UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO CENTRO DE LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA DOUTORADO EM MÚSICA

O VIRTUOSISMO E O “SWING” REVELADOS NA REVISÃO FONOGRÁFICA DE FLOR DA NOITE E MODINHA & BAIÃO DE RADAMÉS GNATTALI

FERNANDA CANAUD

RIO DE JANEIRO, 2013

O VIRTUOSISMO E O “SWING” REVELADOS NA REVISÃO FONOGRÁFICA DE FLOR DA NOITE E MODINHA & BAIÃO DE RADAMÉS GNATTALI

por

FERNANDA CANAUD

Tese submetida ao Programa de Pós- Graduação em Música do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Música, sob a orientação do Professor Doutor Silvio Mehry.

Rio de Janeiro, 2013

Canaud, Fernanda. C213 O virtuosismo e o “Swing” revelados na revisão fonográfica de Flor da Noite e Modinha & Baião de Radamés Gnattali / Fernanda Canaud, 2013. 263f.; 30cm + CD-ROM

Orientador: Silvio Mehry Tese (Doutorado em Música) – Univ ersidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

1. Gnattali, Radamés, 1906-1988. 2. Revisão fonográfica. 3. Análise aural. 4. Interpretação. 5. Gestão do conhecimento. I. Mehry, Silvio. II. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Centro de Letras e Artes. Curso de Doutorado em Música. III. Título.

CDD – 780

Autorizo a cópia da minha tese “O Virtuosismo e o ‘Swing’ revelados na Revisão Fonográfica de Flor da Noite e Modinha & Baião de Radamés Gnattali”, para fins didáticos.

______Fernanda Canaud

À Jacques Canaud (in memoriam), aos meus pais Ângelo Chaves e Maria Margarida Ventura Chaves e aos meus filhos Caio Márcio e Daniel René

AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo suporte financeiro para a realização desta pesquisa;

À Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO);

Ao Programa de Pós-Graduação em Música (PPGM);

Ao Museu da Imagem e do Som (MIS);

À Rádio MEC;

Ao Instituto Moreira Salles (IMS);

À querida Nelly Gnattali, viúva do compositor Radamés Gnattali, por suas colaborações com fornecimento das partituras autógrafas, objetos, fotos e documentos de grande valor;

Ao orientador desta pesquisa, Professor Doutor Silvio Mehry, pela confiança e oportunidade de realizar esse trabalho;

Ao Professor Doutor Luiz Otávio Braga e à Professora Doutora Nadge Breide pelo apoio fundamental e pelas preciosas sugestões dadas na Qualificação, e por participarem da banca de defesa da tese;

Aos demais componentes da banca de defesa desta tese, Professor Doutor Ricardo Tacuchian, Professora Doutora Mirian Dauelsberg, Professor Doutor Leonardo Mataruna e Professor Doutor Sergio Barrenechea;

Ao querido amigo pianista Nelson Freire, Doutor Honoris Causa (UFRJ), pelo apoio, amizade e incentivos;

Às Professoras Doutoras Martha Ulhôa e Carole Gubernikoff pelas colaborações e incentivos dados nas aulas, seminários e palestras, bem como pelos sites e livros sugeridos;

Ao maestro Ricardo Tacuchian pela dedicação à música brasileira e pelas aulas imperdíveis que nos fizeram, entre outras satisfações, a de redescobrir a genialidade das sinfonias de Camargo Guarniere;

Ao Professor Paulo Aragão pela alegria, entusiasmo e interesse amigo nas aulas, palestras e conversas, muitas vezes pela correção de textos e orientações humanísticas;

Ao Professor Doutor Leonardo Mataruna pelas inestimáveis sugestões e colaborações na diagramação da metodologia do trabalho;

Ao amigo parceiro musical, violoncelista e Professor Doutor David Chew por sua inestimável participação e consequente colaboração para o desenvolvimento desta tese;

Ao amigo querido Dr. Luiz Alberto Colona Rosman que proporcionou a gravação do CD do Duo Chew-Canaud, lançado em 2006 – Obra Completa para violoncelo e piano de Radamés Gnattali ;

Ao querido Aristides, funcionário exemplar do PPGM, por sua dedicação, amizade, apoio e incentivo e aos demais funcionários e professores da UNIRIO;

Ao Gilson, que editou os takes ;

À querida aluna e amiga Úrsula Abdala por sua dedicação, alegria e ajuda inestimável nas digitações;

Ao querido Daniel Canaud pelas digitações dos anexos;

A toda minha família pelo amor, incentivo, carinho, ajuda e apoio incondicional em todos os momentos da minha vida;

Aos meus amados filhos Caio Márcio e Daniel René por serem os seres humanos extraordinários que são; e muito mais pelo apoio, paciência e compreensão nos momentos de ausência ou de tensão;

Ao Oswaldo Guilherme Schroeter pelo apoio constante;

À minha família portuguesa Chaves e Berger que me receberam e apoiaram nas viagens;

À família Schroeter e Trachbach, queridos amigos que me receberam tão carinhosamente e apoiaram meu trabalho em Porto Alegre;

Aos colegas, funcionários e alunos da Escola de Música Villa-Lobos que me proporcionam tantas alegrias pela oportunidade do magistério e que me apoiaram nesta tese;

A todos os meus alunos queridíssimos que sempre estiveram presentes;

Aos extraordinários músicos, queridos amigos: Odete Ernest Dias, Harold Emert, Maria Tereza Madeira, Carlos Soares, Marco de Pinna e Bruce Henri, que graciosamente abrilhantaram as ilustrações do trabalho participando das apresentações públicas relacionadas ao curso;

A todos os meus professores de piano: Denir Ishikawa, Helena Queiroga, Homero de Magalhães, Linda Bustani, Antônio Guedes Barbosa, Ondini Mello, Telmo Côrtes e Myrian Dauelsberg;

Em especial agradeço à professora de piano Myrian Dauelsberg, que embora tenha se tornado grande empresária no ramo cultural, nunca deixou de lado sua vocação de mestra, além de ter estado sempre presente, apoiando e incentivando nossos esforços desde nossa adolescência. Agradeço por seu exemplo e por suas lições de música, de arte e de vida;

Aos meus parceiros de música de câmara, José Botelho, Noel Devos, Harold Emert, Odete Ernest Dias, Joel Nascimento e outros parceiros de música, de vida e de palco;

Ao amigo Paulo Miranda da Oroboro - Produções artísticas;

À Carpex, ao Dr. Sergio da Costa e Silva e Projeto Música no Museu;

Aos meus queridos amigos e amigas, científicos e “não” científicos, pessoas maravilhosas que fizeram parte desse momento e que direta ou indiretamente contribuíram para a conclusão do trabalho;

Ao pessoal do Coro da Igreja Santa Cecília;

Ao Paulo Schroeter pela confecção dos programas do recital apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Música;

À querida Karina Cancella pela revisão especializada, pelas correções e formatações finais para a edição definitiva da tese.

Ao Luciano Perrone – in memoriam, que me deixou de herança todos os seus LPs, alguns raríssimos, entre eles o LP que originou a ideia desta tese;

Aos parentes e amigos – in memoriam , pois sem a vida deles interagindo na minha, eu não teria sido quem sou;

Ao mestre e amigo da BSGI, Dr. Daisako Ikeda, pelas palavras de sabedoria e incentivo;

Às Funções Protetoras do Universo pela proteção obtida; à beleza do mundo, da poesia, da música; e à imensidão do que seja o olhar, magia e mistério que me fascina, me ensina e me impulsiona, a cada dia, a amar;

Finalmente, agradeço à razão, que nunca deixou a minha curiosidade morrer e levou minha alma humana a olhar este trabalho como algo além de minha música e de mim mesma.

Na vida há momentos que parecem que estamos dentro de um túnel. Porém, ao atravessá-lo podemos ver novamente uma maravilhosa paisagem. O que não podemos fazer é parar no meio. A causa da derrota não se encontra no obstáculo ou no rigor das circunstâncias; está no retrocesso da determinação e na desistência da própria pessoa. Se falasse em dificuldades, tudo realmente era difícil. Se falasse em impossibilidades, tudo realmente era impossível. Quando o ser humano regride em sua decisão, os problemas que se erguem em sua frente acabam parecendo maiores e confundem-no como uma realidade imutável. A derrota encontra-se exatamente nisso. Como diz Nitiren Daishonin, sofra o que tiver que sofrer, desfrute o que existe para ser desfrutado, considere tanto o sofrimento como a alegria como fatos da vida e continue recitando o Nam miohô rengue kyô, não importando o que acontecer, e então experimentará a grande alegria. Essa é a verdadeira chave da vitória em tudo. E lembrem-se com alegria: A vitória é o início de um desafio ainda maior. Boa sorte a todos. (Dr. Daisako Ikeda)

CANAUD, Fernanda. O virtuosismo e o “swing” revelados na Revisão Fonográfica de Flor da Noite e Modinha & Baião de Radamés Gnattali. 2013. Tese (Doutorado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

RESUMO

Esta tese investigou a relevância da Análise Aural, parte da revisão fonográfica, das peças Flor da Noite e Modinha & Baião para violoncelo e piano de Radamés Gnattali, gravadas pelo autor-intérprete em Duo com Iberê Gomes Grosso no LP do selo Festa (LDR-5028) intitulado Villa-Lobos e Radamés Gnattali [1958-1964]. O objetivo principal do estudo foi revelar características da interpretação do autor-intérprete visando futuras performances de sua obra. Utilizou-se a Pesquisa Experimental do tipo Ex Post Facto, de acordo com Gil (2008), para gerar a criação de um modelo de análise aural, baseado na Gestão do Conhecimento de Nonaka e Takeuchi (1997), a partir da escuta das gravações do próprio compositor-intérprete comparadas com suas partituras autógrafas. Para as análises aurais, tomou-se como base o pensamento e o guia pontual de interpretação pianística de Artur Schnabel (WOLFF, 1972). A questão investigada nesta tese foi se a aplicação da análise aural, parte da revisão fonográfica, é uma ferramenta para revelar características não escritas pelo compositor-intérprete em suas partituras autógrafas. Outras hipóteses foram examinadas, por exemplo, se a revisão fonográfica poderia ser utilizada para o refinamento da expressão musical artística de intérpretes. Como resultado, constatou-se através da análise aural minudenciada da interpretação, revisão fonográfica, que o compositor, em suas execuções, não se ateve à própria escrita, tomando liberdades de andamento, de articulação das frases e de dinâmica não indicadas na partitura. Em síntese, a revisão fonográfica revelou o virtuosismo e o “swing”, como características da performance de Gnattali. A partir das peças escolhidas para análise aural, concluiu-se que a revisão fonográfica é um importante auxílio para a compreensão e execução das obras desse autor-intérprete; e que pode ser usada como ferramenta de trabalho nas práticas interpretativas extensivas à obra de outros compositores.

Palavras-Chave: Revisão Fonográfica. Análise Aural. Interpretação. Radamés Gnattali. Gestão do Conhecimento.

CANAUD, FERNANDA. The virtuosity and “swing” music revealed in the review of Flor da Noite and Modinha & Baião of Radamés Gnattali. 2013. PhD Thesis (Doutorado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

ABSTRACT

This study investigated the relevance of aural interpretation analysis model - part of reviewing recorded music of Radamés Gnattali´s pieces Flor da Noite and Modinha & Baião for Cello and Piano recorded by the author-performer in Duo with Iberê Gomes Grosso in the LP Seal Party (LDR-5028) titled Villa-Lobos and Radamés Gnattali [1958-1964]. The main objective of the study was to reveal features of the interpretation of the author-performer aiming future performances of his work. We used the Experimental Research of the type Ex Post Facto according to Gil (2008) to generate the creation of an aural analysis model from listening to the recordings of the composer-performer compared with their scores autograph, using the concept of Knowledge Management of Nonaka e Takeuchi (1997). For aural analysis approfondly aural analysis model interpretation was taken as the basis of thought and punctual tab piano performance of Artur Schnabel (WOLFF, 1972). The question was investigated whether the application of aural interpretation analysis model, recording part of the review, is a tool to reveal features not written by composer-performer in his handwritten scores. Other hypotheses were examined, such as the recording revision could be used for the refinement of artistic musical expression by interpreters. As a result it was found through, review music, the composer, in his plays, not played to writing itself, taking liberties, tempo, articulation and dynamics of phrases, not indicated in the score. In summary, the review revealed the virtuosity and swing, as the performance characteristics of Gnattali. From the pieces chosen for the analysis model concluded that the revision recording is an important aid to understanding and execution of the works of this author, performer, and that can be used as a tool in the interpretative practices extend to the work of other composers.

Keywords: Revision Phonographic. Aural Analysis. Interpretation. Radamés Gnattali. Knowledge Management.

CANAUD, FERNANDA. La virtuosité et “swing” révélélors de l'examende Flor da Noite ET Modinha & Baião de Radamés Gnattali . 2013. Thèse (Doutorado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

RESUMÉ

Cette étude a examiné la pertinence de l'analyse auditive, une partie de la révision de la musique enregistré. Le morceaux étaient: Flor da Noite et Modinha & Baião pour violoncelle et piano de Radamés Gnattali, jouées par le compositeur sur le disque en Duo avec le violoncelliste Iberê Gomes Grosso dans le LP (LDR-5028) intitulée Villa-Lobos et Radamés Gnattali [1958-1964]. L'objectif principal de l'étude était de révéler les caractéristiques de l'interprétation de l'auteur-instrumentiste visant performances futures de ses morceaux. Nous avons utilisé la recherche expérimentale de type Ex Post Facto selon Gil (2008) pour générer la création d'un modèle d'analyse auditive, avec le conception de Gestion de la connaissance de Nonaka e Takeuchi (1997). Pour l'analyse auditive la recherche, Nous avons utilisé la pensée d'Artur Schnabel (WOLFF, 1972). La question de recherche abordée était la suivante: Si l'application de le model de l'analyse auditive, cadre de l'examen, est un outil pour révéler des fonctionnalités non écrites par le compositeur dans ses partitions manuscrites. D'autres hypothèses ont été examinées, pour exemple: telles que le revision de l'enregistrement pourrait être utilisé pour le raffinement de l'expression artistique. En conséquence, il a été trouvé par l'analyse, que, la interprétation de cette compositeur par lui meme, est pleine des libertés de jouer: le tempo, l'articulation et la dynamique. En résumé, l'examen a révélé que la virtuosité et le swing sont les caractéristiques de l'écriture et la performance de ce compositeur, donc, d'jouer des œuvres d'Gnattali. Des morceaux retenus pour l'analyse auditive a conclu que l'analyse de disque et l'enregistrement révision est une aide importante à la compréhension et à la interpretation des morceaux de cet auteur, interprète, et qui peut être utilisé comme un outil dans des pratiques musicales. Peux aussi étendre cette travail en autres compositeurs.

Mots-clef: Révision phonographique. Analyse auditive. Interprétation. Radamés Gnattali. Gestion de la connaissance.

SUMÁRIO

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PREFÁCIO ...... 1

INTRODUÇÃO ...... 3 a. A escolha das peças e a ideia da revisão fonográfica...... 3 b. Estudos e Questionamentos...... 5 c. O que é análise no estudo da música — alguns tipos de análise musical...... 6 d. A inexistência de padrão para análise aural — revisão fonográfica...... 10 e. Centre for the History and Analyses of Recorded Music – CHARM...... 11 f. Metodologia do estudo — a revisão fonográfica: análise aural...... 12 g. A fundamentação teórica...... 16 h. Interesse na obra de Radamés Gnattali: revisão simplificada da literatura...... 20 i. O perfil biográfico de Radamés Gnattali na tese...... 24 j. A contribuição do trabalho...... 26 k. Organização do trabalho...... 27 l. Definição de termos...... 28 • Swing ...... 29 • Virtuosismo...... 32 • Pregão...... 33 • O gênero modinha ...... 34 • O gênero baião ...... 35

CAPÍTULO 1 - PERFIL BIOGRÁFICO ...... 39 1.1 Introdução...... 39 1.2 Antecedentes — raízes musicais de Radamés Gnattali: família de artistas...... 40 1.3 A prática musical em família – ecletismo musical e o apoio à carreira...... 42 1.4 A prática musical fora de casa - primeiros trabalhos...... 43 1.5 A prática musical erudita e os incentivos do Professor Guilherme Fontainha .. 45 1.5.1 Radamés no Rio de Janeiro em 1924...... 46 1.5.2 De volta a Porto Alegre...... 47 1.5.3 Em compasso de espera...... 48 1.5.4 Novamente no Rio de Janeiro em 1929...... 49 1.5.5 Entre idas e vindas — Entre Porto Alegre e Rio de Janeiro...... 52 1.5.6 Em 1931, Radamés mudou-se para o Rio de Janeiro definitivamente...... 53 1.6 Mudança do objetivo profissional de ser pianista concertista...... 54 1.7 Samba no piano — convívio com pianeiros cariocas — fama como arranjador...... 56 1.7.1 Tradição dos pianeiros no Rio de janeiro...... 58 1.8 O casamento e a nova vida — “operário da música”: pseudônimo Vero...... 61 1.9 O trabalho nas rádios...... 63 1.10 Fama de americanizado — caminhos para sedimentação de seu “swing”...... 66 1.11 O trabalho de Radamés nas gravadoras...... 68 1.11.1 Radamés e suas gravações até 1964...... 72 1.12 O lançamento do LP com o Duo Gnattali-Gomes Grosso...... 74 1.12.1 O sucesso do pregão e Flor da Noite gravada no LP...... 75 1.12.2 O sucesso do baião e o Baião gravado no LP...... 75 1.12.3 O selo Festa — mercado fonográfico Nacional para música erudita...... 76 1.13 Críticas à obra de Radamés — “puristas” da música erudita e popular...... 78 1.14 Composições inspiradas nos instrumentistas amigos...... 83 1.15 Notoriedade que superou as próprias expectativas...... 85 1.16 Virtuosismo e “Swing” de Radamés Gnattali...... 86

CAPÍTULO 2 - O GUIA DE INTERPRETAÇÃO DE ARTUR SCHNABEL QUE BASEOU OS CRITÉRIOS DA ANÁLISE AURAL DESTE TRABALHO...... 89

CA PÍTULO 3 - REVISÃO FONOGRÁFICA ...... 95 3.1 Introdução à Análise Aural de Flor da Noite e Modinha & Baião ...... 95 3.1.1 O estado dos fonogramas utilizados no trabalho (LP)...... 95 3.1.2 Características comuns das peças Flor da Noite e Modinha & Baião ...... 97 3.2 Flor da Noite — A peça...... 97 3.2.1 Flor da Noite — Algumas considerações sobre a harmonia...... 98 3.2.2 Flor da Noite — Estrutura geral da peça...... 99 3.2.3 Flor da Noite — Revisão fonográfica — Análise Aural — LP Gnattali...... 99 3.2.3.1 Comentários de David Chew I (dez compassos)...... 105 3.2.3.2 Comentários de David Chew II...... 114 3.2.4 Flor da Noite — Análise Aural sucinta e comparativa de Flor da Noite pelo Duo Chew-Canaud no CD de 2006...... 118 3.3 Modinha & Baião — A obra e sua execução...... 119 3.3.1 Modinha — Algumas considerações sobre a peça...... 120 3.3.2 Modinha — Estrutura geral da peça...... 120 3.3.3 Modinha — Revisão Fonográfica — Análise Aural — LP Gnattali- Grosso...... 121 3.3.4 Modinha — Análise Aural sucinta e comparativa de Modinha pelo Duo Chew--Canaud no CD de 2006...... 130 3.3.4.1 Comentários de David Chew III ( Modinha) ...... 134 3.3.5 Baião — Algumas considerações sobre a peça...... 135 3.3.6 Baião — Estrutura geral da peça...... 135 3.3.7 Baião — Revisão Fonográfica — Análise Aural — LP Gnattali- Grosso...... 136 3.3.7.1 Comentários de David Chew IV (da execução do Baião)... .. 146 3.3.8 Baião — Análise Aural sucinta e comparativa de Baião pelo Duo Chew-Canaud no CD de 2006...... 146 3.3.8.1 Comentário V...... 148 3.4 Modinha & Baião — Versão 2012: Vídeo do recital “ao vivo” com o Duo Chew-Canaud Modinha & Baião ...... 150 3.5 Análise, Interpretação e Discussão dos resultados...... 152

CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES ...... 161

REFERÊ NCIAS ...... 165

ANEXOS ...... 177

LISTA DE QUADROS

Página

Quadro 1. Espiral do conhecimento no Processo SECI...... 15 Quadro 2. Forma Musical de Flor da Noite ...... 99 Quadro 3. Forma Musical de Modinha ...... 121 Quadro 4. Forma Musical do Baião ...... 136 Quadro 5. Processo recomendado de Aplicação da Análise Aural...... 163

LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS EM PARTITURAS

EXEMPLO MUSICAL Página

1. Rítmica básica do Baião ...... 37 2. Recorte da Partitura editada de Flor da Noite c. 30 ao c. 34...... 98 3. Flor da Noite – c. 16 ao c. 17...... 100 4. Flor da Noite – c. 1 ao c. 10 (Take 2)...... 101 5. Flor da Noite – c. 1 ao c. 5 (Take 3)...... 102 6. Flor da Noite – c. 5.4 ao c. 10 (Take 4)...... 104 7. Flor da Noite – c. 11 ao c. 19.3 (Take 5)...... 107 8.1. Flor da Noite – c. 19.4 ao c. 43 Seção B (Take 6)...... 109 8.2. Flor da Noite (continuação) – c. 19.4 ao c. 43 – Seção B ...... 110 9. Flor da Noite – c. 19.4 ao c. 29 – Subseção b1 (Take 7)...... 111 10. Flor da Noite – c. 29.4 ao c. 35 – Subseção b2 (Take 8)...... 112 11. Flor da Noite – c. 36 ao c. 43 – Subseção b3 (corresponde ao Take 9)...... 113 12. Flor da Noite – c. 44 ao c. 52.1 – Seção A’ (Take 10)...... 115 13. Flor da Noite – c. 52 ao c. 57 – Coda (Take 11)...... 116 14. Modinha – c. 1 ao c. 7 (Take 14)...... 122 15.1. Modinha – c. 8 ao c. 20 (Take 15)...... 124 15.2. Modinha – (continuação) c. 21 ao c. 23...... 124 16. Modinha – c. 24 ao c. 31 (Take 16)...... 126 17.1. Modinha – c. 32 (Take 17)...... 127 17.2. Modinha – (continuação) c. 33 ao c. 37...... 127 18.1. Modinha – Seção A’ c. 38 ao c. 50 (Take 18)...... 128 18.2. (continuação da Seção A’ até c. 53 e Coda - c. 54 ao c. 60)...... 129 19. Modinha – c. 1 ao c. 7 (Take 20.)...... 131 20.1. Modinha – c. 8 ao c. 23 (Take 21.)...... 132 20.2. Modinha – (continuação do c. 8 ao c. 23)...... 133 21. Modinha – Subseção b1 (Take 22.)...... 133 22. Baião – c. 1 ao c. 10 (Take 24)...... 137 23. Baião – Subseção a1 ; início da transição c. 11 ao c. 29 (Take 25)...... 138 24. Baião – c. 30 ao c. 42 (Take 26)...... 139 25.1 Baião – c. 81 ao c. 110.1 (Take 27)...... 140 25.2 Baião – (continuação) c. 81 ao c. 101.1...... 141 26. Baião – c. 117 ao c. 138 (Take 28)...... 142 27.1 Baião – c. 153 ao c. 15 (Take 29)...... 143 27.2 Baião – c. 162. 2 ao c. 169 (continuação)...... 143 28. Baião – c. 169.2 ao c. 182 (Take 30)...... 144 29. Baião – c. 200 ao c. 212 – Coda (Take 31)...... 145

LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS EM ÁUDIO

TAKE Página

1. (00’ 00’’ a 03’ 36’’) Flor da Noite – Versão integral do LP...... 99 2. (00’ 00’’ a 00’ 41’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 4)...... 101 3. (00’ 00’’ a 00’ 22’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 5)...... 102 4. (00’ 00’’ a 00’ 41’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 6)...... 104 5. (00’ 42’’ a 01’ 16’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 7)...... 107 6. (01’ 17’’ a 03’ 35’’) Flor da Noite – (ex. musical 8.1 e 8.2)...... 109 7. (01’ 17’’ a 01’ 48’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 9)...... 111 8. (01’ 48’’ a 02’ 06’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 10)...... 112 9. (02’ 03’’ a 02’ 34’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 11)...... 113 10. (02’ 30’’ a 03’ 35’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 12)...... 115 11. (03’ 05’’ a 03’ 35’’) Flor da Noite – (correspondente ao ex. musical 13)...... 116 12. (00’ 00’’ a 04’ 26’’) Flor da Noite – Versão integral do CD de 2006...... 118 13. (00’ 00’’ a 04’ 14’’) Modinha – Versão integral do LP...... 121 14. (00’ 00’’ a 00’ 34’’) Modinha – (correspondente ao ex. musical 14)...... 122 15. (00’ 08’’ a 01’ 38’’) Modinha – (ex. musical 15.1 e 15.2)...... 124 16. (01’ 37’’ a 02’ 09’’) Modinha – (correspondente ao ex. musical 16)...... 126 17. (02’ 09’’ a 02’ 32’’) Modinha – (ex. musical 17.1 e 17.2)...... 127 18. (02’ 32’’ a 04’ 14’’) Modinha – (ex. musical 18.1 e 18.2)...... 128 19. (00’ 00’’ a 04’ 30’’) Modinha – Versão integral do CD 2006...... 130 20. (00’ 00’’ a 00’ 31’’) Modinha – Duo Chew-Canaud – (ex. musical 19)...... 131 21. (00’ 28’’ a 01’ 42’’) Modinha – Duo Chew-Canaud – (ex. musical 20.1 e 20.2).... . 132 22. (01’ 42’’ a 02’ 17’’) Modinha – Duo Chew-Canaud (ex. musical 21)...... 133 23. (00’ 00’’ a 03’ 26’’) Baião – Versão integral do LP Gnattali-Gomes Grosso...... 136 24. (00’ 00’’ a 00’ 12’’) Baião – (correspondente ao ex. musical 22)...... 137 25. (00’ 12’’ a 00’ 28’’) Baião – (correspondente ao ex. musical 23)...... 138 26. (00’ 30’’ a 00’ 40’’) Baião – (correspondente ao ex. musical 24)...... 139 27. (01’ 16’’ a 01’ 46’’) Baião – (ex. musical 25.1 e 25.2)...... 140 28. (01’ 52’’ a 02’ 16’’) Baião – (correspondente ao ex. musical 26)...... 142 29. (02’ 28’’ a 02’ 43’’) Baião – (ex. musical 27.1 e 27.2)...... 143 30. (02’ 43’’ a 02’ 55’’) Baião – (correspondente ao ex. musical 28)...... 144 31. (03’ 12’’ a 03’ 26’’) Baião – (correspondente ao ex. musical 29)...... 145 32. (00’ 00’’ a 03’ 54’’) Baião – (Versão integral) CD 2006 Duo Chew-Canaud...... 146 33. (00’ 00’’ a 04’ 18’’) Modinha – (Versão Integral) Vídeo 2012 Chew-Canaud...... 150 34. (00’ 00’’ a 00’ 00’’) Baião – (Versão Integral) Vídeo 2012 Chew-Canaud...... 151

LISTA DE ANEXOS

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A - Partitura autógrafa de Flor da Noite ...... 179 B - Partitura autógrafa de Modinha de Modinha &Baião ...... 183 C - Partitura autógrafa de Baião de Modinha & Baião ...... 187 D - Partitura editada de Flor da Noite ...... 197 E - Obras de Câmara para Duos com piano de Radamés Gnattali...... 201 1. Canto e Piano...... 201 2. Cavaquinho e Piano...... 201 3. Contrabaixo e Piano...... 202 4. Fagote e Piano...... 202 5. Flauta e Piano...... 202 6. Harmônica de boca e Piano...... 202 7. Dois Pianos...... 202 8. Saxofone tenor e Piano...... 203 9. Viola e Piano...... 204 10. Violão e Piano...... 204 11. Violino e Piano...... 205 12. Violoncelo e Piano...... 205 F - Depoimentos de amigos e parentes de Radamés Gnattali coletados em 1989...... 207 1. Aída Gnattali...... 207 2. Antônio Carlos Jobim...... 211 3. Arthur Moreira Lima...... 213 4. ...... 215 5. Chiquinho do Acordeão...... 217 6. Henrique Cazes...... 219 7. Luiz Otávio Braga...... 221 8. Raphael Rabello...... 223 9. Roberta Gnattali...... 225 10. Roberto Gnattali...... 227 G - Ilustrações — Figuras Ilustrativas...... 229 1. Capa do LP selo Festa LDR 5028 - Villa-Lobos / Radamés Gnattali ...... 229 2. Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso em recital na década de 1960...... 229 3. Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso em recital na década de 1970...... 230 4. Família Fossati...... 230 5. Olga Fossati com o pai César – prima e tio de Radamés...... 230 6. Alessandro, Angelo, Giovanna, Teresa Bighelli (pai, avô, tia e avó de Radamés Gnattali)...... 231 7. Alessandro Gnattali, pai de Radamés Gnattali...... 231 8. Radamés Gnattali (em 1908) – um mês para completar três anos de idade...... 231 9. Radamés Gnattali com nove anos de idade, em 1915, na Sociedade Italiana...... 232 10. Adélia Fossati Gnattali, mãe de Radamés Gnattali...... 232 11. Radamés ao cavaquinho no “bloco de carnaval” intitulado Os Exagerados ...... 232 12. Radamés Gnattali atuando como violonista...... 233 13. Radamés Gnattali na década de 1920 experimentando o fagote...... 233 14. Ideal Jazz Band do Café Colombo...... 233 15. Radamés Gnattali aos 18 anos...... 234 16. Fachada do Instituto Nacional de Música...... 234 17. Fachada do Cine Odeon em 1922...... 234 18. Recital de formatura dos alunos do professor Guilherme Fontainha...... 235 19. Radamés e Vera Maria em 1929...... 235 20. Casa Beethoven de Porto Alegre, em 1931...... 235 21. Fachada do Cine Odeon...... 236 22. Casa de Carlos Wehrs – o proprietário Carlos Wehrs e ao piano Freitinhas...... 236 23. Rosto de Radamés Gnattali – Gravura de ...... 236 24. Orquestra de Romeu Silva no Cassino da Urca...... 237 25. Interior da Rádio Mayrink Veiga ...... 237 26. Radamés na Rádio Nacional...... 237 27. Iberê Gomes Grosso, Radamés Gnattali e Romeo Ghipsman...... 238 28. Homenagem da Rádio Municipal de Buenos Aires a Radamés Gnattali...... 238 29. Pixinguinha e Radamés...... 238 30. , Radamés, Jorge Cury e Silvio Caldas na Rádio Nacional...... 239 31. LP – Radamés Gnattali e Orquestra Continental...... 239 32. LP Samba em três andamentos de Radamés Gnattali ...... 239 33. LP Suíte Popular Brasileira para Violão e Piano ...... 240 34. LP Radamés e a Bossa Eterna ...... 240 35. Sexteto Continental – depois Sexteto Radamés...... 240 36. LP 3ª Caravana – Radamés na Europa ...... 241 37. LP Retratos ...... 241

H - CD que acompanha a tese contendo os seguintes itens: (a) fonogramas do LP Festa , com as peças Flor da Noite e Modinha & Baião interpretadas integralmente por Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso (objeto da revisão fonográfica deste trabalho); (b) takes com os recortes indicados na análise (referentes ao Capítulo III desta tese e apresentados na ordem exata de citação no corpo do trabalho); (c) interpretações das mesmas obras pelo Duo Chew-Canaud (2006); (d) takes com os recortes; (e) vídeo do concerto ao vivo do Duo Chew-Canaud tocando Modinha & Baião na versão de 2012...... 243

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PREFÁCIO

A ideia desta tese surgiu alguns meses após minha gravação, em Duo com David Chew 1, da obra completa para violoncelo e piano de Radamés Gnattali, realizada no estúdio sinfônico da Rádio MEC entre o primeiro e o segundo semestre de 2005. O Duo Chew-Canaud estreou em 2003 em recital com obras de Villa-Lobos e Radamés Gnattali, tocando na prova de Mestrado de David Chew na Universidade de Hull em Leeds. Em 2004, gravou o Concerto para piano, violoncelo e orquestra de Radamés Gnattali para o CD intitulado Retratos do Brasil do selo Rádio MEC . Em 27 de janeiro de 2006, dia do centenário do compositor Radamés Gnattali, lançou o CD intitulado 100 anos de Radamés Gnattali — Obra Integral para Violoncelo e Piano , do selo Rádio MEC , em parceria com o Instituto Moreira Salles. Na época das gravações desse CD, eu particularmente não tinha conhecimento da existência do LP intitulado Villa-Lobos / Radamés Gnattali [1958-1964], no qual o próprio Radamés, ao piano, em Duo com o violoncelista Iberê Gomes Grosso, toca as obras de sua autoria Sonata nº 1, Flor da Noite e Modinha & Baião ; e a Sonata nº 2 de Villa-Lobos — todas para violoncelo e piano. Ao ouvir esse disco, face à diferença de concepção interpretativa percebida, sobretudo, nas obras Flor da Noite e Modinha & Baião , deparei-me com um dilema: deveríamos, eu e David Chew, manter ou modificar a nossa versão que já estava concluída, com as edições prontas e em fase de masterização? Por questões práticas que envolviam o cronograma e os custos do projeto, decidimos manter a versão inicialmente concebida por nós, afinal o CD era

1 David Chew, violoncelista inglês radicado no Brasil desde 1981, estudou com William e Tony Pleeth na Guildhall School of Music , em Londres, especializando-se posteriormente em música brasileira na Universidade de Hull (Inglaterra). Foi spalla da Orquestra Jovem Nacional da Grã-Bretanha , onde trabalhou com Pierre Boulez, também integrando a Orquestra da BBC e o London Mozart Players por seis anos. Desde a sua vinda para o Brasil, tem sido um dos mais atuantes violoncelistas do país, atuando como solista, camerista e professor, regularmente convidado para realizar recitais e lecionar no exterior. Integra a Orquestra Sinfônica Brasileira, da qual é spalla desde 1981, assim como o Quarteto de Cordas da UFF . Foi um dos fundadores das orquestras de cordas: Brasil Consort e e Rio Cello Ensemble . Fez várias gravações com Duo Folia , Duo Chew -Canaud, Trio Peranzzetta-Senise-Chew e com a Orquestra de Cordas Rio Strings . Desde 1995 é diretor artístico do Rio International Cello Encounter (RICE) do Rio de Janeiro, um dos mais importantes festivais mundiais dedicados ao violoncelo. David é diretor do Mestrado em Instrumentos de Cordas do Conservatório Brasileiro de Música (lato sensu ). Em 2009, recebeu a honraria de Cavaleiro da Ordem do Império Britânico (O. B. E.), outorgado pela Rainha Elizabeth, por sua valiosa contribuição ao intercâmbio cultural anglo-brasileiro. Em 2012 recebeu o título de Doutor Honoris Causa em Música pela Universidade de Hull.

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para ser lançado na efeméride dos cem anos de nascimento do compositor Radamés Gnattali. Nosso dilema, ao menos aparentemente, estava resolvido, pois prosseguimos com o projeto e, consequentemente, com o lançamento do CD, que foi prestigiado pela crítica especializada e recorrentemente tocado nas rádios MEC e Cultura . Entretanto, no ano de 2009, ao ingressar no curso de Doutorado em Música da UNIRIO já com um projeto vinculado à obra de câmara de Radamés Gnattali e na condição de pesquisadora na área de Práticas Interpretativas, comecei a desenvolver a ideia de utilizar a escuta daquele LP do Duo Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso como ferramenta para auxiliar na interpretação da obra de câmara do autor. O mote determinante da direção desta pesquisa foi a existência de algo que me intrigava em relação à interpretação do próprio autor com Iberê no que diz respeito ao que não está indicado na partitura autógrafa. Sentia que havia algo de sugestivo naquela interpretação, que me parecia “auralmente” evidente, por exemplo, no que se refere à liberdade de tempo, de dinâmica e das articulações, e que, de alguma forma, não se pode claramente perceber apenas lendo a partitura de câmara do autor. Genericamente, sendo notáveis as diferenças entre as duas versões no que se refere ao swing , sobretudo nas peças Flor da Noite e Modinha & Baião , decidi, então, minudenciá-las (as diferenças) através da análise aural dos fonogramas e utilizar esta tarefa com o seguinte objetivo: apontar os aspectos mais típicos de sua interpretação pianística revelados na revisão fonográfica e, consequentemente, comprovar a utilidade da revisão fonográfica como um importante auxílio aos intérpretes no estudo interpretativo de peças de Radamés. A ideia da revisão fonográfica amadureceu e após o Exame de Qualificação do curso de Doutorado, as seguintes perguntas também passaram a nortear o trabalho final: De que maneira a escuta poderia ser utilizada como uma aliada do refinamento da expressão musical artística de um intérprete? A revisão fonográfica seria um caminho válido? Quais as características da interpretação do autor, reveladas através da escuta, que poderiam capacitar ouvintes e intérpretes para futuras performances da obra de câmara de Radamés Gnattali? E, finalmente, a revisão fonográfica seria uma proposta válida para o estudo da interpretação de outros autores-instrumentistas? Deparamo-nos, então, com a necessidade de realizar uma análise não das composições, mas sim das interpretações disponíveis nos registros fonográficos. A partir da escuta da gravação do Duo Gnattali-Gomes Grosso, investigaram-se as características da execução reveladas na análise minuciosa e aural das interpretações das peças Flor da Noite e Modinha & Baião de Radamés Gnattali, pelo próprio autor. 3

INTRODUÇÃO

[...] o valor de uma investigação se mede, em tudo e para tudo, por sua aptidão a servir à ação. A experiência não apenas nos ensinou que é impossível decidir previamente se as especulações aparentemente as mais desinteressadas não se revelarão, um dia, espantosamente úteis à prática. Seria infligir à humanidade uma estranha mutilação recusar-lhe o direito de buscar, fora de qualquer preocupação de bem-estar, o apaziguamento de suas fomes intelectuais [...] (BLOCH, 2002, p. 44- 45).

a. A escolha das peças e a ideia da revisão fonográfica

As revisões fonográficas das peças Flor da Noite e Modinha & Baião para violoncelo e piano, compostas por Radamés Gnattali (1906-1988) e gravadas por ele em Duo com o violoncelista Iberê Gomes Grosso (1905-1983), revelam aspectos característicos de sua interpretação pianística: virtuosismo e swing . Os fonogramas dessas duas peças de câmara utilizados nas revisões fonográficas encontram-se no LP intitulado Villa-Lobos / Radamés Gnattali , lançado pelo selo comercial Festa (LDR 5028). Esse raro LP [1958-1964], fonte primária desta pesquisa, é o único registro comercial de Flor da Noite (composta em 1938) e Modinha & Baião (composta em 1952) na interpretação do próprio Radamés Gnattali ao piano, tocando em Duo com Iberê Gomes Grosso. Das três composições de Radamés registradas no referido LP ( Sonata nº 1 , Flor da Noite e Modinha & Baião) selecionaram-se, para este trabalho, apenas Flor da Noite e Modinha & Baião por serem as peças do disco nas quais o autor é inspirado diretamente por temas populares, como se pode a priori constatar pelos títulos que lhes foram dados. As peças escolhidas colocam em evidência características da execução de Radamés Gnattali que são destacadas para reflexão neste trabalho, tendo em vista futuras interpretações de sua música de câmara. Ao todo, Radamés compôs seis obras para Duo de violoncelo e piano: Sonata nº 1 (1935), Flor da Noite (1938), Modinha & Baião (1952), Brasiliana nº 9 (1960), Sonatina (1965) e Sonata nº 2 ( 1973). Compôs ainda duas peças para violoncelo e piano com orquestra de câmara: o Concerto para violoncelo, piano e orquestra de cordas (1969) e o Concerto

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para um jovem violoncelista para violoncelo, orquestra de cordas e piano (1969) que correspondem à obra completa para essa formação. O pianista concertista Radamés Gnattali enveredou pelos caminhos da composição erudita e popular deixando uma vasta produção para a posteridade. Um legado de mais de trezentos títulos somente para a música de concerto — entre sonatas, sonatinas, sinfonias, brasilianas, suítes, trios, quartetos de corda, duos, sextetos, quintetos de sopro, quartetos com piano, concertos com orquestra para diversos instrumentos solistas (tais como piano, violão, violoncelo, saxofone, acordeão, bandolim, guitarra, marimba, harpa e outros). O legado de Radamés ainda é formado por aproximadamente cento e cinquenta composições populares em diversos gêneros como choro, dobrado, sambas-canção, quadrilha, rancheira, polca, polca- choro, valsa, marcha, bolero, mazurca, foxtrote, serenata, baião, moda, maxixe, entre outros. Além de suas composições, deixou mais de dez mil arranjos musicais escritos para diversos trabalhos, por exemplo, em gravadoras (RCA Victor , Columbia, Continental , Odeon ); em rádios (Transmissora , Mayrink Veiga , Nacional ); e em televisão ( TV Excelsior , TV Globo ). Sua produção para o cinema nacional também é significativa. Ressalta- se que somente entre os anos de 1950 e 1960, Radamés compôs mais de trinta trilhas sonoras para filmes realizados pelas companhias: Atlântica , Cinédia , Vera Cruz , Columbia Pictures do Brasil , entre outras. Portanto, ouve-se afirmar que “Radamés Gnattali é um dos músicos mais completos da história da música brasileira” (DIDIER, 1996, p. 11). Músicos e maestros brasileiros de diferentes gerações, por exemplo, Tom Jobim, Raphael Rabello, Arthur Moreira Lima, Luciano Perrone, Henrique Cazes, Joel Nascimento, Luiz Otávio Braga, Aída Gnattali, entre outros, cujos depoimentos coletados estão no Anexo F desta tese, compararam Radamés Gnattali a Mozart pelo dom precoce, talento e volume de sua obra (BRAGA, 2002; CANAUD, 1991; CAZES, 1998). Radamés, como instrumentista-pianista-camerista, ao longo de sua vida, formou diversos conjuntos de música de câmara com diferentes artistas tanto da música clássica quanto da música popular, como o Duo com Bidu Sayão; o Trio com os irmãos Cosme; o Quarteto Henrique Oswald (no qual atuou como violista); o Sexteto Radamés; o Duo pianístico com sua irmã Aída Gnattali; o Duo com a Camerata Carioca; o Duo com Raphael Rabello; entre outros. O Duo de câmara de Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso já existia por mais de duas décadas na ocasião da gravação do LP utilizado nesta pesquisa, fato que pressupõe plena maturidade artística e afinidade musical interpretativa entre os dois músicos, sobretudo na execução da obra do próprio autor, Radamés Gnattali. 5

Nesse LP, o Duo também gravou a Sonata nº 2 de Villa-Lobos, além das três composições de Radamés anteriormente citadas. Iberê, além de muito amigo de Radamés, foi um renomado músico brasileiro com quem o compositor-pianista trabalhou durante quatro décadas.2 No livro Iberê Gomes Grosso: Dois séculos de tradição musical na trajetória de um violoncelista, Valdinha Barbosa (2005) alia informações de episódios musicais que constituíram a biografia desse músico com o cenário histórico de nosso país no que se refere à vida musical e aos movimentos estéticos, sociais e políticos da época. O livro também apresenta extratos de críticas de apresentações de Iberê em que o violoncelista é citado, por exemplo, como “Casals nacional” e como músico de “arte superior, musicalidade e técnica transcendente” (BARBOSA, 2005, p. 160, p. 209-210). Iberê, assim como Radamés, estava habituado a tocar música popular tanto nas orquestras das rádios como nos arranjos de gravações dos discos de cantores famosos. Não raramente, Iberê era o primeiro a ser escalado para o naipe de cordas. Ele possuía experiência e afinidade com a linguagem popular brasileira, porém costumeiramente se referia a esta prática de forma pejorativa, pois considerava que o músico que não tocasse apenas o repertório de concerto se “prostituía” para sobreviver vivendo de música no Brasil (BARBOSA, 2005, p. 107).

b. Estudos e questionamentos

Em relação à utilização da revisão fonográfica, algumas questões surgiram, uma vez que se percebeu o virtuosismo clássico e o swing 3, ou suingue brasileiro, como aspectos da interpretação pianística do compositor em Duo com Iberê Gomes Grosso que não estão claros na partitura. Visando-se à prática interpretativa, a principal questão levantada foi: Seria a revisão fonográfica (análise aural) de gravação realizada pelo próprio compositor, tendo como apoio suas partituras autógrafas, uma ferramenta aliada para o refinamento da expressão artística de intérpretes?

2 Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso estrearam o Duo em “11 de outubro de 1937 no Instituto Nacional de Música” e fizeram a última apresentação na “Sala Cecília Meireles, em 1982, em concerto ao vivo ” (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 43, p. 79). 3 Tocar “suingado”, com suingue, com balanço, com bossa, com a agógica característica da música brasileira ou com a métrica derramada, vide item “Definição de termos” na página 28.

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Outras questões foram elaboradas: Seria a revisão fonográfica de gravação realizada com a interpretação do próprio compositor item importante para o intérprete se aproximar do caráter de uma obra com mais clareza e segurança? A gravação de Radamés ou outro compositor-intérprete pode substituir a própria partitura como referência para um intérprete? A liberdade de interpretação põe em risco a fidelidade ao texto? As versões gravadas estabelecem tradições distintas das partituras? O virtuosismo empregado nas obras de Gnattali pode ser considerado como elemento característico de sua escrita pianística? Qual a relevância do virtuosismo e do swing na obra de Radamés? Seria ele um modelo de critério estético para sua interpretação? Buscou-se, em cada uma das peças, identificar características na performance do autor-intérprete que proporcionassem o entendimento de sua interpretação. O emprego do virtuosismo e do swing foi considerado como elemento idiomático da escrita pianística do compositor. Por meio das análises aurais inerentes, valorizou-se a abordagem crítica e estética das gravações de Flor da Noite e Modinha & Baião .

c. O que é análise no estudo da música — alguns tipos de análise musical

Análise é entendida como o processo de decomposição em partes dos elementos que integram um todo com o objetivo de permitir o estudo em separado desses elementos, possibilitando entender: quais são; sua natureza; suas proporções; suas funções; como se articulam; e como foram interligados de modo a gerar o todo de que fazem parte (FERREIRA, 1999, p. 130). Bent e Pople (2001) assinam o verbete Análise do Grove’s Dictionary (um dos maiores compêndios existentes sobre música, atualmente na versão online), no qual podem ser encontradas algumas definições para análise musical. No Capítulo 1 The place of analysis in the study of music, na definição geral de Análise , Bent e Pople (2001) consideram que esta é a parte do estudo da música que toma como ponto de partida a música em si, em vez de fatores externos. Convencionalmente, a análise pode incluir a interpretação de estruturas da música, aliada ao conhecimento da resolução dos seus elementos constituintes mais simples, e a investigação das funções relevantes desses elementos. A seguir, faz-se uma tradução livre da definição de Análise segundo Bent e Pople (2001): 7

Uma definição geral do termo análise, como está implícita na palavra, pode ser: parte do estudo da música que toma como ponto de partida a música em si. Mais estritamente, pode-se dizer que análise inclui a interpretação de estruturas músicais juntamente com a sua resolução dentro dos elementos constituintes e a investigação das funções pertinentes desses elementos. Nesse processo, a “estrutura” musical pode ser parte de um trabalho, um trabalho em sua totalidade, um grupo ou um repertório de obras, de tradição escrita ou oral. A relação entre as estruturas e elementos propostos pela análise e os pontos de vista: técnico-experimentais, geradores e documentais sobre música, tem, de tempos em tempos e dependendo do lugar, restringido diferentemente a análise e despertado debate. Menos controversa é a distinção prática entre a análise formal e análise estilística que muitas vezes é feita; desnecessária, na medida em que, por um lado qualquer composição musical, grande ou pequena, pode ser considerada um “estilo”; e, por outro lado, todos os processos comparativos que caracterizam a análise estilística são inerentes à atividade analítica elementar (fundamental) que estrutura os elementos (BENT; POPLE, 2001, tradução nossa). 4

O entendimento do que seja análise musical dado por Bent e Pople (2001) pode ser ampliado, uma vez que os autores terminam a frase inicial dizendo que a análise musical tem como ponto de partida a música em si mesma, desvinculando fatores externos. Além disso, o texto aponta para uma das principais ocorrências presenciadas no campo da análise musical: sua emancipação e cristalização como campo autônomo do estudo da música. O autor avalia que, mais estritamente, uma análise inclui a interpretação de estruturas musicais juntamente com a sua resolução dentro dos elementos constituintes e a investigação das funções pertinentes desses elementos. E que, nesse processo, a estrutura musical pode ser parte de um trabalho, um trabalho em sua totalidade, um grupo ou um repertório de obras, de tradição escrita ou oral. Porém, ele admite que a relação entre as estruturas e elementos propostos pelas análises e os pontos de vista tanto técnico-experimentais quanto geradores e documentais sobre música têm, de tempos em tempos e dependendo do lugar, restringido diferentemente as análises e, por essa razão, despertado querelas. Bent e Pople (2001) ainda destacam que bem menos controversa é a distinção prática entre a análise formal e análise estilística e consideram que a análise estilística é desnecessária, na medida em que por um lado qualquer composição musical, grande ou pequena, pode ser considerada um estilo e, por outro lado, todos os processos comparativos que caracterizam a análise estilística são inerentes à atividade analítica elementar que determina as estruturas concernentes aos

4 More formally, analysis may be said to include the interpretation of structures in music, together with their resolution into relatively simpler constituent elements, and the investigation of the relevant functions of those elements. In such a process the musical ‘structure’ may stand for part of a work, a work in its entirety, a group or even a repertory of works, in a written or oral tradition. The relationship between the structures and elements proposed by analysis, and experiential, generative and documentary perspectives on music, has circumscribed analysis differently from time to time and from place to place, and has aroused debate. Less controversially, a practical distinction is often drawn between formal analysis and stylistic analysis; but this is unnecessary insofar as on the one hand any musical complex, no matter how small or large, may be deemed a “style”; and on the other hand, all the comparative processes that characterize stylistic analysis are inherent in the basic analytical activity of resolving structures into elements (BENT; POPLE, 2001).

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elementos. Antenor Corrêa, no artigo intitulado O Sentido da Análise Musical , apresenta uma síntese histórico-crítica a respeito da Análise Musical, “fazendo uma reflexão sobre os rumos tomados por essa disciplina no século XX”. O autor ainda explica que a análise musical foi “usada de início como suporte para notas de programa, posteriormente tornou-se ferramenta de ensino composicional e subsidiária da crítica musical, até consolidar-se enquanto área autônoma do estudo da música” (CORRÊA, 2006, p. 33). Segundo o artigo supracitado, o procedimento de análise musical justifica-se por admitir-se que a explicação do detalhe sobre o conjunto é o que conduz a um melhor entendimento global, sendo que “é uma espécie de opinião comum o fato de a análise musical ter se revestido de um teor positivista, funcionando como espécie de comprobatório das pesquisas realizadas no campo musical” (CORRÊA, 2006, p. 51). As preocupações com a análise musical, com a estética musical e com a teoria composicional têm muitos pontos em comum, pois essas matérias ocupam posições ao longo de um eixo que tem em um extremo o lugar da música em esquemas filosóficos ou subjetivos e no outro o ensino da técnica na arte da composição. Uma análise pode servir como ferramenta para o ensino, pois considera-se que a análise musical (composicional) atua instruindo o intérprete ou o ouvinte, assim como o compositor, mas pode muito bem ser um processo de descoberta individual. Pople (1994), no livro Theory, Analysis and Meaning in Music , dá ao termo Análise musical um sentido geral que abrange um grande número de atividades diversas. Algumas dessas são mutuamente exclusivas: elas representam pontos de vista fundamentalmente diferentes da natureza da música, do papel da música na vida humana e do papel do intelecto humano em relação à música. Estes diferentes pontos de vista tornam o campo de análise de difícil definição dentro de suas próprias fronteiras. A tarefa de destacar todos os aspectos da análise musical é o ponto fundamental de contato entre a mente e o som musical, sobretudo a percepção musical. Conforme Pople (1994), um relacionamento bem diferente do supracitado existe entre a análise musical e a história da música. Para o historiador, a análise pode aparecer como uma ferramenta para a investigação histórica. Ele utilizaria a análise para detectar relações entre estilos e, portanto, para estabelecer as cadeias de causalidade que operam ao longo da dimensão de tempo e são ancorados no tempo por informação factual verificável. 9

A maioria das análises musicais baseia-se na partitura e consideram-na como a apresentação final das ideias musicais. Neste sentido, é de grande interesse para a análise dos fonogramas feita neste trabalho o conceito de Bent e Pople (2001) sobre procedimentos de análise. Os autores afirmam a possibilidade de ser aplicados a diferentes estilos de composição, assim como para diferentes estilos de interpretação . Entretanto, os autores ressaltam que o ponto em que a composição para e a interpretação começa raramente é claro ou preciso. Destaca-se o seguinte trecho do quarto parágrafo do capítulo The place of analysis in the study of music , com tradução nossa: Então, se é verdade que a forma através da qual sobrevive a Música Medieval, Renascentista e Barroca seja um registro incompleto, então é ainda mais apropriado para o analista de material etnomusicológico, de improvisação de jazz ou de música popular gravada em disco, fita e CD, considerar que a partitura seja apenas um artefato intermediário, e que, de modo algum, separa o compositor do intérprete, ou a composição da sua execução. Nesses casos, a partitura fornece uma comunicação grosseira da apresentação gravada, que terá de ser analisada auralmente, ou com equipamento eletrônico. Considerações semelhantes aplicam-se à análise da prática interpretativa na música clássica, embora, nesse caso, a partitura possa ser utilizada como ponto de referência constante para medir e comparar diferentes interpretações (BENT; POPLE, 2001, tradução nossa). 5

Portanto, considera-se muito significativo que os procedimentos de análise estejam, na atualidade, ligados à escuta, ou seja, à análise aural, podendo também ser aplicados tanto para estilos de composição quanto para estilos de desempenho e interpretação. Além disso, concorda-se que não é claro o ponto no qual acaba a composição e começa a interpretação quando se tratam de improvisações, como no caso das diferentes performances da música popular e das improvisações do Jazz ; de material etnomusicológico, sobretudo aquelas encontrados em gravações realizadas ao vivo . Muitas dessas músicas terão que ser analisadas auralmente. Considerações semelhantes foram aplicadas à análise da performance da música clássica dos fonogramas desta pesquisa com a interpretação do próprio compositor, embora nestes casos tenha sido possível utilizar a partitura como um constante ponto de referência. Cabe ressaltar que por não terem sido localizados modelos ou padrões de análise musical (aural) que satisfizessem às reivindicações desta pesquisa (destacar características estéticas da performance do autor correlacionando-a com sua partitura autógrafa) procurou-se, então, criar

5 If it is true that the notated form in which a medieval, Renaissance or Baroque work survives is an incomplete record, it is even more to the point that for the analyst of ethnomusicological material, jazz improvisation or popular music recorded on tape, vinyl or CD, a score is only an intermediary artefact which in no way marks off ‘composer’ from ‘performer’. It provides a coarse communication of a recorded performance, much of which will have to be analysed by ear or with electronic measuring equipment. Similar considerations apply to the analysis of performing practice in Western music, though here the written score may be used as a constant point of reference in measuring and comparing different realizations of it in performance (BENT; POPLE, 2001).

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um modelo de análise aural particularizado baseado em critérios e regras de interpretação já existentes desde o século XIX (LUSSY, 1884). Neste sentido, tomou-se como base para a presente tese o guia de interpretação de Artur Schnabel (WOLFF, 1972).

d. A inexistência de padrão para análise aural — revisão fonográfica

No início do século XX, pesquisas e métodos foram publicados por estudiosos que, imbuídos de pensamento científico, decodificaram a técnica moderna do piano. A maioria desses trabalhos teve em comum uma abordagem que procurou compreender racionalmente os movimentos pianísticos, visando seu domínio. Pesquisadores como Karl Leimer (LEIMER; GIESEKING, 1951) 6, Rudolf Breithaupt (1922), Attilio Brugnoli (1936), Alfredo Casella (1942), Blanche Selva (1924), Otto Rudolf Ortmann (1925), George Kochevitsky (1967) e Gyorgy Sandor (1981) desenvolveram princípios de compreensão e sistematização da técnica pianística, possibilitando a pianistas, professores e alunos com acesso a tais conhecimentos um desenvolvimento técnico pianístico pleno. Paralelamente ao desenvolvimento da técnica proporcionado pelas descobertas no campo fisiológico-anatômico, outros conhecimentos na área da teoria musical foram publicados em larga escala, sobretudo no século XX. Neste aspecto, destacam-se o campo da análise musical (fraseológica e harmônica) e os conhecimentos concernentes aos aspectos teóricos da interpretação pianística (rítmica, dinâmica, pedal). Entretanto, ressalta-se que boa parte dos pianistas que lucrava com os ensinamentos racionais da técnica pianística encontrava-se na situação de “atleta do piano”, ou seja, sua compreensão musical mostrava-se muito defasada em relação às suas habilidades físico-motoras e careciam de percepção estética auditiva apurada. Atualmente, devido aos recursos tecnológicos e, especialmente, às gravações disponibilizadas, por exemplo, via internet , muitos estudantes instrumentistas com esse tipo de dificuldade (compreensão musical defasada) têm utilizado essas ferramentas de estudo como forma de sanar defasagens como as supracitadas. Com o advento da internet, disponibilizando gravações antológicas que podem ser apreciadas em aparelhos como Ipod e MP4 Player , entre outros, é possível ouvir a mesma obra em diversas versões executadas por diferentes artistas considerados modelos irrepreensíveis em suas interpretações.

6 9ª. Edição publicada em 1951 traduzida do alemão para o espanhol por Roberto J. Carman. Original publicado em 1938. 11

A partir dessas diversas possibilidades de audição de gravações, pode-se supor que existam diferentes modalidades de revisão fonográfica. Exemplificando este ponto, um interessante trabalho que foi viabilizado graças às novas tecnologias é o estudo de Daniel Leech-Wilkinson intitulado The Changing Sound of Music: Approaches to Studying Recorded Musical Performance — disponível online 7. Nesse estudo, Leech-Wilkinson (2009) apresenta revisões fonográficas de gravações antigas feitas em LPs de 78 RPM (1925-1932) como meio de estudar performances de diversos instrumentistas, desde suas primeiras gravações, com o objetivo de evidenciar as mudanças de estilo de interpretação ao longo de décadas. O estudo de Leech-Wilkinson se organiza em torno de escritos contemporâneos sobre as práticas de desempenho e significado musical de épocas distintas.

e. Centre for the History and Analyses of Recorded Music — CHARM

O Centre for the History and Analyses of Recorded Music tornou-se um site em 2005 e é também conhecido como CHARM. Esse Centro trabalha com análises aurais visando comparar interpretações, por exemplo, de escolas pianísticas distintas destacando a evolução de seus conceitos interpretativos ao longo de décadas. A análise é realizada a partir de comparações de execuções de algumas peças básicas do repertório erudito tocadas por renomados artistas. O CHARM, por ser um centro para estudos da história e da análise da música gravada, possui farta discografia que inclui grande parte da produção 78 RPM da gravadora Gramophone , além de séries de LPs de diversas empresas dos Estados Unidos, Reino Unido e Europa, como Columbia e Decca , bem como gravações obtidas na Enciclopédia do mundo da música gravada (WERM). O objetivo da discografia do CHARM é tornar mais fácil pesquisar “o que foi gravado”, “por quem” e “quando” até a década de 1950. Outro objetivo é o de auxiliar futuros projetos capazes de contribuir com pesquisas em conjunto com o CHARM acrescentando novos dados aos já existentes. O CHARM entende que a abordagem tradicional musicológica é considerar a música como um texto escrito, ou seja, como uma partitura reproduzida na hora do desempenho ou execução. Porém, sabe-se que muitas músicas não existem sob a forma de partituras, mas sim unicamente na forma de gravações. Mesmo

7 LEECH-WILKINSON, Daniel. The Changing Sound of Music: Approaches to Studying Recorded Musical Performance. In: Centre for the History and Analysis of Recorded Music (CHARM). London, 2009. Disponível em: . Acesso em: 25 out. 2012.

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quando a música se faz existir como texto escrito, considera-se que os artistas têm um papel essencial na criação dessa música através da experiência de executá-la, que, para a maioria das pessoas, aí é que existe verdadeiramente a música. CHARM foi criado para promover uma musicologia que melhor reflita a natureza da música como experiência, tanto no século XX como na atualidade. O CHARM considera que as gravações são provas essenciais para uma musicologia em sintonia com a performance e procura remover os obstáculos substanciais existentes para a investigação acadêmica. A discografia e o acervo discográfico do Centre for the History and Analyses of Recorded Music têm como um dos objetivos contribuir com sua infraestrutura tanto para disponibilizar fonogramas como também fornecer apoio para o estudo de gravações, colaborando para o desenvolvimento de métodos e técnicas de investigação de análise. Um dos grandes projetos encabeçados pelo CHARM é o estudo de interpretações (performances ) das gravações feitas entre 1925 e 1932. Outros projetos também desenvolvidos pelo centro são o estudo do gesto expressivo e estilo em Schubert — utilizando análise espectrográfica com métodos de medição por computador — e a análise do desempenho, estilo e significado das Mazurkas de Chopin. Essa pesquisa investiga a caracterização, o desenvolvimento histórico e os recursos estilísticos interpretativos herdados e evidenciados nas gravações, tentando situar as mudanças ou padrões de repetição levando em consideração o contexto cultural. Embora o foco global do CHARM seja a pesquisa musicológica, as investigações baseiam-se também em formações disciplinares distintas, tais como a Teoria Musical, História, Psicologia e Ciência da Computação.

f. Metodologia do estudo — a revisão fonográfica: análise aural

Nesta tese, o cerne da pesquisa é a análise interpretativa das gravações das peças Flor da Noite e Modinha & Baião , encontradas no LP intitulado Radamés Gnattali / Villa-Lobos [1958-1964], destacando-se nesta análise a performance do Duo Gnattali-Gomes Grosso no que se refere aos andamentos, à dinâmica, às alterações agógicas, aos rubatos e às articulações (melódica, harmônica, rítmica e métrica). 13

Uma vez que não se encontrou na bibliografia consultada nenhum padrão para a análise aural passível de ser aplicado no presente trabalho, optou-se pelo levantamento dos aspectos musicais interpretativos inerentes à execução dos Duos, tomando-se como base o guia de interpretação de Artur Schnabel 8 referente aos tempos, aos andamentos, à dinâmica, à agógica e, sobretudo, às articulações — melódica, harmônica, métrica e rítmica (WOLFF, 1972). Estes pontos foram utilizados para nortear a análise da performance nos fonogramas. Outras razões foram consideradas para se tomar como base o guia de Schnabel: sua formação clássica; sua “escola Leschètizquiana”9, a mesma de Michael Von Zadora (1882-1846), professor de Guilherme Fontainha (1887-1970) que por sua vez foi professor de Radamés Gnattali; e o fato de Schnabel ter sido, além de teórico, um especialista nos clássicos com base prática e interpretativa metodizada. A revisão fonográfica do trabalho utiliza como referência aspectos musicais e interpretativos inerentes à execução e interpretação do próprio autor, face à sua partitura autógrafa. A análise aural é utilizada com objetivo de contribuir para futuras performances da música de câmara de Radamés Gnattali. A análise aural se baseia na pesquisa Ex Post Facto , que de acordo com Gil (2008) se caracteriza quando o experimento se realiza depois dos fatos. Este tipo de pesquisa é experimental, mas se difere da experimental convencional propriamente dita pelo fato de o fenômeno ocorrer naturalmente sem que o investigador tenha controle sobre ele, ou seja, neste caso, o pesquisador passa a ser um mero observador do acontecimento (BOENTE; BRAGA, 2004). Por exemplo: a leitura de uma partitura e a sua execução na forma de música tende a ganhar uma nova interpretação após a análise aural ( Facto ), visto que determinados elementos não são apresentados na escrita, mas sim na performance do autor-intérprete, de acordo com a nossa hipótese. Para que tal fato seja desempenhado, o potencial interpretativo, exclusivo da execução, dependerá do Conhecimento Tácito do intérprete. Esse tipo de conhecimento, para Nonaka e Takeuchi (1997), é aquele que o sujeito adquiriu ao longo da vida e que está na mente das pessoas. A busca por compreender as fontes deste conhecimento tácito de Radamés Gnattali justifica a realização do perfil biográfico presente neste trabalho onde foram destacadas as

8 Artur Schnabel (1882-1951), austríaco, pianista clássico, compositor e professor. Foi discípulo de Theodor Leschetizky (1830-1915). Artur Schnabel ficou conhecido por sua seriedade intelectual como músico, evitando a técnica pura. Especialista dos clássicos (austro-alemães), particularmente, as obras de Beethoven e Schubert. Suas performances destas composições foram aclamadas como modelos de penetração interpretativa em suas gravações de Beethoven (SCHONBERG, 1990, p. 346-352). 9 O escritor Harold Schonberg (1990, p. 243; p. 275), refere-se ao magistério de Theodor Leschetizky como “escola Leschètizquiana”.

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origens e bases dos estilos que influenciaram nosso objeto de estudo. Geralmente, o conhecimento tácito é difícil de ser formalizado ou explicado para as demais pessoas, pois ele é parte do indivíduo e, sendo assim, é subjetivo e inerente às habilidades de uma pessoa, como o know-how . A palavra tácito vem do latim tacitus que significa não expresso por palavras (POLANYI, 1966). No caso deste estudo, o Conhecimento Tácito está implícito na análise aural. Em contraponto ao Conhecimento Tácito , Nonaka e Takeuchi (1997) caracterizam o Conhecimento Explícito como aquele que é formal, claro, regrado e fácil de ser comunicado. Pode ser formalizado em textos, desenhos, diagramas e ser fundamentalmente encontrado nas partituras, nos manuscritos e nos rascunhos, assim como pode ser guardado em bases de dados ou publicações. O termo explícito “[...] vem do latim explicitus que significa formal, explicado, declarado”. Geralmente o Conhecimento Explícito está registrado em artigos, revistas, livros e documentos (NONAKA; TOYAMA, 2003). A fusão entre os conhecimentos Tácito e Explícito é uma ação da espiral do conhecimento e este processo de criação do conhecimento organizacional é concretizado em etapas, definidas pelos teóricos a partir da sigla SECI: Socialização, Externalização, Combinação e Internalização; ocorrendo mediante a interação contínua e dinâmica entre o conhecimento tácito (informal e incorporado em valores e crenças) e o conhecimento explícito (formal e codificável) (NONAKA; KONNO, 1998; NONAKA; TAKEUCHI, 1997). Nonaka e Toyama (2003) afirmam que o conhecimento é criado mediante os recursos internos e externos (ambiente). Portanto, focam-se a visão dos recursos (partituras), mas também o ambiente, a experimentação do sujeito e o momento em que este se encontra na produção do conhecimento. As etapas do processo SECI podem ser identificadas como: Socialização (conhecimento compartilhado), Externalização (conhecimento conceitual), Combinação (conhecimento sistêmico) e Internalização (conhecimento operacional). A espiral pode, ainda, iniciar-se em qualquer uma das etapas descritas, por exemplo: CISE, ECIS, ISEC. A espiral do processo SECI foi utilizada nesta tese com a direcionalidade SICE. Tomou-se conhecimento do processo SECI por meio do estudo de Mataruna (2011) que utilizou o processo denominado “Gestão do Conhecimento” para realizar a organização de um modelo metodológico para auxiliar à performance de esportistas. Considerou-se analogicamente as semelhanças com a área da performance de músicos pela necessidade de concentração, preparação, planejamento, execução e reflexão. O modelo apresentado por Mataruna (2011), baseado nos princípios da espiral do conhecimento de Nonaka e Takeuchi (1997), foi, então, adaptado nesta tese à realidade das práticas interpretativas. Pondera-se 15

ainda que a aplicação do processo SECI é o que de fato, em muitas ocasiões, um artista performático (instrumentista, bailarino, ator, etc.) realiza durante seu treino, visando o próprio aprimoramento técnico, interpretativo e artístico. Portanto, a aplicação do processo SECI tal como concebido por Nonaka e Takeuchi (1997) pode ser considerado como justificativa à metodologia, assim como uma contribuição original à carência de metodologia na área de pesquisa das Práticas Interpretativas. O quadro a seguir tende a facilitar a compreensão do processo SECI.

Quadro 1. Espiral do Conhecimento no Processo SECI (Adaptado de NONAKA; TAKEUCHI, 1997).

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g. A fundamentação teórica

Existem algumas fontes para a obtenção de conhecimento relacionado à prática interpretativa da obra musical de um determinado compositor, tais como a leitura e estudo da partitura; a análise estética e estrutural da peça; a leitura da biografia; a pesquisa das influências composicionais; o conhecimento das características da escrita; a audição de material relacionado à discografia do compositor; o conhecimento das partituras autógrafas; entre outras. Nesta pesquisa faz-se a análise interpretativa aural, por meio da revisão fonográfica, utilizando-se também como referência a partitura autógrafa, face à interpretação do próprio autor das peças Flor da Noite e Modinha & Baião para violoncelo e piano de Gnattali. Os estudos foram realizados, propositalmente, com os manuscritos autógrafos do compositor, pois de acordo com o teórico Nikolaus Harnoncourt (1990) — pesquisador e escritor especialista em música antiga, violoncelista, e maestro, nascido em Berlim em 1929 — os manuscritos autógrafos das partituras deveriam ser utilizados, preferencialmente, tanto quanto possível. Harnoncourt, em seu livro intitulado O Discurso dos Sons: Caminhos para uma nova compreensão musical, aborda a “importância do que subliminarmente nos informa um manuscrito autógrafo, sem, no entanto, descartar o valor do texto musical impresso” (HARNONCOURT, 1990, p. 224). No terceiro capítulo do referido livro, totalmente dedicado ao assunto, o autor defende a ideia de que ler uma partitura através dos manuscritos pode revelar um pouco mais da personalidade de um autor e que pode, ainda, proporcionar ao intérprete “além do conteúdo puramente informativo, uma irradiação sugestiva , uma magia 10 à qual nenhum músico sensível pode escapar, querendo ou não, tendo ou não consciência disso” (HARNONCOURT, 1990, p. 224, grifo nosso). Corroborando o pensamento de Harnoncourt (1990), utilizamos as partituras originais, ou seja, as partituras autógrafas de Flor da Noite e Modinha & Baião tanto para a revisão fonográfica de cada uma das peças das gravações escolhidas quanto para os exemplos musicais apresentados. As partituras completas destas peças estão nos Anexos A, B e C.

10 Uma irradiação sugestiva, uma magia – essas palavras usadas por Harnoncourt, na nossa concepção, significam que a leitura de uma partitura através dos manuscritos de um autor pode revelar um pouco mais da sua personalidade, não exatamente como uma magia, mas sim pelo percebimento de características tais como: tipo de caligrafia; tipo de rabiscos e anotações; se o autor apagou ou reescreveu alguma indicação; se ele refez algum trecho; se teve capricho e pensou não apenas em si, mas em quem pudesse futuramente ler aqueles manuscritos; entre outras questões que podem ser muito úteis a um estudioso e intérprete. 17

Na tarefa de ouvir criticamente a execução do próprio autor atrelada à leitura de sua partitura autógrafa, considerando-se o áudio para o estudo analítico das interpretações em seus aspectos musical, técnico e interpretativo inerentes à execução, percebe-se a presença de swing e de virtuosismo na interpretação de Gnattali. Essa percepção suscitou a seguinte questão (já anteriormente apresentada): Seria a revisão fonográfica (análise aural) de gravação realizada pelo próprio compositor, tendo como apoio suas partituras autógrafas, uma ferramenta aliada para o refinamento da expressão artística de intérpretes? Na busca de subsídios e fundamentos teóricos para possíveis respostas, discussões e objeções, constatou-se que o equilíbrio entre fidelidade ao texto e liberdade de interpretação tem sido objeto de diversos estudos, demandado questionamentos e suscitado proposições em trabalhos publicados por autores como Nikolaus Harnoncourt (1990), já citado anteriormente, Hugo Riemann (1884), Alfred Cortot (1986), Artur Schnabel (WOLFF, 1972), Leonard Meyer (1961) e Charles Rosen (1993, 2010). A seguir, descreve-se sucintamente a contribuição do pensamento de cada um dos autores supracitados para o desenvolvimento deste trabalho. Riemann (1884), em sua obra Musikalische Dynamik und Agogik , criou o termo agógica para se referir a variações no tempo rítmico ocorridas no fluxo regular e estável de um dado trecho musical. Segundo o autor, o termo “agógica” pode ser definido também como um tipo particular de acento dinâmico, capaz de evidenciar gradação ou efeito expressivo que envolve a duração dos sons e implica modificações no tempo de um determinado trecho musical sem, contudo, afastá-lo de seu pulso referencial. Fisicamente, existem três tipos de acentos que resultam em efeitos enfáticos responsáveis por definir intenções expressivas e reforçar o caráter de uma peça musical: sons mais fortes ou mais fracos que outros (acento dinâmico); sons mais agudos ou mais graves, que se aproximam ou se afastam de um som referencial (acento tonal); sons mais lentos ou rápidos que a expectativa (acento agógico). Em decorrência deste tipo de acento, pode-se ampliar o potencial expressivo da peça identificando momentos de ritardando e accelerando , rubato , fermata , dentre outros (RIEMANN, 1884). As teorias de Riemann (1884) foram muito úteis neste trabalho quanto à conceituação do que se considerou swing . Alfred Cortot (1986), em seu livro Curso de Interpretação , abaliza que a partir da compreensão consciente de uma obra e de todos os aspectos que podem estar relacionados a ela, o intérprete estaria mais apto a transmitir emoções e sensações ao ouvinte de acordo com aquelas que o compositor sentiu. O autor considera que o intérprete recria a obra musical. No

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entanto, faz uma ressalva quanto à fidelidade e às indicações expressivas imprimidas na partitura pelo compositor, incentivando o intérprete a respeitá-las (CORTOT, 1986). Esse autor ainda afirma: “o compositor que nos transmite o reflexo de suas impressões conta com o intérprete para evocar nos ouvintes emoções semelhantes àquelas que ele próprio sentiu” (CORTOT, 1986, p. 6). Essas considerações foram importantes para esta tese em relação a Radamés Gnattali como intérprete de sua própria música. Afinal, supõe-se que ele como compositor-intérprete poderia não somente transmitir o reflexo de suas impressões como também, mais do que ninguém, evocar nos ouvintes as emoções que ele próprio sentiu ao compor. No primeiro capítulo do livro The teaching of Artur Schnabel: a guide to interpretation , Konrad Wolff (1972) descreve o pensamento de seu professor Artur Schnabel, que corrobora a ideia supracitada de Alfred Cortot de que o intérprete atua como recriador da obra em cada interpretação. De acordo com Wolff (1972), Schnabel defendia que a relação fundamental de um intérprete com a tarefa pianística reside na necessidade iminente e inata de dar expressão e sentimento para a forma musical no momento que produz o som. O respeito à partitura é uma condição prévia. Portanto, o artista deve buscar o ideal de fazer música de forma absolutamente fiel, mas, ao mesmo tempo, deve ser capaz de tomar suas próprias decisões na hora da execução de forma livre, ativa e culta. Konrad Wolff transcreve o sistema completo de ensino de seu professor Artur Schnabel, pianista de preeminente reputação e primeiro a gravar todas as sonatas e todos os concertos para piano e orquestra de Beethoven. Esse sistema foi muito útil para a formulação dos objetos pontuais da análise dos fonogramas da tese e serviram de base para alguns critérios adotados. O estudo analítico aural dos aspectos musicais e interpretativos inerentes à execução e interpretação de Gnattali referentes aos tempos, aos andamentos, à dinâmica e à agógica foi elaborado de acordo com o sistema pontual de Schnabel, apresentado por Wolff (1972), e organizado em capítulos denominados Articulação Melódica , Articulação Harmônica , Articulação Métrica e Articulação Rítmica . O termo Articulação é utilizado por Schnabel, segundo Wolff (1972), de maneira bastante elástica. O autor afirma que na maior parte do tempo de uma execução a articulação é um elemento muito sutil para ser indicado na partitura de forma precisa, pois refere-se a detalhes musicais que, de certa forma, estão disponíveis apenas para o artista (tais como duração, intensidade, tempo, etc.) no momento da performance . Segundo Wolff (1972), os meios musicais e os aspectos técnicos pianísticos são tratados simultaneamente às considerações musicais, mas a contribuição maior de Schnabel é conectar o significado 19

musical com a articulação adequada para cada frase. Ressalta-se que nas análises desta tese não serão abordados aspectos da técnica pianística nem da estrutura das composições, mas sim considerações sobre a disciplina do ouvido em relação à compreensão da performance musical e a gestão deste conhecimento (produto da investigação deste trabalho). Muitas vezes o pianista observa o tempo de cada nota, as pausas, o ritmo, a dinâmica, porém essas precisões não são necessariamente as de uma “declamação essencial” 11 (WOLFF, 1972, p. 26). Regras de fraseado como as encontradas no livro El Ritmo Musical: su origem, functión y acentuación de Mathis Lussy (1945) podem governar nuances de dinâmica e ritmo. Porém, segundo Schnabel citado por Wolff (1972), não há símbolos que tornariam a notação dessas sutilezas possíveis e, mesmo que houvesse, o compositor arriscar-se-ia a distorcer a unidade total de sua obra. No capítulo “Revisão Fonográfica” desta tese chamaremos a atenção para as sutilezas não escritas da interpretação de Radamés (pausas, dinâmica, agógica, andamentos, articulações). A abordagem das interpretações quanto ao seu significado e sua comunicação baseou- se no pensamento de Leonard Meyer (1961) que em seu livro Emotions and Meaning desenvolve uma teoria de comunicação emocional para explicar a existência de significado em música. Na obra, o autor descarta a possibilidade de significados extramusicais quanto à sua comunicação e quanto ao seu contexto cultural, ressaltando a importância de estímulos referenciais e não referenciais que podem ser encontrados tanto na partitura quanto na experiência da escuta no âmbito da comunicação, emoção e afeto. Como contribuição ao pensamento de Meyer (1961), achou-se em Rosen (2010) em seu livro Music and Sentiment um caminho diferente do adotado por aquele autor. Em sua obra, Rosen examina de que maneira a musicalidade, em sua totalidade, contribui para as respostas que temos aos estímulos musicais e também como a experiência estilística tem sido usada para transmitir sentimentos. Tratando-se de revisão fonográfica, encontramos interessante artigo intitulado O Impacto das novas tecnologias sobre o estudo do piano, do pianista e professor da Universidade de São Paulo Eduardo Monteiro, publicado em 2009, em que aborda a importância da utilização da escuta de gravações antigas, por exemplo aquelas realizadas entre 1954 e 1960 de master classes com Alfred Cortot na École Normale de Paris (recentemente distribuídas no mercado pela Sony Classical - S3K89698, 2005), como

11 Considera-se que a expressão “declamação essencial” foi utilizada pelo autor para designar uma performance eficaz e convincente.

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ferramenta auxiliar aos intérpretes e alunos de piano. No artigo, Monteiro (2009) ressalta tanto a importância histórica desse lançamento quanto a possibilidade de atualmente ouvirmos variadas versões da mesma peça musical na Internet e conclui: “O refinamento de escuta que é produzido ao se comparar diferentes interpretações de uma mesma obra operará na crítica de sua própria execução” (MONTEIRO, 2009, p. 111). Como colaboração interpretativa relacionada à utilização da revisão fonográfica, foram analisadas auralmente, igualmente com base no guia de Schnabel (WOLFF, 1972), duas versões distintas da peça Modinha & Baião tocadas pelo Duo Chew-Canaud. Conforme o método de pesquisa Ex Post Facto , a primeira versão é da fase anterior à pesquisa, encontrada no CD Obra Completa para violoncelo e piano de Radamés Gnattali de 2006 (vide Anexo H); e a segunda versão é da fase pós-pesquisa e foi realizada no concerto gravado ao vivo em 13 de julho de 2012 (vide Anexo H).

h. Interesse na obra de Radamés Gnattali: revisão simplificada da literatura

A partir de década de 1980, alguns intérpretes e pesquisadores de música demonstraram grande interesse pela biografia e pela obra de Radamés Gnattali, que ainda não estava organizada, catalogada e a maioria das partituras estava em manuscrito a lápis. Em 1988 iniciei o curso de Mestrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) sobre a obra para piano de Gnattali. O interesse em me especializar na interpretação da obra de Radamés Gnattali já existia desde alguns anos antes do seu falecimento, ocorrido em fevereiro de 1988, coincidentemente mês e ano da minha entrada no curso de Mestrado em Música da UFRJ. Quando jovem, tive a oportunidade de tocar para ele e, tendo sido elogiada e incentivada a tocar outras de suas composições para piano solo, assim o fiz. O curso de Mestrado iniciado em 1988 foi concluído em 1991 com o trabalho intitulado A Interpretação da Obra Erudita para Piano de Radamés Gnattali através do Conhecimento da Música Popular Urbana Brasileira , sob a orientação da Profa. Dra. Miriam Dauelsberg. Esse Mestrado proporcionou notoriedade à obra para piano do mestre nos meios acadêmicos e a mim como intérprete da obra para piano de Radamés Gnattali. Pode-se afirmar que no meio acadêmico houve uma contribuição inconcussa: a obra para piano do mestre, a partir do início da minha pesquisa, passou a ser aceita e incluída no repertório do programa do curso de Bacharelado em Piano da Escola de Música da UFRJ. Até então não era permitido tocá-las nos recitais oficiais por serem, equivocadamente, associadas à produção popular de Gnattali. 21

A primeira publicação contendo um perfil biográfico e um catálogo de obra do autor, com uma lista substancial de arranjos de música popular feitos para programas da Rádio Nacional, além de títulos da música erudita e da música popular, é o livro intitulado Radamés Gnattali: O Eterno Experimentador de Valdinha Barbosa e Anne Marie Devos que foi lançado em 1985 na condição de vencedor do concurso de monografias da FUNARTE — Instituto Nacional de Música Divisão de Música Popular 12 , realizado em 1984. O livro tem o mérito de conter informações da família de Radamés, desde antes de seu nascimento, sua infância e ascensão profissional, além de ter sido a primeira tentativa de catalogação da extensa obra do autor (BARBOSA; DEVOS, 1985). Em 1995, o violonista Bartolomeu Wiese, pesquisador da obra de autores brasileiros, concluiu seu Mestrado na UFRJ com a dissertação intitulada Radamés Gnattali e sua Obra para Violão , na qual aborda o repertório específico do autor para esse instrumento e suas características. Seguiram-se outros trabalhos e pesquisas de Mestrado, realizados também sobre a obra para violão solo de Radamés Gnattali, tais como: a dissertação de Robson Barreto Matos intitulada Brasiliana nº 13 de Radamés Gnattali: uma abordagem técnica e interpretativa defendida na Universidade Federal da Bahia em 1999; a de Ubirajara Pires Armada Junior, intitulada Os 10 Estudos para Violão de Radamés Gnattali: Uma análise, defendida na Universidade de São Paulo em 2006; a de Rodrigo Carvalho de Oliveira intitulada Seleção de Estudos para Violão de Villa-Lobos, Mignone e Gnattali: O Idiomatismo Revisitado , pela Universidade Federal de Goiás em 2006; e a de Ricieri Carlini Zorzal, intitulada Dez Estudos para Violão de Radamés Gnattali: estilos musicais e propostas técnico-interpretativas, pela Universidade Federal da Bahia em 2005. Os subtítulos dos referidos trabalhos apontam seu conteúdo e o cerne das pesquisas sobre a obra para violão de Gnattali (ARMADA JUNIOR, 2006; MATOS, 1999; OLIVEIRA, 2006; ZORZAL, 2005). Destacam-se, além dos trabalhos supracitados, a dissertação de Mestrado da flautista Raíssa Anastásia de Souza Melo intitulada Sonatina para flauta e violão de Radamés Gnattali: Estudo de aspectos estruturais e interpretativos do primeiro movimento, defendida na Universidade Federal de Minas Gerais em 2007, na qual a pesquisadora teve como objetivo o estudo analítico interpretativo do primeiro movimento da Sonatina para flauta e violão . O estudo concentrou-se na análise estrutural da partitura e de três gravações com concepções

12 Monografia vencedora do concurso sobre a vida e a obra do compositor e maestro Radamés Gnattali, promovido pela Divisão de Música Popular do Instituto Nacional de Música da Funarte sob a direção de Edino Krieger e na direção adjunta da Divisão de Música Popular, Hermínio Bello de Carvalho. O concurso teve o apoio do Conselho Nacional de Direito Autoral e na comissão julgadora estavam João Máximo, Ana Maria Bahiana e Ary Vasconcelos. Coleção MPB-15.

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diferenciadas dessa obra tocadas pelos Duos formados por Marcelo Barbosa e Fábio Zanon; José Ananisa e Edelton Gloelton; e Norton Morozowicz e Eduardo Meirinhos (MELO, 2007). A dissertação de Mestrado do fagotista Jamil Mamedio Bark, intitulada Radamés Gnattali Suíte para quinteto de sopros: estudo analítico e interpretativo, defendida na Universidade de São Paulo em 2007, introduz aspectos musicológicos da forma suíte, características dos movimentos da forma suíte e considerações sobre a formação instrumental do quinteto de sopros. O estudo analítico da partitura é feito através das técnicas de análise musical desenvolvidas por Arnold Schoenberg, Wallace Berry e Joaquin Zamacois. De acordo com esse estudo, estão indicadas sugestões sobre a execução da obra pelos cinco instrumentos envolvidos (BARK, 2007). O guitarrista Márcio Guedes Correa, em sua dissertação defendida na Universidade Estadual Paulista em 2007 e intitulada Concerto Carioca nº 1 de Radamés Gnattali: a utilização da Guitarra Elétrica como Solista , analisa a música de concerto de Radamés enfocando características de sua orquestração a partir de aspectos como: ritmo orquestral, escolha da instrumentação em alguns casos inédita, construção das melodias e seus procedimentos harmônicos (CORREA, 2007). São duas as teses de Doutorado abordando a obra de Radamés Gnattali já defendidas até o momento: a tese da Profa. Dra. Nadge Naira Alvares Breide, intitulada Valsas de Radamés Gnattali: um estudo histórico-analítico, defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2006; e tese do Prof. Dr. Luciano Chagas Lima intitulada Radamés Gnattali: The Four Concertos for Solo Guitar and Orchestra , defendida na Université de Montréal do Canadá em 2007 (BREIDE, 2006; LIMA, 2007). Em Breide (2006) encontra-se uma análise estilística da obra Valsas para piano (1939) de Gnattali. A autora objetivou em sua tese evidenciar como as Valsas para piano refletem o diálogo entre os dialetos americanos e as culturas americanas no Brasil dos anos 1930 ocasionados pelo desenvolvimento dos meios de comunicação e acesso às formas de entretenimento de massa. Chagas Lima (2007) realiza o estudo das diferenças estilísticas existentes nos quatro concertos para violão e orquestra de Radamés Gnattali. Em seu trabalho, explana de que forma o compositor tratou a desigualdade inerente entre o som do violão solista e os tutti de orquestra de maneira a permitir que o solista pudesse “competir” eficazmente com a massa orquestral sem que o papel da orquestra ficasse limitado à função de acompanhamento. Além disso, o autor faz uma comparação dos manuscritos das obras pesquisadas com as edições americanas da Brazilliance Music Publishing do violonista brasileiro naturalizado americano 23

Laurindo de Almeida. Atualmente encontra-se na fase de defesa a tese de Doutorado de Bartolomeo Wiese Filho na qual o autor apresenta o resultado das pesquisas realizadas sobre o Concertino n° 2 para violão e orquestra , além de um breve histórico da técnica violonística da mão direita.13 Em síntese, pode-se considerar que as dissertações e teses defendidas sobre obras de Radamés Gnattali, em sua maioria, apresentam estudos analíticos focados nos aspectos estéticos composicionais formais e estruturais das obras abordadas, além de contribuições a suas execuções e sua compreensão. Este trabalho aborda a obra de Radamés Gnattali sob uma perspectiva aural, pois o enfoque está na análise interpretativa do compositor-intérprete através de revisão fonográfica visando à performance . O livro biográfico de Aluisio Didier intitulado Radamés Gnattali foi lançado no mercado em 1996 e vem acompanhado de um vídeo-documentário. Esse livro é muito útil pelas informações biográficas contidas, sobretudo no destaque que o autor dá à atuação de Radamés no cinema como compositor de trilhas de filmes brasileiros. No capítulo intitulado Radamés de A a Z , o leitor é induzido a refletir sobre a personalidade do compositor que responde a um questionário, elaborado por Didier, com temas que vão da letra A até a letra Z. A opinião de Radamés Gnattali sobre amizade, música, religião, trabalho, entre outros temas dados, é transcrita em linguagem coloquial como se estivéssemos ouvindo sua própria voz. As partituras, bem como fotos, objetos e documentos de Radamés somente foram totalmente organizados e catalogados alguns anos depois pela viúva do compositor, Nelly Gnattali, e pelo sobrinho, o músico Roberto Gnattali. Roberto, além de cuidar da organização e levantamento das obras, supervisionou a digitalização das partituras com o patrocínio da Petrobrás e do Ministério da Cultura através da Lei de Incentivo à Cultura, sem o qual o feito se tornaria inviável. No ano da efeméride de nascimento de Radamés foi, finalmente, lançado o Catálogo Digital Radamés Gnattali que se tornou imediatamente referência para todos os pesquisadores interessados (GNATTALI, Roberto, 2006). O perfil biográfico de Radamés apresentado nesta tese foi elaborado com as informações obtidas no Catálogo Digital (GNATTALI, Roberto, 2006), no livro de Didier (1996), no livro de Barbosa e Devos (1985) e nas entrevistas de Radamés ao Museu da Imagem e do Som (MIS, 1985).

13 Informação dada pelo próprio doutorando Bartolomeo Wiese Filho. (PPGM-UNIRIO, 2012).

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i. O perfil biográfico de Radamés Gnattali na tese

A apresentação do perfil biográfico apoia o conhecimento de fatos da vida de Radamés que ajudam a entender como o autor-intérprete adquiriu seu virtuosismo e swing percebidos na análise aural da revisão fonográfica. Considerou-se necessário, neste perfil, o recorte temporal de 1886 a 1964 e o recorte geográfico da realidade de Radamés nas Américas até o Duo Gnattali-Gomes Grosso viajar em tournée europeia. Os aspectos biográficos de Radamés Gnattali abordados no primeiro capítulo do trabalho são pertinentes ao período necessário e suficiente para o entendimento que converge (para o intérprete, ouvinte e revisor fonográfico) em conhecimento que contribui para a compreensão de significados interpretativos propositalmente encontrados em Gnattali. Pondera-se que o perfil biográfico é uma questão do músico, não da música e, portanto, sempre muito útil. Segundo François Nicolas (1997), citado por Freire (2010),14 a autoridade da história nos deixa um estado dado de questões musicais, sendo que esse estado sofre condicionamentos históricos que não podem ser ignorados. [...] A obra musical será o topo da pirâmide, não sua base. A história musical de uma obra será sua genealogia (sua relação com outras obras) e sua arqueologia (sua relação com o mundo da música, com seu material, com sua linguagem, com seus instrumentos).

Na sequência do pensamento de Nicolas, Freire (2010) prossegue dizendo que a resposta à estética musical teria que vir da própria música, mesmo que esta seja devedora de outros domínios do pensamento. Assim, outras disciplinas funcionariam como coadjuvantes e não como respostas para os problemas da música. “Não existe uma história musical da música, pois sempre serão histórias da música dos músicos” (NICOLAS, 1997 apud FREIRE, 2010). Para Robinson (1997, p. vii-x) os compositores “se comportam como agentes históricos no sentido normal do termo”, afinal, “eles também transformam intenções em ações, em obras músicais e também participam dos eventos históricos do seu próprio tempo”. Robinson, tradutor do livro de Carl Dahlhaus intitulado Foundations of Music History , afirma no prefácio assinado por ele: Obras de música, ou pelo menos grandes obras da música, não estão irremediavelmente atreladas ao passado como os eventos históricos estão, mas têm um pós-vida prolongada durante a qual elas mudam de caráter, adquirem e descartam significado e influenciam o futuro progresso da arte (ROBINSON, 1997, p. viii-x).

14 O artigo de François Nicolas intitulado De différents régimes d'historicité en matière de musique foi traduzido, comentado e objeto de trabalho realizado pelo doutorando João Miguel Bellard Freire para os Seminários Avançados em Música I , ministrado pela Profa. Dra. Carole Gubernikoff no PPGM-UNIRIO, 2010/1º período. 25

Sendo assim, considera-se que a resposta musical vem ou terá de vir da própria música. Enquanto um historiador busca ligações com o contexto social e aquilo que é comum a uma sociedade, o músico busca o que distingue uma peça e aquilo que há de original e único nela. Isso também se aplica às características percebidas na interpretação musical de uma obra executada. O pensamento musical advém da própria obra ou da audição de uma interpretação. Segundo Dahlhaus, “o critério utilizado para avaliar uma interpretação era se, tendo coincidido com evidências que sobreviveram às intenções do compositor, ela conseguiu um equilíbrio satisfatório entre a complexidade e a coerência”.15 Segundo o autor, “existia pouco sentido em se refletir sobre as condições históricas por trás das várias interpretações dadas a uma obra de arte”. E, nessa linha de pensamento, Dahlhaus ainda escreveu: “o contexto da descoberta abre caminho apenas para o contexto de validação estética” (DAHLHAUS, 1997, p. 150, tradução nossa). Segundo Dart (2002, p. 214) “a música é, ao mesmo tempo, uma arte e uma ciência. Como toda arte e toda ciência, não tem outro inimigo a não ser a ignorância”. É a medida de sua singularidade e de sua diferença, em comparação com outras obras, que constituem seu referente, temporal ou atemporal. Em suas palavras o autor ressalta: A interpretação deve ser idiomática e ter estilo, não importa que sonoridade empregue. Cada instrumento e cada versão da obra vai exibir uma faceta diferente da música para o ouvinte e o executante deve ter o cuidado de iluminar essas facetas (DART, 2002, p. 212).

A situação de uma obra designa não somente um contexto musical, mas também aquilo que dela emana por sua intenção. Uma obra ou execução musical se apodera da partitura, da linguagem musical, dos instrumentos, para dar-lhe a cada interpretação uma releitura aprofundada. Pierre Bourdieu (1996), ao propor uma análise sociológica sobre a produção literária, utilizou o conceito de campo literário. Segundo o autor, o uso desse conceito enfrenta resistência no âmbito das Ciências Sociais, mas é uma forma de se escapar à alternativa da interpretação interna e da explicação externa, presentes nas ciências das obras culturais. Segundo Bourdieu, o fato de o campo artístico rejeitar uma análise sociológica recorrendo à autonomia da arte em relação aos campos sociais e à “teoria do reflexo” — arte como espelho da sociedade (citada pelo autor) — reduzem as possibilidades de compreensão e abrangência do campo. O autor afirma que, paradoxalmente, pode-se compreender de uma forma mais

15 The criterion used for judging an interpretation was whether, having coincided with surviving evidence on the composer's intentions, it struck a satisfactory balance between complexity and coherence (DAHLHAUS, 1997, p. 150, tradução nossa).

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verdadeira um campo específico quando se faz uso de elementos pertencentes a outros universos. As explicações feitas servem pra distinguir que os aspectos do perfil biográfico elaborados neste trabalho objetivam tão somente apoiar a proposição feita a partir da análise aural das interpretações — virtuosismo e swing revelados na Revisão fonográfica de Flor da Noite e Modinha & Baião — fornecendo informações que corroboram apenas a compreensão da aquisição destas características na performance pianística de Radamés Gnattali. Considera-se que para o analista aural, embora ele tenha tanto como referência primária quanto como foco a obra musical em si, torna-se também atraente conhecer aspectos da vida do compositor em questão e tudo o que a ele se relaciona.

j. A contribuição do trabalho

Devido ao fato de Radamés Gnattali ter atuado, ininterruptamente, por mais de seis décadas em diversas áreas do mercado musical, pode-se perceber que existe ainda muito material pertinente à sua produção que pode ser explorado em pesquisas acadêmicas. Pretende-se que esta tese contribua para ampliar o campo de utilização da revisão fonográfica como ferramenta de estudo para se perceber características da performance não somente de outras obras gravadas por Radamés Gnattali, como de obras de outros compositores intérpretes, relacionando-se a escuta das interpretações com as partituras autógrafas. Este trabalho tem a perspectiva da abordagem aural interpretativa de Radamés Gnattali, na qual a revisão fonográfica é utilizada visando contribuir para futuras performances de pianistas e outros instrumentistas. Em adição, apresenta-se no Anexo E a lista dos quarenta e cinco Duos com piano compostas por Radamés Gnattali. Pretende-se que metodologia adotada nesta tese possa colaborar como justificativa às pesquisas no campo da performance propriamente dita. 27

k. Organização do trabalho

O texto final produzido a partir desta tese apresenta no Prefácio a relação da autora com o problema que originou toda a pesquisa. Na Introdução é explicada, primeiramente, a razão da escolha das peças; em seguida é apresentada a hipótese que norteou a pesquisa, assim como outros questionamentos gerados. Apresenta-se o levantamento dos padrões existentes de análise de obras, assim como outras fontes de análise aural. Verificou-se que todos os tipos de análise encontrados têm seus modelos diferentes dos apresentados nesta ocasião, verificando-se, ainda, que as análises são fundamentadas em outros autores. Sendo assim, mostra-se que não foram encontrados modelos de análise aural com igual abordagem à desta tese. Desta forma, conseguintemente, é explicada a metodologia adotada e a escolha dos teóricos que nortearam o desenvolvimento da pesquisa. Ainda na Introdução apresentam-se, sucintamente, a revisão da literatura colhida, que é composta por trabalhos de diversos mestres e doutores de universidades brasileiras e do exterior em que os autores abordam o nome e a obra de Radamés Gnattali. Feito isso, certifica-se por outro flanco a originalidade desta tese. Em seguida, explicam-se os critérios adotados no perfil biográfico, bem como as contribuições esperadas no campo das práticas interpretativas. No primeiro capítulo, apresenta-se o perfil biográfico de Gnattali com o recorte temporal de 1886 a 1964 e o recorte geográfico da realidade de Radamés nas Américas até o Duo Gnattali-Gomes Grosso viajar em tournée europeia. Este item tem o objetivo de possibilitar a geração, tanto para o intérprete quanto para o ouvinte ou revisor fonográfico, de conhecimento que corrobore para a compreensão de significados interpretativos encontrados na escuta das obras e/ou das interpretações de Gnattali. No segundo capítulo apresenta-se o pensamento e o guia de interpretação de Artur Schnabel que serviu de base para nortear os critérios adotados na análise dos fonogramas (WOLFF, 1972). No terceiro capítulo encontram-se os recortes dos fonogramas da gravação de Flor da Noite e Modinha & Baião na versão do próprio autor em Duo com Iberê Gomes Grosso (1958-1964), com as devidas apresentações das comparações minudenciadas da escuta com as partituras autógrafas (revisão fonográfica); alguns comentários analíticos provenientes da escuta feitos pelo violoncelista David Chew e pela autora desta tese.

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No mesmo capítulo, apresentam-se, tanto de Flor da Noite quanto de Modinha & Baião , as versões do Duo Chew-Canaud (2006) com alguns comentários realizados a partir da comparação da escuta com o texto autógrafo, também de acordo com o pensamento interpretativo de Schnabel (WOLFF, 1972). Finalizando-se este capítulo, apresenta-se a performance ao vivo do Duo Chew-Canaud (2012) após a aplicação do método Ex Post Facto. No quarto capítulo apresentam-se as avaliações, interpretações e discussões dos resultados da análise aural. Por fim, o capítulo cinco refere-se às conclusões e recomendações, seguidas das Referências. Seguem-se os Anexos de A a H. Os anexos impressos contêm as partituras autógrafas de (A) Flor da Noite – (B) Modinha – (C) Baião ; (D) a partitura editada de Flor da Noite ; e (E) a relação dos Duos de Câmara com piano compostas por Radamés Gnattali; (F) depoimentos de amigos e parentes de Radamés Gnattali; (G) Ilustrações; e, finalmente, (H) CD que acompanha esta tese contendo os seguintes itens: (a) fonogramas do LP Festa , com as peças Flor da Noite e Modinha & Baião interpretadas integralmente por Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso; (b) takes com os recortes indicados na análise (referentes ao Capítulo 3 desta tese e apresentados na ordem exata de citação no corpo do trabalho); (c) interpretações das mesmas obras pelo Duo Chew-Canaud (2006); (d) takes com os recortes; (e) vídeo do concerto ao vivo do Duo Chew-Canaud tocando Modinha & Baião na versão de 2012.

l. Definição de termos

Para melhor compreensão deste estudo, faz-se necessária a definição prévia dos termos Swing e Virtuosismo que são significativos nesta tese por traduzirem dois diferentes elementos de destaque da interpretação de Radamés Gnattali em Duo com Iberê Gomes Grosso, resumo dos aspectos característicos da performance após a análise aural. Incluem-se também considerações sobre o que é um Pregão , bem como definições dos gêneros musicais Modinha e Baião . 29

• Swing

Uma avaliação do swing deve considerar o seu mérito musical (estilo swing ) e o seu espírito (maneira de tocar), atentando-se para dois aspectos. O primeiro considera o estilo swing como característica de músicos talentosos, oriundos das orquestras da “Era do Swing” (1935-1946) que depois desenvolveram estilos próprios inaugurando novas correntes no jazz . O segundo aspecto é o fato de que o próprio nome do estilo é também o nome de uma qualidade muito valorizada no jazz , independentemente do gênero. Neste trabalho, o termo swing pode significar bossa, balanço ou movimento particular derivado de certa liberdade na utilização de pequenas alterações das células rítmicas provenientes da articulação, da dinâmica e da agógica aplicadas à execução de uma determinada música. A maneira de swingar confere, na maior parte das vezes, características idiomáticas que permitem a identificação, por exemplo, de um gênero musical, de uma obra ou mesmo de um intérprete. Portanto, podem-se considerar como uma forma de swing as flutuações de tempo e a maneira diferenciada de articular e conduzir as frases musicais, introduzidas pelo intérprete no momento da execução de uma composição musical, tendo como finalidade a ampliação da margem de expressão. O que denominou-se no atual trabalho como swing também poderia ser chamado de flutuações “agógicas” ( rubato , accelerando , ritardando , dinâmicas, etc.) não escritas. “Riemann criou o termo agógica para designar as pequenas alterações do movimento não indicadas pelo compositor, porém exigidas devido à necessidade de manter-se viva a expressão durante a interpretação” (LEIMER; GIESEKING, 1951, p. 26). O fato de um intérprete swingar seria considerado como infidelidade ao texto musical ou apenas como uma liberdade de interpretação? No capítulo 4 de seu livro Plaisir de Jouer Plaisir de Penser , Charles Rosen (1993, p. 14) indaga: “A crítica deve adotar o ponto de vista do compositor. O executante não deve fazer o mesmo?” E prossegue ao abordar o problema da fidelidade à partitura: o intérprete pode muito bem se mostrar perfeitamente fiel, tocar todas as notas com exatidão e resultar em uma execução ruim. Por outro lado, ele pode fazer algumas mudanças na partitura e realizar uma interpretação perfeitamente fiel ao espírito do compositor [...] Há muitas maneiras de seguir a partitura: elas levam a interpretações completamente diferentes. É justamente a tensão que existe entre texto e execução que é interessante, e que desaparece quando o intérprete se afasta demais da partitura. Aí está toda a dificuldade: conseguir tocar de maneira muito pessoal, muito criativa, mas se apoiando completamente no texto (ROSEN, 1993, p. 49).

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O musicólogo alemão Karl Wilhelm Julius Hugo Riemann (1849-1919) criou o termo Agógica para designar as alterações no movimento ou as flutuações do tempo introduzidas no momento da execução de uma composição musical. A agógica é muitas vezes intrinsecamente exigida pela necessidade de se manter viva a expressão durante a interpretação. Etimologicamente, o termo agógica tem suas raízes no verbo grego ágo que significa conduzir, andar, levar. A designação Agógica foi criada em 1884 pelo referido musicólogo Hugo Riemann no livro Musicalische Dinamik und Agogik com o objetivo de suscitar a ampliação das possibilidades de expressão do intérprete (RIEMANN, 1884). As modificações agógicas, tais como rubato , accelerando e ritardando , etc., são pertinentes à interpretação e, em geral, o compositor não consegue colocar na partitura todas as intenções expressivas que concebe na hora da criação. Muitas vezes não o faz por achar desnecessário. Trata-se de expressões não indicadas. Por exemplo, o crescendo , por vezes, demanda certa aceleração enquanto que o diminuendo, algumas vezes, induz ao relaxamento do pulso que vinha acontecendo na peça. Não se trata de modificação da escrita, sobretudo quando a agógica é realizada de forma uniforme e proporcional, ou seja, sem ser abrupta. O intérprete só deve utilizar a liberdade agógica de acordo com o estilo da música e para destacar notas expressivas, não para diluir dificuldades na execução. O acento agógico surge através da ênfase natural atribuída à nota mais longa em relação a uma precedente, já que o cérebro humano dá mais importância às notas longas. O acento agógico resulta de um padrão agógico de três componentes: ársis , tésis e o ataque da tésis , o acento agógico por excelência. A ársis , a porção não acentuada do padrão agógico, consiste em uma nota ou notas que precedem a nota mais longa seguinte; a tésis , à porção acentuada. O ataque da tésis é o ponto de acento conhecido como acento agógico. A ársis pode consistir de um grupo de notas , todas mais curtas do que a tésis . O acento agógico geralmente segue um longo grupo de ársis . Às vezes, o acento agógico pode contradizer o acento métrico e sugerir auditivamente um compasso diferente do escrito na partitura. Uma breve espera antes de atacar pode significar um grande efeito e destacar um momento musical de clímax e valorizar a obra durante a interpretação. Segundo Mathis Lussy (1945), seu livro intitulado El ritmo musical – Su Origen, Función e Acentuación pretende proporcionar aos músicos os recursos necessários para que se possa distinguir e delimitar as diferentes formas rítmicas das obras, analisar e reconhecer tanto o gênero como a natureza de sua estruturação, a fim de conhecer sua função, acentuação e articulação correspondentes. 31

No The New Grove Dictionary of Music and Musicians (1980), o termo “agógica” é definido como uma qualidade de expressão de sentimentos, sensações ou impressões pessoais do artista, particularmente no que diz respeito a acentuações (acentuação, ênfase, modo de pronunciar) e acentos (pronúncia característica, sotaque, ênfase, cadência métrica, modulação rítmica, acentuação da melodia, maneira de pronunciar, acentuar, modular, cadenciar uma frase musical) concernentes a variações de tempo e não à dinâmica. 16 Martha Ulhôa (1999), em interessante artigo intitulado Métrica Derramada: tempo ou gestualidade na canção brasileira popular , refere-se ao que chamamos neste trabalho de swing como “métrica derramada”. Em outro artigo sobre esta temática, a autora afirma que “Um dos elementos mais possantes de expressividade na canção popular brasileira é a flexibilidade e, em alguns casos, quase independência do canto em relação ao fenômeno que chamo de métrica derramada” (ULHÔA, 2006, p. 8). No caso específico desse artigo, a autora se refere principalmente ao deslocamento dos acentos dos tempos iniciais das frases, prática feita recorrentemente por cantoras de música popular brasileira, tal como Elis Regina que flexibilizava o ritmo dos compassos. A autora apresenta resposta para sua própria dúvida em como conceituar o que neste trabalho chama-se de swing característico de uma interpretação quando faz a pergunta a seguir: “Qual a melhor explicação, tempo rubato ou métrica derramada? Acredito que o segundo conceito é muito mais preciso.” (ULHÔA, 2006, p. 8). E conclui: “Derramar” a métrica não é uma idiossincrasia numa interpretação singular; é um traço estilístico marcante, principalmente entre intérpretes de samba. Ou seja, a métrica derramada mais do que um gesto de estilo individual (como o rubato de Chopin) é uma característica cultural mais ampla (ULHÔA, 2006, p. 8).

O termo swing utilizado na revisão fonográfica tem o sentido de bossa . Radamés se referiu ao amigo Iberê Gomes Grosso da seguinte forma: “Quando eu fazia uma peça para violoncelo, era para o Iberê tocar. Ele tinha muita bossa , muito jeito pra música brasileira” (DIDIER, 1996, p. 67, grifo nosso). Cabe ressaltar que o termo bossa foi utilizado entre músicos e compositores populares brasileiros a partir de , cuja letra de seu samba intitulado São Coisas Nossas (1932) diz: “O samba, a prontidão e outras bossas, são coisas nossas, são coisas nossas” (MÁXIMO; DIDIER, 1990). Atualmente é comum a utilização do termo swing ou suingue (na forma abrasileirada) no sentido de ter-se bossa, balanço, ou de ter-se aptidão para tocar com bossa, balanço ou com a métrica derramada (ULHÔA, 1999). A palavra suingue aparece também na forma conjugada, por exemplo, no título da música de

16 AGÓGICA. In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 1980, p. 185.

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Walter Serpa Xote Suingado de 2010.

• Virtuosismo

Já o termo virtuosismo em Música está associado à suplantação das dificuldades técnicas do intérprete. O significado de virtuoso tem sua origem na Itália dos séculos XVI e XVII denotando um elogio honroso reservado às pessoas distinguidas em alguma área intelectual ou artística. O termo evoluiu com o tempo dando margem a distintas interpretações. Originalmente um músico era chamado de virtuoso, fosse ele um compositor, um teórico, um famoso maestro, um instrumentista ou um artista de grandes qualidades. A pessoa com habilidade fora do comum, ou seja, com excelência na execução de um instrumento musical, aliando sua técnica a seu conhecimento de teoria musical, chama-se virtuoso (virtu s, do latim virtude, habilidade, excelência). Segundo Sébastien de Brossard, no seu Dictionaire de Musique 17 , no período Barroco o termo virtuoso ou virtuose (de origem no latim virtus) era utilizado para o músico teórico e não para o músico prático, ou seja, o virtuosismo enfatizava o treinamento excepcional, especialmente na parte teórica musical (BROSSARD, 1703). Mais tarde, no período romântico (século XIX), o adjetivo virtuoso foi usado para descrever os maestros, instrumentistas e vocalistas apreciados pelo público graças às suas brilhantes interpretações. Esses músicos de concerto, dotados de uma técnica instrumental extraordinária, tornavam-se cada vez mais admirados por plateias assombradas com seu talento. Os compositores, por sua vez, sob o desafio da habilidade técnica desses virtuosos tornavam a parte do solo cada vez mais difícil. Exemplos de virtuosos desse período que além de instrumentistas eram compositores são o violinista Niccolo Paganini (1782-1840) e os pianistas Frédéric François Chopin (1810-1849) e Franz Liszt (1811-1886). Com o passar do tempo, o significado do termo virtuosismo tornou-se amplo e tema preferencial nas críticas musicais, passíveis de contestação e discussão. A citação a seguir mostra um excerto da crítica ao aclamado virtuosismo do maestro Arturo Toscanini (1867- 1957), por Theodor L. W. Adorno (1903-1969), professor, filósofo, sociólogo, musicólogo e compositor alemão, considerado um dos expoentes da chamada Escola de Frankfurt em seus Escritos Musicais I – Figuras Sonoras , no capítulo intitulado A Maestria do Maestro .

17 VIRTUOSE. In: BROSSARD, Sébastien. Dictionaire de Musique . 2ª ed. Paris: C. Ballard, 1703. 33

[...] músico que ficou conhecido por seu perfeccionismo, seu ouvido detalhista, sua precisão e sua memória fotográfica [...] em versões excepcionais, sobretudo das óperas italianas. [...] As versões de Toscanini, sobretudo das óperas italianas foram de tal precisão que a nada se pode comparar, no âmbito musical alemão; estabeleceu um nível de ajuste orquestral que desde então se converteu em referência. (ADORNO, 2006, p. 54).

No século XX, a utilização do termo virtuoso estendeu-se a outros profissionais de diferentes áreas possuidores de habilidades e resultados excepcionais. As considerações feitas acima sobre swing e virtuosismo são necessárias para ressaltar o que será mostrado das interpretações nas revisões fonográficas.

• Pregão

O termo pregão , de acordo com o Novo Aurélio do Século XXI (1999, p. 1627), significa “voz ou pequena melodia, de ritmo livre, bastante próxima do recitativo musical, e com a qual os vendedores ambulantes anunciam suas mercadorias”. José Ramos Tinhorão (2005, p. 59) em seu livro Música Popular: Os Sons que Vem das Ruas , no capítulo dedicado aos pregões, escreve: “o pregão pode ser apontado como uma das formas mais antigas de publicidade do tipo Jingle, considerada a origem mesma dessa palavra inglesa.” Tinhorão destaca que poucas informações eram sabidas sobre a existência dos pregões nos centros urbanos e que a existência dos pregões era conhecida não em livros de folclore ou de música, mas através da prosa de cronistas que ao escreverem sobre suas antigas cidades, por exemplo, encontravam ecoando na memória “os gritos musicais dos vendedores de rua ouvidos na infância” (TINHORÃO, 2005, p. 60). O pregão, portanto, é uma criação ligada à existência de vendedores ambulantes. Corroborando a fala de Tinhorão, destaca-se uma passagem escrita por Mário Quintana (1940) em seu livro A Rua dos Cataventos, na qual ele nos fornece um exemplo de pregão: “Minha rua está cheia de pregões. / Parece que estou vendo com os ouvidos: Couves! Abacaxis! Caquis! Melões!” (QUINTANA, 1940, p. 26). O autor associa o sentido da visão ao da audição, já que o pregão apresenta melodia e ritmos característicos dos vendedores de rua. Ainda sobre o gênero pregão, Christiane Assano (2007) escreveu no artigo intitulado Pregões - Uma reflexão sobre o tema na Etnomusicologia a seguinte definição:

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Trata-se de uma prática muito antiga em que um vendedor apregoa seus produtos ou oferece seus serviços por meio de um anúncio sonoro, provocando reações nos ouvintes que, muitas vezes, são seduzidos pela melodia do pregão (ASSANO, 2007, p. 8).

• O gênero modinha

O termo musical modinha refere-se à moda, cantiga popular, canção folclórica, que da segunda metade do século XVIII até cerca da segunda metade do século XIX, caracterizou-se como gênero de romança de salão nacionalizada brasileira, inspirada, quanto à forma, na ária de ópera italiana “Depois de 1850, tornou-se um gênero de cantiga popular urbana com acompanhamento de violão” (FERREIRA, 1999, p. 1352). Segundo alguns musicólogos como Araújo (1963), Alvarenga (1950) e Andrade (2006), a modinha é o primeiro gênero musical que poderia ser tipicamente brasileiro, mas na verdade é uma dança nacionalizada brasileira, pois sua origem é a moda ou modinha portuguesa. Um dos mais importantes pesquisadores do assunto, Mário de Andrade, publicou em 1930 Modinhas Imperiais , uma coletânea variada com modinhas em ritmos binários, ternários e quaternários provenientes de diferentes partes do Brasil (ANDRADE, 1930). No livro Ensaio sobre a Música Brasileira, Andrade (2006) incentiva o nacionalismo nos compositores contemporâneos e aconselha a criação de formas musicais “abrasileiradas”. Compositores brasileiros poderiam substituir, por exemplo, a sequência dos movimentos inspirados nas danças europeias (como allemande , courante , sarabande , gigue , menuet , gavotte, etc.) precedidos de prelúdio ou ária, por movimentos de danças típicas brasileiras (martelo, maracatu, maxixe, miudinho, cateretê, frevo, baião, coco, etc.). A modinha brasileira, por ter um caráter saudosista, melancólico e andamento lento, é equiparada pelo autor à ária antiga (ANDRADE, 2006, p. 53). Oneyda Alvarenga, musicóloga e pesquisadora colaboradora na obra de Mário de Andrade, corrobora o pensamento deste autor ao caracterizar a modinha como gênero genuinamente brasileiro, conforme atesta a passagem a seguir: Sim, com o Império, o batuque místico já não bastava para acalmar o nativo consciente de sua terra e de sua independência. [...] A música profana começou a predominar em suas manifestações específicas características de sensualidade sexual: a modinha de salão [...] era válvula de escapamento das paixões. A modinha já era manifestação intrínseca de coisa nacional (ALVARENGA, 1950, p. 11).

Segundo pesquisas do musicólogo Mozart de Araújo (1963), o brasileiro Domingos Caldas Barbosa, já em 1775, cantava modinhas e lundus em palácios portugueses. O cantor e instrumentista do século XVIII compunha para os saraus da nobreza portuguesa e designava 35

modestamente suas modas como “ modinhas ”. Mozart de Araújo afirma: “No Brasil, a modinha como o lundu iriam atravessar todo o século XIX, conservando ainda, por largo período do século atual, a categoria de autênticos cantos nacionais.” (ARAÚJO, 1963, p. 47). No século XX, o compositor Catulo da Paixão Cearense se destaca como clássico do gênero. Inspira a maior parte dos nacionalistas e influencia bastante a música de Villa-Lobos que, em sua vasta produção musical, também compôs modinhas. O gênero modinha apresentado por Gnattali na peça Modinha & Baião guarda as características melódicas do gênero: andamento lento, caráter lânguido, saudoso e melancólico; porém não apresenta letra, é apenas instrumental, como uma canção sem palavras repleta de brasilidade.

• O gênero baião

Do universo rítmico brasileiro, o baião se destaca como ritmo musical nordestino, acompanhado de dança, muito popular na região nordeste e norte do Brasil. Como outros gêneros, o baião designou inicialmente um tipo de reunião festeira dominada pela dança. O folclorista Câmara Cascudo o associou aos termos “ baiano ” e “ rojão ”. Este último significava o pequeno trecho musical que é executado pelas violas no intervalo dos desafios de cantoria. O autor registrou a popularização do gênero no país a partir de 1946, depois de uma sensível adaptação e modificação de sua forma original, passando a anexar além da sanfona (acordeom), a viola caipira, o triângulo e o pife formando com esses instrumentos a orquestração típica que intercalava o canto. (1912-1989), apelidado Rei do Baião , foi quem proporcionou o sucesso do baião (DREYFUS, 1997). 18 , seu parceiro musical e coautor de sucessos como Asa Branca (1947), contou que houve, da parte de Gonzaga, um real planejamento para lançar a música do nordeste nos grandes centros urbanos e, para isso, o baião foi o ritmo escolhido e “devidamente estilizado e amaciado para o paladar urbano” (DREYFUS, 1997, p. 112). A temática do gênero referia-se ao cotidiano dos nordestinos e às dificuldades da vida. O ritmo binário, revestido por melodias dolentes era, originariamente, executado apenas por sanfoneiros. Luiz Gonzaga, que em suas primeiras apresentações era acompanhado apenas da

18 Em depoimento ao pesquisador Nirez - Miguel Angelo de Azevedo, em 11 fev. 1977, reproduzido no livro Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga (DREYFUS, 1997).

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própria sanfona, acrescentou na instrumentação o zabumba e o triângulo. Segundo Gonzaga , em relato publicado por Dominique Dreyfus, essa instrumentação básica tem origem portuguesa: [...] eu verifiquei que esse conjunto era de origem portuguesa, porque a chula do velho Portugal tem essas coisas, o ferrinho (triângulo), o bombo (o zabumba) e a rabeca (a sanfona) [...] é folclore que chegou de lá [...] e deu certo [...] o que eu criei, foi a divisão do triângulo, como ele é tocado no baião. Isso aí não era conhecido. (DREYFUS, 1997, p. 152).

De acordo com Guerra Peixe (1987, 1988),19 a escala do baião aparece com as seguintes variações: com todos os graus naturais (modo iônico); com o sétimo grau abaixado (modo mixolídio); com o quarto grau aumentado (modo lídio); com mistura dos dois modos anteriores ou dos três e poucas vezes no modo clássico europeu; e ainda, raramente, no modo menor com o sexto grau maior (modo dórico). As alterações nos acordes das escalas do gênero baião aparecem tanto nas composições com tonalidade Maior quanto Menor. No modo Maior: nos graus I, IV e V graus, em ordens variáveis; e/ou nos graus I e II graus, com a terceira do acorde alterada. Na tonalidade Menor, aparecem nos graus: I e IV graus, com a terceira alterada. Pesquisadores brasileiros, como José Siqueira (1956), Hermelinda Paz (2002), Antônio Guerreiro de Faria (2007) escreveram sobre o modalismo na música brasileira. Quanto ao aspecto rítmico da execução do baião, ele apresenta-se, na maioria das vezes, em binário simples (2/ 4), sendo que o baixo é tocado com o primeiro tempo em semínima pontuada seguida de uma semicolcheia e o segundo tempo com pausa, podendo haver variantes. Alguns percussionistas como Edgard Rocca – Bituca [s/d] na apostila intitulada Ritmos Brasileiros e seus Instrumentos de percussão20 , Luiz de Almeida da Anunciação – Pinduca (1990) no livro A Percussão nos Ritmos Brasileiros 21 e o método de Paulo de Sá (2011) Levadas Rítmicas , têm ensinado o ritmo do baião e suas variantes. O violonista Marco Pereira (2006), no livro intitulado Ritmos Brasileiros , identifica seis variantes rítmicas para o baião. Destacou-se a variação rítmica, representada abaixo, por ser a mais parecida com a que foi utilizada por Radamés Gnattali na obra Modinha & Baião.

19 Guerra-Peixe também utilizava uma apostila usada em aulas particulares de composição (RJ, 1987), que depois se tornou um livro editado por Irmãos Vitale Editora (1988). 20 Livro/apostila editado no Rio de Janeiro na década de 1980 pela extinta Escola Brasileira de Música [s.d.], dirigida pelo músico Nelson Macedo. 21 Apostila editada no Texas em 1990. 37

Exemplo musical 1. Rítmica básica do baião (PEREIRA, 2006, p. 64).

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CAPÍTULO 1

PERFIL BIOGRÁFICO DE RADAMÉS GNATTALI

1.1 Introdução

O perfil biográfico do compositor-intérprete Radamés Gnattali tem como objetivo mostrar que sua vida em família, sua formação humanística, sua formação musical e suas experiências profissionais colaboraram e permitiram a aquisição do virtuosismo e do swing revelados na análise aural das obras para violoncelo e piano Flor da Noite (1938) e Modinha & Baião (1952) gravadas por ele em Duo com Iberê Gomes Grosso (Figura 1, Anexo G) no LP do selo Festa LDR 5028 [s.d.], intitulado Villa-Lobos / Gnattali , fonte primária para a revisão fonográfica desta pesquisa. De acordo com o objetivo exposto é pertinente informar que se aborda o período aproximado do nascimento de Radamés até a época da gravação, lançamento e tournée internacional, realizada em 1964, na qual o Duo Radamés Gnattali-Iberê Gomes Grosso apresentou o repertório gravado no referido LP [1958-1964]. Entretanto, segundo o catálogo oficial de Radamés Gnattali, o LP foi lançado no Brasil em 1959 (GNATTALI, Roberto, 2006). Elaborou-se este perfil a partir das biografias contidas no livro de Valdinha Barbosa e Anne Marie Devos (1985), no livro/documentário de Aloísio Didier (1996) e no Catálogo Digital Radamés Gnattali (GNATTALI, Roberto, 2006). O perfil baseia-se também nas entrevistas dadas pelo próprio compositor em programas de diferentes meios de comunicação, entre os quais se destacam: o programa intitulado A Música Segundo Tom Jobim (1984), dirigido por Nelson Pereira dos Santos; o programa o programa intitulado Personalidades — Série Depoimentos (28/07/1985)22 , disponível no acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS); o programa Contraluz (1986),

22 Na entrevista de Radamés ao MIS (1985) os entrevistadores foram: Luciano Perrone, Hermínio Bello de Carvalho, Sergio Sarraceni, Aloísio Didier, Antônio Carlos Jobim e Manoel da Conceição (apelidado Mão de Vaca). A pesquisa foi de Elizabeth Versiani Formagini e a coordenação do depoimento foi de Jairo Severiano. Os depoimentos de Radamés ao MIS foram todos transcritos pela autora deste trabalho em 2012.

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com roteiro e direção de Hermínio Bello de Carvalho, encontrado no acervo da TVE-RJ; a matéria intitulada Com a Batuta Radamés , veiculada no Jornal O Pasquim do Rio de Janeiro (1977), concedida pelo maestro a um grupo seleto, composto por amigos e personalidades, entre os quais estavam: Ziraldo, Sérgio Cabral, Tárik de Souza, Aldir Blanc, Roberto Moura, Jards Macalé, Turíbio Santos e Hermínio Bello de Carvalho; e entrevistas com parentes e amigos do compositor coletadas pela pesquisadora em 1989 e disponíveis no Anexo F desta tese.

1.2 Antecedentes – raízes musicais de Radamés Gnattali - família de artistas

Quem convivesse com os Fossati, no início do século XX, saberia que era uma família de músicos e artistas da cidade de Porto Alegre. Como todos levavam a sério o estudo da música, provavelmente algum membro poderia tornar-se um virtuose . Os avós maternos de Radamés eram o escultor italiano Cézar Fossati e a alemã de origem judaica, cultora das artes e da música, Maria Weingärtner Fossati. A família Fossati era conhecida e identificada como uma família de músicos (Figura 4, Anexo G). Todos os treze filhos do casal — Adélia (mãe de Radamés), Camilo, Cézar, Emilia, Vittorio, Arthur, Paschoal, Frederica, Paulina, Nina (Itala), Carlito (Carlo - filho) e Virgílio foram músicos. As mulheres tocavam piano e os homens, piano, violoncelo ou violino. Cézar Fossati, violinista, e Paschoal Fossati, violoncelista, estudaram na Bélgica com bolsa de estudos. Após realizarem tournées, nas quais obtiveram críticas favoráveis, retornaram ao Brasil para trabalhar como profissionais da música. Vittorio, o filho mais novo do casal Fossati, além de ser pianista era também flautista. A tradição musical passou para os netos do casal Fossati. A prima de Radamés, Olga Fossati (1898), assim como o pai, Cézar (ambos na Figura 5, Anexo G), estudou violino na Bélgica. Com apenas quatorze anos de idade ganhou o Concurso Internacional de Bruxelas. No Brasil, trabalhou como solista, como músico de orquestra e como professora. Foi com ela que Radamés aprendeu a tocar violino. Os avós paternos de Radamés, Angelo Gnattali e Teresa Bighelli Gnattali, e o pai de Radamés, Alessandro Gnattali (Figura 6, Anexo G), eram naturais da cidade de Verona, Itália. Alessandro, o mais novo dos cinco filhos do casal Gnattali foi o único da família a deixar a 41

Itália e emigrar para o Brasil para trabalhar como marceneiro com apenas vinte anos de idade (1886). Em sua cidade de origem, embora apenas dedilhasse o bandolim, ele imaginava um dia poder estudar e viver como músico profissional. No Brasil, após se estabelecer na cidade de Porto Alegre, Alessandro Gnattali iniciou seus estudos de música com Cézar Fossati. Determinado a alcançar seu objetivo, ele dividiu seu tempo entre o trabalho como marceneiro e o estudo da música. Experimentou tocar vários instrumentos e optou pelo fagote, que naquela época – início do século XX – era um instrumento carente nos conjuntos e orquestras de Porto Alegre. Aos poucos foi deixando a marcenaria. Nove anos depois de sua chegada ao Brasil, Alessandro Gnattali já conseguia viver da música, sobretudo lecionando. Em 1905, casou-se com a pianista Adélia, da família Fossati. Radamés foi o primeiro filho do casal e nasceu em 1906. Depois veio Ernani (1908), Aída (1911) e, mais tarde, Alexandre (1918) e Maria Therezinha (1926). Todos os irmãos de Radamés também tornaram-se músicos profissionais. Radamés tinha respeito e admiração pela determinação de seu pai em se profissionalizar músico (Figura 7, Anexo G). Em entrevista ao jornal O Pasquim (1977)23 , disponibilizada pelo Catálogo Digital Radamés Gnattali , fala sobre ele: “Meu pai era operário pobre. Veio para o Brasil para ver se melhorava a vida. O irmão dele gastou todo o dinheiro da família para se formar em medicina” (GNATTALI, Roberto, 2006). Na entrevista concedida ao MIS (1985), ele também fala sobre a coragem e determinação do pai: “Meu pai marceneiro, tinha um sonho: ser músico profissional. Já nem tão jovem, conseguiu. Estudou piano e contrabaixo, tornou-se fagotista e, quando morreu, em 1942, era um respeitado maestro.” Percebe-se que Radamés tinha admiração pela história vitoriosa do pai, pois além de ter conseguido realizar o sonho de se profissionalizar, ele atuou politicamente em Porto Alegre na busca de reconhecimento público para a profissão de músico. Foi um dos criadores e diretores do Centro Musical Porto-Alegrense (1920-1933), uma das mais importantes associações de caráter sindical — como associação privada — promotora tanto de ações assistencialistas e previdenciárias quanto de ações educativas e agenciadoras. Essa associação liderou diversas tentativas de regulação da profissão em relação ao mercado, tais como a fixação de valores para diferentes funções musicais e a efetivação da colaboração da categoria na organização de suas próprias orquestras. Com isso, estabeleceu um afastamento do que aconteceu nas décadas anteriores quando a música era associada ao amadorismo e ao

23 Com a batuta Radamés. O Pasquim , 06 de maio de 1977.

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diletantismo doméstico. O Centro Musical Porto-Alegrense também tinha como meta desenvolver o gosto artístico-musical da população, programando concertos sinfônicos com repertório erudito. A maioria dos músicos e membros da diretoria do Centro Musical Porto- Alegrense era de imigrantes ou filhos de italianos e alemães estabelecidos no Brasil. O relato acima serve para corroborar a visão de que Radamés e seus irmãos teriam de encarar futuramente a música como profissão séria e não como hobby ou de forma amadorística. Radamés, em entrevista a Didier (1996), mostrou senso crítico quando falou sobre sua vocação e profissionalismo: “[...] Sempre fui músico [...]. Gosto da profissão e faço tudo bem, honestamente, o melhor que puder. Dizer que faço bem não é dizer que a música é boa” (DIDIER, 1996, p. 94). A partir das raízes familiares de Radamés, entende-se que desde a infância ele teve à sua disposição, na própria casa, a oportunidade de ouvir diversos gêneros musicais e diferentes instrumentos sendo praticados, bem como diversas formações camerísticas. Além disso, quando quisesse poderia experimentar instrumentos tanto de teclas como de cordas e de sopro. Portanto, considera-se que os saberes adquiridos por Radamés nos seus primeiros anos de vida, em família, mesmo que fossem percebidos inconscientemente, também cooperaram para o seu futuro, como pianista virtuose, maestro, compositor e arranjador.

1.3 A prática musical em família – ecletismo musical e o apoio à carreira

A carreira de Radamés foi marcada desde o início pelo ecletismo musical, no que recebeu total apoio de sua família. Pode-se dizer que a formação artística de Radamés começou na gestação e seguiu adiante ininterrupta. De acordo com o depoimento de sua irmã Aída nas legendas do Catálogo Digital Radamés Gnattali, aos três anos de idade (Figura 8, Anexo G) Radamés ouvia os ensaios da pequena orquestra regida por seu pai em casa e imitava todos os seus gestos até mesmo as viradas das páginas da partitura (GNATTALI, Roberto, 2006). Com apenas quatro anos começou a estudar piano em casa com a mãe. Aos nove anos (Figura 9, Anexo G), Radamés ganhou seu primeiro prêmio: a medalha e o diploma ao mérito, dada pelo Cônsul da Itália, por reger com sucesso uma pequena orquestra de seis músicos com arranjos escritos por ele em solenidade realizada na Sociedade Italiana , que era uma espécie de clube frequentado pelos imigrantes operários onde se organizavam bailes, jogava- 43

se bocha e estudava-se italiano. Segundo Radamés, foi na Sociedade Italiana que, quando criança, antes mesmo de estudar português, aprendeu a ler e escrever em italiano (MIS, 1985). Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som (MIS, 1985), ao ser indagado sobre seus feitos musicais e prêmios como prodígio na tenra infância, Radamés minimiza o fato. Entretanto, demonstrou orgulho ao falar das aulas de piano que teve exclusivamente com sua mãe, desde os quatro anos até completar quatorze anos de idade. Segundo Radamés, “a técnica natural, aliada à grande intuição musical, eram características do pianismo de sua mãe” (MIS, 1985). Radamés sempre atribuiu o fato de ter passado no exame de admissão ao 5º ano do curso de piano do Conservatório de Música de Porto Alegre à correta formação pianística obtida através do aprendizado com sua mãe (Figura 10, Anexo G). Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som, Radamés diz: Minha mãe era uma mulher formidável. Fazia todo o serviço de casa — todo mesmo — e ainda arranjava tempo de ensinar música a todos os filhos. Ela tinha uma intuição musical fabulosa e lia bem partitura. Quando fiz o exame para o Conservatório, passei direto para o 5º ano. Isso significa que valeu o tempo que estudei com ela (MIS, 1985).

Radamés, na realidade, mesmo sendo ainda muito jovem, só tinha vontade de fazer música. Desde sua entrada no Ginásio Anchieta, não gostava do colégio, tinha problemas de adaptação, não se expressava bem devido à gagueira e era um péssimo aluno. Apesar desses reveses, a medalha ganha aos sete anos de idade do cônsul italiano havia garantido a seu pai, Alessandro, a alegria e a certeza do talento musical do primogênito. Certa vez, seu pai, preocupado, lhe perguntou: “Afinal o que você quer?” A resposta veio imediatamente: “Eu quero ser músico. Só quero estudar música.” (MIS, 1985). A partir daí, Radamés se empenhou para se tornar um concertista internacional. Após as aulas particulares de português, prestou o concurso e entrou para o Conservatório de Música do Instituto de Belas Artes de Porto Alegre.

1.4 A prática musical fora de casa — primeiros trabalhos

Nos primeiros vinte anos de vida de Radamés, as experiências musicais acumuladas já teriam sido decisivas, tanto para a obtenção de seu virtuosismo pianístico quanto para a obtenção de habilidades práticas na linguagem da música popular que apreciava. Em entrevista ao programa A Música Segundo Tom Jobim (TV Manchete, 1984), Radamés

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afirmou que ouvia e praticava música tanto popular quanto erudita sem fazer distinção entre os gêneros. Enganam-se os que imaginam que Radamés se aproximou da música popular somente no Rio de Janeiro e por necessidade. É certo que mais tarde, já adulto, por força das circunstâncias na cidade grande, teve que lançar mão de todo seu potencial musical, distanciando-se do ideal de ser pianista de concerto. No entanto, ouvir e tocar a música popular já fazia parte de sua cultura e seu interesse ainda em Porto Alegre. Paralelamente aos estudos eruditos, as seduções da música das ruas entravam pela janela da família Gnattali. Radamés que, no começo da década de 1920, já dominava além do piano, também o violino e o violão, começava a ter “fama de craque” no cavaquinho (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 13), (Figura 11, Anexo G). Radamés recorda esse fato no depoimento para o Museu da Imagem e do Som (1985): Nós formávamos, eu, o Sotero Cosme, que era pintor e também músico que vivia em Porto Alegre, o Luís Cosme, irmão dele, o Júlio Grauda, flauta e mais outros músicos. Era um pequeno bloquinho de carnaval, meio moderno na época: Os Exagerados . Cada um tocava um instrumento. E como não podia levar o piano, eu comecei a tocar cavaquinho (MIS, 1985).

Radamés, na adolescência, também podia ser visto trabalhando como pianista no Cinema Colombo no bairro Floresta de Porto Alegre — tocando nos filmes mudos ao piano repertório de música ligeira 24 e ganhando 10 mil réis por dia. Radamés é quem fala: “[...] ganhava 10 mil réis por dia. As partituras eram pot pourri de canções francesas, italianas, operetas, valsas, polcas. Nós líamos tudo o que havia na estante enquanto na tela passavam os filmes mudos” (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 14). Na juventude, Radamés também participou dos conjuntos carnavalescos da época atuando como violonista em conjuntos musicais populares. (Figura 12, Anexo G) Radamés, durante toda a sua infância e adolescência, acompanhou e observou a saga de seu pai, de quem também experimentou com sucesso os vários instrumentos musicais estudados, inclusive o fagote (Figura 13, Anexo G). No mesmo ano, integrava como pianista o sexteto instrumental intitulado Ideal Jazz Band tocando no Café Colombo (Figura 14, Anexo G). Nessa época, o jovem Radamés também era requisitado para tocar em bailes e saraus, cujo repertório baseava-se em pot pourris de operetas francesas e italianas; valsas; polcas e schottisches no estilo Belle

24 Musica Ligeira : no Brasil significa gênero de música popular de fácil assimilação, associado à “ópera ligeira” ou “opereta”. Em Portugal, significa música folclórica baseada no fado ou estilos musicais dele derivados bem acessíveis ao público em geral. Disponível em: . Acesso em: 28 abr. 2012. 45

Époque.25 As experiências com a música popular, ainda no Rio Grande do Sul, ajudariam Radamés não só a ter a certeza que poderia viver profissionalmente de música, mesmo que de forma versátil e não somente como pianista concertista virtuose , mas também ajudariam, já nessa época, a prepará-lo tanto para o ecletismo musical que demonstraria futuramente, como compositor e arranjador, quanto para o swing que mais tarde faria parte constante de sua performance como pianista solista e camerista.

1.5 A prática musical erudita e os incentivos do professor Guilherme Fontainha

O jovem Radamés dos quatorze aos dezoito anos de idade (Figura 15, Anexo G), frequentou o Conservatório de Música do Instituto de Belas Artes de Porto Alegre, sólida instituição de ensino musical acadêmico. Nesse período, sedimentou as bases para sua almejada carreira pianística. No Conservatório, Radamés estudou com o renomado pianista e professor mineiro Guilherme Fontainha 26 , que o apoiou na obstinação de se tornar um pianista virtuose e um músico profissional. Paralelamente, no mesmo conservatório, Radamés também se formou em violino. Com apenas dezoito anos de idade, Radamés acumulara em seu repertório os Prelúdios e Fugas de Bach; a Sonata de Liszt; obras de Chopin; alguns concertos para piano e orquestra, entre os quais o Concerto para Piano e Orquestra de Tchaikovsky que apresentou em sua prova de formatura. Além destas, constavam ainda peças de Debussy, Ravel e também obras de autores brasileiros, como Henrique Oswald, Arthur Napoleão, Villa-Lobos e Ernesto

25 Belle-Époque : Época, a partir de 1870 — fins do século XIX até o início do século XX — caracterizada pelo afrancesamento dos meios intelectuais e da alta sociedade. No Brasil, o maior exemplo de música no estilo Belle- Époque é a obra de Ernesto Nazareth. O ragtime americano também é considerado música no estilo Belle- Époque . O compositor Scott Joplin é apontado como um análogo de Ernesto Nazareth nos EUA. Disponível em: . Acesso em: 17 out. 2011. 26 Discípulo de Francisco Vale em sua cidade natal, Juiz de Fora; de Viana da Mota e Severin Eisenberger em Berlim; e de Motte Lacroix, em Paris. Guilherme Fontainha foi para o Rio Grande do Sul após estudos em Paris e Berlim, tendo em sua bagagem muitos concertos realizados por toda a Europa. Quando Radamés foi estudar com ele, além de titular da cátedra de piano, era o diretor do Conservatório de Música do Instituto de Belas Artes de Porto Alegre. Fontainha foi um apaixonado pelo ensino. Quando se transferiu para o Rio de Janeiro, na década de 1930, já havia fundado oito escolas de música no Rio Grande do Sul, exercendo o magistério também em Pelotas. Após inestimável contribuição à elevação do ensino de música no Rio Grande do Sul, transferiu-se para o Rio de Janeiro onde foi nomeado professor e depois diretor do Instituto Nacional de Música, cargo que exerceu por sete anos. Fontainha também criou a Revista Brasileira de Música (1945). Foi professor de Laís de Souza Brasil, Irany Leme, Luís Carlos de Moura Castro, entre outros pianistas brasileiros de renome (LAGO, 2007, p. 650).

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Nazareth. Constatou-se que o virtuosismo pianístico já fazia parte da musicalidade de Radamés e, desde muito jovem, ele já caminhava em direção ao seu futuro swing característico.

1.5.1 Radamés no Rio de Janeiro em 1924

Radamés obteria reconhecimento artístico e profissional no Rio de Janeiro, cidade que escolheria como residência. Até o seu estabelecimento definitivo, algumas idas e vindas de Porto Alegre se sucederam. O professor Fontainha foi o responsável por levar Radamés para a capital nas três primeiras vezes: em 1924, 1929 e 1931. Em 1924, Fontainha levou Radamés para o Rio de Janeiro com o objetivo de apresentá-lo oficialmente em recital como aluno virtuose. Cabe ressaltar que a intenção de Fontainha não foi apenas de ajudar o jovem pianista, mas também de mostrar sua própria competência como mestre. É o próprio Radamés que fala sobre isso: O primeiro concerto que fiz foi com 18 anos, em 1924, no Rio de Janeiro. Eu cursava o último ano de piano. O Fontainha, que era meu professor e diretor do Conservatório Musical de Porto Alegre, me trouxe para o Rio. Era para apresentar um aluno dele [...] acho que ele queria arranjar emprego na Escola de Música [...] mais tarde foi até contratado mesmo. Toquei Liszt e Bach. Foi na Escola Nacional de Música e o Fontainha convidou os críticos todos, até a Guiomar Novais estava lá. Depois do concerto no Rio de Janeiro, voltei para Porto Alegre para fazer os exames finais. Deu uma encrenca danada com os outros alunos. Eu tinha faltado muito, pois tinha ficado fora mais de três meses e os outros acharam que eu não podia fazer os exames por causa das faltas. Só que eu estava no Rio de Janeiro com o professor, que era diretor do Conservatório, aí ninguém pôde fazer nada. Fiz a prova final que era realizada no Conservatório e ganhei o Prêmio Araújo Vianna, com medalha de ouro (GNATTALI, Roberto, 2006).

Radamés, nessa época, já carregava consigo a experiência musical obtida e praticada ora em família e em companhia de seus amigos músicos, ora nas aulas do conservatório e apresentações em Porto Alegre, fosse com música popular ou erudita. Preparado, Radamés Gnattali, aos dezoito anos de idade, fez um recital no salão do Instituto Nacional de Música — atual Escola de Música da UFRJ (Figura 16, Anexo G). A julgar pelas críticas publicadas nos jornais da época, ele obteve sucesso. No recital realizado no dia 31 de junho de 1924, Radamés tocou o Concerto de Órgão de Bach-Stradal e as peças de Liszt Sonata em Si menor , Gondoliera e Rapsódia nº 9 , peças que são consideradas de alto nível de dificuldade e que requerem, além de desenvolvimento estético, virtuosismo. Os críticos musicais Borgongino, do O Correio da Manhã ; Rodrigues Barbosa, do O Jornal ; Arthur Imbassay do Jornal do Brasil ; e Oscar Guanabarino do Jornal do Commercio 47

fizeram excelentes críticas do recital de Radamés no Instituto Nacional de Música (BARBOSA; DEVOS, 1985). A seguir, como exemplo, apresenta-se apenas um dos extratos de crítica, publicada em O Jornal e escrita por Rodrigues Barbosa. [...] Quer como estilo, quer como sonoridade, quer com cambiantes de colorido, a execução teve certa grandeza que só os intérpretes privilegiados podem imprimir na sua execução. E de tal modo se elevou a execução desse concerto, que a sonoridade ampla, homogênea, fazia pensar numa beleza no fraseio [...] a Sonata em si menor, esse poema dantesco, encontrou no Sr. Radamés um intérprete fervoroso, apaixonado pela epopeia liszteana, vibrando em todas as suas belezas, que são infinitas. Não houve uma só joia daquele escrínio sonoro que deixasse de irradiar a luz puríssima; não houve uma única palpitação de sentimentos na frase poética que não encontrasse eco nos corações dos ouvintes que souberam expandir-se em aplausos. [...] Se ele começa a sua carreira com um esplendor que todos conseguem no período mais glorioso, até onde chegará com o seu talento e a sua personalidade de tão acentuado relevo? (BARBOSA, 1924 apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 19).

Da primeira viagem ao Rio de Janeiro, ficou na memória de Radamés outro fato: a oportunidade de ouvir pela primeira vez tocando “ao vivo” o pianista e compositor Ernesto Nazareth (MIS, 1985). Radamés, desde seus estudos em Porto Alegre, já apreciava algumas partituras do compositor que era famoso por seus tangos brasileiros. Foi andando no centro do Rio de Janeiro que Radamés, por acaso, pode ouvir Nazareth, mesmo que do lado de fora do Cinema Odeon (Figura 17, Anexo G), conforme contou em entrevista: Conheci Nazareth quando ele tocava no Cinema Odeon, na [Av.] Rio Branco com Sete de Setembro [no centro do Rio de Janeiro]. Um dia eu estava passando, ouvi aquele som e era o próprio Nazareth tocando. Eu não entrava porque não tinha dinheiro para o cinema, mas do lado de fora eu o ouvia. Sempre juntava um povinho para ouvir. Parei pra escutar e sempre que podia fazia isso (MIS, 1985).

1.5.2 De volta a Porto Alegre

Após o sucesso obtido no Rio de Janeiro e de volta a Porto Alegre, Radamés presta o exame final do Conservatório no fim daquele ano de 1924. Forma-se com nota máxima e também a medalha de ouro — Prêmio Araújo Vianna (GNATTALI, Roberto, 2006). A Figura 18 do Anexo G desta tese retrata a foto tirada no dia do recital de formatura dos alunos do professor Guilherme Fontainha. Para Radamés ficaria marcada a fase de pianista solista. Ao longo da vida, em diversas ocasiões e entrevistas, Radamés citou com orgulho as críticas de seu primeiro recital ao mesmo tempo em que lamentava não ter podido seguir a carreira pianística devido à falta de condições financeiras: “[...] sinto que tocar piano é que era o meu negócio, o que eu queria

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mesmo. É, e daí? Não pode ser e acabou [...]” (DIDIER, 1996, p. 78). No início de 1925, Radamés conheceu Vera Maria Bieri, pianista gaúcha de São Leopoldo, com quem iniciaria um relacionamento e se casaria sete anos mais tarde após começar a se firmar financeiramente, em detrimento de sua carreira de solista.

1.5.3 Em compasso de espera

Entre 1924 e 1929, época em ainda almejava ser exclusivamente pianista virtuose, Radamés ficou em uma espécie de expectativa de alcançar seu objetivo. Porém, paralelamente, trabalhava muito tanto em recitais quanto em bailes, cinemas e teatros de Porto Alegre, obtendo destaque. Em 1925, Radamés foi convidado pela Sociedade Paulista (sociedade artística da cidade de São Paulo que promovia Saraus Musicais e que, nessa ocasião, tinha Mário de Andrade como vice-presidente) para realizar um recital em 03 de outubro de 1925. No auditório do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo , tocou o mesmo programa apresentado no ano anterior no Rio de Janeiro 27 (BARBOSA; DEVOS, 1985). Sobre a apresentação, o conhecido mestre de educação musical Sá Pereira,28 por meio de carta publicada no Jornal do Commercio local, exaltou as qualidades técnico-interpretativas do jovem intérprete: “Radamés Gnattali revelou excepcionais qualidades de concertista de alta linhagem”. (PEREIRA, 1925 apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 22). Porém, a repercussão tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro foi somente a do dia, ou seja, não houve continuidade. O que se sabe a respeito desses concertos é devido às críticas que foram publicadas nos jornais da época. Não há sequer um registro fonográfico desses primeiros concertos. A partir daí, Radamés esperava por um patrocínio para desenvolver sua carreira de pianista, para que pudesse aprofundar e multiplicar o repertório virtuosístico sem preocupações de ordem material, como era o caso de muitos mestres da música, por exemplo, Carlos Gomes, Villa-Lobos, seus tios e sua prima Olga Fossati. Radamés solicitou uma bolsa ao governo de Porto Alegre, porém não conseguiu. Para aumentar as suas preocupações financeiras, o orçamento da família Gnattali ficou comprometido com o nascimento de sua

27 Concerto de Órgão de Bach-Stradal e as peças Sonata em Si menor , Gondoliera e Rapsódia nº 9 de Liszt. 28 Sá Pereira (SP, 1888-1966) foi mestre de música, pianista, musicólogo e pedagogo. Seu principal discípulo foi Camargo Guarniere. Após estudar os métodos de Jacques Dalcroze, em Genebra, implantou seus princípios no Conservatório Brasileiro de Música no Rio de Janeiro (LAGO, 2007, p. 651). 49

irmã mais nova em 1926. Não sendo possível bancar o estudo exclusivamente pianístico do primogênito, seu pai o incentivou a utilizar todo seu talento e versatilidade musical. Em Porto Alegre prosseguiu com a atividade de professor, que apesar de não gostar, era o que lhe garantia alguma renda (MIS, 1985). Anos mais tarde, Radamés afirmou em entrevista: Não sei ensinar. Tive alguns alunos em Porto Alegre, mas não deu, não tenho paciência. [...] Acho que ninguém pode ensinar música a ninguém, ainda mais para quem não tem noção de ritmo e de harmonia, é impossível. [...] A pessoa pode aprender harmonia e não ser compositor. É a mesma coisa que aprender gramática e não ser poeta. (DIDIER, 1996, p. 61).

Devido à sua versatilidade musical, Radamés lançou mão do curso de violino concluído paralelamente ao curso de piano. Formou o Quarteto de cordas Henrique Oswald , atuando como violista e não como violinista, ao lado dos irmãos violinistas Sotero Cosme e Luiz Cosme e do violoncelista italiano Arduino Rogliano O quarteto durou aproximadamente dois anos, realizando muitos concertos em Porto Alegre, Caxias, São Leopoldo e até São Paulo. Na década de 1980, Radamés declarou que aprendeu a orquestrar devido à experiência no quarteto, reconhecendo que lucrou muito musicalmente com a experiência de violista naquele grupo. Completou dizendo que, através dessa oportunidade, aprendeu a escrever bem para o naipe de cordas tanto em suas composições clássicas como em arranjos de música popular (MIS, 1985). Tocávamos Beethoven, Mozart, Mendelsohn, entre outros. Era muito bom o quarteto. Ensaiávamos todo dia, na casa de um e de outro. E eu gostava. [...] Este foi um período importante para mim; o grupo de cordas é a base da sinfônica; quem sabe trabalhar com ele, sabe usar a orquestra (GNATTALI, Radamés apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 24).

Outros acontecimentos corroboram o virtuosismo de Radamés, indicando que ele poderia ter tido sucesso apenas como concertista.

1.5.4 Novamente no Rio de Janeiro em 1929

Os anos se passavam e Radamés acumulava experiências musicais. Quatro anos depois do primeiro recital no Rio de Janeiro, Radamés voltou a então capital federal como hóspede na casa de seu ex-professor Fontainha — que passara a morar na cidade para trabalhar como professor titular do Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro. Radamés, que nessa ocasião (1929) estava com vinte e três anos de idade, foi programado por Fontainha para solar o Concerto nº 1 em Si bemol menor op. 23 de Tchaikovsky no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, sob a regência de Arnaldo Glückman (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 24).

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As críticas de 1929 foram ainda melhores do que as da sua estreia no Rio de Janeiro em 1924. Após a apresentação com orquestra, os críticos reafirmaram as palavras que haviam escrito cinco anos antes sobre o pianismo de Radamés. Destaca-se, entre outras, a crítica de autoria de Basílio Itiberê publicada no Correio da Manhã : pianista absolutamente invulgar, dotado de um temperamento apaixonado, teve a seu cargo o Concerto em si menor de Tchaikovsky, obra de grande efeito pianístico e magnificamente combinado a orquestra. O Sr. Gnattali já é sem favor nenhum, um virtuose. As suas qualidades de bravura, o deslumbramento da técnica, a beleza da sonoridade, o senso artístico, tudo nele contribui para torná-lo um artista digno de atenção (ITIBERÊ, 1929 apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 24).

Na ocasião desse concerto, Radamés dedicou-se apenas ao estudo do piano e, por esta razão, ficou hospedado na casa de Fontainha que era localizada no bairro das Laranjeiras. Nos fins de semana, conforme o próprio Radamés contou na entrevista para o MIS, era comum ele passar as tardes inteiras de sábado na casa do sobrinho de Fontainha escutando discos de Jazz . Radamés escutava com atenção os discos da considerada Era do Swing de sua época, como os discos do conjunto de Duke Ellington (1899-1974) que tinha lançado Cotton Club Stomp ; da orquestra do pianista Fletcher Henderson (1897-1952), considerado um dos criadores das Big Bands ; os discos de Benny Goodman (1909-1986) como o Benny Goodman and the Giants of Swing (1929, Prestige); entre outros. A música no estilo dessas big bands tocava nos clubes de dança do Rio de Janeiro, como o Theatro Casino e o Casino Beira Mar que ficavam no Passeio Público, ambos inaugurados desde 1926 seguindo os moldes dos club dancers americanos. Radamés estava atraído pelo ambiente musical e cultural do Rio de Janeiro e, sobretudo, pelas diversas oportunidades de trabalho que ali se encontravam. Sendo assim, começou a planejar se estabelecer na capital, primeiramente como pianista concertista. Porém, vendo que cada vez se mostrava mais difícil viver apenas de concertos de piano, começava a aceitar a ideia de utilizar seu talento e ecletismo musical para se sustentar financeiramente. Uma novidade para Radamés, que futuramente iria ajudá-lo a ganhar oportunidades de trabalho, foi o fato de Fontainha adquirir uma casa de música (loja) na Rua do Ouvidor, perto do Largo de São Francisco (MIS, 1985). As casas de música eram famosas e existiam desde fins do século XIX. Elas editavam e vendiam partituras, vendiam pianos e outros instrumentos, alugavam salas para professores darem aulas particulares. A loja de Fontainha também funcionava como fonte de trabalho para muitos pianeiros que ali “esperavam o telefone tocar”. Era comum que pessoas telefonassem para as casas de música procurando contratar pianistas para tocar em cerimônias, almoços, jantares, bailes, etc. Pelas razões supracitadas, até aproximadamente o final da década de 1930, as casas de música haviam se 51

tornado pontos de encontro de diversos músicos populares. No Rio de Janeiro, as casas de música mais famosas eram: Casa de Arthur Napoleão & Miguez (que ficava na Rua do Ouvidor 89); Casa Vieira Machado & Cia . (Rua do Ouvidor 147); Casa Beethoven (Rua do Ouvidor 147); Casa Carlos Gomes (Rua Gonçalves Dias, 47) de propriedade do pianista e compositor Eduardo Souto (1882-1942); entre outras. Entre 1929 e 1931 o compositor e pianista Ernesto Nazareth ainda podia ser visto tocando na Casa Vieira Machado (que nessa ocasião mudou o endereço para Rua do Ouvidor, 179). Radamés não perdeu a oportunidade de fazer amizade com um de seus compositores favoritos e também de tocar suas obras para ele ouvir. Radamés conta: Toquei muito pra ele [...] depois, Nazareth ia tocar na Galeria Cruzeiro. Tinha o Hotel Avenida, e na esquina a casa de Piano. [...] Nazareth era pianista mesmo. Não era pianeiro não. Ele odiava que dançassem a música dele [...] achava que sua música não era feita para dançar. Nazareth era muito influenciado por Chopin e escrevia sua música em qualquer tonalidade. Todas. Era um excelente pianista, muito bom mesmo. Não era pianeiro (MIS, 1985).

No final de 1929, como estava com dificuldades financeiras para retornar para Porto Alegre, Radamés aceitou substituir o pianista Mário Martins no Cassino das Fontes em Lambari, cidade do sul de Minas Gerais. O percussionista Luciano Perrone (que tocava na mesma cidade no Cassino Éden ), ao ouvir falar de “um pianista” que estava naquela temporada se apresentando na cidade, foi conferir e desse encontro nasceu uma longa parceria musical e profissional, além de grande amizade. Radamés retornou para Porto Alegre, tendo percebido que poderia viver de música fora de sua cidade natal. Seu desejo de formar uma família com Vera Maria Bieri (Figura 19, Anexo G), aliada à sua versatilidade como músico, o conduziria definitivamente a um tipo de carreira musical diversificada. Antes da vinda definitiva para a então capital federal, Radamés acumularia ainda mais experiências em Porto Alegre. No Teatro São Pedro, em 17 de setembro de 1930, em seu próprio recital, fez sua estreia como compositor erudito apresentando as seguintes obras: Prelúdio nº 2 – Paisagem e Prelúdio nº 3 – Cigarra . Nesse concerto, ele foi homenageado pela colônia italiana devido a suas atuações artísticas (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 25).

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1.5.5 Entre Idas e Vindas – Entre Porto Alegre e Rio de Janeiro

Na década de 1930, em consequência da chegada do cinema sonoro ao Brasil, muitos instrumentistas de Porto Alegre enfrentaram crise de desemprego. Entretanto, a versatilidade de Radamés não o deixou sem trabalho. Como instrumentista podia trabalhar também como violista e, ao chegar uma companhia russa de ópera no Teatro Lírico Rio-Grandense, Radamés foi contratado como violista da orquestra que seguiu para estreia em São Paulo (WERNER; BARBEITAS, 2012). Radamés, de músico de orquestra, fez aos poucos conhecido o seu pianismo e acabou como assistente do maestro. É do próprio Radamés o relato, a seguir: Em São Paulo, me convidaram para tocar o concerto de Tchaikovsky numa rádio. Então eu chegava cedo na orquestra para estudar piano. Um dia eu estava estudando, quando chegou o maestro — que era diretor do Conservatório de Munique — e me perguntou se eu não era o violista da orquestra. Eu disse que sim e ele me perguntou se eu não queria ajuda-lo a ensaiar os artistas da ópera. Ele ficou impressionado com a minha leitura à primeira vista (GNATTALI, Radamés apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 25).

Apesar de ter sido convidado para continuar naquela companhia russa, Radamés retornou a Porto Alegre após o encerramento da temporada. Em Porto Alegre, a produção de Radamés como compositor se intensificou. Em 29 de março de 1931, Angelo Guido escreveu na coluna Artes e Artistas do jornal Diário de Notícias de Porto Alegre uma matéria intitulada Radamés Compositor , na qual faz considerações minuciosas e elogiosas sobre a obra Rapsódia Brasileira , que ainda não tinha sido estreada publicamente em recital. Em 09 de julho, Radamés apresentou-se em recital no Teatro São Pedro tocando Scarlatti, Schubert, Liszt e as obras de sua autoria Ponteio Roda e Samba e a já comentada Rapsódia Brasileira , que nesse mesmo ano foi editada pela Ricordi . O Correio do Povo , jornal de Porto Alegre, publicou crítica de Léo Lanner, da qual se destacaram as seguintes palavras escritas sobre a Rapsódia Brasileira : Causou-me uma agradável surpresa a tendência acentuada que tem o Sr. Radamés Gnattali para vazar a ideia musical em uma forma. [...] A unidade da obra é para mim a sua qualidade principal. É através desse senso de unidade, tão difícil de aprender-se, que vejo no Sr. Radamés Gnattali uma promessa das mais brilhantes [...] Intuição formal e harmônica. [...] A Rapsódia brasileira [...] é o primeiro voo firme de quem pode aspirar a uma envergadura de águia (LANNER, 1931 apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 28).

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Entretanto, em Porto Alegre não havia possibilidade de Radamés se tornar concertista. O governo lhe recusara bolsa de estudos para que continuasse investindo no estudo do repertório pianístico. Ele se sustentava com as apresentações esporádicas com o Quarteto Henrique Oswald e os alunos de piano. Apesar dessa situação, o meio musical porto- alegrense e a imprensa local reconheciam e apoiavam o talento de Radamés. A Sala Beethoven (Figura 20, Anexo G), casa de música da cidade, por exemplo, apresentou a Noite Brasileira de Radamés Gnattali e Luiz Cosme , com obras composta por eles. Como demonstrava o título dado na programação da Sala Beethoven, é notório que Radamés já delineava, em suas composições, a tendência nacionalista. Em suas primeiras obras, Radamés escreveu peças virtuosísticas para piano, porém utilizando temas folclóricos brasileiros. Na peça Rapsódia Brasileira , por exemplo, Radamés aproveitou os temas das músicas folclóricas Meu Boi Morreu , Viuvinha Bota Luto e Anda Roda Desanda Roda .

1.5.6 Em 1931, Radamés mudou-se para o Rio de Janeiro definitivamente

Radamés continuava estudando, mas a vida como pianista-intérprete concertista clássico ficava cada vez mais distante devido à falta de oportunidades e condições financeiras para sua dedicação exclusiva ao piano. Após a Revolução de 1930, o Brasil passava por algumas mudanças no que se referia à educação, entre outras, e estas mudanças mantiveram acesas as esperanças de Radamés em viver profissionalmente como pianista-concertista. Após a reforma de ensino superior do governo Vargas ocorrida em 1931, o Instituto Nacional de Música passou a ser incorporado à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Guilherme Fontainha assumiu a direção em meio a uma crise político-administrativa do Instituto e escreveu para Radamés informando que haveria concurso para professor. Fontainha incentivou o antigo aluno a imediatamente se transferir para o Rio de Janeiro com o objetivo de se preparar devidamente para as provas. Radamés saiu de Porto Alegre em direção ao Rio, desta vez disposto a de qualquer forma morar definitivamente na então capital federal. Levou consigo uma carta de apresentação escrita pelo político gaúcho Raul Pilla (amigo de seu pai) para conseguir uma audiência com Getúlio Vargas. Seu objetivo era apenas saber se não se trataria de um boato a abertura do concurso. Radamés apresentou-se no Palácio do Catete e, ao ser recebido por Getúlio Vargas, limitou-se a perguntar se haveria de fato o concurso. O presidente, que só o recebeu por causa da carta de apresentação, respondeu afirmativamente.

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Radamés começou a estudar seriamente as matérias teóricas pertinentes às provas. Orientado por Fontainha, passou a ter aulas de Harmonia com o professor Agnelo França. Desta vez, no ano de 1931, Radamés morou em uma pensão no bairro da Glória. Passou a estudar com determinação harmonia e contraponto, objetivando ser aprovado no concurso. Enquanto estudava, Radamés também precisava trabalhar e, pouco a pouco, foi tomando contato com a vida profissional da capital. Frequentava a casa de música de Fontainha, que ficava na Rua do Ouvidor, pois era lá que estudava piano. Radamés foi aos poucos se ambientando, conhecendo a vida musical e aprendendo. Os “pianeiros” cariocas tiveram uma grande importância nesse aprendizado de Radamés. Eles, que sempre estavam nas casas de música à procura de trabalho para tocar ou para editar suas composições populares, tinham um toque e swing característicos da música popular urbana carioca, que Radamés logo decifraria. Radamés, desde sua segunda vinda ao Rio de Janeiro, havia feito amizade com o percussionista Luciano Perrone (1908-2001) que o indicava para trabalhos como pianista de música popular. Enquanto se preparava para o concurso, Radamés atuava profissionalmente apenas na área da música popular. Tocou piano no conjunto do Café Trianon , liderado pelo violinista Samuel Spilman; na Orquestra da Rádio Clube do Brasil ; no Quarteto do Hotel Central ; entre outros trabalhos. Em razão dessas pequenas participações, Radamés foi conhecendo alguns outros músicos que seriam seus parceiros profissionais também na música de concerto, tais como Oscar Borgheth, Romeu Ghipsman e Iberê Gomes Grosso, de quem se tornaria amigo dileto e com quem trabalharia durante toda sua carreira.

1.6 Mudança do objetivo profissional de ser pianista concertista

Tudo caminhava bastante bem para Radamés, exceto pelo fato de que o concurso para professor de piano, ao qual ele aguardara se preparando seriamente, não aconteceu. Para Radamés, ficaria eternamente a dúvida se sua carreira de concertista clássico, conforme seus planos juvenis, teria lhe proporcionado mais realização pessoal: “comecei a trabalhar em orquestras e tocar música popular pra poder viver. Se tivesse entrado para a escola de Música talvez a minha vida tivesse sido outra. Getúlio mudou minha vida” (DIDIER, 1995, p. 66). 55

Radamés descreve sua vinda definitiva para o Rio de Janeiro, em 1931, de forma a transparecer certa mágoa pela desilusão provocada com a não realização do concurso público, que significou para ele a impossibilidade de viver da carreira de solista-virtuose do piano erudito. A seguir, a transcrição das palavras de Radamés: Eu vim definitivamente para o Rio em 1931. Fontainha praticamente nunca me ajudou em nada, mas dessa vez ele me escreveu dizendo que tinha uma vaga na Escola de Música [UFRJ] para a cadeira de Professor Catedrático e perguntou se eu não queria concorrer. Eu larguei tudo em Porto Alegre e vim para cá. Fiquei aqui estudando quatro ou cinco meses à espera do concurso. Mas fui falar com Getúlio [Presidente Getúlio Vargas]. Eu trouxe uma carta do Raul Pilla, que era um político muito bom. Inimigo do Getúlio, mas que Getúlio respeitava. Entreguei a carta na portaria. Alguns dias depois chegou um telegrama para eu ir lá que ele ia me receber. E ele [Presidente Getúlio Vargas] disse: — O que o senhor quer? [Radamés] — Só quero saber se o concurso vai ser realizado no fim do ano, mais nada. [Presidente Getúlio Vargas] — Tem minha palavra! Haverá sim o concurso. [Radamés] Eu saí de lá animado, mas depois não houve concurso nenhum (MIS, 1985).

Este episódio mudou o rumo profissional de Radamés, que definitivamente desistiu da carreira de concertista solista. Entretanto, sua carreira como compositor erudito começaria a despontar. Em outubro de 1931, Radamés foi convidado para participar da programação do 4º Concerto da Série Oficial do Instituto Nacional de Música do ano de 1931, na qual também participaram os jovens compositores Camargo Guarnieri (1907-1993), Luiz Cosme (1908- 1965) e, ainda, Luciano Gallet, Heitor Villa-Lobos e Lorenzo Fernandez representando os compositores veteranos. Radamés foi saudado como uma das revelações na área da composição. Apresentou a Suíte para Piano , a Rapsódia Brasileira e a Suíte para Quarteto de Arcos e Piano que foi interpretada por ele próprio e pelo quarteto de cordas formado pelos músicos Oscar Borgerth e Loyolla Rego — violinos, Affonso Henrique — viola, e Iberê Gomes Grosso — violoncelo. A seguir, o texto publicado no Correio Musical com as palavras de Otávio Bevilacqua: [...] o pianista Radamés Gnattali revelou, como compositor, qualidades magníficas na Suíte para Piano , Rapsódia Brasileira e na pequena Suíte para Quarteto de Cordas e Piano [...] Para essa ótima impressão, [...] não concorreu pouco a excelência de execução dada pelos artistas de arco, muito conhecidos todos, e, ao piano, pelo autor, pianista de raras qualidades. Enfim, este concerto deu-nos uma das ótimas revelações de 1931 (BEVILACQUA, 1931 apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 30).

A frustração de não poder tornar-se concertista aos poucos foi sendo ocupada por trabalhos musicais diversos.

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1.7 Samba no piano — convívio com pianeiros cariocas — fama como arranjador

Radamés estava disposto a se estabelecer no Rio de Janeiro. Do erudito ao popular, ele foi, aos poucos, aliando ao seu virtuosismo o swing característico dos pianeiros cariocas que tocavam o samba no piano. Os pianeiros que frequentavam as casas de música do centro da cidade do Rio de Janeiro — principalmente a Casa Vieira Machado , como mencionado anteriormente, foram muito importantes para sua vida profissional como arranjador. Radamés, que já conhecia e nutria verdadeira admiração pela obra de Ernesto Nazareth desde os tempos do Cine Odeon (Figura 21, Anexo G), dizia que ele estava longe de ser um pianeiro, embora suas composições como Batuque , Brejeiro , Carioca , Fon-fon , Apanhei-te Cavaquinho , Odeon entre outras, fossem consideradas por muitos como música popular para dançar. A música de Nazareth se diferenciava da música dos pianeiros, principalmente na maneira de tocar. Radamés conheceu de perto as duas e aprendeu muito com isso e, sobretudo, reconheceu a diferença entre o que era de fato tocar como pianista e como pianeiro. A seguir apresenta-se um trecho da entrevista em que ele conta que tocou para Nazareth na Galeria Cruzeiro 29 : Eu conheci o Nazareth, ele tocava no Cine Odeon, na sala de espera do cinema, atrás de uma parede de vidro. O cinema ficava na sete de setembro com Av. Rio Branco. Nazareth tocava num piano de armário, em cima de um estrado. Dizem que Rui Barbosa ia muito lá. [...] Eu ia andando pela rua, ouvi um som de longe... Aí vi que era ele quem estava tocando. Parei pra escutar e sempre que podia fazia isso. [...] Depois Nazareth saiu do Cine Odeon e foi tocar na Galeria Cruzeiro, uma espécie de loja, que entre outras coisas, vendia pianos. Foi lá é que eu conheci pessoalmente o Nazareth. Ele não era pianeiro não. Era pianista mesmo. Eu estudava algumas peças dele e ia tocar para ele ouvir. Eu também aprendia vendo-o tocar. Eu acredito que peguei bem o jeito dele tocar (MIS, 1985).

A maneira de tocar dos pianeiros era uma novidade para Radamés. Ele reconhecia que inicialmente era incapaz de reproduzir a forma de tocar dos pianeiros, principalmente quando tocavam o samba . Então, conta que com humildade e disciplina, passava horas ouvindo com atenção os pianeiros famosos e devagarinho ia aprendendo como tocavam o samba carioca. Nonô, Costinha, Centopéia, Bequinho e Menezes, por exemplo, na ausência de percussão, bateria e um contrabaixo, tocavam de maneira a forjar a presença desses instrumentos e preenchendo os espaços. A mão esquerda fazia a voz do contrabaixo e o pedal era usado para dar o ritmo. “Radamés abre seu horizonte de músico e sente que vai se aproximando de uma

29 A Galeria Cruzeiro foi inaugurada em 1911, mais tarde se consolidou como centro de atividades comerciais e culturais da cidade do Rio de Janeiro. Construído pela Light em 1911, o Hotel Avenida foi um dos edifícios mais populares da Avenida Rio. No térreo funcionava uma estação circular dos bondes. A Galeria Cr uzeiro oferecia bares, restaurantes, cafés e leiterias. Disponível em:. Acesso em: 02 mai. 2012. 57

nova vertente em sua carreira: a de músico popular.” (DIDIER, 1996, p. 16). Radamés também ia aprendendo a ser crítico sobre a maneira correta de tocar samba ao piano, conforme podemos perceber pelas suas palavras no depoimento ao MIS: O aproveitamento do pedal para dar o ritmo me fascinava. Eu ficava lá só ouvindo... e aprendendo. Quando me pediam para tocar eu disfarçava, pois o que eu iria tocar ali? Chopin? Tinha vergonha, pois o negócio ali era o samba... Comecei então a bater muito papo com os pianeiros. Naquele tempo samba era só no Rio de Janeiro. Em São Paulo não se sabia tocar samba... (risos)... e até bem pouco tempo também ... (risos). (MIS, 1985).

Considera-se importante o seguinte relato de Radamés para se compreender como ele acabou aprendendo a tocar ou acompanhar o samba ao piano com o swing característico: Sabendo que aqueles pianeiros todos iam pra lá e ficavam tocando uns para os outros, eu sentava ali e ficava só escutando. Absolutamente impressionado. Afinal eu nunca tinha visto tocar piano daquele jeito. [...] Além do que, eles tocavam com a mão esquerda bem trabalhada porque não tinham o contrabaixo para ajudar. [...] Os pianeiros davam aquele molho no ritmo, mesmo sem o auxílio do contrabaixo ou da bateria. Eu ficava ali do lado observando e aprendendo... Só ouvindo... Interiorizando que era assim que se tocava no piano a MPB da época. Naquele tempo em São Paulo não sabiam tocar. Assim como nós do Rio Grande do Sul. Sabia-se tocar tango, mas samba era só no Rio (MIS, 1985).

Radamés ainda aponta quem eram os pianeiros que encontrava no centro do Rio e cita os nomes dos frequentadores da Casa Vieira Machado. A casa Vieira Machado tinha várias funções. Vendia pianos e, além disso, tinha salas para os professores alugarem e darem aulas. Também funcionava como editora de partituras populares (Casa Vieira Machado & CIA.) e ponto de encontro de pianeiros que ali se juntavam procurando trabalhos. Ficavam ali diariamente, praticamente todos da cidade: Nonô, Costinha, Bequinho, Osvaldo Cardoso de Menezes (pai da Carolina de Menezes), entre outros. Naquele tempo, os bailes de pequena sociedade eram feitos com piano. Só com piano. As pessoas interessadas podiam telefonar para lá e contratar quem elas queriam. Simples. (MIS 1985).

A maioria dos pianeiros não lia bem partituras e também não costumava escrever suas próprias composições ou arranjos das músicas que tocavam, salvo raras exceções. A insatisfação com as partituras era unânime entre os compositores e pianeiros, sobretudo de samba. Conhecendo essa insatisfação, Radamés, depois de aprender as peculiaridades das execuções, iria resolver essa carência, passando a ser um dos arranjadores mais procurados pelos pianeiros. Com o depoimento de Radamés, podemos entender como começou a sua fama de arranjador. Eu ficava batendo papo com os pianeiros e percebia que eles se queixavam muito das edições que os arranjadores faziam de suas composições. A melodia em geral era escrita corretamente, mas o problema eram os baixos e principalmente o ritmo. Os arranjadores escreviam totalmente diferente do que os pianeiros tocavam. Eu lembro que um dia o Costinha me pediu para tocar uma música dele que tinha sido escrita. Eu toquei o que estava na parte. Então, bem decepcionado, ele falou: “Pô... Mas não é nada disso que eu escrevi...” Aí eu propus: Costinha, da próxima vez que você fizer outra música você me fala que eu escrevo. [...] Certo dia, ele chegou com uma música e me pediu pra escrever. Eu fui escrevendo tudo que ele estava tocando.

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Quando acabei de escrever, toquei pra ele o que estava na parte e ele ficou muito contente e disse: “Finalmente! É isso aí... Tá certo!”... E daquele dia em diante, começaram a fazer o meu cartaz como arranjador (MIS, 1985).

A casa de música Carlos Wehrs, situada no nº. 47 da Rua da Carioca, também era ponto de encontro de pianeiros (Figura 22, Anexo G). Tocava lá o pianista José Francisco de Freitas (1898-1956), conhecido também como Freitinhas, autor de cerca de 300 músicas entre valsas, marchas, ragtimes, toadas, canções, maxixes e sambas. Era comum encontrar também o compositor Ernesto Nazareth tocando ali. Radamés sempre que podia ia ouvir Nazareth e, com o passar do tempo, tornou-se cada vez mais exigente em relação à interpretação da música desse compositor, conforme suas palavras apontam no depoimento cedido ao MIS (1985): “Eu acho que não tocam hoje o Nazareth como se deve, porque pensam que Nazareth era um pianeiro, quando era um pianista. Não tocava nada staccato . Tocava, mesmo, como se estivesse tocando Chopin, usava o pedal, era um pianista muito bom”. Radamés foi, aos poucos, passando a ser conhecido como o arranjador que escrevia o que realmente os pianeiros tocavam e essa fama foi abrindo mercado de trabalho para ele. Além disso, Radamés aprendeu a tocar o samba no piano e a sua mão esquerda era capaz de pontuar qualquer melodia com o procedimento usado pelos pianeiros, só que com a sonoridade muito mais apurada devido à sua formação pianística. Por causa de sua reputação ao lado dos músicos populares, Radamés começou a colaborar como pianista para as rádios Transmissora e Mayrink Veiga .

1.7.1 Tradição dos Pianeiros no Rio de Janeiro

É interessante constatar que o pianeiro é uma categoria de instrumentista que era tratada de forma depreciativa e, só recentemente, começou a ser considerada como objeto de estudos acadêmicos. Sabe-se que a introdução do instrumento piano no Brasil deu-se na metade do século XIX pelas mãos da nobreza. Apenas a elite do Primeiro e Segundo Reinado tinha acesso à aquisição de um piano. Até 1950, apenas poucas famílias possuíam um piano em casa, fato que lhes conferia conotação de nobreza, poder, cultura e “berço”. Devido à ascensão social das camadas médias dos grandes centros urbanos (notadamente Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais), o instrumento passou a ser adquirido mais democraticamente. 59

Do momento em que a riqueza da cultura do café no Vale do Paraíba proporcionou a multiplicação dos salões da Corte do Rio de Janeiro, houve também um incentivo à importação do caro instrumento, fazendo surgir o comércio de pianos usados; a expansão de suas áreas de uso (pianoforte) ; e o aparecimento de um novo artista do povo, o tocador de piano — possuidor de pouca teoria e muito balanço, que para distinguir dos pianistas de escola se convencionou chamar de pianeiro . O livro de José Ramos Tinhorão (2005), Os Sons que vem das Ruas , no capítulo dedicado aos pianeiros, conta um pouco desses músicos e os agrupa em quatro ou cinco gerações. O autor conta que após a facilitação da compra do instrumento pelos profissionais liberais e comerciantes, o Rio de Janeiro passou a ser apelidado de “a cidade dos pianos” 30 (TINHORÃO, 2005, p. 196). Para a música popular significou a incorporação do instrumento piano aos conjuntos musicais já existentes e formados, geralmente, por flauta, violão e cavaquinho. Consequentemente, pode-se dizer que se inicia a história do pianeiro no Brasil. Os dois mais conhecidos pianeiros que ficaram na história por terem sido compositores importantes da música popular foram Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e Ernesto Nazareth (1863-1934). Chiquinha, nascida na metade do século XIX, cujo pai era Marechal prestigiado no Império, estudou piano quando o instrumento ainda era privilégio de pouquíssimas famílias. Ernesto Nazareth, dezesseis anos mais novo do que Chiquinha, era filho de um funcionário público e de mãe pianista. Sabe-se que Nazareth estudou piano com Charles Lucien Lambert, afamado professor de piano de Nova Orleans radicado no Rio de Janeiro e amigo do compositor Louis Moreau Gottschalk. Tanto Nazareth quanto Chiquinha tiveram formação musical destinada à elite, ou seja, o aprendizado do piano era clássico à base de repertório romântico, seguindo o estilo dos mestres europeus. Esses dois pianeiros de renome fazem parte da primeira geração que, embora tenha escrito música dançante, entre valsas, polcas, tangos brasileiros, maxixes e choros, sua técnica e bom acabamento denunciam as aspirações eruditas. A partir dos últimos anos do século XIX, surgiu a segunda geração de pianeiros, todos eles de formação autodidata, desligados da boa técnica pianística e autores ligados à música dos choros. Segundo Tinhorão, o musicólogo Brasílio Itiberê se referia a eles como responsáveis pela “zoeira de arpejos, trinados e trêmulos em estertor” (ITIBERÊ apud

30 O apelido “cidade dos pianos” foi dado ao Rio de Janeiro por Araújo Porto-Alegre, barão de Santo Ângelo (1806-1879), político e jornalista (fundador de várias Revistas, entre elas a Revista Guanabara , divulgadora do gênero literário romântico e Lanterna Mágica , publicação de humor político). Foi também um escritor do romantismo, pintor, caricaturista, arquiteto, crítico e historiador de arte, professor e diplomata brasileiro.

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TINHORÃO, 2005, p. 197). Na verdade, ao contrário da primeira geração de pianeiros, eles tinham muito pouco conhecimento de teoria musical e seu compromisso era apenas com o público dançar e que desejava dar um baile em suas residências, só demandando a eles o “ritmo dengoso, sapeca, repinicado, conforme exigia a modalidade dançante” (ITIBERÊ apud TINHORÃO, 2005, p. 198). Dessa geração de pianeiros incluem-se, entre outros, os nomes de Aurélio Cavalcanti, J. Cristo, Alexandre G. de Almeida (o Xandico), Azevedo Lemos, Chirol, Chico Porto, Azeredo Pinto, Maneco Leal, Júlio Barbosa, Escobar, Porfírio da Alfândega, Benedito Monte, e as mulheres dona Naninha e dona Vidinha, entre outras. A terceira geração de pianeiros, segundo Tinhorão (2005, p. 201), despontou nos primeiros anos da Grande Guerra (1914-1918) influenciada pela música norte-americana, pelos ritmos one-step, ragtime e foxtrote. Trabalhavam empregados nas casas de música, nos clubes recreativos e nas orquestras de salas de espera de cinemas, tendo sido responsáveis pelo processo final da profissionalização de sua arte. Essa terceira geração de pianeiros estendeu-se até o aparecimento das orquestras de rádio, das gravadoras e dos clubes de dança. Incluem-se os nomes de Mário Pena Forte, Eduardo Souto (que além de pianeiro era proprietário da Casa Carlos Gomes ), José Barbosa da Silva (o Sinhô, pioneiro do samba), Henrique Vogeler, José Francisco de Freitas (o Freitinhas), Ary Barroso, Romualdo Peixoto (o Nonô), Oswaldo Chaves Ribeiro (o Gadé), entre outros. Em Pernambuco citam-se os nomes de Tia Amélia, Lourenço da Fonseca Barbosa (o Capiba) e Nelson Ferreira. A quarta geração de pianeiros apareceu em cena no final da década de 1930 e início da década de 1940, no auge da Rádio . Alguns destes pianeiros 31 eram também maestros, arranjadores ou componentes de orquestras de estúdio e de dança. Citam-se os nomes de Lírio Panicalli, Osvaldo Gogliano (o Vadico), Leo Perachi, Gabriel Migliori e Lindolfo Gaya, todos de origem italiana naturais do estado de São Paulo. Atraídos para a cidade do Rio de Janeiro, então capital brasileira, eles iriam se juntar aos pianeiros cariocas Custódio Mesquita, Mário Cabral, Carolina Cardoso de Menezes, Ribamar, Bené Nunes e Dick Farney, complementando, segundo Tinhorão, a quarta geração (TINHORÃO, 2005, 195-205). Depois de 1960, a tradição dos pianeiros é interrompida devido à influência do jazz , dos gêneros musicais modernos e da Bossa Nova . O termo pianeiro (algo pejorativo) foi substituído por “pianista de música popular” ou “pianista popular”.

31 Pode-se dizer que a maioria desses músicos, a partir da década de 1950, já não seria mais chamada de pianeiro , mas sim de pianista popular . Na prática o preconceito era o mesmo, afinal até recentemente, o pianista com intenções de carreira tinha mais responsabilidade de não se misturar com aqueles da música popular. 61

Radamés foi um dos primeiros pianistas de formação erudita e virtuose que percebeu que o pianismo de Nazareth estava longe de ser o de um pianeiro . Não só isso, ele interagiu com Nazareth e com os verdadeiros pianeiros de sua época. Radamés intencionalmente observou e estudou (auralmente) a bossa e o swing desses músicos cariocas. Acabou sendo beneficiado duplamente, pelo aprendizado do samba ao piano e pelas oportunidades de trabalho surgidas da sua boa fama de arranjador, divulgada primeiramente entre os pianeiros .

1.8 O casamento e a nova vida — “operário da música”: pseudônimo Vero

Finalmente, melhorando a situação financeira devido às oportunidades crescentes de trabalho, em 1932 Radamés se casou com Vera Maria Bieri com quem teria dois filhos e viveria por 33 anos, até o ano do falecimento dela em 1965. Radamés já havia aprendido que a música de concerto não lhe daria o sustento e o conforto que buscava para sua nova família. Então, em 1932, já casado com Vera Bieri e com a vida mais tranquila, Radamés foi se dedicando cada vez mais à música popular e, paralelamente, à composição erudita. Entretanto, no ano de seu casamento, ainda aceitou solar o Concerto nº 1 para Piano e Orquestra de Tchaikovsky no Theatro Municipal sob a regência do maestro Francisco Braga. Foi seu último concerto como pianista clássico. A partir dali, na música de concerto se tornaria não mais o pianista concertista, mas sim o compositor Radamés Gnattali. Nesse mesmo ano de 1932, viu sua peça ser tocada por outro músico clássico — a pianista Dora Bevilacqua — que interpretou em recital sua Rapsódia Brasileira , obtendo crítica favorável. A apresentação da peça mereceu referência a Radamés do musicólogo Luiz Heitor (1905-1992) pela inclusão da peça no programa (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 31). Como compositor, também em 1932, atuou no teatro de revista escrevendo a música de duas operetas populares: a opereta Marquesa de Santos , com libreto de Luís Peixoto e Batista Júnior — na qual conduziu a orquestra na estreia no mesmo ano; e a opereta Os Sertões, em parceria com o compositor e poeta Jaime Ovale (1894-1955). Radamés, convencido a deixar de lado a carreira de concertista, dedicou-se (na vida social) a fazer amizades duradouras com aqueles que de forma direta ou indireta viviam das

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artes, da literatura e da música de seu tempo, tais como Portinari 32 , Murilo Mendes 33 , Manoel Bandeira 34 e Jorge Lima 35 , entre outros. O casal Vera e Radamés fez amizade com o pintor Candido Portinari (1903-1962). Eram vizinhos no bairro das Laranjeiras e tinham em comum, além do fato de serem filhos de imigrantes italianos, a afinidade de sentirem-se operários da arte, o gosto pela música e a época de jovens com dificuldades financeiras e ainda o quase anonimato. Na entrevista ao MIS, ele conta: Aquele era o tempo do aperto. Todo mundo sem dinheiro, eu, os músicos, conheci na casa do Portinari o Murilo Mendes [...] Manoel Bandeira, Jorge de Lima, todos modernistas. A gente se reunia na casa do Portinari em Laranjeiras. [...] O Portinari ficava pintando o tempo todo e a gente batendo papo. Nós morávamos em Laranjeiras e a minha mulher Vera dava aulas de piano para a irmã de Portinari. Naquele tempo eu não tinha emprego fixo e Portinari também não. Ele não conseguia vender nenhum quadro, estávamos todos num miserê danado [risos]. Nós ficamos muito amigos mesmo (MIS, 1985).

Radamés não ligava para política, tampouco ligava para politicagens do meio artístico. Ele se interessava apenas em boa música. Ouvia as inovações musicais que estavam constantemente acontecendo e sempre procurava aprender algo que pudesse se encaixar nos seus arranjos e composições, não fazendo distinção entre música de concerto e música de consumo, afinal sempre primava pela qualidade antes de tudo. As experiências narradas pelo próprio Radamés corroboram para mostrar que ele era um homem de gosto musical contemporâneo ao seu tempo: “Eu escutava muita música de jazz . Arranjos de Benny Goodman e outros discos de jazz . Ficava aprendendo como usar os saxofones. De tanto ouvir, acabava aprendendo” (MIS, 1985). Em 1932, Radamés tocava nas orquestras de Romeu Silva, de Simon Bountman, assim como nas rádios Transmissora e Mayrink Veiga , em operetas e em gravações de discos. Aos poucos ele sedimentava e incorporava os novos swings ao seu virtuosismo.

32 Cândido Portinari (Brodowsky, SP, 29/01/1903 – RJ, 06/02/1962) um dos maiores pintores brasileiros, filho de imigrantes italianos, membro do partido comunista, se candidatou ao senado em 1947. 33 Murilo Mendes (Juiz de Fora, MG, 13/05/1901 – Lisboa, Portugal, 13/08/1975) exponente poeta do Modernismo no Brasil. 34 Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (Recife, 19/04/l886 — Rio de Janeiro, 13/10/1968), poeta, crítico literário e de arte, professor de literatura e tradutor brasileiro, fez parte da geração de 1922 da literatura moderna brasileira, sendo seu poema Os Sapos o abre-alas da Semana de Arte Moderna de 1922. 35 Jorge Mateus de Lima (União dos Palmares, 23/04/l893 — Rio de Janeiro, 15/11/1953) político, médico, poeta, romancista, biógrafo, ensaísta, tradutor e pintor brasileiro. 63

Sobre a sua experiência como pianista na Orquestra de Romeu Silva 36 (Figura 24, Anexo G), Radamés contava “Eu trabalhei muito com o Romeu Silva e isso também me ajudou musicalmente” (MIS, 1985). Romeu Silva foi saxofonista, compositor e famoso líder de bandas, que criou, por exemplo, a Jazz Band Sul-Americana, uma orquestra que tocava nos principais clubes da cidade como o Country Club, Fluminense, América, Botafogo, Jóquei Clube, Tijuca e Guanabara. Radamés aprendeu muito com essa experiência. As primeiras experiências de Radamés como profissional no Rio de janeiro corroboraram para aquisição de seu swing : “Eu passei a tocar piano em tudo que era canto: orquestra de salão, orquestra de tango argentino, orquestra de música americana, e ainda acompanhava os cantores de orelhada” (MIS, 1985). Em seu depoimento, ele fala do preconceito que existia na época diante da versatilidade de um músico erudito tocar e compor para música popular e, por essa razão, da necessidade de se ter um pseudônimo. Radamés desejava continuar compondo para música de concerto, então passou a utilizar o pseudônimo Vero, masculino de Vera — nome de sua mulher, para evitar o desagravo dos puristas que não aceitavam, naquela época, um músico erudito trabalhar com música popular e conta: “O Vero fui eu mesmo. Minha primeira mulher (que faleceu) chamava-se Vera. Quando comecei a fazer arranjos para a RCA Victor , não ficava bem o compositor de música sinfônica — erudita — fazer música popular. Aí arranjei esse nome. Ficou Vero ” (MIS 1985).

1.9 O Trabalho nas Rádios

O trabalho de mais de trinta anos nas rádios renderam a Radamés notoriedade inimaginável para ele próprio. Esse trabalho também lhe permitiu o aprofundamento na técnica de composição e arranjo; na versatilidade do seu swing e na inspiração para a composição de diversas obras de concerto, além das peças populares. Radamés, que desde a primeira vez que esteve no Rio de Janeiro, em 1924, conhecera de passagem a Rádio Clube do Brasil (uma das primeiras rádios do país, cujo estúdio ficava no Largo do Machado) não só viveria a ascensão deste meio de comunicação de massa, como

36 Romeu Silva (1893–1958) levou sua orquestra para a Europa, tocando em diversas cidades de Portugal e Espanha. Na França se apresentaram na Maison Lafite do Barão de Rothschild e no Château Ramboillet (a residência de Verão do presidente). Silva integrou o grupo The Baker Boys , que acompanhava as excursões da cantora Josephine Baker em toda Europa.

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trabalharia em todas as rádios do Rio de Janeiro, até chegar ao auge — a “época de ouro” — da Rádio Nacional . Radamés foi responsável por muitos programas de grande audiência e talvez não imaginasse que seria um dia considerado um dos maiores arranjadores do Brasil, cuja música conquistava a audiência naquela que se tornaria a mais conhecida emissora radiofônica da América do sul — a Rádio Nacional . A Rádio Clube do Brasil , em 1930, foi a primeira a contratar os serviços de pianista de Radamés, que começou a tocar profissionalmente nessa rádio como músico da orquestra. Em seguida, foi trabalhar para a Rádio Mayrink Veiga (Figura 25, Anexo G), que, segundo ele, pagava muito mal. Depois, trabalhou para a Rádio Cajuti, que funcionou apenas durante alguns meses. A Rádio Transmissora, que pertencia à Gravadora Victor Talking Machine Co. of , foi a emissora radiofônica que primeiramente deu notoriedade a Radamés, pois divulgava os arranjos e músicas de sucesso da gravadora a qual pertencia. A Rádio Nacional , criada em 1936 pelo governo de Getúlio Vargas, desde o início foi a emissora de maior qualidade e que alcançou prestígio internacional. Radamés, devido à sua reputação pelo trabalho bem sucedido nas outras rádios, foi um dos primeiros músicos a ser contratado. Permaneceu na Rádio Nacional aproximadamente trinta anos, trabalhando como pianista, camerista, maestro, compositor e arranjador. Radamés conta na entrevista ao Museu da Imagem e do Som alguns detalhes do trabalho na Rádio Mayrink Veiga que lhe foram positivos para sua reputação. Minha primeira participação na rádio foi na Mayrink Veiga [...] Toquei lá muito tempo. Na rádio Mayrink Veiga , eu tocava tudo e de tudo. Eu tocava piano de partitura, de orelha, concertos clássicos, foxtrotes, até violino. Trabalhava muito. Na Mayrink Veiga eu tocava popular e erudito. Ganhava mal. Eu tocava piano em todas as orquestras da rádio e ainda acompanhava os cantores que iam lá. O violonista recém-contratado ganhava mais do que eu. Aí eu fui embora. Quando saí, tiveram que contratar quatro pianistas. O César Ladeira mandou a orquestra toda me chamar lá em casa e perguntar quanto eu queria para voltar. Eu não queria nada, não. Você fica com a tua rádio, que eu não quero mais (MIS, 1985).

Entre 1927 e 1939, o rádio foi tratado e considerado como sendo um complemento da imprensa escrita. A partir de 1939, com o início da Segunda Guerra, ele se tornou veículo fundamental para difundir notícias da guerra e os fatos do dia a dia. Os ouvintes eram tanto a elite quanto a classe não alfabetizada. O radiojornalismo, como o Repórter Esso , foi um marco, pois surgiu alcançando toda a população, ignorando condição social. Radamés entrou para a Rádio Nacional em 1936 (Figura 26, Anexo G). Nessa época, aos trinta anos de idade, ele compôs peças eruditas, como o Concerto para piano e orquestra nº 1 ; a Fantasia Brasileira para Piano e Orquestra ; a Sonata para Violoncelo e piano ; o 65

Quarteto de Cordas nº1 . As obras desse período foram francamente influenciadas pelo folclore nacional, mas também, outras, pela música de Jazz , o que lhe valeu algumas críticas de puristas da música clássica nacional. Existia uma razão para as obras de Radamés soarem um pouco jazzísticas. Era um tipo de música muito em voga na época e Radamés sempre trabalhou, como ele mesmo dizia, como operário da música: “[...] Pra mim é como no tempo de Haydn. Ele não tem cem, duzentas sinfonias? Isso é trabalho [...]. Música pra mim é trabalho, não divertimento. Aliás, pode ser também um divertimento” (DIDIER, 1996, p. 70). Radamés, na entrevista ao MIS, conta como começou a produzir muitos arranjos e composições clássicas para a formação de trio, primeiramente para violino, violoncelo e piano. Esse trio contava com o violino de Romeu Ghipsman, o violoncelo de Iberê Gomes Grosso e o piano de Radamés (Figura 27, Anexo G). A seguir um trecho da entrevista: Na Rádio Nacional, por exemplo, tinha uma orquestra de jazz , tinha uma orquestra de tango e eu era o pianista. No início cordas e flautas, para tocar trechos de operetas, árias de óperas. Já vinha tudo impresso, tudo de fora. [...] eu comecei a fazer pequenos arranjos para trio - eu no piano, o Iberê [Iberê Gomes Grosso] no violoncelo e o Romeu Ghipsman no violino. Eu comecei a fazer pequenas peças, como toada, choro, valsa. Porque naquele tempo, como não tinha um roteiro, e não podia haver um buraco na programação, eu tocava alguma música para tapar esse buraco. Então comecei a escrever os trios. Depois os cantores começaram a gostar e pediram para eu fazer os arranjos (MIS, 1985).

Flor da Noite (1938) foi originariamente composta para violino e piano e dedicada ao amigo Romeo Ghipsman .37 No mesmo ano que a compôs, o próprio autor a transcreveu para violoncelo, dedicando essa nova versão ao parceiro musical Iberê Gomes Grosso, para ser executada pelo Duo. Em 1941, o programa intitulado Instantâneos sonoros do Brasil passou a ser apresentado na Argentina no programa Hora do Brasil . Radamés foi convidado a ordenar, em Buenos Aires, uma orquestra com as mesmas características daquela organizada por ele na Rádio Nacional . Na ocasião foi homenageado com alguns concertos como os da Associação Sinfônica de Rosário (Figura 28, Anexo G) e o do Instituto Argentino de Cultura Integral , de Buenos Aires. Nesse mesmo ano, recebeu o Prêmio Roquete Pinto por seu trabalho na rádio brasileira. Sobre esse episódio, Radamés disse:

37 A grafia do nome de Romeo nesse caso está de acordo com a dedicatória de Gnattali, que escreveu o nome do amigo com “i”. No catálogo digital Radamés Gnattali, o nome é grafado com “y” Ghypsman.

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Não podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo. Achava que ninguém me conhecia fora do Brasil. Estava enganado!, comentaria Radamés, anos mais tarde, sobre a recepção dos artistas locais quando da sua chegada à Argentina, em março de 1941. Radamés fora convidado a participar do programa Hora do Brasil, da Rádio Municipal de Buenos Aires, em cadeia com a Rádio Nacional de Montevidéu. Ele e a família permaneceram quase um semestre na capital portenha. Durante esse tempo, sua música de concerto foi sempre acolhida com entusiasmo pela imprensa e músicos argentinos (GNATTALI, Roberto, 2006).

1.10 Fama de americanizado — caminhos para sedimentação de seu swing

A fama de americanizado começa a pairar sobre suas composições, tanto clássicas quanto populares. Entretanto, isso não desagradava nem ao mercado nem a muitos críticos, que vislumbravam, nessa característica, um ganho para a música nacional, seja popular seja erudita. José Carlo Burle, jornalista e locutor da Rádio Nacional , por exemplo, compara Radamés a Gershwin, chamando-o de Gershwin brasileiro ao declarar: A Radamés devemos o alicerce da renovação e valorização da nossa música popular, tornando-a compatível com a nossa cultura e colocando-a lado a lado com a dos países civilizados do mundo. [...] música popular brasileira, selecionada com arranjos orquestrais modernos e bem feitos. Eis a única maneira de se levantar o nível da cultura musical do nosso povo e de se poder fazer alguma coisa de utilidade real, no assunto, pelo nosso país. [...] Talento insofismável de RG. [...] Se eu quisesse fazer um elogio póstumo a Gershwin, não vacilaria na comparação chamando-o de Gershwin brasileiro (BURLE apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 44).

Ao mesmo tempo, algumas críticas eram bastante ambíguas, como a de Andrade Muricy que em seu livro Caminho da música escreveu sobre influências do jazz na música brasileira, no qual comentou a Fantasia Brasileira de Radamés Gnattali, ressaltando que a obra “destinava-se à vulgarização mundial de elementos da música brasileira” (MURICY apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 41-42) e que se deveria compreender a intenção do compositor, afinal, a instrumentação de jazz facilitava a difusão e aceitação da música. Depois, Muricy aprecia em Radamés “o seu sacrifício à conveniência da propaganda”, como podemos ver no extrato a seguir: Essa Fantasia Brasileira de Radamés Gnattali está cheia de jazz e, entretanto, não podemos condená-la por isso. A obra destina-se à vulgarização mundial de elementos da música brasileira. A sua instrumentação para jazz facilita a difusão, a sua aceitação é mais segura [...] É feita essa observação apenas para que seja melhor compreendida a intenção do autor, e seu sacrifício à conveniência da propaganda. RG sabe como poucos, usar do nosso ambiente instrumental próprio, como vimos recentemente, quando fez gravar em disco um saboroso “choro”, de inteira propriedade de timbres e de dinâmica expressional. Após uma introdução francamente jazz, os temas brasileiros esfuziam com acerto e vivacidade, nos violinos, nas flautas, numa atuação complexa de metais e madeiras, sustidos por uma parte de piano, escrita como poucos, muito poucos, no Brasil podem fazer. RG 67

é um pianista nato de técnica rica e fácil, invulgarmente seguro e brilhante, no jogo das oitavas, o que bem transparece na sua escrita pianística. Todo o episódio de oitava e acordes é magnífico (MURICY apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 44).

Radamés começou a inovar nas orquestrações da Rádio Nacional ao colocar o ritmo na orquestra. A ideia, dada pelo baterista Luciano Perrone, foi posta em prática pela primeira vez na audição da música Ritmo de samba na cidade , de Luciano Perrone. A Orquestração com uma inédita utilização dos ritmos brasileiros divididos entre os instrumentos de cordas e com tratamentos melódicos no ritmo, essa forma musical inédita era anunciada como “o mais lindo presente de Ano Novo da Nacional aos seus ouvintes.” (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 45). Criou a Orquestra Brasileira de Radamés Gnattali em 1941. Esta orquestra tocava sucessos estrangeiros com arranjos em que ele usava os naipes da orquestra de forma percussiva, além de instrumentação brasileira conseguindo efeitos até então inéditos. Apresentavam-se no programa intitulado Um Milhão de Melodias da Rádio Nacional, que era uma espécie de parada musical com composições de várias partes do mundo. Devido ao sucesso do programa, Radamés fazia nove arranjos por semana que eram tocados por sua orquestra. Um Milhão de Melodias ficou treze anos no ar. Radamés, com esse conjunto, revolucionou a orquestração tornando-a mais brasileira, substituindo a base de jazz americano que até então prevalecia (com piano, baixo, bateria e guitarra), pela utilização de dois violões, com Garoto e Bola Sete; cavaquinho, com Zé Menezes; bateria e percussão, com Luciano Perrone; contrabaixo com Vidal; pandeiro com João da Bahiana; caixeta e prato com faca com Heitor dos Prazeres; e o ganzá, com Bide. O programa foi também o primeiro a prestar homenagens a compositores como Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e Zequinha de Abreu. O trabalho de Radamés como arranjador e orquestrador de música popular foi facilitado pelo desenvolvimento dos meios de comunicação e o acesso às diversas formas de entretenimento de massa. Em contrapartida, sua vivência e experiência mediadora das culturas popular e clássica, bem como da cultura nacional e americana, lhe imputou a polêmica fama de americanizado. Vista com satisfação por uns e desagrado por outros, o fato é que Radamés influenciou gerações. Em suas palavras, ele mostra a sua afinidade com o swing brasileiro: Para fazer uma boa orquestra de música brasileira, precisamos ter também uma boa base. Dois violões, cavaquinho, às vezes três cavaquinhos, conforme o arranjo que eu queria. Eu tinha uma bateria espetacular, que era o Luciano (Luciano Perrone); o João da Baiana, no pandeiro. O Heitor dos Prazeres, que tocava caixeta, prato e faca e o Bide [Alcebíades Barcelos], que tocava ganzá. Era uma massa muito boa . [...] Eu trabalhava todo dia na Rádio Nacional. Ensaiava duas horas por noite para fazer o que eu quisesse. [...] Fazia nove arranjos por semana para o programa Um Milhão

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de Melodias . Quem escolhia as músicas era o Paulo Tapajós e o Haroldo Barbosa, que era o discotecário da rádio e estava por dentro de todas as músicas de sucesso, do mundo inteiro (MIS, 1985).

“Enquanto atuou na rádio não deixou de lado as carreiras de pianista, concertista e compositor. Compôs concertos e peças sinfônicas que foram executadas ao redor do mundo” (ALBIN, 2001). Radamés chegou ao final da década de 1930 como principal maestro da Rádio Nacional , dividindo a fama de maior arranjador do Brasil ao lado de Pixinguinha (DIDIER, 1996, p. 21). Pode-se dizer que Radamés, a partir daí, somente vai amadurecer o virtuosismo e o swing já alcançados.

1.11 O Trabalho de Radamés nas Gravadoras

Paralelamente ao seu trabalho nas rádios, Radamés teve intensa atuação no mercado fonográfico. Destacou-se como arranjador da maior parte dos LPs dos cantores famosos das décadas de 1930 e 1940, teve sua própria orquestra e pôde, como poucos compositores clássicos brasileiros, ter a oportunidade de registrar em LPs algumas de suas obras. De 1932 a 1965, Radamés participou de gravações atuando como pianista e arranjador em LPs de cantores famosos. Foi contratado em 1932 pela gravadora Victor Talking Machine Co. of Brazil , primeiramente apenas como pianista das orquestras Típica Victor e Guarda Velha. Logo em seguida também começou a colaborar como arranjador e orquestrador. Com abordagens criativas, Radamés fugiu à tendência muito comum nos arranjos da década de 1920 até meados da década de 1930, inspirados no estilo Ragtime — no qual se usavam as instrumentações somente com sopros, por exemplo as orquestrações e arranjos feitos por Pixinguinha (Figura 29, Anexo G). Entre as principais mudanças ou inovações encontradas nos arranjos de Radamés, destaca-se a introdução de riffs — do inglês refrain , refrão: neste caso, uma célula melódica, harmônica ou rítmica curta de até quatro compassos, que caracteriza a música, como em Carinhoso , Baixa do Sapateiro , New York New York e centenas de outras (DIDIER, 1996, p. 18). Outras inovações foram: a divisão dos solos das músicas entre os diversos naipes da orquestra; a harmonização de cada nota da melodia; a combinação dos instrumentos de maneira surpreendente (inspirado na música de Ravel); a organização dos improvisos — como já se fazia há tempos com as orquestras de jazz nos Estados Unidos e que Radamés costumava ouvir e apreciar. 69

Assim como Radamés, o cantor Orlando Silva também tinha sido contratado pela Victor em 1932. Atento às inovações que começavam a ser feitas nos arranjos das canções, como a utilização das cordas na música Vidro Vazio , gravada pelo cantor Silvio Caldas acompanhado da Orquestra Victor (julho de 1932), Orlando Silva, ao ouvir, logo solicitou à gravadora que os arranjos de seu próximo disco fossem feitos por Radamés Gnattali. Foi o início, então, de uma das parcerias de maior sucesso de vendas da Victor . A dupla Orlando Silva-Radamés, em seu segundo disco, vendeu trinta vezes mais do que a média da época. Enquanto Orlando Silva cantava com a voz que o tornou conhecido como “o cantor das multidões”, Radamés foi para a história como um dos maiores arranjadores da música popular brasileira (DIDIER, 1996, p. 19). Radamés prosseguiu na carreira musical como compositor e intérprete aberto ao swing . Em 1933, ele gravou pela primeira vez suas próprias composições, ainda na discografia de 78 rotações da Victor . As peças escolhidas foram seus choros: Espritado e Urbano . Como se tratava de música popular, Radamés optou em assinar o pseudônimo Vero . No mesmo ano, passou a ser regente e arranjador da Victor , que já contava em seu staff de arranjadores com os talentos de Pixinguinha, Luís Americano, entre outros. Assim que foi contratado como arranjador, formou a Orquestra Típica Victor e, em seguida, gravou suas valsas: Vibrações d'alma e Saudosa . Faziam parte dessa orquestra, além dele ao piano, os músicos: Romeu Ghipsman, Célio Nogueira, Jaime Marchevsky — violinos; Luiz Americano — sax alto e clarineta; Dante Santoro — flauta; Oswaldo Alves — baixo; Bonfiglio de Oliveira — trompete; Luperce Miranda — bandolim; e Luciano Perrone — bateria, vibrafones e sinos. A partir desse disco, Radamés registrou a cada ano duas a três peças populares de sua autoria, sempre utilizando o pseudônimo Vero , ou simplesmente utilizando o nome do conjunto: Orquestra Típica Victor ou Orquestra Brasileira Victor (ALBIN, 2001). Pouco tempo depois de ser contratado pela Victor , Radamés passou a trabalhar também para as gravadoras Odeon e Columbia-Continental . Paralelamente à sua produção na música popular, Radamés, na década de 1930, aumentou sua produção erudita, compondo concertos para piano e orquestra; trios (violino, violoncelo e piano); quartetos; sonatas para diversos instrumentos; fantasias; a peça Flor da Noite; entre outras. Em 1934, Radamés apresentou-se em tournée no sul do Brasil acompanhando ao piano a cantora lírica Bidu Sayão (1902-1999) em concerto realizado no Theatro São Pedro , em Porto Alegre, no qual na programação foi apresentado o Trio nº 1 para violino, violoncelo e piano de Radamés. Os músicos que participaram do último concerto da cantora no Brasil

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foram, além de Radamés, o violinista Carlos Baroni e o violoncelista Nelson Cintra (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 36). No mesmo ano, Radamés registrou na Gravadora Odeon seu choro Serenata do Joá e sua valsa Vilma , com solos de Luiz Americano (1900-1960) — clarinetista, saxofonista e compositor. Em 1935, pela Orquestra Típica Victor , suas seguintes composições foram gravadas: Berenice (valsa), Estilo de vida (polca-choro), Tristonho , Saudoso e Dengoso (choros). Em 1936 gravou, novamente com a Orquestra Típica Victor , três valsas e um choro de sua autoria, respectivamente: Às duas da manhã , Primavera de amor , Zeli e Amoroso . Em 1937, gravou seus choros Recordando e Cabuloso na Gravadora Victor (ALBIN, 2001). Os anos de 1939 e 1940 foram marcantes na vida profissional de Radamés por três acontecimentos importantes relacionados a suas gravações: o primeiro foi a gravação com a Orquestra Odeon de seu choro Alma brasileira e de seu samba batucada Eu hei de ver você chorar ; o segundo foi a viagem aos Estados Unidos, patrocinada pelo governo brasileiro que escolheu a obra Fantasia Brasileira para registro fonográfico e Radamés como um dos representantes da música brasileira na Feira Mundial de Nova York de 1939.38 Entre seus contemporâneos estavam: Francisco Mignone, Lorenzo Fernandez, Villa- Lobos, Camargo Guarnieri. De cada um foi gravada, em disco, uma obra que serviria para ilustrar os filmes sobre o Brasil. Mário de Andrade nessa ocasião já chamava atenção sobre a falta de registros da música de concerto no país e saudava a iniciativa de documentarem-se as obras escolhidas com registos fonográficos. Bastante crítico e defensor da “brasilidade”, Mário de Andrade escreveu, sobre a obra Fantasia Brasileira apresentada por Radamés, as seguintes palavras: “É certo que jazzifíca um pouco demais para o meu gosto defensivamente nacional, mas apesar de sua mocidade, já domina a orquestra como raros entre nós. É a nossa maior promessa no momento” (ANDRADE apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 48). O terceiro fato marcante, ainda no mesmo ano de 1939, foi o registro fonográfico que notabilizou sua carreira de maestro-arranjador. Radamés, após a apresentação do samba- exaltação Aquarela do Brasil de Ary Barroso (1903-1962) durante o espetáculo Joujoux e Balangandãs no Teatro Municipal, com a participação das orquestras das rádios Mayrink Veiga e Nacional regidas por ele mesmo, impactou a audiência ao fazer um arranjo colocando os metais e as palhetas em destaque. Em 1940, quando Aquarela do Brasil foi gravada por

38 Pavilhão do Brasil na Feira de Nova York de 1939 representa a materialização da arquitetura moderna brasileira apresentada e reproduzida ao longo da produção arquitetônica das décadas seguintes. Também mostra um país que procura através do “estado novo” construir uma ideia de nação e de identidade. Um país que reconhece sua fauna e flora nacionais e sua música — através de seleções de obras nacionais organizadas por Heitor Villa-Lobos e Francisco Mignone, e que deveriam soar de forma ininterrupta ao longo dos meses da exposição. 71

Francisco Alves, a nova roupagem instrumental dos arranjos da música popular brasileira tornou-se conhecida internacionalmente através do samba-exaltação de Ary Barroso. O tratamento dado à introdução incorporou-se a música de Ary Barroso (Figura 30, Anexo G). A utilização dos riffs já era marca registrada de Radamés e o sucesso do arranjo consagrou a nova maneira de orquestrar impingida por Radamés. Em entrevista, ele esclarece que não foi o autor da introdução, contrariando o que muitos pensavam: “A introdução e a música são de Ary Barroso. O Ary queria que eu colocasse os riffs nos contrabaixos. Eu disse, deixa comigo. E coloquei tudo nos metais, destacando aquela ‘bossa’ mais ainda. Não inventei nada. Só fiz botar os instrumentos no lugar certo” (MIS, 1985). O arranjo de Aquarela do Brasil rendeu a Radamés o convite de Walt Disney para trabalhar com ele nos Estados Unidos (início da década de 1940). Como nessa época Radamés estava muito bem posicionado no mercado brasileiro e a situação política mundial era de incertezas, pois o mundo preparava-se para uma guerra iminente, ele acabou recusando o convite (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 52). A partir da década de 1940, dotado de virtuosismo e swing , pode-se dizer que o pianista-arranjador era quase onipresente tanto nas gravadoras Victor, Odeon e Columbia- Continental , quanto na Rádio Nacional , atendendo a quase todos os cantores e compositores populares que queriam um tratamento musical novo para suas composições e parcerias (DIDIER, 1996, p. 25). Apesar de ter ficado ausente do Brasil durante oito meses, a trabalho na Argentina para organizar a orquestra da Rádio Municipal de Buenos Aires , os arranjos de Radamés não pararam de ser gravados. Tratando-se de gravações da produção erudita, sua canção clássica Gaita com letra de Augusto Meyer (1902-1970) foi gravada pela soprano Cristina Maristany (1906-1966) na Odeon. De volta ao Brasil (1941), Radamés participou de um projeto como arranjador, compositor e orquestrador que lhe deu significativo retorno financeiro. O compositor popular João de Barro, ou Braguinha (1907-2006), que fazia trabalhos de dublagem e de versões adaptadas das canções dos desenhos de Walt Disney lançados no Brasil, ao assumir a direção artística da gravadora Columbia -Continental , decidiu criar para o mercado brasileiro uma série de disquinhos coloridos com histórias infantis, contendo canções de sua autoria. O projeto lançou setenta disquinhos infantis, a maioria com orquestrações e arranjos feitos por Radamés Gnattali (ALBIN, 2001). 39

39 Alguns arranjos dos disquinhos de Braguinha também foram feitos por Pixinguinha e Guerra-Peixe

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1.11.1 Radamés e suas gravações até 1964

Nos anos seguintes Radamés, tanto como compositor quanto como pianista, amadureceu artisticamente, gravou muitas de suas obras, sobretudo as pequenas peças populares, sempre mantendo o seu virtuosismo impregnado de swing . Entre 1943 e 1944, pela Continental , Radamés gravou seus choros Assim é Melhor , Mulata Risoleta , Olhe bem pra mim, Saltitante e Sofisticada , com a participação do Quarteto de Saxofones Continental e da orquestra Rio Serenaders Orchestra . Em 1949, Radamés criou o Quarteto Continental , formado por ele ao piano, José Menezes na guitarra, Vidal no contrabaixo e Luciano Perrone na bateria, e gravou, com o quarteto, seu samba-canção Fim de tarde e seu choro Remexendo . Gravou também com o Quarteto Continental e Zé Bodega no sax-tenor o choro Bate Papo e a valsa Caminho da Saudade . Entre 1951 e 1953, na gravadora Todamérica, Radamés gravou com o Quinteto Todamérica o samba-choro Salamaleque e seu choro Na gafieira , ambos em parceria com Valdemar de Abreu — o Dunga (1907-1991). Com José Menezes, Radamés gravou o mambo Mambolero e o foxtrote Improviso . Com orquestra, gravou a Fantasia brasileira e o samba- baião Rapsódia brasileira . Em 1953, gravou ao piano acompanhado de sua orquestra arranjos que fez para uma série de oito obras de Ernesto Nazareth (Figura 31, Anexo G) — Expansiva, Tenebroso, Ameno Resedá, Odeon, Fon-Fon, Apanhei-te Cavaquinho, Confidências, Batuque, e mais quatro discos contendo o choro Carinhoso , de Pixinguinha e João de Barro; os sambas-canção No rancho fundo , de Ary Barroso e Lamartine Babo; e Linda flor , de Henrique Vogeler; as canções Casinha pequenina , de domínio público; Guacira, de Hekel Tavares e Joracy Camargo; e Luar de Paquetá , de Freire Júnior e Hermes Fontes; o tango Despertar da montanha e a valsa Nuvens de Eduardo Souto. Em 1955, Radamés gravou pelo selo Sinter SLP 1037 o Samba em Três Andamentos , cuja partitura é composta (curiosamente) sem a adição de instrumentos de sopro. A orquestração tem apenas cordas, piano e percussão. Nessa obra, Radamés sintetiza, talvez pela primeira vez, a possibilidade de se sofisticar o samba sem alterar a sua essência. O resultado é o samba delicado e moderno, o mesmo que seduziu Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim. Radamés reservou para essa gravação o direito de apenas tocar o piano; a regência ficou a cargo de Lyrio Panicalli e a bateria a cargo do mestre da percussão Luciano Perrone. Esse disco é também um dos raros registros do maestro Radamés Gnattali tocando solo ao 73

piano em todo o lado B. O lado A é ocupado pela suíte-título. Nas cinco peças para piano solo, Radamés toca à vontade seus choros, valsas, um samba-canção, intitulados: Canhoto , Porque , Vaidosa , Perfumosa e Noturno . Ainda que despidas do acompanhamento orquestral, como é o caso de Samba em Três Andamentos , as peças solo espelham o retrato preciso do que o Maestro vivenciou em termos de swing e de virtuosismo e, por que não dizer, de história musical do samba (Figura 32, Anexo G). Em 1956, gravou ao piano o LP intitulado Suíte Popular Brasileira para Violão e Piano (Figura 33, Anexo G) com Laurindo de Almeida. Nesse disco, Radamés toca em Duo com o violonista as cinco peças da suíte, todas de sua autoria: Invocação a Xangô , Toada , Choro , Samba Canção , Baião e Marcha . Nos anos 1956, 1957 e 1958, Radamés foi escolhido em votação realizada pela equipe de redatores e repórteres da revista Radiolândia como o melhor arranjador do ano. Em 1958, no LP intitulado Radamés e a Bossa Eterna (Figura 34, Anexo G), gravou doze obras populares de sua autoria: Papo de Anjo ; Puxa-Puxa ; Bolacha queimada ; Pé de Moleque ; Zanzando em Copacabana ; Gatinhos no Piano ; Vou andar por Aí ; Cheio de Malícia ; Escrevendo para Você; Seu Ataulfo; Amargura; e De amor em amor , tocando com o Quarteto Continental , formado por ele, Vidal (baixo), Luciano Perrone (bateria) e Zé Menezes (violões e guitarra). O disco conta também com a participação especial de Heitor dos Prazeres na percussão. Dois concertos de Radamés foram lançados em 1959 pelo selo Festa . O primeiro com o Concerto Para Harpa e Orquestra , tendo como solista o harpista Gianni Fumagalli acompanhado da Orquestra Sinfônica Brasileira. O segundo com o Concerto Para Violino e Orquestra , também com a Orquestra Sinfônica Brasileira, e o violinista Anselmo Zlatopolsky como solista. Ambas as peças tiveram que ser adaptadas para o curto espaço de tempo do LP em vinil. Por exemplo, o movimento Allegro Moderato , do Concerto para harpa , foi adaptado para pouco menos de dez minutos. Em 1960, ampliou o já existente Quarteto Continental transformando-o em Sexteto Continental . O sexteto (Figura 35, Anexo G) foi formado por ele e Aída Gnattali ao piano; Romeu Seibel (1928-1993) – cujo pseudônimo foi Chiquinho do Acordeom; Zé Menezes (1921) na guitarra; Pedro Vidal Ramos no baixo; e Luciano Perrone na percussão. Com esse grupo viajou para a Europa integrando a II Caravana Oficial da Música Popular Brasileira com apresentações em Portugal, nas cidades de Lisboa, Coimbra e Porto, além de apresentações na França, na Alemanha, na Itália e na Inglaterra. Com o sexteto,

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lançou o LP intitulado Terceira Caravana – Radamés na Europa com seu sexteto (Figura 36, Anexo G), gravado com o instrumentista Edu da Gaita. Os arranjos são executados com muito virtuosismo e swing . Em 1964, com solos de Jacob do Bandolim, Radamés gravou a Suíte Retratos no LP intitulado Retratos – Jacob e seu bandolim, Radamés Gnattali e orquestra . Considerada pelos críticos uma obra prima, essa suíte, em quatro movimentos, apresenta em cada um deles homenagens aos compositores Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga, cujos nomes, respectivamente, intitulam cada movimento, que são interpretados com virtuosismo e swing pelo bandolinista Jacob e pela orquestra de cordas sob a regência de Radamés (Figura 37, Anexo G). O ano de 1964 marcou a volta de Radamés às apresentações como pianista clássico, após a gravação do LP [s.d.] do selo Festa (LDR 5028) intitulado Villa-Lobos / Radamés Gnattali com o violoncelista Iberê Gomes Grosso (Figura 1, Anexo G). O Duo viajou em tournée internacional tocando nas cidades de Berlim, Roma, Jerusalém e Telaviv o repertório gravado.

1.12 O Lançamento do LP com o Duo Gnattali Gomes Grosso

O LP do Duo Gnattali-Gomes Grosso não contém informação na capa sobre a data de gravação e lançamento no mercado. Sabe-se que as tournées de divulgação ocorreram em 1964 (vide Figuras 1 e 2, Anexo G) e por esta razão delimitou-se o perfil a esse ano. Entretanto, é importante ressaltar que segundo o Catálogo Digital Radamés Gnattali (GNATTALI, Roberto, 2006) o referido LP é do ano de 1959. Observa-se que Radamés Gnattali estava com aproximadamente 60 anos de idade quando gravou o referido LP. Vinte e oito anos depois da primeira audição da Sonata nº 1, apresentada no Concerto Comemorativo do 8º Aniversário de Fundação da Associação dos Artistas Brasileiros na Escola Nacional de Música em outubro de 1937, com o próprio autor em Duo com Iberê Gomes Grosso. Esses quase trinta anos tocando juntos pressupõem uma grande maturidade artística e afinidade musical entre os dois intérpretes. Pode-se considerar que Radamés, entre os anos de 1959 e 1964, estava em plena maturidade artística, já tocava há muitos anos em Duo com Iberê e acumulava uma grande produção e experiência, tanto no campo da música popular quanto na música de concerto. 75

Os estilos musicais e gêneros populares na sua obra de concerto eram uma realidade, que o fazia ser notado não só como compositor, mas também como intérprete que transitava na fronteira entre o erudito e o popular, aliando o swing característico de cada estilo ao seu virtuosismo.

1.12.1 O sucesso do Pregão e Flor da Noite gravada no LP

Radamés Gnattali escreveu Flor da Noite com a melodia, de cunho popular, que versa “sobre o pregão de uma vendedora de pipocas da Bahia, trazido por ” (GNATTALI, Roberto, 2006). Radamés também passou a utilizar o tema de Flor da Noite em outras obras, como no Concerto Romântico , no Trio para Violino, Violoncelo e Piano e no Quarteto para Violino, Viola, Violoncelo e Piano . Os pregões faziam muito sucesso na década de 1930. Henrique Fóreis Domingues (1908-1980), conhecido como Almirante (cantor, compositor e um dos mais importantes radialistas de seu tempo), que trabalhava como locutor e produtor da Rádio Nacional , responsável pelos programas Caixa de Perguntas , Curiosidades Musicais , entre outros, recebia por cartas, enviadas à emissora, partituras de pregões de diversas partes do país. Ele recolhia os pregões e apresentava-os no programa intitulado Instantâneos Sonoros do Brasil . Certa vez, indagado sobre a inspiração no tema do pregão, Radamés contou uma história engraçada que depõe sobre o declínio da “moda” do pregão: Almirante tinha aquela salinha lá na Rádio Nacional, no prédio do Edifício da Noite, e em cima da mesa estavam sempre àquelas partituras com os “pregões” que ele recolhia pro programa Instantâneos Sonoros do Brasil. As pessoas mandavam canções pra ele, aquela história de folclore e tal. Um dia mandaram um envelope com um prego de ferro enorme, um pregão (DIDIER, 1996, p. 47).

1.12.2 O sucesso do baião e o Baião gravado no LP

Radamés foi atento aos gêneros da música popular que faziam sucesso e, eventualmente, os utilizava em sua música de concerto. Com o baião não foi diferente. Era sua maneira de trabalhar o nacionalismo musical em sua obra. O ritmo do baião, na forma modificada pela influência inconsciente do samba e das congas cubanas, alcançou enorme sucesso e teve no compositor Luiz Gonzaga seu maior

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divulgador. Com sua popularização, passou a anexar além da sanfona, a viola caipira, o triângulo, o pife e o acordeão, formando com esses instrumentos a orquestração típica que intercalava o canto. A temática do baião referia-se constantemente ao cotidiano dos nordestinos e suas dificuldades. Conforme as palavras de Fernando Lobo no livro de Dominique Dreyfus, intitulado Vida do Viajante: A Saga de Luiz Gonzaga, pode-se ter ideia da aceitação alcançada por esse gênero musical nos bailes da então capital federal, cidade do Rio de Janeiro: O baião atingiu todos os públicos: povinho, povão, classe média, classe alta. Os cassinos, que na época estavam abertos, tocavam Nat King Cole, Cole Porter e, de repente, um baião, com violino e tudo, e o público dançava: a grã-fina nas boates e o pé-de-chinelo nas gafieiras (LOBO apud DREYFUS, 1997, p. 171).

O enorme sucesso desse gênero musical também influenciou e inspirou a música de concerto de Radamés Gnattali, que estando atento às sutilezas dos estilos, soube manter as características de swing e virtuosismo do baião em suas composições e execuções.

1.12.3 O selo Festa — mercado fonográfico nacional para música erudita

A gravação e lançamento do LP do Duo Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso deveu-se à iniciativa do jornalista e empresário Irineu Garcia, natural de Mococa, cidade do estado de São Paulo. Irineu Garcia ainda jovem transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como cronista do Jornal do Brasil. Conhecido da grande parcela da intelectualidade do país da década de 1950 e de 1960, Irineu Garcia tornou-se um empresário e produtor de música e poesia. Em 1956, ele criou o selo Festa com o objetivo de produzir LPs sem preocupações comerciais, mas sim artísticas, sobretudo porque sabia que as grandes gravadoras não tinham interesse em produzir o que ele gostava de ouvir. O projeto do selo Festa existiu até o final da década de 1960 e, ao longo de aproximadamente doze anos, deixou um legado de cento e seis títulos em catálogo. Primeiramente, o selo lançou LPs de poetas brasileiros declamando suas próprias obras — uma ideia até então inédita no Brasil — que resultou em 67 discos com participação de Cecília Meireles, Paulo Mendes Campos, Murilo Mendes, Vinícius de Moraes, Augusto Frederico Schmidt, João Cabral de Melo Neto, Mario Quintana, entre outros. Seguindo essa linha, o selo Festa também lançou LPs com poetas estrangeiros, como o cubano Nicolas 77

Guillén, o espanhol Rafael Alberti, os chilenos Pablo Neruda e Gabriela Mistral, além do espanhol Federico Garcia Lorca, nas vozes de atores do teatro espanhol. Na música popular, o selo lançou LPs, por exemplo, da cantora Lenita Bruno intitulado Por Toda Minha Vida (com músicas de Tom Jobim e Vinícius); o LP Modinhas Fora de Moda (gravações de modinhas de Mário de Andrade, Villa-Lobos, Carlos Gomes, Jaime Ovalle, entre outros); o LP Dentro da Noite , último álbum do pianista, compositor e arranjador Oswaldo Gogliano — o Vadico — conhecido por suas parcerias com Noel Rosa nas músicas Feitio de Oração , Feitiço da Vila e Conversa de Botequim , entre outros títulos. Ainda na música popular, o lançamento do selo Festa considerado mais importante foi o LP intitulado Canção do Amor Demais (Festa LDV 6002 - 1958) com músicas de Tom Jobim e poesia de Vinícius de Moraes cantadas por Elizeth Cardoso. Apesar do LP Canção do Amor Demais ter tido apenas dois mil discos prensados e distribuídos, ele é considerado por muitos como o primeiro registro fonográfico da bossa nova . Na contracapa do disco, que foi assinada por Vinicius, não consta que os arranjos são de João Gilberto. Segundo Irineu Garcia, a ausência desse tipo de ficha técnica nos LPs se deu por inexperiência dele como produtor. Na área da música erudita, o selo Festa foi uma oportunidade inédita para músicos e compositores nacionais apresentarem seus trabalhos fonográficos. Além do LP de Radamés, foram lançados outros títulos, entre eles, o álbum duplo do pianista Arnaldo Estrela — Antologia da música brasileira para piano (1958); o LP do compositor Claudio Santoro regendo sua própria Sinfonia nº 5 — dodecafônica, a Orquestra Sinfônica Brasileira (1959); e o LP com a Missa de São Sebastião para Três Vozes e Coro à Capela de Villa-Lobos (1963) interpretada pela Associação de Canto Coral e regência de Cléofe Person de Mattos. É de se estranhar que músicos do gabarito de Gnattali, Santoro, Mignone, que normalmente eram requisitados arranjadores e trabalhavam para grandes gravadoras, não tivessem antes do selo Festa gravado suas peças clássicas. Segundo Irineu Garcia, por dois motivos. O primeiro é que mesmo reconhecendo o talento dos músicos clássicos brasileiros, os empresários dessas gravadoras achavam que sua música era pouco comercial, portanto alegavam que as vendas não compensariam o trabalho. O segundo é que com o selo Festa os músicos poderiam registrar seus trabalhos com toda liberdade criativa e não prestariam contas a um patrão, mas sim a um amigo. Durante seu autoexílio português em 1981, o próprio Irineu quem melhor definiu o selo Festa em texto escrito:

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Agora, passados muitos anos, estou tranquilo por não ter me preocupado com o imediato. Tenho a certeza de que Canção do Amor Demais (como muitos outros títulos que produzi de música e literatura) permanecerá como um informe [...] como um marco importante da modernização de sua fabulosa música, como criadores e intérpretes indiferentes ao tempo (TOSO; NOBILE, 2012). 40

Apesar da iniciativa louvável que foi o lançamento do selo Festa , é preciso constatar que a qualidade de alguns fonogramas é questionável. Por exemplo, as gravações do Duo Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso tocando a Sonata nº 1 para violoncelo e piano de Villa-Lobos e as peças de Radamés Gnattali Sonata nº 1, Flor da Noite e Modinha & Baião , foram feitas em sistema mono. Além disso, não existe ficha técnica, tampouco existe informação das datas e local dessas gravações, nem na capa do LP, nem no rótulo do “bolachão” do vinil.

1.13 Críticas à obra de Radamés Gnattali — “puristas” da música popular e erudita

Devido ao seu ecletismo, as composições eruditas de Radamés Gnattali guardam características próprias de quem transitou por diferentes estilos e linguagens nas práticas musicais. É certo que algumas composições guardam folclorismo, contendo colorações orquestrais jazzísticas. Porém, a fama de americanizado atribuída a Radamés pelos puristas, tanto populares quanto eruditos, estendeu-se ao longo de décadas. A explicação reside em dois fatos singulares. Nos arranjos de música popular, por exemplo, o compositor costumava usar metais identificados comos jazz-bands , introduzindo riffs, seja dividindo os solos entre os diversos naipes da orquestra, seja organizando os improvisos e combinando os instrumentos de maneira não tradicional. Já no repertório clássico, Radamés não conseguiu fugir ao estigma de jazzístico, embora declarando-se um nacionalista-neoclássico que, em diversas obras, utilizou o modalismo da escala nordestina; a rítmica da música urbana genuinamente brasileira, como a do samba, do frevo, do baião, do ponteio; entre outras. Além disso, na obra de Radamés, apesar de prevalecerem formas estruturais clássicas de composição, ele nominava os movimentos de suas suítes e concertos com palavras que designam gêneros musicais nacionais, como maxixe, marcha-rancho, samba-canção, samba-batucada, entre outros. Do lado da música erudita (da parte de compositores ou críticos, amantes do nacionalismo musical brasileiro; da música de vanguarda; da música moderna; dos

40 Disponível em: . Acesso em: 13 ago. 2012. 79

compositores dodecafonistas; da música aleatória; entre outros grupos contemporâneos), Radamés sofria críticas que tentaram estigmatizar sua obra como demasiado romântica, populista, para consumo, jazzificada e fronteiriça. Destacam-se e comentam-se a opinião de dois ilustres musicólogos brasileiros que publicaram declarações sobre as composições de Radamés Gnattali: Mário de Andrade e José Maria Neves. Mário de Andrade, em crítica publicada no jornal Estado de São Paulo de 12 de fevereiro de 1939 por ocasião da I Caravana Cultural (promovida pelo governo) composta de artistas e compositores que participaram da Feira Mundial de Nova York , escreveu as seguintes palavras sobre Radamés: “Tem uma habilidade extraordinária para manejar o conjunto orquestral, que faz soar com riqueza e estranho brilho. É certo que ‘jazzifica’ um pouco demais para o meu gosto defensivamente nacional” (ANDRADE apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 47). Ainda sobre a fama de jazzificar demais as obras, as palavras do musicólogo José Maria Neves em seu livro Música Contemporânea Brasileira corroboram as manifestações de preconceito e desagrado à música de concerto composta por Radamés (NEVES, 1981, p. 72). No referido livro, o autor se baseia em uma única peça — o Concerto Carioca nº 2 para piano, contrabaixo, bateria e orquestra sinfônica (em três movimentos: I – Samba; II- Samba-Canção; III- Choro), apresentada no I Festival de Música da Guanabara em 1964, para falar da totalidade da produção musical de Gnattali. Destacaram-se dois trechos para comentários. Gnattali, compositor de excelente técnica [...] perdeu-se justamente por seu excessivo apego à estruturação e às sonoridades jazzísticas. Ainda que ele afirme fazer absoluta distinção entre sua produção destinada ao consumo imediato no rádio e no disco e sua obra propriamente artística, os vícios de linguagem estão sempre presentes, inclusive em obras mais recentes, criando uma barreira para sua aceitação por parte do público mais exigente (NEVES, 1981, p. 72-73, grifo nosso).

Em primeiro lugar, quando o autor escreve que “Radamés perdeu-se ”, a palavra pressupõe que Radamés estivera antes bem situado em algum critério de aceitação, e que a partir de algum momento deixou de estar. Neves (1981) completa seu pensamento explicando que o “perder-se” de Radamés foi devido ao “seu excessivo apego à estruturação e sonoridades jazzísticas”. Entende-se que Radamés, segundo o musicólogo, utilizava recorrentemente na sua música de concerto os procedimentos orquestrais que utilizou nos seus arranjos populares e que aprendeu a usar por recomendação e encomenda das rádios e gravadoras, visando o mercado radiofônico e fonográfico das décadas de 1930 até 1950. De fato, Radamés não apenas gostava das orquestras de jazz , como também estudou e ouviu

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gravações até desenvolver essas habilidades. Entretanto, generalizar-se a sua música de concerto e seu estilo composicional como “apegado à estruturação e sonoridade jazzística”, denota desconhecimento. Em segundo lugar, o autor se referiu a “um público mais exigente” quando escreveu: “os vícios de linguagem estão sempre presentes [...] criando uma barreira para sua aceitação por parte do público mais exigente”. Considera-se que o que Neves (1981) chamou de “vícios de linguagem” seriam características da escrita de compositores como Villa-Lobos, Debussy, Chopin, Mozart, entre outros, que são inconfundíveis. A música de Radamés também é inconfundível para quem tem oportunidade de conhecer, diferentemente de contemporâneos seus, que passaram por diversas técnicas de escrita musical contemporânea (serialista, dodecafônica, microtonal, entre outras) e voltaram à música tonal. No entanto, foram tratados de forma parcimoniosa pelo musicólogo. Em terceiro lugar, José Maria Neves faz referência a um público “mais exigente”. O autor se referiu, neste caso, a um público que esperava ouvir música de vanguarda, no referido festival de música, e que teria se frustrado ao ouvir uma obra de verve popular e instrumentação de jazz . Cabe ressaltar que os solistas eram um trio de piano, baixo e bateria. Radamés escreveu um concerto tríplice com orquestra para instrumentos solistas de sua contemporaneidade. Entretanto, apenas a formação instrumental do trio fazia lembrar o jazz . Os movimentos do concerto tinham gêneros e caráter bem brasileiros (I - Samba, II - Samba- canção, III - Choro). Com essa obra, Radamés mostrava o quão nacional um conjunto aparentemente jazzístico como o Tamba Trio 41 , por exemplo, pode ser . Neves (1981), prosseguindo suas considerações críticas sobre Radamés escreveu: [...] falta-lhe a força primitiva dos nacionalistas mais puros e seu populismo já não é mais admissível. [...] este compositor encontra-se em posição incômoda, pois que é considerado demasiadamente erudito pelos compositores de música popular, [...] e demasiadamente popular pelo público de música erudita (NEVES, 1981, p. 73).

Críticos, músicos e público da música de concerto não compreenderam as intenções inovadoras e as harmonizações do compositor Radamés Gnattali. Basearam-se em uma única obra, o Concerto Carioca nº 2 para piano, contrabaixo, bateria e orquestra sinfônica , apresentado em festival, I Festival da Guanabara em 1964, para manifestações francas de desagrado à popularidade do compositor. Apesar de essa peça ser formalmente construída e nela ser demonstrada grande habilidade e equilíbrio no trato das sonoridades instrumentais, principalmente entre solistas e a massa orquestral; de ser de difícil execução devido ao

41 Conjunto musical da década de 1960 composto originalmente por Luiz Eça (1936-1992) piano, vocal e arranjos; Bebeto Castilho(1939) contrabaixo, flauta, sax e vocal; e Hélcio Milito(1931) bateria, percussão e vocal. 81

virtuosismo e swing exigidos dos intérpretes; de ser elaborado com movimentos rítmicos genuinamente nacionais; e de, além disso, ter uma formação orquestral inusitada para as tradicionais salas de concerto da época, sua primeira apresentação criou polêmica. Na expressão “força primitiva dos nacionalistas mais puros” (NEVES, 1981, p. 73), acredita-se que o escritor tenha se referido à música brasileira do folclore, com bases harmônicas da tradição europeia. Villa-Lobos (1887-1959), por exemplo, foi o primeiro a escrever música moderna nacionalista, tirada do ambiente da cidade e do folclore (ainda que utilizando harmonizações baseadas na música europeia de tradição e de sua contemporaneidade). Radamés fez o mesmo, porém nas suas harmonizações seguiu caminho característico da chamada harmonia funcional , ou seja, com utilização de acordes com nonas e décimas terceiras, sem preocupações com resoluções baseadas na harmonia tradicional. Além disso, Radamés empregou harmonizações debussyanas e evitou, propositalmente, os caminhos e procedimentos contrapontísticos utilizados, por exemplo, por seu contemporâneo Camargo Guarnieri (1907-1993). Radamés não se interessou em trabalhar a música com a técnica dodecafônica, utilizada e abandonada, por exemplo, por seus contemporâneos Francisco Mignone (1897- 1986), Claudio Santoro (1919-1989) e Cezar Guerra-Peixe (1914-1993), entre outros. Portanto, as críticas sobre Radamés Gnattali e sua obra, escritas no livro Música Contemporânea Brasileira, apenas denotam falta de conhecimento da vasta obra de concerto do referido compositor. Radamés, em algumas entrevistas, falou sobre a pressão contra sua música de concerto. Destacam-se, como exemplo, duas situações de convencionalismo. Uma delas no Theatro Municipal do Rio de Janeiro quando ele apresentou pela primeira vez o Concerto Carioca nº 1 com a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, sob a regência do maestro Henrique Morelembaum; e o outro episódio ocorreu quando Radamés recebeu o Prêmio Shell de Música Erudita , em 1983. Apresentei o Concerto nº 1 para Guitarra Elétrica, Piano, Orquestra Sinfônica e Batucada no Theatro Municipal. Quem dirigiu foi Henrique Morelembaum [...] Depois do concerto ele me falou: “Sabe o que estão dizendo na plateia? Que no Theatro Municipal até samba se toca agora”. [...] Sou da Academia Brasileira de Música do Villa-Lobos, cadeira nº 2, e também da Academia de Música Popular, então não posso fazer discriminação nenhuma (DIDIER, 1996, p. 82).

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Na entrevista ao MIS, Radamés contou: Quando ganhei o Prêmio Shell, em 1983, [...] apresentei o Concerto nº. 3 - Seresteiro, para piano e orquestra . Como a música desse concerto é muito brasileira, achei bom botar um regional junto com o piano. Os puristas não gostaram nada de misturar regional com orquestra sinfônica, mas se o concerto é meu, eu escolho o repertório que vou tocar, é ou não é? (MIS, 1985).

Sobre o preconceito musical, Radamés, no livro de Didier, demonstra indignação: Agora você vê: o pessoal da camerata carioca foi falar recentemente para propor um programa com músicas minhas no Theatro Municipal e perguntaram: “Tem música popular?” “Popular não, baseada em música popular”. E a resposta foi “Ah, então não serve. Música Popular aqui não entra!”. Ou seja, continua a mesma coisa... (DIDIER, 1996, p. 82).

Em relação à música popular, Radamés também sofreu resistência por parte de críticos: amantes das orquestrações tradicionais para o samba (sem violinos); defensores da sonoridade dos conjuntos regionais e do autodidatismo dos instrumentistas, compositores e arranjadores populares. Radamés foi acusado de americanizar a música popular brasileira e de tentar descaracterizar o samba. Na declaração dele, pode-se constatar a oposição à sua forma de orquestrar. música brasileira só se tocava com regional. Eu então comecei a fazer os arranjos para Orlando Silva, usando violinos nas músicas românticas e metais nos sambas. Aí começaram a reclamar, até por cartas, dizendo que música brasileira só podia ter violão e cavaquinho. (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 35).

É fato que alguns questionavam a utilização das cordas nos arranjos dos sambas. O próprio Radamés falou em entrevista: “Eu gravei um disco na Continental de música popular com orquestra e um crítico disse que o disco estava muito bonito, mas que eu tinha levado, um pouco, para o lado clássico” (MIS, 1985). Radamés, sobre a acusação de “jazzificar” a música popular com seus arranjos e orquestrações, argumentava que, se a música popular brasileira existe “não seria por causa de um timbre dentro da orquestra” que ela iria deixar de existir. E ainda: “Tem gente que acha que se a gente coloca um saxofone na orquestração, a música já vira jazz” (DIDIER, 1996, p. 52). Sobre as críticas à sua orquestração, Radamés opina: Muitos acham que a música brasileira só pode ser tocada com flauta, violão e cavaquinho. Ora, tanto faz tocar Guriatã de Coqueiro 42 com órgão ou sanfona. Quer dizer que se a música não é tocada com bandolim, que aliás nem é um instrumento brasileiro, ela não é brasileira? Então, a rigor, música brasileira, no duro, seria apenas música de índio. O próprio samba se modificou se formos ver as origens. Esses ortodoxos vivem no século passado (DIDIER, 1996, p.74).

42 Choro de autoria de Severino Rangel de Carvalho, o Ratinho (1896-1972). 83

1.14 Composições inspiradas nos instrumentistas amigos

“Eu sempre escrevi música para os meus amigos” (DIDIER, 1996, p.74). Radamés tinha fascínio pelos bons instrumentistas e fazia questão de conviver com “a fina flor” dos intérpretes brasileiros sempre em clima de “camaradagem”. Era comum nos fins de tarde ele estar “tomando um Chopp” com amigos instrumentistas que trabalhavam com ele tanto nas orquestras da rádio como das gravadoras. Encontra-se apoio para se entender o que Radamés considerava serem “bons músicos” ou “a fina flor dos intérpretes” nas palavras de Radamés, por exemplo, sobre o amigo acordeonista de formação popular Romeo Seibel (Chiquinho do Acordeom): “O Chiquinho, identificado como um acordeonista popular, é de uma musicalidade fantástica, de um preparo impressionante para a execução também de peças eruditas” (BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 66). A explicação sobre o conhecido hábito de Radamés escrever músicas inspiradas e dedicadas aos seus amigos virtuoses é a seguinte: Radamés era muito respeitado na Rádio Nacional e por isso tinha total liberdade para programar e tocar suas próprias músicas, mesmo as clássicas, e, de fato, isso aconteceu, sobretudo entre as décadas de 1940 e 1960 aproximadamente. Então, em razão dessa liberdade, surgiu a ideia de começar a compor concertos para os amigos músicos que ele admirava. Afinal, já que estes também tocavam na orquestra sinfônica da rádio, todos teriam oportunidade de executar as obras. Essa era uma fonte indubitável de inspiração e uma forma de poder ouvir a performance dos amigos virtuoses . Considera-se que Radamés foi um dos compositores clássicos brasileiros (de sua geração) que teve maior possibilidade de ouvir as suas obras executadas e gravadas, sobretudo na época que trabalhou na Rádio Nacional . Radamés escreveu concertos com orquestra para: Oscar Borgeth (1906-1992), violino; Iberê Gomes Grosso, violoncelo; Vidal, contrabaixo; Gianni Fumagalli, harpa; Edu da Gaita, gaita; Joel do Nascimento e Jacob do Bandolim, bandolim; Turíbio Santos, violão; Duo Assad, dois violões; Luiz D´Anunciação, marimba; Luciane Perrone, bateria; Romeu Seibel, acordeom; entre muitos outros instrumentistas virtuosos, a maioria companheiros na Rádio Nacional. Radamés convidou seu amigo pianista Arnaldo Estrela (1908-1981), que tocou seu 2º Concerto para piano e Orquestra e sua Fantasia Brasileira para piano e orquestra ao vivo na Rádio Nacional . O Concertinho nº 1 para piano e orquestra também foi tocado na Rádio

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Nacional por Tomás Terán (1895-1964). O Concerto para Acordeão e Orquestra , por exemplo, escrito para o amigo Chiquinho do Acordeom, era uma peça muito especial para Radamés, pois foi a primeira obra escrita no Brasil para essa formação. A maior parte das obras compostas para os amigos é caracterizada pelo virtuosismo e o swing que Radamés valorizava muito como qualidade para um intérprete e instrumentista clássico ou popular. Radamés valorizava a qualidade de o músico tocar com swing não em detrimento do virtuosismo, mas aliado à erudição musical. Por ocasião da audição e posterior gravação de sua Cantata Maria Jesus dos Anjos - cantata umbandista para orquestra, coro, narrador e percussão popular (1965)43 , ao ouvir o comentário crítico de um amigo músico que era conhecedor da cultura afro-brasileira no qual elogiava a obra, mas censurava a execução em razão do coro não ter “balanço”, Radamés prontamente respondeu: “Se você me arranjar um terreiro onde o pessoal leia música, eu gravo de novo!” (DIDIER, 1996, p. 56). Já sobre o amigo Iberê Gomes Grosso, músico de formação erudita, Radamés o valorizava como um músico que além de virtuoso, tinha a capacidade de swingar 44 . Sobre sua inspiração em peças de violoncelo dedicadas ao amigo ele dizia: “Quando eu fazia uma peça para violoncelo, era para o Iberê tocar. Ele tinha muita bossa, muito jeito pra música brasileira” (DIDIER, 1996, p. 67). Capaz de transitar entre o repertório erudito e o popular, Radamés se cercava de instrumentistas que tinham em comum o virtuosismo e o swing .

43 Cantata Maria Jesus dos Anjos (composta em 1965), música de Radamés Gnattali. Texto de Albertode Castro Simões da Silva (1898-1986), o Bororó. Cantata com tratamento livre de pontos colhidos por Radamés Gnattali, Bororó, Jerônimo da Silva e Rubens Ferreira, na Tenda Espírita Pai Jerônimo — Culto Fetichista, Afro- Brasileiro, Terreiro de Umbanda. Primeira audição pelo Coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro sob a regência de Mário Tavares [s.d.]. 44 Termo swing foi abrasileirado e designa tocar com swing , ou tocar com bossa. No caso de se utilizar um substantivo que não tem conjugação, optou-se por conjugar o verbo referente ao substantivo bossa, em inglês. Considerou-se que swingar soa melhor que bossar. 85

1.15 Notoriedade que superou as próprias expectativas

Radamés teve seu ideal de concertista erudito frustrado. No entanto, o concertista, que viu restringida a atmosfera de sua especialização, enveredou pelos caminhos da composição deixando um legado de mais de trezentos títulos somente para a música de concerto (como: sonatas; sonatinas; sinfonias; brasilianas; suítes; trios; quartetos de corda; duos; sextetos; quintetos de sopro; quartetos com piano; concertos com orquestra para piano, violão, violoncelo, saxofone, acordeão, bandolim, guitarra, marimba, harpa, entre outros); mais outras aproximadamente cento e cinquenta composições populares (entre as quais peças nos gêneros choro, dobrado, samba, samba-canção, quadrilha, rancheira, polca, polca-choro, valsa, marcha, bolero, mazurca, foxtrote, serenata, baião, moda, maxixe); assim como mais de nove mil arranjos escritos para música popular, feitos para diversos trabalhos em gravadoras, rádios, cinema e televisão. Atribui-se a Radamés a renovação da maneira de orquestrar a música popular brasileira conforme atestam as palavras do jornalista José Burle em A Nova Hora do Brasil , programa irradiado na Nacional , em 1937. Ao Radamés devemos o alicerce da renovação e valorização da nossa música popular, tornando-a compatível com a nossa cultura e colocando-a lado a lado com a dos países civilizados do mundo. [...] música popular brasileira selecionada com arranjos orquestrais modernos e bem feitos. Eis a única maneira de se levantar o nível da cultura musical do nosso povo e de se poder fazer alguma coisa de utilidade real, no assunto, pelo nosso país. [...] Talento insofismável de Radamés Gnattali [...] Se eu quisesse fazer um elogio póstumo a Gershwin, não vacilaria na comparação chamando-o de Gershwin brasileiro (BURLE, 1937 apud BARBOSA; DEVOS, 1985, p. 44).

Quase cinquenta anos depois, Luiz Paulo Horta, em artigo publicado no Jornal do Brasil em 27 de janeiro de 1986, enalteceu a brasilidade do compositor: Com Mignone e Camargo Guarniere, forma um grande trio de ascendência italiana que ensinou a música séria a falar português. Os três fizeram nesse sentido, um trabalho mais minucioso que o de Villa-Lobos. [...] Guarniere, Gnattali, Mignone escreveram juntos toda uma biblioteca musical. Exploraram todos os gêneros, todas as formas, tendo em comum um métier extraordinário. Dos três, Radamés é o que está mais próximo das matrizes populares. É um caso único de músico igualmente identificado com os gêneros populares e clássicos. [...] queria ser pianista de concerto terminou ganhando a vida como arranjador – pois nisso era melhor que os outros, e pianistas clássicos são multidão. [...] Tornou-se um patrimônio da música brasileira, mestre de todos os músicos – clássicos e populares. (HORTA, 1986).45 .

45 HORTA, Luis Carlos. Radamés: Uma usina de música. Jornal do Brasil . 27 jan. 1986. Caderno B.

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Segundo Alceo Bochino 46 (1997), Radamés Gnattali foi um dos músicos expoentes do século com quem teve o privilégio de trabalhar. Considera que Radamés possuía um “ecletismo impermeável”, pois quando fazia música “popular” era “popular”, quando se tratava de “música de concerto”, era “música de concerto”, sem que um estilo atrapalhasse o outro. Bochino cita a frase de Georges-Louis Leclerc De Buffon (1707-1788) “O estilo é o próprio homem” para corroborar sua ideia a respeito da capacidade de Radamés. Como classificar um músico capaz de escrever, com autenticidade, alentadas obras sinfônicas, concertos, para violino, piano, violoncelo, acordeão, harmônica de boca e tantos outros instrumentos; valsas e chorinhos populares brasileiros, e depois sentar- se ao piano e executar com precisão o que escreveu e ainda, obra de outros autores? Se “o estilo é o homem”, conforme Buffon e, na verdade, o é, devemos consagrar, batizando com o nome Estilo Radamés Gnattali, todos os que forem capazes de tais façanhas (BOCHINO, 1997).47 .

1.16 Virtuosismo e Swing de Radamés Gnattali

Constatou-se que o virtuosismo e o swing são indicativos presentes na música de Radamés Gnattali. De forma direta ou indireta, seja como intérprete, seja como ouvinte, cultivou essas duas características ao longo de sua carreira e soube utilizá-las para sua expressão artística como intérprete, como compositor e como arranjador. Desde a música que ouviu tocada pelo próprio Ernesto Nazareth, passando pela música que ouviu nos primeiros discos das orquestras de jazz americano; passando pelo samba que ouviu tocado pelos pianeiros (que soube identificar quão diferente era, quando executado ao piano à moda carioca); ou ainda pela percepção tanto do molejo da batucada de Luciano Perrone, como do ecletismo do Chiquinho (que com seu acordeom transitava entre a música do norte e o sul do Brasil, do baião ao erudito); pode-se dizer que Radamés escolheu manter próximo à sua musicalidade as características indicativas do virtuosismo e do swing . No virtuosismo estava a sua facilidade. No swing estava o aspecto que talvez tenha sido a razão de ele mesmo dizer que não gostava de dar aulas. Da forma que vivenciou e assimilou o swing , ele sinalizou que se pode aprender pela “auralidade” aguçada e analítica.

46 Alceo Bochino (Curitiba, 30/11/1918). Maestro e pianista brasileiro. Foi fundador e professor titular da Escola de Música e Belas Artes do Paraná, fundada em 1948. Em 1956, orquestrou e dirigiu o programa Quando os maestros se encontram da Rádio Nacional . Foi assistente do maestro na Orquestra Sinfônica Brasileira e presidente da comissão artística, regendo a orquestra de 1963 a 1965. Recebeu a Comenda General Gomes Carneiro da cidade da Lapa (PR). Fundador da Orquestra Sinfônica do Paraná do Teatro Guaíra. Regeu no exterior a Orquestra Sinfônica de Bilbao (Espanha) e a Orquestra Filarmônica de Burgas (Bulgária), entre outras. 47 BOCHINO, Alceo. Texto do Encarte. In: GNATTALI, Radamés. Três Concertos e Uma Brasiliana . Rio de Janeiro: SOARMEC, 1997. 1 CD. 87

Sua aproximação e percepção das diferenças e similitudes na prática interpretativa dos pianeiros com a intenção de apreender impregnaram-no musicalmente na execução. É pertinente ressaltar que, através do perfil apresentado, sabe-se que Radamés valorizava tanto o virtuosismo quanto o swing inerentes a uma obra. Radamés vivenciou a prática da música de concerto e da música popular brasileira, que estava se delineando desde o início do século XX, sobretudo a que se concentrava no Rio de Janeiro. Foi um compositor que atuou de forma marcante na música popular em insurgência no Brasil, não apenas como compositor-intérprete, mas também como colaborador (BREIDE, 2006). Paralelamente, Radamés soube aproveitar as oportunidades que surgiram para criar sua música de concerto, caracterizadas pela presença de virtuosismo e de swing , denominado bossa por Breide (2006). Após 1964, ano de lançamento do LP em Duo com o violoncelista Iberê Gomes Grosso e ano final do recorte temporal do breve perfil biográfico de Radamés, o compositor viveu mais vinte e três anos em franca produção musical. A partir de 1965, trabalhou como arranjador pianista e maestro contratado da TV Globo. Paralelamente, como compositor clássico escreveu cantatas, concertos, música para filmes, para duos, trios, entre outras formações musicais. Após a morte de Vera, sua primeira esposa no ano de 1965, Radamés casou-se com Nelly Martins Gnattali, cantora, atriz e médica, com quem conviveu até 1988. Radamés faleceu na cidade que escolheu viver, Rio de Janeiro, em 13 de março de 1988. O perfil apresentado não teve a intenção de ser crítico, mas sim de fornecer informações para o entendimento das características da interpretação do autor-intérprete.

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CAPÍTULO 2

O GUIA DE INTERPRETAÇÃO DE ARTUR SCHNABEL QUE BASEOU OS CRITÉRIOS DA ANÁLISE AURAL DESTE TRABALHO

De acordo com Schnabel, citado por Wolff (1972), a tarefa fundamental de um intérprete é relacionar o impulso inato de sua expressão e sensibilidade com as formas musicais. A submissão no que se relaciona à leitura da partitura é requisito prévio. Consequentemente, o artista deve fazer música de maneira tanto fiel ao texto musical quanto livre no momento de expressá-la. Segundo Wolff (1972), Schnabel considerava que a composição, mais do que a sua apresentação, está no supremo posto na classificação hierárquica da arte e o intérprete deve ser guiado apenas por ela. Entretanto, dentro desses limites, ele é livre, ativo e formativo de um modo especialmente privilegiado. Basicamente, é ele (intérprete) que é o músico, pois é quem produz o som. O músico só vai ser capaz de executar a sua tarefa fundamental se tocar fluentemente, se a apresentação revelar o artista em sintonia com o compositor, ou seja, se ele conseguir convencer a audiência de que sua versão corresponde à obra daquele compositor. Inteligência e exatidão no texto e no espírito de uma composição atuam como estímulos e revitalizam a performance , afirma o autor. O termo recriação poderia ser utilizado recorrentemente, porém ele pode dar origem ao mal-entendido de que o intérprete pode tentar estabelecer a personalidade do compositor no momento da criação. Sabe-se que todas as recriações interpretativas dependem da consciência da estrutura e do caráter objetivo de uma composição. Schnabel discutiu estes problemas de uma forma absoluta e dogmática, mas por trás de seus pronunciamentos sempre houve intenção de guiar os seus discípulos (sobretudo os músicos ainda inexperientes) para o centro de sua tarefa fundamental (WOLFF, 1972, p.15). Wolff (1972) relata que Schnabel, frequentemente, enfatizava que o intérprete, tanto ao estudar quanto ao executar, estivesse preocupado apenas com a música, não com sua execução, por exemplo, com o público (fator externo) ou com a comunicação entre o compositor e o público. Entendia que se o artista se tornasse um com a música, o público sentiria, ao passo que se ele tocasse para os ouvintes, talvez não fizesse justiça à música ou ao

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texto (fator interno). Schnabel, nas palavras de Wolff (1972), também alertou seus alunos contra generalizações estilísticas. Sentia fortemente que era desnecessário e, às vezes, perigoso para o intérprete de música guiar a sua reprodução por considerações de estilo de um período ou de características nacionalistas ou regionalistas. Não acreditava que o pianista tivesse, por exemplo, que morar em Viena para tocar as marchas características de Schubert; ou em Paris para tocar impressionistas franceses. Era também avesso a imagens caricaturais que geravam interpretações superficiais de um autor, por exemplo Johannes Brahms, visto como homem dos três B’s — Bier, Bart und Bauch (cerveja, barba e barriga). Schnabel acreditava que esse tipo de abordagem pseudoestilística era irrelevante e distraía o caráter de cada composição individual. Na visão de Schnabel, todos os bons compositores criaram cada partitura para viver por si, como se não existisse outra música. Intervalos deliberados em Mozart; atrasos de terceiros tempos em valsas de Schubert; mudanças de andamento em Schumann; sonoridade stacata em Bach – esses e outros maneirismos eram rejeitados como tal, mesmo em composições baseadas na música popular, como rapsódias húngaras e mazurkas. Schnabel assegurava que a concentração na peça por si só traria à tona o seu “elemento folclórico” (WOLFF, 1972, p. 16). Na Escola de Schnabel, de acordo com Wolff (1972), a singularidade de cada obra de arte, sua qualidade de pertencer à arte em geral, tem que ser preservada. Preconcepções sobre estilo podem restringir a própria compreensão do intérprete. Por exemplo, para ele nem todas as obras de Mozart são clássicas; nem tudo de Bach é barroco; e é nesse ponto que um compositor rompe restrições estilísticas de sua época, sua nacionalidade, sua fonte de inspiração e o intérprete tem que estar alerta, palavras do autor. Schnabel dizia que os “criadores não são especialistas”. No momento em que um artista está pronto para iniciar a execução, todas as experiências de diferentes músicas devem ser dissolvidas na experiência direta da peça individual diante dele. A citação favorita de Schnabel era de Goethe: “O que é o universal? O único caso! O que é o particular? Milhões de casos!” Cada grande composição foi, para Schnabel, “tudo incluído, abrangentemente” e não comparável a qualquer outra composição, até mesmo do mesmo compositor (WOLFF, 1972, p. 17). Certas imagens musicais são mais aurais do que visuais e não podem ser eliminadas da imaginação do intérprete. No entanto, Wolff (1972) diz que Schnabel estava ciente de que imagens muitas vezes são de âmbito limitado, pois são subjetivas. Para ele, a música pode evocar imagens, mas o inverso não é verdade: as imagens não evocam música (WOLFF, 91

1972, p. 18). A declaração de Schnabel não é de todo dispensável, afinal sabe-se que ideias programáticas fixas podem levar um intérprete a uma distorção da frase musical. A música, mesmo se é programática ou descritiva, deve ser sempre musicalmente autossuficiente. Exageros no foco a ideias programáticas podem levar o intérprete a dinâmicas exageradas e rítmicas deturpadas. O autor, segundo descreve Wolff, diz que uma “análise frutífera” da obra seria o resultado da reação espontânea do músico frente a algum detalhe musical que se tornou como um enigma para ele, forçando-o, então, a investigar aquele acontecimemto em particular (WOLFF, 1972, p. 19). A análise pode, talvez, explicar porque as mudanças interpretativas ocorrem. Em certos casos, o instinto musical vem em primeiro lugar. Em seguida, ele é confirmado, podendo também, em alguns casos, ser alterado pelas conclusões determinadas pela análise do texto. Essa análise também pode e deve ser exercida pela audição, comenta o autor. Diz Wolff (1972) que a tarefa do intérprete, finalmente, inclui ser concretamente voltado para a unidade e diversidade inerente a cada peça tocada. Isso inclui um equilíbrio entre elementos superficiais e inerentes à obra. Elementos superficiais, neste caso, referem-se a tudo que não é a música em si. Por exemplo: biografia do compositor, contexto social, etc. Em todo o seu guia de interpretação, Schnabel recorrentemente fala sobre articulações musicais (WOLFF, 1972). O termo Articulação , entretanto, foi usado bastante elasticamente pelo autor, referindo-se ao esclarecimento de detalhes musicais disponíveis para o artista tais como duração, volume, tempo, etc. Para Wolff (1972), na concepção de Schnabel, a Articulação é o elemento mais sutil da performance , tão sutil que na maior parte do tempo não se consegue de forma precisa indicá-la na partitura. Na opinião de Konrad Wolff (1972, p. 26), as regras de articulação aprendidas, desenvolvidas e ensinadas por Schnabel foram “sem precedentes e constituíram-se contribuição original e duradoura para a prática interpretativa”. Ressalta-se, entretanto, que na verdade houve precedentes como, por exemplo, os livros de Mathis Lussy: Le Traité de l'expression Musicale (1873), Le Rythme Musical: son Origine, sa Fonction et son Accentuation (1884), L’Anacrouse dans la Musique Moderne (1903). (LUSSY, 1873, 1884, 1903). Regras de articulação, de certa forma, já estavam decifradas pelo teórico suíço quase cem anos antes do guia de interpretação de Schnabel ser publicado por Wolff (1972).

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O pensamento de Schnabel, apresentado por Wolff (1972) é, de certa forma, compartilhado por outro reconhecido mestre de música, Alfred Cortot, que segundo Thieffry considerava que a música, por si só, deveria ser o primeiro veículo do pensamento musical (CORTOT, 1986, p. 19). Por exemplo, se depois de estudar a música, o intérprete encontrasse algum documento capaz de corroborar os sentimentos despertados, só então deveria se apoiar nesse novo conhecimento. Em adição, relata que na opinião de Cortot (1986) mesmo se existisse (mas não existe) algum documento que fosse capaz de estabelecer, indiscutivelmente, o caráter emocional da obra, mas que o sentimento do intérprete dele diferisse, ele não recearia afirmar que o intérprete deveria levar em conta o sentimento pessoal. E afirmava “A música não passa de nosso reflexo. Não é senão o espelho que inscrevemos nossa imagem” (CORTOT, 1986, p. 19). Segundo Dart 48 (2002, p. 213), “o ouvinte não deve esperar compreender todas as músicas, a não ser que conheça o que o compositor estava tentando dizer e de que modo o disse, e isso vale tanto para Bach, Byrd, [...] como para Berg, Bennet e Boulez”. Em relação a quaisquer execuções musicais, ele expunha: Nenhuma música [...] deve ser tocada de maneira maçante, pois a música sempre foi escrita para ser apreciada tanto pelo executante como pelo ouvinte. Porém toda música deve soar com espontaneidade, e o intérprete não deve se preocupar com ela como um cão se preocupa com um osso (DART, 2002, p. 214).

Em contrapartida ao pensamento de Schnabel (WOLFF, 1972) e de Dart (2002), os mestres do piano Leimer e Gieseking (1951) no livro intitulado Rítmica, Dinámica, Pedal y otros Problemas de la Ejecución Pianística preconizavam que o intérprete deveria se preocupar apenas em manter a execução das peças de maneira exata, do ponto de vista rítmico e formal, conforme citação a seguir: O pianista pensa com frequência ser obrigado, interpretando uma composição, a modificar a escrita do compositor, especialmente quanto ao ritmo. Muitas vezes ele o faz inconscientemente, por não saber ler direito, por tocar superficialmente, ou por que pense que seja mais interessante ou mais “expressivo” tocar, por exemplo, uma série de semicolcheias com desigualdade e com forte rubato, apezar [sic] de o compositor tê-las escrito em valores iguais. [...] Execução absolutamente correcta é a única base sobre a qual poderá edificar-se uma interpretação de real valor. (LEIMER; GIESEKING, 1951, p. 34).

Segundo Charles Rosen (1993) ainda que respeitassem totalmente a partitura, outros intérpretes poderiam tocar de maneira diferenciada, consequentemente personalizada, devido, por exemplo, às pequenas respirações utilizadas, bem como às escolhas de tipo de toque

48 Robert Thurston Dart (1921-1971), cravista e regente britânico especialista em música antiga, professor na Universidade de Cambridge, teve entre seus discípulos o maestro Sir John Eliot Gardiner e o maestro musicólogo Christopher Hogwood, com quem realizou uma das primeiras gravações “historicamente informadas” dos Concertos de Brandemburgo de J. S. Bach. 93

pianístico (ou tipo de arcada para o violoncelo), ou ainda às articulações e às gradações de dinâmica aplicadas às frases musicais no momento da execução. As particularidades expressivas de cada intérprete significariam, então, um resultado artístico distinto que enfatizaria, ou não, características da obra. Portanto, elegeu-se o guia de interpretação de Artur Schnabel, apresentado na publicação de Wolff (1972), como parâmetro válido para as análises das interpretações dos Duos nos fonogramas. As articulações musicais, por serem capazes de conectar o componente musical e o significado musical com a técnica, facilitam a Externalização . Quando em uma nova peça, imediatamente o músico se concentra na adequada articulação de cada frase, os meios técnicos e musicais são resolvidos simultaneamente. O empenho em se conscientizar as articulações em todos os seus aspectos (melódicos, harmônicos, rítmicos e métricos) fornece algo concreto com a qual se pode trabalhar auralmente. Por exemplo, Schnabel, de acordo com Wolff (1972, p. 26) chamava de “sotaque” um acento indesejado (ou estranho) que muitas vezes é atribuído a uma nota (que não deveria ser enfatizada). Os motivos podem ser vários: desde a falta de controle (dos dedos), até a falta da disciplina do ouvido, passando pela falta de compreensão musical. Porém, para ele, essa questão do “sotaque indesejável” se resolveria com a consciência das articulações. Considerações técnicas e musicais são geralmente tão intimamente ligadas que, em muitos casos, o músico tem dificuldade para determinar qual elemento provocou esse “sotaque”.49 O músico geralmente imagina que esteja articulando quando toca o legato, o portato ou o staccato , de acordo com o que está marcado; quando respeita o valor do tempo de cada nota e de cada pausa; quando executa fielmente o ritmo e a dinâmica; quando executa a peça com pulsação uniforme. Entretanto, estas precisões não são necessariamente as de um “discurso musical eficaz.”50 Regras não escritas governam nuances de dinâmica e de ritmo. Portanto, não há símbolos que tornariam a notação dessas sutilezas possíveis e, mesmo que houvesse, o compositor iria arriscar distorcer a unidade total da obra por causa da anotação dessas nuances. Detalhes musicais interpretativos, ao serem insistentemente marcados, aprisionariam tanto o compositor quanto o intérprete, além do que, de certa forma, faz parte do momento da execução o artista tomar liberdades imprevistas tais como duração, intensidade, tempo, que

49 O chamado “sotaque” no fraseado musical é considerado aqui como falha. Significa que o músico fez acentuações estranhas ou indevidas, por exemplo, no início ou no final de frases musicais. 50 Na expressão “discurso musical eficaz ”, a palavra eficaz está sendo usada no sentido de se inculcar o carácter da obra.

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podem ser eventualmente fruto de um momento do intérprete, e até mesmo um insight , que por sua vez tem a ver com a conexão do significado musical com a articulação adequada no discurso musical ou na frase musical. Não foi exatamente o termo Articulação — usado por Schnabel no livro de Wolff (1972) para esclarecer detalhes musicais interpretativos disponíveis para o artista, tais como: duração; volume; tempo; métrica; agógica; dinâmica; legato ; stacato ; sforzando ; entre outros — que norteou este trabalho como referência para as análises aurais dos fonogramas. Foi sim a essência do que o autor considerava importante em uma interpretação. Como Schnabel enfatizou em sua fala, “precisões não são necessariamente as de uma declamação essencial, afinal, regras não escritas governam nuances de dinâmica e de ritmo” (WOLFF, 1972, p. 26). 95

CAPÍTULO 3

REVISÃO FONOGRÁFICA

3.1 Introdução à Análise Aural de Flor da Noite e Modinha & Baião

A capa do LP do Duo de Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso está, conforme pode ser visto na figura 1 do Anexo G, com dedicatória escrita por Radamés: “Ao querido amigo Luciano com o abraço de Radamés”, datada “Rio, 1966”. Apesar de o Catálogo Digital Radamés Gnattali informar que o lançamento deste LP no Brasil ocorreu no ano de 1959, considerou-se que a data exata do lançamento e da gravação não está de fato esclarecida, uma vez que não encontrou-se nenhum documento ou recorte de crítica publicada que comprove a data informada (GNATTALI, Roberto, 2006). O selo Festa não datou o LP e tampouco no livro biográfico de Iberê Gomes Grosso existe qualquer confirmação de data de gravação e lançamento (BARBOSA, 2005).

3.1.1 O estado dos fonogramas do utilizados no trabalho (LP)

Para a revisão fonográfica elegeu-se a versão do Duo Radamés Gnattali & Iberê Gomes Grosso feita para o LP do selo Festa LDR 5028 [s/d], intitulado Villa-Lobos / Gnattali , único registro em LP existente dos músicos em Duo e fonte primária desta pesquisa. Os fonogramas de Flor da Noite e Modinha & Baião foram gravados provavelmente no final da década de 1950, época em que no Brasil os discos eram, em sua maioria, de 33 ½ rotações por minuto (RPM) e pode-se dizer que ainda não era comum fazerem-se muitos cortes e edições nas gravações. Além disso, nessa época, existem algumas deficiências nas produções dos LPs, conforme os apontamentos a seguir:

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1. A maior parte dos LPs dessa época não contém informações sobre ficha técnica e datas das gravações em sua capa; 2. Existem dúvidas quanto à afinação relativa à tonalidade das músicas executadas. Muitas vezes existem problemas de afinação que não se pode determinar com exatidão se estão a cargo da rotação de cada aparelho reprodutor ou se estão relacionados ao diapasão utilizado nos instrumentos. Muitas vezes, a afinação não coincide, por exemplo, com a afinação em 440 ou 442, que eram as mais utilizadas até a década de 1990 aproximadamente; 3. As gravações em geral eram feitas em mono. No caso do LP de Radamés e Iberê, a qualidade do som não pôde ser melhorada pelo fato de os instrumentos violoncelo e piano terem sido gravados no mesmo canal. Nos exemplos do áudio de Flor da Noite e Modinha & Baião , que estão anexados a este trabalho, o som apresenta muito ruído típico da agulha no vinil, tais como estalinhos e “frituras”. Como a gravação foi feita originalmente em apenas um canal (mono), ela também é reproduzida em mono. Por esta razão, não houve condição de “limpar” ou atenuar as “sujeiras” na reprodução sem que houvesse comprometimento maior da qualidade do som. Através de aparelhagem moderna, notou-se que os dois instrumentos, tanto o violoncelo quanto o piano, estão em fase pulsando igualmente, conforme foi mostrado na tela do monitor pelas ondas de medida de nível de frequência e volume do programa Sound Forge 10 , um software considerado de última geração para a edição de áudio. Pode-se ver através do gráfico que aparece durante a reprodução que o sinal é o mesmo, referente aos dois instrumentos. Por meio desse software , pôde-se ter certeza que os dois instrumentos foram gravados no mesmo canal. Assim sendo, ao se tentar limpar os ruídos característicos do contato da agulha sobre o vinil, verificou-se que ocorriam distorções dos sons do violoncelo, do piano, ou de ambos simultaneamente. Portanto, preferiu-se utilizar o fonograma conforme a gravação original do LP, sem quaisquer manipulações no intuito de melhorar a qualidade do som. Entretanto, tomou-se cuidado de se verificar a rotação, que foi aferida de acordo com o estroboscópio do aparelho toca -discos , que indicou a medição original de 33 ½ RPM. Mesmo com os ruídos característicos de um LP da década de 1950/1960, os fonogramas utilizados podem ser perfeitamente úteis como material ilustrativo para a confirmação do que está sendo estudado e demonstrado neste trabalho, que é o aspecto interpretativo da performance, virtuosismo e swing , e que leva em consideração a análise aural sob o ponto de vista estritamente humano focando-se a escuta no âmbito artístico das interpretações comparada à partitura autógrafa. Não se utilizou nenhum procedimento matemático, medições e gráficos. Tampouco se aferiu quantitativamente com o auxílio de 97

hardware e software como se tem feito, por exemplo, no Centre for the History and Analyses of Recorded Music — Centro para a História e Análise de Música Gravada (CHARM, 2005).

3.1.2 Características comuns das duas peças Flor da Noite e Modinha & Baião

Algumas coincidências são observadas em Flor da Noite e Modinha & Baião . Por exemplo: primeiro o fato de serem peças da produção erudita de Radamés Gnattali que não fazem parte de ciclos ou conjuntos formais, tais como sonatinas, sinfonias, brasilianas, fantasias, divertimentos, miniaturas, valsas, entre outros títulos que abrigam composições, tanto para diversos instrumentos solistas quanto para diferentes formações camerísticas e orquestrais. Em Flor da Noite e Modinha & Baião , como se pode perceber, o compositor intitula usando nomes sugestivos independentes. A segunda coincidência a destacar-se é que em Flor da Noite e Modinha & Baião a escrita para o piano funciona preferencialmente como instrumento acompanhador, diferentemente de seus outros Duos para violoncelo e piano, nos quais os dois instrumentos dialogam virtuosisticamente. Como terceira coincidência observa-se particularmente que em ambas as peças o compositor é inspirado pelos gêneros populares. A melodia estilizada de Flor da Noite , por exemplo, foi inspirada em motivo colhido diretamente das ruas: o pregão. Já os temas de Modinha & Baião , conforme o título indica, possuem suas bases populares (aproximação estilística) nestes dois gêneros: a modinha e o baião. A quarta coincidência é que dentre os seis Duos para violoncelo e piano escritos por Radamés Gnattali, estas duas obras são as únicas não dedicadas ao violoncelista Iberê Gomes Grosso.

3.2 Flor da Noite — A peça

A partitura de Flor da Noite para violoncelo e piano é uma versão do próprio autor, datada do mesmo ano da partitura original para violino e piano, escrita em 1938. Sua melodia, conforme já foi dito no Capítulo 1, versa “sobre o pregão de uma vendedora de pipocas da Bahia, trazido por Dorival Caymmi” (GNATTALI, Roberto, 2006). Essa informação não consta nem na partitura autógrafa de Radamés Gnattali nem na partitura editada. O compositor utilizou o tema estilizado do “pregão” que conheceu através de Dorival Caymmi,

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que o cantava informalmente para Radamés. A forma indolente de como Caymmi o apresentou — “Oooolha a flor da noite” — é transcrita para a peça Flor da Noite como uma imitação estilizada do pregão (GNATTALI, Roberto, 2006).

3.2.1 Flor da Noite — Algumas considerações sobre a harmonia

Em Flor da Noite encontram-se características da harmonização do jazz , o bop-jazz . O bop-jazz , ou bebop , ou rebop , ou simplesmente bop (TANNER; GEROW; MEGILL, 1988, p. 91), caracterizado por andamentos rápidos, leveza rítmica, melodias complexas e harmonias expandidas carregadas de dissonâncias, se consolidou como estilo entre 1935 e 1950 nos Estados Unidos, difundindo-se pelo mundo. Os encadeamentos do bop apresentam arquiteturas complexas com as harmonias expandidas pelo emprego de nonas, décimas-primeiras, décimas-terceiras. Os acordes trazem adições de dissonâncias resultantes da superposição dos harmônicos superiores, alterações das notas das tríades, assim como alterações das dissonâncias naturais ou diatônicas. Não raro, as dissonâncias se sucedem resultando em uma contínua tensão variando em intensidade, de acordo com os intervalos dissonantes utilizados. A música do jazz , de uma forma geral, bem como a música clássica de Gershwin, seduziu e inspirou Radamés Gnattali. Destaca-se, a seguir, a sequência de acordes do piano (c. 30 ao c. 34) demonstrando a aventada complexidade harmônica encontrada em Flor da Noite .

Exemplo Musical 2. Recorte da Partitura de Flor da Noite (c. 30 ao c. 34).

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3.2.2 Flor da Noite — Estrutura Geral da Peça

No intuito de facilitar a análise dos fonogramas relacionando-os com a partitura, optou-se por apresentar um quadro sucinto contendo o resumo da análise formal mostrando apenas a delimitação das seções e subseções da peça. Flor da Noite é uma pequena peça de 57 compassos (c.) estruturada em corte ternário, contendo pequena Coda: A-B-A’-Coda bem definidas em suas seções pertinentes e bem costuradas entre si. As partes dispõem-se como apresentado no Quadro 2.

Quadro 2. Forma Musical de Flor da Noite

A – c. 1 ao c. 19.3 — {a – c. 1 ao c. 10}; { a’ – c. 11 ao c. 19.3}; B – c. 19.4 ao c. 43 — {b1 – c. 19.4 ao c. 29.4}; { b2 – c. 29.4 ao c. 35}; { b3 – c. 36 ao c. 43}; A’ – c. 44 ao c. 52.1 Coda – c. 52.1 ao c. 57

3.2.3 Flor da Noite — Revisão Fonográfica — Análise Aural da Gravação de Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso

Apresenta-se a gravação de Flor da Noite na versão de Gnattali-Gomes Grosso. A partitura integral encontra-se no Anexo A deste trabalho.

Take 1. (00’ 00” a 03’ 36”) Flor da Noite — versão integral

Primeiramente faz-se a análise fonográfica do trecho correspondente à Seção A , em seguida os trechos correspondentes às seções subsequentes (B, A’ e Coda ), apresentando-se o Take correspondente a cada seção com a partitura autógrafa de Radamés. Em alguns casos foram feitos recortes mais detalhados a fim de evidenciar aspectos característicos das interpretações de Iberê e Radamés percebidos.

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Na peça Flor da Noite pode-se sentir a influência do jazz em relação à harmonização da melodia. A textura homofônica, com alguns contracantos na maior parte das vezes em fragmentos escalares de semínimas, oscila frequentemente em dissonâncias. Em Flor da Noite , os acordes normalmente densos ocupam a região média do piano alcançando raras vezes a região aguda. O papel do piano resume-se ao acompanhamento com alguns contracantos discretos em fragmentos de escalas ou mesmo appoggiaturas que, em vez de resolverem em consonâncias, encaminham-se para outras dissonâncias. Ressaltam-se as poucas intervenções em que o piano apresenta o tema ou uma escala, ou apenas arpejo. Apesar da harmonia com tratamento sofisticado, influenciada pelo jazz, e melodia complexas, a troca de valores de duas colcheias para quiálteras entre piano e violoncelono c. 16 e c. 17 (Exemplo Musical 3) deixa ao ouvinte um sabor levemente debussyiano . Entretanto, a brasilidade da obra está presente na linha melódica cujo contorno resulta na dramaticidade e plangência urbano-seresteira.

Exemplo Musical 3. Flor da Noite c. 16 e c. 17 .

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Take 2. (00’ 00” a 00’ 41”) Flor da Noite — Seção A

Exemplo Musical 4. Flor da Noite c. 1 ao c. 10.

Após um único compasso introdutório ao tema, em que o piano toca, inicia-se o solo de violoncelo (c. 2), com tema curto formado por um simples arpejo descendente do acorde de Ré Maior que termina na sétima menor dando a ideia de modo mixolídio, com temática de caráter modal. Radamés utilizou sequências harmônicas à maneira do jazz . O tema se repete uma terça menor abaixo com as mesmas relações intervalares conforme se vê na partitura (c. 4), estendendo-se até o c. 9. No c. 10 a frase do tema é relembrada pelo piano uma quarta aumentada abaixo. O Duo toca a seção A de forma romântica e em rubato , com características do swing específico de quem conhecia a origem do tema, um pregão. A pulsação escolhida pelo Duo em Flor da Noite só começa a ficar clara a partir do terceiro compasso.

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O violoncelista apresenta a nota mais aguda do tema (c. 2.1) com uma fermata que não está escrita. Certamente o parceiro de Radamés sabia a história do tema e cantou em seu instrumento “Oooolha a flor da noite...” Porém o arpejo descendente que se segue é tocado em andamento flutuante pelo violoncelo acompanhado pelo piano. Essa variação agógica executada pelos músicos não está escrita.

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A seguir, analisam-se separadamente os cinco primeiros compassos executados (c. 1 ao c. 5.3), e constata-se que, logo no início, a pulsação dada nos acordes introdutórios é totalmente ignorada após a entrada do tema do pregão feita pelo violoncelo.

Take 3. (00’ 00’‘ a 00’ 22’’) Flor da Noite — Seção A c. 1 ao c. 5

Exemplo Musical 5. Flor da Noite – c. 1 ao c. 5.

Desde o início, no c. 1, encontram-se liberdades de interpretação, não demarcadas pelo compositor na partitura autógrafa. Essas liberdades são pormenorizadas a seguir: 1. Os dois primeiros compassos são livres e plenos de rubato ; 2. Radamés toca os primeiros acordes da peça, tanto o acorde que contém acento, como o acorde de resolução, em mezzo forte , quase em forte . A dinâmica proposta é p (piano ). Musicalmente correto, devido ao acorde da resolução (c. 1.3) estar escrito no contratempo, formando síncope, que vai soar em todo o segundo compasso. A indicação P, então, pode ter sido sugerida por Radamés devido ao seu senso de acompanhamento. Essa indicação denotaria apenas o aspecto de delicadeza que ele talvez quisesse indicar; 103

3. Radamés escreve na partitura do piano, no c. 1, a dinâmica p (piano ). No 2º tempo desse compasso (c.1), ele escreveu um acento (>) na mão direita do piano. Esse acento de dinâmica requereria que o acorde seguinte, do terceiro tempo (sua resolução), fosse tocado com o som mais piano , de acordo com regras de fraseado e interpretação preconizadas por Mathis Lussy (1884). Na gravação, Radamés toca os dois acordes praticamente com o mesmo volume de som, procedimento recorrente na interpretação de trechos similares da peça. Cabe ressaltar que o acorde da resolução (c. 1.3) provoca uma síncope que é diluída no c. 2. Assim, o acorde tocado com leve acento e tenuto (não escrito), tem significado dinâmico expressivo; 4. A partir do c. 2, quando Iberê toca o tema (c. 1 e c. 2), onde está escrito na dinâmica, piano, ele toca pianíssimo e faz um grande crescendo na própria primeira nota. Essa é uma dinâmica que não está indicada na partitura, e é interessante porque, apesar disso, musicalmente está correta, afinal, no segundo compasso (para Radamés), na partitura do piano, não há movimento nenhum, existindo apenas uma suspensão ou prolongamento do valor do acorde. De acordo com as regras do guia de interpretação de Schnabel (WOLFF, 1972, p. 26), o início de uma frase, se tocada com acento indesejado, pode gerar o que ele chama de “sotaque” ou “barriga”. Quando o violoncelo entra, Iberê aproveitou a sonoridade em piano que provinha do primeiro compasso (acorde introdutório do piano) e escolheu começar em pianíssimo e imediatamente utilizar um crescendo na própria nota, ou seja, executou uma fermata não indicada que acrescenta quase um tempo no valor dessa nota. (Ouça-se: Take 3. 00’ 00’’ a 00’ 12’’). Isso foi uma característica expressiva que ele não repetiu no terceiro compasso, quando aparece o tema uma terça menor abaixo (c.3 e c.4), em que o piano tem movimento de semínimas. O Duo confirma a regra prática de execução de fraseado apresentada no guia de Schnabel, (e preconizada por Mathis Lussy), mantendo o diálogo simbiótico entre os intérpretes; 5. No c. 3 Radamés, desta vez, vai tocar bem a tempo . Isso ocorre porque o piano, a partir daí, apoia a frase do violoncelo com acordes em mínimas contendo um contracanto em semínimas na mão direita, com articulações de duas em duas notas, que não são executadas por Radamés; 6. A fermata não escrita e executada pelo violoncelo na primeira nota do c. 2 não é executada em c. 4, como seria esperado, embora o tema “Oooolha a flor da noite...” esteja repetido uma terça abaixo. Quando o tema surge pela segunda vez, o acompanhamento do piano tem movimento de semínimas na mão direita, e, só aí, o Duo estabelece claramente a pulsação da peça em andamento moderato . Percebem-se os dois compassos iniciais como uma introdução adlibitum . É interessante observar que Radamés não escreveu o que poderia ser um subtítulo

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para Flor da Noite : tema de pregão, uma informação que seria de utilidade para outros intérpretes pensarem na possibilidade da aludida fermata não indicada; 7. Em relação à partitura, pode-se dizer que os compassos c. 3 e c. 4 são executados de forma mais ritmicamente apropriada, se comparada apenas à partitura, e aos três primeiros compassos, que estão carregados de liberdade rítmica — swing ; 8. A variação agógica realizada pelo Duo não está, em nenhum momento, indicada com marcações tais como Tempo rubato , Tempo tenuto , livremente , entre outras. A única informação feita no que se refere ao andamento geral da peça está no início da música, com a indicação da palavra Moderato . Prossegue-se a análise aural pormenorizada apresentando-se os cinco compassos seguintes (c. 5.4 ao c. 10), e em seguida destacam-se algumas realizações interpretativas que diferem do que foi marcado no texto pelo compositor. No Take 4, a seguir, sentiu-se necessidade de ouvir-se a peça desde o início para que se pudesse perceber melhor as variações agógicas referentes à Subseção a’ que inicia-se na realidade na minutagem 00’ 22’‘.

Take 4. (00’ 00” a 00’ 41”) Flor da Noite — Seção A c. 5 ao c. 10

Exemplo Musical 6. Flor da Noite - c. 5.4 ao c. 10. 105

1. Nos dois compassos c. 5.4 e c. 6, como se pode observar na partitura, não existem indicações de agitando , porém, neste início anacrústico Iberê já começa a acelerar o andamento e agitar o fraseado. Iberê toca as tercinas do início da frase em acelerando; 2. Pode-se considerar que Iberê não realiza de fato a tenuta , que é indicada sob a nota Si bemol do último tempo do c. 6 (c. 6.4), se for comparada à primeira nota do tema, que ele executa em fermata (ou em tenuta exacerbada) e não há marcação alguma; 3. Iberê não faz a articulação indicada no c. 6.4, e sim um grande legato e agitando ininterrupto, só acalmando no final da frase, no segundo 5/4, em c. 9.4; 4. O agitando deveria ter começado no primeiro 5/4, em c. 7.3, depois da colcheia pontuada, conforme o texto; 5. O cedendo indicado no final do compasso c. 8.3 em 4/4 é ignorado pelo Duo, que prolonga o agitato até o c. 9.2 em 5/4 (compasso seguinte); 6. Em c. 8.4, Iberê usa as últimas tercinas como swing do agitato . Como um levare ; 7. Pode-se dizer que Iberê “troca” o cedendo que está escrito no compasso c. 8.3 por um cedendo feito no final do compasso c. 9, exatamente nas três últimas notas — nos dois últimos tempos do compasso, onde não há nenhuma marcação. Na verdade, Iberê fez o cedendo no local onde é musicalmente mais natural, só no finalzinho da frase, antes do piano solar a frase do canto do pregão “Olha a Flor da Noite”. Não se sabe por que razão Radamés escreveu o cedendo muito antes do local que seria natural e não modificou a partitura, já que na gravação eles tocam a frase de forma diferente do que está no manuscrito. Cogita-se que foi para dar ênfase ao tema que é apresentado de forma reduzida no piano.

3.2.3.1 Comentários de David Chew I — dez primeiros compassos executados

Sobre o fato de Radamés deixar na partitura marcações que ele mesmo não realizou tocando com Iberê, ouviu-se o violoncelista David Chew, que também gravou Flor da Noite . O comentário do violoncelista, em entrevista para esta pesquisa 51 , sobre a interpretação de Iberê, que difere da gravação feita pelo Duo Chew-Canaud é o seguinte:

51 A entrevista foi realizada no Rio de Janeiro, em 13 de janeiro de 2013.

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Eu gostei muito da frase do Iberê, como ele faz a frase mais rubato . Porém devo dizer que segui o que estava escrito, afinal a gente aprende nas escolas a fazer a frase do jeito que está escrita pelo compositor. Uma pessoa que pegue essa partitura e que seja bem minuciosa em respeitar a parte, jamais tocará como Iberê tocou (CHEW, 2013).

David prossegue com o comentário: Eu gravei com Radamés e Iberê na Orquestra da Cooperativa , no último concerto de Iberê na Sala Cecília Meireles, em 1985. Eu lembro que quando Radamés apaixonava-se por uma nota ou interpretação que não estivesse escrita por ele mesmo, ele dizia, “Ficou bom, tá bonito, pode fazer assim”, só que ele não mudava a partitura. Então, talvez as variações de dinâmica e fraseado feitas por Iberê na gravação de Flor da Noite , podem ser um caso semelhante. Então é por isso que se torna importante poder ouvi-los tocando, principalmente, porque se a pessoa for tocar como está na partitura vai tocar com menos swing (CHEW, 2013).

O tema de Flor da Noite era uma melodia conhecida pelos dois músicos, que sabiam de sua origem, um pregão, entoado por uma vendedora de pipocas da Bahia. Obviamente, como conhecedores do tema também sabiam como deviam entoá-lo. Por essa razão, considera-se que o tema é tocado com característica própria do swing inerente. Considera-se que Iberê e Radamés se sentiam à vontade em interpretar o tema como ele era cantado. Embora Radamés não tenha colocado no enunciado da partitura, a indicação, por exemplo, que Flor da Noite era um tema tirado de pregão, considera-se que essa informação seria útil para um músico não conhecedor de sua biografia ou de sua fonte de inspiração se aproximar do swing característico e inerente. A seguir, apresenta-se o Take 5, a partitura e a análise da Subseção a’’ (c. 11 ao c. 19.3).

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Take 5. (00’ 42” a 01’ 16”) Flor da Noite — Subseção a”’ c. 11 ao c. 19.3

Exemplo Musical 7. Flor da Noite – c. 11 ao c. 19.3.

As diferenças encontradas entre interpretação e partitura na Subseção a’’ são: 1. Embora menos enfaticamente, Iberê estendeu novamente o tempo da primeira nota do tema (c. 11), como se estivesse escrito uma fermata ou a palavra tenuta na nota; 2. No acompanhamento do piano nos compassos c. 12 e c. 13 existem ligaduras de duas em duas semínimas, o que sugeriria articulação de dois em dois tempos. Radamés toca-as sem a articulação escrita, como se fossem quatro tempos bem marcados. Isso em inglês chama-se “plodding ” que quer dizer andando, pé ante pé, andando pesadamente. Talvez nessa parte do acompanhamento do pregão, Radamés estivesse evocando o andar da vendedora de pipocas;

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3. Radamés escreveu um crescendo para Forte do c. 13 ao c. 14. Iberê não respeitou essa indicação. Ele fez sim um grande acelerando em direção à nota Lá Bemol do primeiro tempo do c. 15; 4. Na nota Lá Bemol do primeiro tempo do c. 14, Iberê a executa como tenuta , e isso não está indicado na partitura; 5. No compasso c. 17.4, existe uma articulação marcada na partitura do violoncelo, que pede um tipo de distinção na qual a arcada ligaria a colcheia do tempo anterior com a primeira nota da tercina. Está marcado, na partitura, um legato para a primeira nota da tercina e, para as outras duas, estão marcados staccati . Iberê realiza a frase exclusivamente em legato ; 6. No final da Subseção a’’ , no compasso c. 19, o piano de Radamés faz um cedendo não escrito na partitura. Pode ser que Radamés o tenha considerado óbvio, se tratando de um final de frase e de período. De qualquer forma isso não fica claro, uma vez que não foi indicado; 7. No mesmo compasso, no terceiro tempo (c. 19.3), na última nota da Seção A , Radamés executa uma fermata não escrita. Esse recorte pode ser verificado no final do Take 5, especificamente entre a minutagem 01’ 00” a 01’ 16”; 8. E, por fim, destaca-se que a nota do terceiro tempo c. 17.3 é tocada arpejada pelo piano. Isso também não foi devidamente indicado na partitura. A Seção B inicia-se em anacruse ao c. 19.4 e termina no c. 43. Essa Seção B compõe- se de três subseções: Subseção b1 (c. 19.3 ao c. 29); Subseção b2 (c. 29.4 ao c. 35); e Subseção b3 (c. 36 ao c. 43). A seguir, apresenta-se o Take 6 e a partitura correspondente.

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Take 6. (01’ 17” a 03’ 35”) Flor da Noite — Seção B c. 19.4 ao c. 43

Exemplo Musical 8.1 Flor da Noite – Seção B - c. 19.4 ao c. 43 .

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Exemplo Musical 8.2 – Flor da Noite – Seção B - c. 19.4 ao c. 43 (continuação)

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A Subseção b1 (c. 19.3 ao c. 29) consta de um desenvolvimento clássico com pequenos trechos ou blocos composicionais repetidos três vezes. Notam-se os desenhos dos contornos melódicos, do primeiro bloco, no c. 23.4 ao c. 25.2. O segundo bloco em c. 25.4 ao c. 27.2, a repetição do bloco reduzido em c. 27.4 ao c. 28.2 e o último bloco, também redução da última frase, no compasso c. 27.4 ao c. 30. A seguir apresenta-se o Take 7 , a partitura correspondente e a análise aural da execução, correspondente à Subseção b1 .

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Take 7. (01’ 17” a 01’ 48”) Flor da Noite — Subseção b1

Exemplo Musical 9. Flor da Noite – Subseção b1 - c. 19.4 ao c. 29.

1. Nota-se que o Duo começa os quatro primeiros compassos da Subseção b1 com a pulsação regular, porém em andamento M.M = 85 (semínima) muito mais rápido do que a pulsação inicial da peça, verificada na Seção A (c. 3 e c. 4) com andamento de aproximadamente M.M = 72 (semínima). Transparece uma atmosfera de agitato não marcada no texto; 2. Em c. 23.4 o Duo começa a fazer cedendo em cada trecho ou bloco de variações em contornos melódicos sem que estes estejam escritos no texto;

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3. Eles terminam a Subseção b1 com uma grande variação de tempo, um rallentando que não está marcado na partitura (c. 29). Iberê talvez tenha executado o trecho dessa forma para dar mais efeito aos harmônicos do final da frase; 4. Iberê executa o trecho indicado para ser tocado em harmônico uma oitava acima do que seria natural. Essa indicação não consta na partitura. Radamés simplesmente escreveu: harmônico mi-fá-ré. Isso foi uma liberdade na interpretação de Iberê.

***

A seguir, a Subseção b2 começa no quarto tempo do c. 29 em elisão. A partir do quarto tempo do c. 30, o violoncelo repete o mesmo inciso composto de quiálteras na parte aguda em accelerando até o rallentando proposto no final dessa subseção no compasso c. 35. A harmonia nesse trecho tem acordes de mesma natureza, porém com disposições diferentes, em contraponto com o violoncelo.

Take 8. (01’ 48” a 02’ 06”) Flor da Noite — Subseção b2

Exemplo Musical 10. Flor da Noite - Subseção b2 - c. 29.4 ao c. 35 .

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1. Nota-se que o Duo começa a frase a partir de c. 29.4 em andamento vivo e acelerado, que na verdade está indicado um compasso depois, em c. 31; 2. No compasso onde está indicado VIVO (c. 34) tem uma indicação de forte (F) escrita na barra de compasso do violoncelo. Iberê, em vez disso, executa a frase em retenu e toca algumas notas ligeiramente tenutas ; 3. O rallentando no violoncelo está escrito para começar em c. 35.2, porém Iberê continua com o retenu no início de c. 35 e precipita as últimas quatro semicolcheias (c. 35.4) para a nota ré do c. 36.1, como se estas fossem uma anacruse. Iberê toca com a intenção de finalização da frase.

****

A Subseção b3 é tética e inicia-se no c. 36. Consta de arpejos do violoncelo e de ampliação do mesmo inciso da Subseção b2 (c. 20 e c. 21), por repetição, dos desenhos melódicos em quiálteras. No c. 43, os desenhos em quiálteras funcionam como uma preparação para a próxima seção, reexposição, Seção A’, no compasso seguinte (c. 44).

Take 9. (02’ 03” a 02’ 34”) Flor da Noite — Subseção b3

Exemplo Musical 11. Flor da Noite – Subseção b3 – c. 36 ao c. 43.

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Observa-se que, apesar de na sua escrita Radamés ter situado claramente o início da Subseção b3 (c.36), inclusive colocando a indicação Tempo , Iberê toca a nota Ré 1 do c. 36 como se ela pertencesse ao fim da frase anterior ( Subseção b2 ). Ou seja, auralmente parece que a Subseção b3 começa em c. 37. Existem outras pequenas diferenças interpretativas em relação ao texto correspondente à Subseção b3 . 1. Nos compassos c. 37 e c. 38 o violoncelo toca em legato e na partitura não há ligadura para a frase; 2. Nos compassos c. 39 e c. 40 Iberê não faz o cedendo escrito; 3. Nos compassos c. 42 e c. 43 Iberê faz um grande crescendo e rallentando que não estão marcados por Radamés na partitura. Observa-se que, na partitura do violoncelo (c. 40), não estão escritas indicações de variações agógicas ( ced... — tempo — ced... ). Porém elas estão na partitura do piano (grade) na pauta do violoncelo (vide Exemplo Musical 8, c. 40). Nesse caso, não se pode dizer que Iberê deixou de tocar o que foi escrito. Esse fato pode gerar controvérsias em futuras interpretações.

3.2.3.2 Comentários de David Chew II

Conforme aventou David Chew na entrevista mencionada anteriormente neste trabalho, Radamés teria concordado com a versão de Iberê ou teria se esquecido de indicar na partitura do violoncelista as mesmas indicações que escrevera na própria (CHEW, 2013). O fato é que o Duo gravou esse trecho da peça (c. 40) com a interpretação do solista dessemelhante à grade, porém Radamés manteve as indicações ( ced... — tempo — ced... ) originais. Radamés provavelmente tenha achado válido gravar a versão não escrita. Este fato corrobora a importância de uma revisão fonográfica na obra do autor.

***

A seguir, a Seção A’ inicia-se no c. 44 apresentando o tema novamente no violoncelo, com as notas um tom abaixo e com as mesmas relações intervalares da Seção A . A ampliação do tema assemelha-se à frase da Seção A , porém com harmonia diversa, terminando no c. 52. 115

Take 10. (02’ 30” a 03’ 35”) Flor da Noite — Seção A’

Exemplo Musical 12. Flor da Noite – Seção A’ - c. 44 ao c. 52.1 .

As diferenças entre execução e texto evidenciadas são: 1. Iberê toca o tema principal reexposto no compasso c. 44 sem rubato . Radamés puxa o andamento com o movimento das colcheias do acompanhamento; 2. Nestas colcheias existem articulações de duas em duas notas e Radamés as faz todas ligadas. (c. 45 e c. 46); 3. No compasso c. 45 e c. 46 existem contracantos nas vozes intermediárias — na mão direita do piano — em colcheias. Essa sequência de colcheias na reapresentação do tema ( Seção A’ ) provocou um movimento e um balanço na interpretação do violoncelo, que, talvez por essa razão, faz o tema a tempo , diferentemente do trecho similar da Seção A (c. 2 e c. 3) onde ele

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havia tocado com muito rubato e feito uma grande fermata que aumentou em um tempo o valor da nota. Considera-se aqui o swing característico; 4. A nota tenuta , que está indicada na partitura no c. 48.4, foi realizada enfaticamente por Iberê no lugar em que está marcada, ao contrário do que tinha feito na exposição do tema, Seção A (c. 6.4); 5. Iberê faz um acelerando no compasso c. 49 que não está escrito; 6. Iberê valoriza a entrada do ritmo 5/4 (c. 49) fazendo uma nota tenuta enfatizada. Pode-se considerar que isso é uma característica de swing , pois ele dá um movimento na alternância do 4/4 com o 5/4. No 5/4 ele puxa o andamento para frente e depois cede; 7. Ele faz o cedendo escrito para ser realizado no c. 50 um compasso depois (c. 51), em direção ao c. 52. Ou seja, ele só faz o cedendo no final da frase (c. 51), para a entrada da Coda (c. 52). No cedendo escrito, o Duo toca acelerando . O cedendo só é de fato realizado pelo violoncelo e pelo piano no c. 51.3. A Coda , do c. 52 até o c. 57, apresenta nos seus três primeiros compassos (c. 52, c. 53 e c. 54) o tema reduzido na voz do piano que o toca arpejado três vezes: em Fá Maior, em Si Bemol Maior e em Ré Bemol Maior. O violoncelo apresenta contraponto com arpejos ascendentes nos últimos incisos dos compassos. Em seguida, nos três últimos compassos (c. 55, c. 56 e c. 57), em que ocorre a cadência perfeita, o piano toca um acompanhamento similar ao do início da peça, em contraponto com trinados do violoncelo. A seguir o Take 11, as partituras correspondentes e a análise aural da Coda.

Take 11. (03’ 05” a 03’ 35”) Flor da Noite — Coda

Exemplo Musical 13. Flor da Noite – Coda – c. 52 ao c. 57 .

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1. Na Coda (c. 52 ao c. 57) no c. 52, c. 53 e c. 54, o piano apresenta o tema realizando um crescendo que não foi marcado na partitura. E no c. 56 e c. 57, realiza um grande decrescendo na sonoridade em direção a um pianíssimo , sendo que essa dinâmica realizada, também não foi marcada no texto; 2. O andamento da Coda com o tema de Flor da noite é tocado pelo piano a tempo ; 3. Iberê nas notas em sequência ascendente que levam aos trinados (em contracanto com o solo do piano) acrescenta coloridos ao som que caminha para o pianíssimo final. Essa interpretação não foi marcada na partitura; 4. Iberê insere na última nota do violoncelo uma appoggiatura. A nota fá4 é tocada duas vezes, depois de ser trinada no compasso anterior. Isso não está escrito e foi uma das liberdades tomadas pelo violoncelista com o consentimento do autor- intérprete. Apesar da virtuosidade técnica exigida pela obra, os intérpretes executam-na com primor, de maneira livre, não-metronômica, evidenciando um swing característico, ou seja, executam-na utilizando a agógica em proporções naturais, ainda que exacerbada no que se refere ao texto. Radamés Gnattali, tal qual outros compositores, como Chopin nas Mazurkas , não indica exatamente algumas modificações correspondentes a suas intenções, deixando livre a imaginação dos intérpretes. Considera-se, entretanto, que o autor poderia ter indicado que o tema foi originado de um pregão, pois em sua própria interpretação deu à peça caráter descritivo. Nos capítulos 3 e 4 discorre-se sobre as interpretações e a validade das análises aurais — parte da revisão fonográfica como ferramenta de auxílio interpretativo.

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3.2.4 Flor da Noite — Análise Aural sucinta e comparativa da peça na interpretação do Duo Chew-Canaud no CD Obra Completa para Violoncelo e Piano de Radamés Gnattali — 2006

Take 12. (00’ 00’’ A 04’26’’) Flor da Noite — versão integral Chew-Canaud (partitura integral editada, vide Anexo D)

A análise do fonograma é baseada na dinâmica, acentos, ritmo e agógicas realizadas na interpretação do Duo Chew-Canaud do CD Obra Completa para Violoncelo e Piano de Radamés Gnattali – 2006. É interessante destacar-se que estes intérpretes, na ocasião da gravação realizada para o lançamento do referido CD em 2006, ainda não conheciam a origem do tema da peça Flor da Noite . Tampouco tiveram a oportunidade de ouvir a rara gravação em anexo, feita quarenta anos antes, pelo próprio compositor com seu parceiro Iberê Gomes Grosso. O Duo Chew-Canaud dedicou-se a interpretá-la procurando obedecer às indicações da partitura original manuscrita para violoncelo. Entretanto, a partitura do acompanhamento do piano não foi a autógrafa (usada por Radamés), e sim uma versão transcrita para a tonalidade do violoncelo, extraída da edição para violino e piano publicada por Irmãos Vitale — copyright 1940 — para Brasil e Portugal. Cabe ressaltar que existem algumas diferenças apenas no acompanhamento do piano entre a partitura editada e a partitura manuscrita, utilizada pelos pianistas na gravação do LP e na gravação do CD. A partitura do piano editada por Irmãos Vitale está no Anexo D deste trabalho. Na interpretação registrada por David Chew e Fernanda Canaud, a peça Flor da Noite é executada com duração 04’ 33’’, ou seja, mais de um minuto da duração da gravação do compositor com Iberê. A principal diferença desta versão está na menor ocorrência de variações de andamento e de agógica. Chew-Canaud utilizam a pulsação em torno de M.M. = 58 (semínima), porém sem grandes alterações no andamento geral da peça. Analisando-se comparativamente apenas os dez primeiros compassos de Flor da Noite , percebe-se que, se um violoncelista seguir a partitura de acordo com as indicações feitas pelo autor, provavelmente dará uma versão bastante diferente da interpretação de Iberê Gomes Grosso. Por exemplo: 119

1. A primeira nota do tema tocada pelo violoncelo no compasso c. 2.1 é tocada por David Chew sem a fermata e sem o crescendo feitos por Iberê, que provavelmente conhecia a origem do tema (pregão “Oooolha a Flor da Noite”) ou pelo fato de conhecer o autor e tocar com ele; 2. Na apresentação do tema (nos cinco primeiros compassos), a pulsação é regular sem alterações agógicas marcantes; 3. Os acentos, os fraseados e a dinâmica são respeitados de acordo com a forma que foram escritos, sem tomar liberdades; 4. A nota marcada tenuta para o violoncelo e o piano no c. 6.4 é feita de acordo com a partitura, ao contrário da versão de Iberê e Radamés; 5. O andamento é mais lento e o agitando do c. 7 é feito sem que a pulsação seja flutuante; 6. O violoncelo executa o cedendo do c. 8.3 ( ced. ..) no lugar marcado, estendendo-o até o c. 10; 7. Chew faz a articulação das tercinas conforme o que está escrito (c. 9), ou seja, a ligadura das duas primeiras notas e a separação da terceira nota da tercina. Iberê toca agitato e em legato ; 8. No c. 10, na lembrança do tema, o piano recupera a pulsação em vez de fazer rallentando e fermata no acorde em c. 10.4, conforme a versão de Radamés. O piano entra a tempo fazendo a citação do tema; 9. A dinâmica é mantida em piano , conforme o escrito. Na versão de Iberê e Radamés constatou-se que a dinâmica da interpretação oscilou entre piano , forte e mezzo forte .

3.3 Modinha & Baião — A obra e sua execução

Radamés Gnattali dedicou Modinha & Baião (1952) ao violoncelista Gregory Benko. A obra estilizada foi inspirada nos gêneros homônimos. Está dividida em duas partes, Modinha em andamento lento, e a outra, Baião , em andamento rápido. A última inspirada no gênero baião, muito em voga na década de 1950. A gravação da peça Modinha & Baião tem duração total de 07’ 22’’. No LP, ela é apresentada em duas faixas distintas: a terceira faixa tem a Modinha com 04’ 00” e a quarta faixa tem o Baião com 03’ 20’’.

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Para as análises dos fonogramas dessa obra, fazem-se algumas considerações sobre a estrutura geral de cada uma das peças e em seguida a revisão fonográfica propriamente dita. Primeiramente apresenta-se a Modinha e depois o Baião .

3.3.1 Modinha — Algumas considerações sobre a peça

A modinha possui um caráter cantábile, seresteiro e plangente e o acompanhamento discreto do piano permite certa liberdade de interpretação ao violoncelo. A melodia ou o tema possui um caráter melancólico, quase dramático com um acompanhamento austero e obscuro, tornando-se mais claro no decorrer da obra, porém voltando à melancolia inicial, no final da peça. A escolha da tonalidade menor confere certa dramaticidade ao movimento, sobretudo na Introdução e na Coda . A utilização de toda a extensão do violoncelo com aproveitamento do colorido das regiões grave, média e aguda do instrumento, em perfeito equilíbrio com o piano, resulta em clareza composicional e objetividade invulgar no que se refere à apresentação das seções. Destaca-se que Radamés Gnattali empregou na peça procedimentos da harmonia funcional e, na Seção B que é iniciada com solo do piano, imprimiu caráter improvisativo à melodia. A rítmica característica do gênero modinha apresenta-se de forma evidente e a temática tem caráter regionalista voltada para a música urbana paulista, carioca e nordestina.

3.3.2 Modinha — Estrutura geral da peça

No intuito de facilitar a análise dos fonogramas relacionando-os com a partitura, optou-se por apresentar um quadro sucinto contendo o resumo da análise formal mostrando apenas a delimitação das seções e subseções da peça. A Modinha é uma peça de 60 compassos de estrutura ternária, contendo Introdução e Coda , tal como as formas tradicionais ( Introdução A B A’ Coda ), contendo frases e períodos regulares, irregulares e assimétricos. As partes dispõem-se como no quadro a seguir:

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Quadro 3. Forma Musical de Modinha

Introdução — c. 1 ao c. 7 A — c. 8 ao c. 23 B — c. 24 ao c. 37 A’ — c. 38 ao c. 53 Coda — c. 54 ao c. 60

3.3.3 Modinha — Revisão Fonográfica — Análise Aural da Gravação de Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso

Apresenta-se a gravação integral de Radamés Gnattali e Iberê Gomes. A partitura autógrafa completa encontra-se no Anexo B.

Take 13. (00’ 00” a 04’ 14”) Modinha — versão integral

Primeiramente faz-se a análise fonográfica do trecho correspondente à Introdução da Modinha , em seguida os trechos correspondentes às seções subsequentes (A, B, A’ e Coda ), apresentando-se o Take correspondente a cada seção com a partitura autógrafa de Radamés. Em alguns casos foram feitos recortes mais detalhados a fim de evidenciar aspectos característicos das interpretações de Iberê e Radamés. A Introdução (c. 1 ao c. 7) possui melodia com caráter melancólico, quase dramático com um acompanhamento austero tornando-se mais claro nas seções subsequentes. Consta de seis compassos em que o violoncelo apresenta melodia seresteira sobre um pedal grave da nota Lá com um desenho em contratempo, e o sétimo compasso apresenta um desenho melódico de ligação para a Seção A . Embora apenas na parte do acompanhamento do piano Radamés tenha escrito indicações de legato e marcato , o solo do violoncelo é tocado de forma appassionata , evocando dramaticidade. A partitura autógrafa tem indicação metronômica M.M. = 68 (semínima), que é totalmente ignorada pelo Duo. O autor gravou com Iberê Gomes Grosso a introdução em M.M. = 58 (semínima), aproximadamente.

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Take 14. (00’ 00’’ a 00’ 34’’) Modinha — Introdução

Exemplo Musical 14. Modinha – (c. 1 ao c. 7).

Logo no início, constatam-se liberdades expressivas na interpretação do Duo, que não estão claramente evidenciadas nas marcações da partitura autógrafa de Radamés. 1. No c. 1 o violoncelo faz um grande acento tenuto na segunda colcheia e essa liberdade expressiva muda o valor da nota para colcheia pontuada; 2. No contraponto do acompanhamento existem as indicações mezzo forte , ligado e marcado e Radamés toca non legato , com as colcheias encurtadas e na dinâmica ele toca em Forte ; 3. A respiração indicada por uma vírgula no c. 2.4, na parte do violoncelo, não é realizada. Iberê faz uma grande frase em legato até o c. 3.3. Só então ele respira; 4. No quarto tempo do c. 3 Iberê toca a colcheia pontuada como nota tenuta , sem que isso esteja indicado na parte; 123

5. Tanto no c. 2 como no c. 4 Iberê toca as semicolcheias sem a articulação indicada. Ele as faz como um grande legato ; 6. O último tempo do c. 5 Iberê toca as semicolcheias em rubato ; 7. O Duo faz um leve rallentando antes do c. 6 que é perfeitamente justificável por se tratar do final da Introdução , porém isso não foi marcado na partitura; 8. Iberê toca as notas de ligação para a Seção A , no c. 7 em rubato.

****

A Seção A (c. 8 ao c. 23) apresenta textura homofônica e acompanhamento menos sombrio, com contracantos discretos, mantendo a pulsação rítmica da peça. O equilíbrio entre melodia e acompanhamento, aliado a poucas indicações de dinâmica e agógica, confere fluidez às dissonâncias. O piano limita-se à região central do instrumento, à maneira da harmonia funcional. A Seção A começa no c. 8 e consiste de um período binário com duas frases de quatro compassos. A primeira frase (c. 8 ao c. 15) é repetida com ligeiras modificações nas frases e no acompanhamento (c. 16 ao c. 23). A seguir o Take 15 e a partitura da Seção A (c. 8 ao c. 25) para análise aural.

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Take 15. (00’ 08” a 01’ 38”) Modinha — Seção A

Exemplo Musical 15.1. Modinha (c. 8 ao c. 20).

Exemplo Musica 15.2. Modinha (c. 21 ao c. 23, continuação do exemplo). 125

As liberdades interpretativas percebidas que não estão marcadas no texto são: 1. Na Seção A o Duo diminuiu o andamento de M.M. = 58 (semínima) para M.M. = 54 (semínima) utilizando grandes oscilações agógicas; 2. Chama-se a atenção, no acompanhamento do piano, para a articulação que está indicada na partitura, no c. 8, que não é executada. Para as seis colcheias, três em staccato e três em legato , ele usa o staccato apenas nas duas primeiras, apoia a terceira colcheia ligando-a as outras três do compasso. Ele faz um leve acento na terceira colcheia (c. 8.3), em legato com as notas cromáticas que se seguem, em vez de tocá-la em staccato conforme está escrito, e assim o faz em toda a peça quando esse desenho aparece; 3. No c. 9 as tercinas do quarto tempo (c. 9.4) são tocadas com um ligeiro acelerando causando efeito interessante, característico do swing inerente. As tercinas escorregam para o baixo no acompanhamento à maneira típica do pianeiro na música popular; 4. Em contrapartida, Iberê toca a primeira nota do c. 10 com uma pequena fermata (ou pode- se considerar como nota tenuta ), e com isso equilibra-se a frase, como num diálogo, entre o violoncelo e o piano; 5. Todas as vezes que aparecem colcheias pontuadas seguidas de semicolcheias Iberê as executa como nota tenuta (c. 8.4; c. 10.4; c. 16.4; c. 18.4); 6. A maioria das articulações escritas nas tercinas, por exemplo, a do c. 17, não são realizadas. Iberê as toca em legato ; 7. No c. 21, Iberê separa os intervalos melódicos com ligaduras de duas em duas notas, bem como utiliza o glissando nos intervalos de mais de quarta justa no violoncelo, gerando um efeito muito expressivo. Esta articulação não está escrita no texto por Radamés.

****

A Seção B (c. 24 ao c. 37) inicia-se com solo de piano com caráter de improvisação. Impregnada de appoggiaturas expressivas, apresenta também cromatismo da linha melódica na extensão de duas oitavas da região médio-aguda do piano. A seção tem duas subseções, Subseção b1 (c. 24 ao c. 31) e Subseção b2 (c. 32 ao c. 37) de oito e seis compassos, respectivamente. A Subseção b1 apresenta indicação Pouco mais e inicia com solo de piano que transmite caráter tanto improvisativo quanto virtuosístico à frase. Nessa subseção, o violoncelo está em contracanto.

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Take 16. (01’ 37” a 02’ 09”) Modinha — Seção B — Subseção b1 c. 24 ao c. 31

Exemplo Musical 16. Modinha (c. 24 ao c. 31).

Perceberam-se poucas diferenças no que se refere à interpretação do Duo Gnattali- Gomes Grosso em relação à partitura. 1. Pode-se notar que na interpretação de Gnattali não há mudança de andamento e sim uma execução em que o compositor-intérprete faz modificações agógicas com bastante swing e virtuosismo; 2. No c. 29, após fazer em tenuta a primeira nota das quatro colcheias do terceiro tempo (c. 29.3), Iberê também executa um pocoacelerando , justamente onde Radamés escreveu cedendo ; 3. Iberê inicia no lugar do cedendo escrito, um longo rallentando (a partir do c. 29.4) até o final da subseção (c. 31), que não está indicado; 4. A dinâmica F (forte ) é indicada no c. 30, mas Iberê tocou em mezzo forte e, em seguida, ainda no mesmo compasso, executa um diminuendo . 127

A Subseção b2 (c. 32 a c. 37) começa no A Tempo e termina em cadência suspensiva apresentando notas de ligação para a Seção A’ . Nessa subseção, o solo é do violoncelo com acompanhamento do piano. A seguir o Take 17 e a partitura da Subseção b2 (c. 32 a c. 37) para análise aural.

Take 17. (02’ 09” a 02’ 32”) Modinha — Subseção b2

Exemplo Musical 17.1 Modinha (c. 32), continuação a seguir. 52

Exemplo Musical 17.2 Modinha – (c. 33 ao c. 37, continuação).

52 O Exemplo Musical 16. Seção b2 foi propositalmente recortado para facilitar a audição e a leitura da partitura concomitantemente.

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Em toda a Subseção b2 , o Duo toca as articulações e dinâmicas escritas, o que prova que a escrita de Radamés, por si, já favoreceria a reprodução de swing , ou seja, ela é uma escrita idiomática. Contudo, perceberam-se algumas inflexões naturais não escritas, porém musicalmente claras e compreensíveis. A Seção A’ inicia-se no c. 38 e vai até o c. 51, idêntica à Seção A . Na verdade é um trecho com indicação Al segno (Ritornelo ) no qual a Seção A’ é igual à Seção A , à exceção dos dois últimos compassos (c. 51 e c. 53.1) que preparam para a entrada da Coda . A seção final ( Coda ) começa com a mesma nota que termina a Seção A’ no c. 53 e termina no c. 59. Essa parte foi quase integralmente retirada da Introdução , à exceção dos dois últimos compassos em que o piano, em vez de executar um acorde suspensivo, apresenta a cadência final. A seguir, apresentam-se o Take 18 e a partitura da Seção A’ e da Coda para as análises.

Take 18. (02’ 32” a 04’ 14”) Modinha — Seção A’ e Coda.

Exemplo Musical 18.1. Modinha (c. 38 ao c. 50 e a seguir continua Seção A’ até c.53 ). 129

Exemplo Musical 18.2. (continuação da Seção A’ até c. 53) e Coda (c. 54 ao c. 60).

A Seção A’ e a Coda são executadas pelo Duo Gnattali-Gomes Grosso com poucas diferenças em relação à partitura autógrafa, apenas três foram percebidas na análise aural: 1. No c. 48.4, a semicolcheia do quarto tempo é tocada por Iberê como uma nota tenuta exacerbada; 2. No c. 51, Iberê faz um grande rallentando não escrito;

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3. A Coda pede a dinâmica em pp (pianíssimo ) e o Duo toca variando a sonoridade entre o piano e o mezzo Forte , relembrando a dinâmica da introdução, com sonoridade encorpada, só fazendo o pianíssimo escrito no último compasso depois do F (forte ). Iberê e Radamés fazem algumas notas tenutas que são justificáveis no gênero modinha e as variações de tempo e agógica parecem bastante naturais, não carecendo, neste caso, de serem exaustivamente marcadas pelo compositor. Comenta-se que, segundo Mário de Andrade, “em geral nos últimos tempos dos compassos das nossas modinhas, convencionalmente, torna-se natural executarem-se notas tenutas ” e “[...] uma rítmica mais livre, sem medição isolada musical era mais de nossa tendência” (ANDRADE, 2006, p. 25). Falando sobre a influência portuguesa que permaneceu na música nordestina, no quaternário gaúcho, nas modinhas, entre outros gêneros, ele destaca: É na rítmica dessas manifestações principalmente que a gente encontra base nacional por onde variar os metros. A própria invenção mais livre do criador individual lhe dará quando sair do característico popular a variedade métrica que o populário não fornece (ANDRADE, 2006, p. 31).

Sobre a dramaticidade melódica das modinhas brasileiras, Andrade fala: “a melódica das nossas modinhas principalmente, é torturadíssima e isso é uma constância” (ANDRADE, 2006, p. 36).

3.3.4 Modinha — Análise Aural sucinta da peça na interpretação do Duo Chew-Canaud no CD Obra Completa para Violoncelo e Piano de Radamés Gnattali — 2006

Take 19. (00’ 00’’A 04’ 30’’) Modinha — versão integral Chew-Canaud.

Na interpretação registrada por David Chew e Fernanda Canaud no CD Obra Completa para violoncelo e Piano de Radamés Gnattali , a Modinha é executada com duração 03’ 58’’. A versão de Radamés e Iberê tem duração 04’ 16’’, ou seja, uma diferença de dezoito segundos (18’’). A principal diferença entre as duas versões está na menor variação agógica da execução do Duo Chew-Canaud. A versão de Radamés e Iberê está com a pulsação mais livre e também com mais swing . O Duo Chew-Canaud preocupou-se em realizar as marcações do compositor. Por esta razão, são sensíveis as diferenças interpretativas, das quais se apresentam apenas alguns exemplos. 131

Take 20. (00’ 00” a 00’ 31”) Duo Chew-Canaud — Introdução (c. 1 até c. 7)

Exemplo Musical 19. Modinha (c. 1 ao c. 7).

1. O andamento da Introdução e da Coda é centrado no andamento indicado pelo compositor, MM. = 68 (semínima); 2. O Duo executa a Introdução (c. 1 ao c. 7) com menos variações agógicas; 3. O acompanhamento do piano é tocado mais a tempo e são realizados o ligado e marcado indicados pelo compositor na partitura (c. 1); 4. As ligaduras de articulação nas semicolcheias do c. 4 são realizadas pelo violoncelista tal qual é pedido na partitura; 5. As articulações marcadas para o piano no acompanhamento (c. 8 e c. 16) são realizadas. Essa é uma característica da escrita que permite ao acompanhador swingar . Talvez Radamés não tenha se importado em mostrar claramente em sua execução essa articulação marcada por ele próprio, porque o swing já fazia parte de sua musicalidade. Supõe-se que Radamés escreveu as articulações para que outro pianista pudesse fazer esse acompanhamento o mais próximo possível do swing característico;

132

6. David executa a nota sol do primeiro compasso como tenuta (não escrita), tal qual Iberê. Porém, David canta a nota sol que está no quarto tempo, sem modificar o seu valor. Isso é uma característica da modinha; 7. O levare do segundo compasso, depois da vírgula de respiração, separando a semicolcheia da colcheia pontuada do terceiro tempo, está mais perceptível (c. 2 – c. 3), comparada à execução de Iberê.

Take 21. (00’ 28” a 01’ 42”) Duo Chew-Canaud — Seção A (c. 8 até c. 23)

Exemplo Musical 20.1. Modinha (c. 8 ao c. 23) 133

Exemplo Musica 20.2. Modinha (continuação do exemplo c. 8 ao c. 23).

1. No c. 8 e c. 16, o piano executa bem claramente a articulação escrita. Essa pontuação para o piano caracteriza uma escrita que possibilita a intenção de swing . Na execução de Radamés, ele não se importou em mostrar tão claramente a articulação, porque, devido a sua formação descrita e comentada no perfil biográfico deste trabalho, sabe-se que ele tocava naturalmente com swing . Ele talvez não tivesse essa preocupação porque o swing inerente era naturalmente conhecido e executado por ele. Esse tipo de indicação (de articulação) teria sido de bom proveito para que outros pianistas pudessem realizar o swing revelado em suas execuções; 2. Pode-se dizer que do c. 8 ao c. 23, o Duo Chew-Canaud procurou seguir o que está indicado na partitura.

Take 22. (01’ 42” a 02’ 17”) Duo Chew-Canaud — Subseção b1 (c. 24 até c. 37)

Exemplo Musical 21. Modinha – Subseção b1.

134

1. O Duo Chew-Canaud faz o andamento Pouco Mais como está indicado, porém com a pulsação constante, iniciando o cedendo exatamente no local indicado na partitura; 2. No c. 27, o piano faz duas notas tenutas no quarto tempo, que não estão escritas, embora de forma natural uma vez que elas são referentes ao término da frase; 3. No c. 30, o Duo executa o ( f) Forte que está escrito; 4. No c. 31.4, onde Iberê tratou as duas notas da tercina como um levare para o ATEMPO (Subseção b2 ) do c. 32, David executa ainda como cedendo , pois considerou o que foi escrito na partitura; Na Subseção b2 , Seção A’’ e Coda não foram percebidas diferenças significativas entre as gravações de Chew-Canaud e as de Gnattali-Gomes Grosso. Destaca-se apenas que nas tercinas do baixo no acompanhamento do piano c. 39.4 e c. 47.4, apesar de estar escrito legato, a pianista tomou a liberdade de tocar non legato , imaginando as cordas de um violão de sete cordas.

3.3.4.1 Comentários de David Chew III (interpretações de Modinha )

As palavras do violoncelista David Chew, a seguir, são tiradas da entrevista concedida à autora da pesquisa. David faz algumas considerações sobre sua execução da Modinha e compara-a com a versão de Iberê. Ambos, eu e Iberê, na Coda ao invés de fazermos pianíssimo como está marcado, tocamos com sonoridade bem presente. Essa música é mais simples de analisar e interpretar porque as delimitações das seções estão bem definidas. Em comparação com Flor da Noite , as seções estão mais evidentes para os ouvintes. A Modinha tem um modelo clássico de construção (forma) e por essa razão, se torna naturalmente mais fácil de perceber onde fazer um rallentando natural. Curioso é que Iberê nem sempre faz as terminações em rallentando , que seria a interpretação mais próxima do que Radamés anotou na partitura, sobretudo quando ele indica A tempo (CHEW, 2013).

David destaca as peças de movimento lento Modinha e Flor da Noite . Comparando a Modinha com Flor da Noite , que são duas peças com movimentos lentos, Flor da Noite se torna mais difícil do intérprete se distanciar da partitura, não tendo o conhecimento de que o tema é tirado de um pregão, ao passo que na peça Modinha , o próprio nome já define o gênero e isso embute a maneira dolente de interpretar. O fato do gênero musical (modinha) ser conhecido faz com que o intérprete se arrisque ou ouse um pouco mais no que se refere a ele dar expressão ao que sente e entende ser característico do estilo de uma modinha (CHEW, 2013).

135

3.3.5 Baião — Algumas considerações sobre a peça

No Baião , Gnattali utiliza francamente os modos nordestinos em linguagem muito mais simples e popular do que na Modinha . As passagens cromáticas se devem, sobretudo, à variedade de transposições e alterações do modo lídio e mixolídio, facilmente identificados mesmo em pequenas passagens escalares. Gnattali não utilizou uma constância rítmica característica da música popular para construir seu baião. Embora empregasse elementos estéticos nordestinos, como a escolha da rítmica, pode-se perceber que as frases feitas por grupos de semicolcheias aparecem com as acentuações deslocadas, configurando, dessa forma, uma estilização do ritmo tradicional de baião. A textura do baião é homofônica com poucas passagens em contracantos. O papel do piano é quase exclusivamente reservado aos acordes nos tempos fortes, ritmos divididos para as duas mãos e poucas intervenções ocupando os contratempos. Os acordes não são densos, deixando grande parte da música entregue aos ritmos. A harmonia, embora usando poucas dissonâncias, é variada dando suporte às várias modificações efetuadas nas escalas modais. Sua estrutura complexa não compromete a fluência do discurso, pois não apresenta prolixidade, facilitando assim a assimilação das frases mesmo quando são irregulares ou assimétricas.

3.3.6 Baião — Estrutura geral da peça

No intuito de facilitar a análise dos fonogramas relacionando-os com a partitura, optou-se por apresentar um quadro sucinto contendo o resumo da análise formal mostrando apenas a delimitação das seções e subseções da peça. O Baião tem 212 compassos, divididos em seções e subseções, com quantidades variadas de compassos por seção e subseção, que são bem costuradas e entremeadas por pequenos trechos com funções de ligação, transição, preparação e finalização. A estrutura geral apresenta: Introdução, Seção A , Seção B , Se ção A’ e Coda . As partes estão dispostas da seguinte maneira:

136

Quadro 4. Forma Musical do Baião

Introdução = i1 (c. 1 ao c. 5) — i2 (c. 5 ao c. 10) Seção A = a1 (c. 11 ao c. 27.1) — transição (c. 27 ao c. 36) — a2 (c. 37 ao c. 45) — transição (c. 45.2 ao c. 48) — a3 (c. 49 ao c. 65.1) — transição (c. 65.1.2 ao c. 68) — a4 (c. 69 c. 81.1) — transição (c. 81.1.2 ao c. 86.1). Seção B = b1 (c. 86.2 ao c. 98.1) — b2 (c. 98.2 ao c. 110) — b3 (c. 110.2.2 ao c. 119.1) — b4 (c. 119.2 ao c. 125) — b5 (c. 125.2 ao c. 134) — ligação (c. 135 e c. 136). Seção A’ = a’1 (c. 137.1 ao c. 153) — transição (c. 153.2 ao c. 162.1) — a’2 (c. 162.2 ao c. 169.1) — a’3 (c. 169.2 ao c. 179.1) — transição ( 179.1 ao c. 182)— a’4 (c. 183 ao c. 194) — transição (c. 195 ao c. 200.1) Coda . = (c. 200 ao c. 212).

3.3.7 Baião — Revisão Fonográfica —Análise Aural da Gravação de Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso

Apresenta-se a gravação integral do Baião na versão de Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso (do LP). A partitura correspondente encontra-se no Anexo C deste trabalho.

Take 23. (00’ 00” a 03’ 26”) Baião – versão integral

Primeiramente faz-se a análise fonográfica do trecho correspondente à Introdução , em seguida os trechos correspondentes às seções subsequentes (A, B, A’ e Coda ), apresentando-se o Take correspondente a cada seção com a partitura autógrafa de Radamés em recorte especificado. Na interpretação do Baião , poucas diferenças foram encontradas entre a execução e a partitura autógrafa. As características de virtuosismo e swing percebidas na interpretação baseiam-se no andamento imprimido na gravação da peça pelo Duo no LP. Destaca-se que Radamés não escreveu indicação metronômica na partitura do Baião , cabendo aos intérpretes escolherem a pulsação que darão para a indicação de caráter VIVO e Ritmado do enunciado. As indicações de sinais de expressão referem-se normalmente ao tipo de termos que servem para reafirmar e melhor construir os andamentos.

137

Take 24. (00’ 00” a 00’ 12”) Baião — Introdução c. 1 ao c. 10

Exemplo Musical 22. Baião (c. 1 ao c. 10).

A Introdução (c. 1 ao c. 8) apresenta duas subseções. A Subseção i1 com uma frase do violoncelo a partir de um único acorde do piano (c. 1 ao c. 4). As acentuações marcadas na quarta parte do último tempo de cada compasso escritas na partitura são típicas de ritmos regionais nordestinos. A Subseção i2 apresenta-se com mudança de compasso de 2/4 para 3/4 e o piano tem acordes ritmados e marcados em contraponto com o violoncelo (c. 5 ao c. 10). Analisando-se auralmente a gravação de Radamés e Iberê, percebem-se particularidades na interpretação do Duo: 1. Ao contrário da primeira peça de Modinha & Baião , na qual Radamés define o andamento de forma metronômica, MM = 68 (semínima), nesta partitura do Baião Radamés não indica andamento de forma metronômica. Ele escreve apenas VIVO e Ritmado . O Duo toca em andamento quase presto MM = 138 (semínima), caracterizando logo na primeira subseção da Introdução características de virtuosismo; 2. Considera-se que por causa do andamento escolhido, Iberê não executa os acentos escritos na última semicolcheia de cada tempo dos compassos c. 2, c. 3 e c. 4 da Subseção i1 da Introdução . O único acento que ele faz é na última semicolcheia do c.1. A partitura da Seção A (c. 11 ao c. 86.1, vide a partitura completa no Anexo C) é composta das seguintes subseções: Subseção a1 (c. 11 até c. 27.1), transição (c. 27.1.2 até c.

138

38), Subseção a2 (c. 39 até c. 48), Subseção a3 (c. 49 até c. 65.1), transição variada (c. 65.1.2 até c. 68), Subseção a4 (c. 69 até c. 81.1) e transição (c. 81.1.2 ao c. 86.1). A Subseção a1 começa no c. 11 com uma preparação de quatro compassos feita pelo piano até a entrada do tema exposto pelo violoncelo (c. 15). A transição para a Subseção a2 é feita basicamente pelo violoncelo em escalas de semicolcheias ascendentes e descendentes (c. 27.1 até c. 38). Segue-se a Subseção a3 (c. 39 a c. 48) em que o piano apresenta o tema em oitava (c. 39 até c.44) acompanhado por cordas duplas agudas do violoncelo, em pizzicatos com o arco e tratamento dinâmico acentuado. Nota-se a indicação de arcadas, dinâmicas bem planejadas, acentuações e ligaduras precisas e rítmicas inteligentemente construídas. Os compassos finais da Subseção a3 (c. 46 até c. 48) conduzem a uma repetição da Subseção a1 que se nominou Subseção a4 , seguida de transição. Na versão de Radamés e Iberê, em toda a Seção A (c.11 ao c. 86.1) destacam-se apenas cinco alterações da partitura percebidas na execução. Nos Takes 25 e 26 a seguir, encontram-se os recortes necessários para as comprovações e apresentam-se as partituras correspondentes.

Take 25. (00’ 12’’ a 00’ 28’’) Baião — (c. 11 ao c. 49).

Exemplo Musical 23. Baião — Subseção a1 e início da transição (c. 11 ao c. 29). 139

1. Iberê sola o tema da Subseção a1 mantendo o mesmo tempo VIVO que executou na Introdução , ou seja, ele não sai da pulsação inicial de aproximadamente MM = 138 (semínima). Em razão do andamento da execução, o violoncelista não toca todas as articulações escritas nas semicolcheias no c. 25.

Take 26. (00’ 30’’ a 00’ 40’’) Baião — (c. 30 ao c. 42).

Exemplo Musical 24. — Baião (c. 30 ao c. 42)

1. No final da escala descendente do c. 36, o violoncelista omite na sua execução a última nota do grupo de semicolcheias do c. 37, transformando-as em uma semínima tenuta e staccato . Essa execução de Iberê (c. 37.2), não escrita na partitura, preparou a entrada das notas duplas (Ré e Lá). Foi uma liberdade de expressão do violoncelista. Acredita-se que essa omissão foi intencional em razão do caráter Com Brilho que o Duo imprimiu ao Baião . Iberê repetiu esse procedimento na passagem semelhante que acontece na Seção A’ (c. 162.1); 2. No c. 37 Iberê não realiza o crescendo que vai para o Forte (c. 39) marcado na partitura; 3. Devido ao andamento muito rápido adotado pelos músicos, os acentos indicados nas terceiras semicolcheias dos primeiros tempos do c. 39; c. 40; c. 41 e c. 42 não são muito enfatizadas pelo violoncelista.

140

Ressalta-se que na partitura, a Subseção a3 (c. 49 ao c. 65.1) e os três primeiros compassos da transição (c. 65 ao c. 67) para a Subseção a4 , são iguais aos compassos da Subseção a1 (c. 11 ao c. 27.1) em Ritornelo . A interpretação do Duo nesse trecho em Ritornelo confirmou as mesmas características percebidas e apontadas. Prossegue-se com a análise aural da Seção B , destacando-se alguns exemplos pormenorizados de passagens (em subseções) executadas que imprimem virtuosismo e swing à interpretação do Baião pelo Duo Gnattali-Gomes Grosso.

Take 27. (01’ 16’’ a 01’ 46’’) Baião – Transição e Subseção b1 (c. 81 ao c. 110.1).

Exemplo Musical 25.1. Baião (c. 81 ao c. 101.1)

141

Exemplo Musical 25.2. Baião (continuação c. 81. Ao c. 110.1).

1. Iberê toca precipitando o andamento nas semicolcheias da transição (c. 81 ao c. 83) para a Subseção b1 . Existe uma coerência nesse aumento do andamento ou precipitação do tempo que é realizado de forma musical e não como um susto ou por debilidade técnica. Fica claro que ele “puxa” o andamento porque sente necessidade de tornar a passagem ascendente mais brilhante até seu final suspensivo seguido do baixo em oitava (85.2) e do acorde (c. 86) no piano escrito e tocado com sonoridade em Forte por Radamés; 2. Depois da transição (com a escala em acelerando não escrito), o solo, ainda do violoncelo com o tema da Subseção b1 , cujo tema melódico que é apresentado pela primeira vez na peça é tocado de forma lírica e com o andamento um pouco mais lento (c. 86.2 ao c. 97); 3. Em seguida, (c. 98) o piano retoma o andamento e toca o tema da Subseção b2 a tempo . Toda essa variação da pulsação e da agógica não está indicada na partitura. Cabe ressaltar que o pianista toca a Subseção b2 com bastante swing devido à célula rítmica, muito característica do ritmo de baião, escrita na partitura do acompanhamento na mão esquerda, em contracanto com o tema lírico na mão direita.

142

Take 28. (01’ 52’’ a 02’ 16’’) Baião – (c. 117 ao c. 138).

Exemplo Musical 26. Baião (continuação c. 117. Ao c. 138).

Do c. 117 ao c. 138, Radamés e Iberê executam toda a passagem antes de iniciar-se a Seção A (c.138) com variações agógicas e de andamento não indicadas na partitura. 1. No c. 117, antes da mudança de compasso para 3/4, Iberê realiza uma pausa de colcheia maior do que a escrita, dando intenção de rallentar , ou seja, no final da Subseção b3 , o Duo faz um retenu não indicado; 2. No c. 125.2, entrada da Subseçãob4 , o tema lírico tocado pelo violoncelo é iniciado em andamento maislento (M.M = 112 semínima) e com as notas tenutas . Paulatinamente, o Duo vai acelerando o andamento até chegar ao início da transição (c. 134) para Seção A’ (Subseção a’1 ) em andamento Vivo (M.M. = 132 semínima). Toda essa variação de andamento não indicada na partitura imprime tanto virtuosismo quanto swing à interpretação do Duo Gnattali-Gomes Grosso. Apresenta-se a transição para a Subseção a’2 e análise, a seguir.

143

Take 29. (02’ 28’‘ a 02’ 43’’) Baião – Transição e Subseção a’2 (c. 153 ao c. 169).

Exemplo Musical 27.1. Baião (c. 153. Ao c. 158.2).

Ouve-se perfeitamente que Iberê no c. 158.2 da transição para a Subseção a’2 , novamente, tal qual o fez no c. 36, não completa as quatro semicolcheias (c. 158.2) do segundo tempo do compasso. A omissão das notas transformando-as em uma semínima foi uma execução proposital não indicada na partitura nem mesmo como opcional para o violoncelista.

Exemplo Musical 27.2. Baião (c. 162.2. ao c. 169),

144

Do c. 162 ao c. 169, a dinâmica está escrita para ser executada forte no solo de piano. Radamés toca em mezzo forte e marcato sem realizar as articulações indicadas. Só o acorde de c. 169.1.2 está tocado com sonoridade forte e com intenção de crescendo , pois o pianista adiciona um acento esforzato não escrito. Embora esse fraseado adotado na performance possa talvez ter sido considerado “musicalmente óbvio” por ser um final de seção, considera- se que Radamés poderia tê-lo indicado mais precisamente. A seguir, apresenta-se o Take 30 com a execução da Subseção a’3 e partitura correspondente (c. 169.2 ao c. 182) com a análise das interpretações. Destacam-se as diferenças percebidas entre a execução e as indicações marcadas na partitura.

Take 30. (02’ 43’’ a 02’ 55’’) Baião – (c. 169.2 ao c. 182)

Exemplo Musical 28. Baião (c. 169. 2 ao c. 182)

1. O violoncelo inicia a Subseção a’3 (c. 169.2) com o solo de Iberê que executa as notas tenutas e ligadas em andamento rubato . Essa interpretação não está de acordo com a partitura; 2. A dinâmica feita, Mezzo Forte e Forte , não confere com a dinâmica indicada, piano ; 3. Iberê toca as semicolcheias do c. 173.1 como se fosse um mordente ; 4. Iberê faz uso de glissandos , por exemplo, ao fá sustenido (c. 174). Segundo o violoncelista 145

David Chew, “Iberê está tocando em uma posição só utilizando o glissando 53 , pois além de ficar mais fácil, é mais expressivo, sobretudo na música popular. Nesse caso, o violoncelista, solta o dedo da corda em direção ao fá sustenido.” (CHEW, 2013). Isso é uma característica de swing percebida na execução. Dispensou-se a abordagem das referidas subseções que antecedem a Coda , que será analisada auralmente a seguir, pelo fato de terem sido executadas pelo Duo com características interpretativas similares destacadas na análise da Seção A . Vide partitura integral no Anexo C e Take 24 .

Take 31. (03’ 12’’ a 03’ 26’’) Baião – Coda (c. 200 ao c. 212).

Exemplo Musical 29. Baião (c. 200 Ao c. 212).

53 Tipo de técnica do instrumento violoncelo em que o instrumentista escorrega os dedos ao longo da corda enquanto ela soa, produzindo um aumento ou diminuição da frequência, que passa por todas as notas intermediárias. Executável em qualquer instrumento com braço, mas melhores resultados podem ser obtidos em instrumentos sem trastes.

146

Destaca-se que Iberê só acentua a última semicolcheia do início da Coda (c. 200.2.4). As demais acentuações de semicolcheias não são executadas, tal qual fez na Introdução . A versão é muito virtuosística. No último acorde, Iberê mantém o arco da nota sustentada até o acorde final e Radamés, no compasso 210, prepara o baixo e o sustenta até o acorde final com dinâmica crescendo e Fortíssimo .

3.3.7.1 Comentários de David Chew IV (da execução do Baião )

As palavras do violoncelista David Chew sobre o trecho analisado do Baião são tiradas da entrevista concedida à autora da pesquisa. O andamento imprimido nessa versão do Baião denota o virtuosismo da interpretação. Seria improvável (muito difícil mesmo) realizar todas as articulações e acentos marcados por Radamés no andamento que Iberê tocou. Eu particularmente acho que, como é um Baião, não precisava ser tão rápido. Eles podem ter combinado que iriam fazer um Baião virtuosístico e estilizado ao invés de um Baião ritmado em termos de acentuação. É importante frisar, também, que antes da corda dupla do violoncelo, Iberê come uma nota propositalmente (c. 36) devido à dificuldade que é para o violoncelista chegar naquelas notas duplas depois de uma escala descendente (CHEW, 2013).

Embora, nessa versão, o Duo não realize todas as indicações rítmicas determinadas na partitura, o swing está o tempo todo presente através das variações agógicas e métricas executadas e destacadas na análise acima. Sobretudo em razão do andamento da execução, Radamés e Iberê imprimem na versão do LP caráter virtuosístico.

3.3.8 Baião — Análise Aural sucinta do Baião na interpretação do Duo Chew-Canaud no CD Obra Completa para Violoncelo e Piano de Radamés Gnattali — 2006

Take 32. (00’ 00’’ a 03’ 54’’) Baião — versão integral — Duo Chew-Canaud (partitura integral no Anexo C).

Esta análise sucinta comparou a versão de Iberê e Radamés com a execução de David Chew e Canaud. Foi utilizada a partitura de piano feita pela copista Margarida Vieira, datada de agosto de 1977. Assinala-se que existem, entre as partituras autógrafa e copiada, diferenças de notas em alguns acordes (por exemplo, no acorde do compasso 182), sem que, no entanto, 147

cause algum prejuízo de ordem estética. A seguir, destacam-se apenas os compassos nos quais se percebeu diferenças entre as duas versões. 1. O andamento é sensivelmente mais lento, entre MM = 108 e 112 (semínima), porém bem ritmado. As subseções são bem enunciadas na execução e apresentam entre si menor variação de andamento; 2. Todas as semicolcheias marcadas são executadas pelo violoncelo ( Introdução ); 3. As articulações de duas em duas notas no final da frase lírica são realizadas como está escrito (c. 25 e c. 64). Na versão de Iberê, essas notas são executadas todas ligadas e precipitadas para a nota conclusiva da frase (c. 26 e c. 64). Observa-se que David faz as referidas articulações (c. 25 ou c. 63) e essa ação causa um ligeiro cedendo . Na nota conclusiva da frase (c. 26 e c. 64), depois das articulações feitas, David faz um crescendo que não está escrito, porém é musicalmente aceitável por ser um crescendo que acompanha o acorde sforzando que está em contratempo ao acorde dado pelo piano; 4. No compasso 36, ao contrário de Iberê, David executa o que está escrito na partitura e faz todas as semicolcheias para a entrada das cordas duplas ré lá (c. 37) do violoncelo mantendo a sonoridade equilibrada com o piano; 5. As articulações do piano, do c. 39 ao c. 44, são realizadas bem como as articulações e sforzando marcados para o violoncelo. O Duo está executando a dinâmica e as articulações propostas (c. 170) e o tema lírico é valorizado pelo violoncelo. Nos quatro últimos compassos da Coda , o Duo executa um pequeno retenu não escrito, enfatizando a conclusão da peça.

148

3.3.8.1 Comentários V (sobre a versão do Duo Chew-Canaud comparada à versão de Iberê e Radamés)

O Duo Chew-Canaud executa o Baião em andamento VIVO , porém confortável, pois se ateve à palavra Ritmada escrita no enunciado da partitura, procurando fazer todas as indicações marcadas nesta. No Baião , ao contrário da Modinha , Radamés não indicou a pulsação do tempo com marcação metronômica, deixando livre e à escolha dos intérpretes a pulsação da execução, apenas sugerido no enunciado da partitura o caráter: vivo e ritmado . Cabe lembrar que existem na música popular baiões com andamentos diversos, de moderado (como por exemplo: “Minha vida é andar por esse país...”) ao vivo (como “Eu vou contar pra você como se dança o baião” e “O ovo” de Hermeto). Normalmente, o músico se atém às articulações escritas na partitura, tanto para o violoncelo quanto para o piano. Porém, ao fazer um andamento extremamente VIVO , fica quase impossível manter todas as articulações e marcações. O próprio Radamés em Duo com Iberê, ao escolherem uma versão mais virtuosística em termos de andamento, deixaram de lado as marcações feitas pelo próprio compositor pianista. Musicalmente é muito mais fácil esse baião porque as frases são bem definidas e têm início acéfalo (o contratempo). Não é uma música complexa. É importante saber, especificamente nesse baião, qual é a importância dos acentos, já que Iberê só faz o primeiro acento das frases em semicolcheia e Radamés permitiu. Então é bom pensar qual é a importância musical do acento, afinal Radamés escreveu. 54 Sobre esse assunto, transcreveram-se as palavras de David Chew, na entrevista concedida para este trabalho. A perfeita execução dos acentos que estão escritos na partitura faz com que o violoncelista não consiga tocar tão rápido quanto Iberê tocou. Quando se ouve a gravação analisando [auralmente], se percebe que Iberê só faz o primeiro acento e, por isso, ele pôde tocar tão rápido. Talvez seja mais difícil criar com o público erudito uma comunicação de virtuosismo se o baião for tocado mais lento e respeitando todos os acentos e articulações marcadas. Tocando-se um pouco mais lento do que a versão de Iberê, porém de forma mais jocosa e ritmada, essa peça de concerto pode parecer muito popular (CHEW, 2013).

Ao ser indagado sobre o andamento do Baião tocado por Iberê e Radamés, David fez algumas considerações, a seguir.

54 Fala-se do acento na última nota de cada grupo de semicolcheias da Introdução . 149

O fato é que para tocar no andamento VIVO que fizeram, eles passam por cima de muitas marcações escritas. E como se dançaria esse baião tocado tão rapidamente quanto na versão de Iberê? A resposta para mim é: não se dançaria. Então eles aplicaram à interpretação desse baião uma versão estilizada de baião. Se fosse perguntado ao Guerra-Peixe sobre o andamento talvez ele dissesse: se é baião, tem que poder dançar (CHEW, 2013).

Segundo David Chew, não seria tão difícil tocar esse baião rápido e explica que, como ele não tinha ouvido a gravação de Radamés, ele ateve-se a tocar no andamento possível para realizar o que está escrito na partitura. Dessa forma, optou pelo andamento mais cômodo, caso contrário ele perderia os acentos. Quando se faz todos os acentos, essa ação “segura” um pouco mais a velocidade no andamento (CHEW, 2013). Valeria uma futura reflexão, mais aprofundada, se o fato de se tocar o Baião com o andamento muito rápido se perderia um pouco a característica nacionalista em função da característica virtuosística, afinal isso acontece em peças de outros compositores, como Chopin que em suas mazurcas e poloneses, às vezes tocadas em andamento tão rápido, passando por cima das articulações, ficam mais virtuosísticas do que caracterizadas como gênero nacionalista polonês. Considera-se que tanto a versão do LP quanto a do CD são corretas e aceitáveis. Uma valorizou mais respeitar as articulações escritas pelo compositor e a outra valorizou mais o virtuosismo. Segundo David Chew (2013), todas as diferenças verificadas entre a sua interpretação e a de Iberê têm a ver com o andamento. Pode-se considerar que a versão de Radamés é mais leve e virtuosística. Tem mais leveza em geral. Existem momentos que, talvez, se tocassem os dois violoncelistas um ao lado do outro, poder-se-ia constatar que a diferença de abordagem na execução é uma questão de decisão interpretativa. Se o violoncelista quer tocar tudo o que está escrito ou de maneira mais virtuosística. David fala a respeito da análise proposta neste trabalho: Talvez se fôssemos hoje, depois de ter feito essa revisão fonográfica, acredito que iríamos tocar levando em consideração a influência da audição desse registro. Mesmo tocando no andamento que a gente tocou, talvez tocássemos com mais leveza. Isso devido a termos analisado não a partitura no aspecto morfológico ou estrutural, mas sim termos analisado como o compositor tocou e permitiu que fosse gravada sua própria obra. Eu gostei de fazer isso, acho que teria me ajudado a preparar a peça. Porém, no meu caso [David], eu manteria o andamento como está no nosso CD, em função das articulações feitas (CHEW, 2013).

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3.4 Modinha & Baião — Versão 2012 — Apresentação vídeo com o Duo Chew-Canaud após a revisão fonográfica do LP de Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso

Figura 38 55 . Fernanda Canaud e David Chew em recital do Duo na Sala Funarte Sidney Miller - “Projeto Musicafinidades – Ecos de 22” (Foto: Cristina Zappa).

Take 33. Modinha — vídeo recital “ao vivo” Duo Chew-Canaud — 2012

A versão em vídeo disponibilizada no Take 33 pertence à etapa posterior no método Ex Post Facto deste trabalho, conforme descrito na metodologia adotada. No referido Take , apresenta-se a gravação “ao vivo” de Modinha & Baião , incluída entre outras peças, no recital do Duo Chew-Canaud (Figura 38) realizado no dia 13 de julho de 2012, no “Projeto Musicafinidades — Ecos de 22 ” na Sala Funarte Sidney Miller no Rio de Janeiro. É interessante constatar que o violoncelista David Chew se posiciona do lado direito, conforme mostra a figura 38. Já o violoncelista Iberê Gomes Grosso tocava do lado esquerdo de Radamés Gnattali, afastado do tampo de ressonância do piano, conforme mostram as figuras 2 e 3 do Anexo G (p. 229-230). Destaca-se o fato de que, após as análises aurais realizadas nesse trabalho, percebeu-se que o Duo Chew-Canaud executou a peça Modinha & Baião , na versão de 2012, com diferenças sensíveis se comparada à versão do CD de 2006 (Obra completa para violoncelo e piano de Radamés Gnattali ), sobretudo no que se refere aos andamentos da Modinha. Na versão de 2006, a minutagem é de 04’ 37’’ e na versão de 2012, a minutagem é de 04’ 17’’, ou seja, considera-se que a variação de aproximadamente 20’’ é resultado de maior liberdade interpretativa, sobretudo no que se refere à agógica.

55 Figuras de 1 a 37 apresentadas no Anexo G. 151

Take 34. Baião — vídeo recital “ao vivo” Duo Chew-Canaud — 2012

Já no Baião , o Duo manteve o andamento da gravação de 2006. Em relação à agógica e aos andamentos das Subseções , percebeu-se que houve, em adição, maior liberdade na execução e na acentuação das articulações métricas das frases. No registro de 2012, não houve a intenção (da parte do Duo Chew-Canaud) de se fazer uma repetição ou imitação da performance de Gnattali e Gomes Grosso. Ressalta-se, porém, que a revisão fonográfica realizada foi fundamental para criar um grau de liberdade e aprofundamento não antes compartilhado entre os intérpretes. Segundo Nonaka e Takeuchi (1997), ambiente e circunstâncias influenciam na performance . Considera-se, portanto, que cada nova execução das peças de Radamés Gnattali selecionadas para a análise aural pelo Duo Chew-Canaud fará parte do processo posterior referente ao método Ex Post Facto . Não há símbolos que tornariam a notação das sutilezas interpretativas possíveis e, mesmo que houvesse, o compositor ou mesmo o revisor iria arriscar distorcer a unidade total da obra por causa da anotação destas nuances. Entretanto, no caso específico da interpretação de Radamés e Iberê, talvez, futuramente, se possa pensar em uma edição revisada contendo indicações dos aspectos da interpretação do Duo, que foram minudenciados através da análise aural apresentada. As análises aurais foram feitas com base nos critérios estéticos encontrados no guia de interpretação de Artur Schnabel apresentado por Konrad Wolff (1972), destacando-se, portanto, andamentos, variações agógicas, dinâmica, articulações (métricas; rítmicas; harmônicas ou melódicas) das execuções. O pensamento de Schnabel apenas norteou os trabalhos realizados na revisão fonográfica. A seguir, apresentam-se a Análise, Interpretação e Discussão dos resultados provenientes das revisões fonográficas e dos demais capítulos precedentes.

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3.5 Análise, Interpretação e Discussão dos Resultados

Neste trabalho investigou-se a relevância da Análise Aural das peças Flor da Noite e Modinha & Baião para violoncelo e piano de Radamés Gnattali, gravadas pelo autor- intérprete em Duo com Iberê Gomes Grosso no LP do selo Festa (LDR-5028) intitulado Villa- Lobos / Radamés Gnattali [s.d.]. Logo na primeira escuta desse LP, em uma abordagem geral, percebeu-se que Radamés Gnattali em sua execução pianística tomou liberdades, por exemplo, de andamento, de articulação das frases e de dinâmica, não indicadas na sua partitura original. Não somente isso, o compositor permitiu que Iberê Gomes Grosso também o fizesse, alterando, por exemplo, articulações propostas, em favor de sua expressão artística, sem que houvesse a preocupação ulterior em refazer a partitura. Cabe ressaltar que apesar das semelhanças estruturais, as peças preservam linguagens individuais no que se refere à interpretação conferida a elas pelo Duo. Por conseguinte, considerou-se que a interpretação do compositor (em Duo) evidenciou o virtuosismo dos intérpretes, bem como sua capacidade de tocar com o que denominamos swing (bossa) e, mais do que isso, que ele não se importou em deixar indicado em sua partitura as oscilações agógicas, as matizes dinâmicas bem como as articulações realizadas na gravação do referido LP. O objetivo principal do estudo foi revelar características da interpretação do compositor Gnattali visando futuras performances de sua obra. A hipótese aventada foi se a Análise Aural — parte da Revisão Fonográfica — pode ser utilizada como uma aliada do refinamento da expressão musical artística de um intérprete, uma vez que é capaz de revelar características não escritas pelo compositor em suas partituras autógrafas. Entretanto, deparou-se com a não existência de um padrão ou método de análise aural. A partir disso, uma vez que não se encontrou na bibliografia consultada nenhum padrão para esse tipo de análise (aural) passível de ser aplicado no presente trabalho, optou-se pelo levantamento dos aspectos musicais interpretativos inerentes à execução dos Duos, tomando-se como base o guia de interpretação de Artur Schnabel referente aos tempos, aos andamentos, à dinâmica, à agógica, e, sobretudo, às articulações (melódica, harmônica, métrica e rítmica). Estes pontos foram utilizados para nortear a análise da performance nos fonogramas. Outras razões foram consideradas para se tomar como base o guia de Schnabel: sua formação clássica; sua escola Leschètizquiana (a mesma de Michael Von Zadora, professor de Guilherme Fontainha, que por sua vez foi professor de Radamés Gnattali); e o 153

fato de Schnabel ter sido além de teórico, um especialista nos clássicos com base prática e interpretativa metodizada. Levando-se em consideração os critérios adotados no guia para interpretação de Schnabel, percebeu-se que seria possível, de certa forma, metodizar a análise aural, parte integrante da revisão fonográfica deste trabalho, utilizando-a como ferramenta aliada do refinamento da expressão musical artística dos intérpretes. Em se tratando de compositor-intérprete, a utilidade da revisão fonográfica pôde fornecer subsídios para alimentar a releitura das peças, ou seja, a revisão fonográfica mostrou-se como um caminho válido. Considerou-se como ponto de abordagem interpretativa o aspecto de o músico prático, em sua tarefa fundamental de executante, ter o privilégio da releitura, afinal todo intérprete é, ou pode ser, no momento da performance , um parceiro do compositor. Muitas vezes é capaz de enxergar aspectos de interesse nas entrelinhas da pauta, até mesmo aqueles que não estejam escritos, mas que estão aventados pela intenção percebida como intrínseca; ou ainda que estejam induzidos na sequência do discurso musical. Outras vezes, acontece de o artista, devido ao seu amadurecimento técnico e artístico, passar a interpretar uma peça que outrora tenha se dedicado de maneira diferenciada daquela que em um primeiro momento entendeu como oportuna. Portanto, a interpretação pode ser associada também à releitura de uma obra musical. Outro ponto a se considerar é o fato de que, para um compositor, marcar todas as modificações expressivas correspondentes às suas intenções seria uma tarefa praticamente impossível. Alguns compositores, como Grieg e Ravel, por exemplo, conseguem apurar a comunicação de suas intenções expressivas e agógicas com o intérprete, através do texto, de maneira bastante eficaz. Entretanto, Radamés Gnattali, ao contrário destes compositores detalhistas, tinha uma escrita muito econômica em relação a suas intenções expressivas e agógicas. Alfred Cortot (1986), no livro Curso de Interpretação redigido por Jeanne Thieffry, abaliza que a partir da compreensão consciente de uma obra e de todos os aspectos que podem estar relacionados a ela, o intérprete estaria mais apto a transmitir emoções e sensações ao ouvinte de acordo com aquelas que o compositor sentiu. Destacam-se, a seguir, as palavras do professor de piano e teórico nas quais ele afirma: “Interpretar é recriar em si a obra que se toca” (CORTOT, 1986, p. 6). Entretanto, o autor prossegue fazendo uma ressalva quanto à fidelidade à expressão musical imprimida pelo compositor, incentivando o intérprete a

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respeitá-la e reproduzi-la. Conforme atestam suas palavras: “E o compositor, que nos transmite o reflexo de suas impressões, conta com o intérprete para evocar nos ouvintes, emoções semelhantes àquelas que ele próprio sentiu” (CORTOT, 1986, p. 6). Já no livro Plaisir de Jouer Plaisir de Penser , Rosen (1993) aborda alguns problemas da fidelidade à partitura, fazendo uma exploração do assunto a partir da seguinte indagação: “Se a crítica deve adotar o ponto de vista do compositor, o executante não deveria fazer o mesmo?” (ROSEN, 1993, p. 49). O teórico prossegue afirmando que existem muitas maneiras de seguir a partitura e que elas levam a interpretações completamente diferentes. Afirma ser justamente a tensão existente entre texto e execução que é interessante perceber e que esta tensão desaparece quando o intérprete se afasta demais da partitura. O autor considera que “aí está toda a dificuldade: conseguir tocar de maneira muito pessoal, muito criativa ao mesmo tempo se apoiando completamente no texto” (ROSEN, 1993, p. 49). Por outro lado, Rosen (1993) aponta que o intérprete pode mostrar uma execução perfeitamente fiel ao texto, tocar corretamente todas as notas com exatidão e resultar em uma execução insatisfatória; enquanto que ele pode, também, fazer algumas mudanças na partitura e realizar uma interpretação perfeitamente fiel ao espírito do compositor. Esse pensamento de Rosen corrobora o de Schnabel quando ele isenta o intérprete de muitas exatidões, ao dizer que regras não escritas também podem governar opções de dinâmica e agógica (vide Capítulo 2, p. 93). Em relação a Radamés Gnattali, como intérprete de sua própria música, pode-se dizer que ele também recriava sua obra a cada execução, e não somente podia transmitir o reflexo de suas impressões, como também podia, mais do que ninguém, evocar nos ouvintes as emoções que ele próprio sentiu ao compor. De fato, Radamés em Duo com Iberê Gomes Grosso não tocou tudo que escreveu nas peças e depois de gravar não escreveu tudo que tocou no LP. Segundo Leonard Meyer (1961), na sua teoria da comunicação emocional para explicar a existência de significado em música, não há significado extramusical e os elementos referenciais são encontrados na partitura e na experiência da escuta promotora da comunicação, emoção e afeto. Assim sendo, aventam-se novos subsídios que promovam possibilidades de recriação ou aproximação estimulando a releitura da obra de um compositor, por meio da análise aural dos fonogramas, como método. Rosen (2010) ponderou que as escolhas propositais de um compositor, como a escolha da tonalidade, a experiência estilística, entre outras, podem contribuir tanto para respostas aos estímulos musicais quanto para transmissão de sentimentos. Então foi importante buscar-se subsídios que propiciassem o entendimento do intérprete quanto ao emprego do virtuosismo e 155

do swing como elementos idiomáticos da escrita de Gnattali. Todavia, o ponto importante para a análise aural da presente tese foi considerar as análises interpretativas (revisão fonográfica) em seu aspecto estritamente humano, focando-se a escuta no âmbito artístico das interpretações comparada à partitura autógrafa. Não se pretendeu, por exemplo, analisar as variações agógicas das interpretações com procedimentos matemáticos, com medições e gráficos; tampouco se pretendeu aferi-las quantitativamente com o auxílio, por exemplo, de hardware e software desenvolvidos nas últimas décadas e disponíveis atualmente para auxiliar análises de gravações, seja por solicitação de pesquisadores, seja para fins comerciais. A literatura em performance musical tem apontado para uma relação estreita entre a ação conjunta da agógica e da dinâmica com a estrutura musical, porém utilizando software . Atualmente, reflexões sobre características das execuções têm sido realizadas em trabalhos acadêmicos a partir de comparações de gravações, analisando-se, por exemplo, o comportamento matemático de variações agógicas sobre temas líricos relacionadas com a estrutura musical com o auxílio de software que geram gráficos destas oscilações agógicas, além de estatísticas a partir dos meios tecnológicos (ZORZAL; ÁVILA, 2007). Escolheu-se a análise aural sem a utilização de software devido ao critério de utilização da gestão do conhecimento por pessoas e não por máquinas.56 Não foi objetivo neste trabalho o desenvolvimento de análises com software . A análise dos fonogramas foi realizada a partir da gestão do conhecimento de Nonaka e Takeuchi (1997) pelo processo da espiral do conhecimento, processo SECI com suas quatro etapas, a saber, Socialização , Internalização , Combinação e Externalização . Adaptou-se de Nonaka e Takeuchi (1997, p. 23-24) o processo SECI que foi relido para a área de música neste trabalho, uma vez que se pode utilizar qualquer direcional na espiral do conhecimento. Priorizou-se, então, pela ordem SICE. A etapa Socialização é concernente ao conhecimento tácito — conhecimento acumulado (é o compartilhar e o criar através de experiência direta); a etapa Internalização refere-se ao conhecimento tácito e explícito, combinados — leitura e estudo da partitura e o reconhecimento das diferenças interpretativas (é o aprender e adquirir novo conhecimento tácito na prática); a fase Combinação diz respeito ao conhecimento explícito — análise aural aliada à partitura e reestudo da obra (é o sistematizar e o aplicar do conhecimento explícito à informação); por fim, a Externalização refere-se novamente ao conhecimento tácito (adquirido) — desempenho

56 A máquina pode ser programada para ler qualquer forma de conhecimento explícito baseado em uma informação (estímulo) só que ela não tem a capacidade criativa — potencial.

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no concerto (é articular o conhecimento tácito através do diálogo entre as etapas do processo e a reflexão). Pretendeu-se, como resultado, uma efetiva contribuição para as práticas interpretativas, conforme metodologia apresentada e adaptada à área de música. Nonaka e Takeuchi (1997), autores do referido processo, assim definem estas etapas que não têm um ponto obrigatório de partida, conforme o princípio da espiral do conhecimento: Socialização: a transferência de conhecimento tácito para tácito por meio do compartilhamento de experiências, da observação ou de habilidades que resultam na criação do conhecimento tácito; Externalização: processo de conversão de conhecimento tácito em explícito através do uso de palavras e/ou imagens, diálogo, reflexão coletiva, metáforas, analogias e hipóteses, além da dedução, indução e abdução. Combinação: é a ligação e sistematização de conhecimentos explícitos e está fundamentada na codificação em documentos, memorandos, banco de dados - são diferentes conjuntos de conhecimento explícitos sendo trocados; Internalização: é a conversão de conhecimento explícito em conhecimento tácito sob a forma de modelos mentais, compartilhado com os outros integrantes da rede, iniciando assim uma nova espiral de criação de conhecimento (NONAKA e TAKEUCHI, 1997, p. 23-24).

Na área de música, alguns autores como Koivunen (2002), da Universidade de Tampere (Finlândia), e Weick (1998) da Universidade de Michigan, já utilizaram o método de Gestão do Conhecimento de Nonaka e Takeuchi (1997). O artigo de Niina Koivunen intitula- se Organizational Music: the Role of Listening in Interaction Processes ; e o de Karl Weik intitula-se Improvisation as a Mindset for Organizational Analysis . O desenvolvimento do processo interativo da escuta fornece elementos que levam a uma reflexão de como a teoria de Nonaka e Takeuchi pode ser referência para esta tese. Na abordagem crítica das gravações de Flor da Noite e de Modinha & Baião , pode-se perceber liberdades do compositor, no momento da performance , em relação à sua própria escrita. Entretanto, este fato não é privilégio de Radamés Gnattali. Por exemplo, disponibilizados no site You Tube , atualmente, pode-se escutar performances de Scriabin (1894) 57 , Debussy (1903) 58 e Ravel (1905) 59 enviadas por Louiu (2007); performances de Prokofieff (1912) 60 e Leschetizky (1876) 61 enviadas por Truecrypt (2008); e performances de (2007) 62 enviadas pelo próprio autor (2008) em que percebem-se nas execuções características expressivas não indicadas, ou seja, eles também tomam liberdades de tempo, dinâmica, de notas e acordes que não conferem com o que se lê na partitura.

57 Estudo op. 8 nº 12 . Disponível em: . Acesso em: 22 jan.2013. 58 La soirée dans Grenade. Disponível em: . Acesso em: 22 jan. 2013. 59 Sonatina 1º e 2º movimentos. Disponível em: . Acesso em: 22 jan. 2013. 60 Toccata op.11. Disponível em: . Acesso em: 02 jan. 2013. 61 Die beiden Lerchen . Disponível em: . Acesso em: 12 abr. 2008. 62 Frevo nº 2 para piano, Opus 105 . Disponível em: . Acesso em: 12 abr. 2008. 157

Radamés Gnattali e Iberê Gomes, ao executarem as peças, contrariam o que diz Leimer e Gieseking no livro Rítmica, Dinámica, Pedal y otros Problemas de la Ejecución Pianística , no capítulo intitulado “Interpretação Natural”, quando preconizaram que a execução rítmica deveria ser “absolutamente correta” (LEIMER; GIEKEKING, 1951, p. 34). Neste ponto, aplicariam-se as considerações de Rosen (1993) sobre a possibilidadede outros intérpretes tocarem de maneiras diferenciadas, consequentemente personalizadas, devido, por exemplo, às pequenas respirações utilizadas; bem como às escolhas de tipo de toque pianístico (ou tipo de arcada para o violoncelo); ou ainda às articulações e às gradações de dinâmica aplicadas às frases musicais no momento da execução. As particularidades expressivas de cada intérprete significariam, então, um resultado artístico distinto que enfatizaria, ou não, no caso da execução da obra de Radamés Gnattali, o destaque do virtuosismo e do swing . Portanto, cabe ressaltar que a análise feita neste trabalho não visou à tarefa composicional. Não foram analisados os elementos da linguagem musical empregados em cada peça, tais como ambiente harmônico, organização melódica, rítmica e estrutural; tampouco a análise foi realizada sob o ponto de vista funcional, considerando-se que não houve intenção de se estabelecerem, com os dados obtidos, padrões que configurassem certo estilo de escrita, mas sim o estilo de interpretação de Radamés (prática interpretativa). De acordo com o pensamento de Alfred Cortot (1986), que estimulava o intérprete a conhecer e se municiar do máximo de informações sobre um autor e sua obra, foi possível através do perfil biográfico pesquisado de Radamés Gnattali saber com certeza que ele valorizava a capacidade de o músico clássico, possuidor de virtuosismo, ter swing ou bossa (vide Cap. 1, 1.14, p. 83). Ele próprio também buscou adquirir a capacidade de swingar tanto como arranjador, quando ele vai escutar os discos de jazz nos anos 1920 (vide Cap. 1, 1.5.4, p. 49), quanto como pianista, quando ele vai se aproximar dos pianeiros (vide Cap. 1, 1.7, p. 56). Além disso, desde sua infância e adolescência vividas com a família de músicos, sem que houvesse nenhuma censura ao fato de ele tocar música popular; passando pelas experiências profissionais vividas após sua vinda para o Rio de Janeiro; o background exigido pela nova carreira; tudo isso contribuiu para que, além do virtuosismo como pianista, o autor adquirisse o swing . No caso de Radamés, tornou-se interessante mostrar no perfil biográfico a trajetória do intérprete que se tornou compositor e impregnou no seu virtuosismo a maneira de swingar característica dos pianeiros e pianistas populares do Rio de Janeiro do início do século XX, enriquecendo, assim, suas habilidades.

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Todas estas razões identificadas por meio do perfil biográfico apresentado, aliadas à análise aural, corroboraram a afirmação para que se considerassem o virtuosismo e o swing como característicos de um modelo de critério estético para a interpretação da obra de Radamés Gnattali. É importante ressaltar, entretanto, que não se pretendeu caricaturar, aprisionar ou limitar a interpretação da música de Gnattali nessas duas características, assim como pensava Schnabel, que alertava os alunos a evitar na abordagem interpretativa imagens preconcebidas, caricatas, maneiristas e exacerbadas do que ele chamava de “elemento folclórico” (WOLFF, 1972, p. 16). Afinal, preconcepções sobre estilo podem restringir a própria compreensão de um intérprete. Talvez para evitar esse tipo de imagem caricata, Radamés tivesse escrito em sua partitura autógrafa poucas indicações dinâmicas e agógicas. Levando-se em consideração os critérios adotados no guia para interpretação de Schnabel, percebeu-se que sua fala, ao citar Goethe, “O que é o universal? O único caso! O que é o particular? Milhões de casos!” cada grande composição foi, para Schnabel, “tudo incluído, abrangentemente” (WOLFF, 1972, p. 17), corrobora o conceito do conhecimento tácito do processo SECI. O que Nonaka e Takeuchi consideram conhecimento tácito é o que Schnabel evoca em Goethe — tudo incluído, abrangentemente. Mediante o resultado da análise aural, percebeu-se que o elemento tácito já havia sido aventado por Schnabel, também quando ele fala sobre o que seria uma análise frutífera — eficiente (fruto da reação espontânea do músico em face de algum enigma que ele sinta necessidade de investigar como acontecimento – vide Capítulo 2, p. 91). Para Nonaka e Takeuchi, o processo de fundamentação da gestão do conhecimento tácito passa pela aglutinação das experiências que o indivíduo acumulou ao longo da vida, fatores que vão incidir no processo de recriação. No caso desta tese, recriação interpretativa durante a performance musical As peças em destaque têm em comum o fato de serem fronteiriças com a música popular e, por essa razão, foi possível reconhecer mais facilmente, na execução do Duo, tanto o swing quanto o virtuosismo. Outras peças executadas no LP, como a Sonata nº 1, cujo trabalho de elaboração motívica e a organicidade dos elementos estruturais não evidenciam tão claramente os aspectos destacados em Flor da Noite e Modinha & Baião , provavelmente, também apontariam para outras características interpretativas além do virtuosismo e do swing . 159

As mudanças de compasso são constantes e regulares na escrita em ambas as peças. Contudo, a análise aural revelou que o Duo, em sua execução, manteve a integridade do material temático promovendo a percepção do caráter virtuosístico e swingado . A limitação do estudo encontra-se na escolha proposital do modelo de análise aural feita nesta tese, uma vez que existem outros vários tipos de modelos analíticos, inclusive com o auxílio de software , como o Sound Forge , capaz de gerar gráficos de medição de tempo das variações agógicas e revelar estatísticas de variações de dinâmica com absoluta precisão matemática. Porém, considera-se que do ponto de vista humano da criação, da recriação artística e da acuidade da escuta, o modelo de análise aural apresentado é mais profícuo conforme aventado na etapa da Externalização , de acordo com a fundamentação teórica adotada (NONAKA; TAKEUCHI, 1997).

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CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

A aplicação da análise aural, parte da revisão fonográfica, pode ser uma ferramenta para revelar características não escritas pelo compositor intérprete em suas partituras autógrafas e pode ser utilizada como aliada do refinamento da expressão musical artística de intérpretes. Como resultado, constatou-se, através da revisão fonográfica e análise aural minudenciada da interpretação de Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso, que o compositor- intérprete, em sua execução pianística, não se ateve à própria escrita, tomando liberdades de andamento, de articulação das frases e de dinâmica não indicadas na partitura autógrafa. A Pesquisa Experimental do tipo Ex Post Facto foi importante para metodizar o trabalho e gerou a criação de um modelo de análise aural específico para a revisão fonográfica feita a partir das gravações do próprio compositor-intérprete, comparadas com suas partituras autógrafas. Após a verificação do conjunto (audição das gravações de Flor da Noite e Modinha & Baião do LP), houve a necessidade de se detalharem aspectos da execução percebidos a partir desta escuta, minudenciando-os para reflexão sobre o conjunto. Desta escuta resultou uma percepção muito clara do que se considera virtuosismo e swing na interpretação do Duo Gnattali-Gomes Grosso. Embora tenha executado o que estava escrito na partitura, o Duo Chew-Canaud, em sua primeira versão, imprimiu atmosfera clássica, realizando menos variações agógicas, resultando, portanto, menos swing do que a interpretação posterior à análise aural da versão de Iberê Gomes Grosso e Radamés Gnattali. Consequentemente, a revisão fonográfica da gravação realizada com a interpretação do próprio compositor tornou-se importante para os intérpretes (Duo Chew-Canaud) se aproximarem do caráter das obras com mais clareza e segurança. Além disso, a revisão foi muito útil para mostrar que a liberdade de interpretação não põe em risco a fidelidade ao texto, pois se observou que o virtuosismo empregado nas obras de Gnattali pode ser considerado como elemento característico de sua escrita pianística e tem tanta relevância quanto o swing . Constatou-se que a gravação de Gnattali-Gomes Grosso não substituiu a partitura como referência para os intérpretes (Chew-Canaud); ela, porém, agregou elementos para a interpretação do Duo. Foi evidente que as versões gravadas estabeleceram tradições distintas

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das partituras. Não se quer afirmar que a revisão fonográfica possa substituir uma partitura. Entretanto, ela torna-se útil como fonte para o aprofundamento da pesquisa prática sonoro- interpretativa auxiliando os intérpretes a se inculcarem do caráter da obra de Radamés Gnattali, bem como externarem na prática interpretativa, além do virtuosismo, o swing inerente. A revisão fonográfica revelou que o virtuosismo e o swing são características da interpretação de Radamés Gnattali e que, através da análise aural minudenciada, as características das interpretações podem ser estendidas a toda sua obra, de forma cuidadosa e não generalizada. A partir das peças de câmara para violoncelo e piano escolhidas para a análise fonográfica, concluiu-se que a revisão fonográfica é um importante auxílio para o aprofundamento na compreensão das obras desse autor-intérprete, visando sua execução. A questão a investigar da pesquisa fonte desta tese perquiriu se a utilização da análise aural, aplicada às obras de Radamés Gnattali, poderia constituir-se em um meio de renovação das tradições formas do estudo de uma partitura. A conclusão síntese em resposta a esta indagação demonstra que a base de conhecimentos tácitos permitiu garantir uma nova forma de abordagem estratégica para alimentar novas releituras das partituras desse autor e que os critérios adotados nesta análise podem ser ampliados a outros trabalhos de revisão fonográfica. Conclui-se que a análise aural é um método que promove um diferencial na interpretação das obras no que se refere a elementos da performance , tais como: 1 – escolha de andamentos; 2 – escolha de articulações e fraseados; 3 – variações agógicas; 4 – variações de dinâmica; e 5 – maturação do conteúdo musical. A partir das peças de câmara para violoncelo e piano escolhidas para análise, concluiu-se que a revisão fonográfica é um importante auxílio tanto para a compreensão quanto para a execução das obras desse autor- intérprete, uma vez que ela pode fornecer, em adição à partitura, elementos de suporte para novas releituras e interpretações. Como o autor pouco marcava as intenções expressivas nas partituras e ele mesmo gravou Flor da Noite e Modinha & Baião , recomenda-se assim a revisão fonográfica de outras obras desse autor e de outros compositores-intérpretes contemporâneos visando suas execuções. As particularidades de cada intérprete significam um resultado artístico distinto que pode enfatizar, ou não, características como o virtuosismo e o swing ressaltados nesta tese. Na execução dos Duos de câmara para violoncelo e piano, o próprio autor-intérprete tomou liberdades de expressão, evidenciando seu swing e seu virtuosismo . 163

A revisão fonográfica da obra de Radamés Gnattali não substituiu a partitura. A revisão fonográfica serviu, sim, como fonte para o aprofundamento da pesquisa sonoro- interpretativa no intuito de municiar os intérpretes de conhecimentos. É possível executar a música de Radamés Gnattali com certa liberdade agógica, porém faz-se ressalva quanto ao respeito à partitura e ao estilo. A partir do exposto, faz-se necessária uma revisão fonográfica extensa a outros registros de Gnattali e pode-se estender o trabalho de análise aural a outros compositores- intérpretes. Visando o processo de reprodutibilidade técnica e artística, utilizando-se a análise aural de modo a respeitar a interpretação original a contraponto da autenticidade da obra apresentada nesta tese, sugere-se que os seguintes indicadores façam parte da “espiral do conhecimento” alcançada na fusão do conhecimento tácito (vivência prévia do músico prático) e do conhecimento explícito (partitura). Destacam-se os seguintes elementos a serem abordados, dispostos no quadro abaixo, e aconselha-se sua aplicação em análises aurais de fonogramas de compositores-intérpretes, visando a futuras performances.

Quadro 5 . Processo recomendado de Aplicação da Análise Aural

1. Leitura da obra pelo pesquisador com todas as suas particularidades evidenciáveis referentes a indicações do compositor. 2. Execução da partitura pelo pesquisador. 3. Levantamento do perfil biográfico verificando indícios de possíveis influências sofridas pelo compositor. 4. A audição da gravação com a interpretação do compositor-intérprete. 5. Análise minudenciada da interpretação do compositor em comparação com sua partitura autógrafa. 6. Releitura da obra pelo pesquisador, à luz dos conhecimentos acumulados, que poderá ser registrada ou não.

Recomenda-se que para a utilização da análise aural o indivíduo tenha o domínio do conhecimento explícito — tangível: leitura de partitura — para a Socialização do conhecimento tácito — intangível: implícito — de modo a propiciar o funcionamento do mecanismo do processo denominado Gestão do Conhecimento (SECI) de Nonaka e Takeuchi (1997). Recomenda-se a utilização de revisão fonográfica como ferramenta de estudo que amplie possibilidades de compreensão, absorção e desenvolvimento de ideias musicais corroborando como aliada do refinamento da expressão musical do intérprete. Aconselha-se o estudo da música de câmara de Radamés Gnattali levando-se em

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consideração os aspectos característicos da execução do compositor-intérprete abordados no presente trabalho e apresenta-se no Anexo E uma lista de obras clássicas de câmara para Duos (com piano) do compositor que poderiam ser objeto de futuros estudos, baseados nos conhecimentos pressupostos na presente tese. Em resumo, esta pesquisa analisou e construiu um procedimento (processo) de inovação na preparação da performance musical, fundamentado na gestão do conhecimento para a aplicação da análise aural. Tal ordenação final e conclusiva pode considerar a análise aural um mecanismo de renovação das tradições com relevância para as práticas interpretativas. Constitui-se, desta forma, a contribuição do trabalho como sugestão para pesquisas futuras, apontando-se para a aplicação da análise aural realizada nesta tese. Outras pesquisas experimentais na área das práticas interpretativas que venham a utilizar o modelo de pesquisa Ex Post Facto aplicado à gestão do conhecimento servirão também para outras obras do mesmo autor, extensivo a outros compositores e intérpretes. 165

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177

ANEXOS

178

179

ANEXO A

PARTITURA AUTÓGRAFA DE FLOR DA NOITE

180

181

182

183

ANEXO B

PARTITURA AUTÓGRAFA DE MODINHA & BAIÃO

184

185

186

187

ANEXO C

PARTITURA AUTÓGRAFA DE BAIÃO

188

189

190

191

192

193

194

195

196

197

ANEXO D

PARTITURA EDITADA DE FLOR DA NOITE – PÁGINA 1

198

199

200

201

ANEXO E

OBRAS DE CÂMARA PARA DUOS COM PIANO DE GNATTALI

CANTO E PIANO

Três Poemas de Augusto Meyer para canto e piano (1931). I. Violão (dengoso) II. Oração da Estrela Boieira (vagarosamente e triste) III. Gaita (movido em tempo de polca)

Modinha para canto e piano (1937), dedicada à cantora Christina Maristany.

Valsa Romântica n° 1 para canto e piano com poema de Manoel Bandeira, [s.d.].

Valsa Romântica n° 2 para canto e piano com poema de Manoel Bandeira, [s.d.].

Nhapopé : motivo popular para canto e piano, [s.d.].

Prenda Minha : motivo popular para canto e piano, [s.d.].

Oração para canto e piano; poema de Jorge de Lima, [s.d.].

Tayeras : motivo popular para canto e piano (1941), dedicada ao violonista argentino Gastón O.Talamon.

Seis Canções , para canto e piano (1967), versos de Manoel Bandeira, dedicada a Nelly Biato Gnattali. I. Dona Janaína IV. Cantiga II. Canto de Natal V. Canção III. Temas e Voltas VI. Acalanto (para John Talbot).

CAVAQUINHO E PIANO

Variações sem Tema para cavaquinho e piano (1983), dedicado a cavaquinhista Luciana Rabello.

202

CONTRABAIXO E PIANO

Canção & Dança (1934).

FAGOTE E PIANO

Canção sobre tema de aboio, (1934), dedicada ao pai Alessandro Gnattali.

FLAUTA E PIANO

Sonata em três movimentos [s.d.].

Sonatina para flauta e piano ou violão (1959), dedicada ao Duo flautista Norton Morozowicz e a pianista Laís de Souza Brasil. I. Cantando com Simplicidade (Allegro moderato) II. Expressivo e poco rubato (Adágio) III. Movido

Sonatina para flauta e piano (1974), dedicada a Celso Wotzenlogel e a Heitor Alimonda. I. Allegro Moderato, II. Expressivo III. Alegre (lembrando Pixinguinha).

HARMÔNICA DE BOCA E PIANO

Canção e Dança para Harmônica de Boca e Orquestra de Cordas , versão para harmônica de boca e piano do autor [s.d.].

Concertino para Harmônica De Boca e Orquestra , versão para harmônica de boca e piano do autor, [s.d.]

DOIS PIANOS

Rapsódia Brasileira (1933), para dois pianos baseada nos temas populares, dedicada a Brutus Pedreira e Ayres de Andrade. I. Meu Boi Morreu; II. Viuvinha bota luto; III. Anda Roda Desanda Roda

Valsa para dois Pianos (1933), dedicada ao pintor Candido Portinari.

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Melodias do Brasil para piano a quatro mãos quatro (1945). I. Tutu Marambá (tema com variações), II. A canoa virou, III. Teresinha de Jesus, IV. Um Pouco de Ritmo

Concerto Romântico para piano e orquestra sinfônica, (1949), redução para dois pianos do autor. I. Allegro, II. Lento com fantasia, III. Allegro Moderato;

Acalanto para Piano a Quatro Mãos , (1956).

Brasiliana n° 8 para dois pianos (1956). I. Schottisch, II. Valsa, III. Choro (Tocata)

Negrinho do Pastoreio – Suíte (bailado) para dois pianos, (1958-1959). I. Allegro Moderato IV. Movido II. Dança (movido) V. Tema do Vento III. Allegretto VI. Tempo de Polca (movido)

Sonatina Coreográfica para dois pianos (1960) I. Samba, II. Valsa, III. Baião;

Valsa Vaidosa n° 2 para dois pianos (1963)

SAXOFONE TENOR E PIANO

Brasiliana n° 7 para sax tenor e orquestra de cordas, versão para sax e piano (1956), dedicada ao saxofonista Sandoval de Oliveira Dias. I. Variações sobre um tema de viola II. Samba Canção III. Choro

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VIOLA E PIANO

Concerto para viola e orquestra de cordas , versão para viola e piano (196-). I. Allegro Moderato II. Saudoso III. Vivo

Sonata para viola e piano (1969). I. Allegro II. Adágio III. Con Spirito

VIOLÃO E PIANO

Suíte Popular Brasileira para violão elétrico e piano (1953). I. Invocação a Xangô IV. Samba Canção II. Toada V. Baião III. Choro VI. Marcha

Sonatina para violão e piano (1957), dedicada a Dilermando Reis. I. Allegro Moderato, II. Saudoso, III. Ritmado

Suíte Brasileira para piano e três violões (1985), dedicado ao Trio Op. 12. I. Brinquedo II. Acalanto III. Acalanto IV. Aboio V. Desfile 205

VIOLINO E PIANO

Violino para violino e piano de (1929)

Poema , (1934), redução para violino e piano do original para orquestra de cordas, dedicado a Célio Nogueira.

Uma Rosa para Pixinguinha para violino e piano, (1964) original para piano solo.

Sonata para violino e piano , (1966), dedicado a Colin Holman Howden. I. Cantilena II. Lento - Allegro Moderato III. Alegre

Flor da Noite (1938), dedicado a Romeo Ghypsman.

ARIA da Suíte Antiga (1972), transcrição do autor para violino e piano original para orquestra de cordas, dedicada a violista Nathércia e João Pinheiro da Silva Filho;

VIOLONCELO E PIANO

Flor da Noite, versão para violoncelo e piano (1938) da obra original para violino e piano.

Sonata n° 1 para violoncelo e piano (1935), dedicada ao violoncelista Iberê Gomes Grosso. I. Movido II. Lentamente III. Alegremente

Modinha & Baião para violoncelo e piano (1952), dedicada ao violoncelista Gregory Benko.

Brasiliana n° 9 para violoncelo e orquestra (1960) versão para violoncelo e piano, dedicada ao violoncelista Iberê Gomes Grosso.

Sonatina para violoncelo e piano (1965), original para violoncelo e dois violões. I. Allegro, II. [s.i.] III. Ritmo

Sonata n° 2 para violoncelo e piano (1973), dedicada a Iberê Gomes Grosso. I. Allegro Moderato II. Lento III. Alegre

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ANEXO F

DEPOIMENTOS INÉDITOS DE AMIGOS DE RADAMÉS GNATTALI COLHIDOS PELA PESQUISADORA ENTRE 1988 E 1990

AÍDA GNATTALI

Radamés era um gênio... Desde pequeno ele teve uma facilidade incrível para música. Tudo era a música. Com dois anos, ele imitava os adultos no violino de brinquedo e dizia que queria a música. Aprendeu piano com nossa mãe. Ela era muito severa na leitura, nos dedos no lugar certo e em cada compasso da partitura, o respeito ao texto. Radamés entrou para o conservatório com 14 anos. Estudou com Fontainha durante cinco anos. Aos 18 anos, ele preparou a sonata de Liszt em apenas um mês. Foi quando ele foi para o Rio de Janeiro se preparar para o 1º recital na então capital federal. Radamés tinha uma leitura de primeira vista inacreditável. Por ocasião da prova de formatura, ele preparou os “Estudos Sinfônicos” de Schumman também em um mês, tendo tirado a nota máxima. Por isso ele era um gênio. Sua facilidade era absolutamente fantástica. Quando começou a compor foi da mesma forma; com a mesma facilidade. Eu convivi com muitos músicos, mas jamais conheci algum como Radamés. Não sei quando a gente vai ter outro artista assim. Nasceu para ser músico. Foi um músico completo. Pianista excelente, arranjador, regente, compositor, sinfônico, compositor de música popular. Sobre a vida do meu irmão, eu posso dizer que ele foi feliz. A vida o fez abandonar a carreira de concertista. Ele poderia ter sido um grande concertista, mas era pobre. Teve que se virar para sobreviver. Casou-se e veio para o Rio com a mulher e quando tiveram o primeiro filho, Radamés já estava dentro da área de compositor e arranjador. Na verdade, ele já compunha, mesmo que timidamente, desde os 18 anos. Estudou violino, viola, cavaquinho, violão... Interessava-se por vários instrumentos. Mais tarde pegou no violoncelo e fagote, apenas com interesse de compositor – não era para tocar propriamente. Interessante é que ele não tinha ouvido absoluto; mas o seu ouvido harmônico era sofisticadíssimo. Trabalhou muito como arranjador. Ele fazia uma base de oito ou nove arranjos por semana, no mínimo! Ele tinha uma prática muito grande. Escrevia música como se fosse uma carta. Era autodidata.

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Aprendeu ouvindo as sinfonias e acompanhando pela partitura. Aliás, Radamés estudou sim um pouco de harmonia na época em que faria um concurso para professor no Instituto Nacional de Música. Mas foi pouco tempo e que eu saiba, jamais frequentou aulas de contraponto e fuga. Começou a se interessar pela composição bem cedo, mas não mostrava nada a ninguém. A Rapsódia Brasileira , por exemplo, ele fez antes de casar, ainda em Porto Alegre. Acho que tinha uns 19 anos. Radamés várias vezes escreveu peças para algum músico que ele gostasse. Não tinha orgulho bobo. Era muito humilde, apesar de ter muita personalidade. Às vezes ele perguntava para o próprio músico se ele achava que a frase que tinha escrito estava difícil de tocar. Se estivesse complicado, ele mudava. Radamés sempre fazia questão de escrever fácil --- mas ao mesmo tempo tinha que soar cheio e sofisticado harmonicamente. As peças para piano, principalmente, parecem difíceis, mas não são. Está tudo debaixo das mãos. Não sei se o Radamés desenvolveu sua técnica com o nosso professor Fontainha, pois ele tinha outros alunos que não apresentavam a técnica de Radamés. Meu irmão tinha a mão muito boa para piano. Carnuda, flexível. Muito natural. O seu som era redondo, mesmo nos fortíssimos. O som tinha sempre um veludo. Radamés tocava sem fazer caretas, sem contrações. Ele admirava muito o Claudio Arrau. Radamés não estudava de ouvido. Ele botava a partitura na frente e era cuidadoso. Radamés tocava o texto tal qual era e sentia a música dentro de si. Inclusive não gostava de tocar de memória. Tinha um pouco de preocupação para tocar sem a partitura na frente, isto porque com o passar do tempo não estudava mais. Não tinha tempo de praticar a memória, então só tocava com a partitura na frente. Ultimamente, ele estava estudando os detalhes nas obras. Sempre descobria uma coisa. Gostava de novidades. Sua mão esquerda era fantástica. Tocava muito límpido, muito cristalinamente. Ouvia-se tudo o que ele tocava, claramente. Eu sempre me lembro de Radamés no piano. Adulto, Radamés era um anarquista. Desejava que todos vivessem muito bem, mas sem leis. Não suportava o Getúlio Vargas. Adorava o Rio de Janeiro e adotou esta cidade como sua morada, seu meio de vida e sua inspiração para a música. Radamés era muito querido pelos músicos populares: sambistas, cantores. Dizia sempre que a música popular era a base. Para Schubert, Haydn, Chopin... Sempre tinha sido assim. Ganhou muito dinheiro na Rádio Nacional. Comprou um apartamento em Copacabana, carro e tudo o que gostava. A Rádio Globo fez de tudo para tirá-lo de lá, mas foi fiel à Nacional até o fim. 209

Radamés adorava conviver com os amigos. Tê-los em casa para um churrasco e um chope era tudo de bom para ele. Dizia: “que ambiente formidável é o ambiente de churrasco! A gente reúne os amigos, toma um chope, nada melhor...” O mau humor de Radamés é uma lenda. Ele era muito tímido. Vivia sorrindo e mesmo quando se estava pensando que ele falava sério, era na verdade uma brincadeira, uma ironia qualquer. Não era mal-humorado, mas sim muito impaciente.

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ANTÔNIO CARLOS JOBIM

Radamés foi um humanista. Dava tudo para todo mundo. Mas o Brasil da época do Radamés era tão tolo que ficava “xingando-o de jazzista”. Sabe essas pessoas que não entendem as coisas? E, principalmente, não entendem nada de música? Eles confundem tudo. O Brasil é uma confusão total. Tudo é de cabeça para baixo. O Radamés poderia ter vivido muito bem em qualquer país do mundo. Era um gênio e um excelente orquestrador. Ele orquestrou todo mundo. Me ajudou muito. Gravou e orquestrou muita coisa minha quando eu estava começando e de graça. Em 1984 eu escrevi a contracapa de um disco seu, que diz: Meu amigo Radamés é a coisa melhor que tem. É um dia de sol na floresta, é a graça de querer bem. Radamés é água alta, é fonte que nunca seca. É cachoeira de amor, é chorão, rei da peteca. Deu sem saber que dava e deu muito mais que tinha. Multiplicaram-se os pães, multiplicou-se a sardinha. O Radar é concertista, compositor, pianista, orquestrador Mestrão. E mais que tudo é amigo, navega junto contigo. É constante doação. Ajudou a todo mundo, e mais ajudou a mim... Alô Radamés, te ligo Vamos tomar um chope Aqui fala o Tom Jobim Te apanho na mesma esquina Já comprei o amendoim.

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ARTHUR MOREIRA LIMA

O essencial da música do Radamés está em sua facilidade, seu “metier” na arte de compor. Era uma espécie de Bach, Haydn, um Mozart do século XX. Sua contribuição do ponto de vista pianístico foi enorme. A rítmica das peças é difícil e muito píanistica. Obrigam o intérprete a tentar ouvir aquilo e se informar. O que o Villa-Lobos fez com a música folclórica, o Radamés fez com a música popular urbana. A grande diferença é que o Radamés pegou um tema do Garoto ou do Pixinguinha e fez uma sinfonia e não sobre o Passa-Passa- Gavião. Foi maravilhoso trabalhar com o Radamés. Ele era muito engraçado, extremamente fácil. Ele dizia: “Eu gosto é de fazer música. Se não tiver música não tem graça”. Radamés é Mozartiano , (risos) não é a toa que nasceu no mesmo dia 27 de janeiro, 150 anos depois. Mozart não se preocupava em ser inovador. Beethoven sim. A atitude de desprezo e de descaso que o meio intelectualóide brasileiro teve para com a música de Radamés é inadmissível. Certos setores continuam tendo o mesmo preconceito de sempre em relação a Radamés Gnattali, mas alguns tiveram também em relação a Villa-Lobos. É só vermos os jornais da época. A sorte de Villa é que ele tinha uma noção intrínseca de marketing e foi um gênio também nisto. Radamés não sabia nada de marketing pessoal promocional e não estava interessado em fazer política. Isso foi ruim para ele. Digo que ele era um Mozart ou Haydn, pela maneira econômica de compor, tirando o máximo de efeito e usando o mínimo de notas, desenvolvendo pouco os temas e quase não usava o pedal. Ele conhecia muito bem o piano. Era um grande pianista. Uma figura que estava em paz com o mundo. Talvez daqui a um século ou dois, a música brasileira se universalize como a das grandes nações. Quando você capitula diante da música de um país é também porque aquele país é ou foi mais poderoso economicamente no cenário mundial. Não temos dinheiro para mandar nossas orquestras tocarem nossa música pelo mundo. Se a Bossa Nova aconteceu, é única e exclusivamente porque o americano descobriu e abraçou-a como sendo “jazz”, que é uma maneira de tornar tudo americano. O Free Jazz é isso, foi criado para dar lucros enormes para eles (risos). A música brasileira é boa o suficiente para se tornar universal. Villa-Lobos cada vez mais está sendo tocado. Isaac Albéniz, Manuel de Falla, também demoraram a ser executados. Hoje em dia, há muito mais interesse na renovação do repertório.

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BRAGUINHA

Na década de 1930 eu fui diretor artístico da fábrica de Discos Continental. Radamés foi um dos meus maiores amigos. Eu tinha as músicas de maior sucesso nos carnavais e o Radamés era quem eu convidava para gravar e fazer os arranjos de minhas músicas. Radamés foi o que mais me ajudou fazendo arranjos. Ele dirigia as orquestras nas gravações de minhas músicas e também de outros compositores que gravavam na Continental. Era um grande amigo e, além disso, camarada — figura ímpar — formidável. Eu gostava muito dele. O Radamés ajudou a muitos compositores como eu, que não sabiam música. Lamartine Babo, Noel Rosa, nós não sabíamos nenhuma nota de música, de maneira que Radamés ajudou muito, fazendo nossas orquestrações, nos aconselhando. Era maravilhoso! Muito bom, grande amigo, sempre pronto a ajudar os outros. Ele fez muitas orquestrações de minhas músicas e um dos trabalhos mais originais e de muito sucesso foi a orquestração de minhas historinhas infantis lançadas em disco Continental-Colúmbia. As historinhas de Walt Disney foram lançadas em disco aqui no Brasil porque um americano que esteve no Brasil em 1945 pediu que eu fizesse a dublagem. Ele gostou. As músicas tinham arranjos do Radamés. Pela qualidade das orquestrações, Radamés recebeu um convite para trabalhar na Companhia de Walt Disney, mas preferiu ficar no Brasil. Radamés não era ambicioso. Tinha um grande valor, trabalhou muito e também ganhou muito dinheiro com gravações e com a Rádio. Naquele tempo, não havia televisão e quase tudo era pela Rádio Nacional, que era a melhor. No meio popular, nunca ninguém falou mal de Radamés. Nunca teve problema nenhum com ninguém. Para nós populares, que não sabíamos música, ele nos deu grande ajuda, pois, sem preconceitos e com enorme seriedade, ele orquestrava valorizando nosso trabalho. Sempre ouvi falar bem do Radamés, como músico e como pessoa humana.

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CHIQUINHO DO ACORDEÃO

Até 1951 Radamés detestava acordeão. Não escrevia nada para esse instrumento até que nos conhecemos em uma gravação. Eu trabalhava na boate Monte Carlo com Carlos Machado e Huguinho de Moraes. A gravação era para um disco de 78 rotações e teria Radamés nos arranjos e no piano, José Menezes na guitarra, Vidal no contrabaixo. Eu fiquei, então, com um “supercomplexo”, pois os outros liam muito bem de primeira vista e eu tive que estudar três dias firme e direto para aquela ocasião. Daí, Radamés disse que só gravaria com acordeão se fosse comigo tocando. Ficamos muito amigos. Tínhamos afinidade como instrumentistas, éramos os dois do Rio Grande do Sul, morávamos em Copacabana com nossas famílias e trabalhávamos para a Rádio Nacional (foi o Radamés que me recomendou para lá). Eu passei a tocar na orquestra da Rádio, no Sexteto Radamés, no Quinteto e em gravações. Na música, Radamés sempre soube o que queria. Ele era muito seguro. Para as coisas da vida, ele era indeciso. Era muito esquisito e tímido. Não gostava de dar entrevistas. Não gostava de falar de si próprio. Só ia a algum lugar se fosse com a companhia dos amigos. Era para se proteger das pessoas que não conhecia. Nos últimos 10 anos ele mudou muito... (risos) Deixou até que o Hermínio Bello de Carvalho fosse com a TVE na casa dele para fazer um programa em sua homenagem. Radamés foi um autodidata. Era um excelente pianista que começou a escrever com muita facilidade. No início, ele não sabia escrever nas claves certas dos instrumentos. Escrevia tudo em dó. O Mariano Ptzialli copista é que transportava na hora de escrever para os naipes dos instrumentos transpositores. No início também não sabia a tessitura dos instrumentos, aprendeu tudo na prática e dizia que música não se ensina, se aprende fazendo. Radamés jamais fez distinção entre erudito e popular, mas sim do que achava bom e ruim. Muitas vezes em seu trabalho na Rádio, tinha que fazer arranjos de músicas muito ruins. Radamés adquiriu tanto conhecimento através da prática que escreveu concertos com orquestra para todos os instrumentos solistas existentes e ainda para aqueles pouco convencionais como é o caso de Concerto para Harpa e orquestra; Concerto para Gaita e orquestra; Concerto para Acordeão e orquestra; Concerto para Bandolim e orquestra; Concerto para Marimbafone e Orquestra ; e muitos outros. Escrevia para o instrumentista e para os amigos. Viveu tranquilo e indiferente ao sucesso ou ao insucesso. Depois que acabou a Rádio Nacional ele foi para a TV Excelsior e depois para a TV Globo.

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Quem mais influenciou o Radamés para a composição foi a música de Rachmaninoff. Não que escrevesse nesse estilo, mas pela comunicação imediata que a música deste compositor alcançava. O engraçado é que ele e a Aída gostavam muito do Claudio Arrau, que detestava Rachmaninoff. Radamés também adorava o Michelangelli como pianista. E no jazz , o Nath King Cole, o André Previn e o Art Tatum. Tirava todas as frases de ouvido do rádio e tocava. A obra do Radamés era elaborada. Soava como sendo complicada, mas não era nem complicada nem difícil de tocar, fruto da experiência absurdamente vasta que ele teve como orquestrador profissional. Tudo soa bonito. As coisas mais simples, com três ou quatro instrumentos soam bonito. Não tem nada fora do instrumento. É incrível a maneira fácil com que ele chega ao instrumento do camarada músico. Radamés escreve fácil uma coisa que seria complicada de tocar. Ele dizia que num concerto o difícil eram os adágios, pois era ali que o intérprete tinha que mostrar tudo que tinha dentro de si e tudo que sabia de música. Radamés escrevia para o instrumentista. Quando era gravação de música popular e ele sabia que encontraria no estúdio “os feras”, ele apenas colocava a cifra e deixava o músico improvisar. Ele confiava, sobretudo, na música. Não enchia se o músico era bom... (risos). Acima de tudo ele amava a música. 219

HENRIQUE CAZES

Conheci Radamés em fevereiro de 1980, no Bar Amarelinho. Fui apresentado como novo membro da Camerata Carioca, substituindo Luciana Rabello. Eu só tocava de ouvido e participava do conjunto “Coisas Nossas”. Fiquei com o tempo totalmente dedicado à música, só para conseguir tocar o que o Radamés propunha. Em fevereiro de 1980 eu o conheci e em junho do mesmo ano, eu tinha que gravar com a Camerata e o Radamés. Ele era um mito. Só digo o seguinte: “eu me preparei e me esforcei muito para fazer aquela gravação”. Radamés, apesar da fama de impaciente, passava a música comigo com muita paciência e devagar. Radamés dava valor ao empenho. O que mais me marcou positivamente foi que ao terminarmos a gravação, Radamés falou que eu era o músico que mais tinha estudado e se empenhado para aquele disco. De fato, eu de tanto estudar sabia as partes de todo mundo. Radamés havia valorizado o meu empenho. Quando a Camerata começou, ele não acreditava que iria fazer música de câmara com aquela formação, pois não imaginava que iria encontrar músicos dispostos a estudar e a ensaiar. Um regional é basicamente composto por músicos que tocam somente de ouvido, de uma forma muito intuitiva. Nunca foi um grupo de músicos que estudassem para ler música, que estivessem dispostos a tocar arranjos ou músicos usando partitura. Radamés dizia que se Bach ou Beethoven conhecessem esses instrumentos eles teriam escrito para esta formação. A combinação era muito boa. Se compararmos os primeiros arranjos feitos para a Camerata, notamos uma grande diferença. Os primeiros eram mais acompanhamento de algum solo; os últimos um verdadeiro conjunto de câmara. Radamés contava muita coisa de sua vida quando saíamos para tomar chope. E cada vez eu admirava mais o mestre. Radamés era totalmente aberto, não tinha fronteiras musicais. Como era pobre, quando chegou ao Rio de Janeiro teve que trabalhar. Aqui ele tomou contato com outros músicos e se fascinava com um tipo de música que não era comum a um erudito se interessar. Por exemplo: ao invés de ver os “pianeiros” com olhos preconceituosos, ele viu com olhos de grande criador. Isso se incorporou na sua cultura. A influência de Ernesto Nazareth foi fundamental para o Radamés compositor. Naquela música havia outro universo como ponto de partida. Aliás, toda a vivência do Radamés deixou um lastro muito visível na obra dele. O fato de ter tocado de clássicos até os

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românticos; de ter tocado num conjunto chamado “Os Boêmios”; de ter tocado num quarteto de cordas; de ter conhecido os pianeiros de época; de ter passado por todo o tipo de trabalho como músico até se firmar financeiramente; enfim, foram todas experiências rápidas, porém marcantes. Depois veio a consagração. Já recheadas das influências que sofria constantemente no trabalho como arranjador e orquestrador da Rádio Nacional, no contato com outros instrumentistas como Garoto e Luiz Americano e no contato com arranjadores como Pixinguinha. Radamés dizia sempre que Pixinguinha era um gênio. O sucesso do Orlando Silva, que estourou em 1936, tinha por trás o talento e bom gosto do Radamés. Em Lábios que Beijei (sucesso de 1937), Radamés fez um arranjo para quarteto de cordas e colocou um solo de violoncelo feito por Iberê Gomes Grosso que é uma obra prima. Muito evoluído para a concepção de orquestrador que havia no Brasil nessa época. A orquestração de Radamés foi pioneira. Toda a forma de orquestrar música popular foi mudada a partir do Radamés. E ele era um autodidata por excelência. Talvez por isso ele nunca tenha acreditado em ensino. Ele tinha muito talento natural. Excluindo-se a direção musical da Rádio Nacional e os arranjos que fazia, ele ainda tinha tempo de compor sua música de concerto. Isso é certamente um fenômeno como capacidade de trabalho. O Radamés trabalhou muito mais do que o normal para um músico extraordinário, mas o que é mais curioso é que isso não o consumia. Era fácil e prazeroso para ele. Radamés absorveu toda a vivência que teve da música popular brasileira. Sempre compôs muito para sua música de concerto. Mesmo no período mais fértil da Rádio Nacional, quando tinha realmente muito trabalho e fazia por certo, no mínimo, nove arranjos por semana, não considerava este trabalho como sua música. Considerava que era apenas uma forma de sustento. Dessa forma, compunha sua música de concerto paralelamente e ininterruptamente. Talvez pela prática adquirida, sua orquestração dinâmica e sucinta acabou se tornando característica na sua obra. Se pegarmos a primeira obra para piano, Rapsódia Brasileira , veremos que era Liszteana , nacionalista e muito rebuscada. Totalmente diferente das obras posteriores que são mais sucintas. O grande “barato” do Radamés foi quando ele incorporou tudo: a experiência e a vivência da música popular; a admiração pelos músicos de jazz; o instrumentista virtuoso que ele era; com toda a sua bagagem erudita. 221

LUIZ OTAVIO BRAGA

O Radamés era uma figura formidável. Enquanto ele não chegava, as pessoas faziam as coisas mais ou menos. Quando ele chegava, elevavam o nível. Se não tocavam com arte suprema, pelo menos faziam direito. O músico tinha consideração com ele. Ele sempre incentivava, sem saber que o fazia, apesar do respeito exagerado que todos tinham por ele e até de um pouco de medo. A figura do Radamés impunha respeito. Apesar de ser um cara simples, ele era um músico muito importante. Radamés só entendia a linguagem da música e só se interessava realmente por isso. Nas entrevistas, jamais foi o protótipo do vaidoso. Ele pensava muito na música. Suas ideias musicais eram sempre direcionadas ao músico. Escrevia para o instrumentista. Se você pedisse um concerto para ele, ele pensava na personalidade da pessoa e escrevia. Radamés gostava muito do violonista Garoto. As peças do Radamés para violão têm muito do movimento dos baixos que o Garoto fazia. Radamés usou toda a experiência que teve, tudo o que ouviu e gostou, para a sua composição erudita. Por exemplo, a música do Ernesto Nazareth, a música de Ravel, os ritmos brasileiros, o choro, a bossa nova, essas foram suas influências marcantes. Radamés não deixou alunos. Ele achava que o músico devia tocar com absoluta liberdade. Uma razão para ele não ter escrito na música indicação de dinâmicas, indicações de agógica e andamentos, é porque achava que o verdadeiro músico saberia tocá-la e percebê-la. Ele dizia que não adiantava escrever tudo, pois a boa interpretação não iria sair se a pessoa não sentisse qual a atmosfera que criou a obra. Radamés dizia que muitas obras que eram demasiadamente indicadas pelos autores, muitas vezes, eram tocadas absolutamente erradas, sem bossa e sem interesse nenhum. O exemplo disso são as Mazurcas de Chopin, que ele considerava realmente difíceis de interpretar. Nesse tipo de peça era preciso sentir o espírito da obra. Certa vez perguntei ao Radamés em que escola ele se enquadrava. Primeiro ele disse que em nenhuma, depois ele respondeu que se considerava um Neoclássico Nacionalista .

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RAPHAEL RABELLO

Antes de conhecer Radamés Gnattali, eu era um músico de choro. Radamés foi para mim um grande mestre. Abriu-me o mundo musical. Eu estava enxergando a árvore e ele me fez ver a floresta. Atribuo 80% do meu conhecimento musical a tudo que aprendi com Radamés. A maior importância que Radamés teve, a meu ver, foi o fato de ter sido tão eclético. Ele não via barreiras entre as músicas. Radamés me fez saber que sem os dogmas e preconceitos, poderíamos fazer as músicas que bem entendêssemos e que nos despertasse vontade. Radamés, por si próprio, quebrou todos os conceitos e preconceitos. Ele mergulhou fundo na brasilidade, misturando tudo, fez uma loucura e foi completo. Como violonista, posso dizer que não existe nenhuma obra que supere tecnicamente a obra de Radamés para violão. A obra dele se iguala em importância ao que existe de mais perfeito em termos de técnica violonística. Além do mais, ele desfila por várias escolas, passando pelo jazz , choro, baião, sobretudo valorizando a música brasileira. Ele tem uma identidade nacionalista muito grande. A linguagem violonística que ele imprimiu em sua obra é brasileira e carece de um instrumentista que tenha trânsito direto com esta linguagem. Um violonista acadêmico nunca vai tocar um Radamés da maneira que deve ser tocado. Assim como não vai tocar Villa- Lobos, Granados, Albéniz ou qualquer compositor que tenha uma identidade com a rítmica de raízes populares. O violão é um instrumento de música do povo. Não adianta dizer que é um instrumento de música clássica porque não é verdade. Não tem literatura e todos os compositores que escreveram para violão pensaram em grandes festas populares. Isso não é vergonha nenhuma. O violão tem uma erudição muito grande sim, na parte técnica. É um paradoxo, pois o instrumentista-intérprete tem que ter erudição, técnica, virtuosidade e, ao mesmo tempo, a consciência que seu instrumento é de grande comunicação. Tem que ser músico aberto. No Concertinho nº. 2 e em toda a obra de Radamés para violão, encontramos uma forma clássica e ao mesmo tempo livre no sentido musical. Os tempos, os temas, a mensagem muito livre. Era essa a grande filosofia do Radamés. Como influências na música de Radamés, existiu o jazz , os impressionistas do início do século XX. Radamés era também muito voltado para os instrumentistas para quem escrevia. A alma dele se voltava para o instrumentista para quem escrevia. Ele mesmo foi um ótimo exemplo de instrumentista que é compositor. O maior exemplo brasileiro disso. Encontramos em sua obra recursos harmônicos que se ouve no jazz adaptado à música de

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concerto e também outras características da música popular brasileira carioca. Também tinha uma coisa meio rococó nos desenhos e frases. O exagero de arabescos tanto nos baixos quanto na própria melodia. Floreios onde o intérprete pode botar pra fora toda sua vaidade de virtuose. A execução violonística da obra de violão de Radamés é mais difícil que a de Villa-Lobos. Talvez porque Villa-Lobos fosse violonista. Radamés escrevia fácil para piano, pois conhecia a alma do piano. Quando era jovem, o interesse dele era ser apenas um pianista, mas, finalmente, acho que uma coisa não impediu a outra. Na verdade, eu acho que ele seria compositor de qualquer maneira, pois tinha grande criatividade e talento para a composição. Radamés adquiriu grande técnica de orquestração. Escreveu simples. Não tem nota jogada fora. A redução que ele fez do Concertino para violão e orquestra para nós dois tocarmos juntos, eu no violão e ele no piano, é muito bem feita, aliás, como tudo o que ele fez. Entretanto, como é uma redução é naturalmente mais pobre. A contribuição que os jovens chorões da Camerata Carioca deram ao Radamés foi o fato de sermos jovens e estarmos em torno dele. Na época, Radamés estava muito desanimado e muito parado, talvez desiludido com essa falta de estrutura que existe no Brasil. A contribuição desse grupo de jovens sedentos por aprender e por poder tocar com Radamés foi a de tê-lo feito se sentir amado e respeitado. Ele estava se sentindo muito largado e o contato conosco o animou e revitalizou. Radamés rejuvenesceu. Por conta disso ele, que já usava choro como influência em suas músicas de concerto, passou a escrever para regional, escrevendo, então, música para regional e orquestra; piano e regional; cavaquinho e piano; bandolim e orquestra; violão de sete cordas e orquestra; etc. 225

ROBERTA GNATTALI

Sou filha de um gênio. Apesar de termos sido muito companheiros, sua paixão maior sempre foi sua música. Ele vivia para isso. Curtia intensamente a música. Morei com meu pai até 1966, época do seu segundo casamento, quando ele se mudou de Copacabana para o Jardim Botânico. Lá em casa era aquele entra e sai de amigos e de artistas. Isso até quando mamãe adoeceu em 1960, mais ou menos, e esse clima festivo mudou um pouco. Houve uma fase no início da década de 70 que ele ficou muito desiludido com o meio e estava muito só. Aí apareceu o Joel Nascimento e o pessoal da Camerata Carioca que o reanimaram de uma maneira extraordinária. Ele viveu seus últimos dez anos muitíssimo feliz novamente. Ele escrevia música como que por compulsão. Gostaria de ver sua música mais tocada. O tempo todo ele escrevia para concertos. Era o que ele gostava. Conhecia muita música. Era absolutamente eclético e nem um pouco radical nos gostos musicais. Foi de uma generosidade imensa. Era o que ele tinha para dar e dava para quem quer que fosse. Meu pai nunca acreditou em mitos, nem para ele nem para os outros. Ele admirava uma pessoa pelo que ela era. Tranquilamente. Gostava de ser elogiado, mas não era como uma “sensação”. Não entendia nada de marketing. Não soube se viabilizar, não tinha paciência, não fazia lobby . Isso ele nunca estava a fim de fazer. Gostava de sossego, da música, de sentar com a família, amigos, chope e de conversa. Muita conversa. Eu sempre me lembro dele como um homem que teve uma vida de muito trabalho. Acho que ele gostaria de ser lembrado pelo músico que ele foi. E teve um reconhecimento por parte dos músicos durante sua vida que poucos tiveram, apesar das críticas. Viveu muito bem com ele mesmo, foi muito feliz com a vida e com a música que fez. Não era nem um pouco encucado com nada.

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ROBERTO GNATTALI

Radamés nunca dava aulas. Ele realmente tinha uma facilidade muito grande para a música. Um traço genial. Ele era impaciente. Muito mesmo. Se ele tivesse que ter batalhado para fazer música, certamente ele não seria músico. Para ele, a música era uma coisa fácil. O Radamés era um compositor que quase não usava borracha. A arquitetura da obra estava na cabeça. Não é que ele não elaborasse, mas a elaboração vinha junto com a inspiração, direto para o papel. Essa impaciência dele reflete em várias coisas na vida prática. Por exemplo, se uma música não vinha na cabeça, passava para outra. Ele era impaciente mesmo. Não era de ficar mudando muito ou reescrevendo uma peça. Ele não era um compositor que rejeitasse suas próprias obras, mas ao mesmo tempo não fazia questão de divulgá-las, não “corria atrás”. Nunca pediu nada para ninguém. Ele era muito dado à família. Era um ser muito especial. Havia momentos que parecia ser muito feliz e outros que parecia distante de tudo. Num chope, num almoço, você tinha a impressão que ele estava muito feliz. Ele era uma pessoa muito charmosa, muito atraente e o famoso mau humor não assustava. Não admitia, mas gostava de elogios. Ele mesmo estabelecia a diferença da música dele e dos arranjos que fazia. E se aborrecia muito se chegassem a ele apenas como músico popular. Sempre perguntava: “você sabe quantas sinfonias eu tenho?” Querendo ele ou não, isso sempre aconteceu. Mas a música dele, em qualquer gênero, tinha a cara dele. Parecia que era sua, o estilo Radamés Gnattali inconfundível. Radamés não sabia a força que tinha. Não cobrava, não sabia dar preço, não dava a menor bola em ser “Radamés Gnattali”. Ele não tinha noção nenhuma de Marketing. Por exemplo: se ele fizesse uma vinheta de comercial de 30 segundos, isso para ele não era nada em termos de música; por isso, não sabia o que iria cobrar. Ele esquecia que por trás daquele comercial, às vezes, se vendiam milhares de unidades daquele produto. E assim era o Radamés, gênio, desligado das coisas práticas da vida. Era um ser livre, desbloqueado, despretensioso, que acima de tudo viveu da facilidade natural que tinha como músico completo.

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ANEXO G

FIGURAS ILUSTRATIVAS

Figura 1. Capa do LP Villa-Lobos / Radamés Gnattali do Duo Iberê Gomes Grosso e Radamés Gnattali (Fonte: Leme [1958-1964] / Foto: Capa do LP LDR-5028, por Reynaldo Dias Leme e Ari Fagundes [s/d]).

Figura 2. Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso em recital na década de 1960 (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

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Figura 3. Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso em recital na década de 1970 (Fonte: Barbosa, 2005, p. 80).

Figura 4. Em pé da esquerda para a direita: Adélia (mãe de Radamés), Camilo, Cézar, Emilia, Vittorio, Arthur, Paschoal e Frederica. Sentados: Paulina, Maria Weingärtner Fossati (avó de Radamés), Nina (Itala), Carlito, Carlo Fossati (avô de Radamés) e Virgílio em 1902 (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 5. Olga Fossati com o pai Cézar — prima e tio de Radamés (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

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Figura 6. Alessandro, Angelo, Giovanna, Teresa Bighelli (pai, avô, tia e avó de Radamés). Essa é uma foto montagem, cuja técnica foi muito utilizada no início do século XX. Ao receber a foto original, vinda da Itália, Alessandro mandou incluir uma foto sua e a reenviou para a Itália. Depois de sua chegada ao Brasil, nunca mais ele veria sua família de origem (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 7. Alessandro Gnattali, pai de Radamés Gnattali (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 8. Radamés Gnattali, foto de 1908, um mês para completar três anos de idade (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

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Figura 9. Radamés Gnattali com nove anos de idade, em 1915, na Sociedade Italiana, no dia que recebeu a medalha e o prêmio do Consul da Itália (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 10. Adélia Fossati Gnattali, mãe de Radamés Gnattali (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 11. Radamés ao cavaquinho no “bloco de carnaval” intitulado Os Exagerados (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

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Figura 12. Radamés Gnattali, abaixado à direita, atuando como violonista (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 13. Radamés Gnattali na década de 1920 experimentando o fagote (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 14. Ideal Jazz Band do Café Colombo (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

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Figura 15. Radamés Gnattali aos 18 anos (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 16. Fachada do Instituto Nacional de Música (Fonte: Acervo José Ramos Tinhorão/IMS, 2001).

Figura 17. Fachada do Cine Odeon em 1922 (Fonte: Acervo José Ramos Tinhorão/IMS, 2001). 235

Figura 18. De baixo para cima, na terceira fileira, Radamés é o terceiro, da esquerda para a direita, (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 19. Radamés e Vera Maria em 1929 (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 20. Casa Beethoven de Porto Alegre, em 1931, (Fonte: Virgilio Calegari [s/d] - Acervo Ernesto Nazareth 150 anos/ IMS, 2012).

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Figura 21. Fachada do Cine Odeon (Fonte: Acervo José Ramos Tinhorão/IMS [s/d]).

Figura 22. Casa Carlos Wehrs – O proprietário Carlos Wehrs e ao piano Freitinhas, (Fonte: Acervo José Ramos Tinhorão/IMS [s/d]).

Figura 23. Rosto de Radamés Gnattali - Gravura de Candido Portinari (Fonte: Pedro Bastos, 2005).

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Figura 24. Orquestra de Romeu Silva no Cassino da Urca (Fonte: Acervo Ao Chiado Brasileiro [s/d]).

Figura 25. Interior da Rádio Mayrink Veiga (Fonte: Acervo José Ramos Tinhorão/IMS [s/d]).

Figura 26. Radamés na Rádio Nacional (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

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Figura 27. Iberê Gomes Grosso, Radamés Gnattali e Romeo Ghipsman (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 28. Homenagem da Rádio Municipal de Buenos Aires a Radamés Gnattali (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

Figura 29. Pixinguinha e Radamés (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006). 239

Figura 30. Ary Barroso com Radamés Gnattali, Jorge Cury (locutor), Silvio Caldas (cantor) na Rádio Nacional, (Fonte: Arquivo fotográfico de Ary Barroso [s/d]).

Figura 31. LP Ernesto Nazareth - Radamés Gnattali e Orquestra Continental (Fonte: Capa do LP –V-02 1954).

Figura 32. LP Samba em três Andamentos de Radamés Gnattali (Fonte: Capa do LP Sinter – SLP 1037, 1955).

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Figura 33. LP Suíte Popular Brasileira para Violão e Piano (Fonte: Capa do LPP-36, Continental , 1956).

Figura 34. LP Radamés e a Bossa Eterna (Fonte: Capa do LP - PPL-12-104, selo Continental, 1964).

Figura 35. Sexteto Continental, depois Sexteto Radamés (Fonte: GNATTALI, Roberto, 2006).

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Figura 36. LP 3ª Caravana - Radamés na Europa (Fonte: Capa do LP selo EMI Music. 542465 2, 1960).

Figura 37. LP Retratos (Fonte: Capa do LP Gravadora Continental , 1964).

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ANEXO H

CD COM TAKES NA ORDEM DE APRESENTAÇÃO DO CAPÍTULO 3 – REVISÃO FONOGRÁFICA

CD que acompanha a tese contendo os seguintes itens: (a) fonogramas do LP Festa , com as peças Flor da Noite e Modinha & Baião interpretadas integralmente por Radamés Gnattali e Iberê Gomes Grosso (objeto da revisão fonográfica deste trabalho); (b) takes com os recortes indicados na análise (referentes ao Capítulo 3 desta tese e apresentados na ordem exata de citação no corpo do trabalho); (c) interpretações das mesmas obras pelo Duo Chew-Canaud (2006); (d) takes com os recortes; (e) vídeo do concerto ao vivo do Duo Chew-Canaud tocando Modinha & Baião na versão de 2012.