CRIME E GLOBALIZAÇÃO

DOCUMENTOS DE DEBATE Março de 2010

O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro

transnational institute TNI Briefing Series Crime e Globalização, Março de 2010 1 O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro

AUTORES: Índice Paulo Jorge Ribeiro Rosane Oliveira • Introdução: Insegurança humana 3 e mercados de violência TRADUÇÃO: Alexandra de Vries • O impacto da ação das milícias 6 EDITOR: em relação às políticas públicas Tom Blickman de segurança no Rio de Janeiro

ESBOÇO: Quadro: Liga da Justiça 7 Guido Jelsma

IMPRESSÃO: • Nota metodológica 7 Drukkerij PrimaveraQuint Amsterdam Mapa: Áreas sob controle de 8 milícias na capital fluminense APOIO FINANCEIRO: Ministry of Foreign Affairs (The Netherlands) • Delimitando questões 9

CONTATO: • Milícias, mercado da violência 11 Transnational Institute e poder local De Wittenstraat 25 1052 AK Amsterdam The Netherlands • Mudanças na perspectiva: da 13 Tel: -31-20-6626608 negação ao aceite das milícias Fax: -31-20-6757176 [email protected] • Visitando Gotham City 16 www.tni.org/crime • Considerações finais 19 Os conteúdos desse livreto podem ser cita- dos ou reproduzidos, desde que a fonte seja • Recomendações 22 mencionada.O TNI gostaria de receber uma cópia do documento no qual este livreto é Quadro: Principais 23 usado ou citado. recomendações da CPI Você pode manter-se informado sobre as publicações e atividades da TNI, assinando • Notes 24 o boletim eletrônico quinzenal. Faça seu pedido para [email protected] ou registre-se em • Bibliografia 27 www.tni.org

Amsterdam, dezembro de 2009 • Anexo: Impressões sobre um 29 ISSN 1871-3408 fenômeno “estranho”:

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Introdução: Insegurança humana e mercados de violência

Por Tom Blickman grar ilegalmente’ como meio de sobrevivência; adentram na economia informal não-regula- Este documento, escrito por Paulo Jorge mentada e as vezes na criminalidade, também. Ribeiro e Rosane Oliveira, explora um fenôme- Desde 2008, pela primeira vez na história, no aparentemente recente nos episódios recor- metade da população mundial, ou 3.3 bilhões rentes de violência urbana no Rio de Janeiro: de pessoas, mora em áreas urbanas. o surgimento das milícias – grupos bem orga- nizados de vigilantes particulares formado por Nas próximas duas décadas, este número policiais, bombeiros e agentes penitenciários crescerá para 60%. O ano de 2007 viu o núme- desonestos, demitidos ou aposentados. O ro de moradores de favelas pelo mundo afora documento demonstra que enquanto o papel ultrapassar a marca de meio bilhão. Um a das milícias particulares foi só recentemente cada três moradores mora em uma habitação aos jornais, ele é parte de um problema de in- in-adequada - com nenhum - ou poucos segurança pública que tem raízes muito mais serviços básicos. Cerca de 41% das populações profundas e históricas. Baseado em uma pes- urbanas combinadas de todas as regiões em quisa que foi feita sob condições difíceis e desenvolvimento moram em favelas, enquanto geralmente perigosas, este estudo descreve um 78% da população urbana em países menos cenário preocupante em assentamentos urba- desenvolvidos são moradores de favelas – nos informais que podem ser peculiares ao Rio de bem mais que 20% da humanidade. Espera- Janeiro, mas também representa desenvol- se que o número de moradores de favelas vimentos em segurança urbana que vão alcance 1.4 bilhão em 2020 e se não forem muito além da auto-denominada “Cidade tomadas medidas firmes e concretas, chegará Maravilhosa”. aos 2 bilhões em 2030, de acordo com UN Habitat.2 Globalmente, muitas comunidades em assenta- mentos urbanos informais e inseguros enfren- A comunidade internacional reconheceu tam sérios desafios com a segurança humana a urgente necessidade de enfrentar a situa- devido à ausência do estado de lei, segurança ção quando – como dizem os Objetivos de de estado e governança em tais condições. Desenvolvimento do Milênio (ODMs) – ficou acordado em “melhorar significativamente as Isso é particularmente verdadeiro em países vidas de pelo menos 100 milhões de moradores em desenvolvimento, onde há poucos recursos de favelas até 2020.”3 disponíveis para um ambiente seguro, e onde a instabilidade empregatícia e precárias opor- Algumas favelas são menos visíveis ou mais tunidades econômicas relacionadas aos setores integradas ao tecido urbano à medida que informais estão disseminadas. Em contraste as cidades se desenvolvem e que a renda dos com o bem-estar democrático e desenvolvido moradores das favelas aumenta. Outras se tor- de alguns estados que promovem segurança, nam componentes característicos das paisagens regulamentos e processos judiciais tendo como urbanas. As favelas em muitas cidades não são base a lei, provavelmente metade da população mais apenas bairros marginalizados abrigando mundial vive em frágeis esferas informais sem uma proporção urbana relativamente peque- acesso à proteção legal.1 na; em muitas cidades, elas são as formas de moradia predominante. Há uma tendên- A conseqüente insegurança material e econômi- cia de ‘informalização’ da economia urba- ca força muitos habitantes dessas áreas a ‘mi- na, com uma crescente parcela das rendas

Crime e Globalização, Março de 2010 3 O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro obtida através de empregos não-regulamenta- Violência, crime e exclusão social, a última dos. Na América-Latina e no Caribe, 7 entre 10 como forma de apartheid social, são os efeitos trabalhos em áreas urbanas são conseguidos colaterais negativos associados à rápida urban- através do setor informal. ização. Problemas de segurança são geralmente negligenciados no ambiente urbano, onde se De acordo com o relatório da ONU The Chal- espera que exista o Estado de direito, e são lenge of Slums (O Desafio das Favelas), a ca- deixados à imposição da lei e instituições de mada pobre urbana está presa em um mundo justiça criminal. Entretanto, de acordo com informal e ‘ilegal’ – “em favelas que não con- UN Habitat, a corrupção e práticas ineficazes, stam nos mapas, onde o lixo não é recolhido, inflexibilidade de resposta às circunstâncias onde os impostos não são pagos e onde não criminais em constante modificação, jun- há serviços públicos. Os moradores de fave- tamente com recursos e habilidades limita- las vivem, em sua maioria, fora da lei. Se eles das, minam seriamente o desempenho destas entram em contato com o governo, é mais instituições. “O problema da corrupção nos provável que suas tentativas de serem providos sistemas de justiça criminal e na polícia é de necessidades básicas – abrigo e subsistência particularmente corrosivo em termos de - sejam impedidas. Eles vivem em um estado confiança pública, já que a maior parte do de ilegalidade e insegurança permanentes, e público confia nessas entidades para realizar negócios ilegais e bandidos permeiam esses seus trabalhos tradicionais de apreensão e vácuos desgovernados.4 julgamento de criminosos.” 7

O Diretor Executivo da United Nations Office Em muitas cidades ingovernáveis, o estado on Drugs and Crime [Escritório das Nações geralmente não pode proporcionar a lei e Unidas contra Drogas e Crime] (UNODC), ordem e responder às necessidades básicas Antonio Maria Costa, identificou a segurança de segurança e é substituído por uma grande e o estado de lei como metas que ainda faltam variedade de sistemas alternativos e ilegais de para alcançar os ODMs.5 segurança, criando um poder e um vácuo na governança. O monopólio do estado no uso As necessidades da segurança têm mudado legítimo da força é corroído e “mercados de nas últimas décadas. “Durante as décadas violência” ou “mercados de força” – a forma de 60 e 70, o grande medo dos moradores de mais radical da privatização da segurança favelas em algumas cidades latino-americanas, – surgem como formas regulamentação da especialmente aqueles em invasões e favelas, segurança.8 Com a ausência da regra legal, da era a remoção, seja pelo governo ou pelos segurança e governança, a segurança deixa de proprietários particulares,” de acordo com o ser uma mercadoria pública e é transformada relatório UN Habitat. “Nos dias de hoje, isso em uma mercadoria particular. O contrato foi substituído pelo medo da violência e do social entre o estado e o cidadão, expressado crime, incluindo tiroteios relacionados ao pelos pagamentos de impostos e a proteção im- tráfico de drogas. Enquanto precisamos de plícita em um monopólio eficaz do uso legal da mais evidências empíricas globais sobre a força, é enfraquecido. conexão entre crime e favelas, algumas aná- lises mais recentes sugerem que os moradores Nesse vácuo, empresários agressivos contro- de favelas não constituem ameaça a grandes lando certos territórios impõem modelos de cidades, mas são eles mesmos vítimas do crime segurança alternativa usando violência arbi- urbano e da violência. Moradores de favelas trária e aleatória. A segurança torna-se uma são, na verdade, mais vulneráveis à violência e mercadoria cara para os já pobres. O “mercado ao crime em virtude da exclusão das favelas de da violência” surge de processos institucionais, processos e programas públicos preventivos, políticos, econômicos e sociais complexos que incluindo policiamento.”6 tornam a violência um meio predominante de

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resolução de conflitos e poder em moradias comunidades e instituições democráticas for- informais. Isso leva a uma “cultura de vio- mais enfraquecidas. lência”, resultando em medo endêmico e in- segurança ou “sociedades do medo”, que em Uma vez que essas redes de segurança privada contraponto geralmente levam a formas de e controle de território e proteção política se violência e justiça popular que são racionaliza- estabelecem, será muito difícil eliminá- dos como sendo defensivos na natureza. Esse las, assim como ocorre com a Mafia, com a círculo vicioso de violência oferece amplas ‘Ndrangheta' e com a 'Camorra' no sul da Itália. oportunidades para os empresários agirem im- Essas organizações criminosas formadas há um punemente. Esses fornecedores de segurança século e meio sob condições de não-governan- não-convencionais podem ser iniciativas regu- ça e a ausência do monopólio estatal da força, lares ou atores criminosos, ilegais e informais, e através do processo de adaptação dinâmica a incluindo quadrilhas criminosas e grupos circunstâncias mutáveis, têm permanecido em vigilantes com formas sofisticadas de mobiliza- funcionamento até os dias atuais.9 ção e organização. Arranjos de segurança infor- mal local funcionam como “sistemas de poder Muitos dos elementos descritos acima estão paralelo” ou “sistemas feudais de governo”. presentes no Rio. A maior área metropolitana Eles podem usar sua capacidade de força pe- é caracterizada por territórios não-governados los seus próprios propósitos para proteger suas ocupados por facções ou quadrilhas de drogas atividades criminais, extorquir impostos da concorrentes como o Comando Vermelho (CV segurança e impor redes de proteção sob ativi- - Red Command), Terceiro Comando (Third dades formais e informais, mas também como Command) ou Amigos dos Amigos (ADA – uma mercadoria para ser alugada ou vendi- Friends of Friends). Este documento descreve da. De vez em quando, membros do aparato o surgimento das milícias, versões modernas de segurança estatal estão também envolvi- dos grupos vigilantes tradicionais. As milícias dos, oferecendo ou impondo seus serviços justificam sua violência ao fingir fornecer pro- enquanto ainda estão de uniforme representan- teção à vizinhança baseadas em sua promessa do o estado, e isso leva a uma auto-privatização de combater os traficantes de drogas e pela informal. necessidade de combater a violência gerada pela competição entre as quadrilhas, que Nesse cenário de corrupção e privatização da brigam pelas zonas livres de comércio das dro- segurança, as comunidades desprivilegiadas, gas. A “legitimidade” deles vem da ausência da fornecedores de segurança informal e órgãos imposição da lei que deveria restaurar a ordem públicos formais e corruptos de execução da pública. Entretanto, Ribeiro e Oliveira mostram lei estão presos em um sistema complexo e que as milícias também têm outra razão de ser recíproco de proteção e asistencialismo. No que as distingue dos antigos vigilantes. “mercado da força”, o fornecimento cria sua própria demanda. Os fornecedores ameaçam O objetivo final da milícia é o lucro, extorquir seus clientes a pagar por seus serviços - um impostos sobre a segurança, negócios e serviços mecanismo que leva a negócios mafiosos. que oferecem aos moradores. Esta batalha pelos lucros tem causado disputas violentas O controle dos territórios oferece benefícios entre diferentes milícias. A perversa realidade econômicos lucrativos através dos impostos que o Rio está testemunhando hoje é que – ilícitos sobre mercadorias e serviços ou uma além da violência entre os traficantes e entre os cobertura segura para atividades criminosas. traficantes e a polícia – as milícias têm propor- O controle dos territórios também transforma cionado novas ondas de violência; de milícias essas áreas em eleitorados de empresários ile- contra traficantes, milícias contra milícias e gais da segurança e/ou aliados políticos – práti- milícias contra a polícia. cas enfraquecedoras da auto-governança nas

Crime e Globalização, Março de 2010 5 O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro

O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro Paulo Jorge Ribeiro e Rosane Oliveira10 Para a realização deste objetivo, foi necessária e imperativa a composição do Relatório final Se investigarmos as condições numa sociedade da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) em que formas civilizadas de comportamento e sobre as Milícias que atuam no Rio de Janeiro, de consciência começam a dissolver-se, veremos, em novembro de 2008. Isto porque esta CPI uma vez mais, algumas das etapas deste trajeto. foi a primeira a mobilizar um enorme esforço É um processo de brutalização e desumanização político tanto para a compreensão como para que, em sociedades relativamente civilizadas, o desmantelamento das redes criminosas que requer um tempo considerável. Em tais socie- se articulam em torno destas milícias, que dades, terror e horror dificilmente se manifestam contam com um número extenso de policiais sem um processo social bastante longo, durante civis e militares, bombeiros e agentes peniten- o qual a consciência se decompõe. No objetivo de ciários, ou seja, parte do próprio aparelho de entender o surgimento da violência nua e crua segurança pública. como objetivo social,com ou sem legitimação estatal, as pessoas usam com muita frequência O inquérito resultou na prisão de vários de seus diagnósticos estáticos e métodos de explicação a líderes locais – até mesmo políticos que diri- curto prazo. Pode haver certa pertinência nisso giam algumas destas milícias e que ocupavam quando não se está interessado em encontrar ex- cargos no poder legislativo do Estado, como os plicações mas, antes, em questões de culpa. Nesse conhecidos irmãos Jerominho e Natalino, que caso, é bastante fácil descrever a barbarização, posteriormente perderam seus mandatos e es- a descivilização, e também a própria reserva e tão presos em presídios de segurança máxima o comportamento civilizado de cada um como (veja também o quadro Liga da Justiça). expressão de uma decisão pessoal livremente escolhida. Mas tal dianóstico e esclarecimento Mesmo que posteriormente ao dito Relatório voluntarista não nos leva longe. exista um esforço significativo da Secretaria N. Elias – Violência e civilização (1997) Estadual de Segurança Pública para desmon- tar estes grupos, eles não foram desmontados. Tema polêmico, divisor de opiniões e alvo de Outro fato significativo que realça a força inúmeras especulações, as milícias na Cidade e ímpeto destes grupos foi a fuga de uma de do Rio de Janeiro traduzem uma problemática suas principais lideranças, o ex-policial militar que atinge as políticas urbanas de segurança. Ricardo de Teixeira Cruz, o Batman, em ou- O presente relatório tem como objetivo a in- tubro de 2008, pela porta de frente do presí- vestigação crítica de algumas matrizes de atu- dio de segurança máxima Bangu 8, no Rio de ação societária das milícias no Rio de Janeiro, Janeiro, o que causou uma imensa crise na se- fundamentalmente as que atuam na Zona gurança pública do Estado, fato este filmado Oeste da antiga capital federal. Trata-se de pelas próprias câmaras de segurança do pre- uma primeira abordagem que vise a abordar sídio. Mesmo que recapturado pela polícia mais intensamente – ampliando-se tanto as re- do Rio de Janeiro, em maio de 2009, e trans- des de atuação, como as interfaces econômicas ferido posteriormente para o presídio de se- e políticas destes grupos – tanto as atividades gurança máxima de Mato Grosso do Sul, sua econômicas como as dinâmicas da violência fuga demonstra não somente o poder e audácia de controle de um contingente significativo da destes grupos: mas dimensiona o poder sobre população do Estado. vida e morte que lideranças como Batman

6 Crime e Globalização, Março de 2010 Nota metodológica

Liga da Justiça possuem em suas regiões de controle e dentro do próprio aparelho de segurança pública, já Jerônimo Guimarães Filho (Jerominho), de que sua presença era claramente vista por di- 1992 até o ato de sua prisão em 2007, man- versos moradores em várias áreas de Campo Grande, a área de atuação da milícia conhecida teve uma ONG chamada “SOS Social”, na como Liga da Justiça, sem ser importunado Zona Oeste da Cidade do Rio de Janeiro. por moradores e mesmo pela polícia. Durante Jerominho e seu irmão, Natalino, são políti- o período em que esteve foragido, vários en- cos locais desde o início dos anos 1990 e trevistados desta pesquisa relataram o clima respondem em regime fechado pela acusa- de terror imposto por Batman, que torturava ção de pertencerem ao grupo miliciano e matava vários de seus desafetos.11 Este con- mais conhecido da Zona Oeste, a “Liga texto, inexoravelmente, é parte desta pesquisa, da Justiça”. Em 2000, foi eleito vereador posto que este contexto é estruturante às limi- pelo Partido do Movimento Democrático tações e alcances do texto aqui produzido (ver Brasileiro (PMDB) e reeleito em 2004 com Nota Metodológica, a seguir). mais de 33 mil votos. Daí que o desafio deste Relatório é compor Em 2006, seu irmão, Natalino José Guimarães uma primeira aproximação ao fenômeno das (Natalino), elegeu-se deputado estadual pelo milícias no Rio de Janeiro hodierno atentando Partido da Frente Liberal (PFL). No final para o fato de que estas compõem um negócio de 2007, foi acusado de ser integrante do baseado em coerção e controle político. Como grupo miliciano intitulado “Liga da Justiça” conseqüência, a atuação destas milícias iden- e de impedir a campanha eleitoral de seus tificam elementos que realçam a ineficiência – adversários na Zona Oeste, especialmente quando não a complementaridade perversa – entre o Estado e estes grupos criminosos, posto no bairro de Campo Grande e adjacências. que sua composição se baseia na consolidação Foi preso em 2008, um mês após a prisão do de redes criminosas com objetivos financeiros vereador Nadinho de Rio das Pedras (região e sustentada, em síntese, pelo terror e controle situada no bairro de Jacarepaguá, também na territorial. Zona Oeste da Cidade do Rio de Janeiro). Nota metodológica Porém, deve ficar claro que a prisão destas lideranças não acarretou um desmantela- Este Relatório não pretende, de forma alguma, mento destes grupos. Após sua prisão e ser apresentado como algum tipo de reporta- impossibilitado de concorrer nas eleições, a gem-denúncia a respeito da violência que filha de Jerominho, Carmen Glória Guinân- envolve a questão das milícias no Rio de Janeiro cio Guimarães, conhecida como Carminha contemporâneo. Almejou-se, de fato, produzir Jerominho, foi candidata a vereadora nas uma sociologia política do crime que envolva últimas eleições municipais de 2008. E esta, dinâmicas específicas da criminalidade - ur mesmo presa pela Polícia Federal no - bana violenta em uma área específica do Rio rrer da campanha eleitoral no presídio de de Janeiro, a Zona Oeste. Deste modo, alme- segurança máxima de Catanduvas, no Paraná, jamos fugir ao tom de “espetáculo” promovido foi eleita vereadora. Posteriormente, em por muitos meios de comunicação a respeito junho de 2009, teve o mandato cassado pelo daqueles eventos, e mesmo que muitos opera- Tribunal Superior Eleitoral (TSE). dores acentuam neste fenômeno sui generis da criminalidade urbana violenta.

Crime e Globalização, Março de 2010 7 O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro

Áreas sob controle de milícias na capital fluminense

De todo modo, as dificuldades encontradas Cano (2008), deve-se ao fato que este foi re- nesta pesquisa, realçadas no contexto anterior- alizado em um momento anterior ao conflito mente delineado, nos fez ter de redesenhar, em miliciano e às tentativas das forças de seguran- vários momentos, suas próprias possibilidades e ça pública estaduais em enfrentarem o poder alcance. Caso esta fosse uma pesquisa realizada destes grupos. no campo biomédico, seria possível considerar até mesmo que os dados aqui obtidos, ao menos É possível concluir que a estas dificuldades “no campo”, não foram conclusivos. Isto porque foram geradas devido ao fato de que o cenário não disponibilizamos de instrumentos de segu- da Zona Oeste, hoje, não é o da "pacifica- rança, hoje, para uma adequada imersão e, con- ção pelo medo", como o criado e obtido pela sequentemente, mensuração deste problema. Liga da Justiça, a mais poderosa milícia do Zona Oeste do Rio de Janeiro; mas, sim, uma Em relação ao nosso trabalho com entrevis- sociabilidade regida pelo "terror” como fun- tas, foi possível obter, ao todo, 6 entrevistas damento de controle daqueles territórios, ter- gravadas e um depoimento escrito. Não deve- ror este desencadeado pelas guerras (milícias mos nos esquecer que o prazo desta pesquisa x polícia; milícias x milícias; milícia x tráfico) foi bastante escasso e que no meio deste pro- que lá estão se desenrolando – em um desfecho cesso, a "guerra” delineada acima, explodiu, ainda em aberto. E é mister ressaltar que es- com a fuga de Batman, a morte de Nadinho – tes conflitos são produzidos por forças muito ex-deputado estadual e apontado como o prin- poderosas – muitas vezes acompanhados com cipal líder da milícia de Rio das Pedras, próxi- um grande braço "legítimo" de agentes estatais. mo à Barra da Tijuca, uma das áreas de maior valor imobiliário do Rio de Janeiro – e mortes Ampliar o número de entrevistas, deste modo, nas regiões afetadas pelo poder da “Liga da foi impossível, pois tanto os pesquisadores Justiça” devido ao terror implementado por como os entrevistados viram-se reféns do per- este grupo para reafirmar seu poder12 na Zona verso círculo da potencialidade da violência Oeste. Estas, de todo modo, receberão um que gira ao redor deste cenário hobbesiano.13 tratamento detalhado adiante (cfr. “Entrando No Brasil existe um dito muito popular: "Em em Gotham City”, supra). boca fechada não entra mosca". Os moradores da Zona Oeste acreditam piamente nisto; nós Este número, muito inferior ao total de entre- também não devemos ter motivos para desa- vistas realizadas no trabalho, por exemplo, de creditar.14

8 Crime e Globalização, Março de 2010 Delimitando questões

Também nosso trabalho foi imensamente de drogas na maior parte das favelas cariocas. prejudicado pela impossibilidade da realiza- Este tipo de domínio aproxima-se muito de ção de um trabalho de campo mais rigoroso um modelo semi-mafioso, como o invocado na Zona Oeste. Isto é um ponto que deve ser no seminal trabalho de Gambetta (2007). ressaltado, já que existem diversos trabalhos Não é por menos que, apesar do aumento de de muita qualidade que realizaram este tipo de visibilidade por parte da mídia e dos agen- metodologia de pesquisa em favelas controla- tes públicos, e mesmo de repressão por parte das pelo tráfico de drogas. Estas etnografias são das forças policiais e ainda da instauração de realizadas, na maior parte das vezes, a partir uma CPI com força nacional instaurada, com de um ou de varios “mediadores”, individuais resultados expostos internacionalmente, a ou institucionais. Estes mediadores, a partir força destas milícias somente foi desestabiliza- de diferentes modos, perspectivas e objetivos, da, mas não destruída. Mesmo que algumas de produzem tanto a contextualização do deter- suas lideranças principais tenham sido presas minado cenário a ser estudado, bem como ou mortas, as posições foram reconduzidas a realizam um trabalho de negociação e mesmo “segundo-tenentes”, que permaneceram lidan- proteção entre o/os pesquisador/es e as comu- do com os negócios de proteção – com igual ou nidades e grupos criminosos a serem estuda- maior terror contra seus inimigos. Como diria dos. Seria esta, para alguns pesquisadores, uma O Leopardo, de Lampedusa, “as coisas devem “antropologia de risco”. mudar para permanecerem iguais”.

Este trabalho, em nosso contexto, com serie- dade e responsabilidade necessárias, é impos- Delimitando questões sível de ser realizada na Zona Oeste, hoje, com este tema. Atualmente inexistem estes No quadro de altas taxas de criminalidade mediadores podendo realizar esta tarefa de me- violenta com que lidam, hoje, as principais diação, devido ao clima de terror instaurado. cidades brasileiras, o Rio de Janeiro tem ocu- Jornalistas do jornal O Dia, do Rio de Janeiro, pado especial destaque (Waiselfisz, 1998). que ficaram infiltrados para realizarem um Dentre as vítimas preferenciais, por exemplo, reportagem sobre as milícas, em 2007, foram de homicídio, encontram-se jovens, negros ou torturados por estas – possivelmente não sendo pertencentes a outros grupos subalternos, do mortos por se tratarem de um grupo com força sexo masculino e residentes em comunidades de visibilidade pública e, consquentemente, de baixa renda. Em função das prováveis con- representação política. Deste modo, é possível exões entre essas altas taxas de letalidade e a concluir que as milícias são mais perversas e ação das redes que giram em torno do comércio cruéis do que o próprio tráfico de drogas no varejista de drogas, as populações dessas comu- Rio de Janeiro. Fazer um trabalho de campo, nidades acabam se tornando alvo do estigma de neste contexto, não seria a realização de uma serem participantes efetivos ou potenciais dos “antropologia de risco”, mas, sim de uma grupos ligados ao tráfico ou demais modali- "antropologia suicida" ou "heróica", o que não é dades criminosas que giram em torno deste nosso intuito e desejo.15 negócio (Zaluar, 1994). Soma-se a este cenário a constatação de que as populações destas Adiantando nossas conclusões, o tipo de comunidades são indubitavelmente as mais controle territorial e de domínio pelo terror vulneráveis à criminalidade violenta, além produzido pelas milícias da Zona Oeste ultra- de estarem expostos às mais diversas deman- passa – em extensão e presença normativa- das derivadas da escassez de serviços públicos restritiva – o controle produzido pelo tráfico nestes territórios.

Crime e Globalização, Março de 2010 9 O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro

Ocorre, contudo, que também nessa população Mesmo que não possuam o poder institucio- têm surgido algumas das mais perniciosas ten- nalizado e capilarizado percebido no clássico tativas de se reocupar estes espaços societários, trabalho de Gambetta, as milícias se apro- via o que se denominou no cenário do Rio de priam de práticas ilícitas tendo como princi- Janeiro de milícias. Estas contradizem os pro- pal objetivo o lucro, se sustentando no nível cedimentos socialmente construídos a respeito local com um discurso a favor da “moral” e dos do estado democrático e de direito no que “bons costumes”; usam da força bruta, letal e tange a políticas universais de segurança públi- ilegal, mas justificam tal prática em nome da ca – sendo estas iniciativas, assim, parte das manutenção da ordem e contra o crime dos respostas perversas à vulnerabilidade que estas traficantes; aproveitam-se da pobreza e da populações são majoritariamente vitimadas. escassez dos bens públicos para ofertar um con- junto de serviços com preços acessíveis àquelas Esta prerrogativa se torna evidente no próprio populações (“gato net”16, gás, transporte, relatório final da CPI das milícias, aprovado segurança privada, etc), mas atuam politi- no dia 13 de novembro de 2008, que indiciou camente para que a omissão do Estado na e citou vários policiais e bombeiros pela par- garantia dos serviços se mantenha. Essa ticipação direta na prática das milícias. Estas conjugação entre clientelismo e exploração possuem seu modus operandi estruturados, obtêm seu êxito na manutenção da “ordem do como busca definir Souza e Silva, em “grupos terror” e na mais profunda condição de barbá- criminosos armados com domínio de ter- rie que atinge as comunidades empobrecidas ritório, (compondo) redes criminosas territo- do Rio de Janeiro, reféns do tráfico de droga, rializadas que atuam em diversas atividades por um lado, e muitas vezes do jugo arbitrário econômicas ilícitas e irregulares, como o trá- das forças do aparelho de justiça criminal, fico de drogas, serviços de segurança e trans- por outro. Assim, tanto a privatização da segu- porte coletivo irregular, dentre outras, a partir rança quanto a inexistência de políticas públi- de uma base territorial especifica, fazendo uso cas de garantias e proteção dos direitos individ- da força física e da coação – especialmente pelo uais e sociais são condições determinantes para uso de armas de fogo – como principais meios criação e reprodução deste cenário em ruínas. de manutenção e reprodução de suas práticas.” (Souza e Silva, 2008). Para que esta atuação se O objetivo deste trabalho é, deste modo, ma- confirme é mister realçar esse grupo específico pear algumas configurações no que tange à como crime organizado, articulado em inter- formação de algumas favelas e periferias e fun- faces do Estado, por meio de vários servidores cionamento operacional destas milícias, situa- públicos. das especialmente na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Observar como as formas de Esse modelo de grupos de criminosos que sociabilidade constituídas nestes espaços soci- controla vários territórios no Rio de Janeiro etários são afetadas por esta diferente dinâmica demanda um estudo mais aprofundado e es- da violência ali estabelecidas, sinalizando liga- pecífico, como o fez, por exemplo, Gambetta ções com as redes de proteção e o mercado da (1997), ao analisar as práticas mafiosas como violência ali situados, torna-se também uma venda de proteção a partir da ausência de insti- prioridade, já que, assim, será possível com- tuições públicas fortes; e, acima de tudo, desta- preender como que mesmo os espaços vistos cando que, longe de ser uma instituição mono- como homogêneos – como o caso das favelas nuclear, este tipo de organização criminosa e periferias do Rio de Janeiro – podem ter de funciona a partir de várias redes de comércio considerar uma diversa ordem de redes, circu- e práticas políticas. itos e tramas sociais que as atravessam.

10 Crime e Globalização, Março de 2010 Milícias, mercado da violência e poder local

Nesta análise destacamos a dimensão do mer- consideração os personagens e as redes que cado da violência por duas razões: a primeira formam em torno destes atores sociais. diz respeito ao fato de que embora o tráfico de drogas seja gerador de lucros exorbitantes, Desde os anos 1950, em áreas da Baixada Flu- a atuação miliciana, num primeiro momento, minense e demais regiões do entorno metro- apareceria como um divisor de águas. Momen- politano, com personalidades chamadas de taneamente, a inserção desses grupos traduzia “justiceiros”,17 esses grupos já exerciam grande “paz” na comunidade, já que a investida poli- influência entre as populações locais, seja pro- cial deixaria de ocorrer com freqüência. Em movendo “justiça com as próprias mãos”,18 ou seguida, a “manutenção” desta “paz” estaria utilizando a força para permanecer ou influ- condicionada a determinadas regras de condu- enciar cargos políticos (prefeituras, câmara ta por parte dos moradores, tais como o paga- de vereadores, câmara do deputados, etc.).19 mento de taxas por inúmeros serviços (TV por Estas questões foram minuciosamente analisa- assinatura clandestina ou “gato net”, transporte das por Monteiro (2007), e o que nos chama a alternativo, venda de botijões de gás, entre out- atenção neste estudo é o fato de que algumas ros) e o respeito aos padrões morais impostos ações analisadas assemelham-se à práticas e pelas lideranças destas milícias, como o não trajetórias de alguns “líderes milicianos” que, uso de entorpecentes por parte dos moradores há tempos, exercem forte domínio em algumas ou até mesmo a regulação dos padrões de con- localidades da cidade do Rio de Janeiro. duta sexuais, por exemplo. A singularidade da Baixada Fluminense está na Neste ponto, a dimensão do mercado global- forma de apropriação do território, geralmente izado e seus atrativos foram absorvidos por es- por pessoas que exerciam atividades periféricas ses “novos” atores sociais. O Estado, ao mesmo no “centro da cidade”, tais como: doméstica, tempo em que não cumpre efetivamente o seu porteiro, segurança, construção civil, entre papel (o de levar para as áreas menos favore- outras. As moradias eram formadas a partir de cidas de bens de capital, bens culturais e segu- loteamentos, invasões e favelas. Tal realidade rança), relega às localidades lideradas por milí- promoveu crescimento desordenado, omissão cias um “outro projeto civilizatório”. Tal projeto do Estado e o surgimento e fortalecimento de estaria baseado na imposição de uma ordem lideranças locais, redes de favores e divisão ter- por parte de sujeitos que, embora em sua ritorial de acordo com o domínio exercido por maioria não atuem mais como detentores do essas lideranças.20 uso legítimo da força (as polícias), “governam” estes territórios e impõem sua própria “ordem”. Na cidade do Rio de Janeiro, especialmente nas localidades mais distantes geograficamente do “centro da cidade”, como alguns bairros da Zona Oeste, entre eles Campo Grande e Guaratiba e Milícias, mercado da violência e seus sub-bairros, o estilo de moradias também poder local ocorreram de forma semelhante aos da Baixada Fluminense. Entretanto, a diferença reside no Ao abordarmos a Cidade do Rio de Janeiro no fato de que, ao fazer parte da cidade do Rio de que concerne as práticas milicianas desde que Janeiro, recebe de alguma forma os benefícios tal fenômeno assumiu, a pouco mais de quatro promovidos pelas políticas públicas e planeja- anos, as páginas dos principais jornais, suas re- mentos estratégicos da, quais sejam, sistema des e “tramas sociais” é importante compreen- de saúde, saneamento básico, transporte e re- dermos a origem de tais eventos, levando em estruturação urbana.21 Nas questões ligadas

Crime e Globalização, Março de 2010 11 O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro efetivamente à segurança pública, as iniciati- uais.25 Embora a imprensa divulgue ampla- vas deixam a desejar. Especialmente pelo fato mente a participação em atividades milicianas de que nessas localidades o índice de faveliza- de determinadas personalidades, todos negam ção, tráfico de drogas e ineficiência da polícia o envolvimento em tais práticas. é visível, que traduz uma das explicações mais plausíveis seja que, tanto o tráfico, quanto a Neste contexto, podemos esquematizar os esti- ação miliciana é mais intenso nessa região.22 los de atuação de cada grupo. Os “justiceiros”, geralmente são indivíduos motivados por O estilo de inserção das milícias nas comuni- questões mais pessoais, e atingem popularidade dades nos últimos quatro anos, geralmente é e certa admiração da população. Os “grupos de rápida, violenta e desperta um duplo processo: extermínio” são compostos por indivíduos que, medo entre os moradores das comunidades não necessariamente residem nas localidades em decorrência das constantes ameaças de onde atuam, e a ação pode ser motivada tanto retomada dos pontos pelos traficantes e, por por “desafetos” como na promoção de assas- outro lado, a permanência dos milicianos que sinatos encomendados, sem qualquer tipo de impõem à população local uma série de regras ligação com o “sujeito marcado para morrer”. gerando medo.23 A “polícia mineira” ou “matadores de bairro”, na maioria dos casos, são ligados à comuni- Apesar do aumento considerável de ação mi- dade onde atuam, reconhecidos e “respeitados” liciana nos últimos anos, a cidade do Rio de pelos moradores, exercem forte influência na Janeiro convive com esta realidade efetiva- “manutenção da ordem” e garantia de paz. mente, desde a década de 1970, com grupos conhecidos como “polícia mineira”. A primeira A linha que diferencia as ações da “polícia mi- comunidade que abrigou esses grupos que se neira” e das “milícias” é tênue. Geralmente, nos tem notícia na cidade é Rio das Pedras. Nesta jornais e em artigos aparecem como sinônimos. localidade, a ordem que vigora foi implantada Entretanto, as milícias, especialmente àquelas a partir da chegada no início dos anos 1970, que estão localizadas nas favelas da cidade do em sua maioria, de imigrantes nordestinos tra- Rio de Janeiro, além agirem de acordo com a balhadores da área de construção civil. Desde lógica da “limpeza da área” e “manutenção da então, as regras de sociabilidade impostas na paz”, assim como procede a “polícia mineira”, comunidade eram impostas por grupos “re- os seus principais artífices exercem atividades sponsáveis pela segurança” e manutenção da na vida pública, especialmente na via legislati- “paz”. (Burgos, 2002) va. E, além disso, inserem-se numa grande rede de contravenção, domínio do comércio local, No Rio de Janeiro, o bairro de Jacarepaguá é o troca de favores nos moldes clientelísticos, co- mais ocupado pelas milícias e a Cidade de Deus brança de “taxas de segurança” da população, é a única que não faz parte desse domínio. No entre outras. bairro de Campo Grande, destacam-se os gru- pos de milicianos denominados também de jus- Neste sentido, destacamos a dimensão ticeiros (ou, em alguns casos, Liga da Justiça), econômica que envolve a ação miliciana nos cujo símbolo é a personagem de quadrinhos, locais ocupados. Geralmente, a inserção desses Batman.24 É importante destacar que a maio- grupos ocorre para eliminar o tráfico e con- ria dos acusados de fazerem parte de milícias duzir outras formas de lucro: vendas de boti- no bairro de Campo Grande e adjacências são jões de gás, controle do transporte coletivo políticos locais eleitos com número bastante alternativo, cobrança de taxas de “manutenção significativo de votos para deputados estad- da segurança”, entre outros. No início de 2008,

12 Crime e Globalização, Março de 2010 Mudanças na perspectiva: da negação ao aceite das milícias

uma ação integrada da polícia na Zona Oeste, serviços clandestinos de TV por assinatura e especialmente no bairro de Campo Grande e internet passam da cifra de R$ 1 milhão por adjacências revelou que a ação miliciana se in- ano.29 staurou há mais de nove anos, mas não com o intuito de “promover a paz”, mas controlando os transportes alternativos, lojas de lan house, locais ilegais de confecção de CDs piratas, re- Mudanças na perspectiva: ceptadores de motos roubadas, entre outras da negação ao aceite das milícias. atividades criminosas. Em decorrência deste “novo” comércio, há indícios de conflitos entre A CPI como fato político os milicianos pelo domínio de determinadas localidades.26 Um longo caminho foi percorrido até que o Estado e o órgão responsável pela segurança Se, por um lado, as práticas milicianas dividem pública aceitassem a existência de grupos mili- a opinião pública,27 deixando claro que o medo cianos no Rio de Janeiro, embora esses grupos da população diante do tráfico designou certa façam parte da realidade do entorno metro- legitimidade à ação miliciana, é fato que o abu- politano do Rio de Janeiro em outras roupa- so em decorrência da imposição de novas re- gens, desde os anos 1950, conforme chamamos gras e cobranças de taxas pelos milicianos nas a atenção anteriormente. Ao longo dos anos comunidades promove uma nova forma de ver 1980 e 1990, as chamadas “milícias”, formadas essas organizações. Em primeiro lugar, o lucro por ex-policiais militares e civis, bombeiros e crescente obtido pelas milícias gerou um outro demais sujeitos simpáticos à ação desses gru- tipo de medo: a disputa pelo território gerando pos, desenvolveram várias inserções em comu- conflito entre os próprios milicianos e o terror nidades, especialmente na zona norte e oeste permanente da população por conta das amea- da cidade. Desde 2000 (especialmente o ano ças de retomada dos pontos pelo tráfico. de 2005) os jornais, efetivamente começaram a noticiar as ações milicianas em vários locais No relatório da CPI das milícias, divulgado em da cidade do Rio de Janeiro.30 O jornal Folha de novembro de 2008, no capítulo destinado às fi- São Paulo, em dezembro de 2006, divulgou a nanças, observamos a confirmação das “novas” inserção desses grupos na zona sul31 da cidade, estratégias de mercado adotadas por esses gru- logo após a tomada de cerca de três comuni- pos: transporte alternativo, venda de gás, TV dades do Complexo da Maré, na zona norte. por assinatura e internet. A questão dos trans- portes coletivos, segundo o documento da CPI, Ainda no ano de 2005, algumas declarações “os bons resultados financeiros, decorrentes da por parte de membros do poder público apon- demanda reprimida de moradores das áreas taram para a dificuldade na definição da ação mais carentes e mais distantes, atraíram a aten- desses grupos. O subprefeito de Jacarepaguá, ção de traficantes e milícias que viram aí uma Fernando Modolo, embora reconhecesse o oportunidade de ampliar seus lucros monopo- avanço da ação da milícia na região, deixaria lizando o serviço”.28 O lucro obtido através do claro que “houve uma redução sensível de monopólio de transportes alternativos podem favelas dominadas pelo tráfico na região. Essas chegar anualmente a R$ 145 milhões. Na co- milícias armadas tem seus aspectos positivos, munidade Rio das Pedras, os valores recolhidos mas podem se tornar nocivas a longo prazo, diários pela milícia chegam a R$ 169.500,00 e, pois você tem a ausência do poder constituído. anualmente, ultrapassa os R$ 60 milhões. Os São Xerifes se prevalecendo da força. Se esta é a valores arrecadas pela milícia em relação aos única alternativa ao tráfico, que eles continuem

Crime e Globalização, Março de 2010 13 O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro a tomar conta das favelas, mas o ideal é que os corporado no vocabulário dos órgãos de segu- ‘xerifes’ não fossem necessários”.32 rança pública do Estado do Rio de Janeiro em 2004, quando a imprensa passou a noticiar a Provavelmente, baseado neste estilo de aval- existência desses grupos com mais intensidade. iação da ação miliciana, os responsáveis pelas políticas de segurança pública, no gov- É interessante notar a dificuldade em adquirir erno estadual a partir de 2007, sentiram certa um consenso em torno da conceituação do ter- dificuldade em assumir diante da sociedade mo milícia. Esta etapa dos trabalhos da Comis- civil o crescente domínio territorial miliciano, são foi assessorada tanto por acadêmicos como bem como o aspecto criminoso com rela- por policiais e delegados de polícia. Para o Del- ção aos estilos de controle desses grupos nas egado Marcus Neves (na época da CPI era del- comunidades.33 Em dezembro de 2007, dois egado da 35ª DP de Campo Grande), “milícia” parlamentares foram presos, acusados de teria associação direta como fator financeiro, chefiar a milícia Liga da Justiça, Jerominho pois o “lucro é farto e fácil”. Pedro Paulo Pinho, Guimarães e, pouco tempo depois, Natalino delegado da 32ª DP, considera inadequado o Guimarães. Desde então, as investigações em termo, porque se refere originalmente a poli- torno das atividades e a definitiva alegação por cial militar e, portanto, “o que existe hoje no parte do Estado sobre a existência e atuação Rio de Janeiro é a “polícia mineira”, termo que desses grupos foi estabelecida. Em seguida, em qualifica o policial que caça bandidos e achaca maio de 2008, repórteres do Jornal o Dia foram a comunidade”.35 seqüestrados e torturados por milicianos na favela do Batan, na zona oeste do Rio. A partir Segundo o delegado Cláudio Ferraz, da Del- desse momento, o Jornal passou a divulgar egacia Regional de Ações Criminosas Orga- diariamente uma seção intitulada dossiê das nizadas (Draco), “as milícias se enquadram no milícias. Outro fator foi a instalação da CPI das conceito internacional de crime organizado. milícias. A partir desse momento, o fenômeno Primeiro, auto-padrão organizativo; segundo, das milícias tornou-se um fato político. a racionalidade do tipo de empresário da cor- poração criminosa que oferece bens e serviços A Comissão Parlamentar de Inquérito indiciou ilícitos, tais como drogas, prostituição, e vem efetivamente 226 nomes de policiais civis e investindo seus lucros em setores legais da militares na ativa e ex-policiais, bombeiros, economia; terceiro, a utilização de métodos políticos, agentes penitenciários, forças violentos com a finalidade de ocupar posições armadas e civis (empresários, comerciantes, proeminentes ou ter o monopólio de mercado, jornalistas e profissionais liberais). Segundo obtenção do lucro máximo sem necessidade o Relatório Final da Comissão Parlamen- de realizar grandes investimentos, redução dos tar de Inquérito, a “instauração da Comissão custos e controle da mão-de-obra; quarto, val- Parlamentar de Inquérito foi requerida pelo er-se da corrupção da força policial e do Poder Deputado Marcelo Freixo em fevereiro de Judiciário; quinto, estabelecer relações com o 2007, em decorrência da extrema gravidade poder político; sexto, utilizar a intimidação e o da situação das milícias em comunidades no homicídio, seja para neutralizar a aplicação da Estado do Rio de Janeiro. Essa situação ex- lei, seja para obter decisões políticas favoráveis tremamente grave exigiu do poder público, ou para atingir seus objetivos”.36 O procurador em 2008, uma resposta imediata, a partir do do Ministério Público, Antônio José Campos seqüestro e tortura dos repórteres do jornal Moreira, segue a mesma linha de raciocínio - O DIA em uma favela do Rio de Janeiro”.34 enunciada pelo delegado Cláudio Ferraz, ar- Segundo o documento, o termo “milícia” foi in- gumentando que o termo “milícia configura

14 Crime e Globalização, Março de 2010 Mudanças na perspectiva: da negação ao aceite das milícias

o crime de quadrilha destacando que o crime das milícias. Em muitas delas, não há informa- organizado é hoje, em todo o planeta, uma ções sobre data da ocupação, integrantes e pos- atividade empresarial, um negócio. Não há síveis currais eleitorais. A Subsecretaria de In- crime organizado sem que haja um braço no teligência admite que em muitos casos o que há Estado braço na polícia, braço no poder políti- são grupos de extermínio e não propriamente co, inclusive, nas esferas de Poder Judiciário, de milícias. Já o SIPMERJ38 indica 81 áreas domi- Ministério Público”.37 nadas e a Cinpol acena com 144”.39 Do ponto de vista quantitativo, os números publicados Para Jaqueline Muniz o termo “milícia” seria pela Subsecretaria de Inteligência demonstram inaquado, pois o grupo é formado por gangues que o envolvimento de civis nas atividades de ex-policiais que “vendem segurança con- milicianas é alarmante: 330 civis aparecem na tra eles próprios”; e para o professor Domício lista da SSI.40 Proença, o conceito mais adequado para “milí- cia” seria: “arranjo de gente armada querendo Nos depoimentos impressos no relatório, espe- prover segurança fora da lei. Todo e qualquer cialmente dos parlamentares acusados de en- grupo que age de forma ilegal”. volvimento, negaram a participação direta ou indireta em atividades milicianas. Os mapas No geral, a conceituação do termo encontra eleitorais, por exemplo, analisados pela Comis- alguns pontos em comum: a ausência de políti- são, confirmam a suspeita de existência de cur- cas e ações efetivas do Estado na resolução dos rais eleitorais como a principal forma de levar problemas de segurança pública. Tal ausência alguns acusados ao exercício de atividades par- do Estado gera o medo que “legitima infor- lamentares. É curioso notar que a análise desses malmente” a ação desses grupos. Neste tipo de dados estão datadas a partir do ano de 2004. No- cenário, os grupos milicianos encontram ter- vamente, podemos afirmar o reconhecimento reno farto para suas atividades: o lucro é alto, tardio da existência efetiva desses grupos. Além rápido e sem burocracia. disso, a partir das informações obtidas através do disque-milícia, o Relatório organizou uma No capítulo destinado à conceituação e históri- listagem com as regiões administrativas da Ci- co destes grupos, é interessante chamar a aten- dade do Rio de Janeiro que estão sob o domínio ção para o fato de que a ação desses grupos, de milícia, o tempo de ocupação (em alguns embora possam ser observadas há pelo menos casos) e os principais suspeitos de liderança. 3 décadas, o destaque é dado do ano de 2000 em diante. Tal destaque aparece, especial- Das regiões listadas, a de maior concentra- mente, quando esses grupos aproximam-se de ção miliciana é a Região Administrativa de áreas de maior concentração da elite econômi- Campo Grande, Guaratiba e Santa Cruz (sob ca e intelectual da Cidade: a Zona Sul carioca o domínio da Liga da Justiça), que recebeu (após a denúncia dos moradores do Bairro do 282 denúncias. A Região Administrativa de Ja- Leme, em 2005). Entre órgãos de inteligência, carepaguá recebeu 175 denúncias. Em síntese, imprensa e demais instituições ligadas direta foram relacionados por nome (229), por parte ou indiretamente à segurança pública, não há de nome (277) e, por vulgo (424); totalizando: consenso sobre o número de localidades sob o 930 (novecentos e trinta) citados como milicia- domínio miliciano: “Pesquisas recentes da Sub- nos no Disque Milícia. secretaria de Inteligência em disque-denúncias, matérias jornalísticas, agências de inteligência Embora o documento seja extenso e contenha e outros órgãos, apontam para a possibilidade informações detalhadas, sem dúvida transfor- da existência de 171 comunidades sob domínio mou o fenômeno das milícias e o “mercado da

Crime e Globalização, Março de 2010 15 O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro violência” formado por esses “novos” atores Cobrança de “taxas” aos moradores e ao co- em um fato político. Mercado este distante das mércio local; monopólio sob a venda de produ- práticas do tráfico e próximo dos moldes ma- tos imprescindíveis àquelas comunidades – fiosos, típicos de determinadas localidades da como a revenda de gás – e ainda o controle da América do Sul, como no modelo colombiano distribuição do “gato net”; proibição da com- (cf. Corporación Nuevo Arco Iris, 2007). petição do transporte alternativo no inte- rior das comunidades controladas; e ainda A atuação das milícias, como pode ser aqui ob- a tutela e regulação do comportamento pri- servado, mesmo que seja invocada como um vado e social dos indivíduos que moram nos meio para se desestruturar as redes de comér- locais onde atuam estas milícias. Estas são cio varejista de drogas que estão situadas nas apenas alguns dos elementos presentes em sua favelas do Rio de Janeiro, não observa em seus atuação. A pergunta que então deve ser co- cálculos que esta atuação, em nome de ideais locada é a seguinte: serão estas milícias uma como de “limpeza da área” ou ainda a “ma- opção ao tráfico de drogas – como parece nos nutenção da paz”, comprovam a vitimização e a fazer crer determinada leitura da “boa ordem” vulnerabilidade dos moradores daquelas local- que compromete determinados setores da idades. Reafirma-se mais uma faceta perversa sociedade brasileira, fundamentalmente no do jugo que estas populações estão submetidas, Rio de Janeiro – ou simplesmente uma forma pois somente se reinscreve aqui o ineficiente de controle predatório que compete com o combate ao crime organizado nestes locais, tráfico de drogas? Será uma solução para o já que os moradores estão constantemente problema da violência produzida pelo tráfico de sitiados entre as forças do tráfico e da polícia drogas dentro das favelas cariocas ou somente – e ainda, agora, das milícias que controlam mais um capítulo da falência da capacidade econômica e politicamente um vasto território estatal de conferir um tratamento republicano do Rio de Janeiro. a todos os seus cidadãos?

A principal hipótese deste Relatório é que o ob- jetivo último das milícias é o lucro e que esse, Visitando Gotham City por sua vez, só pode ser sustentado por meio de práticas ilegais articuladas por parcela do Es- tado e sustentadas na inexistência de políticas A vida antes das milícias públicas e sociais. Nesse sentido a força bruta e letal das milícias é um meio para alcançar o A percepção e aceitação por parte do Es- objetivo final do lucro e do controle político de tado e da sociedade civil da ação dos grupos espaços segregados da cidade do Rio de Janei- milicianos ocorreu há pouco mais de cinco ro. Ainda que o lucro garanta a manutenção e anos. Entretanto, conforme chamamos a aten- reprodução das milícias, não se pode intuir que ção anteriormente, essas práticas criminosas se trate de uma atividade alheia ao Estado. Ao não são recentes. Ao ganhar espaço midiático contrário, se articula com o projeto de controle e ditar novas regras para um jogo bastante territorial e serve como base para sustentar esse antigo, as milícias entraram ou reconfiguraram mesmo projeto político e econômico. Ou seja, suas ações em inúmeras localidades. A vida buscou-se identificar a relação entre Estado e antes dessa nova configuração, seja em lugares atividades ilegais e criminosas voltadas para o amedrontados e enraizados com a ação do lucro, por meio da força e da repressão que se tráfico, seja em localidades que sempre con- utilizam da condição de pobreza e da ausência viveram com a realidade de “polícia mineira”, de políticas públicas. “justiceiros”, entre outros, apresenta-se como

16 Crime e Globalização, Março de 2010 Visitando Gotham City

um “lugar tranqüilo”, por vezes acostumados segunda ela, ainda permanecem alguns tra- com o estilo do tráfico de drogas e amedron- ficantes, mas estes estão enfraquecidos e para tados com as investidas da polícia. Segundo que permaneçam por lá, é preciso pagar uma Ludimila, 27 anos e moradora do bairro de quantia em dinheiro para os milicianos. Vila Kennedy, a vida “era tranquila... nos últimos tempos mudou... os policiais expul- O que muda em alguns discursos é o estilo saram os bandidos de lá e agora eles é que da entrada desses grupos nas localidades. Em mandam...”41 alguns casos, a ocupação é extremamente vio- lenta e rápida e, em outros, é mais estratégica.

A entrada das milícias O medo como terror As milícias acessaram vastas áreas da Zona Oeste do Rio de Janeiro com um discurso da A questão do medo, da desconfiança e do ter- segurança: elas seriam as mantenedoras da paz ror que envolve a relação entre moradores e e da justiça – acima dos procedimentos jurídi- milicianos evidencia-se nos depoimentos dos cos que pautam o Estado democrático de dire- moradores: ito que rege a sociedade brasileira – por serem a solução às demandas da própria população “tinha toque de recolher... quando eles chega- daquelas áreas ao crônico problema da falta vam e ficavam fazendo uma ronda. Quando de segurança e do tráfico de drogas. Para que dava nove e meia, eles não queriam mais nin- este trabalho fosse realizado, “pediam” aos guém na rua. Muita gente tinha medo deles pq moradores e ao comércio das localidades uma eles diziam que se não fizesse o que eles manda- “contribuição” para que este serviço fosse vam, iam fazer e acontecer...” (Mariana, 25 anos realizado. Nas palavras de Mariana (25 anos, e moradora do Bairro de Campo Grande). moradora de Campo Grande), os milicianos, “antes era a guerra entre traficantes e polícia. “entraram pedindo uma taxa para as pessoas Hoje é a guerra entre traficantes, milícia e polí- e, se queriam pagar, eles entraram e passaram cia. Todo mundo tem que ficar calado, porque a fazer a segurança da rua. Muita gente não senão é um horror... eles controlam o gás, TV aceitou, mas mesmo assim eles continuaram. a cabo, transporte, taxas cobradas de todo Depois, muita gente disse que não queria mundo que trabalha... se um morador pede mesmo e eles saíram... Mas, durante o tempo um favor aos milicianos, adquire uma dívida que eles estiveram lá, acabou o tráfico de dro- eterna... nunca vai deixar de pagar...” (Gabriela, gas nas ruas, a segurança melhorou bastante, moradora da favela do Barbante, em Campo não tinha mais assalto às casas... você podia Grande) andar nas ruas até mais tarde e não acontecia nada.” O silêncio como meta Segundo Ludmila (27 anos, moradora da Vila Kennedy), a entrada da milícia na Vila A imposição da milícia sobre as comunidades Keneddy ocorreu lentamente: primeiro, ex- baseia-se, quase sempre, na manutenção do pulsou a maioria dos traficantes e enfraquece- silêncio.42 Em alguns casos, é possível obser- ram suas ações. Depois, entraram gradativa- var o silêncio e a repressão a qualquer tipo mente em partes da comunidade. Em outras de levante por parte da população às ações localidades, dentro da mesma comunidade, milicianas. De acordo com o depoimento de

Crime e Globalização, Março de 2010 17 O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro

Gabriela, moradora da favela do Barbante, na A milícia e o tráfico comunidade a milícia não permite em hipó- tese alguma a oposição às suas ações. No geral, De acordo com os entrevistados, é comum os opositores são punidos com expulsão ou observar em algumas comunidades a inser- morte: “na comunidade não pode ter nenhum ção de alguns traficantes, como é o caso da tipo de manifestações ou protestos...” É comum favela do Barbante e Vila Kennedy (em áreas também o estabelecimento de ordens, como a aparentemente determinadas pela própria repreensão ao estilo de se vestir, especialmente milícia), o que denota, naquelas comuni- das meninas com a proibição do uso de de- dades, certa conivência entre tráfico e milícia. terminadas marcas de roupas. O motivo foi Tal relação não é observável em outras co- porque a marca era usada por jovens que gos- munidades (Como, por exemplo, a favela do tavam de um determinado tipo de música funk Batan). Segundo Ludimila, moradora da Vila que foi proibido na comunidade: “a diversão é Kennedy, “é visível o comércio de drogas... os determinada por eles... só pode acontecer fes- próprios milicianos protegem de certa forma o tas de rua ou qualquer outro tipo de diversão se tráfico. Até nisso a comunidade se sente mais tiver o consentimento deles”. segura porque não corre o risco da invasão por parte de traficantes de outras áreas”. Para Gabriela, moradora do Barbante, “os milicianos A milícia como negócio aceitam o tráfico... o negócio é esse: eles lavam o dinheiro, tem os “laranjas”... os traficantes es- É difícil relatar com precisão a quantidade de tão na comunidade e próximo a ela... eles tem capital em torno das ações milicianas. Encon- que agir da maneira que a milícia determina tramos com muita freqüência números aproxi- e, não fizerem, morre! Os milicianos fazem mados em reportagens de jornais e revistas. “ronda” regularmente ao longo da noite, Mas, é fato que o movimento financeiro é alto. utilizam apitos... quando matam alguém, não A conseqüência disso traduz-se tanto nos con- deixam nem a polícia entrar para pegar os flitos entre grupos milicianos e entre milícias e corpos, ficam ali para servir de aviso à popu- tráfico de drogas. A Liga da Justiça, por exem- lação!” plo, é o maior grupo da Zona Oeste; controla a maioria dos bairros situados numa área ex- Em alguns casos, os bandidos expulsos pela tensa que começa aproximadamente na altura milícia e que não encontram paradeiro em da favela do Batan e chega próxima ao bairro outra área, pedem para retornar em troca de de Paciência. Segundo alguns moradores, não trabalhar para os milicianos, na segurança, existe a possibilidade de duas ou mais milícias conforme relatado por Carlos (morador da co- atuarem na mesma área, “o negócio é lucrativo munidade do Fumacê) demais e ninguém quer repartir o bolo” (Ga- briela, moradora da favela do Barbante). A idéia de limpeza como lugar da ordem Com a prisão dos principais líderes da Liga da Justiça (Jerominho, Natalino e Batman), ocor- Um dado importante sobre a questão da lim- reu um enfraquecimento em algumas locali- peza e da ordem como discurso elementar para dades, embora continuem atuando através de justificar a inserção e permanência dos outros membros que continuam em liberdade: grupos milicianos nas localidades não está “agora, o que aconteceu? Eles foram presos, apenas na idéia de expulsão do tráfico. mas existem gente deles que continuam circu- Observa-se, também, que a idéia de limpeza lando ali, mas está fraco...” (Gabriela) atinge àqueles que não participam dos valores

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culturais e estilos de vida moralmente aceitos ercem grande poder de atuação política. Nas pelos milicianos: últimas eleições, em outubro de 2008, a filha de Jerominho, Carminha Jerominho, foi eleita com “a milícia no Batan parece que tem uma atuação maioria dos votos da região de Campo Grande. bem conservadora... é o macho que parece que quer voltar à época da ditadura militar... você Para a manutenção do poder político desses não pode falar nada, está vigiado, todo mundo grupos, é comum a construção e funciona- quieto dentro de casa, ninguém sai. Os homo- mento de centros de assistência social (a maio- ssexuais foram mandados embora do Batan. ria situados dentro de comunidades chefiadas Quem eles consideram cidadão... [tirando o pelos milicianos), que garantem a propaganda que é estigmatizado, como o travesti, o usuário e a aproximação com a população. Um exem- de drogas], se não segue as ordens morre! É a plo dessa dinâmica pode ser observado nas co- idéia de limpeza. O cara que fuma maconha, munidades do Jardim Maravilha (que funciona para eles, não é cidadão, tem que ser extermi- precariamente desde a prisão de Jerominho) e nado. Que cheira, então, nem se fala. Os traves- Favela do Barbante. tis foram mandados embora. No começo, onde a milícia entrou não tinha droga. Com eles não “Os líderes milicianos, embora não morem tem essa, entram e acabam com a boca de fumo, dentro da comunidade, mantém centros soci- e a tirania vai em cima dos moradores: é o gás, o ais, com serviços médicos e distribuem cestas transporte coletivo, a TV à cabo...” (Carlos, mo- básicas toda semana para os moradores da rador da favela do Fumacê, que faz divisa com favela do Barbante. Isso é uma forma manter o Batan) a proximidade e a aceitação da população...” (Gabriela, moradora da favela do Barbante).

Aproximação com a política Considerações finais Embora a maioria dos líderes milicianos neg- uem seu envolvimento com tais práticas, tanto Neste relatório, mesmo que seja destacada sua a CPI como os jornais de grande circulação di- inexorável necessidade de brevidade, procura- vulgaram amplamente os nomes dos milicianos mos expressar alguns pontos que envolvem que atuam em cargos parlamentares. Jerom- a atuação miliciana na Zona Oeste do Rio de inho, no ato de sua prisão em 2007, acusado Janeiro e suas implicações no cotidiano da de participar de atividades milicianas, declarou sociedade do entorno, tanto do ponto de vis- aos jornais que se orgulhava de ser preso por ta das relações sociais, como das atividades “combater os bandidos”. Naquele momento, econômicas – o que envolve o mercado da observamos certa resistência por parte dos violência que ira em torno deste negócio. En- parlamentares (que evitaram comentar sobre o tretanto, esclarecemos que a problemática assunto) e o prefeito (César Maia), que tentou que evolve esses grupos são mais complexas e minimizar a participação de membros do cor- exigem outras investigações. Ressalte-se aqui po legislativo em práticas milicianas, alegando a imperiosa necessidade de serem realiza- que “no máximo, estaremos falando de 5% do das pesquisas qualitativas que possibilitem o legislativo”. reconhecimento dos ethos que envolvem tanto a sociabilidade violenta das regiões Atualmente, os acusados continuam presos. controladas pelas milícias, bem como das Entretanto, nas áreas de atuação da Liga da formas e mecanismos que legitimam a atu- Justiça, seus nomes permanecem fortes e ex- ação destas milícias dentro de uma “bi-

Crime e Globalização, Março de 2010 19 O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro ografia” da Zona Oeste do Rio de Janeiro. como que estas milícias se estruturam a partir A principal hipótese deste Relatório é que o ob- de um mecanismo de mercado. É possível ob- jetivo último das milícias é o lucro e que esse, servar que o mercado da violência que envolve por sua vez, só pode ser sustentado por meio a questão das milícias – em suas dimensões de práticas ilegais articuladas por parcela do econômicas, mas também políticas – funciona Estado e sustentadas na inexistência de políti- de forma independente dos próprios lucros fi- cas públicas e sociais. Nesse sentido a força bru- nanceiros auferidos durante as operações con- ta e letal das milícias é um meio para alcançar troladas pelas milícias. Em um cenário como o o objetivo final do lucro e do controle político da Zona Oeste, hoje, onde a falta de segurança de espaços segregados da cidade do Rio de e proteção universais, garantidas legitimam- Janeiro. Ainda que o lucro garanta a manuten- ente pelo Estado, não é uma exceção, mas sim ção e reprodução das milícias, não se pode a regra, a própria segurança transforma-se em intuir que se trate de uma atividade alheia ao uma mercadoria – produzindo aqui um con- Estado, ao contrário, se articula com o projeto texto de anarquia absoluta, estranha mesmo de controle territorial e serve como base para a teóricos liberais radicais, para quem a segu- sustentar esse mesmo projeto política e eco- rança e a justiça são os únicos bens que não nomicamente. Ou seja, buscou-se identificar a podem ser abandonados da tutela do Estado. relação entre Estado e atividades ilegais e crim- Inaugura-se, repetindo a situação italiana e, inosas voltadas para o lucro, por meio da força mas recentemente, colombiana, um lucrativo e da repressão que se utilizam da condição de mercado da violência, que afeta não somente pobreza e da ausência de políticas públicas. este mercado, mas a próprio comportamento cívico dos atores envolvidos naqueles espaços. Cobrança de “taxas” aos moradores e ao comér- cio local; monopólio sob a venda de produtos Reitera-se aqui a máxima configuração socie- imprescindíveis àquelas comunidades – como tária hobbesiana, onde é possível perceber que a revenda de gás – e ainda o controle da dis- sem uma clara ação de monopólio da força as- tribuição do “gato net”; pressão e controle sobre segurado pela autoridade legítima – no nosso o mercado imobiliário e sobre o espaço público caso, o próprio Estado –, ações concorrentes e recreativo; proibição da competição do trans- e em disputa irão lutar para preencher esta la- porte alternativo no interior das comunidades cuna, oferecendo segurança aos atores despro- controladas; controle de projetos sociais em tegidos. Como este mercado aberto não possui instâncias diversas, da saúde à educação, vistas limites ou regulamentações, e mesmo quando como “assistenciais”, mas ajudadas, ainda que estas são expandidas a partir dos desígnios indiretamente, pelo controle e financiamento emitidos pelos próprios agentes do Estado, o dos gestores públicos; e ainda a tutela e regu- modus operandi violento visando a expansão lação do comportamento privado e social dos dos territórios destes atores criminosos tende indivíduos que moram nos locais onde atuam a se expandir em disputas não reguladas, com estas milícias. Estas são apenas alguns dos el- lógicas próprias. ementos presentes em sua atuação. Os atores deste mercado da violência se esfor- Por isto que, mesmo sendo puramente es- çarão, deste modo, a se comportarem de forma peculativo o volume de dinheiro que é mo- a tentarem maximizar seu controle sobre out- vimentado, hoje, pelas milícias – negócio que ros territórios e atores. Nesta busca de expansão certamente envolve dezenas de milhões de pelo controle de novos mercados lucrativos, as reais anualmente, pela diversidade de negócios lutas se intensificarão em um cenário entrópi- envolvidos –, o aspecto central da questão é co, que pode resultar em um novo monopólio

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destes negócios ou, o que parece ser o caso da A busca dos ideais civilizacionais45 não pode Zona Oeste, em lutas incessantes entre grupos ser, pelo que foi demonstrado até aqui, refém rivais, tal como acontece no negócio do tráfico do terror, alimentando, assim, uma política do de drogas. No mais cruel destes cenários, na medo, onde a instabilidade permaneça sendo conjugação de ambos os negócios. Estaríamos, não uma exceção, mas sim a regra. Por um assim, dentro de um ovo da serpente. lado, da tirania do tráfico, que impõe ao Rio de Janeiro, com um contorno mais incisivo Esta hipótese é relevante porque nos permite nas favelas onde ela se instalou, a total ausên- perceber que, mesmo que uma das facções em cia de pacificação destes espaços. Por outro, disputa consiga o controle deste mercado da do arbítrio das milícias que, ao lado daqueles violência de forma razoavelmente estabilizada, controladores estatais que deveriam garantir nada assegurara que novos atores – insatis- o monopólio legítimo da força – e não o uso feitos com o resultado deste jogo – aliem-se indiscriminado da violência – , ocupam estes para buscar romper com este monopólio con- espaços a partir de uma lógica predatória – struído, produzindo assim uma círculo contín- econômica, política e moralmente – que invia- uo de violência. E é este, inexoravelmente, o biliza o tratamento universalista dos cidadãos círculo vicioso que estamos, neste momento, no que tange à segurança pública. Nesta con- testemunhando.43 jugação cruel constata-se novamente a iniqüi- dade de nossa atual constituição societária: a Complementarmente a esta questão, conforme inexistência das garantias de direitos, sejam chamamos atenção no início deste trabalho, civis ou sociais, do demos que está à margem é a discussão sobre a construção dos ideais da pólis. A população vitimizada das perife- civilizatórios aqui presentes. Elias (1997)44 rias está distante da visibilidade e das redes afirma que, na tradição ocidental, o processo de proteção e garantias promulgadas aos que civilizador, apesar de sua sísifica incompletude, possuem estes direitos. Assim, aqui, a "política deve possuir três elementos centrais: a autodis- do medo" reforça o "autoritarismo socialmente ciplina individual; a resolução pacífica e media- implantado" (conforme já expressou o cien- da dos conflitos intra-estatais que visem à paci- tista político Guilhermo O'Donnell) presente ficação social; e, finalmente, estruturas sociais em nossa sociedade, alimentado muitas vezes, específicas que assegurem uma distribuição de sim, por parte de vários operadores políticos e bens sociais que não mine tanto as redes de in- midiáticos, que vêem nestas periferias e favelas terdependência como fundamente o papel do o foco único de nosso descalabro da segurança Estado em equilibrar as tensões intra-estatais pública. existentes. Não é por menos que, para este au- tor, os indivíduos, neste cenário, possuem até A atuação das milícias, assim, revigora com mesmo aversão, repugnância, em relação ao nitidez uma profecia autocumprida em funcio- uso da violência física. No cenário abordado namento, colocando em ação o equacionamen- acima, cremos ser possível percebermos exata- to de sua “eficácia” – não reconhecendo como mente o inverso proposto por Elias em termos legítimos os procedimentos jurídicos que de- de controle da violência e de constituição de veriam contornar obrigatoriamente as suas padrões de civilização. Deste modo, não seria ações – contra as periferias e favelas, homoge- estranho alimentarmos a hipótese, como afir- neizadas como “antros de marginais”, reforçan- mada na epígrafe deste projeto, que as milícias do uma visão estigmatizadora e estigmatizante são um parte de um processo de descivilização da pobreza. Neste processo, parte daqueles que que ocorre em determinados territórios do Rio deveriam proteger a ordem social civilizadora, de Janeiro contemporâneo. transformam-se em mais uma facção violenta

Crime e Globalização, Março de 2010 21 O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro dos confrontos. Atualiza-se, deste modo, mais Em primeiro lugar, é preciso levar em conta uma faceta das “metáforas da guerra” em cur- as localidades mais afetadas, que não encon- so no Rio de Janeiro (cf. Ribeiro, 2007) como tram por parte do Estado de Direito, formas um argumento circular que justifica a "política de exercício pleno de cidadania, fundamen- do medo". Ao contrário do que prega um dos talmente de seus direitos civis e sociais. Em maiores artífices do plano de segurança ci- geral, são localidades carentes de serviços dadã colombiano46, o sociólogo Jairo Libreros básicos (saúde, educação, habitação, sanea- (2007), que avisa que “[a] segurança pública mento básico e lazer) e controladas pelo trá- é sustentada no princípio democrático e na fico de drogas ou mílicas. Sem assegurar uma obrigação política e jurídica que corresponde distribuição republicana dos bens e proteções ao Estado, de criar e preservar as condições em constitucionais a estas populações, estes ter- que se garanta o exercício pleno dos direitos ritórios permanecerão sob controle de for- humanos e das liberdades individuais. Não ex- ças despóticas, sejam elas legítimas ou não. iste, então, uma contradição entre segurança e direitos humanos, já que, a partir de uma con- Em segundo, a questão da corrupção que en- cepção democrática, existe uma relação de de- volve os órgãos de administração pública e pendência e dedicada ao propósito comum da a força policial. Neste ponto, a questão da proteção da pessoa humana”. corrupção nos leva a refletir sobre o tipo de treinamento e a estrutura de empregabili- Recomendações47 dade do policial, cujo salário não se adequada ao nível de exposição e estresse sob o qual o Um dos principais entraves para a proposição sujeito está inserido. de políticas públicas, especialmente no que diz respeito à segurança pública, ocorre porque em Portanto, sugere-se a construção de uma políti- geral as bases para tais políticas baseiam-se em ca pública para a área de segurança baseada na modelos referentes aos países cuja realidade só- formação de grupos cuja ação seja baseada na cio-econômica apresenta características distin- inteligência, no treinamento especializado e de tas. Parte dos estudos das políticas públicas nos investigação da gênese do problema. países desenvolvidos e alicerçados em regimes democráticos estáveis e consolidados, são uti- Por outro lado, por parte do Estado, seria in- lizados com o intuito de comparar as análises teressante o investimento em equipes especial- do contexto político-institucional em países em izadas em análise e diagnóstico prévio, antes desenvolvimento e caracterizados por democ- de idealizar qualquer tipo de política para essas racias delegativas (como o Brasil). Nesses país- áreas. Isso porque a inserção de modelos já exis- es, geralmente as instituições democráticas são tentes podem não dar conta das singularidades frágeis e o comportamento político-administra- que acompanham cada uma dessas localidades. tivo convivem entre o moderno e o tradicional, Como as milícias contam com sua base en- coexistindo a modernidade liberal-individu- volvida dentro do aparelho de segurança, é alista com sistemas de estratificação e hierar- necessário não somente um reforço a autono- quizações pré-modernas (cf. DaMatta, 1979). mização das esferas das controladorias e cor- regedorias de polícias, mas que estas sejam Neste sentido, as recomendações abaixo tentam aparelhadas técnicamente para que possam conjugar a realidade local e a percepção da mel- também “perseguir o dinheiro” destes grupos, hor forma de construção de instrumentos efica- posto que, neste cenário, é a “lavagem do din- zes para a resolução dos conflitos e problemas heiro” e as redes ilegais em que ele se compõem provocados pela atuação dos grupos milicianos. que geram sua estrutura organizacional.

22 Crime e Globalização, Março de 2010 Recomendações

Principais recomendações da CPI

O relatório final da CPI sobre as milícias • Melhorar a qualificação, condições de tra- contém 58 recomendações (CPI, 2008). balho e remuneração da polícia e outros Portanto, existe uma preocupação que as envolvidos na segurança pública, e imple- autoridades municipal, estadual e federal mentar medidas para evitar a interferência ainda não implementaram inteiramente as política na área da polícia; recomendações delineadas no relatório da • Fortalecimento institucional dos meca- CPI, especificamente as recomendações que nismos de controles internos e a criação visam criminalizar e processar as atividades de um mecanismo de controle externo, que são fontes de renda para estas autori- como também a ampliação do papel do dades. O resultado é que as milícias contin- Ministério Público para fiscalizar a polícia uam expandindo, apesar da prisão de alguns e as entidades de segurança pública; dos seus prinicipais integrantes. • Desmilitarizar o corpo de bombeiros e desarmar os bombeiros. As recomendações abrangem uma grande variedade de medidas que podem ser resu- Ao nível social: midas da seguinte forma: • Evitar a ocupação ilegal de áreas urbanas e o loteamento e revenda de terrenos, Ao nível político: como também regularizar as áreas já habi- • Eliminar a impunidade parlamentar de re- tadas; presentantes envolvidos com milícias para • Legalizar, cadastrar e normatizar o setor viabilizar providências jurídicas e disci- de transporte clandestino e as coopera- plinares como o impeachment, cassação tivas; do mandato eleitoral; • Regularizar a distribuição de botijões de • Fortalecer as leis eleitorais e providências gás, Lan houses, TV por assinatura e In- administrativas para evitar o abuso de ternet banda larga, incluindo serviços com poder, captação de sufrágio, formação de preços accesíveis e a participação dos currais eleitorais e o usode centros sociais moradores de comunidades carentes na para fins políticos. prestação destes serviços; • Campanhas de conscientização contra as Ao nível judicial: milicias e aumentar o policiamento e co- • Criminalizar a formação de milícias; laboração; incentivar organizações comu- • Criar uma comissão contra as atividades nitárias e privadas para combater serviços clandestinas de segurança incluindo a Poli- de segurança clandestinos. cia Federal e a Secretária de Segurança • Providências para aumentar os veículos de Publica do Rio de Janeiro para fiscalizar comunicação alternativos em comuni- empresas de segurança privada; dades carentes; • Um departamento especial permanente • Envolver a sociedade civil e criar uma cor- formado pela polícia e judiciário para in- regedoria, por exemplo em conjunto com vestigar as milícias; a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB).

Crime e Globalização, Março de 2010 23 O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro

Notes Sociais pelo Programa de Pós-Gradução em Ciências Sociais da UERJ. 1. Peter Lock, Crime and violence: Global economic parameters, Palestra principal da mesa redonda sobre 11. A fuga de Batman representou, certamente, o maior Crime e Violência no Goethe Institute in Johannes- desafio e empecilho desta pesquisa. Durante todo o burg, Maio de 2006 (http://www.peter-lock.de/txt/ jo- período em que o ex-policial militar ficou foragido, o hannesburg.php) clima de terror deflagrado na Zona Oeste do Rio de Janeiro fez com que nenhum morador desejasse dar 2. United Nations Human Settlements Programme entrevistas para os pesquisadores – mesmo com to- (UN-Habitat), Global Report on Human Settlements das as garantias de segurança e sigilo das informações 2007: Enhancing Urban Safety and Security; UN-Hab- contidas nas entrevistas, da realização destas distantes itat’s State of the World’s Cities Report 2006/7; UN-Hab- da área de atuação e moradia dos entrevistados, assim itat’s State of the World’s Cities 2008/2009. como da preservação e segredo da identidade dos en- trevistados. 3. Millennium Development Goal 7, target 11. The UN Millennium Development Goals (http://www.un.org/ 12. Há indícios de inúmeros assassinatos cometidos millenniumgoals/goals.html) por milicianos na região. No relatório das milícias (cuja análise está mais adiante), levantou a suspeita e a tenta- 4. UN-Habitat, The Challenge of Slums: Global Report tiva de apuração desses crimes. on Human Settlements 2003, pp. 6-7. 13. Todas as entrevistas realizadas foram realizadas 5. Rule of Law: A (missing) Millennium Development não na Zona Oeste do Rio de Janeiro, mas, sim, em um Goal that can help reach the other MDGs, palestra de escritório de advocacia no Centro do Rio de Janeiro, abertura apresentado pelo Diretor Executivo do United muito distante da área da pesquisa. Agradecemos tanto Nations Office on Drugs and Crime (UNODC), An- a estes “advogados anônimos” que tanto auxiliaram este tonio Maria Costa na Comissão da ONU sobre a Pre- trabalho como, mais uma vez, ao TNI, por ter tornado venção de Crime e Justiça Criminal, Sessão 17, Viena, estas entrevistas possíveis, pois sem o financiamento 14 de abril de 2008 (http://www.unodc.org/unodc/en/ obtido os custos de transporte, alimentação, transcrição aboutunodc/speeches/2008-04-14.html) de fitas, etc., não seria possível.

6. UN-Habitat, The Challenge of Slums, op. cit. p. xxviii 14. Em contexto diferente, é necessário observar este cenário de terror e desproteção dos indivíduos vul- 7. UN-Habitat, Global Report on Human Settlements neráveis tanto à violência dos grupos criminosos como 2007: Enhancing Urban Safety and Security, p. 121 da ausência do Estado em Heringer e Drska (1991).

8. O conceito de “mercados de violência” foi inicial- 15. De todo modo, foi possível obter um longo depoi- mente elaborado no contexto dos estados falidos. mento com um morador antigo da Zona Oeste, especi- Porém, também se aplica às áreas abandonadas pelos ficamente da região de Campo Grande, que muito nos estados funcionais, Veja Georg Elwert, Intervention in ajudou neste trabalho. Este depoimento consta como Markets of Violence (http://www.oei.fu-berlin.de/en/ Anexo deste trabalho, pois é um poderoso testemunho projekte/cscca/downloads/ge_pub_marketsofviolence. da ação das milícias naquelas regiões. pdf);e Peter Lock, Economic Factors of Conflict and Violence, November 2004 (http://www.liberty security. 16. O termo “gato net” corresponde a uma prática org/article42.html#nh1) criminosa comum em várias áreas da Cidade do Rio de Janeiro, especialmente nas periferias e nos lugares de 9. Veja: Gambetta, Diego (1993). The Sicilian Mafia: domínio miliciano. Em geral, são feitas ligações clan- The Business of Private Protection. London: Harvard destinas do sinal de TV a Cabo e internet banda larga e University Press. Gambetta elabora um quadro esclare- redistribuída para a população por valores inferiores. cendo a atual função econômica da Máfia. Diferente- mente de observadores anteriores, Gambetta descreve 17. Entre eles, um dos mais famosos era Tenório Cav- a Máfia como uma “identidade comercial” que fornece alcanti, que tornou-se tema de filme. Outro “justiceiro” “proteção privada.” bastante conhecido, o Mão Branca, também atuou nas regiões da baixada fluminense, no início dos anos 10. Este texto é uma versão preliminar de uma pesquisa 1980. Entretanto, conforme o estudo realizado pela mais extensa, “O impacto da ação das milícias em rela- Antropóloga Ana Lúcia Silva Enne, da Universidade ção às políticas públicas de segurança, direitos huma- Federal Fluminense, o Mão Branca teria sido uma nos e opinião pública: dilemas da segurança pública “invenção da Imprensa”, cujo intuito seria aumentar a no Rio de Janeiro”. Agradecemos a Tom Blickman, do venda do Jornal Última Hora, pois este foi o primeiro TNI, o apoio a este empreendimento. Paulo Jorge Ri- a divulgar a existência desse suposto chefe de grupo de beiro é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade extermínio na Baixada Fluminense. do Estado do Rio de Janeiro. Professor do Departa- mento de Sociologia e Política da PUC-Rio e pesquisa- 18. Termo muito utilizado por estes grupos, realçando dor associado do Laboratório de Análises da Violência que, na inviabilidade que se cumpra a justiça – em seu da UERJ. Rosane Oliveira é Doutoranda em Ciências sentido jurídico –, a vingança é acionada como um

24 Crime e Globalização, Março de 2010 Notes

reparador das “injustiças” cometidas por terceiros, do Rio de Janeiro. (http://maps.google.com/maps/ms? desqualificando-se os mecanismos jurídicos e institu- hl=pt&gl=BR&ie=UTF8&oe=UTF8&msa=0&msid=1 cionais de reparação. 00029860383604228831.000452cfd19b4a4580c3b). Os jornais de grande circulação chamam a atenção para os 19. Sobre esta temática, ver a tese de doutorado de conflitos pelo controle de áreas (antes sob o domínio da Monteiro (2007). A tese de Monteiro (2007) é impor- Liga da Justiça), por outras forças milicianas, entre elas tante justamente porque aborda, como pano de fundo uma liderada por Chico Bala, na Favela do Barbante. o que torna (tornou) indivíduos comuns em grandes Se compararmos com o mapa do tráfico (http://maps. líderes locais com altos índices de aceitação da popu- google.com/maps/ms?msa=0&msid=11521121409839 lação nativa, independente das atividades “criminosas” 9466668.000446fc11e5ea296a5e9) podemos notar que que esses sujeitos encontravam-se envolvidos. o número de comunidades dominadas pela milícia é maior. 20. Fenômeno anunciado por Victor Nunes Leal, no final do anos 1930, com o deslocamento de antigas re- 27. Segundo a pesquisa do Instituto Imagem, realizada des de poder local comum em cidades interioranas, o entre os dias 31 de março e 4 de abril de 2007, obs- coronelismo, para os centros urbanos que começavam ervou-se que os cariocas estão divididos em relação às a florescer por do processo de industrialização e cres- milícias. Enquanto 48% acham que o Estado deveria cente migração para as metrópoles. reprimí-las como combate os traficantes — já que são grupos não-oficiais que exploram a população —, 46% 21. Nas discussões promovidas no ato de elaboração consideram que o governo não deveria se preocupar dos Planejamentos Estratégicos para a Cidade do Rio com os milicianos. Os mais desfavoráveis às milícias de Janeiro, I e II, ao longo dos anos 1990, de fato há são os jovens (60%) e os que têm curso superior (64%). várias prerrogativas destinadas à zona oeste da Cidade. Também são contra os moradores da Tijuca, Centro e 22. Como ocorre na Cidade de Deus, em Jacarepaguá, Zona Sul. A região da Leopoldina é a única em que os com o tráfico forte e em outras favelas menos rentáveis favoráveis às milícias são maioria — 57% a favor e 29% para o tráfico e apropriadas pelas milícias. contra. É lá onde acontecem os maiores confrontos en- tre grupos de traficantes. A pesquisa, encomendada pela 23. Jornal O Dia Online, Reféns do tráfico e da milícia vereadora Andrea Gouvêa Vieira, ouviu 800 pessoas, de em Água Santa. 23/01/2008. Segundo a reportagem, a 31 de março a 4 de abril. (Jornal O dia, 05/06/2007) ação do tráfico e da milícia tiveram a mesma dimensão do medo: “Segundo moradores, casas foram invadidas. 28. Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito, Para sustentar a milícia, o novo grupo passou a cobrar p. 112. mensalmente R$ 100 de mototaxistas, R$ 30 de comer- ciantes e R$ 10 de moradores. Os milicianos também 29. Os esquemas criados pela milícia ultrapassam esses exigem participação na venda de casas. Já alarmados serviços e além das taxas de manutenção segurança, a com os novos ‘donos’, os moradores ainda vêm rece- venda dos imóveis nas áreas dominadas é manipulada bendo mensagens de traficantes prometendo contra- por esses agentes e o morador é obrigado a repassar, em atacar.” média 15% do valor da venda do imóvel.

24. As complexidades da personagem Batman são uma 30. Cf. O GLOBO. Milícias de PMs expulsam o tráfico. fonte inesgotável para compreender o universo sim- 20 mar 2005 p. 19. bólico destes grupos. Isto porque “Bruce Wayne”, an- tes de tornar-se Batman, estudou Direito. Ao ver que 31. Segundo o jornal Folha de São Paulo, nos meses de a “lei” não possuía uma correspondência com a idéia novembro e dezembro de 2006, “síndicos de 45 edifí- de Justiça, este abandona o curso e transforma-se no cios do Leme (extremidade esquerda de Copacabana) “vingador mascarado”. receberam por escrito a proposta de adotar um esque- ma de proteção 24 horas por dia. A proposta, assinada 25. Um dos acusados de chefiar grupos de milicianos por um sargento aposentado da Polícia Militar, oferece na Zona Oeste, o vereador Jerônimo Guimarães, o Je- segurança (seis agentes por turno de seis horas) em rominho, que exerce o segundo mandato na câmara de quatro ruas próximas à favela do Chapéu Mangueira. vereadores da cidade do Rio de Janeiro, foi preso no O motivo da oferta, de acordo com o documento, é dia 27 de dezembro de 2007. A prisão gerou uma série "o grande índice de criminalidade" na área. O policial de polêmicas e o parlamentar negou todas as acusa- cita os crimes cometidos: "furto, roubo, tráfico e uso de ções. Entretanto, ao caminhar pelos bairros de Campo entorpecentes". O sargento estipulava o dia 28 passado Grande e Adjacências, notamos algumas faixas com como data-limite para a aprovação da proposta. Só en- frases de apoio ao vereador. Numa dessas faixas, logo tão diria aos "clientes" o preço da taxa de segurança. na saída para a Avenida Brasil, na Estrada do Men- Mesmo assim, já estipulava a data do pagamento: entre danha, está a frase: “ser preso por suspeita de combater os dias 15 e 19 de cada mês. Após consultar condômi- bandidos é uma honra pra mim”, assinada por Jerom- nos, os síndicos recusaram a proposta e denunciaram inho. (Jornal Extra, 23/01/2008) o policial, que está sendo investigado pela corporação. Embora aposentado, o sargento trabalha no serviço in- 26. Recentemente, a equipe do deputado federal Fer- terno do 9º Batalhão, em Rocha Miranda (zona norte).” nando Gabeira (Partido Verde – RJ), elaborou um (Folha Online, 12/12/2006. http://www1.folha.uol.com. mapa com as áreas ocupadas pela milícia na Cidade br/folha/cotidiano/ult95u129287.shtml)

Crime e Globalização, Março de 2010 25 O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro

32. Jornal O Globo, “Milícias de PMs expulsam o trá- delegado e outras ameaças contra outro delegado e três fico”. 20/03/2005. inspetores. Isso gerou a primeira operação “Choque de Ordem”, em Campo Grande, sábado. Na ocasião, 400 33. Um estudo mais elaborado acerca da reação e ação policiais participaram da ação. Dez pessoas foram pre- do poder público diante da problemática do avanço sas, apreendidas 80 kombis, nove centrais clandestinas miliciano na cidade do Rio de Janeiro será promovido de TV a cabo fechadas, 600 quilos de fios de cobre e 11 numa segunda etapa da pesquisa. caça-níqueis recolhidos, interditadas fábrica de DVDs e CDs piratas e posto de gasolina. Também foram apreen- 34. Relatório Final da Comissão Parlamentar de In- didos 150 galos de briga e realizados sete flagrantes de quérito (Resolução n. 433/2008). Os trabalhos da CPI porte de armas. (Jornal O Dia, 27/12/2007) das Milícias foram realizados entre os meses de junho e novembro de 2008. Do ponto de vista metodológico, 43. Agradecemos enfaticamente a Tom Blickman, no foram analisadas 1.162 denúncias do disque-milícias, TNI, as muitas discussões que tivemos a respeito dos 44 denúncias anônimas, um relatório com 129 páginas tópicos discutidos acima. Somos responsáveis por to- com a análise geral das denúncias recebidas sobre as dos os erros acima contidos, mas os acertos teóricos e milícias e vários documentos reservados ou sigilosos. de avaliação devem-se, inexoravelmente, a ele.

35. Relatório Final da Comissão Parlamentar de In- 44. É relevante mencionarmos o caráter francamente quérito. p. 35 “etnocêntrico” tanto da versão civilizadora exposta por Elias como, mais do que isto, redesenharmos esta 36. Idem, p. 35-36. versão tendo o Rio de Janeiro contemporâneo com este foco como meta. Porém, é possível compreender 37. Idem, p. 36. o modelo de Elias mais do que como um modelo de- terminístico, que envolva aquele modelo civilizatório 38. Subsistema de Inteligência da Polícia Militar do Es- como um caminho último. O que pretendemos aqui, tado do Rio de Janeiro. diversamente, é buscarmos compreendê-lo como uma fonte histórico-comparativa, realçando as especifici- 39. Idem, p.45. dades do cenário no qual nos encontramos.

40. A Lei nº 8.490, de 1992, criou a Subsecretaria de In- 45. Certamente que vários dos princípios aqui dis- teligência - SSI, tendo-lhe subordinado o Departamento cutidos são, novamente, muitas vezes tributários das de Inteligência e o CEFARH, que passaram a integrar a contribuições desenvolvidas por Norbert Elias, funda- segunda linha organizacional da Secretaria de Assuntos mentalmente em O processo civilizador (1994) e “Civi- Estratégicos. Manteve-se, dessa forma, a concepção vi- lização e violência” (1997), ainda que, para o formato gente desde a instituição da SAE, em 1990, a qual posi- deste artigo, o escopo teórico do sociólogo alemão cionou o organismo de Inteligência sem acesso direto tenha de ter sido atenuado. ao Presidente da República. Até o final do Governo do Presidente Itamar Franco, a atividade de Inteligência 46. Plano este, aliás, que parece servir de exemplaridade foi exercida pela SSI, com as devidas cautelas e limita- para vários governadores brasileiros. Porém, parecendo ções impostas pelo período ainda de transição para a até o momento que estes governadores desejam se es- sua completa institucionalização. pelhar apenas no aspecto repressivo imposto a este pelo governo Uribe e na busca dos financiamentos conquis- 41. Em 2007 a milícia entrou efetivamente na comuni- tados por Bogotá e Medellín junto ao BID, e não nas dade e assumiu o comando. políticas empreendidas naquelas cidades e que ficaram conhecidas a partir de seus respectivos planos de “se- 42. Em 2007, no ato da prisão de Jerominho, um dos gurança cidadã”. principais líderes milicianos da Liga da Justiça, o Jor- nal O Dia, publicou uma reportagem sobre a ação da 47. O Relatório da CPI das Milícias realizou exten- DRACO, que ressaltou a utilização de ameaças por sas recomendações ao Poder Público para que esta parte dos milicianos para calar testemunhas: “Duran- questão fosse enfrentada adequadamente, merecendo te as investigações, o que mais chamou a atenção dos uma leitura atenta por disponibilizar de instrumen- agentes da Draco era o fato de que testemunhas acusa- tos políticos muito superiores aos que constam neste vam o grupo de Jerominho de homicídios, mas logo de- relatório. De todo modo, é possível destacar, entre as pois voltavam atrás. Geralmente, no início, elas recon- recomendações que, apesar de a Secretaria de Segu- heciam em delegacias até Luciano, filho de Jerominho, rança pública ter feito avanços nas investigações e no e outros integrantes como autores de crimes. Porém, combate à expansão destes grupos criminosos, ainda pouco tempo depois, o grupo era inocentado. Para os existe o imperativo em se optar por um trabalho em agentes, o recuo das testemunhas seria em função de diversos níveis de governo e instituições. Isto inclui a ameaças de morte. Segundo a polícia, até o armamento necessidade de controle municipal e a regulamentação do grupo era demarcado. Em operação recente da Polí- de companhias de transporte ilegal, investigações pelo cia Civil foi apreendido um fuzil com símbolo do Bat- Ministério Público daqueles indicados no relatório da man. Nem a polícia escapou de represálias de grupos CPI das milícias, bem como a aprovação de leis federais ligados a milícias em Campo Grande. Com o apoio da recomendadas pela CPI. Polícia Federal, foi descoberto um plano para matar um

26 Crime e Globalização, Março de 2010 Bibliografia

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28 Crime e Globalização, Março de 2010 Anexo: Impressões sobre um fenômeno “estranho”:

Anexo: Impressões sobre um fenômeno “estranho”:

O relato a seguir é, em parte, uma tentativa de Existem, atualmente, dois discursos referentes construção de um diário de campo. Não um ao que ocorre na cidade do Rio de Janeiro: o “diário” escrito por aqueles que estão de fora acadêmico e o que constantemente aparece na do campo e chegam com um olhar de curiosi- mídia desde o ano de 2006. Mas, num primeiro dade, com recorte teórico e com uma série de momento, vale à pena destacar um terceiro questões a serem observadas. Trata-se do relato discurso: o daqueles que vivem, respiram, de um ex-morador de uma região que “sempre” caminham pela cidade. Começo pelo meu esteve sob a mira de determinados grupos, ora próprio discurso, que, em princípio assume a com a idéia de pacificação e manutenção da or- característica de uma espécie de “outsiders”. dem, ora com dinâmica de usurpação do dire- ito de ir vir e da construção de espaços de ação Pertenço a uma região do município carioca violenta e controle social através do pagamento que geograficamente está distante do que pela manutenção de uma pretensa paz. chamamos de “centro de decisão política” ou “centro da cidade”: a zona oeste. A zona oeste, Esta região, a Zona Oeste da Cidade do Rio de aquela situada do outro lado da Grota Funda Janeiro, mais especificamente um dos maiores (portanto, não faço referencia neste momento bairros da área, Campo Grande e adjacências, à Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes e bem como Guaratiba, Bangu, Padre Miguel, Jacarepaguá), é uma localidade cuja ocupação Realengo, compõem um espaço urbano da ci- territorial seguiu padrões próximos às regiões dade que vivenciam o fenômeno das Milícias. da Baixada Fluminense: invasões, ausência de Alvo dos principais jornais diariamente desde ação efetiva do ponto de vista das políticas o ano de 2006, a ação desses grupos levanta públicas de segurança, processo intenso de muitas discussões. Entretanto, vale ressaltar, favelização, tráfico de drogas, ação de grupos que ainda podemos notar a ausência efetiva de extermínio e reduto de jogo do bicho. de estudos “de dentro”, justamente pelo perigo eminente que envolve qualquer tipo de aproxi- Ao longo de pouco mais de trinta anos, a mação com membros desses grupos. região mudou, não apenas a sua paisagem do ponto de vista urbano, mas as relações sociais nos mais variados aspectos: a expansão imo- biliária é intensa bem como o crescimento do Impressões sobre um fenômeno “estra- poder aquisitivo da população, em geral. Ape- nho”: a ação miliciana sar da extensão territorial avantajada, a maio- ria dos bairros localizados no eixo Realengo até O lugar... Santa Cruz, salvo algumas singularidades, tem certo ar provinciano. Muitas famílias residem Em geral, quando passamos pelo mesmo lugar há anos nesses bairros e, por este motivo, são todos os dias, a tendência é que deixemos de capazes de falar com muita propriedade das observar as mudanças na paisagem... Isso se o transformações e das próprias impressões so- problema fosse falar de paisagem. A cidade do bre elas. Rio de Janeiro, assombrada por duas grandes vertentes, o tráfico de drogas e as milícias, não Nasci no bairro de Campo Grande, mais espe- pode ser observada como uma simples paisa- cificamente, na divisa entre Campo Grande e gem. Guaratiba. Ali, vivi até os sete anos de idade e

Crime e Globalização, Março de 2010 29 O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro mudei-me para a Tijuca, zona norte da cidade. neira...”. Atualmente, a fala é outra, “é, as coisas Entretanto, durante cerca de dez anos, contin- estão difíceis por aqui, a milícia não deixa nada uei freqüentando o bairro. Somente aos 21 anos passar...”. É interessante notar que na extensão de idade, retornei na condição de moradora territorial que determinei acima, vigoram gru- para Campo Grande. Mas, desta vez, me senti pos que se autodenominam de “liga da justiça”, uma “outsider”. Não reconheci o lugar, não me cuja imagem mais propagada é do cavaleiro encontrei no lugar, não me sentia mais “dalí”. A negro, o Batman. Se mudassem o nome para sociabilidade, o provincianismo e os discursos Gotham City, em alguns aspectos, me parece- da maioria daqueles com os quais conversava, ria adequado! não deixavam dúvida de que o que estava no “centro da cidade” era longe demais. Neste ponto, vale uma ressalva. O bairro de Campo Grande e adjacências, apesar da grande Retornei na condição de moradora no ano de extensão territorial, têm uma característica 1995. Cursava o terceiro período do curso de bastante provinciana. Em geral, as famílias se graduação em ciências sociais da Universidade conhecem há várias gerações. Nos terrenos é Federal Fluminense, em Niterói. O primeiro comum notar duas ou três casas, habitas pelos impacto que senti foi a distância: demorava, filhos que ao casarem constroem suas casas em média duas ou três horas para chegar na no mesmo terreno dos pais. Provavelmente, a universidade. Alguns dos meus amigos de in- escassez de instituições superiores de ensino fância achavam estranho estudar tão longe... dificultou até final dos anos 1980 o acesso da maioria da população à universidade e, por Outra questão que me chamava a atenção era este motivo, era bastante comum que boa parte o fato de que o “centro da cidade” parecia algo da juventude da localidade terminasse apenas distante do dia a dia de alguns moradores, es- o ensino médio e ingressasse diretamente no pecialmente aqueles que tinham a vida total- mercado de trabalho. Atualmente, com o mente situada na região. Portanto, a impressão número crescente de faculdades na região, essa era de que “ali” não fazia parte da cidade do situação mudou sensivelmente. Talvez, por este Rio de Janeiro. Talvez, esse certo distanciamen- motivo, a própria ascensão dos grupos milicia- to, tanto geográfico, como imaginário, viabilize nos tenham encontrado um fator de crítica por alguns discursos discrepantes envolvendo a ci- parte da população. A naturalização que antes dade. Por exemplo: atualmente, escuto comen- era comum, em se tratando da polícia mineira, tários de amigos moradores de outras áreas da tornou-se foco de crítica ao se intitularem milí- cidade, especialmente a zona sul, e, em geral, cias. a zona oeste aparece pouco ou nada nas con- versas. Não posso afirmar tais questões com dados estatísticos, mas é uma impressão que tenho ao conversar e confrontar com discursos das Andanças por alguns bairros... gerações anteriores. Quando dialogo com pes- soas mais jovens (abaixo dos 25 anos de idade), Quando criança, era comum ouvir os comen- verifico que há um profundo descontentam- tários dos mais velhos sobre “aquele marido ento com os rumos do ponto de vista da vio- que bateu na mulher e levou um corretivo do lência e atuação miliciana... discurso que não chefe da localidade”, ou “aquela pessoa que su- me recordo de ouvir há 20 anos atrás ou de miu misteriosamente porque burlou alguma pessoas com mais de 45 anos de idade. Numa regra”. Depois de um tempo, ouvia comentários conversa com um senhora com 63 anos de do tipo: “estão todos com medo da polícia mi- idade, me pareceu claro que a polícia mineira

30 Crime e Globalização, Março de 2010 Anexo: Impressões sobre um fenômeno “estranho”:

exercia um papel muito mais próximo da idéia preferiam pagar a correr o risco de ter sua casa de manutenção da ordem do que a milícia... invadida pelos próprios responsáveis pela tal “eles faziam o papel que polícia comum não segurança. Caso tal invasão acontecesse, o fato fazia, expulsavam os marginais e moravam nas é que “ninguém se responsabilizaria” e nada comunidades...”. poderia ser feito. Portanto, o medo e a coer- ção estavam tão presentes que me pareceram Outro aspecto interessante era a questão da naturalizados em alguns discursos que ouvi tranqüilidade. Há certo consenso de que era naquela noite. tudo mais tranqüilo, não tinha tráfico efetiva- mente de drogas e, no geral, os problemas eram Na verdade, aqueles “seguranças” faziam parte brigas, roubos e, por vezes, tráfico de armas. da milícia local. O bairro estava longe de co- Com o fenômeno das milícias a motivação, munidades carentes, e é de classe média. Tal em primeiro lugar, é expulsar traficantes. Por realidade desmitificava a idéia de que esses conta disso, as invasões na maioria das favelas grupos atuavam apenas em locais violentos, ocorreram de forma “militarizada”, com arma- favelas que sofriam com a ação do tráfico de mentos pesados. É claro que essa característica drogas... é proveniente do fato de que os membros mili- cianos são, na sua maioria, policiais civis, mili- tares, bombeiros, seja na ativa ou não. No ato “Jardim Maravilha” de sua instalação a nova ordem é implantada e quem não concordar, tem a opção de se retirar. Voltando aos longos trinta anos. A feveliza- No mais, no geral, a população concorda e fica ção cresceu absurdamente e, ao caminhar em silêncio. Por este motivo é tão complicado pela mesma rua principal que liga um bairro verificar pesquisas de campo baseada nos dis- ao outro (Monteiro e Jardim Maravilha), ob- cursos dos moradores. servo casas, barracos e aglomerados de tijolos até onde meus olhos alcançam, poeira vermel- ha, as ruas de acesso asfaltadas, muitas crianças Um bairro... (perto do West shopping) nas ruas, comércio intenso e, aparentemente, informal, algumas escolas municipais, centro Em Campo Grande o que mais podemos veri- médico, centro de assistência social, muitas ficar é o surgimento rápido de sub-bairros. igrejas protestantes e uma ou duas igrejas Quase todos tem nomes femininos, “Adriana, católicas. Ainda nesta rua, o fluxo de trans- Cecília, Mariana...”. Farei um breve comentário porte coletivo, legal e ilegal é altíssimo. Mas, de um desses sub-bairros, situado próximo ao entrando por algumas ruas que me levam ao West Shopping (maior shopping da região). “coração” dessa “tal” localidade, a percep- Certa vez, em 2007, fui a uma festa nesse bairro ção é outra. Não vejo muitas ruas asfaltadas, e, ao longo da noite, notei que a cada instante escolas, postos de saúde. Não vejo tráfico, pes- passava um “segurança particular” pelas ruas. soas armadas e nem policiais. Dizem que por ali existem responsáveis pela ordem e “lim- Tamanha fora minha curiosidade, que resolvi peza”, mas não estão à vista. A ação é mais perguntar ao dono da casa como chegou a uma silenciosa, diária e, me parece, já faz parte da espécie de consenso sobre o pagamento desses dinâmica e não causa grandes impressões aos profissionais. Imaginava, até aquele momento, moradores. que o medo de assaltos e da violência eram os grandes motivos. Mas, a resposta não foi bem Ressalto que durante muitos anos freqüentei o essa! Segundo o dono da casa, os moradores bairro porque tenho parentes que nele residem.

Crime e Globalização, Março de 2010 31 O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro

Em 2005 (se não me falha a memória), teve para alugar. É impressionante como, numa uma “guerra” que expulsou o “dono” da polí- comunidade como aquela, cuja maioria dos cia mineira e permitiu a inserção do grupo de moradores são humildes e estão há anos para um dos líderes milicianos mais famosos na terminar a própria casa adquirida através de atualidade, o Jerominho. Lá, ele fundou um posse, tenha tantas quitinetes prontas e quase centro social, que se encontra fechado por prontas num curto espaço de tempo. Nos úl- conta de sua prisão decretada em 2008. Por timos seis meses perdi a conta de quantas já este motivo, passei algum tempo sem entrar estão prontas e devidamente alugadas. lá. Existem outros centros sociais, adminis- trados por políticos locais. Estes políticos são Há pouco mais de cinco anos (se não me en- acusados de pertencerem aos grupos gano), houve um terrível tiroteio com mortes milicianos... Entretanto, ninguém tem provas! nesse bairro. O “chefe da área”, líder da polí- O silêncio parece-me sempre mais apropriado. cia mineira local, foi duramente combatido por um grupo que começava a mostrar o seu Nos jornais são comuns as inúmeras denún- poder na região. Na época, lembro-me que tive cias de extorsão e outras ações ilegais por parte muito medo, pois conhecia (e ainda conheço) desses que, atualmente, são chamados de mili- vários moradores do local. Na noite em que o cianos. Entretanto, não se deve perguntar isso confronto foi mais intenso, não dormi. A cada aos moradores e nem comentar pelas ruas... instante passavam viaturas da polícia militar “queima o filme!”. Eu, é lógico, não perguntei! fazendo muito barulho. Mas, segundo relatos Apenas caminhei, olhei, visitei amigos. de quem presenciou de alguma forma o con- flito, a polícia não se intrometeu. A imagem difundida pela mídia é tão sombria e cheia de indignação que, por vezes, esquece- No dia seguinte, veio a notícia. Morreram algu- mos que nada é mais valioso do que caminhar, mas pessoas envolvidas com a polícia mineira, viver, ouvir, olhar e sentir os lugares. Talvez, mas o chefe conseguira escapar. O bairro pas- aqui, apareça uma primeira crítica à academia. sou a ser de domínio da “liga da justiça”, bem Quem fala sobre determinados fenômenos, como o transporte coletivo e a venda de gás. disseminados pela cidade de maneira het- Lá, um dos líderes milicianos, o Jerominho, erogênea sem, de fato, respirar os mais variados fundou um centro social, que atualmente está odores de exalam de cada lugar, talvez deixe desativado por conta de sua prisão em 2008. de lado singularidades que poderiam mudar, Até hoje, não há notícia do paradeiro do an- a cada instante, os rumos dos discursos. Um tigo chefe. Outro dia, ouvi comentários de que exemplo simples: não percebi nas minhas an- o “Mazinho”, o antigo chefe, estaria prestes a danças olhares de descontentamento ou de voltar, uma vez que seu principal inimigo es- medo; não ouvi comentários sobre a existên- tava preso. Mas, até a presente data, ele não cia ou não de milicianos, mas quando per- apareceu. guntei por que determinado comércio que até bem pouco tempo funcionava 24 horas, a re- Em janeiro desse ano (2009), outro líder mili- sposta foi: “são ordens... ficou complicado ciano “reapareceu” com a intenção reconquistar continuar aberto à noite toda!” Ordens de as áreas que lhe foram tomadas pela Liga da quem? Melhor não perguntar! Portanto, o Justiça. Em alguns jornais chegaram a publicar que de fato acontece, nem sempre está evidente. que a Liga da Justiça estaria desestruturada e quem mandava a partir daquele momento se- Outro fator muito interessante: o crescimento ria o Chico Bala. O fato é que, houve uma cha- aceleradíssimo de construção de quitinetes cina na favela do Barbante, em Inhoaíba, então

32 Crime e Globalização, Março de 2010 Anexo: Impressões sobre um fenômeno “estranho”:

território da Liga da Justiça, e que o principal ação miliciana. A estratégia de ocupação conti- acusado é o Chico Bala. Antes disso, eu estava nua muito parecida com a que o tráfico impôs num ponto de Van, para ir ao centro da cidade, por um longo tempo. e chegou um sujeito, falou rapidamente com o “despachante” e depois se dirigiu a alguns mo- toristas dizendo: “a partir de hoje, a gente con- trola o ponto”... perguntei ao motorista da Van A partir do segundo semestre de 2008... que eu estava quem era ele e a resposta: “isso aí é gente do Chico Bala”. Em Julho

Comecei a verificar as notícias sobre o suposto Continuando o relato da comunidade acima, a retorno do Chico Bala e, de fato, com a prisão primeira coisa que me chamou a atenção: havia dos principais líderes da Liga da Justiça, ele um ponto de venda de botijões de gás, onde tentou retomar seus antigos domínios. Mas, me os moradores estavam acostumados a com- parece que sem tanto êxito. Quem manda por lá prar. Com a chegada dos milicianos, o ponto ainda é a Liga da Justiça. Agora, aparentemente fechou e “eles” abriram um novo ponto. Alguns com mais cuidado, mais escondida... basta con- moradores se recusam a comprar naquele local versar com alguns moradores e comentar que a e, por este motivo, são obrigados a caminhar Liga está enfraquecida e logo vem a resposta: muito para adquirir o gás. A segunda coisa: “enfraquecida? Esses caras mandam em tudo. o pouco comércio que existia (as famosas Tiveram aí alguns problemas, mas estão por aí, “birosquinhas”) fecharam. Numa conversa controlando as Kombis, o gás, as taxas...”, disse informal com um morador, um discurso tris- um morador do Jardim Maravilha. tonho: “não dá para manter negócio nenhum aqui... tem que pagar e a gente já não tem nem pra viver direito...” Pagar para quem? “Cinco Marias” Melhor não perguntar!! Ninguém responde mesmo. Passemos para outro bairro, pelas bandas da Pedra de Guaratiba. Ali, a história é outra. Ao Novamente, basta andar “despreocupado” longo de uns 20 anos, não percebi grandes mu- pelas ruas do bairro e ver muitas crianças pelas danças na “paisagem”. Na prefeitura até consta ruas, muita poeira vermelha, muitos buracos que as ruas são asfaltadas, mas nunca vi tal ou lama quando chove, milhares de cachor- urbanização por lá. O número de casas cres- ros soltos e doentes, esgoto a céu aberto... ceu pouquíssimo. Quando o tráfico dominava, Não vi polícia, milícia, ou seja lá quem quer era comum ver uma ponta de medo e nervo- fosse “responsável pela ordem”, parece que são sismo no rosto dos moradores. Mas, os meni- invisíveis... mas, estão lá! Algumas pessoas nos do tráfico tinham certa descrição... Acho me conhecem e se sentem muito a vontade que o bairro era mais um lugar de passagem para me contar os mandos e desmandos das e distribuição do que de comércio intenso de milícias. Uma conversa interessante foi com um drogas. Há pouco mais de dois anos, a milícia parente que me disse num almoço de família assumiu o controle, “limpou a área” e, dizem, que o tratamento que a milícia dava ao bairro reorganizou algumas coisas que estavam fora era de descaso, pois ali significava apenas uma dos eixos. demonstração de apropriação do território... é uma comunidade muito pequena e pobre Diferente do “Jardim Maravilha”, a população, demais até mesmo para cobrar taxas de todos em geral, não apresenta contentamento com a os moradores. Por este motivo, a ocupação é

Crime e Globalização, Março de 2010 33 O impacto da ação das milícias em relação às políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro mais estratégica do que para manter ordem moradores, bem como mais gente pelas ruas ou obter lucro financeiro. Nas palavras de al- em pontos estratégicos, como se tivessem “to- guns moradores, lá eles não cobram taxas de mando conta” do local. todos. Quem não quer pagar, não insistem. Em compensação, alguns serviços não chegam efe- tivamente, como o fornecimento do gás, por “Centro de Campo Grande” exemplo. Mudando um pouco de ambiente, resolvi De fato, quem conhece o bairro não conseg- caminhar nas localidades mais próximas do ue vislumbrar possibilidades a curto e médio centro do bairro de Campo Grande, mais “or- prazo de melhorias, em todos os sentidos! As ganizado”, devidamente urbanizado, belas ca- ruas constam na prefeitura como asfaltadas, sas e acesso facilitado aos meios de transporte entretanto, o barro quase invade as casas; a e comércio. A minha suposição era de que não iluminação é precária e não me parece que o iria encontrar grandes indícios de domínio Estado se importe com aquela comunidade... miliciano e muito menos pessoas preocupadas entre tantas outras. com isso... ali, é o que eu chamaria vulgarmente de “asfalto”, portanto relativamente “seguro” de Num sábado para domingo, do mês de agosto tal poderio. de 2008, resolvi pernoitar por lá (tenho par- entes que moram na localidade). Depois de Entretanto, na minha primeira investida com certa hora (lá pelas 22h), notam-se bicicletas, olhar de sociológico jogou por terra a minha algumas motos e homens andando pelas ruas. hipótese. Uma parte significativa do comércio Fazia muito calor e fiquei por algum tempo que ficava aberto 24 horas, passou a fechar às na varanda, observando o que acontecia. O 22 horas. Depois das 22h ou 23h, não há tanta cenário era o seguinte: ruas desertas, apenas gente nas ruas como eu via há algum tempo algumas pessoas que chegam do trabalho ou atrás. Perguntei-me: será que tem toque de re- da escola andando apressadamente, muita es- colher? Não tem! Quero dizer, não tem formal- curidão (lá a iluminação nas ruas é para além mente. Na verdade, resolvi não passar desse de precária). Perguntei aos meus primos quem horário... vi umas pessoas estranhas, que me eram aqueles sujeitos nas bicicletas, à pé e nas disseram que eram os “seguranças”... deixei pra motos que passavam o tempo todo por ali. Re- lá, outro dia irei mais cedo! sponderam-me: “são as milícias!” Algumas semanas depois, retornei e deparei- Neste momento, compreendi o motivo pelo me com uma situação singular. Na Rodoviária, qual eu não os via antes. Andava, apenas, du- numa conversa na fila do ônibus, uma passage- rante o dia. Sob a luz do sol, o esquema é outro. ira me contou que estava com muito medo de Geralmente, estão pelas ruas do bairro, mas andar até a casa dela depois de certo horário. discretamente. Não há ostentação de armas ou Perguntei o motivo (lembrei que havia tantos intimidação de qualquer espécie. É tudo muito seguranças...), ele me disse: “minha filha, os sutil! Estão nos botecos ou, simplesmente, con- moradores se revoltaram e não querem mais versando com os “amigos”... pagar as milícias, aí eles disseram que iriam nos deixar expostos a todo tipo de mazela... No começo do ano de 2009, havia um boato outro dia, assaltaram a casa da minha vizin- de que o foragido Batman estava “se escon- ha...”. Mesmo assim, caminhei um pouco pelas dendo” por lá... Verdade ou não, percebi um ar ruas (mais cedo, é claro) e não vi os seguranças. de medo maior do que o habitual no rosto dos Mas, dava para perceber o medo no olhar de

34 Crime e Globalização, Março de 2010 Anexo: Impressões sobre um fenômeno “estranho”:

algumas pessoas que, provavelmente retorna- fosse como antes, a polícia mineira, talvez, para vam do trabalho. uma parte da população, seria melhor. Eles não cobravam taxas, em geral residiam no bairro e tinham uma concepção de justiça baseada na Em 2009 idéia de “justiceiro do bairro” ou simplesmente aqueles que faziam justiça e protegiam a sua Ao longo do ano de 2009 (até o mês de setem- comunidade contra os desmandos do tráfico, bro), continuei com a mesma dinâmica. Toda por exemplo. O sentido mercadológico da ação semana estava com meus parentes e amigos e, não era latente em todas as localidades. por vezes, caminhava ou andava de bicicleta pelas redondezas. Minha casa situa-se perto A academia, talvez ainda esteja mais ligada à de uma pequena e pacata comunidade, que dinâmica do pesquisador que fica em sua mesa, é controlada por milicianos (um deles é meu no escritório, envolto com os infinitos materi- parente, com quem não mantenho vínculos ais de campo colhidos pelos seus pesquisadores diretos). Os empreendimentos imobiliários es- (ou estagiários), produzindo grandes relatóri- tão a pleno vapor. Uma ou duas vezes, estive os. O problema é que, na maioria dos casos, na porta da minha casa, um sujeito oferecendo conhecem pouco ou quase nada acerca do seu serviços de televisão por assinatura... clandes- próprio objeto. Longe de tomar uma atitude tino, é claro! Ele disse certa vez: “por que a jornalística, falar “de dentro” é, de certa forma, senhora não quer? Vai pagar um preço bom... justificar a idéia de que você pode sair do lugar, Aqui muita gente tem, temos amigos aqui den- mas o lugar não sai de você. É nessa perspectiva tro” Eu entendi o recado... alguns membros mi- que me parece tão difícil e ao mesmo tempo fá- licianos moram no condomínio, e controlam cil falar de milícia. E mais, dizer que para além de certa forma a administração... o discurso é do que “andam dizendo por aí”, do quanto es- sempre o mesmo: “vamos colocar ordem aqui ses grupos são criminosos, eles são parte desse dentro...” Disso, eu sempre soube. O problema lugar, enraizados aqui, estão no imaginário da é que embora não exista lei do silêncio, eu ja- população local. Provocam por vezes dores e mais poderia dizer aqui que “estudo” milícia ou revoltas. Certa vez perguntei para outro mo- conversar com esses sujeitos. Desde criança, rador de um bairro próximo a Campo Grande os conheço (com o nome de polícia mineira), se ele conseguia imaginar a vida dele sem a sempre estive próxima, alguns chamam minha presença das milícias, ele me disse: “eu nunca tia também pelo mesmo título... mas não são pensei isso... quando eu nasci, eles já existiam... meus parentes! não sei o que seria o bairro em que moro sem eles”. Para ser honesta, eu também não sei ol- har para esta região sem as milícias... sempre Algumas considerações... estiveram aqui. A diferença é que somente nos últimos 4 ou 5 anos, passaram a fazer parte de É impossível afirmar que a população local, um problema de segurança pública e, por este em sua totalidade, discorde da ação miliciana. motivo, caíram nas páginas dos jornais. Mas, “de dentro” posso tentar argumentar que por mais que as pessoas digam que não gostam e não apóiam, não acreditam que esses grupos irão deixar de exercer poder. O que mais inco- moda a população é a cobrança e as sanções terríveis que o indivíduo e sua família podem sofrer pelo simples não pagamento das taxas. Se

Crime e Globalização, Março de 2010 35 Paulo Jorge Ribeiro e Rosane Oliveira observam Fundada em 1974, a TNI é uma rede inter- o recente fenômeno de episódios recorrentes de nacional de ativistas e pesquisadores com- violência urbana extrema no Rio de Janeiro: o surgi- prometidos em analisar, de modo crítico, problemas globais atuais e do futuro. Sua mento das milícias – grupos bem organizados de meta é fornecer apoio intelectual para mo- vigilantes particulares formado por policiais, bom- vimentos de base preocupados em criar um beiros e agentes penitenciários desonestos, demiti- mundo mais democrático, equitativo e sus- dos ou aposentados. O estudo descreve um cenário tentável. preocupante nos assentamentos urbanos informais que podem ser peculiares ao Rio, mas também O Projeto de Crime e Globalização examina representam desenvolvimentos em segurança ur- a sinergia entre a globalização neoliberal e bana que se espalham Brasil afora. o crime. O projeto objetiva estimular um pensamento crítico sobre os discursos pre- Em muitas mega-cidades ingovernáveis pelo mun- dominantes, que fingem não ver os efeitos criminogênicos da globalização. O crime está do, o estado geralmente não consegue fornecer lei deteriorando as situações de segurança hu- e ordem e satisfazer as necessidades básicas de se- mana e é um sério desafio para se alcançar gurança, então é substituído por uma grande gama as Metas de Desenvolvimento do Milênio das de dispositivos ilegais e alternativos de segurança, Nações Unidas. criando um vácuo no poder e na governança. O monopólio do estado sobre o uso legítimo da força é O programa realiza pesquisa de campo, es- desgastado e “mercados de violência” ou “mercados timula debates políticos, fornece informações de força” emergem como um modelo de regulamen- para oficiais e jornalistas, coordena seminári- tos da segurança. os e produz artigos analíticos e documentos. Por um lado, o projeto está preocupado Coma a ausência do domínio da lei, proteção e gov- com o número de pessoas sendo forçadas ernança, a segurança deixa de ser um bem público a “migrar para ilegalidade” devido ao em- e se transforma em um produto privado. O con- pobrecimento e à marginalização. O desen- trato social entre estado e o cidadão, pelos volvimento de economias de “sombra” ou pagamentos de impostos e pela proteção implícita “underground” é um grande desafio à boa em um monopólio eficaz do uso legítimo da força, é governança. É na área perigosa dos merca- seriamente enfraquecido. dos ilegais não regulamentados que os atores legais e ilegais se encontram. As milícias racionalizam sua violência ao fingir for- necer segurança às vizinhanças e remover os trafi- Por outro lado, o projeto está preocupado com o corpo de acordo multilaterais postos cantes e a violência causada pela competição entre em prática para contra-atacar problemas de elas sobre as zonas livres de tráfico de drogas. Sua segurança, crime organizado transnacional, “legitimidade” vem da ausência de aplicação de lavagem de dinheiro e terrorismo político. uma lei regular que supostamente restaura a ordem Contra-medidas são geralmente baseadas pública. em conceitos limitados de segurança nacio- nal e estão sendo adotadas com base em Ribeiro e Oliveira mostram que as milícias têm definições vagas, informações limitadas e liga- outro argumento, também. A meta final das milícias ções tênues, e têm sérias conseqüências para é o lucro, cobrando impostos dos habitantes pela a liberdade civil, direitos humanos e sobera- segurança, pelo comércio e serviços. Este argumen- nia nacional. to econômico tem causado disputas violentas entre Tal abordagem não leva em conta os aspectos milícias diferentes. A perversa realidade que o Rio criminogênicos do processo de globalização, de Janeiro está testemunhando hoje é que – além da nem ajuda a satisfazer as necessidades muito violência entre o tráfico e a polícia – as milícias ain- mais amplas de segurança humana de países da adicionaram outra onda de violência; de milícias em desenvolvimento, particularmente em contra o tráfico, milícias contra milícias e milícias relação aos problemas crescentes de crimes contra polícia. urbanos das favelas do sul.

transnational institute

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