31/3 revista do centro de estudos humanísticos 2017 diacrítica imigração, refugiados e as humanidades: abordagens críticas para novos desafios Título: DIACRÍTICA (Nº 31/3 – 2017) Imigração, Refugiados e as Humanidades: Abordagens críticas para novos desafios

Editora: Marie-Manuelle Silva Editores Adjuntos: Fadi Skeiker, Orlando Grossegesse Revisão: Orlando Grossegesse

Comissão Redatorial: Assel Swalha (Fordham University); Augustin Berti (Universidad Nacional de Córdoba, Argentina); Camila de Lira Santos (Europa-Universität Viadrina Frankfurt/Oder); Carlos Pazos (Universidade do Minho); Fátima Silva (Universidade do Porto); Isabel Ermida (Universidade do Minho); Joanne Paisana (Universidade do Minho); Júlia Garraio (Universidade de Coimbra); Luís Mourão (Instituto Politécnico de Viana do Castelo); Manuel Conceição (Universidade do Algarve); Márcia Oliveira (Universidade do Minho); Margarida Marques (Universidade Nova de Lisboa); Maria Clara Oliveira (Universidade do Minho); Maria da Conceição Carapinha Rodrigues (Universidade de Coimbra); Maria do Rosário Ribeiro dos Santos (Universidade do Minho); Maria Helena Santana (Universidade de Coimbra); Maria Luísa Coelho (Universidade do Minho); Mário Matos (Universidade do Minho); Micaela Ramon (Universidade do Minho); Patrícia Jerónimo (Universidade do Minho); Pedro Eiras (Universidade do Porto); Sérgio Roberto Massagli (Universidade Federal de Fronteira Sul, Brasil); Sílvia Araújo (Universidade do Minho); Sílvia Melo-Pfeifer (Universidade de Hamburgo); Valérie Spaeth (Université de la Sorbonne Nouvelle).

Comissão Científica: Abel Barros Baptista (Universidade Nova de Lisboa); Antónia Coutinho (Universidade de Nova de Lisboa); António Branco (Universidade de Lisboa); Ana Brito (Universidade do Porto); Augusto Soares da Silva (Universidade Católica Portuguesa); Bernard McGuirk (University of Nottingham); Clara Rocha (Universidade Nova de Lisboa); Conceição Paiva (Universidade Federal do Rio de Janeiro); Eduardo Paiva Raposo (University of California, Santa Barbara); Fátima Oliveira (Universidade do Porto); Fernando Cabo Aseguinolaza (Universidad de Santiago de Compostela); Graça Rio-Torto (Universidade de Coimbra); Helder Macedo (King’s College, London); Helena Buescu (Universidade de Lisboa); Ivo Castro (Universidade de Lisboa); João de Almeida Flor (Universidade de Lisboa); José Luís Cifuentes Honrubia (Universitat d’Alacant); José Luís Rodrigues (Universidade de Santiago de Compostela); Jürgen M. Meisel (Universität Hamburg / University of Calgary); Maria Alzira Seixo (Universidade de Lisboa); Maria Irene Ramalho (Universidade de Coimbra); Maria João Freitas (Universidade de Lisboa); Maria Manuela Gouveia Delille (Universidade de Coimbra); Mary Kato (Universidade de Campinas); Nancy Armstrong (Brown University); Rui Marques (Universidade de Lisboa); Susan Bassnett (University of Warwick); Susan Stanford Friedman (University of Wisconsin- Madison); Tomás Albaladejo Mayordomo (Universidad Autónoma de Madrid); Vita Fortunati (Università di Bologna); Vítor Aguiar e Silva (Universidade do Minho).

Edição: Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho em colaboração com Edições Húmus – V.N. Famalicão. E-mail: [email protected]

Publicação subsidiada por FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia

ISSN: 0870-8967

Depósito Legal: 18084/87

Composição e impressão: Papelmunde – V. N. Famalicão ÍNDICE

IMIGRAÇÃO, REFUGIADOS E AS HUMANIDADES: ABORDAGENS CRÍTICAS PARA NOVOS DESAFIOS

7 Sem título Didier Kassaï 9 Foreword Marie-Manuelle Silva & Fadi Skeiker 11 Aleppo, Calais, Lesbos, ou, por outras palavras, Ana Luísa Amaral 13 El contra-mapeo como práctica de resistencia: la experiencia migratoria contemporánea en The Mapping Journey Project Andrea Torrano 41 Condições da hospitalidade em “The displaced person” de Flannery O’Connor Lígia Bernardino 57 Migrations, political borders and the digital realm. Forms of (in)visibility and disruptive strategies in literary and artistic activism Paulo Silva Pereira 91 Viagem em tradução / Journeys in Translation Andreia Sarabando 111 Plus près de toi Jean-Claude Fournier & Kris 113 Re-conceiving Situations From a Development Perspective: Providing Durable Solutions for Through Development Midori Kaga 131 Fronteiras da Exclusão de Direitos: Há uma discriminação institucionalizada contra os estrangeiros? Diego Ramos Mileli 153 O papel das cidades no acolhimento de refugiados – estudo comparativo entre Berlim e Paris Bruno Ferreira Costa & Géssica Teles 183 Un maillot pour l’Algérie Bertrand Galic & Kris (scenario / argumento); Javi Rey (dessin / desenho) 185 Language for Integration, Language As Discipline? A Foucaultian Perspective on L2 Learning in the Context of Asylum Anne-Christel Zeiter 211 Naming displaced people: new patterns in media discourse? A discourse analysis of Le Monde and Le Figaro Laura Calabrese & Valériane Mistiaen 237 Bilinguismo infantil. Um legado valioso do fenómeno migratório Cristina Flores 251 O Colega de Sevilha Arlindo Fagundes

VÁRIA

255 Orientalismo e crítica social em obras de Artur Azevedo e Eça de Queirós: o caso de dois O Mandarim José Carvalho Vanzelli & Antonio Augusto Nery

RECENSÃO

275 Histórias Mal Contadas. Lafaia Abranches, Alexandra (2017). Isabel Ermida Imigração, Refugiados e as Humanidades: Abordagens críticas para novos desafios

Immigration, refugees and the Humanities: Critical engagements with new challenges

SEM TÍTULO

Didier Kassaï

Autor de bandas desenhadas, ilustrador, aquarelista e caricaturista autodi- data, Didier Kassaï nasceu em 1974 em Sibut, República Centro Africana. É conhecido pelas suas aquarelas, participação ativa no desenho de imprensa centro-africana e vasta produção em banda desenhada, nomeadamente as colaborações internacionais em África, Europa e Estados Unidos.

Auteur de bande dessinée, illustrateur, aquarelliste et caricaturiste autodi- dacte, Didier Kassaï est né en 1974 à Sibut en Centrafrique. Il est connu pour ses aquarelles, son active implication dans le dessin de presse centra- fricain et sa vaste production de BD, notamment pour ses collaborations internationales en Afrique, en et aux États-Unis. FOREWORD

When we decided about a year ago to dedicate a full issue of Diacritica to the topic of refugees, the editorial team was hopeful that by the time of pub- lication we would be using the past tense for addressing the refugee chal- lenges in connection to Western societies; needless to say that our hope was not met with the difficult political and social situations of our current times. Millions of citizens around the world are still facing adversaries that push them to seek a shelter somewhere. Most Westerners are not conscious about the fact that most of the wars that drive global south citizens to migrate are initiated either by direct or indirect Western interferences. This lack of con- sciousness demands a more intervening action from Humanities. Generally speaking, there are two main discourses that surround the refugee crisis; the first one is what we call a ‘demonizing’ discourse and the second one is what we can describe as a ‘idealizing’ discourse. To contrast these two discourses in a short form of plain speaking we may say that the first one calls for refugees to go back to their homes, they are described as evil coming to the West to take advantage of its social and welfare services, they want to change Western values and to disturb the seemingly stable and peaceful Western societies. The latter discourse regards refugees as angels, they are saints who cannot do anything wrong. Both discourses generate narratives that fail to give a chance to refu- gees to voice their own thoughts and feelings. Refugees are perceived by two discourses as agentless individuals with blank identities. Thus, these two discourses want to color them with specific political views without even listening to refugees’ perspectives. These two narratives are blinded by Western privileges that allow to judge someone who runs for his live 10 Marie-Manuelle Silva & Fadi Skeiker

from a war that is caused, most of the times, by Western intervention. It is the same privilege that was boosted by Western countries colonizing global south countries not long time ago, exploiting their resources, and leaving them with artificial boarders that the colonizers draw with no regard to the colonized desires. The so-called ‘refugee crisis’ is caused by the West and is not a crisis that is just surfacing. Going beyond the concept of remediating dysfunctional phenomena of a well-defined system it means a huge demographic trans- formation with political and social implications. This transformation roots in the colonial history and the problematic relationship between the West and the global South. In this issue of Diacritica, we focus on Humanities. When we contextualize the ‘crisis’ within that intellectual framework, we can move on, and start a productive dialogue about the best theoretical perspectives and practical tools to deal with refugee challenges. It is the time to engage in conversations that connect refugees’ public narratives to the Humanities. Such an intellectual engagement will only further enrich the discussion that is already taking place behind the usual humanitarian and legal disciplines. The papers included in this issue of Diacritica converse with broad topics such as media, language, and literature and not forgetting to engage the actual refugee voices. In addition to the traditional academic papers, we decided also to add creative writings and cartoons that will even cast another view on the refugee experience, hopefully contributing for a change.

Marie-Manuelle Silva & Fadi Skeiker ALEPPO, CALAIS, LESBOS, OU, POR OUTRAS PALAVRAS,

quero falar do que antes eram ruas, avenidas bordadas a casas e palmeiras, dos tapetes que outrora, em imaginação nossa, voavam de magia e que agora se esfumam de outras formas, as mais rasas

Ou do tempo da poesia antes, quando os barcos entravam, esguios, e a palavra se fazia a nitidez de imagem, da violência depois e deste tempo, porta de entrada em rudes barcas para a violência em séculos agora

Ou ainda dos carreiros de gente a parecerem oceanos a lentes de distância, grandes planos, mas que, partida a gente em gente singular, sobra em nomes inteiros, gostos próprios, distintos sofrimentos, músculos de sorrir diferentes todos, ah, se a amplíssima lente se transformasse, estreita, em microscópio de vida

Do que vejo de longe e num écran, não consigo falar usando redondilha, versos redondos, uma sintaxe igual e certa

Só consigo estas linhas em que queria falar das outras linhas feitas de outra matéria, real e dura, explodida, essa, detida por coletes e armas cor de fumo, e, ao lado dos oceanos de gente, os sedimentos que vivem noutras gentes, as vizinhas a mim, o ódio construído lentamente a rasar a abominação 12 Ana Luísa Amaral

Do que chega em olhar, das camadas de séculos em que tudo parece mercadoria fácil de esquecer, ou então que o desterro nos ficou raso aos genes e só ele é lembrado, e ele sozinho serve para insistir o horror, de tudo isso não há forma de verso que me chegue porque nada chega de conforto ou paz

Mas que o furor persista, e que neste recanto ao canto desta Europa, mesmo sem vergonha de estar quente e longe, e protegida sob uma lente amplíssima que só deixa passar, finíssimas, meia dúzia de imagens: ou, por outras palavras, a cegueira – mesmo sem palavras: o furor –

O poema “Aleppo, Calais, Lesbos ou, por outras palavras,” fecha o livro de poesia What’s in a name (Assírio & Alvim, 2017; 2ª ed.: 2018).

Ana Luísa Amaral Nasceu em Lisboa em 1956 e vive desde os nove anos em Leça da Palmeira. É autora de mais de duas dezenas de livros de poesia e livros infantis e traduziu diver- sos autores de língua inglesa para português. A sua obra encontra-se traduzida e publicada em vários países, tendo obtido diversos prémios. Destacamos o Prémio Literário Correntes d’Escritas (2007), o Premio Letterario Poesia Giuseppe Acerbi (2008), o Grande Prémio de Poesia APE (2008), o Prémio PEN de Narrativa da APE (2014) e o Premio Internazionale Fondazione Roma: Ritratti di Poesia (2018).

É Professora Associada aposentada da Faculdade de Letras do Porto e membro da Direção do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, no âmbito do qual coordena o grupo Intersexualidades. As suas áreas de pesquisa são os Estudos Feministas, os Estudos de Género, as Poéticas Comparadas e os Estudos Queer. É autora, com Ana Gabriela Macedo, do Dicionário de Crítica Feminista (Afrontamento, 2005) e organizou livros de ensaios como Novas Cartas Portuguesas entre Portugal e o Mundo (com Marinela Freitas, Dom Quixote, 2014) ou New Portuguese Letters to the World (with Marinela Freitas, Peter Lang, 2015). EL CONTRA-MAPEO COMO PRÁCTICA DE RESISTENCIA: LA EXPERIENCIA MIGRATORIA CONTEMPORÁNEA EN THE MAPPING JOURNEY PROJECT OAM CONTR - APEAMENTO COMO PRÁTICA D E RESISTÊNCIA: A EXPERIENCIA MIGRATÓRIA CONTEMPORÂNEA EM THE MAPPING JOURNEY PROJECT COUNTER-MAPPING AS A PRACTICE OF RESISTANCE: THE CONTEMPORARY MIGRATION EXPERIENCE IN THE MAPPING JOURNEY PROJECT

Andrea Torrano* [email protected]

Este artículo propone analizar el contra-mapeo como práctica de resistencia al régi- men de frontera de la UE. El contra-mapeo exhibe la experiencia subjetiva de las personas migrantes en torno a las fronteras. Retomamos como ‘caja de herramien- tas’ las nociones de Foucault y Deleuze y Guattari de espacio agujereado, régimen de (in)visibilidad y contraconducta, para caracterizar el contra-mapeo. Nos enfo- caremos en la video-instalación The Mapping Journey Project (2008-11) de Bouchra Khalili. El relato mapeado de los/las migrantes permite advertir la estrecha articu- lación entre las nociones de espacio y subjetividad que serán abordados desde la noción de contra-mapeo.

Palabras clave: fronteras, contra-mapeo, subjetividad, resistencia, Bouchra Khalili.

Este artigo se propõe analisar o contra-mapeamento como prática de resistência ao regime fronteiriço da UE. O contra-mapeamento mostra a experiência subjetiva das pessoas migrantes em torno as fronteiras. Retomamos como “caixa de ferra- mentas” as noções de Foucalt e Deleuze e Guattari de espaço esburacado, regime de (in)visibilidade e contraconduta para caracterizar o contra-mapeamento. Vamos- nos focar na vídeo-instalação The Mapping Journey Project (2008-11) de Bouchra Khalili. O relato mapeado dos migrantes permite notar a estreita articulação entre as noções de espaço e subjectividade que serão abordadas a partir da noção de contra-mapeamento.

* Centro de Investigaciones y Estudios sobre Cultura y Sociedad – CONICET y Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. 14 Andrea Torrano

Palavras-chave: fronteiras, contra-mapeamento, subjetividade, resistência, Bouchra Khalili.

This article proposes to analyze counter-mapping as a practice of resistance to the EU’s border regime. Counter-mapping exhibits the subjective experience of migrants around borders. Our tool box consists of several notions recovered from Foucault and Deleuze and Guattari: holey space, regime of (in)visibility and counterconduct are put in service to characterize counter-mapping. I will focus on Bouchra Khalili’s video-installation The Mapping Journey Project (2008-11). The mapped narrative of the migrants reveals the narrow articulation between the notions of space and subjectivity that will be approached from the notion of coun- ter-mapping.

Keywords: borders, counter-mapping, subjectivity, resistance, Bouchra Khalili.

Es tiempo de dibujar nuevos mapas, mapas de resistencia que pueden ser usados para atacar cercos y muros visibles e invisibles, para derribarlos o navegar alrededor de ellos tranquilamente, para ahondarlos y para socavarlos. No Border Network

1. Introducción

Europa se ha vuelto una de las mayores regiones de inmigración mundial. 1 En las últimas décadas las políticas migratorias de la Unión Europea se han caracterizado por una tendencia restrictiva, dominada por la limitación de derechos y libertades de las personas migrantes, sobre todo indocumen- tadas, y por un fortalecimiento de controles y vigilancias en las fronteras externas: mayor cantidad de guardias (terrestres y costeros), muros y cer- cos, torres de vigilancia y tecnología de última generación (Velasco 2016, pp. 305-310). Las fronteras se han extendido más allá de los límites exte- riores de los Estados, han aumentado los requisitos para obtener una visa e incrementado la denegación de visas y asilos (Wihtol de Wenden 2013,

1 Un total de 4,7 millones de personas emigraron a alguno de los Estados miembros de la EU-28 durante 2015, se estima que 2,4 millones eran ciudadanos de terceros países (Eurostat 2017). El contra-mapeo como práctica de resistencia: 15

p. 61). Asimismo, se han multiplicado los campamentos para refugiados y centros de internamiento para extranjeros (Rodier 2015). Si bien el control sobre las personas migrantes se vuelve cada vez más rígido y burocratizado, no obstante, estas medidas han tenido diferentes efectos: por un lado lograron, parcialmente, limitar y frenar la migración irregular; por otro, el incremento de las medidas de control produjo un aumento de las formas de migración irregular que conlleva una gran incer- tidumbre en el intento de atravesar las fronteras. Para las personas migran- tes cruzar las fronteras de la UE, especialmente la frontera sur, significa generar estrategias que ponen en riesgo su vida. La transformación de las fronteras europeas en los últimos años hace que ya no puedan ser consideradas como líneas divisorias de los Estados- nacionales, en el sentido de estáticas y homogéneas. Con la globalización, las fronteras sufren un proceso paradójico de vacilación y de proliferación/ endurecimiento: vacilan como límite de la soberanía nacional, pero se endurecen y se multiplican como puntos de control selectivo sobre la movi- lidad de las personas: no se cruza igual la frontera teniendo dinero que no teniéndolo, viniendo del Norte que del Sur, teniendo la piel blanca que oscura, siendo hombre que siendo mujer, cisgénero o transexual (Malo de Molina 2006). Las fronteras han sufrido cambios significativos por lo cual la tradi- cional categoría de frontera es o bien obsoleta o, al menos, limitada. Como advierten Balibar y Williams “el término frontera es extremadamente rico en significaciones. (…) ha cambiado profundamente de sentido” (Balibar & Williams 2002, p. 71). Si bien son espacios donde se ejerce el poder guber- namental, también son lugares de confrontación, resistencia y lucha de los/ las migrantes. Esto hace a las fronteras dinámicas y heterogéneas, y, ade- más, las convierte en un espacio de disputa permanente. No sólo la categoría frontera es puesta en cuestión, sino también el modo en el cual ha sido representada a través de los mapas. Desde la cartografía crítica de la migración se propone “volver a comprometerse” con las prácticas materiales de la cartografía, esto es, concebir un mapa no como mera imagen (representación) sino como una práctica que “no reproduce la frontera como un espacio de separación, sino que lo invoca como un lugar de conexión y de flujo recíproco. La frontera deja de ser una línea para transformarse en una región o esfera de acción política y actores (migrantes, Estados, organismos internacionales, traficantes, activistas por los Derechos Humanos, abogados, etc.)” (Herb, Häkli et al. 2009, p. 339. Nuestra traducción). 16 Andrea Torrano

A principios de los ’90 emerge el concepto de “contra-mapeo” para hacer referencia a una forma de geo-referenciar el espacio de los grupos subalternos con el objetivo de producir sus propios mapas. El contra-ma- peo permite articular geografías subalternas, hacer de la geografía un “arte de resistencia” y un “contra-mapa” (Wainwright 2008, p. 241). De acuerdo con Said, “en la historia de la invasión colonial los mapas son siempre pri- mero dibujados por los vencedores, ya que los mapas son instrumentos de conquista. La geografía es, por lo tanto, un arte de guerra pero puede ser también un arte de la resistencia si es un contra-mapeo y una contra-estra- tegia” (Said 1996, pp. 27-28. Nuestra traducción). El contra-mapeo, entonces, es una práctica de resistencia al modo de representar el espacio en los mapas, pero también una “práctica particu- lar de producción de conocimiento que pone de relieve los espacios de movilidad y control que no se puede comprender dentro del registro de la representación cartográfica” (Tazzioli & Garelli 2017. Nuestra traducción). La importancia del contra-mapeo como herramienta y estrategia de resis- tencia de las personas migrantes se debe a que permite poner de relieve experiencias y trayectorias, prácticas de cooperación, negociación y lucha en las fronteras. La creciente complejidad de las fronteras y la migración ha conducido a que investigadores/as, movimientos de migrantes, artistas y activistas inda- guen sobre esta cuestión. Desde la autonomía de las migraciones se propuso “entender la migración como un movimiento social en el sentido literal de las palabras, y no como mera respuesta al malestar económico y social. (…) no considera la migración de forma aislada respecto de las estructuras sociales, culturales y económicas; por el contrario, es concebida como una fuerza creativa dentro de estas estructuras” (Papadopoulos, Stephenson & Tsianos 2008, p. 202). Como señala Mezzadra se trata de “observar los movimientos y conflictos migratorios desde una perspectiva que priorice las prácticas subjetivas, los deseos, las expectativas y los comportamien- tos de los propios migrantes” (Mezzadra 2012, p. 160). En definitiva, la autonomía de las migraciones propone una mirada que ponga de relieve la dimensión subjetiva de los/las migrantes, sin desconocer las tensiones que atraviesan la propia constitución de la subjetividad, es decir, las técnicas de sujeción y las prácticas de subjetivación (Foucault 2001). En las expresiones artísticas se observa desde el año 2010 una prepon- derancia en el uso de mapas, especialmente en el arte contemporáneo de Medio Oriente y África del norte (Wilson-Goldie 2010, citado por Nawi 2015). Éstas suponen ir más allá del uso tradicional de los mapas para refe- El contra-mapeo como práctica de resistencia: 17

rirlos a las relaciones entre espacio y subjetividad. Dentro de esta perspec- tiva recuperamos el trabajo de la artista visual franco-marroquí Bouchra Khalili 2, que usa el mapeo para desentrañar las complejas relaciones de las personas migrantes con las fronteras y sus proyectos migratorios. La acción de mapear es realizada por los propios migrantes, quienes simultáneamente relatan sus experiencias en torno al espacio. En sus obras, los mapas con- vencionales suelen ser un elemento visual central, pero sólo son empleados para ser subvertidos (Nawi 2015). En este artículo nos centraremos en la video-instalación de The Mapping Journey Project (2008-11), exhibida en el Museum of Modern Art de New York en 2016. 3 La muestra consiste en 8 pantallas de video con auriculares, donde en cada video una persona migrante traza su diáspora sobre un mapa geo-político, al tiempo que relata su travesía. Si bien las narraciones son en primera persona, se trata de un relato anónimo, nunca se enfoca al narrador/a. Una cámara fija sobre un mapa en colores regis- tra el movimiento de la mano del narrador/a, que con un marcador traza la ruta que recorrió desde su país de origen hasta llegar a destino. Cada una de estas personas proviene de distintos lugares: Argelia, Túnez, Sudán, Somalia, Marruecos, Bangladesh, Afganistán y Cisjordania, y termina en diversos países de Europa: España, Italia, Francia y Turquía, como así tam- bién en Jerusalén del Este. La trayectoria es muchas veces interrumpida, con desvíos, estancias involuntarias y detenciones, e incluso con regresos al punto de partida, que obligan a volver a emprender el viaje. Con excepción del relato de un joven palestino que viaja para estar junto a su novia, el resto de las narraciones son de personas que se vieron obligadas a emigrar

2 Bouchra Khalili (* 1975, Casablanca) es una artista francesa-marroquí que actualmente vive en Berlín, y trabaja con vídeo, fotografía, dibujo e instalaciones desde hace más de una década. A menudo despliega y reutiliza los tropos de cine documental para redirigir las convenciones a través de las cuales los/as ciudadanos/as son interrogados para presentarse ante el Estado, mediante el testimonio, el retrato, y discursos políticos. Algunas de sus obras son: Foreing Office. Mixed Media (2015), Garden conversation. Digital film (2014), The speeches series. Video Trilogy (2012-2013), The constellation series 8. Silk screen prints (2011). Disponible en: 3 La muestra se exhibió en el Atrio Marrón de MoMA, del 9 de abril al 10 de octubre de 2016. The Mapping Journey Project es parte de Citizens and Borders, una serie de proyectos en el Museo de Arte Moderno relacionados con obras que ofrecen una perspectiva crítica sobre las historias de la migración, el territorio y el desplazamiento. Disponible en: 18 Andrea Torrano

por motivos económicos y políticos a Europa 4, emprendiendo un viaje “de forma legalmente inadmisible” (Tietjens Meyers 2016, p. 253). The Mapping Journey exhibe la compleja relación entre las personas migrantes y las fronteras. Es una obra que recupera historias anónimas de migrantes, las trayectorias que debieron recorrer para realizar su proyecto migratorio. Es una denuncia de las injusticias y marginaciones a las que son sometidas los/las migrantes y también una demostración de su resisten- cia a los regímenes de frontera. The Mapping Journey crea una “cartogra- fía disidente” (Tietjens Meyers 2016, p. 258), donde se superpone el mapa geopolítico al mapa vivido, donde la experiencia de los/las migrantes en las fronteras constituye una nueva forma de mapear. De allí que pueda ser ana- lizado desde la noción de contra-mapeo, como un “arte de resistencia” a los modos tradicionales de representación de las fronteras, donde se plasman conflictos, ambigüedades y estrategias de las personas migrantes. En este trabajo proponemos desarrollar el contra-mapeo como una prác- tica de resistencia al régimen de frontera y su espectacularización. Entender al contra-mapeo como una práctica de resistencia no supone concebirlo como una imagen inversa al mapeo del poder gubernamental, por el con- trario, como advierte Foucault, “[la práctica de] resistir tiene que ser como el poder. Tan inventiva, tan móvil, tan productiva como él” (Foucault 2000, p. 162). No se trata de un acto puramente negativo sino de creación y con- testación de las personas migrantes. El contra-mapeo permite visibilizar las segregaciones que existen en el Norte global y comprender las fronteras como un espacio de lucha frente a la ilegalización y despersonalización a la que son reducidas los/las migrantes. En el primer apartado retomaremos la noción de “espacio agujereado” de Deleuze y Guattari que nos permitirá describir cómo son concebidas las fronteras en el contra-mapeo. Para ello remitiremos a los nuevos rasgos que presentan las fronteras de la UE y su representación a través de los mapas. El contra-mapeo exhibe las fronteras como espacios de contradic-

4 La Convención sobre el Estatuto de los refugiados de 1951 y el Protocolo de 1967 establece una distinción entre los refugiados: “personas que huyen de conflictos armados o persecución”, y los migrantes: personas que “eligen trasladarse (…) para mejorar sus vidas al encontrar trabajo o educación, por reunificación familiar” (ACNUR 2015). Se diferencia entre quienes son migran- tes políticos y migrantes económicos, o, en otros términos, entre migración forzada y migración voluntaria. No obstante, desde los estudios críticos sobre migración, se ha subrayado la impo- sibilidad de distinguir entre migración forzada y migración voluntaria. La migración forzada y voluntaria debe verse más bien como un continuo de aspectos sociales, económicos, ambien- tales y políticos que son interdependientes en el momento que que una persona decide migrar. En este trabajo, no haremos distinciones entre las personas migrantes que adquieren el estatus de refugiados y quienes son consideradas migrantes voluntarios. El contra-mapeo como práctica de resistencia: 19

ción, ambigüedad y lucha. En el segundo apartado analizaremos el con- tra-mapeo como modo de subversión del régimen de (in)visibilidad de las fronteras. A partir de la noción de “régimen de visibilidad” de Deleuze, nos proponemos abordar cómo el espectáculo de las fronteras visibiliza al migrante “ilegal”, pero invisibiliza cómo éste es producido como así tam- bién su utilidad económica y política. Para ello, analizaremos la produc- ción jurídica y social del migrante “ilegal” y su “inclusión subordinada”. El contra-mapeo invierte este régimen de visibilidad y permite dar cuenta del estatus de “persona” de la que es privado el/la migrante “ilegal”. Por último, recuperaremos la noción de “contraconducta” propuesta por Foucault para describir las prácticas de contra-mapeo. El contra-mapeo nos permitirá destacar las prácticas de subjetivación de las personas migrantes y la recu- peración de la experiencia subjetiva como forma de resistencia al régimen de las fronteras.

Bouchra Khalili, The Mapping Journey Project (2008-11), Video Instalación. The New Museum, New York, 2016. 20 Andrea Torrano

2. El contra-mapeo como imagen del espacio agujereado

En los últimos años, las fronteras exteriores de la UE han sido foco de aten- ción por el elevado número de personas que ha querido atravesarlas, esta situación se ha conocido internacionalmente como ‘crisis de los refugia- dos’. 5 La percepción que se daba de las fronteras era que se encontraban “fuera de control” y por ello debía aumentar la vigilancia y el control fronte- rizo con el uso de tecnología de alta sofisticación, la multiplicación y exter- nalización de las fronteras. Este “espectáculo de las fronteras” (De Genova 2002; 2013) trae aparejado la distinción entre ciertas corrientes migrato- rias y cuerpos que serán caracterizados como “ilegales” y otras corrientes y cuerpos que son marcados como “legales”: profesionales, estudiantes, turis- tas (De Genova, Mezzadra & Pickles 2015, p. 13). Las fronteras exteriores se encuentran cada vez más vigiladas y contro- ladas a través de alta tecnología – lo cual hizo que se denominen fronteras inteligentes (Smart borders) –, la militarización y la presencia de agencias de seguridad privada, junto con la incorporación de sistemas biométricos de identificación (Amoore 2006). Las fronteras inteligentes se basan en tres nuevos instrumentos: un sistema de entrada/salida (SES) – para controlar la duración de la estadía – , un programa para viajeros registrados (PVR) – para identificar a quienes viajan frecuentemente – y el dispositivo Eurosur lanzado en el 2013, una red de comunicación protegida entre los países europeos que les permite compartir en tiempo real imágenes y datos de las fronteras de la UE, especialmente del Mediterráneo, a través de radares, drones, satélites, sistema de notificación de buques, helicópteros, cuyo obje- tivo es la “detección pre-fronteriza” y el “rescate” como medios de gestión de la migración marítima. La Agencia Europea de la Guardia de Fronteras y Costas (Frontex) cumple una función primordial en la gestión de las fronte- ras exteriores, proporcionando apoyo técnico adicional – esto es, coordina operaciones marítimas y de aeronaves entre varios países, evalúa riesgos y modelos de pautas para migraciones irregulares y actividades ilegales, pre- senta personal especializado y guardias costeras – a los países de la UE que tienen fronteras en “zonas críticas” (Rodier 2015). Si bien es innegable el aumento del control de las fronteras exte- riores, es necesario reconocer que “las fronteras se encuentran dispersas un poco por todas partes, donde el movimiento de información, personas

5 Aunque sería más apropiado hablar de ‘tragedia de los refugiados’ o ‘crisis de la UE’, emplea- mos esta expresión ya que es la más difundida en los medios de comunicación y los discursos gubernamentales. El contra-mapeo como práctica de resistencia: 21

y cosas está ocurriendo y es controlado” (Balibar & Williams 2002, p. 71. Nuestra traducción). Las fronteras se encuentran diseminadas en el inte- rior de los Estados: penetran en las ciudades a través de los controles de documentación (policiales, de las agencias de viajes, de los ayuntamientos y servicios sociales, de los hospitales), las razias y detenciones, los centros de internamiento para extranjeros, etc. Se trata de “fronteras internas” (Malo de Molina 2006), es decir, que las fronteras promueven hacia el interior de los Estados estratificaciones y jerarquías en la población. En el caso de la UE crean divisiones entre ciudadanos UE y extra-comunitarios, cuya sepa- ración está marcada por el racismo y la xenofobia (Balibar 2003). Por otro lado, se observa una externalización de las fronteras que refiere a “un proceso de expansión territorial y administrativa de la política migratoria y fronteriza de un Estado dado a terceros países” (De Genova, Mezzadra & Pickles 2015, p. 19. Nuestra traducción). Esto significa que el control no sólo se encuentra en los puestos fronterizos sino que se ha expandido más allá de los límites territoriales, donde terceros países están involucrados en el régimen de frontera de la UE, por ejemplo, a través de acuerdos bilaterales hace responsables a los Estados vecinos de vigilar, interceptar, desembarcar y gestionar a las personas migrantes en el mar antes de que ingresen a las zonas de búsqueda y salvamento (ZBS/SAR) de la UE, los compromete también a cooperar con los trámites de deportación y otorgamiento de visas. En este sentido, puede decirse que la frontera funciona como un “con- trol a distancia” (Zolberg 2002) o como una “policía a distancia” (Guild & Bigo 2003), esto es que el control lo realizan otros profesionales de seguri- dad además de la policía, por ejemplo, las autoridades consulares. Dichas expresiones remiten a un control sobre la migración antes que un individuo atraviese físicamente una frontera. Como caso paradigmático de control a distancia se destaca la política de visado (Salter 2006; Torrano 2016), que introduce restricciones para ciudadanos/as de países no pertenecientes al OCDE, establece una lista de “terceros países seguros” y otorga estatus tem- porales de protección así como la detención de los/as solicitantes de asilo en campos de refugiados. La externalización de las fronteras no sólo responde al discurso secu- ritario sino también al discurso humanitario (Mezzadra & Neilson 2013, pp. 268-280). La externalización se ha convertido en una estrategia funda- mental de lo que Walters llama la “frontera humanitaria”, donde agentes y discursos humanitarios desempeñan un papel cada vez más importante. En la UE se observa la articulación entre las agendas humanitarias y securita- 22 Andrea Torrano

rias en la “recepción” – la palabra “detención” está visiblemente ausente – y “repatriación” de los/as “migrantes irregulares” (Walters 2011, p. 144) en las fronteras sur de Europa, especialmente en Lampedusa, Ceuta y Melilla. Si bien las fronteras de la UE se han multiplicado, fortificado y bio-me- trizado, es necesario reconocer que aún así son porosas. Esto significa que el control de las fronteras nunca es total. Mientras que el espectáculo de las frontera evalúa esta permeabilidad como un indicador de que las fronte- ras deben reforzarse para hacerlas más eficaces (Rodier 2015) 6, aquí toma- mos la porosidad como una característica inherente a las fronteras. Esto es, que las fronteras están compuestas por una tensión que es constitutiva: no son unilaterales, fijas u homogéneas, sino relacionales, dinámicas y hete- rogéneas; donde no sólo las políticas de diversos actores gubernamentales juegan un rol central sino también las personas migrantes (Mezzadra & Neilson, 2016). Las fronteras se construyen como espacios de lucha y, por tanto, están atravesadas por una tensión entre formas de exclusión y prác- ticas de franqueamiento. En este sentido, es que podemos decir que las fronteras son lo que Deleuze y Guattari llaman “espacio agujereado”, para referirse a un espacio de complejidad, ambigüedad, contradicción y alteridad. El espacio aguje- reado comunica a la vez al “espacio estriado” del poder gubernamental y al “espacio liso” de la autonomía (Deleuze & Guattari 2006, p. 415). Tanto en el espacio liso como en el espacio estriado existen líneas, puntos y superficies, pero mientras que “en el espacio estriado, las líneas, los trayectos tienen tendencia a estar subordinados a los puntos: se va de un punto a otro. En el liso, ocurre justo lo contrario: los puntos están subordinados al trayecto” (idem, p. 487). El espacio estriado se define por la detención, la exclusión, el límite –de allí que las fronteras en su sentido tradicional puedan compren- derse como espacio estriado – mientras que el espacio liso le corresponde la velocidad, la fuga, lo ilimitado – que correspondería a un territorio que puede ser transitado en libertad. El espectáculo de las fronteras concibe a las fronteras como espacio estriado –poder gubernamental –, las cuales son representadas a través de los mapas. De allí que los mapas sirvan como herramientas que permiten

6 Rodier señala dos paradojas en los controles migratorios, la primera se basa en el hecho de que junto con su intensificación se advierte paralelamente el crecimiento de la movilidad interna- cional. La segunda, reside en el hecho que su tendencia a multiplicarse parece no tener límites (Rodier 2015, pp. 25-26). Como advierte la autora, lo que se esconde detrás de este aumento del control sobre la migración es un negocio, un mercado de la seguridad migratoria, en el cual participan tanto los Estados intervinientes como capitales privados. El contra-mapeo como práctica de resistencia: 23

aumentar el control y la vigilancia, es decir, para detectar las rutas migrato- rias y los cruces de frontera, y, de este modo, evaluar ‘riesgos’ y estrategias de control. Por el contrario, concebir las fronteras como un espacio agujereado supone reconocer que la frontera presenta espacios de exclusión, marcados por la violencia y la incertidumbre – espacio estriado –, pero también por estrategias de fuga, como contestación e insubordinación – espacio liso. Concebir la frontera como espacio agujereado supone comprenderla como una composición de ambos espacios: como un espacio de detención, límite, pero que es posible de ser franqueado, penetrado. La metáfora del espacio agujereado refiere a lo subterráneo: los túneles, las madrigueras, las minas, las cuevas, y tiene connotaciones sobre las actividades ilegales y clandestinas, a modo de denuncia contra la arbitrariedad del poder guber- namental. Si para Deleuze y Guattari se trata de “perforar las montañas en lugar de escalarlas, excavar la tierra en lugar de estriarla, agujerear el espa- cio en lugar de dejarlo liso” (2006, p. 414), para el caso de las fronteras se trata de atravesarlas, penetrarlas, convirtiéndolas en un espacio agujereado. El contra-mapeo permite representar las fronteras como espacio aguje- reado. La práctica de contra-mapear permite dar cuenta de la porosidad de las fronteras en tanto espacio de contestación. Por eso el “foco no debe estar puesto en la imagen (representación) del mapa, sino en las prácticas mate- riales que están detrás de su construcción y uso” (Herb, Häkli et al. 2009, p. 332. Nuestra traducción). El contra-mapeo se aleja de la reproducción de la frontera como un espacio de separación y bloqueo, por el contrario, son las trayectorias, las relaciones y nuevas conexiones, las negociaciones y luchas entre los distintos actores los que producen la frontera. El contra-mapeo “permite navegar los cambios en los espacios y las prácticas del nuevo régi- men de administración de las fronteras y pensar a través de los distintos modos de espacialización las experiencias y movimientos migrantes” (De Genova, Mezzadra & Pickles 2015, p. 11. Nuestra traducción). Como advierten Casas-Cortes y Cobarrubias “la frontera nunca fue ni es algo dado. Por el contrario, se crea y se reproduce a través de las institu- ciones, las leyes, los cuerpos y las prácticas sociales – y, por lo tanto, puede ser desafiada por esas mismas cosas” (2007, p. 57. Nuestra traducción). El contra-mapeo no (re)produce fronteras territoriales, sino que visualiza el espacio social del régimen de frontera y sugiere nuevas relaciones que bus- can no sólo re-concebir el territorio sino recrearlo. Por eso, es que puede comprenderse como práctica de resistencia al control y la vigilancia de las fronteras. El contra-mapeo permite “organizarse a uno/a mismo/a”, generar estrategias de lucha e insubordinación, ya que: “un mapa subversivo de las 24 Andrea Torrano

fronteras ayuda a crear una frontera subversiva” (idem, p. 65. Nuestra tra- ducción). Cada uno de los ocho relatos de The mapping Journey Project comienza con un mapa geopolítico sobre el cual las personas migrantes trazan a mano alzada la trayectoria de su viaje. El mapeo del viaje – que da nombre al pro- yecto artístico- contrasta con las líneas estáticas y homogéneas del mapa geopolítico – espacio estriado –, por el contrario, el trazado de los caminos recorridos expresa el dinamismo y heterogeneidad del contra-mapeo. Es importante señalar que el contra-mapeo no representa un espacio liso, ya que no exhibe un espacio que se recorre con total autonomía y libertad, sino que es más bien un espacio agujereado, una composición de espacio estriado y espacio liso. La diáspora representada en el contra-mapeo tiene como punto de partida el país de origen y recorre distintos puntos de tránsito – a veces voluntarios, otros forzados – hasta caminar en el país de destino. En este sentido, las fronteras se convierten en un elemento central del contra-ma- peo. Muchas veces las fronteras se presentan como fronteras externas, pero también como fronteras externalizadas – centros de detención – y fronteras internas. Asimismo, las fronteras naturales también son vividas como una limitación para la movilidad: algunas personas debieron realizar caminatas por desiertos áridos, otras atravesar montañas o cruzar el Mediterráneo en pequeñas embarcaciones. El contra-mapeo revela las distintas expresiones de las fronteras en su relación con las personas migrantes. El contra-mapeo como espacio agujereado presenta a las fronteras como lugares de detención y exclusión – espacio estriado – y, al mismo tiempo, como lugares de movilidad y fuga – espacio liso. En el primer caso tenemos una trayectoria subordinada a los puntos, mientras que en el segundo los puntos se subordinan a la trayectoria. En este sentido, el espacio agujereado que representa el contra-mapeo supone dos modos de recorrer el espacio que se dan de manera conjunta: una trayectoria determinada por los puntos (el Mediterráneo, el desierto y las montañas, la cárcel, la detención y depor- tación), y una trayectoria que determina los puntos (estancias temporales para trabajar y conseguir dinero). De ahí que el trazado que realizan las personas migrantes no sea una línea recta, sino un zigzagueo compuesto de avances y retrocesos. Los trazos realizados sobre el mapa a partir de la trayectoria de los/las migrantes van creando un entramado que plasma en imágenes la experien- cia subjetiva con las fronteras, las estrategias y las resistencias. Las fronteras no son consideradas como meros límites geo-políticos sino que éstas tam- El contra-mapeo como práctica de resistencia: 25

bién son construidas por los propios/as migrantes. El contra-mapeo que propone la obra se aleja de la consideración de la frontera como organi- zada bajo una única lógica, como un espacio estable y controlable –espacio estriado-, en cambio, las fronteras son representadas como un espacio hete- rogéneo, de constante conflicto y contestación –espacio agujereado. El con- tra-mapeo representa el espacio agujereado que está compuesto también por alianzas y traiciones entre migrantes, por solidaridades y robos. El con- tra-mapeo contrapone el uso de los mapas para el monitoreo, la vigilancia y el control de las fronteras al mapeo realizado por las personas migrantes a modo de herramienta de resistencia y creación.

3. El contra-mapeo como subversión del régimen de visibilidad

La migración ‘ilegal’ emerge como un hecho generalizado en todos los Estados-nacionales en la Postguerra de la II Guerra Mundial (Sassen 2013, p. 147). En la actualidad la migración “ilegal” ha crecido de manera sin precedentes y se presenta como un “problema” en los debates gubernamen- tales y mediáticos. De acuerdo con Scheel y Squire (2014) nos encontramos frente a una producción activa de las personas migrantes como “ilegales”. Esto es, la producción de ilegalidad que generan los discursos políticos, los medios de comunicación y las políticas migratorias. Tal como señalan estos autores, dicha producción activa de la ilegalidad tiene como resultado la criminalización de la migración. Lo cual ha propiciado la emergencia del concepto crimmigration, que articula criminalidad y migración (Stumpf 2006). La producción de los/las migrantes como “ilegales” en el contexto de la UE debe ser vista en el recurrente rechazo a los pedidos de asilo, las restric- ciones a las visas y al otorgamiento de estatus de refugiado/a, el repudio a la migración por razones económicas –acentuado en tiempos de recesión del norte global-, el cerramiento de las fronteras que lleva a las personas a recurrir a servicios de contrabandistas para realizar su proyecto migratorio (Castles 2007) y los procedimientos represivos de los sistemas de asilo que hace que muchas personas migrantes prefieran continuar como “ilegales” para evitar la detención y el tratamiento humillante (Bloch, Sigona & Zetter 2011). Para De Genova habría una “producción legal del inmigrante ilegal” (De Genova 2002, p. 429), es decir, que son las leyes y reglamentaciones 26 Andrea Torrano

de las políticas migratorias las que convierten a las personas migrantes en “ilegales”. De Genova retoma los análisis de Foucault en torno al uso de los “ilegalismos” y la “fabricación de la delincuencia” (Foucault 2002a, pp. 270-278), para afirmar que “las intervenciones más o menos deliberadas y calculadas dentro del campo de la legislación sobre la migración y de las prácticas de aplicación de la legislación fronteriza han contribuido activa y directamente a generar condiciones de posibilidad para la ilegalización de migraciones específicas” (De Genova 2017, p. 157). Además, destaca que esta “ilegalidad” migratoria es vivida a través de un sentido de la deporta- bilidad, es decir, no de la deportación per se sino de la posibilidad de ser deportado/a (De Genova 2002, p. 439). Esta producción legal del inmigrante ilegal tiene como finalidad no la mera exclusión del/la migrante, sino un “proceso de inclusión a través de la ‘ilegalización’” (De Genova 2002, p. 439) o una “inclusión ilegalizada” (De Genova 2017, p. 159), esto es, una forma de subordinación laboral que se solapa con la subyugación racial. Para De Genova debemos reconocer que las migraciones “ilegalizadas” son incluidas socialmente en condicio- nes de vulnerabilidad; en consecuencia, “la ‘ilegalidad’ puede servir como un aprendizaje disciplinario de la subordinación del trabajo, después de lo cual ya no es necesario prolongar la condición de ‘ilegalizado’” (De Genova 2002, p. 429. Nuestra traducción). El espectáculo de las fronteras tiene como objetivo visibilizar a las per- sonas migrantes a través de su criminalización o victimización, pero en cualquier caso su efecto es el reforzamiento de las fronteras. Así, la rele- vancia de las fronteras “estriba no tanto en su dudosa eficiencia como en su ostentosa visibilidad, esto es, en los efectos performativos que se les adjudi- can” (Velasco 2016, p. 85). Siguiendo a Foucault (1989) es posible decir que toda tecnología de poder implica una cierta práctica de la mirada, y sólo a partir de hacer visible algo es que puede hacerse gobernable. 7 El espectá- culo de las fronteras pone en funcionamiento un “régimen de visibilidad” y un “régimen de los enunciados”, es decir, un modo de ver y un modo de hablar (Deleuze 2013) sobre la migración que visibilizan al migrante como ‘ilegal’.

7 Tazzioli y Walters (2016) advierten la importancia de la visibilidad en los trabajos sobre gubernamentalidad de Foucault. Como es sabido, para este autor, la visibilidad es central para comprender el dispositivo disciplinario, cuyo paradigma es el panóptico. Por el contrario, en los trabajos sobre la gubernamentalidad la visibilidad aparece de modo marginal. Por lo cual, Tazzioli y Walters buscan inscribir la cuestión de la visibilidad en la gubernamentalidad como un elemento central de gobierno. Específicamente, desarrollan la visibilidad como una forma de conocimiento. El contra-mapeo como práctica de resistencia: 27

Pero, como advierten Tazzioli y Walters, “la visibilidad es comprendida mejor no como una actividad homogénea y unidireccional completamente orientada a hacer cosas visibles, sino (…) produce espacios de visibilidad y espacios de invisibilidad, y determina (…) umbrales de lo que se puede ver y de lo que permanece sin ser visto” (2016, p. 448-449. Nuestra traduc- ción). El espectáculo de las fronteras, al mismo tiempo que torna visible al migrante ilegalizado, hace invisible un conjunto de rasgos que son centrales para comprender el funcionamiento de las fronteras y las contestaciones que allí se producen. Podríamos decir que el espectáculo de las fronteras opera mediante un régimen de visibilidad-invisibilidad, esto es, donde visi- bilidad e invisibilidad no serían términos contrapuestos sino más bien un continuo que va desde la visibilización extrema hasta el ocultamiento. 8 El contra-mapeo se contrapone a este régimen que podemos denomi- nar de (in)visibilidad. Comprendemos esta práctica como una forma de subversión del régimen de (in)visibilidad, por lo cual se hace visible aquello que en el espectáculo de las fronteras es ocultado. 9 Se trata de una herra- mienta de resistencia de las personas migrantes frente a un régimen de (in) visibilidad que al mismo tiempo que los vuelve visibles como migrantes ‘ilegales’ los invisibiliza como personas; que mientras condena las formas ‘ilegales’ de cruzar las fronteras oculta la utilidad económica y política de los/las migrantes ‘ilegales’. El contra-mapeo es, entonces, una lucha por la visibilidad, una disputa en torno al régimen de (in)visibilidad y reconoci- miento que allí se ponen en juego. En primer lugar, el régimen de (in)visibilidad del espectáculo de las fronteras vuelve invisible la ley que convierte al migrante en ilegal. Como señala De Genova “uno encuentra una notable visibilidad de los/las ‘inmi- grantes ilegales’ arremolinados enigmáticamente alrededor de la asom- brosa invisibilidad de la ley” (De Genova 2002, p. 432. Nuestra traducción). El par visibilidad-invisibilidad funciona dándole visibilidad al migrante ‘ilegalizado’ e invisibilidad a la ley que lo produce. Podemos reconocer esto en directa relación con la visibilidad del migrante como “no-persona” (Dal Lago 1999). La visibilización como migrantes ‘ilegales’ invisibiliza a la per- sona, o, más bien, la convierte en no-persona, donde el/la migrante es for-

8 Podríamos recordar el niño sirio de 3 años, Aylan Kurdi, que fue hallado muerto en las playas de Turquía (2 de septiembre de 2015), cuyas imágenes recorrieron los medios de comunicación de todo el mundo. 9 Como advierte Tazzioli (2015) las personas migrantes también utilizan como estrategia la invisibilización. Sin desconocer esto, en este trabajo sólo nos enfocaremos en la inversión del régimen de (in)visibilidad que produce el contra-mapeo. 28 Andrea Torrano

zado/a a la marginalidad y la subordinación. Esto supone una precarización de la vida y exposición a la violencia e, incluso, a la muerte (De Lucas 2015). La frontera produce el devenir de la persona a la no-persona. De acuerdo con Del Lago, mientras la persona significa “el singular como manifestación individual de la especie humana, en un sentido que excede su naturaleza biológica, un ser sobre todo social” (1999, p. 208. Nuestra traducción), la no-persona es aquella que sólo es reconocida como un ser natural. La noción de no-persona es referida al migrante, sea que se lo cla- sifique como extra-comunitario, irregular, ilegal, etc. En cualquier caso se pone de relieve que el/la migrante es definido como “aquello queno es (…): no es europeo, no es un nativo, no es un ciudadano, no está en regla” (idem, p. 213. Nuestra traducción). Podríamos decir que mientras que la ley pro- duce al migrante ‘ilegal’, el espectáculo de las fronteras suspende sobre este migrante el reconocimiento de persona, convirtiéndolo en no-persona. 10 Sin embargo, como advierte Agamben (2011), no debemos desconocer que debido al desarrollo de las técnicas de policía – fotografía y huellas dactilares – nos encontramos en la actualidad con una separación entre persona e identidad. Aquello que llamamos persona en realidad no es más que la identidad otorgada por los Estados-nacionales que sólo reconocen a las personas por sus datos biológicos. Es decir, paradójicamente llamamos ‘persona’ a una ‘identidad sin persona’, o, en otras palabras, lo que se reco- noce legalmente como persona es la mera identidad biológica. Las políticas de control migratorio a través de las técnicas de fichaje biométrico buscan establecer la identidad pero sin reparar en la persona. Así, en el/la migrante ‘ilegal’ nos encontraríamos con una duplicación de la condición de no-per- sona. El contra-mapeo puede interpretarse como una visibilización de la per- sona. La actividad de contra-mapear se presenta como una manifestación de las subjetividades en relación al espacio, por lo cual puede considerarse como una práctica que revela a la persona, es decir, que da cuenta de la experiencia vivida. El contra-mapeo del/la migrante ‘ilegalizado/a’ exhibe lo que denominamos ‘una persona sin identidad’, es decir, una persona que es socialmente reconocida en su condición de migrante, en la experiencia de su fragilidad, pero que carece de reconocimiento legal (Berti & Torrano 2015). En este sentido, el contra-mapeo visibiliza a la persona que es el/la migrante ‘ilegalizada’ en un doble sentido, por un lado, porque subraya la

10 Queremos señalar que mientras Dal Lago (1999) desarrolla una genealogía de la no-persona, Esposito (2011; 2016) realiza una genealogía de la persona. Más allá de las diferencias entre estos autores, ambas perspectivas pueden ser leídas de manera complementaria. El contra-mapeo como práctica de resistencia: 29

persona por sobre la identidad; y, por otro, porque revela que el reconoci- miento legal sólo responde a una identidad biológica. 11 En efecto, el contra-mapeo consiste en una práctica de subversión del régimen de (in)visibilidad del espectáculo de las fronteras, esto significa que visibiliza la persona que ha sido subsumida en la no-persona o, lo que es igual, en su calificación como ‘ilegal’. La exhibición de la persona se con- trapone a las imágenes y discursos de el/la migrante como no-persona que circula diariamente, aquello que el migrante no es. Por el contrario, el con- tra-mapeo busca la afirmación de la persona, el reconocimiento social, eco- nómico y político de los/las migrantes. No se trata de exhibir la identidad de las personas sino a la persona misma, más allá del reconocimiento legal. En definitiva, el contra-mapeo pretende hacer visible la experiencia vivida de las personas migrantes. The Mapping Journeypropone subvertir el régimen de (in)visibilidad a través del contra-mapeo. Esto puede advertirse en la elección de Khalili de no mostrar los rostros de los/las migrantes, lo cual está en clara oposición al afán gubernamental de controlarlo todo a partir del registro de imágenes, huellas dactilares y documentos. Khalili busca recuperar la dimensión de la persona que es borrada por la pretensión constante de la identificación. Es por ello que, paradójicamente, la artista no se centra en el rostro – la más- cara que remite a la noción clásica de persona –, porque ahora el rostro ya no representa a la persona, el rostro ha sido despojado de sus características humanas y se ha vuelto un patrón que puede ser reconocido algorítmica- mente mediante técnicas de identificación biométricas. Por otro lado, la ausencia de rostros no supone una invisibilización, sino un rechazo a las formas de representación de los medios de comunica- ción que espectacularizan las imágenes de las personas migrantes. Khalili le otorga mayor importancia a la voz, al relato de cada uno/a de los/las migrantes. El contra-mapeo es construido a partir de la narración de los/las migrantes sobre su trayectoria migratoria y la singularidad de su experien- cia. En este sentido, nos hallamos frente a una inversión tanto del régimen de visibilidad como del régimen de enunciación – el cual será desarrollado en el apartado siguiente. No sólo se subvierten las imágenes sino también

11 En diciembre de 2015 un grupo de 200 migrantes, en su mayoría provenientes de Eritrea, pro- testaron contra las normas de asilo de la isla Lampedusa que suponen la captura de las huellas dactilares. En inglés expresaban: “We are human beings! No fingerprints! (¡Somos seres huma- nos! ¡No huellas dactilares!). Como respuesta la UE presionó a Italia para hacer cumplir las regulaciones y, si fuera necesario, recurriera a la fuerza. Disponible en: 30 Andrea Torrano

los enunciados, serán las propias personas migrantes quienes hablen por sí mismas. A diferencia del espectáculo de las fronteras, The Mapping Journey no se propone hablar por el/la migrante – el subalterno, como dice Spivak (2011) –, sino que recupera el relato de los/las migrantes. Podríamos decir que, frente a la ‘identidad sin persona’ correspon- diente a las formas de fichaje de los Estados, Khalili presenta una ‘persona sin identidad’. Esto en un doble sentido, por un lado, porque por persona sin identidad puede entenderse la situación de los migrantes ‘ilegalizados’ (no-persona), y, por otro, porque hace emerger a la persona que ha sido negada por el Estado al reconocer sólo la identidad. La visibilización de la persona que propone la artista va más allá de la identidad estatal y de la reproducción del ‘ilegalismo’ del espectáculo de las fronteras. En segundo lugar, el régimen de (in)visibilidad del espectáculo de las fronteras muestra a las fronteras como un espacio de exclusión, cuyo obje- tivo es contener y detener la migración ilegalizada, y esconde la perma- nente “inclusión subordinada” (De Genova 2017) o “inclusión diferencial” (Mezzadra & Neilson 2014; 2016). Esto significa que la ilegalización no busca meramente la exclusión de los/las migrantes sino una inclusión par- cial a través de la vulnerabilidad y subordinación de las personas migran- tes para su aprovechamiento en términos económicos, aunque también en términos políticos. Como señala Foucault “el cuerpo sólo se convierte en fuerza útil cuando es a la vez cuerpo productivo y cuerpo sometido” (Foucault 2002, p. 33). De acuerdo con Mezzadra y Neilson, “en estos casos se tiene que lidiar con una producción de subjetividad que ni incluye ni excluye completamente a los migrantes del espacio político moderno” (2014, p. 12). El par visibilidad-invisibilidad funciona visibilizando el con- trol de la migración ‘ilegal’ e invisibilizando los regímenes de gestión labo- ral que crean diferentes grados de precariedad y vulnerabilidad. El contra-mapeo exhibe esta inclusión subordinada de las personas migrantes, ya que presenta a la frontera no como un instrumento de exclu- sión sino que visibiliza aquello que el espectáculo de las fronteras deja a la sombra: cómo cierta ilegalización sobre los cuerpos de los/las migrantes es producida para un aprovechamiento económico y político. De esta manera, el contra-mapeo permite revelar cómo ciertas corrientes migratorias y cuerpos marcados como ‘ilegales’ son incluidos como trabajadores precari- zados, vulnerados y subordinados (De Genova 2005). Son las experiencias de los propios migrantes en relación a las estrategias de supervivencia las que se ponen de relieve en el contra-mapeo. El contra-mapeo como práctica de resistencia: 31

Los relatos recogidos en The Mapping Journey presentan a las fronteras como espacios de exclusión y rechazo: la detención o la deportación son experiencias que en algún momento del viaje han padecido las personas migrantes. Pero además expone a las fronteras como espacios de inclusión diferencial a través de la consideración de los/las migrantes como capital humano. Los relatos refieren a trabajos temporales que les permitieron con- tinuar la diáspora, como así también, aluden a los diversos trabajos que han obtenido en los países de destino. El contra-mapeo permite mostrar mediante el relato que complementa las imágenes, que las personas migrantes son incluidas de manera subor- dinada. La marcación de los cuerpos como “ilegalizados”, el hecho de estar indocumentados, pone en una situación de privación de derechos y vulne- rabilidad a las personas migrantes. La obra expone la utilidad económica y política del/la migrante ‘ilegal’ para los países de tránsito y de destino. Asimismo, señala la precarización a la que no parecen poder escapar los/ las migrantes aunque cambie su situación migratoria. La subordinación laboral en la que se encuentran las personas migrantes es una característica extendida del régimen de gestión laboral en el norte global.

4. El contra-mapeo como forma de contraconducta

Las fronteras son el espacio privilegiado para la producción de la migra- ción. Como señala De Genova, “si no existieran las fronteras, no habría migración como tal (al menos, en la medida en que se ha llegado a com- prender el término, sólo como movimientos a través de las fronteras esta- tales), sino sólo movilidad” (De Genova 2017, p. 158). Si bien las fronteras son un espacio de ejercicio de poder sobre las/los migrantes, no obstante éstos/as pueden generar estrategias de resistencia. Como advierte Foucault “cada relación de poder implica, al menos in potentia, una estrategia de lucha” (Foucault 2001, p. 258). Es decir, que “donde hay poder hay resisten- cia (…), ésta nunca está en posición de exterioridad con respecto al poder” (Foucault 2002b, p.116), toda relación de poder siempre está atravesada por una práctica de resistencia. Las fronteras son un espacio de “producción de la subjetividad de las personas migrantes como campo disputado y contradictorio” (Mezzadra 2012, p. 163). Es decir, la subjetividad de los/las migrantes está constituida por una tensión entre unas técnicas de sujeción, que buscan la utilización económica y política de las personas migrantes, y unas prácticas de subje- 32 Andrea Torrano

tivación, que permiten resistir al poder y crear nuevas estrategias de lucha (Foucault 2001). La subjetividad de las personas migrantes es un campo de tensión y contradicción. En esta tensión entre técnicas de sujeción y prácticas de subjetivación, aparece como una noción central la contraconducta. Foucault introduce la noción de “contraconducta en el sentido de lucha contra los procedimien- tos puestos en práctica para conducir a los otros” (Foucault 2006, p. 238), es decir, los “movimientos específicos que eran resistencias, insumisiones, algo que podríamos llamar rebeliones específicas de conducta” (idem, p. 225). 12 La contraconducta sugiere, entonces, un modo en el cual los sujetos resisten a las formas de sujeción, es una posibilidad – potentia – y mar- gen de acción de los sujetos. El desafío de cruzar las fronteras de “forma legalmente inadmisible” de las personas migrantes puede ser considerada como un modo de contraconducta, al igual que las tácticas y estrategias que deben elaborar para lograrlo. Proponemos concebir al contra-mapeo como una contraconducta, es decir, como una estrategia de resistencia de las personas migrantes. El con- tra-mapeo permite asumir una posición crítica con respecto al mapeo y, al mismo tiempo, construir otras formas de representación. Esto no debe con- ducirnos a concluir que el contra-mapeo, en tanto contraconducta, es “sim- plemente la contraparte pasiva, un fenómeno meramente negativo o reactivo, o una suerte de decepcionante efecto rezagado” (Davidson 2012, p. 154); por el contrario, se trata de crear algo nuevo, de una práctica liberadora. Desde la dimensión subjetiva de las personas migrantes, las fronteras pueden ser consideradas como un lugar donde se produce una destrucción de la experiencia. Si para Benjamin la “pobreza de la experiencia” caracte- rizaba una época marcada por las guerras, donde “la gente volvía muda del campo de batalla. No enriquecida, sino más pobre en cuanto a experiencia comunicable…” (Benjamin 1989, pp. 167-168), 13 “hoy sabemos que para

12 Es importante señalar que Foucault comprende a la noción de conducta con una cierta ambi- güedad, por un lado se refiere a la actividad de conducir a un individuo, conducción como relación entre individuos, y, por otro, a la manera como un individuo se conduce “a sí mismo”, conducción como relación consigo mismo. 13 La afirmación sobre la “pobreza de la experiencia” en la época moderna es atribuida a la catástrofe de la guerra mundial, donde “la gente volvía muda del campo de batalla. No enri- quecida, sino más pobre en cuanto a experiencia comunicable… Porque jamás ha habido expe- riencias tan desmedidas como las estratégicas por las guerra de trincheras, las económicas por la inflación, las corporales por el hambre, las morales por el tirano” (Benjamin 1989, p.168). Benjamin ve la pobreza de la experiencia en la imposibilidad material de apropiarse de lo nuevo y de una incapacidad espiritual de poder convertir lo nuevo en una posibilidad para crear. Se trata de una incapacidad de la gente de tener experiencias, de narrar experiencias. El contra-mapeo como práctica de resistencia: 33

efectuar la destrucción de la experiencia no se necesita en absoluto de una catástrofe” (Agamben 2007, p. 7). Las muertes en el Mediterráneo, las con- diciones de vida en los campamentos de refugiados, la arbitraria detención de los/las migrantes en los centros de internamiento para extranjeros, como así también las duras situaciones que deben soportar las personas migran- tes para lograr su proyecto migratorio son escenas cotidianas de dimensio- nes de una guerra que se ha vuelto permanente. La pobreza de experiencia hacía referencia a que quienes regresaban del campo de batalla volvían mudos, la destrucción de la experiencia supone que ya no tenemos nada para comunicar, no tenemos experiencia porque ésta nos ha sido expropiada por el mundo del espectáculo. Para Foucault “una experiencia es, por supuesto, algo que se vive solo; pero no puede tener su efecto completo al menos que el individuo se pueda escapar de la subjetividad pura, de modo tal que los otros puedan, no diría exactamente reexperimentarla, sino al menos cruzarse en el camino con ella, o seguir sus huellas” (Foucault 2003, p. 17). La destrucción de la experiencia hace que eso vivido de manera singular y única se vuelva incomunicable a los/as otros/as o, más bien, comunicable en términos de reproducción. El espectáculo de las fronteras nos presenta escenas de la migración que no comunican la experiencia de las personas migrantes. Se trata de un régimen de (in)visibilidad y un régimen de enunciación que suspende el reconocimiento de la persona convirtiéndolo en no-persona, en otros términos, despersonifica a los/las migrantes. El espectáculo de las fronte- ras ha expropiado la experiencia de los/as migrantes. Por el contrario, el contra-mapeo puede pensarse como una reapropiación de la experiencia sustraída por el espectáculo de las fronteras. Es en este sentido que el con- tra-mapeo puede considerarse como una contraconducta, una resistencia a la apropiación de la experiencia de la subjetividad. El contra-mapeo es una contraconducta que permite recuperar para sí la experiencia de las perso- nas migrantes y, al mismo tiempo, hacerla comunicable. Es una experiencia que no responde a la lógica de la espectacularización y que produce efectos transformadores en la medida en que es comunicada, por lo cual puede hacerse común. The Mapping Journeyno pretende ser un registro miserabilista de los/ las migrantes, frecuente en el espectáculo de las fronteras. Contrariamente presenta las estrategias de resistencia a escala microfísica de cada uno de los relatos de las personas migrantes. La narración acompaña las imáge- nes que se van trazando sobre los mapas geopolíticos, estas narraciones construyen otro régimen de enunciación al del espectáculo de las fronteras. 34 Andrea Torrano

Si bien parece ser una narración autobiográfica, ellos no dicen casi nada acerca de su vida pasada antes de comenzar el viaje. Son personas anónimas de las que podemos inferir si se trata de mujeres u hombres, de adultos o niños sólo a partir del registro de sus voces –a excepción las historias de dos personas que relatan que fueron detenidas por las autoridades y tratadas como menores. Por lo tanto, tampoco se trata de un registro autobiográfico tradicional del espectáculo de las fronteras. Es en la narración de cada una de las personas migrantes que se revela el acontecer de la experiencia. Khalili logra registrar la experiencia de la fragilidad de la vida del/la migrante, de una vida signada por la precariedad y la imprevisibilidad. La experiencia es reapropiada en tanto vivencia sin- gular e irrepetible, que produce una transformación en quien la ha vivido, pero también en el/la espectador/a. Pero aquí el/la espectador/a no es el/la mismo/a (o no se vivencia de la misma manera) que el/la del espectáculo de las fronteras. El espectador es transformado en la comunicación de la experiencia singular de los/las migrantes. No pasa desapercibido para el/ la espectador/a que un viaje que puede durar algunas horas, para estos/ as migrantes se convierte en una travesía que dura meses, incluso años (Tietjens Meyers 2016). Asimismo, el anonimato de las narraciones hace de la experiencia migratoria singular algo compartido por miles de migrantes. El contra-mapeo en tanto contraconducta es una forma de resistencia al espectáculo de las fronteras. El contra-mapeo es, además de una subver- sión del régimen de (in)visibilidad, una re-apropiación de la experiencia del espectáculo de las fronteras. Es una forma de resistencia a los modos de ver, pero también a los modos de hablar sobre la migración. Se trata de una inversión del régimen de enunciación del espectáculo de las fronteras. La lengua y la imagen se articulan para conformar una nueva cartografía, una cartografía subversiva como arte de resistencia. En The Mapping Journeycasi todos los relatos son narrados en la lengua del otro – italiano o francés – y siempre subtituladas en inglés. La elección de hablar en una lengua que no es la propia no señala la imposición de la misma, sino un gesto de apropiación de una lengua que siempre va a per- manecer ajena – en contraposición a la llamada lengua materna (Derrida 1997). Es en esta lengua impropia que es posible comunicar la experiencia singular que se da en lo común, porque es justamente lo impropio – no lo propio – lo que caracteriza lo común. De esta manera, la obra exhibe una doble apropiación, por un lado, de la lengua del otro que posibilita la comunicación – subrayando lo común de la comunicación – y, por otro, de la experiencia que fue expropiada por el espectáculo de las fronteras. El contra-mapeo como práctica de resistencia: 35

En definitiva, el contra-mapeo como contraconducta es una forma de resistencia a los regímenes de enunciación. La contraconducta es el gesto de recuperar para sí, pero también para los/las otros/as, la experiencia que ha sido arrebatada por el espectáculo de las fronteras. Asimismo, es el gesto de hablar la lengua que no es propia para comunicar – hacer común – la expe- riencia singular. La experiencia de las personas migrantes que se expresan en The Mapping Journey es singular y común, por tanto, ético-política.

5. Conclusión

Si bien en la última década las investigaciones sobre migración, tanto en los estudios tradicionales como críticos, han intentado ir más allá de los para- digmas establecidos para crear diferentes relaciones con los/las migrantes y ampliar la mirada sobre los regímenes de fronteras; sin embargo, conti- nuaron considerando a la frontera como herramienta de exclusión y violen- cia. En contraposición, desde la autonomía de las migraciones se propuso priorizar las prácticas subjetivas, los deseos y las experiencias de las perso- nas migrantes y de esta forma concebir las fronteras como heterogéneas, dinámicas y de inclusión diferencial. Ésta también ha sido una preocupa- ción compartida por diversas expresiones artísticas que se enfocaron en la dimensión subjetiva de la migración. The Mapping Journey Project puede considerarse una obra centrada en las experiencias subjetivas de las personas migrantes. La video-instalación retrata la travesía de ocho migrantes de África del norte y Medio oriente que emigraron a Europa por razones económicas y políticas. Los relatos mapeados exhiben una diáspora signada por los sistemas de vigilancia y control migratorio, y la condición de ilegalidad, pero, al mismo tiempo, permiten visibilizar estrategias de supervivencia y prácticas de resistencia. Este trabajo se propuso analizar el contra-mapeo como una práctica de resistencia de las personas migrantes. Para ello utilizamos a modo de “caja de herramientas” (Foucault 1992, p. 184), las nociones de “espacio aguje- reado”, “régimen de visibilidad” y “contraconducta”, de Deleuze y Guattari y de Foucault. Como expresa Foucault, hablar de caja de herramientas sig- nifica intentar desentrañar la lógica propia de las relaciones de poder y de las luchas que se comprometen alrededor de ellas (ibidem). En este sen- tido, estas nociones nos permitieron cuestionar la tradicional categoría de frontera, revelando al mismo tiempo las transformaciones y tensiones que atraviesan las fronteras. La práctica de contra-mapear se opone a los modos 36 Andrea Torrano

tradicionales en los que han sido construidos los mapas, especialmente, a la forma que ha sido representada la frontera. El contra-mapeo es una práctica de resistencia a las construcciones estáticas, homogéneas y de exclusión de las fronteras, que permite narrar conexiones y trazar diversos rumbos. También es una resistencia a los mapas geopolíticos que representan la arbitrariedad de las fronteras. La noción de “espacio agujereado” nos permitió presentar las fronteras como una combinación de exclusión y detención, con formas de franqueamiento y movilidad. The Mapping Journeypresenta un contra-mapeo donde las fronteras pueden ser concebidas como un espacio agujereado compuesto por detenciones, exclusiones, paradas involuntarias y movimientos, fran- queos de fronteras, evasiones. El contra-mapeo contrapone el uso de los mapas para la vigilancia y el control de las fronteras al realizado por las personas migrantes como herramienta de resistencia y creación. El contra-mapeo es también una práctica de resistencia al régimen de (in)visibilidad del espectáculo de las fronteras. Este régimen produce dos operaciones complementarias: visibiliza al migrante ‘ilegal’ e invisibiliza la ley que convierte al migrante en ‘ilegal’, y visibiliza la frontera como un espacio de exclusión e invisibiliza la inclusión subordinada del migrante ‘ilegalizado’. El contra-mapeo subvierte los modos de visibilizar del espec- táculo de las fronteras. The Mapping Journey invierte este régimen de (in) visibilidad, por un lado, visibiliza a la persona que es negada por el poder gubernamental que sólo reconoce la identidad. Por el otro, visibiliza la inclusión subordinada de los/as migrantes ‘ilegalizados/as’, lo cual presenta una utilidad económica y política para los países de tránsito y de destino. Por último, el contra-mapeo es una práctica de resistencia, una con- traconducta, al régimen de enunciación del espectáculo de las fronteras. El contra-mapeo como contraconducta es la re-apropiación de la experiencia sustraída por el espectáculo de las fronteras. Se trata de una experiencia que transforma tanto a quien la ha vivido como a quien se comunica. De este modo la experiencia singular se hace común. El contra-mapeo The Mapping Journey registra la experiencia de las personas migrantes, de una vida signada por la precariedad. La experiencia es reapropiada en tanto vivencia singular e irrepetible, que produce una transformación en quien la ha vivido, pero también en el/la espectador/a. El contra-mapeo nos permitió mostrar que las fronteras no son esta- bles ni meramente excluyentes, sino un espacio de disputa donde emergen prácticas de subjetivación de las personas migrantes. La subjetividad no se reduce a los modos de sujeción que operan dentro de los regímenes de El contra-mapeo como práctica de resistencia: 37

dominación y marginación existentes, sino que reconoce al migrante en esa tensión propia de la subjetividad: entre poder y resistencia, o, en otros tér- minos, técnicas de sujeción y prácticas de subjetivación. Si bien no es parte de la propuesta de Khalili en esta obra, no debemos olvidar que la subjeti- vidad del migrante está atravesada por la racialización, el género y la clase. The Mapping Journey logra representar la resistencia de los/las migrantes ‘ilegalizados/as’, que consiste en el franqueamiento de los límites fronterizos, las alianzas y estrategias, la experiencia cotidiana de las personas migrantes, y, en este gesto, la propia obra se vuelve una práctica de resistencia.

Bibliografía

ACNUR (2015). ¿‘Refugiado’ o ‘Migrante’? ACNUR insta a usar el tér- mino correcto. Disponible en: Agamben, G. (2007). Infancia e Historia. Ensayo sobre la destrucción de la experiencia (2ª ed.). Buenos Aires: Adriana Hidalgo. Agamben, G. (2011). Identidad sin persona. En: Desnudez (1ª ed.) (pp. 67-78). Buenos Aires: Adriana Hidalgo. Amoore, L. (2006). Biometric borders: Governing mobilities in the war on terror. Political Geography, 25 (3), 336-351. Balibar, É. (2003). Nosotros, ¿Ciudadanos de Europa? (1ª ed.) Madrid: Tecnos. Balibar, É. & Williams, E. M. (2002). World Borders, Political Borders. PMLA. Special Topic: Mobile Citizens, 117 (1), 71-78. Benjamin, W. (1989). Experiencia y pobreza. En: Discursos interrumpidos I. Filosofía del arte y de la historia (pp. 165-173). Buenos Aires: Taurus. Berti, A. & Torrano, A. (2015). Politics of (un)documents. Immigrants and photographic devices in Seba Kurtis’ postdocumentary photography. Interventions: International Journal of Postcolonial Studies, 17 (1), 82-112. Bloch, A., Sigona, N. & Zetter, R. (2011). No right to dream. The social and economic lives of young undocument migrants in Britain. London: Paul Hamlyn Foundation. Casas-Cortes, M. & Cobarrubias, S. (2007). Drawing escape tunnels through borders: cartographic research experiments by European Social Movements. En: L. Mogel & A. Bhagat (Eds.). An Atlas of Radical Cartography (pp. 51-66). Los Angeles: Journal of Aesthetics and ProtestPress. Castles, S. (2007). The Migration-Asylum Nexus and Regional Approaches. En: S. Kneebone & F. Rawlings-Sanae (Eds.). New Regionalism and Asylum Seekers: Challenges Ahead (pp. 25-42). Londres: Berghahn Books. 38 Andrea Torrano

Dal Lago, A. (1999). Non-Persone. L’inclusione dei migranti in una società globale (1ª ed.). Milano: InterZone. Davidson, A. (2012). Elogio de la contraconducta. Revista de Estudios Sociales, 43, 152-164. De Genova, N. (2002). Migrant ‘illegality’ and deportability in everydaylife. AnnualReview of Anthropology, 31, 419-447. De Genova, N. (2005). Working the Boundaries: Race, Space, and “Illegality” in Mexican Chicago. Durham, NC: Duke University Press. De Genova, N. (2013). Spectacles of migrant ‘illegality’: the scene of exclusión, the obscene of inclusión. Ethnic and Racial Studies, 36 (7), 1180-1198. De Genova, N. (2017). Movimientos migratorios contemporáneos: entre el control fron- terizo y la producción de su ilegalidad (entrevista realizada por S. Álvarez Velasco). Íconos. Revista de Ciencias Sociales, 58, 153-164. De Genova, N.; Mezzadra, S. & Pickles, J. (2015). New Keywords: Migration and Borders. Cultural Studies, 29 (1), 55-87. De Lucas, J. (2015). Mediterráneo: El naufragio de Europa (1ª ed.). Valencia: Tirant Humanidades. Deleuze, G. (2013). El saber: Curso sobre Foucault (1ª ed.). Buenos Aires: Cactus. Deleuze, G. & Guattari, G. (2006). Mil Mesetas. Capitalismo y esquizofrenia. Valencia: Pre-Textos. Derrida, J. (1997). El monolingüismo del otro. O la prótesis de origen (1ª ed.). Buenos Aires: Manantial. Esposito, R. (2011). El dispositivo de la persona (1ª ed.). Buenos Aires: Amorrortu editores. Esposito, R. (2016). Las personas y las cosas (1ª ed.). Buenos Aires: Katz-Eudeba. Eurostat (2017). Estadísticas de migración y población migrante. Disponible en: Foucault, M. (1989). El ojo del poder. En: J. Bentham. El panóptico (1ª ed.) (pp. 9-32). Puebla: La nave de los locos. Foucault, M. (1992). Microfísica del poder (1ª ed.). Madrid: la Piqueta. Foucault, M. (2000). Un diálogo sobre el poder y otras conversaciones (1ª ed.). Madrid: Alianza Editorial. Foucault, M. (2001). El sujeto y el poder. En: H. Dreyfus & P. Rabinow (Eds.). Michel Foucault: más allá del estructuralismo y la hermenéutica (1ª ed.) (pp. 241-259). Buenos Aires: Editorial Nueva Visión. Foucault, M. (2002a). Vigilar y Castigar. Nacimiento de la prisión (1ª ed.). Buenos Aires: Siglo XXI. Foucault, M. (2002b). Historia de la sexualidad. 1. La voluntad de saber (1ª ed.). Buenos Aires: Siglo XXI. El contra-mapeo como práctica de resistencia: 39

Foucault, M. (2003). El yo minimalista. Conversaciones con Michel Foucault (1ª ed.). Buenos Aires: La marca. Foucault, M. (2006). Seguridad, Territorio, Población (1ª ed.). Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica. Guild, E. & Bigo, D. (2003). Le visa Schengen: expression d’une stratégie de ‘police’ à distance. Cultures & Conflits, 49 (1), 22-38. Herb, G.H., Häkli, J. et al. (2009). Intervention: Mapping is critical! Political Geography, 28, 332-342. Malo de Molina, M. (2006). Prefacio. En: Fronteras Interiores y Exteriores. Special issue of Apuntes de ContraPoderJournal, 1. Disponible en: Mezzadra, S. (2012). Capitalismo, migraciones y luchas sociales. La mirada de la auto- nomía. Nueva Sociedad, 237, 159-178. Mezzadra, S. & Neilson, B. (2014). Fronteras de inclusión diferencial. Subjetividad y luchas en el umbral de los excesos de justicia. Papeles del CEIC, 2, (113), 1-30. Mezzadra, S. & Neilson, B. (2016). La frontera como método, o, la multiplicación del trabajo (1ª ed.). Buenos Aires: Tinta Limón. Nawi, D. (2015). Other maps. On Bouchra Khalili’s Cartographies. Ibraaz Plataform 008. Papadopoulos, D.; Stephenson, M. & Tsianos, V. (2008). Escapes Routes. Control and subversión in the Twenty-First Century. Londres: Ann Arbor. Rodier, C. (2015). El negocio de la desesperación. ¿Qué oculta la tragedia de los refugiados? (1ª ed.). Buenos Aires: Capital intelectual. Sassen, S. (2013). Inmigrantes y ciudadanos. De las migraciones masivas a la Europa fortaleza. Madrid: Siglo XXI. Said, E. (1996). Peace and its discontents: Essays on Palestine in the Middle East peace process. New York: Vintage. Salter, M. B. (2006). The global visa regime and the political technologies of the international self: borders, bodies, biopolitics. Alternatives: Global, Local, Political, 31, 167-189. Scheel, S. & Squire, V. (2014). Forced Migrants as Illegal Migrants. En: Fiddian-Qasmiyeh, E.; Loescher, G.; Long, K. & Nando, S. (Eds.). The Oxford Handbook of Refugee and Forced Migration Studies (pp. 188-199). Oxford: Oxford University Press. Spivak, G. C. (2011). ¿Puede hablar el subalterno? (1ª ed.). Buenos Aires: el cuenco de plata. Stumpf, J. (2006). The crimmigration crisis: immigrants, crime, and sovereign power. American University Law Review, 56 (2), 367-419. Tazzioli, M. (2015). Which Europe? Migrants’ uneven geographies and counter-mapping at the limits of representation. Movements. Journal für kritische Migrations- und Grenzregimeforschung 1 (2), 1-20. 40 Andrea Torrano

Tazzioli, M. & Walters, W. (2016).The sight of Migration: Governmentality, Visibility and Europe’s Contested Borders. Global Society, 3 (3), 445-464. Tazzioli, M. & Garelli, G. (2017). Counter-mapping, Refugees, and Asylum Borders. En: Mitchell, K,; Jones, R. & Fluri, J.L. (Eds.). Critical Geographies of Migration Handbook. Cheltenham: Edward Elgar (forthcoming). Tietjens Meyers, D. (2016). No safe passage: ‘The Mapping Journey Project’. Journal of Global Ethics, 12 (3), 252-259. Torrano, A. (2016). Las políticas de visado en el dispositivo de seguridad de Michel Foucault. En-claves del Pensamiento, X (20), 79-96. Velasco, J. C. (2016). El azar de las fronteras. Políticas migratorias, ciudadanía y justicia (1ª ed.). México: Fondo de Cultura Económica. Wainwright, J. (2008). Decolonizing Development Colonial Power and the Maya. London: Wiley-Blackwell Publishing. Walters, W. (2011). Foucault and frontiers: notes on the birth of the Humanitarian border. En: Bröckling, U.; Krasmann, S. & Lemke, T. (Eds.). Governmentality: Current Issues and Future Challenges (pp. 138-164). New York: Routledge. Wihtol de Wenden, C. (2013). El fenómeno migratorio en el siglo XXI. Migrantes, refugiados y relaciones internacionales (1ª ed.). México: Fondo de Cultura Económica. Zolberg, A. (2002). Guarding the Gates. En: C. Calhoum, P. Price & A. Timmer (Eds.). Understanding September 11 (pp. 285-289). New York: New York Press.

[recebido em 5 de setembro de 2017 e aceite para publicação em 5 de janeiro de 2018] CONDIÇÕES DA HOSPITALIDADE EM “THE DISPLACED PERSON” DE FLANNERY O’CONNOR CONDITIONS OF HOSPITALITY IN FLANNERY O’CONNOR’S “THE DISPLACED PERSON”

Lígia Bernardino * [email protected]

“The displaced person” (1954), conto da escritora norte-americana Flannery O’Connor, problematiza a questão do acolhimento de refugiados através do desen- cademento de zonas de conflito desmascaradores de feridas interculturais e sociais. Para além das decisões políticas, existe a mais difícil conciliação de vontades, pro- piciadora da transformação do refugiado em homo sacer, pelo não reconhecimento dos seus direitos, ou em força de trabalho a explorar. A hospitalidade convertida numa travessia de perigosidades várias constitui-se, assim, como topos privile- giado deste conto. O presente ensaio debruça-se sobre as irradiações resultantes das especificidades que a condição de refugiado implica tal como percecionado por Flannery O’Connor através de “The displaced person”.

Palavras-chave: O’Connor, refugiados, integração, rejeição, lei, convenção.

“The displaced person” (1954), a short story by the North-American writer Flannery O’Connor, explores the refugee’s issue as it triggers conflict zones that unmask both intercultural and social wounds. Besides the political decisions, there is the difficult task of conciliating diverging wills. All this favours the turning of the refugee into a homo sacer: his rights are not acknowledged; he is taken as labour force, bound for exploitation. Thus, hospitality becomes a crossing of different sorts of dangers, which is a privileged topos of this short story. The present essay dwells on Flannery O’Connor’s views about the refugee’s condition and the scope of the issue as implied in “The displaced person”.

Keywords: O’Connor, refugees, integration, rejection, law, convention.

* Universidade do Porto / Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, Portugal. 42 Lígia Bernardino

Veio um silêncio, veio também uma tempestade, vieram os mares todos. Eu cavo, tu cavas, e o verme cava também, e aquilo que ali canta diz: eles cavam.

Oh um, oh nenhum, oh ninguém, oh tu: para onde íamos que não fomos para lado nenhum?

Paul Celan, A Rosa de Ninguém (1963)

1. Rejeição da alteridade

O mais extenso conto de Flannery O’Connor, escritora norte-americana do estado da Georgia, no Sul dos Estados Unidos, é “The displaced per- son”, publicado em 1954. Nele, a alteridade, a hospitalidade e a adaptação apresentam-se como zonas de conflito insanável, face às pulsões sociais e psicológicas, coletivas e individuais de todos quantos se veem envolvidos pelo processo de acolhimento dos deslocados, ou seja, dos refugiados. Assim, analisar a chegada de uma família de refugiados a uma recôn- dita quinta de um estado do Sul dos Estados Unidos implica, por sinédo- que, a perceção de que o drama de Mr. Guizac, o polaco que abandona o campo de internamento onde estaria a viver após o término da segunda guerra mundial, é comum a todos quantos passam por uma situação idên- tica no momento de acolhimento. No universo particular de O’Connor, longe das grandes metrópoles, longe, portanto, de sociedades cosmopolitas, a presença do estranho con- verte-se num processo de crescente rejeição. No entanto, o espaço privile- giado da ficção desta autora é irredutível a uma explicação única de choque civilizacional. Conforme afirma Jolly Kay Sharp, “throughout her fiction, O’Connor incorporated Southern settings, idioms, situations and personal- ities without diminishing their importance” (2011, p. 16). Ao transpor essas particularidades de um estado norte-americano específico para lhes atri- buir um valor mítico, esta escritora universaliza as experiências humanas, facto esse que é notório em “The displaced person”. Mr. Guizac e família exemplificam os mais de doze milhões de pessoas que viviam na Europa numa situação de deslocados, deambulando pelas estradas, ou sobrevivendo em campos de acolhimento após o término da segunda guerra mundial. Em 1948, ao abrigo da “Displaced Persons Act” Condições da hospitalidade em “The displaced person” de Flannery O’Connor 43

(lei para as pessoas deslocadas, ou seja, os refugiados), duzentos mil euro- peus foram autorizados a entrar nos Estados Unidos, facto que, não sendo referido explicitamente em “The displaced person”, subjaz a todo o conto. Afinal, não são as leis estatais que determinam as ações das personagens; essas, como refere Derrida, impõem-se na sociedade ocidental desde o Iluminismo “par contrat ou convention. Ce sont des prothèses” (2008, p. 71). “The displaced person” reflete e supera a artificialidade da convenção. Reflete, dado a lei estatal incentivar medidas para a integração dos refugia- dos; supera, na medida em que há uma outra convenção cultural convertida em atitude ética que condiciona essa mesma integração. A estranheza face às ações e hábitos do refugiado, designadamente a incompreensão da lín- gua, desperta nos habitantes locais resistências inultrapassáveis que condu- zem ao desmoronamento de uma esperança de integração pacífica. Como afirma Sarah Gordon, O’Connor explora “the dark side of human nature” (2003, p. 121), pelo que se nota “the absence throughout her fiction of the plain old milk of human kindness, of love in any human relationship, of simple friendship” (idem, p. 95). Destarte, a presença do refugiado, pelos desequilíbrios que desencadeia na micro-sociedade onde acaba inserido, potencia uma zona cinzenta onde razão e sentimento, justiça e exploração se mesclam apocalipticamente. Dado o contexto histórico, acolher um refugiado poderia converter- -se em redenção; neste conto, porém, o processo converte-se em pesadelo moral. Mrs. McIntyre, dona de uma propriedade agrícola, é persuadida por um padre católico a receber uma família de refugiados. No entanto, a sua integração redunda no irromper de sentimentos contraditórios, incompa- tíveis com a mera ação de exercer o bem pelo resgate daqueles que teriam experimentado o horror da guerra. Assim se problematiza a questão do acolhimento: o entendimento do outro inviabiliza-se progressivamente, pelo que a possibilidade da prática do bem acaba por ser tão tentadora quanto inconcretizável. Ainda que se referindo a refugiados políticos, Derrida diagnostica as condições de hospitalidade, denunciando o aproveitamento económico que dele sempre decorre. Segundo este filósofo, para quem acolhe, “é absolu- tamente necessário que [o refugiado] trabalhe e não esteja sempre, sim- plesmente e totalmente, ao encargo do país que o acolhe” (2001, p. 34), para concluir que “o discurso sobre o refúgio, o asilo ou a hospitalidade tornam-se [...] puros alibis retóricos” (idem, p. 35). Se o universo ficcional de Flannery O’Connor se constitui enquanto microcosmos revelador das vivências humanas, então o alcance de “The displaced person” supera tanto 44 Lígia Bernardino

as fronteiras espaciais do estado da Georgia, como o tempo histórico que determinou a abertura das fronteiras americanas a europeus sem cidadania a partir de 1948. A questão da utilidade do refugiado para o país de acolhimento, conforme enunciado por Derrida, está também patente neste conto, por intermédio sobretudo de Mrs. McIntyre, a dona da quinta que recebe Mr. Guizac. De facto, olhando para ele, e após enumerar as despesas acumu- ladas na gestão da quinta, comenta: “‘He has to work! He wants to work!’ She turned to Mrs. Shortley with her bright wrinkled face. ‘That man is my salvation!’” (O’Connor 2009, p. 203). As conotações atribuíveis a esta última palavra são características de Flannery O’Connor: a salvação adquire um valor duplo por referir-se economicamente à manutenção da quinta e religiosamente a um resgate espiritual, como se a presença do refugiado fosse uma revelação em curso. Do elogio inicial à rejeição final, porém, fica o conflito moral que leva à perdição da dona da quinta. Por outro lado, o sofrimento do refugiado é intuído pelas imagens à distância que as personagens locais conhecem. Há, sobretudo, uma que antecede o encontro da família dos refugiados: os cor- pos nos campos de concentração nazis. A violência das imagens poderia incitar sentimentos de compaixão. No entanto, o preconceito e o medo da alteridade sobrepõem-se à ética:

Mrs. Shortley recalled a newsreel she had seen once of a small room piled high with bodies of dead naked people all in a heap, their arms and legs tangled together, a head thrust in here, a head there, a foot, a knee, a part that should have been covered up sticking out, a hand raised clutching nothing. Before you could realise that it was real and take it into your head, the picture changed and a hollow-sounding voice was saying, ‘Time marches on!’ This was the kind of thing that was happening every day in Europe where they had not advanced as in this country, and watching from her vantage point, Mrs. Shortley had the sudden intuition that the Gobblehooks, like rats with typhoid fleas, could have carried all those murderous ways over the water with them directly to this place. (O’Connor 2009, p. 196)

A descrição expressionista enfatiza o grotesco que invade a imaginação de Mrs. Shortley, uma trabalhadora da quinta e confidente de Mrs. McIntyre que se sente ameaçada pela presença dos refugiados. As imagens evocadas são duras, mas menos penosas para a personagem do que a repulsa sentida face à presença do refugiado: o horror nunca atravessaria o oceano se os refugiados se mantivessem na Europa. Objetivamente, nada há a temer em Condições da hospitalidade em “The displaced person” de Flannery O’Connor 45

Mr. Guizac; nos meandros da mente de Mrs. Shortley, quase que profe- ticamente antecipando a desgraça que cairá sobre os dois em momentos distintos, o perigo de contágio transforma-se numa apocalíptica praga de ratos. Mais do que uma imagem grotesca, trata-se do grande significante que determina o acolhimento de Mr. Guizac e família. Segundo palavras da autora, num ensaio escrito em 1960, a presença do grotesco tão característico da sua obra resulta de um ato de escrita em que o concreto surge “in a more drastic way” (1960); por outras palavras, a rea- lidade empírica representa-se através de um “way of distortion” (ibidem). Deste modo, em vez de proceder a um mero retrato realista do quotidiano, O’Connor pretende desvelar o invisível que precede o ato individual ou coletivo, as pulsões que o incitam e cujos efeitos nem sempre se conciliam com os padrões éticos aberta e quantas vezes superficialmente apregoa- dos. Ao fazê-lo, alarga o sentido primeiro das suas narrativas, que buscam significações para além do circunstancial. Como afirma Edward Kessler, cada metáfora na obra de O’Connor “is a microcosm: the ever-present, ever-varying conjunction of the known and the unknown” (2017, p. 12), independentemente do tempo e do lugar. Portanto, a saga de Mr. Guizac, as reações que a sua vida suscita, as vicissitudes da sua existência problemati- zam experiências semelhantes de todos os tempos e lugares. As personagens criadas por esta autora, e usando palavras suas, “seem to carry an invisible burden” (O’Connor, 1960). Ora, esse peso em “The displaced person” nota-se, por um lado, na desconfiança, rejeição e cumpli- cidade das personagens que observam o refugiado; por outro, deteta-se no afã deste para garantir o trabalho e, com ele, a permanência em território americano, até porque, de acordo com a referida lei dos refugiados, apenas ficariam nos Estados Unidos aqueles que garantissem modo de sustento e não ocupassem postos de trabalho dos cidadãos desse país. Há, entre a comunidade de acolhimento, uma visão pré-concebida dos refugiados. Eles trazem consigo a marca da devastação, cicatriz difícil de superar e de que as imagens aludidas são a prova mais lancinante. A língua, por seu turno, atesta uma forma de vida e uma cultura diferentes. A foca- lização interna da primeira parte centrada em Mrs. Shortley desmascara a resistência atávica das personagens locais face ao imprevisto, face à alteri- dade, ainda que as evidências não justifiquem tal rejeição: “the first thing that struck her as very peculiar was that they looked like other people” (O’Connor 2009, p. 195). A semelhança física, no entanto, tem como con- traponto não só os atos de Mr. Guizac, marcados pela tenacidade e eficácia no trabalho, mas também pela desconfiança das personagens face a esses 46 Lígia Bernardino

mesmos atos, como se neles adivinhassem uma intenção insondável de pôr em perigo o até então conhecido, mesmo se tal fosse – como efetivamente era – uma sociedade retrógrada e hierarquizada. Aquém de uma racionalidade superadora de barreiras culturais, as personagens de “The displaced person” observam os refugiados a partir de sentimentos íntimos e primários, incapazes de uma empatia com o novo que desestabiliza todo o seu status quo. Os raciocínios elaborados não têm por fim encontrar um modo de compatibilização, mas reforçam progressi- vamente o desconforto pela presença do outro:

The trouble with these people was that you couldn’t tell what they knew. Every time Mr. Guizac smiled, Europe stretched out in Mrs. Shortley’s imagination, mysterious and evil, the devil’s experiment station. (O’Connor 2009, p. 205)

Uma rejeição suscitada pelo sorriso do outro: a empatia inviabiliza-se devido a sentimentos íntimos de repulsa justificados pelas imagens terríveis da Alemanha nazi. A consciência de que estes refugiados permaneceriam na vizinhança intensificam o medo de contágio do mal. A morte consentida ou suscitada de Mr. Guizac representa o corolário dessa rejeição, ao mesmo tempo que problematiza a questão da banalidade do mal, não somente por- que ninguém impede a morte do refugiado, mas também pela própria insí- dia do quotidiano, que impede qualquer forma de integração. Ainda segundo Flannery O’Connor, “fiction begins where human knowledge begins – with the senses – and every fiction writer is bound by this fundamental aspect of his medium” (1960). Há, portanto, uma sen- sibilidade a explorar que, em “The displaced person”, parte de um facto concreto, os refugiados da segunda guerra mundial, para uma análise do comportamento humano quando confrontado com a alteridade.

2. Movimento dos refugiados

A propósito da imigração nos Estados Unidos, Hannah Arendt comenta em nota de rodapé na obra As Origens do Totalitarismo, publicada pela primeira vez em 1951 e sucessivamente reeditada, que este país “sempre considerou quaisquer recém-chegados como seus próprios cidadãos em potencial, independentemente da nacionalidade anterior” (2016, p. 367). Talvez a palavra-chave aqui enunciada seja “potencial”, dado não implicar uma concreta e incontestável aceitação do outro. De facto, o acolhimento obedece a regras estritas, o que é exacerbado na Displaced Persons Act de Condições da hospitalidade em “The displaced person” de Flannery O’Connor 47

1948, no âmbito da qual uns vizinhos polacos da autora terão entrado nos Estados Unidos, conforme refere Dave Griffith (2015). Por isso Flannery O’Connor terá ficcionado Mr. Guizac e família como parte integrante desse conjunto de refugiados então admitidos no seu país. Se esta lei representou uma esperança para aqueles que, na Europa do pós-segunda guerra mundial, viviam uma condição de apátridas, resultante do que Hannah Arendt denomina de “desnacionalizações em massa” (2016, p. 368), por outro lado, havia sempre o risco de retorno a uma situação de apátrida, cuja consequência incluiria a perda do estatuto de refugiados. Segundo Arendt,

[a]té a terminologia aplicada ao apátrida se deteriorou. A expressão «povos sem Estado» pelo menos reconhecia o facto de que essas pessoas haviam per- dido a protecção do seu governo e tinham necessidade de acordos interna- cionais que salvaguardassem a sua condição legal. A expressão ‘deslocados de guerra’ (displaced persons) foi inventada durante a guerra com a finalidade única de liquidar o problema dos apátridas de uma vez por todas, por meio do simplório expediente de ignorar a sua existência. (Arendt 2016, p. 370)

Desde o início, portanto, a designação de “displaced person” adquire um cunho pejorativo, que o conto homónimo de Flannery O’Connor con- firma. Neste caso, e de novo atestando a dualidade permanente da sua obra, ou, como refere Asals Frederick, a sua “attraction to polarities” (2007, p. 1), que a leva a mover-se entre “two poles at once” (Frederick 2007, p. 67), o distanciamento da situação de guerra torna-se, para Mr. Guizac, motivo de aplicação ao trabalho, assim cumprindo com um dos requisitos da integra- ção. Por outro lado, a experiência passada aguça-lhe o sentimento de solida- riedade para com os que permaneciam no seu país de origem e continuavam a atravessar as dificuldades de que ele e a sua família já não padeciam. Mas Mr. Guizac, como acima referido, não conta a sua história, pelo que é pelos seus atos que se depreende a conformidade com os refugiados europeus que a primeira metade do século XX produziu. Portanto, perce- ber esta personagem implica conhecer o drama dos milhões de pessoas em trânsito pela Europa nesse período de tempo. Muitos tornaram-se refugia- dos, como os que passaram por Portugal durante a segunda guerra mun- dial, até encontrarem um país de acolhimento, especialmente no continente americano. Outros, circulavam de país em país, tornando-se apátridas e, como descreve Arendt, “quando perdiam os seus direitos humanos per- diam todos os direitos: eram o refugo da Terra” (2016, p. 353). O acolhi- mento era pois para eles o resgate a tal condição. 48 Lígia Bernardino

Se Mrs. McIntyre encarava Mr. Guizac como uma possibilidade de sal- vação, também Mr. Guizac consideraria o seu novo trabalho como um res- gate salvífico. A descrição que faz da prima ainda aprisionada num campo de refugiados na Europa é significativa:

“She six-teen year”, he said. “From Poland. Mamma die, pappa die. She wait in camp. Three camp.” He pulled a wallet from his pocket and fingered through it and took out another picture of the same girl, a few years older, dressed in something dark and shapeless. She was standing against a wall with a short woman who apparently had no teeth. “She mamma”, he said, pointing to the woman. “She die in two camp.” (O’Connor 2009, p. 223)

O traço realista deste discurso num Inglês torpe apresenta-se consen- tâneo com os relatos de outros apátridas. O drama da sobrevivência em campos de internamento (única forma possível de existência na Europa para refugiados) era suficientemente violento para justificar cedências, incluindo arranjar casamentos desiguais, como o proposto por Mr. Guizac a Sulk, um dos negros que trabalhava na quinta de Mrs. McIntyre. Por isso, face ao sentimento de repulsa demonstrado por esta, o refugiado limita-se a responder: “she no care black […] She in camp three year” (ibidem). Sendo para O’Connor a distorção um processo privilegiado na construção das suas narrativas, neste extrato, mais do que a questão linguística, salientam- -se o horror do vivido pelos refugiados, bem como a incompreensão desse mesmo horror por parte daqueles que os acolheram. A solidariedade demonstrada por Mr. Guizac em relação à prima revela o apego que os refugiados mantêm com os seus países de origem, conforme Arendt refere. Por outro lado, a sua presença no novo país (como a pre- sença dos restantes deslocados que acederam aos Estados Unidos a partir de 1948) transporta consigo a Europa, com todas as imagens de guerra que então lhe estavam associadas. A propósito de todos os refugiados que afluí- ram a Portugal por altura da segunda guerra mundial, Irene Flunser Pimentel comenta que “com os refugiados, a Europa ‘chegou’ a Portugal” (2006, p. 368). Algo de semelhante acontece com a família dos Guizac e a sua presença imposta à comunidade local do estado da Georgia. Porém, a Europa que chega é acompanhada das imagens de horror dos campos de concentração, donde o medo e a crescente rejeição do refugiado e da sua família. O ponto de viragem de “The displaced person” prende-se a uma estra- nheza resultante de fatores culturais e experienciais: não só o refugiado apa- renta possuir conhecimentos superiores aos demais, como terá enfrentado realidades de uma dureza inimaginável para eles. Por isso, Mrs. McIntyre Condições da hospitalidade em “The displaced person” de Flannery O’Connor 49

interpreta como uma espécie de sacrifício intolerável um ato de salvação, que seria o casamento da jovem de ar angelical com um trabalhador rural negro. Nessa altura, advém todo o preconceito da sociedade em que a dona da quinta vive. Como numa iluminação, o refugiado transforma-se para ela em alguém “smart, thrifty and energetic” (O’Connor 2009, p. 224), ao passo que a sua aparência se fragmenta até parecer um monstro, cuja face “might have been patched together out of several others” (p. 222). De novo a distor- ção, sugerida pela fragmentação do corpo em partes que recorda os corpos dos campos de concentração nazis, mas que reflete também a técnica de criação de O’Connor, como refere Sarah Gordon (2003, p. 121). Mr. Guizac não estava na propriedade de Mrs. McIntyre em trânsito: ele e a família firmariam residência naquele local, alterando umstatus quo marcado por uma hierarquização em que os Negros e trabalhadores bran- cos tinham já as suas estratégias consentidas e consolidadas de sobrevivên- cia. Por isso, a repulsa pelo refugiado vai crescendo no inconsciente de Mrs. McIntyre: “the Pole never did anything the wrong way but all the same he was very irritating to her” (p. 230). Dave Griffith aponta a “dark moral force” (2015) deste conto, em que se deteta um gradual aumento de violência, como se, mais do que contagiante, fruto da maldade nazi que se reconhecia a partir das imagens dos campos de concentração, ela grassasse nos meandros da mente humana. Por isso, Mrs. McIntyre sente as batidas do seu coração “as if some interior violence had already been done to her” (O’Connor 2009, p. 224). Ao considerá-lo não ape- nas como qualquer outro trabalhador, mas generalizando-o como se equi- valesse a qualquer outro deslocado que vinha apenas perturbar a paz local, esta personagem revela a rejeição latente da alteridade, sentimento que se superioriza a qualquer discurso de tolerância ou argumentação racional.

3. O silenciamento da experiência

Mr. Guizac é um refugiado polaco que nunca conta a sua história: O’Connor opta por narrar as suas ações através da focalização de outras personagens, assim provocando um efeito de distanciamento. Ao fazê-lo, silencia-o, o que se coaduna com a atitude da população local. No entanto, através desse silenciamento, não só se intensifica a perceção de que quem o observa cairá na tentação de o rejeitar inapelavelmente, como se intensifica o seu drama. Afinal, nota-se em “The displaced person” uma incompreensão liminar por parte das gentes locais, que assim revelam uma indigência de experiência condicionadora do sentimento de hospitalidade para com a família Guizac. 50 Lígia Bernardino

O elemento que caracteriza o chefe de família é a sua inesgotável força de trabalho, desumanizando-o aos olhos dos negros, de Mr. Shortley e até de Mrs. McIntyre. Visto superficialmente, parece um autómato, cuja força de trabalho põe em causa os empregos dos restantes trabalhadores locais. O silêncio desta personagem – por não falar Inglês e por comunicar apenas o essencial para o desenvolvimento do seu trabalho – determina a incom- preensão a que é votado no país de acolhimento. No entanto, tal favorece a criação de situações como as que Walter Benjamin denomina de “grande barbárie” (2008, p. 74), quando reflexo de uma incapacidade de relatar e, portanto, de difundir a tragédia vivida. Deste modo, qualquer possibilidade de empatia com o sofrimento experienciado fica posta em causa. Mr. Guizac não tem voz: porque não fala Inglês, ou aprende-o muito a custo. Logo, este refugiado é permanentemente vítima de ostracismo. Em palavras de Mrs. McIntyre, e após a exteriorização da sua repulsa, “he’s extra […]. He doesn’t fit in” (O’Connor 2009, p. 225). Sem voz, resta o trabalho, que era até obrigatório enquanto garantia de permanência, conforme legis- lado na lei para os deslocados de 1948. Assim, Mr. Guizac acaba vítima de um oportunismo que as circunstâncias permitiam. Estando para além da espera, pois encontrou já o que lhe parecia a boia de salvação, estando instalado e a construir uma nova vida, resta-lhe disponibilizar o seu esforço e conhecimento técnico, ainda que olhando para uma Europa onde perma- neciam focos de totalitarismo. Como sustenta Arendt, no século XX, a Humanidade “concebida durante tanto tempo à imagem de uma família de nações, havia alcançado o estágio em que a pessoa expulsa de uma dessas comunidades rigidamente organizadas e fechadas se via expulsa de toda a família de nações” (2016, p. 389). Talvez Mr. Guizac se apercebesse da fragilidade da sua condição de novo imigrante em condições específicas. Curvatura nas costas, óculos redondos dourados e o facto de beijar a mão de Mrs. McIntyre quando a conhece sugerem alguém de educação superior, que só é aceite mediante o compromisso de trabalhar sem ocupar o emprego de outros, sendo um tra- balhador agrícola, como constante numa das cláusulas da lei dos deslocados da segunda guerra mundial. Donde a vontade de mostrar-se empenhado, de ser um trabalhador exemplar, até denunciando os pequenos delitos dos trabalhadores negros, por exemplo. Na quinta que agora é o seu local de trabalho, ele conduz um trator e usa máquinas que lavram a terra, às vezes junto a uma sepultura. O valor simbólico é nítido, semelhante ao escrito por Paul Celan, no célebre poema “Fuga da morte”. Nele, este poeta de língua alemã evoca o trabalho dos Condições da hospitalidade em “The displaced person” de Flannery O’Connor 51

Judeus através de imagens poderosíssimas, que confluem para a violência de túmulos por si cavados: “cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos parados” (1952, p. 15), ou “saem os seus judeus manda abrir uma vala na terra / ordena-nos agora toquem para começar a dança” (ibidem). O ato de cavar ou revolver a terra anuncia a inevitabilidade de um fim trágico e injustificável. Tal como acontece com Mr. Guizac: ele ignora que o trator por si habilmente manobrado irá atropelá-lo, matando-o. A sepultura por onde passa ao lavrar ou ceifar os campos anuncia a sua morte, ao mesmo tempo que denuncia a fragilidade da condição de refugiado. Aparentemente, o silêncio de Mr. Guizac denuncia também uma desa- tenção: empolgado pelo que parece ser o culminar de drama começado na Europa, Mr. Guizac não percebe a desconfiança e a rejeição circundantes. Donde a surpresa pela abordagem de Mrs. McIntyre:

“I cannot understand how a man who calls himself a Christian,” she said, “could bring a poor innocent girl over here and marry her to something like that. I cannot understand it. I cannot!” and she shook her head and looked into the distance with a pained blue gaze. After a second he shrugged and let his arms drop as if he were tired. (O’Connor 2009, p. 223)

Em Mrs. McIntyre, o preconceito das uniões interraciais une-se à des- confiança face à alteridade, como se o estrangeiro se tornasse numa ima- gem diabólica, ao ponto de evocar o cristianismo do refugiado polaco. Este relativiza a desigualdade da união face ao sofrimento anteriormente vivido. A inexistência de uma experiência semelhante e a impossibilidade de conhecê-la devido ao silêncio do refugiado, que significativamente enco- lhe os ombros, corrói qualquer réstia de solidariedade que Mrs. McIntyre pudesse manter. Mr. Guizac encolhe os ombros, como se desistisse, ou como se conformasse à incompreensão do seu país de acolhimento. Segundo Derrida, a hospitalidade não pode ser confundida com exílio: os exilados solicitam a hospitalidade; o local de exílio pode, ou não, con- cedê-la. Mais do que uma questão moral, de leis ou de acordos particulares, trata-se de uma questão prática e empírica de aceitação:

le fait d’être chez-soi hors de chez-soi, est une scène à la fois d’exil et d’hospi- talité, les exilés, ceux qui demandent l’asile, l’hospitalité, ne sont pas chez-eux, ils cherchent un chez-eux, et voilà l’homme qui reçoit ou ne reçoit pas, dans ce point d’eau qui est une source, une ressource pour les hôtes ou les hôtes exilés ou ceux qui demandent asile. (Derrida 2008, p. 329) 52 Lígia Bernardino

Pensando ter finalmente chegado à sua casa, Mr. Guizac depara-se com a manutenção de uma vulnerabilidade: ele é um hóspede que pode, ou não, ser bem recebido. Não estando em trânsito, ele é um refugiado que experiencia uma hospitalidade sem a efetivação de um exílio, pois acaba por morrer. Procurando a construção de uma casa que fosse verdadeiramente sua, defronta-se apenas com a desconfiança, a intriga, a incompreensão, nunca se anunciando a superação da diferença cultural entre o exilado e os habitantes do local de acolhimento. A experiência silenciada de Mr. Guizac torna-o mero elemento da paisagem, olhado e comentado pelos outros, precisando de um tradutor. Este é o seu filho, uma criança sem experiência relevante e consciente a transmitir, mero intermediário de comunicação. Tal diferimento obstaculiza o entendimento no país que o acolhe, criando um interdito que distancia Mr. Guizac da comunidade em que foi inserido e que impede a sua salvação. Conforme explica Jacques Derrida, “quand on interdit l’accès à une langue, on n’interdit aucune chose, aucun geste, aucun acte. On interdit l’accès au dire, voilà tout, à un certain dire” (1996, p. 58). Portanto, enquanto portadora de uma realidade experien- ciada, a língua permite uma abertura ao conhecimento que, em “The dis- placed person”, se torna infrutífera, pois o refugiado não tem meios para expressar-se senão pelos gestos e atos. O seu percurso é, assim, de queda.

4. Dúbia ética da receção

A crescente e visceral repulsa de Mrs. McIntyre pelo refugiado revela um desconcerto ético. Ela quer despedir Mr. Guizac, di-lo aos outros emprega- dos e ao padre, mas nunca concretiza tal determinação, talvez porque não haja justificação palpável para o fazer. Esta atitude, de resto, corresponde ao perfil desta personagem: ela nunca despedira ninguém. Os trabalhadores iam sempre embora antes do despedimento, como aconteceu com a família Shortley. No entanto, a progressiva inquietação e até o definhamento de Mrs. McIntyre comprovam a singularidade da situação vivida: em causa não está a incapacidade ou incompetência de Mr. Guizac; em causa estão prerrogativas morais. O refugiado polaco chega ao estado norte-americano da Georgia por intermédio de um padre católico. Mas não se trata apenas de um refugiado individual: trata-se de alguém que esteve num campo de acolhimento euro- peu, que as gentes locais associam às imagens grotescas dos campos de concentração nazis. Ele é, portanto, um símbolo do horror que avassalou a Europa durante a segunda guerra mundial. Segundo Slavoj Žižek, “although Condições da hospitalidade em “The displaced person” de Flannery O’Connor 53

our power of abstract reasoning has developed immensely, our emotion- al-ethical responses remain conditioned by age-old instinctual reactions of sympathy to suffering and pain that is witnessed directly” (2008, p. 36). Terá sido esse tipo de empatia, associado ao desejo de aumentar a eficácia e produção da propriedade agrícola, que levou Mrs. McIntyre aceitar a pro- posta do padre. O desejo material de enriquecimento une-se ao sentimento ético de fazer o bem, ou ao instinto de agir contra o horror. A resistência à alteridade, porém, assume proporções inesperadas. Ainda Žižek:

Today’s liberal tolerance towards others, the respect of otherness and openness towards it, is counterpointed by an obsessive fear of harassment. In short, the Other is just fine, but only insofar as his presence is not intrusive, insofar as this Other is not really other… Tolerance coincides with its opposite. (Žižek 2008, p. 35)

A queda do refugiado tem como contraponto a queda de Mrs. McIntyre, enraizada no medo que se torna obsessivo de um contágio cujos efeitos ten- deriam à derrocada do estilo de vida local. Aprisionada entre vontade de fazer o bem, obter lucro e a uma crescente diabolização do refugiado, Mrs. McIntyre encontra o seu próprio apocalipse. “The displaced person” problematiza a questão da hospitalidade, sendo o hóspede constituído por uma legião de refugiados convertidos em alteri- dade ameaçadora e sem retorno. Mr. Guizac terá de garantir a permanên- cia, assim como muitos milhares iguais a si, o que, para quem os recebe, representa uma instabilidade de consequências imprevisíveis. A principal voz de oposição ao refugiado, Mrs. Shortley, imagina até uma guerra de palavras, em que o Inglês seria invadido por termos polacos, numa mis- cigenação diabólica, convertida numa imagem idêntica à dos campos de concentração nazis. A exclamação face a tal cenário é clara: “God save me, she cried silently, from the stinking power of Satan” (O’Connor 2009, p. 209). Já antes Mrs. Shortley indiciara o alcance do perigo:

“They come from over the water,” Mrs. Shortley said with a wave of her arm. “They’re what is called Displaced Persons.” “Displaced Persons,” he said. “Well now. I declare. What do that mean?” “It means they ain’t where they were born and there’s nowhere for them to go – like if you was run out of here and wouldn’t nobody have you.” “It seem like they here, though,” the old man said in a reflexive voice. “If they here, they somewhere.” “Sho is,” the other agreed. “They here.” 54 Lígia Bernardino

The illogic of Negro-thinking always irked Mrs. Shortley. “They ain’t where they belong to be at,” she said. “They belong to be back over yonder where every thing is still like they been used to. Over here is more advanced than where they come from.” (O’Connor 2009, p. 199)

A inversão moral verifica-se no tom dúbio com que Mrs. Shortley define estes deslocados: não têm para onde ir, mas não pertencem ao local onde são integrados. Por outras palavras, a sua condição de apátridas per- manece, pelo que facilmente podem ser expurgados de direitos huma- nos, como explica Arendt. Tal aporia caracteriza o relacionamento de Mr. Guizac – e por sinédoque, a de tantos outros refugiados – com a região de acolhimento: sem direito a defesa pelo silêncio mantido, pelo silêncio que lhe é incutido. A sua presença traz à superfície as pulsões mais intolerantes dos cidadãos locais, que se predispõem à sufocação do que não compreen- dem ou se recusam a compreender. No desfasamento claro e insolúvel entre as experiências vividas pelo refu- giado e o que as restantes personagens apreendem dos seus atos, o refugiado expõe-se à condição de homo sacer que, como Giorgio Agamben teoriza, é alguém exposto na sua vida nua. Nesta condição, experienciam-se situa- ções de total desguarnecimento, podendo os homini sacer ser aprisionados sem crime ou retidos em campos sem direito a qualquer defesa jurídica. Sobrevivente à morte, Mr. Guizac assemelha-se ao que Agamben considera no seu estudo sobre o homo sacer como “incompatível com o mundo humano. […] Não pode em modo nenhum habitar a cidade dos homens” (Agamben 1995, p. 99). Talvez seja essa a convicção inconfessada da dona da proprie- dade e seus empregados. Assim sendo, longe de centros de poder, isolado na quinta de Mrs. McIntyre, o refugiado deste conto está exposto à exclusão e à rejeição, sujeito a uma lei informal de convenções sociais particulares. Gerado e consolidado o desequilíbrio, resta encontrar os argumentos que justifiquem a rejeição: “It is not my responsibility that Mr. Guizac has nowhere to go […]. I don’t find myself responsible for all the extra people in the world” (O’Connor 2009, p. 226), argumenta Mrs. McIntyre perante o padre. A desresponsabilização surge, pois, como sustentação do que intui- tivamente percebe como falha ética: a abulia irrecuperável de que é aco- metida após a morte de Mr. Guizac comprova o sentimento de culpa face à rejeição a que o votou, sentimento esse comum às restantes personagens, dado optarem por partir da quinta. Ironicamente, e numa espécie de processo de reversão, todas as per- sonagens se convertem em displaced persons, porque todas (à exceção do Condições da hospitalidade em “The displaced person” de Flannery O’Connor 55

padre) perdem a sua zona de conforto, seja fisicamente, como os traba- lhadores que partem, ou Mrs. Shortley que morre, seja psicologicamente, como Mrs. McIntyre, retida numa semi-inconsciência que somente o padre reconforta. Assim, negar a alteridade transforma-se neste conto num pro- cesso de queda. Žižek alerta para a aparente contradição segundo a qual a “limitation of our ethical concern to a narrow circle seems to run counter to our spontaneous insight that we are all humans” (2008, p. 41). Porém, perante o diverso, essa perceção dilui-se. Nesta ordem de ideias, nunca Mr. Guizac foi incluído nas dinâmicas daquela comunidade restrita da quinta. Dizendo ao padre que “Christ was just another D.P.” (O’Connor 2009, p. 229), Mrs. McIntyre traça o destino do refugiado, assim denunciando qual- quer vontade de efetivamente prover à sua integração, ao mesmo tempo que adivinha o sacrifício iminente. Portanto, não se concretiza, em “The displaced person”, o ideal de uma metafísica da humanidade, para além de credos, costumes, língua, expe- riências ou proveniência geográfica. São precisamente os aspetos culturais que determinam o destino trágico do refugiado de Flannery O’Connor. Já em 1958, numa das primeiras críticas a este conto, Louis D. Rubin, Jr. refere que, antes da chegada dos refugiados, as restantes personagens do conto “are in Eden, but the evil of our times impinges” (p. 37). Estas pala- vras denotam um sentimento de corrosão provocada pelo aparecimento do que é estranho, e é a partir desta aceção que o ensaísta interpreta o castigo final das personagens e a dissolução de toda a dinâmica da quinta. Este tipo de apreciação tende a leituras religiosas de penitência. Segundo Asals Frederick, por exemplo, “[O’Connor’s] lifelong Catholicism was a crucial – if finally indeterminate – factor in the shaping of her imagination” (2007, p. 3). É, todavia, a consciência nítida da difícil transposição de barreiras culturais e de impulsos primários de rejeição, sem reticências éticas, que este conto enfatiza. “The displaced person” amplifica a questão dos refugiados para além do domínio da lei. Dadas as condições da hospitalidade dependerem sempre do perfil e contextos de quem os acolhe, este conto expõe quanto a aceitação da alteridade é condicionada pela relutância no exercício da solidariedade e pelos contornos violentos que um acolhimento indesejável suscita. Dentro da lei dos estados, mas distantes das convenções sociais estabelecidas; tra- balhando para a integração, mas pensando-se sempre cidadãos de um terri- tório que lhes rejeitou a cidadania, os refugiados tais como os descritos em “The displaced person” habitam uma zona cinzenta em que a hospitalidade facilmente cai num dúbio conflito de experiências, atos e vontades. 56 Lígia Bernardino

Referências

Agamben, G. (1998). Homo Sacer, ed. utilizada: Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Lisboa: Presença [1995]. Arendt, H. (2016). The Origins of Totalitarianism, ed. utilizada: As Origens do Totalitarismo, 6ª ed., Alfragide: Dom Quixote [1951]. Benjamin, W. (2008). Erfahrung und Armut; ed. utilizada: Experiência e indigência. In O Anjo da História (pp. 207-241). Lisboa: Assírio & Alvim [1933]. Celan, P. (1996). Todesflucht; ed. utilizada: Fuga da morte. In Sete Rosas Mais Tarde (pp.15-16). Lisboa: Cotovia. Derrida, J. (1996). Le Monolinguisme de l’autre – ou la prothèse d’origine, Paris : Galilée.

_____, (2001). Cosmopolitas de Todos os Países mais um Esforço. Coimbra: Minerva.

_____, (2008). Séminaire. La Bête et le Souverain. Paris: Galilée. Frederick, A. (2007). Flannery O’Connor: The Imagination of Extremity. Athens: The University of Georgia Press [1982]. Gordon, Sarah (2003). Flannery O’Connor: The Obedient Imagination. Athens/London: The University of Georgia Press [2000]. Griffith, D. (2015). Disponível: https://www.theparisreview.org/blog/2015/12/10/the-dis- placed-person/ : Consultado em agosto 2017. Kessler, E. (2017). Flannery O’Connor and the Language of the Apocalypse. New Jersey: Princeton University Press [1986]. O’Connor, F. (2009). The displaced person; ed. utilizada: Complete Stories (pp. 194-235). Londres: Faber and Faber [1954].

_____, (1960). Some Aspects of the Grotesque in Southern Fiction. Disponível: http:// www.openculture.com/2013/04/listen_as_flannery_oconnor_reads_some_aspects_ of_the_grotesque_in_southern_fiction_c_1960.html. Consultado em agosto 2017. Pimentel, I. (2006). Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial. Em fuga de Hitler e do Holocausto. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2008. Rubin Jr., Louis D. (2004). Flannery O’Connor: A note on literary fashions. In: Douglas Robillard, Jr., (eds) The Critical Response to Flannery O’Connor (pp. 14-18). Westport, Connecticut, London: Praeger [1958]. Sharp, Jolly, K. (2011). Between the House and the Kitchen Yard. The masks of Flannery O’Connor. Georgia: Mercer University Press. Žižek, S. (2009). Violence, Londres: Profile Books [2008].

[recebido em 5 de setembro de 2017 e aceite para publicação em 5 de janeiro de 2018] MIGRATIONS, POLITICAL BORDERS AND THE DIGITAL REALM. FORMS OF (IN)VISIBILITY AND DISRUPTIVE STRATEGIES IN LITERARY AND ARTISTIC ACTIVISM MIGRAÇÕES, FRONTEIRAS POLÍTICAS E MUNDO DIGITAL. FORMAS DE (IN)VISIBILIDADE E ESTRATÉGIAS DISRUPTIVAS NO ATIVISMO LITERÁRIO E ARTÍSTICO

Paulo Silva Pereira * [email protected]

Many studies have addressed the issue of migration and displacement, one of the main geopolitical challenges of our time, but far fewer have analysed it using an interdisciplinary framework and selecting literary and artistic practices from a transnational context. The purpose of this paper is to describe the way in which the artists use the specificity ofmedium and mechanism in their projects to reflect on the current migratory crisis and forced migration, to critique the securitization or the politics of immigration in recent years and to explore a tactical use of tech- nologies in order to expand public consciousness and political debate. It is directly focused on the migratory processes involving Mexicans who go to the United States and its connection to the complex political imaginary of these regions, and on the relationship between identity and marginalization, particularly the influence of the conceptualization of migrants as the Other in contemporary European society. Based on the analysis of a series of case studies both from a theoretical and from an artistic point of view –, this research intends to understand how these projects explore forms of critical intervention, dissent or disruption of a dominant semiotic regime by stimulating critical thinking about consolidated narratives and sign sys- tems of identity and difference.

Keywords: migration, marginalization, activism, artistic practices, digital poetry.

Muitos estudos têm abordado a questão da migração e do desenraizamento, um dos principais desafios geopolíticos do nosso tempo, mas são em menor número os que levaram a cabo essa análise com base num quadro interdisciplinar e selecionando práticas literárias e artísticas de contexto transnacional. O objetivo deste artigo é

* Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas / Centro de Literatura Portuguesa / Programa de Doutoramento em Materialidades da Literatura, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Portugal. 58 Paulo Silva Pereira

descrever o modo como os artistas usam a especificidade do meio e do mecanismo nos seus projetos para refletir sobre a atual crise migratória e a migração forçada, criticar as estratégias securitárias ou a política de imigração nos últimos anos, ou explorar um uso tático de tecnologias para alargar a consciência pública e o debate político. Foca em especial os processos migratórios mexicanos com destino aos Estados Unidos e sua conexão com o imaginário político complexo dessas regiões e a relação entre identidade e marginalização, particularmente a influência da con- ceptualização dos migrantes como o Outro na sociedade europeia contemporânea. Partindo de vários estudos de caso – tanto do ponto de vista teórico, quanto artís- tico –, esta pesquisa pretende compreender como esses projetos exploram formas de intervenção crítica, dissensão ou disrupção de um regime semiótico dominante ao estimular o pensamento crítico sobre narrativas consolidadas e sistemas sígnicos de identidade e diferença.

Palavras-chave: migração, marginalização, ativismo, práticas artísticas, poesia digital.

1. The past decades have witnessed what might be described as an artis- tic orientation towards the social. Regardless of geographical location, this ‘social turn’ had a profound impact on the conventional modes of artis- tic production and consumption, transforming (in some cases, dramati- cally) the relationship between the art object, the artist and the audience. Claire Bishop, who has made important contributions to the theory of contemporary practices concerning the aesthetics of social participation or socially engaged art, coined this label by using it for the first time, in 2006, in the essay “The Social Turn: Collaboration and Its Discontents” (Bishop 2012, pp. 11-40) to refer to the thread of artistic practices that operate in a social context, especially outside the space of museums or galleries, and the greater involvement of artists with social issues, through participation and collaboration. More recently, in Artificial Hells: Participatory Art and the Politics of Spectatorship, she advocated that this phenomenon should be more accurately analyzed as “a return to the social, part of an ongoing history of attempts to rethink art collectively” (Bishop 2012, p. 3), having in mind previous moments, in the Western context, as the avant-garde move- ments of the beginning of 20th century and the 1960s. This growing field of artistic practices goes under a variety of names: ‘activist’, ‘interventionist’, MIGRATIONS, POLITICAL BORDERS AND THE DIGITAL REALM 59

‘community-based’, ‘cooperative’ or ‘participatory’ art, but theoretically a confusion persists about – and some resistance to – what we might refer to as ‘socially engaged’ art. Projects of participatory and collaborative art expose the limitations of dominant theories of art and open up new possi- bilities for meaningful interactions between creativity, literary practices, the arts, and the other domains of human action and life. Thanks to their col- lective and participatory nature, many projects “reintegrate art into society as cultural expression rather than as strictly personal gesture” (Finkelpearl 2013, p. 98). The concept of relational aesthetics, introduced by the French cura- tor and critic Nicolas Bourriaud, was an early and productive attempt to theorize what might be described as a ‘social turn’ in artistic practices and to explore some artworks from the 1990s that sought to stimulate various modes of social engagement. The opposition between relational and private sets the stage for a discussion of a new kind of work based on a context of interaction rather than isolation. As a matter of fact, Bourriaud offers an expanded vision of the artwork, rejecting the object-centered ontology of art that continued to dominate until then. The idea of a relational art, “an art taking as its theoretical horizon the realm of human interactions and its social context, rather than the assertion of an independent and private symbolic space, points to a radical upheaval of the aesthetic, cultural, and political goals introduced by modern art” (Bourriaud 2002, p. 14). As a consequence of the dynamic of reintegrating art into society, the contemporary work challenges artistic autonomy, imbuing its exemplars with a multiplicity of nonaesthetic values. As pointed out by Bourriaud, it is no longer possible to view the artwork as “a space to be walked through”, but as “a period of time to be lived through, like the opening of an unlim- ited discussion” (Bourriaud 2002), due to a radical change in the way it encounters other formations. 1 On the other hand, the fulfillment of socially

1 Alejandro G. Iñárritu and Emmanuel Lubezki’s virtual installation Carne y Arena (Virtually present, Physically invisible), which encourages debate about the human condition of immi- grants and refugees, stands as a fine example of how an artwork can operate under these condi- tions. This VR project, distinguished with a Special Achievement Oscar Award, seeks to capture a fragment of the migrants’ personal journeys crossing the desert along the U.S. – Mexico bor- der, creating an immersive experience for the public. Talking about Carne y Arena, Iñárritu recently noted: “my intention was to experiment with VR technology to explore the human condition in an attempt to break the dictatorship of the frame, within which things are just observed, and claim the space to allow the visitor to go through a direct experience walking in the immigrants’ feet, under their skin, and into their hearts” (retrieved from: ). Having premiered at the 70th Cannes Film Festival, the first exhibition was organized by the Los Angeles County Museum of Art in 2017 60 Paulo Silva Pereira

engaged art implies rethinking the individualistic conception of the role of the creator. The case studies considered here have in common forms of interven- tion, dissent or disruption of a dominant semiotic regime by stimulating critical thinking about consolidated narratives and sign systems of identity and difference. With a variety of connections, not only with other artistic movements but also with political and social organizations, they make the reader/viewer aware of what seemed non-existing because it was too ‘nor- mal’, too self-evident, and in fact too many times non-visible. Mobilizing different forms of display, they put in motion a tactical use of technologies in order to expand public consciousness and political debate. 2 What we are unable to perceive because it does not fit any of our frameworks must be made to become potentially visible, available for perception, and creative practices are designed to open up the visibility of situations. According to Jacques Rancière, one of the most influential philosophers of our time, whose work on consensus and dissensus in politics is relevant in understanding the essential role of voice and contestation within a com- munity, “politics exists when the natural order of domination is interrupted by the institution of a part of those who have no part. This institution is the whole of politics as a specific form of connection. It defines the common of the community as a political community […]” (Rancière 1999, p. 11-12).

and the project is currently presented in its extensive full version at the Fondazione Prada in Milan, but the amount of information publicly available is still very limited, because it is a site-specific installation and the visitors are not allowed to take pictures and videos of anything contained within. Notwithstanding, I will try to discuss, in the following section, some of the issues that this kind of experience presents, based on the promotional material. 2 To define or understand the concept of ‘Tactical Media’ in a strict way still remains a difficult task, since it is constituted through and as practice rather than by any formal characterization. However, most commentators who have written about this phenomenon would agree that it clearly derives from the movement that combined art, experimental media and political activ- ism in Amsterdam in the last decade of the 20th century, centered on figures such as David Garcia and Geert Lovink. From a theoretical point of view, the most decisive influence came from Michel de Certeau’s The Practice of Everyday Life, originally published in in 1980. In this work, Certeau clearly distinguishes tactics, i.e. short-term actions, from strategy, which deals with more future-oriented work. At the beginning of a book entirely dedicated to this sub- ject, Rita Raley provided a very productive definition of the major attributes at stake: “Generally taken to refer to practices such as reverse engineering, hacktivism, denial-of-service attacks, the digital hijack, contestational robotics, collaborative software, and open-access technology labs, ‘tactical media’ is a mutable category that is not meant to be either fixed or exclusive. If there were one function or critical rationale that would produce a sense of categorical unity, it would be disturbance. In its most expansive articulation, [it] signifies the intervention and disruption of a dominant semiotic regime, the temporary creation of a situation in which signs, messages, and narratives are set into play and critical thinking becomes possible” (Raley 2009, p. 6). MIGRATIONS, POLITICAL BORDERS AND THE DIGITAL REALM 61

In other words, the disagreement with and the challenging of consensus by those, no matter their condition, who are not part of the normal order plays a key role. It should be stressed that he also sees aesthetics as political and politics in aesthetic terms, emphasizing how it influences the partage du sensible (variously translated in English as “partition” or “distribution” of the sensible). The notion refers simultaneously to the conditions for sharing that establish the organization of a collectivity (‘partager’ as sharing) and to the sources of disruption or dissensus of that same order (‘partager’ as sepa- rating). Thepolice order is as a set of implicit rules and conventions which determine the distribution of roles within a community (what the author refers to as the “order of distribution of bodies into functions correspond- ing to their ‘nature’” 3) and the forms of exclusion which operate within it, founded on what he calls “the distribution of the sensible”. 4 It is obviously a place of political struggle made manifest when those groups or individu- als whose modes of perception are regarded as illegitimate (mere noise, or insensible) by a governing distribution of the sensible demand to be taken into account. This operation of partitioning the sensible, namely via the definition of who can say and hear what, where, and when, has a relevant value when we discuss forms of visibility, ways of doing and making, from those typically excluded. As we shall see later, this conceptual framework is particularly useful for understanding the discursive practices on migration and the conceptualization of artistic production, in a broader sense, as a complex ground of negotiation between aesthetics and politics. Following Rancière’s thought, the art historian and critic T. J. Demos argues, in The Migrant Image: The Art and Politics of Documentary dur- ing Global Crisis (2013), that “aesthetics constructs the scene of politics as much as it defines and legitimates or delegitimates the discourses and

3 Rancière defines his understanding of this notion in the following way: “Democracy is not a regime or a social way of life. It is the institution of politics itself, the system of forms of sub- jectification through which any order of distribution of bodies into functions corresponding to their ‘nature’ and places corresponding to their functions is undermined, thrown back on its contingency.” (Rancière 1999, p. 101). 4 A more detailed description of this core concept in Rancière’s work, can be found in The Politics of Aesthetics. The Distribution of the Sensible: “I call the distribution of the sensible the system of self-evident facts of sense perception that simultaneously discloses the existence of something in common and the delimitations that define the respective parts and positions within it. A distribution of the sensible therefore establishes at one and the same time something common that is shared and exclusive parts. This apportionment of parts and positions is based on a distribution of spaces, times, and forms of activity that determines the very manner in which something in common lends itself to participation and in what way various individuals have a part in this distribution” (Rancière 2004, p.7). 62 Paulo Silva Pereira

competences within it” (Demos 2013, p. 28) and throughout his analysis of different case studies he clearly looks upon artistic practice as a space for negotiation between art and politics. 5 The ways in which images circulate within contemporary society, especially after the shift to a rhizomatic com- munication system, has a direct influence on public perceptions of migra- tion and on the definition of a politics of migration. In the introductory text (“Charting a course. Exile, Diaspora, Nomads, Refugees: A Genealogy of Art and Migration”), Demos discusses the terminological aspects of con- temporary mobility, taking into account notions such as migration, exile, statelessness and nomadism, in relation to specific artistic works. In order to explore these issues, I will address one of the most exten- sively studied migratory processes, that of Mexicans who go to the United States and its connection to the complex political imaginary of these regions, and the relationship between identity and marginalization, par- ticularly the influence of the conceptualization of migrants as the Other in contemporary European society. The figure of themigrant has emerged as a pivotal element to rethink the border as a process and not just simply as an abstracted line separating territories. On the other hand, there is a per- sistent and very disturbing ambivalence in the public debate about immi- grants, refugees and asylum seekers: they are increasingly defined through the fear of the Other and portrayed as a threat to national belonging and security, but in the context of liberal and humanitarian discourses of citi- zenship they appear as ‘human beings’ who need care. In this perspective, particular attention is paid to new forms of domination in contemporary life that are often hidden in benign humanitarian claims. The “double black- mail” Slavoj Žižek (2017) refers to in the title of his recent book Against the Double Blackmail: Refugees, Terror and Other Troubles with the Neighbors and that which he vehemently urges we reject as presented by xenophobic, anti-immigrant right-wing populists and the politically correct liberal Left. Many studies have addressed the issue of migration and displacement, one of the major geopolitical challenges of our time, but far fewer have analyzed it using an interdisciplinary framework and selecting literary and

5 The main purpose of the book is to examine how contemporary artists have investigated mobile lives, selecting artistic models in Europe, North America, the Middle East and North Africa. The author gives special attention to the works of Steve McQueen, Yto Barrada, Emily Jacir, the Otolith Group, Hito Steyerl, Walid Raad, Lamia Joreige, Joana Hadjithomas and Khalil Joreige, Rabih Mroué, Bernard Khoury, Ursula Biemann, Ayreen Anastas and Rene Gabri. Although from different perspectives, all of them “have blurred the divisions between fact and fiction, in order to propose a new politics of truth, one founded in contingency and self-transformation, and attached to critical doubt and political deliberation” (Demos 2013, p. 245). MIGRATIONS, POLITICAL BORDERS AND THE DIGITAL REALM 63

artistic practices from a transnational context. What I will work to demon- strate is the way in which these artists and creators use the specificity of medium and mechanism in their projects to reflect on the current migra- tory crisis and forced migration, to critique securitization or the politics of immigration in recent years and to explore a tactical use of technologies in order to expand public consciousness and political debate. Instead of discussing the borderlands (in a literal and figurative sense) as a space of exchange, negotiation or hybridity, the aim is to explore the persistence of the binaries of native and alien, friend and enemy, emphasizing that these literary and artistic practices criticize them and as such provide an alterna- tive vision. 6

2. TheTransborder Immigrant Tool (TBT) by Electronic Disturbance Theater 2.0 (EDT)/b.a.n.g. lab, which currently exists in prototype form as a GPS- enabled cell phone application, is an activist work that combines poetry with a tool to help migrants crossing the Mexico/US border in the desert of Southern California by giving them information about water caches and safety sites. The project’s collaborators include artivist and virtual sit-ins pioneer Ricardo Dominguez, performance artists Micha Cárdenas and Elle Mehrmand, programmer Brett Stalbaum, and poet Amy Sara Carroll. EDT arose from the experience of working with the Critical Art Ensemble, a group combining activism and technology, and thing.net, a portal dedi- cated to the dissemination of projects of art, activism and cultural criti- cism. The genealogy of EDT’s work has a strong connection with the ‘Civil Disobedience’ (or the ‘Resistance to Civil Government’) of Henry David Thoreau and the Zapatista movement uprising in Chiapas. As a matter of fact, these two main references are present in some texts of the artistic col- lective, but it is important to quote the mid-nineteenth century message of Thoreau: “Let your life be a counter friction to stop the machine”, meaning by this the well-oiled machinery of the State and capitalism, by the time of the U.S. reterritorialization of Texas. 7

6 Rita Raley discusses some of these issues and critical practices especially in the chapter “Border Hacks: Electronic Civil Disobedience and the Politics of Immigration” (Raley, 2009). 7 In “Resistance to Civil Government”, Henry David Thoreau wrote: “If the injustice is part of the necessary friction of the machine of government, let it go, let it go: perchance it will wear smooth, – certainly the machine will wear out. If the injustice has a spring, or a pulley, or a rope, or a crank, exclusively for itself, then perhaps you may consider whether the remedy will not be worse than the evil; but if it is of such a nature that it requires you to be the agent of injustice to another, then, I say, break the law. Let your life be a counter friction to stop the machine. What I have to do is to see, at any rate, that I do not lend myself to the wrong which I condemn.” 64 Paulo Silva Pereira

Fig. 1 - Transborder Immigrant Tool, Electronic Disturbance Theater 2.0/b.a.n.g. lab

Driven by a radical philosophy of electronic civil disobedience, the piece can be seen as “a techno-disformalist gesture that interrupts the mass con- sensual hallucination of techné with the dance of daemonic codeswitching”. 8 The TBT’s code was also freely available on-line to download at walking- tools.net as a mode to increase the accessibility of the prototype with far- reaching effects eventually. By offering multi-lingual poetry-in-motion, the

(Thoreau 1849, p.18; my emphasis). It is worth noting in this respect that the work known as “Civil Disobedience” did not appear under this title during the author’s lifetime. Initially delivered as a lecture in 1848, it was titled “On the Relation of the Individual to the State” and in another publication, the following year, it appeared with the title “Resistance to Civil Government”. In fact, only four years after Thoreau’s death, in 1866, the work appeared effec- tively as “Civil Disobedience”. 8 A more detailed analysis of this problem, can be found in the following paper co-authored by EDT 2.0 members: “In much new media art, code and its related armatures serve as techné, as a pyrotechnic that impresses the audience into a stupor of belief. While many consider the func- tioning of the technology in a new media project to be a measure of its quality or importance, EDT 2.0 would call such systems of evaluation techno-formalist. […] TBT is a techno-disfor- malist gesture that interrupts the mass consensual hallucination of techné with the dance of daemonic codeswitching.” (Cárdenas et al. 2015, pp. 35-36). MIGRATIONS, POLITICAL BORDERS AND THE DIGITAL REALM 65

project intended to highlight a utopian dimension of universal fellowship and of a world not circumscribed by reinforced national borders. On the other hand, we cannot separate the project from the ongoing discussion about walking practices in contemporary art, often coupled with performance-based formats, site-specific and landscape art or exploring lived environments. 9 In line with a long and fruitful history that we can trace back to the artistic experiments of Dadaists and Situationists, the mobile device’s poetic intervention can be seen as a “durational walking art piece” (Cárdenas et al., 2009) which can provide an aesthetic experience to the users. They should not only be able to move safely through the desert, but also to encounter the landscape in the same way that American painters like Thomas Cole in the mid-nineteenth did: as “a sublime object”. 10 The aim is not to romanticize a migrant’s trek across the desert and the limits it places on human endurance, but to discuss the ideological basis of the North- American political and cultural discourses about this territory in different periods of time: connecting it to the national imagination as it occurred in the 19th century or viewing it as a more and more prominent (and problem- atic) marker of American identity in the present. Nevertheless, Dominguez refuses the integration of the piece in the field of locative media, preferring

9 Walking (especially in the urban context) as an aesthetic practice and a critical tool has a long-standing tradition, beginning with Charles Baudelaire’s and Walter Benjamin’s cultural concept of flâneur and the Surrealists and Dadaists experiments during the 1920’s. Other avant- garde groups such as the Situationist International made the act of walking more radical by introducing the aesthetic-performative action of dérive and the theoretical concept of psychoge- ography as a form of alternative construction of the engaged relation with the world. During the decades of 1960s and 1970s, artists from the Fluxus movement or the Land Art (D. Oppenheim, V. Acconci, R. Long) used walking in urban or rural environments to expose the sensory, poetic and performative attributes of the landscape. More recently, a new generation of artists and DIY technologists has been paying increasing attention to the creative power of this approach bringing together aspects from different cultural traditions and combining technologies in the field of locative art, i.e. the art of mobile and wireless systems. According to Drew Hemment, artists “are responding to the technical possibilities of electronic mapping and positioning tech- nologies and location-aware, networked media by asking what can be experienced now that could not be experienced before” (2006, p. 349). In this sense, we live in a world of complex cross-fertilization between the art of communications and networking and the arts of land- scape, walking and the environment. A new sense of socio-political consciousness is growing among the members of the artistic community and the increasingly politicized nature of space and location (e.g. the blurring of the boundaries between public and private; the exercise of control of locations and bodies through surveillance and the digital panopticon…) is a major topic of discussion within locative art practice and theory. 10 According to R. Dominguez, “immigrants should not only be able to move safely, find water, and hear poetry […] but they should also be able to encounter the landscape in a way that American painters have approached the landscape: as a sublime object” (Goldstein, 2010). 66 Paulo Silva Pereira

instead the idea of putting in motion “dislocative media”, since it produces a poetics that challenges borders and connects with often overlooked bodies. The starting point of the research was precisely the question: “What would/ does it mean to strip locative media of its implicit urbanity?” (Cárdenas et al. 2014, p. 4). When first released the TBT attracted attention from a wide range of social actors across the political spectrum, who contested its provocative poetry and functionality, its alleged violation of immigration laws and the misuse of taxpayers’ dollars to fund this kind of project. Although the pro- ject was conceived having in mind a target audience of men and women risking their lives to cross a potentially deadly border, the most relevant feature was certainly the debate and the unveiling of the logics with which borders are dealt with. By combining technology, poetry and art, it was able to question a series of discourses concerning the border and the contro- versy generated clearly demonstrates the competing visions of America (or, more generally speaking, of modes of being in the world) offered by poets/ artists, journalists, opinion makers and politicians. As Dominguez puts it: “The performative matrix of TBT allows viral reportage, hate-mail, GPS, poetry, the Mexico/U.S. border, immigrants, to encounter one another in a state of frisson – a frisson that seeks to ask what is sustenance under the sign of globalization-is-borderization” (as cited in Bird, 2011). Since its first conceptualization, the tool has remained provisional (insistently presented as a “work-in-progress”), facing some technical challenges (the encryp- tion of map data to prevent malicious actions; power usage and battery life issues; etc.) and legal questions (e.g. federal investigations), but the main point was the performance of all the actors in this agonistic dispute. The amount of attention paid to the project by scholars, artistic communities, galleries and other institutional spaces also proves that it has an ongoing life beyond the desert. According to this artistic collective, these interventions could provide “a bit of poetic sustenance, to enact a space of hospitality and to welcome the traveler into a new space” (Cárdenas et al., 2010). Speaking about TBT as a poetic gesture and having in mind Audre Lorde’s pronouncement that “poetry is not a luxury”, Amy Sara Carroll admitted that it attempted “to address those vicissitudes [disorientation, sun exposure and lack of water], but also to remember that the aesthetic – freighted with the unbearable weight of “love” – too, sustains” (Dominguez 2017, p. 4). Let us take an example, the poem Transition (song of my cells): MIGRATIONS, POLITICAL BORDERS AND THE DIGITAL REALM 67

Gloria Anzaldúa writes, “We have a tradition of migration, a tradition of long walks. Today we are witnessing la migración de los pueblos mexicanos, the return odyssey to the historical/mythological Aztlán” (1999 [1987], p.33). The historical? The mythological? Aztlán? It’s difficult to follow the soundings of that song. Today’s borders and circuits speak at “lower frequencies,” are “shot through with chips of Messianic time.” Might (O chondria!): imagine the chips’ transliteralization and you have “arrived” at the engines of a global position- ing system – the transitivity of the Transborder Immigrant Tool. Too: when you outgrow that definition, look for the “trans-” of transcendental -isms, imperfect as overwound pocketwatches, “off”-beat as subliminalities (alternate forms of energy which exceed Reason’s predetermined star maps). Pointedly past Walden-pondering, el otro lado de flâneur-floundering – draw a circle, now “irse por la tangente” ― neither gray nor grey (nor black-and-white). Arco-iris: flight, a fight. Of fancy. This Bridge Called my Back, my heart, my head, my cock, my cunt, my tunnel. Vision: You. Are. Crossing. Into. Me. 11

This text has been under special attention by the mainstream media and the public opinion since Glenn Beck, an American television host and con- servative political commentator at Fox News Channel, on September, 2010, considered it as threat to national security and condemned the provocative and sexually explicit content of its final lines. The text has a strong cross- cultural dimension, combining American, Mexican and Chicano elements, helping to reinforce transnational cultural identities on the territory of the Mexico/US border and (re)building the migrants’ culture through one of its most important myths, Aztlán. 12 Since Gloria Anzaldúa’s Borderlands/

11 For the video exhibited in “Space is the Place” at the Gallery of the National College of Art & Design in Dublin, as part of the program of ISEA 2009, see: . Text of poems: Amy Sara Carroll. Video poems design: Ricardo Dominguez, Micha Cárdenas, and Elle Mehrmand. Voices included in the poems: Micha Cárdenas, Amy Sara Carroll, Césaire Carroll-Dominguez, Patrick Carroll, and Ricardo Dominguez. Collaborative inspiration: Brett Stalbaum. 12 Aztlán is the mythical homeland of the Aztecs, the ancient Mesoamerican civilization also known as the Mexica. It is worth noting that Gloria Anzaldúa, in the first chapter of her book Borderlands/La Frontera entitled “The Homeland, Aztlán. El otro Mexico”, gives more informa- tion about the broader context of the migrations across large parts of the continent with cultural and ideological consequences in the contemporary debates: “During the original peopling of the Americas, the first inhabitants migrated across the Bering Straits and walked south across the continent. The oldest evidence of humankind in the U.S. – the Chicanos’ ancient Indian ancestors – was found in Texas and has been dated to 35000 B.C. In the Southwest United States archeologists have found 20,000-year-old campsites of the Indians who migrated through, or permanently occupied, the Southwest, Aztlán – land of the herons, land of whiteness, the Edenic place of origin of the Azteca.” (1999, p. 26). For a more detailed discussion of the multi- ple roles that Aztlán has played at various moments in time, see Miner (2014). 68 Paulo Silva Pereira

La Frontera: The New Mestiza (first published in 1987), border culture is understood as una herida abierta, with a rich and complex history of iden- tity negotiation. 13 The definition of national borders was carried out by sub- suming and dividing indigenous peoples, which means that a vast territory could be seen as a single and wounded body that bleeds. On the other hand, it also contains allusions to Thoreau, the flâneurs of the 19th century and feminist texts of Anzaldúa and Cherrie Moraga, elements that are inter- woven with references to TBT. In this fragment, the technological context, the Chicano Movement, feminism, literature and the act of walking form a hybrid text for the migrant who intended to cross the border illegally, vio- lating the vision of a certain cultural construct endorsed by people as Beck. Likewise, the cell phone is a hybrid, a bastard, a modified artifact to help moving from one country to another. There is no consensus about the exact numbers of people dying while attempting to cross the border, but all the estimates (official and unofficial) are, by any ethical and moral standards that we could evoke here, shocking. While the project may be seen in the light of new media art practices, one can also see this appropriation of widely available technology to provide aid as similar to the mission of other local humanitarian organizations. 14 EDT2.0/b.a.n.g. lab members are more interested in the potential opened up by technologies to improve people’s lives directly and, in this context, it could be seen as part of a larger shift from Tactical Media to Tactical Biopolitics in contemporary media art. 15 Apart from the clear intention to provide a functional dimension to the piece, we must also recognize its con-

13 G. Anzaldúa had a vital role in discussing the borderlands as a space of a particular “border culture”. See, for instance, this excerpt of Borderlands/La Frontera: “The U.S. – Mexican border es una herida abierta where the Third World grates against the first and bleeds. And before a scab forms it hemorrhages again, the lifeblood of two worlds merging to form a third country – a border culture. Borders are set up to define the places that are safe and unsafe, to distinguish us from them. A border is a dividing line, a narrow strip along a steep edge. A borderland is a vague and undetermined place created by the emotional residue of an unnatural boundary. It is a constant state of transition.” (1999, p.25). 14 Such as No Más Muertes /No More Deaths , the Border Angels /Angeles de la Frontera , or Humane Borders/ Fronteras Compasivas . 15 This transformation is clearly outlined in Activist Media and Biopolitics: Critical Media in the Age of Biopower: “Biopower suspends the traditional boundaries of the ‘human’, isolating a sphere of what Giorgio Agamben calls ‘bare life’ as the leverage of the political, a sphere that is both within and outside the law, at the cost of a lived life, a political life. […] While tactical media declined as a result of the normalisation of the Internet, biopolitical activism challenges the sphere of bare life where law is not fully in force and political agencies cannot be held accountable.” (Sützl & Hug 2012, p. 5). MIGRATIONS, POLITICAL BORDERS AND THE DIGITAL REALM 69

dition as a cultural product aimed at bringing into light the inequality, the racial and political boundaries that can lead to misunderstandings on both sides of the border. Prejudice, stereotypes and discrimination can make people reluctant or even opposed to accept others whom they perceive as different and the effort to counter, through digital media art, the many nega- tive portrayals of migrants is a tactical operation. A wide range of perceived negative changes in many Western societies have strengthened the voice of those who only see in migrants (despite of the specific geographical origin) and their different traditions a threat to public order, national identity and security. This situation, often exacerbated by social and political actors who use migrants as scapegoats, is related to the prevalent model of racialized bodies and to the asymmetric nature of the border’s permeability for US citizens going to Mexico or migrants trying to move to the North. 16 An inspired aesthetic experience responsive to such developments is Alejandro G. Iñárritu and Emmanuel Lubezki’s virtual installation Carne y Arena (Virtually present, Physically invisible). When the Board of Governors of the Academy of Motion Picture Arts and Sciences, on November 2017, honored it with a Special Award, the artwork was described as “a visionary and powerful experience in storytelling” and “a deeply emotional and physically immersive venture into the world of migrants”, connecting us “viscerally […] to the hot-button political and social realities of the U.S. – Mexico border”. 17 Based on accounts from migrants whose stories inspired and informed the entire project, Carne y Arena deliberately challenges the notions of subject and observer, allow- ing individuals to walk through a sophisticated simulation of a real-life performance with tactile elements like sand and other characteristics of the desert’s landscape. It is a six and half minute solo experience, provid- ing a fully immersive environment of a journey with a group of migrants. As reported by some visitors (and the technical information about the

16 More recently, Mexico initiated its Southern Border Plan under pressure from the U.S. and the active detention efforts by the guards have become a serious problem. In her essay “Three emergent migrations: an epochal change”, Saskia Sassen brings up the question quoting Ruben Figueroa, from the Mesoamerican Migrant Movement, who considers that “this strong per- secution by federal authorities has resulted in accidents where migrant minors have died and been injured in clashes between human smugglers and police. It has also led to imprisonment, to deaths, and to these unaccompanied children disappearing – some wind up in reasonable places such as church shelters or are taken in by generous households. Others are languishing as street kids. Yet others have disappeared without a trace. The Inter-American Commission on Human Rights has recently expressed its “concern over stepped-up actions reportedly being taken against migrant persons” (Sassen 2016, p. 33). 17 Cf. . See also note 1. 70 Paulo Silva Pereira

project corroborates), the experience of crossing the desert and the prob- lems faced by migrants, especially when they are detained and questioned by U.S. Border Patrol, are vividly represented. 18 In fact, the project allows the participant (outfitted with a backpack, a head-mounted display and headphones) to experience a sense of presence in an immersive, com- puter-generated, three-dimensional, interactive environment. The mul- tiple sensory modalities (visual, auditory, kinesthetic, and olfactory) create an evocative exposure to dramatic events, enabling complete focus on content without distractions and, thus, providing an entirely new perspective on migration and integration issues. It is therefore of great importance to understand in detail how the participants have responded to and negotiated the impact of these extreme conditions, establishing an empathic connection with subjects from ‘elsewhere’ (I’m thinking here in the dichotomy U.S. versus T.H.E.M. inscribed in Fig. 2). Another most vivid vision of what occurs during this migratory pro- cess, in the Mexico/U.S. border, is presented by Border Memorial: Frontera de los Muertos, an Augmented Reality (AR) piece created by John Craig Freeman and Mark Skwarek, public artists with a large experience in using emergent technologies to produce large-scale public work and founding

18 The project employs state-of-the-art immersive technology and the “Waiver and release of lia- bility” that a person who participates in this activity (at least in the case of the Fondazione Prada) must sign to acknowledge the risks involved is quite impressive, as we can see by this fragment: “[it] includes various virtual reality and related activities which may feature a variety of experiences and images, including but not limited to experiences and images that are fright- ening and/or disturbing. I understand that virtual reality experiences like the Experience [the VR experience named Carne y Arena] are highly immersive and can feel extremely realistic at times. I also understand and acknowledge that the Experience may be designed to incorpo- rate features unique to virtual reality experiences that are intended to enhance the realism of the Experience” (retrieved from: ). A short description of the first part of the VR installation can be found in a text signed by Alex Jen: “Upon arrival, viewers are led into a dim, stark holding room and instructed, as appre- hended migrants would be, to take off their shoes. This first part of CARNE y ARENA re-cre- ates las hieleras, or the freezers: short-term holding cells where migrants are held anywhere from twelve to seventy-two hours. Discarded shoes litter the room, contorted and encrusted in dirt, deformed from weeks of walking. An alarm blares, and participants walk into the next room, where coarse desert sand digs into bare feet. A backpack, a virtual-reality headset, and headphones send them off to the border. Without warning, acoyote (or smuggler) yells for the group to get down. But there’s nowhere to hide; a helicopter above floods the group of partici- pants with white light. Border agents surround the immigrants, and one points an AR-15 rifle at a young boy.” (Jen 2017, p. 7). The installation ends with a series of video-portraits of migrants describing their stories and experiences. MIGRATIONS, POLITICAL BORDERS AND THE DIGITAL REALM 71

members of Manifest.AR. 19 The piece uses this technology to celebrate and remember the migrant workers who have died along the border trying to cross the desert. Designed for smart phone mobile devices, it allows a clear perception of the large extension of the loss of life by showing where human remains have been found through virtual objects consisting of life sized, three dimensional models of a skeleton effigy. These objects have a strong visual connection with the calaca, a traditional form of wood- carving from Oaxaca used during the Mexican Day of the Dead (or ‘Día de los Muertos’) to honor deceased loved ones. These celebrations devel- oped from ancient traditions among its pre-Columbian cultures reinforc- ing the idea that death, despite the pain and sorrow, should always be celebrated. In this sense, Border Memorial is a gesture of remembrance and celebration of those who have died, but ultimately it brings this issue into focus hoping that it would provoke change in political and public debate. According to John Craig Freeman, the project “is intended to pro- vide a kind of lasting iconic presence in an otherwise ephemeral physical environment and cultural discourse” (Ulmer & Freeman 2014, p. 64).

Fig. 2 – Carne y Arena (Virtually present, Physically invisible), Alejandro G. Iñárritu and E. Lubezki

19 For a vivid illustration of the quality of the project, see the video “Border Memorial Data in Google Earth” . 72 Paulo Silva Pereira

Fig. 3 – Border Memorial/Frontera de los Muertos, John Craig Freeman / Mark Skwarek

Despite the technical specificities and affordances of the projects, they can be read in terms of a broader debate about how visuality operates in the establishment of national borders and its political consequences. Intuitively we consider borders as a fixed location or a dividing line between territories, but it should be analyzed as a construct evolving under different circum- stances and under different doctrines. Our perception of borders largely depends on the multiple and sometimes contradictory ways in which it is represented through visual, performative and linguistic frameworks. If we try to understand Border Memorial or Carne y Arena, for instance, as part of a vast countercultural set of artistic practices that are showing the dra- matic consequences of the increased fortification of physical borders, we could say that the massive production of landscapes of control and surveil- lance is counterbalanced by the migrant’s journey or the spectral presence of people who died during migration. It develops an interesting account of how people are becoming invisible within contemporary securitization and militarization processes that are taking place in borderlands.

3. Poets, artists, and activists from the last decades are repeating questions about the possibilities of social engagement, but there is a growing feeling that artistic communities might do more to articulate the politics of differ- MIGRATIONS, POLITICAL BORDERS AND THE DIGITAL REALM 73

entiation and establish forms of opposition to the exclusion of immigrants/ refugees/asylum seekers, granting this population the possibility of agency. Particular attention is paid to cultural displacement, marginalization and the social invisibility of migrants, with a special focus on the condition of African immigrant women, in aimisola.net/hymiwo.po: a poemtrack for a yet-to-be-written dance piece (2015), an online and interactive collabo- rative work written and developed by Álvaro Seiça and Sindre Sørensen. The bringing into light of a gender perspective in the discussion around the theme of immigration in aimisola.net/hymiwo.po is most relevant, since for many decades (or centuries) women have found themselves and their interests marginalized or overlooked due to the hegemonic position of the stereotype of male immigrant. 20 The starting point of the creative process was the material produced in the context of the project AIMISOLA (an acronym that stands for: Atención Integral para las Mujeres Inmigrantes: Itinerarios formativos para la inserción SOcial y LAboral) based in Spain which sought to discuss and put in practice cultural and artistic activities to reinforce cultural diver- sity. One of the most salient features of the project was the creation of a wiki with capacity to support hypermedia poems and a digital archive of multimedia content (basically testimonies recorded as sound files, images and videos). 21 This operation can be seen as an act of(re)distri - bution of the sensible, as described by Rancière: a device through which immigrant women claimed a voice beyond the constraints of their destiny and gained a different condition for themselves, allowing them to com- municate (from both a direct and a mediated perspective) their stories to a wider audience. The digital poems based on the experience of these women and grouped under the rubric of “voices of immigrant women” reflect on various issues: women’s rights, rootlessness, social, gender and sexual inequality and aggression. The material produced by AIMISOLA and the research conducted by Seiça and Sørensen on immigration policies and on the cultural (in a broader sense) context of Spain were key elements of hymiwo.po (an acro-

20 Álvaro Seiça highlights this fact in a recent essay about aimisola.net/hymiwo.po: “The work directly explores the condition of African immigrant women living in Spain” and the challenges or obstacles they face: “male dominance, unemployment, social exclusion, cultural integration, lack of education, sole responsibilities for household chores and child rearing” (Seiça 2017, p. 44). One of the most striking elements of Seiça and Sørensen’s poem is, in fact, the repetition or the refrain-like pattern “#immigrants all #immigrants we are/ we the #african mothers of the new europeans”. 21 74 Paulo Silva Pereira

nym that stands for: Hymn to imMigrant WOmen, a POem). Although it is directly connected with this specific geographical context, revealing the impact of a growing mass of immigrants on many levels of the Spanish society and of the political system, it also presents an opportunity to fur- ther discuss the major questions that affect migrations in Europe and across the world. Since the initial idea of composing a poemtrack for the whole dura- tion of Masurca Fogo (1998), a dance-theater piece by the German cho- reographer Pina Bausch (and Tanztheater Wuppertal) proved impossible, as Seiça himself admits in a recently published text about the conceptual and technical framework for the piece, he hit on another strategy: to write a poemtrack “not to an existing dance piece, but rather to a future one, one that had yet-to-be devised and choreographed” (Seiça 2017, p. 46), as an invitation for artistic collaboration. When reading the work it is important to keep in mind the dramatic (and fatal for so many) jour- ney of thousands of migrants who wish to move permanently to another country and the soundscape has an intensifying effect over the verbal and cinematic content. Leaving aside for the moment the introductory part of the poem, due to its mainly operational and technical nature, in the opening scene the keywords and expressions used to write the text are presented in a cine- matic mode. Some of this linguistic content is marked with hash signs and messages are pulled from Twitter in real-time and presented on-screen, making use of information that corresponds to a certain number of hashtags relevant to the ideological background of the work. The result- ing effect of this strategy is a combination of multilayered information amplifying the polyphonic nature of the heated debate on migration and its consequences. It is critical to note that there is a permanent balance between textual and visual elements that stay unchanged in the database, and thus act as the core of the poetic work, and the volatile scenario cre- ated by the flow of information posted on Twitter. Virtually everything on this social networking site related to the aforementioned topics, with their evanescence and multiplicity, can appear in front of the eyes of the reader-user. This aesthetic option of reinforcing the unstable condition of the work, because there is always a new and different textscape, and of avoiding a neat interface, as one of the authors tells us, “combines, repurposes, and subverts the screen’s media culture, and the visual and graphical display that characterizes current digital environments, since it addresses error and multiple textual fluxes” (Seiça 2017, p. 52). MIGRATIONS, POLITICAL BORDERS AND THE DIGITAL REALM 75

Fig. 4 - aimisola.net/hymiwo.po: a poemtrack for a yet-to-be-written dance piece, Á. Seiça/ S. Sørensen

Addressing the question of social significance of media practices and of social media in particular is of vital importance today, especially when there is a techno-celebratory discourse on the emancipatory power of com- munication technologies and a growing appropriation of corporate social networking sites like Facebook and Twitter by contemporary activists. Dick Costolo, former CEO of Twitter, once said that this social media site would be the world’s first “global town square”, a new agora, a place where people go to participate and add their insights into the wider, global conversation. When social media are turned into a ‘fetish’ of collective action and appear to offer new hope for a participatory kind of democracy, we could ask how much of it is just background noise, a never-ending conversation and mere scenery? Given the strong emotions that immigration-related issues nor- mally stir, to fulfill this hope we need to find the right balance in a ‘noisy’ environment such as contemporary social media (e.g. the appearance and political advance of anti-immigrant groups, movements and parties). On the other hand, whenever the poem is live performed, the audience can participate by inputting tweets and this is a model of interaction that has an enormous potential. The contrast between silence and noise is a major item in the concep- tualization of Seiça and Sørensen’s piece. From the beginning, the word “silence” operates as an avatar that is connected to the visual representation of duration (the progression of each scene is controlled by the arrow keys) 76 Paulo Silva Pereira

and to the reader/player. In a more advanced part of the piece, the poem- screen, a soundless poemgame with a blue background that could replicate ocean traversals of migrants or refugees, the presence of the avatar “silence” is even more solid. ‘Silence’ carries positive connotations, since it is linked to the silence to which immigrants are pushed into and to more sophisti- cated historical notions of poetic silence, and ‘noise’ represents here, using the words of Seiça, “sound that is not articulated, being a metaphor for obstacles” (Seiça 2017, p. 53). If hitting ‘noise’, during the traversal to reach the other side of the coast and, symbolically, the rest of the poem, ‘silence’ will collide and sink. Although it is possible to consider such an interpreta- tive model, the piece could benefit even more from a different perspective on the contrast silence/noise. These texts and images (from AIMISOLA) have been used to tell what it means to be an immigrant, what it means not to have citizen rights, and to have to find a poorly paid work. Migration implies a radical experience of uncertainty, and the passage from one way of naming and speaking to another. This discontinuity is greater if, when moving from one country to another, the language changes, as we can see in the striking words of the piece: “the unreachable market of languages is not a flashy airport / it is meat carcass moored to each bay of #fear”. In this respect, the migrant is always a translator, someone who constantly lives between his original homeland and a new culture, the experience of what can or cannot be said in a different language. It is necessary to pay attention to what is lost and gained in these symbolic transfers, abandonments and recreations of meaning. In fact, the piece opens up a space of possibilities for speech and dia- logue, reminding us that there is a deeper level of invisibility, in which people and events are seen but not acknowledged as meaningful subjects. Facilitating the conditions of speech, encouraging oral exchange to take place where more often than not silence is the public discourse and allow- ing a space of self-presentation (directly, via the recorded testimonies, and artistically mediated trough the poetic piece) can be a decisive step forward toward solving problems. Giving immigrant women a voice, recognizing their true value and building their sense of belonging to receiving socie- ties, is a form of empowering them. The sense of belonging appears to be a decisive step in the process of formation and identity reconstruction and due to gender or ethnic hierarchies they are often limited by their migra- tion status. MIGRATIONS, POLITICAL BORDERS AND THE DIGITAL REALM 77

Within the discourse of citizenship, the non-citizen ‘Other’ is charac- terized by the absence of political agency and the voice reduced to a pathetic cry versus the articulated speech of the citizen. It is this one who is endowed with the ability to act and so to engage in politics. Jacques Rancière, in his seminal essay “Ten Theses on Politics” admits that the difficulty here is in “knowing which sign is required to recognize the sign” and asks:

how one can be sure that the human animal mouthing a noise in front of you is actually voicing an utterance rather than merely expressing a state of being? If there is someone you do not wish to recognize as a political being, you begin by not seeing them as the bearers of politicalness, by not understanding what they say, by not hearing that it is an utterance coming out of their mouths. (Rancière 2001, p. 10)

What is so compelling about this interpretation is the progression from noise to speech: “it has consisted in making what was unseen visible; in get- ting what was only audible as noise to be heard as speech” (Rancière 2001, p. 10; my emphasis). Not to hear what comes out of the mouth of a signifi- cant number of human beings as language and, instead, to hear only cries of hunger or hysteria is a powerful way to deny them the quality of being political subjects.

4. The problem of the migrant’s voice is a deeply political problem and one that reveals the characteristics of who really counts as a relevant political subject. For Krzysztof Wodiczko, a Polish artist living and working mainly in the US and one of the most significant practitioners of socially commit- ted public art today, the emphasis on voice and the importance of making the margins audible to the mainstream are crucial. By giving visibility to hidden micro-communities and by constantly addressing social issues, his politically charged work indicates a certain link to the genealogy of tactical media. Significantly, he is cited by David Garcia and Geert Lovink, in ABC of Tactical Media, as a crucial precursor to this paradigm. 22

22 The following example illustrates this strong connection: “Tactical media’s mobility connects it to a wider movement of migrant culture. Espoused by the proponents of what Nie Ascherson described as the stimulating pseudoscience of Nomadism. ‘The human race say its exponents are entering a new epoch of movement and migration. The subjects of history once the settled farmers and citizens, have become the migrants, the refugees, the gastarbeiters, the asylum seekers, the urban homeless.’ An excellent example of the tactical can be seen in the work of the Polish artist Krzystof Wodiczko who ‘perceives how the hordes of the displaced that now occupy the public space of cities squares, parks or railway station concourses which were once designed by a triumphant middle class to celebrate the conquest of its new political rights and 78 Paulo Silva Pereira

Since the late eighties, he has developed a series of nomadic instru- ments for both homeless and immigrant operators that function as imple- ments for survival, communication, empowerment, and healing. He began to open doors to participatory practice by constructing the Homeless Vehicle (1987/88) as an instrument of survival for urban nomads with a group of the New York homeless (or “evicts”, his preferred term). 23 In the nineties, influenced by a stay in Paris, his artistic practice was more focused on the experiences of migration, dealing specifically with non-EU immi- grants. In privileging the creation of electronic instruments to help peo- ple tell their stories and to increase the degree of visibility of their migrant experience, he calls for a taking into account the dissonant voices of ‘unau- thorized speakers’ capable of exposing fractures and unstable arguments on the dominant narrative that sets the contexts and frameworks of border politics. In the context of his large project Xenology: Immigrant Instruments (1992-95), Wodiczko created a series of devices. One of them was Alien Staff, an instrument with the characteristic shape of a staff giving the immi- grant the chance of telling his own story and addressing people. In fact, this project pushes us to rethink the disruptive power of subaltern migrant narratives. The basic composition of this multimedia device consists of a well-designed staff equipped with a small monitor and a loudspeaker at the upper end. In the central section of the piece, a transparent cylinder called “Xenolog Section” can be filled with personal objects, fragments of the life journey of the person carrying the staff (letters, family photographs, immigration papers). The artist designed it so the immigrant could hold the device in a public space, with the video monitor at the level of the head. On the screen we see the face of the operator and through the loudspeaker we hear the testimony of his journey. Attracting the attention of passers-by who approach the immigrant, it can be a fruitful and productive strategy to diminish the distance between individuals and to stimulate a situation of dialogue usually difficult due to cultural prejudices.

economic liberties. Wodiczko thinks that these occupied spaces form new agoras, which should be used for statements. ‘The artist’, he says, ‘needs to learn how to operate as a nomadic sophist in a migrant polis’.” (Garcia & Lovink, 2008; retrieved from: 23 For a brief description (and video presentation) of the project, see: MIGRATIONS, POLITICAL BORDERS AND THE DIGITAL REALM 79

Fig. 5 - Alien Staff, Krzysztof Wodiczko

As Wodiczko asserts, “it is an instrument that gives the singular oper- ator-immigrant a chance to ‘address’ directly anyone in the city who may be attracted by the symbolic form of the equipment, by the character of the ‘broadcast’ program, or by the live presence and performance of the operator” (Wodiczko 1999, p. 104). The artist himself considers the small monitor, its eye-level location, and its proximity to the operator’s face as key factors for the success of the project, because they draw the observer closer and thus closer to the operator, breaking the distance (literally and metaphorically) between the stranger and the observer. On the other hand, the double presence of the image of the face on the screen and the actual face of the person holding the staff should incite the observer to perceive the stranger as simultaneously ‘imagined’ (a character on the screen) and ‘experienced’ (a real-life person). In this sense, Alien Staff demonstrates that 80 Paulo Silva Pereira

changes in perception can produce more respectful attitudes towards oth- ers and encourage dialogue among individuals. 24 Despite Wodiczko’s manipulation of abstract notions of the ‘immigrant’, part of his work is nevertheless inscribed within specific social contexts. In the case of the installation Guests, initially conceived as a response to the global migratory crisis and that has been touring since 2009 (the first ver- sion was presented in the Polish Pavilion of the Venice Biennale), we must recognize that little has changed, since then, in the fundamental questions facing migrants, specifically those who are involuntarily displaced. The pro- ject creates the illusion of windows, through which the viewer overhears conversations between migrants, exchanging remarks about their situation and problems, seemingly outside the gallery space. 25

Fig. 6 – Guests, Krzysztof Wodiczko

24 A similar logic informs the Mouthpiece (Porte-Parole) (1994), described by the artist as a “cyborgian bandage”: a video monitor, hanging from the neck of the users, showing of a mouth talking which is placed in front of the user’s mouth thereby opposing the epistemological myth of “direct address” as unmediated communication. For more details about Wodiczko’s trans- formative avant-garde and the ways of repurposing public art, see the conversation with M. J. Léger (Léger 2014). 25 For further documentation on the exhibition presented at the Polish Pavilion during the 53rd Venice Biennale, see MIGRATIONS, POLITICAL BORDERS AND THE DIGITAL REALM 81

Immigrants and refugees are agents who challenge the practices of democracy insofar as they call into question the validity of exclusionary political and cultural practices centered on the citizen. In an attempt to depict and interrogate the traditional concept of citizenship and the under- standing of political agency, Wodiczko’s works on xenology, i.e. the art and science of the stranger, allows viewers to consider identity from the view- point of the Other. As defined by the artist, it is an “art of refusal to be fused, an art of delimitization, deidentification and disintegration” (Wodiczko 1999, p. 131) and the core of a multimedia research performance design project. Highlighting the processes by which people are constituted, he opens up new possibilities for asking why and understanding how some attributes (namely, the political agency managed and controlled, creating a segregation between the citizen and the non-citizen) are so deeply rooted within the structure of the nation-state system. His long-term interest in exploring social and political marginaliza- tion through the invention of mechanisms and solutions for alienated and excluded communities reminds us the importance of bringing such sensi- tive issues to public attention. What it may enable is a deeper understand- ing of people whose position in culture may appear to some as ghostly, living in the realm of non-citizenship. A focus on the counter-narratives of xenology disrupts the ordered uniformity of the discursive practices of rep- resentation in ways that are meaningful for a politics of agency. We could understand agency, in this context of vulnerable and marginalized popula- tions, as the capacity to decide, and to exercise control over the conditions and spaces of being in which we live, being able to contest and demand participation through discourses and practices. 26

5. Unconventional artistic practices that have been flourishing outside the boundaries (at least, during a certain period of time) of mainstream cir- cuits of museums, biennales or galleries are relatively common, but in the case of the Cuban artist Tania Bruguera we could say that one of the most striking characteristics of her work is the permanent escape from the for- mat of contemporary artwork and from expectations. She has been working on a number of social projects for several years and started a center called Immigrant Movement International (IMI) in the multi-ethnical district of Corona in Queens, thanks to the support of the Queens Museum of Art in New York and Creative Time, a non-profit organization, to raise pub-

26 For a more detailed discussion of some of these issues, see for instance Balibar (2003; 2009). 82 Paulo Silva Pereira

lic awareness about the situation of immigrants (Fig. 7). This long-term project involves a large group of people and offers educational program- ing, health and legal services, or a series of workshops and events in col- laboration with social services and local authorities. The IMI also aims to increase the visibility of social and political questions related to migrations (in a broader sense, since everyone at a certain point of life could become a migrant, regardless of the specific reasons) in the media and in cultural institutions through association with museums and other public organiza- tions. It operates as a socio-political movement and as an art project, estab- lishing affiliations with similar groups from other countries, taking in mind that immigrant issues can be better understood and worked on at a local and at an international level. Bruguera also began, in 2006, the process of forming a political party, the Partido del Pueblo Migrante, whose main pur- pose was to represent migrants.

Fig. 7 – Tania Bruguera/ Immigrant Movement International (IMI)

The new art-historical concept ofArte Útil, roughly translated into English as ‘Useful Art’, plays a decisive role in the articulation of the differ- ent levels of action: discussion, research, artistic practices, implementation of possible solutions to social problems and political activism. Although MIGRATIONS, POLITICAL BORDERS AND THE DIGITAL REALM 83

the notion of ‘Useful Art’ is strong enough to emphasize the idea of an art which wants to define itself as useful, in the original it involves a more com- plex operation, suggesting art as a tool or device of empowerment, to give greater agency to people 27. Conceived in this way, art is meant to intervene in social reality and to help implementing long-term changes whenever necessary, instead of a more contemplative or merely representational per- spective. According to Bruguera, one might identify early examples of Arte Útil in performances by the Dada artists, in the Russian Constructivists’ objects and architecture or in artworks organized under the rubric of insti- tutional critique, but her intention is to intensify art’s role in making deci- sive social changes. It is beyond doubt that a sharp division between the conception of art as an autonomous field, in the sense of being differentiated from other social practices or from the corrupting market-driven cultural industry, and socio-politically engaged art is problematic, since artworks produced within the first context can also carry a strong political potential. Nevertheless, looking for new uses for art in society also brings new chal- lenges for art criticism by destabilizing stable meanings and assumptions. For more than twenty years, Bruguera has remained faithful to the use- ful component in her artistic practices, with a firm belief that art consid- ered only as a proposal (i.e. without pragmatic results) is not enough in our contemporary world. The purpose of offering people something produced in the artistic realm but with a beneficial impact on the community, func- tioning as a mode of education for instance, is clearly present in Cátedra Arte de Conducta, an experiment in pedagogy involving the creation of a multifaceted, interactive, participatory school, but which she considered as a work of art in itself. In this project, which functioned as a postgraduate course for artists, she used as artistic material the participant’s behavior (‘conducta’, in Spanish) in order to rethink the boundaries of performance. Another fine example is The Francis Effect (2014), a work informed by the tradition of Conceptualism and performance art, which also calls into

27 The artist and curators at the Queens Museum (NY), Van Abbemuseum (Eindhoven) and Grizedale Arts (Coniston) have established a set of criteria to better understand what con- stitutes Arte Útil: “propose new uses for art within society; challenge the field within which it operates (civic, legislative, pedagogical, scientific, economic, etc.); be ‘timing specific’, respond- ing to current urgencies; be implemented and function in real situations; replace authors with initiators and spectators with users; have practical, beneficial outcomes for its users; pursue sustainability whilst adapting to changing conditions; re-establish aesthetics as a system of transformation.” . In 2013, the Van Abbenmuseum hosted Tania Bruguera’s exhibition and became the Museum of Arte Útil. The objects and situations were conceived as a way to stimulate new approaches that can change the way we act in society. 84 Paulo Silva Pereira

question the precarious situation of thousands of immigrants, displaced people and refugees across the world. The project involved petitioning Pope Francis to grant Vatican citizenship to all undocumented immigrants and during several weeks Bruguera collected signatures from passers-by near the Guggenheim Museum and in other places as well. 28 Symptomatically, the Manifesto published in November 2011 by the members of the Immigrant Movement International ends with a call for dignity – “Dignity has no nationality” – which could be considered as the driving force of this work and an attempt to change perceptions on the migrant’s rights. 29 The document was created by people from different fields of expertise (immigration academics, activists, politicians) and other community members. To achieve such a degree of cooperation has posi- tive outcomes at different levels and certainly in terms of social significance of shared artistic vision. In particular, the dialogue (or the partnership) between Tania Bruguera and Saskia Sassen, a renowned sociologist that has been working on globalization and migration flows, deserves some atten- tion. 30 Last year, they participated in a debate, in the South London Gallery, about “Art and Immigration”, addressing some of the issues and questions on the IMI’s agenda and giving a clear picture of the challenges lying ahead of us. In several occasions, but in a more articulated and thought-provoc- ative way in her recent book Expulsions: Brutality and Complexity in the Global Economy, Saskia Sassen has been reflecting on the causes (from new types of war and violence to destruction of land and water) and conse- quences of this emerging paradigm based on expulsion. “Today’s ‘migrants’ are increasing expelled. Today is an Era of Expulsions”, as stated in a brief document The Palimpsest of Immigration, signed by Bruguera, Sassen, Koo Jeong A and Richard Sennett. 31 The book tries to explain the mechanisms behind the banishing of populations and biospheres across different regions of the globe, combining interdependent ecological, economic and political factors. One of the most compelling aspects of this new approach and one that should be at the center of any discussion in the coming years is the

28 29 At the beginning of the Manifesto, we find a special call to warn about the role played by cer- tain concepts within the discursive practices on migration: “We have been called many names. Illegals. Aliens. Guest Workers. Border crossers. Undesirables. Exiles. Criminals. Non-citizens. Terrorists. Thieves. Foreigners. Invaders. Undocumented” . 30 For more details, see Sassen (2014; 2016). 31 MIGRATIONS, POLITICAL BORDERS AND THE DIGITAL REALM 85

evaluation of our current modes of conceptualizing and thinking inequali- ties and brutalities, because what exists today (and which is the result of a long critical tradition) is insufficient. It shows a lack of full understanding of the complexity of the systemic edges of society, especially during this brutal period we are living in, and whatever crosses these edges becomes invisible, expelled from the system completely.

6. International migration reached unprecedented levels, with more than one billion people on the move today, and there are strong reasons to think that the increase in the mobility of populations that had previously been sedentary will continue in the near future, due to economic and political ine- quality, military conflicts or climate change. Often unsuspecting people all of a sudden find themselves thrown out, dispossessed of professional occupa- tions, home, assets and, more distressing than anything else, of their dignity. The fight against xenophobia and intolerance involves thinking more about (and necessarily exposing) the structures of power, revealing con- tradictory political and ideological assumptions, and the discourses that constitute the figure of the migrant as the symbolic incarnation offearism , i.e. “the systematic (often unconscious) production and perpetration of fear on others” (Fisher 2006, p. 51). In the postcolonial globalized world, media- tized images of large-scale migrations have been crucial to reinforce the conception of ‘border’ as a site of danger, uncertainty or potential chaos. It is crucial to conceive literary and artistic practices not as a way out of these politically and socially volatile times, but as an opportunity to take seriously the work of denouncing the paradoxical coexistence of patterns of mobility and the increasing desire of fortification of national boundaries. Across the world, societies are still trying to deal with the most visible chal- lenges brought on by globalization: migrations on a large scale, transna- tional movements of capital, terrorism and expansion of the digital realm. It is completely fair to think about forms of regulation to facilitate more dignified, orderly and safe migration flows, but the political answer (with considerable support from large social groups, we must admit) has been almost the same in many regions: a system of total exclusion of immigrant labor. On the other hand, one may argue that borderlines are often natural- ized, apparently unquestionable in their own nature, but it would be more appropriate to consider them as representational constructs, open to politi- cal changes and negotiation. It is critical to catalyze powerful transformations in the consciousness of the viewer/reader and the questions raised by the projects considered 86 Paulo Silva Pereira

here can have a broader cultural and political impact, as Wodiczko claims in the following statement:

Media art, performance art, performative design: they must interfere with these everyday aesthetics if they wish to contribute ethically to a democratic process. They must interrupt the continuity of existing social relations and per- ceptions well entrenched in the theatre of the city. Such arts, using the words of Simon Critchley in Ethics of Deconstruction, should “interrupt the polis in the name of what it excludes and marginalizes”. To preserve democracy one must challenge it; one must challenge its symmetry with an asymmetry of ethical responsibility. (Wodiczko 2000, p. 87-88)

Socially engaged literary and artistic practices with a special focus on cultural criticism, political activism and collaboration like those pre- sented in this paper are worthy of attention as potential means of achieving some form of re-balancing in the debate around migration and citizenship. Working with or through conflicts is necessary, not to eradicate them at the cost of plurality, but to turn enemies (the product of sharp us/them distinc- tions that cast the ‘them’ into the role of an enemy) into adversaries, and to transform lethal struggle into vivid antagonism and negotiable critical tension. Not only newly arrived people but the entire society live in what I could call a productive tension and these creative works can help make this transformation in a more viable way, promoting the debate and identifying possibilities. 32

32 For T. J. Demos, what is at stake in the “experimental art of migration” is a politically-oriented artistic practice which holds tremendous transformative potential within contemporary soci- ety: “the migrant names the potentiality of becoming other, of opacity as a politics of impercep- tibility, and defines an increasingly occupied site of resistance, autonomy, and politicization. In this regard, the artists who give ethico-political expression to such ideas connect to a growing discourse and widening social movement that situate migration as bearing positive transfor- mative potential in the current neoliberal world of control, repression, and inequality. As such, the experimental art of migration never really reaches any destination; it remains always on the move in one way or another” (Demos 201, p. 246). MIGRATIONS, POLITICAL BORDERS AND THE DIGITAL REALM 87

References

Agamben, G. (1998). Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life. Stanford, California: Stanford University Press. Anzaldúa, G. (1999). Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. 2nd edition. San Francisco: Aunt Lute Books. Balibar, E. (2009). Europe as Borderland. Environment and Planning D Society and Space, 27, 2, April, 190-215. Balibar, E. (2003). We, the people of Europe? Reflections on transnational citizenship. Princeton: Princeton University Press. Bird, L. (2011). Global Positioning: An Interview with Ricardo Dominguez. Furtherfield (15/10/2011). Retrieved Sept. 18, 2017, from http://www.furtherfield.org/features/ global-positioning-interview-ricardo-dominguez Bishop, C. (2012). Artificial Hells. Participatory Art and the Politics of Spectatorship. London and New York: Verso. Bourriaud, N. (2002). Relational Aesthetics. Paris: Les Presses du réel. Cárdenas, M., Carroll, A., Dominguez, R. (2015). Operation Faust y Furioso: A Trans [ ] Border Play on the Redistribution of the Sensible, Leonardo Electronic Almanac, 19, 4, 16-30. Cárdenas, M., Carroll, A., Dominguez, R., Mehrmand, E., Stalbaum, B. (2009). The Transborder Immigrant Tool: Violence, Solidarity and Hope in Post-NAFTA Circuits of Bodies Electr(on)/ic, Mobile HCI (September 15-18, 2009, Bonn, Germany). Retrieved Sept. 18, 2017, from Cárdenas, M., Carroll, A., Dominguez, R., Mehrmand, E. & Stalbaum, B. [Electronic Disturbance Theater 2.0/b.a.n.g. lab] (2010).Sustenance. A Play for All Trans [ ] Borders. New York: Printed Matter, Inc. (Artists & Activists series). Retrieved Sept. 18, 2017, from Cárdenas, M., Carroll, A., Dominguez, R., Mehrmand, E. & Stalbaum, B. [Electronic Disturbance Theater 2.0/b.a.n.g. lab] (2014). The Transborder Immigrant Tool /La herramienta transfronteriza para inmigrantes. Ann Arbor, Michigan: The Office of Net Assessment, The University of Michigan. Retrieved Sept. 18, 2017, from http://< collection.eliterature.org/3/files/transborder-immigrant-tool/transborder-immi- grant-tool.pdf> Demos, T.J. (2013). The Migrant Image: The Art and Politics of Documentary during Global Crisis. Durham: Duke University Press. Dominguez, R. [Electronic Disturbance Theater 2.0/b.a.n.g. lab] (2017), Border Research and the Transborder Immigrant Tool. Media Fields Journal, 12, 1-5. 88 Paulo Silva Pereira

Fischer-Lichte, E. & Wihstutz, B., Eds. (2017). Transformative Aesthetics. London and New York: Routledge. Fisher, R. M. (2006). Invoking ‘Fear’ Studies. Journal of Curriculum Theorizing, 22 (4), 39-71. Finkelpearl, T. (2013). What We Made: Conversations on Art and Social Cooperation. Durham and London: Duke University Press. Garcia, D. & Lovink, G. (2008). The ABC of Tactical Media. Retrieved Sept. 18, 2017, from Goldstein, Evan R. (2010), Digitally Incorrect: Ricardo Dominguez’s provocations: art or crimes?. The Chronicle of Higher Education, 3 Oct. 2010. Retrieved Sept. 18, 2017,from Hemment, D. (2006), Locative Arts. Leonardo, 39, 4, 348-355. Jen, A. (2017). Boundary Issues. Oscar-winning film director Alejandro Iñarritu embraces virtual reality. ArtDesk Magazine, 17, 7. Retrieved Jan. 18, 2018 from Léger, M. J. (2014). Aesthetic Responsibility. A Conversation with Krzysztof Wodiczko on the Transformative Avant-Garde. Third Text, 28, 2, 123-136. Miner, D. (2014). Creating ney: Chicano Art, Indigenous Sovereignty, and Lowriding Across Turtle Island. Tucson: University of Arizona Press. Raley, R. (2009). Tactical Media. Minneapolis: University of Minnesota Press. Rancière, J. (1999). Dis-agreement: Politics and Philosophy. Minneapolis: University of Minnesota Press. Rancière, J. (2010). Dissensus: On Politics and Aesthetics. London and New York: Continuum International Publishing Group. Rancière, J. (2004). The Politics of Aesthetics. The Distribution of the Sensible. London and New York: Continuum International Publishing Group. Rancière, J. (2001). Ten Theses on Politics. Theory & Event, 5.3, 1-16. Rodney, L. (2016). Looking Beyond Borderlines. North America’s Frontier Imagination. New York: Routledge. Sassen, S. (2014). Expulsions: Brutality and Complexity in the Global Economy. Cambridge, MA, USA: Harvard University Press. Sassen, S. (2016). Three emergent migrations: an epochal change. Sur. International Journal on Human Rights, 23, v. 13 n. 23, 29-41. Seiça, A. (2017). Who emigrates departs with #words in their pockets @ aimisola.net/ hymiwo.po. Cibertextualidades, 8, 43-56. Sützl, W. & Hug, T., Eds. (2012). Activist Media and Biopolitics: Critical Media Interventions in the Age of Biopower. Innsbruck: Innsbruck University Press. Thoreau, H. D. (1849). Resistance to Civil Government. Retrieved Sept. 18, 2017 from MIGRATIONS, POLITICAL BORDERS AND THE DIGITAL REALM 89

Ulmer, G. L. & Freeman, J. C. (2014). Beyond the Virtual Public Square: Ubiquitous Computing and the New Politics of Well-Being. In V. Geroimenko (Ed.), Augmented Reality Art. From an Emerging Technology to a Novel Creative Medium (pp. 61-79). Heidelberg: Springer. Wodiczko, K. (2000). Open Transmission. In Alan Reed (Ed.). Architecturally Speaking: Practices of Art, Architecture and the Everyday (pp. 87-95). London and New York: Routledge. Wodiczko, K. (1999). Critical Vehicles: Writings, Projects, Interviews. Cambridge, MA: MIT. Retrieved Sept. 18, 2017, from Žižek, S. (2017). Against the Double Blackmail: Refugees, Terror and Other Troubles with the Neighbors. London: Penguin.

[recebido em 19 de setembro de 2017 e aceite para publicação em 5 de janeiro de 2018]

VIAGENS EM TRADUÇÃO JOURNEYS IN TRANSLATION

Andreia Sarabando * [email protected]

As respostas à crise humanitária a que se tem vindo a assistir com o afluxo de requerentes de asilo para a Europa desde 2015 cobrem o espectro da reação humana ao sofrimento dos outros. Não pela primeira vez na história recente da Europa, há milhares de pessoas cujo flagelo e cuja morte na ten- tativa de chegar a território europeu, ou já dentro dos seus limites geográ- ficos, não eliciam o auxílio e a proteção que a sua condição requer. Pelo contrário, são na sua maioria barradas no seu percurso por governos que se desresponsabilizam, por outros que alegam impotência, e ainda por outros que, motivados por racismo, xenofobia e/ou motivos económicos, tomam medidas muito concretas e deliberadas que contribuem para a degrada- ção das condições de vida de pessoas que procuram refúgio e proteção de cenários de guerra, perseguição e outros contextos incomportáveis nos seus países de origem. Ao longo dos últimos três anos, a União Europeia e os países que a constituem não tiveram capacidade, ou vontade, de encontrar soluções dig- nas para a maioria das pessoas que diariamente chegam à Europa à pro- cura de auxílio. Exemplos flagrantes são a recusa da Hungria, da Polónia e da República Checa em acolher refugiados, e o mais recente programa de recolocação de requerentes de asilo acordado com a Turquia, que tem sido denunciado por várias agências humanitárias como vergonhoso e até ilegal. Entretanto, as ‘soluções’ encontradas fazem proliferar campos sobrelotados e sem condições de habitabilidade (incluindo falta de água, falta de aque-

* Universidade de Aveiro / CEHUM, Universidade do Minho, Portugal. 92 Andreia Sarabando

cimento e falta de saneamento) em que pessoas que se viram forçadas a escapar dos seus países para fugir à violência e à morte vivem em condições que mais uma vez põem em risco a sua segurança e a sua vida. Do outro lado do espectro estão principalmente, para além de orga- nizações humanitárias, respostas individuais e movimentos de cidadãos como o que originou os poemas que se seguem. O projeto Journeys in Translation [Viagens em Tradução] é uma extensão de um outro projeto que juntou poetas do Reino Unido, e que resultou numa publicação, Over Land, Over Sea: poems for those seeking refuge, [Por Terra, Por Mar: poemas para os que procuram refúgio] editada por Kathleen Bell, Emma Lee e Siobhan Logan e publicada em 2015 pela Five Leaves Publications, e cujos lucros apoiam os Médicos Sem Fronteiras, o Nottingham and Nottinghamshire Refugee Forum, e a Leicester City of Sanctuary. O livro inclui 101 poemas que abordam a experiência de pessoas que procuram refúgio na Europa a partir de diferentes perspetivas; o projeto de tradução, coordenado por Ambrose Musiyiwa e Emma Lee, encoraja a tradução de 13 desses poemas para tantas línguas quanto possível e a sua divulgação. Estas são as suas versões em português. Estes poemas lembram-nos que é nosso dever acolher e ajudar os que precisam de nós. Lembram-nos, entre outras coisas, que os movimentos de refugiados são muitas vezes causados ou agravados por interesses oci- dentais nos conflitos que devastam os seus países de origem e que os for- çam a abandoná-los; que a indiferença pode ser tão nefasta como o mal infligido de forma deliberada, e que a solidariedade, a bondade, a empa- tia, e o sentido de responsabilidade em relação aos outros seres humanos devem sempre sobrepor-se às fronteiras nacionais, porque quando falamos de refugiados não falamos de uma massa sem rosto, falamos de indivíduos com histórias pessoais e experiências que podemos não partilhar, mas com quem partilhamos uma característica essencial: a nossa humanidade. A questão dos refugiados não é exclusiva à Europa; em diferentes partes do mundo há países que põem entraves com consequências mais ou menos trágicas à migração de pessoas que tentam fugir à guerra e à miséria, e em consequência disso, a ONU está a tentar implementar um pacto global para a migração em 2018 que inclui medidas específicas para requerentes de asilo. No entanto, o Mediterrâneo continua a ser a rota migratória mais mortal do mundo. Segundo o projeto Missing Migrants da Organização Internacional para as Migrações, numa estimativa feita por baixo, a tenta- tiva de travessia nesta região causou mais de 12.000 mortos só entre 2015 e 2017. É mais do que evidente que as respostas institucionais continuam Viagens em Tradução 93

a ser manifestamente insuficientes para fazer face às necessidades das pes- soas que procuram refúgio na Europa, mas à medida que o tempo passa e os media parecem perder interesse nas histórias destas pessoas, a questão corre o risco de ficar envolta numa indiferença torpe. Através da poesia, essas histórias podem ser recuperadas e podem adquirir novas nuances que revelam dimensões da experiência humana que dificilmente podem ser acedidas através de outros meios. Através da tradução, fronteiras linguís- ticas podem ser derrubadas, e a partir do momento em que uma barreira à compreensão mútua desaparece, o caminho está aberto para o desapareci- mento de outros obstáculos.

[recebido em 18 de setembro de 2017 e aceite para publicação em 5 de janeiro de 2018]

Viagens em Tradução 95

um único país

o nosso lar é um único país na verdade todo o mundo é lugar onde se podem instalar digam-nos lá, se nos souberem dizer devemos partir quando eles chegarem? eles não pertencem aqui, nesta nossa pátria deviam ter vergonha e corar quando nos dizem temos de virar a nossa perspetiva de pernas p’ró ar

temos de virar a nossa perspetiva de pernas p’ró ar deviam ter vergonha e corar quando nos dizem eles não pertencem aqui, nesta nossa pátria devemos partir quando eles chegarem? digam-nos lá, se nos souberem dizer um lugar onde se podem instalar na verdade todo o mundo é um único país o nosso lar

Rod Duncan Tradução de Andreia Sarabando 96 Andreia Sarabando

Crianças da Guerra

Todas as crianças na minha terra sofrem tormentos de guerras.

Todas as crianças na minha terra são amamentadas a leite e medo.

Eu sofro, sofro pela arma ao meu lado: a tua oferta, Pai, no dia antes de te matarem.

Disseste-me que a tua arma seria a minha melhor amiga. Está comigo todos os dias e todas as noites. E mesmo assim

Todas as crianças na minha terra sofrem torrentes de guerras.

Todas as crianças na minha terra são amamentadas a leite e medo.

Malka Al-Haddad Tradução de Andreia Sarabando Viagens em Tradução 97

Entrem

Para os migrantes e refugiados que chegam à Europa

Pedimos desculpa pelos nossos vizinhos, por aqueles que não sabem como dar as boas-vindas; eles leram o livro das portas mas esqueceram-se de como elas abrem.

Pedimos desculpa pelo senhorio, ele sempre foi um problema e os agentes no seu gabinete, será preciso dizer que não fazem nada – mais precisamente: eles fazem o seu nada não em nosso nome.

Desculpem pelo estado em que nos encontram, não é que não soubéssemos que vocês viriam e pelo sofrimento que sabemos por que passaram; por favor estejam à vontade, descalcem os sapatos, tomem este cobertor é o mínimo que podemos fazer.

Peço desculpa pelas nossas maneiras, quando vos visitámos da última vez pela confusão que deixámos, o motivo pelo qual tiveram de vir hoje.

Lydia Towsey Tradução de Andreia Sarabando 98 Andreia Sarabando

Emoldurada

A mãe cobria sempre a cabeça antes de sair de casa; e claro, no nosso lugar de culto.

Algodão, por vezes chiffon ou estampado: Uma Lembrança de Skegness emoldurava maçãs do rosto altas, achatava caracóis perfeitos.

A mãe dela usava um chapéu, mesmo ao jantar, a avó dela, um longo xaile de lã apanhado com um alfinete sob o queixo.

Hoje, uma nora na loja da aldeia, hijab emoldurando os seus grandes olhos castanhos.

Marilyn Ricci Tradução de Andreia Sarabando Viagens em Tradução 99

Canção para Convidados

‘A chegada de um convidado é motivo para um festim’ Um Costume Beduíno do Norte de África

Medo, e ódio é atirado pesa numa noite escura como breu enquanto as gentes se aproximam do calor da fogueira sonhando com fuga por túnel escuro com luminosas mãos de amizade levantadas prontas para apanhar...?

Dêem-nos as boas-vindas

Damos-vos as boas-vindas a todos Venham ... até nós

Nós de homens despertos agacham-se em esconderijos de arbustos à espera de veículos fumarentos passageiro clandestino com impassíveis lábios cinzentos de palavras impressas afiadas para incitar ou rejeitar?

Dêem-nos as boas-vindas

Damos-vos as boas-vindas a todos Venham ... até nós

Novelos de mulheres crianças seguram emoções como redes com gritos feridos enquanto correm lágrimas corações salgam rios humanos atravessam a terra 100 Andreia Sarabando

os seus mares lavariam lodos imundos indiferença cruel uma zoeira suja de uma polis atormentada é sangue o que têm nas mãos?

Dêem-nos as boas-vindas

Damos-vos as boas-vindas a todos Venham ... fiquem connosco A nossa mesa está cheia Mas vazia sem vocês.

Carol Leeming Tradução de Andreia Sarabando Viagens em Tradução 101

Histórias d’ “A Selva”

Tudo o que Abdel vê está conspurcado, apesar dos seus óculos. Com a manga de uma camisa empoeirada, ele empurra a sujidade do meio para os lados das suas lentes. Elas testemunharam familiares a tornarem-se vítimas de crimes de guerra. Ele podia tomar banho durante quinze dias e nunca sentir-se limpo. O inglês é uma língua oficial no Sudão. Aos dezasseis anos ele quer juntar-se a familiares que já estão em Inglaterra.

Para escapar ao recrutamento militar, Sayid, 20 anos, fugiu da Síria. Inspirado pela história de um dos seus heróis, William Gibson, Sayid chegou ao Egito, depois foi num pequeno barco para Lampedusa, pela Itália para a França, de onde só pode continuar. Num portátil emprestado ouve música pop síria. Ele adoraria cozinhar. Ainda tem de pagar a um traficante semanalmente pelo direito de correr atrás de camiões até chegar ao seu [irmão em Inglaterra.

Com uma mão em ligaduras, Abdul, 21 anos, fala do cárcere e gesticula para descrever os choques elétricos que recebeu depois da sua captura pelo governo sudanês. A sua tribo também foi assediada por milícias rebeldes. Sente-se enganado por traficantes. A pesar do seu ferimento de arame farpado, vai tentar de novo. O Sudão foi uma colónia inglesa. Quer parar de olhar por cima do ombro.

Quando um tigre persegue, finge-te morto. Mas é difícil não fugir. Quando os seus amigos foram presos na Eritreia, Hayat fugiu e foi da Etiópia para a Líbia e atravessou o Mediterrâneo. Tornou-se num tigre, a sua presa um comboio com destino a Inglaterra. [Falhou a caçada. Com o braço engessado, ele agacha-se numa caverna de lona improvisada. Um tigre falha nove em dez caçadas. Ele falhou cinco, tem de enfrentar [mais quatro. O inglês é a única língua europeia que fala. 102 Andreia Sarabando

Na Universidade de Al-Baath em Homs, os seus estudos de Literatura Inglesa foram interrompidos pela conscrição. Firas desenhou e seguiu uma isopleta. Três membros da sua família foram mortos por forças governamentais sírias, ele não aguentava ver ou ser responsável por mais morte. A pele rasgada por arame farpado, ele ainda sonha com os pináculos de Oxford. Familiares vivem em várias cidades inglesas, todas com universidades. Ele quer usar a língua na qual se imergiu.

Ziad era um advogado respeitado em Daara. Agora está inquieto, sujo e magoado por trepar cercas, escapar a seguranças e evitar cães. O maço de cigarros amarrota-se à medida que o tece nos seus dedos, esvaziando um último anel de tabaco. Ele não os fumou mas não consegue largar o maço. Ele traduz argumentação jurídica para inglês. Quer reunir-se com familiares e voltar a exercer advocacia.

Emma Lee Tradução de Andreia Sarabando Estas histórias são baseadas em notícias de jornais. Os nomes foram alterados. Viagens em Tradução 103

Os Humanos Vêm Aí

Ela quer ser astronauta atravessar buracos negros e galáxias espiraladas para encontrar vida extraterrestre.

A sua irmã mais velha empurra a cadeira de rodas a chocalhar por um caminho calcário, pontapeando pedras brancas como a Via Láctea.

E agora um alienígena ajoelha-se num campo braço estendido com sonda peluda, em comunhão com a rapariga da cadeira espacial.

Ela conta a estória do seu planeta exausto os seus escombros cinzentos e esqueléticos, a sua família dispersa arquivada no iPhone.

No entanto a Vida é uma aventura, ela acredita que começa num barco de borracha, ondas enrolando altas no cosmos turbulento.

Enquanto a sua irmã musculada é engenheira aeroespacial esta adolescente de óculos, sorriso aberto senta-se sempre ao leme.

Determinada a estar no grupo de desembarque ela saúda cada cidade do Mundo Novo, cada estrangeiro com uma mensagem de paz.

Apesar de ter saudades da sua mãe, ela é corajosa como uma marciana de primeira geração que volta a configurar a antiga noção de “lar”.

Agora o céu noturno tem Duas Irmãs, centelhas numa constelação à deriva, as suas fogueiras perfurando o nosso universo.

Siobhan Logan Tradução de Andreia Sarabando 104 Andreia Sarabando

O homem que correu através do túnel

Quando ouvi como ele correu cruzando continentes sobre rios através de florestas através de desertos e através de túneis, como poderia eu ter deixado de me sentir inspirado?

Ambrose Musiyiwa Tradução de Andreia Sarabando Viagens em Tradução 105

Pela lente um autocarro para a multidão precipita-se para a frente uma frenética correria e compressão

Zoom in... pequenos braços agarrando-se ao pescoço de um homem uma velhinha frágil içada a bordo mãos agarradas separadas

Plano geral... autocarro a desaparecer campo improvisado a reordenar-se a luz e a esperança a desvanecerem

Zoom out... garrafas de água vazias dispostas num círculo e três cobertores dois pequenos e um comprido dobrados numa ligeira curva fazendo uma perfeita face sorridente

Liz Byfield Tradução de Andreia Sarabando 106 Andreia Sarabando

À espera

Quando amanheceu, ela soube que as pessoas lá fora não eram fantasmas. Com precaução levantou-se, dirigiu-se à janela e olhou. Eram mais do que ela tinha suposto. O silêncio deles tinha-a enganado. Para além disso, eram cuidadosos. Mãos adultas guiavam crianças para longe dos seus canteiros. A colheita de vegetais do próximo ano estava a salvo. Um homem levantou os olhos e a trouxa que trazia ao peito agitou-se. Que desavisado, trazer um bebé para aqui. O olhar do homem encontrou o seu, e sob a paciência dele ela percebeu uma terrível urgência. Eles não eram fantasmas – ainda não. Ela fechou as cortinas, voltou para a sua cadeira, e esperou.

Kathleen Bell Tradução de Andreia Sarabando Viagens em Tradução 107

O que há num nome?

Reem está tão cansado que as suas pernas tremem como as de um corço. Elias reza a Deus. Pergunta “Porquê?” Firas compreende. Tem de ser corajoso. Uri chora no escuro, rezando pela alvorada. Ghaith verte lágrimas sincronizadas com a chuva. Ephrem passa uma maçã à sua irmã, o estômago dele ruge. Elham sorri, dá uma trinca na maçã e devolve-a.

Penny Jones Tradução de Andreia Sarabando 108 Andreia Sarabando

Yalla

Na sombra de rochas fissuradas dedos afunilando areia refrescante, a atração da lua talhando o ritmo que preciso para perfurar a tristeza, cheirar o horizonte, saborear futuros. Agacho-me para dar a mão a mão suave enquanto ela pergunta baixinho, quem ouve? Quem vê? A terra vai-nos tocar? A noite envolve-nos. Claro, eu rio. As estrelas ouvem, a lua vê, nova terra encontrar-nos-á. Yallah!

Mais uma madrugada, queixo ao peito, costela a costela, a minha última filha aninha-se no meu colo, exposta a um firmamento completamente empenhado em pressionar o nosso fôlego partilhado contra as profundezas. Levanto a minha palma sulcada, arrefeço a testa, dedos enrugados acariciam sonhos, resíduos às avessas com as marés. Alguém sintoniza as estrelas? Quem quer saber o que a lua vê? A terra tentará alcançar-nos? Yalla. Yalla!

Trevor Wright Tradução de Andreia Sarabando Viagens em Tradução 109

Deslocamento

Dias passam tornam-se num longo dia palavras fogem – montanha sanidade sal sombras soam a comboios

Noites em comboios tornam-se numa longa noite palavras voam – passaporte carrinho de bebé direitos

À espera nas fronteiras como pássaros em poleiros precários onde sombras soam a chuva cheiram a dor

Pam Thompson Tradução de Andreia Sarabando

Plus près de toi, T1. Paris: Dupuis, 2007

[planche / prancha p. 21]

Jean-Claude Fournier (dessin / desenho) & Kris (scénario / argumento)

Quando a Segunda Guerra mundial começou, homens válidos foram envia- dos com urgência para servir a França. Addi, jovem seminarista Francês- Senegalês, prestes a entrar nas ordens, é um de entre eles....

Lorsque la Seconde Guerre mondiale est déclarée, des hommes valides sont envoyés en urgence pour servir la France. Addi, jeune séminariste Français-Sénégalais, prêt à entrer dans les ordres à Dakar, est l’un d’entre eux… RE-CONCEIVING REFUGEE SITUATIONS FROM A DEVELOPMENT PERSPECTIVE: PROVIDING DURABLE SOLUTIONS FOR REFUGEES THROUGH DEVELOPMENT RE-CONCEBER SITUAÇÕES DE REFUGIADOS A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA DE DESENVOLVIMENTO: SOLUÇÕES DURADOURAS PARA REFUGIADOS ATRAVÉS DO DESENVOLVIMENTO

Midori T. Kaga* [email protected]

This paper examines the changing character of forced displacement and its impact on the lives of refugees and their host countries. The paper proposes the need to re-conceptualize the issue of refugees from a development perspective, recognizing that the forced displacement resulting in refugee situations is both a product and cause of development (or lack thereof). Conceiving of refugee situations within a broader development perspective provides a constructive path for the international community to provide truly durable solutions that can expand people’s freedoms, opportunities and capabilities to achieve a fulfilling life and reduce global inequal- ities and instability. The first section discusses the failure of states to facilitate the three durable solutions in the face of the changing character of refugee movements. The second section proposes reconceiving refugee situations as a development issue, the need for bridging the humanitarian-development gap, and the need for counteracting the negative discourse surrounding refugees in order to build on the opportunities that refugees present. The third section provides examples to demon- strate how refugees are creating livelihood solutions for themselves, the contribu- tions they are making to their host societies, and how development-led solutions can help support refugees and better manage the long-term developmental conse- quences of protracted refugee situations.

Keywords: refugees, protracted displacement, development-led solutions, durable solutions, livelihoods.

* School of International Development and Global Studies, University of Ottawa, Canada. 114 Midori T. Kaga

Este artigo examina as transformações dos deslocamentos forçados e o seu impacto na vida dos refugiados e nos seus países de acolhimento. O artigo propõe re-con- cetualizar a questão dos refugiados a partir de uma perspetiva de desenvolvimento, reconhecendo que o deslocamento forçado é tanto um produto quanto uma causa do desenvolvimento (ou a falta dele). Conceber a situação de refugiados dentro de uma perspetiva de desenvolvimento mais ampla constitui um caminho construtivo para a comunidade internacional fornecer soluções realmente duradouras capazes de expandir a liberdade, oportunidades e capacidades das pessoas para alcançar uma vida plena e reduzir as desigualdades e instabilidades globais. Na primeira parte, discute-se o fracasso dos estados em facilitar três soluções duráveis diante do caráter mutável dos movimentos de refugiados. Na segunda parte, propõe-se enca- rar a situação dos refugiados como uma questão de desenvolvimento, a necessidade de colmatar a falta de desenvolvimento-humanitário e a necessidade de contrariar o discurso negativo sobre os refugiados, de forma a dar a devida importância às oportunidades que a presença de refugiados apresenta. Na terceira parte, fornecem-se exemplos para demonstrar a maneira como os refu- giados criam soluções de subsistência para si mesmo, as suas contribuições para com as sociedades que os recebem e como as soluções conduzidas pelo desenvol- vimento podem ajudar o apoio aos refugiados e a gestão a longo prazo da presença prolongada de refugiados.

Palavras-chave: refugiados, deslocamento prolongado, soluções guiadas pelo desenvolvimento, soluções duradouras, meios de subsistência.

0. Introduction

Forced displacement and the issue of refugees is not a unique or new phenomenon. 1 Historically, people have been forced to seek refuge in other countries for hundreds of years; within the last century alone there

1 For the purpose of this paper, a refugee is defined as a person who, “owing to well-founded fear of being persecuted for reasons of race, religion, nationality, membership of a particular social group or political opinion, is outside the country of his [or her] nationality and is unable or, owing to such fear, is unwilling to avail himself [or herself] of the protection of that country; or who, not having a nationality and being outside the country of his [or her] former habitual residence as a result of such events, is unable or, owing to such fear, is unwilling to return to it” (UNHCR 1951 Convention and 1967 Protocol Relating to The Status of Refugees, 14). While there are valid arguments for the need to expand this definition to include, for example, persons forcibly displaced due to climate change, food insecurity, or state fragility, these arguments are beyond the scope of this particular paper (Betts, 2015). RE-CONCEIVING REFUGEE SITUATIONS FROM A DEVELOPMENT PERSPECTIVE 115

have been huge numbers of refugees fleeing their homes including Jews and other persecuted minorities during WWII, Palestinians from Israel, Bosnians during the Balkan War, and Tutsis from Rwanda. What is new is the scale and spread of forced displacement and migration within the past two decades, and the significant length of time refugee populations spend waiting for one of three durable solutions: repatriation, resettlement into a third country or local integration into their host country (Crawford, N.; Cosgrave, J.; Haysom, S. & Walicki, N., 2015). The long-term impacts of forced displacement are profound for refugees, their host communi- ties, and the regions in which the majority of these displacements occur (Betts et al., 2014; UNHCR, 2016b). These impacts are twofold, both of which contribute to and reinforce each other. Concretely, refugee popu- lations face challenging and vulnerable livelihood positions, often lack- ing access to basic services (health, education, housing) and the right to work, which in turn results in a loss of human potential and development (including regional development) as refugees remain stuck in legal limbo, unable to return home and unable to progress with their lives (Aleinikoff, 2015; Christensen & Harild, 2009; Loescher et al., 2008; Loescher & Milner, 2011). Discursively, refugees are viewed as costs and burdens; disrupting the environments they come bursting into, unwelcome. The negative and often xenophobic discourse surrounding the issue of refugees results in efforts to control and restrict their movements as countries of asylum create inhospitable environments to dissuade refugees from arriving and staying (Chimni, 1998 & 2008; Milner, 2009; Zolberg, 1989). In turn, this contrib- utes to the bottlenecking of refugees in developing countries, placing the responsibility for dealing with refugees largely on developing countries that are already struggling to meet the needs of their own citizens. Clearly, none of these situations present permanent, legal, or feasible solutions for both refugees and host countries. This paper proposes the need to re-conceptualize the issue of refugees from a development perspective, recognizing that the forced displacement resulting in refugee situations is both a product and cause of development (or lack thereof). As Zolberg 1989 highlights, “it is precisely the control which states exercise over borders that defines international migration as a distinctive social process”; this calls for an analysis of the forced migration- development nexus, as neither a natural or linear process, but one that is shaped by people, institutions, and structures (p. 406). The vast majority of problems leading to forced displacement are not innocuous or transi- tory; they are outcomes of the long-term political, economic and social 116 Midori T. Kaga

structural inequalities that exist in developing countries, leading to pov- erty, inequality, conflict, and instability. Conceiving of refugee situations within a broader development perspective provides a constructive path for the international community to provide truly durable solutions that can expand people’s freedoms, opportunities and capabilities to achieve a ful- filling life and reduce global inequalities and instability. This paper is structured into three sections. The first section discusses the failure of states to facilitate the three durable solutions in the face of the changing character of refugee movements. The second section pro- poses reconceiving refugee situations as a development issue, the need for bridging the humanitarian-development gap, and the need for counteract- ing the negative discourse surrounding refugees in order to build on the opportunities that refugees present. The third section provides examples to demonstrate how refugees are creating livelihood solutions for themselves, the contributions they are making to their host societies, and how develop- ment-led solutions can help support refugees and better manage the long- term developmental consequences of protracted refugee situations.

1. Setting the Current Context of Refugee Situations

The Changing Character of Refugee Situations

Within the last ten years refugee numbers have significantly increased, from 11.5 million people in 2004 to 17.2 million in 2016 (UNHCR, 2016b). This escalation is partly due to the increased number of conflicts that have forced people to flee their countries, with 15 new or reignited conflicts recorded in the last five years ( UNHCR, 2016a). However, the other main contributing factor is the protracted character of forced displacement that has developed as a result of the failure to implement the three traditional durable solutions (Crawford et al., 2015). Based on the United Nations High Commissioner for Refugees (UNHCR) definition of a protracted refugee situation, two thirds of refugees are currently in a protracted situation (Betts, A., Loescher, G., & Milner, J., 2012). 2 The average length of time refugees spend waiting for repatriation, resettlement, or local integration has risen to a staggering 22 years (Crawford et al., 2015). Moreover, the distribution of refugees has changed: while the majority of refugees (84% in 2016) remain hosted by

2 Protracted refugee situations are ones in which refugees “have been in exile ‘for 5 years or more after their initial displacement, without immediate prospects of implementation of durable solutions’” (Loescher & Milner, 2011, p. 15). RE-CONCEIVING REFUGEE SITUATIONS FROM A DEVELOPMENT PERSPECTIVE 117

developing countries (UNHCR, 2016b), major shifts have taken place in the movements of refugees from predominantly camps to urban settings where estimates indicate at least 59% of all refugees currently live (Crawford et al., 2015). In addition, recent trends in refugee movements reveal that many refugees are moving on to second or third countries in search of better reset- tlement options (Crisp, 2014). Reasons for these onward movements, in which refugees effectively resettle themselves, is linked to the “poor quality of protection, limited livelihood opportunities, limited freedom of move- ment, and the limited access to durable solutions such as local integration” in the first country of refuge (Betts, 2009, p. 9). Since the majority of refugees end up within the region of their country of origin, this places a great responsibility on neighbouring, mainly develop- ing, countries that are least equipped to handle the hundreds of thousands to millions of refugees crossing their borders. This has strong implications for regional security as forced displacement increases situations in which people are subjected to extreme or chronic poverty, pushed towards crim- inal or illegal activities in order to survive, and which may contribute to extremism, conflict, and instability, particularly impacting state fragility (Christensen & Harild, 2010; Zetter, 2014). The perceived burden and neg- ative discourse around the costs of refugees on their host societies contrib- utes to protectionist policy decisions that, conversely, “push solutions for displaced persons further away and incur even greater costs” (Crawford et al., 2015, p. 5).

The Failure to Achieve The Three Durable Solutions

Given the dominant Westphalian perspective through which the responsi- bilities of citizens and states are conceived, the three durable solutions are all meant to be achieved through nation-states, and are consequently all political in nature. 3 This political aspect, highly influenced by the negative discourse and perception surrounding refugees, has stymied progress in effectively implementing these solutions. While major repatriation opera-

3 This perspective conceives of nation-states as sovereign, with complete control over their ter- ritories and in their domestic affairs (Betts 2015, p. ). This conception of the modern state, in which the boundaries of the state designate who is counted as citizen and who is not, is partic- ularly important because it is through the imagined social contract, between citizens and state, that citizens obtain their rights and entitlements (and consequently life opportunities) (Gibney, 2014, p. 2). 118 Midori T. Kaga

tions occurred in the past, the trend towards repatriation has been steadily declining over the past two decades. In 2014, the lowest number of returned refugees in over three decades was recorded, with only 126,800 refugees repatriated to their home countries (UNHCR, 2014, p. 42). In some cases, the reason for this trend in declining repatriation is because the conflicts or reasons for fleeing are ongoing. In other cases, refugees are dissuaded by the uncertainty of returning and the numerous obstacles to reintegrating into their country that has been devastated by civil war, with weak institutions and a lack of public infrastructure and services (Christensen & Harild, 2010). 4 Over the past two decades, resettlement intakes have remained at simi- lar levels, around or below 100,000 refugees resettled per year, with 20-25 countries offering to accept UNHCR screened refugees (Bettset al., 2012; UNHCR, 2016b). However, the number of refugees resettled each year is consistently lower than the number of refugees waiting for resettlement. Resettlement numbers have been steadily declining over the past two dec- ades despite the overall rising numbers of refugees each year (ibid). Reasons for this partly include the increased administrative and screening restric- tions of resettling states due to perceived security risks, especially after the events of 9/11, and the countries of origin of many refugees in recent years (largely from the Middle East or Muslim countries in Africa or South East Asia) (Crisp, 2014). Historically most host countries have heavily resisted local integra- tion, arguing that they lack the capacity to cope with refugee populations as well as their own citizens (Betts, 2015; Dryden-Peterson & Hovil 2004). Reflecting states’ reluctance to implement this third durable solution, in 2014 only “27 countries reported the granting of citizenship to some 32,100 refugees” (UNHCR, 2014, p. 46). In sum, hosting states, the international community, and humanitarian agencies are unable to implement the three durable solutions for the vast majority of refugees. The broader implica- tions for this failure are that more refugees remain in protracted situations for longer lengths of time.

4 Afghan refugees, for example, have returned home on multiple occasions only to be forced to leave again due to the ongoing instability and shifting livelihood opportunities available to them (Monsutti, 2008). RE-CONCEIVING REFUGEE SITUATIONS FROM A DEVELOPMENT PERSPECTIVE 119

Outcomes of This Changing Character of Refugee Situations: Nation-State Responses and the Negative Refugee Discourse

The ways in which refugee situations are conceived, as negative or posi- tive forms of development, has broader implications for what ‘solutions’ are recommended to address them: those towards more exclusionary and restrictive policies that can lead to further stratification and inequalities, or those towards more inclusive policies that can expand people’s freedoms, opportunities and capabilities to achieve a fulfilling life and reduce global inequalities (Sen, 1999). Despite the responsibilities of states to protect refugees under international law, the reactions of states to the changing character of refugee movements have largely been negative, in many cases contradicting the fundamental principles of the 1951 Convention around non-discrimination, non-penalization, and non-refoulement (UNHCR, 1951). 5 The majority of refugee-hosting countries tend to view refugee situ- ations from this negative point of view, resulting in protectionist policies that unintentionally reinforce the very burdens and costs they are meant to reduce. These protectionist policies force refugees to make difficult and risky livelihood choices around employment, education, health, and nutri- tion (Buscher, 2013; UNHCR, 2007). 6 Instead of helping refugees build up their human and financial capital in order to become self-reliant and facili- tate their realization of a durable solution, these protectionist policies have the perverse effect of increasing the vulnerabilities, marginalization and poverty of refugees. In the long-term, the lack of social, human and eco- nomic capital tends to reduce the likelihood that refugees will repatriate, as demonstrated by the residual Liberian refugees left in Ghana “who had no resources to return with and no new skills that would make them mar- ketable upon return” (Buscher, 2013, p. 20). Left unaddressed and unsup- ported by protectionist policies, protracted refugee situations can develop into sources of conflict and instability themselves, contributing to further displacement (Loescher, G.; Milner, J.; Newman, E. & Troeller, G., 2008). Moreover, by trying to protect themselves from the perceived burdens

5 The 1951 Convention on the Status of Refugees is “the key legal document in defining who is a refugee, their rights and the legal obligations of states. The 1967 Protocol removed geographical and temporal restrictions from the Convention” (UNHCR, 1951). 6 Examples abound around the world, including the (attempted) restriction of refugees to camps and denial of the legal right to work in Kenya, refugees forced to work in the informal sector due to their denial of the legal right to work in India, the off-shore detention of refugees by Australia, or the arrest, detention and deportation of refugees in Thailand (Buscher, 2013). 120 Midori T. Kaga

and costs of refugees, hosting states lose out on the potential benefits that refugees can bring to their host society (Betts, A.; Bloom, L.; Kaplan, J. & Omata, N., 2014). While states are the main vehicles through which any of the durable solutions can be found, their current responses to refugee movements are, conversely, resulting in the prevention of durable solutions.

2. Reframing the Issue from a Development Perspective

Reconceiving Refugee Situations From a Development Perspective

Traditionally, refugee situations have been conceived of from an emergency, temporary, and humanitarian lens (Loescher et al., 2008). This predomi- nant humanitarian perspective is due to a failure to understand the broader picture of why people seek refuge in the first place. If we conceive of refu- gee situations from a development perspective, it becomes clear that the structural political, economic, and social problems within refugee-sending countries converge and create environments in which conflict, discrimina- tion, inequality, and instability force people to make the difficult choice to flee their homes (Christensen & Gomez, 2010; Christensen & Harild, 2009). The choice to seek refuge is itself a livelihood strategy. This is increas- ingly reflected in the way refugee movements have changed over the last two decades: from rural and/or camp settings to urban areas; from staying in the first country of asylum to moving on to second or third countries with more welcoming environments; from the huge numbers of refugees who choose not to repatriate to their war-ravaged countries once conflicts have subsided (Crisp, 2014). From this development perspective it becomes clear that the choices made by hosting states and refugees create push and pull factors that both actors react to in turn. The outcomes of these choices contribute to the protracted character of refugee situations, which in turn have their own long-term consequences for refugees, host countries, and regional development outcomes (Loescher et al., 2008). Recognizing that refugees are important actors whose choices impact wider development processes is a critical step towards improving our understanding of how development actors (states, development and humanitarian agencies, inter- national community) can intervene to ensure that forced displacement does not result in negative cycles of poverty, vulnerability, instability, and conflict (Christensen & Gomez, 2010; Christensen & Harild, 2009). RE-CONCEIVING REFUGEE SITUATIONS FROM A DEVELOPMENT PERSPECTIVE 121

Durable Solutions From a Development Perspective: Bridging the Humanitarian-Development Gap

Given the prevalence of protracted refugee situations, it is clear that cur- rent humanitarian programing, while playing a crucial role in dealing with emergency crises and in providing displaced persons with security and pro- tection, is insufficient to deal with the long-term consequences of displace- ment. Since humanitarian relief conceives of displacement as temporary, the programs tend to be short-lived and focused on meeting the immedi- ate basic needs of refugees (Loescher et al., 2008). The funding cycles are equally short-term and cannot be relied upon by refugees as international attention and funding priorities continually shift to newly displaced per- sons and crises (Betts et al., 2012; Chimni 2003; Loescher & Milner 2011). The majority of refugees, especially those in urban settings, end up hav- ing to develop their own livelihood strategies largely unsupported by any government, UNHCR, or NGO program (Loescher & Milner, 2008). Currently, refugees are eking out lives for themselves, often without access to public services, the legal right to work, or support from outside organi- zations (Crawford et al., 2015). This increases the likelihood of refugees living in poverty — potentially intergenerational poverty — and effectively means a loss of human capital and potential as refugees grow up without the opportunity to build their skills and assets that in the long-term will facilitate their final settlement through one of the three durable solutions (Christensen & Harild, 2010; Zetter, 2014). By shifting our perspective away from thinking of protracted refugee situations as temporary events and towards reconceiving them as long- term outcomes of structural social, economic and political problems, we are much better placed to find truly durable solutions to these complex issues (Loescher & Milner, 2008). Truly durable solutions, as conceived in this paper, are understood as the capabilities of refugees to obtain sustain- able livelihoods, including their security, ability to find legal employment, access to economic opportunities, public services, and social networks (Christensen & Harild, 2010). This conception draws on a transnational human rights framework, which emphasizes that “human rights must remain the overriding rationale for generating durable solutions” (Loescher et al., 2008, p. 5). States are the main vehicles through which citizens and non-citizens attain their human rights; therefore, the achievement of truly durable solutions is dependent on states to uphold their responsibilities towards fulfilling refugees’ human rights (Gibney & Skogly, 2002). 122 Midori T. Kaga

While the traditional durable solutions represent permanent solutions for refugees, we need to recognize that this permanence rests on the capa- bilities of refugees to be durably self-reliant, in terms of their own abili- ties and the conductivity of their environment to achieving sustainable livelihoods. While conflicts and violence may eventually become resolved, this does not mean stability and security will automatically follow; indeed, returning to one’s home country is not equivalent to re-establishing one’s life. In the end, no matter which durable solution refugees end up eventu- ally accepting, only by ensuring that they have the capabilities to achieve a life worth living, and not simply surviving, will the cycles of poverty, vul- nerability, and instability be broken (Christensen & Harild, 2009).

Counteracting the Negative Refugee Discourse

Undeniably, refugees place substantial strains on their host populations, infrastructure, public services, and natural environment. However, refugees also bring benefits to their host countries. These include the skills and assets they possess, the employment opportunities they bring through humani- tarian and development program delivery and infrastructure, the expan- sion of local markets to meet the purchasing power of refugees, their access to remittance flows, and, although not frequently discussed, their contribu- tion to multiculturalism (Jacobsen, 2002; Zetter, 2014). 7 Recent research on the different ways in which refugees make positive contributions to their host communities calls for a more balanced perspective on the impact of refugees on their host societies (Betts, 2009; Buscher, 2013; Crawford et al., 2015; Jacobsen, 2002). It is therefore critical to engage both govern- ment and civil society in discussions around how refugees are contribut- ing to their host environments, not as burdens (unless state policies reduce refugees to this position), but rather as stimulants of economic and social development (Aleinikoff, 2015; Zetter, 2014). In particular, when refugees “do not live in camps, but are self-settled amongst the host community, they provide economic inputs in the form of new technologies and skills, entrepreneurship or needed labour”; this in turn can produce economic and social stimulus whose effects expand local economies and revitalize communities (Jacobsen, 2002, p. 585).

7 For example, in Uganda, refugees in Kampala purchase 97% of their goods from Ugandans (this is significantly higher than in camps where refugees still buy about 70% from Ugandans, “reflect[ing] the simple but important observation that the daily economic life of many refugees directly benefits Ugandan businesses” (Betts et al., 2014, p. 16-17). RE-CONCEIVING REFUGEE SITUATIONS FROM A DEVELOPMENT PERSPECTIVE 123

Studies undertaken in Kenya, which is host to millions of refugees (many of whom are in protracted situations), demonstrate that refugees can bring positive impacts in both camp and urban settings (Crawford et al., 2015). The infamous Dadaab refugee camp, itself an outcome of Kenya’s restrictive and protectionist encampment policies that deny refugees the legal right to work and , nonetheless has been shown to bring positive economic impacts with “annual benefits for the host community totall[ing] US $82 million in 2009 through increased trading and business opportunities, camp-related employment, [and] improved infrastructure” (Zetter, 2014, p. 5). In addition, a 2013 survey of Dadaab camp found that only 2% of refugees were entirely dependent on food aid, indicating that despite the lack of opportunities provided by the Kenyan government, refu- gees are nonetheless implementing their own livelihood strategies through alternative income generating activities (Crawford et al., 2015).

3. Towards Comprehensive and Inclusive Durable Solutions

Refugees Are Creating Livelihoods for Themselves

Despite the generally restrictive and unwelcoming hosting environments they face, combined with lack of long-term support from humanitarian and development agencies, refugees are finding or creating livelihoods for themselves. In Malawi, for example, “Eritrean refugees penetrated nearly all the economic sectors in Kassala, displaying a high degree of integration into the city’s daily life despite being unregistered, largely unaided and sub- ject to legal restrictions” (Zetter, 2014, p.5). For the most part these live- lihood strategies are largely unknown to humanitarian and development agencies and host governments due to a lack of recognition and research in this area. Recent research exploring questions around what strategies and how refugees are supporting themselves demonstrates the incredible resourcefulness of refugees as they diversify their income-generating activ- ities: a recent Ugandan study identified “some 70 different types of liveli- hood activities” being implemented by refugees as they spread risk through livelihood diversification (Bettset al., 2014, p. 22). 8 Many refugees are

8 These activities “rang[e] from farming and animal husbandry to specific types of livelihood activities that fall under the categories of food-related businesses, beauty care, transportation, accommodation, entertainment, clothing, manual work and manual technical services, com- munications, finance, specialised services, professional services, and institutional employment” (Betts et al., 2014, p. 22). 124 Midori T. Kaga

aware that humanitarian aid is short-lived and so endeavour to become self-reliant as soon as possible (ibidem). Refugees are finding their own ways of filling social protection gaps, such as through community-lending initatives where they collect, lend and borrow credit amongst themselves, since access to formal credit is nearly impossible (ibidem). They draw on their own skills and social networks to support themselves and the most vulnerable members within their own ref- ugee groups (Buscher, 2013). However, in terms of the success of refugees to become self-reliant and achieve sustainable livelihoods, the significant diversity within and between refugee groups indicates that there are multi- ple driving factors for achieving durability that are highly context specific (ibidem).

A Development-led Approach to Protracted Refugee Situations

An integrated development-led approach (one in which refugees are socially and economically integrated into their host society, and which seeks to improve development outcomes for both refugee and host popu- lations) is critical for counteracting the negative long-term consequences of protracted refugee situations. This paper defines a development-led approach as one that “provides a comprehensive and systematic response to displacement crises, which seeks to mitigate the negative impacts of dis- placement, improve strategies to tackle the economic costs and impacts of displacement and maximise the developmental opportunities and potential of displacement situations” (Zetter, 2014, p. 2). While there is no agreed upon definition of a development-led approach, it is often characterized by the inclusion of refugees in development programming and service deliv- ery alongside local populations and by “training refugees to become ‘agents of development’” (Betts, 2009, p. 5). Some past development-led approaches include the Ugandan Self Reliance Strategy (SRS), which offered settlement land to Sudanese refugees and included them in service provision, and the Zambia initiative, which de facto locally integrated Angolan refugees (Betts, 2009). It is noteworthy that both of these approaches from the early 2000s were joint efforts involving the UNHCR and the host governments. Equally noteworthy were the long- term impacts of these two approaches for the outcomes of refugees and their host communities: in Zambia after the repatriation of Angolan refu- gees, “agricultural productivity in the Western Province declined markedly and the local people regretted the departure of Angolan refugees” (Betts, RE-CONCEIVING REFUGEE SITUATIONS FROM A DEVELOPMENT PERSPECTIVE 125

2009, p. 8). In contrast, while still considered a ‘success’ the SRS approach in Uganda was criticized for providing Sudanese refugees with poor quality land, withdrawing donor support too soon, and the restriction of refugees’ movements to the settlement lands (ibid). Moreover, the SRS narrowly con- ceived of integration as service provision and consequently did not provide Sudanese refugees with the opportunities to socially and economically inte- grate, which “la[y] the foundation for antagonism by maintaining notions of ‘otherness’ inherent in the settlement structure” (Dryden-Peterson & Hovil, 2004, p. 35). While arguably better than not providing any solutions for refugees, these examples highlight the impacts of different develop- ment-led approaches, indicating that the more socially and economically inclusive, the more likely refugees and host communities can achieve posi- tive outcomes.

Supporting Refugees Through a Development-led Approach

Development-led approaches have the potential to benefit both refugees and host populations through local development (Betts, 2009). Instead of creating parallel institutions for refugees that are costly and that “almost by definition leads to segmentation and differentiation” of refugee populations from their host societies, an integrated development-led approach aims to build up local development by providing universal services for host and refugee populations (Mkandawire, 2005, p. 7). Higher demands for public services opens up the potential for the international community to channel development funding towards building up public infrastructure, providing better long-term development outcomes for host and refugee populations and improving international cooperation and aid effectiveness (Betts, 2009; Betts et al., 2014; Jacobsen, 2014; Milner, 2009; Zetter, 2014). Critically, development-led approaches should aim to support refugees’ own liveli- hood choices and aspirations, rather than imposing these from the stand- ard ‘top-down’ perspective. Since the responsibility for dealing with refugees lies with nation- states and the international community, it is from this top-down perspec- tive that the ‘problem’ of refugees is generally conceived (Elie, 2014). This perspective ends up narrowly viewing the issue of refugees as something exogenously impacting states, rather than an endogenous process in which sending states, hosting states, and refugees’ choices combine to produce certain development outcomes. Indeed, the neglect of numerous other per- spectives, in particular those of refugees, means we are only aware of and 126 Midori T. Kaga

understand a small part of the much larger development processes involved. It is imperative, therefore, that the perspectives and voices of refugees are included as partners in development. The power of the ‘refugee voice’ is that it “challenges established national narratives”, questioning the legitimacy of arbitrary borders that define the boundaries of citizenship, entitlements, and the possible difference between a life of poverty or opportunity (Elie, 2014, p. 6). Refugees present a particularly salient challenge to the Westphalian state model. The increasingly globalized and transnational world in which we live complicates the issue of obligations and responsibilities between state and non-citizens who are protected by international human rights instruments (Adamson, 2012; Betts, 2015; Gibney & Skogly, 2002). Nation- states who are signatory to the 1951 Convention are ultimately responsible for protecting refugees (non-citizens) within their borders and to facilitate the realization of durable solutions for these refugees. Even states that have not signed on to the 1951 Convention or 1967 Protocol have some respon- sibility towards refugees located within their borders based on the human rights obligations afforded to all human beings. Thus, durable, transna- tional solutions to dealing with refugee situations have the potential to be used as blueprints for future engagement with the broader issues around mobility and migration.

4. Conclusion

The character of refugee movements and situations are changing at an unparalleled rate: more people are being forcibly displaced, stuck in pro- tracted situations for excruciating lengths of time, and hosted primarily in developing countries that are struggling to cope with their own developmen- tal issues. The response of states and the wider international community to the challenges that these new refugees situations present have not kept pace with these changes. Additionally, the predominantly negative perception and discourse surrounding the issue of refugees paints a picture in which building barriers (physical or administrative) is the only way to stop the tides of refugees flowing across borders. Many refugee-hosting states fail to uphold their responsibilities to protect these vulnerable groups, restricting their right to work, access to services, and mobility. Consequently, refugee populations face challenging and vulnerable livelihood positions, which in turn results in a loss of human potential and development, and reduces RE-CONCEIVING REFUGEE SITUATIONS FROM A DEVELOPMENT PERSPECTIVE 127

the likelihood of achieving one of the durable solutions. Left unchecked and unsupported, situations in which refugees remain stuck without any foreseeable durable solution “erodes human capital and increases poverty amongst people who could be productive; weakens the fragile social fabric of displaced communities, radicalises dispossessed people, underpins the emergence of regional and global security threats and can destabilise host governments; [and] increases the burden on international donors” (Zetter, 2014, p. 1). By reflecting on refugee movements within larger developmental pro- cesses and recognizing the benefits that refugees bring to host societies, it becomes clear that only through concerted efforts by the international community to implement development-led approaches can truly durable solutions be achieved for refugees, their host societies, and neighbouring countries. A discussion of the many forms in which these approaches can be achieved is beyond the scope of this paper; however, it is critical that these development-led approaches reflect the increasingly transnational world in which we live and seek to be comprehensive, cooperative, and col- laborative (Loescher et al., 2008). This includes context-specific programs and policies developed and implemented in partnership by states, interna- tional actors from the humanitarian and development communities (UN bodies, the World Bank, NGOs etc.), the private sector, civil society in host- ing states, as well as refugees themselves. While a development-led approach is more akin to achieving positive development outcomes than emergency relief, there are significant research gaps in this area. There is also a lack of coordination and consensus around so-called refugee ‘burden sharing’ between developed and developing countries that are necessary for the adoption of integrated development-led approaches to protracted refugee situations (Betts, 2009). Moreover, fur- ther research is necessary to understand the changing character of refugee movements, what refugees are looking for in trying to attain sustainable livelihoods (how they are achieving this, with or without the help of outside actors) and how states, development agencies and the international com- munity can better support refugees in terms of their sustainable livelihoods as critical first steps towards finding permanent durable solutions. 128 Midori T. Kaga

References

Aleinikoff, T.A. (2015). From Dependence to Self-Reliance: Changing the Paradigm in Protracted Refugee Situations. Policy Brief. Migration Policy Institute & Transatlantic Council on Migration, pp. 1-16. Adamson, F. (2012). Constructing the Diaspora: Diaspora Identity Politics and Transnational Social Movements. In T. Lyons & P. G. Mandaville (Eds.), Politics From Afar: Transnational Diasporas and Networks. London: Hurst & Co. Betts, A. (2009). Development Assistance and Refugees: Towards a North-South Grand Bargain? (Forced Migration Policy Briefing 2). Oxford: Refugee Studies Centre. Betts, A. (2015). The Normative Terrain of the Global Refugee Regime. Ethics International Affairs. Available at: Betts, A., Loescher, G. & Milner, J. (2012). UNHCR: The Politics and Practice of Refugee Protection (2nd ed.). Abingdon: Routledge. Betts, A., Bloom, L., Kaplan, J. & Omata, N. (2014). Refugee Economies: Rethinking Popular Assumptions. Oxford: Humanitarian Innovation Project. Buchanan-Smith, M., & Maxwell, S. (1994). Linking Relief and Development: An Introduction and Overview. IDS Bulletin, 25 (4), 2-16. Buscher, D. (2011). Unequal In Exile: Gender Equality, Sexual Identity and Refugee Status (Amsterdam Law Forum). Amsterdam: VU University of Amsterdam. Buscher, D. (2013). New Approaches to Urban Refugee Livelihoods. Refuge, 28 (2). Castles, S. (2003). Towards a Sociology of Forced Migration and Social Transformation. Sociology, 37 (1), 14-34. Crisp, J. (2014). In Search of Solutions: Refugees Are Doing It For Themselves. Opening Plenary at Refugee Studies Centre 2014 Conference in Oxford, UK. Available at: Chimni, B.S. (1998). The Geo-Politics of Refugee Studies: A View from the South.Journal of Refugee Studies, 17 (3), 301–318. Chimni, B.S. (2003). Aid, Relief, and Containment: The First Asylum Country and Beyond. In Nicholas Van Hear & Ninna Nyberg Sorensen (Eds.) The Migration-Development Nexus (pp. 51-70). New York: United Nations & International Organization for Migration. Chimni, B.S. (2008). The Birth of a ‘Discipline’: From Refugee to Forced Migration Studies. Journal of Refugee Studies, 22 (1), 11-29. Christensen, A. & Gomez, M. (2010). The Impacts of Refugees on Neighbouring Countries: A Development Challenge (World Development Report 2011). Washington, DC: World Bank Group. RE-CONCEIVING REFUGEE SITUATIONS FROM A DEVELOPMENT PERSPECTIVE 129

Christensen, A. & Harild, N. (2009). Forced Displacement: The Development Challenge. Washington, DC: World Bank Group. Christensen, A. & Harild, N. (2010). The Development Challenge of Finding Durable Solutions for Refugees and Internally Displaced People. Washington, DC: World Bank Group. Crawford, N., Cosgrave, J., Haysom, S. & Walicki, N. (2015). Protracted Displacement: Uncertain Paths to Self-Reliance in Exile (Humanitarian Policy Group Report). London, UK: ODI. Dryden-Peterson, S. & Hovil, L. (2004). A Remaining Hope for Durable Solutions: Local Integration of Refugees and Their Hosts in the Case of Uganda. Refuge, 22 (1), 26-38. Elie, J. (2014). Histories of Refugee and Forced Migration Studies. The Oxford Handbook of Refugee and Forced Migration Studies (Oxford Handbooks Online). Oxford: University of Oxford. European Commission. (2004). Special Programme for Refugee Affected Areas (SPRAA): Final Evaluation. Denmark: European Commission. Gibney, M. & Skogly, S.I. (2002). Transnational Human Rights Obligations. Human Rights Quarterly 24, 781-798. Gibney, M. (2014). Political Theory, Ethics, and Forced Migration.The Oxford Handbook of Refugee and Forced Migration Studies (Oxford Handbooks Online). Oxford: University of Oxford. Jacobsen, K. (2002). Can Refugees Benefit the State? Refugee Resources and African Statebuilding. Journal of Modern African Studies, 40 (4), 577-596. Kuhlman, T. (2002). Responding to Protracted Refugee Situations: A Case Study of Liberian Refugees in Côte d’Ivoire, UNHCR, EPAU/2002/07: Geneva. Lamey, A. (2012). A Liberal Theory of Asylum.Politics, Philosophy and Economics, 11 (3), 235-257. Loescher, G., Milner, J., Newman, E. & Troeller, G. (2008). Introduction. In G. Loescher, J. Milner, E. Newman & G. Troeller (Eds.), Protracted Refugee Situations: Political, Human Rights and Security Implications. Tokyo, Japan: United Nations University Press. Loescher, G. & Milner, J. (2008). Understanding the Problem of Protracted Refugee Situations. In G. Loescher, J. Milner, E. Newman & G. Troeller (Eds.), Protracted Refugee Situations: Political, Human Rights and Security Implications. Tokyo, Japan: United Nations University Press. Loescher, G. & Milner, J. (2011). Responding to Protracted Refugee Situations: Lessons From a Decade of Discussion. Forced Migration Policy Briefing 6. Oxford: Refugee Studies Centre, pp. 1-23. Lyytinen, E. & Kullenberg, J. (2013). Urban Refugee Research: An Analytical Report. New York: International Rescue Committee. 130 Midori T. Kaga

Milner, J. (2009). Refugees and the Regional Dynamics of Peacebuilding. Refugee Survey Quarterly, 28 (1), 13-30. Mkandawire, T. (2005). Targeting and Universalism in Poverty Reduction (Social Policy and Development Programme Paper No 23). Geneva: UNRISD. Monsutti, A. (2008). Afghan Migratory Strategies and the Three Solutions to the Refugee Problem. Refugee Survey Quarterly, 27 (1), 58–73. Moretti, S. (2015). The Challenge of Durable Solutions for Refugees at the Thai–Myanmar Border. Refugee Survey Quarterly, 34 (3), 70–94. Ray, S. & Heller, L. (2009). Peril of Protection: The Link Between Livelihoods and Gender- Based Violence in Displacement Settings. New York: Women’s Refugee Commission. Stein, B. N. (1986). Durable Solutions for Developing Country Refugees. International Migration Review, 20 (2), 264-282. Sen, A. (1999). Development As Freedom. New York: Oxford University Press. UN General Assembly. (1967). Protocol Relating to the Status of Refugees. Geneva: United Nations. Available at: UNHCR. (1951). The 1951 Refugee Convention. Geneva: United Nations High Commissioner for Refugees. Available at: UNHCR. (2007). Refugee Protection and Durable Solutions in the Context of International Migration. High Commissioner’s Dialogue on Protection Challenges. Geneva: United Nations High Commissioner for Refugees. UNHCR/DPC/2007/Doc. 02. UNHCR. (2013). Note on the Mandate of the High Commissioner for Refugees and His Office. Geneva: United Nations High Commissioner for Refugees. Available at: UNHCR. (2014). UNHCR Statistical Yearbook 2014 (14th ed.). Geneva: United Nations High Commissioner for Refugees. Available at: UNHCR. (2016a). Worldwide Displacement Hits All-Time High as War and Persecution Increase. Geneva: United Nations High Commissioner for Refugees. Available at: UNHCR. (2016a). 2016 in Review: Trend at a Glance. Geneva: UNHCR. Available at: Zetter, R. & Deikun, G. (2011). A New Strategy for Meeting Humanitarian Challenges in Urban Areas. Forced Migration Review, 38, 48-50. Zetter, R. (2014). Reframing Displacement Crises as Development Opportunities (Policy Brief for the Global Initiative on Solutions). Copenhagen: Copenhagen Roundtable, 2-3 April 2014. Zolberg, A.R. (1989). The Next Waves: Migration Theory for a Changing World.The International Migration Review, 23 (3), 403-430.

[Submitted on September 9, 2017 and accepted for publication on January 5, 2018] FRONTEIRAS DA EXCLUSÃO DE DIREITOS: HÁ UMA DISCRIMINAÇÃO INSTITUCIONALIZADA CONTRA OS ESTRANGEIROS? FRONTIERS OF THE EXCLUSION OF RIGHTS: IS THERE INSTITUTIONALIZED DISCRIMINATION AGAINST FOREIGNERS?

Diego Ramos Mileli * [email protected]

Este artigo tem por objetivo analisar se não seria o caso que o trato diferenciado dedicado a cidadãos nacionais e imigrantes seria discriminatório. A questão dos imigrantes internacionais aflora atualmente nos mais distintos campos da sociedade. Entretanto, o foco da discussão aqui não é somente o ato de cruzar as fronteiras – ponto central de grande parte das publicações filosóficas sobre imigração. O cerne é a diferença entre direitos e obrigações de imigrantes internacionais e cidadãos nacio- nais. Não se trata de cidadãos de um ou outro país, mas da categoria ‘cidadão nacional’ frente à categoria ‘estrangeiro’, independentemente do país. Será discutido o conceito de discriminação, a fim de que, sobre o pano de fundo deste conceito, sejam debatidas as restrições aos direitos dos estrangeiros. Com isso, pretende-se demonstrar que este tratamento diferenciado caracterizaria uma discriminação, pois os argumentos que sustentariam a diferenciação são insuficientes para justificá-la.

Palavras-chave: imigração, discriminação, cidadãos nacionais, estrangeiros.

This paper aims to analyze whether the differential treatment dedicated to national citizens and immigrants would be discriminatory. The issue of international migrants arises today in very different fields of society. However, the core of the discussion here is not only the act of crossing borders – focus of much of the philo- sophical publications about immigration. The focus of the analysis is the difference of rights and obligations between international migrants and national citizens. It is not about one country or another, but the discussion concern the category ‘national citizen’ in relation to the ‘foreign’, regardless of the country. We will discuss the concept of discrimination, in order to debate the restrictions over the rights of the strangers on the background of this conceptualization. Our goal is to show that this differential treatment would characterize as discrimination, because the arguments that support this differentiation are insufficient for justifying it.

Keywords: immigration, discrimination, national citizens, foreigners.

* Mestre em Filosofia pela Universität Hamburg, Alemanha. 132 Diego Ramos Mileli

1. Introdução

Especialmente a partir do século XX, muitos preconceitos foram combati- dos. Isso não quer dizer que eles tenham sido eliminados, mas que os pre- conceitos, no geral, não são mais institucionalizados, ou seja, não constam mais das regras expressas que determinam a maneira de lidar com o outro, sejam essas determinações oriundas de instituições públicas ou privadas. Hoje em dia defender a igualdade de direitos para todas as pessoas é quase uma obviedade, pelo menos nas democracias ocidentais. Brancos e negros têm os mesmos direitos, assim como homens e mulheres. Homo- e tran- sexuais pouco a pouco ganham a luta contra a discriminação. Ainda que os preconceitos continuem presentes na sociedade, o objeto deste estudo se concentra sobre a esfera institucional. Crer em outra religião que não a majoritária, por exemplo, fora motivo de discriminação institucional, entre outros, por taxas diferenciadas de impostos, proibição de construir templos religiosos, conversão obrigatória ou mesmo a perseguição aos ‘infiéis’. O pertencimento a uma classe social também fora motivo para o reconhe- cimento ou não de determinados direitos, como o caso do voto censitá- rio, por exemplo. Há distintos graus de superação de tais discriminações, as quais, ao final, são a mesma, ainda que com complementos distintos: mulher, negro, judeu, homossexual, transexual, estrangeiro, etc. Entretanto, os estrangeiros ainda não desfrutam dos mesmos direitos que os cidadãos nacionais. Por que os estrangeiros não têm os mesmos direitos dos cidadãos nacionais? Não se poderia dizer que a um são garanti- dos mais direitos que a outro em razão do pertencimento a um grupo espe- cífico? Isto não caracteriza uma discriminação? Por que o encarceramento de pessoas por terem chegado a um pedaço de terra ao cruzar uma linha imaginária; a exclusão de oportunidades de emprego; a negação de direitos, como por exemplo o de participação política, mesmo que a decisão polí- tica afete diretamente a vida dessas pessoas; as deportações; a necessidade de se submeter a uma burocracia e ser constantemente verificado a fim de poder permanecer em um lugar...; Por que estas obrigações extras e restri- ções de direitos não seriam discriminação? Os argumentos segundo o qual o ‘outro’ não estaria disposto a se integrar, ou que o ‘outro’ representaria uma ameaça à integridade da sociedade foram utilizados para tentar justi- ficar todas as outras discriminações. Ao longo da história todos esses argu- mentos se mostraram enganosos quando submetidos a uma análise precisa. Quais seriam os motivos que justificariam que o cidadão nacional desfrute de mais direito que os estrangeiros? FRONTEIRAS DA EXCLUSÃO DE DIREITOS 133

Neste artigo nos ocuparemos do processo institucionalizado de discri- minação contra o estrangeiro. Em outras palavras, a questão aqui remete à relação entre indivíduos, onde um deles representa a esfera institucional e está imbuído do dever de cumprimento das determinações daquela ins- tituição. Para este fim, não nos dedicaremos às diferenças entre os dife- rentes grupos de estrangeiros. Um imigrante estadunidense no Brasil, por exemplo, talvez disponha de melhor reputação ou de mais facilidades que o imigrante boliviano. Porém, este aspecto de conduta não será investigado neste trabalho. O objetivo consiste em investigar se o estrangeiro – como categoria que se contrapõe à de cidadão nacional – têm seus direitos redu- zidos injustificadamente, o que caracterizaria uma discriminação. O foco se projeta sobre a seguinte questão: A diferença de tratamento entre estran- geiros e cidadãos nacionais cumpre os requisitos para que se configure uma discriminação? No geral, defendemos que não deve haver discriminação, mas não nos espanta ou incomoda que, segundo nossas leis, estrangeiros tenham mais obrigações e menos direitos que nós. Quais seriam as justifi- cativas para isso? Devemos aceitá-las? Para poder responder a estas perguntas, primeiro discutiremos o que é uma discriminação. Sem esta discussão prévia, não poderíamos decidir se os estrangeiros são discriminados ou não. Analisaremos a diferenciação moralizada e não moralizada, onde a primeira seria aquela que caracteriza o que compreendemos como discriminação e cujo conceito servirá de base para a questão deste artigo. Em seguida, nos interrogaremos sobre os possí- veis motivos levantados para fundamentar o tratamento diferenciado entre estrangeiros e cidadãos nacionais.

2. O conceito de discriminação

O sentido original da palavra discriminação, derivada do latim, não car- regava uma conotação negativa. Etimologicamente, discriminar significa diferenciar (Pollmann 2010, p. 110). Não mais que isso. Em alguns con- textos, a palavra ainda é utilizada neste sentido. Contudo, a utilização pre- dominante expressa algo mais que um simples diferenciar. A Declaração Universal dos Direitos Humanos não proíbe uma mera diferenciação ao vetar a discriminação (UN 1948). Segundo Allport, as Nações Unidas, em seu documento Os principais tipos e causas de discriminação definiram a discriminação como: “Discriminação inclui qualquer conduta baseada em uma distinção feita sobre uma base natural ou categoria social, a qual não 134 Diego Ramos Mileli

mantenha relação nem com os méritos e capacidades individuais, nem com a conduta individual de uma pessoa” (apud Allport 1958, p. 51). 1 Andrew Altman aponta uma diferença entre a discriminação não moralizada, baseada estritamente em seu sentido etimológico, e a discri- minação moralizada, a qual conduz ao prejuízo do outro. O autor destaca que a discriminação é proibida por seis documentos de direitos humanos (Altman 2015, p. 1). Ainda assim, apesar do consenso sobre a reprovação e o caráter indesejável da discriminação, há que se investigar o conceito filo- soficamente para que possamos verificar se ele se aplica ao caso dos estran- geiros. Em uma primeira aproximação ao conceito, Altman (2015) destaca que se trata necessariamente de uma comparação, a qual não deve ser com- preendida apenas como distinção, já que uma distinção é simétrica. Ou seja, todos os envolvidos são igualmente afetados pela distinção, ainda que nem todos sejam vítimas de discriminação. Por fim, ele rejeita que a discri- minação seja sempre imoral. O autor se vale de um exemplo para demons- trar que sua discriminação não-moralizada não é injusta: Se uma criança se sai melhor nas aulas de música da escola, é justo que ele receba mais aten- ção por parte do professor para que desenvolva seu talento. Se nenhuma discriminação – como mera diferenciação – fosse possível, tampouco seria possível uma condecoração, posto que esta última é um processo de dis- tinção. No mesmo sentido, Mackie sublinha que a injustiça se situa antes na incompatibilidade entre os padrões de avaliação e a avaliação (Mackie 1977, p. 26-27). Pollmann defende uma posição similar e resume em sua definição de discriminação que “as características pessoais consideradas como indesejáveis não se relacionam comprovada e concretamente com o prejuízo em questão” (Pollmann 2010, p. 113). 2 Já como fenômeno morali- zado, a discriminação sempre atua em benefício e uns e prejuízo de outros, sem que haja uma correlação entre sujeito e padrão e entre padrão e situa- ção. Este é o sentido corriqueiro de discriminação. A mera diferenciação passou a ser utilizada apenas em contextos muito específicos. Quando se trata de discriminação hoje tem-se em mente a discriminação moralizada. É ela que se apresenta como um problema ético de impacto social, refle-

1 “Discrimination includes any conduct based on a distinction made on ground of natural or social categories, which have no relation either to individual capacities or merits, or to the concrete behaviour of the individual person.” 2 “die als unerwünscht aufgefasseten Persönlichkeitsmerkmale stehen in keinem nachweisbaren sachlichen Zusammenhang zu der in Frage stehenden Benachteiligung”. FRONTEIRAS DA EXCLUSÃO DE DIREITOS 135

tindo na organização da sociedade. Doravante o termo ‘discriminação’ será utilizado, neste texto, tendo em vista a sua dimensão ‘moralizada’. Altman defende que a discriminação está sempre relacionada com gru- pos socialmente relevantes. Ele afirma que “grupos baseados em raça, reli- gião ou gênero se qualificam como potenciais motivos de discriminação em qualquer sociedade moderna, mas grupos baseados em preferências musi- cais ou culinárias tipicamente não se qualificam como tal” (Altman 2015, p. 2). 3 Há que se fazer objeções a pelos menos dois pontos desta afirmação: (1) quanto ao pertencimento a grupos, e (2) quanto à ‘relevância’, a qual estaria necessariamente vinculada à discriminação. Primeiramente, há que se colocar em questão se é necessário que a um grupo seja negado o que é garantido ao outro para que haja um tratamento discriminatório. Certamente esta é uma característica das discriminações de grupo, mas a discriminação não exige necessariamente que um grupo seja afetado. Na escola, um aluno pode ser discriminado, por exemplo, por não andar de skate, sendo excluído das atividades externas e internas. Neste caso, poderíamos dizer que o aluno não é discriminado já que não há um grupo social dos ‘não-skatistas’? Pode-se argumentar que segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, não se trata de discriminação, porquanto a diferenciação se relaciona às capacida- des subjetivas da pessoa. No entanto, a Declaração das Nações Unidas se refere somente às discriminações de grupo. Além disso, no caso do aluno, são utilizados padrões que não mantêm relação com a conduta esperada. Assim, ele é discriminado independentemente da identificação dele a um grupo específico. Para construir uma definição que supra esse problema podemos recor- rer novamente à de Pollmann. Em vez de atribuir o problema ao per- tencimento a um grupo, Pollmann a caracteriza pela diferenciação entre ‘próprios/mesmos e estranhos’ [Eigene und Fremde] (Pollmann 2010, p. 115). Em nosso exemplo, o aluno é considerado como um estranho por não andar de skate e, por isso, é excluído, ainda que não haja um grupo de ‘não-skatistas’. 4 Ou seja, a discriminação não é necessariamente um fenô-

3 “Thus, groups based on race, religion and gender qualify as potential grounds of discrimination in any modern society, but groups based on the musical or culinary tastes of persons would typically not so qualify.” 4 Não andar de skate não constitui um grupo se não há uma identificação entre aqueles que o constituiriam. Ninguém se identifica como ‘não-skatista’ na medida em que este grupo não costuma representar nenhum valor com o qual alguém possa se identificar. Se, por exemplo, os não-skatistas fossem considerados como seres humanos incompletos, eles poderiam constituir um grupo em virtude de uma demanda de reconhecimento da igualdade de valor dos não- 136 Diego Ramos Mileli

meno entre grupos formados, ainda que, como fenômeno de constituição de identidade, a formação mesma do grupo que exclui tenda a formar, pela própria exclusão, o não-grupo. Desta forma, a discriminação prescinde do choque entre dois grupos previamente constituídos. Em segundo lugar, não parece imprescindível que o grupo discrimi- nado seja ‘relevante’, mesmo que se trate da discriminação de grupos. Ainda que não seja fácil definir o que seja um grupo relevante, podemos utili- zar o exemplo de Altman (2015) de preferência musical como irrelevante. Coloquemo-nos a seguinte questão: Não seria discriminação se uma loja proibisse a entrada daqueles que ouçam músicas populares; ou que sejam gordos; ou muito jovens; ou muito velhos; ou que sejam tatuados etc.? Nestes casos, o pertencimento a um grupo teria sido motivo de discrimi- nação. É um aspecto secundário se o grupo é ‘relevante’ para a estrutura da sociedade. Finalmente, pode-se afirmar que o imprescindível é que uma das partes envolvidas seja prejudicada. O prejuízo é verificado apenas por meio de uma comparação com outro elemento em mesma situação ou em situação. Entretanto, temos que destacar que, ao contrário do que defende Pollmann, não é necessária uma desvalorização do outro para que haja uma discrimi- nação (Pollmann 2010, p. 112). De fato, a desvalorização está frequente- mente vinculada à discriminação, mas não pertence ao conceito. Podemos imaginar o seguinte: Um país decide não aceitar a entrada de muçulmanos argumentando que o país é cristão. Trata-se de uma discriminação, ainda que se alegue que ambas religiões e seus praticantes tem igual valor e que a decisão tenha sido tomada com base na história e na tradição do país. Segundo o discurso oficial do país, a decisão não está fundada em uma desvalorização do outro. Não obstante isso, a decisão é discriminatória por negar direitos iguais sem que se comprove a incapacidade do sujeito em uma questão específica. A partir da análise conduzida aqui, pode-se definir a discriminação como um fenômeno social por meio do qual alguém – o estranho – em comparação com outro – o próprio/mesmo – não é tratado com igualdade, sendo que o prejuízo causado não possui qualquer relação com as carac- terísticas pessoais do sujeito ou com os resultados esperados no contexto específico em que ocorre a diferenciação.

-skatistas com relação aos demais grupos. Em outras palavras, a formação de grupos sociais depende de circunstâncias que possibilitem a identificação – o sentimento de pertencimento – entre os integrantes de um grupo e entre eles e algo, seja este algo uma demanda, um valor ou outra coisa. No que se refere ao sentimento de pertencimento, cf. Freud (2015) e Laclau (2005). FRONTEIRAS DA EXCLUSÃO DE DIREITOS 137

Há que se compreender o prejuízo decorrente da discriminação em um sentido amplo a fim de evitar o equívoco de Allport. De acordo com o psicólogo, “não se trata de uma discriminação contato que sejamos nós quem se afasta deles. A discriminação se produz apenas quando negamos a pessoas ou a grupos o tratamento desejado por eles” (Allport 1958, p. 50). Se uma travesti chega a um bar e os clientes se apressam em sair do lugar ou afastar-se dela, não seria isso uma discriminação? Se uma pessoa negra pede informação a um transeunte, mas é ignorada, não se trata de discri- minação ainda que uma pessoa branca não tenha dificuldade em obter a mesma informação? O evitar é uma forma de prejuízo. Um a pessoa que seja evitada por toda parte tem mais dificuldade para conseguir algo que é garantido facilmente a outro. Além disso, o evitar afeta negativamente a psique do evitado, o que já é um prejuízo. Em resumo, há que se verificar quais são os objetivos subjacentes à discriminação para que se possam encontrar os padrões que justificariam uma distinção. Assim se verificaria se é o caso de uma discriminação mora- lizada, ou seja, se há um prejuízo a alguém em comparação aos demais, o qual não tem relação com as capacidades subjetivas ou com a conduta da pessoa prejudicada. Como este trabalho se dedica à questão do estran- geiro, devemos encontrar ou uma característica pessoal que seja comum a todos os estrangeiros, que justificaria a diferenciação, ou uma relação com um objetivo específico, o qual não poderia ser cumprido por estrangeiros. Apenas assim, a distribuição desigual de direitos e deveres entre estran- geiros e cidadãos nacional poderia não representar uma discriminação. A única característica comum a todos os estrangeiros e essencial ao conceito no que tange à relação com o Estado-Nação é o fato de não ser cidadão nacional.

3. As Justificativas para a Diferenciação

Em termos históricos, o controle de fronteiras é relativamente recente, pois começa na segunda metade do século XIX (Miller 2016; Torpey 1998). Apesar disso, ele já nos parece natural. Se examinamos cuidadosamente a questão do controle fronteiriço, ele se converte em algo controverso já que não se pode assegurar se os Estados teriam tal direito. Mas, nossa ques- tão vai além das fronteiras. As fronteiras abertas são necessárias, porém insuficientes para o tratamento igualitário entre estrangeiros e cidadãos nacionais. Quando se atravessa a fronteira, se é interpelado e são reque- ridos documentos – os quais, desde a chamada révolution identificatoire, 138 Diego Ramos Mileli

caracterizada pela ‘expropriação dos meios de movimento’, utilizando o conceito de Torpey (1998) – comprovam a identidade e a nacionalidade. Os cidadãos nacionais apresentam o passaporte ou a cédula de identidade, e seguem. Os estrangeiros apresentam o passaporte, uns quantos documen- tos, respondem a uma dúzia de perguntas e podem ser barrados mesmo que possuam visto. Sem dúvida, há dois grupos tratados distintamente. É uma distinção justificada? O estrangeiro foi discriminado? Investigamos o que caracteriza uma discriminação. Ela se produz quando uma pessoa é prejudicada sem qualquer relação concreta com suas capacidades, características subjetivas ou conduta. Em outras palavras, não se trata de mera diferenciação do outro pois há prejuízos em razão dessa diferenciação. Dela decorrem dificuldades a um sujeito independente- mente de suas particularidades. 5 Os argumentos que visam a justificar essa diferenciação do estran- geiro podem ser divididos em três grupos: A livre determinação do Estado; Contribuição econômica e social; Proteção à cultura e identificação. A aná- lise será conduzida nesta sequência.

4. A Livre Determinação do Estado

Um dos argumentos que busca justificar o direito do Estado de distinguir entre cidadãos nacionais e estrangeiros no que se refere ao ingresso em um país se baseia na livre determinação do Estado. Wellman (2015) apre- senta esse argumento segundo o qual o direito de exclusão de estrangeiros seria deduzido da livre determinação individual. Segundo Miller (2016), o Estado tem o direito de decidir, no que diz respeito aos imigrantes, sobre os direitos que esteja além dos direitos humanos. De acordo com o autor, os imigrantes se encontram em outra categoria em comparação aos cida- dãos nacionais, pois aqueles teriam decidido por imigrar. “O fato de que eles agora estejam sujeitos à autoridade coercitiva do Estado não tem como consequência que eles devam ser incluídos em iguais condições com relação

5 Vimos também que a discriminação não necessariamente se relaciona a grupos previamente constituídos, de modo que este ponto não afeta nossa análise. Em todo caso, pode-se dizer que os estrangeiros constituem um grupo social na medida de sua exclusão na formação do grupo dos cidadãos nacionais. Um grupo é constituído a partir das práticas de exclusão que estão pre- sentes na constituição do grupo do ‘próprio’ – ou seja, o grupo dos cidadãos nacionais. Assim, os estrangeiros são, sem dúvida, suscetíveis de discriminação. Sobre a constituição ambivalente dos grupos de próprio e estranho por meio das práticas de exclusão, cf. Staudigl (2011). FRONTEIRAS DA EXCLUSÃO DE DIREITOS 139

aos cidadãos nacionais, cuja sujeição é involuntária” (Miller 2016, p. 122). 6 Ele argumenta: “Mesmo que se considere que os imigrantes tenham direito à igualdade enquanto estejam presentes, o Estado pode simplesmente can- celar estas obrigações, requerendo-lhes que deixem o país” (Miller 2016, p. 122). 7 Em primeiro lugar, há que se investigar os limites da livre determina- ção. Que o direito a livre determinação do Estado seja deduzido do direito do indivíduo é questionável. O Estado não é um ser humano. Seres huma- nos e suas associações possuem direitos e obrigações diferentes. Um ser humano não tem ‘súditos’ para cuidar. Não é obrigatório que uma pessoa participe de uma associação. Além disso, as associações não obstaculizam o acesso a condições que garantem a vida. Todavia, não argumentaremos por nenhuma destas teses. Assumamos que o Estado tenha o direito dedu- zido do individual. Se um indivíduo possui uma loja onde muçulmanos não podem entrar, isto é considerado discriminação e o indivíduo punido. 8 Consequentemente, como uma pessoa é punida por sua conduta discrimi- natória, se pode deduzir que não há um direito individual à discriminação. Se a livre determinação do Estado é derivada da do indivíduo, o Estado tampouco tem o direito de discriminar. Já o argumento de Miller, mencionado anteriormente, se baseia no fato de que os imigrantes teriam decidido se colocar nesta situação, enquanto os locais são involuntariamente sujeitos ao Estado. Tendo em vista essa voluntariedade, seria justificado que eles disponham de menos direitos. Além disto, o Estado poderia negar seus direitos ‘pedindo-lhes’ que deixem o país. Então, para Miller, ao que parece, não haveria problema se parte da sociedade vive constantemente sob ameaça de deportação. Submeter alguém a uma vida tão instável não seria reprovável posto que eles decidi- ram imigrar. Antes de mais nada há que se questionar se os cidadãos nacio- nais residem involuntariamente no Estado. De fato, não se decide onde

6 “The fact that they are now subject to the coercive authority of the state does not entail that they must be included on equal terms with citizens whose subjection is involuntary” 7 “Even if we were to concede that immigrants are entitled to equal treatment while they are present, the state could simply cancel its obligations by requiring them to leave.” 8 Aqui comparamos o Estado a uma loja, não com uma casa como se costuma fazer, posto que uma casa representa a esfera privada, enquanto uma loja representa a esfera pública. As esferas pública e privada obedecem regras distintas. Uma pessoa pode ficar em sua casa, mas não na esfera pública, por exemplo. A comparação é sabidamente uma simplificação e não tem qual- quer pretensão de análise da constituição do ser do Estado. Ela é adotada aqui apenas com fins didáticos e argumentativos, partindo de uma transfiguração da aproximação do Estado a uma casa, a qual é utilizada uma vez por outra em argumentações referentes a imigração. 140 Diego Ramos Mileli

nascer, mas pode-se tomar a decisão de sair. Assim, da mesma maneira pode-se afirmar que aqueles que não imigraram se decidiram por ficar. Em outros termos, uns teriam decidido imigrar e outros permanecer, ainda que a decisão eventualmente não esteja sustentada por um processo de reflexão, ponderação e deliberação. Em ambos casos as pessoas teriam optado por aceitar o poder estatal. 9 Acrescenta-se que é necessário se perguntar se uma pessoa tem o direito de decidir ser discriminado. Um exemplo poderia ser quando uma empresa contrata negros somente se eles aceitarem utilizar banheiro diferenciado. A conduta da empresa seria discriminatória. O empregado não seria tratado com base em uma relação concreta com os resultados esperados ou com suas características subjetivas. Os direitos humanos são irrenunciáveis e a não-discriminação é um direito humano. Outra argumentação referente à distinção entre cidadãos nacionais e estrangeiros defende que alguns direitos poderiam ser negados aos imi- grantes por eles estarem em uma situação singular que não é a mesma que a dos cidadãos nacionais. Neste sentido, em razão destas circunstâncias específicas alguns direitos poderiam não lhes ser concedidos. Um destes direitos seria a participação política. Os imigrantes não deveriam ter tal direito porque aqueles que votam tem de ser afetados pelos efeitos de seu voto. Como não é claro se os imigrantes permanecerão no país, eles não poderiam participar da política. A esse respeito, cabe mencionar que as decisões política costumam entrar em vigor imediatamente, de modo que a decisão tomada hoje afeta prontamente os imigrantes. Há de ser destacado que tampouco é claro se os cidadãos nacionais vão deixar o país ou não. Eles podem votar hoje e deixar o país amanhã. Ainda assim eles têm o direito de participar das elei- ções e seus votos não são considerados inválidos quando deixam o país. Finalmente, cabe apontar que, via de regra, os cidadãos nacionais que vivem em outro país não perdem seu direito de votar. Eles podem votar ainda assim e influenciar o futuro do país, mesmo que não sejam direta e imediatamente afetados pelas decisões. Em outras palavras, a incerteza com relação à permanência de uma pessoa no país não é um motivo para retirar o direito à participação política. Miller argumenta ainda que os Estados não teriam motivo para contro- lar a natalidade se as fronteiras fossem abertas, o que geraria uma super-

9 Nesta discussão não questionamos se viver em um lugar significa se submeter ao Estado. O ponto em questão é que em ambos casos as pessoas se decidiram por viver no lugar. FRONTEIRAS DA EXCLUSÃO DE DIREITOS 141

população com efeitos ambientais catastróficos. Conforme seu argumento, a superpopulação poderia migrar, de modo que o Estado de origem não teria que cuidar disto (Miller 2016, p. 65). Isto seria um dos motivos para o controle fronteiriço. Não é de menor importância que se ressalte, primeiramente, que este seria um argumento concernente às pessoas que ainda se encontram fora do país, mas não seria um motivo para tratar diferentemente aos imigrantes que já estão no país. Destaca-se, ainda, que os países chamados desenvol- vidos são responsáveis pela maior parte dos danos ambientais. Poder-se-ia dizer que China, com suas 9.977 megatoneladas, emite mais CO2 que qual- quer país do mundo. Porém, considerando as emissões per capita, se nota que China emite 7,2 megatoneladas. Índia emite ainda menos, com 1,9 megatoneladas per capita, enquanto os Estados Unidos são responsáveis por 16 megatoneladas per capita. Em conjunto, Estados Unidos, União Europeia e Rússia são responsáveis por 10.528 megatoneladas (Global Carbon Atlas 2016). Mais que China, ainda que a população deles seja de cerca de 973,8 milhões, enquanto a da China é de 1.267,5 milhões; quase duas vezes a população do Brasil, sexto maior país do mundo em popu- lação, como diferença entre eles. A informação do Global Carbon Atlas demonstra que de fato o tamanho da população influi na poluição ambien- tal, porém ela está longe de ser o principal motivo. Antes seria o estilo de vida. Miller reconhece que é importante que outros métodos sejam uti- lizados para alcançar a sustentabilidade. Todos os métodos deveriam ser empregados simultaneamente. Sendo assim, não há uma relação nem clara nem necessária entre ‘superpopulação’ e ‘efeitos ambientais catastróficos’. Ademais, cabe questionar o que é uma superpopulação. O Reino Unido tem um alto padrão de vida apesar de sua densidade demográfica de 267,5 habitantes por km², assim como a Holanda, com 501,9 e a Alemanha com 231,5 habitantes por km². China, por exemplo, conta com 146,6 habitan- tes por km². Se olhamos para Mônaco, com seus 25.332,8 habitantes por km² (UN/DESA 2015) fica ainda mais nítida a imprecisão do que seria uma ‘superpopulação’. Não parece ser confirmado pela realidade que paí- ses superpopulosos ‘exportam’ sua população, especialmente porque paí- ses como Malta – com 1.346 habitantes por km² – e Mônaco se situam no espaço Schengen, de modo que seus habitantes poderiam migrar sem empecilhos, ao menos pelo espaço da União Europeia. Em resumo, nem a poluição está diretamente relacionada à densidade demográfica nem há indícios de que um país superpopuloso exporte seu ‘excedente demográ- 142 Diego Ramos Mileli

fico’, e, além disso, tampouco existe um padrão para se verificar o que é uma ‘superpopulação’. Huemer menciona que alguns autores defendem o direito de o Estado dar preferência a seus cidadãos, já que eles são signatários do contrato social e os não-cidadãos não participam dele (Huemer 2010, p. 440). Sem entrar no mérito de se o Estado estaria alicerçado sobre um contratua- lismo, e mesmo que concedamos que haja um tal direito de distinção entre contratantes e não-contratantes, imigrando os imigrantes concordariam com o contrato social. Como os imigrantes assinariam ‘voluntariamente’ o contrato social, seria contraditório impedir sua entrada. Aqueles que não desejam imigrar, poderiam entrar no país, transitar, passar férias ou fazer negócios sem preocupação com a burocracia, já que o próprio ato de imigração faria com que os imigrantes se tornem signatários do contrato social. Assim lhes seria assegurada a igualdade de tratamento. Por fim, pode-se objetar que os controles fronteiriços continuariam a existir a fim de garantir a segurança dos habitantes. Porém, não está claro como este controle poderia verificar um perigopotencial . Em todo caso, os cidadãos nacionais teriam que ser submetidos às mesmas medidas de segu- rança, dado que os nacionais, assim como os estrangeiros, podem represen- tar um perigo à segurança. Se os cidadãos locais cometem um crime, são punidos de acordo com as leis: pagam multa ou prestam serviços comuni- tários, são encarcerados etc. Imigrantes e estrangeiros que cometam crimes deveriam ser responsabilizados exatamente como os cidadãos nacionais. Poderia haver controles fronteiriços, porém eles não seriam um impeditivo generalizado de ingresso em razão do pertencimento ou não a um grupo social, seja a nacionalidade ou qualquer outro.

5. Contribuição Social e Econômica

Como já verificamos que a livre determinação do Estado não sustenta um direito à discriminação do estrangeiro, nos dedicaremos nesta seção à contribuição social e econômica. O cerne desta argumentação se funda na assunção de que a utilização dos benefícios do Estado Social se justificaria pela prévia contribuição a ele. Como os estrangeiros não contribuíram para a infraestrutura do país, não pagaram impostos etc. eles não teriam direito a desfrutar dessa qualidade de vida. Neste caso, os Estados poderiam ao menos exigir que os imigrantes primeiro contribuam por um determinado período antes de poder gozar dos benefícios oferecidos por eles (Huemer 2010, p. 442). Assim, o Estado poderia dar preferência aos cidadãos tam- FRONTEIRAS DA EXCLUSÃO DE DIREITOS 143

bém no tocante ao direito ao trabalho, pois eles contribuíram para o Estado e os imigrantes (ainda) não. Além disso, os cidadãos seriam prejudicados pela imigração porque os estrangeiros trabalhariam por salários mais bai- xos (Wellman 2015). Antes de abordar a contribuição ao Estado, temos que destacar, espe- cialmente naquilo que concerne ao trabalho, que tal discurso é dirigido aos cidadãos nacionais do país que recebe os imigrantes e pretende mostrar que os trabalhadores locais teriam vantagem se não houvesse imigrantes. Eles teriam mais postos de trabalho disponíveis e maiores salários. Da mesma maneira, cabe apontar que os imigrantes no geral trabalham por salários mais baixos por o Estado não assegurar um tratamento igualitário. Entretanto é sim inevitável que os imigrantes ocupem postos de trabalho, já que não são sustentados pelo Estado Social. Apesar disso, não está claro que a ocupação de postos de trabalho possa se caracterizar como ‘roubar emprego’, como costuma se argumentar. Se o posto de trabalho não fosse ocupado por um imigrante, seria ocupado por outro cidadão nacional. Não se explica por que uma pessoa ‘roubaria’ o emprego somente no caso de ser estrangeiro. Por fim, ainda que alguém seja contratado e o outro permaneça desempregado, não se justifica impedir que a outra pessoa seja contratada, como Huemer demonstrou muito bem (Huemer 2010, pp. 437-439). Com relação aos direitos reduzidos dos ‘trabalhadores convidados’ é possível argumentar que eles teriam concordado com as limitações de direitos (Wellman 2015). Anteriormente já lançamos luz sobre isto mos- trando que a concordância com a restrição de direitos não faz com que o ato deixe de ser discriminação, nem com que a discriminação passe a ser aceitável, porquanto, estando entre os direitos humanos, a não discrimina- ção seria direito irrenunciável. Contudo, pode-se discutir também se a con- cordância com a restrição é de fato voluntária. O constrangimento pode ser tão grande que a pessoa se sinta obrigada a suportar a má proposta. Seria uma decisão voluntária aceitar um emprego em péssimas condições caso a pessoa viesse a morrer de inanição ou vivesse na miséria sem o emprego? A desigualdade nas relações de poder em um contexto pode representar uma coerção. É difícil dizer se se há consentido com a restrição de direitos. 10 Ainda resta analisar a contribuição ao Estado. Em um primeiro momento pode parecer uma boa justificativa. Não se teria o direito de gozar de algo sem antes ter contribuído para isso. No entanto, um bebê já

10 Para informações sobre algumas discussões envolvendo a voluntariedade da ação, sugerimos conferir o artigo sobre a ação em Aristóteles (Mileli 2015). 144 Diego Ramos Mileli

tem direito ao sistema de saúde desde o nascimento. Um indigente também tem direito a ajuda do governo, a moradia etc. mesmo que ele jamais tenha contribuído diretamente para o sistema social. Eles não ficam temporaria- mente desprotegidos até que tenham contribuído com uma determinada quantia em impostos. Sobre os bebês se poderia dizer que as mães pagaram os impostos. Porém, não se o deixaria morrer se sua mãe jamais os tivesse pagado. Um trabalhador também não tem seus direitos reduzidos nos cinco primeiros anos de trabalho até que tenha pago impostos o bastante. Então, os imigrantes seriam discriminados se uma desproteção temporária fosse exigida apenas deles. Além disso, acrescenta-se que é difícil dizer que alguém jamais contri- buiu a um Estado, qualquer que seja. Todos os países têm uma economia internacionalizada. No mercado mundial, as importações e exportações de cada país contribuem para a economia do outro. Uma pessoa em Ruanda que compre um celular dos Estados Unidos contribui para a economia esta- dunidense. Um empregado paquistanês que produz bolas de futebol para a Nike, também. Meu computador, por exemplo, importado de Portugal por uma empresa brasileira tem um adesivo que diz ‘Made in China’ exata- mente ao lado de outro onde se lê ‘Microsoft’. Em meus calçados de marca estadunidense comprados na Alemanha está escrito ‘Made in Indonesia’. O copo de vidro no qual bebi vinho ontem foi produzido na Bulgária. As bananas que comi, segundo o adesivo, eram provenientes do Equador. Estes trabalhadores não terão contribuído para a economia alemã 11 por meio de impostos, por meio da garantia de postos de trabalho no transporte, no comércio etc.? A desvalorização de suas moedas possibilita que as empre- sas estrangeiras obtenham grandes margens de lucro, ainda que vendam os produtos a preços baixos, permitindo que grande parte da população alemã os compre. Se esses trabalhadores tivessem ‘salários europeus’ a aquisição de tais produtos seria restrita pelos altos preços, a produção seria reduzida, o Estado recolheria menos impostos, a economia decresceria etc. Pagamos impostos por compra e venda, por importações e exportações que só exis- tem porque os estrangeiros trabalharam. Nenhuma economia do mundo é tão fechada a ponto de os estrangeiros não haverem contribuído de forma alguma. Acrescenta-se à atual divisão internacional do trabalho o fato de as his- tórias dos países serem, no geral, entrelaçadas. O alto padrão de vida na Europa não teria sido alcançado sem a matéria-prima trazida das Américas

11 A referência à Alemanha fora feita, pois eu morava naquele país quando escrevi este artigo. FRONTEIRAS DA EXCLUSÃO DE DIREITOS 145

e da África. A exploração do trabalho escravo também contribuiu para a acumulação de capital. 12 Os séculos de colonização resultaram em uma imensurável contribuição à economia europeia. Portanto, no curso da his- tória como na economia mundializada, toda pessoa contribui para vários países. Para cobrar contribuições extras dos imigrantes, primeiro se teria que calcular quanto eles já contribuíram, mesmo que seja difícil imagi- nar quão precisa seria essa conta. Além disso, há que se destacar que as contribuições são proporcionais aos salários. Aqueles que recebem menos pagam menos impostos sobre o salário. Se fosse possível calcular as con- tribuições diretas e indiretas, também os cidadãos nacionais teriam que ser submetidos às regras de desproteção temporária. Em poucas palavras, a contribuição econômica ao Estado também não é uma justificativa para a diferenciação. No pior dos cenários se teria que mudar as regras. Mas, provavelmente os estrangeiros – se não todos, ao menos grande parte – já contribuíram indiretamente com uma parte proporcional a seus salários.

6. Proteção à Cultura e Identificação

Chegamos ao terceiro e último bloco de argumentos: os que se referem à cultura. O ponto central da argumentação se refere à modificação da cul- tura dada a presença de imigrantes (Wellman 2015). Estas modificações fariam com que os cidadãos não se sintam confortáveis, de modo que o controle da entrada e permanência de estrangeiros, bem como o exercí- cio de direitos poderia ser limitada. Segundo Miller (2016), uma sociedade tem o direito de decidir como a cultura se modificará. Ele acrescenta que a diversidade étnica e cultural reduz o nível de confiança entre os integrantes de uma sociedade (Miller 2016, p. 10): “People are less likely to trust whom they perceive as ‘different’” (idem, p. 17). Carens menciona que algumas pessoas defendem que os imigrantes ameaçariam os fundamentos da moral (Carens 1996, p. 164). De fato, a migração pode alterar uma sociedade. As culturas se desen- volvem devido ao intercâmbio, seja de fora ou de dentro, já que a unidade cultural dentro do domínio de um Estado é forjada a despeito da diversidade de códigos e culturas internas. Nenhuma cultura é estática. Estas mudan- ças sempre podem inquietar parte da sociedade. A história traz incontá- veis exemplos. Quando as mulheres começaram a usar calças ou a poder

12 Para outras informações sobre o tema, ver, entre outros: Coggiola (2011); Marx (2011, pp. 392- 401); Novais (1974; 1989, pp. 57-106). 146 Diego Ramos Mileli

votar, muitos se sentiram incomodados e acreditava-se que estas mudan- ças ameaçavam a sociedade. Os hippies e punks também sofreram grande menosprezo. O fim da escravidão causou preocupação sobre o futuro da civilização e das tradições. Muitos se sentiam incomodados ao lado de pes- soas negras nos ônibus ou trens, mas este incômodo não foi motivo para parar as mudanças. O tema não é novo. Wilhelm von Humboldt escrevera já no século XVIII que o sentimento de incômodo moral não deve ser con- siderado um argumento para limitar a liberdade dos outros, independente de se o ato é considerado imoral, não-virtuoso ou mesmo contra o bom senso (Humboldt 1991, p. 122-123). Em outras palavras, sentir-se incomo- dado não é suficiente para restringir o direito dos outros. Miller sustenta que um povo 13 tem o direito de decidir sobre as mudan- ças culturais. Entretanto, ninguém decide sobre isso. A cultura é determi- nada por todos, mas não é decidida por ninguém. Assim mesmo, Scheffler aponta que as leis já asseguram que as mudanças se produzam dentro de determinados limites (Scheffler 2007, p. 110). Ou seja, já há um meio que busca direcionar a cultura. Para amenizar o medo ante o futuro da cultura ocidental, Huemer (2010, pp. 448-452) bem argumenta: Em vários países do mundo se bebe Coca-Cola, se come no Mc Donald’s, se veste jeans ou terno, se come com garfo e faca, se ouve rock, rap, hip-hop, ópera, música clássica, se toca piano, violino etc. Quando uma mulher está de jeans e tênis Adidas a caminho do cinema para ver o novo filme do Homem-Aranha ouvindo música em seu Iphone com seus fones de ouvido por baixo do véu, muitos veem somente o véu e com isso o fim da cultura ocidental. Véus e mesquitas não são provas, nem mesmo indícios do declínio da cultura ocidental. Quantas Mesquitas e quantas igrejas cristãs você viu nos últimos dias? Quantos comerciais estão escritos em árabe, chinês, persa, turco etc.

13 A questão da formação do povo pelo Estado é muito importante, porém não há espaço para discussão do tema no escopo deste artigo, ainda que ela se relacione com a questão da diferen- ciação de direitos entre nacionais e estrangeiros. Todavia, podemos investir em algumas breves elucubrações a respeito: Suprimindo-se esta diferenciação se acabaria concomitantemente com a distinção entre nacionais e estrangeiros? Em que medida o Estado é formado a partir da exclusão do outro, em vez de ter essa exclusão como mera consequência casual? Se com o fim da diferenciação de direitos ocorrer o fim da distinção nacional-estrangeiro e se esta última for fundamental à existência do Estado atual, o que decorreria daí? Algumas opções seriam: a) O Estado só existe com a manutenção discriminação, neste caso o Estado teria que deixar de existir caso se queira combater a discriminação; b) O Estado representa a população e não ‘o povo’ como entidade identitária unificadora; c) O povo se constitui de outra forma que não pelo reconhecimento da nacionalidade pelo Estado ou pela origem geográfica; d) O Estado, para não ser discriminatório, teria que rever suas bases e fundamentação. Os questionamentos e opções aqui aventados não têm pretensão de serem exaustivos. FRONTEIRAS DA EXCLUSÃO DE DIREITOS 147

e quantos estão escritos em inglês? Isso mesmo que os ingleses e estaduni- denses não sejam a maioria dos imigrantes. Não é somente a migração que modifica uma cultura. O ‘chá inglês’, por exemplo, vem da China e a ‘cerveja alemã’, dos sumérios e babilônios. Isto não quer dizer que o chá inglês seja chinês ou a cerveja alemã seja suméria. Mas, isto demonstra que tais ele- mentos foram absorvidos por meio das trocas culturais, ressignificados e incorporados, passando a fazer parte da cultura que os adotou. Para o bem do debate, podemos aceitar temporariamente que a imigra- ção seja o principal motivo das mudanças culturais. Imaginemos que todos os refugiados do mundo decidam fugir para os Estados Unidos. O que aconteceria? Hoje em dia há o maior número de refugiados da história: 60 milhões (UNHCR 2015). Se todos imigrarem para os Estados Unidos, eles representariam menos de 20% da população do país. Além disso, de acordo com o mesmo relatório, 50% dos refugiados são crianças. Estas crianças iriam à escola dentro da nova sociedade e cultura. Viveriam com amigos e outras crianças locais. Isso modificaria mais visivelmente a cultura dos refugiados que a dos locais. Pode-se argumentar que estes 20%, ainda que a metade sejam crianças, não respeitariam a democracia e quereriam mudar a sociedade com violência. Mas, todas as sociedades têm seus métodos de combate à criminalidade e seus sistemas punitivos. Além disso, os índices de criminalidade dos refugiados na Alemanha, por exemplo, pouco se dife- renciam dos índices referente aos cidadãos nacionais (BKA 2016). Como a Alemanha tem um dos menores índices de criminalidade do mundo, isto demonstra que o medo não reflete a realidade. Examinemos, então, o argumento concernente ao nível de confiança ante a diferença, o qual foi mencionado por Miller. Uma sociedade multi- cultural reduziria o nível de confiança entre as pessoas. O autor não escla- rece o que seria uma sociedade ‘não-multicultural’. A cultura europeia, por exemplo, se desenvolveu a partir de intercâmbios com gregos, egípcios, godos, celtas etc. As cifras matemáticas e a álgebra são de origem árabe. A religião motivo de orgulho de muitos europeus, remonta ao Oriente Médio pertencente ao império romano. Os Estados Unidos e o Canadá são paí- ses desenvolvidos – sem criticar o sentido de ‘desenvolvimento’ –, os quais lucraram com a recente migração de pessoas de quase todos os países do mundo. Além disso, cada cultura é composta de uma variedade de subcul- turas. Cada pessoa participa de diversas culturas e a identificação com as culturas se modifica ao longo da vida. Reduzir uma pessoa a uma cultura indica preconceito e pouca disposição para apreciar a idiossincrasia (Mileli 2016). Pode-se incluir a isto que ser estrangeiro não é sinal de que uma pes- 148 Diego Ramos Mileli

soa pertença a outra cultura. Muitos estrangeiros podem se sentir mais pró- ximo da cultura local que os compatriotas. Um jovem de Nova York, no que se refere aos costumes, expectativas etc. possivelmente se parece mais com um londrino ou com um australiano de Sidney que com um idoso texano. A nacionalidade não é o aspecto principal da personalidade. A identidade nacional é uma invenção recente e pode ser substituída ou sobreposta por outros mecanismos de identificação. Os processos de identificação se modificam de acordo com os contextos. Se as pessoas estão menos dispos- tas a confiar nos outros, isto seria antes um motivo para mudar o modo de se relacionar com a alteridade do que para reforçar a exclusão do outro. Como dissemos há pouco, antes também parecia difícil a muita gente con- viver com pessoas negras. Isto não evitou a abolição da escravatura. Outros tinham dificuldade de confiar em judeus. Mas isso não é um motivo para deportá-los a fim de que as pessoas se sintam menos incomodadas. Finalmente, no campo ético-moral, Carens critica o argumento de que imigrantes seriam uma ameaça à moral. A moral é parte da cultura (Carens 1996, p. 164). Ambas se modificam com o tempo, seja por fora ou por dentro. As análises do processo cultural feitos acima se aplicam à moral. Pode-se incluir, entretanto, que os imigrantes escolhem, via de regra, um país com o qual se identificam. Não se escolhe uma sociedade onde se sinta excluído e incômodo, com a qual se seja absolutamente incompatível. Olhemos atentamente quais são os dez países que mais abrigam refugiados: Turquia, Paquistão, Líbano, Irã, Etiópia, Jordânia, Quênia, Tchad, Uganda e China, onde vivem 57% dos refugiados, e comparemos com os países de onde mais gente foge: Síria, Afeganistão, Somália, Sudão, Sudão do Sul, Congo, Myanmar, República Centro-Africana, Iraque e Eritreia, de onde saíram 77% dos refugiados. Assim, notamos que os refugiados antes bus- cam países de cultura próxima às suas. Do total de refugiados, 86% vivem em ‘países em desenvolvimento’, ainda que, ao menos em teoria, eles teriam direito a asilo na Europa (UNHCR 2015). Além disso, vimos que uma sociedade tem suas leis, as quais mantêm a cultura, a moral e os costumes. Ainda que eles buscassem culturas distin- tas, sentir-se incomodado não é uma justificativa para a discriminação. O incômodo se baseia em um medo de um perigo que ‘o outro’ representaria; medo que costuma se reduzir ou desaparecer com a convivência como nos mostra a história da abolição e das demais discriminações. Este artigo demonstrou que a afirmação de Huemer de que “é mais plausível que os Estados sejam obrigados a ajudar seus cidadãos a satisfa- zer suas necessidades do que sejam obrigados a ajudar todos os residentes” FRONTEIRAS DA EXCLUSÃO DE DIREITOS 149

(Huemer 2010, p. 43) não é tão simples. 14 Isso se assemelharia à concepção de tolerância de Voltaire, de acordo com a qual não representaria um pro- blema se os adeptos de religiões diferentes da oficial ou majoritária tives- sem que pagar duas vezes mais impostos (Voltaire 1975, p. 32). Aqui não discutiremos o conceito de tolerância. Entretanto, tal conduta seria discri- minatória, já que as pessoas seriam tratadas sem que houvesse uma relação concreta entre as características subjetivas e o resultado esperado. Ao final de seu artigo, Huemer reconhece que alguns preconceitos ainda são tole- rados, “nem mesmo sendo reconhecidos como preconceitos pela maioria. Entre estes preconceitos privilegiados está a parcialidade nacionalista, o preconceito que nos dá a impressão de que os compatriotas são cidadãos mais importantes que os de outros países e ignora os direitos dos nascidos no exterior” (Huemer 2010, p. 460). 15 Quero dizer com isso que a maioria das pessoas tem preconceito contra os estrangeiros? Não necessariamente. Como disse Dorschel, “quando os preconceitos são institucionalizados, eles deixam de ser uma opinião subje- tiva. Instituições estatais ou sociais os tornam obrigatórios. Eles aparecem como se fossem objetivos ao mesmo tempo em que se tornam privilégios” (Dorschel 2001, p. 57). 16 Em outras palavras, ainda que os preconceitos bus- quem justificar as discriminações, a institucionalização reduz a relevância da opinião subjetiva preconceituosa, já que a discriminação é legal. Antes de mais nada ela tem que ser desmascarada.

7. Conclusão

Este artigo constata que o tratamento diferenciado entre estrangeiros e cidadãos nacionais é discriminatório na medida em que a diferenciação se dá com base em algo que não diz respeito à idiossincrasia do sujeito em questão, não havendo justificativa para a distinção que não caia em contra- dição quando o mesmo argumento é aplicado no conjunto dos nacionais.

14 “It is much more plausible that states are obligated to help citizens satisfy their needs, than that states are obligated to help all residents do so.” 15 “[...] not even recognizing by most as prejudice. Among these privileged prejudices is nationa- list bias, the prejudice that causes us to view our countrymen as more important than citizens of other countries, and to ignore the rights of the foreign-born.” 16 “Sind Vorurteile einmal institutionalisiert, dann hören sie auf, subjektive Meinungen zu sein. Staatliche oder gesellschaftliche Einrichtungen machen sie verbindlich. Sie erscheinen dadurch als etwas Objektives; zugleich werden sie zu Vorrechten.” 150 Diego Ramos Mileli

A partir da investigação das características da discriminação, analisa- mos argumentos que poderiam justificar o tratamento diferenciado, o que caracterizaria a diferença como não discriminatória. O direito mais fre- quentemente discutido é o de atravessar fronteiras. O tema é controverso e os argumentos contra fronteiras abertas não consideram o problema do tratamento igualitário. No geral, eles defendem o direito de asilo, argu- mentando que o direito do Estado de excluir o outro não pode ofender os direitos humanos. Porém, se esquecem que o direito à não-discriminação é um dos direitos humanos. Mostramos que a condição de imigrante não é justificativa para um tratamento diferenciado, seja em razão do estado social, seja em razão da livre determinação do Estado ou pela manutenção da cultura. Antes de uma justificativa inequívoca para o impedimento que se apre- senta aos estrangeiros hoje em dia em todo o mundo, tal prática é injusta e discriminatória. Além disso, muito provavelmente eventuais justifica- tivas para a restrição de direitos teriam que ser individualizadas, em vez de se aplicar a todas as pessoas que pertencem a determinado grupo. O desenvolvimento da igualdade de direitos parece apontar para a abolição da discriminação contra os estrangeiros, mais cedo ou mais tarde, como ocorreu e ocorre com as demais. Talvez seja necessária outra relação com a alteridade, que não veja o outro como perigo ou como inferior, na qual a alteridade será vista como diferença a ser respeitada e que contribui para o reconhecimento da própria identidade, na qual o outro, em sua alteridade, seja reconhecido como condição de possibilidade de reconhecimento do eu. Provavelmente esta mudança já está, de certo modo, em curso, posto que muitos avanços nos direitos das minorias têm sido alcançados, mesmo que ainda falte muito para uma igualdade de direitos de fato. Conclui-se que, ao que parece, os imigrantes são discriminados. A fim de manter a coerência com os princípios que em teoria se defende, isso já deveria ser suficiente para garantir a igualdade de direitos no que se refere às fronteiras e aos demais direitos, haja vista que os Estados são signatários da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual veda a discriminação. FRONTEIRAS DA EXCLUSÃO DE DIREITOS 151

Referências

Allport, G. W. (1958). The Nature of Prejudice. New York [etc.]: Doubleday Anchor Books. [1954] Altman, A. (2015). Discrimination. In Edward N. Zalta (ed.) The Stanford Encyclopedia of Philosophy [2011] BKA – Bundeskriminalamt (2016). Polizeiliche Kriminalstatistik (PKS) 2015. Carens, J. H. (1996). Realistic and Idealistic Approaches to the Ethics of Migration. International Migration Review, 30/1, 239-259. Coggiola, O. (2011). A colonização da América e a acumulação originária do capital. Jus Humanum – Revista eletrônica de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Cruzeiro Do Sul. São Paulo, v. 1, n. 1 (jul./dez. 2011), 140-174. Dorschel, A. (2001). Nachdenken über Vorurteile. Hamburg: Felix Meiner Verlag. Freud, S. (2015). Massenpsychologie und Ich-Analyse. Hamburg: Nikol Verlag. [1925] Global Carbon Atlas. Emissions. [consultado em 15/06/2016] Huemer, M. (2010). Is There a Right to Immigrate? Social Theory and Practice, 36, 429–461. Humboldt, W. (1991). Ideen zu einem Versuch, die Grenzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen. Stuttgart: Reclam. [1792] Laclau, E. (2005). La razón populista. Buenos Aires: Fondo de cultura económica de España. Mackie, J. L. (1977). The subjectivity of values. Ethics: Inventing Right and Wrong. New York: Penguin Books. Marx, K. (2011). Das Kapital. Stuttgart: Alfred Kröner Verlag. [1867] Mileli, D. R. (2015). A Ação no livro III da Ética a Nicômaco. Cadernos do PET Filosofia (UFPI), 06, 34-42. Mileli, D. R. (2016). Die gruppenbezogenen sozialen Vorurteile: Eine Untersuchung der ihnen beigemessenen Verwerflichkeit. Diss. Mestrado, Universität Hamburg. Miller, D. (2016). Strangers in our Midst: The Political Philosophy of Immigration. Cambridge: Harvard University Press. Novais, F. A. (1974). Estrutura e dinâmica do antigo sistema colonial (seculos XVI-XVIII). Sao Paulo: CEBRAP. Novais, F. A. (1989). Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Ed. Hucitec. Pollmann, A. (2010). Unmoral. München: C.H.Beck. Scheffler, S. (2007). Immigration and the Significance of Culture. Philosophy & Public Affairs, 35, 93-125. 152 Diego Ramos Mileli

Staudigl, M. (2011). Rassismus – Zur Phänomenologie leibhaftig inferiorisierender Desozialisierung. In A. Hetzel, B. Liebsch & H. R. Sepp (Org.) Profile negativistischer Sozialphilosophie. Ein Kompendium (pp. 201–216). Berlin: Akademie Verlag. Torpey, J. (1998). Coming and Going: On the State Monopolization of the Legitimate ‘Means of Movement. Sociological Theory, 16/3, 239-259. United Nations (1948). The Universal Declaration of Human Rights. United Nations – Department of Economic and Social Affairs (UN/DESA) (2015). Population density (persons per square km), as of 1 July. [consultado em 15/06/2016] United Nations/ UNHCR (2015). Global Trends: Forced displacement in 2014. Voltaire (1975). Traité sur la Tolérance à l’occasion de la mort de Jean Calas. Paris: Éditions Gallimard. [1763] Wellman, Ch. H. (2015). Immigration. In Edward N. Zalta (ed.) The Stanford Encyclopedia of Philosophy [2010]

[recebido em 19 de setembro de 2017 e aceite para publicação em 5 de janeiro de 2018] O PAPEL DAS CIDADES NO ACOLHIMENTO DE REFUGIADOS – ESTUDO COMPARATIVO ENTRE BERLIM E PARIS THE ROLE OF CITIES IN WELCOMING REFUGEES – A COMPARATIVE STUDY BETWEEN BERLIN AND PARIS

Bruno Ferreira Costa * [email protected]

Gessica Teles** [email protected]

Nos últimos anos registou-se um crescimento significativo do volume de fluxos migratórios à escala global, principalmente tendo como porta de destino o espaço comunitário europeu. De facto, o espaço comunitário europeu seja pela estabili- dade democrática, seja pelas condições de vida, tornou-se um polo de atração para esta nova vaga de refugiados, oriundos de países envolvidos em diversos conflitos armados no norte de África e no Médio Oriente. Este fluxo de migrantes desafia todos os níveis de governo, principalmente os governos locais, que estão na linha da frente de receção e acolhimento dos refugiados. O presente estudo centra-se na recente crise dos refugiados que tem assolado a Europa, bem como na forma como as cidades europeias, nomeadamente Paris e Berlim, atuaram no sentido de integrar um volume significativo de refugiados, o que colocou diversas questões ao nível das estratégias de integração e acolhimento adotadas. Com base num estudo comparativo e descritivo, procuraremos rastrear as estratégias políticas adotadas ao nível local no acolhimento de refugiados, permitindo mapear as condições para a efetiva integração destes cidadãos no espaço europeu.

Palavras-Chave: cidades, migrantes involuntários, refugiados, direitos humanos, Paris, Berlim.

In recent years there has been a significant increase in the volume of migratory flows on a global scale, especially with the European Community area as the final destina- tion. In fact, the European community’s space due to democratic stability and to its living conditions, has become a magnet for this new wave of refugees from countries involved in various armed conflicts in North Africa and the Middle East. This influx of migrants challenges all levels of government, especially local governments, who

* Universidade da Beira Interior, Covilhã, Portugal. ** Mestre em Relações Internacionais, Universidade da Beira Interior, Covilhã, Portugal. 154 B RunO FErreira COSTA & Géssica Teles

are at the forefront of receiving and welcoming refugees. The present study focuses on the recent refugee crisis in Europe, as well as on how European cities, namely Paris and Berlin, worked to integrate a significant number of refugees, considering the different approaches and strategies to host this flow of refugees. Based on a com- parative and descriptive study, we will try to trace the political strategies adopted at the local level in the reception of refugees, allowing to map the conditions for the effective integration of these citizens in the European space.

Keywords: cities, involuntary migrants, refugees, human rights, Paris, Berlin.

Nota introdutória

A deslocação forçada de um grande contingente populacional encerra, em si, um conjunto de problemas e desafios no que diz respeito à capacidade de integração destes cidadãos nos países de acolhimento. Na última década, com o agravar do conflito armado na Síria, verificou-se um crescimento exponencial do número de refugiados a realizar a travessia rumo à União Europeia, porto de abrigo face às diversas ameaças registadas nos países de origem. O volume do fluxo migratório implicou um olhar atento dos agen- tes políticos europeus, perante o maior nível de refugiados em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial. O recurso à Convenção de Genebra de 1951 (Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados; UNHCR 2010) permite-nos enquadrar conce- tualmente os indivíduos que poderão beneficiar ou solicitar o estatuto de refugiado ao abrigo da legislação internacional. De facto, estamos perante indivíduos forçados a deixar o seu país de origem e procurar a proteção de outros Estados devido a perseguições por motivos de religião, raça, nacio- nalidade, filiação/pertença a determinado grupo social ou político. Estes indivíduos estão despojados da possibilidade de verem os seus direitos garantidos e defendidos nos respetivos países de origem, sendo que atual- mente o número de refugiados em solo europeu ultrapassa já um milhão de pessoas. Perante este fluxo de refugiados, a União Europeia (U.E.) enfrenta uma crise que testa a sua capacidade de gestão deste processo, tanto a nível social, como económico, securitário e legal. As cidades, face ao desenvolvimento cultural, económico e social, são um importante polo de atração, desempenhando um papel crucial no aco- O papel das cidades no acolhimento de refugiados 155

lhimento de refugiados. O carácter multicultural das metrópoles europeias funciona como um desbloqueador na capacidade de integração destes fluxos migratórios. O nosso caminho parte precisamente desta premissa, sendo que a opção pela análise das políticas de acolhimento de Berlim e Paris imbrica diretamente com um conjunto de considerações: a dimensão (geográfica, económica e populacional) destas cidades; o número de refu- giados acolhidos nestas capitais europeias; os apoios económicos registados no acolhimento a refugiados, bem como a prévia existência de uma ampla comunidade de refugiados, permitindo, muitas vezes, políticas de reagru- pamento familiar. Contudo, importa ter presente algumas questões, nomeadamente veri- ficar se estas cidades têm um plano satisfatório relativo ao acolhimento de refugiados e em que condições se processa essa integração. Descodificar os impactos registados nas cidades face ao incremento do número de refu- giados acolhidos nos últimos anos e verificar se as políticas de integração visam uma perspetiva meramente assistencialista ou de empoderamento dos indivíduos. Importa referir que a atual vaga de refugiados é bastante diferente das vagas que vigoraram nas décadas de 1980 e 1990, ou seja, composta essen- cialmente por intelectuais opositores a determinados regimes políticos. A atual vaga é composta, na sua maioria, por cidadãos comuns, famílias intei- ras que procuram fugir a cenários de guerra civil. Outro grupo relevante é constituído por indivíduos a fugir da perseguição com base nas diferenças étnicas e religiosas, pelo que a comunidade internacional desempenha um papel vital no combate a todos os cenários que coloquem em causa a dig- nidade humana. Nesse sentido, impõe-se uma política de acolhimento de refugiados justa, proactiva e eficaz. Para fazer face aos objetivos elencados, recorremos ao método comparativo e a uma perspetiva descritiva (analise qualitativa) com vista a compreender as políticas de acolhimento e a sua adequação à atual crise dos refugiados, numa perspetiva exploratória a esta nova vaga de refugiados.

1. A luz dos refugiados: direitos de um povo sem direitos

Embora os processos migratórios não sejam um fenómeno recente, são aliás uma condição da própria existência humana, a migração representa uma crescente preocupação dos governos nacionais, nomeadamente no 156 B RunO FErreira COSTA & Géssica Teles

seio da União Europeia. De facto, tal como defende Goodwin-Gill (2001) a migração, seja ela voluntária ou involuntária, livre ou forçada, transfor- mou-se numa das questões críticas dos nossos tempos. Estamos perante novos desafios que estão diretamente relacionados com a transformação da tipologia de refugiados, distante dos “refugiados clássicos” identificados por Zolberg, Suhrke e Aguayo (1989). A análise dos fluxos migratórios em solo europeu é crucial para com- preender o recente fenómeno, nomeadamente após um século marcado por duas grandes guerras, por inúmeros governos ditatoriais e por cons- tantes fluxos de mobilidade na procura de melhores condições de vida. A estabilidade política da União Europeia e o alargar das fronteiras ao leste europeu permitiram desde os finais dos anos 1990 um reforço dos estudos no âmbito das políticas de acolhimento de refugiados, tendo o conceito de “migrantes forçados ou involuntários” emergido nas discussões académi- cas (Chimni 2008), o que permitiu alargar o âmbito das considerações em torno das classificações clássicas de refugiados. Estávamos perante novas causas a justificar o fluxo migratório de indivíduos, sendo que estas consi- derações conduziram inclusivamente a equacionar novos conceitos, como por exemplo o de “refugiado económico”. A afirmação dos “migrantes forçados ou involuntários” atesta a inca- pacidade de encontrarmos uma definição consensual e limitar as causas na base dos fluxos migratórios, principalmente se considerarmos as movimen- tações no seio do mesmo Estado. Por sua vez, “na perspetiva das migrações internacionais, que têm na transposição da fronteira do país de origem um elemento central, esta nova perspetiva desafia a elaboração de instrumentos novos de intervenção humanitária pois vai ao encontro de soberania de cada Estado” (Sousa 2016, p. 76). Neste cenário, podemos equacionar a emergência de uma crise de refugiados, sendo que “a verdadeira crise não é simplesmente baseada em números ou mesmo no grau de dificuldades, tanto físicas como emocio- nais, sofridas por todos os envolvidos [...] a crise real é política e moral” (Adelman 1983, p. 1). Esta perspetiva de Adelman desvia-se do âmbito da presente análise, uma vez que consideramos que a temática dos refugia- dos entrou na agenda mediática em virtude do número de refugiados a entrar no continente europeu. É precisamente esta vaga de refugiados que faz emergir o debate em torno das conceções acima referidas, tais como ‘migrantes forçados ou involuntários’ ou de ‘refugiados económicos’. Não é nosso objetivo mesclar os conceitos de ‘refugiados’, ‘migrantes forçados’ ou ‘migrantes involuntários’, uma vez que é possível descortinar O papel das cidades no acolhimento de refugiados 157

definições específicas de cada um destes conceitos, bem como causas na base da migração registada. Recorrendo ao contributo de Marrus (2010), é possível identificar três indicadores para caracterizar os refugiados nos tempos modernos, a saber: o aumento significativo do número de refugia- dos, principalmente oriundos do continente Africano e do Médio Oriente; a associação entre esta nova vaga de refugiados e um novo registo de apá- tridas, considerando a maior responsabilidade do Estado no desempenho das funções sociais, outrora da responsabilidade da Igreja e das associações comunitárias, e a maior duração dos períodos de exílio destes refugiados, que em muitos casos permanecem em campos de refugiados durante vários meses até conseguirem solicitar um pedido de asilo formal. Esta nova vaga de refugiados, oriunda de países como o Afeganistão, o Iraque ou a Síria, em simultâneo com a expansão do autoproclamado Estado Islâmico, originou “a necessidade de recentrar o debate em torno das diferenças sociais e culturais, tendo feito reemergir uma espécie de dicotomia entre um ‘racismo subtil’ ou associado a indicadores económicos e uma política baseada no integracionismo e na defesa intransigente dos direitos humanos” (Costa 2016, pp. 153-154). Este novo debate é ainda mais vincado nos países ocidentais, consi- derados como centros de cultura, educação, inovações e oportunidades económicas, sendo as diversas metrópoles europeias um importante polo de atração dos migrantes internacionais, seja pelo acesso a mais oportu- nidades de emprego, seja pelas condições económicas e sociais associadas a estas cidades, bem como a estruturas de acolhimento mais adequadas às necessidades dos refugiados. Com base nos dados disponibilizados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, verifica-se que cerca de metade dos migrantes internacionais concentram- -se em dez países altamente urbanizados e com um elevado índice de desenvolvimento humano (IDH): Estados Unidos da América; Alemanha; Federação Russa; Arábia Saudita; Reino Unido; Emirados Árabes Unidos; Canadá; França; Austrália e Espanha. Com esta nova vaga de refugiados assistiu-se a mudanças significativas nas características demográficas, culturais, políticas e económicas destes países, criando-se um conjunto de desafios não apenas para os decisores políticos, como também para a sociedade civil globalmente considerada. Diversas são as causas que favorecem a migração, que pode ser voluntária (reunificação familiar, melhores oportunidades de educação e emprego) ou involuntária, quando as pessoas são forçadas a deixar seu país de nasci- mento e procurar a proteção de um outro país (refugiados em busca de 158 B RunO FErreira COSTA & Géssica Teles

condições de sobrevivência, por exemplo) e, portanto, cabe neste estudo, a diferenciação do conceito de refugiado e imigrante. Tal como referimos com o recurso à Convenção de Genebra (1951), os refugiados são indivíduos forçados a abandonar o seu país de origem face a situações de perseguição em razão da sua raça, religião, naciona- lidade, grupo social ou opiniões políticas. Do mesmo modo, a definição abarca todos os indivíduos que tenham a sua vida, segurança ou liberdade ameaçadas no decurso de violência generalizada, agressão estrangeira, con- flitos internos, violação massiva dos direitos humanos ou outros fatores que tenham perturbado a ordem pública (Convenção da Organização da Unidade Africana de 1969 e Declaração de Cartagena de 1984). As recentes vagas de refugiados estão intrinsecamente ligadas à ocor- rência de guerras civis no plano internacional, originadas por múltiplos motivos, sejam eles religiosos, políticos, étnicos ou económicos. Os cená- rios de conflitos colocam em causa a vida e os direitos fundamentais de indi- víduos ou grupos populacionais que representam determinadas etnias ou religiões minoritárias no país ou que assumem opiniões políticas distintas das do governo, estando, assim, sujeitos a ameaças e perseguições (Moreira 2005). Por outro lado, diretamente relacionado com a ausência de respostas imediatas aos problemas associados à crise de refugiados, verifica-se que estas situações acontecem, geralmente, em países sem grande expressão no cenário internacional (Jubilut 2007), o que pode ‘justificar’ a menor inter- venção da comunidade internacional na resolução destes conflitos. De um modo geral, a situação do refugiado é tão perigosa e intolerá- vel que o mesmo é impelido a cruzar fronteiras internacionais, mesmo em situações que colocam em risco a própria vida, na procura de condições de segurança em países próximos. Após este passo, todas as situações são analisadas pelos países de acolhimento no sentido de validar o estatuto de refugiado e conceder asilo a estes indivíduos. Este reconhecimento tem por base um princípio facilmente compreensível: o hipotético regresso (depor- tação) destes indivíduos para os países de origem poderá significar um perigo para a própria vida, pelo que a negação do pedido de asilo poderá ter consequências nefastas. 1 O incremento do número de fluxos de migrantes, bem como as cau- sas intrínsecas a esses fluxos, deram origem a diversas terminologias e enquadramentos concetuais. Neste contexto, o papel dos Estados e das Organizações Internacionais é determinante no apoio a indivíduos vítimas

1 Este alerta é evidenciado em . O papel das cidades no acolhimento de refugiados 159

de catástrofes desencadeadas por problemas naturais, bem como as migra- ções internas (registadas entre regiões do mesmo país), mas que em termos comparativos poderão estar em situações similares às vividas pelos refugia- dos e consequentemente necessitam de proteção e assistência no sentido de ver garantidos os seus direitos básicos (Morêz 2009). Recorrendo ao contributo de Pierin (2009), consideramos os indiví- duos que migram de forma forçada em cinco tipos, a saber: os solicitantes de asilo (que poderão vir a caber na tipologia de refugiado); os refugiados propriamente ditos (que poderão ser acolhidos por um país, reassentados num terceiro Estado ou repatriados para o país de origem); os deslocados internos (cuja migração se desenrola no mesmo país); os apátridas (que não possuem um vínculo jurídico de nacionalidade a um Estado, sendo que esta ausência/perda de nacionalidade poderá estar relacionada com processos de descolonização ou desintegração de federações) e os asilados. Por sua vez, o conceito de imigrantes está imbuído de uma carga inicial mais voluntarista, ou seja, os indivíduos não são alvos de ameaças à sua vida ou liberdade, mas optam por migrar na procura de melhores condições de vida, na procura de trabalho ou oportunidades de desenvolver projetos de formação ou garantir a reunião com familiares. Em termos jurídicos estes indivíduos continuam a beneficiar da proteção do país de origem, sendo o seu regresso uma possibilidade. Considerando os países recetores destas vagas de migração, regista-se uma legislação específica em cada Estado. De facto, cada país tem a liberdade de determinar as regras existentes para o aco- lhimento destes migrantes, enquanto que as regras na base do acolhimento dos refugiados baseiam-se em normas nacionais e internacionais, tal como estipulado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Não é nosso propósito incidir a presente investigação num marco meramente concetual e normativo, embora seja evidente que a classifica- ção tradicional de refugiados já não permite uma resposta eficaz perante as diversas situações existentes. De facto, a possível emergência do estatuto de ‘refugiado económico’ pode estar associada a populações que vivem em situações de extrema pobreza e cuja permanência nesses Estados pode con- duzir a situações de carência que colocam em causa a saúde e o bem-estar das populações. Face a países que registam uma esperança média de vida inferior a 50 anos, não poderemos estar perante cenários em que as pessoas ficam ‘antecipadamente’ condenadas a situações de pobreza extrema e que afetam diretamente direitos fundamentais? O direito internacional define e protege os refugiados e é uma das três vertentes da proteção da pessoa humana. A Convenção da ONU sobre o 160 B RunO FErreira COSTA & Géssica Teles

Estatuto dos Refugiados, a Convenção da Organização da Unidade Africana e a Declaração de Cartagena são a chave para a proteção dos refugiados. Os princípios legais destes instrumentos têm influenciado inumeráveis leis e costumes internacionais e nacionais (ACNUR 2015b). A existência de uma convenção internacionalmente aceite permite mapear os direitos e os deve- res dos Estados perante o acolhimento a refugiados, o que atribuiu a este processo um carácter universal (Pierin 2009). Na base dos direitos dos refugiados encontra-se o conceito de non- -refoulement, que significa, precisamente, que o indivíduo não pode ser devolvido/deportado para o país de origem, tendo por base o perigo que essa situação poderia causar. Neste caso, os refugiados devem beneficiar da proteção, acolhimento, habitação no país de acolhimento (Jubilut 2007). Desta análise, realça-se os quatro princípios legais elencados pela Unesco e que os governos nacionais devem levar em consideração perante situa- ções de migrantes e refugiados: os direitos humanos universais aplicam-se a todos os refugiados e migrantes, independentemente do respetivo status; princípio da igualdade de tratamento e não discriminação entre refugia- dos (veja-se por exemplo a possibilidade de um Estado agilizar processos de asilo de nacionais de determinado país em detrimento de refugiados de outros Estados), migrantes e nacionais; o princípio que que as normas internacionais do trabalho aplicam-se a todas as pessoas envolvidas numa relação de trabalho e o princípio de que todas as pessoas que procuram proteção internacional de refugiado beneficiam do direito de solicitar asilo. O acolhimento dos refugiados abrange três princípios fundamentais: proteção, realizada pela fiscalização da aplicação dos diplomas legais sobre refugiados no sentido de garantir a não violação destes direitos; assistência, num princípio basilar do apoio prestado no primeiro contato com o refu- giado e que poderá incidir em apoio psicológico imediato, médico, legal; e o princípio da integração, nomeadamente aspetos relacionados com as vertentes sociais (Jubilut 2007). A conceção de asilo a pessoas que se encon- tram em situação de vulnerabilidade pode ser verificada em toda a histó- ria da humanidade, sendo comum a diversas épocas da humanidade. De facto, “o asilo é uma resultante da liberdade do homem e da necessidade de protegê-lo contra o arbítrio e a violência: nasce da revolta, da vingança ou do crime; é o companheiro da infelicidade, da expiação e da piedade, coevo do primeiro agregado humano” (Fernandes 1983, p. 147). O costume internacional consolidou a prática da concessão de asilo por parte dos Estados nacionais. Entretanto, a comunidade internacional carecia, ainda, de um corpus normativo. Essa normatização surge com a O papel das cidades no acolhimento de refugiados 161

Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, aprovada no âmbito das Nações Unidas. Com o intuito de formar os povos para a proteção dos direitos humanos, a declaração inspirou-se na Revolução Francesa e baseia- -se nos princípios de liberdade, igualdade, fraternidade e solidariedade (Barichello 2009). Recorrendo à análise da referida Declaração 2, verificamos, precisa- mente, no seu artigo 14º a indicação de que “todo o ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar de asilo em outros países”. No entanto, embora a declaração formalize a prática internacional de acolhimento a migrantes em situações de vulnerabilidade, a mesma não obriga qualquer Estado a conceder asilo. A sua concessão, ou não, é um ato a cargo do Estado asilante. O asilo significa, no mínimo, a proteção básica, ou seja, não forçar os refugiados a retornarem para as fronteiras dos territórios onde tiveram sua vida ou liberdade ameaçadas, por um período temporário, com a possibilidade de permanecer no país de acolhimento até que uma solução venha a ser encontrada (UNHCR 2001). O país que concede asilo garante a não devolução do refugiado ao país de origem, sendo que esse retorno apenas se aplica mediante mani- festação expressa do recetor do estatuto de asilo e tendo por base que os problemas na origem da fuga foram superados (por exemplo quando o governo na base das perseguições a uma dada minoria tiver sido deposto ou substituído). No caso de refugiados terrestes e caso o Estado de acolhi- mento inicial não conceda o estatuto de asilo, deverá realoca-lo num país terceiro (este procedimento foi o adotado nos países europeus, uma vez que a maioria dos refugiados tem entrado pela Grécia e pela Itália, sendo depois distribuídos pelos restantes membros da União Europeia). No caso dos refugiados que alcançam os países pela via marítima, os Estados podem proibir o desembarque, ou caso já o tenham permitido, pode compeli-los a embarcar novamente (Pierin 2009). Vislumbra-se, nos dias atuais, uma discrepância entre o direito pensado e o que é posto em prática no que concerne à questão dos refugiados. Isso porque, existe uma crescente preocupação em promover a ampliação do número de países dispostos a empreender esforços em prol dos refugiados através de variados esquemas de cooperação por parte da sociedade inter- nacional e isso tem sido evidenciado no apelo à criação de mecanismos que visem à proteção das vítimas, das suas famílias e dos seus descenden- tes no âmago interno de cada Estado. Tais mecanismos tendem a envolver,

2 A declaração pode ser consultada em: . 162 B RunO FErreira COSTA & Géssica Teles

primordialmente, o ensejo à integração destes grupos nos países recetores, bem como a inclusão dos reassentados em programas governamentais liga- dos à saúde, à educação, ao trabalho, à habitação, ao lazer e ao consumo – o que por si só já representa um grande desafio, considerando o facto de que uma grande parcela dos Estados tem insuficiência de políticas públicas para tal e instituições assistenciais deficientes em relação aos seus próprios nacionais. No que diz respeito à receção e proteção dos refugiados, alguns dos procedimentos adotados por cada Estado tendem, invariavelmente, a resultar num efeito diverso – senão antagónico – à sua proposta inicial, seja a de garantir uma efetiva reintegração social e melhores condições de vida aos refugiados (Morêz 2009). Por outro lado, o medo da ameaça à segurança humana e à segurança do Estado, que podem ser atacados com eficiência de forma unilateral, incentivam o preconceito e a discriminação face à diferença. O incremento de visões pejorativas face aos refugiados e aos imigrantes em geral, bem como o estabelecimento de falsas correlações entre estes fluxos e os índi- ces de criminalidade, têm conduzido à adoção de políticas protecionistas, o que cria diversas lacunas no apoio aos refugiados, nomeadamente com o registo de situações de exploração da força de trabalho ou a exploração sexual de mulheres e de crianças. Por sua vez, a ausência de uma eficaz e rápida resposta a situações de urgência conduz ao fortalecimento de redes de tráfico e exploração de seres humanos. É necessário que os Estados e as organizações trabalhem de modo eficaz, não apenas no sentido de garantir a proteção destas pessoas no âmbito internacional, mas também no sentido de incentivar a sociedade de acolhimento à solidariedade para que, com trabalho conjunto, a dignidade perdida pelos refugiados seja aos poucos reconstruída.

2. O contexto europeu: da tradição de acolhimento à crise dos refugiados

Em 2015, após o aumento do fluxo de refugiados a chegarem ao continente europeu através do Mar Mediterrâneo e face à pressão pública derivada do número de notícias sobre as mortes ocorridas num tão curto espaço de tempo, os governos europeus foram forçados a agir perante a dramática crise humanitária vivida em Estados como a Síria ou o Afeganistão e nos países que constituíam portos de receção das embarcações (Itália e Grécia). A Europa enfrentava o maior e mais desafiador fluxo migratório desde a O papel das cidades no acolhimento de refugiados 163

Segunda Guerra Mundial (Metcalfe-Hough 2015), pelo que era necessária uma ação concertada dos 28 Estados-membros de modo a permitir a oti- mização dos resultados perante a crise vivida. Na base deste fluxo migratório histórico estão diversas causas, nomea- damente os conflitos e as guerras civis, as violações massivas de direitos humanos; situações de miséria e de fome; a intolerância religiosa; as alte- rações climáticas e a falta de esperança. Estas causas estiveram na base do fluxo de centenas de milhares de pessoas rumo ao continente europeu, num esforço realizado, muitas vezes, em condições que colocavam a própria vida em risco. Este êxodo em massa atingiu a Europa, que se mostrou pouco preparada para apresentar uma solução adequada e eficaz para o drama que a feriu (Pereira 2016). A União Europeia está sob forte pressão migratória, sem perspetivas de diminuição, devido à chegada de refugiados que fogem dos conflitos internos na Síria, Etiópia, Nigéria, Sudão, Eritreia, Gana, Somália, Egito, Tunísia, Líbia e Afeganistão. Isso tem colocado o tema da imigração ile- gal e dos refugiados na agenda política (Sampaio 2014). Segundo dados da Unesco, em 2015 o número de requerentes de asilo nos países do bloco foi de 1.392.610 contra 626.960 em 2014. Em todo o mundo, o número de refugiados cresceu significativamente em 2015, chegando a 21.3 milhões, contra 19.5 milhões em 2014. Do total de refugiados, 53% eram oriundos de três países: Síria (4.9 milhões), Afeganistão (2.7 milhões) e Somália (1.1 milhão). Estes dados permitem atestar que o drama dos refugiados é uma realidade presente e não ultrapassada, sendo que quase 34 mil pessoas são forçadas a deixar as suas casas diariamente face a conflitos ou perseguições (ACNUR 2015a). Embora a mediatização das notícias em torno da crise dos refugiados sugira a Europa como o epicentro da referida crise, verifica-se que os países que mais refugiados têm acolhido localizam-se fora do continente euro- peu. De facto, 39% dos refugiados encontravam-se em países do Médio Oriente e da Ásia, em África (29%), na Ásia e Pacífico (14%), no conti- nente Americano (12%) e apenas 6% na Europa, sendo que a Turquia (mer- gulhada entre uma divisão histórica e geográfica entre a Europa e a Ásia) alberga 2.5 milhões de refugiados. À escala global verifica-se que é o Líbano que regista a maior concentração de refugiados no seu território, sendo 183 por cada 100 mil habitantes. 3

3 Dados disponíveis em: . 164 B RunO FErreira COSTA & Géssica Teles

Tal como referimos a mediatização deste processo é vital para compreen- dermos a ação e inação de determinados agentes políticos, sendo que a incapa- cidade de acolhimento de diversos países na periferia dos centros de conflitos conduziu a Europa a tornar-se um centro de atração devido à prosperidade económica e social, aliada à liberdade política e religiosa, bem como à existên- cia de um estatuto social que visa o amparo dos mais desfavorecidos (Pereira 2006). Regista-se que as rotas de entrada na Europa (adotadas pelos refugia- dos) são altamente dinâmicas, ou seja, mudam face às restrições impostas nas fronteiras de determinados países ou face a questões de segurança nos países de trânsito. Deste modo, a travessia irregular por canais ilegais, antes tradi- cionalmente efetuadas apenas por elementos do sexo masculino, são hoje efe- tuadas por famílias inteiras, independentemente do género ou da idade. Tal constatação permite verificar que as pessoas estão a assumir um risco maior na adoção de determinadas rotas (Metcalfe-Hough 2015). Estas jornadas têm sido realizadas, muitas vezes, com o auxílio de orga- nizações criminosas a troco de elevadas somas de dinheiro; no entanto, as embarcações e as rotas utilizadas promovem condições desumanas, com consequências trágicas (Pereira 2016). Para além da ineficiência, as políti- cas de controlo das fronteiras externas têm demonstrado uma falta de soli- dariedade e de partilha equitativa de responsabilidades no seio da União Europeia, nomeadamente com alguns países de leste a demonstrar uma oposição clara à possibilidade de acolher refugiados (Sampaio 2014). Diante de uma situação urgente e preocupante, alguns líderes políti- cos da U.E. parecem determinados em insistir numa posição isolacionista (Guild, Costello, Garlick & Moreno-Lax 2015). Os últimos meses foram acompanhados pela sucessão de conselhos europeus sem a adoção de uma posição unânime, com o adiamento das questões políticas, mas também com a incapacidade de fazer face à resolução dos problemas com direitos humanos, com milhares de imigrantes e refugiados a permanecer durante meses em centros de acolhimento, num limbo jurídico e numa situação que viola os seus direitos. Aqueles que conseguem ‘escapar’ têm relatado diver- sas ameaças de angariadores, situações de exploração laboral e violação dos direitos humanos (Sampaio 2014). A atitude dos países europeus face à imigração tem registado alguns retrocessos, nomeadamente com a adoção de posições mais restritivas. Ainda que a capacidade de acolhimento dos países não seja ilimitada, defende-se que as diferenças são resultado da mudança das circunstân- cias políticas, económicas e sociais a nível europeu, mas sobretudo, a nível interno, no seio dos próprios países. O papel das cidades no acolhimento de refugiados 165

A União Europeia vive um momento paradoxal. Se de um lado existem pressões externas para o aprofundamento das políticas europeias comuns e o alargamento das fronteiras, a nível interno o crescente fluxo migratório, o enfraquecimento do Estado Social, o desemprego e a recessão económica, favorecem decisões unilaterais, motivadas pelos interesses nacionais em detrimento do bem coletivo. Diante da dificuldade de resposta, os países reagem cada um a seu modo, mas não de forma justa e equitativa. A abordagem unilateral, com os interesses económicos nacionais a sobreporem-se ao interesse comunitário, põe obstáculos à construção de uma política comum. Os países europeus estão sob grande pressão no sen- tido de assegurar à opinião pública que são capazes de manter seguras as suas fronteiras, combater os fluxos de imigração irregular, proteger os empregos e as condições de trabalho dos cidadãos nacionais e salvaguardar os vulnerá- veis modelos de Estado-providência. A crise económica e os elevados níveis de desemprego acentuaram estas preocupações (Sampaio 2014). Perante a falta de comprometimento entre os Estados da U.E. e a par- tilha de responsabilidades e como tardam em ser decididas as novas res- postas, o mundo assiste à consolidação de tendências que se têm mostrado sempre atuais. Os campos de refugiados configuram-se como a mais tradi- cional solução temporária, apesar da sua perpetuação no tempo, a par de um aumento de refugiados urbanos que correm as cidades, esquecidos, na ânsia de encontrar perspetivas atinentes a uma vida digna (Pereira 2016). Criar um canal migratório legal e que funcione, para evitar mortes dos refugiados na travessia, é uma das responsabilidades a ser encarada. Uma chave de distribuição da U.E. juridicamente vinculativa deve garantir que os requerentes de asilo sejam recebidos em toda a União de forma justa em termos tanto da dignidade dos requerentes de asilo como da solidarie- dade dos Estados-membros. A questão-chave para os requerentes de asilo é o acesso a instalações de acolhimento aceitáveis e a um procedimento de asilo justo. Ao analisarmos as condições desumanas em que se encon- tram diversos requerentes de asilo, verificámos que a União Europeia não está a cumprir o seu papel, nomeadamente na criação de condições que garantam o acesso a habitação, água, alimentos, oportunidades efetivas de integração, entre outros requisitos. A União deve aceitar a natureza interli- gada da crise dos refugiados e cumprir as suas obrigações, bem como a dos Estados-membros, de proteger os refugiados em condições que respeitem a sua dignidade (Guild et al. 2015). A comunidade internacional, em particular a União Europeia, deve se esforçar para cumprir aquilo que é obrigação legal e moral para com os 166 B RunO FErreira COSTA & Géssica Teles

refugiados, proteger a vida e a dignidade humana. As políticas migrató- rias atuais não correspondem aos valores que estiverem na base da criação da U.E., sobretudo aqueles referentes à solidariedade e defesa dos direitos humanos. A crise de refugiados configura um desafio para a União, pelo que optámos por recorrer aos exemplos de Berlim e Paris e às estratégias adotadas no acolhimento a refugiados, quer pelo número de requerentes existentes, quer por representarem duas das maiores metrópoles urbanas europeias.

3. O papel da Europa no acolhimento a refugiados

A importância de descrevermos e analisarmos as políticas de acolhimento das cidades de Berlim e Paris resulta da sua dimensão geográfica e populacio- nal, mas também do facto de constituírem duas das cidades ‘polo de atração’ da recente vaga de refugiados, quer seja pelas condições de vida existentes, quer seja pela procura de garantir situações de reagrupamento familiar. O objetivo da presente investigação reflete igualmente a necessidade de ir ao encontro dos grandes desafios da construção europeia, sendo que o atual fluxo de refugiados permite constatar que a atual crise continua a ser um problema central para as elites políticas europeias. A presente investi- gação caracteriza-se por ser uma abordagem exploratória a esta temática, uma vez que a integração efetiva destes refugiados não pode ser avaliada na sua globalidade num tão curto espaço de tempo. Com base nas opções metodológicas adotadas, recorremos ao método comparativo para analisar as estratégias de acolhimento registadas, bem como recorreremos ao método descritivo para analisar as diferentes pro- postas elencadas e as dificuldades registadas, considerando que a pesquisa descritiva permite o estudo, a análise e a interpretação dos factos sem a interferência do investigador (Barros & Lehfeld 2007). Por sua vez a opção pelo método comparativo resulta da especificidade do tema em análise, bem como por a comparação ser uma atividade inata ao ser humano. De facto, importa aplicar “uma perspetiva comparada, gra- ças à qual se torna possível avaliar a relevância dos dados e a plausibili- dade das explicações” (Pasquino 2002, p. 9). Este procedimento é a base do conhecimento científico, sendo que se a opção incidisse por apenas “pes- quisar factos e multiplicar observações, sem comparar nem sistematizar” (Fernandes 2008, p. 65), não conseguiríamos aprofundar o conhecimento resultante da análise realizada. A prossecução do método científico, através do recurso ao método comparativo no domínio das ciências sociais, cons- O papel das cidades no acolhimento de refugiados 167

titui uma mais-valia na análise de realidades distintas, nomeadamente na comparação entre Estados. O propósito da investigação vai no caminho de procurar respostas para uma questão central: qual o impacto da crise de refugiados nas políticas adotadas pelas cidades de Berlim e Paris? No sentido de procurar aprofun- dar o presente estudo, elencámos, igualmente, um conjunto de premissas que permitem balizar o enquadramento das políticas de acolhimento de refugiados, bem como o papel dos governos locais na rede de apoio ins- talada. Com efeito, terá o discurso recetivo implementado pela Chanceler alemã Angela Merkel produzido algum impacto na disponibilização de ser- viços de acolhimento a refugiados? Ou na preferência por parte de alguns refugiados pela Alemanha como destino final da sua rota? Poderão os desafios resultantes da forte presença imigrante em França, nomeadamente oriunda do Magrebe, condicionar as políticas adotadas? O número crescente de refugiados em áreas urbanas desafia as autorida- des dos países em todos níveis de governo, do local ao federal. Atualmente, dois terços dos refugiados em todo o mundo vivem em áreas urbanas. Os obstáculos vão desde os gastos económicos para a garantia da assistên- cia necessária, até o crescente preconceito ou estereótipos criados contra imigrantes e refugiados. Os impactos demográficos, culturais e sobretudo económicos denunciam a delicadeza do tema e a necessidade de medidas urgentes para a solução de um problema que testa a capacidade de gestão dos governantes, sobretudo nas sociedades ocidentais. Os compromissos com os padrões de direitos humanos traduzem-se nas responsabilidades locais para garantir a sua realização. Os governos locais, face à proximidade com a população da cidade, são diretamente cha- mados a cumprir as obrigações de direitos humanos e serviços públicos na provisão de instalações adequadas de abrigo, alimentação, saúde, educação, água e saneamento, bem como para facilitar o acesso à vida cultural e pro- videnciar a avaliação de habilidades e emprego para permitir que os refu- giados que chegam possam se tornar autossuficientes. São eles que têm a proximidade para alcançar e se envolver com refugiados e com a população estabelecida e devem ser capazes de identificar prioridades para a receção e integração de refugiados e elaborar políticas adequadas para atender às necessidades e desafios no terreno. As autoridades locais devem responder aos desafios multifacetados gerados pela chegada de refugiados e encontrar soluções adequadas para uma receção em condições. Os desafios enfrentados devido ao crescente número de refugiados em áreas urbanas não são sentidos apenas pelos governos e populações nativas. 168 B RunO FErreira COSTA & Géssica Teles

Os refugiados, principalmente mulheres e crianças, são confrontados com uma série de riscos de proteção, tais como: a ameaça de prisão, detenção, refúgio, assédio, discriminação, exploração, abrigo inadequado e super- lotado, bem como a vulnerabilidade a violência sexual e de género, HIV- SIDA, contrabando e tráfico de seres humanos (UNHCR 2009). Os municípios de toda a Europa estão a enfrentar estas responsabilida- des no meio de um período de grande desconforto social dado os constan- tes ataques terroristas, o aumento da tensão na vida quotidiana em torno das diferenças culturais e religiosas e a volatilidade crescente na política local, estadual e nacional. Em muitos aspetos, este ambiente complexo e controverso exige maior foco na forma como as cidades projetam e ofe- recem estratégias de integração bem-sucedidas (Garrelts, Katz & Noring 2016). A ausência de unanimidade no seio dos Estados-membros da União relativamente à temática da integração dos refugiados constitui, igual- mente, um entrave à adoção de um plano eficaz e igualitário no acolhi- mento de refugiados. De facto, em setembro de 2015, aquando da reunião dos Ministros do Interior da U.E., verificou-se o voto contra de quatro Estados (Eslováquia, República Checa, Hungria e Roménia) à proposta de recolocação de 120 mil refugiados pelos Estados-membros, tendo a Finlândia se abstido. Esta divisão está igualmente presente nos esforços que cada país está disposto a realizar para acolher esta vaga migratória. De facto, consultando os relatórios sobre os processos de realocação dos refugiados verifica-se uma disparidade assinalável no contributo de cada Estado nos processos de realocação. Com base no 13º relatório disponibilizado pela Comissão Europeia (European Commission 2017), constata-se que entre janeiro e junho de 2017 foram realocados mais de 10.000 refugiados, o que representa o quíntuplo do número de refugiados realocados no mesmo período em 2016. Neste período três Estados continuaram a não alterar a sua posição relativamente aos processos de realocação, nomeadamente a Hungria e a Polónia, que continuam sem efetuar a realocação de qualquer refugiado, e a República Checa que não efetua o acolhimento de refugiados desde agosto de 2016. A este respeito refira-se que a Áustria continua sem acolher qual- quer refugiado, embora tenha solicitado o acolhimento de 50 refugiados recentemente. No que diz respeito aos refugiados registados na Grécia, verifica-se que Malta já cumpriu a sua quota neste processo de realocação, sendo que a Letónia, a Noruega, a Estónia, a Finlândia, a Lituânia, o Luxemburgo e O papel das cidades no acolhimento de refugiados 169

Portugal estão no caminho certo para atingir a respetiva quota. No que diz respeito a refugiados inicialmente registados em Itália verifica-se que o processo de realocação se encontra perto da taxa de 100% em relação à Finlândia e a Malta, enquanto que a Alemanha, o Luxemburgo e a Holanda apresentam números bastante satisfatórios. Do outro lado, dos refugiados registados em Itália nenhum foi acolhido pela Bulgária, República Checa, Estónia, Hungria, Irlanda, Polónia, Eslováquia e Áustria. A este respeito refira-se a existência de Estados que apresentam crité- rios mais restritivos em relação à política de acolhimento, nomeadamente ao estabelecer um conjunto de preferências que exclui do processo diver- sas nacionalidades. De facto, a Bulgária recusa-se a receber refugiados de nacionalidade Eritreia, enquanto que a Eslováquia apenas admite o aco- lhimento de mulheres solteiras com crianças e indivíduos portadores de documentos de identificação. Por sua vez, a Itália não recebe desde abril qualquer pedido de realocação por parte de Chipre, França e Letónia. Estamos perante diferenças significativas na estratégia de lidar com a crise dos refugiados, o que atesta a existência de “múltiplas Europas” no seio da União Europeia, sendo esse cenário evidente no cumprimento do acordo entre a União Europeia e a Turquia relativamente ao processo de encaminhamento de refugiados que cheguem ilegalmente a território grego para território turco. Embora a medida tenha assumido um carácter tem- porário e extraordinário em maio de 2016, continua em vigor, sendo que os custos do retorno destes refugiados para a Turquia são assumidos pela União Europeia. O acordo permitiu a troca ‘um-por-um’, ou seja, por cada migrante devolvido à Turquia, a União Europeia aceita um refugiado sírio vindo diretamente da Turquia.

3.1. Cidades solidárias? O papel de Paris e Berlim no acolhimento a refugiados

No âmbito deste estudo importa ter presente a visão sobre a integração, definida aqui de forma ampla para incluir todas as atividades que procu- ram incorporar migrantes e/ou refugiados numa determinada cidade. As políticas e/ou os programas de integração são considerados como meca- nismos e ferramentas essenciais para tornar os imigrantes e os refugiados numa parte funcional da sociedade, sendo que os mesmos permitem garan- tir determinados direitos a essas populações (Juzwiak, McGregor & Siegel 2014). 170 B RunO FErreira COSTA & Géssica Teles

A posição alemã e francesa tem sido pautada por uma clara recetivi- dade relativamente ao processo de acolhimento de refugiados, sendo que a chanceler alemã tem liderado, desde o primeiro momento, o grupo de paí- ses favorável a uma maior ação da União Europeia na resolução da crise dos refugiados. Já em 2015, em declarações públicas, Angela Merkel defendia a integração rápida dos refugiados com direito a permanecer na Alemanha e a expulsão rápida de todos os que vissem o pedido de asilo recusado. 4 No mesmo ano, o anterior Primeiro-ministro francês, Manuel Valls, apelava a uma integração de todos aqueles que fugiam da guerra, de perseguições e da tortura. Embora esta distinção entre os refugiados ‘admissíveis’ e os ‘não admis- síveis’ não seja tão evidente, em virtude da ausência de uma classificação clara e transparente, importa referir que na base de qualquer tipificação deve estar o princípio da defesa da vida humana. O não fechamento das fronteiras é um dos alicerces para medir a rece- tividade dos países no acolhimento de refugiados, sendo que esta posição é caracterizada pelo humanitarismo, granjeando a Alemanha uma autori- dade natural e moral na defesa intransigente dos direitos dos refugiados. Considerando o ano de 2016, foram registados mais de 745 mil pedidos de asilo na Alemanha, tendo sido processada uma decisão relativamente a 695 mil pedidos no mesmo período. 5 Destes, 62% obtiveram autorização para permanecer no país, tendo sido aos restantes recusada a permanência. 6 O plano federal alemão de distribuição dos refugiados dentro das suas fronteiras baseia-se numa fórmula de longa data para a distribuição de recursos federais. Ou seja, eles são distribuídos com base nas receitas fiscais e na população total das cidades. A previsibilidade e a eficiência do sistema são ilustradas pelo facto de que os desvios da norma de quotas atribuídas são mínimos (Garrets et al. 2016). A Alemanha determina uma série de tarefas práticas necessárias para receber e integrar os recém-chegados. As principais tarefas, embora não as únicas, são o fornecimento de alojamento, educação, treino para a inclusão no mercado de trabalho, cuidados físicos e mentais, acesso a serviços admi- nistrativos e financeiros e segurança (ibidem). Todavia, o número crescente

4 Disponível em: . 5 Importa referir que a Alemanha recebeu no ano de 2016 60% de todos os pedidos de asilo registados nos países da União Europeia. 6 Informação disponível em: . O papel das cidades no acolhimento de refugiados 171

de refugiados na Alemanha, nos últimos dois anos, sobretudo em cidades populosas e com uma população crescente como Hamburgo, Munique ou Berlim, tem gerado uma série de problemas para o fornecimento de aloja- mento, educação e suporte administrativo necessário (Breckner 2015). No caso específico de Berlim, quando analisadas as tarefas para a inte- gração, constata-se uma série de dificuldades para o cumprimento destas. Um dos principais desafios para a cidade é organizar o engajamento mas- sivo da sociedade civil e o trabalho de diferentes departamentos municipais no campo da integração de refugiados de forma eficiente. A partir de 2015, as autoridades locais de Berlim passaram a enfatizar a importância das estruturas de vizinhança já existentes e da infraestrutura das associações de caridade. A este nível destaca-se o apoio disponibilizado pelas associações árabes, cujo contributo é crucial para facilitar o assentamento de refugiados nos referidos distritos (Council of Europe 2016). Por sua vez, as habilidades linguísticas constituem uma componente determinante para o processo de integração. Nesse sentido, nas faculdades comunitárias alemãs, os requerentes de asilo e os refugiados podem fre- quentar, de forma gratuita, cursos de línguas (com um limite de 400 horas), abrangendo os níveis A1-B1. Nestes cursos, não é apenas lecionada a apren- dizagem do alemão, mas também aspetos relativos à cultura e à sociedade germânica. O elevado número de pedidos para a frequência destes cursos tem conduzido ao recrutamento de voluntários qualificados para a lecio- nação das aulas de alemão e apoiar os refugiados no processo de requeri- mento de asilo. No entanto, importa referir que o processo de aprendizagem da língua é moroso, pelo que a integração plena dos refugiados enfrenta diversas difi- culdades, processando-se de um modo mais lento. Os testes de proficiência em alemão são necessários para a inclusão no mercado de trabalho e os refugiados acabam por ficar em desvantagem na luta por um emprego. Como consequência, muitos refugiados dirigem-se para o mercado informal, onde estão vulneráveis a exploração de mão de obra ou trabalhos degradantes (Garrelts et al. 2016). O mercado de trabalho alemão é particularmente rígido para os refu- giados. Durante os primeiros três meses após a chegada, os refugiados estão impedidos de se envolverem em trabalhos remunerados, sendo que após esse período os refugiados podem trabalhar em determinados cargos, sob a condição de se verificar que não existe nenhum desempregado alemão elegível para aquela função. A abertura do mercado de trabalho aos refugia- dos, sem qualquer constrangimento, dá-se após 15 meses de permanência 172 B RunO FErreira COSTA & Géssica Teles

no país. Este longo período gera, muitas vezes, um sentimento de frustra- ção e alheamento do funcionamento da sociedade, o que pode conduzir ao isolamento e ao fracasso do processo de integração (Council of Europe, 2016). Relativamente à questão do alojamento, Berlim, tal como as grandes cidades europeias, sofre de uma significativa pressão imobiliária, o que provoca o aumento dos valores médios de arrendamento ou aquisição de habitação. A este fenómeno acresce o facto dos salários médios em Berlim serem superiores à média europeia, pelo que o nível de vida dos habitantes da capital alemã inflaciona igualmente os preços das habitações (Garrelts et al. 2016). Todavia, o governo alemão criou um projeto denominado ‘Refúgio’, que consiste numa casa de cinco andares, compartilhada entre os moradores de Berlim e os refugiados. O arrendamento da habitação dos refugiados é suportado pelo governo alemão (Council of Europe, 2016). A rápida integração de crianças refugiadas no sistema educacional público é uma das prioridades no processo de acolhimento, considerado como um mecanismo eficaz para a integração a longo prazo. Além da dificuldade de integrar os alunos no decurso do ano letivo, verifica-se um aumento significativo do número de estudantes em determinantes escolas, com necessidades educacionais distintas e a obrigar à existência de estrutu- ras administrativas e sociais de apoio, tanto no contexto de formação, como no contexto fora da sala de aula (Garrelts et al. 2016). Face a estas especifici- dades, o governo alemão criou um conjunto de classes especiais, ‘Welcome Classes’, o que permite que as crianças refugiadas tenham um ensino mais personalizado até integrarem o sistema de ensino regular. Pela análise referida constatámos que o eixo inicial de apoio incidiu sobre a questão da habitação e da educação, sendo que um terceiro eixo prioritário de intervenção está relacionado com a construção de um senti- mento de confiança entre os habitantes locais e os refugiados. Neste âmbito, destaca-se o contributo do Centro Alemão-Árabe que disponibiliza atendi- mento personalizado, programas de formação e educação e oportunidades de lazer aos requerentes de asilo. De igual modo, fornece aos recém-che- gados aconselhamento nos domínios da saúde, linguagem, social, psicoló- gico e legal. Como parte das suas atividades, o Centro transmite os valores da sociedade germânica, facilitando a orientação do refugiado no novo ambiente cultural. Existem ainda projetos voluntários como o “Dar algo de volta a Berlim” (Give Something Back To Berlim), que é uma plataforma para facilitar o engajamento social para a comunidade de migrantes de Berlim. O objetivo da plataforma é reunir os residentes alemães e a comunidade de O papel das cidades no acolhimento de refugiados 173

migrantes, inclusivamente os refugiados, em projetos sociais que são publi- cados na referida plataforma (Council of Europe, 2016). Esta estrutura de apoio permite constatar a recetividade da sociedade alemã no acolhimento de refugiados, embora a evolução dos índices de aprovação da atual Chanceler tenha sido afetada pela gestão da crise de refugiados, com alguns setores da sociedade a contestarem o número de refugiados aceites no país. 7 Por sua vez, a França enfrenta uma crise de refugiados, num período em que sucessivos ataques terroristas no país fizeram emergir algum receio relativamente ao acolhimento de novos refugiados e à existência de uma política mais flexível relativamente à imigração. Este cenário permitiu, inclusivamente, a passagem à segunda-volta da líder da Frente Nacional, Marine Le Pen, nas eleições presidenciais de maio de 2017. Os refugiados enfrentam, em França, dificuldades como a incompreen- são, a falta de auxílio das autoridades para o pedido de asilo, a escassez de locais de acolhimento e a ausência de preparação das autoridades civis, cuja prioridade não é o bem-estar de pessoas que enfrentaram cenários de vio- lações dos seus direitos no país de origem, mas antes assegurar um cenário de estabilidade para a sociedade em geral. No ano de 2016 a França recebeu um total de 85000 pedidos de asilo, sendo que neste período foram analisados 70000 processos. Destes, ape- nas 39% tiverem um aval positivo, o que é um resultado diametralmente oposto ao registado pelas autoridades alemãs. Ao contrário do que acontece na Alemanha, em França não existe nenhum programa público de incen- tivo ao engajamento da sociedade civil na questão dos refugiados, sendo as iniciativas de voluntariado realizadas com base em iniciativas individuais. Neste contexto, o apoio disponibilizado resulta essencialmente da ação de Organizações Não-Governamentais, nomeadamente as organizações foca- das nas temáticas da imigração e da integração. Um dos exemplos da intervenção da sociedade civil é realizado pela Associação Educativa para a Cidade (AFEV), promotora da iniciativa “Rede de boas-vindas”, que consiste no apoio dado por cerca de mil jovens a crianças recém-chegadas e respetivas famílias nos seus caminhos de inte- gração e inclusão no país (Bello 2016). Ao recorrermos ao Plano de Ação da Cidade de Paris, apresentado na “Conferência Internacional sobre as vítimas de violência étnica e religiosa

7 Sobre este assunto ver: . 174 B RunO FErreira COSTA & Géssica Teles

no Médio Oriente” em 2015, verificamos a existência do princípio de que “todas as pessoas necessitadas devem beneficiar de ajuda e ser protegidas”. As ações devem ser determinadas de acordo com as necessidades e o con- texto, e se concentrar nos seguintes domínios: habitação, meios de subsis- tência, educação, saúde (France Diplomatie 2015). No decorrer do ano de 2017, a Presidente da Câmara de Paris, Anne Hidalgo, apresentou um projeto legislativo tendo em vista defender o direito a uma receção condigna a todos os recém-chegados (apoio médico, psicológico ou social), independentemente do estatuto legal em que se encontrem. Esta iniciativa visa fazer face ao crescente número de pessoas a dormir nas ruas de Paris e que enfrentam diversos adiamentos na aná- lise dos respetivos pedidos de asilo. De igual modo, iniciou-se o debate em torno da possibilidade de distribuição dos refugiados por todo o território nacional, bem como a possibilidade dos requerentes de asilo acederem ao mercado de trabalho após seis meses do início de pedido de asilo, face aos atuais nove meses previstos na lei. 8 Tal como no caso de Berlim, o acesso à habitação é um dos princi- pais problemas enfrentados pelas autoridades franceses, pelo que em Paris muitos refugiados acabam por permanecer nas ruas ou em acampamentos improvisados face à inexistência de alojamento municipal para acolher os refugiados. A esta questão acrescem os diversos problemas étnicos que a cidade enfrenta, face à debilidade de integração das inúmeras comunidades imigrantes oriundas do Magrebe. O desafio passa por evitar a criação de enclaves segregados para o acolhimento de refugiados, o que poderia ter efeitos nefastos na respetiva integração a longo prazo (Canãs 2016). Importa referir que todos os requerentes de asilo beneficiam do acesso a uma autorização de residência provisória (APS), bem como do acesso a cuidados médicos através da respetiva inscrição no sistema de segurança social francês. De igual modo, é garantido o acesso a um Plano de Saúde Público (Couverture Maladie Universelle – CMU), o que permite o aten- dimento nas unidades de saúde e o acesso a medicação e a hospitalização de forma gratuita, tanto para o requerente de asilo, como para a sua famí- lia. Este plano tem a duração inicial de um ano, podendo ser renovado mediante a apresentação de uma nova APS. Todos os indivíduos excluí- dos deste procedimento podem aceder às consultas de urgência, sendo que

8 Sobre as propostas apresentadas ver: . O papel das cidades no acolhimento de refugiados 175

o acompanhamento e os medicamentos são igualmente assegurados pelo governo (Gil 2014). A barreira linguística constitui, igualmente, um entrave ao processo de integração e de inserção no mercado de trabalho, sendo que o facto da taxa de desemprego no país ser mais do dobro da verificada na Alemanha (9,6% no primeiro quadrimestre de 2017 9) aumenta a dificuldade de integração dos requerentes de asilo no mercado de trabalho. Tal como no caso alemão, as crianças recém-chegadas são inscritas em “turmas de acolhimento”, sendo que a inscrição no sistema de ensino é obri- gatória a partir dos 6 anos. Todo este processo de formação é gerido pelo CADA (Centre d’accueil de demandeurs d’asile), que fornece todo o apoio nos procedimentos de inscrição e inclusivamente de transporte das crian- ças até aos estabelecimentos de ensino (Gil 2014). De um modo geral, verifica-se que as duas cidades, em virtude de cená- rios políticos e lideranças distintas, apresentam condições de integração e aceitação de refugiados bastante díspares. De facto, a força da extrema- -direita e de um discurso mais conservador em França surge como um condicionamento a políticas de maior abertura à receção de refugiados, tal como os números indicam. Por outro lado, os violentos atentados terroris- tas ocorridos no país funcionam como um argumento e ‘arma de arremesso político’ para a adoção de políticas mais restritivas relativamente à gestão da crise dos refugiados. Outro dos fatores de relevo é o ambiente económico, onde se insere não apenas a taxa de desemprego (menor na Alemanha), mas também a questão do crescimento económico (maior na Alemanha) e da dívida pública (maior em França). Importa igualmente referir que os inúmeros problemas de integra- ção registados por diversas comunidades imigrantes em Paris funcionam, igualmente, como um argumento para defender a incapacidade da cidade e do país acolher uma vaga significativa de refugiados. Este cenário, bem como os indicadores atrás mencionados, induz também os refugiados a preferir a Alemanha como destino final, o que coloca uma outra questão: como pode o programa de realocação dos refugiados funcionar conside- rando estas preferências dos refugiados por alguns Estados europeus? Num espaço de livre circulação, como garantir a permanência dos refugiados nos Estados onde são realocados? Da presente análise, verificámos que o elevado número de pedidos de asilo registados na Alemanha coloca uma série de desafios para as estru-

9 Sobre este assunto ver: . 176 B RunO FErreira COSTA & Géssica Teles

turas municipais no sentido de garantirem a integração plena de todos os indivíduos. Estes desafios não são apenas estruturais, económicos, mas igualmente desafios ao nível da sensibilização da sociedade civil europeia para a problemática da crise dos refugiados, numa política que prioriza a defesa intransigente dos direitos humanos.

4. Notas finais

Paris e Berlim, enquanto duas das maiores cidades da Europa, desempe- nham um papel determinante no processo de acolhimento dos refugiados oriundos de regiões afetadas por guerras civis e por claras situações de vio- lação dos direitos humanos. Constituem polos de atração face às melhores condições de vida (oportunidades de emprego; acesso a saúde e educação; elevada diversidade cultural). Embora as cidades apresentem planos iniciais que visam a integração destes refugiados, importa referir que o processo é longo e está sempre dependente de processos eleitorais ou das lideranças políticas. A cidade de Berlim possui um programa de integração eficiente, baseado no acesso a moradias com projetos e auxílio do governo; políticas de efetiva integração na comunidade nacional e programas de aprendiza- gem da língua e da cultura alemã. A maior dificuldade, como verificámos, reside no acesso a oportunidades de emprego, face à limitação temporal (15 meses) para os refugiados acederem ao mercado de trabalho. Este é um aspeto chave para compreender as dinâmicas de integração numa determi- nada sociedade, embora seja igualmente importante compreender que os Estados devem garantir a subsistência financeira dos requerentes de asilo durante um período inicial de acolhimento. Se é certo que as competências das autoridades locais estão balizadas numa dinâmica de apoio social, competindo ao governo federal o desblo- quear das restrições legais, o seu papel continua a ser determinante para o processo de acolhimento. Importa, por isso, o aprofundamento do trabalho entre os diversos órgãos de poder para uma melhoria da eficácia nos pro- cessos de integração dos requerentes de asilo. A longo prazo, numa Europa cada vez mais envelhecida, a falta de investimento em políticas de integração laboral e o não reconhecimento dos talentos dos refugiados para diversos setores podem ser mais dispen- diosos para o governo do que trabalhar no sentido de garantir que estas pessoas tenham oportunidades de reconstruir sua vida com dignidade. O papel das cidades no acolhimento de refugiados 177

A insuficiência das políticas de integração no caso francês resulta da maior complexidade social existente, nomeadamente com o estímulo à segregação dos refugiados em campos situados nos arredores de Paris e sem as condições mínimas de segurança e dignidade. As políticas de habi- tação são segregacionistas à medida que criam oportunidades de aloja- mentos nos subúrbios parisienses, longe da população local e dos olhos da comunicação social. A cidade mostra-se igualmente incapaz em garantir serviços básicos de assistência administrativa e financeiro, sendo o processo de atribuição do estatuto de refugiado moroso, burocrático e dispendioso. A questão do acesso ao mercado de trabalho é transversal às duas cidades, o que facilita a criação de redes de exploração de mão de obra e a emergência de um mercado negro de trabalho. O cenário de integração não pode ser dissociado do ambiente macroe- conómico existente ou da perceção sobre a segurança, sendo que em perío- dos de recessão ou de ocorrência de ataques terroristas verifica-se uma menor recetividade face a cidadãos estrangeiros, sejam imigrantes ou refu- giados. O crescente preconceito e discriminação para com os refugiados deve ser uma preocupação para as autoridades em todos os níveis de governo. A defesa de uma sociedade multicultural e multiétnica constitui um dos pilares do projeto europeu, sendo esta perspetiva intrínseca à defesa dos direitos humanos. Embora os impactos económicos, sociais e culturais do acolhimento dos refugiados possam ser significativos, é fundamental colocar em prá- tica iniciativas eficazes de integração. A crise migratória parece esgotar os recursos dos governos locais e nacionais, bem como desafia a sua capaci- dade para a criação de programas de integração orientados para o futuro. No entanto, o protelar destas decisões pode colocar em causa a matriz uni- versalista da União Europeia.

Referências

ACNUR (UNHCR) (2015a). Tendências globais sobre refugiados e outras populações de interesse do ACNUR. Disponível em: [consultado a 10 de junho de 2017] ACNUR (UNHCR) (2015b). Refugiado ou Migrante? O ACNUR incentiva a usar o termo correto. Disponível em:

refugiado-ou-migrante-o-acnur-incentiva-a-usar-o-termo-correto> [consultado a 07 de junho de 2017] ACNUR (UNHCR) (2001). Refugee Protection: A Guide to International Refugee Law. Genève: Office of the United Nations High Commissioner for Refugees. ACNUR (UNHCR) (1984). Declaração de Cartagena. Disponível em: [consultado a 30 de maio de 2017] ACNUR (UNHCR) (1951). Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951. Disponível em: [consultado a 06 de junho de 2017] Adelman, H. (1983). The Refugee Crisis. Refuge, 2 (5), 1-3. AIDA / ECRE (2017). France: Paris Mayor proposes reform for reception and rapid integration. Disponível em: [consultado a 11 de agosto de 2017] Barichello, S. (2009). Direito Internacional dos Refugiados na América Latina. O Plano de Ação do México e o Vaticínio de Hannah Arendt. Diss. Curso de Mestrado em Integração Latino-Americana, Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Barros, A. & Lehfeld, N. (2007). Fundamentos de Metodologia Científica. São Paulo: Makron Books. Bello, B. G. (2016). A Look at the “Refugee Crisis” Across Europe: Challenges, Debates and Projects. Youth Partnership (EC / CE) Disponível em: [consultado a 23 de junho de 2016] Breckner, I. (2015). Refugees in German Cities: Local responsibilities and universal access under conditions of protest and inclusive actions in the civil Society. In RC21 International Conference on The Ideal City: between myth and reality. Representations, policies, contradictions and challenges for tomorrow’s urban life. Urbino () 27-29 August 2015. Disponível em: [consultado a 20 de junho de 2016] Cañas, G. (2016). Paris enfrenta a direita e abre um campo de refugiados. El País. Disponível em: [consultado a 24 de junho de 2016] Chimni, B.S. (2008). The Birth of a ‘Discipline’: From Refugee to Forced Migration Studies. Journal of Refugee Studies, 22 (1), 11-29. Costa, B.F. (2016). A Multiculturalidade Europeia – o espelho da (desi)igualdade. In P. Costa, R. Albuquerque e L. Sousa (eds), Migrações e Diversidades Interculturais O papel das cidades no acolhimento de refugiados 179

– Políticas de Igualdade e Inclusão: Reflexões e Contributos I (pp. 152-166). Lisboa: Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais da Universidade Aberta. Council of Europe (2016). “Refugees welcome” – Refugee integration policies in Berlin Neukölln. Disponível em: [consultado a 07 de junho de 2017] European Commission (2017). Thirteenth report on relocation and resettlement. Strasbourg Disponível em: [consultado a 25 de julho de 2017] Fernandes, A. J. (2008). Introdução à Ciência Política – teorias, métodos e temáticas. Porto: Porto Editora. Fernandes, C.A. (1983). Do asilo diplomático. São Paulo: Saraiva. France Diplomatie (2015). The Paris action plan. Disponível em: [consultado a 23 de junho de 2017] Garrelts, N.; Katz, B. & Noring, L. (2016). Cities and Refugees — The German Experience. Disponível em: [consultado a 02 de julho de 2017] Gil, T. M. (2014). O Direito dos refugiados na França: “France, pays d’accueil”? Revista da Faculdade de Direito, UFRS (Volume especial comemorativo ao lançamento da Cátedra Sérgio Vieira de Melo). Guild, E.; Costello, C.; Garlick, M. & Moreno-Lax, V. (2015). The 2015 Refugee Crisis in the European Union. CEPS Policy Brief, nº 332. Goodwin-Gill, G. (2001). Refugees: Challenges to Protection. International Migration Review, Vol. 35 (1), 130-142. Jubilut, L.L. (2007). O Direito internacional dos refugiados e a sua aplicação no orçamento jurídico brasileiro. São Paulo: Método. Juzwiak, T.; McGregor, E. & Siegel, M. (2014). Migrants and Refugee in Global Cities: The Role of Cities and Businesses. Policy-Brief 1 (2014), United Nations University. Marrus, M. (2010). The Forty Years’ Crisis: Refugees in Europe, 1919-1959. Disponível em: [consultado a 22 de junho de 2017] Metcalfe-Hough, V. (2015). The migration crisis? Facts, challenges and possible solutions. A policy brief. Disponível em: [consultado a 10 de junho de 2017] Moreira, J. B. (2006). A problemática dos refugiados no mundo: evolução do pós-guerra aos dias atuais. Campinas, SP. Disponível em: [consultado a 07 de junho de 2017] Morêz, F. (2009). O Refúgio e a Questão da Identificação Oficial dos Refugiados no Brasil. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, 5, 1-23. 180 B RunO FErreira COSTA & Géssica Teles

ONU (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: [consultado a 09 de junho de 2017] OUA (1969). Convenção da Organização de Unidade Africana que rege os aspectos espe- cíficos dos problemas de refugiados na África 1969. Disponível em: [consultado a 06 de junho 2017] Pasquino, G. (2002). Curso de Ciência Política. Cascais: Principia. Pereira, J. A. G. (2016). Da Crise dos Refugiados na Europa: Uma Ameaça à Segurança? Diss. Mestrado Integrado em Ciências Policiais, Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, Lisboa. Pierin, A. R. H. (2009). Refugiados no mundo contemporâneo: Breves considerações. Curitiba: UFPR / Casa Latino-Americana. Sampaio, V. (2014). Uma política Europeia para as migrações? In: VIII Congresso de Português de Sociologia. 40 anos de Democracias: progressos, contradições e pros- pectivas (pp. 1-14) Lisboa: Associação Portuguesa de Sociologia. Disponível em: [consultado a 10 de junho de 2017] Sousa, L. (2016). A Crise Global de Refugiados: (In)visibilidade e memória das migrações forçadas. In: B. Backstrom; P. Costa; R. Albuquerque & L. Sousa (eds). Migrações e Diversidades Interculturais – Políticas de Igualdade e Inclusão: Reflexões e Contributos I (pp. 61-84). Lisboa: Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais – Universidade Aberta. UNESCO (2015). Cities Welcoming Refugees and Migrants – Enhancing effective urban governance in an age of migration. United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization, Paris. UNHCR (2015). Figures at a Glance: Global Trends 2015. Statistical Yearbook. Disponível em: [consultado a 10 de junho de 2017] UNHCR (2009). Policy on refugee protection and solutions in urban areas. Disponível em: [consultado a 23 de julho de 2017] UNHCR (2010). Convention and Protocol relating to the Status of Refugees. Disponível em: [consultado a 07 de agosto de 2017] Zolberg, A.R.; Suhrke, A. & Aguayo, S. (1989). Escape from violence: conflict and the refugee crisis in the developing world. New York: Oxford University Press. O papel das cidades no acolhimento de refugiados 181

Webgrafia

[consultado a 10 de agosto de 2017] [consultado a 01 de agosto de 2017] [consultado a 24 de julho de 2016] [consultado a 27 de julho de 2017]

[recebido em 22 de agosto de 2017 e aceite para publicação em 5 de janeiro de 2018]

UN MAILLOT POUR L’ALGÉRIE

Bertrand Galic & Kris (scenario / argumento); Javi Rey (dessin / desenho)

Em 1958, na véspera do Mundial de futebol na Suécia, 12 futebolistas de primeira divisão, saem de França clandestinamente para integrar o FLN (Frente de Libertação Nacional). Em plena Guerra de Argélia, o obje- tivo dos jogadores é criar a primeira equipa nacional argelina de futebol enquanto embaixadora da independência da Argélia pelo mundo fora... A equipa de campeões conquista vitória após vitória durante mais de 80 jogos. Chamam-se Zitouni, Arribi, Kermali, Mekhloufi... e tornaram-se lendas do desporto.

En 1958, à la veille de la Coupe du monde en Suède, 12 footballeurs de pre- mière division quittent clandestinement la France et rejoignent les rangs du FLN. Nous sommes en pleine guerre d’Algérie et leur but est de créer la pre- mière équipe nationale algérienne de football et d’en faire l’ambassadrice de l’indépendance à travers le monde... Cette équipe de champions va accom- plir exploit sur exploit au fil de plus de 80 matches. Ils s’appellent Zitouni, Arribi, Kermali, Mekhloufi... et ils sont devenus des légendes du sport. LANGUAGE FOR INTEGRATION, LANGUAGE AS DISCIPLINE? A FOUCAULTIAN PERSPECTIVE ON L2 LEARNING IN THE CONTEXT OF ASYLUM LINGUAGEM PARA INTEGRAÇÃO, LINGUAGEM COMO DISCIPLINA? UMA PERSPECTIVA FOUCAULTIANA SOBRE A APRENDIZAGEM DA L2 NO CONTEXTO DO ASILO

Anne-Christel Zeiter * [email protected]

Between 2014 and 2016, like in other European countries, a substantial increase of asylum requests took place in Switzerland, which forced the professionals and politi- cians involved in this context to take urgent action. This crisis produced an effect of magnifying glass on power issues linked to language learning, or in other words on language learning as Foucaultian discipline. In this article, I will show that the com- mon link socially constructed between ‘language learning’ and ‘integration’ allows the social actors encountered by asylum seekers to make them learn French as soon as possible for preparation for life in their new country. In doing so, the society sustain- ably disciplines and controls them: asylum seekers, once they reach the status of legiti- mate refugees, are namely concentrated in low-skilled jobs, officially because they lack the necessary language skills for finding a job corresponding to their actual qualifica- tions and desires. Most of them thus live on welfare, a situation that gives arguments to strengthen the current immigration policy and, at the same time, lock them in a refugee identity, that is, of people indebted to a society where they have no other role to play. Meanwhile, this discipline that the State and the host society impose to asylum seekers articulates with social representations of learning the language of the host country, and with the general equivalence that asylum seekers make themselves between learning the host language and integrating the host society. Asylum seekers often conceive of L2 learning as a discipline they have to exercise, as they appreciate the language level they should reach to get ‘normalized’ in an apparent linguistically homogeneous society, even if they know that it will never be enough to level social inequalities.

Keywords: Language, migration, power, asylum, integration

* Université de Lausanne, Suisse. My most sincere thanks go to the authorities and staff of the Host Institution, for their availability, support, and trust. Also, I would like to express my gratitude to Maria Rosa Garrido Sarda and Thérèse Jeanneret, who revised previous versions of this article. 186 Anne-Christel Zeiter

Entre 2014 e 2006, à semelhança do que aconteceu noutros países de Europa, os pedidos de asilo na Suíça aumentaram substancialmente, o que obrigou os profis- sionais e os políticos envolvidos naquele momento a adotar medidas de urgência. Esta crise deu uma maior visibilidade a questões de poder ligadas à aprendizagem, ou, dito de outra forma, à abordagem foucaultiana da aprendizagem das línguas. Neste artigo, tentarei demonstrar que a relação socialmente construída entre ‘aprendizagem da língua’ e ‘integração’ permite aos atores sociais em contacto com os requerentes de asilo incita-los a aprender a língua francesa o mais rapidamente possível de forma a prepara-los a viver no seu novo país. Desta forma, a sociedade disciplina e controla-os: os requerentes de asilo, depois de se tornarem refugiados legítimos, concentram-se geralmente em empregos pouco qualificados, oficial- mente por falta de competências linguísticas que lhes permitiriam encontrar um emprego correspondendo às sua reais qualificações e expectativas. A maior parte deles vive de subsídios, uma situação que fornece argumentos para intensificar a política atual de imigração, e ao mesmo tempo restringi-los à identidade de refu- giado, ou seja, de pessoas que têm uma dívida para com uma sociedade em que não conseguem desempenhar nenhum outro papel. Além disso, esta disciplina, que o Estado e a sociedade de acolhimento impõem aos requerentes de asilo, articula- -se com representações sociais sobre a aprendizagem da língua do pais de acolhi- mento e com a ideia partilhada pelos próprios requerentes de asilo de que aprender a língua do país de acolhimento equivale a integrar a sociedade de acolhimento. Os requerentes de asilo assumem sempre a aprendizagem da L2 como uma disci- plina, assim como consideram o nível linguístico a atingir como forma de alcançar uma ‘normalização’ numa sociedade aparentemente linguisticamente homogénea, embora saibam que nunca será suficiente para compensar as desigualdades sociais.

Palavras-chave: Língua, migração, poder, asilo, integração. LANGUAGE FOR INTEGRATION, LANGUAGE AS DISCIPLINE? 187

Les disciplines infimes, les panoptismes de tous les jours peuvent bien être au- dessous du niveau d’émergence des grands appareils et des grandes luttes poli- tiques. Elles ont été, dans la généalogie de la société moderne, avec la domination de classe qui la traverse, la contrepartie politique des normes juridiques selon lesquelles on redistribuait le pouvoir. De là sans doute l’importance qui est atta- chée depuis si longtemps aux petits procédés de la discipline, à ces ruses de peu qu’elle a inventées, ou encore aux savoirs qui lui donnent un visage avouable, de là la crainte de s’en défaire si on ne leur trouve pas de substitut; de là l’affirmation qu’elles sont au fondement même de la société, et de son équilibre, alors qu’elles sont une série de mécanismes pour déséquilibrer définitivement et partout les relations de pouvoir; de là le fait qu’on s’obstine à les faire passer pour la forme humble mais concrète de toute morale, alors qu’elles sont un faisceau de tech- niques physico-politiques. Foucault (2015, p. 505-507)

In the chapter “Discipline” in Surveiller et punir, Foucault describes in 1975 how tactics involving processes and bodies carefully construct the modern individual. As cogs in the machine, individuals experience and reproduce power effects generated by the surveillance society that we are part of. The modern individual – or “soul” in Foucault’s words –, he claims, is born out of punishment procedures, surveillance mechanisms, humiliations, and constraints. Though real, it is an incorporeal area where the effects of a par- ticular type of power articulate: it is the gear through which power relations give rise to possible knowledge, which in return re-conducts and reinforces the effects of power. More specifically, this power permanently produces the modern soul around, at the surface and within the body of those who are watched, trained, and disciplined, those who will be controlled throughout their lives. Asylum seekers and refugees belong to this category of people that Foucault describes. The host State and society strongly monitor and dis- cipline them to enter their potential new community and penalise them if they fail to reach an inaccessible norm. Like surveillance, Foucault explains, normalization becomes a primary mean of power, as it adds a whole set of degrees in normality, which are signs of membership in a homogeneous society, but which also play a role of classification, hierarchical organiza- tion, and distribution of ranks (Foucault 2015, pp. 461-463). As foreigners, migrants, and claimants, asylum seekers are ‘abnormal’ and potentially dangerous and costly to the society. But as they are vul- nerable, it may discipline them – like children, fools, or colonized people, Foucault may add – to exploit their strengths if they reach the required 188 Anne-Christel Zeiter

standards to be accepted, that is, to become useful forces. In this context, language learning appears as a discipline (Foucault 2015, p. 473), or in other words as a specific technology of power that individuals conduct and repro- duce themselves. Indeed, language is a critical and daily issue in migration regimes and appears as an essential asylum seekers’ surveillance and regula- tion mechanism on the part of the State and society in general. Language as a norm allows creating inequalities within formal and apparent equality, as it introduces a gradation of differences within a homogeneity that is the rule. Differences in language levels appear as necessary and measurable, in particular through language tests:

On comprend que le pouvoir de la norme fonctionne facilement à l’intérieur d’un système de l’égalité formelle, puisque à l’intérieur d’une homogénéité qui est la règle, il introduit, comme un impératif utile et le résultat d’une mesure, tout le dégradé des différences individuelles. (idem, p. 163)

Indeed, asylum seekers are required to reach a threshold level (Common European Framework of Reference for Languages (CEFR, B1) useful to enter the labour market, but they are not supposed to go further in their language learning so that it becomes possible to justify that their role in the host society coincides with what is expected from them. In this article, I will show that the strong link constructed between ‘lan- guage learning’ and ‘integration’ (see below for definitions) allows institu- tions and other social actors encountered by asylum seekers to make them learn French as soon as possible for preparation for life in their new coun- try. In doing so, the society – through the institutions – sustainably disci- plines and controls them (Kramsch 2005; Scollon 2004): asylum seekers, once they reach the status of legitimate refugees, are namely concentrated in low-skilled jobs, officially because they lack the necessary language skills for finding a job corresponding to their actual qualifications and desires (Allan 2013). Most of them thus live on welfare, a situation that gives argu- ments to strengthen the current immigration policy and, at the same time, lock them in a refugee identity, that is, of people indebted to a society where they have no other role to play. Meanwhile, this discipline that the State and the host society impose to asylum seekers articulates with social represen- tations of learning the language of the host country, and with the general equivalence that asylum seekers make themselves between learning the host language and integrating the host society. Asylum seekers often con- ceive of L2 learning as a discipline they have to exercise, as they appreci- LANGUAGE FOR INTEGRATION, LANGUAGE AS DISCIPLINE? 189

ate the language level they should reach to get ‘normalized’ in an apparent linguistically homogeneous society, even if they know that it will never be enough to level social inequalities (Leudar, Hayes, Nevkapil & Baker 2008). Since 2014, I have been investigating asylum in the canton of Vaud located in the French-speaking part of Switzerland. I have been research- ing L2 learning, and more precisely the modalities – or in others words the terms and conditions – of people’s access to social and linguistic prac- tices useful to develop new competences in the host society, and in the host language. My ethnographic fieldwork led me to follow four French classes – from complete beginners to intermediate levels. I could also observe appointments with social workers, and I led interviews with many institu- tional actors, that is, with asylum seekers, social workers, French teachers, security officers in bunkers and shelters, but also with some of the Host Institution1 board members. I also had access to institutional administrative documents and internal guidelines. Between 2014 and 2016, however, and like in other European countries, a substantial increase of asylum requests took place in Switzerland, especially from Eritrean, Afghan, Syrian and Somali people, which forced the professionals and politicians involved in this context to take urgent action. This crisis happened to structure my field work and produced an effect of magnifying glass on power issues linked to language learning, or in other words on language learning as Foucaultian discipline. Indeed, I have observed an ambivalent dynamic that character- izes this power process, which consists on the apparent and official inclu- sion of asylum seekers on the one hand, and their concrete and lasting social exclusion, especially if they are recognized as refugees, on the other hand. The data to which I will refer therefore comes from this research on asylum seekers’ access to linguistic and social practices in Switzerland. To begin with, I will describe the conceptual framework of my study, to clarify why I use a sociolinguistic perspective on L2 learning. Then, after outlining the Swiss context of asylum and the broad understanding of the terms language learning and integration in federal and cantonal legal texts, I will explain how the canton organizes the logistical arrangements con- cerning asylum seekers’ stay on the Swiss territory. More specifically, I will then focus on language courses, to highlight why they are not appropri- ate for asylum seekers’ L2 learning or their social insertion. Some concrete cases will illustrate this point and make the power dynamics structuring this situation quite clear. Finally, I will analyze the discourses produced by

1 As described in section 1, the cantonal state mandates and funds the Host Institution to organ- ize and implement the asylum seekers’ hosting. 190 Anne-Christel Zeiter

five asylum seekers during a French class. On the basis of what they iden- tify as limitations to their social and professional integration, I will dem- onstrate how the institutional organization, in fact, contributes to limit the broadening of their linguistic repertoire, with various consequences: first, it confines them to low-skills jobs, and second, it makes them accept, incor- porate, this matter of fact.

1. A sociolinguistic perspective on L2 learning: conceptual framework

Learning a new language is rarely a goal in itself. If it is sometimes the result of choice, it is mostly a necessity, especially for migrants who aim to settle in a new country and a new linguistic context. Thus, engaging in L2 learning is intrinsically linked to the person’s engagement in social and linguistic practices, and most of the time it may entail a solution meant to overcome challenges inherent with her or his life circumstances (Zeiter 2013). According to Hymes (1984, p. 40),

(…) la langue est, en un certain sens, ce que ceux qui la possèdent peuvent en faire, ce qu’ils ont eu l’occasion et quelque raison d’en faire et (…) par consé- quent, on peut constater des différences d’aisance et d’adéquation qui ne sont pas accidentelles, mais qui, au contraire, font partie intégrante de la langue telle qu’elle existe pour les personnes en question. Il faut établir une distinction très nette entre, d’une part, le potentiel infini et l’équivalence fonctionnelle des langues, en tant que systèmes formels, et d’autre part, le caractère fini et la non-équivalence qui peuvent les caractériser en tant que moyens possédés et utilisés en fait dans la réalité.

Such a sociolinguistic conception of language underlines two main issues. First, language is a linguistic and social practice, as it refers to action. Second, differences in linguistic competence depend on these practices and are not accidental. L2 learning is thus a question of socialization, that is, of the ways a person integrates new social practices according to many fac- tors that are unique to each and every situation (Zeiter & Goastellec 2017). In this sense, L2 learning also depends on language socialization, which means that

language is learned through interactions with others who are more proficient in the language and its cultural practices and who provide novices explicit and (or) implicit mentoring or evidence about normative, appropriate uses of the LANGUAGE FOR INTEGRATION, LANGUAGE AS DISCIPLINE? 191

language, and of the worldviews, ideologies, values, and identities of commu- nity members. (Duff 2010, p. 172)

Another complementary conception of language as social action is grounded upon Bakhtinian theory. Busch (2015), for instance, considers language as heteroglossic, as each discourse contains references to other times and spaces that are socially and ideologically structured regarding worldview and discourse. It also comprises positioning related to these visions of times and spaces, which means an internalization of others’ words, as well as indices of social differentiation. Finally, discourse contains language dialogues within a single language or between different languages. In other terms, Busch’s Bakhtinian perspective on language describes a multiplicity of discourses within the discourse. The author more specifi- cally highlights the impact of language ideologies and discursive catego- rizations on the repertoire itself, as well as on the person’s inclusion and exclusion feelings.

The focus here is not on how many and which languages speakers have avail- able to them, or how ‘proficient’ they are in their L1, L2, or Ln. The question is rather how linguistic variation can serve to construct belonging or difference, and above all, how such constructions can be experienced by speakers as exclu- sions or inclusions due to language. (Busch 2015, p. 3)

Following many researchers, from Gumperz (1964) to Busch (2013, 2015) and García & Wei (2014), I am interested in the way that people develop their linguistic repertoire in and through social practices. My con- cern has been more precisely the modalities of people’s access to social and linguistic practices useful to develop new skills in the host country, and in the host language. Recent post-structuralist studies raise the social, his- torical and subjective dimensions of the constitution of the linguistic reper- toire, as Busch (2015, p. 5) defines it:

The repertoire is understood as a whole, comprising those languages, dialects, styles, registers, codes, and routines that characterize interaction in everyday life. According to Gumperz, it is up to the individual speakers to make deci- sions about the use of linguistic resources, but this freedom to choose is subject to both grammatical and social constraints. It is limited by generally accepted conventions, which serve to classify types of expression as informal, technical, literary, humorous, and so on. 192 Anne-Christel Zeiter

Heteroglossic and multilingual, the linguistic repertoire not only com- prises expressive possibilities but also positioning and membership issues, that is, linguistic and symbolic power. Thus, the question for the speaker is: to remain silent, to be silenced, or to have a voice and to speak. The sociolinguistic perspective that I adopt on L2 learning concerns this particular matter of power issues structuring the possibilities of having a voice in a new language – which is a salient issue for asylum seekers and refugees. As Duchêne (2017, p. 43) reminds us, if the sociolinguistic per- spective focuses on the social part of the language, it is also fundamentally looking into the language aspects of the social, which allows describing at the same time social and linguistic issues:

(…) si la sociolinguistique met au centre de ses investigations la part sociale du langage, elle est aussi fondamentalement engagée dans une réflexion sur la part langagière (…) du social. Ces deux dimensions inhérentes à la socio- linguistique renvoient (…) fondamentalement (…) à sa capacité – ou non – à contribuer à la fois à la compréhension du social et à la compréhension du linguistique.

Going back to Foucault, positioning and membership in discourse relate to questions of normalization in a homogeneous society, and lan- guage thus appears as the norm to reach to belong to this society. The con- cept of discipline encompasses the double movement described through the idea of the repertoire’s configuration: on the one hand, the host society may give a voice to or silence the newcomer; on the other hand, he or she may speak or remain silent. Whatever the situation is, the clue is the disci- pline that needs to be exercised in order to reach the norm, in other words, the language to be learned. This dynamic is set in motion both by the soci- ety and the person herself/himself and appears to be an efficient technology for power, as I will show in the following sections.

2. Asylum and language in Switzerland: contextual and legal framework

Switzerland is a Confederation of twenty-six cantons, and the federal gov- ernment is located in Bern, the capital. The cantons are sovereign, except for the powers attributed to the central federal State. The legal asylum pro- cedure depends on the central federal authority, when the cantonal author- ity is in charge of assistance, that is, of asylum seekers’ accommodation, LANGUAGE FOR INTEGRATION, LANGUAGE AS DISCIPLINE? 193

medical and health supervision and social support. In this context, each Canton may organize activities and educational programs, according to its legal framework concerning asylum. However, neither the Federal Act on Asylum nor the Act on Assistance to Asylum Seekers of the Canton of Vaud mentions language or integration. It seems useful, then, to get a glimpse into the legal framework on foreign nationals, to understand the broader sense given to the link between ‘language’ and ‘integration’ in Switzerland. Indeed, even if asylum seekers are not legally bound by these texts, as for- eigners they indirectly depend on these acts. Here are the extracts of the Federal and Cantonal (Vaud) Acts on Foreign Nationals that mention these notions:

Example 1 Federal Act (Letr, art. 4) Cantonal Act (LIEPR, art. 2-3) 1. L’intégration des étrangers vise à L’intégration implique, d’une part, la favoriser la coexistence des popula- volonté des étrangers de s’intégrer dans tions suisse et étrangère sur la base des la société d’accueil en respectant les valeurs constitutionnelles ainsi que le valeurs qui fondent l’Etat de droit et respect et la tolérance mutuels. d’apprendre le français et, d’autre part, 2. Elle doit permettre aux étrangers la volonté de la société de permettre dont le séjour est légal et durable de cette intégration. participer à la vie économique, sociale Au sens de la présente loi, on entend et culturelle. par intégration toute action visant à 3. L’intégration suppose d’une part que promouvoir l’égalité des chances d’accès les étrangers sont disposés à s’intégrer, aux prestations sociales, aux ressources d’autre part que la population suisse fait économiques et à la vie culturelle, la preuve d’ouverture à leur égard. participation des étrangers à la vie 4Il est indispensable que les étrangers se publique et la compréhension mutuelle familiarisent avec la société et le mode entre Suisses et étrangers. de vie en Suisse, et en particulier, qu’ils apprennent une langue nationale. L’intégration vise à établir l’égalité des chances entre Suisses et étrangers dans la société suisse. (OIE, art. 2, al. 1)

The federal act defines the aim of integration as the co-existence of the Swiss nationals and the foreign population by the values of the Federal Constitution as well as mutual respect and tolerance. It stipulates that inte- gration should enable foreign nationals who are long-term lawful residents of Switzerland to participate in the economic, social and cultural life of the 194 Anne-Christel Zeiter

society. Integration is understood as requiring some willingness on the part of foreign nationals and openness on the part of the Swiss population. Finally, foreign nationals are required to familiarize themselves with the social conditions and way of life in Switzerland and especially to learn a national language. The cantonal act mostly respects the guideline given by the federal act. But it is important to notice that the cantons are reasonably free regard- ing the concrete implementation of the federal law. The cantonal act uses thus the same terminology to say something slightly different: integration involves, on the one hand, the willingness of foreigners to become inte- grated into the host society by respecting the Federal values and by learn- ing French and, on the other hand, the will of the host society to allow this integration. Integration is then defined as any action to promote equality of opportunity in access to social, economic, cultural and public life, as well as mutual understanding between Swiss people and foreigners. The main differences concern L2 learning. In the federal act, language appears as a way to become acquainted with the host society, when the can- tonal act requires L2 learning as a proof of the foreigner’s willingness to integrate into the society. Notions such as coexistence and openness disap- pear, and the promotion of equality between two legally different popu- lations is under the federal state’s responsibility. Foreigners thus have the responsibility to demonstrate their willingness to integrate by learning the language but have very few opportunities to determine the modalities of their integration, especially regarding education and labour market. It seems, then, that the Swiss federal government gives L2 learning a rightful place in the integration process, which is procedural and contex- tual, when the Vaud Canton considers L2 learning a proof, a requirement and an outcome of integration, placing foreigners in a double bind. Even if asylum seekers do not depend on the acts mentioned above, as they are not considered a resident population, such an ideology structures their future social practices as well as their understanding of the role they occupy in the Swiss society. Their social practices contribute to position them as refugees and to make them conscious of this matter of fact. Language materializes these dynamics in different ways. First, the popular and media discourses that they encounter about asylum structure their representations of asylum seekers’ status in the Swiss society. Second, the limited social practices to which they have access restrict the language varieties and social norms that they can learn. Finally, these few opportunities to act socially and linguisti- cally in French, as well as the role that they gradually endorse as refugees LANGUAGE FOR INTEGRATION, LANGUAGE AS DISCIPLINE? 195

may influence the particular configuration of their linguistic repertoire itself. In other words, the terms of their access to social practices in French appear to have lasting structuration effects on their future role in society. More precisely, asylum seekers rely on the Federal act on asylum (LAsi) – which does not mention language or integration at all – and on the Cantonal act on the Hosting of Asylum seekers (LARA), where one can find the following article:

Example 2 LARA (art. 39) 1. L’établissement peut organiser des programmes d’occupation et de formation pour les demandeurs d’asile. 2. Ces derniers y participent en fonction de leurs besoins et aptitudes, ainsi que des disponibilités offertes par les programmes d’occupation et de formation.

As mentioned above, the Canton is in charge of the assistance, that is, of asylum seekers accommodation, medical and health supervision and social support, including occupation and education programs, like lan- guage courses. However, article 39 above explicitly mentions that this is not a right that asylum seekers have: the Canton of Vaud may organize it. Thus, access to language appears as a favour dependent on the Canton’s goodwill, according to the ideology out forward in the cantonal act on foreign nation- als. In return, people must implicitly be grateful for what they are getting, regardless of the amount and the quality of the language courses or other services linked to language and socio-professional integration. As the following section will show, the canton of Vaud mandates the Host Institution to organize and implement such courses, aimed to attain a low-intermediate level (B1) in French considered to be enough for the social and professional integration of future refugees, as described in the fide2 outline-curriculum:

2 This level is set according to the Common European Framework of Reference for Languages (CEFR) and adapted to migrants’ L2 learning in the fide outline-curriculum. This curriculum meets the importance given at the federal level to learning a national language: “The integration of migrants is an important political and social objective. A key role is attrib- uted to understanding a local language. The Federal Council commissioned the Federal Office for Migration (FOM) with the development of a conceptual framework for the linguistic inte- gration of migrants.” (http://www.fide-info.ch/en/fide) 196 Anne-Christel Zeiter

Example 3 Independent use of language B1 • Can understand important information from a school, employer, landlord or public authority if a clear standard language is used and familiar topics are being discussed. • Can cope with the majority of situations in everyday life, at the place of work or in public spaces. • Can express him- or herself simply and coherently about familiar topics, personal interests and experiences. • Can describe his/her own opinions, goals, hopes and wishes and substanti- ate or explain these briefly.

However, my point is to highlight the fact that the federal state and the cantonal organization actively regulate asylum seekers’ opportunities to engage in social practices. Indeed, their legal status determines their rights, especially concerning employability, and for their daily life, that is for hous- ing, money, employability, healthcare and activities programs, as they have to follow the instructions given by the social workers at the cantonal level. The Host Institution appears thus to be the main interlocutor for the asy- lum seekers, not only for their vital needs but also for their future. Indeed, the proceedings time is a waiting time from which asylum seekers might benefit to develop new skills – and in particular language skills – and also to develop projects for the future. However, most of the social practices within the Cantonal system take place with an interpreter or in English when pos- sible, except for administrative issues3. Asylum seekers, thus, have very few language practices in French, which means that they have a very restricted access to the language they are supposed to learn.

3. Language courses for asylum seekers: educational framework

In the canton of Vaud, asylum seekers benefit from language courses given by the Host Institution. Semi-intensive and intensive courses are aimed to reach a low-intermediate level (B1) in French and are supposed to follow the fide outline-curriculum planned at the federal level. This curriculum relies on an action-based approach considering the current and future need for communication and education of the migrants:

3 Formal correspondence is drawn up in the official language(s) of the host canton – in French in the canton of Vaud. LANGUAGE FOR INTEGRATION, LANGUAGE AS DISCIPLINE? 197

Example 4 The central element of action-oriented teaching is the action, i.e. cop- ing with real communicative situations. (…) In action-oriented teach- ing, the learners work with real or at least sufficiently realistic tasks that are relevant to them. By doing so, they not only expand their language competencies but they also develop skills for addressing tasks in a struc- tured manner, to look for solutions and to learn autonomously. The characteristic feature of action-oriented teaching according to fide prin- ciples is that situations and action steps are not addressed in isolation (e.g. “presenting oneself” or “writing a letter of application” but are embedded in a course of action i.e. in a scenario (e.g. “Presenting oneself as the new tenant at the neighbour’s” or “Applying for a job”). This procedure is efficient from the point of view of the psychology of learning on the one hand and makes the integration of sociocultural information easier on the other.4

Unfortunately, very few asylum seekers attain this level, and there are various reasons for that. First of all, they lack social interactions with French speakers. Asylum seekers benefit from a limited right to labour, for example, and hardly make contact with the population. Besides, teachers in charge of language courses are not well qualified5 according to the criteria set by fide or trained in action-based perspectives. They were massively hired in 2015 due to the increased number of asylum requests, but the Canton could grant only limited financial means to this program. Most of the teachers are neither education professionals nor language learning specialists, and very few had achieved the fide curriculum train- ing when I did my observation. Additionally, they have been hardly sen- sitized to this particular public. Teaching practices are thus traditional – that is, grammar, vocabulary, verbs, and pronunciation – and at best include communicative role-plays. A very illustrative example is the fol- lowing group exercise, where the students receive a house layout with the following instruction:

4 http://www.fide-info.ch/en/fide/haeufigefragen 5 Following the fide outline-curriculum is not compulsory, but every language institute that is seeking an official mandate in Switzerland claims to be fide-qualified. However, as the curricu- lum came out 2009, many language teachers have not received the necessary training yet. Most of the institute, like the Host Institution, thus, make a commitment to funding their teachers’ education. 198 Anne-Christel Zeiter

Example 5 Teacher: let’s imagine a flatshare . you try to imagine who sleeps in which room . it’s a holiday home. you’ll stay two weeks (…) now let’s try to make rules . what can we do in this house (( ?)) 6

Needless to say that the same exercise would have been much more significant and efficient if the instruction had been something like “You can finally leave the bunker to move in a flat with three other friends. Organize yourself to find furniture, and so on”. It is always difficult, however, to meas- ure such a task’s efficiency. My field notes are the following:

Example 6 At least one out of four students in the group speaks a different language. Activity is negociated between the students. Roles attributed according to lan- guage level: M. is drawing on the layout again, and other students do not agree; H. is facilitating the discussion in farsi and translating into French to M. and Z. (Eritrea). In the other groups, some students use the time to ask questions unrelated to the task to the teacher, like filling out a form. Teacher asks them to come after the lesson. Students give two rules, they write it on the white board: ‘On peut pas télé- phoner’ (No phone calls, literally ‘we cannot phone’) and ‘On doit écouter le cours’ (Please listen to the teacher, literally ‘we must listen to the lesson’). Other rules are oral: it is forbidden to smoke/eat/make phone calls/wear caps.

In response to the teacher asking for rules structuring the holiday house, students mainly express prohibitions, even though the teacher took care to formulate the task positively (‘what we can do’). This example is illustrative of the influence of the social practices on the repertoire’s configuration, as it is clear that the students are used to prohibitions: they see some everywhere (in the bunker, in the classroom, in social workers’ offices, ...) and are fully able to reproduce such chunks. The second rule written on the white board is surprising, as it is related to the course itself. It may represent indices of some of the students being fed up with the lack of discipline in the lan- guage class. In section 5, a similar episode will show that asylum seekers give different meanings to the discipline of learning French, with various outcomes.

6 The data is originally in French. I translated it into English for ease of reading, and I ano- nymized all the names. Transcription code: I use dots for 1 second pauses; ((?)) to underline a questioning tone; (...) to mark cuts in the citation. LANGUAGE FOR INTEGRATION, LANGUAGE AS DISCIPLINE? 199

Nevertheless, the actual teaching given to asylum seekers happens to be so far from their current – and future – needs that they are not get- ting much out of it. According to research (e.g. Bobrow-Finn 2010; Gordon 2011; McDonald 2000), key constraints to language learning in such a con- text are insecurity, war trauma, psychological problems, and lack of social interactions. But it must be said that the educational system designed for asylum seekers in this canton – at least – is inappropriate for these particu- lar learners, despite the efforts made.

4. Access to French in the everyday life: social contexts

As mentioned above, asylum seekers hardly interact in French in their eve- ryday life, mainly because they are restricted in their interactions with the local population, as Jamila explains when she says: “some weeks I speak three sentences in French. not more. I can’t learn like that. I understand everything but I can’t speak”. However, the luckier ones benefit from vol- unteering associations that propose language courses, like the one that I observed and called The Association. Here is an extract from their website:

Example 7 Le besoin numéro un des migrants: L’apprentissage du français ! C’est une question de survie et d’intégration en Suisse romande, à savoir com- prendre son interlocuteur, saluer un passant, épeler son nom, prendre ren- dez-vous, déchiffrer une consigne, parler de sa santé, exprimer des excuses, retirer un envoi à la Poste, demander son chemin, ouvrir un compte… (...) Très hétérogènes par rapport à leurs connaissances scolaires et linguistiques et leurs façons d’apprendre, nos requérants d’asile progressent dans une ambiance décontractée, personnelle et souvent ludique, et nous sommes contents de voir leur envie d’apprendre, de mémoriser, d’étudier.

Unlike in the legal texts, The Association does not present language learning as a duty, but as a vital issue for asylum seekers, the number one problem to solve if they want to survive and integrate into the society. The problem is that the volunteers very often repeat the same pattern as formal language courses, adding patriarchal and often post-colonial atti- tudes to the existing power dynamics (Caglitutuncigil 2015; Pujolar 2007). Expressions like ‘our asylum seekers’ are representative of such attitudes and symptomatic of volunteers’ difficulties to empower the people that they help (Muehlebach 2012; Théolis & Thomas 2002). Even more, the sug- gested activities like apologizing, or opening up a bank account – which 200 Anne-Christel Zeiter

is indeed a typical Swiss activity, beneficial to integration! – bring to light their representations of the role of refugees in the Swiss society, as well as an instrumental perspective on language. Nevertheless, such associations are necessary, as they ensure minimal interactions in French and usually are a source of friendship and cultural communication. Another aspect of social interactions is that asylum seekers are not students on language holiday. L2 learning is not necessarily a priority for them, as they have other preoccupations, such as the asylum procedure. Furthermore, when they need to see a doctor, a social worker or a federal officer regarding their asylum status, they are supposed to benefit from a translator. But in reality, it is not that easy. Researches concerning asylum and translation, as well as studies on asylum interviews (Maryns 2015), have already underlined the bias and power issues characterizing transla- tion. Another problem, however, is the lack of translation in the daily inter- actions. For instance, a translator should be present when the person meets her/his social worker to solve current problems. However, as such a service is expensive, it is not automatically provided: the asylum seeker must ask for it. If he or she does not, they have to deal with the situation, which implies that the asylum seekers already have some competences in French and a smartphone with a translation app. If not, they draw on another asylum seeker who knows enough French to help. Thus, having observed such situations, the Host Institution has established a new activity program called ‘Translation’: asylum seekers who speak French better (B1) can do the translation for newcomers. For this activity, they receive pocket money, they are supposed to improve their French and to develop translation skills (they receive a work certificate at the end of the agreement). For its part, the Host Institution saves money, regardless of the necessary confidentiality and protection of asylum seekers. Let me mention now the case of Zhora, a Somali woman. Her legs hurt and she needs to see a doctor. As she speaks Somali, the doctor is supposed to call in a translator, but as he is an Arabic speaker and knows that Zhora went to the Coranic school as a girl, he does not. She is unable to express herself in Arabic, as well as to understand the diagnosis. She explains in an interview that her doctor did not ask her or tried to explain the diagnosis: she is an asylum seeker, she says, a woman and a Muslim, and the doctor feels the right not to do his job properly. As a consequence, Zhora’s health situation deteriorated so much that she had difficulties to follow language courses or any other activity. LANGUAGE FOR INTEGRATION, LANGUAGE AS DISCIPLINE? 201

5.Integration in debate: individual contexts

The cases presented below illustrate the underlying social principles that structures asylum seekers language learning. Let us concentrate now on the discourses of five asylum seekers during a B1 language class, which is, as already mentioned, the highest level available at the Host Institution. Azad, a 19-year-old and high school graduate Afghani asylum seeker, spontane- ously organized a debate on integration as an oral exercise, and I had the opportunity to record this fantastic source of information on the sense they give to their situation. Indeed, in their answers and comments to Azad and other students’ questions, Jibril, Abdiou, Cyrus, and Ali highlight some of the institutional dynamics structuring their current and future social prac- tices. They also clearly underline the critical role played by the language and by the way that the language courses are organized. I translated all the extracts, which are originally in French. Azad first asks his fellows the following questions: What is the defini- tion of integration? Can somebody living on welfare be integrated? What are their professional or educational projects? Do they have any? How far does the Host Institution help them in this project? How could the institu- tion help better? Why is it that the institution does not help? During this classroom interaction, Jibril, a young man from Côte-d’Ivoire, first under- lines different issues.

Example 8 I asked all the time to do things and I had no answer. I had to wait to work . because you’re an asylum seeker and you are not a priority . even if your moti- vation is great . you are abandoned on the side . it is discouraging . even if you are motivated .. the fact that you are not allowed to work because you are an asylum seeker . and then you try to do an internship . because I did the house painting training . but it is difficult to find an internship and they don’t help you (…) we integrate the society . we try to . but we don’t know the companies and they must help us . but they don’t.

First, the federal and cantonal acts concerning asylum are very restric- tive concerning employability.7 Jibril seems to know it when he says, “I had

7 According to the federal law (LAsi), asylum seekers are admitted to employment three months after the asylum request if the economic situation and the labour market allow it, and if the order of priority is respected concerning Swiss and European citizens’ employment. Thus, employers must proof that they have no other Swiss or European candidate to employ. Besides, he or she must deduct 10% of the worker’s wages as “special tax”. The federal “special tax” is aimed to pay back the costs arising from the asylum request. 202 Anne-Christel Zeiter

to wait to work because you’re an asylum seeker and you are not a priority” or “you are not allowed to work because you are an asylum seeker.” These restrictions are “discouraging,” he says, but he still tries to find an unpaid internship, which should be much easier, from an administrative point of view. But the problem now is his socialization in the local labour market: as an asylum seeker, he is, so to say, nobody, and he does not know the com- panies. Jibril points out an inconsistency. The Host Institution invested for him in an internal educational program called Practical French for Painting, which is an introduction to this job in French, but he benefits from no help to find a real job outside the institution. From a linguistic point of view, this situation prevents him from accessing professional practices, which would be useful to develop his vocational skills and may be a key factor in the expansion of his language repertoire in French. Jibril is allowed to work within the institution, as an unpaid painter trainee, but not in the real soci- ety. This situation represents a significant limitation to his employability for the future and represents all the characteristics of Foucault’s panoptical machine. Abdiou wanted to pursue higher education in Switzerland, as he had already achieved a high school diploma and began pharmacology studies in his former country. Here is his view on his situation:

Example 9 when I turned 18 I asked for education . I asked my social worker but the issue was the housing . I stayed in a foster home very far away from the city in the mountain in the forest . I told my social assistant I already achieved high school and studied pharmacology but she said it wasn’t recognized here and I have to learn French . six months later I feel that I improved my French a lot but she doesn’t help me . she says that I have to keep learning French within the institution . I can’t go to the college . it was possible but the institution doesn’t help me . they said that I haven’t found any apprenticeship .. but I want to study at university (…) And now I found an apprenticeship on my own and I wrote the curriculum vitae on my own and the letter of interest all on my own . the institution didn’t help me

He identifies different pretexts not to let him go to the university in Switzerland. The first issue concerns his housing in a “foster home very far away from the city in the mountain in the forest.” His humoristic way to repeat what her social assistant explained hides that the Host Institution is in charge of the housing and could have let him get closer to the city, some- thing that he asked for, by the way, more than one year before this debate. Then, after six months mainly spent improving his French, the social assis- LANGUAGE FOR INTEGRATION, LANGUAGE AS DISCIPLINE? 203

tant explains to him that Switzerland will not recognize his previous stud- ies, which is partially wrong, and he knows it as he says, “it was possible but the institution doesn’t help me.” Another argument is that Abdiou has not found any apprenticeship yet, which is an entirely fallacious argument: he was always very clear on this matter. He wants to continue his studies at the university and is not willing to do an apprenticeship. Finally, he seems to internalize two pieces of information: first, the institution will never let him study, and second, he will have to do everything on his own. Abdiou experiences a similar situation with Jibril, as the institution tries to keep him confined within its system, especially in the French classes. Language appears again as a significant limitation, as the social assistant uses it as a comfortable and measurable clue to prevent Abdiou from going out of the established framework or, in Foucault’s terms, out of the Panopticum. When Azad asks his fellows about the reasons why the Host Institution limits so much any access to higher education, two responses are given, each one argued with a specific ideology. To start with, Cyrus speaks during the whole debate from a strong meritocratic perspective.

Example 10 Az so we reach the last question: why is it so ((?)) Cyr I know that the institution doesn’t need us. we need the institution. and I know many people abuse the institution for instance they are in Switzerland for years they don’t work and they don’t learn French. and so the institution doesn’t do much for them because they are misusing it. if someone is looking for a job or an internship they help but if not they don’t

In this extract, he communicates an absolute loyalty to the Host Institution, especially when he says “the institution doesn’t need us, we need the institution.” The beginning of the debate helps to understand what he means, as he says that it is a great luck for asylum seekers to benefit from such an institution and that they have no right to complain. At the same time, he reproduces here, when he speaks about people who “abuse of the institution (...) who don’t work and don’t learn French”, a popular stigmatizing discourse against welfare recipients, especially when they are refugees. Besides, he conceives of the modalities of asylum seekers’ L2 learning a show of good faith. His conclusion, “if someone is looking for a job or an internship, they help, but if not, they don’t,” means that they must be autonomous. Cyrus’ perspective on L2 learning and professional issues, thus, appears to be entirely congruent with the institution’s policy. 204 Anne-Christel Zeiter

Ali concludes the debate with this intervention.

Example 11 I’ve been in Switzerland 15 months now and I think the institution thinks we don’t understand anything well. I came here in order to progress. everybody knows that in Afghanistan in Syria in Africa there are many problems we can’t live in peace that’s why we came here (…) for example the institution can show me a good solution or good choice to achieve my goal. but now I know that I have to learn French here ((in the institution)) until I reach a low intermediate level and then I have to find an apprenticeship. nothing more I can’t how can I say it’s the rule (…) because there are enough students here enough people who are going to become a doctor a great man and we who are only refugees we have to be only manual workers ((other students nod loudly)) that’s it we have to (…) what [Cyrus] said before that Swiss people need no refugees: when we entered Switzerland borders were open not closed . it means that Switzerland gave us the permit to enter Switzerland . they gave us the permit to stay . and now they are closing the border

He provides here a critical input not only on Cyrus’ words but also on the political and social context structuring their lives in Switzerland. When he says “the institution thinks that we don’t understand anything well,” Ali notes the contempt that is their lot. When he says “now I know that I have to learn French here (in the institution) until I reach a low intermediate level and then I have to find an apprenticeship . nothing more . I can’t (...) it’s the rule” he shows his understanding of an institutional system he has no right and no chance to escape. Like Jibril and Abdiou, he stresses the non-recognition of his integrity, but also the non-recognition of his previ- ous life and projects. Besides, he makes it clear that the impossibility to learn French outside the institution and further than the B1 level correlates his professional perspectives. Saying “we who are only refugees we have to be only manual workers,” he communicates a consciousness of the position that asylum seekers must occupy in the society. Such a consciousness of his situation as an asylum seeker relies on the ultimate power technology described by Foucault (2015, p. 483):

Celui qui est soumis à un champ de visibilité, et qui le sait, reprend à son compte les contraintes du pouvoir; il les fait jouer spontanément sur lui-même; il inscrit en soi le rapport de pouvoir dans lequel il joue simultanément les deux rôles; il devient le principe de son propre assujettissement. Du fait même le pouvoir externe, lui, peut s’alléger de ses pesanteurs physiques; il tend à l’in- corporel; et plus il se rapproche de cette limite, plus ces effets sont constants, LANGUAGE FOR INTEGRATION, LANGUAGE AS DISCIPLINE? 205

profonds, acquis une fois pour toutes, incessamment reconduits: perpétuelle victoire qui évite tout affrontement physique et qui est toujours jouée d’avance.

Even if he replies to Cyrus’ meritocratic ideology by a political and eco- nomic analysis implying that Switzerland met the quotas for recruitment of foreign labour in 2016, Ali not only understands the power dynamics structuring his life in Switzerland but also integrates them as a matter of fact. In doing so, he finally reaches the same point as Cyrus: he is an asy- lum seeker, and this status determines his current and future positions in society. Whatever his opinion on the issue is, he knows that he will have to play along, and this consciousness is part of the Foucaultian discipline of which he is a part.

6.Language learning as discipline: discussion

The discourses of these five asylum seekers show that language activities such as French courses and opportunities to broaden their social practices are very regulated and restricted, with a lasting effect on their life projects. The dynamics linked to L2 learning overlap with Foucault’s definition of what he calls “discipline”:

La ‘discipline’ ne peut s’identifier ni avec une institution ni avec un appareil; elle est un type de pouvoir, une modalité pour l’exercer, comportant tout un ensemble d’instruments, de techniques, de procédés, de niveaux d’application, de cibles: elle est une ‘physique’ ou une ‘anatomie’ du pouvoir, une technologie. (Foucault 2015, p. 499)

As he repeatedly reminds us, power is not something that one pos- sesses, but something that can be used. In this sense, discipline is a type of power including different tools, techniques, methods, application lev- els, and targets: in other words, discipline is a technology of power which simultaneously classifies individuals according to a norm, and increases their usefulness for the benefit of the capitalist society. Language, as a norm, matches both criteria, as language levels appear to be an objective way to classify and hierarchize, and additionally, language is presented as an empowering and useful tool. Language tests thus correspond to what Foucault (idem, p. 472) defines as the exam: a power modality where every individual receives its individuality as status, and where measures, quotes, and differences characterize the individual and structure its status. 206 Anne-Christel Zeiter

Nevertheless, helping asylum seekers and refugees to learn the local lan- guage also grow their potential utility for society, and empowers them: the profit seems to be on both sides. The tensions that exist between Cyrus and Ali otherwise fall within these ideas of discipline and norm. Regardless of the sense they give to the asylum system, they play along because they have no other choice in finan- cial, administrative and social terms:

l’acceptation d’une discipline peut bien être souscrite par voie de contrat; la manière dont elle est imposée, les mécanismes qu’elle fait jouer, la subordi- nation non réversible des uns par rapport aux autres, le ‘plus de pouvoir’ qui est toujours fixé du même côté, l’inégalité de position des différents ‘parte- naires’ par rapport au règlement commun opposent le lien disciplinaire et le lien contractuel, et permettent de fausser systématiquement celui-ci à partir du moment où il a pour contenu un mécanisme de discipline. (idem, p. 507)

Learning the language of the host society is an apparent resolve for asylum seekers, which may be similar to the contract that Foucault men- tions. However, as already said, learning the language is not a priority for them, even if most of the people that I interviewed stated that they wanted to speak French as soon as possible. In any case, the Canton, through the Host Institution, imposes language courses on the asylum seekers and pre- sents them as a gift. The state does not consider alternatives because such a discipline is supposed to grant social cohesion: on the one hand, language empowers and helps the migrants to integrate the society, which means fewer costs regarding social assistance and more benefits regarding human- ity. On the other hand, the language grows their potentialities, in terms of labour forces, making them useful – if not necessary – to the capitalist society. According to Castelloti, Leconte, and Huver (2016), if linguistic com- petencies are always an asset, they are neither necessary – think for example of people working in multinational companies and humanitarian agen- cies in Geneva, who never learned French (Yeung, 2016) – nor sufficient to enter the society. Language is an excuse to the systematic minorization of asylum seekers and refugees. Language learning requirement is an easy, concrete and measurable way to deny them the opportunity for equality and to maintain the social hierarchy between populations. García (2017, p. 14) also highlights that “a shift to dominant language practices has not led to the structural incorporation of minoritized groups in the dominant soci- LANGUAGE FOR INTEGRATION, LANGUAGE AS DISCIPLINE? 207

ety’s economic, political, and social life.” On the contrary, the present study shows that engaging in host language learning emphasises and maintains alterity and enhances it as the basis of refugees’ identity. Simultaneously, refugees are stigmatized through language, i.e. through the new language to learn as well as through their impossibility to have their language heard, having to be grateful for the opportunities given by the host soci- ety. According to Duchêne et al. (2017), we must then remain vigilant with regards to linguistic skills, as they do not guarantee refugees’ social inser- tion. Language as discipline may be instrumentalized for political ends and sweep under the rug even more fundamental issues:

De là sans doute l’importance qui est attachée depuis si longtemps aux petits procédés de la discipline, à ces ruses de peu qu’elle a inventées, ou encore aux savoirs qui lui donnent un visage avouable, de là la crainte de s’en défaire si on ne leur trouve pas de substitut de là l’affirmation qu’elles sont au fondement même de la société, et de son équilibre, alors qu’elles sont une série de méca- nismes pour déséquilibrer définitivement et partout les relations de pouvoir; de là le fait qu’on s’obstine à les faire passer pour la forme humble mais concrète de toute morale, alors qu’elles sont un faisceau de techniques physico-politiques. (Foucault 2015, pp. 506-507)

After such a study, it would be tempting to conclude with a Manichean and militant perspective on asylum. But it is not my goal. The question is not to know how far the state organizes discrimination, or if there is a hidden agenda linked to French classes. It seems to me that researchers on such topics must question issues related to language to identify dynam- ics and malfunctions provoking discrimination and oppression. According to Bourdieu (1981), and in conclusion, understanding how this type of dynamics function may drive to fatalistic resignation or irresponsible uto- pia. The point of such a study, however, is to provide a scientific basis to contest the likely consequences of discrimination processes.

References

Allan, K. (2013). Skilling the Self: The Communicability of Immigrants as FlexibleLabour. In A. Duchêne, M. Moyer & C. Roberts (Eds.). Language, Migration and Social Inequalities: A Critical Sociolinguistic Perspective on Institutions and Work. Bristol / Buffalo / Toronto: Multilingual Matters. 208 Anne-Christel Zeiter

Bobrow-Finn, H. (2010). Overcoming barriers: Adult refugee trauma survivors in a learning community. Tesol Quarterly, 44(3), 586-596. Bourdieu, P. (1981). Décrire et prescrire [Note sur les conditions de possibilité et les limites de l’efficacité politique]. Actes de la recherche en sciences sociales, 38 (La représentation politique 2), 69-73. Busch, B. (2013). Mehrsprachigkeit. Stuttgart: Facultas Verlag UTB. Busch, B. (2015). Expanding the Notion of the Linguistic Repertoire: On the Concept of Spracherleben – The Lived Experience of Language. Applied Linguistics, 1-20. Caglitutuncigil, T. (2015). Intersectionality in language trajectories: African women in Spain. Applied Linguistics Review, 6 (2), 217-239. Castellotti, V.; Huver, E. et al. (2017). Demande institutionnelle et responsabilité des chercheurs: langues, insertions, pluralité des parcours et des perceptions. In J.-C. Beacco, H.-J. Krumm, D. Little et al. (Eds.). L’intégration linguistique des migrants adultes. Les enseignements de la recherche (pp. 425-231). Berlin: De Gruyter Mouton. Duchêne, A. (2017). Sciences sociales et sociolinguistique: disciplines, alternatives, conversations et critiques. Langage & société, 160-161(2), 43-58. Duchêne, A.; Studer, T.; Berthele, R. & Obermayer, S. (2017). Vers un idéalisme lucide et un scepticisme participatif. Babylonia, 1 (2017), 10-11. Duff, P. A. (2010). Language Socialization into Academic Discourse Communities. Annual Review of Applied Linguistics, 30, 169-192. Foucault, M. (2015). Surveiller et punir. Naissance de la prison (vol. 2). Paris: Gallimard. [1975] García, O. (2017). Problematizing linguistic integration of migrants: the role of translan- guaging and language teachers. In J.-C. Beacco, H.-J. Krumm, D. Little, et al. (Eds.). L’intégration linguistique des migrants adultes. Les enseignements de la recherche (pp. 12-26). Berlin: De Gruyter Mouton. García, O. & Wei, L. (2014). Translanguaging: Language, Bilingualism and Education. Palgrave Macmillan. Gordon, D. M. (2011). Trauma and Second Language Learning Among Laotian Refugees. Journal of Southeast Asian American Education and Advancement, 6, 1-18. Gumperz, J. J. (1964). Linguistic and Social Interaction in Two Communities. American Anthropologist, 66, 137-153. Hymes, D. (1984). Vers la compétence de communication. Paris: Didier. Kramsch, C. (2005). Post 9/11: Foreign Language between Knowledge and Power. Applied Linguistics, 26(4), 545-567. Leudar, I.; Hayes, J.; Nevkapil, J. & Baker, J. T. (2008). Hostility themes in media, com- munity and refugee narratives. Discourse and Society, 19(2), 187-221. McDonald, S. (2000). A touch of... class! Trauma and second language learning. The Canadian Modern Language Review / La revue canadienne des langues vivantes, 56(4), 690-696. LANGUAGE FOR INTEGRATION, LANGUAGE AS DISCIPLINE? 209

Maryns, K. (2015). The use of English as ad hoc institutional standard in the Belgian asylum interview. Applied Linguistics, 36(6), 1-23. Muehlebach, A. (2012). The Moral Neoliberal. Welfare and Citizenship in Italy. Chicago: The University of Chicago Press. Pujolar, J. (2007). African women in Catalan language courses: Struggles over class, gender and ethnicity in advanced liberalism. In McElhinny, B. S. (Ed). Words, worlds and material girls: Language, gender and globalization (pp. 305-348), LPSP 19, Berlin: De Gruyter Mouton. Scollon, R. (2004). Teaching language and culture as hegemonic practice. The Modern Language Journal, 88(2), 271-274. Théolis, M., & Thomas, D. (2002). Pour une juste valeur du bénévolat. Nouvelles pratiques sociales, 15(2). Yeung, S. (2016). From cultural distance to skills deficits: ‘Expatriates,’ ‘Migrants’ and Swiss integration policy. Multilingua, 1-24. Zeiter, A.-C. (2013). Reconfigurations identitaires: un passage obligé dans l’appropriation du Français Langue Etrangère ? In O. Galatanu, A.-M. Cozma & V. Marie (Eds.). Sens et signification dans les espaces francophones. La construction discursive du concept de francophonie (pp. 145-158), Vol. Gramm-R 19, Bruxelles: Peter Lang. Zeiter, A.-C. & Goastellec, G. (2017). Cartographie de l’enseignement-apprentissage du français aux requérants d’asile: des enjeux en tension pour l’individu et la société. Babylonia, 1 (2017), 75-78.

[recebido em 28 de agosto de 2017 e aceite para publicação em 5 de janeiro de 2018]

NAMING DISPLACED PEOPLE: NEW PATTERNS IN MEDIA DISCOURSE? A DISCOURSE ANALYSIS OF LE MONDE AND LE FIGARO NOMEANDO AS PESSOAS DESLOCADAS: NOVOS PADRÕES NO DISCURSO MEDIÁTICO? UMA ANÁLISE DO DISCURSO EM LE MONDE E LE FIGARO

Laura Calabrese & Valériane Mistiaen* [email protected] [email protected]

The migrant crisis has received huge media coverage and has been the subject of many social controversies, among which the one sparked by Al Jazeera regarding the words migrant and refugee during the summer 2015. This study addresses the question of whether the lexical debate that followed had a permanent impact in journalistic writing patterns, by analysing media typifications of displaced people. Using a mixed methodology of corpus linguistics and discourse analysis, we ana- lysed a corpus of 376,217 words from the two main French broadsheet newspapers, Le Monde and Le Figaro, in order to observe if the lexical debate influenced the choice of words of the journalists. The results of the study show that if some changes are visible after the debate (a higher frequency ofrefugee as well as an accurate usage of this legal term), the latter did not prevent journalists from using the word migrant (in spite of the negative connotations Al Jazeera decried). The study con- cludes with some hypotheses about the future of those terms, as they will continue expanding their meaning and their referent according to historical events.

Keywords: migrants, refugees, lexical controversy, media discourse, typifications.

A crise dos migrantes, massivamente abordada pela comunicação social, encontra- -se no centro de numerosas controversas entra as quais a discussão encetada pelo canal Al Jazeera a propósito do uso dos termos migrante e refugiado durante o verão 2015. Tomando como exemplo os termos usados para designar as pessoas em des- locação, esta investigação procura saber se a referida discussão teve um impacto permanente sobre as práticas de escrita jornalística. Para responder a esta pergunta, analisaremos um corpus de artigos de jornais franceses de referências, Le Monde e

* Université libre de Bruxelles, Belgique. 212 L aura Calabrese & Valériane Mistiaen

Le Figaro, segundo as perspectivas da análise do discurso e da linguística de cor- pus. Os resultados demonstram, por um lado, uma transformação visível depois da discussão (nota-se uma maior frequência da utilização da palavra refugiado, mas também um uso legal adequado do termo). Por outro lado, a análise de corpus revela que a palavra migrante continua a ser usada pelos jornalistas, a pesar das conotações negativas denunciadas por Al Jazeera, por vezes em situação de sinoní- mia. A conclusão do artigo apresenta hipóteses sobre o futuro destes termos, espe- cializados na designação das pessoas em deslocação, cuja significação vai continuar a desenvolver-se em função dos referentes e dos acontecimentos históricos.

Palavras-chave: migrantes, refugiados, controversa lexical, discurso mediático, categorização.

Introduction

The year 2015 was a breaking point in the media representation of dis- placed people. Several events, such as the war in Syria, shipwrecks in the Mediterranean, the arrival of people fleeing war from the Middle East as well as the different reactions of European countries have been summarised under the denomination migrant crisis. This event denomination, widely spread in Western media, has been challenged by a few voices, claiming that there is no migrant crisis but a humanitarian crisis. However, there was little discussion about the identity of the people on the move: they were migrants seeking for asylum in Europe. Unless until three years ago, when the Qatari outlet Al-Jazeera English (AJ) decided to stop using the word migrant and systematically shift to refugee, sparking what has been called a ‘debate’ in international media. As the editorial decision of AJ forced Western media to reconsider the predominant lexicon of the media cov- erage and raised awareness about the usage of actors’ denominations, we would like to explore if it provoked a permanent shift in the usual represen- tation of migrants. The image of migrants, immigrants, refugees and asylum seekers in media discourses has been widely studied in Discourse Analysis, mainly from the perspective of social representations of minorities and usually with a critical stance, aiming at denouncing a bias in media discourse (Van Dijk, 2006). Among this research, some has focused on lexical issues, as it has become obvious for linguists that word choices can change the whole NAMING DISPLACED PEOPLE: NEW PATTERNS IN MEDIA DISCOURSE? 213

interpretation of a historical event. In a study conducted on British media, Gabrielatos and Baker (2008) showed that the different co-texts surround- ing refugee and asylum seeker can be explained by the fact that newspa- pers operate according to the dictionary definition, and not the legal one. However, they found that all the keywords under scrutiny overlap at some point, which is “indicative of the ‘misuse of terminology’ […] and the interchangeable use” (Gabrielatos & Baker, 2008, p. 26) of refugee/asylum seeker with immigrants/migrants. Another interesting fact from their cor- pus, spanning a period from 1996 to 2005, is that migrants had a lower frequency than refugees, asylum seekers, and immigrants, which shows that even if the word is available in the English lexicon, it did not correspond to a prominent social phenomenon at the time of the study. Working on the same corpus, Baker, Gabrielatos, Khosravinik, Krzyzanowski, McEnery and Wodak (2008) observed an overlap between the terms used to name displaced people in the British press. By examining the shared consistent collocates1 of each term, they observed that refugees, asylum seekers, immi- grants, and migrants are used as near-synonyms. From another perspec- tive, Holmes and Castañeda (2016) showed how German media demarcate the ‘deserving’ refugee from the ‘undeserving’ migrant, as a consequence of new political discourse patterns that restricts migration in the European Union. The abovementioned studies show that focusing on the lexicon used by journalists allows us to observe the emergence of new categorisation pat- terns in media discourse. Lexical and semantic social debates are worth being studied because social phenomena are mainly made of discourse. Indeed, denominations always carry a viewpoint (Siblot, 2001), and are often a battlefield for social actors who try to impose their own meaning or agenda (Krieg-Planque, 2009). Moreover, denominations are the main condition for social phe- nomena to exist, as they rely on discourse and not on material reality (Kaufmann, 2006; Searle, 1995). If a wide repertoire of lexical and syntactic resources is available for social actors, they will make choices according to their social and ideological position, which will generate discourse patterns (see for instance Fang, 1994). Eventually, those choices will be made by default or dictated by a professional routine, as it is often the case in jour- nalistic writing (Palmer, 2006). If journalists are usually aware of their lexi- cal choices, most of the time they need to use the language in a referential,

1 Collocation is defined as all the words that frequently concur with a node in a specified span (Sinclair, 1991, p. 105). Consistent collocates refer to collocates that are not seasonal or context- dependent. 214 L aura Calabrese & Valériane Mistiaen

not metalinguistic, fashion. This is precisely why the debates around words to describe reality are a perfect observatory for linguists, as they reveal a breach in the social world. When journalists discuss the meaning and usage of the words terrorist2, ethnic cleansing3, islamophobia4 or undocumented migrants, to mention just a few, they try to calibrate words in order to report accurately a reality that is objective to them, thus showing that the interface we use to refer to a common world (language) is not perfect. The lexical debate that took place a few years back regarding the cat- egorisation of displaced people is very symptomatic of the socio-political tensions in a globalised world, as it reveals the will to build social reality in a certain way. In a previous research conducted on the debate sparked by AJ’s article (Calabrese, 2018), we found that several media outlets reacted to it, publicizing the decision and creating the context for a lexical discussion. A corpus of 22 newspaper articles (in English, French and Spanish) were analysed using a qualitative methodology. All the articles addressed the question of the lexical and semantic problems raised by the words of dis- placed people, and featured lots of metalinguistic terms, among which the expression ‘semantic debate’ was predominant. Following that research, we wanted to know if the debate had a permanent impact on journalistic rou- tines and therefore on the denomination patterns used to name displaced people. In order to achieve that goal, this paper will utilise a much larger dataset. A corpus of articles from the two main French broadsheet newspa- pers with the largest circulation (Le Monde and Le Figaro) has been com- piled and analysed using a mixed methodology of Discourse Analysis (DA) and Corpus Linguistics (CL), in order to validate the following hypotheses:

H1. Following AJ’s editorial decision, and as it became clear that it was loaded with negative connotations, the word migrant became less frequent in daily French broadsheet newspapers; H2. On the other hand, as the debate raised awareness on the usage of words and their legal implications, the word refugee stopped being used as a co-referent (e. g. referring to the same social phenomenon) of migrant, but

2 “BBC. Editorial Guidelines”: 3 “‘Homophobia’ and ‘Islamophobia’ are the right words for the job” (The Guardian, 27/11/2012) 4 “Islamophobie: un abus de langage” (Libération, 20/9/2013) NAMING DISPLACED PEOPLE: NEW PATTERNS IN MEDIA DISCOURSE? 215

only in relation with its legal meaning (someone who obtained the asylum status).5 In the case that H1 and H2 would prove right, the corpus will present no overlap between the two terms.

Before tackling the corpus analysis, we will explain the context of AJ’s article and the reason why it became such a successful media event. In the second part, the corpus and methodology will be laid out, and in the third part the results of the corpus analysis will unfold.

The context of the debate

On the 20th of August 2015, Barry Malone, online editor of the English ver- sion of Al-Jazeera, published a blog post announcing that the media outlet would no longer use the word migrant to cover current events:

The umbrella term migrant is no longer fit for purpose when it comes to describing the horror unfolding in the Mediterranean. It has evolved from its dictionary definitions into a tool that dehumanises and distances, a blunt pejo- rative.6

The article can be seen as a discursive event, namely a speech-related media event caused by the particular position of the speaker (see Calabrese, forthcoming). Indeed, several Western media reacted to it with by publish- ing metalinguistic articles, creating the illusion of a pre-existing debate7 on lexical issues. Discursive events are usually provoked by politicians, whose words are publicised and promoted by journalist. They are considered vital for the former, who are fond of publicity, as for the latter, who need to cover current events. AJ’s lexical decision, if not unusual for a media outlet, goes far beyond the usual behaviour of media discourse, as it was seen as “an interventionist challenge to Western media representations of immigration

5 We prefer to say referent instead of synonym because before the debate, we do not know if jour- nalists considered both words as synonyms. On the other hand, given the discursive usages, we can assume that they considered them as interchangeable in most contexts and referring to the same phenomenon. 6 “Why Al Jazeera will not say Mediterranean ‘migrants’” 7 It is worth mentioning that the so-called debate was mostly an outcome of the international coverage of AJ’s article. 216 L aura Calabrese & Valériane Mistiaen

[…] a political move which usurped European sovereignty” (Kyriakides, 2016, p. 2). By reframing the event (shipwrecks, migrants’ deaths in the Mediterranean, asylum applications and border control) around a lexical issue, AJ takes an explicit stance in favour of welcoming extra-European migrants, bringing pressure to bear on a very restrictive asylum policy (Valluy, 2005), as it can be read in this article published by The Huffington Post:

Tim Stanley, historian and Daily Telegraph columnist, told the programme he was ‘sympathetic’ to journalists who try to be sensitive in their coverage of the crisis. But he said, though the vast majority of them were refugees according to the UN, calling all of them this word was an attempt to “politically put the onus on Europe to accept everyone without conditions and without due process.” (“Al Jazeera Denies ‘Politicising’ Migrant Crisis In Deciding To Call People ‘Refugees’ Instead”, 25/08/2015)

It must be said that the social context was profitable to AJ’s article. First of all, the dramatic events taking place in the Mediterranean since 2013 were (and still are) pervasive in the news media. Second, the lexical and discursive “profile” (Veniard, 2013) of the words related to migration were (and still are) clearly negative, with a news coverage based on the metaphor of the “flood” (Gabrielatos & Baker, 2008; Kosnick, 2014). Third, AJ’s article comes forth at a time where the hierarchy between people on the move is already discussed in news media as well as in social media, even though the discussion is scarce and weakly organised.8 Indeed, before the debate sparked by AJ’s post, some articles tackled the problem of social categori- sation:

(1) Why are white people expats when the rest of us are immigrants? (the- guardian.com, 13/03/2015) In the lexicon of there are still hierarchical words, created with the purpose of putting white people above everyone else. One of those remnants is the word “expat”.

It can be seen that the context contributed to the success of the discur- sive event in several ways. First of all, the massive circulation of images of humanitarian catastrophes, the negative connotation of certain words (but

8 These hierarchies can be summarised with the well-known Zygmunt Bauman’s categories of the tourist and the vagabond: “Green light for the tourists, red light for the vagabonds” (Bauman, 1998, p. 93). NAMING DISPLACED PEOPLE: NEW PATTERNS IN MEDIA DISCOURSE? 217

not others, e.g. expat) related to migrations, and finally a metalinguistic reflection surrounding those words followed by the acknowledgement of an existing hierarchy between them. But in spite of the impact of AJ’s strong statement, the use of words related to migrations are legally bound, as the status of refugee implies several requirements9 that cannot be overlooked when referring to displaced people.

Corpus and Methodology

The main corpus comprises 339 articles (282,478 words) from the paper versions of Le Monde and Le Figaro, the two national French daily broad- sheets with the largest audience. As the latter has a conservative and the former a central-left agenda, we can expect that their choice of language reflect their political stance:

It does not seem controversial to suggest that the choice of words to be used in relation with RASIM [Refugees, asylums seekers, immigrants, and migrants] can be used as a clear indication of the stance of the writer/newspaper toward these groups-particularly when the phraseology used is either compatible to, or unwarranted by, the definitions of these terms […]. (Gabrielatos & Baker, 2008, p. 14)

The articles were collected during some specific periods where the words under scrutiny were expected to appear the most. Each period was cho- sen according to current events related to migrations to/through Europe. Such periodisation would allow to observe seasonal collocates and eventual shifts in the usage of words. The following periods were studied:

1. 7th-20th September 2015: two weeks after AJ’s article. a. 7th-13th September 2015 b. 14th-20th September 2015 2. 1st-7th January 2016: sexual assaults.

9 The Geneva Convention from 1951 stipulates that a refugee, “(2) As a result of events occurring before 1 January 1951 and owing to well-founded fear of being persecuted for reasons of race, religion, nationality, membership of a particular social group or political opinion, is outside the country of his nationality and is unable or, owing to such fear, is unwilling to avail himself of the protection of that country; or who, not having a nationality and being outside the country of his former habitual residence as a result of such events, is unable or, owing to such fear, is unwilling to return to it” (http://www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/StatusOfRefugees.aspx). 218 L aura Calabrese & Valériane Mistiaen

3. 25th-31st May 2016: on the 29th of May, it is thought that 700 people have died in a shipwreck in the Mediterranean Sea. 4. 17th-24th October 2016: demolition. 5. 8th-14th May 2017: week of shipwrecks in the Mediterranean Sea. 6. 3rd-9th of July 2017: Joint declaration on migration by EU Commissioner Avramopoulos and the Ministers of Interior of France, Germany and Italy.

In order to check the validity of the results, a smaller preliminary cor- pus composed of 122 articles (93,739 words) was created, referring to two different periods:

1. Just before AJ’s article: a. from the 6th to the 12th of August 2015 b. from the 13th to the 19th of August 2015 2. Right after AJ’s article: from the 20th of August to the 28th of August 2015 from the 29th to the 6th of September 2015

For each period, all the articles mentioning one of the two words were collected, by means of a lexical query in the Europresse10 database of réfugié* ‘refugee’ and migrant* ‘migrant’, including the plural and female nouns. From the list obtained following the query, we removed articles from press agencies, articles with less than 300 words, articles mentioning only the word réfugiés in the proper name UNHCR, and articles that did not have the current migrant crisis as the main topic. To carry out the analysis, two partitions of the corpus were tried: by newspaper (see Figure 1) and by period (see Figure 2). In the second case, the corpus was subdivided into three subcorpora, in order to observe if the two lexis were used indifferently, as it was the case before the lexical debate began:

• Articles mentioning both réfugié* and migrant*; • Articles mentioning only réfugié*; • Articles mentioning only migrant*.

10 Europresse: NAMING DISPLACED PEOPLE: NEW PATTERNS IN MEDIA DISCOURSE? 219

Figure 1. Corpus representation by newspaper Figure 2. Corpus representation by period

According to H2, after the debate there will be no overlapping of the words, as they will no longer be considered as co-referents. As the prelimi- nary corpus (PC) is supposed to reflect the general use of both lexis before AJ’s statement, by comparing it with the main corpus (MC), it will be pos- sible to check if there were more articles using both terms as co-referents before than after the debate. For this study, the methodology is a mix of corpus linguistics (CL) and discourse analysis (DA).11 If DA provides the concepts and theoretical framework to analyse discourse,

Using a “Corpus linguistics methodology allows for a higher degree of objec- tivity—that is, it enables the researcher to approach the texts (relatively) free from any preconceived notions regarding their linguistic or semantic/prag- matic content. When the starting point is keyword analysis, the analyst is pre- sented with a list of words/clusters which will then be examined in (expanded)

11 Under the label DA we consider French Discourse Analysis as well as Critical Discourse Analysis, two theoretical frameworks belonging to the same family as they share a common origin in Foucault’s and Bakhtin’s writings. If they developed a different set of concepts, they remain perfectly compatible and particularly complementary. 220 L aura Calabrese & Valériane Mistiaen

concordances for their patterning and contextual use” (Gabrielatos & Baker, 2008, p. 7).

After gathering all the PDF articles, they were processed by a corpus analysis toolkit for concordance and text analysis, AntConc.12 The following features were employed:

1) The keyness determines the keywords of the corpus, by pointing out the most frequent lemmas. The results show that réfugié* and migrant* are the main keywords of the global corpus. 2) The frequency of both terms (réfugié* and migrant*) diachronically deter- mines which one is more often used than the other, and when changes occur in time (frequency by period of time). This feature will allow us to verify H1. 3) The concordance tool analyses the collocates of a term, which contribute to its meaning, and their examination can provide “a semantic analysis of a word” (Sinclair, 1991, p. 116). The most frequent collocates were sorted by categories (cf. infra) and the frequency of these words were then counted in association with both lemmas. This concordance analysis was repeated for each period of time in order to study the corpus through a diachronic lens. The span was set at five words to the left and right of the node. This feature will allow us to observe if the two lexis are used in very different co-texts, or on the contrary, as co-referents, and thus validate or invalidate H2.

The tools that CL offers can help answering traditional questions raised by DA, especially under which social conditions a lexical shift occurs. Drawing on this tradition, our research aims at explaining “why and under what circumstances and consequences the producers of the text have made specific linguistic choices among several other options that a given lan- guage may provide” (Baker et al., 2008).

Results

The results of the analysis will be presented under the form of graphs and tables in order to visualise the main patterns of the corpora, and then com- mented in order to prove H1 and H2.

12 Laurence Antony’s AntConc software: NAMING DISPLACED PEOPLE: NEW PATTERNS IN MEDIA DISCOURSE? 221

Frequencies of the lemmas before/after the debate

The wordlist generated a list of the most frequent words for each corpus. Table 1 shows the first ten results:

Preliminary corpus Main corpus (Number of words: 93,739) (Number of words: 282,478)

Rank Frequency Lemma Rank Frequency Lemma 21 570 migrants 27 1447 réfugiés 30 414 réfugiés 36 1013 migrants 34 387 pays ‘land’ accueil 38 939 39 325 Europe ‘welcome’ asile pays 42 282 41 870 ‘asylum’ ‘land’ accueil 48 693 France 45 261 ‘welcome’ politique 55 599 frontières ‘politics’ 49 231 ‘borders’ 56 590 asile ‘asylum’ politique 59 566 Europe 59 175 ‘politics’ Allemagne 61 548 Allemagne ‘Germany’ 60 166 ‘Germany’ frontières 62 542 74 129 crise ‘crisis’ ‘borders’

Table 1. First ten words of the preliminary and the main corpus wordlists (raw frequency by cor- pus, Le Monde and Le Figaro)

This table shows that in the PC,migrant * scores higher than réfugié*, whereas in the MC the opposite happens. Even though the PC is smaller than the MC, the rank both words respectively hold in each corpus is quite eloquent. It is clear that a shift in the use of the terms has occurred. Nevertheless, this observation does not suffice to prove H1. If we take a look at the frequencies per period, it is possible to see a breaking point that can be situated in September 2015: 222 L aura Calabrese & Valériane Mistiaen

Graph 1. Réfugié* and migrant* occurrences by period, normalised frequencies 10-3 (Le Monde and Le Figaro)

Graph 1 features a clear pattern, with more occurrences of migrant dur- ing August and the beginning of September 2015, the reverse trend during September 2015, and a return to the first pattern at least from May 2016 on, more than one year after the debate, withmigrant taking again the advan- tage over réfugié. Graph 2 (articles that mention either réfugié or migrant, but not both) supports this observation, by showing that before the debate, there are barely any articles mentioning only réfugié, but on the other hand a spike occurs during September. It is interesting to note that even if Le Figaro fea- tures the same trend as Le Monde, due to its conservative political agenda it shows a preference for migrant right before the spike. NAMING DISPLACED PEOPLE: NEW PATTERNS IN MEDIA DISCOURSE? 223

Graph 2. Articles mentioning réfugié* but not migrant* or migrant* but not réfugié*, raw frequen- cies (Le Monde and Le Figaro)

If we look carefully at the articles mentioning both terms by period (Graphs 3 and 4), it can be noticed that Le Monde and Le Figaro follow a similar pattern, with more occurrences of migrant during August and the beginning of September 2015, the reverse trend during September 2015 (with a spike of réfugié), and a return to the first pattern at least from May 2016 on. 224 L aura Calabrese & Valériane Mistiaen

Graph 3. Normalised frequencies (10-3) of réfugié* and migrant* lemmas in articles mentioning both of them (Le Monde)

Graph 4. Normalised frequency (10-3) of réfugié* and migrant* in articles mentioning both lemmas (Le Figaro) NAMING DISPLACED PEOPLE: NEW PATTERNS IN MEDIA DISCOURSE? 225

Once again, the political agendas of each newspaper could explain a slight divergence in the frequencies: if the shift is immediately visible in Le Monde (165 occurrences of réfugié for 142 migrant starting the week of the 29/08/15), it is less clear for Le Figaro, as both terms are equally mentioned the same week (99 occurrences of both terms). Having examined both corpora under different angles, it became clear that an occasional shift occurred right after the debate, only to come back to the initial journalistic writing routine. This being said, the CL analysis does not show all the data. A thorough observation of the corpus reveals a more consistent change in the headings, namely the umbrella denomination that journalists use to create event families. In Le Monde’s PC, we only find the heading crise des migrants ‘migrant crisis’, but a few weeks later, in the MC, there are 16 occurrences of crise des réfugiés ‘refugee crisis’ for only 9 occur- rences of crise des migrants (and 1 crise migratoire ‘migratory crisis’). As if Le Monde wanted to go further, it even named a section repenser la crise des réfugiés ‘rethinking the refugee crisis’, 5 occurrences).

Repenser Crise des Crise des Crise migra- Corpus la crise des migrants réfugiés toire réfugiés Preliminary 8 0 0 0 corpus 15,38 0 0 0 9 16 1 5 Main corpus 5,26 9,36 0,58 2,92

Table 2. Headings, normalised frequencies 10-2 in italics (Le Monde)

Le Figaro does not present such heading names, as we found only one crise des migrants in the MC, but immigration is used 7 times in the PC and 9 times in the MC. If we examine the event names, namely the collocation used by the journalists to name this specific crisis, the paradigm unfolds as follows: 226 L aura Calabrese & Valériane Mistiaen

Crise des migrants Crise des réfugiés + Corpus + Crise migratoire Crise de réfugiés Crise de migrants Preliminary (9 + 0) 9 5 (2 + 1) 3 corpus 19,04 10,58 6,35 (15 + 0) 15 30 (15 + 0) 15 Main corpus 9,28 18,57 9,28

Table 3. Event denominations excluding the headings, normalised frequencies (10-5) in italics (Le Monde)

Crise des migrants Crise des réfugiés + Corpus + Crise migratoire Crise de réfugiés Crise de migrants Preliminary (9 + 2) 11 8 (6 + 1) 7 corpus 23,67 17,21 15,06 (22 + 1) 23 18 (8 + 0) 8 Main corpus 19,02 14,89 6,62

Table 4. Event denominations excluding the headings, normalised frequencies (10-5) in italics (Le Figaro)

If all denominations are co-referents in media discourse, the signi- fier cannot be ignored, as it shapes our perception of the event (Calabrese, 2013). Even if crise des migrants ‘migrant crisis’ and crise migratoire ‘migra- tory crisis’ belong to the same family, we must distinguish both colloca- tions, as the role of the noun and that of the adjective are paramount in the way we perceive a social crisis. Regarding the syntax, the format event name + adjective (crise migratoire ‘migratory crisis’) gives a more synthetic view of the event (as there is a continuity between the two elements) than the format event name + article + noun (crise des migrants ‘migrant crisis’). Moreover, the adjective modifies the noun crisis, when the noun only speci- fies the kind of crisis in question. If we consider the lexicon, the second denomination has a focus on the actors, when the first one emphasises the action of migrating. Crise migratoire is then a better candidate to avoid the lexical problems raised both by migrant and réfugié, which can explain the rise in the MC (48 occurrences, for 13 in the PC). Nevertheless, crise des migrants still scores better in both corpora. NAMING DISPLACED PEOPLE: NEW PATTERNS IN MEDIA DISCOURSE? 227

Headlines have an important cognitive function: they are read first and thus help the reader construct the overall meaning before the text itself is even read, summarise the most important information of the report under the form of keywords, and finally, represent the newspaper’s ideological stance (Van Dijk, 1991). The examples below show a particular structure of headlines used by French journalists, with the word left of the colon refer- ring to the “aboutness” (Bosredon & Tamba, 1992) of the text:

(2) Migrants: le ton se durcit entre la droite et l’exécutif (Le Figaro, 11/09/2015)13 ‘Migrants: the tone rises between the right and the government’ (3) Migrants: des maires français s’engagent (Le Monde, 08/09/2015) ‘Migrants: French mayors get involved’ (4) Réfugiés: Sarkozy veut refonder Schengen (Le Monde, 11/09/2015) ‘Refugees: Sarkozy wants to rethink Schengen’ (5) Réfugiés: Hollande engage la France dans la logique des quotas (Le Figaro, 08/09/2015) ‘Refugees: Hollande says France will accept quotas’

These examples clearly show thatmigrant and réfugié are not only nouns aiming at categorising individuals according to their status in a ter- ritory, but also a media category referring to an event (or series of events) that is supposed to be known to the readers.

Crise des Crise des Crise mi- Corpus Migrant* Réfugié* migrants réfugiés gratoire Prelimina- 21 6 0 0 1 ry Corpus 40,38 11,54 0 0 1,92 Main 31 28 0 0 2 Corpus 18,13 16,37 0 0 1,17

Table 5. Headlines including réfugié* or migrant*, normalised frequencies (10-2) in italics (Le Monde)

13 Our translation of the French text is not literal, but intends to keep the general meaning of the headlines. 228 L aura Calabrese & Valériane Mistiaen

Crise des Crise des Crise mi- Corpus Migrant* Réfugié* migrants réfugiés gratoire Prelimina- 23 7 0 0 0 ry Corpus 33,33 10,14 0 0 0 Main 31 17 4 2 1 Corpus 18,45 10,12 2,38 1,19 0,6

Table 6. Headlines including réfugié* or migrant*, normalised frequencies (10-2) in italics (Le Figaro)

Again, both Tables 5 and 6 highlight the previously seen trend: migrant* is less and less used in the headlines of the MC. Interestingly (and contrary to what happens in the articles), migrant* is still most present than réfugié* in the headlines of the MC. So far, we have seen two different trends. On the one hand, the frequen- cies of migrant tend to decrease after the debate in favour of réfugié (with a strong spike in September 2015, whether in the whole corpus, in the articles mentioning only réfugié or in the articles mentioning both terms), only to come back to the regular pattern after the spike. On the other hand, event names show a more permanent change in journalistic writing patterns. As seen in Tables 2 to 6, this trend is more visible in Le Monde than in Le Figaro. If the former features a clear-cut rise in crise de(s) réfugiés after the debate, which does not occur in Le Figaro, both newspapers show a rise in the more neutral form crise migratoire. If the frequencies show that the two terms are still being used by jour- nalists, it is time now to focus on the co-text, meaning and referent of the terms, in order to check if they are used as co-referents, or on the contrary, with a clear distribution of meaning.

Referent and meaning of the lemmas before/after the debate

As pointed out in the introduction, previous research has shown that jour- nalistic discourse tended to use the two terms equally, regardless of the actual legal status of the displaced person. Even if the debate sparked by AJ raised awareness among journalists, the latter could not stick to the term refugee as AJ wished, because of the restriction of its legal meaning (see footnote 9); instead, they could avoid the misuse of the terms. The aim of NAMING DISPLACED PEOPLE: NEW PATTERNS IN MEDIA DISCOURSE? 229

this section is then to find out whether after the debate the two French newspapers use the terms more accurately, in regard to the legal definition of refugee. Indeed, Graphs 2 to 4 show that not only the two French news- papers continued using migrant*, but they also did it alongside réfugié*. In order to observe if they are used as co-referents, and validate or invalidate H2, the co-text of the words will be studied by means of the concordance tool. This analysis will be illustrated with samples from the corpus. On the basis of the most recurring collocates of migrant* and réfugié* (detailed in Table 7), a list of categories was created:

• Semantic field of welcoming: accueil ‘welcome’ (noun), accueillir ‘welcome’ (infinitive verb), accueilli ‘welcomed’ (male singular past participle), accue- illis ‘welcomed’ (male plural past participle), accueillie ‘welcomed’ (female singular past participle), accueillies ‘welcomed’ (female plural past parti- ciple), accueillent ‘welcome’ (third plural person present simple), accueille ‘welcome’ (third singular person present simple). • Semantic field of stream:flot ‘flood’,flots ‘floods’,flux ‘flow’,afflux ‘influx’, vague ‘wave’, vagues ‘waves’. • Event denomination: crise ‘crisis’, crises ‘crises’. • Semantic field of confinement:camp ‘c a m p’, camps ‘camps’, campement ‘encampment’, campements ‘encampments’. • Semantic field of quantity: massif ‘massive’, massifs ‘massive’ (male plu- ral), massive ‘massive’ (female singular), massives ‘massive’ (female plural), millier ‘thousand’, milliers ‘thousands’, centaine ‘hunderd’, centaines ‘hun- derds’. • Semantic field of legal status:guerre ‘war’, guerres ‘wars’, politique ‘political’, politiques ‘political’ (plural), économique ‘economical’, économiques ‘eco- nomical’ (plural), quota ‘quota’, quotas ‘q u o t a s’. 230 L aura Calabrese & Valériane Mistiaen

Collocates Réfugié* Migrant* accueil* 329 142

flot*, *flux, vague* 72 91 guerre*, politique*, économique* 89 87 réfugié* 77 migrant* 77 massif*, millier*, centaine* 74 74 crise* 61 66 camp* 40 22 quota* 38 11

Table 7. Collocates of réfugié* and migrant* in all corpora (raw frequency)

When analysing the corpora per newspaper, we focused only on the collocates that contribute to the legal meaning of réfugié; those that did not (such as afflux, crise) were removed. In order to establish a list of concepts that contribute to the legal meaning, we considered that refugees (based on the definition of the UNHRC as well as European directives), contrary to migrants, must be welcomed in reception centers (“centre d’accueil”), flee war or other conflicts with a political nature (contrary to an economical one), and are spread through the European territory according to quotas. This means that all those words are expected to be found in the co-text of réfugié. The word camp is worth being briefly discussed. Even if it is not clearly defined in the legal literature, it belongs to the semantic field of réfugiés, as the High Commissioner for Refugees is one of the main actors to handle refugee camps (Valluy, 2005). This could explain the 31 occur- rences of camp(s) de réfugiés ‘refugee camp(s)’ in the corpus. On the other hand, the word camp is available in the common language to form colloca- tions such as camp de migrants ‘migrant camp’, with only 5 occurrences in the corpus, alongside an unconventional campement de migrants ‘migrant encampment’ (2 occurrences), that could be a hint of the unofficial nature of migrant camps. NAMING DISPLACED PEOPLE: NEW PATTERNS IN MEDIA DISCOURSE? 231

Le Monde Le Figaro

Preliminary Preliminary Main Corpus Main Corpus Corpus Corpus (161,555 words) (120,923 words) (47,261 words) (46,478 words) Colloca- Mi- Ré- Mi- Ré- Mi- Ré- Mi- Ré- tion grant* fugié* grant* fugié* grant* fugié* grant* fugié* Welco- 17 35 55 161 10 7 49 108 me 35.97 74.06 34.04 99.66 21.52 15.06 40.52 89.31 0 2 2 20 3 2 1 20 War 0 4.23 1.24 12.38 6.45 4.3 0.83 16.54

0 5 2 12 0 5 0 17 Politic 0 10.58 1.24 7.43 0 10.76 0 14.06

Econo- 10 3 23 2 16 2 29 4 mic 21.18 6.35 14.24 1.24 34.42 4.3 23.98 3.31 2 7 4 13 2 7 4 12 Quota 4.23 14.81 2.48 8.05 4.3 15.06 3.31 9.92

Table 8. Collocates of réfugié* and migrant*, normalised frequencies in italics (10-5) (Le Monde and Le Figaro)

According to our results, the concept of welcoming is by far more related to réfugié in both corpora, but even more in the MC. The colloca- tion accueil des réfugiés ‘reception of refugees’ occurs 105 times, compared to 46 occurrences for accueil des migrants ‘reception of migrants’. Even if a few exceptions are reported, both newspapers use most of the time political refugees, war refugees and economic migrants, showing a clear distribution of meaning that matches the dictionary definitions of the terms.Quota(s) also occurs more frequently in the co-text of réfugié. With a few exceptions, these results speak in favour of H2, as they seem to confirm that the terms are not interchangeable, but on the contrary, occur in different co-texts. Table 8 shows an evolution between the PC and the MC, in the sense of a specialisation of the meaning of refugee after the debate, henceforth surrounded by the collocates that contribute to its legal meaning. But even if this seems to confirm that journalists tried to avoid misnomers, the terms are not systematically used according to the legal definition. An evidence of this are the 77 occurrences of réfugié found in the 232 L aura Calabrese & Valériane Mistiaen

co-text of migrant (or the other way around); even if only some of them are used as co-referents (referring to the same reality) and as synonyms (having the same meaning), they are worth being mentioned:

(6) Débordée, la Bavière veut accélérer le retour des réfugiés [Title] Sont concernés les migrants en provenance des Balkans [Subtitle] (Le Figaro, 02/09/2015) 14 ‘Unable to cope with refugees, the Bavarian region wants them to go back’ [Title] ‘Migrants coming from the Balkans are mainly concerned by this measure’ [Subtitle] (7) Sur la côte turque de la mer Egée, les départs de réfugiés vers les îles grecques ont cessé. Plus un migrant ne passe (“Migrants: L’accord signé entre l’Europe et la Turquie fonctionne”, Le Monde, 28/04/2016) ‘No more departures of refugees to the Greek islands from the Turkish Aegean coast. No more migrants passing’ (8) La Grèce, “dépassée” par un afflux de réfugiés [Title] Athènes a promis des mesures pour améliorer l’accueil des migrants, tout en appelant à la solidarité européenne [Subtitle] (Le Monde, 08/08/2015) ‘Flood of refugees in ’ [Title] ‘Athens promises to improve the reception of migrants and call for European solidarity’ [Subtitle] (9) […] près de 800 migrants attendent dans des cabanes la nuit où ils rejoin- dront l’Angleterre. […] Tous les soirs, ils déposaient, en fourgonnette, une dizaine de réfugiés sur une aire d’autoroute d’où ils guettaient l’arrivée des camions (“À Calais, les passeurs à plein régime avant la fin de la “jungle”, Le Monde, 17/10/2016) ‘[…] near 800 migrants waiting in shacks to reach England during the night […] Every night, tens of refugees were left in a motorway, waiting for trucks to pass’

Even if the examples are not numerous, they clearly show that a ran- dom usage of the terms in journalistic texts is still possible. At some point, the coexistence of both terms in the same co-text confirms that for several reasons (whether to avoid repetitions, enrich the vocabulary, avoid stereo- types or the difficulty of determining the actual status of displaced people), journalistic discourse still needs to alternate between the two of them. All the results show that migrant will not be out of circulation any time soon. What might happen in the future is that the word will slowly lose some of the negative representations attached to it, as illustrated by some

14 Our translation of the French headlines is not literal, but allows to observe the overlap of the two terms. NAMING DISPLACED PEOPLE: NEW PATTERNS IN MEDIA DISCOURSE? 233

recent examples (not belonging to our corpus) displaying an innovative use of migrant, that extends the referent to EU citizens:

(10) Leaked document reveals UK Brexit plan to deter EU immigrants [Title] Exclusive: Home Office paper sets out detailed proposals including meas- ures to drive down number of low-skilled migrants from Europe [Subtitle] (The Guardian, 5/9/2017).

As events unfold in the current climate of political turmoil in Europe, further research will be needed in order to confirm semantic shifts in the words specialised in naming people on the move.

Discussion

As said in the introduction, there are no real synonyms in groups’ categori- sations, as each word carries a different viewpoint. Regarding the migrant crisis, several words are available in the common lexicon to refer to people fleeing violence in the Middle East. The lexical debate sparked by AJ had an impact in the representation of displaced people, as it raised awareness of the different meanings carried by each word. One of the limits of AJ’s rationale was the legal meaning of the word refugee, which refers to a legal status and has obvious consequences in the way an individual is considered by the host State. The aim of this study was then to observe if the debate had a permanent impact in journalistic writing routines, and therefore in the categorisation patterns they use to name displaced people. In order to do so, we collected, by means of a lexical query in the Europresse database, a corpus of 339 articles (282,478 words) and a preliminary corpus of 122 articles (93,739 words) from the two main French broadsheet newspapers (Le Monde and Le Figaro). Articles were analysed using a mixed methodology of Discourse Analysis and Corpus Linguistics. In sight of the results of the corpus analysis, the two working hypoth- eses are partially validated. Regarding H1 (the word migrant is less and less used in daily French broadsheet newspapers), the wordlist shows that in the preliminary corpus of both newspapers, migrant* scores higher than réfugié*, whereas in the main corpus the opposite happens. Having exam- ined both corpora under different angles, it became clear that there has been a peak in the use of the word réfugié just after the debate, but it has not been permanent, as the previous frequencies of the term rapidly came back. 234 L aura Calabrese & Valériane Mistiaen

Nevertheless, Le Monde reveals a more consistent shift in the head- ings. Both newspapers featured a change in the event denomination, with a preference for the more neutral form crise migratoire (rather than crise des migrants or even crise des réfugiés). It is interesting to note that even if Le Figaro features the same trend as Le Monde, probably due to its conserva- tive political agenda it shows a preference for migrant right before the spike. Moreover, it can explain a slight divergence in the frequencies: if the shift is immediately visible in Le Monde, it is less clear for Le Figaro, as both terms are equally mentioned the week just after AJ’s statement. Regarding H2 (the word réfugié will no longer be used as a co-referent of migrant), the analysis clearly shows that some collocates are more fre- quent (if not exclusive) than others, among which the semantic field of wel- coming, war, political conflict and the wordquota hold a preferential place alongside réfugié, while migrant is more often collocated with economical. If these results speak in favour of H2, that is to say, seem to confirm that the terms do not overlap, a few examples showing the use of both words in the same co-text would prove a more unpredictable pattern. To conclude, even if a few examples showed that the use of both terms is not clearly fixed in journalistic discourse, it seems that the lexical debate did have an impact on the usage of words referring to displaced people, but not exactly in the way the Qatari news outlet expected. If the term refugee has been recalibrated around its legal meaning, the word migrant has not been removed but rather reinforced in its economical meaning. As current events unfold, further research will be necessary to understand how these two words are encoding new social representations and recording discur- sive usage as well as semantic change.

References

Baker, P.; Gabrielatos, C.; Khosravinik, M.; Krzyzanowski, M.; McEnery, T. & Wodak, R. (2008). A useful methodological synergy? Combining critical discourse analysis and corpus linguistics to examine discourses of refugees and asylum seekers in the UK press. Discourse Society, 19, 273-306. Bauman, Z. (1998). Globalization. The Human Consequences. Cambridge: Polity Press. Bosredon, B. & Tamba, I. (1992). Thème et titre de presse: les formules bisegmentales articulées par un “deux points”. L’information grammaticale, 54, 36-44. Calabrese, L. (2013). L’événement en discours. Presse et mémoire sociale. Louvain-la-Neuve: Academia. NAMING DISPLACED PEOPLE: NEW PATTERNS IN MEDIA DISCOURSE? 235

Calabrese, L. (2018). Faut-il dire migrant ou réfugié ? Conflits lexico-sémantiques autour d’un problème public. Langages, 210, 105-122. Calabrese, L. (forthcoming). L’événement de réception. Un événement de parole du côté des publics. In Brigitte Sebbah (Ed.), Sciences de la société, 101. Fang, Y.-J. (1994). “Riots” and Demonstrations in the Chinese Press: A Case Study of Language and Ideology. Discourse & Society, 5(4), 463-481. Gabrielatos, C. & Baker, P. (2008). Fleeing, Sneaking, Flooding. A corpus Analysis of Discursive Constructions of Refugees and Asylum Seekers in the UK Press, 1996- 2005. Journal of English Linguistics, 36(1), 5-38. Holmes, S. & Castañeda, H. (2016). Representing the “European refugee crisis” in Germany and beyond: Deservingness and difference, life and death. American Ethnologist, 43(1), 12-24. Kaufmann, L. (2006). Les voies de la déférence. Sur la nature des concepts sociopolitiques. Langage et société, 117, 89-115. Krieg-Planque, A. (2009). La notion de “formule” en analyse du discours. Besançon: Presses Universitaires de Franche-Comté. Kosnick, K. (2014). Mediating Migration: New Roles for (Mass) Media. InMedia, 5, 271-334. Kyriakides, C. (2016). Words don’t come easy. Al Jazeera’s migrant-refugee distinction and the culture of (mis)trust. Current Sociology, 65(7), 933-952. Palmer, M. (2006). Nommer les nouvelles du monde, in J. Arquembourg, G. Lochard and A. Mercier (coord.). Hermès, 46, 47-56. Searle, J. (1995). The Construction of Social Reality. New York: Simon & Schuster. Siblot, P. (2001). De la dénomination à la nomination. Les dynamiques de la signifiance nominale et le propre du nom. Cahiers de praxématique, 36, 189-214. Sinclair, J. (1991). Corpus Concordance Collocation. Oxford: Oxford University Press. Stubbs, M. (1996). Text and Corpus Analysis. Oxford: Blackwell. Valluy, J. (2005). La nouvelle Europe politique des camps d’exilés: genèse d’une source élitaire de phobie et de répression des étrangers. Cultures & Conflits, 57, 13-69. Van Dijk, T. (1991). Racism and the Press. London/New York: Routledge. Van Dijk, T. (2006). Discourse and manipulation. Discourse & Society, 17(3), 359-383. Veniard, M. (2013). Du profil lexico-discursif de crise à la construction du sens social d’un événement. In Londei, D., Moirand, S., Reboul-Touré, S. & Reggiani, S. (Eds.). Dire l’événement. Langage, mémoire, société (pp. 221-232). Paris: Presses Sorbonne Nouvelle.

[recebido em 18 de setembro de 2017 e aceite para publicação em 5 de janeiro de 2018]

BILINGUISMO INFANTIL. UM LEGADO VALIOSO DO FENÓMENO MIGRATÓRIO CHILD BILINGUALISM. A VALUABLE LEGACY OF PORTUGUESE-GERMAN MIGRATION

Cristina Flores * [email protected]

O presente artigo tem como objetivo refletir sobre uma das heranças dos fluxos migratórios: o bilinguismo infantil. Tendo como exemplo a migração lusodescen- dente na Alemanha, pretende-se discutir a natureza biológica da aquisição de duas (ou mais) línguas na infância, impulsionada pela convivência de várias línguas no espaço multilingue criado pelos fenómenos migratórios.

Palavras-chave: Migração, bilinguismo, população lusodescendente.

The present paper aims at discussing one of the legacies of migration: child bilin- gualism. Having the Portuguese-descendent migration flow as example, we intend to discuss the biological nature of the acquisition of two languages in childhood, which is triggered by the existence of various languages in the multilingual space, a by-product of the migration process.

Keywords: Migration, bilingualism, Portuguese-descendent population.

1. Introdução

No seu influente livroLife with two languages, Grosjean (1982) realçava que, nos anos de 1980, mais de metade da população mundial era bilingue. De facto muitas regiões em várias partes do mundo, sobretudo na Ásia e em

* Centro de Estudos Humanísticos, Universidade do Minho, Portugal. 238 Cristina Flores

África, são historicamente multilingues. Têm uma ou mais línguas oficiais a par de várias línguas nacionais (veja-se o exemplo de Moçambique, que tem 41 línguas nacionais, além do português, a sua língua oficial). Mas tam- bém os países ocidentais, tradicionalmente monolingues, encontram-se, em ritmo acelerado, num processo de mudança de sociedades fortemente monolingues para sociedades multiculturais e multilingues. Na origem desta acelerada transformação linguística estão os fluxos migratórios, resultantes tanto da tradicional emigração económica, como da crescente migração forçada pela perseguição política e pela guerra. A Alemanha é um exemplo paradigmático das mudanças linguísticas impulsionadas pela imi- gração. Segundo o Instituto Federal de Estatística alemão, no ano de 2016, a Alemanha atingiu a maior percentagem de população com background migratório: 18, 6 milhões de pessoas eram imigrantes de primeira gera- ção ou oriundos de famílias imigrantes (22,5% da população), crescimento que se deve sobretudo ao acolhimento da mais recente vaga de refugiados proveniente do norte de África. 1 Nesta estatística, a comunidade lusodes- cendente não ocupa um lugar de proeminência; em 2016 viviam 136 080 pessoas de nacionalidade portuguesa na Alemanha (Destatis, 2017). A assinatura do acordo bilateral entre os governos português e alemão para o recrutamento de trabalhadores portugueses na Alemanha, a 17 de março de 1964, marcou o início ‘oficial’ da emigração portuguesa para este país. Antes já tinham sido assinados acordos semelhantes com outros paí- ses do sul da Europa. Desde então, o fluxo migratório de Portugal para a Alemanha tem conhecido várias fases (Pinheiro, 2010), de crescimento pro- gressivo nos anos 70, de estagnação de novas entradas e aumento de movi- mentos de retorno nos anos 80 e novas vagas de emigração, embora, em parte, de perfil diferente (cf. Baganha & Marques, 2001; Baganha & Peixoto, 1997), na viragem do século. Isto significa que, na Alemanha, vivem neste momento diferentes gerações de emigrantes lusodescendentes. A primeira geração, que emigrou na sequência do acordo de 1964, encontra-se agora na idade da reforma, em muitos casos passada entre a Alemanha, onde vivem os filhos e os netos, e Portugal, onde construíram uma casa. O desejo do regresso à terra natal é um traço constante do imaginário identitário desta geração. Os filhos da primeira geração, que já cresceram no país de acolhimento, estabeleceram aqui família (com lusodescendentes ou par- ceiros de outras nacionalidades), considerando-se tanto portugueses como alemães. No caso da terceira geração, os netos dos primeiros emigrantes,

1 Cf. Bilinguismo infantil. Um legado valioso do fenómeno migratório 239

a relação com o país de origem é muito variável, situando-se num conti- nuum que pode ir de ‘ausência de ligação identitária’ a uma ‘ligação muito forte’, dependendo das práticas de comunicação no seio da família. Com estas gerações interlaçam-se outros percursos emigratórios: pessoas que regressaram a Portugal mas voltaram a emigrar, por razões financeiras ou de inadaptação a uma sociedade que afinal lhes era estranha; jovens licen- ciados que procuram as oportunidades de trabalho que Portugal não lhes consegue oferecer; famílias afetadas pelo desemprego, que não veem alter- nativa à emigração para um país com melhores condições económicas. Estes perfis migratórios tão diversificados ecoam em perfis linguísti- cos igualmente diferenciados. No caso da primeira geração de emigran- tes, mesmo depois de um período extenso de residência na Alemanha, a língua portuguesa continua a ter um papel fundamental enquanto língua de comunicação quotidiana. Por ser adquirida em fase adulta, em muitos casos, a aquisição do alemão não passa de estágios iniciais de aprendizagem, que permitem o desenvolvimento de alguma competência de compreensão e produção oral, mas são insuficientes no que respeita a competências de escrita e leitura. Já a segunda (e mesmo a terceira) geração de emigrantes cresce num contexto sociolinguístico em que ambas as línguas, o português e o alemão, assumem funções sociais importantes. O português, a sua lín- gua de herança, é a língua falada no seio da família e da comunidade portu- guesa emigrante, enquanto o alemão assume um papel de destaque por ser a língua da escola, dos amigos, da sociedade acolhedora em geral. A convi- vência de ambas as línguas desde tenra idade constitui a constelação ideal para o desenvolvimento do fenómeno que está no centro da discussão do presente artigo: o bilinguismo. Embora a literatura especializada apresente uma diversidade de definições de bilinguismo (ver p. ex. a discussão em Romaine, 1989), entendemos como ‘bilinguismo’ o processo de aquisição, na infância, de (pelo menos) duas línguas nativas ou línguas primeiras (L1) (termos que doravante usaremos como sinónimos) em vez de apenas uma. Como será discutido mais detalhadamente na próxima secção, há duas condições indispensáveis para a aquisição de duas línguas nativas: 1) o con- tacto com as duas línguas ocorre na infância 2 e 2) a criança tem contacto regular com ambas as línguas, pelo menos até aos onze/doze anos de idade (Flores, 2010). São precisamente as segundas (e em parte as terceiras) gera- ções de emigrantes que satisfazem estas condições e herdam, assim, um

2 De facto não há consenso sobre a faixa etária, a partir da qual a aquisição de uma segundo língua deixa de ser considerada aquisição nativa. Este é um debate no qual não pretendemos entrar aqui. 240 Cristina Flores

dos bens mais preciosos da emigração portuguesa na Alemanha: o facto de falarem o alemão e o português como línguas nativas, com todos os bene- fícios pessoais, culturais e económicos que o multilinguismo pode oferecer, se os agentes sociais envolvidos (os próprios falantes, a família, a escola e a comunidade maioritária) não forem influenciados por discursos político- -linguísticos distorcidos. O objetivo do presente artigo não consiste em descrever as práticas multilingues da comunidade lusodescendente residente na Alemanha, nem as representações subjetivas das suas competências plurilingues e pluricul- turais. 3 Pretendemos, antes de mais, recuar um passo e refletir sobre a natu- reza biológica da aquisição precoce de duas línguas, isto é, sobre a forma como a mente do falante bilingue desenvolve duas línguas primeiras e os pressupostos subjacentes a tal desenvolvimento. Neste âmbito, realçamos o que a investigação sobre a aquisição bilingue, conduzida nas últimas três décadas, tem revelado convincentemente: A mente humana está biologi- camente predisposta para adquirir mais do que uma língua na infância, sem qualquer prejuízo para o desenvolvimento linguístico ou cognitivo da criança bilingue (Meisel, 1989).

2. Aquisição de duas línguas na infância

Apesar de todos os avanços científicos, baseados em novos métodos e fer- ramentas de investigação sobretudo nas áreas da psico- e neurolinguística, na verdade, ainda sabemos muito pouco sobre a forma como a nossa mente representa a linguagem. Sabemos que existem duas áreas cerebrais impor- tantes para a compreensão e produção da linguagem, as áreas de Broca e de Wernicke, mas também sabemos que estas não são as únicas regiões res- ponsáveis pelo processamento linguístico, que se estende por partes muito mais extensas do córtex cerebral (Bhatnagar et al., 2000). Sabemos que a criança não aprende a falar simplesmente imitando os adultos, como suge- riam modelos behavioristas já ultrapassados (Skinner, 1957), mas não sabe- mos quanto da faculdade da linguagem é geneticamente pré-determinada (Chomsky, 1965; 1972). É, no entanto, um dado inquestionável que o tipo e a quantidade de contacto com a língua em aquisição são fatores-chave no processo de desenvolvimento da faculdade da linguagem. Apesar das visões pouco con-

3 para tal consulte o trabalho interessante realizado por Sílvia Melo-Pfeifer e colegas (e.g. Melo- Pfeifer, 2014; Melo-Pfeifer & Schmidt, 2014) Bilinguismo infantil. Um legado valioso do fenómeno migratório 241

sensuais dos diferentes modelos teóricos que tentam descrever o processo de aquisição da linguagem 4, todos são unânimes em reconhecer que, sem contacto regular com uma língua, não é possível a criança aprender a falar. Só a exposição diária a uma língua natural consegue, de facto, desencadear o processo de aquisição. A criança que cresce normalmente rodeada de lin- guagem (seja esta verbal ou gestual) adquire, em pouco tempo (ca. 5 – 6 anos), um conhecimento linguístico altamente complexo, que não é fruto de instrução formal e explicitação de regras linguísticas. Todas as crianças (saudáveis) que crescem numa comunidade linguística adquirem, de forma inconsciente, um sistema linguístico muito idêntico, a sua língua nativa, independentemente do seu estatuto social, da sua personalidade ou de fato- res cognitivos, como o grau de inteligência. Como tal, nenhuma criança consegue recusar-se a adquirir linguagem. Basta a mente ter contacto com dados linguísticos para os ‘absorver’ e construir saber linguístico. Os estudos linguísticos conduzidos nas últimas três décadas sobre o desenvolvimento bilingue mostram que a aquisição de duas línguas na infância não difere muito da aquisição monolingue (Genesee, 1989; Meisel, 1989). O dispositivo mental que permite a absorção dos dados linguísticos presentes no input da criança e a construção do saber linguístico da sua L1 não está limitado à aquisição de apenas uma língua materna. Atualmente restam poucas dúvidas de que a criança que desde cedo é exposta a duas ou mais línguas adquire estas sem qualquer prejuízo cognitivo ou esforço mental adicional, percorrendo estágios de aquisição idênticos aos das crianças expostas a apenas uma língua. Contrariando conceções estereo- tipadas mais antigas, muitos dos autores que a partir dos anos 90 se têm dedicado ao bilinguismo (e.g. De Houwer, 1990) mostram que a criança bilingue distingue desde muito cedo as duas línguas com as quais convive. A mente bilingue não corresponde a uma amálgama confusa de saberes linguísticos ou a um ‘contentor’ que é preenchido por uma língua, tirando espaço ao armazenamento da outra, como apregoado por visões subtra- tivas do bilinguismo. Infelizmente, ainda hoje em dia, muitos professores e psicólogos insistem na opinião não fundamentada de que, em contex- tos multilingues, uma língua impede o normal desenvolvimento da outra. Consequentemente, aconselham famílias com background migratório a adotarem a língua maioritária também na comunicação em casa, abando- nando o uso da língua de origem. Esta visão não podia estar mais longe da verdade. De facto, até à data nenhum estudo linguístico demonstrou empi-

4 ver por exemplo Ambridge & Lieven (2011) para uma discussão destes modelos. 242 Cristina Flores

ricamente que, em contextos de convivência diária de duas línguas, estas se influenciam de tal forma que bloqueiam o processo de aquisição. Muitos dos efeitos de influência interlinguística, amplamente estudados nos vários domínios linguísticos (como a fonética, o léxico ou a morfossintaxe), são efeitos de influência temporária e manifestações pouco expressivas, não do saber linguístico subjacente, mas do processamento da fala em contextos de comunicação, ou são instrumentos intencionais de comunicação plurilin- gue (como no caso do code-switching). Em todo o caso, estes efeitos têm de ser entendidos como manifestações particulares da competência bilingue do falante, não podendo ser analisados como mecanismos de bloqueio do processo de aquisição linguística. Na verdade, os supostos efeitos negativos do bilinguismo, erradamente entendidos como consequência do uso simultâneo de duas línguas, pouco têm a ver com a convivência de duas línguas no dia a dia do falante, mas sim com fatores sociais e educativos que não podem ser confundidos com fatores biológico-cognitivos. Encontramos um caso ilustrativo de confusão entre fatores biológico-cognitivos e fatores sócio-educativos nas interpre- tações das elevadas taxas de insucesso escolar atingidas por alunos filhos de pais imigrantes em diversos estudos de avaliação internacional como o PISA ou o PIRLS/IGLU, entre outros (Duarte & Roth, 2008; Roth & Duarte, 2006). Apesar de um número crescente de estudos realçar a importância de fatores sócio-económicos nestes resultados, que nada têm a ver com fatores linguísticos, muitas das publicações sobre este assunto ainda reproduzem a visão simplista de que o insucesso educativo se deve ao facto de as crian- ças de contexto migratório falarem duas línguas no seu quotidiano. Como demonstram Cummins (2000) e a vasta investigação na área do multilin- guismo educativo assente no seu trabalho, a relação entre bilinguismo e sucesso educativo é muito mais complexa e não pode ser reduzida à pre- sença de duas línguas na vida da criança. De facto, os estudos psicolinguísticos que analisam o desenvolvimento neuropsicológico e cognitivo de falantes bilingues, entre os quais se des- taca o trabalho da psicóloga canadiana Ellen Bialystok, têm vindo a realçar os efeitos positivos do bilinguismo sobre funções cognitivas e linguísticas. Segundo Bialystok (2009), falantes bilingues mostram efeitos positivos em áreas como o controlo executivo, a memória, a fluência verbal e a cons- ciência metalinguística, que são atribuídos ao bilinguismo. O facto de as duas línguas nativas do falante bilingue estarem em constante competição, regulada por processos de inibição e ativação das línguas, parece promover a capacidade cognitiva de este reagir a mudanças, tomar decisões e resolver Bilinguismo infantil. Um legado valioso do fenómeno migratório 243

conflitos em tarefas experimentais desenvolvidas para testar estas capaci- dades cognitivas. 5 O contexto migratório é de facto o contexto por excelência de convi- vência diária de duas línguas. A criança proveniente de uma família imi- grante, cuja principal língua de comunicação é a língua do país de origem, cresce num contexto diglóssico que naturalmente favorece o desenvolvi- mento de competências bilingues. Em regra, nestes casos, a criança tem contacto diário com (pelo menos) duas línguas: no seio da família é exposta à língua de origem, enquanto que o contacto com a língua do país acolhe- dor se intensifica quando a criança entra no infantário ou na (pré-)escola. 6 Como demonstram muitos estudos, esta interação diária com duas línguas é suficiente para desenvolver uma competência bilingue estável, assente no desenvolvimento de duas línguas nativas com todos os seus laços afetivos, identitários e culturais.

3. A competência bilingue de lusodescendentes de segunda geração

Num dos primeiros estudos sobre a competência bilingue de imigrantes por- tugueses de segunda geração residentes na Alemanha, Brauer-Figueiredo (1993; 1997; 1999) conclui que os falantes analisados apresentam uma proficiência muito elevada a nível da sua língua de herança, o português. A autora apresenta uma descrição detalhada de fenómenos linguísticos observados na fala espontânea dos seus informantes, que representam des- vios à norma e poderiam ser catalogados como fenómenos de interferência, causados pelo contacto do alemão com o português num contexto de aqui- sição bilingue. Exemplos destes fenómenos, aparentemente agramaticais, são o uso de formas verbais do indicativo em vez do conjuntivo, a colocação pós-verbal do pronome clítico em contextos que requerem a ordem pré- -verbal ou a omissão da preposição em orações relativas iniciadas por pre-

5 Os efeitos positivos do bilinguismo parecem estender-se dos primeiros meses de vida até à terceira idade. A título de curiosidade refira-se o trabalho de Gollanet al. (2011). Num estudo sobre participantes bilingues com doença de Alzheimer, os autores concluem que existe uma estreita relação entre a idade de aparecimento da doença e o nível de proficiência em ambas as línguas. Quanto mais elevado o nível de proficiência (ou seja, quanto mais equilibrado o bilin- guismo), maior é a probabilidade de atraso no aparecimento de doenças de demência. 6 Outras línguas poderão ter um papel relevante no seu dia a dia, se os progenitores falarem dife- rentes línguas de origem, se a criança frequentar uma instituição de ensino bilingue ou crescer num ambiente maioritariamente habitado por uma comunidade imigrante de origem diferente. 244 Cristina Flores

posição. Brauer-Figueiredo, porém, alerta para o facto de estes fenómenos também ocorrerem frequentemente no discurso oral de falantes portugue- ses monolingues, por serem fenómenos típicos do português coloquial, não representando, por isso, marcas exclusivas do discurso de falantes lusodes- cendentes residentes na Alemanha. Trabalhos subsequentes, realizados no âmbito de projetos de inves- tigação dedicados ao bilinguismo luso-alemão 7, têm vindo a reforçar estas observações incipientes de Brauer-Figueiredo. Mesmo tendo um grau muito variável de contacto com a sua língua de herança, as segun- das gerações lusodescendentes residentes na Alemanha apresentam uma competência bilingue muito estável, desenvolvendo elevada proficiência linguística tanto a nível do português como a nível do alemão. Partindo do pressuposto de que o saber linguístico se desenvolve na mente humana em etapas de aquisição, seguindo padrões de desenvolvimento universais, os estudos linguísticos realizados neste âmbito têm focado aspetos particu- lares do saber linguístico dos falantes, observando o seu desenvolvimento com base em métodos de análise experimentais. Uma das principais con- clusões destes estudos prende-se com o facto de as crianças bilingues que crescem na Alemanha apresentarem padrões de aquisição do português muito semelhantes aos padrões de desenvolvimento das crianças que cres- cem num contexto monolingue. Num estudo sobre a aquisição do pronome clítico em PLH, Flores e Barbosa (2014) analisam o conhecimento linguístico de 24 crianças/ado- lescentes no domínio morfossintático da pronominalização clítica. Este é um domínio de saber linguístico altamente complexo em português euro- peu, uma vez que apresenta variabilidade quanto à forma do pronome, à sua colocação e à possibilidade de omissão pronominal, regida por condi- ções pragmáticas. Segundo Costa e Lobo (2006; 2011), esta complexidade explica o facto de este domínio de conhecimento se estabilizar relativa-

7 *Projeto Exploratório FCT Português como Língua de Herança e mudança linguística [EXPL/ MHC-LIN/0763/2013], execução 15.3.2014 – 15.3.2015, coord. Cristina Flores (Universidade do Minho); *Projeto I&D da FCT Completivas na Aquisição do Português (CLAP) [PTDC/CLE- LIN/120897/2010], execução 1.3.2012-1.3.2015, coord. Ana Lúcia Santos (Universidade de Lisboa) *Ações Integradas Luso-alemãs DAAD-CRUP Erosão e mudança linguística: uma pesquisa sobre o português falado por emigrantes de segunda geração, [Referência: Ações Integradas Luso- Alemães 2010-2011 - Ação Nº A-18/10, Procº AI-A/09], em parceria com a Universidade de Hamburgo, execução 1.1.2010 – 31.12.2011, coord. Cristina Flores; *Projeto I&D da FCT O bilinguismo luso-alemão no contexto europeu [POCI/LIN/59780/2004], 1.1.2005 – 30.6.2008, coord. Cristina Flores. Bilinguismo infantil. Um legado valioso do fenómeno migratório 245

mente tarde no processo de aquisição linguística do falante nativo de por- tuguês europeu. Flores e Barbosa (2014) mostram que, de facto, as crianças lusodescendentes residentes na Alemanha demoram mais tempo a adquirir alguns padrões de colocação do pronome clítico em português, no entanto, seguem o mesmo percurso de desenvolvimento que as crianças residentes em Portugal. A predisposição mental para absorver os dados linguísticos presentes no input da criança não é alterada pelo facto de esta também ser exposta a outra língua no seu quotidiano. Resultados semelhantes são apresentados por Santos e Flores (2016) num estudo sobre a aquisição de estruturas linguísticas como a colocação adverbial e a elipse do sintagma verbal. Analisando diferentes grupos de falantes, adultos e crianças portuguesas residentes em Portugal, crianças bilingues residentes na Alemanha e falantes austríacos que aprendem por- tuguês como língua estrangeira, as autoras mostram que as crianças que crescem, desde a nascença, em contacto diário com o português apresen- tam um saber linguístico muito idêntico nos domínios investigados, inde- pendentemente de crescerem em contexto monolingue em Portugal ou em contexto bilingue na Alemanha. Também nestes domínios do conhe- cimento linguístico, a presença de outra língua na mente do falante não impede ou perturba o desenvolvimento da língua-alvo. Neste sentido, é altamente questionável assumir que, em caso de coexistência de duas lín- guas, uma é adquirida por intermédio ou com auxílio da outra. De facto, a investigação sobre aquisição bilingue tem sido unânime em mostrar que as línguas evoluem de forma autónoma na mente da criança que é exposta a mais que uma língua desde a nascença (Meisel, 2001). Isto não significa, todavia, que o fenómeno de transferência / influência interlinguística não tenha um papel importante na aquisição de duas ou mais línguas. Desde os primeiros trabalhos sobre o contacto de línguas em contexto de bilinguismo (e.g. Weinreich, 1953), tem sido repetidamente demonstrado que, de facto, as línguas de um falante bilingue se influenciam mutuamente. É incontor- nável, contudo, compreender as áreas e o tipo de influência observada, pois há que distinguir entre a transferência interlinguística no processamento e no momento de utilização das línguas, por um lado, e no saber linguístico representado na mente do falante, por outro lado. Na verdade, as evidên- cias de transferência entre línguas apresentadas na literatura especializada tendem a cingir-se ao primeiro tipo de influência, ou seja, muitos estudos mostram que falantes bilingues poderão apresentar diferenças quantita- tivas na utilização de determinadas estruturas linguísticas por influência da outra língua (e.g. Müller & Hulk, 2001). No entanto, não conhecemos 246 Cristina Flores

nenhum estudo que comprove a falta de aquisição ou a substituição com- pleta de determinadas propriedades gramaticais pelas propriedades do idioma ‘concorrente’. A transferência interlinguística é sobretudo expressiva no campo lexical, em que, pelos mais variados motivos, o falante recorre a uma palavra da outra língua: i) por não saber ou não se lembrar da palavra na língua-alvo; ii) para servir determinados propósitos comunicativos ou iii) para expressar relações sociais, identitárias ou afetivas codificadas na alternância de códigos (Grosjean, 1982). Neste sentido, a alternância entre duas línguas, processo típico do discurso bilingue, tem de ser compreen- dida como manifestação da criatividade e particularidade dinâmica da competência multilingue e não como expressão de uma competência defi- citária ou incompleta. Esta visão muito discutível de desenvolvimento de uma competência incompleta por parte de falantes bilingues que crescem em contexto de migração, defendida por linguistas como Montrul (2002; 2008) e Polinsky (1995) numa fase inicial do seu trabalho de investigação, dominou uma grande parte dos estudos em aquisição bilingue sobretudo no espaço norte-americano, um espaço marcadamente monolingue, sem esforços significativos de instituição de políticas eficazes de fomentação do multilinguismo. Muitas têm sido, porém, as vozes contestatárias desta hipótese de aquisição incompleta, sobretudo vindas do espaço de investi- gação europeu, realçando que esta visão não é teórica nem empiricamente fundamentada, além de ter profundas implicações sociais e pedagógicas (Kupisch, 2013; Pascual y Cabo & Rothman, 2012). Um importante fator que explica as particularidades da competência bilingue dos falantes lusodescendentes prende-se com o tipo de contacto que têm com o português. Sabendo que o uso do português se restringe, na maio- ria dos casos, à comunicação no seio da família e (nem sempre) a duas horas de aulas de português língua de herança por semana, o tipo de contacto com a LH é pouco variado e, com exceção do número reduzido das aulas extracurri- culares, limitado a um registo coloquial. Neste sentido, o falante de PLH carece de oportunidades para usar a língua portuguesa em contextos de comunica- ção associados a registos de língua mais formais, também patente no contacto com textos escritos. Como muitas estruturas linguísticas (por exemplo o uso de determinados tempos verbais) são pouco frequentes no discurso oral colo- quial, esta falta de contacto explica o facto de falantes de herança não usarem essas estruturas, desenvolvendo uma competência linguística muito particular (e inovadora). Também esta observação é fruto da maleabilidade do cérebro humano, que adquire a linguagem presente no seu input, mas obviamente não adquire o que não está nos dados linguísticos que o rodeiam. Bilinguismo infantil. Um legado valioso do fenómeno migratório 247

Em jeito de conclusão, a observação de que ‘a criança adquire toda a linguagem presente no seu input mas não adquire o que não está nos dados linguísticos que a rodeiam’ permite-nos realçar duas mensagens essenciais quanto ao bilinguismo luso-alemão. A primeira, que urge passar a pais, educadores e professores, é a certeza de que a mente da criança está prepa- rada para, naturalmente, adquirir duas ou mais línguas. Para tal, a criança apenas necessita de estar exposta às duas línguas, isto é, a criança tem de ter oportunidade de contactar, no seu dia a dia, sobretudo com a sua língua de herança, uma vez que a língua maioritária está inevitavelmente presente no seu quotidiano, especialmente a partir do momento em que a criança entra no infantário ou na escola. O contacto quotidiano com a língua portuguesa pode dar-se através do uso do português como a principal língua de comu- nicação no seio da família, como uma das línguas falada por pai ou mãe a par de outra língua ou através da convivência diária com outros familiares de origem portuguesa (por exemplo os avós). Em todo o caso, a investiga- ção neste domínio tem demonstrado que este contacto diário é suficiente para desencadear a aquisição da língua de herança. Não é necessário inves- timento financeiro, de tempo ou de trabalho suplementar, se os pais (ou um deles) são falantes nativos do português. A frequência das aulas extra- curriculares de português língua de herança vem trazer a este processo de aquisição uma dimensão que certamente o fortalece: a transmissão de com- petências de literacia, o contacto com textos escritos e registos linguísticos ausentes da comunicação oral no seio de família. Além disso, como realçam Melo-Pfeifer e Schmidt (2014), as aulas extracurriculares de PLH são um importante espaço para desenvolvimento de uma competência plurilingue e pluricultural (PC), que integra um conjunto de saberes e competências afetivas, linguístico-comunicativas e identitárias que ultrapassam a ‘mera’ competência linguística entendida como representação de um sistema lin- guístico na mente do falante, o objeto de estudo deste artigo. A segunda mensagem prende-se com o revés desta maleabilidade men- tal para aquisição da linguagem. Se a criança parece ter muita facilidade em adquirir uma língua com a qual contacta diariamente, também é muito mais fácil voltar a perder essa competência linguística, se perder o contacto diário com a língua-alvo. A investigação na área da erosão linguística tem sido muito consensual em demonstrar que os efeitos de perda linguística são muito mais significativos na infância do que na fase adulta, indicando que durante o período ideal para aquisição da linguagem é necessário o conhe- cimento adquirido estabilizar-se na mente do falante. Uma perda precoce de contacto linguístico pode levar à erosão do saber já adquirido (Bylund, 248 Cristina Flores

2008). Este é, por exemplo, o caso de falantes bilingues de segunda geração que crescem na Alemanha, mas voltam para Portugal ainda na infância, deixando de ter contacto regular com o alemão. Se o regresso a Portugal se der antes dos 11/12 anos de idade, os efeitos de erosão do alemão são muito significativos (podendo mesmo ocorrer perda total) (Flores, 2010, 2015). Isto significa que a criança bilingue necessita de contacto diário com a língua não apenas em estádios iniciais do processo de aquisição mas, pelo menos, até à adolescência, para desenvolver competências de compreensão e produção em ambas as línguas. Por este motivo, o uso da língua portu- guesa no seio de famílias lusodescendentes é uma mais-valia inestimável, que deve ser apoiada incondicionalmente pelos agentes sociais, políticos e académicos que se preocupam com o fenómeno da emigração portuguesa na Alemanha.

Referências

Ambridge, B. & Lieven, E.V.M. (2011). Language Acquisition: Contrasting theoretical approaches. Cambridge: Cambridge University Press. Baganha, M.I. & Marques, J.C. (2001). Imigração e Política: O caso Português. Lisboa: Fundação Luso-Americana. Baganha, M.I. & Peixoto, J. (1997). Trends in the 90’s: the Portuguese migratory experience. In M.I. Baganha (org.), Immigration in Southern Europe (pp.15-40). Oeiras: Celta. Bhatnagar, S. C.; Mandybur, G. T.; Buckingham, H.W. & Andy, O. J. (2000). Language representation in the human brain: evidence from cortical mapping. Brain and Language, 74, 238–259. Bialystok, E. (2009). Bilingualism: The good, the bad, and the indifferent. Bilingualism: Language and Cognition, 12 (1), 3–11. Brauer de Figueiredo, M. F. (1993). Sprachkontakt: Wie redet die 2. Generation der Immigranten in Hamburg Portugiesisch?. In Akten des Deutschen Hispanistentags Göttingen 1991 (pp. 307-327). Frankfurt a.M.: Vervuert. Brauer de Figueiredo, M. F. (1997). Aspetos do bilinguismo dos emigrantes portugueses da 2ª geração em Hamburgo. In H. Lüdtke & J. Schmidt-Radefeldt (orgs.), Kontrastive Linguistik: Deutsch versus Portugiesisch - Spanisch – Französisch (pp. 381-406). Tübingen: Gunter Narr Verlag. Brauer de Figueiredo, M. F. (1999). Gesprochenes Portugiesisch. Frankfurt a.M.: TFM. Bylund, E. (2008). Age Differences in First Language Attrition.Tese de Doutoramento. University of . Chomsky, N. (1965). Aspects of the Theory of Syntax. MIT Press. Bilinguismo infantil. Um legado valioso do fenómeno migratório 249

Chomsky, N. (1972). Language and mind. New York: Harcourt, Brace, Jovanovich. Costa, J. & Lobo, M. (2006). A aquisição de clíticos em PE: Omissão de Clíticos ou Objectos Nulos? In: XXI Encontro Nacional da APL. Textos Seleccionados (pp. 285- 293). Lisboa: APL. Costa, J. & Lobo, M. (2011). Objeto nulo na aquisição do português europeu: pro ou variável? In: XXVI Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística. Textos Seleccionados (pp. 197-207). Lisboa: APL. Cummins, J. (2000). Language, power and pedagogy. Bilingual children in the crossfire. Clevedon: Multilingual Matters. De Houwer, A. (1990). The acquisition of two languages from birth: A case study. Cambridge: Cambridge University Press. Duarte, J. & Roth, H.-J. (2008). Estrutura linguística e desempenho escolar na aquisição de uma segunda língua. In C.Flores (org.), Temas em Bilinguismo (pp.191-206). Braga: CEHUM. Flores, C. (2010). The effect of age on language attrition: Evidences from bilingual retur- nees. Bilingualism. Language and Cognition, 13 (4), 533–546. Flores, C. (2015). Losing a language in childhood: a longitudinal case study on language attrition. Journal of Child Language, 42 (3), 562 - 590. Flores, C. & Barbosa, P. (2014). When reduced input leads to delayed acquisition: a study on the acquisition of clitic placement by Portuguese heritage speakers. International Journal of Bilingualism, 18 (3), 304 –325. Genesee, F. (1989). Early bilingual development: one language or two? Journal of Child Language, 16, 161–179. Gollan, T.; Salmon, D.P.; Montoya, R. & Galasko, D.R. (2011). Degree of Bilingualism Predicts Age of Diagnosis of Alzheimer’s Disease in Low-Education but not in Highly-Educated Hispanics. Neuropsychologia, 49 (14), 3826–3830. Grosjean, F. (1982). Life with Two Languages. Cambridge: Harvard UP. Kupisch, T. (2013). A new term for a better distinction? A view from the higher end of the proficiency scale. Theoretical Linguistics, 39 (3–4), 203–214. Meisel, J. M. (1989). Early differentiation of languages in bilingual children. In K. Hyltenstam & L.K. Obler (orgs.), Bilingualism across the lifespan: Aspects of acquisi- tion, maturity, and loss (pp. 13-40). Cambridge: Cambridge University Press. Meisel, J. M. (2001). The simultaneous acquisition of two first languages: Early differen- tiation and subsequent development of grammars. In Cenoz, J. & Genesee, F. (orgs.), Trends in bilingual acquisition (pp. 11–41). Amsterdam: John Benjamins. Melo-Pfeifer, S. (2014). The role of the family in heritage language use and learning: impact on heritage language policies. International Journal of Bilingual Education and Bilingualism, 18(1), 26-44. 250 Cristina Flores

Melo-Pfeifer, S. & Schmidt, A. (2014). “Desenha-te a falar as línguas que conheces”: ima- gens de crianças luso(fono)descendentes na Alemanha acerca da sua Competência Plurilingue. In A. I. Andrade; M. H. Araújo e Sá; R. Faneca; F. Martins; A. S. Pinho & A. R. Simões (org.), A diversidade linguística nos discursos e nas práticas de educação e formação (pp. 159-182). Aveiro: Universidade de Aveiro. Montrul, S. (2002). Incomplete acquisition and attrition of Spanish tense/aspect distinctions in adult bilinguals. Bilingualism: Language and Cognition, 5 (1), 39–68. Montrul, S. (2008). Incomplete Acquisition in Bilingualism: Re-examining the Age Factor. Amsterdam: John Benjamins. Müller, N., & Hulk, A. (2001). Crosslinguistic influence in bilingual language acquisition: Italian and French as recipient languages. Bilingualism: Language and Cognition, 4 (1), 1–21. Pascual y Cabo, D. & Rothman, J. (2012). The (il)logical problem of heritage speaker bilingualism and incomplete acquisition. Applied Linguistics, 33, 450–455. Pinheiro, T. (2010). Vernetzte Identitäten: Repräsentationen portugiesischer Emigration im deutschsprachigen Internet. In T. Pinheiro (org.), Portugiesische Migrationen. Geschichte, Repräsentationen und Erinnerungskulturen (pp.175-196). Wiesbaden: VS Verlag für Sozialwissenschaften. Polinsky, M. (1995). American Russian: Language Loss Meets Language Acquisition. Formal Approaches to Slavic Linguisitics. Cornell Meeting. Ann Arbor: Michigan Slavic Publications. Romaine, S. (1989). Bilingualism. Cambridge: Blackwell. Roth, H.-J. & Duarte, J. (2006). Sobre a aquisição de competências linguísticas num modelo de ensino bilingue. O português-alemão em Hamburgo. Palavras, 30, 43–68. Santos, A.L. & Flores, C. (2016). Comparing heritage speakers and late L2-learners of European Portuguese: verb movement, VP ellipsis and adverb placement. Linguistic Approaches to Bilingualism, 6 (3), 308–340. Skinner, B. F. (1957). Verbal Behavior. Acton, Massachusetts: Copley Publishing Group. Weinreich, U. (1953). Languages in Contact: Findings and Problems. New York: Linguistic Circle of New York.

[recebido em 12 de outubro de 2017 e aceite para publicação em 3 de janeiro de 2018] Saltem ! Estamos a Saltem ! afundar !

Um rochedo ! O barco rasgou-se. Acelera, Pitanga ! Acelera ! Eu não sei nadar. Ajudem !

Toma, Mané ! Trata do Monsieur. Eu ocupo-me da madame.

Temos pé ! Saltem ! Temos pé ! Não tenham medo. Então, Madame ? Tem de saltar !

E você ?

Sabe como é !... Se se quiser O capitão é sempre o despir, juro-lhe que AAAAHH... último a abandonar não reparo, Madame ! o barco... Mas acho que não vai dar tempo...

Mas eu, com estas roupas, vou ter dificuldade em chegar a terra... ÔÔÔÔÔHH... O COLEGA DE SEVILHA

Arlindo Fagundes

(Ovar, 1945) frequentou a Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, e formou-se como realizador de cinema no Conservatoire Libre du Cinéma Français, em Paris. Ainda estudante, iniciou-se profissionalmente nas Artes Gráficas e no Design Gráfico. A estas actividades viriam a juntar-se mais tarde a Cerâmica e a Escultura. Vária

ORIENTALISMO E CRÍTICA SOCIAL EM OBRAS DE ARTUR AZEVEDO E EÇA DE QUEIRÓS: O CASO DE DOIS O MANDARIM ORIENTALISM AND SOCIAL CRITICISM IN WORKS OF ARTUR AZEVEDO AND EÇA DE QUEIRÓS: THE CASE OF TWO THE MANDARIN

José Carvalho Vanzelli * [email protected] Antonio Augusto Nery ** [email protected]

A China esteve no centro das atenções do Ocidente durante o Oitocentos. Talvez, por isso, na literatura ocidental oitocentista, a imagem do ‘mandarim’, representa- ção, por vezes estereotipada, do chinês que detinha prestígio político, econômico ou cultural em seu país de origem é constante. Em Portugal, por exemplo, foi publi- cada no Diário de Portugal, em 1880, a novela O Mandarim de Eça de Queirós. Já no Brasil, foi encenada no Rio de Janeiro, quatro anos mais tarde, a peça igualmente intitulada O Mandarim, escrita por Artur Azevedo e Moreira Sampaio. A simi- laridade de títulos e a proximidade de datas de publicação propiciam uma série de questões: em que sentidos esses dois O Mandarim se aproximam ou se distan- ciam? Poderia ser a novela de Eça uma espécie de inspiração à peça de Azevedo e Sampaio? Como teriam esses autores trabalhado com a representação do oriental que dá títulos às obras? Este artigo busca responder a essas e outras questões surgi- das durante a leitura comparativa dos textos homônimos.

Palavras-chave: O Mandarim, Eça de Queirós, Artur Azevedo, literaturas de língua portuguesa, século XIX.

China has been under the spotlight from the West throughout the nineteenth century. This is probably one of the reasons why nineteenth century literature has

* Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil. ** Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Brasil. 256 JOSÉ CARVALHO VANZELLI & ANTONIO AUGUSTO NERY

frequently depicted the often-stereotyped image of the ‘Mandarin’ as the represen- tation of the Chinese who holds political, economic or cultural prestige in his coun- try of origin. In Portugal, for example, the novel O Mandarim, written by Eça de Queirós, was published in Diário de Portugal in 1880. In Brazil, a play authored by Artur Azevedo and Moreira Sampaio and staged four years later in Rio de Janeiro was also called O Mandarim. The closeness between both titles and the proximity of dates may raise a series of questions: how far are these two “The Mandarim” similar or different from each other? Could Eça’s novel have been a kind of inspiration to Azevedo and Sampaio’s play? How have these authors dealt with the representation of the Chinese who has lent both texts their title? This article will try to answer these and other questions arising from our comparative reading.

Keywords: O Mandarim, Eça de Queirós, Artur Azevedo, Portuguese literature, 19th century.

Em julho de 1880, Eça de Queirós (1845-1900), como substituição do pro- metido original de Os Maias, publica no jornal Diário de Portugal a novela O Mandarim, texto inicialmente visto como um “descanso da análise severa do homem” (Queirós 1992, p. 199), de acordo com a classificação dada pelo próprio autor, mas que traz em suas linhas uma complexidade artística e uma pluralidade de leituras que abrange diversas questões de sua época. Quatro anos mais tarde, após a novela ter saído em livro e no mesmo ano em que foi publicada sua edição francesa, é representada pela primeira vez, no Teatro Príncipe Imperial do Rio de Janeiro, a revista de ano O Mandarim, escrita pelos dramaturgos brasileiros Artur Azevedo (1855-1908) e Moreira Sampaio (1851-1901). Essa peça se tornou a primeira do gênero a fazer sucesso no Brasil e foi responsável pelo “modelo que foi posteriormente ado- tado pelos outros revistógrafos brasileiros” (Faria 2002, p. 161). A proximidade das datas de publicação entre os dois textos, a simila- ridade do título das obras e os nomes escolhidos dos personagens orien- tais que dão título às obras – Ti-Chin-Fú, em Eça; e Tchin-Tchan-Fó, em Azevedo e Sampaio – trazem algumas questões primárias: 1) em que sen- tidos esses dois O Mandarim se aproximam ou se afastam?; 2) poderia ser a novela de Eça uma espécie de inspiração à peça de Azevedo e Sampaio?; e 3) como teriam esses autores trabalhado com a representação do oriental que dá título às obras? ORIENTALISMO E CRÍTICA SOCIAL EM OBRAS DE ARTUR AZEVEDO E EÇA DE QUEIRÓS 257

A fim de tentarmos responder a essas questões, primeiramente, é pre- ciso destacar a diferença de gênero de cada uma das obras. Afinal, Eça escreve uma obra em prosa, relatada em primeira pessoa. Já O Mandarim de Azevedo e Sampaio é uma peça satírica. Também, é necessário verificar como o enredo de cada uma das tramas se constrói para avaliarmos o grau de proximidade desses textos homôni- mos. A novela de Eça tem sua história desenvolvida parte em Portugal e parte na China 1 e é pautada no chamado “paradoxo 2 do mandarim”, ou seja, na problemática que envolve a seguinte questão:

Manter-se-ia o homem na virtude, se não temesse a sanção do crime? (…) [Tal crime] promete impunidade. Não havemos de esquecer, embora transpondo- -as para o abstrato, as suas características essenciais: o delito é um assassínio; a vantagem, a riqueza; a vítima, um desconhecido; o local do crime, longe do cri- minoso; a causa da morte, uma ordem mental ou um simples gesto. (Martins 1967, p. 14)

Desde o emblemático estudo de Coimbra Martins (1967), sabe-se que a fórmula “tuer le mandarin” (“matar o mandarim”) não é criação de Eça. Muito pelo contrário. Ela já havia aparecido em diversos textos da litera- tura, em especial, a francesa. 3 Portanto, o escritor português trabalha com uma questão já bastante em voga na literatura ocidental. A novela queiro- siana, narrada em primeira pessoa, conta a história de Teodoro, amanuense lisboeta que, tentado por uma figura diabólica, toca uma sineta e herda toda a fortuna do Mandarim Ti-Chin-Fú, que falece “apenas com um sus- piro, nesses confins da Mongólia” (Queirós 1992, p. 85). Teodoro se torna, então, rico e ascende socialmente. Mas, logo passa a ver o fantasma do fale- cido Mandarim, “todo vestido de seda amarela, morto, de pança ao ar, sobre

1 De acordo com Beatriz Berrini, a descrição da China foi mais esquemática na primeira versão, publicada no Diário de Portugal. Maiores detalhes dos momentos de Teodoro em solo chinês foram acrescentados na versão em livro, cuja primeira edição data do mesmo ano (Berrini 1992, pp.24-26). 2 Como nos lembra Berrini, em sua “Introdução à edição crítica d’O Mandarim”: “a palavra ‘paradoxo’ é aqui usada no sentindo etimológico grego, de história inacreditável” (Berrini 1992, p. 40). 3 Chateaubriand (1802); Balzac (1835); Alexandre Dumas (pai) (1844); Vitu (1848); Monnier / Martin (1855); Louis Protat (1860); e Didier (1864) são alguns dos nomes que, de acordo com Martins (1967, p. 251) e Berrini (1993, p. 199), utilizaram-se dessa fórmula. Ainda, de acordo com Sapega (2002, p. 444) a expressão “tuer le mandarin” já aparece em dicionários da França desde 1866. 258 JOSÉ CARVALHO VANZELLI & ANTONIO AUGUSTO NERY

a relva verde: e nos braços frios (…) o seu papagaio de papel, que parece tão morto como ele” (idem, p. 97). Com o objetivo de se livrar das atormenta- doras visões, o protagonista viaja a China a fim de restituir a fortuna à famí- lia de Ti-Chin-Fú e, assim, fazer desaparecer as aparições fantasmagóricas. No entanto, todas suas tentativas são malogradas. Retornando a Portugal e como última tentativa de fazer desaparecer a imagem do chinês, tenta vol- tar à antiga rotina de amanuense, mas, sem obter êxito algum, passa nova- mente à vivenciar as mordomias de seu palácio em Lisboa onde se mantém “semanas inteiras num sofá, mudo e soturno, pensando na felicidade do não-ser...” (idem, p. 189). Já a revista de ano de Artur Azevedo e Moreira Sampaio, “o primeiro grande sucesso desse tipo de peça” (Faria 2002, p. 160), mostra um chinês, mandarim de 1ª classe, que chega ao Rio de Janeiro a fim de abrir “um esta- belecimento de bugigangas chinesas” (Azevedo & Sampaio 1985, p. 259) e de averiguar “se este país é digno de receber em seu seio os filhos do Sol” (idem, p. 223). Tchin-Tchan-Fó vem acompanhado de sua ciumenta esposa, Peky, deixada em um hotel carioca enquanto o marido corre atrás de Olímpia, “um peixão” ao qual o Mandarim “não resiste” (idem, p. 221). Olímpia seduz Tchin-Tchan-Fó visando seus recursos financeiros, enquanto despreza Lírio, seu outrora rico noivo que ainda a adora. Peky, ao perceber as intenções de seu marido, se junta com o desprezado Lírio e, juntos, perseguem Tchin- Tchan-Fó e Olímpia em busca de um flagrante dos amantes e de vingança pela traição. Após uma série de acontecimentos paralelos à trama principal, em que a sociedade carioca da época é fortemente satirizada, descobre-se que Lírio é, na verdade, o filho desaparecido de Tchin-Tchan-Fó e Peky, que fora sequestrado por franceses muitos anos antes. Assim, a peça se encerra com os dois casais juntos e felizes novamente. Os fios condutores das tramas, descritos nesse breve resumo, nos leva, inicialmente, a afastar os dois textos. Afinal, enquanto Eça de Queirós, con- forme dissemos, parte do “paradoxo do mandarim”, questão em voga na literatura ocidental desde o início do século XIX, Azevedo e Sampaio pare- cem não colocar nenhuma referência relacionada a esse ‘mito’. É bastante possível que os dramaturgos conhecessem o texto de Eça, uma vez que, ainda em 1880, a história foi ampliada, revisada e publicada em livro pelo português. Entretanto, a revista de ano brasileira parece muito pouco ou nada influenciada pela novela queirosiana. Qual teria sido, então, a motiva- ção de Azevedo e Sampaio? Para tal esclarecimento, é necessário analisarmos algumas das princi- pais características desse gênero teatral. Diz João Roberto Faria: ORIENTALISMO E CRÍTICA SOCIAL EM OBRAS DE ARTUR AZEVEDO E EÇA DE QUEIRÓS 259

A revista de ano, como o próprio nome sugere, passa em revista os principais acontecimentos do ano anterior. Tudo que foi importante ou que obteve reper- cussão – um fato político, um crime, uma invenção, a criação de um jornal, a falência de um banco, uma obra literária, um espetáculo teatral, uma epidemia, etc. – é personificado em cena e ganha tratamento cômico, algumas vezes de alcance crítico ou satírico. Como a opereta e a mágica, com as quais se irmana, seja porque requer encenação vistosa, inclusive lançando mão das mutações em cena e apoteoses, seja porque tem números de música e dança, a revista de ano é também um gênero que se distancia da literatura e que pretende apenas divertir o espectador. (…) o prazer que ela proporciona ao espectador é o rever na cena figuras e os incidentes que ele já havia visto na vida real. (Faria 2002, p. 161)

Pois, em outubro de 1883, um chinês ligado ao governo de seu país, Tong King-sing 4, visitou o Rio de Janeiro a fim de conhecer a agricultura chinesa, comercializar carne e estudar a introdução da mão de obra chi- nesa no Brasil. O visitante oriental, inclusive, fora fortemente ironizado por Lélio, pseudônimo de Machado de Assis, em dois artigos da seção “Balas de Estalo” do jornal carioca Gazeta de Notícias nos dias 16 e 23 de outubro de 1883. 5 As ironias machadianas ao visitante chinês não passaram desper- cebidas por Azevedo e Sampaio, que fazem referências diretas às críticas publicadas no periódico brasileiro no texto da peça. Citamos o trecho:

MANDARIM – Oh! minha senhora! Tenho muito prazer em travar relações com Vossa Excelência... Já de há muito a conhecia, mas não ligava o nome à pessoa. Como passa Dona Filomena Borges, essa interessante senhora que se acha atualmente alojada no pavimento térreo da casa de Vossa Excelência. GAZETA DE NOTÍCIAS – Perfeitamente, obrigada (Oferecendo-lhe um rebu- çado, que tira do bolso) Há de permitir que lhe ofereça uma bala... MANDARIM (recuando) – Uma bala? GAZETA DE NOTÍCIAS – De estalo. São inofensivas. […] MANDARIM – Aceito (Chupando a bala e fazendo uma careta, à parte). Pode ser que seja feita de açúcar, mas amarga como fel! (Azevedo & Sampaio 1985, p. 265).

4 Tong King-sing (1832-1892) foi negociante e intérprete chinês durante os últimos anos da dinastia Qing. Tendo estudado em uma escola de missionários ingleses, era fluente em inglês o que lhe garantiu trabalho junto ao governo colonial de Hong Kong. Tong King-sing participou de uma série de projetos comerciais oficiais do governo e esteve em outubro de 1883 no Rio de Janeiro para conhecer a agricultura brasileira, comercializar carne e tratar de questões de utili- zação de mão de obra chinesa em substituição da escravidão negra. Cf. Leite 1992, p. 242-247. 5 Cf. Assis, 2015, p. 461-463. 260 JOSÉ CARVALHO VANZELLI & ANTONIO AUGUSTO NERY

Assim, Azevedo e Sampaio parecem encontrar na chegada do ainda incomum estrangeiro em terras cariocas o mote principal para fazer a sua revista dos principais acontecimentos do ano anterior. Sob esse ponto de vista, a revista do ano está diretamente ligada à questão da imigração chi- nesa ao Brasil, tema bastante discutido entre as décadas de 1880 e, princi- palmente, 1890 na capital federal. 6 Vale ressaltar que, apesar de Eça de Queirós não tratar da questão da imigração chinesa em sua novela, o escritor não esteve alheio à discussão desse movimento migratório ao Brasil e ao continente americano. Será, no entanto, em sua produção não ficcional que o escritor tece comentá- rios sobre esse tema. Entre 1872 e 1874, quando foi cônsul de Portugal em Havana, Eça conviveu com uma considerável leva de imigrantes chineses, os denominados coolies, em sua maioria trazidos a Cuba para trabalhar nas fábricas de açúcar em condições escravagistas. Em carta ao ministro e secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros de Portugal, João Andrade Corvo (1824-1890), datada de 17 de maio de 1873, o escritor assim se posi- cionou sobre a situação, em claro tom de denúncia:

Os colonos trabalham desde a alva (quatro ou cinco da manhã) até as Ave- Maria (sete ou oito da tarde) tendo um descanso no meio do dia de duas horas, mas na força dos trabalhos, há engenhos em que o colono trabalha das quatro da manhã às onze da noite! O castigo ordinário é o cepo e às vezes as algemas, com as quais todavia - trabalham! (…) Assim é, Ex.º Snr. que em todos os exemplos da servidão humana - eu não conheço - a não ser o fellah no Egypto, e na Nubia, ninguém mais infeliz que o coolie. E se a justiça não é uma mera categoria de razão, a condição dos colonos na América central não é compatí- vel com a dignidade desta época. (Queirós apud Lima s/d., p. 65)

Em 1874, Eça, recém-retornado de Havana, redige o documento A Emigração como Força Civilizadora (1979). Neste estudo, o escritor tece uma série de considerações sobre os movimentos migratórios pelo mundo, a incluir a imigração europeia e asiática à América. Vinte anos mais tarde (1894), cumprindo a função de correspondente internacional do jornal carioca Gazeta de Notícias, o mesmo em que Machado ironizara o visitante chinês Tong King-sing, o autor de Os Maias publica o artigo “Chineses e Japoneses”. Tendo como mote inicial a guerra sino-japonesa (1894-1895) pela posse da península coreana, o autor debate de maneira mais aprofun- dada as possíveis consequência de uma imigração chinesa ao Brasil, que se intensificaria com a iminente derrota da China no conflito bélico.

6 Cf. Oliva, 2008, p. 66-84. ORIENTALISMO E CRÍTICA SOCIAL EM OBRAS DE ARTUR AZEVEDO E EÇA DE QUEIRÓS 261

Ao compararmos a peça de Azevedo e Sampaio e a novela de Eça, um aspecto interessante a se notar é a maneira com que o autor português e os dramaturgos brasileiros constroem as personagens que dão título às suas obras. Em Eça de Queirós, embora a figura do Mandarim seja onipresente e importante para o desenvolvimento do enredo, é uma figura espectral, tra- duzida pela imaginação de Teodoro. Tudo que se sabe (ou supõe-se saber) vem das afirmações da figura diabólica que ‘tenta’ o protagonista ou dos pensamentos e convicções que Teodoro tem acerca do ‘ser chinês’. Por exem- plo, nas primeiras páginas da novela, Teodoro, ao comprar o livro “Brecha das Almas” na feira da ladra de Lisboa, lê o paradoxo do mandarim:

“No fundo da China existe um Mandarim mais rico que todos os reis de que a Fábula ou a História contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o sem- blante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infin- dáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?” (Queirós 1992, p. 85).

Perturbado com a capciosa pergunta “tocarás tu a campainha?” e sem conseguir ler mais o in-fólio “que parecia exalar magia” (ibidem), passa aos poucos a ter duas visões, como em um sonho acordado:

(…) de um lado um Mandarim decrépito, morrendo sem dor, longe, num quiosque chinês, a um ti-li-tim de campainha; do outro toda uma montanha de ouro cintilando aos meus pés! Isso era tão nítido, que eu via os olhos oblíquos do velho personagem embaciarem-se, como cobres de uma ténue camada de pó; e sentia o fino tinir de libras rolando juntas (idem, p. 86).

A primeira imagem formada por Teodoro é a de um chinês decrépito. O texto presente em “Brechas das Almas” nada diz sobre o chinês. Pelo con- trário, lá é dito que “dele nada conheces”. No entanto, em sua imaginação, o protagonista o desenha como decrépito. Não deixa de ser uma visão cari- cata e redutora criada a partir de conhecimento nenhum ou, no máximo, de um imaginário comum. Assim, pode-se supor que Eça, ironicamente, concebe a imagem do chinês a partir da caricatura comum que a população do velho continente tinha dos orientais de um modo geral, conforme demonstrará, um século mais tarde, Edward Said em seu afamado estudo Orientalismo (1978). 262 JOSÉ CARVALHO VANZELLI & ANTONIO AUGUSTO NERY

Já na peça de Azevedo e Sampaio, o Mandarim não só é personifi- cado, como também possui características singulares. Tendo ido ao Rio de Janeiro para abrir “um estabelecimento de bugigangas chinesas” (Azevedo & Sampaio 1985, p. 259) e para estudar “se este país é digno de receber em seu seio os filhos do Sol” (idem, p. 223), Tchin-Tchan-Fó possui caracte- rísticas típicas de um capitalista, quer pela exploração do trabalho, quer pelo comércio. Ainda, há de se destacar que todo o fio condutor da peça gira em torno da perseguição de Peky e Lírio a Tchin-Tchan-Fó e Olímpia, sendo que o chinês e a brasileira buscam a todo custo um momento a sós. Ela, para conseguir presentes e ele para tê-la em seus braços. Portanto, o Mandarim de Azevedo e Sampaio é intensamente marcado pelo desejo de aventuras, ‘econômicas’, mas, sobretudo, afetivas, pois, sem dúvidas, esta- mos diante de um incansável mulherengo. Mandarins tão distintos, no entanto, não impedem que se estabeleçam críticas semelhantes em ambos os textos. Destacamos o caráter capitalista fortemente marcado em Tchin- Tchan-Fó. Na novela queirosiana, apesar de o mandarim ser uma figura ausente e morrer de maneira insólita, fazendo com que Teodoro ‘herde’ seus bens também de maneira inexplicável, não é através de recursos fantásticos que Teodoro efetivamente ‘herda’ a fortuna de Ti-Chin-Fú. Citamos um relevante trecho.

– São notícias para Vossa Senhoria! Consideráveis notícias! O meu nome é Silvestre... Silvestre, Juliano & Cª... Um serviçal criado de Vossa Excelência... Chegaram justamente pelo paquete de Southampton... Nós somos correspon- dentes de Brito, Alves & Cª, de Macau... Correspondentes de Craig and Cª, de Hong-Kong... As letras vêm de Hong-Kong... O sujeito engasgava-se; e a sua mão gordinha agitava em tremuras um enve- lope repleto, com um selo de lacre negro. – Vossa Excelência – prosseguiu – estava decerto prevenido... Nós é que o não estávamos... A atrapalhação é natural... O que esperamos é que Vossa Excelência nos conserve a sua benevolência... Nós sempre respeitámos muito o carácter de Vossa Excelência... Vossa Excelência é nesta terra uma flor de virtude, e espelho de bons! Aqui estão os primeiros saques sobre Bhering and Brothers, de Londres... Letras a trinta dias sobre Rothschild... A este nome, ressoante como o mesmo ouro, saltei vorazmente do leito: – O que é isso, senhor? – gritei. E ele, gritando mais, brandindo o envelope, todo alçado no bico dos botins: – São cento e seis mil contos, senhor! Cento e seis mil contos sobre Londres, Paris, Hamburgo e Amsterdão, sacados a seu favor, excelentíssimo senhor!... A seu favor, excelentíssimo senhor! Pelas casas de Hong-Kong, de Xangai e de ORIENTALISMO E CRÍTICA SOCIAL EM OBRAS DE ARTUR AZEVEDO E EÇA DE QUEIRÓS 263

Cantão, da herança depositada do mandarim Ti-Chin-Fú! (Queirós 1992, p. 103).

Eça poderia ter feito o dinheiro aparecer de maneira mágica para Teodoro. No entanto, dá uma origem bastante capitalista à fortuna do ama- nuense. Frier destaca:

(…) em um nível literal, sua riqueza é derivada não de algum fantástico esquema diabólico, mas do exercício do clássico neo-imperialismo capitalista, em que o valor excedente é extraído por investidores na Europa a partir do trabalho feito em seu nome por distante trabalhadores sem rostos (neste caso, na China (…)) (Frier 2010, p. 153-154, tradução nossa) 7

Além disso, nesse sentido, cabe mencionar o artigo crítico de Gilda Santos, intitulado “O Mandarim: uma fábula prefiguradora da globaliza- ção?”(2001), no qual a estudiosa propõe uma série de observações que apro- ximam Teodoro da atitude imperialista exercida pela Inglaterra durante o Oitocentos, pois, depois de deixar a condição de amanuense, restrito aos “vinte mil réis mensais”, o protagonista tem à sua disposição seis contos de réis, movimentados em bancos espalhados por todo o mundo, permitindo- -lhe negociar e intervir em diversas partes do globo. Deste modo, Ti-Chin-Fú e Tchin-Tchan-Fó se aproximam numa cons- trução capitalista de exploração do trabalho desses “chineses sem rostos” e em sentido global, ou globalizante. Os textos de Azevedo e Sampaio e Eça de Queirós também dialogam no que tange a uma equiparação entre Ocidentais e Orientais. Na peça de Azevedo e Sampaio, por exemplo, pode-se verificar que a personagem oriental, Tchin-Tchan-Fó, é posta em um mesmo patamar das Ocidentais, principalmente se comparado com a figura de Olímpia, uma vez que se o chinês é já um rico capitalista que vem ao Brasil a fim de, obviamente, enriquecer ainda mais com seu estabelecimento ou com o “comércio” de mão de obra não qualificada. Olímpia é igualmente desejosa de lucro ao trocar de amantes, sempre em busca de um homem mais rico que possa lhe dar colares, braceletes, joias e presentes caros. Ou seja, tanto os orientais quantos os ocidentais presentes na peça são marcados por características depreciativas, sendo, então, satirizados.

7 (…) at a literal level his wealth is derived not from some fantastic diabolical scheme but from the exercise of classical capitalist neo-imperialism, where surplus value is extracted by investors in Europe on the basis of labour carried out on their behalf by faceless, distant workers (in this case in China (…)). (no original) 264 JOSÉ CARVALHO VANZELLI & ANTONIO AUGUSTO NERY

Eça de Queirós também coloca Oriente e Ocidente em um mesmo nível. Para isso, porém, percorre outro caminho. Se em Azevedo e Sampaio, Tchin-Tchan-Fó e Olímpia se aproximam por conta dos interesses eco- nômicos e de lucros, Eça percebe o problema da cultura na relação dos povos. Pois, se, por um lado, será a partir de imaginários e estereótipos que Teodoro construirá sua imagem do Mandarim e suas impressões acerca da China, por outro, o ex-amanuense também será julgado por uma visão redutora que os orientais tinham dos ocidentais. No capítulo VI da novela, após descobrir a suposta vila em que Ti-Chin-Fú vivera, Teodoro e seu guia Sá-Tó partem a Tien-Hó. Lá, na mesma noite de sua chegada, são atacados e afugentados pela população local, meramente por Teodoro ser visto como “diabo estrangeiro”, ou seja, simplesmente baseado em um imaginário comum. Teodoro, então, passa a odiar a China e, pouco tempo depois, retorna a Portugal. É notável como Eça coloca uma visão similar do ‘outro’ tanto do ponto de vista chinês quanto do ponto de vista europeu. “Nas palavras de David (2007, p. 73), “para os Chineses, Teodoro era um bárbaro com o qual nenhuma senhora da família do Mandarim poderia casar. Para Teodoro, aquele mundo era bárbaro e duro”. A incompreensão, a visão redutora e idealizada é mútua. Assim, por vias distintas, tanto Azevedo e Sampaio quanto Queirós, ao nivelar Ocidentais e Orientais pelas suas desvirtudes, desmontam o dis- curso padrão euro e etnocêntrico de um Ocidente civilizado e um Oriente selvagem, concepção em voga tanto em Portugal, como também nas elites brasileiras oitocentistas. Outro ponto interessante que pode ser percebido em ambos os O Mandarim está na desconstrução do imaginário sobre a China. Coimbra Martins dá grande destaque à “voga parnasiana” na ima- gem da China ao longo do século XIX, que remeteria à “estância ideal de arte, requinte, fantasia delicada e fino prazer” (Martins 1967, p. 151). Ou seja, uma imagem positiva e edênica do Império do Meio. Carlos Jorge, ao analisar comparativamente as obras O Mandarim de Eça de Queirós e As Tribulações de um chinês na China, de Julio Verne (1879), também destaca a imagem da China na qualidade de “pátria de valores éticos e filosóficos, como os do confucionismo e do budismo” (Jorge 1999, p. 251). Todavia, esta idealização do Império chinês é desfeita em ambos os textos aqui em causa. Eça de Queirós em dois momentos desconstrói a imagem da China paradisíaca. No quarto capítulo de sua história, Teodoro conversa com o general russo Camiloff, seu anfitrião em Pequim, sobre seus planos de como acalmar o fantasma do chinês assassinado. Camiloff, então, questiona ORIENTALISMO E CRÍTICA SOCIAL EM OBRAS DE ARTUR AZEVEDO E EÇA DE QUEIRÓS 265

cada um dos planos de seu hóspede português. Citamos um longo, porém importante trecho:

O meu estimável hóspede pretende esposar uma senhora da família Ti-Chin-Fú, continuar a grossa influência que exercia o Mandarim, substituir, doméstica e socialmente, esse chorado defunto... Para tudo isto dispõe da palavra ‘chá’. É pouco. Não pude negar – que era pouco. O venerando russo, franzindo o seu nariz adunco de milhafre, pôs-me ainda outras objecções que eu via erguerem- -se diante do meu desejo como as muralhas mesmas de Pequim: nenhuma senhora da família Ti-Chin-Fú consentiria jamais em casar com um bárbaro; e seria impossível, terrivelmente impossível que o imperador, o Filho do Sol, concedesse a um estrangeiro as honras privilegiadas de um mandarim... – Mas porque mas recusaria? – exclamei. – Eu pertenço a uma boa família da província do Minho. Sou bacharel formado; portanto na China, como em Coimbra, sou um letrado! Já fiz parte de uma repartição pública... Possuo milhões... Tenho a experiência do estilo administrativo... (…) – Não é – disse ele enfim – que o imperador realmente o recusasse: é que o indivíduo que lho propusesse seria imediatamente decapitado. A lei chinesa, neste ponto, é explícita e seca. – (…) Se eu entregasse metade dos meus milhões ao Tesouro chinês, já que não me é dado pessoalmente aplicá-los, como mandarim, à prosperidade do Estado...? Talvez Ti-Chin-Fú se calmasse... O general pousou-me paternalmente a vasta mão sobre o ombro: – Erro, considerável erro, mancebo! Esses milhões nunca chegariam ao Tesouro imperial. Ficariam nas algibeiras insondáveis das classes dirigentes: seriam dis- sipados em plantar jardins, coleccionar porcelanas, tapetar de peles os soalhos, fornecer sedas às concubinas: não aliviariam a fome de um só chinês, nem repa- rariam uma só pedra das estradas públicas... Iriam enriquecer a orgia asiática. A alma de Ti-Chin-Fú deve conhecer bem o Império: e isso não a satisfaria. – E se eu empregasse parte da fortuna do velho malandro em fazer particu- larmente, como filantropo, largas distribuições de arroz à populaça faminta? É uma ideia... – Funesta – disse o general, franzindo medonhamente o sobrolho. – A corte imperial veria aí imediatamente uma ambição política, o tortuoso plano de ganhar os favores da plebe, um perigo para a Dinastia... O meu bom amigo seria decapitado... É grave... (Queirós 1992, p. 135-137)

Ao invalidar os planos do protagonista, Camiloff destrói também as ideias e concepções que Teodoro, o representante da pequena burguesia lisboeta, possuía sobre a China e a cultura chinesa. Deste modo, através da fala do general russo, Eça realiza uma tentativa de compreensão do pensa- 266 JOSÉ CARVALHO VANZELLI & ANTONIO AUGUSTO NERY

mento do “outro”, fazendo, também, juntamente com seu leitor, um exer- cício de alteridade. Ainda nesse capítulo, Teodoro realiza um passeio por Pequim. A cidade, dividida em duas principais partes – a Cidade Tártara e a Cidade Chinesa – é descrita pelo narrador. Ao sair dos muros da chamada Cidade Tártara, onde fica sua hospedagem, e adentrar a Cidade Chinesa, Teodoro encontra uma paisagem que nada lhe remete à “estância ideal de arte (…) e fina arte” (Martins 1967, p. 151). Citamos:

E lá fomos penetrando na Cidade Chinesa, pela porta monstruosa de Tchin- Men. Aqui habita a burguesia, o mercador, a populaça. As ruas alinham-se como uma pauta; e no solo vetusto e lamacento, feito da imundície de gerações recalcada desde séculos (…) Dos dois lados são – ora terrenos vagos onde uivam manadas de cães famintos, ora filas de casebres fuscos, ora pobres lojas com as suas tabuletas esguias e sarapintadas, balouçando-se de uma haste de ferro. (…) Uma multidão rumo- rosa e espessa, onde domina o tom pardo e azulado dos trajes, circula sem cessar; a poeira envolve tudo de uma névoa amarelada; um fedor acre exala-se dos enxurros negros; (…) Ao passar junto ao Templo do Céu, vejo apinhada num largo uma legião de mendigos; tinham por vestuário um tijolo preso à cinta num cordel; as mulhe- res, com os cabelos entremeados de velhas flores de papel, roíam ossos tranqui- lamente; e cadáveres de crianças apodreciam ao lado, sob o voo dos moscardos. Adiante topámos com uma jaula de traves, onde um condenado estendia, através das grades, as mãos descarnadas, à esmola... Depois Sá-Tó mostrou- -me respeitosamente uma praça estreita: aí, sobre pilares de pedra, pousavam pequenas gaiolas contendo cabeças de decapitados: e gota a gota ia pingando delas um sangue espesso e negro... (Queirós 1992, p. 145-147).

Cenário semelhante será descrito pelo protagonista, com os mes- mos contornos de abjeção, ao adentrar a cidade de Tien-Hó, no já citado Capítulo VI:

Já a tarde declinava, e o Sol descia vermelho como um escudo de metal can- dente, quando chegámos a Tien-Hó. As muralhas negras da vila erguem-se, do lado do sul, ao pé de uma torrente que ruge entre rochas: para o nascente, a planície lívida e poeirenta estende-se até a um grupo escuro de colinas onde branqueja um vasto edifício – que é uma missão católica. E para além, para o extremo norte, são as eternas monta- nhas roxas da Mongólia, suspensas sempre no ar como nuvens. Alojámo-nos num barracão fétido, intitulado Estalagem da Consolação Terrestre. Foi-me reservado o quarto nobre, que abria sobre uma galeria fixada em estacas; era ornado estranhamente de dragões de papel recortado, suspen- ORIENTALISMO E CRÍTICA SOCIAL EM OBRAS DE ARTUR AZEVEDO E EÇA DE QUEIRÓS 267

sos por cordéis do travejamento do tecto; à menor aragem aquela legião de monstros fabulosos oscilava em cadência, com um rumor seco de folhagem, como tomada de vida sobrenatural e grotesca. Antes que escurecesse fui ver com Sá-Tó a vila: mas bem depressa fugi ao fedor abominável das vielas: tudo se me afigurou ser negro – os casebres, o chão barrento, os enxurros, os cães famintos, a populaça abjecta... Recolhi ao alber- gue – onde arrieiros mongóis e crianças piolhosas me miravam com assombro. (Queirós 1992, p. 163)

Para Teodoro, a China edênica só é encontrada quando está sob os cui- dados do general Camiloff, na embaixada russa de Pequim, ou no convento dos lazaristas, já nos últimos momentos da novela. Na revista de ano brasileira, a China também tende a ser mostrada como uma terra nada idealizada. Tal fato já pode ser depreendido nas descrições da própria figura chinesa que vem ao Brasil com uma finalidade meramente exploratória. Assim, quer no microcosmos chinês do “Hotel da China” no Rio de Janeiro, definido por Peky como “uma bodega” (Azevedo & Sampaio 1985, p. 245), quer nas poucas referências à China feitas por Tchin-Tchan-Fó, a imagem do país e de sua população também tende a ser afastada do típico imaginário oitocentista descrito por Coimbra Martins. Tal fato pode ser depreendido da fala do Mandarim que, ao ver o sistema público e político brasileiro, diz: “tanta calamidade junta nem na China!” (idem, p. 225). Tal expressão, obviamente posta com o intuito de escarnecer a sociedade brasi- leira, também remete a uma representação chinesa bastante distante do país “ético e filosófico”, comum ao imaginário ocidental oitocentista. De fato, a fala de Tchin-Tchan-Fó evidencia, talvez, o principal aspecto da peça de Azevedo e Sampaio: a crítica à sociedade carioca do final do século XIX. Paralelamente ao fio condutor da encenação, a história de Tchin-Tchan-Fó no Rio de Janeiro, a revista de ano traz uma grande quan- tidade de quadros episódicos, que escarnecem a sociedade e representam uma das principais características do gênero teatral revista de ano. Nas palavras de João Roberto Faria:

Outro aspecto importante da revista de ano (…) é a coexistência harmônica em seu interior de ‘dois estágios de ações diferentes’: o estágio do fio condu- tor e o dos quadros episódicos”. (…) O fio condutor era construído com sim- plicidade: ‘uma busca ou perseguição a alguém ou alguma coisa’. Ou seja, as personagens estão o tempo todo se movimentando, fugindo ou perseguindo, e nessa correria passam de um quadro – ou episódio – ao outro. (Faria 2002, p. 162-163) 268 JOSÉ CARVALHO VANZELLI & ANTONIO AUGUSTO NERY

Esses quadros críticos da vida social, para além da função de entreteni- mento do “gênero mais popular do teatro brasileiro nos dois últimos decê- nios do século XIX” (idem, p. 163), foi utilizado por Azevedo e Sampaio para zombar da hipocrisia da sociedade fluminense da época. Exemplificamos tal fato com as cenas 2 e 3 do quadro primeiro da peça, momento em que Tchin-Tchan-Fó chega ao Brasil acompanhado do Barão de Caiapó, seu cicerone, e é apresentado à personagem “Política” e à Olímpia. 8 Ao se saber que se trata de um “mandarim de primeira classe” (Azevedo & Sampaio 1985, p. 222), todos passam a tratar aquele inusitado estrangeiro como um “ilustre” e “distinto” (ibidem) convidado. O mesmo acontece no quadro nono da peça 9, quando o mandarim é apresentado aos diversos periódicos presentes na capital federal brasileira. A todo momento, o chinês é bajulado pela imprensa e pelas principais esferas de poder da sociedade brasileira devido explicitamente aos seus recursos financeiros. Tal tratamento dado ao Mandarim pelas personagens da elite carioca na peça vai ao encontro do que nos relata José Roberto Leite, em seu estudo A China no Brasil: influências, marcos, ecos e sobrevivências chinesas na sociedade e artes brasileiras (1992). Diz Leite, citando os comentários de G. A Butley, que Tong-King-sing, o verdadeiro “Mandarim” que visitou o Rio de Janeiro em 1883, fora recebido como “o herói do dia e considerado como um Messias (…), um hóspede muito em vista e muito festejado” (Leite 1992, p. 243). Eça de Queirós também evidencia a hipocrisia social de Portugal. Duas cenas da novela O Mandarim são exemplares no que tange a essa questão. No capítulo 3, Teodoro recebe a fortuna de Ti-Chin-Fú e, através de seus novos recursos financeiros, adentra a alta sociedade lisboeta:

Entretanto Lisboa rojava-se aos meus pés. O pátio do palacete estava constan- temente invadido por uma turba: olhando-a enfastiado das janelas da galeria, eu via lá branquejar os peitilhos da Aristocracia, negrejar a sotaina do Clero, e luzir o suor da Plebe: todos vinham suplicar, de lábio abjecto, a honra do meu sorriso e uma participação no meu ouro. Às vezes consentia em receber algum velho de título histórico: – ele adiantava-se pela sala, quase roçando o tapete com os cabelos brancos, tartamudeando adulações; e imediatamente, espalmando sobre o peito a mão de fortes veias onde corria um sangue de três séculos, oferecia-me uma filha bem-amada para esposa ou para concubina. Todos os cidadãos me traziam presentes como a um ídolo sobre o altar – uns

8 Cf. Azevedo & Sampaio, 1985, p. 220-225. 9 Cf. Azevedo & Sampaio, 1985, p. 263-272. ORIENTALISMO E CRÍTICA SOCIAL EM OBRAS DE ARTUR AZEVEDO E EÇA DE QUEIRÓS 269

Odes votivas, outros o meu monograma bordado a cabelo, alguns chinelas ou boquilhas, cada um a sua consciência. Se o meu olhar amortecido fixava, por acaso, na rua, uma mulher – era logo ao outro dia uma carta em que a criatura, esposa ou prostituta, me ofertava a sua nudez, o seu amor, e todas as compla- cências da lascívia. (Queirós 1992, p. 115-117).

Já no capítulo final, ao tentar voltar à sua vida de amanuense e, assim, apaziguar o fantasma do falecido chinês, diz Teodoro:

Abandonei o palacete ao Loreto, a existência de Nababo. Fui, com uma quin- zena coçada, realugar o meu quarto na casa da Madame Marques: e voltei à Repartição, de espinhaço curvo, a implorar os meus vinte mil réis mensais, e a minha doce pena de amanuense!... Mas um sofrimento maior veio amargurar os meus dias. Julgando-me arruinado – todos aqueles que a minha opulência humilhara cobriram-me de ofensas, como se alastra de lixo uma estátua der- rubada de príncipe decaído. Os jornais, num triunfo de ironia, achincalharam a minha miséria. A aristocracia, que balbuciara adulações aos pés do Nababo, ordenava agora aos seus cocheiros que atropelassem nas ruas o corpo enco- lhido do plumitivo de secretaria. O clero, que eu enriquecera, acusava-me de «feiticeiro»; o Povo atirou-me pedras; e a Madame Marques, quando eu me queixava humildemente da dureza granítica dos bifes, plantava as duas mãos à cinta, e gritava: – Ora o enguiço! Então que quer você mais? Aguente! Olha o pelintra!... (Queirós 1992, p. 189)

Pelos trechos citados, pode-se perceber que, apesar das maneiras dis- tintas, ambos os textos traçam críticas sociais bastante próximas e que dia- logam entre si – Eça de Queirós com sua famosa e ferina ironia; e Azevedo e Sampaio através da sátira zombeteira. Considerando esse e outros aspectos que vimos elencando até aqui, apesar de pertencerem a gêneros diferentes e possuírem motivações e enre- dos pouco próximos, as obras O Mandarim de Artur Azevedo e Moreira Sampaio e O Mandarim de Eça de Queirós mantêm diversos diálogos em comum. Por fim, a proximidade entre as duas ficções poderia ser traçada a par- tir do fato de ambas serem consideradas por muito tempo como sendo obras “menores” entre as produções dos autores. No caso de Eça, mesmo tendo sido publicada há quase cento e quarenta e quatro anos, foi apenas nas últimas décadas que passou a ser lida pela crítica como uma obra de valor semelhante aos afamados romances do escritor lusitano, classificados como exemplares da estética realista em Língua Portuguesa. Exceção, feita, obviamente, ao incontornável estudo de Coimbra Martins que data de 1967 270 JOSÉ CARVALHO VANZELLI & ANTONIO AUGUSTO NERY

e que, de certo modo, possibilitou que O Mandarim de Eça pudesse ser visto com olhos menos redutores. Já a peça de Azevedo e Sampaio, embora ainda hoje pouco estudada, sempre sofreu por ser supostamente um texto de um gênero voltado mais ao entretenimento do que à arte. De acordo com João Roberto Faria, na época de publicação da peça, Artur Azevedo era acusado como um dos responsáveis pela decadência do teatro brasileiro ao deixar a arte de lado e valorizar as peças mais comerciais 10, entretanto, o crítico esclarece que o próprio autor se defendia dos questionamentos, e reconhece que quando escreve, “sozinho ou de colaboração com Moreira Sampaio, Aluísio Azevedo e Lino de Assunção, há – quer queiram ou não queiram – certa preocupação de arte que as separa de algumas baboseiras que sob o nome de revistas de ano se têm exibido nos nossos teatros” (Faria 2002, p. 174). 11 Assim sendo, dado o evidente caráter artístico que se nota ao ler a peça e à qualidade do texto de Azevedo e Sampaio, vê-se que esta peça, do mesmo modo que a novela queirosiana, passou por um processo de subestimação por parte da crítica. Soma-se a este fato, todos os diálogos críticos destacados ao longo deste estudo: a desconstrução da imagem da China e do chinês; o nivelamento de Ocidentais e Orientais desconstruindo, assim, os discursos etnocêntricos; a hipocrisia social tanto na sociedade lisboeta quanto carioca. Com tudo isso em vista, percebe-se que apesar de percorrem caminhos independen- tes, os textos homônimos de Artur Azevedo e Moreira Sampaio e Eça de Queirós caminham para uma mesma direção. Entender e refletir sobre tais problemáticas são questões muito importantes hoje em dia, pois muitos dos estereótipos e concepções troçados nos textos estão presentes em nossa contemporaneidade. Tal constatação só vem a corroborar a atualidade e a importância dos textos desses autores das literaturas do Brasil e de Portugal.

Referências

Assis, J. M. Machado de (2015). 16 de outubro de 1883. In id., Obra completa, vol. 4 (p. 461). São Paulo: Editora Nova Aguilar. Assis, J. M. Machado de (2015). 23 de outubro de 1883. In id., Obra completa. vol. 4 (p. 462-463). São Paulo: Editora Nova Aguilar.

10 Cf. Faria, 2002, p. 171. 11 De acordo com Faria (2002, p. 174), este folhetim de Azevedo foi publicado no jornal A Notícia, a 5 e 12 de março de 1896 e transcrito na Revista de Teatro da SBAT, no número 325, de janeiro e fevereiro de 1962, à página 16. ORIENTALISMO E CRÍTICA SOCIAL EM OBRAS DE ARTUR AZEVEDO E EÇA DE QUEIRÓS 271

Azevedo, A. & Sampaio, M. (1985). O Mandarim. In Teatro de Artur Azevedo, tomo 2 (pp. 213-276). Rio de Janeiro: INACEN. Berrini, B. (1992). Introdução. In: J.M. Eça de Queirós. O Mandarim. Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós (pp. 15-69). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Berrini, B. (1993). A China na vida e na obra. In: Campos Matos, A. (Ed.). Dicionário de Eça de Queirós (pp. 196-200). Lisboa: Caminho. David, S. N. (2007). Duas faces da renúncia em O Mandarim de Eça de Queirós. In: O Século de Silvestre da Silva. Estudos Queirosianos, v. 2, (pp. 49-80). Rio de Janeiro: 7Letras. Faria, J. R. (2002). Ideias Teatrais – O século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva /FAPESP. Frier, D. G. (2010). “Sim ou a Vã Glória de Mandar”: Money, Power and Remorse in Eça’s O Mandarim. Luso-Brazilian Review, v. 47, 1, 150-167. Jorge, C. J. F. (1999). A corrida contra a morte e a demanda do arrependimento em Les Tribulation d’un Chinois en Chine, de Julio Verne e O Mandarim, de Eça de Queirós. In Laborinho, A. P. et al. (Eds). A Vertigem do Oriente. Modalidades discursivas no encontro de culturas (pp. 243-256). Lisboa-Macau: Edições Cosmos e Instituto Português no Oriente. Leite, J. R. T. (1992) A China no Brasil: influências, marcos, ecos e sobrevivências chinesas na sociedade e artes brasileiras. Tese de doutoramento, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. Lima, A. de (s/d). Eça de Queiroz: diplomata. Lisboa: Portugália. Martins, A. C. (1967). O Mandarim Assassinado. In id., Ensaios Queirosianos (pp. 10-266). Lisboa: Europa-América. Oliva, O. P. (2008). Machado de Assis, Joaquim Nabuco e Eça de Queirós e a imigração chinesa – qual medo? Revista da ANPOLL, v. 2, 24, 66-84. Queirós, E. (1992). O Mandarim. Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós. Lisboa: Imprensa Nacional–Casa da Moeda. Santos, G. C. (2001). O Mandarim: uma fábula prefiguradora da globalização?Voz Lusíada, 16, 140-155. Sapega, E. W. (2002). O Oriente do Sonho e o Sonho do Oriente n’O Mandarim. In Congresso de Estudos Queirosianos. IV Encontro Internacional de Queirosianos, Actas (pp. 443-450) v. 1. Coimbra: Almedina e Universidade de Coimbra.

[recebido em 21 de setembro de 2017 e aceite para publicação em 5 de janeiro de 2018]

Recensão

HISTÓRIAS MAL CONTADAS Lafaia Abranches, Alexandra (2017). Guimarães: Ave Gráfica. Edição de Autor, 110 pp.

Isabel Ermida * [email protected]

Histórias Mal Contadas é a estreia o que lemos são fragmentos de de Alexandra Lafaia Abranches na prosa, diálogos soltos e divagações. cena literária portuguesa. Estreia O que encontramos são extractos editorial, entenda-se, pois em ver- de vida, jogos de lógica e pedaços de são digital já os escritos da Autora riso. Aqui, deparamo-nos com duas circulam desde há largos meses, vizinhas em vernáculo conflito. quase diariamente, entre um núcleo Ali, tropeçamos em líquida poesia. de fiéis leitores. O que lhe ouvimos Acolá, vislumbramos a matéria das nesta selecção impressa é uma voz fábulas. E, mais adiante, enredamo- luminosa e limpa, reverberando -nos em paradoxos, falácias e outras de sentidos múltiplos, quase fugi- acrobacias. Mas a narratividade dios, mas expondo-se lisa e branca, mantém-se esquiva. Temos perso- sem vincos nem manchas, como a nagens, temos espaço, temos tempo. verdade. Pressentimos desde logo Temos, por vezes, acção. E temos palavras enganadoramente planas trechos de conversas, de uma per- e frases erroneamente lineares. Por feita fluidez coloquial. Mas, tudo trás delas, ou depois delas, surge o “contado”, o saldo confunde-se, des- espanto. liza, evade-se. Talvez o trocadilho A julgar pelo título, o conjunto bem-humorado do título – histórias de 61 “histórias” suporia narrativas “mal narradas”, “mal numeradas” e enredos, organizados em linhas ou “mal contabilizadas”? – sinalize temporalmente sequenciadas. Mas esse carácter ambíguo do texto,

* Departamento de Estudos Ingleses e Norte-Americanos do Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho, Braga, Portugal. 276 ISABEL ERMIDA

avesso a classificações, uma prosa as fronteiras do sentido e finge uma tantas vezes poética onde só a iro- candura de neófita. nia habita, só a música perpassa, só Longe de aleatória, a colec- a magia respira. tânea obedece a agrupamentos Em rigor, o livro exibe uma temáticos e discursivos. São em pródiga diversidade de géneros lite- número de seis, com títulos que, rários: nele se identifica a trilogia pendularmente, se vão repetindo clássica dos géneros épico, lírico e ao longo das páginas. O primeiro, dramático (e, neste, dos subgéne- “Floricultura”, abrange tópicos apro- ros trágico e cómico), devidamente priadamente botânicos, se bem que fundidos em alegre coabitação, ou extravasem largamente a cerca do banidos em ousada usurpação. De jardim. Fala-se dos quotidianos gla- igual modo, as tipologias textuais díolos e das anónimas “florzinhas variam elasticamente: alguns tex- amarelas” que folcloricamente “pol- tos são narrativos, sim, mas outros vilham os prados verdes do além” argumentativos; alguns são descri- (p. 83), paralelamente a espécimes tivos, outros instrucionais; alguns raros com pedigree latino e a exem- são expositivos e outros, finalmente, plares oníricos, rubros, que apenas dialogais. E outros parecem ser tudo florescem no sangue dos assassina- ao mesmo tempo. Também o registo dos. Avança-se então para a horta e oscila: entre o formal e o informal, o legumes vários, desde os mais chãos poético e o prosaico, o sublime e o repolhos aos aquáticos agriões, e raso. Por entre o vaivém dos núme- logo para o pomar, onde se mistu- ros (o texto 053 vem antes do 008, o ram a banal ameixa e a exótica jabu- 066 depois do 081), o livro baloiça ticaba. Fala-se ainda de árvores, de entre categorias, questionando-as ervas daninhas, de cereais (uma his- e pondo-as ludicamente em causa. tória é sobre um insuspeito pão) e Promete histórias, mas não dá pro- das mais diversas plantas, incluindo priamente histórias; promete fazê- as misteriosas algas. Neste cortejo -lo “mal”, mas fá-lo bem, fazendo de pretextos vegetais, sucedem-se outra coisa. E, nesse lugar-outro, o intrigas fragmentárias, alternando que é deixa de ser, e o que não existe entre a do avô bonacheirão que brota. A maleabilidade semântica perde a compostura por uma jarra desta escrita é também existencial, de flores e a doserial killer que, quase ontológica, mas a Autora, como em Süskind, persegue poeti- uma Professora de Filosofia tão des- camente a beleza, neste caso de uma pretensiosa que só avança em seu flor imaginária. A abrir e a fechar a abono “gostar de gatos”, joga com série, dois textos belíssimos, arcai- zantes, dirigidos na segunda pessoa LAFAIA ABRANCHES, ALEXANDRA (2017). HISTÓRIAS MAL CONTADAS 277

do plural a uma musa indistinta, os motivos tornam-se sombrios: toda ela metáfora: veneno, tortura, tempestade, mas- sacre, morte. Espectros e mitos São Vossos lábios aspargos, Vosso confundem-se com figuras histó- queixo um cajueiro, ervilhas Vosso ricas (Pitágoras, Pirro, Ptolomeu) nariz. E os Vossos olhos, ó deuses. em exercícios formais onde as ante- Como a tamareira a cujo tronco se penúltimas sílabas acentuam essa agarram símios e rapazes de alper- antiguidade, tornada etimológica, catas frágeis. A cidreira do Vosso colo em vez de acalmar vulcaniza, e assumem a força das coisas tóni- e as cinzas do que foram hortas cas e solenes. Dos efeitos do rícino cobertas de lava tingem as Vossas escreve-se (itálico nosso): “Gotícula faces. (p. 9) a gotícula, a válvula do coração, bicúspide, acalma, a língua desliza No texto que encerra o con- no dente, bicúspide, túrgida” (p. junto, de ressonâncias camonia- 45). Do homem ao leme, “solícito”, nas, a erva dos prados assume, em diz-se que é “átomo indistinto no erupções sinestéticas, um poder âmago de um vórtice” e que “aos redentor: céus, plúmbeos e ferozes, nada pede, nem ósculo nem colírio” (p. 79). Gado que pasceis, vossos olhos das Da víbora, dita “magnânima”, “que ervas levantai, revelai vossa con- os dentes cravou no áureo braço córdia. (...) À cor baça das almas faraónico”, aniquilando a “hierática fazei suceder o amarelo. O roxo e magnífica” imperatriz, conta- desponta, irrompe o escarlate. -se que pôs fim “abeatíficos fins de Pascei, o campo atulhai de ervas nupérrimas. Não permitais que tarde egípcios, os raios oblíquos do sequem suas lâminas. Não consin- sol dourando o Nilo” (p. 95). Nesta tais que como as almas pendam assonância rítmica, quase bar- algum dia. (p. 89) roca, o jogo fonológico das sílabas musicaliza o texto, teatralizando- Não serão histórias estes dois tex- -o. E, muito a propósito, surge o tos; antes odes, exortações, cânticos. paquiderme, também ele egrégio Em “Coisas Esdrúxulas” o e vetusto, excelente exemplo da tempo regride. Volta-se à Grécia batida adequadamente esdrúxula com Orfeu e Eurídice, a Roma com destes sons: Marco António, ao Egipto com Cleópatra, à Idade Média com os Um elefante, claro. (...) Ora tépido, cátaros e aos Descobrimentos com envolto em pó rúbido, puníceo. Ora os nautas. Em ritmo sincopado e álgido, as patas áureas jactos líqui- dos espalhando. Afasta o insecto frases curtas, elípticas, os temas e 278 ISABEL ERMIDA

morbífero com a cauda íntegra. E maneta é o mesmo que não ser das orelhas vastas ondas vocálicas maneta. Que, sendo o mesmo o partem para míticas costas. (p. 11) caminho, subir e descer não têm importância nenhuma. Nem isso, Com “Frases Famosas” o tom nem a quantidade de braços. E de coloquializa-se e, em jeito de brinca- olhos, não se esqueçam, tudo o deira, decompõe-se o significado de que aqui foi dito acerca de manetas aplica-se igualmente a zarolhos, já citações de figuras célebres – bíbli- que Wellington perdeu um de cada, cas, religiosas, literárias, militares. um braço e um olho. (p. 26) Desfilam Abdão, Gregório de Tours, Rabelais, Nelson. E atomiza-se as Mas as frases ditas famosas não tiradas por eles alegadamente pro- são só de grandes nomes da histó- feridas, reduzindo-as ad absurdum. ria. Algo de tão corriqueiro como a Se Nelson proclamava estar quinze fórmula “A menina dança?” (p. 74) minutos à frente do seu tempo, dá o mote a uma digressão cáustica talvez o Duque de Wellington não sobre a natureza da sedução. Outras fosse tão despachado, a julgar pelo frases, ainda, remetem para auto- braço e pelo olho que em má hora res implícitos, cujo nome paira, perdeu no campo de batalha. E gra- ausente, aguardando a identificação ceja a Autora, num salto de raciocí- intertextual. Tal é o caso de Wilde, nio no mínimo ginasticado: no episódio do homem que assistiu desgostado a um homicídio numa Se calhar é isso o que significa uma taberna e a quem se ouviu dizer: “Se sua frase célebre, que nascer num estábulo não faz de ninguém um for preciso matar alguém, não custa cavalo. (...) Se nascer num estábulo nada ser bem-educado” (p. 52). for equivalente a perder um braço, O quarto agrupamento temá- então ser cavalo é equivalente a ser tico intitula-se “Reportagens” e maneta. (pp. 25-26) constitui um apanhado delicioso de sátiras jornalísticas. As “notí- Da jocosa falácia chega-se, cias” caracterizam-se pela parca num emaranhado de cómicos para- relevância e ténue consequência, logismos e termos politicamente gravitando em torno de um real incorrectos, ao célebre postulado que, em virtude da análise que o pré-socrático: bisturiza, não raro se torna mágico, evolando-se em implausível fanta- Ou então vá-se lá saber se era isso sia. Regra geral, o relato noticioso que Heráclito queria dizer quando começa por um fait-divers: as padei- escreveu que o caminho que sobe ras que entram em desenfreada é o mesmo que desce. Que ser competição, o motorista casual que LAFAIA ABRANCHES, ALEXANDRA (2017). HISTÓRIAS MAL CONTADAS 279

consegue fazer andar um engarrafa- Contudo, as “reportagens” são mento, a família que é atingida por também, mais uma vez, pretextos um ataque de paralisia, o restau- para divagações bem mais filosóficas rante que abre portas na capital, a do que jornalísticas. Por exemplo, o festa que se prepara na aldeia para grupo de curiosos que espera a che- receber o concidadão ilustre, a octo- gada dos assassinos a tribunal leva genária aristocrática que falece. Mas a discorrer sobre a natureza do hor- logo as padeiras conseguem o sor- ror: “Sabemos que a paralisia indica tilégio de fazer o tempo retroceder, mais o horror do que o descontrole, “tornando-se nos primeiros seres porque o descontrole mimetiza os humanos a realizar a tão almejada e esforços de fuga, a paralisia o seu paradoxal viagem no tempo” (p. 14). malogro” (p. 90). De igual modo, o O motorista frustrado, que nunca suicida junto ao abismo e o prisio- sai de casa sem o seu apito, discorre neiro que sai finalmente em liber- surpreendentemente sobre o “efeito dade provocam uma reflexão sobre moral” dos extintos polícias sinalei- a questão dos opostos: “A diferença ros citando Kant (p. 20). A “família entre estar alto e estar fundo é t” – de triste, fica a saber-se – sofre pequena” (p. 53) / “Sempre que há um episódio súbito de melancolia excesso de luz é como se houvesse que, como no conto da Bela excesso de breu” (p. 100). Adormecida, transforma os seus Nova mudança de registo chega membros em estátuas no decurso com “Contos Zen para Crianças dos afazeres diários (p. 40). O res- Boas”, um conjunto tão adorável taurante que é inaugurado tem afi- como assustador de textos supos- nal o inaudito nome de “K’aniBaal”, tamente infantis. O formato é por motivos óbvios e pouco reco- pedagógico, mas o conteúdo não é mendáveis (p. 49). A festa na aldeia propriamente pacificador ou edi- celebra o feito de o filho da terra ficante. Falar de filmes de terror ter ficado, “com esforço e garbo”, e de piratas pessimistas, “que só em último lugar numa prova des- encontra[m] os seus tesouros por portiva (p. 69). E descobre-se que acidente e pode[m] levar uma eter- a venerável senhora viscondessa nidade a encontrá-los” (p.67), não sofreu morte criminosa, ela que, às dá exactamente sonhos descansa- escondidas, lia Sade e Nabokov (p. dos à pequenada. O mesmo se pode 71). O cómico e o absurdo marcam dizer de os jovens leitores darem profundamente todos os textos – de caras com o diabo, ou com deu- nos quais, como em O Processo ou ses para quem “nós somos a parte O Castelo de Kafka, as iniciais subs- menos importante do mundo” (p. tituem os nomes dos protagonistas. 84), em contos ditos “zen”, espe- 280 ISABEL ERMIDA

cialmente em passagens capazes de saros, passarinhos, passarões, aves causar arrepios ao mais audaz dos de arribação e cucos. Há animais miúdos, como esta: voadores sem penas, e dividem-se de outras maneiras. E há animais Aqueles que acordam a meio da não voadores com penas, que tam- noite e o vêem pendurado de bém têm a sua divisão. (...) (p. 37) cabeça para baixo de uma viga do tecto juram que ele dorme de olhos O sexto e derradeiro con- abertos. Os outros que o desco- junto temático do livro, “Criaturas brem debaixo da cama de madru- Metafísicas”, é, como o título indica, gada garantem que os dentes dele o mais explicitamente filosófico brilham no escuro. (p. 24) ou, uma vez mais, satiricamente filosófico. Nele se ensaiam explica- Apesar destes casos atípicos, os ções sobre a estrutura e o funciona- animais protagonizam, como é tra- mento dos fenómenos do universo, dição na literatura para a infância, sendo os leitores informados de grande parte dos textos: gatos, patos, que a Terra “está em cima de um galos, galinhas, porcos, cigarras (e elefante, que está em cima de uma formigas), sapos, corvos e, é claro, tartaruga, que está em cima de uma dragões. Mas os textos na sua maio- tartaruga, que está em cima de uma ria não são fábulas, com os bichos a tartaruga, e assim sucessivamente”, agir como humanos, falando e pen- subsistindo no entanto um enigma sando; são antes notas expositivas, primordial: “a saber, por que razão em parágrafos únicos e breves, sem entre a Terra e a primeira tartaruga estrutura pronominal (os sujeitos e está um elefante” (p. 30). Revela-se os objectos vêm repetidos na íntegra, noutro texto que o mecanismo da como aliás costuma acontecer no física planetária é “obsoleto”, “gasto discurso redundante da infância) e moído” (afinal, “foi criado no e com o tom apropriado de auto- primeiro dia” e “vem funcionando ridade informativa que as crianças desde então”), pois “range man- esperam dos adultos. Porém – e aqui tendo os céus suspensos e as águas reside a sua graça – vêm pejados de mansas” (p. 46). Também há textos imprecisões, tautologias e erros cari- que se abalançam sobre as causas de catos, como é o caso deste: “Há duas fenómenos cosmológicos que ultra- maneiras de dar banho a um gato: a passam as fronteiras do tangível, difícil, a muito difícil e a impossível” tais como as irritações frequentes (p. 19). Ou deste: do “deus das nuvens”, que “lança raios e martela trovões, grave, Os animais voadores com penas majestoso, com aparato e pompa” dividem-se, como se sabe, em pás- LAFAIA ABRANCHES, ALEXANDRA (2017). HISTÓRIAS MAL CONTADAS 281

(p. 34), ou a “cólera, furor e frenesi” ral face à construção do texto ou, dos “anjos psicopatas”, cujos gritos em contrapartida, de uma atitude “estarrece[m] peixes e mamíferos, explicativa, genuína ou não, perante aves e insectos”, “quebra[m] rochas” o leitor (veja-se a moral da história e “fende[m] diamantes” (p. 66), das padeiras competitivas fornecida ou, ainda, a perícia e sabedoria do no final do texto, pp. 14-15), a ocor- antonomástico “santo das moscas” rência de apartes encerra também que logrou a anuência das ditas e, muito de humorístico. Passamos a sem precisar de ser serrado ao meio dar três exemplos, dos muitos que ou perfurado por lanças, a conse- povoam o livro. Na “reportagem” quente e difícil santidade (p. 99). em que os dados iniciais do INE Outras divindades são convocadas, se baralham com registos de 1348, inclusive as terrenas que assim se perdendo-se o suposto jornalista auto-proclamam, como Augusto, em considerandos espúrios sobre a que se decretou deus em estátuas e época, a longuíssima (e única) frase praças para “intimidar os bárbaros”, termina com uma pérola de ironia mas não escapou à censura do sábio sobre a auto-referência: Ovídio, que por isso foi exilado (p. 92). Mas o melhor exemplo do exer- (...) todo o trabalho é útil, o do cício analítico em torno dos seres repórter mais ainda desde que metafísicos talvez seja o elenco dou- saiba veicular informação relevante tamente interminável dos heteróni- em poucas frases e esta é só uma, está cumprido o objectivo. (p. 33) mos de satanás – o qual, malgrado as dezenas de terríveis epítetos, No texto, no mínimo lacónico, se materializa na qualidade de sobre o longevo engenheiro (e filó- dócil fada do lar, aspirando tape- sofo) Manoel de Azevedo Fortes tes, polindo pratas e desentupindo (1660-1749), a voz autoral emerge retretes. Conclui-se com uma inter- espirituosamente à superfície nar- rogação: “Haverá, gostávamos de rativa, dizendo (note-se o plural saber, mais demónios ou mais tare- majestático): fas domésticas” (p. 88). 1 Um elemento transversal a Hoec Azevedi viva est scribentis todas estas “histórias” é a presença imago sua... e para quem não sabe intermitente do comentário meta- latim, como é o caso de quem agora textual. Marca de um afastamento escreve, deve querer dizer alguma lúcido entre o sujeito que diz e a coisa coisa como isto, ora aqui está uma dita, de um desprendimento auto- imagem de Azevedo (...) Não pode- mos deixar de confessar a ignorân-

1 Sem ponto de interrogação no original. 282 ISABEL ERMIDA

cia em que estamos quanto (...) ao se trata, também por isso, de um que pensava da construção de pon- “primeiro livro”, embora o livro seja tes, se não o incomodava a peruca o primeiro da Autora em registo na confusão do estaleiro, se antes não-académico. Nada tem de ima- via no pó das obras uma oportu- turo, ou trémulo, ou indeciso, como nidade de empoá-la. Sabemos, isso sim, que morreu, mas não fazemos os passos de um estreante que vai ideia de como. (p. 38) tacteando um chão literário que almeja mas não domina. É um livro O comentário metalinguístico de maturidade, de quem já muito volta a assomar no que parece ser um escreveu e muito corrigiu, muito libelo de ars poetica algo histriónico: caminhou e perseverou, muito cogi- tou e muito, habilmente, se diver- (...) são Vossos lábios não direi um tiu. Não é já um processo, mas um botão de rosa, já está estafada esta produto. E este produto, pleno de imagem. Imagens assim, enterremo- humor e de distanciamento crítico, -las. (...) Até que, milénios passados, com notas sábias e desarmantes de a nós regressem, descobertas por autoirrisão, vem inscrito numa mun- algum, ia dizer vate mas também dividência multifacetada, imensa esta palavra merece a cova. (p. 9) na sua pluralidade, única na sua expressividade. É já, portanto, uma Passemos à conclusão. Histórias identidade. E dizer isto, como diria a Mal Contadas é, ainda e finalmente, Autora, “não se pode dizer que (...) um livro de um bom gosto imacu- [seja] assim tão pouco” (p. 16). lado. Não contém um único lapso de estilo, uma só concessão ao lugar-comum, um momento que seja de banalidade. Faz referência [Recebido em 8 de setembro de 2017 e aceite ao provérbio para o desconstruir, para publicação em 5 de janeiro de 2018] ao dito popular para o desmontar, à O presente artigo está escrito de acordo com a antiga ortografia, por opção da autora e em frase lapidar para a escarnecer. Não consonância com a obra recenseada.