...

(3)“Como a casa está tão triste Que aperto no coração!... Maria!... Ninguém responde! Maria, não ouves, não?... Aqui vejo uma saudade Nos braços de sua cruz... Que querem dizer tais prantos, Que rolam tantos, tantos, Sobre as faces da saudade Sobre os braços de Jesus?... Oh! quem me empresta uma luz?... Quem me arranca a ansiedade, Que no meu peito nasceu? Quem deste negro mistério Me rasga o sombrio véu?...

(4)E o eco responde: - Eu!...

(5)E chegou-se para o leito Da casta flor do sertão... Apertou co’a mão convulsa O punhal e o coração!... ‘Stava inda tépido o ninho Cheio de aromas suaves... E – como a pena, que as aves Deixam no musgo ao voar, – Um anel de seus cabelos Jazia cortado a êsmo Como relíquia no altar!... Talvez prendendo nos elos Mil suspiros, mil anelos, Mil soluços, mil desvelos, 190

Que ela deu-lhes p’ra guardar!... E o pranto em baga a rolar...

(6)“Onde a pomba foi perder-se? Que céu minha estrela encerra? Maria, pobre criança, Que fazer sobre a terra?”

(7)E o eco responde: - Erra!

(8)“Partiste! Nem me lembraste Deste martírio sem fim!... Não! perdoa... tu choraste E os prantos, que derramaste Foram vertidos por mim... Houve pois um braço estranho Robusto, feroz, tamanho, Que pôde esmagar-te assim?...”

(9)E o eco responde: - Sim!

(10)E rugiu: “Vingança! guerra! Pela flor, que me deixaste, Pela cruz em que rezaste, E que teus prantos encerra! Eu juro guerra de morte A quem feriu desta sorte O anjo puro da terra...

(11)Vê como este braço é forte! Vê como é rijo este ferro! Meu golpe é certo... não erro. Onde há sangue, sangue escorre!... Vilão! Deste ferro e braço, Nem a terra, nem o espaço, Nem mesmo Deus te socorre!!...”

(12)E o eco responde: - Corre!

(13)Como o cão ele em tôrno o ar aspira, Depois se orientou. Fareja as ervas... descobriu a pista E rápido marchou.

......

191

(14)No entanto sobre as águas, que cintilam, Como o dorso de enorme crocodilo, Já manso e manso escoa-se a canoa; Parecia assim vista – ao sol poente – Esses ninhos, que o vento lança às águas, E que na enchente vão boiando à toa!...

Anexo 17 O NADADOR

(1)EI-LO que ao rio arroja-se. As vagas bipartiram-se; Mas rijas contraíram-se Por sobre o nadador... Depois s’entreabre lúgubre Um círculo simbólico... É o riso diabólico Do pego zombador!

(2)Mas não! Do abismo – indômito Surge-me um rosto pálido, Como o Netuno esquálido, Que amaina a crina ao mar; Fita o batel longínquo Na sombra do crepúsculo... Rasga com férreo músculo O rio par a par.

(3)Vagas! Dalilas pérfidas! Moças, que abris um túmulo, Quando do amor no cúmulo Fingis nos abraçar! O nadador intrépido Vos toca as têtas cérulas... E após – zombando – as pérolas Vos quebras do colar.

(4)Vagas! Curvai-vos tímidas! Abri fileiras pávidas Às mãos possantes, ávidas Do nadador audaz!... Belo, de força olímpica – Soltos cabelos úmidos – Braços, hercúleos, túmidos... É o rei dos vendavais!

192

(5)Mais ai! Lá ruge próxima A correnteza hórrida, Como da zona tórrida A boicininga a urrar... É lá que o rio indômito, Como o corcel da Ucrânia, Rincha a saltar de insânia, Freme e se atira ao mar.

(6)Tremeste? Não! Qu’importa-te Da correnteza o estrídulo? Se ao longe vês teu ídolo, Ao longe irás também... Salta à garupa úmida Deste corcel titânico... – Novo Mazeppa oceânico – Além! além! além!...

Anexo 18 NO BARCO

(1)– LUCAS! – Maria! murmuraram juntos... E a moça em pranto lhe caiu nos braços. Jamais a parasita em flóreos laços Assim ligou-se ao piquiá robusto...

(2)Eram-lhe as tranças a cair no busto Os esparsos festões da granadilha... Tépido aljôfar o seu pranto brilha, Depois resvala no moreno seio...

(3)Oh! doces horas de suave enleio! Quando o peito da virgem mais arqueja, Como o casal da rola sertaneja, Se a ventania lhe sacode o ninho.

(4)Cantai, ó brisas, mais cantai baixinho! Passai, ó vagas..., mas passai de manso! Não perturbeis-lhe o plácido remanso, Vozes do ar! emanações do rio!

(5)“Maria, fala!” – “Que acordar sombrio”, Murmura a triste com um sorriso louco, “No Paraíso eu descansava um pouco... Tu me fizeste despertar na vida...

193

(6)“Por que não me deixaste assim pendida Morrer co’a fronte oculta no teu peito? Lembrei-me os sonhos do materno leito Nesse momento divinal... Qu’importa?...

(7)‘Toda esperança para mim ‘sta morta... Sou flor manchada por cruel serpente... Só de encontro nas rochas pode a enchente Lavar-me as nódoas, m’esfolhando a vida.

(8)“Deixa-me! Deixa-me a vagar perdida... Tu! – Parte! Volve para os lares teus. Nada perguntes... é um segredo horrível... Eu te amo ainda... mas agora – adeus!”

Anexo 19 ADEUS

(1)– ADEUS – Ai criança ingrata! Pois tu me disseste – adeus – ? Loucura! melhor seria Separar a terra e os céus

(2)– Adeus – palavra sombria! De uma alma gelada e fria És a derradeira flor.

(3)– Adeus – miséria! mentira De um seio que não suspira, De um coração sem amor.

(4)Ai, Senhor! A rôla agreste Morre se o par lhe faltou. O raio que abrasa o cedro A parasita abrasou.

(5)O astro namora o orvalho: – Um é a estrela do galho, – Outro o orvalho da amplidão.

(6)Mas, à luz do sol nascente, Morre a estrela – no poente! O orvalho – morre no chão!

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(7)Nunca as neblinas do vale Souberam dizer-se – adeus – Se unidas parte da terra, Perdem-se unidas nos céus.

(8)A onda expira na plaga... Porém vem logo outra vaga P’ra morrer da mesma dor...

(9)– Adeus – palavra sombria! Não digas – adeus –, Maria! Ou não me fales de amor!

Anexo 20 MUDO E QUÊDO

(1)E CALADO ficou... De pranto as bagas Pelo moreno rosto deslizaram, Qual a braúna, que o machado fere, Lágrimas saltam de um sabor amargo.

(2)Mudos, quedos os dois neste momento Mergulhavam no dédalo d’angústia, No labirinto escuro que desgraça... Labirinto sem luz, sem ar, sem fio...

(3)Que dor, que drama torvo de agonias Não vai naquelas almas!... Dor sombria De ver quebrado aquele amor tão santo, De lembrar que o passado está passado... Que a esperança morreu, que surge a morte!... Tanta ilusão!... tanta carícia meiga!... Tanto castelo de ventura feito À beira do riacho, ou na campanha!... Tanto êxtase inocente de amorosos!... Tanto beijo na porta da choupana, Quando a lua invejosa no infinito Com uma benção de luz sagrada os noivos!...

(4)Não mais! não mais! o raio, quando esgalha O ipê secular, atira ao longe Flores, que há pouco se beijavam n’hástea, Que unidas nascem, juntas viver pensam, E que jamais na terra hão de encontrar-se!

195

(5)Passou-se muito tempo... Rio abaixo A canoa corria ao tom das vagas. De repente ele ergueu-se hirto, severo, – O olhar em fogo, o riso convulsivo – Em golfadas lançando a voz do peito!...

(6)“Maria! – diz-me tudo... Fala! fala Enquanto eu posso ouvir... Criança, escuta! Não vês o rio?... é negro!... é um leito fundo... A correnteza, estrepitando, arrasta Uma palmeira, quanto mais um homem!... Pois bem! Do seio túrgido do abismo Há de romper a maldição do morto; Depois o meu cadáver negro, lívido, Irá seguindo a esteira da canoa Pedir-te inda que fales, desgraçada, Que ao morto digas o que ao vivo ocultas!...”

(7)Era tremenda aquela dor selvagem, Que rebentava enfim, partindo os diques Na fúria desmedida!... Em meio às ondas Ia Lucas rolar... Um grito fraco, Uma trêmula mão susteve o escravo... E a pálida criança, desvairada, Aos pés caiu-lhe a desfazer-se em pranto.

(8)Ela encostou-se ao peito do selvagem – Como a violeta, as faces escondendo Sob a chuva noturna dos cabelos –! Lenta e sombria após contou destarte A treda história desse tredo crime!...

Anexo 21 NA FONTE

I “ERA HOJE ao meio-dia. Nem uma brisa macia Pela savana bravia Arrufava os ervaçais... Um sol de fogo abrasava; Tudo a sombra procurava; Só a cigarra cantava No tronco dos coqueirais.

196

II “Eu cobrir-me da mantilha, Na cabeça pus a bilha, Tomei do deserto a trilha, Que lá na fonte vai dar. Cansada cheguei na mata: Ali, na sombra, a cascata As alvas tranças desata Como ua moça a brincar.

III “Era tão densa a espessura! Corria a brisa tão pura! Reinava tanta frescura, Que eu quis me banhar ali. Olhei em roda... Era quêdo O mato, o campo, o rochedo... Só nas galhas do arvoredo Saltava alegre o sagüi.

IV “Junto às águas cristalinas Despi-me louca, traquinas, E as roupas alvas e finas Atirei sobre os cipós. Depois mirei-me inocente, E ri vaidosa... e contente... Mas voltei-me de repente... Como que ouvira uma voz!

V “Quem foi que passou ligeiro, Mexendo ali no ingazeiro, E se embrenhou no balceiro, Rachando as folhas do chão?... Quem foi?! Da mata sombria Uma vermelha cutia Saltou tímida e bravia, Em procura do sertão.

197

VI “Chamei-me então de criança; A meu pés a onda mansa Por entre os juncos s’entrança Como uma cobra a fugir! Mergulho o pé docemente; Com o frio fujo à corrente... De um salto após de repente Fui dentro d’água cair.

VII “Quando o sol queima as estradas, E nas várzeas abrasadas Do vento as quentes lufadas Erguem novelos de pó, Como é doce em meio às canas, Sob um teto de lianas; Das ondas nas espadanas Banhar-se despida e só!

VIII “Rugitavam os palmares... Em torno dos nenufares Zumbiam pejando os ares Mil insetos de rubim... Eu naquele leito brando Rolava alegre cantando... Súbito... um ramo estalando Salta um homem junto a mim!”

Anexo 22 NOS CAMPOS

(1)“FUGI desvairada! Na moita intrincada, Rasgando uma estrada, Fugaz me embrenhei. Apenas vestindo Meus negros cabelos, E os seios cobrindo Com os trêmulos dedos, Ligeira voei!

198

(2)“Saltei as torrentes. Trepei dos rochedos Aos cimos ardentes, Nos ínvios caminhos, Cobertos de espinhos, Meus passos mesquinhos Com sangue marquei! ......

(3)“Avante! corramos! Corramos ainda!... Da selva nos ramos A sombra é infinda. A mata possante Ao filho arquejante Não nega um abrigo... Corramos ainda! Corramos! avante!

(4)“Debalde! A floresta – Madrasta impiedosa – A pobre chorosa Não quis abrigar! “Pois bem! Ao deserto!

(5)“De novo, é loucura! Seguindo meus traços Escuto seus passos Mais perto! mais perto! Já queima-me os ombros Seu hálito ardente. Já vejo-lhe a sombra Na úmida alfombra... Qual negra serpente, Que vai de repente Na presa saltar!......

(6)Na douda Corrida Vencida, Perdida, Quem me há de salvar?”

199

Anexo 23 NO MONTE

(1)“PAREI... Volvi em torno os olhos assombrados... Ninguém! A solidão pejava os descampados... Restava inda um segundo... um só p’ra me salvar; Então reuni forças, ao céu ergui o olhar... E do peito arranquei um pavoroso grito, Que foi bater em cheio às portas do infinito! Ninguém! Ninguém me acode... Ai! só de monte em monte Meu grito ouvi morrer na extrema do horizonte!... Depois a solidão ainda mais calada Na mortalha envolveu a serra descampada!...

(2)“Ai! que pode fazer a rola triste Se o gavião nas garras a espedaça? Ai! que faz o cabrito do deserto, Quando a jibóia no potente aperto Em roscas férreas o seu corpo enlaça?

(3)“Fazem como eu?... Resistem, batem, lutam, E finalmente expiram de tortura. Ou, se escapam trementes, arquejantes, Vão, lambendo as feridas gotejantes, Morrer à sombra da floresta escura!...

(4)“E agora está concluída Minha história desgraçada. Quando caí – era virgem! Quando ergui-me – desonrada!”

Anexo 24 SANGUE DE AFRICANO

(1)AQUI SOMBRIO, fero, delirante Lucas ergueu-se como o tigre bravo... Era a estátua terrível da vingança... O selvagem surgiu... sumiu-se o escravo.

(2)Crispado o braço, no punhal segura! Do olhar sangrentos raios lhe ressaltam, Qual das janelas de um palácio em chamas As labaredas, irrompendo, saltam.

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(3)Com o gesto bravo, sacudido, fero, A destra ameaçando a imensidade... Era um bronze de Aquiles furioso Concentrando no punho a tempestade!

(4)No peito arcado o coração sacode O sangue, que da raça não desmente, Sangue queimado pelo sol da Líbia, Que ora referve no Equador ardente.

Anexo 25 AMANTE

(1)“BASTA, criança! Não soluces tanto... Enxuga os olhos, meu amor, enxuga! Que culpa tem a clícia descaída Se abelha envenenada o mel lhe suga?

(2)“Basta! Esta faca já contou mil gotas De lágrimas de dor nos teus olhares Sorri, Maria! Ela jurou pagar-tas No sangue dele em gotas aos milhares

(3)“Por que volves os olhos desvairados? Por que tremes assim, frágil criança Est’alma é como o braço, o braço é ferro, E o ferro sabe o trilho da vingança.

(4)“Se a justiça da terra te abandona, Se a justiça do céu de ti se esquece, A justiça do escravo está na força... E quem tem um punhal nada carece!...

(5)“Vamos! Acaba a história... Lança a presa... Não vês meu coração, que sente fome? Amanha chorarás; mas de alegria! Hoje é preciso me dizer – seu nome!”

Anexo 26 ANJO

(1)“AI! QUE VALE a vingança, pobre amigo, Se na vingança a honra não se lava?... O sangue é rubro, a virgindade é branca – O sangue aumenta da vergonha a bava.

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(2)“Se nós fomos somente desgraçados, Para que miseráveis nos fazermos? Desportados da terra assim perdemos De além da campa as regiões sem termos...

(3)“Ai! não manches no crime a tua vida, Meu irmão, meu amigo, meu esposo!... Seria negro o amor de uma perdida Nos braços a sorrir de um criminoso!...”

Anexo 27 DESESPERO

(1)“CRIME! Pois será crime se a jibóia Morde silvando a planta, que a esmagara? Pois será crime se o jaguar nos dentes Quebra do índio a pérfida taquara?

(2)“E nós que somos, pois? Homens? – Loucura! Família, leis e Deus lhes coube em sorte. A família no lar, a lei no mundo... E os anjos do Senhor depois da morte.

(3)“Três leitos, que sucedem-se macios, Onde rolam na santa ociosidade... O pai o embala... a lei o acaricia... O padre lhe abre a porta à eternidade.

(4)“Sim! Nós somos reptis... Qu’importa a espécie? – A lesma é vil, – o cascavel é bravo. E vens falar de crimes ao cativo? Então não sabes o que é ser escravo!...

(5)“Ser escravo – é nascer no alcoice escuro Dos seios infamados da vendida... – Filho da perdição no berço impuro Sem leite para a boca ressequida... “É mais tarde, nas sombras do futuro, Não descobrir estrela foragida... É ver – viajante morto de cansaço – A terra – sem amor!... sem Deus – o espaço!

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(6)“Ser escravo – é, dos homens repelido, Ser também repelido pela fera; Sendo dos dois irmãos pasto querido, Que o tigre come e o homem dilacera... – É do lôdo no lôdo sacudido Ver que aqui ou além nada o espera, Que em cada leito novo há mancha nova... No berço... após no toro... após na cova!...

(7)“Crime! Quem falou, pobre Maria, Desta palavra estúpida?... Descansa! Foram eles talvez?!... É zombaria... Escarnecem de ti, pobre criança! Pois não vês que morremos todo dia, Debaixo do chicote, que não cansa? Enquanto do assassino a fronte calma Não revela um remorso de sua alma?

(8)“Não! Tudo isto é mentira! O que é verdade É que os infames tudo me roubaram... Esperança, trabalho, liberdade Entreguei-lhes em vão... não se fartaram. Quiseram mais... Fatal voracidade! Nos dentes meu amor espedaçaram... Maria! Última estrela de minh’alma! O que é feito de ti, virgem sem palma?

(9)“Pomba – em teu ninho as serpes te morderam. Folha – rolaste no paul sombrio. Palmeira – as ventanias te romperam. Corça – afogaram-te as caudais do rio. Pobre flor – no teu cálice beberem, Deixando-o depois triste e vazio... – E tu, irmã! e mãe! e amante minha! Queres que eu guarde a faca na bainha!

(10)‘Ó minha mãe! Ó mártir africana, Que morreste de dor no cativeiro! Ai! sem quebrar aquela jura insana, Que jurei no teu leito derradeiro, No sangue desta raça ímpia, tirana Teu filho vai vingar um povo inteiro!... Vamos, Maria! Cumpra-se o destino... Dize! dize-me o nome do assassino!...”

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(11)“Virgem das Dores, Vem dar-me alento, Neste momento De agro sofrer! Para ocultar-lhe Busquei a morte... Mas vence a sorte, Deve assim ser......

(12)“Pois que seja! Debalde pedi-te, Ai! debalde a teus pés me rojei... Porém antes escuta esta história... Depois dela... O seu nome direi!”

Anexo 28 HISTÓRIA DE UM CRIME

(29)“FAZEM HOJE muitos anos Que de uma escura senzala Na estreita e lodosa sala Arquejava u’a mulher. Lá fora por entre as urzes O vendaval s’estorcia... E aquela triste agonia Vinha mais triste fazer.

(30)“A pobre sofria muito. Do peito cansado, exangue, Às vezes rompia o sangue E lhe inundava os lençóis. Então, como quem se agarra Às últimas esperanças, Duas pávidas crianças Ela olhava... e ria após.

(31)“Que olhar! que olhar tão extenso! Que olhar tão triste e profundo! Vinha já de um outro mundo, Vinha talvez lá do céu. Era o raio derradeiro. Que a lua, quando se apaga, Manda por cima da vaga Da espuma por entre o véu.

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(32)“Ainda me lembro agora Daquela noite sombria, Em que u’a mulher morria Sem rezas, sem oração!... Por padre – duas crianças... E apenas por sentinela Do Cristo a face amarela No meio da escuridão.

(33)“Às vezes naquela fronte Como que a morte pousava E da agonia aljofrava O derradeiro suor... Depois acordava a mártir, Como quem tem um segredo... Ouvia em torno com medo, Com susto olhava em redor.

(34)“Enfim, quando noite velha Pesava sobre a mansarda, E somente o cão de guarda Ladrava aos ermos sem fim, Ela, nos braços sangrentos As crianças apertando, Num tom meigo, triste e brando Pôs-se a falar-lhes assim:

Anexo 29 ÚLTIMO ABRAÇO

(1)“FILHO, ADEUS! Já sinto a morte, Que me esfria o coração. Vem cá... Dá-me tua mão... Bem vês que nem mesmo tu Podes dar-lhe novo alento!... Filho, é o último momento... A morte – a separação! Ao desamparo, sem ninho, Ficas, pobre passarinho, Neste deserto profundo, Pequeno, cativo e nu!...

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(2)“Que sina, meu Deus! que sina Foi a minha neste mundo! Presa ao céu – pelo desejo, Presa à terra – pelo amor!... Que importa! e tua vontade? Pois seja feita, Senhor! “Pequei!... foi grande o meu crime, Mas é maior o castigo... Ai! não bastava a amargura Das noites ao desabrigo;

(3)De espedaçarem-me as carnes O tronco, o açoite, a tortura, De tudo quanto sofri. Era preciso mais dores, Inda maior sacrifício... Filho! bem vês meu suplício... Vão separar-me de ti!

(4)“Chega-te perto... mais perto, Nas trevas procura ver-te Meu olhar, que treme incerto Perturbado, vacilante... Deixa em meus braços prender-te P’ra não morrer neste instante; Inda tenho que fazer-te Uma triste confissão... Vou revelar-te um segredo Tão negro, que tenho medo De não ter o teu perdão!...

(5)Mas não! Quando um padre nos perdoa, Quando Deus tem piedade De um filho no coração Uma mãe não bate à toa.

Anexo 30 MÃE PENITENTE

(1)“OUVE-ME, pois!... Eu fui uma perdida; Foi este o meu destino, a minha sorte... Por esse crime é que hoje perco a vida, Mas dele em breve há de salvar-me a morte!

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(2)“E minh’alma, bem vês, que não se irrita, Antes bendiz estes mandões ferozes Eu seria talvez por ti maldita, Filho! sem o batismo dos algôzes!

(3)“Porque eu pequei... e do pecado escuro Tu foste o fruto cândido, inocente, – Borboleta, que sai do – lôdo impuro... – Rosa, que sai de – pútrida semente!

(4)“Filho! Bem vês... fiz o maior dos crimes: – Criei um ente para a dor e a fome! Do teu berço escrevi nos brancos vimes O nome de bastardo – impuro nome.

(5)“Por isso agora tua mãe te implora E a teus pés de joelhos se debruça. Perdoa à triste – que de angústia chora, Perdoa à mártir – que de dor soluça!

(6)“Mas um gemido a meus ouvidos soa... Que pranto é este que em meu seio rola? Meus Deus, é o pranto seu que me perdoa... Filho, obrigada pela tua esmola!”

Anexo 31 O SEGREDO

(1)“AGORA vou dizer-te por que morro; Mas hás de jurar primeiro, Que jamais tuas mãos inocentes Ferirão meu algoz derradeiro... Meu filho, eu fui a vítima Da raiva e do ciúme. Matou-me como um tigre carniceiro, Bem vês, Uma branca mulher, que em si resume Do tigre – a malvadez, Do cascavel – o rancor!... Deixo-te, pois... – Um grito de vinganças? – Não, pobre criança!... Um crime a perdoar... o que é melhor!...

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(2)“Depois, teve razão... Esta mulher É tua e minha senhora!...

......

(3)“Lucas, silêncio! que por ela implora Teu pai... e teu irmão!... “Teu irmão, que é seu filho... (ó magoa e dor!) “Teu pai – que é seu marido... e teu senhor!...

(4)“Juras não me vingar? – Ó mãe, eu juro Por ti, pelos beijos teus! “– Obrigada! agora... agora Já nada mais me demora... Deus! – recebe a pecadora! Filho! – recebe este adeus!

(5)Quando, rompendo as barras do oriente, A estrela da manhã mais desmaiava, E o vento da floresta ao céu levava O canto jovial do bem-te-vi; Na casinha de palha uma criança, Da defunta abraçando o corpo frio, Murmurava chorando em desvario: – Eu não me vingo, ó mãe... juro por ti!...”

(6)Maria calou-se... Na fronte do Escravo Suor de agonia gelado passou; Com riso convulso murmura: “Que importa Se o filho da escrava na campa jurou?!...

(7)“Que tem o passado com o crime de agora? Que tem a vingança, que tem com o perdão?” E como arrancando do crânio uma idéia Na fronte corria-lhe a gélida mão...

(8)“Esquece o passado! Que morra no olvido... Ou antes relembra-o cruento, feroz! Legenda de lôdo, de horror e de crimes E gritos de vítima e risos de algoz!

(9)“No frio da cova que jaz na esplanada, – Vingança – murmuram os ossos dos meus!”

(10)– Não ouves um canto, que passa nos ares? – Perdoa! – respondem as almas nos céus!”

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(11)– “São longos gemidos do seio materno Lembrando essa noite de horror e traição!”

(12)– “É o flébil suspiro do vento, que outrora Bebera nos lábios da morta o perdão!...”

(13)E descaiu profundo Em longo meditar... Após sombrio e fero Viram-no murmurar:

(14)“Mãe! na região longínqua Onde tua alma vive, Sabes que eu nunca tive Um pensamento vil. Sabes que esta alma livre Por ti curvou-se escrava; E devorou a bava... E tigre – foi réptil!

(15)“Nem um tremor correra-me A face fustigada! Beijei a mão armada Com o ferro que a feriu... Filho, de um pai misérrimo Fui o fiel rafeiro... Caim, irmão traiçoeiro! Feriste... e Abel sorriu!

(16)“De tanto horror o cúmulo, Ó mãe, alma celeste, Se perdoar quiseste, Eu perdoei também. Santificaste os míseros; Curvei-me reverente A eles tão somente, Somente... a mais ninguém!

(17)“Ninguém! que a nada humilho-me Na terra, nem no espaço!... Pode ferir meu braço... – “Lucas! não pode, não! Mísero! a mão que abrira De tua mãe a cova... O golpe hoje renova!... Mata-me!... É teu irmão!...” ...... 209

Anexo 32 CREPÚSCULO SERTANEJO

(1)A TARDE morria! Nas águas barrentas As sombras das margens deitavam-se longas; Na esguia atalaia das árvores secas Ouvia-se um triste chorar de arapongas.

(2)A tarde morria! Dos ramos, das lascas, Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos, As trevas rasteiras com o ventre por terra Saíam, quais negros, cruéis leopardos.

(3)A tarde morria! Mais funda nas águas Lavava-se a galha do escuro ingazeiro... Ao fresco arrepio dos ventos cortantes Em músico estalo rangia o coqueiro.

(4)Sussurro profundo! Marulho gigante! Talvez um – silêncio!... Talvez uma – orquestra... Da folha, do cálix, das asas, do inseto... Do átomo – à estrela... do verme – à floresta!...

(5)As garças metiam o bico vermelho Por baixo das asas, – da brisa ao açoite –; E a terra na vaga de azul do infinito Cobria a cabeça co’as penas da noite!

(6)Somente por vezes, dos jungles das bordas Dos golfos enormes, daquela paragem, Erguia a cabeça surpreso, inquieto, Coberto de limos – um touro selvagem.

(7)Então as marrecas, em torno boiando, O vôo encurvavam medrosas, à toa... E o tímido bando pedindo outras praias Passava gritando por sobre a canoa!......

Anexo 33 O BANDOLIM DA DESGRAÇA

(1)QUANDO de amor a Americana douda A moda tange na febril viola, E a mão febrenta sobre a corda fina Nervosa, ardente, sacudida rola.

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(2)A gusla geme, s’estorcendo em ânsias, Rompem gemidos do instrumento em pranto... Choro indizível... comprimir de peitos... Queixas, soluços... desvairado canto!

(3)E mais dorida a melodia arqueja! E mais nervosa corre a mão nas cordas!... Ai! tem piedade das crianças louras Que soluçando no instrumento acordas!...

(4)“Ai! tem piedade dos meus seios trêmulos...” Diz estalando o bandolim queixoso. ...E a mão palpita-lhe apertando as fibras... E fere, e fere em dedilhar nervoso!...

(5)Sobre o regaço da mulher trigueira, Doida, cruel, a execução delira!... Então – co’as unhas cor-de-rosa, a moça, Quebrando as cordas, o instrumento atira!......

(6)Assim, Desgraça, quando tu, maldita! As cordas d’alma delirante vibras... Como os teus dedos espedaçam rijos Uma por uma do infeliz as fibras!

(7)– Basta –, murmura esse instrumento vivo. – Basta –, murmura o coração rangendo. E tu, no entanto, num rasgar de artérias, Feres lasciva em dedilhar tremendo.

(8)Crença, esperança, mocidade e glória, Aos teus arpejos, – gemebundas morrem!... Resta uma corda... – a dos amores puros –... E mais ardentes os teus dedos correm!...

(9)E quando farta a cortesã cansada A pobre gusla no tapete atira, Que resta?... – Uma alma – que não tem mais vida! Olhos – sem pranto! Desmontada – lira!!!

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Anexo 34 A CANOA FANTÁSTICA

(1)PELAS SOMBRAS temerosas Onde vai esta canoa? Vai tripulada ou perdida? Vai ao certo ou vai à toa?

(2)Semelha um tronco gigante De palmeira, que s’escoa... No dorso da correnteza, Como bóia esta canoa!...

(3)Mas não branqueja-lhe a vela! N’água o remo não ressoa! Serão fantasmas que descem Na solitária canoa?

(4)Que vulto é esse sombrio Gelado, imóvel, na proa? Dir-se-ia o gênio das sombras Do inferno sobre a canoa!...

(5)Foi visão? Pobre criança! À luz, que dos astros côa, É teu, Maria, o cadáver, Que desce nesta canoa?

(6)Caída, pálida, branca!... Não há quem dela se doa?!... Vão-lhe os cabelos a rastos Pela esteira da canoa!...

(7)E as flores róseas dos golfos, – Pobres flores da lagoa, Enrolam-se em seus cabelos E vão seguindo a canoa!......

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Anexo 35 O SÃO FRANCISCO

(1)LONGE, bem longe, dos cantões bravios, Abrindo em alas os barrancos fundos; Dourando o colo aos perenais estios, Que o sol atira nos modernos mundos; Por entre a grita dos ferais gentios, Que acampam sob os palmeirais profundos; Do São Francisco a soberana vaga Léguas e léguas triunfante alaga!

(2)Antemanhã, sob o sendal da bruma, Ele vagia na vertente ainda, – Linfa amorosa – co’a nitente espuma Orlava o seio da Mineira linda; Ao meio-dia, quando o solo fuma Ao bafo morto de u’a calma infinda, Viram-no aos beijos, delamber demente As rijas formas da cabocla ardente.

(3)Insano amante! Não lhe mata o fogo O deleite da indígena lasciva... Vem – à busca talvez de desafôgo Bater à porta da Baiana altiva. Nas verdes canas o gemente rôgo Ouve-lhe à tarde a tabaroa esquiva... E talvez por magia... à luz da lua Mole a criança na caudal flutua.

(4)Rio soberbo! Tuas águas turvas Por isso descem lentas, peregrinas... Adormeces ao pé das palmas curvas Ao músico chorar das casuarinas! Os poldros soltos – retesando as curvas, – Ao galope agitando as longas crinas, Rasgam alegres – relinchando aos ventos – De tua vaga os turbilhões barentos.

(5)E tu desces, ó Nilo brasileiro, As largas ipueiras alagando, E das aves o côro alvissareiro Vai nas balças teu hino modilhando! Como pontes aéreas – do coqueiro Os cipós escarlates se atirando, De grinaldas em flor tecendo a arcada São arcos triunfais de tua estrada!... 213

Anexo 36 A CACHOEIRA

(1)MAIS SÚBITO da noite no arrepio Um mugido soturno rompe as trevas... Titubantes – no álveo do rio – Tremem as lapas dos titães coevas!... Que grito é este sepulcral, bravio, Que espanta as sombras ululantes, sevas?... É o brado atroador da catadupa Do penhasco batendo na garupa!...

(2)Quando o lôdo fértil das paragens Onde o Paraguaçu rola profundo, O vermelho novilho nas pastagens Como os caniços do torrão fecundo; Inquieto ele aspira nas bafagens Da negra suc’ruiúba o cheiro imundo... Mas já tarde... silvando o monstro voa... E o novilho preado os ares troa!

(3)Então doido de dor, sânie babando, Co’a serpente no dorso parte o touro... Aos bramidos os vales vão clamando, Fogem as aves em sentido choro... Mas súbito ela às águas o arrastando Contrai-se para o negro sorvedouro... E enrolando-lhe o corpo quente, exangue, Quebra-o nas roscas, donde jorra o sangue.

(4)Assim dir-se-ia que a caudal gigante – Larga sucuruiúba do infinito – Co’as escamas das ondas coruscante Ferrara o negro touro de granito!... Hórrido, insano, triste, lacerante Sobe o abismo um pavoroso grito... E medonha a suar a rocha brava As pontas negras na serpente crava!...

(5)Dilacerado o rio espadanando Chama as águas da extremas do deserto... Atropela-se, empina, espuma o bando... E em massa rui no precipício aberto... Das grutas nas cavernas estourando O côro dos trovões travam concerto... E ao vê-lo as águias tontas, eriçadas Caem de horror no abismo estateladas... 214

(6)A cachoeira! Paulo Afonso! O abismo! A briga colossal dos elementos! As garras do Centauro em paroxismo Raspando os flancos dos parceis sangrentos. Relutantes na dor do cataclismo Os braços do gigante suarentos Agüentando a ranger (espanto! assombro!) O rio inteiro, que lhe cai do ombro.

(7)Grupo enorme do fero Laocoonte Viva a Grécia acolá e a luta estranha!... Do sacerdote o punho e a roxa fronte... E as serpentes de Tênedos em sanha!... Por hidra – um rio! Por áugure – um monte! E em torno ao pedestal laçados, tredos, Como filhos – chorando-lhe – os penedos!!!...

Anexo 37 UM RAIO DE LUAR

(1)ALTA NOITE ele ergueu-se. Hirto, solene. Pegou na mão da moça. Olhou-a fito... Que fundo olhar! Ela estava gelada, como a garça Que a tormenta ensopou longe do ninho. No largo mar.

(2)Tomou-a no regaço... assim no manto Apanha a mãe a criancinha loura, Tenra a dormir. Apartou-lhe os cabelos sobre a testa... Pálida e fria... Era talvez a morte... Mas a sorrir.

(3)Pendeu-lhe sobre os lábios. Como treme No sono asa de pombo, assim tremia-lhe O ressonar. E como o beija-flor dentro do ovo, Ia-lhe o coração no níveo seio A titilar.

(4)Morta não era! Enquanto um rir convulso Contraíra as feições do homem silente – Riso fatal. Dir-se-ia que antes a quisera rija, Inteiriçada pela mão da noite Hirta, glacial! 215

(5)Um momento de bruços sobre o abismo. Ele, embalando-a, sobre o rio negro Mais s’inclinou... Nesse instante o luar bateu-lhe em cheio, E um riso à flor dos lábios da criança À flux boiou!

(6)Qual o murzelo do penhasco à borda Empina-se e cravando as ferraduras Morde o escarcéu; Um calafrio percorreu-lhe os músculos... O vulto recuou!... A noite em meio Ia no céu!

Anexo 38 DESPERTAR PARA MORRER

– “ACORDA!” –“Quem me chama?” –“Escuta!” –“Escuto...” –“Nada ouviste?” –“Inda não...” –“É porque o vento Escasseou”. –“Ouço agora... da noite na calada Uma voz que ressona cava e funda... E após cansou!” –“Sabes que voz é esta?” –“Não! Semelha Do agonizante o derradeiro engasgo, Rouco estertor...” E calados ficaram, mudos, quedos, Mãos contraídas, bocas sem alento... Hora de horror!...

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Anexo 39 LOUCURA DIVINA

(1)–“SABES que voz é esta?” Ela cismava!... –“Sabes, Maria? –“É uma canção de amores Que além gemeu!” –“É o abismo, criança!...” A moça rindo Enlaçou-lhe o pescoço: –“Oh! não! não mintas! Bem sei que é o céu!”

(2)–“Doida! Doida! É a voragem que nos chama!...” –“Eu ouço a Liberdade!” –“É a morte, infante! –“Erraste. É a salvação!” –Negro fantasma é quem me embala o esquife!” –“Loucura! É tua Mãe... O esquife é um berço, Que bóia n’amplidão!...”

(3)–Não vês os panos d’água como alvejam Nos penedos?... Que gélido sudário O rio nos talhou!” –“Veste-me o cetim branco do noivado... Roupas alvas de prata... albentes dobras... Veste-me!... Eu aqui estou.”

(4)–Já na proa espanada, salta a espuma...” –São as flores gentis da laranjeira Que o pego vem nos dar... Oh! névoa! Eu amo teu sendal de gaze!... Abram-se as ondas como virgens louras, Para a Esposa passar!...

(5)“As estrelas palpitam! – São as tochas! Os rochedos murmuram... – São os monges! Reza um órgão nos céus! Que incenso! – Os rolos que do abismo voam! Que turíbulo enorme – Paulo Afonso! Que sacerdote! – Deus...”

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Anexo 40 À BEIRA DO ABISMO E DO INFINITO

A CELESTE Africana, a Virgem-Noite Cobria as faces... Gota a gota os astros Caíam-lhe das mãos no peito seu...... Um beijo infindo suspirou nos ares......

A canoa rolava!... Abriu-se a um tempo O precipício!... e o céu!...

Santa Isabel, 12 de julho de 1870.