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Falsas Memórias e Sistema Penal:

A Prova Testemunhal em Xeque www.lumenjuris.com.br

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Falsas Memórias e Sistema Penal:

A Prova Testemunhal em Xeque

Editora Lumen Juris Rio de Janeiro 2013 Copyright © 2013 by Gustavo Noronha de Ávila

Produção Editorial Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

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É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei no 6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e indenizações diversas (Lei no 9.610/98). Todos os direitos desta edição reservados à Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Impresso no Brasil Printed in Brazil

Dados internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca da Faculdade de Direito de Vitória, ES, Brasil) Para Gerson e Boêmia por tudo, sim- plesmente tudo. Vocês foram a inspi- ração constante para este trabalho e tudo o que sou hoje. E sempre. São “o início, o fim, e o meio”. Jamais poderei agradecer o suficiente por tudo o que fizeram e fazem. Apenas posso, antes de fechar os olhos, antes de dormir, dese- jar o “beijo de boa noite” que nunca deixou de existir em meu coração. Está nos meus mais belos sonhos. E também na inspiração do acordar. Têm a capaci- dade de matar o passado e fazer-me vol- tar à vida com os seus sorrisos. Possuem o dom da palavra certa, do afago eterno que jamais se apaga. Com toda a admi- ração e amor que pode existir, Gustavo. Agradecimentos

Ao Professor Gabriel José Chittó Gauer, exemplo de dedicação, esmero, integridade e, principalmente, pesquisador. Tuas perspica- zes indicações, sugestões e incentivo tornaram o trabalho possível. Obrigado pelo prazer e honra da convivência por mais de dez anos. Agradeço a todos os Professores do Programa de Pós Gradua- ção em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do , em nome da Professora Ruth Maria Chttó Gauer. Sabes que nada disto seria possível sem um gesto, provavelmente, simples para senhora, mas que mudou o rumo de minha vida desde aquele instante do ano de 2000. Uma ligação abriu as portas para o meu futuro e a tua generosidade me marcou daquele dia para sem- pre. Obrigado por ter tornado a crise parte de mim e ter me ensinado que viver sem respostas é a própria aventura do viver. Alexandre Morais da Rosa, Sílvio Vasconcellos, Hericka Zogbi Jorge Dias, Nereu Giacomolli e Fabrício Dreyer de Ávila Pozzebon, também contribuíram com suas sugestões no momento da qualificação do Projeto e da defesa, fundamentais pro avanço e delimitação da pesquisa. Meu mais sincero agradecimento. Os queridos e inesquecíveis colegas de Doutorado e os de- bates, conversas e momentos de descontração, foram também im- portantíssimos para o avanço de várias ideias. Agradeço a todxs e, especialmente, ao Daniel Achutti, Christiane Russomano Freire, Thayara Castelo Branco e Gabriel Divan. Não seria possível ter chegado até aqui sem o apoio de meus coordenadores da Faculdade de Direito do Centro Universitário Ritter dos Reis. Por isso, professores Fernanda Nunes Barbosa, Rodrigo Valin de Oliveira, Diego Leite, André Bencke, Luiz Otá- vio Escalier Braga e Augusto Tanger Jardim, meu profundo agra- decimento por compreenderem a realização desta Tese e acredi- tarem em meu trabalho. Ao Doutor Flávio D’Almeida Reis por toda a confiança em mim depositada. Saibas: sempre será uma honra ser professor desta Instituição que carrega, além de teu DNA, a dignidade e seriedade tão características de teu trabalho. És um exemplo para todos nós. Nas pessoas dos colegas Alberto Fett e Gilberto Schäfer, também agradeço a todos os professores das Faculdades de Di- reito do Centro Universitário Ritter dos Reis, pelos gestos de so- lidariedade e pela sincera torcida. Em nome de Luciano Góes, Marcelo Buttelli Ramos, La- rissa Urruth Pereira, Guilherme Machado Barboza, Sabirna Du- arte Selau, Eduardo Crestani, Letícia Pereira e Patrícia Gonçalves agradeço a todos os meus alunos e todas as minhas alunas da Universidade do Sul de Santa Catarina, do Centro Universitá- rio Ritter dos Reis, do Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais da Polícia Militar de Santa Catarina, da Especialização em Ciências Penais da Universidade Estadual de Maringá e da Escola Peniten- ciária do Rio Grande do Sul. Todxs contribuíram - e muito - para o amadurecimento de várias ideias que embasam este trabalho. Não esquecerei, sobretudo, a compreensão e tolerância pelos re- flexos dos períodos de intensa escrita. Não tenho como deixar de agradecer à Vera Maria Gui- lherme. As madrugadas de conjugação do binômio escrita-insô- nia teriam perdido muito o sentido sem tuas sempre instigantes provocações. Foste interlocutora da maioria das conclusões do texto e jamais poderei agradecer suficientemente por todos os co- mentários realizados. Tenho orgulho de poder te chamar de amiga e sou feliz por saber que os diálogos sobre as fraturas estão apenas no início. És responsável direta pela imortalidade do sonho. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), meu agradecimento pela Bolsa concedida para a realização deste Curso. Minha irmã Karine Noronha de Ávila também possui im- portante contribuição para este trabalho, não só fornecendo o apoio do referencial da neuropsicologia, sua especialidade profissional, como também a tenra amizade. Jamais esquecerei a diferença que fizeste, maninha. Carlos e Ana Braga, padrinhos queridos, sabem que nada disto seria possível sem o seu apoio. A linda família de vocês tam- bém me faz acreditar com mais força nas linhas que escrevi. Aos meus grandes amigos-irmãos Diego Apellaniz Borba, Mar- celo Rocha Marino, Felipe Marchiori dos Santos, Rodrigo Viega Alves e Luiz Alberto Brasil Simões Pires Filho, por compreenderem minha ausência e incentivarem a trajetória do início ao fim. Também não posso deixar de agradecer axs amigxs de Ma- ringá: Gisele Mendes de Carvalho, Hamilton Belloto, Andressa Paula de Andrade e Gerson Faustino Rosa. Ao amor puro e incondicional daquela que me viu dar os pri- meiros passos e foi muito mais do que uma avó, mas verdadeira parceira desde que me entendo por gente. Célia Ávila, nada disto faria sentido se não fosse também para ver teus olhinhos brilhando. À Érika por ser mais que um sonho: doce realidade. Obri- gado por preencher tudo de sentido, por me ensinar o que é o amor, por transformar a vida em um cobertor de nuvens sem fim. Se não me falha a memória... ou Prefácio ao livro de Gustavo Noronha de Ávila.

Discutir a qualidade da prova testemunhal é algo novo no contexto brasileiro, tomado pela compreensão medieval da capa- cidade descritiva da testemunha e pela postura paranoica do juiz, decorrente do modelo inquisitório, na gestão da prova. Assim é que a discussão travada em regra é bizarra. A testemunha está mentindo ou dizendo a verdade? Essa pergunta é ingênua e dá um trabalho enorme – uma tese de dou- torado – para superar. A maioria dos atores jurídicos nasce, cresce e morre acreditando em verdade ontológica, “como se” pudésse- mos, ainda, falar em adequação do intelecto à coisa. Esse modelo de pensar, dicotomicamente, é extremamente simples e, por essa simplicidade, engana. A linguagem deixou de ser a ligação entre a coisa e o enunciador, ou seja, não falamos mais da “coisa em si”, mas na possibilidade de atribuirmos sentido às coi- sas, no tempo e espaço. Daí que todo desvelamento traz consigo o velamento, sabe quem leu Hemenêutica Filosófica. Quem não sabe do que se está falando é mais feliz. Todo alienado é mais singelo. No campo da percepção, além de não podermos ter acesso à coisa em si, dado que o mundo da linguagem, sempre facista, nos dizia Barthes, ao impor um padrão de comunicação, obriga a falar de um modo para sermos inteligíveis. Depende, também e necessa- riamente, de um contexto de possibilidades de interpretações. Dia desses fui ao Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, com um Biólogo. O que para mim eram árvores similares são absolutamente diferen- tes, apresentam características diversas, tão evidentes e que, para meu espanto, até então, nunca havia percebido. Se for perguntado hoje sobre as árvores, poderei diferenciá-las. Não com a qualidade do meu amigo, mas melhor do que a sua, caro leitor, se não for amigo do meu amigo e nem mais curioso! Antes desse dia, pare- ciam todas iguais. Se não me falhar a memória, claro. Mas como a minha afirmação sobre as árvores não será verificável, salvo se o mesmo ou outro biólogo estiver presente, por exemplo, meus filhos acreditarão. E poderão reconhecer a figueira como figueira, em- bora não seja! Podem, seguramente, apontar a figueira. Juram de pé junto. Poderiam fazer um reconhecimento judicial..., nunca se sabe, ainda mais sendo crianças. Talvez esse exemplo seja um tanto tosco, assim como é o processo penal brasileiro. Depois de mais de 10 anos no campo acadêmico, entre dis- sertações e teses, posso dizer que raramente, de fato, há um traba- lho novo. Claro que no Direito a coisa gira em face de pesquisas bibliográfica e, assim, salvo quando há pesquisa de campo – no caso existe –, os trabalhos se traduzem como pareceres jurídicos. São pouco problematizados e só se usa o que confirma a hipótese, algo que pode ser chamado de oportunismo acadêmico. Por isso a relevância de trabalhos refinados como o de Gustavo Noronha de Ávila. Longe dos dualismos, verdadeiro/falso, má/boa fé, da teste- munha, procura apontar o intrincado mecanismo (não sabido) da memória, para o qual não há resposta definitiva. A partir de Zizek, pensei que uma das formas de abordar a imputação no processo penal seria excluir a violência, ou seja, buscar subtrair o fato violência e ir às condutas. Daí que as coisas poderiam girar noutra dimensão. De qualquer maneira, premidas pela emoção, as versões, depoimentos e reconhecimentos, ainda mais nos casos de homicídio, são as mais completas possíveis. Mesmo que o enunciador tenha visto pouco, “comple- menta” o que sabe com a versão dos demais, uma pesquisa na internet ou, também, por sugestão do aparelho estatal. O resul- tado disso é o que se vê no dia a dia. O paradoxo da descrição, destaca Timm de Souza, é que quanto mais completo for, mais insuficiente será. Nesse enleio, pois, resta um procedimento pú- blico – processo penal – para verificação das condutas. A questão é que os depoimentos e reconhecimentos não são verificáveis, isto é, não se submetem, isoladamente, a novo julgamento, dado que escorregam para conta da “credibilidade”. E a “credibilidade” depende dos humores. Dito de outra forma: não há como verifi- car se um reconhecimento ou uma versão são verdadeiros! Ela é composta numa decisão como bricolagem. E só. Pode-se cercar o sentido, mas nunca o garantir. E assim se julga. Gustavo é daqueles meus grandes amigos “linkados” pela in- ternet. Talvez tenhamos nos visto pouco mais de uma dúzia de vezes e, quem sabe por isso mesmo, nos gostemos tanto. Admi- rava, desde os tempos de Florianópolis, sua capacidade crítica, re- plicada nos alunos, dentre eles Luciano Góes, o qual foi estagiário e hoje desponta no mestrado. Participei de sua banca de douto- rado, na prestigiosa PUC-RS, com Gabriel Chittó Gauer, Fabrício Dreyer de Ávila Pozzebon, Hericka Jorge Zogbi e Nereu José Gia- comolli. Uma manhã memorável – se não me falha a memória. Jorge Luis Borges falava de uma “Memória Infinita”, incom- patível com o humano. Pode parecer que ao se julgar um sujeito se produz uma peça literária, até porque somente se julga por me- táfora e metonímia. O problema é que os erros de enredo e os finais condenatórios, longe de diletantismo, implicam na morte de muita gente! Julgar é preciso. A memória trairá sempre. Entre espasmos e infinitos fiquemos com o que possamos saber, mesmo que de maneira contigente. Espero que o trabalho seja lido e repercuta. Tenho admira- ção e respeito intelectual pelo autor. E o que segue, de fato e de direito, é uma tese de doutorado!

Inverno, 2013. Alexandre Morais da Rosa. Doutor em Direito. “O animal ressentido é o ruminante da memória”.

(Friedrich Nietzsche) SUMÁRIO

Apresentação I Nota do Autor V 1. Prova Testemunhal em Âmbíto Criminal e Memória: Diá› logos nos Entrelugares do Esquecimento 1 1.1 Sístemas Processuais, Verdade e Memóriaz A (Re)ConstrU› ção Testemunhal ...... 6 1.1.1 Sístemas Processuais ...... 6 1.1.1.1 Sistema Inquisitório ...... 9 1.1.1.2 Sistema Acusatório ...... 14 1.1.2 Formas de Obtenção da(s) Verdade(s) ...... 29 1.2 A Prova Testemunhal e a sua Utílização no Processo Penal Bra~ sileiroz Possibilidades no Procedimento e no Processo ...... 46 1.2.1 Mídias e o Anseio por Culpados ...... 67 1.2.2 Prova Testemunhal, Tempo e Esquecímento ...... 72 Z. Memória(s) e Testemunhoz A partir de um Enfoque das Neurociências e da Psicologia Forense 79 2.1 Memória Biológicaz Contribuições das Neurociências 82 2.2 Psicologia do Testemunho e Reelaboração da Memóriaz As Falsas Memórías ...... 103 2.2.1 Breve Contextualização Históríca ...... 104 2.2.2 Sugestionabilidade e Desenvolvimento de Critérios Identificadores ...... 117 2.2.3 Psicologia do Testemunhoz Estudos sobre as Identifica~ ções Equivocadas ...... 126 2.2.4 Entrevista Cognitiva e as Tentativas de Redução de Danos ...... 136 2.2.5 Perspectivas Futurasz O Caminho do Campo 156 2.3 Transtornos Associados à Memória: da atenção ao Trauma ...... 163 de Etiquetamento e as suas Consequên Cifra Oculta da Crimínalídade e AprOfUn.

0000000000000000000000 00000 33 uEm BuscaDesigualdadesda Reduçao~ de Danos( .7) ,, : Entre MlmmahsmOS. . - ' 194 207 , . saAbolicionismos TOplCOS do Garantlsmo Penal (Ferraloh.) ao 3 3 1 De Minimalismosz de Inspiração Bar.att.la~na ...... 208 Minimalismo para a^ 1scussaosobre 3,3.2 Dos Abolicionismosz CoPntnbmçoes Contemporaàeo ° 226 a (I)Leg1'timidade do Sistema e.nal da .Dor, Desmst1tuc10nali. 3.3.2.1 Nils Christiez Os L1lm1tes ...... zação e a Quantídade Razoavel C.r1me ,. ,,,,,,, 232 3.3.2.2 Louk Hulsman e 0 Ab011c1omsmo de Ra1zes Cristãs, Socialmente Engajado e Subversivo da Linguagem 249 3.3.2.3 Thomas Mathíesen e seu “Estrategism0 Man xista” ...... 268 3.3.3 Entre Minimalismos e Abolícionismosz em Busca da Efe›

I ooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo oooooo oooooooo o ooooooooooo o ooooooooo

Reduça~0deDanOS 00000000000000000000000000OOOO00000000000000000000000 283

ConSloderaçO~eS Flonalos OÓOÓOQOQÓOOOÔQOOÓOÓOOQQÓÍQOQÔOOÍÓQOÔOOÔÓQÔÔOOQÍÓQQ 299 Referências 0000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000

Apresentação

A obra Falsas Memórias e Sistema Penal de Gustavo Noronha De Ávila, enfrenta a problemática da prova testemunhal, notada- mente uma das mais utilizadas no âmbito processual. Se trata do ponto nevrálgico do processo uma vez que a sua inadequada utiliza- ção pode significar a suspensão de bens jurídicos supremos da ordem democrática constitucional. Tal tema, da forma como é abordado pelo autor, inova profundamente as discussões sobre a prova. Parte da perspectiva de que o estudo das falsas memórias podem se manifestar antes e ao longo do processo penal, por esse motivo foca sua análise na perspectiva de reduzir (?) as possibilida- des de ocorrência de tão nefasto problema. Tendo como premissa duas hipóteses: variáveis internas e variáveis externas ao processo de criminalização, sendo a primeira vinculada a utilização de peri- cia seguindo o modelo do depoimento sem dano, a segunda vincu- lada a constatação da impossibilidade das distorções, próprias da estrutura do funcionamento neuro- psiquiátrico da memória. Ao se distanciar das abordagens tradicionais problematiza a estrutura jurídica binária, esta, herdeira de uma tradição estrutu- rada no racionalismo cartesiano e que revela a permanência de tra- ços inquisitórios. É com foco na superação de interpretações totali- zantes, tal como vistas nas abordagens tradicionais que o autor, de forma exemplar, demonstra a impossibilidade de se continuar a uti- lizar o modelo cartesiano, para além desse aspecto, analisa o papel da mídia que muitas vezes apresenta um caráter criminalizador. Desloca o olhar, justamente para o testemunho como previsto na legislação atual. Esse deslocamento permitiu constatar a defa- sagem entre a legislação e o conhecimento cientifico produzido, nas ultimas décadas sobre como o cérebro armazena, conserva e recupera informações. Em se tratando de crime as lembranças, via de regra traumáticas, contribuem para ampliar as dificuldades de

I exteriorização de conteúdos emocionais notadamente marcados por eventos emocionalmente comprometidos. Tal fato corrobora para pontuar a importância da obra que apresentamos. É nesse sentido que Gustavo procura chamar a atenção para as teorias sobre redução de danos no que se refere às fal- sas memórias. E, assim, demonstra que embora se obtenha essa redução ela apenas amenizará o problema. Daí, em se tratando de processos narrativos, de reconstrução de eventos traumáticos, as diferentes interpretações sobre esses problemas apontam para questões que ultrapassam o saber jurídico. Por essas razões entre outras o leitor vai descobrir que o livro cumpre um duplo papel: Primeiro porque enfrenta um tema muito pouco abordado no campo do direito além de focar tais problemá- ticas de forma interdisciplinar. O segundo situa-se nas opções me- todológicas. Consciente da importância de seu objeto de análise o autor segue uma série de procedimentos e precauções que de fato cercassem de cuidados as afirmações e conclusões apresentadas. O autor não se descuidou da importância da utilização das teorias clássicas da criminologia, mas foi além, ampliou de forma significativa a argumentação sobre os problemas criados pelas falsas memórias com foco na redução de danos. Mais que uma apresentação e discussão dessa pesquisa, este livro dá um passo a frente, faz uma reflexão apurada onde expõe as cisões relacio- nadas à reconstrução dos litígios com o sistema penal. Revela, ainda, as fraturas existentes. O distanciamento das abordagens tradicionais sobre o tema nos leva a afirmar que o autor ampliou a visão sobre a prova tes- temunhal dando a ela outra dimensão. Para quem pretende com- preender um tema difícil, complexo e sensível tratado com muito cuidado e clareza, resultado evidente da opção do autor que por enfrentar uma importante questão do campo do direito, com in- terfaces no campo da neuro- psiquiatria e psicologia, traz um livro que serve de referência e é inovador.

II III Gabriel José Chittó Gauer

Doutor em medicina e Ciências da Saúde pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Pós-Doutor pela Universidade de Maryland (Estados Unidos) Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Cri- minais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Ruth M. Chittó Gauer

Doutora em História Moderna e Contemporânea pela Uni- versidade de Coimbra. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

II III Nota do Autor

Tão ou mais importante do que apresentar nosso trabalho ao leitor, neste ponto, é podermos dizer do que ele não trata. A tarefa de desvelar a(s) memória(s) rumo à resolução dos proble- mas inerentes à narração testemunhal, em casos penais, é algo insuperável a partir destas linhas. Isso porque o cérebro é o tecido mais representativo da complexidade humana: simplesmente indecifrável por completo. Esta noção de incompletude deverá nortear todo nosso trabalho. Aqui, proporemos alternativas, jamais soluções. Traremos possi- bilidades, e não, respostas peremptórias. Escrever sobre testemunho é escrever sobre vida. Sobre seus relatos, suas escaras, cortes e feridas. Invariavelmente abertas. É necessariamente reduzir, já que a natureza do relato é sempre redutora. A partir disso, faz-se necessário indagar: o que sobra? Por que sobra? O que influencia essa conservação? Nosso itinerário será traçado, sucintamente, a partir do se- guinte formato: a construção dogmática de depoimentos e tes- temunhos (primeiro capítulo), problematização de suas certezas com os achados nas ciências psi (segundo capítulo) e a relação dos problemas da memória com a interpretação do crime pelo sistema penal (terceiro capítulo). Somos influenciados/influenciáveis por uma gama de fato- res, por uma variedade enorme de vivências, e cada uma dessas vivências se reflete no testemunho. O que é entregue ao sistema penal é o que resta. Esses restos nos interessam. A prova testemunhal é notadamente uma das mais utili- zadas no âmbito processual, em que pese as controvérsias natu- rais relacionadas a ela. O seu estudo encontra ponto nevrálgico no processo penal (bem como no procedimento), pois a sua má

V utilização pode significar a supressão de bens jurídicos supremos da ordem democrático-constitucional, como a liberdade. Nos processos que tentam a (re)construção do fato crimi- noso pretérito, podem existir artimanhas do cérebro, informações armazenadas como verdadeiras, ou induções dos entrevistadores, de outras pessoas e/ou da mídia que, no entanto, não condizem com a realidade. Essas são as chamadas falsas memórias, processo que pode ser agravado, quando da utilização de técnicas por repe- tição, empregadas de forma notória no âmbito criminal. A possibilidade de ocorrência das falsas memórias também pode atuar de forma precaucional, impedindo ao magistrado que imponha condenações, como corolário dos princípios do in dubio pro reo (a dúvida beneficiará ao réu) e estado de inocência (todos são considerados inocentes até o término do processo). Também veremos que a qualidade da prova pode estar com- prometida também quando da decorrência de lapso temporal exa- cerbado entre a coleta dos depoimentos policiais e os testemunhos judiciais, favorecendo a produção de memórias falsificadas. Foi o que reconheceu o Desembargador do Tribunal de Justiça Gaúcho, Gas- par Marques Batista: “Parte da prova oral colhida em juízo, cinco anos depois, certamente foi prejudicada pela ação do tempo, que opera o esquecimento dos fatos e até a inclusão de falsas memórias”1. É fundamental estudar a forma como são criadas essas me- mórias inidôneas ao longo do procedimento e do processo penal. Dentre tantos questionamentos que podem emergir desta com- plexa temática, tentaremos focar em um deles: É possível reduzir

1 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação criminal 70020430146. Julgamento em: 25/10/2007. Disponível em: . Acesso em 01 ago. 2013.

VI VII as possibilidades de ocorrência desses problemas em adultos ao longo dos processos de criminalização (notadamente os formais)? A presente pesquisa justifica-se, ainda, por ser um novo campo de estudo do tema, eis que pouco trabalhado por juristas2. Ainda, por ser tema notadamente interdisciplinar, o qual, sem a necessária intersecção com as áreas psicológica e da neurociên- cia, dentre outras, esvazia a discussão de sentido. Ao considerarmos os achados da neurociência, o fator-chave para a reconstrução terapêutica das memórias traumáticas está em trabalhar propriamente os estados de consciência e as emoções, para modificar a modulação da memória traumática e, consequen- temente, a relação com o evento passado3. Isto, indubitavelmente, só é possível ao trabalharmos de forma interdisciplinar. Como hipóteses de pesquisa, ao longo de nosso trabalho, investigaremos duas possibilidades: variáveis internas e externas ao processo formal de criminalização. Por um lado, as hipóteses positivas, internas ao sistema, e possíveis para efetivamente (?) reduzir danos (exemplos da utilização de peritos como existente no procedimento do Depoimento sem Dano, entrevista cognitiva e reforço de garantias). Por outro, a própria ideia de redução do sis- tema penal como um todo, hipótese negativa, já que os efeitos da distorção da memória são inexoráveis e inalcançáveis por meio do próprio sistema, mesmo pensando em possibilidades de reforma.

2 Dentre alguns trabalhos, podemos citar: DI GESU, Cristina; LOPES JR, Aury. Falsas memórias e prova testemunhal no processo penal: em busca da redução de danos. Revista da Ajuris, v. 107, p. 77-86, 2007; DI GESU, Cristina. Prova penal e falsas memórias. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010; PISA, Osnilda; STEIN, Lilian Milnitsky . Abuso sexual infantil e a palavra da criança vítima: pesquisa científica e a intervenção legal. Revista dos Tribunais (São Paulo), v. 857, p. 456-477, 2007; GIACOMOLLI, Nereu José; GESU, Cristina. Fatores de contaminação da prova testemunhal. In: GIACOMOLLI, Nereu José; MAYA, André Machado (Org.). Processo penal contemporâneo. : Núria Fabris, 2010, v. 1, p. 11-39; e, uma primeira aproximação nossa: ÁVILA, Gustavo Noronha de; GAUER, Gabriel José Chittó. Presunção da inocência, mídia, velocidade e memória - Breve reflexão transdisciplinar. Revista de Estudos Criminais, v. VII, p. 105-113, 2007. 3 PERES, Julio F. P.; MERCANTE, Juliane P. P.; NASELLO, Antonia G. Promovendo resiliência em vítimas de trauma psicológico. Revista da Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, v. 27, n. 2, p. 136, maio/ago. 2005.

VI VII Por fim, trabalhamos em nossas conclusões (sempre provisó- rias), as dificuldades de uma disciplina herdeira direta da tradição iluminista-racionalista, como o Direito, ao tratar de um tema tão imensamente complexo como o da memória. As limitações devem se revelar em formas de prevenção (redução drástica do sistema), já que falsas memórias, por mais remediáveis, serão inevitáveis. Jamais devemos subestimar a arraigada cultura punitiva que (sobre)vive em nosso país. É justamente esse aspecto a balizar a facticidade das políticas criminais a serem adotadas futuramente e que devem ter como norte a ampla diminuição da submissão de dor, na maioria das vezes, inútil.

Gustavo Noronha de Ávila, inverno de 2013. [email protected]

VIII 1 1. Prova Testemunhal em Âmbito Criminal e Memória: Diálogos nos Entrelugares do Esquecimento

Somos não somente o que lembramos, mas também o que esquecemos”.

(Ivan Izquiero)

Iniciaremos nossa discussão analisando a(s) influência(s) da escolha (?) de um sistema processual na obtenção da prova. Para tanto, iremos contextualizar a sistematização da testemunha em nosso ordenamento jurídico. Não só a questão dogmática será apresentada, mas também variáveis externas importantes, como a mídia, serão discutidas. Provar é uma tentativa de aproximação com a verdade. Me- lhor dizendo: verdades. “A” verdade, no singular, será sempre in- completa, necessariamente contingente e dependente de referen- ciais (tempo, espaço e lugar). Chamamos de processo “tudo o que se refere à prova”1 e, etimologicamente, esta palavra evoca um exame ou uma seleção de algo. Os processos não são “máquinas retrospectivas”, logo, estarão baseados em várias hipóteses históricas, propostas pelas partes. É preciso, então, verificá-las. As provas são a maneira pela

1 CORDERO, Franco. Procedimiento penal. Tomo II. Bogotá: Themis, 2000, p. 4. Etimológica e gramaticalmente, diz Iriarte, prova é substantivo do verbo provar, que representa a sua ação, o seu elemento, o seu procedimento e o seu resultado, desde uma averiguação, com a finalidade de comprovar a verdade, veracidade ou certeza de uma proposição, de um juízo (IRIARTE, Gustavo Cuello. Derecho probatorio y pruebas penales. Bogotá: Legis, 2008, p. 47).

VIII 1 qual realizaremos essa tarefa2. Para Taruffo3, a noção de prova re- side na fundamentação deste juízo. Guasp4 afirma que a prova material é aquela instituição que, entre as relações jurídicas regidas pelo direito material, se destina à justificação da existência de determinados aconteci- mentos da vida. Não possui como finalidade específica o su- cesso do convencimento psicológico do juiz, nem de nenhum destinatário em especial, mas, mais do que isso, proporciona a legitimação da intervenção judicial. Seria possível, ainda, analisarmos a prova sobre outros vieses que a suavizam. Explicamos: os indícios, os rastros e a evidência são possíveis aproximações descritas que auxiliariam a explicar o fenômeno que circunda o factum. A dificuldade de se avaliar a prova e a sua vontade de ver- dade5, especialmente através da testemunha, já eram preocupações de Carnelutti. Diz ele que “as provas são, pois, os objetos mediante os quais o juiz obtém as experiências que lhe servem para julgar”6. Para além da concepção narrativa, já se percebia a preocu- pação de que o testemunho constituísse muito mais do que des- crever: constituía, sim, uma verdadeira maneira de transmitir uma

2 Em um sentido ultrajurídico, “seria tudo aquilo que nos convence da existência de algum fato, alguma coisa ou algum ser, seja do presente, seja do passado” (TOVO, Paulo Cláudio. Estudos de direito processual penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, v. 2, p. 202). 3 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. 3. ed. Madrid: Trotta, 2009, p. 327-328. 4 GUASP, Jaime. Derecho procesal civil. 4. ed. Tomo I. Madid: Civitas, 2008, p. 322. 5 “Essa ‘ambição de verdade’, que nunca deixa de perigosamente rondar o processo penal, deve ser limitada, como limitado deve ser o poder (ao qual ela adere para se realizar). A ambição de verdade acaba por matar o contraditório e, portanto, o ponto nevrálgico do processo penal democrático e constitucional” (LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 578); FOUCAULT também trabalhava com a necessidade de “destruir a vontade de verdade” (FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003, p. 142). 6 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Campinas: Bookseller, 2004, v. 1, p. 275. François Gorphe também é considerado pioneiro no estudo do testemunho, trabalhando, inclusive questões relativas à sugestionabilidade, apesar de não citar textualmente o termo “falsas memórias”. (GORPHE, François. La crítica del testimonio. 5. Ed. Madrid: Reus, 1971)

2 3 experiência7. Como forma de transcender a sua objetificação, seria necessário também entender menos o conteúdo em comparação ao que poderia ser trazido ao processo8 e mais a sua vivência e como esta pode influenciar a sua forma de interpretar o mundo. Enxergar, através dos olhos da testemunha: eis um dos de- safios comuns ao juiz durante o processo penal. Apesar desta di- ficuldade e de todas as possíveis “impurezas”, advindas deste tipo de prova, não é possível prescindir de sua existência9. Isto porque existem crimes, especialmente os materiais, que dificilmente po- derão ser analisados de outra forma a não ser pela testemunha. O homicídio é um claro exemplo desta situação. Mas, como o juiz poderia utilizar-se desta experiência da testemunha? A resposta, inicialmente, nos parece bastante com- plexa. A mera relação causal, base do cartesianismo, será absolu- tamente insuficiente para contornar a questão. O Direito é herdeiro direto da tradição racionalista, que reduz o conhecimento ao mundo binário da validade/invalidade. Desta forma, a ação será procedente/improcedente, uma medida legal/ilegal (constitucional/inconstitucional). Com base na na- turalizada igualdade, o Direito pretensamente tenta forjar um mundo transcendente a qualquer impureza, muito além da ver- dade, já que o falso só serve de modo a conformá-la. Quanto à utopia do “mundo perfeito”, afirma Gauer que “a modernidade disciplinou não apenas os homens, mas tam- bém, todas as coisas que pudessem estar fora do lugar”10. Todas

7 Ibidem, p. 289. 8 “Esta é, infelizmente, uma necessidade, à qual o processo não pode se subtrair, nem sequer se seu mecanismo fosse humanamente perfeito. Santo Agostinho escreveu a este respeito uma de suas páginas imortais; a tortura, nas formas mais cruéis, foi abolida, ao menos no papel; mas o próprio processo é uma tortura” (CARNELUTTI, Francesco. Misérias do processo penal. São Paulo: Pilares, 2006, p. 66). 9 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Campinas: Bookseller, 2004, v. 1, p. 292. 10 GAUER, Ruth Maria Chittó. Da diferença perigosa ao perigo da igualdade: reflexões em torno do paradoxo moderno. Civitas, v. 5, n. 2, p. 401, 2005.

2 3 as impurezas deveriam ser higienizadas, e a razão era a forma de filtrar, binariamente, os conhecimentos válidos e inválidos. Sendo assim, “o mundo perfeito, utopia dos iluministas, seria totalmente limpo e idêntico a si mesmo, transparente e livre de contaminações”11. A falência do monólogo cartesiano parece-nos evidente12. No entanto, até por não estarmos no fim da história13, é neces- sário repensar o que sobrou do racionalismo e os seus efeitos para a sociedade. Duclerc propõe uma redefinição na ideia de prova, trans- cendendo àquela que busca uma verdade. Este giro é possível a partir da concepção de prova como comunicação. A prova deve ser concebida como troca de mensagens entre pessoas que “esta- belece relações de coordenação e subordinação entre emissores e receptores e permite a estabilidade da comunicação, garantindo as expectativas dos comunicadores no que se refere aos compor- tamentos dos outros”14. Assim, ao concebermos o processo como ambiente de reprodução social, consideraremos a prova como a troca de mensagens entre partes, juiz, testemunhas etc. O juiz deve desconfiar sempre das suas próprias apa- rências/imagens, segundo Coutinho15 e, consequentemente,

11 Ibidem, p. 401. 12 Ver GAUER, Ruth Maria Chittó. A fundação da norma. Porto Alegre: Edipucrs, 2010, p. 91. 13 De acordo com Fukuyama, após um século de emergência e declínio dos regimes fascistas e comunistas, de enormes turbulências políticas e de crises econômicas, de contestação intelectual e prática ao liberalismo econômico e político de corte ocidental, o mundo estava retornando ao seu ponto inicial, qual seja, o do triunfo inquestionável – do sistema liberal ocidental (ALMEIDA, Paulo Roberto de. O “Fim da História” de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou? Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2013). Ver também: FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. 14 DUCLERC, Elmir. Prova penal e garantismo: uma investigação crítica sobre a verdade fática construída através do processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 170. 15 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: ______; CARVALHO, Luis Gustavo

4 5 de suas decisões. Seria, então: “como pedir ao humano que deixasse de pensar ou, por outro lado, que resistisse sempre às puslões inconscientes”16. Ao presenciar o fato, certamente, a testemunha o interpreta, de acordo com sua própria vivência que, na maior parte das vezes, não é a mesma do juiz. Morais da Rosa nos traz uma possibilidade interessante: “A melhor maneira de julgarmos um processo crime é imaginar o enredo sem o ato violento ou criminalizado”17. É ne- cessário, portanto, um certo afastamento para consegui-lo18. É a partir desses quadros que tentaremos reproduzir (inexo- ravelmente, de forma parcial) a problemática da prova testemu- nhal e a influência das falsas memórias. À medida que as neu- rociências avançam, por óbvio, embasadas em dados racionais (puros), mais dúvidas surgem acerca do(s) lugare(s) da memória,

Grandinetti Castanho de. O novo processo penal à luz da Constituição (Análise crítica do Projeto de Lei nº 156/2009, do Senado Federal). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 13. Isto porque “o tempo é efetivamente irreversível, e o homem deve desenvolver mecanismos tecnológicos para registrar imagens sobre a matéria que o tempo apaga, bem como outras formas para conservar e obter provas. A consciência não é o melhor meio para reter imagens, até porque sofre toda espécie de influências, que distorcem aquilo que foi visto ou captado pelos sentidos, sem falar das memórias perdidas. Neste ponto, a maior prova utilizada no processo penal brasileiro ainda reside na testemunha, que certamente é a pior de todas as provas” (THUMS, Gilberto. Os sistemas processuais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 297). 16 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lu- gar constitucionalmente demarcado. In: ______; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. O novo processo penal à luz da Constituição (Análise crítica do Projeto de Lei nº 156/2009, do Senado Federal). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 13. 17 MORAIS DA ROSA, Alexandre. Quando se fala de juiz no novo CPP de que juiz se fala? In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. O novo processo penal à luz da Constituição (Análise crítica do Projeto de Lei nº. 156/2009, do Senado Federal). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 128. 18 Ibidem, p. 128. E continua: “Imaginar também pode se dar através da criação de pequenas ficções, cenários sutis e individuais. O evento, ao ser recordado, torna-se ficção, pois não fora por essas estruturas, a arte seria pessoal demais para que o artista a criasse, mais ainda para que a platéia a compreendesse. Até o cinema, a mais literal de todas as artes, é editado” (Ibidem, p. 129).

4 5 da sua forma de conservação e obtenção. Cada vez mais, por- tanto, a certeza (racional) imprime a incerteza.

1.1 Sistemas Processuais, Verdade e Memó- ria: A (Re)Construção Testemunhal

1.1.1 Sistemas Processuais A forma de um sistema19 representar um evento criminoso está intimamente ligada à gestão da prova. Doutrinariamente, se trabalha com a concepção do processo desde uma interpreta- ção inquisitorial e acusatória. Também, adeptos existem de uma forma híbrida ou, ainda, representativa simplesmente da ausência de pureza de paradigmas contemporâneos, a mista. Neste ponto, não nos preocuparemos em realizar análise demasiada histórica20, serão abordados os pontos persistentes e que se sobrepõem às características formalmente democráticas no Brasil. Para além

19 De acordo com Thums, a ideia de sistemas processuais é muito recente. Isto porque apenas a partir do século XIX é que o Direito Processual Penal recebeu tratamento autônomo, se desvinculando do Direito Penal. Na legislação antiga, um mesmo Código serviria para regrar tanto questões de direito matertial, quanto formal (THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 174). 20 Aroca refere, em sua obra, que é comum (e cresce a cada dia) na discussão doutrinária a divisão entre sistema acusatório e inquisitório. Estes autores costumam utilizar dessa classificação como forma de descrever uma certa evolução do processo penal. É mencionado que o sistema acusatório tem origem na Grécia e na Roma Antiga. Já o inquisitorial se atribui a origem no Império Romano e no Direito Canônico. O autor salienta que não faltam referências à Inquisição, ao obscurantismo medieval, entre outras semelhantes (AROCA, Juan Montero. Principios del proceso penal – una explicación basada en la razón. Valencia: Tirant lo Blanch, 1997, p. 25). Para tanto, recomendam-se as seguintes obras: FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003; GOLDSCHMIDT, James. Problemas jurídicos y políticos del proceso penal. : Ediciones Jurídicas Europa-América, 1935, p. 114-119; BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002; SABADELL, Ana Lúcia. Tormenta juris permissione. Rio de Janeiro: Revan, 2006; e, especialmente: ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.

6 7 disso, serão discutidas as teses que rechaçam a possibilidade do modelo neoinquisitorial21, bem como uma proposição que perme- ará o trabalho: a contextualização contemporânea do problema a partir do fenômeno do punitivismo. Para realizar a discussão atinente à prova testemunhal, é es- sencial pensarmos a forma de sua obtenção. Esses esquemas es- tarão diretamente ligados aos objetivos e elementos do processo que nos caracteriza no presente. Partimos da ideia de Goldschmidt, segundo a qual, para identificar a natureza do sistema processual penal de um país, deve-se olhar para a quantidade de elementos autoritários de sua Constituição22. Entretanto, é necessário assumir que a própria Constituição Federal de 1988 possui elementos que propiciaram a expansão do Sistema Penal como um todo23. O embate entre esses marcos autoritários e democráticos e suas sobreposições caracterizam a história do processo penal. O predomínio de um ou outro não é sintoma menor da passagem de um Direito do passado ao Direito do futuro24. Essa sobreposição do passado no presente e, por conse- guinte, com reflexo no futuro25, parece se adequar ao caso bra-

21 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 530. 22 GOLDSCHMIDT, James. Problemas jurídicos y políticos del proceso penal. Barcelona: Bosch, 1935, p. 109. 23 CARVALHO, Salo de. A ferida narcísica do direito penal (primeiras observações sobre as (dis)funções do controle penal na sociedade contemporânea). In: GAUER, Ruth M. Chittó (Org.). A qualidade do tempo: para além das aparências históricas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 196. 24 GOLDSCHMIDT, op. cit., p. 109. 25 ARMENTA DEU, Teresa. Sistemas procesales penales. Madrid: Marcial Pons, 2012, p. 54-55. Rui Cunha Martins também traz esta observação ao trabalhar os critérios destes sistemas para obter verdade(s): “Na realidade, a via da sistemicidade não anula por completo o substrato rizomático que persiste. É certo que o convívio entre ambas as lógicas não é pacífico, ou não fosse o rizome ‘um sistema acentrado, não hierárquivo e não significante, sem General, sem memória organizada ou autómato central, unicamente definido por uma circulação de estados, [o que o posiciona] contra os sistemas centrados (mesmo policentrados) com comunicação hierárquica e ligações pré-estabelecidas. [...] todo o sistema processual é produto desta simultaneidade e

6 7 sileiro. Diversos autores identificam em nossas matrizes políticas um modelo inadequado de tratamento com exemplos autoritários históricos (vide os julgamentos referentes aos crimes praticados por militares em meio à repressão política), exemplos estes que influenciam, sobremaneira, o nosso sistema penal e a forma como o justificamos hoje26. De acordo com Lopes Júnior, por um lado, é possível cons- tatar o predomínio do sistema acusatório nos países que respei- tam a liberdade individual e possuem sólida base democrática27. Por outro, o inquisitório predomina historicamente em países de maior repressão, em que se fortalece a hegemonia estatal, em detrimento dos direitos individuais, ou seja, caracterizados pelo

constrói-se sobre o efeito de tensão que dela emana” (MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 87). 26 Sobre estas práticas de cunho nitidamente autoritário, sugere Sodré que, “no Brasil, na Argentina e no Chile, as comissões de investigações das torturas e dos assassinatos cometidos pelos regimes militares chegam a conclusões estarrecedoras: a execução de adversários era uma regra banal, conhecida pelos altos escalões dos governos e tecnicamente instruída por agências norte-americanas. Crianças, mulheres e inocentes foram impiedosamente sacrificados. Pesquisas recentes revelam que juízes, deputados, desembargadores e altas patentes compactuavam ativa e passivamente no Brasil com a escalada do terror. Atualmente, a continuidade das torturas e dos espancamentos na vida cotidiana das torturas e dos espancamentos na vida cotidiana é assegurada pelos aparelhos policiais, sejam militares ou civis” (SODRÉ, Muniz. Sociedade, mídia e violência. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006, p. 11). E ainda Silva Filho acrescenta que: “A sociedade brasileira ainda esta mergulhada no sono do esquecimento. Os violadores de direitos humanos nao so nao se arrependem como ainda comemoram os aniversarios do regime autoritario instalado com a ditadura militar. Boa parte da populaçao nao apenas desconhece a brutal violência desses anos como apoia a pratica da tortura pelas forças de segurança publica. Dai porque o processo de anistia brasileiro, embora comungue dos marcos conceituais da inovaçao sul-africana, especialmente em relaçao a dignidade das vitimas e ao dever de memoria, nao desemboca necessariamente nas mesmas soluçoes” (SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Dever de memória e a construção da história viva: a atuação da Comissão de Anistia do Brasil na concretização do direito à memória e à verdade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; PIRES JUNIOR, Paulo Abrão; MACDOWELL, Cecília; TORELLY, Marcelo D. (Org.). Repressão e memória política no contexto ibero-brasileiro – Estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Coimbra; Brasília: Universidade de Coimbra- Centro de Estudos Sociais; Ministério da Justiça-Comissão de Anistia, 2010, p. 222). 27 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 116.

8 9 autoritarismo ou totalitarismo, em que se fortalece a hegemonia estatal em detrimento dos direitos individuais. O entendimento dos sistemas processuais é essencial para o estudo do Direito Processual Penal, afirma Thums, pois eles traduzem a ideologia política na estrutura da ordem jurídica. O sistema inquisitório é compatível com Estados autoritários, de Direito Penal máximo, já o acusatório (de garantias) preconiza o Direito Penal mínimo e direitos fundamentais maximizados28.

1.1.1.1 Sistema Inquisitório Cronologicamente, afirma Lopes Júnior29, o sistema acusa- tório foi utilizado predominantemente até meados do século XII, sendo depois substituído, de forma gradativa, pelo modelo inquisi- tório que foi prevalente até o final do século XVIII, período em que a Revolução Francesa leva a uma mudança de rumos na História. A heresia e tudo que fosse contrário ou pudesse criar dúvi- das sobre os Mandamentos da Igreja Católica foram os objetos do Tribunal da Inquisição ou Santo Ofício, criado no século XIII. Em um primeiro momento, fiéis, considerados mais íntegros, foram recrutados para que, sob juramento, se comprometessem a co- municar as desordens e as manifestações contrárias às tradições eclesiásticas de que tivessem conhecimento. Em um segundo mo- mento, estabeleceram-se as comissões mistas, que estavam encar- regadas de investigar e seguir o procedimento30. Khaled Júnior31 assevera que o sistema inquisitório remonta à Inquisição. Primeiramente, o foco estava na observância ao fiel cumprimento dos dogmas da Igreja, que se viam ameaçados pela

28 THUMS, Gilberto. Sistemas processuais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 174. 29 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 30 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório – a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 123. 31 KHALED JR., Salah Hassan. O sistema processual penal brasileiro - acusatório, mistou ou inquisitório? Revista Civitas, Porto Alegre, v. 10, n. 2, p. 293, 2010.

8 9 proliferação de outras crenças no contexto da reforma religiosa do século XVI, e não pela criminalidade. A partir de então, esse aparato de repressão “apresentava ca- racterísticas muito específicas e tinha como fundamentação uma série de verdades absolutas, que giravam em torno do arcabouço ideológico oferecido pelo dogmatismo religioso da época”32. Sem dúvida, tratava-se de um campo de saber de envergadura consi- derável, o que é percebido pela existência de um conjunto de téc- nicas para atingir os fins a que se propunha, reunidas no Manual dos Inquisidores, de Eymerich33. O inquisidor Eymerich fala da total inutilidade da defesa, pois, se o acusado confirmava a acusação, não haveria necessi- dade de advogado. Assim, a função do advogado era fazer com que o acusado confessasse logo e se arrependesse do erro, a fim de que a pena fosse imediatamente aplicada e iniciada a execução34. A metamorfose do século XIII liquida com as formas e os em- bates dialéticos do processo pretérito e de uma série de axiomas fundamentais, tendo em vista a verdade histórica. O inquisidor in- vestiga os fatos, buscando os vestígios do delito, além de inquirir os acusados, visto que culpados ou inocentes. Para obter uma decisão judicial perfeita: o segredo está em fazê-los confessar35. Dessa forma, para encontrar a “verdade”, nada mais apro- priado do que procurá-la no próprio espírito do acusado. Nin- guém poderia conhecer melhor os fatos do que ele próprio. Essa premissa propiciou terreno fértil à tortura e à prática nas quais se considerava o imputado como um objeto do qual se deveria extrair informação. A confissão converte-se, assim, na rainha das

32 KHALED JR., Salah Hassan. O sistema processual penal brasileiro - acusatório, mistou ou inquisitório? Revista Civitas, Porto Alegre, v. 10, n. 2, p. 293, 2010. 33 Cf., EYMERICH, Nicolau. Manual dos inquisidores. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1993. 34 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 126. 35 CORDERO, Franco. Procedimento penal. Tomo II. Bogotá: Temis, 2000, p. 29.

10 11 provas36, e a tortura é legalmente admitida, e, ainda que se lhe estabeleçam muitos limites e requisitos, nem sempre são cum- pridos na prática. A ideia do imputado, como objeto de indaga- ção, e os diferentes modos de extrair-lhe informação a despeito de sua vontade foi o eixo da atividade de investigação, em muitos casos, até nossos dias, e nada mostra que possamos desprender- -nos dessa prática com facilidade37. Caso o inquirido resistisse aos métodos de tortura, seria ab- solvido. Todavia, essa possibilidade não era comum. Para obter “a” verdade, o inquisidor se utilizava de um método no qual a paciência era a tônica e também o meio para celebrar a vitória da inquisição. Entregar a alma a Deus e absolver o acusado de seus próprios pecados, ainda que em uma fogueira, era considerado um gesto de bondade por parte do inquisidor38. Esse inquisidor, segundo Binder, operava com dois proble- mas: primeiro, para a tecnologia judicial incipiente da época, foi gerada uma situação praticamente insolúvel: de qual forma obter essa verdade sem uma grande capacidade operativa? Como citar as testemunhas, reconstruir os fatos sem auxílio de peritos, entre outros? O sistema inquisitorial respondeu a essas dificuldades com duas modalidades que ainda existem e podem sobreviver nos sistemas acusatórios formais (que podem ser outra forma, nem sempre mais débil, de sistemas inquisitivos). Pretende-se resolver

36 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. O novo processo penal à luz da Constituição (Análise crítica do Projeto de Lei nº 156/2009, do Senado Federal). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 4; Ver também LOPES JUNIOR, op. cit., p. 126. 37 BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais – elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 48. 38 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: ______; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. O novo processo penal à luz da Constituição (Análise crítica do Projeto de Lei nº 156/2009, do Senado Federal). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 4. Ver LEGENDRE, Pierre. O amor do censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1983.

10 11 essa brecha tecnológica, entregando a indagação da verdade a uma única pessoa, supostamente mais capacitada, supostamente imune aos interesses, imbuída de uma alta moral e de uma função quase ou totalmente sacerdotal – em definitivo, alguém com um compromisso pessoal com a verdade39. Essa figura era o juiz. Inquisidor que tinha liberdade de pro- duzir provas, independentemente de sua proposição pela acusa- ção ou pelo acusado. A prisão cautelar era a regra40. Além disso, a investigação cabia unilateralmente ao inqui- sidor. Por todos esses motivos, considera esse autor inconcebível a existência de uma relação jurídica processual neste sistema41. Qualquer pessoa poderia ser admitida como testemunha, que só se aproveitava à acusação, e não à defesa do réu. Muitos inquisidores, sem a adequada fundamentação, submeteram teste- munhas à tortura, bem como o herege, já condenado, era subme- tido novamente à tortura, agora como testemunha, na investiga- ção de seus cúmplices42. Badaró43 tenta sintetizar algumas características desta siste- mática inquisitória: 1) as funções de acusar, defender e julgar en- contram-se enfeixadas em somente em uma pessoa, que assume as vezes de um juiz acusador, ou seja, um inquisidor; 2) o réu não é parte, mas, um objeto do processo; 3) a ação iniciava-se de ofício, através de ato do magistrado; 4) não existe contraditório, devido à falta de contraposição entre acusação e defesa; e 5) o processo normalmente era escrito e secreto. No tocante ao Código de Processo Penal brasileiro, con- cebido na década de 40, esse tem perfil essencialmente inqui- sitorial, explica Giacomolli, também em relação à prova, aliás

39 BINDER, op. cit., p. 48. 40 BADARÓ, Gustavo. Direito processual penal. Tomo I. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 37. 41 Ibidem, p. 37. 42 BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 264. 43 BADARÓ, op. cit., p. 37.

12 13 é, “na gestão da prova, que se revela a essência da opção pelos modelos processual”44. Possuímos uma fase preliminar – o inquérito policial – de cunho inquisitorial e uma fase acusatória ou, ao menos, com esta pretensão, já que existem rastros de inquisitorialidade que podem comprometer a imparcialidade do juiz45. Afirma Coutinho, neste sentido, que, “para um projeto de Justiça Criminal dura e insen- sível, nada melhor que a manutenção do sistema inquisitório”46. O sistema inquisitório foi desacreditado, principalmente, por incidir em um erro psicológico: crer que uma pessoa possa exercer funções tão antagônicas, como investigar, acusar, defen- der e julgar47. Cordero, nesta esteira, descreve a impossibilidade do exercício de todos estes papéis: “a solidão em que trabalham os inquisidores, jamais expostos ao contraditório, fora de grandes dialéticas, pode ocorrer que seja útil ao trabalho policialesco, mas desenvolve quadros mentais paranóicos”48. Afirma Thums, portanto, que o sistema inquisitório é o melhor para atender aos interesses de determinados segmentos sociais, notadamente os movimentos autoritários que apregoam a ‘lei e a ordem’, a ‘tolerância zero’ ou ainda a manipulação da mídia, para criar clima de clamor social, que exige resposta ime- diata para fatos determinados. Esse sistema é repleto de amargas experiências que mancharam a humanidade, bem como de deci- sões com alto índice de erros, condenando inocentes49.

44 GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal – Considerações críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 5. 45 KHALED JR., Salah Hassan. O sistema processual penal brasileiro - acusatório, misto ou inquisitório? Revista Civitas, Porto Alegre, v. 10, n. 2, p. 294, 2010. 46 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda de. O projeto de justiça criminal do novo governo brasileiro. In: BONATO, Gilson (Org.). Processo penal: leituras constitucionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 123-145. 47 GOLDSCHMIDT, James. Problemas jurídicos y políticos del proceso penal. Barcelona: Bosch, 1935, p. 29. 48 CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: Utet, 1986, p. 51. 49 THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 3.

12 13 1.1.1.2 Sistema Acusatório A separação entre Estado e Igreja teve influência funda- mental na construção de um modelo acusatório. Não havendo mais confusão entre crime e pecado, manifestada através da ob- sessiva busca pela confissão, houve uma aproximação com uma matriz dialética de processo. Essa secularização, então, funda a estrutura jurídica mo- derna50. Gauer51 afirma que, a tentativa de eliminar a sacralidade constituiu-se no elemento estruturador das sociedades ocidentais que “reivindicaram para si a verdade como substância afirmada em Si e negada no outro, o qual seria excluído como alguém que fosse infiel, mas assumiram uma verdade, índice de Si mesma”52. O centro do mundo foi deslocado, não era mais Deus, dessa forma, houve uma ruptura com a cosmovisão. A laicização do saber, da moral e da política passou a ser pensada pelo livre

50 Para Catroga, há múltiplos sentidos na palavra “secularização”, sobretudo, no domínio das ciências sociais. Sendo assim, é possível apresentar cinco significados fundamentais: eclipse do sagrado; autonomia do profano; privatização da religião; retrocesso das crenças e práticas religiosas; e mundanização das próprias Igrejas. A secularização, de acordo com o autor, deve ser entendida como uma paulatina distinção entre o século e as objectivações dogmáticas e institucionais do religioso como Igreja (CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Césares: secularização, laicidade e religião civil. Coimbra: Almedina, 2006, p. 8-21). Ainda sobre secularização, é importante lembrar a lição de Salo de Carvalho: “O processo de secularização possibilita outra mudança copernicana nas ciências, pois o saber passa a ser fundado na razão do homem. A análise do homem racional funda o antropocentrismo, negando toda e qualquer perspectiva ontológica de verdade (verdade em si), iniciando o processo que, no século XX, redundará na universalização dos direitos humanos” (CARVALHO, Salo de; CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da pena e garantismo. 3. ed. Rio da Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 7). Messuti, ainda, afirma que “a secularização não supõe somente o abandono de um fundamento religioso, mas, o progressivo abandono de todos os fundamentos. O pensamento como fundamentação está ligado à idéia de estrutura: o ser não é pensado em seu devir e sua finitude, mas, como uma estrutura permanente, estável, eterna. Secularização significa reconhecimento da finitude” (MESSUTI, Ana. O tempo como pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 80). 51 GAUER, Ruth Maria Chittó. A ilusão totalizadora e a violência da fragmentação. In: ______. (Coord.). Sistema penal e violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 11. 52 Ibidem, p. 11.

14 15 exame. A realidade, questionada do objeto e da capacidade de o homem conhecer, se rompeu como forma de conhecimento, e a “consciência da consciência” introduziu o sujeito que conhecia o lugar do objeto. A pergunta “Existe alguma coisa?” e a resposta, “O que existe é o que é”, foi substituída pelo questionamento da possibilidade de os homens poderem eventualmente conhecer al- guma coisa. Essas questões epistemológicas são as que marcam a filosofia moderna53. As revoluções científicas, que ocorreram após o movimento renascentista, conferiram ao homem a faculdade e as capacida- des para inquirir, investigar e decifrar os mistérios da Natureza, centrado na imagem do homem racional, científico, libertado do dogma e da intolerância, e diante do qual se estendia a totalidade da história humana, para ser compreendida e dominada. O pro- cesso de fissuras e fragmentações sem fim, de descontinuidades, de deslocamento eliminou a visão das certezas, fazendo com que as rupturas do homem não pudessem mais ser garantidas pela ló- gica cartesiana que embasou o todo unificado, proposto pela razão moderna. A obra de Descartes foi incentivadora da criação de um sujeito racional, pensante, consciente, o centro do conheci- mento, o chamado “sujeito cartesiano”.54 À luz da complexidade da vida social, a sociedade moderna se tornou mais coletiva. As teorias clássicas liberais de governo foram obrigadas a dar conta das estruturas burocráticas dos Estados-nação e das grandes mas- sas que originaram as democracias contemporâneas. O cidadão individual libertou-se, porém passou a depender cada vez mais da máquina administrativa do Estado moderno. A própria liberdade da ciência tendeu a perder a sua condição pelo enfraquecimento

53 GAUER, Ruth Maria Chittó. A ilusão totalizadora e a violência da fragmentação. In: ______. (Coord.). Sistema penal e violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 16-17. 54 Ver: DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martin Claret, 2005.

14 15 da autonomia científica. Assim, o espaço libertário defronta-se com o labirinto estatal55. Consequentemente, a principal crítica ao sistema inquisi- tivo, realizada pelos movimentos iluministas-racionalistas dos sé- culos XVIII e XIX, é dirigida aos mecanismos utilizados para re- solver a tensão provocada pela incorporação da ideia de verdade, mas não, à incorporação e centralidade desta56. O sistema inquisi- tivo incorpora a ideia de verdade não por motivo de virtude, mas, sim, por uma questão de poder57. O poder é deslocado, dessa forma, da esfera eclesiástica para a antropocêntrica. A resposta racional foi a lógica acusatória, uma lógica das partes.

55 GAUER, Ruth Maria Chittó. A modernidade portuguesa e a Reforma Pombalina de 1772. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 140. 56 BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais – elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 50. Em mais detalhes: “A monarquia absoluta constrói-se em combate com o sistema feudal e sobre suas ruínas. Este se caracterizava por um complexo equilíbrio de poderes e interesses que se sustentava na trama de contratos de vassalagem e servidão. O modelo compositivo também era um reflexo desse delicado equilíbrio de poderes. Introduzir a idéia de verdade era um mecanismo que permitia alterar esse equilíbrio e atacar a trama legalista do feudalismo. Só tardiamente a burguesia ver-se-á afetada pela própria monarquia absoluta que, em grande medida, também ajudou a construir como aliada contra os senhores feudais (em muitas ocasiões o rei foi aliado das cidades e seus privilégios). A burguesia, preparada para tomar o poder no século XVIII, opor- se-á à monarquia, mas não pensa em regressar ao sistema feudal, muito pelo contrário: dispara contra ele seu golpe final. Certamente, também se criticou a função política que os sistemas inquisitivos haviam desempenhado no desenvolvimento da monarquia absoluta, sua consolidação e expansão. As figuras do inquisidor e da tortura são atacadas, mas não, a idéia mesma da verdade no processo. É talvez neste plano mais profundo que se produz a mistura que dará origem às formas processuais napoleônicas e também às suas distorções. Os sistemas mistos são mais funcionais diante das novas regras, dos novos sujeitos e dos novos interesses predominantes na configuração desta nova etapa do Estado moderno” (Ibidem, p. 50). 57 Tais processos de incorporação de poder, notadamente o de “docilização dos corpos”, são narrados em detalhes em “Vigiar e punir” de Michel Foucault (FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 29. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2004).

16 17 Nesse sentido, Badaró58 afirma que estamos diante de um processo de partes, no qual acusação e defesa se contrapõem em igualdade de posições59, e se apresenta um juiz sobreposto a ambas. Há uma nítida separação de funções, que são atribuídas a pessoas distintas, fazendo com que o processo se caracterize pelo contraditório. Além de suas características históricas de oralidade e publicidade, vigora, no processo acusatório, o princípio da pre- sunção de inocência, permanecendo o acusado em liberdade até que seja proferida a sentença condenatória irrevogável. Ainda do ponto de vista histórico, o juiz não possuía qualquer iniciativa probatória, sendo um assistente passivo e imóvel da atividade das partes, a quem incumbia a atividade probatória60. A essência do sistema acusatório61 é a nítida separação entre as funções de acusar, defender e julgar62. Caso contrário, retorna-se ao modelo anterior, quando o réu era mero objeto do processo63. Suas premissas irão assegurar a imparcialidade e a tranqui- lidade do magistrado no momento de sentenciar, garantindo, por

58 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Direito processual penal. Tomo I. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 37. 59 Esta igualdade de posições pode ser chamada, hoje, de paridade de armas. Ou seja, estamos falando de não somente de as partes terem as mesmas chances ao longo processo, como também de que a qualidade destas chances seja a mesma. Sobre a necessidade de partidade de armas, recomenda-se o texto de Fábio Luiz Mariani de Souza, que trabalha para além do direito à defesa, mas, em um sentido de uma defesa materialmente eficaz, que significaria “muito mais do que a simples presença física de um defensor público ou ‘dativo’ no momento do interrogatório judicial ou da instrução criminal (essa última defesa – que se quer combater e suplantar – pode ser denominada “defesa meramente formal”) (SOUZA, Fábio Luís Mariane de. A Defensoria Pública e o acesso à justiça penal. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 292-293). 60 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Direito processual penal. Tomo I. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 37. 61 Ibidem, p. 38. 62 Neste sentido, Lozano e Calderón afirmam que a separação de juiz e acusação é “a mais importante de todos os elementos constitutivos do modelo teórico, ao lado do contraditório” (LOZANO, Raúl Cadena; CALDERÓN, Julián Herrera. Reflexiones sobre el testímonio, la argumentación jurídica y las técnicas de interrogatorio y contrainterrogatorio en el sistema acusatorio. Bogotá: Ediciones Nueva Jurídica, 2010, p. 29). 63 BADARÓ, op. cit., p. 38.

16 17 conseguinte, o tratamento digno e respeitoso ao acusado, que abandona a posição de objeto, para ser tratado como “autêntica parte passiva do processo penal”64. Neste modelo, deverá haver espaço para um amplo debate sobre a hipótese acusatória65. De acordo com Lopes Júnior, a forma acusatória é caracte- rizada como:

a) clara distinção entre as práticas de acusar e julgar; b) iniciativa probatória das partes (consequência natural da distinção de práti- cas); c) o juiz deve estar na posição de impar- cial, indiferente à investigação e passivo no que tange à coleta da prova, tanto para a imputação quanto no descargo; d) paridade de armas no processo; e) procedimento via de regra oral; f) total publicidade deste pro- cedimento; g) contraditório e defesa; h) sen- tença de acordo com o livre convencimento motivado; i) instituição, atendendo a crité- rios de segurança jurídica (e social) da coisa julgada; j) possibilidade de impugnar as deci- sões e o duplo grau de jurisdição66.

Vimos que é frequentemente apontada na doutrina a necessi- dade da separação das atividades de acusar e julgar (além da neces- sária observância da iniciativa probatória, publicidade, contraditório, oralidade, igualdade de oportunidades etc.). No entanto, existe po- lêmica quanto à gestão probatória. Este é o traço crucial de distinção de sistemas, de acordo com Coutinho67 e Lopes Júnior68.

64 Ibidem, p. 119. 65 Idem, p. 139. 66 Idem, p. 119. 67 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do direito processual penal brasileiro. In: Separata da Revista ITEC, n. 4, p. 3, jan.-fev.-mar. 2000. 68 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 132-133.

18 19 Badaró, por outro lado, considera que a inércia probatória do juiz, característica histórica do processo acusatório, não é funda- mental. Na evolução do modelo, principalmente em decorrência da publicização do processo, surgiu um espaço de debates, no qual há clara separação de funções entre acusação, defesa e julgador, “a despeito de o juiz poder ser dotado de poderes instrutórios”69. Perguntas realizadas pelo magistrado70, invariavelmente símbolo para a testemunha de imparcialidade, podem produzir efeitos profundos em termos de sugestionabilidade. Por certo, após os questionamentos realizados por acusação e defesa, existe linha hipotética formulada pelo juiz que tentará conso- lida-la através de suas indagações. Tais perguntas, provavelmente de caráter confirmatório, terão efeitos altamente sugestionáveis à testemunha. Principal- mente após ter sido advertida, anteriormente, acerca das possí- veis sanções relativas ao crime de falso testemunho. Trabalhar com a lógica acusatória, portanto, é trabalhar com uma ideia de partes. Separar a hipótese acusatória daquela constrúida mentalmente pelo magistrado, no momento de seus questionamentos, é missão bastante improvável. Ainda que se ar- gumente a possibilidade de exploração do argumento defensivo quando dos questionamentos. A crítica é pontuada, justamente, na dificuldade em se- parar as funções tanto acusatória e quanto de julgamento. Como traz Lopes Júnior:

É, ainda, necessário dar-se conta de que a gestão da prova está vinculada à noção de

69 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 137. 70 Neste sentido o artigo 212 de nosso Código de Processo Penal: “Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida. Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.”

18 19 gestão do fato histórico, e, portanto, deve estar nas mãos das partes. Do contrário, atribuindo-se ao juiz, estamos incorrendo no erro (psicológico) da inquisição de per- mitir-lhe (re)construir a história do crime da forma como lhe aprouver para justificar a decisão já tomada (o já tratado ‘primado das hipóteses sobre os fatos’). Permitir que o juiz seja o gestor do fato histórico é incorrer no mais grave dos erros: aderir ao núcleo imantador do sistema inquisitório. Pior é quando eles, os juízes, sequer se dão conta de quão genial (e perverso, por evidente) é o engenho da inquisição, que lhes faz agir como inquisidores, sem se darem conta! Isso quando não invocam a bondade [...] bom para que e para quem?71.

Alguns autores, tendo noção da inerente incompletude da própria concepção de sistema, acabam por deslocar a ideia acu- satória para materializá-la em um princípio, o “princípio acusató- rio”. Este é considerado como:

71 LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 579. Neste sentido, importante a crítica de Coutinho: “O enunciado da ‘bondade da escolha’ provoca arrepios em qualquer operador do direito que frequenta o foto e convive com as decisões. Afinal, com uma base de sustentação tão débil, é sintomático prevalecer a ‘bondade’ do órgão julgador. O problema é saber, simplesmente, qual é o seu critério, ou seja, o que é a ‘bondade’ para ele. Um nazista tinha por decisão boa ordenar a morte de inocentes; e, neste diapasão, os exemplos multiplicam-se. Em um lugar tão vago, por outro lado, aparecem facilmente os conhecidos ‘justiceiros’, sempre lotados de ‘bondade’, em geral querendo o ‘bem’ dos condenados e, antes, o da sociedade. Em realidade, há aí puro narcisismo; gente lutando contra seus próprios fantasmas. Nada garante, então que ‘a sua bondade’ responda à exigência de legitimidade que deve fluir do interesse da maioria. Neste momento, por elementar, é possível indagar, também aqui, dependendo da hipótese, ‘quem nos salva da bondade dos bons’” (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao ‘verdade, dúvida e certeza’, de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito. In: Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos (2001-2002). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 188).

20 21 uma garantia essencial do processo penal, o qual não existe sem uma acusação formali- zada por um sujeito diverso do que irá jul- gar. De outra banda, o julgador é um terceiro imparcial, impedido de exercer qualquer ati- vidade acusatória, seja antes, durante ou após o processo cognitivo. Esse é um prin- cípio fundante de um modelo, sistema ou forma de processo, cujos fundamentos, ativi- dades e efeitos abarcam os sujeitos, o objeto e toda a atividade processual destes72.

Prado considera que, em função de a norma constitucional (artigo 129, I, da Constituição Federal) assegurar ao Ministério Público o exercício privativo da ação penal pública, também ga- rantindo a todos os acusados o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, além da preservação da presunção de ino- cência e, ainda, respeitando o julgamento por juiz competente e imparcial, todas as características do princípio acusatório, chega- remos à conclusão de que, embora não o diga expressamente, a Constituição da República o adotou73. Contudo, nunca é demais lembrarmos, dado o presente permeado por uma política criminal punitivista74, que: “o imaginário produz a esperança, mas a destrói quando o discurso não encontra eco no real”75.

72 GIACOMOLLI, Nereu José. Atividade do juiz criminal frente a Constituição: deveres e limites em face do princípio acusatório. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Coord.). Sistema penal e Violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 228. Neste sentido ainda: SILVA, Edimar Carmo da. O princípio acusatório e o devido processo legal. Porto Alegre: Núria Fabris, 2010. 73 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 195. 74 Neste sentido: CARVALHO, Salo. Papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo (O exemplo privilegiado da aplicação da pena). 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 75 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O projeto de justiça criminal do novo governo brasileiro. In: BONATO, Gilson (Org.). Processo penal: leituras constitucionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 125.

20 21 Essa possibilidade de produção de provas está taxativamente prevista em nossa legislação76, inclusive na fase do Inquérito Poli- cial, de cunho procedimental. Esta etapa tem cunho meramente informativo e não está vinculada, absolutamente, às garantias constitucionais que mencionamos. Daí o motivo pelo qual se trabalha com a possibilidade de considerar nosso sistema como misto, ideia majoritária entre os autores brasileiros77. Tal ideia também remonta ao nosso atual Código de Pro- cesso Penal, de 1941, e de inspiração notadamente autoritária (cópia do Códice Rocco italiano, de 1930), tendo por base a estrutura inquisitorial78. Assim, Coutinho79 assinala que “todos os sistemas proces- suais penais conhecidos mundo afora são mistos.” Isso simples- mente significa que não temos mais sistemas puros80. É necessá-

76 De acordo com Lopes Júnior: “Nesse contexto, dispositivos que atribuam ao juiz poderes instrutórios, como o famigerado art. 156, incisos I e II, do CPP, externam a adoção do princípio inquisitivo, que funda um sistema inquisitório, pois representam uma quebra da igualdade, do contraditório, da própria estrutura dialética do processo. Como decorrência, fulminam a principal garantia da jurisdição, que é a imparcialidade do julgador. Está desenhado um processo inquisitório” (LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 135). 77 De acordo com Lopes Júnior, a doutrina brasileira, majoritariamente, considera o sistema brasileiro contemporâneo como misto, ou seja, há predomínio inquisitorial na fase pré-processual (Inquérito Policial) e acusatório ao longo do processo. Autores que trabalham com esta concepção, citamos a seguir: NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 104-105; e TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Direito processual penal. 25. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 25. 78 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. O novo processo penal à luz da Constituição (Análise crítica do Projeto de Lei nº 156/2009, do Senado Federal). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 9. 79 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: ______; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. O novo processo penal à luz da Constituição (Análise crítica do Projeto de Lei nº 156/2009, do Senado Federal). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 1. 80 Ver também: ARMENTA DEU, Teresa. Sistemas procesales penales – La justicia penal en Europa y América. Madrid: Marcial Pons, 2012, p. 54.

22 23 rio, portanto, entender que a história não é simplesmente uma consequência natural de fatos de modo a chegarmos a um último ponto de evolução. Os períodos anteriores carregam um legado e se projetam sobre o presente e o futuro. Dizer que o ‘sistema é misto’ é “absolutamente insuficiente, um reducionismo ilusório, até porque não existem mais sistemas puros (são tipos históricos), todos são mistos”81. O foco, a partir deste reconhecimento, deve estar na identificação do princípio informador de cada sistema, para, então, classificá-lo como inqui- sitório ou acusatório82. Mesmo que considerássemos a possibilidade da existência de um sistema misto, não seria possível pensar em um princípio fundante misto83. Esta mistura será, em sua essência, inquisitó- ria ou acusatória, a partir do princípio que informa o núcleo84. Por todos esses motivos, Khaled Júnior considera a possibilidade deste modelo híbrido uma falácia85. Todavia, seria possível trabalharmos com uma ideia de sis- tema? Seria este sistema identificado com qual concepção histó- rica? Estas questões não são de fácil resposta86. Dos autores vinculados a uma tradição garantista de pro- cesso penal, é possível dizer que uma significativa parcela consi- dera o nosso sistema como inquisitorial. Isso porque só é possível haver imparcialidade em processo penal quando o juiz está im- possibilitado de produzir provas.

81 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 116. 82 Ibidem, p. 116. 83 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 134. 84 Ibidem, p. 134. 85 KHALED JR., Salah Hassan. O Sistema Processual Penal Brasileiro - Acusatório, mistou ou inquisitório? Revista Civitas, Porto Alegre, v. 10, n. 2, p. 299, 2010. 86 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. Neste sentido, também: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 10.

22 23 Utilizando esse critério, Lopes Júnior afirma que “o modelo brasileiro é o (neo)inquisitório [...] e o critério definidor de um sistema ou outro seria a separação das funções de acusar e julgar, presente apenas no modelo acusatório”87. Essa posição, contudo, não é pacífica, e Montero Aroca e Ambos possuem posições que podem propiciar interpretações em sentido contrário. Aroca acredita que não existem dois sistemas possíveis de configurar o processo, um inquisitivo e outro acusatório, mas dois sistemas de atuação do Direito Penal por parte dos tribunais, dos quais um não é processual, o inquisitório, e o outro, processual, o acusatório. O sistema inquisitorial corresponde a um momento histórico em que os tribunais impuseram sanções, mas, ainda, não através do processo. O denominado “processo inquisitivo” não foi e, obviamente, não pode ser um verdadeiro processo88. Se este se identifica como um ato de três protagonistas, no qual, ante um terceiro imparcial, comparecem duas partes com pretensões, em pé de igualdade e com pleno exercício do contra- ditório e expõe um conflito para que o magistrado solucione com o direito objetivo, alguns traços que temos indicados como pró- prios do sistema inquisitorial nos levam a crer que as suas próprias características denunciam que este sistema não pode propiciar a existência de um verdadeiro processo. Afirmar em sentido con- trário seria uma contradição performativa89. Ambos explicam que a inquisição foi abandonada com a Revolução Francesa e, apesar do prefixo latino ser o mesmo, o

87 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 128. No mesmo sentido: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. O novo processo penal à Luz da Constituição (Análise crítica do Projeto de Lei n. 156/2009, do Senado Federal). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 1-17; KHALED JR, op. cit., p. 307-308; THUMS, Gilberto. Os sistemas processuais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 264. 88 AROCA, Juan Montero. Principios del proceso penal – una explicación basada en la razón. Valencia: Tirant lo Blanch, 1997, p. 28. 89 Ibidem, p. 29.

24 25 adjetivo “inquisitivo”, ao menos nos dias de hoje, não pode ter o mesmo significado. Se, no presente, temos ainda o emprego desta palavra, ela é equivocada, pois absolutamente incompatível com valores democráticos90. Aroca destaca que os chamados “sistemas processuais pe- nais” são “conceitos do passado”, que hoje não possuem valor algum, servindo unicamente para confundir ou obscurecer a cla- ridade conceitual. Há, pelo contrário, a necessidade de se deixar muito claro que, em determinadas épocas, o Direito Penal não era aplicado exclusivamente pelos tribunais e, em outras, não havia sequer processo. Deve ser proclamada como conquista da civili- zação a garantia jurisdicional, entendida corretamente como a assunção do monopólio do poder punitivo pelos órgãos jurisdicio- nais e a exclusividade no seu exercício91. Tendemos a concordar com Aroca. Em um primeiro mo- mento, efetivamente, a forma de colheita da prova depende de um conjunto de fatores e critérios extremamente relevantes. No entanto, ao serem observadas estas variáveis, perceberemos que a sua efetividade (ou não) depende muito mais de critérios de polí- tica criminal, adotados pelos atores do sistema punitivo92, do que qualquer outro motivo. Se não fosse assim, a Constituição Federal teria produzido a sua (inerente) força normativa93 e, a partir dela, naturalmente, teríamos a necessidade de efetivar um processo penal democrá- tico. Esse conteúdo exige a observância do devido processo penal

90 AMBOS, Kai. Internacional criminal procedure: “adversarial”, “inquisitorial” or mixed?. Internacional Criminal Law Review, v. 3, p. 3-4, 2003. 91 AROCA, op. cit., p. 29-30. 92 Cf. CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 93 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991, p. 25.

24 25 e, realizando analogia com as palavras de Souza94, não pode o texto constitucional ser reduzido a “mero enfeite da vida”. O chamado “processo acusatório”, sim, é o verdadeiro pro- cesso, justamente, porque existe um juiz imparcial e duas partes em oposição entre si. Contudo, não são necessárias todas as suas características para que exista um verdadeiro processo. Algumas dessas variáveis poderiam ser modificadas ou su- primidas, sem que houvesse o desaparecimento do processo. Por exemplo, óbice algum existe quanto ao fato de o juiz ser profissio- nal ou leigo, de o procedimento ser oral ou escrito. Irá, sim, afetar a essência do processo se o juiz for, ao mesmo tempo, acusador, ou que o acusado seja mero objeto do processo. Portanto, ao ser empregada a expressão “processo acusatório”, está se usando um pleonasmo, pois não é possível existir verdadeiro processo que não seja acusatório95. Andrade vai além, afirmando que tanto a doutrina nacio- nal quanto estrangeira emitem conceitos com base naquilo que “nao conhece, a partir de um estudo que nao foi feito sobre do- cumentos que nunca foram lidos”96. Para o autor, não é possível se falar em sistema misto simplesmente porque o inquérito é pro- cedimento. Não sendo processo, não há que se falar em traços de inquisitorialidade. Sobre o sistema processual penal brasileiro, o autor diz o seguinte:

Essa situaçao nos ajuda a identificar uma outra realidade, qual seja, a de que nosso

94 SOUZA, Ricardo Timm de. O nervo exposto. In: GAUER, Ruth M. Chittó (Org.). Criminologia e Sistemas penais contemporâneos II. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010, p. 114. 95 AROCA, Juan Montero. Principios del proceso penal – Una explicación basada en la razón. Valencia: Tirant lo Blanch, 1997, p. 29. 96 ANDRADE, Mauro Fonseca. O sistema acusatório proposto no Projeto de novo Código de Processo Penal. Disponível em: < http://www.paginasdeprocessopenal.com.br/ attachments/article/12/O%20Sistema%20Acusatorio%20no%20Projeto%20de%20 Novo%20CPP.pdf >. Acesso em: 01 ago. 2013.

26 27 pais nao segue um sistema de processo penal em especifico. Basta ver que a nossa legislação adjetiva – seja o Codigo de Pro- cesso Penal, sejam leis especiais – permite a existência de processos representativos de, ao menos, dois sistemas, sendo o acusatorio como regra, e o inquisitivo ou misto em carater excepcional, decorrentes, estes ultimos, da presença daquele juiz-investi- gador. Isso faz com que, na verdade, o Bra- sil tenha somente modelos de processo, ao inves de um sistema de processo, graças a absoluta ausência de unidade sistêmica (tambem chamada de principium unitatis), que nada mais e do que a consolidaçao do processo penal de um determinado pais, em torno de um sistema previamente eleito97.

Thums aponta que, sem um novo Código de Processo Penal, inspirado pelas conquistas da Constituição Federal, não será pos- sível falar em sistema acusatório no Brasil98. Efetivamente, o Pro- jeto nº. 156/09-PLS adota de forma expressa o princípio acusató- rio. Ainda assim, os próprios membros da comissão consideram que se agregarão, mesmo que em menor escala, elementos prove- nientes do sistema inquisitório99. Em verdade, independentemente do sistema com o qual se trabalhe, é necessário estabelecer o critério da democraticidade como o seu principal norte, ou seja, imutável frente a reformas

97 ANDRADE, Mauro Fonseca. O sistema acusatório proposto no Projeto de novo Código de Processo Penal. Disponível em: < http://www.paginasdeprocessopenal.com.br/ attachments/article/12/O%20Sistema%20Acusatorio%20no%20Projeto%20de%20 Novo%20CPP.pdf >. Acesso em: 01 ago. 2013. 98 THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 264. 99 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: ______; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. O novo processo penal à luz da Constituição (Análise crítica do Projeto de Lei nº 156/2009, do Senado Federal). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 13.

26 27 processuais, devendo ser sempre o conteúdo atribuído à formação do processo. Este não pode ser outro que não o democrático. É o que nos traz Martins:

Em bom rigor, o sistema processual de ins- piração democrático-constitucional só pode conceber um e um só ‘princípio uni- ficador’: a democraticidade; tal como só pode conceber um e um só modelo sistê- mico: o modelo democrático. Dizer ‘demo- crático’ é dizer o contrário de ‘inquisitivo’, é dizer o contrário de ‘misto’ e é dizer mais do que ‘acusatório’. Inquisitivo, o sistema não pode legalmente ser; misto também não se vê como (porque se é misto haverá uma aparte, pelo menos, que fere a legali- dade); acusatório, pode ser, porque se trata de um modelo abarcável pelo arco de legi- timidade. Mas só o poderá ser à condição: a de que esse modelo acusatório se demons- tre capaz de protagonizar essa adequação. Mais do que acusatório, o modelo tem que ser democrático100.

No terceiro capítulo, iremos abordar justamente a(s) concepção(ões) de política criminal no Brasil (em diálogo per- manente com as Criminologias), de forma a permitir melhor en- tendimento do fenômeno probatório e seu substrato. Fenômenos como o da cifra oculta estão absolutamente fora da discussão dos sistemas penais e podem, de acordo com as concepções político- -criminal do ator, ser interpretadas de múltiplas formas. O chamado “quadro mental paranoico” poderá influenciar, em uma lógica inquisitorial (acentuada por nosso sistema proces- sual penal que trabalha por amostragem), a busca pela prova do

100 MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito – The Brazilian Lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 93.

28 29 magistrado. Pelo contrário, o posicionamento democrático-acu- satório irá tratar o fenômeno da cifra oculta como um dado im- portante da realidade, mas que não pode influenciar no momento do julgamento e na tentativa de provar os fatos.

1.1.2 Formas de Obtenção da(s) Verdade(s) Quando se trabalha com prova, necessitamos trabalhar com concepções de verdade. Como vimos, a concepção sistemática de um processo penal, no qual as garantias, no geral, cedem a pressões das mais variadas ordens, acaba por se tornar pratica- mente estéril. Transborda a facticidade do real. Ainda assim, res- tará saber: de qual forma a pretensa (re)construção do processo se dará? Qual é o seu objetivo e o seu conteúdo? Usualmente, costuma-se trabalhar com a vinculação entre a lógica inquisitorial/punitivista e a “verdade real”101. A sua obten- ção poderia justificar a utilização de métodos de tortura, visando à confissão na época da rainha das provas. No entanto, a partir do século XVI, refere Binder, conso- lida-se um novo conjunto de processos (chamado de “Moder- nidade”), e a prática judicial inquisitória na busca pela verdade é alterada. Conforme o autor, “o abandono das velhas práticas

101 “A estrutura do processo inquisitório foi habilmente construída a partir de um conjunto de instrumentos e conceitos (falaciosos, é claro), especialmente o de “verdade real ou absoluta”. Na busca dessa tal “verdade real”, transforma-se a prisão cautelar em regra geral, pois o inquisidor precisa dispor do corpo do herege. De posse dele, para procurar a verdade real, pode lançar mão da tortura, que, se for “bem” utilizada, conduzirá à confissão. Uma vez obtida a confissão, o inquisidor não necessita de mais nada, pois a confissão é a rainha das provas (sistema de hierarquia de provas). Sem dúvida, tudo se encaixa para bem servir ao sistema” (PRADO, Geraldo. Sistema acusatório. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 126). A verdade “real” ainda tem sido apontada pela doutrina processual penal brasileira como objetivo do processo penal. Acerca disto sugere-se a leitura da revisão encontrada em: POZZEBON, Fabrício Dreyer de Ávila. Reflexos da crise do conhecimento moderno na jurisdição : fundamentos da motivação compartilhada no processo penal. Tese (Doutorado em Direito) - Programade Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005, pp. 188-198.

28 29 judiciais produz um salto qualitativo e quantitativo que terá im- pacto até nossos dias”102. O referido abandono de sistemas, como das “ordálias”, servirá a uma “tecnificação” do processo penal, que procura legitimar as suas decisões com base na verdade trazida pela prova. Diz Binder que:

Desde então o procedimento judicial não abandonou a idéia de verdade como um de seus eixos centrais de estruturação, mesmo que esta idéia de verdade tenha tido – e tenha ainda – muitos significados e se vin- cule com diversos problemas, muitos dos quais continuem a pressionar todo o pro- cesso penal. Por isso a verdade serviu tanto para justificar os piores excessos do poder penal (a tortura sistemática), como para construir os limites que buscam preveni- -los. Decorre daí que o sistema de garantias tenha um vínculo tão profundo com a idéia de verdade nas práticas judiciais103.

Naquela época, em pleno triunfo do racionalismo car- tesiano, Giambattista Vico realizou feroz crítica ao cogito ergo sum (“penso, logo existo”). Para ele, dirá Gauer104, a filosofia deveria buscar compreender os produtos culturais humanos, não devendo isolar-se em abstrações excessivas. A pretensão racionalista de submeter o conhecimento ao método matemá-

102 BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais – elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 46-47. 103 BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais – elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 47. 104 GAUER, Ruth M. Chittó. O reino da estupidez e o reino da razão. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 38-39.

30 31 tico é desprovida de sentido, já que existem produtos humanos fundamentais, como a poesia e a história, que não carecem de demonstração lógica, pois repousam no verossímil. Um aspecto essencial dessa posição é o caráter problemá- tico, assumido pela ideia de verdade, isto é, a perda de seu atri- buto de certeza. A verdade e o fato ou o verdadeiro e o feito se equivalem, isto é, a condição de ser capaz verdadeiramente de conhecer qualquer coisa, de compreendê-la como oposta à sua simples percepção é que o próprio criador a tenha criado. O cogito é apenas a consciência do ser e não sua ciência. Dessa forma, o homem não conhece a causa do próprio ser, pois ele não se cria a si mesmo. Por outro lado, a ideia de que as proposições mate- máticas, enquanto autoevidência de ideias claras e distintas, são fundamentos da certeza. Isto é inadmissível, para Vico, uma vez que as verdades matemáticas fazem parte de um sistema produ- zido pelo próprio homem105. A ciência moderna criou premissas e métodos vinculados a uma “verdade totalizante”106. O conhecimento, considerado como absoluto, é universal e eterno. As premissas que embasaram essa concepção de ciência e que serviram como pressupostos para o Direito estão estruturadas na experimentação, objetividade, neutralidade e generalização107. Essas premissas se complementam e demarcam o conheci- mento científico. A experimentação trouxe a primazia da técnica, e a objetividade sustentou o discurso da neutralidade do cien- tista, assim como a do juiz. Não é por acaso que somos, via de regra, advertidos de que decisões sensatas provêm de uma fria reflexão, ou seja: emoções e razão jamais se misturam. A perspectiva largamente

105 GAUER, Ruth M. Chittó. O reino da estupidez e o reino da razão. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 39. 106 GAUER, Ruth Maria Chittó. A ilusão totalizadora e a violência da fragmentação. In: ______(Coord.). Sistema penal e violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 9. 107 GAUER, Ruth Maria Chittó. A ilusão totalizadora e a violência da fragmentação. In: ______(Coord.). Sistema penal e violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 10.

30 31 difundida era a de que existiam sistemas neurológicos diferen- tes para a razão e a emoção108. Critérios, para se obter uma verdade única, são permanen- temente limitados. Apesar de a doutrina jurídica ainda abordar esta possibilidade nas ciências sociais, a falácia da verdade já era apontada, como explica Gauer:

A impossibilidade de uma verdade única, de uma identificação totalizante, associada a uma velocidade, que, segundo Virilio (1973), é a velhice do mundo, matam o discurso polí- tico. Nesse quadro, o consensual fica sendo o totalitarismo, os fundamentalismos, enfim, todos os determinismo totalitários próprios de tempos de descrença e de desconstrução de verdades limpas, ordenadas, protegidas dos perigos, enquadradas na limpeza purifica- dora que ordena o social com a possibilidade de termos a ditadura do modelo revelador da ordem dos Estados Nacionais, tais como pen- sados desde o século XVIII109.

Ainda que tenhamos evoluído, principalmente após mo- vimentos como a Revolução Francesa, para a construção de um processo de oportunidades às partes, o problema principal, o da reconstrução, perdurava. Como resposta, “subsistiram as velhas soluções”110.

108 GAUER, Ruth Maria Chittó. A ilusão totalizadora e a violência da fragmentação. In: ______(Coord.). Sistema penal e violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 10. 109 GAUER, Ruth M. Chittó. Da diferença perigosa ao perigo da igualdade: reflexões em torno do paradoxo moderno. Revista Civitas, Porto Alegre, v. 5, n. 2, p. 401, 2005. 110 BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais – elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 51-52. Em mais detalhes, afirma que: o imputado continuou sendo considerado um objeto de indagação, do qual se extrairia a verdade que estava ‘em sua cabeça ou em seu espírito’ e o processo se preocupa, antes de tudo, em provocar a confissão, através de diferentes meios, inclusive mediante a tortura.

32 33 No processo penal, a crença na ideia de que o controle da subjetividade, através da fundamentação judicial e de um juiz im- parcial, seria o caminho para encontrar a verdade e é ainda tão forte que só pode ser explicada pelo mito111. Foi sob essa crença que se construiu o mito112 do juiz imparcial e da verdade processual, herdeiros de uma racionalidade (ainda) estritamente cartesiana. A complexidade do mundo contemporâneo exige do/a juiz/a uma nova postura diante do processo, uma visão ampliada, sem se preocupar com respostas acabadas113. Não se pode, por conseguinte, acreditar em Verdade, mas somente, na verdade constituída no tempo e espaço de um processo em contraditório, porque a era da Verdade Substância ficou no século passado, embora, tal qual “Jason”, ressurja na cabeça de um inquisidor qualquer de todos os dias114. No início do século XX, Carnelutti já apontava para a di- ficuldade da prova da “verdade” no campo jurídico. A verdade,

111 POZZEBON, Fabrício Dreyer de Ávila. Imparcialidade, verdade e certeza no processo penal: o mito da motivação judicial objetiva. In: FAYET JUNIOR, Ney; MAYA, André (Org.). Ciências penais e sociedade complexa. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008, p. 215. 112 “Falar em verdade real é falar em algo absolutamente impossível de ser alcançado, a começar pela inexistência de verdades absolutas. A própria ciência encarregou-se de demonstrar isso. Ademais, não há que se esquecer que o crime é um fato histórico, e a reconstrução de um fato histórico (para isso servem a prova e o próprio processo) é sempre minimalista e imperfeita. Não se trata de construir, mas, de reconstruir” (LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 202). Além disso: “Em suma, a verdade real é impossível de ser obtida. Não só porque a verdade é excessiva, senão porque constitui um gravíssimo erro falar em ‘real’, quando estamos diante de um fato passado, histórico. É o absurdo de equiparar o real ao imaginário. O real só existe no presente. O crime é um fato passado, reconstruído no presente, logo, no campo da memória, do imaginário. A única coisa que ele não possui é um dado de realidade” (LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 568). 113 POZZEBON, Fabrício Dreyer de Ávila. A imparcialidade do juiz no processo penal brasileiro. Porto Alegre: Revista da Ajuris, v. 34, n. 108, p. 170, 2007. 114 MORAIS DA ROSA, Alexandre. O depoimento sem dano e o advogado do diabo – A violência ‘Branda’ e o ‘Quadro Mental Paranóico’ (Cordero) no processo penal. In: POTTER, Luciane (Org.). Depoimento sem dano – Uma política criminal de redução de danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 159.

32 33 segundo ele, é somente uma: a verdade formal, que não é a ver- dade, ou seja, jamais pode ser alcançada pelo homem115. Coutinho, ao reler o clássico italiano, diz que já era, em 1925, demonstrada a esterilidade da discussão a respeito de viger a verdade material ou a verdade formal, olhando a diferença que se insistia – e alguns ainda insistem – em fazer entre elas no pro- cesso penal e civil116. Carnelutti propõe a substituição do termo “verdade” por “cer- teza”. A certeza implicaria uma escolha, o que afastaria, em tese, o fardo do magistrado pela busca do fato em si mesmo. Porém, não há que se olvidar que, no intelecto, não há qualquer certeza, porque é fustigado pelas pulsões e estas jamais dão qualquer folga117. Lopes Júnior afirma que não representa nenhum avanço, em termos de rigor científico, a verdade processual ou a opção de Car- nelutti pela ‘certeza jurídica’. A questão está na pretensão de ver- dade e o que isto representa em termos de estrutura do processo118. A certeza, assim, como já nos alertara Coutinho, não irá auxiliar de forma determinante na amenização do problema.

115 CARNELUTTI, Francesco. Veritá, dubbio, certezza. Rivista di Diritto Processuale, n. 1, p. 4-9, 1965. 116 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “verdade, dúvida e certeza”, de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito. In: Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 177. 117 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “verdade, dúvida e certeza”, de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito. In: Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 183. 118 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 565. No entanto, é importante afirmar que este autor, incialmente, trabalhava também com a concepção de uma verdade por aproximação, como é possível notar: Aury pensava antes em Verdade aproximada: “A noção de ‘segurança’ no processo (e no Direito) deve ser repensada, partindo-se da premissa de que ela está na forma do instrumento jurídico e que, no processo penal, adquire contornos de limitação ao poder punitivo estatal e emancipador do débil submetido ao processo. O processo, enquanto ritual de reconstrução do fato histórico, é única maneira de obter uma versão aproximada do que ocorreu. Nunca será o fato, mas apenas uma aproximação ritualizada do fato” (LOPES JUNIOR, Aury. Processo penal, tempo e risco: quando a urgência atropela as garantias. In: BONATO, Gilson (Org.). Processo penal: leituras constitucionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 33).

34 35 Adverte que o erro do processualista foi o de pensar que a fór- mula liberadora do juiz, quando declarada, expõe a sua confissão quanto à “incapacidade de superar a Dúvida”, deixando, conse- quentemente, o imputado em tal condição “para toda a vida”119. Nos dizeres de Ferrajoli: “se uma justiça penal integralmente ‘com verdade’ constitui uma utopia, uma justiça penal completa- mente ‘sem verdade’, equivale a um sistema de arbitrariedade”120. É impossível negar por completo a verdade121. É um “erro” negar a verdade no processo penal, pois seria pretender construir uma “verdade que é falsa na sua essência”122. Entretanto, de nada servirá “lutar pela efetivação do modelo acusatório e a máxima eficácia do sistema de garantias da Cons- tituição, quando tudo isso esbarra na atuação substancialista de quem busca a inalcançável ‘verdade real’”123. A verdade processual não pretende ser, como a “real”, a ver- dade124. É condicionada em si mesma pelo respeito ao sistema de garantias e não obtida mediante indagações inquisitivas “alheias ao objeto processual”125. Lopes Júnior traz quatro sentidos derivados da redução/limi- tação da verdade “real” para a “formal”. Essa limitação se mani- festa em quatro sentidos:

119 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “verdade, dúvida e certeza”, de Francesco Carnelutti, para os operadores do direito. In: Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 191. 120 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. 9. ed. Madrid: Trotta, 2009, p. 150. 121 Neste sentido, questionamento realizado pelo Professor Ricardo Timm de Souza, em aula do Mestrado em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em 2005/I: “se não afirmarmos que não existe verdade, cairíamos em uma contradição performativa, qual seja: ao menos uma verdade existe, a de que não existe verdade”. 122 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 577. 123 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 565. 124 FERRAJOLI, op. cit., p. 149. 125 LOPES JUNIOR, op. cit., p. 567.

34 35 I – a tese acusatória deve estar formulada, segundo e conforme a norma;

II – a acusação deve estar corroborada pela prova colhida através de técnicas normati- vamente preestabelecidas;

III – deve ser sempre uma verdade passível de prova e oposição;

IV – a dúvida, a falta de acusação ou de provas ritualmente formadas impõem a prevalência da presunção de inocência e atribuição de falsidade formal ou processual às hipóteses acusatórias126.

É um ato de convencimento, formado em contraditório e a partir do respeito às regras do devido processo. Se isso coincidir com a verdade, muito bem. Importa é considerar que a verdade é contingencial e não, fundante. O juiz, na sentença, constrói – pela via do contraditório – a ‘sua’ história do delito, elegendo os signifi- cados que lhe parecem válidos, dando uma demonstração inequí- voca de crença. O resultado final nem sempre é (e não precisa ser) a verdade, mas, sim, “o resultado do seu convencimento – cons- truído nos limites do contraditório e do devido processo penal”127. As limitações do ser humano na reconstrução de um fato histórico tornam o processo importante e estéril na busca de ver- dade. Por um lado, os litigantes apresentam as suas versões, sem- pre antagônicas, baseadas em provas; de outro lado, o juiz, que deve apreciar as versões e optar pela que mais lhe convence128. Essa aproximação, muitas vezes difícil, demonstra a fragilidade da cognição, como parte da busca da verdade. É irrelevante que o réu tenha confessado, porque pode ter sido induzido a fazê-lo ou

126 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 567. 127 Ibidem, p. 567. 128 THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 195.

36 37 sofrer de algum distúrbio psíquico, decorrente de trauma da tortura policial ou, ainda, manobra para acobertar o verdadeiro responsável. A mesma situação pode apresentar-se quanto às testemunhas, que têm os mais variados motivos para não revelar o que viram. Assim, por mais cuidadoso que seja o magistrado, o elemento de prova, de- cisivo para o veredito, pode conter grave equívoco129. A questão relevante será verificar o seu conteúdo e o seu processo de construção. Simplesmente deslocar a verdade “real” para a “formal” não diz tanto para o processo penal, já que ainda existe a chamada “vontade de verdade130”. Veremos que rele- vante para o processo será, basicamente, trabalhar com o critério da democraticidade131, e este deve ser o balizador dos objetivos do devido processo penal. Considerar a possibilidade de um critério único para con- ceituar-se a verdade é inviável, porque dependente do ponto de vista sob o qual deva ser encarada a relação entre o sujeito que conhece e o objeto do conhecimento132. Martins trabalha com a noção de evidência para explicar os cuidados ao se tratar da verdade. Para o autor, é evidente “[...] o que dispensa prova. Simulacro de autorreferenciali- dade, pretensão de uma justificação centrada em si mesmo, a evidência corresponde a uma satisfação demasiado rápida perante indicadores de mera plausibilidade”133. A evidência

129 THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 195. 130 Considerando o processo como uma cadeia de procedimentos, que levará a um determinado resultado, qual seja, a sentença, pode-se afirmar que ele constitui uma tentativa de descrição, pautada por uma vontade de verdade (FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2003). 131 MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito – The Brazilian Lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 94. 132 BAPTISTA, Francisco das Neves. O mito da verdade real na dogmática do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 203. 133 MARTINS, Rui Cunha. Estado de Direito, evidência e processo: incompatibilidades electivas. Sistema Penal & Violência - Revista Eletrônica da Faculdade de Direito, Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 83, jan./jun. 2010.

36 37 instaura um “desamor do contraditório134” e “nunca desapare- ceu completamente do campo do direito [...]”135. A evidência envolve o conhecimento, sendo que a filosofia tradicional a entende como sendo o que é verdadeiro, absoluta- mente verdadeiro, que independe de prova. Para Gil e Martins, ela é “o modo originário de doação do sentido”, que não contem- pla uma verdade intrínseca136. Carnelutti sugere que a raiz do erro está quando um fato se desenrola diante da pessoa e nos parece que não há nada para se provar. Esta é a noção de evidência, que exclui a prova, sendo o juízo tão rápido e fácil que escapa à atenção137. Ao contrário da prova, a evidência não remete “para dispo- sitivos exteriores de avaliação, porque ela constitui um desdobra- mento do sentido da indicação da sua própria verdade, pondo-se por si, quer dizer, alucinado”138. A prova deverá corrigir o caráter alucinatório da evidência, ou seja: “retirar a verdade do albergue da evidência, sujeitando-a ao exame do processo”139. Ferrajoli diz que, ao ser perseguida fora das regras e con- troles e, sobretudo, de uma exata predeterminação empírica das hipóteses de indagação, degenera o juízo de valor, am- plamente arbitrário de fato, assim como “o cognoscitivismo ético sobre o qual se embasa o substancialismo penal e resulta

134 Ibidem, p. 83. 135 MARTINS, op. cit., p. 6. 136 Em relação à evidência, mais problemas se apresentam. Neste sentido: GIL, Fernando; MARTINS, Rui Cunha. Modos da verdade. Revista de História das Ideias, Coimbra: Universidade de Coimbra v. 23, p. 15-40, 2002. 137 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Campinas: Bookseller, 2004, v. 1, p. 281. 138 MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 5. 139 Ibidem, p. 5. Também conferir: GIL, Fernando; MARTINS, Rui Cunha. Modos da verdade. Revista de História das Ideias, Coimbra: Universidade de Coimbra, v. 23, p. 15-40, 2002.

38 39 inevitavelmente solidário com uma concepção autoritária e ir- racionalista do processo penal140.” O protagonismo do juiz, afirma Khaled Júnior, ao partir em busca da verdade, é por excelência sujeito à contaminação pela evidência.

A outridade do passado só pode ser supe- rada de forma parcial, através da correção do caráter alucinatório da evidência, o que permite, com alguma margem de segu- rança, assegurar-se da condição de rastro analógico do passado de um determinado elemento introduzido no processo141.

Dentro do sistema penal, é possível pensar na evidência como com aquilo a ser trabalhado, basicamente, na investigação preliminar. Por conseguinte, teremos dificuldades quando esta evidência transcender a este âmbito. A verdade do Inquérito Policial é, pois, aquela análoga à evi- dência. A evidência aqui pode ser considerada como aquela que se satisfaz com a verossimilhança, ou seja, a prova fraca. Ainda que não se fale mais hoje em prova tarifada:

[...] a verossimilhança que, fora da lógica e da matemática, é o regime normal da prova, não é em si um critério satisfatório, por mais convincente que seja. A verossimilhança não remove a eventualidade de excepções e de contraexemplos – e as crenças racionais podem relevar-se errôneas: os erros judiciá- rios assentam sempre em verossimilhanças e

140 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – Teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 37. 141 KHALED JUNIOR, Salah Hassan. A produçãoanalógica da verdade no processo penal: desvelando a reconstruçao narrativa dos rastros da passeidade. Tese (Doutorado em Ciências Criminais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, p. 292.

38 39 crenças racionais. Portanto, a prova tem de ser forte. Mas a prova forte revela-se de ime- diato demasiado forte – e, nesse momento, se essa demasia se dá nos termos de uma ostensão de feição patológica, ela resvala sem escape para o terreno da evidência, a qual, veja-se a ironia, tende a dispensar a prova. Paradoxo inescapável, ainda assim. É que a vertigem alucinatória da prova não decorre de uma momentânea apetência des- viante, pretendendo-se antes com uma das suas vertentes constitutivas mais nucleares, ainda que das menos ditas. Chamar-lhe-ei a percepção do destinatário. Porque provar é em boa medida convencer142.

Logo, o objetivo de provar, convencer, levará a uma decisão judicial proferida desde uma perspectiva, de um lugar, e “aparen- temente é de um espectador que pode, mas não interfere, dado que é colocado na condição de Deus”143. Mesmo que se coloque na perspectiva dos demais atores do sistema penal, o embrica- mento de significantes se dará de “um ponto de vista onipresente, onisciente e onipotente, atributos divinos”144. Uma decisão que assuma ser possível chegar à verdade, toda a verdade, será paranoica por definição, eis que “ocupa imagina- riamente o saber total, de todos os fatos, corações e mentes [...], a Tropa de Elite dos Céus”145.

142 MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito – The Brazilian Lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 88. 143 ROSA, Alexandre Morais da. Quando se fala de juiz no novo CPP, de que juiz se fala? In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandineti Castanho de (Orgs.). O novo processo penal a luz da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 126. 144 Ibidem, p. 126. 145 Idem, p. 126.

40 41 A verdade sempre será uma questão de lugar, sendo que a posição mais fecunda será aquela que vai para além da verdade como adequação, a que envolve uma notória vontade de verdade, a formal. É necessário, no entanto, resistir à ideia do “paradigma da verdade exilada”146, uma verdade “expulsa do sistema”147. Trabalhar com a verdade, enquanto questão relativizável, de acordo com os referenciais dos intérpretes e participantes do caso penal, “traz subjacente a ideia de uma condição processual do verdadeiro”148. Fala-se de um sistema no qual a verdade é sim- plesmente uma das partes, sendo que não é possível em uma ver- dade identificável. Há um “dispositivo complexo, configurador de geometria de variáveis, a partir da articulação dos seus vários elementos constitutivos”149. A verdade processual se dará a partir do “embricamento do manancial de significantes arremessados no processo como pre- tensões de validade intersubjetivas”150. Essas pretensões, em arti- culação com o inconsciente do juiz, resultarão em uma sentença, que jamais traduz a totalizante verdade real151. Portanto:

A ‘verdade processual’, pois, não é espelho da realidade e a atividade recognitiva avi- vada no Processo Penal é um mecanismo de ‘bricolage singular’, entendido, como em francês, como fazer o possível, mesmo que o resultado não seja perfeito. E nunca o é, por impossível. A dita ‘verdade processual’

146 MARTINS, op. cit., p. 88. 147 Ibidem, p. 88. 148 MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito – The Brazilian Lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 88. 149 MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito – The Brazilian Lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 88. 150 MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão no processo penal como Bricolage de significantes. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004, p. 369. 151 Ibidem, p. 370.

40 41 trata de outra coisa, possui estrutura de ficção. E como o ‘um-juiz’ precisa dar uma resposta, acertar os fatos, com os instru- mentos que se lhe apresentam, vertido ine- xoravelmente na e pela linguagem, despro- vido da verdade verdadeira, restam opções (in)conscientemente éticas. Uma instrução processual, por seus significantes, sempre autoriza diversas decisões. É do encadea- mento de significantes, ou seja, da forma como serão dispostos, que se poderá veri- ficar a legitimidade ética de uma decisão152.

Dessa forma, a verdade irá emergir de tal confluência de significantes, fatalidade que, por vocação, os sistemas processuais “vulneráveis à sedução da evidência se afadigam a escamotear”153. Para evitar a sedução da evidência, uma estrutura “ritualizada de contenção do poder punitivo e correção do caráter alucinatório da evidência [...]”154. Para transcender a esta verdade em si mesma, o valor da presunção de inocência deve ser estruturante e fun- dador de um processo penal constitucional, possibilitando, assim, o rompimento de paradigmas contrários à democraticidade, cujo núcleo fundante está no mito da busca da verdade155. Buscando seu convencimento, o juiz, de acordo com os autos, deve ter a percepção da condição humana do outro sob julgamento, do seu contexto e da sua condição social, para não

152 Idem, p. 372. 153 MARTINS, op. cit., p. 88. 154 KHALED JUNIOR, Salah Hassan. A produção analógica da verdade no processo penal: desvelando a reconstrução narrativa dos rastros da passeidade. Tese (Doutorado em Ciências Criminais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, p. 293. 155 KHALED JUNIOR, Salah Hassan. A produção analógica da verdade no processo penal: desvelando a reconstrução narrativa dos rastros da passeidade. Tese (Doutorado em Ciências Criminais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, p. 475.

42 43 ilustrar a sua decisão com as verdades do senso comum, verdades (via de regra) inconciliáveis à necessidade do respeito à dignidade da pessoa humana156, cujo ato está sob julgamento. O persistente problema da verdade no processo penal ca- rece, então, de um deslocamento de perspectiva. Enquanto o debate permanecer no entorno das mesmas regras que outrora conduziram à consagração do ‘verdadeiro’, como eixo central do sistema processual, quanto ao caminho para reconstruir o fato, a possibilidade de reconsiderar o problema será parca157. Um sistema processual de inspiração democrático-consti- tucional “só pode conceber um e um só princípio unificador: a democraticidade”158. Falar em algo democrático é dizer o contrá- rio de inquisitivo, é dizer o contrário de misto e é dizer mais do que acusatório. Ou seja:

Inquisitivo, o sistema não pode legalmente ser; misto também não se vê como (porque se é misto haverá uma parte, pelo menos, que fere a legalidade); acusatório, pode ser, porque se trata de um modelo abarcável pelo arco de legitimidade. Mas só o poderá ser à condição: a de que esse modelo acu- satório se demonstre capaz de protagonizar

156 Sarlet irá dizer que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição dúplice esta que também aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional da dignidade. Atua como elemento fundante e informador dos direitos e garantias fundamentais (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 47). Ainda, Giacomolli aponta que o respeito à dignidade implica uma necessária negação da chamada política criminal do “inimigo”, “cuja concepção totalitária sepulta a dignidade da pessoa humana (GIACOMOLLI, Nereu José. Resgate necessário da humanização do processo penal contemporâneo. In: WUNDERLICH, Alexandre (Coord.). Política criminal contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 331). 157 MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito – The Brazilian Lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 81. 158 Ibidem, p. 93.

42 43 essa adequação. Mais do que acusatório, o modelo tem que ser democrático159.

Concordamos com Martins160, ao sugerir que a verdade é sempre questão de lugar. Vai não somente para além da verdade como adequação, mas também resiste, a fim de evitemos verda- des expulsas do sistema. No entanto, será necessário termos cui- dado, para evitar a associação de experiências inquisitoriais, im- pondo traumas compreensíveis entorno do “excessivo da verdade no tecido processual penal”161. Apesar das preocupações existentes acerca do problema da “verdade” no processo penal (e isto, com perdão da repetição, fi- cará mais claro ao longo de nossa discussão no terceiro capítulo), para além do conteúdo da verdade e dos seus limites, a democratici- dade irá depender, necessariamente, dos modelos e das concepções político-criminais dos atores do sistema punitivo, pois a dogmática jurídica “não fornece instrumentos suficientes para minimizar o abismo existente entre normatividade e realidade social”162. Aqui deixamos bastante evidente que não se trata apenas de avaliarmos as atuações do órgão acusatório e da magistra- tura, mas, necessariamente, de todos os que terão participação ativa na (re)construção do fato passado. Portanto, processos que gerem falsas memórias não dependerão apenas de quem tem a função de acusar e a quem julga, mas também, daqueles

159 MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito – The Brazilian Lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 93. 160 Ibidem, p. 87. 161 MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito – The Brazilian Lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 88. 162 CARVALHO, Salo de. As presunções no direito processual penal (estudo preliminar do ‘estado de flagrância na legislação brasileira. In: BONATO, Gilson (Org.). Processo penal: leituras constitucionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 201.

44 45 defensores que, em contraditório, lançarão mão das melhores estratégias163 para evitar distorções. Observamos, de modo geral, uma confiança demasiada na norma, que pressupõe a alteração das regras do jogo ou, melhor dizendo, a adequação destas regras aos mandamentos constitu- cionais. A situação, no entanto, é muito mais complexa. Os problemas da avaliação da prova penal, especialmente daquelas onde existem margens maiores a “contaminações”, não são somente de ordem jurídica e interpretativa. Esta questão irá desaguar nas revoltas correntezas do senso comum punitivo, por conseguinte parece muito mais estar em um âmbito cultural do que em outro espaço de atuação. Somam-se a isso os problemas que advêm de tratarmos e/ou resolvermos a questão da gestão da prova apenas pela avaliação dos sistemas processuais penais. Montero Aroca164 ressalta a (des)necessidade de estudarmos estes sistemas e tendemos a concordar com as suas conclusões. O foco deve voltar-se, basicamente, para a interlocução democrá- tica ao longo de todo o processo (e procedimento) penal. Apenas desta forma será possível iniciarmos, ainda que timidamente, uma desconstrução do nefasto paradigma punitivista, que criminaliza “os de sempre”, infla nossos presídios, em um sistema que se au- tofagocita e (re)produz injustiças de forma indelével. Para tratarmos da testemunha, é indispensável analisarmos os seus limites e as possibilidades na norma brasileira. É o que fa- remos agora para, após, realizarmos a leitura interdisciplinar com apoio na psicologia do testemunho em nosso segundo capítulo e, a seguir, tentarmos demonstrar os efeitos da sua (má) utilização nos capítulos seguintes.

163 Neste sentido: MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal – Conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. 164 AROCA, Juan Montero. Principios del proceso penal – Una explicación basada en la razón. Valencia: Tirant lo Blanch, 1997, p. 29.

44 45 1.2 A Prova Testemunhal e a sua Utiliza- ção no Processo Penal Brasileiro: Possibili- dades no Procedimento e no Processo

Um dos encargos do processo penal está justamente em identificar se o imputado é inocente ou culpado165. Para isto, nos utilizaremos de provas que sirvem para voltar atrás, reconstruir a história. E, quando se tenta caminhar neste sentido, nunca é de- mais lembrar que “infelizmente, a justiça humana está feita de tal maneira que não somente se faz sofrer os homens porque são cul- pados, senão também para saber se são culpados ou inocentes”166. É preciso levar em consideração que, tendo a verdade como meta de indagação, não será necessário regime probatório, eis que, para descobrir a Verdade, não precisamos de regras processuais167. Aqui nos parece estar a razão do embricamento entre a(s) vontade(s) de verdade e de sistema processuais com a prova. Ao adotar a democraticidade como critério, como fundamento para além de um modelo acusatório, cuja efetividade pode sempre ser discutível, será necessário definirmos regras. Ou seja: “as regras

165 CARNELUTTI, Francesco. Misérias do processo penal. São Paulo: Pilares, 2006, p. 61. 166 CARNELUTTI, Francesco. Misérias do processo penal. São Paulo: Pilares, 2006, p. 66. O problema da prova testemunhal era percebido inclusive, por autores mais conservadores, como Malatesta, que, apesar de considerar ser possível perceber quando a testemunha está falando a verdade ou mentindo, já percebia algumas das limitações a serem ponderadas neste trabalho, como se lê do trecho a seguir: “[...] há exterioridades indiretamente reveladoras do espírito, mesmo na pessoa do depoente: é o complexo daqueles indícios que emanam do conteúdo pessoal da testemunha e aumentam ou diminuem sua credibilidade. A segurança ou a excitação de quem depõe, a calma ou a perturbação de seu semblante, a sua desenvoltura como de quem quer dizer a verdade, o seu embaraço como de quem quer mentir, um só gesto, um só olhar, por vezes, podem revelar a veracidade ou a mentira da testemunha. Eis mil outras exterioridades que devem também ser consideradas nos testemunhos, para bem avaliá-los” (MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. 3. ed. Campinas: Bookseller, 2004, p. 360). 167 BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais – elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 61.

46 47 de prova são limites à busca da verdade e como tal desempenham exclusivamente uma função de garantia, ou seja, protegem o ci- dadão do eventual abuso de poder na coleta de informação”168. O primeiro nível dessa limitação é constituído pela própria existência de meios de prova. Os sistemas processuais (de cunho democrático) costumam ter uma norma genérica que permite uti- lizar meios de prova, distintos dos previstos, mas assimila alguns deles e lhes estende as formalidades do meio análogo. Isto repre- senta que a informação não poderá ingressar em juízo por outras vias que as legalmente previstas. Estas normas são produtos de experiências históricas e das vias de acesso de informação que o tempo selecionou como mais confiáveis169. A dogmática jurídica-penal se preocupa, então, em aprimorar as formalidades, consolidar meios e evitar a distorção da prova. São trazidos como exemplos o ingresso de informação no juízo, com auxílio de profissional especialista na área, como no chamado “de- poimento sem dano”170, com os seus méritos e impossibilidades.

168 BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais – elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 61. 169 BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais – elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 64-65. Ver também Carnelutti (Misérias do processo penal): “Não é um mistério que no processo, e não somente no processo penal, se faz história. Digo: não é um mistério para os juristas, os quais desde há muito tempo puseram nele sua atenção; mas pode surpreender o público em geral, ao qual meu discurso está dirigido. Isto ocorre porque estamos habituados a examinar a história dos povos, que é a grande história; mas existe também a pequena história, a história dos indivíduos; inclusive não existiria aquela sem esta, de igual maneira que não existiria a corda sem os fios que nela estão enrolados. Quando se fala de história, o pensamento volta para as dificuldades que se apresentam para reconstruir o passado; mas não, se se tem em conta a medida, as mesmas dificuldades que se devem superar no processo” (CARNELUTTI, Francesco. Misérias do processo penal. São Paulo: Pilares, 2006, p. 62). 170 O Depoimento Sem Dano surgiu no Brasil, no ano 2003, através de um projeto piloto que fora realizado na sala de audiências da 2ª Vara da Infância e da Juventude no Foro Central de Porto Alegre/RS, sendo o juiz José Antônio Daltoé o autor deste projeto. O objetivo deste é reduzir os danos causados as crianças e adolescentes na produção de prova em processos judiciais, haja vista a necessidade de garantir os direitos dos mesmos, com o intuito de melhoraria desta prova. Através deste projeto, buscou-se

46 47 No entanto, por mais que inovações possam existir, necessa- riamente, elas terão que estar submetidas a regras claras e inspiradas pelo critério de democraticidade. Binder exemplifica esta situação, ou seja, “quando as perícias psiquiátricas são utilizadas para provocar confissões, ou no que diz respeito ao uso de hipnose, etc.”171.

minimizar os danos causados pelo Estado nas crianças e adolescentes, uma vez que os casos de abuso sexual infantil possuem um caráter complexo, sendo necessário um método de inquirição diferenciado do realizado com adultos (POTTER, Luciane. Vitimização secundária infanto-juvenil e violência sexual intrafamiliar: por uma política pública de redução de danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 187). Importante referir que existem objeções a esta sistemática não só de juristas, como também de psicólogos, esses realizam as seguintes objeções: a) que o depoimento sem dano não pertence ao vocabulário do psicólogo, mas sim ao jurista; b) o psicólogo busca atender aquele que fala e não trabalha com inquirição com a finalidade de atender o que interroga; c) não deve a criança ser ouvida por profissional qualquer a respeito deste evento traumático, entretanto, em caso de necessidade deve haver autorização dos responsáveis; d) não deve o profissional de psicologia prestar serviços ao juiz ou qualquer outro profissional; e) não tem como não existir dano no depoimento sem dano; f) este tipo de participação é contrária a ética, tendo vista o sigilo profissional; g) investigação deve ser realizada pela polícia e não por psicólogos; h) não é relevante a punição do abusador e sim o bem-estar da vítima; i) é absurdo o depoimento de crianças a respeito de crimes que testemunharam; j) psicólogos no exterior acabaram se tornando marionetes dos juízes e l) deve-se cuidar a utilização de uma primeira entrevista. (PAULO, Beatrice Marinho. Da possibilidade de participação do psicólogo na inquirição de crianças. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, Porto Alegre, v. 13, n. 24, p. 56-64, 2011). Para Alexandre Morais da Rosa o procedimento de depoimento sem dano, é contrário ao modelo acusatório constitucional, uma vez que possui caráter inquisitório, paranoico, contaminado ideologicamente “em face da compreensão da subjetividade” e a não responsabilização “e sofisticação do poder, dito “brando”, em nome ilusoriamente do Bem”, sendo o papel julgador o de inquisidor. Refere que um aspecto novo deste procedimento seria terceirização do lugar do inquisidor ou a transferência da função de sugador de significantes, haja vista que existe a vontade de condenação do acusado, causando assim a ilusão sobre o “lugar e função do Direito Penal numa Democracia” (MORAIS DA ROSA, Alexandre. O depoimento sem dano e o advogado do diabo - A violência “Branda” e o “Quadro Mental Paranóico” (Cordero) no processo penal. In: POTTER, Luciane (Org.). Depoimento sem dano - Uma política criminal de redução de danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 159). 171 BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais – elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 65.

48 49 A utilização da prova e as repercussões de seus problemas irão “desaguar, sem esforço, nas fronteiras do direito”172. É o caso, especialmente, da prova testemunhal173, que estará (necessaria- mente) demarcada por categorias que transcendem à lógica (bi- nária) jurídica, como o(s) tempo(s) e a(s) memória(s). Em termos jurídicos, a testemunha é “o indivíduo que, não sendo parte nem sujeito interessado no processo, depõe perante um juiz sobre fatos pretéritos para o processo e que tenham sido percebidos pelos seus sentidos174”. Em sentido semelhante, Fer- nandes175 chama de testemunha a pessoa que presta declarações

172 MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito – The Brazilian Lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 96. 173 De acordo com Aranha, “testemunhas, etimologicamente, vem do latim testari, significando mostrar, asseverar, manifestar, testificar, confirmar etc. Por sua vez, deu origem ao vocábulo testemunha (testis) que, em seu sentido amplo, representa toda a coisa ou pessoa que afirma a verdade de algum fato” (ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 154). O mesmo conceito pode ser encontrado também em: LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 89. Sobre as testemunhas, ainda, afirma Bentham que elas “são os olhos e os ouvidos da justiça. Desde que os homens existem e desde que têm a pretensão de fazer a justiça hão valido das testemunhas, como meio de prova; sua importância no campo criminal é considerável, frequentemente é a única base das acusações” (BENTHAM, Jeremy. Tratado de las pruebas judiciales. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1971, v. 1, p. 24). 174 BADARÓ, Gustavo. Direito processual penal. Tomo I. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 254. Neste mesmo sentido, “o testemunho é a narração feita por pessoa alheia ao debate penal, no qual se narra ao juiz todas as circunstâncias de tempo, modo e lugar que se conheça sobre uma conduta delitiva, objeto de apuração no processo penal, podendo esta percepção ser feita através de qualquer um dos sentidos: tato, audição, olfato e paladar” (VELÁSQUEZ, Nestor Armando Novoa. La prueba testimonial. Bogotá: Nueva Jurídica, 2011, p. 27). 175 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. São Paulo: RT, 2007, p. 82. Sobre a prevalência do emprego da prova testemunhal, em processo penal, veja-se também Badaró: “No processo penal, a prova testemunhal é o meio de prova mais utilizado, embora se trate de prova sujeita a influências e sentimentos que podem afastá-la do caminho da verdade” (BADARÓ, Gustavo. Direito processual penal. Tomo I. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 253). E ainda também Lopes Júnior: “No que diz respeito particularmente à prova testemunhal, a sua importância é essencial no trabalho diuturno dos operadores do Direito Penal, tendo em vista que este constitui o principal meio de prova colocado à disposição do processo brasileiro, ainda marcadamente avesso ao abandono do formalismo e o advento de meios

48 49 sobre um fato de que tem conhecimento ou sobre aspectos liga- dos à determinada pessoa. A pretensão de totalidade da dogmática jurídica encontra limite na capacidade de cognição humana, quando buscamos a prova em quem tenha presenciado o evento. Carnelutti já aler- tava para os perigos da prova testemunhal:

As sensações da testemunha, a fim de que o testemunho seja exato, não apenas têm de ser exatas, mas, precisamente porque em geral a narração se faz à distância do fato narrado, devem ser fielmente recordadas. O seguindo requisito do testemunho refere-se à memória. Este é outro capítulo de psicologia experimental, que deveria ser estudado, a fim de aprender o valor dos testemunhos. Assim como há homens de vista excelente, medío- cre ou má, também há os que tenham uma memória fiel e outros que se acham privados desse benefício. Quais sejam as alterações que a impressão de um fato pode sofrer com o transcurso do tempo na mente da pessoa é algo, ademais, e não só depende da potên- cia da memória como, ainda, da duração do intervalo entre o fato ocorrido e a narração, e da qualidade tanto da quantidade dos acon- tecimentos intermédios176.

Disposições normativas sobre o testemunho pressupõem que o aparato sensorial do indivíduo capte objetivamente os aconteci- mentos e que a memória logo os fixe, como imagens em um filme ou sons gravados. Antes de tudo, os canais sensoriais trabalham

tecnológicos da coleta de provas (LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 89). 176 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Campinas: Bookseller, 2004, v. 1, p. 293.

50 51 de forma seletiva, pois o aparato perceptivo possui capacidade limitada, eis que, exposto a estímulos simultâneos, acaba por cap- tar aqueles a respeito dos quais está acostumado (em um mesmo contexto, os guardas de trânsito e os pedestres observam coisas distintas) e também dependerá do estado emotivo da pessoa177. Além disso, a imagem mental irá se converter em palavra, de mesmo conteúdo mental, ou seja, irá variar, de acordo com a habilidade do narrador (são raras e cansativas as descrições con- sideradas adequadas) e, ainda, quando o discurso não fluir como deve, a figura do interrogador será fundamental178. As normas consagradas em códigos dão uma ideia por demais cartesiana do testemunho, sem fundo psíquico (mecanismos per- ceptivos, estrutura cognoscitiva, atividade neurológica, fluxo lin- guístico), com os respectivos efeitos distratores (relatividade do percebido, curva de esquecimento, pseudorecordações, sugestiona- bilidade, etc.)179. Ou seja, dada a dificuldade geral de conclusão de inquéritos policiais e posterior oitiva dos indivíduos que presencia- ram o evento, podemos supor que nosso legislador assume a todos como possíveis portadores da síndrome de hiperamnésia180.

177 CORDERO, Franco. Procedimiento penal. Tomo II. Bogotá: Temis, 2000, p. 59. 178 CORDERO, Franco. Procedimiento penal. Tomo II. Bogotá: Temis, 2000, p. 59. 179 CORDERO, Franco. Procedimiento penal. Tomo II. Bogotá: Temis, 2000, p. 62. Neste sentido também ARANHA: “E isto porque, se correta a testemunha, quatro fatores influenciam inevitavelmente o seu depoimento, possibilitando o erro: o modo pelo que viu o fato que deverá narrar (distância, ângulo, estado emocional etc.); a sua opinião pessoal sobre o fato e os envolvidos (repugnância ou aceitação, amigo ou inimigo etc.); a maneira pela qual é feita a pergunta (impositiva ou com liberdade); e o estado emocional quando prestará o seu depoimento. Mesmo quando a testemunha procure agir com total correção e seriedade, tais elementos influenciarão, de qualquer modo, o depoimento” (ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 157). 180 A síndrome da hiperamnésia consiste em uma inflação de memórias possíveis de ser invocadas. Jill Price, uma das únicas pessoas no mundo diagnosticadas, nos explica que: “Sou portadora do primeiro caso diagnosticado de um distúrbio da memória que os cientistas denominaram síndrome de hipermemória – a lembrança autobiográfica contínua e automática de cada dia de minha vida desde os meus catorze anos. Minha memória começou a se tornar horrivelmente completa em 1974, quando eu tinha oito anos. A partir de 1980, é quase perfeita. Diga uma data daquele ano em diante que

50 51 A testemunha de fatos, singulares em seus dramas, é afetada de forma emocionalmente intensa. Esta situação pode influenciar na apu- ração de dados fisionômicos. Além disso, informações que as pessoas podem passar através da linguagem corporal são carregadas de ambi- guidades, e é muito difícil interpretá-las, sem risco de erro e ainda: em contato único e que carece de meios técnicos para esta finalidade181. Badaró182 enumera quatro características do testemunho: 1) judicialidade (a prova testemunhal será somente aquela produzida perante o juiz, em contraditório); 2) oralidade (de acordo com o artigo 204 do Código de Processo Penal, no geral, será produzida de forma oral); 3) objetividade (devem depor sobre fatos percebidos por seus sentidos, sem emitir juízos de valor); e 4) retrospectividade (a testemunha é chamada para depor sobre fatos passados, repro- duzindo o que já ocorreu e foi apreendido por seus sentidos183). Além destas características, Lopes Júnior184 refere que é ne- cessário respeitar-se a dignidade da pessoa ouvida como teste- munha. Esta característica decorre diretamente do fundamento

eu direi instantaneamente qual dia da semana foi, o que fiz naquele dia e quaisquer acontecimentos importantes que ocorreram – ou até acontecimentos menores -, contanto que tenha ouvido falar deles naquele dia” (PRICE, Jill. A mulher que não consegue esquecer – relatos da síndrome de hipermemória. Tradução de Ivo Korytowski. São Paulo: Arx, 2010, p. 9). Ver também IZQUIERDO, Ivan. Questões sobre memória. São Leopoldo: Unisinos, 2004. 181 IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Sobre el valor de la Inmediación (una aproximación critica). In: BONATO, Gilson (Org.). Processo penal: leituras constitucionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 191. 182 BADARÓ, Gustavo. Direito processual penal. Tomo I. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 245-246. 183 Conferir também: FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. São Paulo: RT, 2007, p. 82. 184 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 100. Manuel da Costa Andrade também trabalha com a ideia da necessária preservação da dignidade da testemunha. (ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 213).

52 53 constitucional de forma a vedar a utilização de práticas reprová- veis, “não raro verificadas na prática forense”185. O depoimento, prestado no inquérito policial ou em outro procedimento administrativo, não pode ser considerado, tecnica- mente, prova testemunhal. Desta forma, acusação e defesa devem ter ciência da existência de tal fonte de prova (a testemunha), que tem informações relevantes para a causa, podendo arrolá-la, a fim de que preste o seu depoimento. Portanto, somente o depoimento perante juiz, na presença das partes, tendo em vista o contraditó- rio186, pode ser considerado como verdadeira prova testemunhal187. Mesmo antes da reforma Processual Penal de 2008, Tovo já realizava a classificação a ser empregada, de acordo com uma lei- tura constitucional acerca do valor probatório colhido nos autos do Inquérito Policial. Desta forma:

185 LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 100. Neste sentido, também Carnelutti (Misérias..., p. 67-68): “a testemunha é um homem, um homem com seu corpo e com sua alma, com seus interesses e com suas tentações, com suas recordações e com seus ouvidos, com sua ignorância e com sua cultura, com sua valentia e com seu medo. Um homem que o processo coloca numa posição incômoda e perigosa, submetido a uma espécie de requisição por utilidade pública, separado de pública, separado de seu negócio e de sua paz, utilizado, exprimido, inquirido, convertido em objeto de suspeito. Não conheço um aspecto da técnica penal mais preocupante que o que se refere ao exame e até, em geral, ao trato da testemunha. Também aqui, por demais, a exigência técnica termina por se resolver em uma exigência moral: se ela devessem se resumir em uma fórmula colocaria no mesmo o respeito à testemunha e o respeito ao imputado. No centro do processo, em última análise, não estão tanto o imputado, ou a testemunha, quanto o indivíduo. Todos sabem que a prova testemunhal é a mais enganosa de todas as provas; a lei a rodeia de muitas formalidades, que desejavam prevenir os perigos; a ciência jurídica chega até o ponto de considerá-la um mal necessário; a ciência psicológica regula e inventa inclusive instrumentos para sua valoração, ou seja, para distinguir a verdade da mentira, mas o melhor modo de garantir o resultado tem sido e sempre será o de reconhecer um homem e conceder-lhe o respeito que todo homem merece (CARNELUTTI, Francesco. Misérias do processo penal. São Paulo: Pilares, 2006, p. 67-68). 186 De acordo com Alexandre Morais da Rosa e Sylvio Lourenço da Silveira, a marca fundamental de um processo é funcionar como um procedimento em contraditório (MORAIS DA ROSA, Alexandre; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um processo penal democrático: crítica à metástase do sistema de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 70). 187 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. São Paulo: RT, 2007, p. 82.

52 53 a) as renováveis ou repetíveis, enquanto inquisitoriais, têm valor meramente infor- mativo, não podendo assim servir de base ou sequer apoiar subsidiariamente o vere- dicto condenatório (sob pena de afronta ao art. 5o, LV, da lei maior), nada impedindo, no entanto, que sirvam de alicerce ao vere- dicto absolutório;

b) as não-renováveis ou não-repetíveis deveriam, em consonância com a mesma norma, ser colhidas pelo menos sob a égide de ampla defesa (isto é, na presença fiscali- zante da defesa técnica) posto que são pro- vas definitivas e, via de regra, incriminató- rias (exemplos: exame de corpo de delito, apreensão de substância tóxica em poder do autor do fato);

c) as provas prontas, sim, por estarem aca- badas antes da instauração de qualquer per- secução penal, não há como exigir, quanto à sua formação, pelo menos, a observância do contraditório e da ampla defesa188.

A “pseudo-prova”, produzida no Inquérito Policial, somente pode servir para análise da condição da ação penal189. Isto porque “não há qualquer possibilidade de valoração democrática no Pro- cesso Penal constitucionalizado, por ser ela desprovida das garan- tias processuais”190.

188 TOVO, Paulo Cláudio. Estudos de direito processual penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, v. 2, p. 201-202. Ver também: TOVO, Paulo Cláudio; TOVO, João Batista Marques. Princípios de processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. 189 ROSA, Alexandre Morais da. Decisão no processo penal como Bricolage de significantes. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004, p. 323-325. 190 Ibidem, p. 323-325.

54 55 No curso da investigação preliminar, ao longo da produção da produção probatória, não há acusação formalizada. Inexiste defesa, juiz imparcial e, portanto, não é estabelecido o contradi- tório191 e, ainda, está afastada a publicidade dos atos192. Por força do contraditório constitucional, a instrução criminal deveria ser contraditória, exigindo a participação do acusado como parte do processo e sujeito de direitos. No procedimento administra- tivo, contudo, o acusado é apenas objeto da investigação, sem acom- panhar as provas e sem nada poder requerer em seu benefício193. Os elementos da investigação policial, por essas razões, não constituem provas no sentido técnico-processual do termo, mas, apenas informações de caráter probatório, aptas a subsidiar a for- mulação de uma acusação perante o juiz, mas tão-somente para

191 Aury Lopes Júnior defende a aplicação do princípio constitucional do contraditório à Investigação Preliminar: “seguimos em uma cruzada pela constitucionalização do processo penal, defendendo a máxima eficácia do art. 5o, LV, da Constituição. Dispõe o artigo que ‘aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (LOPES JÚNIOR, Aury. Direito de defesa e acesso do advogado aos autos do inquérito policial: desconstruindo o discurso autoritário. In: BONATO, Gilson (Org.). Processo penal: leituras constitucionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 52). Ver também: LOPES JÚNIOR. Sistemas de investigação preliminar. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 192 ROSA, Alexandre Morais da. Decisão no processo penal como Bricolage de significantes. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004, p. 323-25. Além deste afastamento, “muitas vezes, o inquérito policial é utilizado como instrumento criminoso da própria polícia. Em outras hipóteses, para desafogar o serviço das delegacias, imputam-se crimes e pessoas que não os cometeram. As falhas da atividade policial no Brasil devem ser objeto de consideração para a formação da opinio delicti. Por isso, é necessário que o controle sobre a viabilidade da ação penal, bem como das condições da própria ação sejam preocupação do órgão acusador. O Ministério Público não pode ser compelido, nem por decisão judicial a oferecer denúncia, quando estiver convencido e fundamentar juridicamente o pedido de arquivamento” (THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris 2006, p. 254). 193 ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 249.

54 55 subsidiar a ação penal, bem como a decretação de alguma medida de natureza cautelar194. Entretanto, os elementos, colhidos na investigação, con- tinuam a ser amplamente utilizados em fase judicial. Para Gia- comolli195, os promotores de justiça sempre utilizaram, junto aos jurados, provas colhidas na fase dos inquéritos, ou seja, não reno- vadas ou repetidas em juízo. Como há o julgamento com fulcro na íntima convicção, a liberdade de decidir dos jurados é tanta que sequer há necessidade de fundamentação. Segundo o autor, a su- peração da crise da investigação criminal não está na substituição do sujeito encarregado de conduzi-la, mas na adequação de suas regras à normatividade substancial da Constituição Federal e do respeito à integridade do suspeito, cujo tratamento há de obede- cer ao respeito à sua dignidade de ser humano196. Dessa forma, na prática, um depoimento na fase policial pode servir, respeitadas as limitações legais, para subsidiar um de- creto condenatório e, até mesmo, ensejar a supressão do bem ju- rídico fundamental da liberdade. Por essas razões, Lopes Júnior197 defende a exclusão física dos autos do inquérito policial (ou qualquer outra forma de inves- tigação preliminar), para garantir a originalidade do julgamento. Quando o inquérito integra os autos do processo, de forma a ser utilizado como elemento de convencimento do julgador, acaba por transformar o processo penal em um “jogo de cartas marca- das, ou melhor, dadas a critério do investigador”198.

194 BADARÓ, Gustavo. Direito processual penal. Tomo I. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 63. 195 GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal – Considerações críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 148. 196 GIACOMOLLI, Nereu José. Resgate necessário da humanização do processo penal contemporâneo. In: WUNDERLICH, Alexandre (Coord.). Política criminal contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 331. 197 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 579-580. 198 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 579.

56 57 Ainda que inexista regra expressa de exclusão dos elementos de informação colhidos no inquérito policial, estes dados não pode- riam servir para o julgamento da causa. É entendimento predomi- nante de nossos tribunais que as informações da fase de investiga- ção não constituem base suficiente para uma condenação, porém poderão ser levadas em conta se confirmadas, ainda que, parcial- mente, por provas colhidas, de acordo com o contraditório199. Existe, no entanto, grande dificuldade, para se realizar co- lheita de depoimentos em fase policial, especialmente, se falar- mos de crimes, como o de homicídio. É sabido que a inflação legislativa penal e o contínuo processo de expansão do direito penal (aparentemente interminável) acabam por representar li- mitações para a fase preliminar. No geral, o aparato policial é in- suficiente, para apurar todos os fatos herdeiros, legítimos da infla- ção de normas penais. A celeridade do futuro processo penal é obstaculizada, pela falta de localização das pessoas arroladas como testemunhas. A repetição de intimações e a dificuldade de sua localização são situações frequentes na prática policial e forense. Então, essa ausência de completude da investigação exclui depoimentos imprescindíveis no momento do exercício (ou não) da ação pro- cessual penal, no desenvolvimento do futuro (?) processo e no julgamento do caso200. Apesar das inúmeras críticas existentes ao procedimento policial201, já que o modelo persiste, é necessário discutir os ele- mentos ali produzidos. Enquanto ocorre discussão de sua con-

199 BADARÓ, Gustavo. Direito processual penal. Tomo I. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 63. Na mesma esteira, Aranha, em obra editada antes da atual redação do art. 156, do CPP, sugere que “as provas colhidas no decorrer do inquérito policial não autorizam condenação, se exclusivas, isto é, se não apoiadas em elementos contidos no decorrer da instrução” (ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 249). 200 GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal – Considerações críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 55. 201 Notadamente em: LOPES Jr, Aury. Sistemas de investigação preliminar. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005; e GIACOMOLLI, Nereu José. A fase preliminar do

56 57 formidade constitucional e das consequências da utilização dos elementos colhidos a partir daí, o modelo se perpetua e traz con- sequências graves a todas as partes envolvidas no controle social (penal) exercido pelo Estado. Sobre a testemunha e a sua memória do evento, os efeitos do tempo são nefastos. O intervalo entre o depoimento em in- quérito e a oitiva, como testemunha no processo, pode demorar anos. Assim, “a correspondência entre o que a testemunha viu, a imagem que registrou na consciência e o que vão relatar ao juiz sofrem forte influência do tempo”202. Os depoentes são afetados por “memórias perdidas”203 com o passar do tempo, tanto por questões biológicas, quanto por mo- tivos psíquicos ou psicológicos. O modo como o sistema trata o tempo de formação da prova representa dificuldades ao julgador em sua avaliação, principalmente sabendo que a testemunha cos- tuma ser das provas (senão a prova) mais relevantes. O tempo vai diminuindo a lembrança do fato passado, variando, conforme as condições físicas e intelectuais do espectador204. Conceitos, como o de prova “repetível”, somente poderão ser discutidos à luz do fator tempo. Ainda é possível considerar um depoente, que cinco anos depois vira testemunha em um pro- cesso, como pessoa apta a “repetir” o quê viu após tanto tempo sem que tenhamos, por exemplo, que recorrer à (sempre) suges- tionável versão do Inquérito? Daí a necessidade do estabeleci- mento de regras claras também em relação às oitivas policiais, sem que se abra mão do necessário contraditório, ao menos nes- tes momentos específicos. Quando falarmos em processo, aí, sim, a testemunha será reconhecida, como meio de prova, em que pese os seus perigos e

processo penal: crises, misérias e novas metodologias investigatórias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 202 THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 51. 203 Ibidem, p. 51. 204 THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 51.

58 59 as suas distorções continuarem inerentes. Como forma de dimi- nuir estes riscos205, temos regras constitucionalmente demarcadas e estas podem colaborar para diminuí-los. Em termos de um processo penal democrático, sabe-se que o encargo probatório será da acusação206. Essa garantia é essencial, como forma de atenuar os efeitos (nefastos) de uma intolerável condenação injusta. Outro limite estará no próprio convencimento do magis- trado. Explica-se: a despeito de o magistrado dever formar a sua convicção pela “livre” apreciação da prova (artigo 157 do Código de Processo Penal - CPP), a valoração da prova há de vir demons- trada em motivação fática e jurídica, nos termos do artigo 93, IX, da Constituição Federal, com inadmissibilidade da prova obtida sem as garantias constitucionais e as regras processuais207. O ônus da prova é de quem afirma. Entretanto, uma lei- tura constitucional da regra do artigo 156 do CPP faz com que esta disposição seja aplicada somente à acusação, pois quando o

205 Cf. LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal (Fundamentos da instrumentalidade garantista). 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 206 GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal – Considerações críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 8: Apesar de se inferir de uma leitura estreita do artigo 156 do CPP, ser da defesa o encargo de provar a alegação que ela fizer, cabe ao acusador, público (ação processual penal de iniciativa oficial) ou privado (ação processual penal de iniciativa particular) demonstrar, com segurança, a autoria e a materialidade do fato e a existência de provas suficientes a dar suporte a um juízo condenatório, inclusive as que afastam a viabilidade das teses defensivas. Por isso, a defesa não tem o encargo probatório, mas, apenas uma oportunidade processual de provar, no contraditório endoprocessual, as suas alegações e a fazer a contraprova do afirmado pela acusação. Entretanto, as teses defensivas não são afastadas pela ausência de prova defensiva, nem as da acusação, acolhidas pela carência probatória defensiva” (Ibidem, p. 8). 207 GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal – Considerações críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 9. Sobre a garantia da motivação judicial e sua aplicabilidade na esfera processual penal, recomenda-se: POZZEBON, Fabrício Dreyer de Ávila. O direito fundamental à motivação no processo penal como corolário de outras garantias constitucionais. Direitos Fundamentais & Justiça, Porto Alegre, v. 3, n. 8, p. 150-171, 2009.

58 59 réu afirma a sua inocência não terá a obrigação de prová-la (de acordo com a Constituição, ele é presumivelmente inocente)208. O interesse defensivo, que não pode ser interpretado como carga probatória, será o de demonstrar a falta de credibilidade da(s) prova(s), que pode levar à dúvida. Isso pode ser necessário em relação à negativa de autoria, ou ainda que o fato não ocor- reu, relativamente a um álibi, além das defesas processuais209. Na avaliação do depoimento, o magistrado deverá estar atento a dois fatores: (1) a pessoa que prestou as declarações; (2) o conteúdo narrado. Quanto ao sujeito, este será valorizado na medida em que preste compromisso de dizer “a verdade210”. No tocante ao conteúdo narrado, afirma Badaró, o juiz de- verá levar em consideração, entre outros fatores, a quantidade de detalhes do testemunho e, ainda, a persistência do testemunho, ou seja: “a testemunha ter apresentado versões uniformes todas as vezes que tenha sido ouvida”211.

208 GIACOMOLLI, op. cit., p. 14-15. 209 Ibidem, p. 15. Explica ainda que “No que concerne à prova, como regra, é mais fácil à acusação provar a sua afirmação, pois se trata de fatos positivos. Difícil é fazer a prova negativa. É mais fácil provar que o fato existiu do que a sua inexistência. Por isso, também, a dita “paridade de armas” (basta observar, empiricamente, as estruturas funcionais da acusação e da defensoria pública) é de ser sopesada pelo juiz, no momento da valoração das provas e antes de tomar alguma decisão de impulso probatório. No processo penal brasileiro, afloram todas as dimensões da miséria e, como regra, não há uma equivalência potencial das partes. Portanto, o imputado não tem o dever, como possui a acusação, de buscar a prova; o seu comportamento poderá ser apenas passivo, de silêncio, o qual também é uma forma de se defender, uma estratégia defensiva” (Ibidem, p. 16). 210 BADARÓ, Gustavo. Direito processual penal. Tomo I. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 253. 211 BADARÓ, Gustavo. Direito processual penal. Tomo I. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 253. Quanto ao conteúdo da narrativa, afirma também o autor: “Há entendimento de que pequenas contradições, em aspectos circunstanciais, podem ser aceitas, não retirando o valor do testemunho. Tal posição não pode ser aceita integralmente. Quando uma testemunha tem a intenção de mentir ou é preparada para mentir, normalmente o que ela tem condições de decorar ou criar é o fato principal. Em tais casos, a única forma de se demonstrar que a testemunha está mentindo são as contradições ou as incoerências que irão ocorrer em relação aos aspectos circunstanciais, sobre os quais a testemunha não foi ‘preparada’ para responder” (Ibidem, p. 253).

60 61 O encargo probatório comporta uma dupla dimensão: a for- mal e a substancial. O formal diz respeito à introdução das provas no processo, e o material ou substancial, à aceitabilidade dessa prova pelo magistrado, à sua valoração positiva, na linha da afir- mação fática realizada na inicial. Não demonstrar o fato de forma clara, límpida e segura é como não provar, isto é, deixar o magis- trado em dúvida equivale à inexistência probatória212. No que diz respeito aos testemunhos de policiais, existe po- lêmica doutrinária. Há autores que pensam ser a condição funcio- nal do policial incompatível com a de testemunha sendo, portanto, suspeito213. Segundo Badaró, deve prevalecer uma posição inter- mediária: “se os policiais não podem ser considerados suspeitos, pelo simples fato de serem policiais, por outro lado, é inegável o seu interesse na demonstração da legalidade de sua atuação”214. Dessa forma, os depoimentos de policiais devem possuir valor relativo, ou seja, apenas devem ser considerados, caso estejam de acordo com os demais elementos probatórios constantes dos autos do processo. Logo, não é possível a sentença condenatória com base exclusiva no depoimento de policiais, mesmo que coesos215. Pela sistemática tradicional, quem primeiramente inquiria a testemunha era o magistrado e, posteriormente, a parte que a tivesse arrolado e, no final, a parte contrária. Naquela lógica, as perguntas eram dirigidas ao juiz, que as elaborava mentalmente e as “traduzia para a testemunha”216. A seguir, as respostas eram interpretadas pelo juiz que as “traduzia” novamente para a lingua- gem jurídica, ditada ao serventuário responsável pela datilografia.

212 GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal – Considerações críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 16. 213 Ibidem, p. 16. 214 BADARÓ, op. cit., p. 253. 215 Ibidem, p. 254. 216 BADARÓ, Gustavo. Direito processual penal. Tomo I. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 56.

60 61 Conforme Giacomolli, “neste ato teatral, muita da substância das declarações se esboroava”217. O sistema de oitiva de testemunhas, adotado na legislação brasileira, a partir da reforma processual de 2008, é semelhante ao cross examination (ou exame direto e cruzado218) norte-ameri- cano, já que, em ambos, a acusação e a defesa realizam os seus questionamentos diretamente às testemunhas. Neste formato, as partes ficam sujeitas ao contrainterrogatório de seu oponente. Porém, existe importante diferença: o processo penal brasileiro não limitou a atuação do juiz, no sentido de somente presidir o ato, mas também permitiu a ele a faculdade de complementar a inquirição acerca dos pontos não esclarecidos219. Gomes Filho220 considera que, neste modelo introduzido, há a vantagem do contraditório na coleta do material probatório, propiciando a efetividade do direito ao confronto, que já havia sido reconhecido na Convenção Americana de Direitos Huma- nos (art. 8o, 2, letra ‘f’). O sistema é de extrema importância, pois permite a transição de um paradigma, no qual o juiz “traduzia” as perguntas das partes (certamente, de forma a “purificá-las”) às

217 Ibidem, p. 57. 218 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Provas. In: MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis (Coord.). As reformas no processo penal: as novas Leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 284. 219 DI GESU, Cristina Carla. Prova penal e falsas memórias. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2008, p. 102. Streck considera a possibilidade de o juiz realizar perguntas trazidas no artigo 212 como perfeitamente possível, já que “se trata de inovação legislativa aprovada democraticamente”. Mais adiante, afirma que: “Examinando o (novo) artigo 212 do CPP, chega-se à conclusão de que se está diante simplesmente do dever – inerente ao Estado Democrático de Direito – de cumprir a lei (constitucional), pois este, como se sabe, é um dos preços impostos pelo direito e, sobretudo, pela democracia!” (STRECK, Lênio Luiz; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. O que é isto – as garantias processuais penais? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 56-57). 220 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Provas. In: MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis (Coord.). As reformas no processo penal: as novas Leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 286.

62 63 testemunhas, para um modelo, em que o contraditório fica, evi- dentemente, amplificado. O artigo 212 do CPP traz algumas limitações às perguntas realizadas. Estas não poderão induzir resposta, nem ter relação com a causa e importar em repetição, sendo o magistrado res- ponsável por fiscalizar a inquirição221. Neste ponto, constatamos importante dificuldade de nosso regramento legal: inexistem de- finições do que seriam perguntas que induzem à resposta. Outra situação importante é a omissão quanto à sugestio- nabilidade. Uma pergunta sugestionável é aquela que insinua determinada resposta, conduzindo a testemunha a responder o que quem pergunta quer222. Em nosso capítulo seguinte, iremos investigar, de forma mais detalhada, a partir da psicologia do tes- temunho, as origens deste tipo de questionamento, as suas reper- cussões e de que forma elas podem ser evitadas. Conforme Aranha223, a maneira de perguntar tem profunda força influenciadora nas respostas. Certos inquiridores, por violência psociológica, conduzem a testemunha para onde desejam, obtendo a resposta pretendida. A pergunta prepara a resposta desejada. Este questionamento deve sempre estar livre dos vícios de inteligência (sugerindo, insinuando) ou de vontade (coação), admitindo-se, no entanto, que não há qualquer forma conhecida de perguntar que não traga uma maior ou menor força sugestória, sendo necessário observar aquelas que contenham menor grau insinuatório. Pode ser realizada a seguinte classificação quanto às formas viciosas de perguntar, por trazerem uma eficácia sugestiva:

221 GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal – Considerações críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 57. 222 LOZANO, Raúl Cadena; CALDERÓN, Julián Herrera. Reflexiones sobre el testímonio, la argumentación jurídica y las técnicas de interrogatorio y contrainterrogatorio en el sistema acusatorio. Bogotá: Ediciones Nueva Jurídica, 2010, p. 168. Os autores exemplificam desta forma: “Senhor Gomez, diga de você escutou os três disparos de arma de fogo que causaram a morte da vítima?” 223 ARANHA, Adalberto José Queiroz Telles de Camargo. Da prova no processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 173.

62 63 a) Disjuntiva completa: ‘o acusado foi preso com o relógio da vítima ou não?’ Há uma força sugestiva em sentido afirmativo.

b) Expectativa: ‘o relógio da vítima que o acusado tinha em seu poder era da marca tal?’ Há uma grande pressão sugestiva, pois, normalmente, a resposta atende à expecta- tiva da pergunta.

c) Disjuntiva incompleta: ‘o relógio da vítima que estava com o acusado era de pulso ou de bolso?’ Enorme força suges- tiva, pois são colocadas só duas hipóteses, excluindo-se qualquer outra, até a inexis- tência do relógio.

d) Presuntiva: ‘o acusado trazia o relógio da vítima escondido em seu bolso?’ Total força sugestiva, pois a pergunta impõe como certo o fato do acusado ter sido encontrado com o relógio da vítima.

A forma correta de perguntar, sem vício de inteligência ou vontade, é a determinativa (foi encontrada alguma coisa com o acusado?), pois encerra a menor sugestibilidade224.

Para evitar a pergunta que insinua resposta225, deve-se sem- pre tentar realizar os questionamentos da forma mais aberta pos- sível. Por exemplo: “O que lembras do fato?”. Inicialmente, é possível afirmar que toda prova testemu- nhal, cuja colheita se dê de forma contrária às regras do art. 212

224 ARANHA, Adalberto José Queiroz Telles de Camargo. Da prova no processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 175. 225 VELASQUEZ, Nestor Armando Novoa. La prueba testimonial. Bogotá: Nuevas Jurídida, 2011, p. 97.

64 65 do CPP, seria materialmente ilícita. Contudo, há dificuldade em definir precisamente o que constituem perguntas indutoras e, ainda, inexistem controles mínimos relativos a outras hipóteses de “contaminação”226 testemunhal, como a sugestionabilidade. A sugestionalidade pode ser acentuada com a utilização da regra do hearsay (“ouvi dizer”), adotada pelo sistema brasileiro, visto que o testemunho indireto é possível e admissível. Tal problema pode ser agravado, quando utilizarmos a testemunha referida, aquela na qual “a pessoa a quem se re- ferir a testemunha regularmente ouvida”227. Prevista no art. 209, p. 1o do CPP, deve ser encarada como forma de prova produzida excepcionalmente, quando diz respeito ao fato de importância relevante para o processo228. De acordo com Giacomolli, as disposições do artigo 209 re- velam resquícios “inquisitoriais”, haja vista que existe autorização ao magistrado para inquirir pessoas não arroladas pelas partes, bem como as que tenham sido referidas. Também foi mantida a possibilidade de o magistrado inquirir de ofício e antecipada- mente a testemunha, quando esta estiver impossibilitada de com- parecer à audiência (art. 225, CPP)229. As falsas memórias também podem atuar de forma precau- cional, impedindo ao magistrado que imponha condenações, como corolário dos princípios do in dubio pro reo (a dúvida bene- ficiará ao réu) e estado de inocência (todos são considerados ino- centes até o término do processo). Foi o que considerou Geraldo Prado em recente julgado, vejamos:

226 Cf. GIACOMOLLI, Nereu José; DI GESU, Cristina Carla. Fatores de contaminação da prova testemunhal. In: GIACOMOLLI, Nereu José; MAYA, André Machado (Orgs.). Processo penal contemporâneo. Porto Alegre: Núria Fabris, 2010, p. 11-40. 227 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 93. 228 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 93. 229 GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal – Considerações críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 56.

64 65 Em se tratando de crime de roubo, delito transeunte, a versão apresentada pelas víti- mas e o reconhecimento realizado em juízo podem constituir elemento de prova para a condenação, mormente quando corrobo- rados por outras provas, igualmente produ- zidas em juízo. No entanto, da análise dos autos, verifica-se que o conjunto probató- rio produzido sob o crivo do contraditó- rio revela-se incapaz de alicerçar decreto condenatório. Conjunto probatório cons- tituído por declarações de uma das víti- mas, que não reconheceu o apelante como sendo o autor do roubo, e pelo depoimento da outra vítima, que afirma o reconheci- mento, porém realizado em condições pes- soalmente desfavoráveis. Prova testemu- nhal que teve a sua credibilidade afetada. Probabilidade de ocorrência de falsas memórias. ‘E isso ocorre quando falsas recordações são construídas combinando- -se recordações verdadeiras com conteúdos das sugestões recebidas por outros’. Nestas, diferentemente do que ocorre na mentira, o agente ‘crê honestamente no que está relatando’. Neste tocante, havendo fortes dúvidas a respeito da autoria, assim como da dinâmica fática do evento delituoso, o princípio do in dubio pro reo deve funcio- nar como critério de resolução da incerteza, impondo-se como expressão do princípio da presunção de inocência. Note-se que diante de hipóteses explicativas viáveis, mas contraditórias e excludentes entre si, não pode o juiz optar por aquela posta em desfavor do acusado. A dúvida conduz

66 67 o magistrado inexoravelmente à absolvi- ção230. (grifo nosso).

Dessa forma, na colheita da prova testemunhal, todos esses critérios devem ser observados, ao menos, ao se falar em sede de processo penal. Justamente por ser “a mais comum no âmbito pro- cessual penal e a mais falha das provas”231 é que existem critérios.

1.2.1 Mídias e o Anseio por Culpados Outro fator importante que pode influenciar no testemunho é o tratamento dado ao fato pela mídia. As reiteradas violações ao princípio da presunção de inocência acabam por criar contornos preocupantes, especialmente quando o depoente do inquérito policial se torna testemunha no processo. A exposição do fato pela “mídia da lei e ordem”232 imprime a memória, a marca com o senso comum de conteúdo punitivista. Em meio a esse processo, policiais e magistrados, de vigilan- tes, se convertem em vigiados por grupos voluntários dispostos a assinalar cada um de seus movimentos, a interpretar cada um de seus gestos, a publicar cada uma de suas palavras. Os testemu- nhos são farejados como a “lebre pelo cão”233, e a mídia torna-se verdadeira agência do sistema penal234.

230 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação criminal 2007.050.044/RJ. Julgamento em: 29/11/2007. Disponível em: . Acesso em 01 ago. 2013. 231 ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 157. 232 MORAIS DA ROSA, Alexandre. O depoimento sem dano e o advogado do diabo - A violência “Branda” e o “Quadro Mental Paranóico” (Cordero) no processo penal. In: POTTER, Luciane (Org.). Depoimento sem dano - Uma política criminal de redução de danos. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 160. 233 CARNELUTTI, Francesco. Misérias do processo penal. São Paulo: Pilares, 2006, p. 65. 234 ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um processo penal democrático: crítica à metástase do sistema de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 3.

66 67 Os meios de comunicação irão contribuir para a difusão do medo e da insegurança, expondo, de forma teatral, uma sociedade violenta e desordenada. Alguns programas de televisão expõem co- tidianamente imagens de violência, como forma de chocar e repre- sentar a realidade comum. Como se todos aqueles fatos violentos ocorressem continuamente, em todos os cantos do país. A bana- lização do mal faz com que a violência ganhe um status de ‘des- tino nacional’. O quadro de pânico é gerado e vitimiza a sociedade, sendo que a expectativa do perigo iminente faz com que as vítimas potenciais aceitem facilmente a sugestão ou a prática da punição ou do extermínio preventivo dos supostos agressores potenciais235. Não só os veículos tradicionais de mídia projetam seus sen- sos de punitividade. Atualmente, existe uma forte crise patro- cinada pelo fenômeno de Internet. De acordo com Ramonet, “semelhante àquele que fez desaparecer os dinossauros” e “tem provocado uma mudança radical de todo o ‘ecossistema midiá- tico’ e a extinção massiva dos jornais da imprensa escrita”236. Provavelmente, afirma Ramonet237, a mídia da era industrial não irá desaparecer. No entanto, a circulação das notícias não se dá mais em “unidades controladas, bem corrigidas e formatadas (notas de agências, jornais diários, impressoas, boletins radiofôni- cos, telejornais”. Existe um deslocamento dessas mídias para a cha- mada “web 2.0”, onde cada ator pode “completar cada informação, acrescentando a ela uma precisão, um comentário, uma citação, uma foto ou um vídeo, num trabalho de inteligência coletiva”238. Por um lado, os oligopólios midiáticos são fortemente abalados pelo fator Internet, disseminando a possibilidade de interpretações. No entanto, toda essa conectividade, em uma

235 PINTO, Nalayne Mendonça. Recrudescimento penal no Brasil: Simbolismo e punitivismo. In: MISSE, Michel (Org.). Acusados e acusadores: estudos sobre ofensas, acusações e incriminações. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 237-267. 236 RAMONET, Ignacio. A explosão do jornalismo: das mídias de massa à massa de mídias. Tradução de Douglas Estevam. São Paulo: Publisher Brasil, 2012, p. 16. 237 Ibidem, p. 16-18. 238 Idem, p. 17.

68 69 sociedade punitivista, pode levar a pré-julgamentos inaceitáveis de acordo com preceitos democráticos, quando todos se tornam agentes da segurança pública. Esse quadro poderá, então, nos levar a “uma das manifes- tações mais cruéis da violência simbólica exercida pelas mídias, identificada no processo de ‘etiquetamento’, de rotulação e na criação do estereótipo criminoso”239. Nos dizeres de Mendonça Pinto:

A difusão do medo tem sido um mecanismo indutor e justificador de políticas autori- tárias de controle social. O medo torna- -se fator de tomadas de posição estratégi- cas seja no campo econômico, político ou social. Os meios de comunicação de massa geram a ilusão de eficácia da pena e alertam a percepção de perigo social, deslocando a atenção, em regra, para a criminalidade violenta. Nem se discutem a idoneidade e a desnecessidade da sanção penal, ou de sua exacerbação. Tem-se nos discursos de combate ao crime e do aumento das penas a valorização simbólica do direito penal como solução única e miraculosa para a violência social240.

De acordo com Martins, a tarefa do Direito se torna especial- mente difícil frente aos media. Isto porque estes funcionam como

239 ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um processo penal democrático: crítica à metástase do sistema de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 3. 240 PINTO, Nalayne Mendonça. Recrudescimento penal no Brasil: Simbolismo e punitivismo. In: MISSE, Michel (Org.). Acusados e acusadores: estudos sobre ofensas, acusações e incriminações. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 238.

68 69 “temíveis redutores de complexidade”241, ao reduzir a informação a um produto, no qual a celeridade é a commodity mais importante. Seguindo esse ponto de vista, de que existe uma padronização na veiculação de notícias, acrescenta-se o argumento de Ramonet:

[...] o único meio de que dispõe um cidadão para verificar se uma informação é verda- deira é confrontar os discursos dos diferen- tes meios de comunicação. Então, se todos afirmam a mesma coisa, não resta mais do que admitir esse discurso único242.

De acordo com a pesquisa realizada pela Secretaria de Co- municação Social da Presidência Nacional (SECOM) no final de 2010243, aproximadamente 52,2% da população entrevistada na Região Sul do país afirmaram ler jornais atualmente. Em que pese a pouca confiabilidade dispensada aos meios de comunicação, em geral (71,9%), o jornal aparece em terceiro lugar na lista dos veí- culos mais confiáveis para a obtenção de informações (11%), per- dendo apenas para a televisão (57,7%) e o rádio (11,4%). De acordo com a pesquisa, os telejornais sao os programas mais assistidos pela população entrevistada (36,9%), com uma pequena margem de vantagem sobre o segundo lugar, cuja posi- ção é atualmente ocupado pelas telenovelas (31,5%). Conforme Sodré:

241 MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito – The Brazilian Lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 68. 242 RAMONET, Ignácio. A tirania da comunicação. Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 45. 243 SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Hábitos de informação e formação de opinião da população brasileira II. 2010. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2013. Conferir, também, o trabalho de Deivid Willian dos Prazeres: PRE

70 71 O público constitui-se nos modos de organi- zação da cidadania e de auto-representação da sociedade, nos modos como ela deseja per- ceber-se e se tornar visível. Nesse ‘comum’, moldam-se as identidades sociais dos indiví- duos e as imagens da coletividade [...]244.

Diante desse quadro, Lopes Júnior245 sugere a aplicação ana- lógica do artigo 143 do Estatuto da Criança e do Adolescente- -ECA, cujo enunciado veda a identificação por qualquer meio do acusado de determinada infração. Igualmente, o autor propõe que seja coibida a figura do repórter investigativo, figura esta que, com a conivência das autoridades públicas, pouco se preocupam em preservar a intimidade do suposto delinquente. Tal regra tam- bém é utilizada no sistema alemão, conforme Del Monde246. Já Schreiber247 destaca que, dentre diversos fatores, princi- palmente, a vedação da introdução no processo de provas produ- zidas pelos instrumentos midiáticos, bem como a proibição de que

244 SODRÉ, Muniz. Sociedade, mídia e violência. 2. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2006, p. 86. 245 LOPES JUNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: (fundamentos da instrumentalidade constitucional). Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, p. 197. 246 Neste sentido, “A primeira coisa que choca um jurista inglês ou francês que lê um jornal procurando por notícias de investigações anteriores à ação penal é que há uma prática germânica de suprimir o nome do suspeito. A menos que a pessoa sob investigação seja uma celebridade, o seu nome não será mencionado nas notícias sobre a fase de investigação e será suprimido mesmo se o caso for julgado publicamente e o acusado condenado. Esta autorrestrição é muito diversa dos hábitos da imprensa francesa ou britânica onde, se a pessoa se encontra do lado errado da justiça criminal, a imprensa certamente dará a notícia de seu nome tão logo tenha havido a primeira imputação. A atitude oficial na Inglaterra e na França parece acarretar o risco de uma publicidade adversa, e que é um dos legítimos terrores da lei penal; algo que seria lógico, se o acusado fosse apenas mencionado quando de sua condenação, momento a partir do qual não seria mais concebível que seu nome não fosse identificado, antes do que, inclusive, ele teoricamente é presumido inocente” (LEMONDE, Marcel. Justiça e Mídia. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da Europa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 736). 247 SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva dos julgamentos criminais. Reflexões sobre a colisão da liberdade de expressão e o direito a um julgamento justo, sob a perspectiva da Constituição de 1988. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo (Org.).

70 71 as provas ilícitas sejam tornadas públicas. Para ela, “A colisão da liberdade de expressão e informação versus direito a um julga- mento criminal justo deve ser resolvida utilizando-se a técnica de ponderação e aplicando-se o postulado da proporcionalidade”248. Assim, quando os meios de comunicação em massa insistem em manter a prelação de que a pena é o método mais eficaz para a resolução da subversão penal, ignoram o fracasso do caráter retri- butivo da pena, sustentando apenas a aplicação da equação penal de que: se houve delito, tem que haver pena249.

1.2.2 Prova Testemunhal, Tempo e Esquecimento O passado se faz presente com a ajuda da memória. A ri- queza, a variedade e a liberdade que existem em nossa imagina- ção tornam possível a reconstrução de fatos passados tanto cons- cientes como inconscientes. O futuro será, sem dúvida alguma, o aspecto mais criativo e original da imaginação250. O tempo, neste sentido, exerce influência determinante para a qualidade das declarações e dos testemunhos. A sua atuação é tão importante que poderia, inclusive, fazer-nos repensar o con- ceito de provas repetíveis. Quando trabalhamos com a realidade do procedimento policial e o hiato existente entre a oitiva em dele- gacia e o testemunho perante o magistrado, é necessário saber que não se trata de mera repetição daquilo que foi dito há um longo

Processo penal e democracia: estudos em homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 556. 248 SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva dos julgamentos criminais Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 18, n. 86, p. 357, set./out. 2010. No mesmo sentido: POZZEBON, Fabrício Dreyer de Ávila. mídia, direito penal e garantias. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos. 2. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2012, p. 299-310. 249 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, v. 7, n. 12, p. 273, jul./dez. 2002. 250 LOZANO, Raúl Cadena; CALDERÓN, Julián Herrera. Reflexiones sobre el testímonio, la argumentación jurídica y las técnicas de interrogatorio y contrainterrogatorio en el sistema acusatorio. Bogotá: Nueva Jurídica, 2010, p. 75.

72 73 tempo251 atrás. Pelo contrário, a questão mostra-se muito mais deli- cada do que nossa burocracia judiciária possa dar conta. O Direito será afetado, pois a sociedade existe somente no tempo presente. Para o Direito, o tempo provoca a prescrição do crime, define a vigência da lei, constitui a imputabilidade do réu, extingue a punibili- dade, define o momento do crime, entre outras situações. Ainda: determina a ordem dos atos processuais, o seu prazo de realização, a preclusão, fragiliza a persuasão do julgador, pro- voca descrédito no Judiciário, pela demora da resposta ao crime. Diminuirão, por consequência, gradativamente, os registros da consciência das testemunhas que “ainda constituem a mais im- portante prova, lamentavelmente”252. Segundo Perfecto Ibañez253, no tocante à avaliação de credibilidade da testemunha, normalmente se trabalha com a noção de que esta pessoa sempre trabalha com a intuição, uma

251 Seguindo a mesma lógica, Thums esclarece que “tempo é movimento, e processo é movimento. O tempo é uma categoria dos sistemas processuais, embora não seja estruturante do modelo, representa uma das características para defini-lo. Sob este ângulo, os procedimentos significam movimento, isto é, o Estado, através do Poder Judiciário, desenvolve o processo, culminando com o julgamento de um fato pretérito. Os fatos ocorrem no tempo, que já é passado, e o processo se desenvolve no presente, em constante movimento” (THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 297). E ainda “os fatos que interessam ao Direito Processual Penal ocorrem no tempo e no espaço e são captados pela consciência humana e às vezes por instrumentos. O espaço está diluído no tempo. A vida flui no tempo. O mundo está no tempo. O homem só vê a matéria, mas o tempo precisa ser constatado, porque decorre do movimento da matéria. O futuro não existe ainda, nem existirá jamais, porque só existe o presente. O passado já não mais existe e o presente representa um hiato entre estes dois tempos, e é nesse hiato que a vida flui, por que o tempo corre sempre” (Ibidem, p. 1). 252 THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 2. Especialmente porque o Direito (processo penal e na execução da pena) “se utiliza de bases deterministas, nas quais o seu caráter absoluto afastava qualquer necessidade de análise, visto mostrar-se igual em qualquer condição experimental – tempo linear e absoluto” (MORETTO, Rodrigo. Crítica interdisciplinar da pena de prisão. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 147). 253 IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Sobre el valor de la Inmediación (una aproximación critica). In: BONATO, Gilson (Org.). Processo penal: leituras constitucionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 189.

72 73 função do sexto sentido a permitir a captação de tudo aquilo que a técnica não alcança. Importante também são as considerações de Di Gesu, ao afirmar que:

Os estudos demonstram não ser o pro- cesso mnemônico fidedigno à realidade, isto é, a lembrança não reconstrói o fato tal e qual ocorreu na realidade. A memó- ria, ao ser evocada, apresenta uma síntese aproximativa daquilo que foi percebido. Além disso, as recordações são fortemente influenciadas pela emoção. Com efeito, inegável ser o delito uma forte emoção para aquele que o presencia ou que dele é vítima. O sentimento, nesse contexto, vem a minimizar a observância dos detalhes do acontecimento, ou seja, prejudica aquilo que os depoentes viram e ouviram. Disso tudo resulta a inviabilidade da cisão entre razão e emoção proposta por Descartes. Da mesma forma, a situação fez-nos pen- sar que a testemunha não pode ser tratada pela legislação processual de forma obje- tiva, pois inegável que ela narra o fato em primeira pessoa254.

Veremos em nosso capítulo seguinte que a emoção, na rea- lidade, conforme estudos recentes da Psicologia do testemunho, possui um efeito variável para a evocação de memórias. Um crime possui conteúdo potencialmente traumático para a testemunha que o presencia, no entanto a sua “fixação” dependerá de como o indivíduo o percebe. Dessa forma, a emoção pode servir tanto

254 DI GESU, Cristina Carla. Prova penal e falsas memórias. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008, p. 255.

74 75 para facilitar a rememoração de uma lembrança (no exemplo de um transtorno de estresse pós-traumático), como para reprimi-la, variando de acordo com aquele que a evoca. Como possível forma de atenuação do problema se apontam medidas de redução diante da impossibilidade de outra solução255. Para tanto, são trazidas as seguintes sugestões:

a) a colheita dos depoimentos em um prazo razo- ável, objetivando a diminuição da influência do tempo (esquecimento) na memória;

b) a adoção de técnicas de interrogatório e da entrevista cognitivas, com o intuito de obter informações quantitativas e qualitativa- mente superiores as das entrevistas tradi- cionais, altamente sugestivas;

c) a gravação das entrevistas, permitindo ao julgador de segunda instância, o conheci- mento do modo como os questionamentos foram elaborados, bem como as reações dos entrevistados;

d) a realização das perguntas pelas partes após o relato livre do entrevistado (vítima ou tes- temunha), complementando, o magistrado, ulteriormente, os questionamentos;

e) a inutilizabilidade dos relatos (depoimentos) contaminados direta e indiretamente;

f) a formação multidisciplinar dos profissionais encarregados da realização das inquiriações, com atualizações constantes;

255 GIACOMOLLI, Nereu José; DI GESU, Cristina Carla. Fatores de contaminação da prova testemunhal. In: GIACOMOLLI, Nereu José; MAYA, André Machado (Orgs.). Processo penal contemporâneo. Porto Alegre: Núria Fabris, 2010, p. 23.

74 75 g) a exploração de outras hipóteses, diver- sas da acusatória, por parte do entrevista- dor, fazendo-se uma abordagem de outros aspectos ofertados pela vítima ou pelas tes- temunhas, por ocasião dos depoimentos256.

Primeiramente, trabalhar com a ideia do que seria prazo ra- zoável parece bastante movediça. O conteúdo dependerá sempre de um referencial, dificultando de forma determinante a aplica- ção dos postulados universalizantes do Direito. Apesar de as técnicas cognitivas serem importantes aliados em países onde as pesquisas sobre testemunho possuem maior tempo de desenvolvimento, inexiste possibilidade de afirmar o afastamento dos protagonistas/entrevistadores de concepções pu- nitivistas do sistema e que influenciam também a forma de ob- tenção dessas informações. Esta observação também serve para o caráter multidisciplinar da formação dos atores: de nada adian- tará caso inexista comprometimento com garantias fundamentais dentro do processo penal. Ainda: veremos a seguir sobre a ausência de unanimidade quanto à técnica cognitiva e suas possíveis críticas. Também não se pode ignorar a existência de uma cultura autoritária tocante às polícias e à dificuldade de implementação das estratégias de inquirição. Prova disso são os resultados tímidos da incorporação de valores constitucionais, em que pesem 25 anos de vigência de nossa Constituição Federal. A gravação das entrevistas nos parece mecanismo bastante interessante, de forma a ampliar o debate em segunda instância. Problema fundamental, no entanto, é identificar a insuficiência do método para as instâncias superiores em função da vigência do paradigma de relação jurídica de ação penal. Aqui, distingui- mos fato e direito, como se fosse possível o julgamento relativo a

256 GIACOMOLLI, Nereu José; DI GESU, Cristina Carla. Fatores de contaminação da prova testemunhal. In: GIACOMOLLI, Nereu José; MAYA, André Machado (Orgs.). Processo penal contemporâneo. Porto Alegre: Núria Fabris, 2010, p. 38-39.

76 77 apenas uma dessas circunstâncias. Logo, a eficácia da estratégia também seria limitada. O relato livre de vítima e testemunhas é fundamental. No entanto, a complementação dos questionamentos por parte do magistrado revela flagrante ofensa ao princípio acusatório. Não só: é bastante temerária a hipótese, admitindo-se a possibilidade de perguntas de cunho confirmatório por parte de alguém (ou que deveria ser) visto pelo inquirido como um terceiro imparcial. Dessa forma, é necessário que nos perguntemos se uma concepção de política criminal conservadora257 não pode per- mitir um sistema mais propício à sugestionabilidade ao longo da oitiva de pessoas (em fase policial e judicial) e que pode se materializar em falsas memórias? Importante indicativo podemos ter, a partir das pesquisas de Azevedo em relação à atuação dos promotores públicos no Rio Grande do Sul e dos membros do Ministério Público Federal. Quanto aos primeiros, 54% consideraram que possuíam mais afi- nidade com a política criminal da “Tolerância Zero” como forma de responder às altas taxas de criminalidade. A concepção garan- tista (que estudamos em nosso terceiro capítulo) apareceu com apenas 8% de adeptos258. No tocante à pesquisa realizada com os membros do Ministé- rio Público Federal259, 67,6 % dos entrevistados consideram a legis-

257 Nessa esteira, também, as importantes preocupações de Di Gesu: “Ademais, as recordações estão sujeitas a contaminações de várias ordens, dentre elas destacamos o tempo e o viés do entrevistador, fomentadores da falsificação da lembrança. Quanto maior o transcurso de tempo entre o fato e as primeiras declarações, maior a possibilidade de a testemunha ou a vítima incorporar à sua percepção elementos externos, havendo uma verdadeira confusão entre aquilo que realmente ocorreu e as informações adquiridas posteriormente por intermédio dos jornais, da televisão, de uma conversa com um amigo, da inquirição por médicos, psicólogos e policiais. O tempo, além disso, é fundamental para o esquecimento, principalmente dos detalhes que interessam ao processo” (Ibidem, p. 256). 258 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Ministério Público Gaúcho: quem são e o que pensam os promotores e procuradores de justiça sobre os desafios da política criminal. Porto Alegre: Ministério Público do Rio Grande do Sul, 2005. 259 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Perfil socioprofissional e concepções de política criminal do Ministério Público Federal. Brasília: Ministério Público Federal, 2009.

76 77 lação penal e processual penal brasileira branda ou excessivamente branda. Ainda: em relação às concepções de política criminal, 34,7% dos membros estão de acordo com os ditames da “defesa social” e 12,6%, com a “tolerância zero”. Contudo, 13,2% conside- ram-se adeptos ao garantismo penal e 0,6, ao abolicionismo penal. Por certo, esses dados são de grande relevância, todavia reve- lam apenas o atuar penal de uma das partes envolvidas no sistema penal. Provisoriamente, seria possível pensar que pesquisas neste sentido podem ser importantes não somente para os titulares da ação penal (por excelência), como também, para os juízes260, advo- gados (que igualmente podem justificar a sua atuação com base em concepções político-criminais conservadoras) e delegados. Em nosso próximo capítulo, passaremos a estudar como ou- tras ciências humanas tratam com o (persistente) problema da memória. Tentaremos verificar o estado atual das pesquisas no que concerne à evocação de lembranças, as (im)possibilidades de narração e, ao final, as (in)compatibilidades deste quadro com nosso sistema normativo.

Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2012. 260 Sobre os juízes, afirma Messuti: “[...] é precisamente o juiz quem colocará em macha todos os processos temporais que se desenvolvem no pensamento penal. O fato, o ato, a vontade (e, portanto, a pessoa), que se apresentam e que ele deve conhecer, examinar, discernir e finalmente julgar, estão situados no passado, assim como a lei em conformidade à qual julga. E, assim, ele deve trazê-los do passado ao presente e ver a sua prolongação no futuro [...] É o juiz quem deve fazer surgir a unidade temporal diante de seus próprios olhos, diante dos olhos das partes e diante dos olhos da sociedade em geral. E justamente porque esta verdade sintética é estranha à sua consciência pessoal é que está em condições de atuar em conformidade com sua razão de ser e com sua posição de terceiro” (MESSUTI, Ana. O tempo como pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 117).

78 79 2. Memória(s) e Testemunho: A partir de um Enfoque das Neurociências e da Psicologia Forense

“Infelizmente, nossa cultura atual endossa uma definição muito limitada de verdade. Se algo não pode ser quantificado ou calcu- lado, então não pode ser verdadeiro. Como essa rígida abordagem científica já expli- cou tanto, aceitamos que ela possa expli- car tudo. Mas todo método, até mesmo o experimental, tem limites. Pense na mente humana. Os cientistas descrevem nosso cérebro em termos de detalhes físicos; dizem quem somos apenas uma tecelagem de células elétricas e espacos sinápticos. Mas a ciência se esquece de que não é assim que experimentamos o mundo. (Sentimos como o fantasma, não como a máquina.) “.

(LEHRER, Jonah. Proust foi um neuro- cientista, p. 13).

A partir de agora, tentaremos identificar as correlaçãos exis- tentes entre memória(s) e testemunho. Para tanto, iniciaremos nosso esforço com as relações entre a memória biológica e os seus efeitos, para após inserirmos elementos cognitivos e psiquiátricos. Neste momento, torna-se (quase) irresistível não aderir às figuras utilizadas, inclusive, por Henri Bergson, para tentar ex- plicar as estruturas cerebrais. Ao estabelecer a importância das neurociências para nosso estudo, tenta-se transcender às amarras

78 79 jurídicas, a fim de trazer alguma luz e diminuir alguma opacidade acerca do tema da memória1. A memória pode ser vista como um fenômeno biológico, fundamental e extremamente complexo e continua a ser um dos grandes enigmas da natureza. O avanço das neurociências, após o termino da Segunda Guerra Mundial, e o grande salto da neuropsicologia em direção a um conjunto de conhecimentos até então desconhecidos propiciaram um mergulho na área que fascina e intimida desde os primórdios da humanidade. O estudo da memória é interdisciplinar, abrangendo áreas, como a psicolo- gia, a neurologia, a psiquiatria, a biologia molecular, a genética, a neuroanatomia, a filosofia, a história e outras. Porém, o conhe- cimento apenas resvala a superfície de um ainda vasto mistério2. A incompletude de informações sobre o fenômeno e, prin- cipalmente, a eterna dificuldade de determinação nos levam, tal- vez, ao maior sintoma de complexidade3. Não apenas de nossa época em si, mas, nossa. A este nós designamos a coletividade (inseparável do indivíduo4) e a impossibilidade de sua apreen-

1 Ver: BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, ps. 118, 155, 167, 178 e 190. 2 CORRÊA, Antônio Carlos de Oliveira. Neuropsicologia da memória e sua avaliação. In: FUENTES, Daniel (Org.); MALLOY-DINIZ, Leandro F. (Org.); CAMARGO, Candida H. Pires (Org.); COSENZA, Ramon Moreira (Org.). Neuropsicologia – teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 2008, p. 168. Para Vasconcellos a memória pode ser descrita, em termos gerais, como a capacidade de repetir um desempenho (VASCONCELLOS, Silvio José Lemos. Memória, evolução e psicologia evolucionista. In: OLIVEIRA, Alcyr Alves (Org.). Memória: cognição e comportamento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 87). 3 Utilizamos aqui a noção de Edgar Morin acerca da complexidade: “A um primeiro olhar, a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. Mas, então, a complexidade se apresenta com os traços inquietantes, do inextricável, da desordem, da ambigüidade, da incerteza [...]” (MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2006, p. 13). 4 Na concepção utilizada por Norbert Elias, conferir: ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

80 81 são. O eterno problema da memória como tema intrinsecamente interdisciplinar5 é marca indelével de nosso tempo. Tempo com- plexo, informado pela velocidade, aceleração e indeterminação6. Elias dirá que os aspectos biológicos, psicológicos e sociológi- cos são objetos de disciplinas diferentes, que trabalham indepen- dentemente. Assim, os especialistas costumam apresentá-los em separado. Coloca o autor que a verdadeira tarefa de pesquisa con- siste em compreender e explicar como esses aspectos se entrelaçam no processo e representar simbolicamente o seu entrelaçamento em um modelo teórico com a ajuda de conceitos comunicáveis7. Tal dificuldade apontada por Norbert Elias é latente na ca- racterística hermética das neurociências, como a neuroanatomia. A despeito da falência de um monólogo cartesiano e da com- partimentalização do conhecimento e disciplinas, cada vez mais específicas, ainda se percebe grande dificuldade em termos de co- dificação, acessível ao leitor não iniciado naquela área do saber.

5 Citamos a noção de interdisciplinaridade aqui trabalhada: “[...] em primeiro lugar, de acordo com o seu sentido etimológico, como reciprocidade, em que o prefixo inter demarca uma posição intermediária, de reciprocidade, interação, o que implica um sentido epistemológico de dialogicidade, de perceber no pensamento e no conhecimento a dimensão da interação, da construção de uma temporalidade na própria radicalidade crítica do diálogo, sem qualquer dimensão de fechamento numa totalidade [...] Sem querer teimar na dicotomização complexo/simples, insistimos na idéia da interdisciplinaridade como um ponto de partida metodológico para lidar com a complexidade do conhecimento, o que significa postular a idéia de que o conhecimento surge na diferença, do não-idêntico, mesmo que tenhamos de lidar e jogar com certas formalizações e tipologias que implicam a identidade” (ARMANI, Carlos Henrique. Tempo, história e interdisciplinaridade. In: CANCELLI, Elizabeth; GAUER, Ruth M. Chittó. Sobre interdisciplinaridade. Caxias do Sul: Educs, 2005, p. 66-67). 6 Cf. VIRILIO, Paul. A inércia polar. Lisboa: Dom Quixote, 1993; e PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. São Paulo: Unesp, 1996. 7 ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1996, p. 153. Mafessoli também identifica a necessidade de superação da compartimentalização dos conhecimentos, na seguinte passagem: “O sexo, a aparência, os modos de vida, até mesmo a ideologia são cada vez mais qualificadas em termos (trans..., meta...) que ultrapassam a lógica identitária e/ou binária” (MAFESSOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 92).

80 81 Talvez, também, seja sintoma do risco assumido ao realizar pes- quisa de caráter interdisciplinar. Como fenômeno complexo que é, dificilmente se estabelecerá o que é a memória, mas somente olhares possíveis sobre ela. Den- tro desta inafastável aporia, tentar-se-á elaborar algumas questões, longe da arrogante e prepotente possibilidade de solucioná-las. Assim, dentro da literatura, têm-se observado algumas questões persistentes acerca da memória: É Possível conservá-la? Regenerá-la? Interpretá-la com alguma segurança? Colocá-la em um plano absolutamente racional? O “sim” ou “não” e, princi- palmente o seu conteúdo necessitará da intersecção de saberes, vinculados a entrelugares, para poderem sequer serem pensados. As visões que serão apresentadas a seguir serão, necessaria- mente, insuficientes8. Talvez, a partir desta tentativa de aproxi- mação na união de partes, que formam o mosaico ou o caleidos- cópio, é que se apresentará o processo (i)memorial. Somente o diálogo, quando possível, dirá.

2.1 Memória Biológica: Contribuições das Neurociências

O cérebro humano tem cem bilhões de neurônios, e boa parte deles é capaz de formar, armazenar e evocar memórias. Em princípio, a “capacidade instalada” é enorme. Cada neurônio faz sinapse com milhares de outros. Mas nem todos os neurônios estão envolvidos no processamento das memórias, muitos deles inclusive inibem a formação ou a evocação de memórias, e um número muito grande de neurônios, incluindo os do hipocampo e de várias regiões corticais (pré-frontal, frontal, temporal, parie- tal), que se especializam justamente na formação e evocação de

8 Ivan Izquierdo reconhece que “uma memória, por mais simples que seja, é feita de muitos componentes, e muitos deles são difíceis de medir” (IZQUIERDO, Ivan. Questões sobre a memória. São Leopoldo: Unisinos, 2004, p. 119).

82 83 memórias, está constantemente submetido aos efeitos modula- dores de vias nervosas vinculadas com o nível de alerta, com as emoções, os sentimentos e os estados de ânimo9. O cérebro reúne percepções pela interação simultânea de conceitos inteiros, de imagens inteiras. Em vez de usar a lógica predicativa de um computador, de um chip, o cérebro é um pro- cessador analógico, o que significa, essencialmente, que ele fun- ciona por analogia e metáfora. Relaciona conceitos completos uns com os outros e procura estabelecer as semelhanças, dife- renças ou tipos de ligações existentes entre eles. Não procede a montagem de pensamentos e sentimentos a partir de pequenos fragmentos de dados10. Somente é possível nos conhecer, porque podemos recor- dar. A memória é a força centrípeta que congrega aprendizagem, entendimento e consciência. No passado, se acreditava que, no cérebro, um neurônio era igual a uma memória e que cada seção do cérebro executada isoladamente a sua operação específica. Atualmente, essa noção é tão absurda quanto a frenologia, criada por Franz Joseph Gall no início do século XIX, para estudar as protuberâncias cranianas que, segundo ele, refletiam os traços da personalidade que se ocultavam dentro do crânio11. O conhecimento científico tem obsessão por determinar o “lugar” da memória, ou seja, onde estão “armazenadas”. Estão nos neurônios da percepção, quando vemos ou ouvimos algo pela primeira vez? No hipocampo, que congrega todas as memórias? No lobo frontal, que ativa a recordação? Em nenhum e em todos. A pergunta mais elementar ainda é esta: o que é memória?12

9 IZQUIERDO, Ivan. Questões sobre a memória. São Leopoldo: Unisinos, 2004, p. 51. 10 RATHEY, John J. O cérebro – um guia para o usuário. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 13. 11 Ibidem, p. 208. 12 RATHEY, John J. O cérebro – um guia para o usuário. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 209.

82 83 Endel Tulving13 vem investigando a memória há mais de 40 anos e ainda não sabe que nome dar a ela. É o espaço ar- mazenagem ou o ato e estratégia de recuperação? Memória é o ato de vasculhar a memória ou é, em primeiro lugar, a energia dedicada à formação da memória? Uma memória só se forma quando é solicitada. Em seu estado inativo, não é detec- tável. Portanto, não é possível separar o ato de recuperação e a própria memória. Assim, fragmentos de uma única lembrança estão armazenados em diferentes redes de neurônios espalha- das por todo o cérebro. Todos os fragmentos são reunidos a partir do momento em que evocamos essa lembrança14. Izquierdo tenta definir memória como a aquisição, a forma- ção, a conservação e a evocação de informações. A aquisição é também chamada de aprendizagem: só se “grava aquilo que foi aprendido”15. A evocação é também chamada de recordação, lembrança e recuperação. Só nos lembramos daquilo que grava- mos, daquilo que foi aprendido16. Por outro lado, somos também aquilo que esquecemos. O cérebro escolhe cuidadosamente quais são as lembranças inde- sejáveis que não se deseja trazer à tona e evita recordá-las: as humilhações, por exemplo, ou as situações produndamente des- gradáveis ou inconvenientes. De fato, não as esquece, senão ao contrário: as lembra muito bem e muito seletivamente, mas as torna de difícil acesso17. O fenômeno do esquecimento é fisiológico e desempenha um papel adaptativo. No conto “Funes, o Memorioso”, o escri- tor Jorge Luís Borges, citado por Izquierdo, refere o caso de um

13 Ver: TULVING, E. Elements of episodic . Boston: Oxford Clarendon Press, 1983; e TULVING, E. : From mind to brain. Annual Review of Psychology, v. 53, p. 1-25, 2002. 14 RATHEY, John J. O cérebro – um guia para o usuário. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 209. 15 IZQUIERDO, Ivan. Memória. Porto Alegre: Artes Médicas, 2006, p. 9. 16 Ibidem, p. 9. 17 Idem, p. 9.

84 85 camponês que conseguia lembrar-se absolutamente de tudo o que via ou escutava. Assim, Funes era capaz de lembrar-se de todos os fatos e eventos de cada dia de sua vida, até o mínimo detalhe. Para fazê-lo, no entanto, era preciso, cada vez que fosse recuperar essas memórias, um dia inteiro de sua vida. Dessa forma, ficava literalmente prisioneiro de seu próprio tempo e era ‘incapaz de raciocinar, do que é preciso generalizar, e o que é necessário es- quecer’. Nossa vida social, de fato, seria impossível, se nos lem- brássemos de todos os detalhes de nossa interação com todas as pessoas e de todas as impressões que tivemos de cada uma dessas interações. Não poderíamos sequer dialogar com os seres queri- dos se, cada vez que os víssemos, viesse à nossa lembrança algum mal-estar ou briga ou humilhação, por menores que fossem18. Para Vasconcellos, a razão de ser da memória das respec- tivas estruturas que a viabilizam vinculam-se à necessidade de sustentar adaptações. Essas adaptações mostram-se condizentes com a espécie e o tipo de ambiente em que estas se desenvolvem. No caso dos seres humanos, as adaptações revelam-se ainda mais específicas, necessitando de um longo processo de especialização e diferenciação da memória19. Um marco na neuroanatomia da memória foi em 1953, quando Scoville operou um homem com crises epiléticas intra- táveis. Aos 27 anos, H. M., teve ablação bilateral do lobo tempo- ral em uma tentativa de impedir as convulsões que ocorriam há muitos anos. Uma vez recuperado da cirurgia, ficou evidente que H. M. era incapaz de aprender novas informações e apresentava todas as características de amnésia clássica. Foram também rela- tados os casos de oito pacientes psicóticos que passaram por cirur- gias similares. Amnésia grave se desenvolveu após a remoção do hipocampo, mas, sendo este poupado, a ela não se desenvolvia.

18 IZQUIERDO, Ivan. Memória. Porto Alegre: Artes Médicas, 2006, p. 30. 19 VASCONCELLOS, Silvio José Lemos. Memória, evolução e psicologia evolucionista. In: OLIVEIRA, Alcyr Alves (Org.). Memória: cognição e comportamento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 87.

84 85 Os autores concluíram que o hipocampo intacto se fazia necessá- rio para o funcionamento normal da memória20. Por óbvio é que o hipocampo e as áreas adjacentes não são as únicas estruturas cerebrais envolvidas na memória. A memória sensorial é provavelmente processada pelos respectivos sistemas corticais a ela relacionados. A informação para os sistemas de me- mória declarativa e episódica entram no cérebro via canais sen- soriais e, então, é armazenada “on-line” ou por pouco tempo em áreas de associação cortical, particularmente do córtex parietal lateral. O hipocampo, parte do sistema límbico, é crucial à me- mória, para entrar no armazenamento de longo prazo, mas outras estruturas são também importantes21. Damásio acredita que os elementos cerebrais se reúnem e se combinam em “zonas de convergência”, perto dos neurônios sensoriais que primeiro registram o acontecimento. Para tanto, se utilizou de imagens por ressonância magnética para localizar zonas de convergência que supervisionam a recordação de nomes de objetos e animais e outras zonas que unem a informação sen- sorial sobre pessoas, percepção e emoção22. Pensamos muito simplesmente em “chaves de fendas”. Toda vez que nos deparamos com uma delas, reconhecemos esse ob- jeto, ativando as conexões que já fizemos com as suas muitas características, e é precisamente, quando adquirimos não só um nome, mas também, um conceito holístico da peça, é que pode emergir o verdadeiro entendimento acerca dele. Desde que uma criança pequena tenha sido seriamente advertida várias vezes para se manter afastada do fogão, porque está “quente!” e vai fazer “dodói”, a simples menção de fogão é bastante para suscitar a lembrança plena de que é preciso ficar longe dele23.

20 WILSON, Barbara. Reabilitação da memória. Porto Alegre: Artmed, 2011, p. 36. 21 WILSON, Barbara. Reabilitação da memória. Porto Alegre: Artmed, 2011, p. 36-37. 22 DAMÁSIO, Antônio. O erro de Descartes – Emoção, razão e cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 164. 23 RATHEY, John J. O cérebro – um guia para o usuário. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 211.

86 87 Para Damásio24, existe, ainda, uma hierarquia de zonas de convergência. As “inferiores” ligam os sinais que nos permitem entender o conceito geral de “rosto”, ao passo que as zonas de convergência “superior” nos habilitam a reconhecer rostos espe- cíficos. Ligando as duas, estão as zonas de convergência interme- diárias que diferenciam detalhes em rostos individuais – linha do nariz, palidez, formato dos olhos. O mérito de Damásio é ilustrar a eficiência do cérebro. Em vez de armazenar uma sucessão infinita de filmes diários, o cérebro reconstitui-os a partir de um número administrável de elementos reutilizáveis pela experiência. O significado de sentir “frio” é uma peça de um quebra-cabeça que está disponível, para ajudar a completar muitos quebra-cabeças diferentes: um vento de inverno, uma caverna, um sorvete25. A noção de que a memória não é uma entidade única tem origem em estudos tanto da moderna neuropsicologia como da psicologia cognitiva. O estudo de pacientes amnésicos levou di- versos autores a propor que a memória é composta de múltiplos sistemas. Essa é uma abordagem relativamente recente, refletindo em grande medida o desenvolvimento da neuropsicologia que en- fatiza a relação cérebro-mente e cérebro-comportamento26. Chamaremos de memórias declarativas aquelas que regis- tram fatos, eventos ou conhecimento, pois nós, seres humanos, podemos declarar que existimos e podemos relatar como as ad- quirimos. Entre elas, as referentes a eventos aos quais assistimos ou dos quais participamos são denominadas “episódicas”, as de conhecimentos gerais, “semânticas”27.

24 DAMÁSIO, op. cit., p. 164. 25 RATHEY, John J. O cérebro – um guia para o usuário. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 211. 26 BUENO, Orlando F. A. Atualizações no conceito de memória. In: MIOTTO, Eliane Correa; LUCIA, Mara Cristina Souza de; SCAFF, Milberto (Orgs.). Neuropsicologia e as Interfaces com as neurociências. Porto Alegre: Casa do Psicólogo, 2005, p. 149. 27 IZQUIERDO, Ivan. Memória. Porto Alegre: Artes Médicas, 2006, p. 22.

86 87 A memória episódica é a capacidade de situar fatos e eventos no tempo e de se lhes fazer livremente referência. É a utilizada para evocar experiências pessoais28. Envolve um mer- gulho no passado, para recordar o nascimento do nosso pri- meiro filho, bem como olhar para o futuro, a fim de imaginar umas férias previstas para o mês seguinte29. Nas palavras de Tulving, “memória episódica é um sistema que recebe e armazena informação sobre eventos ou episódios tem- poralmente datados e as relações têmporo-espaciais entre eles”30. A memória episódica é, por necessidade, muito mais plástica do que a semântica, porém é muito menos confiável e pode ser distor- cida por toda espécie de distrações, incluindo o medo, a ansiedade e o estresse. As lembranças semânticas são, com frequência, adquiri- das maquinalmente, pela força do hábito, ajudado pela nossa capaci- dade para generalizar e categorizar. A memória episódica não pode, por sua natureza, ser adquirida desse modo. De fato, o significado grego de memória episódica é “tecer uma história” – uma criação feita de pensamentos, crenças, interpretação e emoção31. Os experimentos tradicionais (por exemplo, o de recorda- ção livre) apenas focam em um dos aspectos do episódio: “o que” aconteceu. Para lembrar-se “do que” aconteceu, a pessoa pre- cisa frequentemente tentar colocar o acontecido no seu tempo e lugar, isto é, contextualizá-lo no tempo e no espaço32. O conceito de memória episódica sugere o desdobramento do ato de lembrar nestes três componentes, o quê, quando e onde. Outro aspecto do conceito de memória episódica é que ela se refere a uma ex- periência consciente de recuperação daquilo que aconteceu no passado. É este aspecto, interpretado como trazer de volta à cons-

28 WILSON, Barbara. Reabilitação da memória. Porto Alegre: Artmed, 2011, p. 26. 29 RATHEY, op. cit., p. 225. 30 TULVING, E. Elements of episodic memory. Boston: Oxford Clarendon Press, 1983, p. 45. 31 RATHEY, John J. O cérebro – um guia para o usuário. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 226. 32 TULVING, E. Episodic Memory: From mind to brain. Annual Review of Psychology, v. 53, p. 1-25, 2002.

88 89 ciência, que aproxima este conceito dos conceitos de memória declarativa e explícita33. Essas memórias são processadas basicamente pelo hipo- campo, córtex entorrinal, córtex parietal e córtex cingulado ante- rior e posterior. O córtex cingulado está na parte medial dos lobos parietal e occipital. As comunicações das diversas áreas corticais entre si e com o hipocampo são também via córtex entorrinal34. Antes de realizar a tentativa de situarmos a memória no tempo, a base sobre a qual formamos e evocamos memórias constantemente é constituída por ‘memórias e fragmentos de memórias’, mas, principalmente, pelos últimos35. Temos mais memórias extintas ou quase-extintas no nosso cérebro do que memórias inteiras e exatas. Basta, por exemplo, pedir a qualquer um que relate tudo o que aconteceu no ano passado ou no dia de ontem. Podemos fazê-lo em poucos minutos, justamente pela prevalência do esquecimento36. A imensa maioria das coisas que aprendemos ao longo de todos os dias de nossas vidas se extingue ou se perde. A mais im- portante forma de esquecimento é justamente a extinção: a maio- ria das memórias que juntamos se perde por falta de reforço37. As memórias remanescentes serão classificadas em memória de curta duração e de longa duração. A primeira dura alguns mi- nutos ou horas, e a segunda, mais de um dia. Para certas memó- rias, um tempo intermediário é usado para as consolidar, da forma menos estável para as mais permanentes. As memórias de curta e de longa duração são facilmente distinguíveis38.

33 BUENO, Orlando F. A. Atualizações no conceito de Memória. In: MIOTTO, Eliane Correa; LUCIA, Mara Cristina Souza de; SCAFF, Milberto (Orgs.). Neuropsicologia e as interfaces com as neurociências. Porto Alegre: Casa do Psicólogo, 2005, p. 150. 34 IZQUIERDO, Ivan. Questões sobre a memória. São Leopoldo: Unisinos, 2004, p. 32-33. 35 IZQUIERDO, Ivan. Questões sobre a memória. São Leopoldo: Unisinos, 2004, p. 32-33. 36 IZQUIERDO, Ivan. Memória. Porto Alegre: Artes Médicas, 2006, p. 32. 37 IZQUIERDO, Ivan. Memória. Porto Alegre: Artes Médicas, 2006, p. 32. 38 RATHEY, John J. O cérebro – um guia para o usuário. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 217-218.

88 89 Se a Long Term Potential ou Potencial de Longa Duração (LTP) e, por conseguinte, uma memória – é para durar mais do que algumas horas. As proteínas, produzidas no primeiro neurô- nio, devem encontrar o seu caminho para as sinapses específicas e ligar-se a elas. Esse é, assim, um acontecimento que muda a estru- tura das sinapses e aumenta a sua sensibilidade para um sinal que chega. Isso pode explicar por que devemos repetir muitas vezes uma lista de palavras para memorizá-la39. O modelo de Artkinson e Shiffrin40 foi um marco na consti- tuição do pensamento sobre a memória de curto prazo. Segundo esse modelo, conhecido posteriormente como o modelo modal, o fluxo de informação passa sucessivamente por três estágios in- terligados. Inicialmente, a informação é processada por uma série de depósitos sensoriais transitórios que armazenam a informação sensorial. Daí a informação passa para um depósito de curto prazo e de capacidade limitada que se comunica, por sua vez, com um depósito de longo prazo e de capacidade ilimitada. O papel do depósito de curto prazo é essencial para esse mo- delo. Em primeiro lugar, porque, para atingir o depósito de longo prazo, a informação precisa passar necessariamente pelo de curto prazo, o que equivale a dizer que toda memória permanente já co- nheceu antes uma forma lábil. Segundo, porque o portão de saída do depósito de longo prazo é também a memória de curto prazo. Finalmente, porque é ali o local onde se desenvolve a vida mental consciente. Além de armazenar informação por curtos períodos, a atividade do depósito de curto prazo compreende processos de controle, dos quais a repetição subvocal ou reverberação é um exemplo. O indivíduo pode decidir se repete ou não determina- dos itens, os quais recirculam pelo depósito de curto prazo, se a escolha foi positiva. Quanto mais tempo um determinado item

39 Ibidem, p. 218. 40 ATKINSON, R.C.; SHIFFRIN, R.M. Human memory: a proposed system and its control processes. In: SPENCE, K. The psychology of learning and motivation: advances in research and theory 2. New York: Academic Press, 1968, p. 89-195.

90 91 permanece no depósito de curto prazo, maior é a probabilidade de que ele venha a ser transferido para o de longo prazo41. A importância da codificação e da decodificação para o fun- cionamento do sistema de memória é sinalizada: a informação deve ser armazenada em alguma forma de código, que deve ser recon- vertida como informação, quando a lembrança ocorre, assim como o sistema telefônico transforma a voz humana em ondas eletromag- néticas e novamente em voz humana do outro lado da linha. O processo de memorização envolveria, então, três estágios: codifica- ção, armazenamento, decodificação, correspondentes à aquisição, consolidação e evocação, a serem vistas logo mais42. Uma pesquisa recente dá conta, no entanto, de que existiria mais uma fase entre a consolidação e evocação de memória re- cente: a reconsolidação. Tratando-se de memórias traumáticas, o fenômeno da reconsolidação ocorre, quando as memórias, ao serem evocadas, tornam-se passíveis de novas modificações. No experimento, ratos eram expostos a um breve estímulo de recor- dação para, a seguir, serem submetidos à sessão de extinção da me- mória. Como resultado, os animais foram incapazes de apresentar respostas a situações de medo, após o procedimento de extinção, porém, apenas quando o teste era realizado durante o período da chamada reconsolidação, com duração media de 6h (seis horas). A etapa de verificação em humanos apresentou resultados seme- lhantes, que demonstram a função adaptativa da reconsolidação, repercutindo oportunidade de reescrita das memórias emocionais, sugerindo que a técnica não-invasiva pode ser usada com segu- rança em seres humanos, para impedir o regresso do medo43. Tais

41 BUENO, Orlando F. A. Atualizações no conceito de memória. In: MIOTTO, Eliane Correa; LUCIA, Mara Cristina Souza de; SCAFF, Milberto (Orgs.). Neuropsicologia e as interfaces com as neurociências. Porto Alegre: Casa do Psicólogo, 2005, p. 152. 42 Ibidem, p. 152. 43 SCHILLER, Daniela; MONFILS, Marie-H.; RAIOM Candace M.; JOHNSON, David C.; LE DOUX, Joseph E.; PHELPS, Elizabeth A. Preventing the return of fear in humans using reconsolidation update mechanisms. Nature, v. 463, p. 49-53, 7 jan. 2010.

90 91 achados são de extrema relevância para a afirmação do processo de entrevista cognitiva a ser descrito logo adiante. As memórias declarativas de longa duração levam tempo para ser consolidadas. Nas primeiras horas após a sua aquisi- ção, são lábeis e suscetíveis à interferência por vários fatores, desde traumatismos cranianos ou eletrochoques convulsivos, até uma variedade enorme de drogas ou mesmo à ocorrência de outras memórias. A exposição a um ambiente novo, dentro da primeira hora após a aquisição da informação, por exemplo, pode alterar seriamente ou até cancelar a formação definitiva de uma memória de longa duração44. O fato de a fixação definitiva de uma memória ser sensível a numerosos agentes externos ou internos definiu o conceito de consolidação. As memórias de longa duração não ficam estabele- cidas em sua forma estável ou permanente imediatamente depois de sua aquisição. É por meio da consolidação, do processo que leva à fixação definitiva da informação, é que, mais tarde, esta poderá ser evocada nos dias ou anos seguintes45. Questão complexa é como as memórias de curta duração fazem a transição para as de longa duração. A consolidação ini- cial de uma memória de curta duração ocorre em apenas algumas horas. Mas a conversão para uma memória de longa duração só acontece depois que a informação foi enviada pelo córtex para o hipocampo. As pesquisas sugerem a existência de uma abertura especial no tempo, durante a qual é possível a transição para a memória de longa duração. Essa abertura é, essencialmente, o lapso de tempo de que os neurônios precisam para sintetizar as proteínas necessárias. Uma estimulação inicial ativa uma comu- nicação através da sinapse entre dois neurônios no cérebro. O prosseguimento da estimulação faz, então, com que as células

44 IZQUIERDO, Ivan. Memória. Porto Alegre: Artes Médicas, 2006, p. 22. 45 IZQUIERDO, Ivan. Memória. Porto Alegre: Artes Médicas, 2006, p. 27.

92 93 produzam proteínas essenciais que se ligam à sinapse, fixando, assim, a memória em seu lugar46. São três as etapas necessárias para o sistema de memória funcionar, de acordo com a noção de Izquierdo acima: habilidade de adquirir, armazenar e evocar informações. A aquisição de in- formações é a etapa de codificação; a retenção da informação, a etapa de armazenamento; e o acesso à informação, quando neces- sário, é a evocação47. Apesar de podermos fazer a distinção entre essas etapas e haver pacientes com déficits em apenas um sistema, na vida real, elas interagem umas com as outras. Por exemplo, pessoas com problemas de codificação apresentam dificuldades de aten- ção. Apesar de, em determinadas circunstâncias, nos lembrarmos de algo de forma intencional, nós nos recordamos das coisas que aconteceram quando não estávamos prestando atenção. No en- tanto, geralmente, precisamos prestar atenção, quando estamos aprendendo algo novo ou quando é importante recordar. Há di- retrizes possíveis para melhorar a codificação48. Por exemplo: deve-se simplificar a informação a ser recordada, pois é mais fácil recordar palavras e frases curtas do que as longas, até mesmo se as palavras e frases são bem compreendidas pela pes- soa que tenta recordá-las. Segundo, pedir que a pessoa se lembre somente de uma coisa de cada vez, em vez de três ou quatro itens, palavras, nomes ou instruções ao mesmo tempo, levando-a, inevita- velmente, à confusão. Terceiro, certificar-se que a pessoa entendeu a informação apresentada. Geralmente, conseguimos isto, pedindo que a pessoa repita a informação com suas próprias palavras. Quatro, é necessário pedir que a pessoa relacione a informação a algo familiar. Por exemplo, quando recordar um nome, peça a ela que pense em al- guém com o mesmo nome ou uma canção que o contenha. Quinto, seguir a regra conhecida como prática distribuída. Quando alguém

46 RATHEY, John J. O cérebro – um guia para o usuário. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 218. 47 WILSON, Barbara. Reabilitação da memória. Porto Alegre: Artmed, 2011, p. 28-29. 48 Ibidem, p. 29.

92 93 está tentando aprender algo, aprende melhor se as oportunidades de aprendizagem ou tentativas forem distribuídas ao longo do tempo, em vez de serem todas aglomeradas49. Segue Wilson dizendo que, em sexto lugar, deve-se evitar a aprendizagem por tentativa e erro. Para nos beneficiarmos do erro, precisamos ser capazes de lembrá-lo. Às pessoas que não conseguem se lembrar de seus erros, o simples fato de dar uma resposta incorreta pode reforçar os erros. Sétimo, certificar-se de que as pessoas que estão tentando recordar ou aprender não re- cebam a informação de modo passivo. Elas precisam pensar sobre o material ou informação e manipulá-lo de alguma forma. Pessoas que processam coisas em um nível mais superficial (por exemplo: contar o número de letras em uma palavra) lembram menos do que aquelas que processam em nível mais profundo (por exemplo: pensar no significado de uma palavra)50. Uma vez que a informação esteja registrada na memória, lá deve ser armazenada até que seja necessária. A maioria das pes- soas esquece informações novas bem rapidamente nos primeiros dias e, após, o índice de esquecimento, diminui. Isso é também verdadeiro para as pessoas com problemas de memória, tendo em mente, é claro, nesses casos, que pouca informação tende a ser armazenada desde o início. Todavia, uma vez que a informação esteja adequadamente codificada e entre no armazenamento de longo prazo, a testagem, a repetição ou prática podem ajudar a mantê-la. A melhor maneira de fazê-lo é: testar a pessoa imedia- tamente após ela ter visto ou ouvido a nova informação; testá-la novamente depois de um curto intervalo e testá-la mais uma vez após um prazo um pouco mais longo. Esse processo é continuado, com os intervalos, sendo gradualmente aumentados. Tal prática ou repetição geralmente leva à melhor retenção e informação51.

49 WILSON, Barbara. Reabilitação da memória. Porto Alegre: Artmed, 2011, p. 29. 50 Ibidem, p. 30. 51 WILSON, Barbara. Reabilitação da memória. Porto Alegre: Artmed, 2011, p. 30.

94 95 Evocar informação, quando necessário, é a terceira etapa no processo de memória. Todos nós passamos por situações seme- lhantes, ou seja, quando sabemos que alguma coisa, tal como o nome de uma cidade ou uma palavra em particular, e ainda assim não conseguimos recordá-la no exato momento. Se alguém nos diz a palavra, podemos, a seguir, determinar se está ou não cor- reta. Problemas de recuperação são mais prováveis para pessoas com problemas de memória. Talvez todos nós tenhamos passado por uma situação em que reconhecemos o rosto, mas não conse- guimos relacionar o rosto ao nome e à pessoa propriamente dita. É provável que isso aconteça, se a pessoa é vista em um lugar diferente dos lugares dos encontros anteriores. A recordação é mais fácil, para a maioria de nós, se o contexto em que estamos tentando recordar algo for o mesmo que aquele em que aprende- mos desde a primeira vez52. Quando o indivíduo simplesmente decide ignorar memórias declarativas episódicas e cuja evocação suprime, durante décadas, fala-se na repressão. São aquelas memórias que decidimos tornar inacessíveis, cujo acesso bloqueamos. O conteúdo dessas memó- rias compreende episódios humilhantes, desagradáveis ou simples- mente inconvenientes do acervo de memórias de cada pessoa. En- volve provavelmente sistemas corticais, capazes de inibir a função de outras áreas corticais ou do hipocampo. Porém, não há nenhum estudo detalhado nem sistemático dos processos nela envolvidos. É possível que exista repressão na negativa quase voluntária dos su- jeitos deprimidos de se lembrar de fatos favoráveis de seu passado. Também existe a possibilidade de ocorrer um fenômeno oposto, isto é, a tendência quase automática dos deprimidos de se lembrar de episódios humilhantes ou desagradáveis ou inconvenientes53. Alguém que esteve preso alguma vez pode desenvolver, sem percebê-lo, um comportamento hostil perante toda e qualquer forma de autoridade, por exemplo. Também uma pessoa que

52 IZQUIERDO, Ivan. Memória. Porto Alegre: Artes Médicas, 2006, p. 30-31. 53 Ibidem, p. 30-31.

94 95 sofreu abuso sexual na infância pode desenvolver uma aversão pelo sexo ou um comportamento sexual inadequado, excessivo ou aberrante54. Isso se dá pela atuação de mais duas estruturas cerebrais: a amígdala, que está no próprio lobo temporal, perto do hipocampo, e que tem conexões bidirecionais com ele55. As cha- madas memórias aversivas são, talvez, o ponto de maior interesse para uma investigação criminal. A região do hipocampo é o principal protagonista da forma- ção de memórias declarativas. Entretanto, ao contrário do que ocorre na potenciação ou na depressão de longa duração, no rela- tivo à memória, ela não atua isolada do resto do cérebro56. Quanto à modulação da memória, sabemos, por experiência própria, que os estados de ânimo, as emoções, o nível de alerta, a ansiedade e o estresse modulam fortemente as memórias. Um aluno estressado ou pouco alerta não forma corretamente me- mórias em uma sala de aula, afirma Izquierdo. O discente que é submetido a um nível alto de ansiedade, depois de uma aula, pode esquecer aquilo que aprendeu. Este aluno sob estresse, na hora da evocação (em uma prova, por exemplo), pode apresentar dificuldades (“branco”); outro que, pelo contrário, estiver alerta, conseguirá fazê-lo bem57. Han, Kushner, Yiu, Hsiang, Buch, Waisman, Bontempi, Neve, Frankland Josselyn58, em estudo multicêntrico (Canadá, Holanda, Suíça, Alemanha e Estados Unidos), tentaram chegar ao grupo específico de neurônios responsável por esta tarefa. No estudo, através de diagnósticos de neuroimagem, demonstraram

54 IZQUIERDO, Ivan. Questões sobre a memória. São Leopoldo: Unisinos, 2004, p. 42. 55 IZQUIERDO, Ivan. Memória. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2013. 56 IZQUIERDO, op. cit., p. 45. 57 Ibidem, p. 63. 58 HAN, Jin-Hee; KUSHNER, Steven A.; YIU, Adelaide P.; HSIANG, Hwa-Lin (Liz); BUCH, Thorsten; WAISMAN, Ari; BONTEMPI, Bruno; NEVE; Rachael L.; FRANKLAND, Paul W.; JOSSELYN, Sheena A. Selective erasure of a fear memory. Science, v. 323, p. 1492-1495, 13 mar. 2009.

96 97 os neurônios específicos que conservam o traço da memória. Se- riam os neurônios da amígdala lateral os ativados por uma expres- são de memória aversiva. Recentemente, tem-se estudado a forma de fixação e con- servação das chamadas “memórias aversivas”. A seletividade ce- rebral, para extinguir a memória aversiva, talvez, seja importante pista neste sentido. O que faz uma pessoa recuperar um acontecimento passado? Por qual razão alguns se mostram mais acessíveis que outros? Uma possível resposta está ligada à produção da dopamina, neurotrans- missor relacionado à sensação de recompensa e à importância das vivências para cada um. O mecanismo de formação da memória é diferente do envolvido com seu armazenamento, portanto59. Nos experimentos realizados, os roedores receberam drogas experimentais e específicas, comprovando o envolvimento des- ses neurotransmissores na persistência da memória. Nos casos em que o sistema dopaminérgico (da produção de dopamina) foi es- timulado com substâncias, a memória persistiu por 14 dias. Nos demais (que não tiveram o composto), a lembrança decaiu ao longo do tempo. Quando inibidos os neurotransmissores, os ani- mais recordavam a situação por menos de dois dias60. O experimento com choque fraco (0,4 mA) resultou em es- quecimento nos dois grupos (com e sem as substâncias), mas os que receberam a injeção 12 horas depois do treino, uma droga que ativa receptores de dopamina, melhoraram a persistência das lembranças. As drogas que bloqueiam e ativam os receptores de dopamina foram aplicadas diretamente no hipocampo dos ratos.

59 ROSSATO, Janine I.; BEVILAQUA, Lia R.M.; IZQUIERDO, Ivan; MEDINA, Jorge H.; CAMMAROTA, Martín. Controls Persistence of Long-Term Memory . Science, v. 325, p. 1017-1020, 09 jul. 2009. Ver também: ACAUAN, Ana Paula. Mais um passo para decifrar a memória. PUCRS Informação, ano XXXII, n. 146, p. 19, 2009. 60 ROSSATO; BEVILAQUA; IZQUIERDO; MEDINA; CAMMAROTA, op. cit., p. 1017-1020. Ver também: ACAUAN, Ana Paula. Mais um passo para decifrar a memória. PUCRS Informação, ano XXXII, n. 146, p. 19, 2009.

96 97 Não houve efeito nove horas depois de terem aprendido que, ao descerem, sofriam um choque61. É crucial o papel da amígdala nas memórias de eventos de alto conteúdo emocional, como visto. Os indivíduos com lesões neste local são incapazes de lembrar corretamente os aspectos mais emocionantes de textos ou de cenas presenciadas. Esta re- gião apresenta, em sujeitos normais, uma hiperativação quando estes são submetidos a textos ou cenas emocionantes ou capazes de produzir um maior grau de alerta. Efetivamente, nos lembrare- mos melhor das memórias com maior conteúdo emocional, aque- las que, em língua inglesa, são denominadas “flashbulb ” (aquelas que, nas histórias de quadrinho, são qualificadas com uma lâmpada elétrica que se acende)62. A impossibilidade de lembrar pode se dar por duas razões: a informação não existe na memória ou não pode ser acessada. Habib e Nyberg63 utilizaram de ressonância magnética funcional, por imagens, durante a codificação e a recordação com pistas su- cessivas e testes de reconhecimento associativo dos associados em pares. Os itens foram classificados em três categorias, bom base no desempenho nos dois testes de recuperação: 1) com su- cesso lembrado (ambos recuperados e reconhecidos); 2) inaces- síveis (não lembrou, mas depois reconheceu), 3) esquecido (não lembrou, nem reconheceu). Durante a recordação com pistas, a disponibilidade de memória foi anunciada em uma rede de regi- ões, incluindo a do lobo temporal medial bilateral, córtex tempo- ral esquerdo medial e o córtex pariental. A codificação da ativi- dade relacionada ao hipocampo e córtex temporal inferior previu

61 ROSSATO, Janine I.; BEVILAQUA, Lia R.M.; IZQUIERDO, Ivan; MEDINA, Jorge H.; CAMMAROTA, Martín. Dopamine Controls Persistence of Long-Term Memory Storage. Science, v. 325, p. 1017-1020, 09 jul. 2009. Ver também: ACAUAN, Ana Paula. Mais um passo para decifrar a memória. PUCRS Informação, ano XXXII, n. 146, p. 19, 2009. 62 IZQUIERDO, Ivan. Memória. Porto Alegre: Artes Médicas, 2006, p. 66. 63 HABIB, Reza. Neural Correlates of Availability and Accessibility in Memory. Cerebral Cortex, v. 18. p. 1720-1726, jan. 2008.

98 99 a subsequente disponibilidade, e a atividade do órgão inferior- -frontal, o acesso subsequente. Os resultados sugeriram que as falhas no acesso à informação disponível na memória podem re- fletir uma dificuldade em representar a situação64. Essa dificuldade pode estar relacionada a diversos fatores, al- guns deles analisados no ponto 2.3. Certo é que apenas a explica- ção biológica acerca da memória não nos traz elementos suficientes para representar o seu prisma de formação. Pelo contrário, da revisão acima, latente ficou que a influência da emoção na formação e fixa- ção da memória, seja de curta ou longa duração, é fundamental. Para além disso, a emoção vem a questionar os paradigmas localistas, de acordo com o qual toda a memória está no cérebro. Emoções, nos traz Damásio65, são conjuntos complexos de rea- ções químicas e neurais, formando um padrão; todas as emoções têm algum tipo de papel regulador a desempenhar, levando, de um modo ou de outro, à criação de circunstâncias vantajosas para o organismo em que o fenômeno se manifesta; as emoções estão ligadas à vida de um organismo, ao seu corpo, para ser exato, o seu papel é auxiliar o organismo a conservar a vida. As emoções não somente usam o corpo como teatro, mas também afetam o modo de operação de inúmeros circuitos cere- brais: a variedade de reações emocionais é responsável por mu- danças e constitui o substrato para os padrões neurais que, em última instância, se tornam sentimentos de emoção66. Ilustrativo pode ser considerado experimento citado por Da- másio67. O caso de David, portador de grave distúrbio de apren-

64 WAGNER, Anthony D.; SCHACTER, Daniel L.; ROTTE, Michael,; KOUTSTALL, Wilma; MARIL, Anat; DALE, Anders M.; ROSEN, Bruce R.; BUCKNER, Randy L. Building memories: remembering and of verbal experiences as predicted by brain activity. Science, v. 281, p. 17, 21 ago. 1998. 65 DAMÁSIO, Antônio. O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 74-75. 66 DAMÁSIO, Antônio. O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 75. 67 Ibidem, p. 65-70.

98 99 dizado e memória, não é capaz de aprender nenhum fato novo. É incapaz de gravar na memória uma aparência física, um som, um lugar ou uma palavra que sejam novos. Assim, não consegue aprender a reconhecer nenhuma pessoa nova, pelo rosto, pela voz ou nome, nem consegue se lembrar de coisa alguma relacionada ao lugar onde encontrou determinada pessoa ou aos eventos ocorridos entre essa pessoa e ele. O problema é causado por uma lesão extensa em ambos os lobos temporais, incluindo uma lesão na região denominada “hipocampo” (cuja integridade é necessá- ria para criar a lembrança de fatos novos) e na região da amígdala (agrupamento subcortical de núcleos relacionados à emoção). Em função do histórico do paciente indicar preferências em relação a quem ele preferia recorrer, quando queria um cigarro ou uma xícara de café, e outras a quem ele nunca recorreria, in- compatíveis com sua condição neurológica, foi concebido o ex- perimento do “bonzinho/malvado”. Durante uma semana, David teve que participar de três tipos distintos de interação humana. A primeira ocorreu com alguém extremamente agradável e sim- pático e que sempre recompensou David, quer ele pedisse alguma coisa, quer não pedisse nada (o “bonzinho”). Outra interação foi com alguém emocionalmente “neutro” e que incumbiu David de tarefas que não foram agradáveis nem desagradáveis (o “neu- tro”). Um terceiro tipo de interação envolveu um indivíduo cujos modos foram bruscos, que disse não a todos os pedidos de David e que lhe aplicou um teste psicológico muito maçante, que ente- diaria qualquer pessoa (o “malvado”68).

68 Mais adiante, Damásio deixa claro que o “malvado” do experimento era uma jovem neuropsicóloga, simpática e bela. O experimento foi planejado, fazendo-a representar um papel que era o oposto do modo como ela se apresentava, pois se queria determinar até que ponto a predileção manifesta de David pela companhia de moças bonitas poderia contrabalançar a antipatia do comportamento planejado para ela e o fato de que era ela quem dava a David a tarefa maçante. Traz, ainda, que “David realmente era um tanto mulherengo, surpreendi-o certa vez acariciando o braço de Patricia Churchland, dizendo: ‘Sua pele é tão macia […]’” (DAMÁSIO, Antônio. O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 69-70).

100 101 A utilização dessas diferentes situações foi organizada para ocorrer em cinco dias consecutivos, em ordem aleatória, mas, sempre durante um intervalo de tempo determinado, para que a exposição total aos três tipos fosse adequadamente medida e comparada. Isto exigiu várias salas e diversos auxiliares, os quais não eram os mesmos que fizeram o papel do bonzinho, do mal- vado e do neutro. Após algum tempo, pediu-se a David para par- ticipar de duas tarefas. Foi solicitado a ele que olhasse para con- juntos de quatro fotografias que incluíam o rosto de um dos três indivíduos do experimento. Foi perguntado: “Qual dessas pessoas você procuraria, se precisasse de ajuda?”. E também: “Quem você acha que é seu amigo neste grupo?”69. O comportamento de David surpreendeu a todos. Nos casos em que o indivíduo havia sido afável com ele, entre as quatro fo- tografias, David escolheu o “bonzinho” em mais de 80% das vezes, indicando claramente que a escolha não foi aleatória – o acaso teria feito com que escolhesse cada um dos quatro indivíduos 25% das vezes. O indivíduo “neutro” foi escolhido com uma probabilidade não maior que a do acaso. O malvado quase nunca foi escolhido, novamente uma violação do comportamento aleatório70. Na segunda tarefa, foi solicitado a David que olhasse para o rosto dos três indivíduos e dissesse o que sabia sobre eles. Como previsto, nada veio à mente de David. Não conseguia se lembrar de já os ter encontrado e não se recordava de nenhuma ocasião em que tivesse interagido com eles. Não sabia, claro, o nome dos indivíduos e não fazia do ideia do que estava se falando, quando questionado sobre os acontecimentos da semana anterior. Porém, quando foi perguntado a ele quem, entre os três, era o seu amigo, escolheu o “bonzinho”71.

69 DAMÁSIO, Antônio. O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 66-67. 70 Ibidem, p. 67. 71 Idem, p. 67.

100 101 A preferência inconsciente manifestada por David prova- velmente se relacionou às emoções, as quais ele fora induzido du- rante o experimento, bem como à nova indução, inconsciente, de alguma parte dessas emoções no momento em que ele participava dos testes. Ele não adquirira conhecimentos novos, do tipo que pode ser mobilizado na mente, na forma de uma imagem. No en- tanto, algo permaneceu em seu cérebro, e este algo pôde produzir resultados de uma forma não imagética: na forma de ações e de comportamento. O cérebro de David podia gerar ações mensurá- veis, com valor emocional semelhante ao dos encontros originais, valor cuja causa era a recompensa ou a ausência de recompensa72. Damásio retoma a premissa de que os segredos da base neu- ral da mente não podem ser descobertos pela revelação de todos os mistérios de um único neurônio, por mais importante que ele possa ser; ou pelo desvendamento de todos os padrões compli- cados de atividade local em um circuito de neurônios típico. Em uma primeira aproximação, os segredos elementares da mente re- sidem na interação dos padrões de impulsos criados por muitos circuitos neurais, em nível local e global, momento a momento, dentro do cérebro de um organismo vivo73. As emoções74 influenciam a memória. Uma pessoa acusada de um crime, cuja descrição é feita durante o julgamento, pode, como consequência, ter suas chances de absolvição diminuídas, pois “falsas lembranças” ou “exagero nas” lembranças podem ocorrer nas testemunhas do caso. Para se compreender satisfatoriamente o modo como o cére- bro cria a mente e o comportamento humano, é necessário con- siderar o seu contexto social e cultural. E é isso que torna a tarefa tão espantosamente difícil, especialmente quando pensamos nas repercussões trazidas para a liberdade do indivíduo criminalizado.

72 Idem, p. 68. 73 DAMÁSIO, Antônio. O erro de Descartes – Emoção, razão e cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 291. 74 Ibidem, p. 292.

102 103 2.2 Psicologia do Testemunho e Reelabora- ção da Memória: As Falsas Memórias

A partir da ideia de que a memória não se restringe à de- terminada parte do cérebro e estará, necessariamente, informada pela emoção75, é necessário pensar a repercussão destes dados para a questão do testemunho. Não se duvida da indissociabi- lidade de memória e emoção. Contudo, a repercussão deste im- bricamento trará consequências, eis que os estímulos emocionais não somente são recuperados em maior quantidade, mas também podem ser mais falsamente reconhecidos76. Como visto, a neurociência demonstra que o Sistema Ner- voso Central (SNC) não armazena propriamente registros factuais, mas, sim, traços de informações que serão usados para reconstruir as memórias, nem sempre representando um quadro fiel ao que foi vivenciado no passado77. É necessário, então, revisar a literatura de forma a verificar como se dá a representação da memória. A questão da memória, em relação ao papel da testemunha no procedimento e processo penal, assim, tem o seu ponto crítico nas chamadas falsas memórias, demonstrações de que nossa memória

75 Utiliza-se aqui a noção de ROHENKOHL et al.: “as emoções são definidas como coleções de respostas cognitivas e fisiológicas acionadas pelo sistema nervoso que preparam o organismo para comportar-se frente a determinadas situações” (ROHENKOHL, Gustavo; GOMES, Carlos Falcão; SILVEIRA, Ronie Alexsandro Teles da; PINTO, Luciano Haussen; SANTOS, Renato Favarin dos. Emoção e Falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 88). 76 ROHENKOHL, Gustavo; GOMES, Carlos Falcão; SILVEIRA, Ronie Alexsandro Teles da; PINTO, Luciano Haussen; SANTOS, Renato Favarin dos. Emoção e Falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 95. O falso reconhecimento não é somente um processo relacionado ao córtex pré-frontal, o córtex parietal e ao lobo temporal médio, mas também a processos cognitivos. (GAROFF-EATON, Rachel J.; SLOTNICK, Scott D.; SCHACTER, Daniel L. Cerebral Cortex, v. 16, p. 1645-1652, 2006). 77 PERES, Julio F. P.; MERCANTE, Juliane P. P.; NASELLO, Antonia G. Promovendo resiliência em vítimas de trauma psicológico. Revista da Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, v. 27, n. 2, p. 132, maio/ago. 2005.

102 103 não é infalível78. Elas consistem em recordações de situações que, na verdade, nunca ocorreram. A interpretação errada de um acon- tecimento pode ocasionar a formação de falsas memórias. Embora não apresentem uma experiência direta, as falsas memórias repre- sentam a verdade como os indivíduos as lembram79.

2.2.1 Breve Contextualização Histórica A literatura80 sobre memória discute um número de casos datados de 1735, em que testemunhas identificaram pessoas inocentes equivocadamente como autoras de crimes. Devido a estes casos de identificação errada, linhas de identificação for- mais foram introduzidas pela polícia metropolitana de Londres em 1860. Desde então, a identificação de suspeitos tem permane- cido a mesma. Todavia, os procedimentos exatos, para construir e entregar essas linhas de identificação, têm evoluído ao longo dos anos, em grande parte, como resultado de uma série de erros judi- ciários. Na Inglaterra, por exemplo, em 1895, Adolf Beck foi acu- sado de uma série de roubos de mulheres. Ele foi identificado fal- samente por 10 das 15 vítimas e preso. Entretanto, depois que o autor verdadeiro foi descoberto, o Tribunal observou que a linha de identificação foi composta de 8 ou 9 homens, mas somente dois tinham cabelos grisalhos como Beck, e nenhum deles tinha qualquer semelhança física com ele. A partir do caso de Beck, o Ministério do Interior revisou os códigos de Polícia Metropolitana de boas práticas para proce- dimentos de identificação e recomenda que eles sejam utilizados

78 GAUER, Gustavo. Falsas memórias. In: OLIVEIRA, Alcyr Alves (Org.). Memória: cognição e comportamento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 165. 79 BARBOSA, Cláudia. Estudo experimental sobre emoção e falsas memórias. Porto Alegre: PUCRS, 2002. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2002, p. 26. 80 SHEPHERD, J.W.; ELLIS, H.D.; DAVIES, G.M. Identification evidence: a psychological evaluation. Aberdeen: Aberdeen University Press, 1982, p. 9.

104 105 por todos os chefes de polícia. No entanto, as regras eram apenas consultivas e não estavam disponíveis ao público81. No início do século XX, os erros de memória foram estuda- dos por Freud, ao revisar a sua teoria da repressão82. Segundo essa teoria, as memórias de eventos traumáticos da infância seriam esquecidas (isto é, reprimidas), podendo emergir em algum mo- mento da vida adulta, através de sonhos ou sintomas psíquicos. Porém, Freud abandona a ideia de que memórias para eventos traumáticos seriam necessariamente verdadeiras. Em uma carta a Fliess, em 21 de setembro de 1897, Freud descreve a sua des- coberta de que as lembranças de seus pacientes poderiam ser re- cordações não de um evento, mas, de um desejo primitivo ou de uma fantasia da infância e, portanto, seriam falsas recordações83. Alfred Binet conduziu os primeiros estudos específicos sobre falsas memórias. Eles versavam sobre as características de suges- tionabilidade da memória, ou seja, a incorporação e a recordação de informações falsas, fossem elas de origem interna ou externa, que o indivíduo lembra como sendo verdadeiras84. Para ilustrar tal situação interessante, citar-se o experimento realizado por Walter Lippmann, em 1922, no Congresso de Psico- logia em Gottingen, feito, portanto, sob o olhar de pessoas treina- das e acostumadas à observação:

81 SHEPHERD, J.W.; ELLIS, H.D.; DAVIES, G.M. Identification evidence: a psychological evaluation. Aberdeen: Aberdeen University Press, 1982, p. 9. 82 A repressão ou a supressão, em um sentido amplo, é considerada a operação psíquica que tende a fazer desaparecer da consciência um conteúdo desagradável ou inoportuno: idéia, afeto, entre outas (LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. 3. ed. Lisboa: Moraes Editores, 1976, p. 594). 83 MASSON, J.M. A correspondência completa de para Wilhelm Fliess. Rio de Janeiro: Imago, 1986, p. 78. 84 BINET, A. La suggestibilitie. Paris: Scheicher, 1900, apud NEUFELD, Carmem Beatriz; BRUST, Priscila Goergen; STREIN, Lilian Milnitsky. Compreendendo o fenômeno das falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky. Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010.

104 105 De um lugar próximo da sala em que acon- tecia o congresso, havia uma festa, um baile de máscaras. Repentinamente, uma porta da sala do congresso abre-se abruptamente e um palhaço entra correndo perseguido, loucamente, por um afrodescendente com um revólver na mão. Eles param no meio da sala brigando. O palhaço cai. O afrodes- cendente pula sobre ele e dispara a arma. Ambos saem rapidamente da sala. Todo o incidente dura cerca de 20 segundos.

O presidente do congresso pede aos pre- sentes que façam um depoimento sobre o fato, uma vez que aquilo certamente seria alvo de inquérito judicial e testemunhos seriam necessários. Quarenta depoimen- tos lhe chegam às mãos. Apenas um tinha menos de 20% de erros em relação aos fatos ocorridos. Quatorze tinham de 20 a 40 por cento de erros, doze tinham de 40 a 50 por cento de erros e treze tinham mais de 50 por cento de erros. Em 24 dos reports, 10% dos fatos relatados eram pura invenção. Cerca de ¼ dos testemunhos eram falsos. Não é necessário dizer que toda cena fora arranjada à guisa de experimento. Toda ela foi fotografa. Dos falsos reports, 10 pode- riam ser classificados como lendas ou con- tos, 24 poderiam ser considerados como meio lendários e apenas 6 tinham um valor aproximado a provas85.

85 LIPPMANN, Walter. Public opinion. 50. ed. New Jersey: MacMillan, 1991, p. 82. Existem outros estudos, nos quais a questão da raça aparece como fato importante no condicionamento da lembrança, Outro dado encontrado na literatura é que a identificação, envolvendo pessoas de diferentes raças, diminui na sua efetividade (MEISSNER, C.A.; BRIGHAM, J.C. Thirty years of investigating the own-race bias

106 107 Em 1925, um Tribunal de Inquérito foi realizado na Ingla- terra, no caso do Major Sheperd, um oficial sênior do Exército que havia sido falsamente identificado a partir de um procedi- mento de reconhecimento equivocado. Como resultado do in- quérito, as rotinas foram revistas para destacar: 1) a importância da utilização de indivíduos semelhantes ao suspeito e 2) que o suspeito deve ser avisado de que poderia ter um representante legal presente durante o procedimento. Entre 1925 e 1969, em- bora tenha havido casos de reconhecimento errôneo, não ocorre- ram mudanças nas diretrizes, que ainda permaneciam utilizadas86. No mês de março de 1968, quinze casos, a maioria envolvendo pessoas condenadas com base na identificação equivocada, foram enviados ao Ministro da Administração Interna pelo Conselho

in memory for faces: A meta-analytic review. Psychology, Public Policy and Law, v. 7, p. 7, 8 e 21, 2001; NEUSCHATZ, J.S.; CUTLER, B.L. Eyewitness identification. In: ROEDIGER, H. L. III (Ed.). Learning and memory: a comprehensive reference. Oxford: Elsevier, 2008, p. 845-865. (Cognitive psychology of memory; v. 2). Nessa mesma linha de coerência investigativa: Berhrman e Davey (BEHRMAN, B.; DAVEY, S. Eyewitness identification in actual criminal cases: An archival analysis. Law and Human Behavior, v. 25, ps. 479-480 e 486, 2001. Valentine, Pickering, e Darling (VALENTINE, T.; PICKERING, A.; DARLING, S. Characteristics of eyewitness identification that predict the outcome of real lineups. Applied Cognitive Psychology, v. 17, ps. 987-990, 2003), descreveram, em suas pesquisas, que as identificações dos suspeitos foram reduzidas, quando o suspeito e a testemunha eram de uma raça diferente, em oposição aos suspeitos quando a testemunha e a vítima eram da mesma raça. Wright e McDaid (WRIGHT, D.B.; MCDAID, A.T. Comparing system and estimator variables using data from real line-ups. Applied Cognitive Psychology, v. 10, p. 79-81, 1996), relataram que a taxa de identificação do suspeito foi maior quando o suspeito era afro-americano em oposição ao branco. No entanto, eles não informam a raça da testemunha, de modo que é impossível saber se este efeito é racial cruzado ou se algum outro fator o está causando. Mecklenburg e cols. (MECKLENBURG, S.H.; MALPASS, R.M.; EBBESON, E. The Illinois pilot program on sequential double blind identification procedures. In: Report to the Legislature of the State of Illinois. Springfield: State of Illinois, 2006). Relataram que, quando o suspeito e a testemunha eram de raças diferentes, a taxa de identificação do suspeito foi significativamente maior no procedimento de identificação em linha, em oposição a um procedimento de duplo-cego sequencial. Taxas de identificação de atores (não suspeitos) foram estatisticamente iguais em ambos os procedimentos em sua formação, independentemente da raça. 86 SHEPHERD, J.W.; ELLIS, H.D.; DAVIES, G.M. Identification evidence: a psychological evaluation. Aberdeen: Aberdeen University Press, 1982, p. 45.

106 107 Nacional de Liberdades Civis, nos Estados Unidos. Como resul- tado, o “Home Office” (a parte relevante do governo), em 1969, emitiu novas diretrizes de consultoria para a realização de desfiles de identificação. Entre eles, foi acrescido que: 1) o policial, condu- tor do depoimento, deve ser imparcial e não ter tido conhecimento do caso e 2) que deve ser perguntado às testemunhas, de forma explícita, se elas podem fazer a identificação87. Apesar das diretrizes de 1969, uma série de casos de alto perfil, envolvendo erros de identificação, levou à criação pelo Mi- nistério do Interior do “Comitê de Devlin”, para conduzir uma profunda revisão da legislação e dos procedimentos relacionados com desfiles de identificação88. O Relatório de Devlin (1976) foi o primeiro relatório com- pleto sobre as questões relacionadas à identificação de testemu- nhas oculares, e estatísticas contidas mostram a prevalência de casos que envolveram evidências de identificação de testemu- nhas oculares e também casos em que as condenações foram der- rubadas, com base na falha de identificação de provas89. Desde a Segunda Guerra Mundial, este número foi de apro- ximadamente 38, embora alguns acreditem ser este subestimado. Havia duas recomendações importantes, contidas no relatório de Devlin. Primeiro, que os casos, com base apenas em provas de identificação, não devem chegar à Corte, salvo as circunstân- cias sejam excepcionais. Em segundo lugar, se o caso for, o juiz deve apontar para o júri os problemas de se depender somente da prova de identificação90. Na sequência do Relatório Devlin, a orientação judicial foi dada, em uma revisão pelo Tribunal de Recurso, de um nú- mero significativo de casos relativos à prova de identificação. O

87 SHEPHERD, J.W.; ELLIS, H.D.; DAVIES, G.M. Identification evidence: a psychological evaluation. Aberdeen: Aberdeen University Press, 1982, p. 46. 88 Ibidem, p. 46. 89 Ibidem, p. 46. 90 Ibidem, p. 47.

108 109 julgamento, conhecido como Turnbull, depois da condenação de um réu em um dos casos, passou a fornecer instruções específicas aos juízes, a fim de guiarem os júris, em casos que envolvam pro- vas de identificação disputada91. Embora as diretrizes Turnbull dadas aos júris nos tribunais tenha começado em 1977, a legislação para a construção e en- trega de desfiles em identificação entrou em vigor em 1985, com o Código D da polícia e Ato da Prova Criminal 1984 (conhecida como PACE), que rege a conduta da polícia na Inglaterra, País de Gales, Irlanda do Norte, Ilhas do Canal e da Ilha de Man. Desde 1984, muitas revisões têm sido realizadas no Código D92. A edição de 2005 foi utilizada até ser publicada nova edi- ção no final de 2008. O Código D93 apresenta vários métodos de identificação de pessoas. Nos Estados Unidos, o documento do Departamento de Justiça intitulado “Evidência da Testemunha Ocular: um guia para aplicação da lei” fornece orientações, a fim de elucidar aspectos quanto às evidências das testemunhas. O guia inclui recomendações para o desfile de identificação94. Alguns dos documentos evoluíram no tocante ao manejo das provas, apresentando aspectos relacionados à identificação e revisão de provas de identificação em tribunal. Nestes, é destada a contribuição que os cientistas comportamentais, incluindo psi- cólogos, podem dar para ajudar a compreender as complexidades de produção de provas de identificação. Um caso real é trazido por Neufeld et. al., visando a ilustrar a ocorrência de falsas memórias. Chamado para fazer uma corrida, um taxista foi vítima de um assalto, no qual sofreu ferimentos e

91 Idem. 92 Idem. 93 REINO UNIDO. Police And Criminal Evidence Act – Code D, 1984. Disponível em: < https://www.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/ file/117599/pace-code-d.pdf> Acesso em: 1 ago 2013. 94 REINO UNIDO. Police And Criminal Evidence Act – Code D, 1984. Disponível em: < https://www.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/ file/117599/pace-code-d.pdf >. Acesso em: 01 ago 2013.

108 109 foi levado ao hospital. O investigador do caso mostrou ao taxista, que ainda estava em fase de recuperação, duas fotografias de sus- peitos. O taxista não reconheceu os homens apresentados nas fotos como sendo os assaltantes. Passados alguns dias, quando foi à delegacia para realizar o reconhecimento dos suspeitos, ele identificou dois deles como sendo os autores do assalto. Os ho- mens identificados eram aqueles mesmos das fotos mostradas no hospital. Os suspeitos foram presos e acusados pelo assalto. Ao ser questionado em juízo sobre o seu grau de certeza de que os acusados eram mesmo os assaltantes, o taxista declarou: “Eu tenho mais certeza que foram eles, do que meus filhos são meus filhos!”. Todavia, alguns meses depois, dois rapazes foram presos por assalto em uma cidade vizinha, quando interrogados, confes- saram diversos delitos, incluindo o assalto ao taxista95. O fato de podermos lembrar eventos que, na realidade, não ocorreram, motivou um crescimento da literatura internacional sobre esse tópico nas últimas décadas, buscando explicar como se dá esse processo de distorção da memória. Em especial, as questões relacionadas à habilidade de crianças96 em relatar fidedignamente

95 NEUFELD, Carmem Beatriz; BRUST, Priscila Goergen; STEIN, Lilian Milnitsky. Compreendendo o fenômeno das falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 22. 96 Questão de relevância são as testemunhas de crianças que relatam a ocorrência de abuso sexual de forma bizarra. O testemunho de crianças deixam dúvidas em relação à veracidade dos fatos relatados. Procurar a razão do fato de por que as crianças mais jovens serem mais sugestionáveis e possuírem uma memória menos acurada do que os adultos é uma prioridade. Estas são questões de etiologia multifatorial (fatores cognitivos, susceptibilidade à persuasão, além de fatores neurobiológicos). As preocupações com a entrevista forense sugestiva levaram a várias pesquisas científicas, visando a oferecer informações para a justiça em relação aos depoimentos das crianças. Pesquisadores já demonstraram que adultos atribuem muito mais significado a eventos do que as crianças. No entanto, através das teorias sobre memória, adotadas pela reivindicação do sistema legal, afirma-se que os adultos se lembram de eventos negativos melhor do que as crianças e apresentam menos falsas memórias sobre eles (BRAINERD, C.J.; REYNA, V.F. The science of . New York: Oxford University Press, 2005, p. 268). Estudos recentes de Brainerd e Reyna (2010) demonstraram que estas teorias não são precisas. Experimentos, conduzidos no Laboratório de Memória e Neurosciências da Universidade de Cornell, mostraram que as emoções negativas são muito ruins para a

110 111 os fatos testemunhados, tanto como vítimas de abusos físicos ou sexuais, quanto como testemunhas oculares de contravenções em geral, influenciaram e incentivaram os estudos científicos na área de falsas memórias, especialmente nos Estados Unidos97. As falsas memórias podem ser formadas de maneira natural, através da falha na interpretação de uma informação ou ainda por uma falsa sugestão externa, acidental ou deliberada, apresen- tada ao indivíduo98. Podem ocorrer de duas formas: procedimento de sugestão de falsa informação, que consiste na apresentação de uma informação falsa compatível com a experiência, que passa a ser incorporada à memória sobre esta vivência. Já as falsas memó- rias, que serão geradas espontaneamente, resultam do processo normal de compreensão, ou seja, fruto de processos de distorções mnemônicas endógenas99. Os acontecimentos, passados na vida de uma pessoa, podem influenciar na formação de memórias falsificadas. Pe- zdek, Blandon-gitlin, Lam, Hart e Schooler100, ao referirem-se aos estudos sobre conhecimentos passados, ocorridos com ou-

precisão das memórias das crianças, mas ainda são piores para os adultos. Quando uma experiência tem qualidades emocionais negativas, os níveis de memórias verdadeiras são os mais baixos e os de memórias falsas são mais elevados. Uma das razões porque os estudiosos pesquisam sobre memória e suas distorções é a conexão legal. No sistema legal, segundo Brainerd, lidamos com eventos que são emocionais. Assim, a questão que se impõe é se o conteúdo emocional das experiências que tentamos lembrar prejudica a memória (BRAINERD, C.J.; HOLLIDAY, R.E.; REYNA, V.F.; YANG, Y.; TOGLIA, M.P. Developmental reversals in false memory: Effects of emotional valence and arousal. Journal of Experimental Child Psychology, v. 107, p. 137-154, 2010). 97 NEUFELD, Carmem Beatriz; BRUST, Priscila Goergen; STEIN, Lilian Milnitsky. Compreendendo o fenômeno das falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 21. 98 BARBOSA, Cláudia. Estudo experimental sobre emoção e falsas memórias. Porto Alegre: PUCRS, 2002. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2002, p. 27. 99 BARBOSA, Cláudia. Estudo experimental sobre emoção e falsas memórias. Porto Alegre: PUCRS, 2002. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2002, p. 27. 100 PEZDEK et al. Is knowing believing? The role of event plausibility and background knowledge in planting false beliefs about the personal past. Memory & Cognition, v. 34, n. 8, p. 1628, Dec. 2006.

110 111 tras pessoas, sugerem que é possível aumentar a confiança dos indivíduos de que estes eventos ocorreram em suas vidas. O impacto desta influência está limitado pela extensão da fami- liaridade do indivíduo com o acontecimento. Outra situação, citada por Neufeld, Brust e Stein, é a de uma jovem americana que perde sua mãe afogada na piscina de casa aos 14 anos. Passados 30 anos, um tio comenta, em uma reunião de família, que a jovem foi a primeira a encontrar a mãe boiando na piscina. A partir deste momento, ela passa a lembrar-se vivi- damente da impactante cena que teria presenciado. Alguns dias depois, ela recebe um telefonema do irmão, desculpando-se pelo tio, informando que ele havia se confundido e que, na realidade, quem encontrou a mãe na piscina fora a sua tia. A jovem em questão é hoje uma renomada pesquisadora na área de falsas me- mórias, chamada Elizabeth Loftus101. Loftus102 conduziu um experimento, com o objetivo de in- trojectar a falsa memória específica em um sujeito pesquisado de ter se perdido em um “shopping center” com 5 anos de idade. Os pesquisadores solicitaram aos 24 indivíduos, todos em idade entre 18 a 63 anos, para tentarem relembrar fatos da infância, que ha- viam sido contados aos pesquisadores por familiares, um irmão mais novo ou outro parente próximo. Foi preparada uma folha com três histórias que realmente haviam sido contadas pelos fa- miliares, e uma que jamais ocorreu. Esta experiência envolvia um fato falso, propositadamente preparado, utilizando-se informação sobre um plausível pas- seio ao “shopping”, supostamente organizado por um parente, que estava presente no momento. Este confirmava a existência do evento falso. Após ler cada uma das histórias no folheto, os participantes deveriam escrever o que se lembravam daqueles

101 NEUFELD, Carmem Beatriz; BRUST, Priscila Goergen; STEIN, Lilian Milnitsky. Compreendendo o fenômeno das falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 21. 102 LOFTUS, Elizabeth F. Creating False Memories. Scientific American, v. 277, n. 4, p. 72, Set. 1997.

112 113 eventos. Caso não se lembrassem de nada, eram orientados a escrever “Não lembro disso”. O resultado foi que os participan- tes recordaram 68% de todos os eventos verdadeiros; 10% havia feito confusão entre verdadeiros e o falso; e 22% se lembraram de uma situação que jamais existiu. Essa sugestionabilidade pode surgir de várias formas, uma das mais trabalhadas na literatura é a de listas de palavras. Esta lista denominada de DRM vem das iniciais dos nomes dos autores que a desenvolveram, Deese-Roediger-McDermott. John Deese criou o procedimento em 1959 e fora adaptado por Roediger e McDer- mott, nos anos 90. O paradigma adota, em linhas gerais, o proce- dimento a seguir. Primeiramente, é apresentada aos participantes uma lista de palavras semanticamente relacionadas a uma palavra crítica, ou “palavra-alvo”, que, contudo, não é apresentada. Esta palavra crítica tende a ser erroneamente reconhecida ou evocada nos testes seguintes de reconhecimento ou evocação. Se o sujeito reconhecer ou evocar a palavra-alvo (o tipo de processo depende da tarefa apresentada), criou-se uma falsa memória103. O DRM é frequentemente utilizado para comprovar, em geral, uma melhor qualidade da memória na vida adulta e uma maior difi- culdade de recuperação de lembranças em crianças e idosos104.

103 GAUER, Gustavo. Falsas memórias. In: OLIVEIRA, Alcyr Alves (Org.). Memória: cognição e comportamento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 167. Quando uma palavra-alvo (por exemplo: dedos) é corretamente lembrada no teste de memória, considera-se uma resposta baseada em uma memória verdadeira. Já uma Falsa Memória espontânea ocorre, quando o participante lembra ter escutado uma palavra que não foi apresentada na fase de estudo (por exemplo: pé), ainda que esta possua uma relação semântica com palavras do material-alvo (BRUST, Priscila Goergen; NEUFELD, Carmem Beatriz; ÁVILA, Luciana Moreira de; WILLIAMS, Anna Virginia; STEIN, Lilian Milnitsky. Procedimentos experimentais na investigação das falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 45). 104 Concluíram, assim: CARNEIRO, Paula; FERNANDEZ, Angel. Age differences in the rejection of false memories: The effects of giving warning instructions and slowing the presentation rate. Journal of Experimental Child Psychology, v. 105, p. 81-97, 2010; KARPEL, Mara E.; HOYER, William J.; TOGLIA, Michael P. Accuracy and qualities of real and suggested memories: nonspecific age differences. Psychological Sciences, 56B, n. 2, p. 103-110, 2001; WIMMER, Marina C.; HOWE, Mark L. Are children’s

112 113 Nossas memórias, inclusive a dos entrevistadores105, são pas- síveis de serem influenciadas pelas outras pessoas. As informa- ções que recebemos, depois do evento que vivenciamos, podem interferir em nossa memória. O efeito da sugestionabilidade da memória pode ser definido como uma aceitação e subsequente incorporação na memória de falsa informação posterior à ocor- rência do evento original106. A ideia de que indivíduos podem ser sugestionados foi ini- cialmente identificada pelos trabalhos de James Cattell (1895), tendo estudantes da Universidade de Colúmbia como volun- tários. Cattell conduziu os primeiros estudos da psicologia do testemunho. Estas pesquisas iniciais transformaram a noção de sugestionabilidade em um conceito comportamental que po- deria ocorrer em um estado de plena consciência107. Inspirados nestes estudos, Alfred Binet repetiu as experiências de Cattell, aplicando-a para a lei e a justiça criminal. Esse pesquisador de- senvolveu uma bateria de testes, para avaliar as chamadas su- gestionabilidade primária (sob o efeito da hipnose) e secundária (em pessoas sugestionáveis). Estes estudos foram conduzidos em sujeitos que preencheriam critérios de vulnerabilidade108.

memory illusions created differently from those of adults? Evidence from levels-of- processing and divided paradigms. Journal of Experimental Child Psychology, v. 107, p. 31-49, 2010; PAZ-ALONSO, Pedro M.; GHETTI, Simona; DONOHUE, Sarah E.; GOODMAN, Gail s.; BUNGE, Silvia A. Neurodevelopmental correlates of true and false recognition. Cerebral Cortex, v. 18, p. 2208-2216, 2008. 105 FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Memória em Julgamento: técnicas de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 210. 106 GUDJONSSON, G.H.; CLARK, N.K. Suggestibility in police interrogation: a social psychological model. Personality, Individual and Differences, v. 7, n. 1, p. 195-196, 1986. 107 CATTELL, James McKeen. Untersuchungen. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2012. 108 BINET, A. La suggestibilitie. Paris: Scheicher, 1900, apud NEUFELD, Carmem Beatriz; BRUST, Priscila Goergen; STREIN, Lilian Milnitsky. Compreendendo o fenômeno das falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky. Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 23.

114 115 As evidências sugerem que tanto a sugestionabilidade se- cundária como a sugestionabilidade interrogativa estão relacio- nadas a variáveis similares, ou seja, apresentam um grau de simi- laridade109. Binet concluiu em suas pesquisas que ocorrem alguns fatores de significância causando sugestionabilidade durante um estado de “estar desperto”: o recipiente sendo relativamente obediente com a mente influenciável, com tendência a imitar, e senso crítico paralisado pela sugestão. O que surgiu de novo foi a aplicação do conceito de su- gestionabilidade ao cenário forense, em particular, à entrevista policial. A experiência de Binet gerou uma troca de paradigma, ou seja, pela primeira vez, os psicólogos começaram a entender que a sugestionabilidade poderia ocorrer durante a vigília, como resultado da influência de outra pessoa e que poderia ser pro- duzido durante depoimento policial. Essa ideia foi inicialmente proposta nos trabalhos empíricos de Stern (1939), em que os depoentes poderiam aceitar como verdadeiros fatos inverídicos, prejudicando a precisão da lembrança de eventos testemunha- dos, quando questionados por um entrevistador110. A sugestionalibidade interrogativa refere-se à aceitação de sugestões, podendo representar uma séria vulnerabilidade psico- lógica durante uma entrevista policial.111 Isto pode ocorrer du- rante a entrevista de duas maneiras: a aceitação de informação falsa e sensibilidade à pressão interrogatória do entrevistador112.

109 DONNELAN, M.B.; BURT, S.A.; LEVENDOSKY, A.A.; KLUMP, K.L. Genes, personality and attachment in adults: A multivariate behavioral genetic analysis. Personality and Social Psychology Bulletin, v. 34, p. 3-16, 2008. 110 STERN, W. The psychology of testimony. Journal of Abnormal and Social Psychology, v. 34, p. 3-20, jan. 1939. 111 GUDJONSSON, G.H. The psychology of interrogations and confessions: a handbook, Chichester: John Wiley & Sons, 2003, p. 504. 112 GUDJONSSON, G.H.; YOUNG, S., BRAMHAM, J. Interrogative suggestibility in adults diagnosed with attention-deficit hyperactive disorder (ADHD). A potential vulnerability during police questioning. Personality and Individual Differences, v. 43, p. 743, 2007.

114 115 Uma pesquisa recente demonstrou que confissões falsas, in- duzidas pela polícia, foram encontradas em 15 a 20% dos casos de condenações equivocadas nos EUA113. No estudo de Drizin & Leo114, foram analisados 125 casos de comprovadas falsas confis- sões nos EUA entre 1971 e 2002, e constatou-se que 81% dos casos que foram a julgamento terminaram em condenações injustas. Na Inglaterra e no País de Gales, o número de condena- ções equivocadas decaiu desde 1992, tornando-se menos comum desde então115. Naquele ano, foi introduzido nestes países o Me- morando de Boas Práticas que, mais tarde, passou a se chamar Melhores Evidências Encontradas. Estas diretrizes tiveram um efeito positivo na entrevista de suspeitos116. A implementação do Ato de Evidência Policial e Criminal de 1984 (PEACE - planning and preparation, engage ou explain, ac- count, closure and evaluate), bem como as diretrizes governamen- tais, foram efetivos em atingir os seus objetivos na proteção de entrevistados vulneráveis/sugestionáveis dos métodos coercitivos da entrevista policial e em instruir a polícia na entrevista investi- gativa efetiva de testemunhas e suspeitos117.

113 KASSIN, S.M.; DRIZIN, S.A.; GRISSO, T.; GUDJONSSON, G.H.; LEO, R.A.; REDLICH, A.D. Police-induced confession: Risk factors and recommendations. Law and Human Behavior, v. 34, p. 3-38, 2010, p. 3-5. 114 DRIZIN, S.A.; LEO, R.A. The problem of false confessions in the post-DNA world. North Carolina Law Review, v. 82, p. 950, 2004. 115 BULL, R.; MILNE, R. Attempts to improve police interviewing of suspects. In: LASSITER, G.D. (Ed.). Interrogation, confessions and entrapment. New York: Plenum, 2004, p. 183. 116 HOME OFFICE (1992). Memorandum of Good Practice on Video Recorded Interviews with Child Witnesses for Criminal Proceedings; e Home Office (2007). Achieving Best Evidence. Home Office. 117 HOME OFFICE. Memorandum of good practice on video recorded interviews with child witnesses for criminal proceedings. Home Office, 1992; HOME OFFICE. Achieving best evidence. Home Office, 2007.

116 117 2.2.2 Sugestionabilidade e Desenvolvimento de Critérios Identificadores O conceito de sugestionabilidade interrogativa foi definido por Gudjonsson e Clark como o grau em que, no contexto de uma relação interpessoal, as pessoas aceitam mensagens que lhe são comunicadas durante uma entrevista e, como consequência, alteram o seu comportamento e/ou resposta. Este modelo teórico propõe a existência de dois tipos de sugestionabilidade – a ten- dência para ceder perante a sugestão (cedência) e a tendência para alterar a resposta após um feedback negativo (alteração)118. Existem duas formas paralelas da escala de sugestionabili- dade de Gudjonsson, denominadas GSS1 e GSS2, que diferem apenas no conteúdo semântico do material apresentado, isto é, uma história sobre um roubo de uma carteira e uma história que não contém informação criminal. A escala de sugestionabilidade de Gudjonsson, GSS1 de 1987, operacionaliza o modelo e proporciona uma medida de recordação auditiva – imediata e deferida – e de sugestionabilidade interroga- tiva. É constituída por uma história sobre um assalto, apresentada oralmente, por duas tarefas de recordação livre (com um intervalo de 50 minutos) e por um questionário com 20 questões, 15 das quais construídas de modo a induzirem o sujeito ao erro. No final do questionário, o sujeito é informado de que cometeu erros e que, por isto, irá responder novamente às questões, devendo ser mais preciso. Qualquer mudança nas respostas do sujeito do primeiro questionamento para o segundo é considerada uma alteração. Quando o sujeito se deixa influenciar pelas questões que induzem ao erro, considera-se a presença de uma cedência (cedência 1 ou 2, consoante o sujeito cede as questões falaciosas antes ou depois do

118 GUDJONSSON, G.H.; CLARK, N.K. Suggestibility in police interrogation: a social psychological model. Social Behavior, v. 1, p. 195-196, 1986.

116 117 feedback negativo). A sugestionabilidade total corresponde à adi- ção do total cedência 1, com o total alteração119. De acordo com o modelo de Gudjonsson e Clark, a sugestio- nabilidade interrogativa depende de estratégias do sujeito, para enfrentar a incerteza e as expectativas que acompanham um in- terrogatório. Embora os autores suponham tratar-se de um traço, a sugestionabilidade pode ser modificada em termos de grau por características da situação e disposição adotada pelo sujeito, de modo a que a sua resposta seja de indução ou resistência120. Embora as escalas de sugestionabilidade de Gudjonsson sejam dos instrumentos mais utilizados em contexto forense e na inves- tigação sobre os mecanismos subjacentes à sugestionabilidade, os resultados obtidos com a adaptação portuguesa da GSS1 propõem cautela na utilização e interpretação, principalmente no que toca às subescalas de alteração e de sugestionabilidade total121. Na mesma linha, Gignac e Powell122 chamam atenção para o fato de haver pouca investigação sobre a precisão e a validade das escalas e recomendam aos investigadores e utilizadores que se li- mitem à utilização da subescala cedência 1, até que novos estudos sobre as propriedades psicométricas de alteração e de sugestio- nabilidade total sejam realizados. Outra crítica ao uso da escala envolve a grande morosidade na sua aplicação, quer nos estudos originais quer nas adaptações que têm sido realizadas.

119 GUDJONSSON, G.H. The Gudjonsson suggestibility scales manual. Hove: Psychology Press, 1987, apud KASSIN, Saul M. On the psychology of confessions - Does innocence put innocents at risk? American Psychologist, v. 60, n. 3, p. 215-228, 2005. 120 GUDJONSSON, G.H.; CLARK, N.K. Suggestibility in police interrogation: a social psychological model. Social Behavior, v. 1, p. 95-96, 1986. 121 PIRES, R.; FERREIRA, A.S., SILVA, D.R. Poster apresentado nas XVII JOCLAD (Jornadas de Classificação e Análise de Dados). Lisboa, 2010. Disponível em: < http:// repositorio.ul.pt/bitstream/10451/4185/1/poster%20joclad%202010.pdf>. Acesso em: 01 ago. 2013. 122 GIGNAC, G.; POWELL, M.B. A psychometric evaluation of the Gudjonsson Suggestibility Scales: Problems associated with measuring suggestibility as a difference score composite. Personality and Individual Differences, v. 46, n. 2, p. 88-93, 2009.

118 119 Em um caso a ser avaliado, o que se pretende saber é o valor preditivo do teste, isto é, dada uma determinada pontuação no teste, qual a probabilidade de sugestionabilidade? A GSS mede a sugestionabilidade interrogativa em duas vertentes: tendência para ceder a perguntas sugestivas (resultado cedência) e propen- são para alterar as respostas dadas, sob pressão interpessoal (re- sultado mudança)123. No que concerne à consistência interna, recorrendo ao cál- culo do valor de alfa de Cronbach, os valores obtidos por Mer- ckelbach et al.124 são as seguintes: .75, para o resultado “mu- dança”; .79, para a “cedência”; e .82, para a “sugestionabilidade total”. Os resultados da análise fatorial revelam que os dois tipos de sugestionabilidade são independentes e que os valores de cor- relação entre ambas as medidas são elevados. Na busca da compreensão da sugestionabilidade, tem sido estudada a sua relação com variáveis, como idade, sexo, transtornos de conduta, inteligência, memória, autoestima e aquiescência, entre outras125. Com relação à idade, verifica-se que a sugestionabilidade tende a diminuir à medida que aumenta a idade. As crianças, entre 3-4 anos, são mais sugestionáveis que entre 5-6 anos, mas estas úl- timas não diferem significativamente das crianças entre 7-10 anos. Esses resultados mostram que a sugestionabilidade declina durante

123 GUDJONSSON, G.H. The Gudjonsson suggestibility scales manual. Hove: Psychology Press, 1987, p. 47, apud KASSIN, Saul M. On the psychology of confessions - Does innocence put innocents at risk? American Psychologist, v. 60, n. 3, p. 215-228, 2005. 124 MERCKELBACH, H.; MURIS, P.; WESSEL, I.; VON KOPPEN, P.J. The Gudjonsson suggestibility scale (GSS): Further data on its reliability, validity, and metacognition correlates. Social Behavior and Personality, v. 26, n. 2, p. 206-207, 1998. 125 GUDJONSSON, G.H. The relationship between interrogative suggestibility and acquiescence: empirical findings and theoretical implications. Personality and Individual Differences, v. 7, p. 195-199, 1986.

118 119 os anos pré-escolares, associando-se esta diminuição a processos, como a memória e a habilidade na linguagem126. O estudo de Chae et al.127 examinou a memória de eventos e sugestionabilidade em crianças de 3 a 16 anos, envolvidas em investigações forenses de maus tratos à criança. Um total de 322 crianças foi entrevistado sobre uma peça de teatro com um adulto desconhecido. Medidas abrangentes de diferenças individuais na psicopatologia, relacionadas ao trauma e funcionamento cogni- tivo, foram administradas. Crianças abusadas sexual e/ou fisica- mente apresentaram maiores escores de dissociação que crian- ças abandonadas, e crianças abusadas sexualmente tinham maior probabilidade de obter o diagnóstico de transtorno de estresse pós-traumático do que crianças fisicamente abusadas, negligen- ciadas e sem histórico de abuso significativo. Em geral, crianças mais velhas e com melhor funciona- mento cognitivo produziram informações mais corretas e menos erros de memória. Estado de abuso, por si só, não foi um fator preditivo em relação à memória da criança ou sugestionabilidade, se considerados isoladamente ou em interação com a idade. No entanto, em crianças com maior dissociação, mais sintomas do trauma foram associados com maior imprecisão, enquanto sinto- mas de trauma não foram associados com o aumento dos erros em crianças com menor tendência dissociativa128. Igualmente, verifica-se que os adolescentes não diferem dos adultos nas medidas de sugestionabilidade129.

126 WELCH-ROSS, M.K.; DIECIDUE, K.; MILLER, S.A. Young children understanding of conflicting mental representation predicts suggestibility. Developmental Psychology, v. 33, p. 47, 1997. 127 CHAE, Y.; GOODMAN, G.S.; EISEN, M.L.; QIN, J. Event memory and suggestibility in abused and neglected children: Trauma related psychopathology and cognitive functioning. Journal of Experimental Child Psychology, v. 110, p. 534-535, 2011. 128 CHAE, Y.; GOODMAN, G.S.; EISEN, M.L.; QIN, J. Event memory and suggestibility in abused and neglected children: Trauma related psychopathology and cognitive functioning. Journal of Experimental Child Psychology, v. 110, p. 520-538, 2011. 129 Cf. ENDRES, J. The suggestibility of the child witness: the role of individual differences and their assessment. The Journal of Credibility Assessment and Witness Psychology, v. 1, p. 44-67, 1997.

120 121 Poucos estudos têm examinado diferenças de gênero na su- gestionabilidade interrogativa, tanto com população adolescente quanto adulta130. Além disso, os poucos estudos têm mostrado resultados mistos. Na população adulta, mulheres são menos su- gestionáveis e acuradas que homens em relembrar eventos no contexto de testemunha ocular131. Outra pesquisa com população adulta sugere que diferenças de gênero em sugestionabilidade va- riam dependendo do contexto. De acordo com Powers, Andriks e Loftus132, mulheres são menos sugestionáveis sobre detalhes femi- ninos, tais como roupas de mulheres, e homens menos sugestio- náveis sobre detalhes masculinos, tais como em torno do delito. A orientação de gênero dos detalhes foi determinada pelo uso de um procedimento preliminar, designado para medir que quanto aos detalhes homens e mulheres eram mais propensos a notar. Por sua parte, Gudjonsson133 não encontrou diferenças sig- nificativas entre as pontuações de sugestionabilidade de homens e mulheres, ainda que as mulheres tendessem a pontuar mais alto do que os homens. Dessa forma, a sugestionabilidade e o sexo pa- recem estar mediados pelo conteúdo dos estímulos apresentados para produzir a sugestão e por outros processos relacionados com a memória. Importante salientar que nenhum destes estudos exa- minou indivíduos de uma população forense/correcional. No estudo de Meeris et. al. (2004), a correlação entre esco- res da Escala de Sugestionabilidade de Gudjonsson e um número de características de personalidade relevantes, isto é, inteligência, memória, inadequação social, desejo social e propensão à fantasia foram examinados em uma amostra de 71 garotos delinquentes.

130 CALICCHIA, J.A.; SANTOSTEFANO, S. The assessment of interrogative suggestibility in adolescents: modalities, gender, and cognitive control. North American Journal of Psychology, v. 6, p. 10, 2004. 131 LIPTON, J.P. On the psychology of eyewitness testimony. Journal of Applied Psychology, v. 62, p. 94, 1997. 132 POWERS, P.A., ANDRIKS, J.L.; LOFTUS, E.F. Eyewitness accounts of females and males. Journal of Applied Psychology, v. 64, p. 343-344, 1979. 133 GUDJONSSON, G.H. A new scale of interrogative suggestionability. Personality and Individual Differences, v. 5, p. 305-306, 1984.

120 121 Inteligência e memória foram relacionadas negativamente aos es- cores de sugestionabilidade. Isto é, menos memória e inteligência estiveram associadas à sugestionabilidade mais alta. É reconhecido que a entrevista de pessoas com dificuldade intelectual pode ser desafiador. De acordo com Murphy e Clare134, como um grupo, eles tendem a ter um alto grau de aquiescência, ou seja, responder afirmativamente às questões sim/não e uma tendência de confabular (distorcer ou fabricar informações). Eles também apresentam uma predisposição para dizer o que querem ouvir no depoimento. Além disso, destacamos que tanto crianças como adultos com dificuldades intelectuais são mais sugestioná- veis do que pessoas sem essas dificuldades135. Não foram encontradas correlações entre sugestionabilidade e outras características de personalidade. Em contrapartida, Gud- jonsson136 encontrou correlações entre sugestionabilidade e algu- mas variáveis de personalidade, como ansiedade, afrontamento, assertividade e autoestima, assim como com inteligência137. Con- forme a autora138, o fator autoestima parece estar negativamente correlacionada com a sugestionabilidade interrogativa. Esse re- sultado apoia a ideia de que o feedback negativo, quando aceito

134 MURPHY, G.; CLARE, I. Intellectual Disability. In: YOUNG, S.; KOPELMAN, M.; GUDJONSSON, G. (Eds.). Forensic neuropsychology in practice: a guide to assessment and legal process. 1st. ed. New York: Oxford University Press, 2009, p. 53-79. 135 CLARE, I.C.H.; GUDJONSSON, G.H. Interrogative suggestibility, , and acquiescence in people with mild learning disabilities (mental handicap): Implications for reliability during police interview. British Journal of Clinical Psychology, v. 32, p. 295-301, 1993. 136 GUDJONSSON, G.H. Interrogative suggestibility: Its relationship with assertiveness, social-evaluative anxiety, state anxiety and methods of coping. British Journal of Clinical Psychology, v. 27, p. 159-166, 1988. 137 GEDDIE, L.; FRADIN, S.; BEER, J. Child characteristic which impact accuracy of and suggestibility in preschoolers: Is age the best predictor? Child Abuse and Neglect, v. 24, p. 232, 2000; SHARROCK, R.; GUDJONSSON, G.H. Intelligence, previous convictions and interrogative suggestionability: a path analysis of alleged false-confession cases. British Journal of Clinical Psychology, v. 32, p. 169-175, 1993. 138 GUDJONSSON, G.H. The psychology of interrogations and confessions: a handbook. Chichester: Wiley, 2003, p. 504.

122 123 pelo sujeito, pode provocar uma forte reação emocional e fisioló- gica que, por sua vez, poderá resultar em um incremento da incer- teza e em um decréscimo da autoestima. Uma vez diminuída, ela pode resultar em pensamentos e estratégias de coping debilitantes, favoráveis à aceitação da sugestão. Além disso, os resultados dos estudos de Gudjonsson de- monstram existir relação entre os processos de sugestionabili- dade e a inteligência. De acordo com os achados, indivíduos com menor “QI” são mais influenciáveis por perguntas sugestivas139. Howard et al.140 estudaram o estilo de enfrentamento na su- gestionabilidade interrogativa. Participantes, focados na emoção ou no problema em seu estilo de enfrentamento, foram avaliados para sugestionabilidade, utilizando-se a escala GSS1. Os resulta- dos indicaram que o grupo, centrado no problema, era resistente ao efeito das perguntas principais (rendimento inferior) em re- lação ao grupo focado na emoção. Mas os grupos não diferiram na medida de pós-feedback ou em medidas de recordação livre. A atenção, voltada para tarefas relevantes, parece imunizar con- tra sugestionabilidade, enquanto uma atenção difusa para tare- fas irrelevantes parece facilitar estratégias de enfrentamento que aumenta sugestionabilidade. Nenhum desses critérios discutidos estão contemplados na legislação processual penal. Merckelbach et al.141 pretenderam averiguar a validade pre- ditiva da GSS1 no que diz respeito ao resultado “cedência”. Foi encontrado um valor de correlação significativo, apesar de baixo (.22) entre “cedência”, medida pela GSS1, e o grau com que os sujeitos foram induzidos a erro pelas perguntas sugestivas.

139 GUDJONSSON, G.H. The psychology of interrogations and confessions: a handbook. Chichester: Wiley, 2003, p. 504. 140 HOWARD, R.; HONG, N.S. Effects of coping style on interrogative suggestibility. Personality and Individual Differences, v. 33, p. 483-484, 2002. 141 MERCKELBACH, H.; MURIS, P.; WESSEL, I.; VON KOPPEN, P.J. The Gudjonsson suggestibility scale (GSS): further data on its reliability, validity, and metacognition correlates. Social Behavior and Personality, v. 26, n. 2, p. 206-207, 1998.

122 123 No procedimento de aplicação da GSS, o modo como o fe- edback negativo é apresentado tem importância crucial: os exa- minadores que se apresentam demasiadamente severos poderão contribuir para a obtenção de níveis exageradamente elevados de sugestionabilidade interrogativa. Um estudo de Baxter e Boon142 buscou avaliar o efeito de variações no modo como é apresentado o feedback negativo no GSS2. Como resultado, encontraram que, à medida que aumenta a distância social (comportamento amigável x severo) entre exa- minador e sujeito, crescem também os resultados cedência 2 e mudança na GSS, assim como maior sensibilidade do resultado cedência 2 à pressão interrogativa exercida sobre o sujeito. Ainda, a propósito dos resultados deste trabalho, a utilização exclusiva do resultado “sugestionabilidade total” na identificação de tes- temunhas vulneráveis concede uma importância muito grande a aspectos mnésicos e atencionais da sugestionabilidade em detri- mento da tendência para ceder à pressão (medida social). Um sujeito pode ter uma pontuação considerada não nor- mal na “cedência 2” e, em “sugestionabilidade total”, encon- trar-se dentro da normalidade. Além disso, um valor elevado de “cedência 2” constituiria um indicador não apenas da aquies- cência e susceptibilidade à pressão, mas também, do caráter su- gestivo da própria situação143. Hansdottir et al.144 demonstraram que os efeitos da sugestio- nabilidade estão mais presentes nas situações de maior ansiedade e maior expectativa em relação às respostas. Drake145, utilizando

142 BAXTER, J.S.; BOON, J.C.V. Interrogative suggestibility: the importance of being earnest. Personality and Individual Differences, v. 28, p. 760-761, 2000. 143 BAXTER, J.S.; BOON, J.C.V. Interrogative suggestibility: the importance of being earnest. Personality and Individual Differences, v. 28, p. 760-761, 2000. 144 HANSDOTTIR, I.; THORSTEINSSON, H.S.; KRISTINSDOTTIR, H.; RAGNARSSON, R.S. The effects of instructions and anxiety on interrogative suggestibility. Personality and Individual Differences, v. 11, p. 85-87, 1990. 145 DRAKE, K.E. The psychology of interrogative suggestibility: a vulnerability during interview. Personality and Individual Differences, v. 49, p. 686, 2010.

124 125 a escala de sugestionabilidade de Gudjonsson, concluiu que en- trevistados vulneráveis são os que apresentam maior possibili- dade de comportamento negativo durante as entrevistas, o que pode resultar na aceitação de respostas inadequadas. Indivíduos de comportamento pessimista e os mais suscetíveis ao estresse tendem a ser mais sugestionáveis. Richardson et al.146 investigaram as alternativas de resposta de adolescentes sugestionáveis e não sugestionáveis, avaliadas pela GSS. Por meio de um modelo teórico de sugestionabilidade interrogativa, levantou-se a hipótese de que indivíduos altamente sugestionáveis foram particularmente suscetíveis para mudar as suas respostas diante de questões alternativas falsas, seguindo fee- dback negativo durante o interrogatório. Os resultados do estudo de Richardson não confirmam esta hipótese em uma amostra de adolescentes forenses. Indivíduos de comportamento pessimista e os mais suscetíveis ao estresse tendem a ser mais sugestionáveis. Pesquisas, realizadas durante os últimos anos, mostraram a ligação consistente entre o relato de eventos negativos e sugestio- nabilidade interrogativa na GSS. O estudo de Drake147, com 130 pessoas, investigou a forma funcional desta relação. Os resulta- dos desse estudo não demonstram uma associação linear entre estas variáveis, sugerindo, portanto, que altos níveis de adversi- dade não levam necessariamente a um risco aumentado de infor- mações equivocadas durante os interrogatórios, como se presu- mia anteriormente. Gudjonsson148 construiu também um instrumento, para ava- liar a concordância, denominado G Compliance Scale (GCS); ele

146 RICHARDSON, G.R.; KELLY, T.P.; BRYCE, A. The response alternatives of suggestible and non-suggestible adolescent offenders. Personality and Individual Differences, v. 24, p. 295-297, 1998. 147 DRAKE, K.E. Further insights into the relationship between the experience of life adversity and interrogative suggestibility. Personality and Individual Differences, v. 51, p. 1056-1058, 2011. 148 GUDJONSSON, G.H. Compliance in an interrogation situation: a new scale. Personality Individual Differences, v. 10, p. 539, 1989.

124 125 reconhece que o resultado dessa escala depende demasiadamente da seriedade dos respondentes. Smeets et al.149 desenvolveram uma versão mais breve da escala de Gudjonsson e realizaram posterior comparação (a usual e a condensada) e concluíram que não havia diferença estatisti- camente significativa entre as três versões.

2.2.3 Psicologia do Testemunho: Estudos so- bre as Identificações Equivocadas Uma das grandes áreas beneficiadas com os estudos sobre as distorções da memória autobiográfica150 é a psicologia do teste- munho. Em diversas situações, a única prova de que a justiça dis- põe é o depoimento de uma testemunha. Sob outro viés, a única prova de que a justiça dispõe são as lembranças armazenadas pela testemunha acerca dos fatos. O estudo da psicologia do testemu- nho, como se vê, é indissociável do estudo da memória autobio- gráfica e das suas distorções151. Nos crimes em que não existem evidências materiais (como ocorrem em muitas situações de abuso sexual), uma prova con- sistente implica uma entrevista bem conduzida com a testemu- nha. Assim, técnicas de entrevista, baseadas nos conhecimentos científicos sobre o funcionamento da memória, são ferramentas importantes na coleta de informações detalhadas e acuradas152.

149 SMEETS, T.; LEPPINK, J.; JELICIA, M.; MERCKELBACH, H. Shortened versions of the GSS meet the standards. Legal and Criminological Psychology, v. 21, n. 1, p. 153, 2009. 150 Refere-se ao sistema neuropsicológico, composto pelos processos cognitivos e seus correlatos anatomofisiológicos, que permitem que nos lembremos do nosso próprio passado. Já memórias autobiográficas serão entendidas como as representações de eventos e/ou fatos de nossa história, que podem ser codificadas, retidas, recuperadas, relatadas e assim por diante (GAUER, Gustavo. Memória autobiográfica. In: OLIVEIRA, Alcyr Alves (Org.). Memória: cognição e comportamento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 140-141). 151 PERGHER, Giovanni Kuckartz. Falsas memórias autobiográficas. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 112. 152 Ibidem, p. 112.

126 127 Assim como um terapeuta, um investigador ou o juiz pode ter uma hipótese sobre os fatos acontecidos, e, com isto, corre o risco de adotar um viés confirmatório em suas entrevistas. A consequência dessa postura é evidente: o investigador pode su- gestionar a testemunha, implantando lembranças sobre fatos que não ocorreram153. Perguntas feitas ao participante em forma aberta, ou narra- tiva, resultam em relatos mais acurados, porém, menos completos sobre os eventos. Ao contrário, perguntas tendenciosas, que su- gerem à pessoa uma resposta, prejudicam a acuidade do relato154. A sugestionabilidade é justamente o que procura se evitar. Um dos resultados da sua ocorrência é trazido por Yarmey, ao referir que estudos de casos e, mais recentemente, exames de DNA, nos Estados Unidos, mostraram que a identificação tes- temunhal errônea é responsável por um número maior de con- denações indevidas do que todas as outras causas de erro com- binadas155. Em Portugal, o Jornal Diário de Notícias trouxe em destaque, no ano de 2006, que muitas pessoas estão presas em todo mundo pela criação de falsas memórias156. Nos últimos trinta anos, centenas de estudos de identifica- ção de testemunha ocular foram realizados, trazendo luz aos fato- res que podem influenciar a precisão da testemunha ocular. Além disso, estas pesquisas tiveram impacto na prática policial, no trei- namento e nas políticas de conduta157.

153 Idem, p. 112-113. 154 SCHACTER, D. L. : insgithts from cognitive . American Psychologist, v. 54, p. 182-203, 1999. 155 YARMEY, A. Daniel. Expert Testimony: does research have probative value for the courts? Canadian Psychology, v. 42, p. 92, maio 2001. 156 HÁ PESSOAS presas por falsas memórias. Disponível em: < http://www.dn.pt/ inicio/interior.aspx?content_id=638384>. Acesso em: 01 ago. 2013. 157 WELLS, G.L.; MALPASS, R.S.; LINDSAY, R.C.L.; FISHER, R.P.; TURTLE, J.W.; FULERO, S. From the lab to the police station: A successful application of eyewitness research. American Psychologist, v. 55, p. 581-584, 2000.

126 127 Há várias maneiras de encaminhar a dúvida, e estudos de la- boratórios podem ser generalizados para o mundo real dos crimes. Em primeiro lugar, embora estudos de laboratório de testemunhas oculares certamente não sejam idênticos aos do mundo real do crime, eles são desenhados, para explorar mecanismos psicoló- gicos (por exemplo, memória, atenção e influência social) que estão presentes em situações do mundo real. Uma segunda ma- neira de encaminhar esta questão é perguntar como os cenários das testemunhas oculares do mundo real diferem do estudo de laboratório particular que realizamos. A resposta para esta ques- tão pode fornecer uma série de variáveis que diferem entre os dois campos. Estas variáveis podem ser manipuladas (nos estudos de laboratório), para verificar se são importantes. Outro método importante, para testar a possibilidade de ge- neralização da pesquisa de laboratório é transferir a pesquisa para o campo. A vantagem da pesquisa de campo é que os resultados clara- mente são sobre testemunhas oculares reais, fazendo identificações em um cenário forense real. A desvantagem da pesquisa de campo é a ausência de controle experimental. Sem dúvida, a melhor abor- dagem, a fim de entender os fatores que influenciam a precisão das testemunhas oculares é usar tanto pesquisa de laboratório quanto de campo como fonte de evidência de convergência158. Lampinen et al.159 destacam nove grandes estudos de campo, conduzidos na área da memória de testemunha ocular. São eles Tollestrup, Turtle e Yuille160, Wright e McDaid161, Behrman e

158 WELLS, G.L.; MALPASS, R.S.; LINDSAY, R.C.L.; FISHER, R.P.; TURTLE, J.W.; FULERO, S. From the lab to the police station: A successful application of eyewitness research. American Psychologist, v. 55, p. 581-598, 2000. 159 LAMPINEN, J.M.; NEUSCHATZ, J.S.; CLING, A.D. The psychology of eyewitness identifications. New York: Psychology Press, 2012, p. 203-230. 160 TOLLESTRUP, P.A.; TURTLE, J.W.; YUILLE, J.C. Actual victims and witnesses to robbery and fraud: An archival analysis. In: ROSS, D.F.; READ, J.D.; TOGLIA, M.P. (Eds.). Adult eyewitness testimony: Current trends and development. New York: Cambridge University Press, 1994, p. 144-160. 161 WRIGHT, D.B.; MCDAID, A.T. Comparing system and estimator variables using data from real line-ups. Applied Cognitive Psychology, v. 10, p. 79-81, 1996.

128 129 Davey162, Pike, Brace e Kynam163, Valentine, Pickering e Dar- ling164, Behrman e Richards165, Klobuchar, Steblay e Coligiuri166, além de Mecklenburg, Malpass e Ebbesen167. Tollestrup e Cols.168 conduziram um estudo, no qual foram utilizados arquivos da polícia montada do Canadá no período de 1987 a 1989. Os registros incluíram 119 roubos e 66 casos de fraudes. Os pesquisadores registraram informação descritiva de cada arquivo, tais como data, hora, número de testemunhas ocu- lares, autores e presença de arma. Também colheram informação sobre a relação entre aqueles envolvidos (testemunhas x vítimas ou amigo x desconhecido), descrições de testemunhas, uso de foto de assaltantes (mugshots), bem como tipo de identificação: live lineup (é mostrada para a testemunha várias pessoas lado a lado, em geral, seis e perguntado qual indivíduo cometeu o crime, se algum. É recomendável que tenha um único suspeito entre os seis); ou live showup (um procedimento de identificação, em que é mostrado para a testemunha um único suspeito e perguntado se foi ele quem cometeu o crime). Se for mostrado foto do suspeito,

162 BEHRMAN, B.; DAVEY, S. Eyewitness identification in actual criminal cases: An archival analysis. Law and Human Behavior, v. 25, p. 480-486, 2001. 163 Cf. PIKE, G.; BRACE, N.; KYNAN, S. The visual identification of suspects: procedures and practice (Briefing Note2/02). London: Home Office, 2002. 164 VALENTINE, T.; PICKERING, A.; DARLING, S. Characteristics of eyewitness identification that predict the outcome of real lineups. Applied Cognitive Psychology, v. 17, p. 987-990, 2003. 165 BEHRMAN, B.; RICHARDS, R. Suspect/foil identification in actual crimes and in the laboratory: A reality monitoring analysis. Law and Human Behavior, v. 29, p. 291, 2005. 166 KLOBUCHAR, A.; STEBLAY, N.K.M.; CALIGIURI, H.L. Improving eyewitness identifications: Hennepin County’s blind sequential lineup pilot project. Cardozo Public Law, Policy, and Ethics Journal, v. 2, p. 381-414, 2006. 167 Cf. MECKLENBURG, S.H.; MALPASS, R.M.; EBBESON, E. The Illinois pilot program on sequential double blind identification procedures. In: Report to the Legislature of the State of Illinois. Springfield: State of Illinois, 2006. 168 TOLLESTRUP, P.A.; TURTLE, J.W.; YUILLE, J.C. Actual victims and witnesses to robbery and fraud: an archival analysis. In: ROSS, D.F.; READ, J.D.; TOGLIA, M.P. (Eds.). Adult eyewitness testimony: current trendsand development. New York: Cambridge University Press, 1994, p. 153-156.

128 129 este é chamado photographic showups. Além do tipo de identifica- ção, ainda foi analisado o resultado da formação. Os autores analisaram o número e tipo dos descritores, usados para descrever os culpados. Os detalhes nas descrições foram ca- tegorizados, como físico (altura, peso e cor dos cabelos) ou roupas. A cada descritor foi atribuído um ponto. Testemunhas e vítimas apontaram mais descritores físicos que os de roupa. Todas as teste- munhas oculares exibiram o mesmo padrão com respeito à preci- são, comparado com os registros policiais; as testemunhas oculares tendem a prover maiores estimativas de idade e menores estimati- vas de altura e peso do que era realmente verdade para o suspeito. Em geral, houve 170 tentativas de identificação e mais de 90% foram photospread lineups (linhas de identificação com fotos)169. Tollestrup e Cols. criaram três categorias de força de evi- dência: nenhuma evidência, alguma evidência da implicação do suspeito e uma confissão (esta a mais forte categoria de evidên- cia). A taxa de identificação do suspeito foi a mais baixa nos casos em que não havia evidência (17.5%). Quanto teve uma confis- são, a taxa de identificação do suspeito subiu para 47% e, quando houve alguma evidência, a taxa foi de 41.9%170. Um dos mais fortes padrões a ser destacado foi o efeito nega- tivo do tempo na taxa de identificação do suspeito. Isto é, a taxa de identificação do suspeito para roubos, quando o procedimento de identificação foi menos que um dia depois do crime, foi de 71.43%. Em contraste, se o intervalo de retenção entre o crime e a identificação foi de 7 a 34 dias ou mais que 34 dias, a taxa de identificação caiu para 33.33% e 14.29% respectivamente. Em relação à presença de arma, um número muito pequeno de crimes no conjunto de dados realmente incluiu uma arma (n=77). So- mente 30.61% das tentativas de identificação feitas, quando uma

169 TOLLESTRUP, P.A.; TURTLE, J.W.; YUILLE, J.C. Actual victims and witnesses to robbery and fraud: an archival analysis. In: ROSS, D.F.; READ, J.D.; TOGLIA, M.P. (Eds.). Adult eyewitness testimony: current trendsand development. New York: Cambridge University Press, 1994, p. 153-156. 170 Ibidem, p. 153-156.

130 131 arma estava presente no crime, resultou em identificação do sus- peito, enquanto a taxa de identificação do suspeito foi 73.3% na ausência de arma. Além disso, as testemunhas oculares de crimes com armas envolvidas forneceram mais detalhes que as testemu- nhas de crimes nas quais não tinha arma presente171. Comparando com resultados de laboratório, estes são seme- lhantes aos da pesquisa científica, ou seja, que a identificação do suspeito diminui depois de um intervalo de retenção do momento do crime ao momento da identificação172. Em sua metanálise, Shapiro e Penrod173 examinaram o efeito da demora no reconhe- cimento facial. Descobriram um efeito negativo da demora tanto da identificação correta quanto falsa, com uma média na demora sendo pouco mais de 4 dias. Cutler, Penrod, O’Rourke e Martens174 encontraram um efeito significativo de atraso, quando participantes eram mais propensos a fazer a identificação do alvo positivo e menos pro- penso a fazer falsas identificações depois de uma demora de sete dias entre o evento e a identificação, ao contrário de 28 dias. Des- taca-se que há menos identificações de suspeitos, quando uma arma estava presente também, fato este consistente com o efeito de focagem de arma.

171 TOLLESTRUP, P.A.; TURTLE, J.W.; YUILLE, J.C. Actual victims and witnesses to robbery and fraud: an archival analysis. In: ROSS, D.F.; READ, J.D.; TOGLIA, M.P. (Eds.). Adult eyewitness testimony: current trendsand development. New York: Cambridge University Press, 1994, p. 153-156. 172 DYSART, J.E.; LINDSAY, R.C.L. Showup identifications: Suggestive technique or reliable method? In: LINDSAY, R.C.L.; ROSS, D.R.; READ, J.D.; TOGLIA, M.P. Toglia (Eds.). The handbook of eyewitness psychology: v. 2. Memory for people. Mahwah, N.J: Lawrence Erlbaum, 2007, p. 137-153. 173 SHAPIRO, P.; PENROD, S.D. A meta-analysis of the facial identification literature. Psychological Bulletin, v. 100, p. 143, 1986. 174 CUTLER, B.L.; PENROD, S.D.; O’ROURKE, T.; MARTENS, T. Unconfounding the effects of contextual cues on eyewitness identification accuracy. Social Behavior, v. 1, p. 113-134, 1986.

130 131 Steblay175 realizou meta-análise de 19 estudos empíricos sobre o efeito de focagem de arma. Dos 19 estudos que exami- naram, seis mostraram um efeito significativo de foco arma, en- quanto 13 foram resultados nulos. Quando os resultados destes estudos foram combinados, o efeito de focagem de arma para exatidão da identificação foi significativa, mas relativamente pe- quena em magnitude. É importante notar que um problema inerente aos estudos de campo é que variáveis preditoras tendiam a ser confundidas com outra. No estudo acima, crimes sem armas tendiam a estar associados às tentativas de identificação que ocorreram após um curto atraso. Além disso, a presença de uma arma está também relacionada com o tipo de crime. Essa confusão de preditores torna a interpretação difícil. Atualmente, há 258 casos de exoneração176 nos Estados Uni- dos, baseados no DNA. Em média, a pessoa exonerada passa treze anos na prisão antes de ser liberada. Em 70% dos casos, a pessoa exonerada era um membro de um grupo de minoria racial. Os erros de identificação das testemunhas oculares contribuem em mais de 75% para os casos de prisão indevida, nos Estados Unidos177. Para a melhor identificação das testemunhas, de acordo com as recomendações do “Innocence Project”, temos:

a) Antes de mostrar uma foto ou realizar o reconhecimento, no qual se deva apontar o responsável, os policiais devem gravar uma descrição que seja a mais completa possível do criminoso pela testemunha, utilizando

175 STEBLAY, N. A meta-analytic review of the effect. Law and Human Behavior, v. 16, p. 413-424, 1992. 176 Ação semelhante a nossa Revisão Criminal, ou seja, forma de tentar alterar o resultado de um julgmamento já transitado em julgado. 177 INNOCENCE PROJECT. Eyewitness identification reform. Disponível em: < http:// www.innocenceproject.org/Content/Eyewitness_Identification_Reform.php>. Acesso em: 01 ago. 2013.

132 133 suas próprias palavras. Esta declaração tam- bém deve incluir informações quanto às condições sob as quais a testemunha obser- vou o responsável, incluindo lugar, tempo, distância, obstruções, condições de ilumi- nação e climáticas e outras circunstâncias, incluindo, mas não limitadas a álcool, dro- gas, estresse e deficiências visuais e auditi- vas. A testemunha deve também ser pergun- tada se utiliza óculos ou lentes de contato e se estava os usando no momento da con- duta. O inquiridor deve notar se a testemu- nha estava utilizando óculos ou lentes de contato no momento da identificação;

b) Todos os reconhecimentos presenciais ou fotográficos devem ser conduzidos de forma “cega”, ou seja, sem indicar a hipó- tese do investigador;

c) As testemunhas devem ser instruídas sem a presença de outra

d) No procedimento de identificação, nenhum documento ou informação men- cionando a prisão em flagrante ou em outra modalidade, além de notícias de condena- ções prévias do suspeito devem estar visí- veis ou serem informadas à testemunha;

e) Caso a testemunha realize uma identi- ficação, o inquiridor deverá documentar um depoimento claro, no mesmo instante, utilizando as palavras da própria pessoa, de forma a transparecer o nível de confiança de quem identifica;

132 133 f) Deve ser realizado uma gravação em vídeo do testemunho e, se for o caso, da identificação178.

Os resultados também vão ao encontro das pesquisas de la- boratório e da teoria sobre as condições de visualização. Valen- tine e Cols.179 concluíram que as testemunhas que tiveram mais tempo para visualizar o autor do delito têm maior possibilidade de realizar uma identificação mais correta. Os autores também en- contraram padrão de resultados consistentes, cuja visão obstruída e condições de iluminação precária foram associadas com menos identificação de suspeitos. Na análise estatística realizada, não houve associação em relação à distância da testemunha. O ponto de corte neste estudo foi de dois metros, que pode não ser o ideal para encontrar um efeito da distância180. Na análise dessas variáveis, é importante salientar os estu- dos que comparam lineups simultâneos (aparecem todos os sus- peitos ao mesmo tempo) e sequenciais (os suspeitos são mostra- dos um a um). Neste tema, Klobuchar e Cols.181. e Mecklenburg e Cols.182 chegaram a conclusões diferentes, embora os problemas metodológicos dificultem as interpretações. Klobuchar e Cols. (2006)183 não utilizaram grupo controle, comparando-se os re-

178 INNOCENCE PROJECT. Eyewitness identification reform. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2013. 179 VALENTINE, T.; PICKERING, A.; DARLING, S. Characteristics of eyewitness identification that predict the outcome of real lineups. Applied Cognitive Psychology, v. 17, p. 987 e 990, 2003. 180 Ibidem, p. 990. 181 KLOBUCHAR, A.; STEBLAY, N.K.M.; CALIGIURI, H.L. Improving eyewitness identifications: Hennepin County’s blind sequential lineup pilot project. Cardozo Public Law, Policy, and Ethics Journal, v. 2, p. 381-414, 2006. 182 MECKLENBURG, S.H.; MALPASS, R.M.; EBBESON, E. The Illinois pilot program on sequential double blind identification procedures. In: Report to the Legislature of the State of Illinois. Springfield: State of Illinois, 2006. 183 KLOBUCHAR; STEBLAY; CALIGIURI, op. cit., p. 381-414.

134 135 sultados com a metanálise de Steblay e Cols. (2003)184. No estudo de Mecklenburg e Cols.185, há confusão entre as observações si- multâneas e sequenciais em um processo de identificação. Behr- man e Richards (2005)186 perceberam que uma identificação mais rápida resulta em identificações mais efetivas em comparação a um processo mais demorado. Os achados laboratoriais são consis- tentes com este resultado. Segundo Weber e Cols.187, ainda não está claro o limite de tempo preciso que distingue identificações precisas e imprecisas. Behrman e Richards188 também encontraram associação po- sitiva entre confiança e identificação de suspeitos, os quais são coerentes com os resultados que demonstram que testemunhas confiantes são em média mais precisas do que as menos confian- tes. Assim, há uma associação entre confiança e precisão. O es- tudo sugere que testemunha absolutamente confiante pode estar correta em torno de 80% do tempo. Na prática, os estudos re- fletem que a associação entre confiança e identificação dos sus- peitos apresenta uma retroalimentação (feedback) no processo de identificação, aumentando, desta forma, a confiança das teste- munhas participantes do processo. Seguindo a análise das variáveis em um processo de investi- gação, Pike e Cols.189 analisaram o efeito da idade neste processo.

184 STEBLAY, N.M.; DYSART, J.; FULERO, S.; LINDSAY, R. C. L. Eyewitness accuracy rates in police showup and lineup presentations: A meta-analytic comparison. Law and Human Behavior, v. 27, p. 523-540, 2003. 185 MECKLENBURG, S.H.; MALPASS, R.M.; EBBESON, E. The Illinois pilot program on sequential double blind identification procedures. In: Report to the Legislature of the State of Illinois. Springfield: State of Illinois, 2006. 186 BEHRMAN, B.; RICHARDS, R. Suspect/foil identification in actual crimes and in the laboratory: A reality monitoring analysis. Law and Human Behavior, v. 29, p. 291, 2005. 187 WEBER, N.; BREWER, N.; WELLS, G.L.; SEMMLER, C.; KEAST, A. Eyewitness identification accuracy and response latency: The unruly 10-12 second rule. Journal of Experimental Psychology: Applied, v. 10, p. 139-147, 2004. 188 BEHRMAN; RICHARDS, op. cit., p. 291. 189 PIKE, G.; BRACE, N.; KYNAN, S. The visual identifications of suspects: procedures and practice. Briefing Note 2/02). London: Home Office, 2002.

134 135 Concluíram que havia mais identificação de suspeitos, quando as testemunhas eram jovens (22-29 anos), do que quando as teste- munhas eram mais velhas (60 ou mais anos). Esses achados estão de acordo com LaVoie, Mertz e Richmond190. Uma interessante questão adicional diz respeito ao efeito de suspeitos desconhecidos em comparação aos suspeitos conheci- dos. Em Klobuchar e Cols.191 e Valentine e Cols.192, os pesquisa- dores analisaram o efeito de conhecer o suspeito antes do crime. Quando o suspeito não era um estranho, a taxa de identificação do suspeito foi significativamente maior do que quando o sus- peito era um estranho.

2.2.4 Entrevista Cognitiva e as Tentativas de Redução de Danos Em um processo de investigação policial, a meta é obter as informações mais acuradas possíveis. A entrevista policial típica consiste em pedir à testemunha para descrever o que observou e, em seguida, formular perguntas específicas que permitam extrair detalhes adicionais sobre o crime. Há grandes diferenças quanto à forma como os policiais fazem a entrevista. Alguns, por exemplo, colocam questões com um ritmo muito rápido, interrompendo frequentemente a testemunha, enquanto outros usam procedi- mentos de entrevista mais estruturados.

190 LAVOIE, D.J.; MERTZ, H.K.; RICHMOND, T.L. False memory susceptibility in older adults: implications for the elderly eyewitness. In: ROSSA, M.; MALPASSA, S.J. Moving forward: responses to “Studying eyewitness investigations in the field. Law and Human Behavior, v. 32, p. 16-21, 2007. 191 KLOBUCHAR, A.; STEBLAY, N.K.M.; CALIGIURI, H.L. Improving eyewitness identifications: Hennepin County’s blind sequential lineup pilot project. Cardozo Public Law, Policy, and Ethics Journal, v. 2, p. 381-414, 2006. 192 VALENTINE, T.; PICKERING, A.; DARLING, S. Characteristics of eyewitness identification that predict the outcome of real lineups. Applied Cognitive Psychology, v. 17, p. 969-993, 2003.

136 137 A entrevista cognitiva é uma técnica que foi desenvolvida originalmente em 1984, por Ronald Fisher e Edward Geiselman, a pedido de policiais e operadores do Direito norte-americanos, para maximizar a quantidade e a precisão das informações colhi- das de testemunhas ou vítimas de crimes193. Na época de seu sur- gimento, em uma pesquisa realizada no Departamento de Polícia de Miami, Estados Unidos, foram constatados diversos problemas no interrogatório que conduziam a uma deficiente comunicação entre a testemunha e o policial, limitando o resultado194. Mais tarde, erros semelhantes foram observados nos procedimentos dos policiais ingleses, em Londres195. A entrevista cognitiva surgiu como uma resposta à necessi- dade de melhorar a recordação das testemunhas. Memon e Ste- venage enfatizam que a solicitação repetida de evocação de um evento está associada, em estudos laboratoriais, a dois fenôme- nos: reminiscência, que é a evocação de informação não recupe- rada em uma tentativa anterior, e a hipermnésia, em que a nova informação recuperada excede a quantidade de informação es- quecida. Na opinião de Memon e Cols., a entrevista cognitiva (EC) talvez seja um dos mais bem sucedidos avanços na pesquisa da psicologia e do direito nos últimos 25 anos. Este método inclui uma série de estímulos à memória e técnicas de comunicação, de- senvolvidas para aumentar a quantidade de informação que possa ser obtida de uma entrevista.196 O quadro atual da entrevista investigativa dos policiais na Inglaterra e País de Gales (e muitos outros países) recomenda a

193 MEMON, A. Interviewing witness: the . In: MEMON, A.; BULL, R. Handbook of psychology interviewing. West Sssex: Wiley & Sons, 1999, p. 346. 194 FISHER, R.P.; GEISELMAN, R.E.; RAYMOND, D.S. Critical analysis of police interviewing techniques. Journal of Police Science and Administration, v. 15, p. 177-185, 1987. 195 MEMON, A. Interviewing witness: the cognitive interview. In: MEMON, A.; BULL, R. Handbook of psychology interviewing. West Sssex: Wiley & Sons, 1999, p. 346. 196 MEMON, A.; STEVANAGE, S.V. Interviewing witness: what works and what doesn’t? Psycholoquy, v. 7, n. 6, witness-memory.1.memon, 1996.

136 137 utilização da entrevista cognitiva197, um tipo de entrevista base- ada em princípios cientificamente provados sobre o armazena- mento e a recuperação da memória, com o objetivo de melhorar a recordação das testemunhas. Várias técnicas foram utilizadas, mas a entrevista cognitiva (EC) é o protocolo de investigação que tem demonstrado os melhores resultados198. As dez falhas mais comuns dos entrevistadores forenses foram listadas a seguir: 1) não explicar o propósito da entrevista; 2) não explicar as regras básicas da sistemática da entrevista; 3) não estabelecer rapport (a empatia com o entrevistado); 4) não solicitar o relato livre; 5) basear-se em perguntas fechadas e não fazer perguntas abertas199; 6) fazer perguntas sugestivas/confirma- tórias; 7) não acompanhar o que a testemunha recém disse; 8) não permitir pausas; 9) interromper a testemunha, quando ela está falando; e 10) não fazer o fechamento da entrevista200. O objetivo principal da entrevista cognitiva é obter melho- res depoimentos, ou seja, ricos em detalhes e com maior quan- tidade e precisão de informações. Baseia-se nos conhecimentos científicos de duas grandes áreas da psicologia: psicologia social201

197 FISHER, R.P.; GEISELMAN, R.E. Memory enhancing techniques for investigative interviewing: The Cognitive Interview. Springfield, IL: Charles C. Thomas, 1992, p. 185-190. 198 FISHER, R.P.; MCCAULEY, M.R.; GEISELMAN, R.E. Improving eyewitness testimony with the cognitive interview. In: READ, J. D.; TOGLIA, M. (Eds.). Adult eyewitness testimony: current trends and developments. London: Cambridge University Press, 1994, p. 247-248. 199 Perguntas abertas permitem que a pessoa que está respondendo dê mais informações (e.g. “o que você viu quando entrou na loja?”. As fechadas, geralmente, somente trazem duas alternativas possíveis de resposta: “sim” ou “não” (e.g. “era manhã, tarde ou noite quando o crime aconteceu?”) (FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Memória em Julgamento: técnicas de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 220). 200 FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Memória em Julgamento: técnicas de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 211. 201 É o estudo de como as pessoas percebem, pensam e se sentem sobre seu mundo social e como interagem e influenciam umas às outras (ATKINSON, Rita L.; ATKINSON,

138 139 e psicologia cognitiva202. No que concerne à psicologia social, in- tegram os conhecimentos das relações humanas, particularmente o modo de se comunicar efetivamente com uma testemunha e, no campo da psicologia cognitiva, somam-se os saberes que os psicólogos adquiriram sobre a maneira como nos lembramos das coisas, ou seja, como a nossa memória funciona203. A técnica é composta de cinco etapas suscessivas. A mais importante característica da entrevista cognitiva é a progressão das questões abertas para questões fechadas204.

Richard C.; SMITH, Edward; BEM, Daryl J. Introdução à psicologia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995, p. 554). 202 A terapia cognitiva, como hoje é conhecida, teve início no começo dos anos 60, com a contribuição principal de dois psicanalistas Albert Ellis e Aron Beck, que criou o termo. Ela está baseada no modelo cognitivo, que propõe que os transtornos psicológicos decorrem de um modo distorcido ou disfuncional de perceber os acontecimentos, e esta percepção distorcida afeta o humor e o comportamento. Isso não significa que os pensamentos causem os transtornos, mas eles modulam e mantêm as emoções disfuncionais. Por exemplo, uma pessoa pode tornar-se deprimida em decorrência de uma perda pessoal, aliada a uma predisposição genética para depressão. Nesse estado depressivo, ela experimentará um modo de pensar negativo acerca de si mesmo, do mundo que o cerca e do futuro, o que afetará a sua motivação e o seu comportamento, perpetuando o quadro depressivo. Baseados no modelo cognitivo, podemos fazer quatro afirmativas que guiam a Teoria Cognitiva de Beck e o tratamento por ele proposto: (1) os indivíduos constroem ativamente a sua realidade; (2) a cognição media o afeto e o comportamento; (3) a cognição é possível ser conhecida e acessada; e (4) a mudança na cognição é um componente central no processo de mudança do ser humano (PICON, Patrícia; KNAPP, Paulo. Psicoterapia cognitiva. In: CATALDO NETO, Alfredo; GAUER, Gabriel José Chittó; FURTADO, Nina Rosa (Orgs.). Psiquiatria para estudantes de medicina. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 794). 203 FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Memória em julgamento: técnicas de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 210. 204 GEISELMAN, R.E.; FISHER, R.P.; FIRSTENBERG, I.; HUTTON, L.A.; SULLIVAN, S.J.; AVETISSIAN, I. V.; PROSK, A.L. Enhancement of eyewitness memory: An empirical evaluation of the cognitive interview.Journal of Police Science and Administration, v. 12, p. 74-80, 1984; FISHER, R.P.; BRENNAN, K.H.; MCCAULEY, M.R. The cognitive interview method to enhance eyewitness recall. In: EISEN, M.; GOODMAN, G.; QUAS, J. (Eds.). Memory and Suggestibility in forensic interview. Mahwah, N.J., US: Lawrence Erlbaum Associates Publishers, 2002, p. 265-286.

138 139 Na primeira, a construção do Rapport, o entrevistador bus- cará desenvolver uma atmosfera favorável, para que a testemu- nha consiga relatar minuciosamente o evento vivido. Para isso, buscará a construção de um ambiente205 acolhedor, procurando conversar com o entrevistado sobre amenidades. Após ganhar a confiança do entrevistador, este explicará os objetivos do encon- tro e irá transferir o controle para o entrevistado206. Em um segundo momento, será tentada a recriação do con- texto original. Aqui o entrevistador está ciente que recordar um evento em detalhes não é uma tarefa simples e exigirá muito es- forço por parte da testemunha. Em razão dessa dificuldade, será função do entrevistador auxiliá-lo neste itinerário. O entrevis- tado é, então, convidado a, mentalmente, colocar-se de volta na situação que se quer recriar. O entrevistador dá orientações ex- plícitas, para reelaboração do contexto original, onde o evento ocorreu, utilizando todos os sentidos possíveis (visuais, auditivos, táteis, olfativos e gustativos). Quanto maior o número de senti- dos, maior será a chance de fornecer pistas significativas à sua memória207. Um exemplo desta abordagem está abaixo:

[...] Neste momento, eu gostaria de te aju- dar a lembrar tudo o que conseguir sobre (referir o evento em questão). Você pode fechar os olhos, se preferir. Tente voltar

205 A literatura também avalia o sentido da visão e a observação das testemunhas em relação ao ambiente. Um elemento importante em vários cenários referentes ao crime é a presença ou não de armas no local e a sua relação com a lembrança de outros fatos. Steblay, ao realizar metanálise com foco em arma, constatou que, em apenas seis dos 19 casos (32%), houve influência da presença de uma arma em relação a precisão da identificação. Este resultado está em consonância com um quarto dos estudos de campo que encontraram este efeito (STEBLAY, N.M.; DYSART, J.; FULERO, S.; LINDSAY, R.C.L. Eyewitness accuracy rates in police showup and lineup presentations: A meta- analytic comparison. Law and Human Behavior, v. 27, p. 523-540, 2003. 206 FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Memória em julgamento: técnicas de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 213. 207 Ibidem, p. 216-217.

140 141 mentalmente ao exato momento em que aconteceu essa situação (pausa). Você não precisa me dizer nada ainda, apenas pro- cure observar o local ao seu redor (pausa). O que você consegue ver? (pausa) Que coisas você consegue escutar? (pausa) Que coisas passam pela sua cabeça? (pausa) Como você está se sentindo (pausa) Como está o clima nesse momento? (pausa) Tem algum cheiro que você consiga sentir? (pausa) Quando você achar que estiver pronto, pode contar tudo que conseguir se lembrar sobre o que aconteceu, do jeito que achar melhor208.

A utilização de pausas auxilia na reconstrução do contexto original, uma vez que elas fornecem mais tempo para o entre- vistado acessar as informações sobre o evento. Caso contrário, muito provavelmente, o entrevistado não conseguirá formar uma imagem da situação suficientemente rica em pistas209. Na próxima etapa, a testemunha tem a liberdade para contar, da sua maneira, todas as informações que puder acessar na me- mória, sem interrupções. É a chamada narrativa livre. Tendo em vista que o acesso aos detalhes armazenados na memória repre- senta uma grande demanda cognitiva, é natural que o entrevistado faça pausas durante o relatório. Nesses momentos, é essencial que o entrevistador permita a ocorrência destes intervalos, ou seja, que permaneça em silêncio, mantendo a sua postura de escuta210.

208 Idem, p. 217. 209 FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Memória em julgamento: técnicas de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 217. 210 FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Memória em julgamento: técnicas de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 218.

140 141 A penúltima fase é a do questionamento, na qual o en- trevistador fará perguntas baseadas nas informações trazidas no relato livre. É preciso iniciar agradecendo à testemunha pela quantidade de informações relatadas, bem como pelo esforço até aquele momento, até para manter a testemunha engajada na ta- refa211. Nos moldes do trazido a seguir:

[...] bom, agora eu gostaria de lhe fazer algumas perguntas para me certificar que entendi bem o que aconteceu. Só que antes de eu fazer as perguntas, quero lembrar algumas coisas importantes. Pode acontecer de eu perguntar algo que você não saiba. Se isso ocorrer, por favor, diga simplesmente ‘eu não sei’ ou então ‘não me lembro’. Não tem problema nenhum de você não saber algo – o importante é que você não tente adivinhar a resposta. Pode acontecer tam- bém de eu fazer uma pergunta que você não consiga entender. Nesse caso, diga que você não entendeu, e tentarei me expres- sar melhor. Só mais uma coisa: às vezes, eu posso ter entendido errado as coisas que você falou. Assim, se eu disser qual- quer coisa que não corresponda com o que você disse, por favor, me corrija. Tudo bem? Bom, então a primeira coisa que eu gostaria de perguntar é [...]212.

Após, será realizado o fechamento da entrevista. Aqui será fornecido o resumo das informações obtidas, e eventuais ame- nidades voltarão a ser conversadas até a despedida. O entre- vistador deverá deixar aberto um canal de comunicação com o

211 Idem, p. 218. 212 Idem, p. 218-219.

142 143 entrevistado, no caso de ele lembrar-se de detalhes não revelados durante o encontro213. Na versão revista da entrevista cognitiva, foram acrescenta- dos aspectos relativos à memória e cognição, levando em consi- deração que os recursos necessários ao processamento da infor- mação são limitados, e um evento pode ser codificado de acordo com múltiplos códigos mentais e que o processo de codificação é idiossincrático214. Quais são os elementos que contribuem para uma entrevista cognitiva estruturada? São todos os que possam colaborar para que uma testemunha possa recorrer às suas memórias armazenadas e relatá-las com a maior fidedignidade possível a um entrevistador. Geiselman e Cols. lançaram as bases do método como é conhecido na atualidade, apesar das recentes modificações que consistiam de quatro elementos, que possibilitavam aos participantes recordarem o fato em tela, sem respostas dúbias ou meras opiniões215. O elemento regra número um é denominado restabeleci- mento mental do contexto (RMC), no qual o entrevistado é esti- mulado a mentalmente reconstruir o contexto físico e pessoal dos fatos. O segundo elemento é relatar tudo, sendo o entre- vistado estimulado a falar sobre todas as lembranças, mesmo que parciais. O terceiro elemento é baseado em estimular a testemunha a relatar os fatos, considerando variadas perspec- tivas. Por último, a testemunha é incentivada a recordar os fatos em diferentes ordens temporais216.

213 Idem, p. 219 e 222. 214 FISHER, R.P.; BRENNAN, K.H.; MCCAULEY, M.R.The cognitive interview method to enhance eyewitness recall. In: EISEN, M.; GOODMAN, G.; QUAS, J. (Eds.). Memory and Suggestibility in forensic interview. Mahwah, N.J., US: Lawrence Erlbaum Associates Publishers, 2002, p. 265-286. 215 GEISELMAN, R.E.; FISHER, R.P.; FIRSTENBERG, I.; HUTTON, L.A.; SULLIVAN, S.J.; AVETISSIAN, I. V.; PROSK, A.L. Enhancement of eyewitness memory: an empirical evaluation of the cognitive interview.Journal of Police Science and Administration, v. 12, p. 76-77, 1984. 216 GEISELMAN, R.E.; FISHER, R.P.; FIRSTENBERG, I.; HUTTON, L.A.; SULLIVAN, S.J.; AVETISSIAN, I. V.; PROSK, A.L. Enhancement of eyewitness

142 143 Fisher e Cols.217 referem que a EC constitui tema de inves- tigação em cerca de 50 estudos laboratoriais, sendo grande parte destes realizados por Memon218, Milne e Bull219 no Reino Unido e Köehnken na Alemanha. O que há em comum entre vários destes trabalhos é a apresentação de um filme, de um episódio não ame- açador ou de um assalto simulado a sujeitos voluntários, na sua maioria, estudantes universitários. Algum tempo mais tarde, as tes- temunhas são entrevistadas através da entrevista cognitiva (grupo experimental), entrevista policial padrão (grupo controle) por pes- soas treinadas para este efeito (estudantes, agentes policiais). Todas as entrevistas são gravadas, transcritas e analisadas, levando-se em conta, principalmente, o número de afirmações corretas e incorre- tas proferidas pelas testemunhas. A EC permite evocar uma quan- tidade superior de informação correta sobre o episódio observado em relação a outras técnicas de entrevista, e a taxa de exatidão é ligeiramente superior em comparação às outras abordagens220. Milne realizou uma pesquisa, com o objetivo de averiguar quais os componentes ou as técnicas da EC seriam realmente efi- cazes, comparando reinstauração mental do contexto, mudança de perspectiva, mudança na ordem temporal e relatar tudo. Veri- ficou que estas quatro técnicas estavam associadas à melhor evo- cação, se comparada com o seu efeito isolado, no qual se excetua

memory: an empirical evaluation of the cognitive interview.Journal of Police Science and Administration, v. 12, p. 74-80, 1984. 217 FISHER, R.P.; BRENNAN, K.H.; MCCAULEY, M.R. The cognitive interview method to enhance eyewitness recall. In: EISEN, M.; GOODMAN, G.; QUAS, J. (Eds.). Memory and Suggestibility in forensic interview. Mahwah, N.J., US: Lawrence Erlbaum Associates Publishers, 2002, p. 265-286. 218 Cf. MEMON, A. The cognitive interview. In: HARGIE, O. (Ed.). A handbook of communication skills (3rd ed.). London: Routledge, 2006. 219 KÖHNKEN, G.; MILNE, R.; MEMON, A.; BULL, R. A meta-analysis on the effects of the Cognitive Interview. Special Issue of Psychology, Crime, & Law, v. 5, p. 3-27, 1999. 220 FISHER, R.P.; BRENNAN, K.H.; MCCAULEY, M.R. The cognitive interview method to enhance eyewitness recall. In: EISEN, M.; GOODMAN, G.; QUAS, J. (Eds.). Memory and Suggestibility in forensic interview. Mahwah, N.J., US: Lawrence Erlbaum Associates Publishers, 2002, p. 265-286.

144 145 a reinstauração mental do contexto. Outras investigações corrobo- ram a conclusão de que esta técnica seria a mais efetiva da EC221. Existe alguma controvérsia no que diz respeito à relevân- cia dos pormenores incorretos, relatados no decorrer da EC. Köhnken e Cols. (1995)222 e Memon e Cols. (1997)223 observa- ram um aumento de informação incorreta com a utilização da EC, embora a taxa de exatidão (quociente entre o número de afirmações corretas e o número total de afirmações relatadas) seja similar à que foi verificada nos grupos controle. Köhnken e Cols. questionam se o aumento de incorreções será um preço justo a pagar pelo benefício resultante da obtenção de mais informação correta na EC. A resposta para esta questão se baseia no objetivo principal da entrevista. Se a finalidade é obter o máximo possível de informação, como pode acontecer na fase inicial da investigação policial, então a quantidade de infor- mação incorreta é compensada pela superioridade de informação correta. No entanto, se o objetivo é conhecer o maior número possível de pormenores corretos, então o risco de obtenção de informação incorreta é excessivamente elevado ou inaceitável224. Memon e Stevenage apresentam as seguintes explicações prováveis para o incremento dos erros na EC: eventual alteração do critério de resposta no sentido de aumentar a tendência para relatar informação e influenciar a confiança da testemunha rela- tivamente à informação mencionada, exigência ou pressão social

221 MILNE, R. Application and analysis of the cognitive interview. Doctoral Dissertation. University of Porstsmouth, 1997. 222 KÖHNKEN, G.; SCHIMOSSEK, E.; ASCHERMANN, E.; HOFER, E. The cognitive interview and the assessment of the credibility of adults’ statements. Journal of Applied Psychology, v. 80, p. 677, 1995. 223 MEMON, A.; WARK, L.; HOLLEY, A.; BULL, R.; KÖHNKEN, G. Eyewitness performance in cognitive and structured interviews. Memory, v. 5, n. 5, p. 653, 1997. 224 KÖHNKEN, G.; SCHIMOSSEK, E.; ASCHERMANN, E.; HOFER, E. The cognitive interview and the assessment of the credibility of adults’ statements. Journal of Applied Psychology, v. 80, p. 671-684, 1995.

144 145 para que a testemunha dê uma resposta pretendida, colocação de perguntas minuciosas e tipo de eventos evocados225. O procedimento da EC parece favorecer o desempenho mnésico em tarefas que requeiram a descrição (e não, a identifi- cação) de pessoas. A ocorrência de erros na descrição de pessoas exige, como precaução, que seja indicado, à investigação poste- rior, que o relato ocorreu no contexto da EC226. Embora a existência do método já ultrapasse um quarto de século, a EC não está totalmente dominada e explorada no campo da prática. Nota-se que pesquisas com sujeitos, abordando situações do cotidiano, estão em número reduzido na literatura, mesmo nos países que mais desenvolvem e propõem aplicação prática desta técnica. Essa situação pode estar relacionada aos profissionais reluta- rem em introduzir um novo método de trabalho e, no nosso meio, por não haver um número significativo de pesquisas, envolvendo diretamente os profissionais da área. Também não há, até o pre- sente momento, meios de oferecer treinamento para a aplicação desta metodologia. Neste item, os profissionais dos países, onde esta técnica é utilizada, também apresentam carências e dificul- dades para a sua, utilização, mesmo para a polícia britânica. No Reino Unido, em 2002, a EC foi inserida nas novas orientações go- vernamentais, para entrevistar grupos vulneráveis (como crianças, por exemplo). Também várias forças policiais nos EUA, Alemanha, Austrália e Canadá seguem os procedimentos da EC227.

225 MEMON, A. The cognitive interview. In: HARGIE, O. (Ed.). A handbook of communication skills (3rd ed.). London: Routledge, 2006, p. 537-538. 226 FISHER, R.P.; BRENNAN, K.H.; MCCAULEY, M.R. The cognitive interview method to enhance eyewitness recall. In: EISEN, M.; GOODMAN, G.; QUAS, J. (Eds.). Memory and Suggestibility in forensic interview. Mahwah, N.J., US: Lawrence Erlbaum Associates Publishers, p. 265-286, 2002. 227 DANDO, C.; WILCOCK, R.; MILNE, R. The cognitive interview: the efficacy of a modified mental reinstatement of context procedure for frontline police investigators. Applied Cognitive Psychology v. 23, p. 144, 2009.

146 147 Rebecca Milne tem trabalhado com a polícia e outras orga- nizações da justiça criminal no Reino Unido e no exterior, através do treinamento da entrevista cognitiva reforçada, do aconselha- mento em entrevista de testemunhas e também da entrevista de grupos vulneráveis, além de prover supervisão e aconselhamento de casos específicos. Faz parte de um grupo que elaborou o do- cumento, para alcançar as melhores evidências em 2007, que orienta como melhor entrevistar testemunhas vulneráveis e víti- mas. Recentemente, em 2010, criou o Centro de Entrevista Fo- rense que vai fornecer treinamento em entrevista investigativa para todos os tipos de investigadores em todos os estágios de sua carreira, cursos sobre habilidades de entrevista desde noções bási- cas até as mais avançadas, além de projetos de pesquisa228. Dando, Wilcock e Milne conduziram um estudo para analisar a efetividade de uma RMC mais sucinta e menos complexa deno- minada “esboço sumário do RMC”. Vinte e quatro horas depois de ter assistido a um crime em um filme, uma testemunha simu- lada adulta foi entrevistada, empregando a instrução tradicional do modelo, a instrução resumida e uma instrução sem a utilização daquela estratégia. Através da análise do desempenho da memória, revelou-se que o esboço do RMC foi tão efetiva, quanto a original e mais efetiva que a instrução sem aperfeiçoamento algum. Reco- menda que, para crimes menos graves, a versão reduzida possa ser uma opção viável, menos complexa e demorada229. Os mesmos autores do estudo anterior avaliaram a entre- vista de testemunhas conduzidas por oficiais de polícia nova- tos, imediatamente após treinamento de entrevista investiga- tiva (PEACE). Com referência a oito componentes da entrevista cognitiva ensinados, o grupo pesquisado era constituído por 48

228 DANDO, C.; WILCOCK, R.; BEHNKLE, C.; MILNE, R. Modifying the Cognitive interview: countenancing forensic application by enhancing practicability. Psychology, Crime & Law, v. 17, n. 6, p. 491, 2011. 229 DANDO, C.; WILCOCK, R.; MILNE, R. Victims and witnesses of crime: police officers’ perceptions of interviewing practices. Legal & Criminological Psychology, v. 13, p. 66, 2008.

146 147 oficiais de polícia, sendo que 48 estudantes universitários par- ticiparam como testemunhas falsas. Eles assistiram a um vídeo de um crime não violento e, dois dias após, foram entrevistados individualmente por um policial. As entrevistas foram gravadas e classificadas para a aplicação dos oficiais quanto ao procedimento da entrevista cognitiva230. Apesar de terem recentemente concluído o treinamento, ne- nhum oficial aplicou ou tentou aplicar a entrevista cognitiva na sua íntegra. Contudo, alguns componentes individuais da EC foram aplicados mais frequentemente que outros. Este estudo sugere que: ou a EC é demasiadamente complexa para o estágio inicial da car- reira, e/ou o treinamento atual pode ser insuficiente, para prover as habilidades necessárias para, efetivamente, aplicar a entrevista231. Seria de se esperar que profissionais treinados produzissem depoimentos com maior riqueza de informações, o que, na prá- tica, não ocorre. A entrevista cognitiva é de grande utilidade em outras áreas, como na da saúde e em situações de complexidade como determinar quem terá a guarda de uma criança232. A entrevista cognitiva sofreu modificações, e Fisher e Geisel- man propuseram a denominada “entrevista cognitiva modificada”, sendo o entrevistado estimulado nos seus relatos, e o entrevista- dor a não interromper. O entrevistador deve estimular a testemu- nha a recordar os fatos, sem respostas dúbias ou meras opiniões. Na última década, outras versões e aplicações deste modelo de entrevista surgiram na literatura, ficando conhecidas como entre- vista cognitiva modificada (MCI) (adaptações para testemunhas mais vulneráveis, crianças, idosos ou com formato simplificado).

230 DANDO, C.; WILCOCK, R.; BEHNKLE, C.; MILNE, R. Modifying the cognitive interview: countenancing forensic application by enhancing practicability. Psychology, Crime & Law, v. 17, n. 6, p. 491, 2011. 231 DANDO, C.; WILCOCK, R.; BEHNKLE, C.; MILNE, R. Modifying the cognitive interview: countenancing forensic application by enhancing practicability. Psychology, Crime & Law, v. 17, n. 6, p. 493, 2011. 232 KEBBELL, M.; MILNE, R. Police officers’ perception of eyewitness factors in forensic investigations. Journal of Social Psychology, v. 138, p. 323-330, 1998.

148 149 Atualmente, a literatura apresenta muitas versões desenvolvidas pelos autores, o que dificulta a análise comparativa dos resultados (alteração da ordem das questões, adaptação para outras idades). Poder-se-ia dizer que as modificações, existentes na literatura, têm o propósito de adaptar a entrevista às testemunhas233. Essa abordagem demora 77% do tempo gasto com a EC re- vista e não inclui mudança de perspectiva, nem evocação dos acontecimentos, segundo sucessões cronológicas diferentes234. Os autores que propuseram a versão modificada concluíram que é igualmente eficaz quanto à taxa de informação correta evocada (87%) e, portanto, superior à entrevista estruturada. Não estuda- ram, contudo, se a redução temporal desta versão tem relevância prática, isto é, se é suficiente para poder ser integrada na investi- gação levada a cabo pelos agentes policiais235. Cabe observar que Memon, em sua metanálise, que incluiu 46 artigos publicados, concluiu que somente doze por cento dos entrevistadores eram profissionais da área do Direito. Foram ana- lisadas 65 publicações, sendo que o percentual de testemunhas jovens adultos foi 64%, pré-escolares, 28%; idosos; 8%; e popula- ção especial, 6%. Somente 12% dos estudos incluíram profissio- nais da lei como entrevistadores, o que pode ser um limitador na análise prática do método236. Os estudos realizados concluíram

233 FISHER, R.P.; BRENNAN, K.H.; MCCAULEY, M.R. The cognitive interview method to enhance eyewitness recall. In: In: EISEN, M.; GOODMAN, G.; QUAS, J. (Eds.) Memory and Suggestibility in forensic interview. Mahwah, N.J., US: Lawrence Erlbaum Associates Publishers, p. 265-286, 2002. 234 DAVIS, M.R.; MCMAHON, M.; GREENWOOD, K.M. The efficacy of components of the cognitive interview: towards a shortened variant for time – critical investigations. Applied Cognitive Psychology, v. 19, p. 90, 2005. 235 DAVIS, M.R.; MCMAHON, M.; GREENWOOD, K.M. The efficacy of mnemonic components of the cognitive interview: towards a shortened variant for time – critical investigations. Applied Cognitive Psychology, v. 19, p. 90, 2005. 236 MEMON, A.; MEISSNER, C.A.; FRASER, J. The cognitive interview: a meta- analytic review and study space analysis of the past 25 years. Psychology, Public Policy, & Law, v. 16, n. 4, p. 346-348, 2010.

148 149 que os elementos essenciais da EC para a realização dos interro- gatórios são pouco utilizados237. Outra questão que Memon salienta é a constituição dos grupos controle nos trabalhos observados na literatura238. Com a busca de uma maior padronização Köhnken e Cols. introduziram a entrevista estruturada como controle, já que segue um idêntico formato da en- trevista cognitiva, iniciando com questões abertas e narrativas livres. Um tópico de relevância na investigação criminal está relacionado ao tempo do fato e as múltiplas entrevistas. A compreensão desses efeitos é de importância prática significativa, porque, durante uma investigação criminal, estas situações são frequentes239. Köhnken e Cols. observaram, em uma metanálise, focando- -se na entrevista cognitiva, que poucos estudos apresentavam in- tervalos entre o fato e os depoimentos superiores a 48 horas, o que não condiz com a prática da investigação policial e forense. A literatura, na prática, não investigou, com maior propriedade, os efeitos deste intervalo entre o fato e a entrevista240. A leitura desta metanálise sugere que os adultos mais velhos têm maior benefício com a utilização da EC do que adultos jo- vens em fornecer detalhes das entrevistas. Atualmente, pesquisas estão em curso, visando a desenvolver uma versão modificada

237 DANDO, C.; WILCOCK, R.; MILNE, R. Victims and witnesses of crime: police officers’ perceptions of interviewing practices. Legal & Criminological Psychology, v. 13, p. 59-70, 2008; DANDO, C.J.; MILNE, R. The Cognitive Interview. In: KOCSIS, R.N. (Ed.). Applied criminal psychology: a guide to forensic behavioral sciences. Springfield: Charles C. Thomas, 2009, p. 147-168; DANDO, C.; WILCOCK, R.; BEHNKLE, C.; MILNE, R. Modifying the Cognitive Interview: Countenancing forensic application by enhancing practicability. Psychology, Crime & Law, v. 17, n. 6, p. 491-511, 2011. 238 MEMON, A.; MEISSNER, C.A.; FRASER, J. The cognitive interview: a meta- analytic review and study space analysis of the past 25 years. Psychology, Public Policy, & Law, v. 16, n. 4, p. 348, 2010. 239 KÖHNKEN, G.; MILNE, R.; MEMON, A.; BULL, R. A meta-analysis on the effects of the Cognitive Interview. Special Issue of Psychology, Crime, & Law, v. 5, p. 15, 1999. 240 KÖHNKEN, G.; MILNE, R.; MEMON, A.; BULL, R. A meta-analysis on the effects of the Cognitive Interview. Special Issue of Psychology, Crime, & Law, v. 5, p. 16, 1999.

150 151 da entrevista cognitiva, para utilização em testemunhas idosas segundo Hollyday e cols.241. Com base na metodologia geral das pesquisas realizadas até o momento, estas, poucas vezes, aproximam a testemunha da re- alidade, o que prejudica a entrevista e o desempenho das tes- temunhas. É necessário um aumento de pesquisas que avaliem SCHREIBER, N.; FISHER, R.P. Evaluating police training in cognitive interview techniques: o desempenho dos policiais treinados na utilização da entrevista possibilities and difficulties. Paper presented at the American Psychology and Law Society Conference, St. Petersburg, FL, Mar. 2006. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2012. investigação policial e prática forense, a extensão da entrevista pode afetar o testemunho. Com base na metanálise conduzida por Memon e Cols.243 é possível que a “entrevista cognitiva modi- ficada (MCI)”, seja suficiente em várias situações. Então, parece que nem sempre é necessária a aplicação do procedimento com- pleto, impressão esta que merece cautela, devido à grande exis- tência de modificações na entrevista cognitiva. A literatura permanece diversificada na forma que a EC tem sido implementada, e o desenho de futuras pesquisas deverá ofe- recer mais espaço para a aplicação não prática do dia a dia. Im- portante ainda ressaltar que, em pesquisas recentes244, não foram

241 HOLLIDAY, R.; FERGUSON, J.; MILNE, R.; BULL, R.H.C.; MEMON, A. Isolating the effect of the Cognitive Interview instructions on witness testimony. Poster presentation at the American Psychology Law Society Conference, San Antonio, TX, 2009. Disponível em: . Acesso em: 12 ago. 2012. 242 DANDO, C.J.; MILNE, R. The cognitive interview. In: KOCSIS, R. N. (Ed.). Applied criminal psychology: a guide to forensic behavioral sciences. Springfield: Charles C. Thomas, 2009, p. 148. 243 MEMON, A.; MEISSNER, C.A.; FRASER, J. The cognitive interview: A meta- analytic review and study space analysis of the past 25 years. Psychology, Public Policy, & Law, v. 16, n. 4, p. 346-348, 2010. 244 SCHREIBER, N.; FISHER, R.P. Evaluating police training in cognitive interview tech- niques: possibilities and difficulties. Paper presented at the American Psychology and Law Society Conference, St. Petersburg, FL, Mar. 2006. Disponível em:

150 151 encontrados benefícios em treinar policiais para a prática da en- trevista ou interrogatório cognitivo; sem contar com o fato que muitos investigadores não utilizaram adequadamente o método. Os estudos apontam que a técnica de entrevista cognitiva aumenta o número de informações relatadas e a qualidade (a precisão) de detalhes recordados pelas testemunhas245. No Reino Unido, foi realizada pesquisa com policiais, na qual foi solicitado a eles que classificassem a relevância de cada detalhe trazido pelo entrevistado, tanto para a investigação policial, quanto para a fase processual. A entrevista cognitiva obteve maiores índices de informação juridicamente relevante, conforme os especialistas fo- renses, em comparação com outras formas de entrevista246. No Brasil, em estudo realizado com população de “menor” índice de escolaridade e “nível” socioeconômico, também foram encontrados resultados similares à efetividade da técnica247. A entrevista cognitiva se mostrou mais eficaz na produção de in- formações juridicamente relevantes com alto grau de precisão em comparação a uma entrevista padrão. Resultados como esses pa- recem apontar para a efetividade deste procedimento em diferen- tes países e populações248. A entrevista coginitiva reduz chances de falsas memórias. Isso ocorre, pois a prática desta técnica diminui as chances de su- gestionabilidade por parte dos entrevistadores, uma vez que eles são treinados para monitorar as suas condutas durante a oitiva da

pdf&ei=mlFNUJC_Forl0QGfuIGICg&usg=AFQjCNH4SPfQdxYtyaOkWK zvICLR ouFSqg&sig2=aHKy5u3udsIcyp_NghxIdw>. Acesso em: 12 jul. 2012. 245 MEMON, A.; HIGHMAN, P.A. A review of the cognitive interview. Psychology, crime & Law, v. 5, p. 188, 1999. 246 ROBERTS, W.T.; HIGHAM, P.A. Selecting accurate statements from the cognitive interview using confidence ratins. Journal of Experimental Psychology Applied, v. 8, p. 33-34, 2002. 247 NYGAARD, M.L.; FEIX, L.F.; STEIN, L.M. Contribuições da psicologia cognitiva para a oitiva da testemunha: avaliando a eficácia da entrevista cognitiva. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 61, p. 147-180, 2006. 248 FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Memória em julgamento: técnicas de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 212.

152 153 testemunha, evitando o uso de perguntas fechadas e outras inter- venções potencialmente tendenciosas249. Apesar da aparente vantagem em relação aos métodos tra- dicionais, existem limitações práticas para a sua efetiva utilização. São citadas as seguintes necessidades 1) de treinamento exten- sivo e dispendioso; 2) de condições físicas e tecnológicas adequa- das; e 3) de certo nível de capacidades cognitivas, por parte do entrevistado, para aplicação dessas técnicas250. No entanto, os entraves podem ser superados. O que os pes- quisadores descobriram nas três últimas décadas é que às vezes as testemunhas são precisas e, por vezes, são imprecisas e que há um conjunto de variáveis que podem ser usadas para avaliar a preci- são provável da testemunha (variáveis estimadas) e as práticas políciais (variáveis do sistema). Em 1998, foram elaboradas as Diretrizes de Boas Práticas do Comitê Executivo da Sociedade Americana de Psicologia e Lei, para a coleta de evidências de identificação, e aquelas foram pu- blicadas no periódico Law and Human Behavior251. A primeira recomendação diz respeito a quem deve condu- zir a linha de identificação, sugerindo ser alguém que não tenha conhecimento da identidade do suspeito. Os policiais podem, de alguma forma, influenciar no processo de identificação por saber a identidade do suspeito252. O organizador da linha de suspeito não deve ser informado da identidade do real suspeito.

249 FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Memória em julgamento: técnicas de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 223. 250 Ibidem, p. 224. 251 WELLS, G.L.; SMALL, M.; PENROD, S.J.; MALPASS, R.S.; FULERO, S.M.; BRIMACOMBE, C.A.E. Eyewitness identification procedures: recommendations for lineups and photospreads. Law and Human Behavior, v. 22, p. 627 e ss, 1998. 252 DOUGLAS, A.B.; SMITH, C.; FRASER-THILL, R. A problem with double-blind photospread procedures: Photospread administrators use one eyewitness’s confidence to influence the identification of another eyewitness. Law and Human Behavior, v. 29, p. 543-562, 2005; HAW, R.M.; FISHER, R.P. Effects of administrator-witness contact on eyewitness identification accuracy. Journal of Applied Psychology, v. 89,

152 153 Em um segundo momento, se recomenda que a testemunha deve ser explicitamente informada que o culpado pode não estar na linha de identificação253, o que reduz o número de falsas identificações. A terceira diretriz é que o suspeito não deve se destacar na programação com base somente na descrição da testemu- nha. Por exemplo, se a testemunha afirma que o suspeito tem cabelo vermelho, este não pode ser o único com cabelo verme- lho na linha de identificação. A quarta recomendação é que uma declaração de reconheci- mento deve ser feita imediatamente após a identificação pela teste- munha e antes de qualquer feedback do administrador da linha de identificação. Existem duas outras sugestões que poderiam ser in- cluídas neste processo: o uso de linhas de identificação sequencial, processo que tem um número menor de identificações falsas254,255 e documentar por vídeo todo o processo de identificação256. Outra forma de tornar a testemunha que, principalmente nos casos de criminalidade violenta, como a do homicídio (objeto de nosso último capítulo), capaz de emocionalmente recuperar, com maior grau de verossimilhança os fatos presenciados, é a pro- moção de resiliência. Peres, Mercante e Nasello257 apresentam a hipótese de criação de resiliência na tentativa de diminuir a sus- cetibilidade de testemunhos infidedignos. Aquela constitui “a ca-

p. 1106-1112, 2004; WELLS, G.L.; OLSON, E. Eyewitness identification. Annual Review of Psychology, v. 54, p. 277-295, 2003. 253 MALPASS, R.S.; DEVINE, P.G. Eyewitness identification: Lineup instructions and the absence of the offender. Journal of Applied Psychology, v. 66, p. 483, 1981. 254 LINDSAY, R.C.L.; WELLS, G.L. Improving eyewitness identification from lineups: simultaneous versus sequential lineup presentations. Journal of Applied Psychology, v. 70, p. 562, 1985. 255 MACLIN, O.; ZIMMERMAN, L.; MALPASS, R. PC. Law and Human Behavior, v. 29, p. 306, 2005. 256 KASSIN, S. Eyewitness identification procedures: The fifth rule. Law and Human Behavior, v. 22, n. 6, p. 650, 1998. 257 PERES, Julio F.P.; MERCANTE, Juliane P.P.; NASELLO, Antonia G. Promovendo resiliência em vítimas de trauma psicológico. Revista da Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, v. 27, n. 2, p. 131-138, maio/ago. 2005.

154 155 pacidade de atravessar dificuldades e voltar a ter uma qualidade de vida satisfatória.258” Ao longo da vida, estima-se que 51.2% das mulheres e 60,7% dos homens tenham vivenciado pelo menos um evento potencialmente traumático259. Desta forma, a resiliência é quali- dade que deve ser incutida para possibilitar a descrição da origem deste trauma da forma mais fiel possível260. O modo como as pessoas processam o evento estressante após sua ocorrência é determinante para que o trauma seja configurado ou não. Se um psicoterapeuta fornecer os mesmos elementos a dois indivíduos para que construam uma histó- ria, com ou sem valência emocional, o enredo apresentará cir- cunstância e incidentes psicológicos diferentes, o que torna a história peculiar a cada narrador261. A finalidade das psicoterapias aplicadas às vítimas de trau- mas psicológicos é atribuir gradualmente novos significados emo- cionais à experiência traumática passada que não ocorre mais no presente262. Dessa forma, os autores passam a descrever três fases de promoção de resiliência. Aprimeira fase ocorre durante o exame, com a valência posi- tiva das memórias emocionais relacionadas ás atividades resilientes, em que a auto-estima, a autoconfiança e uma autointerpretação positiva são recuperadas e fortalecidas. Na segunda fase, é solici- tado ao paciente que traga à tona as emoções/sensações/pensa- mentos relacionados à sua percepção do evento traumático. Após, o profissional encoraja o vivenciador do trauma para que relaxe e

258 Ibidem, p. 131. 259 PERES, Julio F.P.; MERCANTE, Juliane P.P.; NASELLO, Antonia G. Promovendo resiliência em vítimas de trauma psicológico. Revista da Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, v. 27, n. 2, p. 132, maio/ago. 2005. 260 Ibidem, p. 131. 261 Idem, p. 133. 262 PERES, Julio F.P.; MERCANTE, Juliane P.P.; NASELLO, Antonia G. Promovendo resiliência em vítimas de trauma psicológico. Revista da Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, v. 27, n. 2, p. 134, maio/ago. 2005.

154 155 lembre-se de memórias agradáveis, em que o paciente tenha su- perado situações adversas, retomando contato com as emoções/ sensações/pensamentos positivos que vivenciou falando, agora, no tempo presente. Por último, será promovido o deslocamento dos diálogos internos alinhados ao banco de memória resiliente com a finalidade de gerar novas interpretações, que facilitarão a reestru- turação terapêutica da memória traumática, descrevendo o fato da forma mais próxima ao efetivamente ocorrido263. Considerando-se os achados da neurociência, o fator-chave para a reconstrução terapêutica das memórias traumáticas está em trabalhar propriamente os estados de consciência e as emo- ções para modificar a modulação da memória traumática e, con- sequentemente, a relação com o evento passado264.

2.2.5 Perspectivas Futuras: O Caminho do Campo Provavelmente, o maior desafio com a pesquisa de campo é o fato de ser quase impossível, a menos que exista alguma prova física, saber o que é referido como verdade. Mesmo assim reservas devem- -se impor. A polícia ter 100% de certeza que o suspeito é realmente culpado é uma situação difícil de ser pensada na prática. Há uma grande diferença entre o laboratório (onde a maior parte dos experi- mentos citados neste capítulo foram realizados) e o mundo real. No laboratório, o experimentador sempre sabe a identidade do culpado. Assim, pode determinar quando as testemunhas participantes fazem identificações corretas e quando não conseguem identificar o cul- pado quando este está na linha de reconhecimento. Embora se entenda o processo de identificação como a iden- tificação do culpado, esta pode ser uma falsa suposição, pois, em muitos casos, os testes de DNA provam suas dificuldades. Os pro- cessos de identificação de suspeitos que são dados como culpados

263 Ibidem, p. 135. 264 Ibidem, p. 136.

156 157 são suscetíveis de sofrer influências de muitas variáveis preditoras próprias que interessam aos pesquisadores. Neste momento, vale lembrar a denominada “razão de precisão”, expressão conhecida na literatura anglosaxã como diagnosticity. Esta razão ou percen- tual diagnóstico seria a proporção entre identificação correta e incorreta. Sendo esta proporção elevada, poderemos afirmar que o processo de identificação dos culpados é bom, enquanto um percentual baixo indica o contrário265. A segunda maneira de verificar como uma variável indepen- dente pode influenciar a proporção de identificação de suspeitos é se a variável está relacionada com a probabilidade de culpa. Por exemplo, com boas condições de iluminação, uma testemunha po- derá ser capaz de dar descrição mais completa do que com con- dições de iluminação deficitária. A descrição mais completa pode tornar mais fácil para a polícia identificar um suspeito que tem uma boa chance de ser culpado. Assim, a probabilidade de ser culpado pode acabar sendo maior com boas condições de iluminação266. Como obter dados significativos, se não sabemos se as teste- munhas estão corretas? Além disso, como comparar os resultados de campo com os de laboratório, onde estes dados estão disponí- veis? Poderíamos argumentar que há duas soluções, e ambas foram feitas em certa medida nos estudos de campo. Primeiro, se pode separar cada caso em termos da quantidade de provas que apontam para o suspeito ser o culpado, como foi feito por Behrman e Col.267. Isso não leva à verdade, mas fica muito mais perto do que depender apenas de identificações de suspeitos. A segunda reco- mendação é a utilização de identificação de “dublês”, como uma

265 DANDO, C.J.; MILNE, R. The cognitive interview. In: KOCSIS, R.N. (Ed.). Applied criminal psychology: a guide to forensic behavioral sciences. Springfield: Charles C. Thomas, 2009, p. 148. 266 Ibidem, p. 148. 267 BEHRMAN, B.; DAVEY, S. Eyewitness identification in actual criminal cases: An archival analysis. Law and Human Behavior, v. 25, p. 475-491, 2001; BEHRMAN, B.; RICHARDS, R. Suspect/foil identification in actual crimes and in the laboratory: a reality monitoring analysis. Law and Human Behavior, v. 29, p. 279-301, 2005.

156 157 medida da inexatidão da identificação. Identificações de “dublês” são erros conhecidos para que se possa estar confiante de que a testemunha fez uma falsa identificação. No entanto, para que a identificação de “dublês” possa fornecer dados significativos, um grande cuidado tem de ser tomado, para assegurar que as forma- ções são adequadamente construídas e que tantos fatores quanto possíveis possam ser mantidos constantes em todas as condições que estão sendo comparadas. Por exemplo, se a linha é sugestiva tanto na administração quanto na composição, então a taxa de identificações de dublês será enganosa268. Imagine-se um experimento de campo em que um departa- mento de polícia usasse linhas de identificação corretamente cons- truídas – grande tamanho funcional – e outro departamento, linhas que seriam incorretamente construídas – tamanho funcional pe- queno. O departamento que utiliza as formações incorretas tende a ter menos identificações de não suspeitos (porque os não suspeitos não coincidem muito bem com a descrição do suspeito em uma linha de identificação não leal) e mais identificações de suspeitos (porque as formações tornarão obvio para a testemunha qual é o suspeito)269. Outro grande desafio, enfrentado pelos pesquisadores, é o não cumprimento de protocolos. Os pesquisadores gastam enorme tempo trabalhando nos detalhes e protocolos de estudo, para assegurar que os dados sejam coletados em um formato não enviezado. Na medida em que esses protocolos não forem segui- dos, isto torna a interpretação dos dados difícil, na melhor das hipóteses, porque acrescenta uma enorme quantidade de erros sistemáticos270. Em ambos os estudos, o de Illinois271 o policial, em

268 DANDO, C.J.; MILNE, R. The cognitive interview. In: KOCSIS, R.N. (Ed.). Applied criminal psychology: a guide to forensic behavioral sciences. Springfield: Charles C. Thomas, 2009, p. 148. 269 Ibidem, 2010. 270 Idem, p. 148. 271 MECKLENBURG, S.H.; MALPASS, R.M.; EBBESON, E. (2006). The Illinois pilot program on sequential double blind identification procedures. In: Report to the Legislature of the State of Illinois. Springfield: State of Illinois; KLOBUCHAR,

158 159 desconformidade, foi um grande problema. No estudo de Illinois, os protocolos estipulavam que o oficial reunisse e relatasse infor- mações de confiança. Agentes fizeram isso 62% e 15% do tempo nos estudos de Illinois, respectivamente. Como sugerido por Ross e Malpass272, os estudos de campo terão que exigir algum tipo de verificação do cumprimento no futuro, para garantir que todas as partes envolvidas no estudo sigam os protocolos. Além disso, os pesquisadores que realizam pesquisas de campo na identificação e formação de memória em testemunhas terão que manter cópias das linhas de identificação. Como suge- rido por Wells273 e Ross e Malpass274, a qualidade de uma linha é uma questão importante com relação à precisão de identificação (Lindsay e Wells275; McQuiston e Malpass276; Tredoux,277). Linhas de identificação preconceituosas são aquelas em que o suspeito se destaca com base na descrição da testemunha. O valor de refe- rência de uma linha imparcial é aquele em que todos os membros da linha são escolhidos igualmente, muitas vezes, pelos partici- pantes que receberam uma descrição do culpado, mas nunca viu o evento. A única maneira de avaliar a qualidade de uma linha é realmente ter as linhas e as descrições da testemunha do réu. No

A.; STEBLAY, N.K.M.; CALIGIURI, H.L. Improving eyewitness identifications: Hennepin County’s blind sequential lineup pilot project. Cardozo Public Law, Policy, and Ethics Journal, v. 2, p. 381-414, 2006. 272 ROSS, S.J.; MALPASS, R.S. Moving forward: Responses to “Studying eyewitness investigations in the field. Law and Human Behavior, v. 32, p. 16-21, 2008. 273 WELLS, G.L. Field experiments on eyewitness identification: towards a better understanding of pitfalls and prospects. Law and Human Behavior, v. 32, p. 8-10, 2008. 274 ROSS, S.J.; MALPASS, R.S. Moving forward: Responses to “Studying eyewitness investigations in the field. Law and Human Behavior, v. 32, p. 20, 2008. 275 LINDSAY, R.C.L.; WELLS, G.L. What price justice? Exploring the relationship of lineup fairness to identification accuracy. Law and Human Behavior, v. 4, p. 303-313, 1980. 276 MCQUISTON, D. E.; MALPASS, R. S. Validity of the mock witness paradigm: Testing the assumptions. Law and Human Behavior, v. 26, p. 439-453, 2002. 277 TREDOUX, C. G. A direct measure of facial similarity and its relation to human similarity perceptions. Journal of Experimental Psychology: Applied, v. 8, p. 180-193, 2002.

158 159 futuro, os pesquisadores precisarão reter as formações reais, para avaliar a sua qualidade e equidade. Quais são os rumos futuros? Os estudos de campo iniciais são primeiros passos muito importantes no movimento da pes- quisa do laboratório para o campo. A pesquisa de campo é extre- mamente necessária278. Ao olharmos para o sistema penal brasileiro e as suas duas fases, nas quais geralmente se tem contato com a testemunha (ou depo- ente), processo e procedimento, nota-se que inexiste treinamento algum para evitar a sugestionabilidade. Somente nos últimos anos o interesse pela assertividade da testemunha tem sido objetivo de cur- sos e palestras destinados aos órgãos públicos, vinculados aos proble- mas criminais279, mesmo que ainda de forma tímida e restrita. O julgamento moral também poderia, então, influenciar na formação de uma falsa memória? Pizarro, Morris e Loftus280 afir- mam que sim. Foi apresentada uma situação aos sujeitos de pes- quisa, contando uma história sobre um homem chamado Frank que havia cometido um ato ilícito (saira de um restaurante sem pagar). A alguns participantes foi dito que o ato de Frank não fora intencional e que este era boa pessoa. Aos outros foi dito que o ato foi, sim, intencional e que Frank gostava de praticá-lo. Para os integrantes do “grupo-controle”, não foi dada informação adi- cional alguma. Quando perguntados, uma semana depois, para relembrarem detalhes sobre este acontecimento, os participantes

278 SCHACTER, D.L.; DAWES, R.; JACOBY, L.L.; KAHNEMAN, D.; LEMPERT, R.; ROEDIGER, H.L.; ROSENTHAL, R. Policy forum: Studying eyewitness investigations in the field. Law and Human Behavior, v. 32, p. 3-5, 2008. 279 Em maio de 2010, Rebecca Milne realizou curso na Polícia Federal de Porto Alegre, trazendo suas experiências de campo e demonstrando como estes achados foram importantes para a reforma do sistema de inquirição britânico. (FEDERAÇÃO NACIONAL DOS POLICIAIS FEDERAIS. PF e SENASP realizam curso sobre entrevista investigativa. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2013. 280 PIZARRO, David A.; MORRIS, Erin K.; LOFTUS, Elizabeth. Ripple effects in memory: judgements of moral blame can distort memory for events. Memory & Cognition, v. 34, n. 3, p. 550, 2006.

160 161 que receberam informações negativas sobre Frank relembraram que ele deixou de pagar um valor maior do que o descrito na situ- ação original. Assim, o grau de distorção de memória foi previsto pelo grau de culpa atribuída a Frank. No âmbito do Processo Penal, interpretações errôneas, fal- sas memórias e traições ou truques de nossas lembranças podem resultar no cerceamento da liberdade281. Dessa forma, poder-se-ia resumir o processo de formação de falsas memórias, provocadas principalmente por estes fatores: su- gestão por terceiro, insistência na pergunta (repetição), utilização de palavras associadas (diferenças semânticas sutis), o julgamento moral, a pressão social, o histórico pessoal do inquirido e possíveis traumas. Todas passíveis de ocorrer tanto na fase policial, quanto na judicial propriamente dita. Não se pode olvidar que, em um país como o nosso, o fe- nômeno da seletividade penal282 atinge partes de população mais vulneráveis283 ou suscetíveis a serem colhidas pelo controle social exercido pelo Estado. Considerando-se também o insatisfatório grau de acesso ao ensino, de acordo com estudos revisados, a su- gestão de falsas memórias poderia ser facilitada a estes grupos.

281 Não só relativamente à área criminal que a problemática das falsas memórias tem relevância. Na área do direito de família, tem se discutido a questão referente à síndrome de alienação parental, também chamada de “implantação de falsas memórias”. O desejo de vingança que pode existir entre um dos cônjuges, quando não consegue elaborar a separação, pode levar a um processo de vingança, cujo depositário é o filho. A sua verdade passa a ser verdade para o filho, que vive com falsas personagens de uma falsa existência, implantando-se, assim, falsas memórias (DIAS, Maria Berenice. Falsas memórias. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2013). 282 Neste sentido, conferir: BARATTA, Alessandro. Criminología crítica y Crítica del derecho penal. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2004, p. 173; AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; VASCONCELLOS, Fernanda Bestetti de. Punição e Democracia: em busca de novas possibilidades para lidar com o delito e a exclusão social. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e Sistemas jurídico-penais contemporâneos. Porto Alegre: Edipucrs, 2008, p. 93-118. 283 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En torno de la questión penal. Buenos Aires: Editorial BdeF, 2005, p. 229-252.

160 161 Ademais, quando se sabe que quanto maior o grau de conheci- mento em relação a termos empregados em listas, maior a chance de produção de falsas memórias284. O sistema (ainda) com traços inquisitoriais sobre o qual o procedimento policial está fundado, fruto de continuidades cul- turais ainda verificáveis, com a frequente utilização de várias prá- ticas tidas como determinantes na falsificação da memória, como a repetição, sugestão e, por vezes, coação. A literatura, como se viu, extremamente diversa e consoli- dada sobre o tema, traz experimentos que evidenciam a possibili- dade de ocorrência das chamadas falsas memórias. Contudo, estas pesquisas não estão imunes à crítica. Pelo contrário, Kassin relata que existem grandes diferenças entre o contexto que decorre das investigações e as situações reais de testemunho ocular. Os seguin- tes pontos são por ele ressaltados como comuns aos testes: 1) a investigação utiliza estudantes universitários; 2) o tempo de expo- sição a eventos criminosos é muito curto e 3) não há explicação adequada para certos fenômenos observados (como a associação entre tempo de observação do evento e rigor da sua evocação)285. Portanto, é necessário identificar de qual forma tem se dado a coleta de testemunhos e depoimentos nas esferas policiais e ju- diciais. Há propensão à criação de falsas memórias naqueles con- textos? Cremos ser a resposta a esta pergunta fundamental, já que estudos específicos acerca do tema são raros. O caminho do campo, portanto, é o caminho a ser trilhado.

284 ANAKI, David; FARAN, Yifat; BEN-SHALOM, Dorit; HENIK, Avishai. The false memory and the mirror effects: the role of familiarity and backward association in creating false recollections. Journal of Memory and Language, v. 52, p. 87-102, 2005. 285 KASSIN, S. Memórias falsas, falsas confissões e sugestionabilidade. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2013.

162 163 2.3 Transtornos Associados à Memória: da atenção ao Trauma

Estudamos, até este ponto, variáveis externas à evocação de memórias, notadamente: a gestão da prova no processo, as mídias e formas de entrevistas de testemunhas. A partir de agora analisare- mos algumas das possíveis varíaveis internas e que podem ter reper- cussão na recuperação da memória: os transtornos psiquiátricos. A característica fundamental do Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) é um padrão persistente de desa- tenção e/ou hiperatividade, mais frequente e severo do que aquele tipicamente observado em indivíduos em nível equivalente de de- senvolvimento286. É um dos mais frequentes transtornos neurop- siquiátricos da infância, acometendo 5,29% das crianças em todo mundo287. Persiste após a adolescência em até 70% dos casos, com uma taxa de prevalência na vida adulta estimada entre 2,9 a 4,4%, sem diferença de gênero nessa faixa etária288. Somente na década de 1970 o TDAH foi reconhecido por persistir na vida adulta289.

286 ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. DSM IV – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995, p. 77. 287 POLANCZYK, G.; ROHDE, L.A. Epidemiology of attention-deficit/hyperactivity disorder across the lifespan. Current Opinion of Psychiatry, v. 20, n. 4, p. 386-392, 2007. De acordo com Recondo e Schimitz, o transtorno de deficit de atenção é altamente prevalente, perfazendo 50% dos pacientes que buscam antendimento psiquiátrico e sua prevalência na população geral de escolares é de 3 a 5% (RECONDO, Rogéria; SCHMITZ, Marcelo. Transtorno de Atenção/Hiperatividade. In: CATALDO NETO, Alfredo; GAUGER, Gabriel José Chittó; FURTADO, Nina Rosa (Orgs.). Psiquiatria para estudantes de medicina. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 636). 288 BIEDERMAN, J.; FARAONE, S. Attention deficit and hyperactivity disorder. The Lancet, v. 66, p. 237-248, 2005. 289 MALLOY-DINIZ, Leandro; CAPELLINI, Giancarlo Mário; MALLOY-DINIZ, Daniela Neder Monteiro; LEITE, Wellington Borges. Neuropsicologia no transtorno de deficit de atenção/hiperatividade. In: FUENTES, Daniel; MALLOY-DINIZ, Leandro; CAMARGO, Candida H. Pires; COSENZA, Ramon Moreira (Orgs.). Neuropsicologia – teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 2008, p. 241.

162 163 Hervey, Epstein e Curry290relatam dificuldades relacionadas à memória, à motricidade e à velocidade de processamento de informações. Assinala-se que os processos, como memória, velo- cidade de processamento, portanto, estão intimamente relacio- nados aos processos atencionais291. Anteriormente, foi visto que a aquisição e a evocação da me- mória são fortemente moduladas pelos sistemas que registram e respondem às emoções e aos estados de ânimo: as vias dopaminér- gicas, noradrenérgicas, serotoninérgicas e colinérgicas do cérebro do hipocampo, córtex entorrinal, amígdala e outras regiões cere- brais nas quais as memórias são feitas, armazenadas e evocadas292. Dessa forma, todas as doenças que são acompanhadas de alterações emocionais (ansiedade, estresse, a maioria das doenças dolorosas e/ou crônicas) ou dos estados de ânimo (mania ou hi- perexcitação, depressão e doença bipolar) podem, em princípio, alterar a memória. As mais prejudiciais, neste sentido, seriam a ansiedade, o estresse e a depressão293. A prevalência dos processos depressivos é uma das mais im- portantes em termos epidemiológicos. Varia de 3 a 11%, sendo mais frequente em mulheres e ocorrendo de forma mais recor- rente. Isso porque aproximadamente 80% dos indivíduos que re- ceberam tratamento para um episódio depressivo terão um se- gundo ao longo de suas vidas294.

290 HERVEY, A.S.; EPSTEIN, J.N.; CURRY, J. E. Neuropsychology of adults with attention-deficit/hyperactivity disorder: a meta-analytic review. Neuropsychology, v. 18, p. 485-503, 2004. 291 MALLOY-DINIZ, Leandro; CAPELLINI, Giancarlo Mário; MALLOY-DINIZ, Daniela Neder Monteiro; LEITE, Wellington Borges. Neuropsicologia no transtorno de deficit de atenção/hiperatividade. In: FUENTES, Daniel; MALLOY-DINIZ, Leandro; CAMARGO, Candida H. Pires; COSENZA, Ramon Moreira (Orgs.). Neuropsicologia – teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 2008, p. 251. 292 IZQUIERDO, Ivan. Questões sobre a memória. São Leopoldo: Unisinos, 2004, p. 68. 293 Ibidem, p. 68. 294 FLECK, M.P.A.; LAFER, B.; SOUGEY, E.B.; DELPORTO, A.B.; BRASIL, M.A.; JURUENA; MF. Diagnóstico e Tratamento da Depressão. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2010.

164 165 Em episódios depressivos típicos, o indivíduo usualmente sofre de humor deprimido, perda de interesse e prazer, bem como energia reduzida, levando a uma fatigabilidade aumentada e ati- vidade diminuída. Cansaço marcante após esforços apenas leves é comum. Outros sintomas são: (a) concentração e atenção re- duzidas; (b) autoestima e autoconfiança reduzidas; (c) ideias de culpa e inutilidade (mesmo em um tipo leve de episódio); (d) visões deslocadas e pessimistas do futuro; (e) ideias ou atos auto- lesivos ou suicídio, (f) sono perturbado e (g) apetite diminuído295. O efeito da depressão é o mais complexo e, para muitos, um certo grau de amnésia faz parte do quadro depressivo. Os pa- cientes se queixam de sua incapacidade de gravar fatos novos ou de se lembrar dos preexistentes. Pode ser aparente e decorrer do desânimo e pessimismo comuns à depressão; mas, na maioria dos casos, o déficit é real. A amnésia da doença depressiva se observa predominantemente para os fatos e as memórias de índole agra- dável; o sujeito se lembra muito mais das desgraças, fracassos, do- enças e humilhações296. Recente estudo apontou forte correlação de ocorrência de falsas memórias em pacientes com depressão, através do emprego da técnica DRM297. Os transtornos esquizofrênicos são caracterizados, em geral, por distorções fundamentais e características do pensa- mento e da percepção e por afeto inadequado ou embotado. A consciência clara e a capacidade intelectual são usualmente man- tidas, embora certos déficits cognitivos possam surgir no curso do tempo298. Sua prevalência, de acordo com a Organização Mundial

295 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação de transtornos mentais e de Comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993, p. 117. 296 IZQUIERDO, Ivan. Questões sobre a memória. São Leopoldo: Unisinos, 2004, p. 69. 297 JELINEK, Lena; HOTTENROTT, Birgit; RANDJBAR, Sarah; PETERS, Maarten J.; MORITZ, Steffen. Journal of Behavior Therapy and Experimental Psychiatry, v. 40, p. 374-383, 2009. 298 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993, p. 85.

164 165 da Saúde (OMS), é de 0,92% para homens e 0,9% para mulheres. No Brasil, têm sido relatadas taxas próximas a 1%299. Esquizofrênicos padecem também de um sério distúrbio am- nésico para memórias episódicas. O déficit de memória declara- tiva dos esquizofrênicos correlaciona-se com lesões nas diversas estruturas do lobo temporal que participam da memória300. Difi- culdades de concentração frequentemente são evidentes e podem refletir problemas para focalizar a atenção ou a distractibilidade devido à preocupação com estímulos internos301. Bhatt, Laws e McKenna302 afirmam que as alucinações podem levar a “falsas crenças”. Para auferir a possibilidade de estas estarem ligadas à produção de falsas memórias, se utilizou do paradigma DRM, a fim de comparar pacientes que são es- quizotípicos, com e sem alucinações. O primeiro grupo obteve o dobro de produção de falsas memórias em relação ao último. Ambos os grupos tiveram mais dificuldades para se lembrar das palavras corretas que o grupo das pessoas saudáveis. Todavia, em atividades de reconhecimento, a produção do grupo de pacientes com esquizofrenia foi menor do que a população sem a doença. Os surpreendentes resultados, do ponto de vista neuroló- gico, também são confirmados por Pernot-Marino, Schuster, He- delin, Berna, Zimmermann e Danion, que demonstram o bom grau de confiabilidade em relação às memórias autobiográficas de pacientes esquizotípicos303. Entretanto, a pesquisa referente à

299 MARI, Jair J.; LEITÃO, Raquel J. A epidemiologia da esquizofrenia. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 22, s. 1, p. 20, maio 2000. 300 IZQUIERDO, Ivan. Memória. Porto Alegre: Artes Médicas, 2006, p. 86. 301 ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. DSM IV – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995, p. 269. 302 BHATT, Reena; LAWS, Keith R.; McKENNA, Peter J. False memory in schizophrenia patients with and without delusions. Psychiatry Research, v. 178, p. 260-265, 2010. 303 PERNOT-MARINO, Elodie; SCHUSTER, Caroline; HEDELIN, Guy; BERNA, Fabrice; ZIMMERMANN, Marie-Agathe; DANION, Jean-Marie. True and false autobiographical memories in schizophrenia: Preliminary results of a diary study. Psychiatry Research, v. 179, p. 1-5, 2010. Também neste sentido: DAGNALL, Neil;

166 167 memória semântica também apontou dificuldades, como no ex- perimento de Bhatt et al. Em estudos de neuroimagem, da mesma forma, se concluiu que, apesar de uma precisão global de memó- ria menor, a memória emocional está intacta na esquizofrenia304. Há doenças orgânicas do cérebro que também causam am- nésia secundária, decorrentes de intoxicações ou lesões das áreas cerebrais que fazem ou evocam memórias. As intoxicações (ál- cool, cola de sapateiro, maconha305, cocaína, anfetaminas, hero- ína ou ecstasy) deprimem brutalmente a memória de forma aguda e podem causar danos permanentes se reiteradas e/ou muito in- tensas. A mais prevalente das intoxicações que afetam a memó- ria é devida ao álcool. Em doses elevadas, em um indivíduo com antecedentes alcoólicos, produz os “apagamentos” (blackout) em que o sujeito esquece o que fez durante o estado de embriaguez. Ocasionalmente, essa memória pode reaparecer, geralmente dis- torcida, quando o sujeito volta a se intoxicar com a mesma subs- tância. O uso crônico e excessivo do álcool (alcoolismo) pode causar, ao longo de muitos meses ou anos, um quadro de amnésia profunda e déficit cognitivo geral, denominado demência306. O transtorno de estresse pós-traumático é uma resposta tar- dia e/ou protraída a um evento ou situação estressante (de curta ou longa duração) de uma natureza excepcionalmente ameaça- dora ou catastrófica, a qual provavelmente causa angústia invasiva

PARKER, Andrew. Schizotypy and false memory. Journal of Behaivioural Therapy and Experimental Psychiatry, v. 40, p. 179-188, 2009. 304 SERGERIE, Karine; ARMONY, Jorge L.; MENEAR, Matthew; SUTTON, Hazel; LEPAGE, Martin. Influence of emotional expression on memory recognition bias in schizophrenia as revealed by fMRI. Schizophrenia Bulletin, v. 36, n. 4, p. 800-810, 2010. 305 Inclusive, tem se estudado a relação do canabidiol, componente da Cannabis sativa, não associado aos efeitos psicotrópicos típicos causados pelo uso da planta, como forma de facilitar a extinção de memorias aversivas contextuais em roedores (ROSSIGNOLI, Matheus Teixeira; AGUIAR, Cleiton Lopes; LEITE, João Pereira; PEREIRA, Rodrigo Neves Romcy. Canabidol modula a extinção de memória aversiva no córtex pré-frontal medial de ratos. Disponível em: . Acesso em: 01 jul. 2012). 306 IZQUIERDO, Ivan. Questões sobre a memória. São Leopoldo: Unisinos, 2004, p. 70.

166 167 em quase todas as pessoas (por exemplo: desastre natural ou feito pelo homem, combate, acidente sério, testemunhar a morte vio- lenta de outros ou ser vítima de tortura, terrorismo, estupro ou outro crime)307. Estudos epidemiológicos indicam que esse trans- torno afeta aproximadamente 15% a 24% dos indivíduos expos- tos a eventos traumáticos. São considerados fatores de risco para o seu desenvolvimento, a exposição a situações traumáticas prévias, como abusos, ser do sexo feminino (proporção 2:1 a prevalência mulheres-homens), ter história pessoal e familiar308. O evento traumático pode ser revivido de várias maneiras. Geralmente, a pessoa tem recordações recorrentes e intrusivas do evento ou sonhos aflitivos recorrentes, durante os quais o evento é reencenado309. Os transtornos psiquiátricos podem afetar de forma deter- minante a elaboração das memórias, como vimos. No entanto, inexistem regras processuais a impedir a possibilidade de pessoas com aqueles diagnósticos serem ouvidas no Inquérito Policial e no próprio Processo Penal. Cada vez mais os problemas sobre me- mórias mostram-se persistentes. Como pensar o testemunho? A partir de uma simples reti- rada de informação disponível em uma unidade de arquivo cha- mada cérebro? São estes os mesmos dados que permitem a cons- trução da história (oficial)? Ao longo deste ponto, tentaremos

307 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação de transtornos mentais e de Comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993, p. 145. 308 VIEIRA, Rodrigo Machado; GAUER, Gabriel José Chittó. Transtorno de estresse pós-traumático e transtorno do humor bipolar. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 25, p. 25, jun. 2003. 309 ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. DSM IV – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995, p. 404. Apesar dos relatos psiquiátricos quanto à possibilidade de alteração de memória em doentes com transtorno de estresse pós-traumático, existem estudos demonstrando os benefícios do estresse, quando inexiste trauma. A situação de estresse tende a melhorar a qualidade da memória em função do nível de alerta do indivíduo (SMEETS, Tom; OTGAAR, Henry; CANDEL, Ingrid; WOLFF, Oliver T. True or false? Memory is differentially affected by stress-induced cortisol elevations and sympathetic activity at consolidation and retrieval. Psychoneuroendocrinology, v. 33, p. 1378-1386, 2008).

168 169 discutir alguns pontos fundamentais para a possibilidade de pen- sar-se em reescrever um acontecimento passado. Passaremos pela análise de um pensamento descritivo-objetivo, através fraturas impostas pela negativa de sua imposição de modelos contrários à natureza humana, até uma tentativa de conciliação ou de se pen- sar a viabilidade das práticas descritas no ponto anterior. A memória não consiste em uma regressão do presente ao passado. Se o passado não é passado, já que é presente que recém passou, não seria possível ser reconstituída a partir de um pas- sado ulterior, já que o passado, em verdade, coexiste com o pre- sente310. A memória constrói planos de consciência diferentes, até que se materialize em uma percepção atual, um estado pre- sente e atuante, até o plano externo de nossa consciência em que se desenha no corpo311. Sobre a imprecisão dos meios fenomenológicos, Souza en- sina que:

A descrição pode ser perfeita – e, quanto mais perfeita for, mais insuficiente será; quanto mais dignos os procedimentos que se utilize, mais distante permanecerá da coisa mesma. [...]. Ao fim e ao cabo, permanece o fato nu, concentrado em si mesmo, em sua verdade não passível de ser suavizada – um dado que nenhum logos preenche ou esvazia de sentido, uma inscri- ção, acontecida no decorrer do tempo, na ordem da eternidade312.

310 Ibidem, p. 175. 311 Idem, p. 180. 312 SOUZA, Ricardo Timm de. Sentido e Alteridade – Dez ensaios sobre o oensamento de Emmanuel Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 25-26. Veja-se também KEIL, Ivete; TIBURI, Márcia. diálogo sobre o corpo. Porto Alegre: Escritos, 2004, p. 11: “Meu medo, todavia, se deve ao quanto percebo a insuficiência da linguagem discursiva para dar conta do corpo e, mesmo assim, ela é a única saída no quadro da elaboração

168 169 Mesmo que se saiba da dificuldade de seu acesso e da inafas- tabilidade de meios idôneos à sua (sempre relativa) reconstrução, o testemunho ainda é prova largamente utilizada em processos judiciais. A reconstrução do fato histórico, intangível, é a tenta- tiva invariavelmente frustrada de qualquer litígio. Quando essa confrontação de teses toma corpo na área cri- minal, os cuidados devem ser aumentados. Isso porque a preca- riedade de acesso à memória, também sintoma da desconfiança acerca da prova testemunha, pode significar injustiças313 para réu, já que pode ter privada a sua liberdade e também para a vítima. Vimos, ainda, a dificuldade em estabelecer as medidas “re- dutoras de danos”, já que a Entrevista Cognitiva, apesar de seus interessantes resultados, dependeria diretamente da atenuação de uma cultura punitivista existentes em nosso país. A partir do capítulo seguinte, demonstraremos as possíveis interpretações do evento criminal de acordo com as teorias (crí- ticas) criminológicas. Tentaremos estabelecer os olhares possíveis sobre os processos de criminalização e como estas visões podem influenciar na possibilidade de ocorrência de falsas memórias.

que buscamos e, por isso, ela deve ser uma verdadeira fala sobre o corpo: assim como é a dança, assim como é, tantas vezes, a literatura”. 313 Não é de nosso interesse adentrar o estudo das inúmeras teorias da justiça desenvolvidas contemporâneamente. Se inúmeras teorias existem, é possível imaginar que aí, desta dificuldade, esteja mais um dos sintômas do mal-estar relativo ao direito na atualidade (e que vem de muito). Apenas para situar nosso referencial, adotamos aqui a noção de Ricardo Timm de Souza quando, trabalhando a dignidade humana. O autor aduz que a justiça é simplesmente o sentimento que negue a injustiça, ou seja, que não seja conivente com o sofrimento. (SOUZA, Ricardo Timm de. Justiça em seus Termos – Dignidade humana, dignidade do mundo. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 153-154).

170 171 3. Prova Testemunhal: Leituras Criminológicas e Garantista(?)

“Se culpam os indivíduos, não os sistemas”.

(CHRISTIE, Limites da Dor, p. 61)

Por ser intrinsecamente transdisciplinar(es)1, a(s) criminologia(s) confere(m) diversos olhares sobre o fenômeno complexo da criminalidade. A partir de suas escolas, é possí- vel melhor compreender os efeitos do estabelecimento e do

1 De acordo com Carvalho: “A perspectiva transdisciplinar possibilita(ria) libertar os saberes dos seus feudos, colocando-se em diálogo aberto com diferentes campos de conhecimento (e com a arte), possibilitando o (re)conhecimento de verdades outras, a discussão dos valores contemporâneos e os limites do(s) saber(es)” (CARVALHO, Salo de. Criminologia e Transdisciplinaridade. In: GAUER, Ruth M. Chittó (Org.). Sistema penal e violência. Rio de Janeiro: 2006, p. 25). Ainda, é necessário ressaltarmos que não conseguimos compreender o sistema penal sem o necessário olhar criminológico sobre as demais ciências dogmáticas (direito penal e processo penal). No entanto, é importante alertarmos que esta mirada não constitui algo complementar ou auxiliar àquelas áreas de dever-ser, mas sim como verdadeira critério de interpretação dos controles sociais penais, precisamente no sentido de Andrade: “A criminalidade não “é” ( não existe em si e per si), ela “é” socialmente construída. Neste movimento, a Criminologia converte o sistema penal como um todo e, consequentemente, a Lei Penal e as Ciências Criminais, (dimensões integrantes dele), em seu objeto, e problematiza a função de controle e dominação por ele exercida. (...) A Criminologia tem, portanto, uma importância decisiva para o Ensino do Direito, desde que não reduzida a uma rubrica excludente que, mais do que valorizar a disciplina e auxiliar na compreensão do poder e do controle social e penal (crime, criminalidade, pena, criminalização, vitimação, impunidade, etc), do poder-espaço dos operadores jurídicos nesta mecânica, concorra para infantilizar o imaginário acadêmico, com a visão positivista da boa “ciência” para o combate exitoso da criminalidade” (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Por que a Criminologia (e qual Criminologia) é importante no ensino jurídico? Disponível em: . Acesso em: 12 maio 2012).

170 171 reconhecimento de uma prova “contaminada” por processos de sugestionabilidade. O capítulo anterior nos mostra a necessidade de trabalhar a ciência não somente de forma cética em relação aos processos criminológicos. Aqui, pretenderemos demonstrar o importante papel que os profissionais das áreas psi podem desempenhar ao negar os seus normalmente trabalhados rótulos de empreende- dores morais2, entendendo que “os saberes psi ocupam um lugar estratégico de produção de saberes críticos do sistema penal”3. Neste capítulo, passaremos a analisar os efeitos dos pro- cessos de criminalização sobre o indivíduo em geral e especifica- mente em relação àquele no qual tenha havido falsas memórias. A partir disso, estudaremos as estratégias teóricas existentes que possam propiciar a desejada/esperada redução de danos, notada- mente o(s) minimalismo(s) e o(s) abolicionismo(s) penais. Vivemos a chamada era do Grande Encarceramento4, época paradoxal por natureza. Se, por um lado, temos presídios in- variavelmente lotados e em condições intoleráveis, por outro existe um sentimento social generalizado relativamente às demandas pu- nitivas: penas mais duras e construção de novos estabelecimentos prisionais. A esses movimentos, inspirados por teorias identifica- das com ideias de defesa social (notadamente o ‘direito penal do

2 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução de Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 50 e ss. 3 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 63. 4 Neste sentido: BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 27; ABRAMOVAY, Pedro Vieira (Org.); BATISTA, Vera Malaguti (Org.). Depois do grande encarceramento. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

172 173 inimigo’5 e a ‘law and order’6), tem-se dado o nome de puniti- vismo7. Mesmo que seja considerado por alguns como “morto teoricamente”, essas concepções político-criminais encontram

5 Jakobs defende a necessidade da divisão do direito penal em duas vertentes antagônicas: uma delas de inspiração iluminista, destinada aos cidadãos, e outra de exceção, destinada aos inimigos. O primeiro modelo, identificado com “uma visão tradicional, garantista, com observância de todos os princípios fundamentais que lhe são pertinentes”, o segundo “seria um direito penal despreocupado com princípios fundamentais, pois que não estaríamos diante de cidadãos, mas sim de inimigos do Estado” (GRECO, Rogério. Direito penal do equilíbrio: uma visão minimalista do direito penal. 4. ed. Niterói: Impetus, 2009, p. 18.) Ver também: JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito penal do inimigo: noções e críticas. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. 6 ANITUA descreve que a law and order se refere a teoria como sendo uma violência e desprezo teorizados por outros seres humanos. De acordo com ela, “era necessário abandonar as grandes teorizações e voltar ao básico, ao que as pessoas comuns entendem como bem e mal. Passou-se a chamar esse pensamento intencionalmente ‘básico’ como ‘criminologia da vida cotidiana’. Seus autores se centrariam sobretudo na prevenção do delito, que segundo eles teria a ver com a escolha racional, com as rotinas cotidianas e com as oportunidades situacionais.” (ANITUA, Gabriel. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 779-780). 7 Expressão trabalhada especialmente por Salo de Carvalho que afirma ser o punitivismo alimentado basicamente pelas seguintes circunstâncias em âmbito legislativo: “Nota-se, portanto, que no âmbito do Poder Legislativo inúmeros fatores contribuíram para o aumento dos índices de encarceramento: “(a) Criação de novos tipos penais a partir do rol de bens jurídicos expostos na Constituição (campos penal); (b) Aplicação de quantidade de pena privativa de liberdade em inúmeros e distintos delitos (campo penal); (c) Sumarização do procedimento penal, com alargamento das hipóteses de prisão cautelar (prisão preventiva e temporária) e diminuição das disponibilidades de fiança (campo processual penal); (d) Criação de modalidade de execução penal antecipada, prescindindo o trânsito em julgado da sentença condenatória (campo processual e da execução penal); (e) Enrijecimento da qualidade do cumprimento da pena com a ampliação dos prazos para progressão e livramento condicional (campo da execução penal); (f) Limitação das possibilidades de extinção da punibilidade com a exasperação dos critérios para indulto, graça, anistia e comutação (campo da execução penal); e (g) Ampliação dos poderes da administração carcerária para definir o comportamento do apenado, cujos reflexos atingem os incidentes de execução penal (v.g. Lei 10.792/03) (campo penitenciário)” (CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 35-36). No entanto, importante referir que esse autor deixa bastante claro que o punitivismo não deriva tão-somente de políticas legislativas, mas, especialmente, da formação

172 173 ainda espaço no senso comum8. Portanto, por mais que existam resistências, a permeabilidade da política criminal legislativa acaba fazendo com que tenhamos o movimento como de um pêndulo9. Esse quadro é fomentado pela transição de um chamado “es- tado de bem-estar social” para um “estado policial”, ou seja: “a passagem do modelo de comunidade includente do ‘Estado So- cial’ para um Estado excludente, ‘penal’, voltado para a ‘justiça criminal’ ou o ‘controle do crime’”10. Dentro do paradigma ne- oliberal, o sistema penal torna-se “o território sagrado da nova ordem socioeconômica”11. Isso se agrava em países, como o nosso, nos quais a desi- gualdade ainda constitui gravíssimo problema estrutural12. Dessa forma, as prisões acabam por se constituir em grandes depósitos onde os excluídos13 socialmente são abrigados.

cultural dos atores do sistema penal (juízes, promotores e advogados) que, muitas vezes, subverte valores garantistas e constitucionais. 8 CARVALHO, Amilton Bueno de. Eles, os juízes criminais, vistos por nós, os juízes criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 37. 9 CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Tradução de Mariluz Caso. Cidade do México: Fundo de Cultura Econômica, 1988, p. 71 e p. 95. 10 BAUMAN, Zygmuth. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 86. 11 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 100. 12 Também Wacquant trabalha com a ideia de que as lógicas de mercado são especialmente funestas em contextos de democracias recentes, também nosso caso: “No entanto, e sobretudo, a penalidade neoliberal ainda é mais sedutora e mais funesta quando aplicada em países ao mesmo tempo atingidos por fortes desigualdades de condições e oportunidades de vida e desprovidos de tradição democrática e de instituições capazes de amortecer os choques causados pela mutação do trabalho e do indivíduo no limiar do novo século” (WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 7). Neste sentido: AGÊNCIA REUTERS. Disponível em: < http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/12/111205_desigualdade_ ocde_pu.shtml>. Acesso em: 06 jul. 2012. 13 PASTANA, Debora Regina. Estado punitivo e encarceramento em massa: retratos do Brasil atual. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 77, p. 316-317, mar./abr. 2009. Carvalho, da mesma forma, identifica as inexoráveis relações das políticas sociais com processos de criminalização: “A perversa equação que agrega as históricas omissões nas políticas sociais às políticas criminais de ampliação das hipóteses criminalização

174 175 Bauman, ao descrever a prisão14 como o lugar (naturali- zado) do refugo humano, afirma:

as prisões, como tantas outras instituições sociais, passaram da tarefa de reciclagem para a de depósito de lixo. Foram realoca- das para a linha de frente a fim de resolver a crise que atingiu a indústria da remoção do lixo, em consequência do triunfo global da modernidade e da nova plenitude do planeta. Todo lixo é em potencial venenoso – ou pelo menos, definido como lixo, está destinado a ser contagioso e perturbador da ordem adequada das coisas. Se reciclar não é mais lucrativo, e suas chances (ao menos no ambiente atual) não são mais realistas, a maneira certa de lidar com o lixo é acelerar a ‘biodegradação’ e decomposição, ao mesmo

e punição produz, como resultado, a barbarização dos espaços de encarceramento. Locais de punitividade cada vez mais alheios aos projetos voltados à implementação dos programas de ressocialização e deficitários em relação aos investimentos que propiciem a sobrevivência digna aos apenados (cárceres, manicômios e instituições juvenis)” (CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 3). Veja-se ainda: PINTO, Nalayne Mendonça. Recrudescimento penal no Brasil: simbolismo e punitivismo. In: MISSE, Michel (Org.). Acusados e acusadores: estudos sobre ofensas, acusações e incriminações. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 267. 14 Goffman identifica como um dos efeitos mais perversos da prisão o que resulta em um processo de desculturamento do preso: “O desculturamento tem início quando o preso começa a cumprir sua pena na prisão. Nesse momento, ocorre simbolicamente um fim e um início. O fim é composto pela perda de propriedade, na qual o preso é desempossado de seus pertences, e sabe-se que as pessoas nutrem sentimentos do eu àquilo que possuem. No entanto, certamente, a perda mais expressiva não está associada à posse de bens materiais, mas, a algo de grande relevância: nosso nome. Por isso, possivelmente a destituição mais significativa não é ser destituído de objetos materiais, porém de perder o próprio nome, pois ‘a perda de nosso nome é uma grande mutilação do eu’ ”(GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 27).

174 175 tempo, isolando-o, do modo mais seguro possível, do hábitat humano comum15.

Produto e ao mesmo tempo combustível da lógica puniti- vista será a cultura do medo16. Existe um sentimento genera- lizado de vitimização, reproduzido a partir de um maniqueísmo social, segundo o qual,

os bons se transformam em vítimas indefe- sas dos maus, incluído, nesta última catego- ria os supostos responsáveis pela segurança de todos. Daí as expressões: impunidade, ineficácia das normas e do judiciário. A sociedade sente-se vítima do bandido e do Estado incompetente ou pouco opressor17.

Como resultado, o discurso alarmista18 político-crimi- nal tentará responder ao medo. O conteúdo desta resposta é

15 BAUMAN, Zygmuth. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 108. No mesmo sentido, para Wacquant: “a prisão serve de lata de lixo judiciária em que são lançados os dejetos humanos da sociedade” (WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 21). 16 Utilizamos aqui o medo nos termos trabalhados por Débora Pastana: “Entendemos o medo, neste estudo, como uma forma de exteriorização cultural, principalmente se levarmos em conta as transformações que ele desencadeira. Como vimos no capítulo anterior, há uma mudança no comportamento do indivíduo em casa e na rua, um cuidado maior com os bens (consumo de apólices de seguro, por exemplo), a produção e o consumo dos mais variados produtos de segurança privada (alarmes, vidro blindado e aulas de defesa pessoal, por exemplo), uma desconfiança generalizada entre os indivíduos” (PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2003, p. 92). Ver também: BAUMAN, op. cit., p. 65-66. 17 PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2003, p. 108-109. 18 MORAIS DA ROSA, Alexandre; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um processo penal democrático: crítica à metástase do sistema de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 7.

176 177 tautológico: mais medo (oficial19) imposto, no geral, contra “os de sempre”20. A cultura do medo produz um sentimento de desconfiança universal e tem reflexos, inclusive, para a prova penal, especial- mente no tocante à testemunha:

A confiança é substituída pela suspeita uni- versal. Presume-se que todos os vínculos sejam precários, duvidosos, semelhantes a armadilhas e emboscadas – até prova em contrário. Mas, na ausência de confiança, a própria idéia de ‘prova’, para não falar de prova segura e final, está longe de ser clara e convincente. Como seria uma prova fide- digna, confiável de verdade? Você não a reconheceria se a visse. Mesmo se olhasse no rosto, não acreditaria que ela fosse o que afirmava ser. A aceitação da prova, por- tanto, deve ser adiada de modo indefinido. Os esforços para estabelecer e estreitar os vínculos alinham uma sequência infinita de experimentos. Sendo experimentais, acei- tos ‘na base da tentativa’ e eternamente testados, sempre um provisório ‘vamos esperar para ver como funcionam’, não é provável que as alianças, os compromissos e os vínculos humanos se solidifiquem o suficiente para serem proclamados confiá- veis de maneira verdadeira e integral. Nas- cidos da suspeita, geram suspeita21.

19 BAUMAN, Zygmuth. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 65. 20 ANDRADE, Verga Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 50. 21 BAUMAN, op. cit., p. 115.

176 177 Suspeitas se projetam em privações, especialmente da liber- dade. Sintoma deste contexto é a população prisional brasileira. Hoje, estima-se que tenhamos aproximadamente 550.000,00 (quinhentos e cinquenta mil) presos22. E este número apenas cresce. Ainda que existam medidas político-criminais com fins declaradamente desencarcerizadoras, as consequências práti- cas de sua aplicação são bastante tímidas. Isto porque o subjeti- vismo23, em certas categorias-chave (como o requisito da “ordem pública” em sede de prisão cautelar), tornam facilmente reversí- veis os objetivos originais. Portanto, nossa opção pelas criminologias está assentada justamente na negação veemente de seu caráter auxiliar24. Con- sideramos que não é possível destacar as análises dogmático-pe- nais das necessárias implicações criminológicas. Baratta25 critica o espaço do processo penal (onde teremos as oitivas de testemunhas) como exemplo do verdadeiro “labo- ratório” do direito, ao desenconsiderar as particularidades do

22 Veja-se: DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Relatório de População Carcerária 2012. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2013. No mundo, estima-se que tenhamos mais de 10 milhões de pessoas presas: INTERNATIONAL CENTRE FOR PRISION STUDIES. World Prison Population List. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2013. 23 Ver especialmente LOPES JÚNIOR, Aury. O novo regime jurídico da prisão processual, liberdade provisória e medidas cautelas diversas: Lei 12.403/2011. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011; e CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p 267-272. 24 No sentido trabalhado por Vera Regina Pereira de Andrade: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Por que a Criminologia (e qual Criminologia) é importante no ensino jurídico? Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2013. 25 BARATTA, Alessandro. La vida y el laboratorio del derecho. A propósito de la imputación de responsabilidad en el proceso penal. Revista Doxa, n. 5, p. 284-285, 1988.

178 179 caso concreto, o sofrimento da vítima (substituída, via de regra, por um terceiro representante do Ministério Público) e jamais chegará às raízes do conflito. Tais circunstâncias estão materializadas na distância comuni- cativa e existencial entre os atores do drama processual, presos em seus próprios papéis. Propõe Baratta que deve haver um giro funda- mental na interação: “antes de enxergar a realidade social através do aparato judicial, o aparato judicial desde a realidade social.26” Por todo o exposto em nosso capítulo anterior, consideramos fundamental enxergar o processo de criminalização para além de suas implicações normativas. Partimos do pressuposto que a tes- temunha possui sua própria visão de sistema penal e de política criminal. Isto, sem dúvidas, irá influenciar na forma como descre- verá o acontecimento, sendo imprescindível entender estas pos- síveis interpretações e condições de produção de testemunho a partir das criminologias.

3.1 Efeitos das Criminalizações Primária e Secundária: Contribuições do Labelling Approach

Neste ponto, estudaremos os efeitos dos processos de rea- ção social ao delito, sempre tendo o horizonte do possível erro judicial. A falibilidade é condição inexorável e inata a de huma- nidade. Por todo o já trazido no capítulo anterior, é sabido que existem as chamadas falsas memórias e as condições favoráveis ao seu surgimento, sendo também daí a necessidade de maiores cuidados quanto à possíveis falhas. Não só a condenação, bem como os processos de criminali- zação, advindos daquelas circunstâncias, podem ser considerados

26 Ibidem, p. 284-285.

178 179 materialmente injustos27. É preciso lembrar que, mesmo sendo assim considerados, não deixaram de existir. De acordo com Andrade, é considerado como fundador do pa- radigma criminológico do Labelling approach Howard Becker, prin- cipalmente em função da publicação de sua obra clássica, em 1963, Outsiders. Em verdade, se tem nela, a obra central do labelling, a pri- meira em que esta nova perspectiva aparece consolidada e sistema- tizada e se encontra definitivamente formulada a sua tese central28. As tendências anticorrecionalistas, trabalhadas naquela obra, já apareciam antes desse paradigma. Becker29 cita como referência para seus estudos quanto ao “desvio”, Lemert30 e Tannenbaum31. Atribui-se32 a Sykes33 e Matza uma das primeiras críticas do positivismo criminológico34. Para além de buscar o “diabo encar-

27 TIMM DE SOUZA, Ricardo. Justiça em seus termos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 154. 28 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 39. 29 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução de Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 9. 30 Cf. LEMERT, Edwin M. Social pathology: a systematic approach to the theory of sociopathic Behavior. Nova York: McGraw Hill Book, 1951; LEMERT, Ewin M. Human deviance, social problems, and social control. 2. ed. Englewood Cliffs: Nova Jersey: Prentice-Hall, 1972. 31 Cf. TANNENBAUM, Frank. Crime and the community. Nova York, Ginn and Co., 1938. 32 LARRAURI, Elena. La herencia de la criminologia critica. 3. ed. Madrid: Siglo Veintiuno, 2000, p. 64. Ibidem, p. 14. 33 Cf. SKYES, Gresham M.; MATZA, David. Techniques of neutralization. In: MCLAUGHLIN, Eugene; MUNCIE, John; HUGHES, Gordon (Orgs.). Criminological perspectives – Essential readings. 2. ed. Sage: Londres, 2005, p. 231-238. 34 De acordo com Andrade: “O pressuposto, pois, de que parte a Criminologia positivista é que a criminalidade é um meio natural de comportamentos e indivíduos que os distinguem de todos os outros comportamentos e de todos os outros indivíduos. Sendo a criminalidade esta realidade ontológica, preconstituída ao direito penal (crimes ‘naturais’) que, com exceção dos chamados crimes ‘artificiais’, não faz mais do que reconhecê-la e positivá-la, seria possível descobrir as suas causas e colocar a ciências destas a serviço do seu combate em defesa da sociedade” (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 35). Também, neste

180 181 nado” nos corpos de adolescentes ou uma raiz notadamente etio- lógica, os autores tentaram descrever um modelo, cuja causa dos crimes poderia ser encontrada em mecanismos psicológicos que inibiam a censura do indivíduo sobre os seus próprios atos. Estes mecanismos eram influenciados por motivos exteriores e ainda pela interação deste indivíduo com o seu meio. Desta forma, era necessário investigar quais seriam estas interações e uma forma de neutralizá-las em relação a futuros comportamentos35. Uma das grandes influências desta perspectiva foi a teoria do Interacionismo Simbólico, capitaneada por Mead36. Ou seja: “A criminalidade deixa de ser uma realidade objetiva para ser lida como uma definição”37. Houve um afastamento da lógica cau- sal-explicativa, própria das ideias da escola criminológica positi- vista, para uma análise do “outro generalizado” na interação, no intercâmbio de papéis sociais, o que permitiu a desligitimação da função ideológica dos aparatos de controle social38. Essas teorias são fundamentais justamente por marcarem processos de rupturas em relação à reputação do poder judiciário. Estavam, nas palavras de Becker, “menos dispostos a acreditar

sentido, a colocação de Vera Malaguti Batista: “No positivismo, o delito é um ente natural (paradigma atualizado pelas neurociências e suas publicações apologéticas). O determinismo biológico se contrapõe à ideia liberal de responsabilidade moral. O importante é ‘estudar’ o autor do delito e classificá-lo, já que este aparece aqui como sintoma da sua personalidade patológica, causada pelos mesmos fatores que produzem a degenerescência. Se o liberalismo revolucionário tratava de limitar o poder punitivo absolutista, aqui a pena encontrará um caudal de razões, para expandir-se; as estratégias correcionalistas se revestirão de características curativas, reeducativas, ressocializadoras, as famigeradas ideologias “re”.” (BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 27). 35 LARRAURI, op. cit., p. 64. 36 Ibidem, p. 65. As ideias que identificam a reação social já estavam, de certa forma, rascunhadas na obra de George Mead, quando identificava a diferença entre a certeza de aplicação da lei e a necessidade de linchamento do criminoso, pela comunidade, logo após a ocorrência do delito (Cf. MEAD, George H. La psicologia de la justicia punitiva. Delito y Sociedad. Revista de Ciencias Sociales, n. 9/10, p. 17, 1997). 37 BATISTA, op. cit., p. 27. 38 LARRAURI, Elena. La herencia de la criminologia critica. 3. ed. Madrid: Siglo Veintiuno, 2000, p. 74.

180 181 que o sistema de justiça criminal jamais cometia erros, que todos os criminosos eram pessoas más, que haviam feito as coisas más de que eram acusadas”39. A Teoria do Etiquetamento teve grande popularidade ao surgir, face à insatisfação com as teorias criminológicas tradicio- nais, visto que se criticava o seu apego aos métodos empíricos quantitativos, a ordem social e a sua maneira de visar aos obje- tivos de prevenção do delito promovidos pelo governo40. Essa perspectiva deixou de perquirir a causa da criminalidade para in- dagar as suas condições41. Como consequência, uma das principais contribuições des- sas ideias foi justamente a superação do paradigma etiológico42, que ficou conhecido nas obras criminológicas como o criminological turn43. Esse giro consiste, sucintamente, em não enxergar no próprio

39 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução de Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 11. 40 Sobre finalidade da pena: SARMENTO, William Hoffmann; ÁVILA, Gustavo Noronha de; ANZILIERO, Dinéia Largo. (Re)visitando a função da pena privativa de liberdade: uma análise a partir da visão do seu destinatário. In: Anais do 2º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Pesquisadores em Sociologia do Direito. CD-ROM, 2012. 41 MOLINÉ, José Cif; PIJOAN, Elena Larrauri. Teorias criminológicas. Barcelona: Bosch, 2001, p. 199. 42 A desvinculação, como o paradigma etiológico, também se mostra no estudo da categoria denominada de carreira: “O modelo pode ser facilmente transformado para o estudo de carreiras desviantes. Ao modificá-lo dessa maneira, não deveríamos restringir nosso interesse àqueles que seguem uma carreira que os leva a desvios cada vez maiores, àqueles que, em última análise, assumem uma identidade e um modo de vida extremamente desviantes. Deveríamos considerar também os que têm um contato mais fugaz com o desvio, cujas carreiras os afasta dele, rumo a maneiras de viver convencionais. Assim, por exemplo, estudos de delinquentes que não se tornam criminosos adultos poderiam nos ensinar mais que os de delinquentes que progridem no crime”. (BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução de Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 31). 43 Neste sentido: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Sociologia e Justiça penal – Teoria e Prática da pesquisa sociocriminológica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 13; LARRAURI, op. cit., p. 28; DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Almedina, 1997, p. 49-50; CARVALHO, Salo de. Criminologia e Transdisciplinaridade. In: GAUER, Ruth M. Chittó (Org.). Sistema penal e violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

182 183 criminoso a razão de seu crime, mas, sim, passar a entender a com- plexa teia de relações que desencadeia a reação social44 ao fato. Dessa forma, a atividade das agências de punitividade de- veriam ser também objeto de atenção do pesquisador, não só elas como também as manifestações do corpo social em relação ao delito. Irá interessar a análise do etiquetamento e não, “quem é o delinquente” ou “por que ele delinquiu”45. As perguntas centrais seriam, então, as seguintes: “O quê ocorre quando alguém é identificado e definido como de- linquente?”, “Quais são os efeitos desta etiqueta para quem foi etiquetado?”46 Sua tese poderia ser assim resumida: o crime não é uma qualidade de determinada conduta, porém o resultado de

2006, p. 31; SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 287 e 361; BARATTA, Alessandro. Criminologia e Crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 49 e 86; ARAUJO, Fernanda Carolina. A teoria criminológica do Labelling Approach. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 15, n. 177, p. 8, ago. 2007; HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminologia. Valencia: Tirant lo blanch, 2001, p. 391; MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 120; CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 52; BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 27 e 65; THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 129; ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 660; CHIES, Luiz Antônio Bogo. A capitalização do tempo social na prisão: a remição no contexto das lutas de temporalização na pena privativa de liberdade. São Paulo: IBCCrim, 2008, p. 238. 44 Lola Castro, em sua obra direcionada à América Latina, também reconhece a importância das pesquisas da sociologia do desvio: “Recentemente, outas correntes criminológicas ensaiaram caminhos de aproximação diferentes: assim, a tendência denominada labelling ou rotulação, fundamentada no interacionismo simbólico, voltou-se para um aspecto do problema que permanecia oculto e que demonstrou ser determinante para a compreensão e a atuação do fenômeno: a reação social.” (CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da libertação. Tradução de Sylvia Moretzsohn. Rio de Janeiro: Revan, 2005, p. 41). 45 REGHELIN, Elisângelo Melo. Redução de danos: prevenção ou estímulo ao uso indevido de drogas injetáveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 44. 46 LARRAURI, Elena. La herencia de la criminologia critica. 3. ed. Madrid: Siglo Veintiuno, 2000, p. 29.

182 183 um processo através do qual se atribui dita qualidade, ou seja, de um processo de estigmatização47. Mas não só do delito se ocuparam os teóricos48 do Labelling Approach. A categoria do desvio é fundamental para entendê- -la. Aquela pessoa que viola uma regra socialmente aceita,

47 HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminologia. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001, p. 155. 48 Em que pese Becker não considerar o labelling approach como uma teoria (BECKER, Howard. Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 179). Suas razões são atualizadas em entrevista a Alexandre Werneck: “Tenho dito sempre que a investigação dos rótulos envolvidos na produção do chamado comportamento desviante não é uma teoria. Trata-se de uma observação empírica, a de como esse processo se dá. Aquilo que é uma teoria – nunca comprovada - e que, em minha opinião, nunca será porque simplesmente não é verdade – é a sugestão de que exista uma essência de desvio dentro das pessoas que “faz com que” elas ajam de maneira “desviante”. Se as pessoas ainda estão pesquisando o fenômeno da rotulação, então isso significa que a ideia ainda é útil. Eu mesmo usei uma variante dela para estudar artes. Aquilo que é classificado, rotulado, como arte e aquilo que é ignorado, por não ser considerado arte constituem, em grande parte, uma questão de rotulação. O que me impressionou é como poucas pessoas tinham visto essa conexão, que eu achava óbvia.” (BECKER, Howard; Entrevista a Alexandre WERNECK. Segredos e truques do pesquisador outsider. Revista Dilemas, v. 1, n. 1, jul./ago-set, p. 165-166, 2008). Alguns autores exigiam mais das descrições do Labelling: “Também precisamos dizer que a teoria do etiquetamento tampouco conseguiu dar uma resposta global ao problema da criminalidade.” (HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminologia. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001, p. 169). Também a falta de definição do que seria, especificamente, o delito é criticada: “Não expressa uma noção apriorística de delito, valorativamente neutra e objetiva, com respaldo empítico, sólida, segura, construída com abstração das definições legais e válida para a Criminologia. Pelo contrário, tem, também, uma inquestionável carga ‘valorativa’, com as inerentes doses de relativismo, circunstancialidade, subjetivismo e incerteza. Pois condutas desviadas in se (por suas qualidades objetivas) não existem. A ‘desviação’ reside propriamente nos demais, nas maiorias sociais que etiquetam um determinado autor com o estigma de desviado (nem sempre dando atenção a seus méritos objetivos). O conceito de ‘desviação’, ao apelar para as ‘expectativas sociais’ mutantes, circunstanciais, reconhece a sua própria incapacidade para formular um conceito de delito ‘ontológico’, objetivo, material. E priva o criminólogo, em consequência, de uma base segura que sirva de marco e referência metodológica para seu trabalho”. (MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 68).

184 185 afastando-se, portanto, de seu preceito, será aquela considerada pelo grupo como um outsider49. O desviante é normalmente identificado, quando a sua con- duta possa variar “excessivamente com relação à média”50. No entanto, existe outra acepção possível para esta categoria. De acordo com uma noção sociológica, relativista, pode ser conside- rado como aquele que “falha em obedecer as regras do grupo”51. Necessário observar que o desvio se distancia de uma natu- reza ontológica52, pois não existe sem a ocorrência de um pro- cesso de reação social. É essa reação social que define o ato como desviado. Assim, o delito não é um fato, contudo uma construção social, que requer uma ação e uma posterior reação social nega- tiva. O delinquente não é o que pratica crimes, entretanto aquele que recebe uma etiqueta de delinquente53. Todavia, esta reação social e a força do rótulo de outsider serão necessariamente proporcionais à aceitação da conduta em determinado grupo social. Como explica Becker:

[...] o grau em que uma pessoa é outsider, em qualquer dos dois sentidos que mencio- nei, varia caso a caso. Encaramos a pessoa que comete uma transgressão no trânsito ou bebe um pouco demais numa festa como se, afinal, não fosse muito diferente de nós e tratamos a sua infração com tolerância. Vemos o ladrão como menos semelhante a nós e o punimos severamente. Crimes

49 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução de Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 12. 50 Ibidem, p. 18. 51 Idem, p. 21. 52 ANDRADE, Verga Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 41. 53 LARRAURI, Elena. La herencia de la criminologia critica. 3. ed. Madrid: Siglo Veintiuno, 2000, p. 29-30.

184 185 como assassinato, estupro ou traição nos levam a ver o transgressor como um verda- deiro outsider54.

A reação social variará, conforme o contexto em que o ato foi produzido. Um roubo seguido de morte poderá ser definido como um ato desviado, eis que provoca uma reação social ne- gativa, da mesma forma que não haverá reação social negativa frente àquele que mata em legítima defesa55. Nos dias atuais, é bastante plausível explicarmos estes graus, de acordo com situações corriqueiras, do cotidiano. Nem sempre nos damos conta, por exemplo, que, ao realizarmos o download de um arquivo “mp3” (MPEG – Audio Layer 3) via Internet, sem que exista autorização expressa de seu titular, estamos cometendo crime contra a propriedade intelectual56. No entanto, ainda que definida legalmente, a conduta tende a ser ignorada pelo grupo social, sendo inclusive considerada como socialmente adequada por alguns julgados57.

54 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução de Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 16. 55 LARRAURI, op. cit., p. 30. 56 Nos termos de nosso Código Penal: “Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: (Redação dada pela Lei nº 10.695, de 1º.7.2003). Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. (Redação dada pela Lei nº 10.695, de 1º.7.2003)”. 57 RIO GRANDE DO SUL. Sentença proferida nos autos do processo 003/2.10.0009449- 0. Alvorada. Juiz Roberto Coutinho Borba. de Alvorada. Disponível em: < http:// www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI151184,31047-Venda+de+DVD+pirata+ nao+e+considerado+crime+de+violacao+autoral>. Acesso em: 01 ago. 2013. Refere textualmente o magistrado: “Então, carros de alto luxo dotados de equipamentos habilitados à reprodução de músicas em formato digital (“MP3”), as quais, invariavelmente, são “baixadas” de “sites” da “internet”, sem qualquer valor adimplido aos detentores dos direitos autorais, trafegam livremente pelas vias públicas. Crianças e adolescentes de classes mais abastadas, circulam com seus “Ipods”, “Ipads”, “Iphones” e aparelhos outros, ouvindo canções que foram objeto de “download” nas mesmas circunstâncias... Em festas de aniversário, de casamento ou de formatura das classes sociais economicamente privilegiadas, as “lembrancinhas” que agraciam os convidados,

186 187 A situação acima exemplifica o fato de o desvio ser simples- mente criado pela reação social. Esta ideia também foi essencial para a construção das teorias críticas posteriores (notadamente a “nova criminologia” e a “criminologia crítica” de Baratta), visto propiciar investigações para além da figura do criminoso, ou seja, de seu con- texto e, principalmente, por qual razão determinadas condutadas criminosas são aceitas pela sociedade e outras não, como explica:

Tal pressuposto parece-me ignorar o fato central acerca do desvio: ele é criado pela sociedade. Não digo isso no sentido em que é comumente compreendido, de que as causas do desvio estão localizadas na situação social do desviante ou em ‘fatores sociais’ que incitam a sua ação. Quero dizer, isto sim, que grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders. Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequên- cia da aplicação por outros de regras e san- ções a um ‘infrator’. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso;

muitas vezes, são CDs ou DVDs de mídias gravadas sem observância à legislação tuteladora dos direitos autorais. Mas contra tais pessoas, existe algum tipo de coerção estatal? Há nota da expedição de mandado de busca e apreensão a residências de pessoas que realizam gravação de mídias deste gênero, em violação ao art. 184, “caput”, do CP? Algum condutor de veículo, que tenha sido alvo de abordagem de rotina pela atividade policial, flagrado fazendo uso de mídia “pirateada”, teve seu criminalmente autuado na forma do art. 184, “caput”, do CP? Obviamente, não. Como sói acontecer neste país, boa parte da reprimenda criminal parece estar voltada às classes baixas, economicamente desassistidas. Então, aqueles que nitidamente não obtiveram colocação no mercado de trabalho formal e buscaram sustento no comércio informal, acabam suportando a ira da legislação penal simbólica e voltada, exclusivamente, à tutela de grupos econômicos específicos...”

186 187 o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal58.

Este outsider estará, na maioria das vezes, fadado ao es- tigma59 projetado pelo grupo social. Portanto, Becker trabalha uma noção mais ampla de crime do que a normalmente trazida pela dogmática penal, para além da tradicional concepção analítica. O crime é simplesmente uma sub- categoria em relação ao desvio, sendo que este pode ou não (con- forme o caso) ser objeto de reação social60. Como ensina Andrade:

Uma conduta não é criminal ‘em si’ (quali- dade negativa ou nocividade inerente) nem seu autor um criminoso por concretos traços de sua personalidade ou influências de seu meio ambiente. A criminalidade se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos, mediante um duplo processo: a ‘definição’ legal de crime, que atribui à conduta o caráter criminal, e a ‘seleção’ que etiqueta e estigmatiza um autor como criminoso entre todos aqueles que praticam tais condutas61.

58 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução de Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 21-22. 59 De acordo com Erwing Goffman: “O termo estigma, portanto, será usado em referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não, de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem horroroso nem desonroso” (GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação de identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988. p. 15). 60 SELL, Sandro César. A etiqueta do crime: considerações sobre o ‘labelling approach’. Disponível em: . Acesso em: 01 jun. 2013. 61 ANDRADE, Verga Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 41.

188 189 Daí se derivam duas categorias essenciais deste paradigma: a criminalização primária (a positivação ou não positivação62 le- gislativa de determinados comportamentos) e secundária (esta criada pelas agências de punitividade, já que nem todas as con- dutas são colhidas pelo sistema penal). A criminalização primária que não passa ao estágio seguinte produzirá o fenômeno chamado de “cifra oculta da criminali- dade”. Já as escolhas de quais condutas devem ser positivadas e quais agentes serão, a seguir, efetivamente investigados ou pro- cessados pelo Estado, dará origem ao fenômeno da seletividade penal63, que deixam a igualdade naturalizada64 (critério fun- dante do Direito moderno65) com seu nervo exposto66. Becker67 também se dedica a discutir o fenômeno que denomina “falsa acusação”. O indivíduo, falsamente acusado, é percebido pelo grupo social como desviante, ainda que seja simplesmente suspeito. A pessoa é vista pelo grupo como se tivesse realizado uma ação não aceita socialmente, mesmo não tendo a realizado. Também nos tribunais, as falsas acusações ocorrem, a des- peito de a pessoa estar protegida por regras processuais e de prova68, e ainda, “provavelmente, ocorrem com muito maior

62 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e Crítica do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 176. 63 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e Crítica do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 176. Também neste sentido: MELLIM FILHO, Oscar. Criminalização e seleção no sistema judiciário penal. São Paulo: IBCCRIM, 2010, p. 87. 64 CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Tradução de Mariluz Caso. Cidade do México: Fundo de Cultura Econômica, 1988, p. 71. 65 GAUER, Ruth M. Chittó. A fundação da norma. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009, p. 166-167. (Ebook). 66 TIMM DE SOUZA, Ricardo. O nervo exposto: por uma crítica da idéia de razão desde a racionalidade ética. In: GAUER, Ruth M. Chittó. Criminologia e Sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre: Edipucrs, 2010, p. 107-118. (Ebook). 67 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução de Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 31-32. 68 Ibidem, p. 31.

188 189 freqüência em contextos não legais, em que as salvaguardas processuais não estão disponíveis”69. Ser etiquetado como desviante produz consequências não somente quanto à imagem do indivíduo em relação à sociedade (já que ele “revelou-se um tipo de pessoa diferente do que su- postamente era” – grifo nosso)70, mas também no tocante à sua autoimagem (pois o rótulo pode produzir uma “uma profecia au- torrealizadora” - grifo nosso)71. Ainda que possa haver correção do curso do processo de criminalização judicial da conduta, muitas vezes, a mera incri- minação policial pode servir para aniquilar a vida dos suspeitos (vide o caso Escola Base72). Identificamos, ao final de nosso primeiro capítulo, alguns dos efeitos perversos da exposição

69 Idem, p. 32. 70 Idem, p. 42; Conferir também GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação de identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988, p. 51. BECKER deixa claro que a ideia de profecia autorrealizadora deve ser vista de forma relativa, eis que “é evidente que nem todos aqueles apanhados em atos desviantes e rotulados de desviantes se encaminham de modo inevitável para um desvio maior”, como já foi sugerido nas observações anteriores do pesquisador. As profecias nem sempre se confirmam, e os mecanismos nem sempre funcionam” (Ibidem, p. 46). (Reincidência). Neste sentido, também, Larrauri afirma que o indivíduo constrói o seu eu (self) com base na interação com os demais indivíduos. Ele crê em algo e atua de acordo com as suas crenças, no entanto, à medida que as respostas dos demais enfraquecem esta crença, o indivíduo tende a modificar a percepção de si mesmo (Ibidem, p. 35). Desta forma, “A crítica ao processo penal reside na sua contribuição decisiva ao processo de assunção da nova identidade criminal. Não se trata apenas de perceber que, uma vez “etiquetado” como delinquente, a sociedade não o aceita, mas também que este processo no qual, publicamente, o indivíduo é tratado como delinquente, conduz a que ele próprio assuma uma nova identidade, reordene a sua personalidade” (Ibidem, p. 36). 71 BECKER, op. cit., p. 44. Em sentido análogo trabalha GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação de identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988, p. 92. 72 Após informações de sua filha, Cibele, de que na casa de um colega da Escola Base havia fitas de conteúdo erótico e que, na escola, haviam sido tiradas fotos sem roupas das crianças, Cléa dirigiu-se até a Delegacia de Polícia. Lá registraram boletim de ocorrência, citando os casais Shimada e Alvarenga, donos da Escola Base, como promotores de orgias sexuais com crianças. O delegado que atendeu às mães encaminhou os menores para exame de corpo de delito, além de solicitar mandado de busca e apreensão.

190 191 midiática de casos criminais, a qual não ficará incólume ao etiquetamento do senso comum. As etiquetas serão muito bem fixadas em um processo no qual, sabemos, poucos passam para a fase da criminalização formal. Esta desigualdade na distribuição de rótulos coloca em xeque o mínimo de igualdade em processos que podem significar a supressão da liberdade ou, ainda, a tatuagem que prejudica por completo a reputação do indivíduo em uma sociedade. Baratta apresenta a relação entre os processos de criminali- zação descritos no labelling approach e as finalidades da pena:

Para os fins de nosso discurso sobre a relação entre a criminologia liberal contemporânea

O primeiro órgão de imprensa a ser avisado foi o jornal Diário Popular, e o jornalista responsável chegou ao local no momento em que era cumprido o mandado de busca e apreensão. Até então o que o delegado tinha colhido eram informações conflitantes: de um lado pessoas pedindo punição aos acusados; de outro, pessoas que afirmavam serem? os donos da Escola, pessoas honestas. Insatisfeitas com a condução do Inquérito, Cléa e Lúcia foram até a mídia. Procuraram a Rede Globo. Entretanto, o que gerou repercussão determinante para a divulgação do caso foi o surgimento de um “fax” do IML informando que era positivo o laudo para abuso no caso de uma das crianças. No mesmo dia, a empresa televisiva divulgou a informação, sem a oitiva dos acusados, sem grande repercussão, no entanto. Durante o feriado de Páscoa daquele ano, o aspecto emocional do fato passou a ser explorado pela imprensa. Apesar disto, as infrutíferas buscas e apreensões foram solenemente ignoradas, bem como a retificação da perícia. Novas denúncias, também incoerentes, começaram a surgir, novamente sem dar voz aos acusados. Os equívocos foram tantos que até mesmo um americano fora denunciado sem que fosse apresentado nenhum indício contra ele. O primeiro erro grosseiro foi o cumprimento de mandado de busca e apreensão na casa errada. Era o número 29 e não 93 (residência do americano). Mas a Polícia, contagiada com o clima de caça às bruxas, ignorou este detalhe. O americano teve todas as acusações arquivadas. Outro delegado, que assumiu as investigações e a condução do inquérito, tomou direção oposta. Inicialmente, requisitou a prisão temporária dos acusados, que foi concedida. Preocupado em utilizar a mídia como “trampolim” em sua carreira, anunciou em entrevista coletiva a concessão da prisão cautelar (concedida por telefone). Um novo delegado assume o caso e, ao término do Inquérito Policial, todas as acusações, uma por uma, foram desconstituídas. Por esta razão, nem sequer indiciamento houve. No entanto, o verdadeiro estrago causado pelo festival midiático foi irreversível: os acusados tiveram suas vidas roubadas. (RIBEIRO, Alex. O caso Escola Base – Os abusos da imprensa. São Paulo: Ática, 2003, p. 11-52).

190 191 e a ideologia penal, destaca-se que os resul- tados desta primeira direção de pesquisa, na criminologia inspirada no labelling appro- ach, sobre o desvio secundário e carreiras criminosas, põem em dúvida o princípio do fim ou da prevenção e, em particular, a con- cepção reeducativa da pena. Na verdade, esses resultados mostram que a intervenção do sistema penal, especialmente as penas detentivas, antes de ter um efeito reedu- cativo sobre o delinquente, determinam, na maioria dos casos, uma consolidação da identidade, desviante do condenado e o seu ingresso em uma verdadeira e própria car- reira criminosa73.

Uma das raízes da seletividade penal (uma das categorias fundantes da criminologia crítica) é justamente a (falta de) crimi- nalização secundária. Becker afirma que a explicação sobre este fenômeno irá repousar em várias premissas. Em primeiro lugar, a imposição da regra é um “empreendimento”, pois alguém (o “em- preendedor”) deve tomar a iniciativa de punir o culpado. Além disso, a imposição irá acontecer, quando aqueles que querem a regra imposta levam a situação a conhecimento do público, já que ela não pode ser mais ignorada. Finalmente, assinala-se o in- teresse particular que pode estimular a iniciativa74. Neste sentido, o castigo acaba por ser obra de empresários morais, ou seja, grupos que realizam pressão para impor a sua visão de mundo sobre os demais. Além de associações destinadas

73 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e Crítica do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 90. 74 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução de Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 130.

192 193 a controlar a moralidade ‘média’, se costuma elencar os policiais e assistentes sociais como etiquetadores frequentes75. Os empresários morais são divididos em duas categorias: os criadores de regras76 (exemplo dos legisladores) e os aplicado- res de regras (notadamente as agências de punitividade)77. Os mantenedores do sistema terão de justificar a necessidade de sua posição, o que irá gerar um duplo problema. Por um lado, deve demonstrar para os outros que a sua intervenção ainda é neces- sária; pois as regras que, supostamente deve impor, têm algum sentido, porque as infrações ocorrem. Por outro, tem de mostrar que as suas tentativas de imposição são eficazes e valem a pena e que o mal com, que ele supostamente deve lidar, está sendo de fato enfrentado adequadamente78. É a partir dessa lógica que as escolhas serão feitas. O sistema trabalhará, inevitavelmente, por amostragem. Nem todos podem ser etiquetados por absoluta incapacidade e impossibilidade de o Estado dar conta de todas as condutas desviantes. Daí a origem daquilo que se costuma chamar de “bode expiatório”79. Desde a criação desses estigmas, haverá abertura para a orien- tação seletiva nos processos de criminalização secundária. Um

75 LARRAURI, Elena. La herencia de la criminologia critica. 3. ed. Madrid: Siglo Veintiuno, 2000, p. 32. 76 Cujo protótipo é o reformador cruzado, que está interessado no conteúdo das regras, haja vista que as existentes não o satisfazem, porque existe algum problema que o perturba profundamente. Julga que nada pode estar certo no meio em que vive até que essas regras sejam adequadas. Nas palavras de Becker, “opera com uma ética absoluta: o que vê é total e verdadeiramente mal sem nenhuma qualificação. Qualquer meio é válido para extirpá-lo. O cruzado é fervoroso e probo, muitas vezes hipócrita.” (BECKER, op. cit., p. 153). 77 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução de Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 153. 78 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução de Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 162. 79 MELLIM FILHO, Oscar. Criminalização e seleção no sistema judiciário penal. São Paulo: IBCCRIM, 2010, p. 254.

192 193 esquema de cunho manifestamente bélico é fomentado, posto a ser- viço do combate aos “indesejados, aos diferentes, aos outsiders”80. Histórica e contemporaneamente existe uma (justificada) desconfiança do pensamento crítico criminológico81 em relação à utilização das categorias psi e da medicina, como forma de auxiliar no estudo de fenômenos criminais. Cremos que é necessário tam- bém realizar o chamado giro criminológico (criminological turn) em relação a estas disciplinas. Também podem aquelas ciências auxi- liar na explicação da reação social ao delito, especialmente quando elas identificam dificuldades (exemplo das falsas memórias) no to- cante à apuração e julgamento de um fato criminoso. Isso pode servir para ressaltar o caráter da dúvida processual, possivelmente evitando uma (sempre) dura aplicação de pena. Esses conhecimentos científicos podem, sim, ajudar a cons- truir fraturas, cada vez mais expostas, no cada vez mais discutí- vel sistema penal. Isto não significa, necessariamente, confiarmos cegamente em uma ciência que, originária de conhecimento hu- mano, será inexoravelmente limitada.

3.2 Os Processos de Etiquetamento e as suas Consequências: Seletividade Penal, Cifra Oculta da Criminalidade e Aprofun- damento de Desigualdades

O crime é muito mais disseminado do que sugerem as esta- tísticas oficiais. Este pensamento aponta para “a natureza endê- mica da criminalidade (universalidade) e enfatiza o viés de classe

80 MORAIS DA ROSA, Alexandre; FILHO, Sylvio Lourenço da Silveira. Para um processo penal democrático: crítica à metástase do sistema de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 11. 81 Notadamente em BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e Crítica do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011; FOUCAULT, Michel. História da loucura: na idade clássica. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.

194 195 sistemático do enfoque do sistema de justiça criminal (seletivi- dade)”. A seletividade aponta para problemas fundamentais nas ideias neoclássicas de igualdade perante a lei82. A desvinculação dos achados do paradigma do etiqueta- mento com o funcionamento do sistema socioeconômico é apon- tada por Baratta como importante omissão. Através da leitura das contrações do sistema socioeconômico, é possível transcen- der àquilo que se chama de “teorias de médio alcance”, ou seja: “que fazem do setor da realidade social examinada não só o ponto de chegada, mas também, o ponto de partida da análise”83. A visão a-histórica redunda em um “teatro de aparências”, no qual nem as condições materiais nem a luta de classes têm visibilidade. Essa despolitização não foi capaz de aprofundar a sua interpretação da questão criminal, nem de entender os meca- nismos reguladores da população criminosa, nem as relações de poder sobre as classes criminalizadas. O seu caráter formalista e universalizante acabou produzindo uma visão política deslocada da economia, do processo de acumulação de capital84. Batista refere que “no marxismo e nas pesquisas libertárias e deslegitimadoras da pena do labeling estadunidense pariram a crimi- nologia crítica”85. Denunciada pelo pensamento marxista, o pro- cesso de exclusão econômica, conforme Young, atua em três níveis: “‘exclusão econômica de mercados de trabalho, exclusão social entre pessoas na sociedade civil e nas atividades excludentes sempre cres- centes do sistema de justiça criminal e da segurança privada”86.

82 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 362. 83 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e Crítica do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 98-99. 84 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 77. 85 Ibidem, p. 84. 86 YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 11.

194 195 São objetos do escopo dessa escola criminológica os pro- cessos de criminalização, com a identificação das maiores difi- culdades teóricas e práticas das relações sociais de desigualdade próprias da sociedade capitalista87 e a finalidade de denunciar o Direito Penal como absolutamente desigual88. Um sintoma dessa desigualdade é a categoria da cifra oculta, que irá designar a “discrepância entre o número de crimes cons- tantes das estatísticas oficiais e a realidade escondida por trás dele”89. O estudo da reação social já demonstrava que, nem sem- pre, a repercussão de um crime é a mesma. Por tal razão, apenas uma reduzida minoria das violações à lei criminal chega ao co- nhecimento público. Ao abismo decorrente se dá o nome de cifra oculta, obscura ou negra da criminalidade90. Molina et al. realizam, no entanto, diferenciações entre cifra negra e zona oculta. A primeira se refere a um quociente (noção aritimética) que designa a relação entre os números de delitos efetivamente cometidos e o de delitos estatisticamente refletidos. Por outro lado, a expressão “campo negro” ou “zona obscura” compreende o âmbito ou o conjunto genérico de ações delitivas que não encontram reflexo nas estatísticas oficiais e é, portanto, um conceito muito mais ambíguo que se conforme em descrever, sem nenhuma quantificação matemática, a discordância exis- tente entre uns e outros valores91.

87 Afirma Vera Malaguti Batista que “o capitalismo só acontece a partir de um processo de apropriação do trabalho do outro. É na dominação do corpo, do trabalho vivo e do tempo do homem que o capital se expande” (BATISTA, op. cit., p. 79). 88 BARATTA, op. cit., p. 197. 89 THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 3. 90 Ibidem, p. 3. 91 MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 48.

196 197 Atribui-se a Sutherland92 uma das primeiras pesquisas sobre essas condutas que passam à margem do sistema, eis que a reação social ao chamado white-collar crime, quando do desenvolvimento de sua teoria, era extremamente tímida. Em outras palavras, aquilo que não está nas estatísticas oficiais era preenchido pela exposição maior dos que estão na base da estrutura social: os pobres93. As pesquisas sobre esta forma de criminalidade desmistifica- ram o valor das estatísticas criminais e de sua interpretação, para fins de análise da distribuição da criminalidade nos vários estratos sociais, e sobre as teorias da criminalidade relacionadas a estas in- terpretações. De fato, sendo baseadas sobre a criminalidade iden- tificada e perseguida, as estatísticas criminais, nas quais a crimi- nalidade de colarinho branco (ou os “desviantes cavalheiros”94) é representada de modo enormemente inferior à sua incalculável ‘cifra negra’, distorceram até agora as teorias da criminalidade, sugerindo um quadro falso da distribuição da criminalidade nos grupos sociais. Daí deriva uma definição corrente da criminali- dade, como um fenômeno concentrado, principalmente, nos es- tratos inferiores, e pouco representada nos estratos superiores. Portanto, está ligada a fatores pessoais e sociais, correlacionados com a pobreza, aí compreendidos95. Existem, assim, várias dimensões relativas às cifras ocultas, materializadas nas seguintes diferenças: 1) à existente entre os crimes que ocorrem na prática e não são reportados à polícia96;

92 SUTHERLAND, Edwin. “Is White-Collar Crime?”. American Sociological Review, Washington: American Sociological Association, n. 10, p. 132-139, 1945. 93 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 68. 94 GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação de identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988, p. 95. 95 BATISTA, op. cit., p. 102. Ver também: ANDRADE, Verga Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 50. 96 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 21.

196 197 2) à relativa aos crimes investigados pela polícia e que chegam ao poder judiciário; 3) aos crimes processados pelo poder judiciário e que redundam em condenação; 4) às condenações estabelecidas e às efetivamente cumpridas97. Carvalho propõe que, para fins da avaliação de eficácia do sistema penal, é necessário avaliarmos a diferença entre o nú- mero inicial (quantidade de delitos praticados) com o final (pes- soas cumprindo a pena). O número de pessoas efetivamente cumprindo a pena é bastante diminuto, ainda que os índices de aprisionamento aumentem exponencialmente, e conclui: “a efi- cácia do direito penal sempre foi meramente simbólica”98. Por um lado, há erros judiciais em relação a condenados, o que faz com que muitas vezes inocentes ingressem em prisões, e, por outro, os policiais, os promotores e os juízes não estão em condições de investigar, acusar e condenar a todos que cometem um delito99. Em um sistema assim, será necessário fazer escolhas, e estas geram consequências. Na Espanha, em pesquisa realizada pelo Centro de Investi- gações Sociológicas (CIS), os resultados foram os seguintes: a) a

97 HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminologia. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001, p. 148. Neste sentido, a colocação de Carvalho: “O trânsito em julgado das sentenças penais condenatórias não determina, automaticamente, o cumprimento de pena. A propósito, a título de exemplificação, temos hoje, no Brasil, três vezes mais mandados de prisão a serem cumpridos do que o número de pessoas encarceradas” (CARVALHO, Salo de. A política proibicionista e o agigantamento do sistema penal nas formações sociais do capitalismo pós-industrial e globalizado. In: KARAM, Maria Lúcia. Globalização, sistema penal e ameaças ao Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 120). Atualmente, estima-se que mais de 500.000,00 (quinhentos mil) mandados de prisão estejam por ser cumpridos no país. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Banco Nacional de Mandados de Prisão. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2012). 98 CARVALHO, Salo de. A política proibicionista e o agigantamento do sistema penal nas formações sociais do capitalismo pós-industrial e globalizado. In: KARAM, Maria Lúcia. Globalização, sistema penal e ameaças ao Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 121. 99 THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 10. Também: HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminologia. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001, p. 37.

198 199 criminalidade real é aproximadamente o dobro da registrada; b) a cifra oculta é diferente de delito para delito; c) a cifra oculta é maior em relação a crimes menos graves do que em relação à criminalidade mais grave; d) as condutas delitivas se realizam em vários lugares e podem ocorrer em todas as camadas sociais, sendo cometidas por qualquer pessoa; e) as possibilidades de a conduta se tornar parte de uma cifra oculta depende da classe social à que pertence o delinquente.100 Já no Brasil, pesquisas desse tipo não são frequentes, con- tudo existem alguns estudos interessantes sobre cifra oculta que valem a pena serem citados. As investigações sobre este fenô- meno dão uma dimensão bastante contundente acerca dos pro- cessos de criminalização. Shecaira afirma que a estimativa brasileira de cifra oculta é de dois casos não noticiados para cada caso apresentado aos órgãos de persecução criminal. Em algumas situações, essas cifras são ainda mais significativas, como nas situações de violência doméstica ou quando o cenário de perpetração do crime é deveras íntimo101. No Rio Grande do Sul, dados disponibilizados pela Secreta- ria de Segurança Pública, referentes ao ano de 2007, dão conta de que, do total de inquéritos de homicídios iniciados, 55% são finalizados e remetidos ao Ministério Público, e, destes, apenas 15% dão origem a uma denúncia e chegam, estão, ao Poder Judi- ciário102. Na média nacional, de acordo com dados de 2011, ape- nas 8% dos homicídios são elucidados pela polícia103.

100 CENTRO DE INVESTIGACIONES SOCIOLÓGICAS. Barómetro Enero 2003. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2012. 101 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 361. 102 ETCHITCHURY, Carlos. 1,7 milhão de crimes não investigados. Zero Hora, Porto Alegre, 27 jul. 2008. p. 38. 103 CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. A investigação de homicídios no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 01 ago 2013.

198 199 Thompson afirma que o sistema não tem o menor interesse em tentar diminuir a cifra negra, pois a polícia, os promotores, o Ju- diciário e os estabelecimentos prisionais sucumbiriam, se tivessem que lidar com todos os que, realmente, praticam infrações penais104. Refere Hassemer que uma das consequências importantes para a criminologia é já não poder se confiar em algumas teo- rias que, ao fundamentarem as suas conclusões em estatísticas carentes de realidades, desconhecem o seu objeto, desbruçando- -se sobre o vazio (a referência é clara ao paradigma positivista- -etiológico). No fundo, o que se está querendo dizer é que não existe forma de diferenciar os criminosos de quem não o é, que a criminalidade é um elemento da vida cotidiana, que os muros da prisão separam dois mundos que de fato não podem ser separados e que inexiste particularidade ou característica que diferencie os delinquentes de quem não é105. A separação é sempre artificial e cabe a pergunta de Thomp- son106: “algum de nós é capaz de assegurar jamais haver cometido sequer um único ilícito até o dia de hoje?” Ainda que não se possa (jamais) naturalizar essa diferença, a consequência material dessa pergunta expõe as vísceras do sistema penal. Está justamente na prisão e na gravidade, enquanto incide nas aspirações mais essen- ciais ao indivíduo, o nó-górdio da questão. Conforme Messuti,

Os muros da prisão separam os inocentes daqueles que não o são. Cabe então per- guntar se os que estão fora desses muros são realmente inocentes. Dando-se uma defini- ção negativa da palavra, isto é, se conside- rarmos inocentes somente aqueles que não tenham violado a lei, essa classificação seria

104 THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 16. 105 HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminologia. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001, p. 237. 106 THOMPSON, op. cit., p. 4.

200 201 admissível. Contudo, se adotarmos uma definição positiva, considerando que a ino- cência significa, sobretudo, confiança, sob dois aspectos independentes entre si: por- que o inocente confia-nos outros, mas, ao mesmo tempo, se entrega aos outros, com fé neles, resultará que as pessoas da comu- nidade de pessoas que coexistem fora dos muros da prisão tampouco são inocentes. Evidentemente, não merecem a confiança dos outros. E não é que não confiem a pos- teriori, porque estes outros tenham come- tido delitos, mas, sim, a priori, porque pre- viram que eles os cometeriam. Por isto, a pena é o símbolo da falta de inocência na comunidade de pessoas107.

O irracionalismo das teorias justificadoras da pena se desnuda diante das cifras ocultas, caso consideremos a ideia de prevenção geral positiva, ou seja, da sanção penal, como reconhecimento e fi- delidade à norma. Diante destas taxas de obscuridade, teríamos que reconhecer que as violações não conhecidas da lei penal “não pro- duziriam desorganização social, nem constituiriam a ameaça à inte- gridade e à estabilidade social, que estaria a exigir resposta penal108. Hulsman, provavelmente, foi um dos autores que levou às últimas consequências os efeitos dessas cifras, como se vê abaixo:

107 MESSUTI, Ana. O tempo como pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 32. Em sentido semelhante, afirma Ferrajoli que “é necessário reconhecer, por outro lado, que o cárcere tem sido sempre, em desacordo com seu modelo teórico e normativo, muito mais do que a privação de um tempo abstrato de liberdade. Inevitavelmente, este modelo conservou múltiplos elementos de sofrimento corporal, manifestada nas formas de vida e tratamento e diferenciadas das penas corporais antigas somente quando não se considera o tempo, mas que duram durante todo seu cumprimento” (FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Garantismo. 2. ed. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2010, p. 204). 108 KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. 2. ed. Rio de Janeiro: Luam, 1993, p. 179.

200 201 Tal descoberta constitui um ponto de par- tida extraordinariamente importante, den- tro de uma reflexão global sobre o sistema penal. Como achar normal um sistema que só intervém na vida social de maneira tão marginal, estatisticamente tão desprezí- vel? Todos os princípios ou os valores sobre os quais tal sistema se apóia (a igualdade dos cidadãos, a segurança, o direito à jus- tiça, etc...) são radicalmente deturpados, na medida em que só se aplicam àquele número ínfimo de situações que são os casos registrados. A cifra negra deixa de ser uma anomalia para se constituir na prova tangí- vel do absurdo de um sistema por natureza estranho à vida das pessoas. Os dados das ciências sociais conduzem a uma contesta- ção fundamental do sistema existente109.

As cifras ocultas e a seletividade penal irão produzir con- sequências muito semelhantes. Em verdade, as cifras ocultas apenas ressaltam o caráter seletivo de nosso sistema: apenas algumas pessoas são colhidas por ele. Isto aguçará a chamada “esquerda punitiva”110, especialmente no tocante à criminali-

109 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. 2. ed. Rio de Janeiro: LUAM, 1997, p. 66. 110 Explica Maria Lúcia Karam que: “Na história recente, o primeiro momento de interesse da esquerda pela repressão à criminalidade é marcado por reivindicações de extensão da reação punitiva a condutas tradicionalmente imunes à intervenção do sistema penal, surgindo fundamentalmente com a atuação de movimentos populares, portadores de aspirações de grupos sociais específicos, como os movimentos feministas, que, notadamente a partir dos anos 70, incluíram em suas plataformas de luta a busca de punições exemplares para autores de atos violentos contra mulheres, febre repressora que logo se estendeu aos movimentos ecológicos, igualmente reivindicastes da intervenção do sistema penal no combate aos atentados ao meio ambiente, acaba por atingir os mais amplos setores da esquerda. Distanciando-se das tendências abolicionistas e de intervenção mínima, resultado das reflexões de criminólogos críticos e penalistas progressistas, que vieram desvendar o papel do sistema penal como um dos mais poderosos instrumentos de manutenção e reprodução da dominação e

202 203 dade do colarinho branco, a clamar que exista uma igualdade no “acesso” ao sistema penal. Igualdade esta materializada na punição de crimes que geralmente passam ao largo dos proces- sos de criminalização. Enquanto isto, o sistema segue punindo. Quem? Aqueles mais vulneráveis111. A expansão punitiva verificada no Brasil, principalmente du- rante a década de 90, não atenuou estes efeitos: pelo contrário. No- tadamente, a legislação de crimes hediondos (Lei nº 8.072/09112), a partir de norma constitucional com conteúdo programático, foi uma das grandes responsáveis por agravar os efeitos de nosso sele- tivo sistema penal113. Paralelamente, a incriminação crescente de novas condutas leva a “uma oferta ilimitada de delitos”114. Como vimos anteriormente, os processos de vulnerabilidade são identificados pela criminologia crítica. O processo envolve, explica Baratta115, uma dupla seleção: primeiramente, a seleção dos bens protegidos penalmente e dos comportamentos ofensi-

da exclusão, características da formação social capitalista, aqueles amplos setores da esquerda, percebendo apenas superficialmente a concentração da atuação do sistema penal sobre os membros das classes subalternizadas, a deixar inatingidas condutas socialmente negativas das classes dominantes, não se preocuparam em entender a clara razão desta atuação desigual, ingenuamente pretendendo que os mesmos mecanismos repressores se dirigissem ao enfrentamento da chamada criminalidade dourada, mais especialmente aos abusos do poder político e do poder econômico.” (KARAM, Maria Lúcia. Esquerda punitiva. Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro: Relume Dumará, ano 1, n. 1, p. 79-80, 1996). 111 ZAFFARONI, Eugenio Raul. En torno de la questión penal. Buenos Aires: B de F, 2005, p. 229-252. 112 De acordo com Carvalho, a legislação “ampliou as hipóteses de criminalização primária e enrijeceu o modo de execução das penas. Paralelamente à criação de inúmeros novos tipos penais, houve substancial alteração na modalidade de cumprimento das sanções, sendo o resultado desta experiência a dilatação do input e o estreitamento do output do sistema, com reflexos diretos no número de pessoas processadas e presas (provisória ou definitivamente)” (CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 15). 113 Ibidem, p. 15. 114 CHRISTIE, Nils. Quantidade razoável de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 32. 115 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 160.

202 203 vos destes bens, descritos nos tipos penais; em um segundo mo- mento, a seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os que realizam infrações a normas penalmente sancionadas. Desta forma, “a criminalidade será um “bem negativo”, distribuído desi- gualmente, conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema socioeconômico e a desigualdade social entre os indivíduos”116. Segundo Bauman, “a incapacidade de participar do mercado tende a ser cada vez mais criminalizada”117. Nesta lógica, o Estado se omite em relação à vulnerabilidade e à incerteza “provenien- tes da lógica (ou ilogicidade) do mercado livre, agora redefinida como assunto privado”118. Dentro desse quadro, a criminologia crítica trabalha com as condições estruturais e funcionais que dão origem, em uma sociedade capitalista, aos fenômenos do desvio. Os interpreta de forma separada, conforme se tratem “de condutas das classes su- balternas ou condutas das classes dominantes”119. Andrade enfatiza que a seletividade do sistema penal (“maioria criminal, especialmente das classes altas, regularmente impune – minoria pobre regularmente criminalizada”), se deve, especialmente, a duas variáveis estruturais:

Em primeiro lugar, à incapacidade estrutural e de o sistema penal operacionalizar, através das agências policial e judicial, toda a pro- gramação da Lei penal, dada a magnitude da sua abrangência, pois está integralmente dedicada a administrar uma reduzidíssima porcentagem das infrações, seguramente inferior a 10%. Por outro lado, se o sistema penal concretizasse o poder criminalizante

116 Ibidem, p. 161. 117 BAUMAN, Zygmuth. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 67. 118 Ibidem, p. 67. 119 ANDRADE, Verga Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 48.

204 205 programado provocaria uma catástrofe social. Se todos os furtos, (...) todos os abor- tos, todas as defraudações, todas as falsida- des, todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças, todas as contravenções penais etc fossem concretamente criminalizados, praticamente não haveria habitante que não fosse criminalizado. E diante da absurda suposição – absolutamente indesejável – de criminalizar reiteradamente toda a popula- ção, torna-se óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a lega- lidade processual não opere em toda a sua extensão. O que significa que não adianta inflacionar o input do sistema, através da criação de novas leis porque há um limite estrutural ao nível do output120.

Pesquisando dados quanto à população carcerária gaúcha, é possível perceber alguns que podem indicar esta seletividade: dos aproximadamente 30.000 (trinta mil presos, considerando-se po- pulação carcerária masculina e feminina) em nosso Estado, apenas 81 (oitenta e um) possuem curso superior completo. Isto representa 0,27 % (zero vírgula vinte e sete por cento) do número de presos121. A construção social do crime, de acordo com Misse, atua em quatro níveis: 1) a criminalização de um curso de ação típico-ide- almente definido como ‘crime’ (através da reação moral à gene- ralidade que define tal curso de ação e o põe nos códigos, institu- cionalizando a sua sanção); 2) a criminação de um evento, pelas

120 ANDRADE, Verga Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 51. 121 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Relatório de presos no Estado do Rio Grande do Sul (dados consolidados até Dezembro/2011). Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2012.

204 205 sucessivas interpretações que encaixam um curso de ação local e singular na classificação criminalizadora; 3) a incriminação do suposto sujeito autor do evento, em virtude de testemunhos ou evidência intersubjetivamente partilhados; 4) a sujeição criminal, através da qual são selecionados preventivamente os supostos su- jeitos que irão compor um tipo social, cujo caráter é socialmente considerado ‘propenso a cometer um crime’. Atravessando todos esses níveis, a construção social do crime começa e termina com base em algum tipo de acusação social122. Desde o avanço relativo às conquistas do Labelling Ap- proach, a partir da leitura materialista, é possível relacionar os processos de criminalização às relações sociais de produção e ao processo de reprodução do capital. Ao mesmo tempo, o sistema penal acaba por ser uma instância do controle social que constitui um “continuum” da seleção e reprodução das relações desiguais de produção, conjuntamente a outras formas de controle social for- mal e informal. Disto, é possível denotar a relação estrutural que se estabelece entre o controle punitivo de uma dada sociedade e o modelo político-estatal que sustenta o processo capitalista, de forma que uma crítica ao sistema penal torna-se indissociável de uma crítica de toda a estrutura da sociedade, o que pode ser possível a partir de um dos fins da escola crítica, fomentada por Baratta, o abolicionismo123.

122 MISSE, Michel. Sobre a construção social do crime no Brasil Esboços de uma interpretação. In: ______. (Org.). Acusados e acusadores: estudos sobre ofensas, acusações e incriminações. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 14. 123 PRANDO, Camila Cardoso de Mello. Uma proposta de leitura abolicionista: onde Louk Hulsman e Alessandro Baratta se encontram. In: KOSOVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 139.

206 207 3.3 “Em Busca da Redução de Danos(?)”: Entre Minimalismos Utópicos a Abolicionis- mos Tópicos124

As alternativas ao sistema rotulacionista, seletivo e, por conseguinte, desigual, serão pensadas a partir deste ponto. Den- tre as opções comumente levantadas, estão o (reforço) das ga- rantias penais e processuais penais e, mais recentemente e com alguma força no Brasil, o abolicionismo penal. Outras possibilidades podem ser pensadas quanto aos prová- veis problemas gerados ao sistema penal (não apenas no processo), relativas às falsas memórias, as quais, geralmente, são construídas a partir de uma perspectiva de redução de danos125. Dentre elas, trabalhamos, no capítulo anterior, a entrevista cognitiva. No entanto, percebemos não ser a técnica panacéia para a complexidade dos fenômenos apresentados. Ainda assim, alguns autores trabalham no sentido da necessidade de forjarmos con- troles de forma a evitar os danos possíveis de um processo de lem- brança errônea, através da estrita observância das regras consti- tucionais derivadas de um princípio acusatório. Por outro lado, veremos, neste tópico, a necessidade de pensarmos em outras alternativas, já que, não raro, as preten- sões universalistas/universalizantes do garantismo penal esbarram em uma cultura punitivista cada vez mais exacerbada. A lógica

124 Invertemos propositadamente o gradiente da expressão de Renata Almeida da Costa (COSTA, Renata Almeida da. Abolicionismo utópico e garantismo penal tópico. Revista Justiça do Direito, v. 1, n. 16, p. 73-78, 2002.) e também encontrada em: LOPES JÚNIOR, Aury. Justiça negociada: utilitarismo processual e eficiência antigarantista. In: CARVALHO, Salo; WUNDERLICH, Alexandre (Orgs.). Diálogos sobre a justiça dialogal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 100 É a partir de Andrade que optamos pela opção de utilizarmos abolicionismo e minimalismo no plural (ANDRADE, Vera Regina. Minimalismos, abolucionismos e eficienticismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Revista Sequência, n. 52, p. 163-182, jul. 2006). 125 LOPES JÚNIOR, Aury; GESU, Cristina Carla Di. Falsas memórias e prova testemunhal no processo penal: em busca da redução de danos. Revista de Estudos Criminais, Sapucaia do Sul: Notadez, n. 25, p. 59-70, abr./jun. 2007.

206 207 por trás dessa práxis subverte a primazia constitucional através da utilização de categorias por demais subjetivas, lidas, não raro à luz de princípios (manipuláveis em sua interpretação), como o da proporcionalidade. A seguir, analisaremos o(s) abolicionismo(s) e os seus prin- cipais autores, os conceitos-chave e as práticas político-criminais, bem como as suas possíveis limitações. Ao final, realizaremos o cotejamento de ambas as inclinações com a indicação de um pos- sível (?) caminho eficaz de diminuição de falsas memórias.

3.3.1 De Minimalismos126: do Garantismo Pe- nal (Ferrajoli) ao Minimalismo de Inspiração Barattiana Em “Dos Delitos e das Penas”, Cesare Beccaria realiza uma das primeiras interpretações da punição estatal, de acordo com os ideais liberais do século XVIII. A partir de uma matriz nota- damente Iluminista, desenvolve princípios de cunho humanitário que têm como objetivo a limitação da intervenção do Estado na liberdade do indivíduo127. Essa deveria ser restringida, podendo ocorrer somente quando efetivamente necessária. Apesar da ampla leitura realizada daquela obra, os (ab)usos do Estado no exercício de seu poder punitivo seguiram especial- mente desde uma perspectiva ocidental. Vieram os regimes auto- ritários (principalmente na América Latina) e, em fins do século

126 Andrade afirma que, “entre os modelos teóricos minimalistas mais expressivos, está o do filósofo e criminólogo italiano Alessandro Baratta (de base interacionista- materialista), o do penalista e criminólogo argentino, Eugenio Raúl Zaffaroni (de base interacionista, foucaudiana e latino-americanista), e o do filósofo e penalista italiano Luigi Ferrajoli (de base liberal-iluminista)” (ANDRADE, Vera Regina. Minimalismos, abolucionismos e eficienticismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Revista Sequência, n. 52, p. 167, jul. 2006). 127 Cf. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

208 209 XX (e ainda nos dias atuais), havia a necessidade de justificar no- vamente a minimização deste “terrível poder”128 que é o punitivo. Ferrajoli nos esclarece que a ampliação do significado de “ga- rantias” (em um momento anterior utilizada para fazer referência a direitos fundamentais) se deu no terreno do direito penal. Mais concretamente, a expressão “garantismo”, no seu estrito sentido de “garantismo penal”, surgiu na cultura jurídica italiana de es- querda, na segunda metade dos anos 70, como resposta teórica à legislação e aos julgamentos de emergência que reduziram o já débil sistema de garantias processuais129. Precisamente, nesse contexto, é que surge o chamado “garan- tismo penal”, originalmente concebido de forma mais ampla desde o direito constitucional130. Considerado como um dos precursores da doutrina, Luigi Ferrajoli desenvolveu, principalmente em seu “Direito e Razão”131, obra de inspiração contratualista, mas que se

128 MONTESQUIEU, Charles de Secondat Baron de. O espírito das leis: as formas de governo, a federação, a divisão dos poderes, presidencialismo versus parlamentarismo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 172. 129 FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Garantismo. 2. ed. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2010, p. 61. 130 Nas palavras de Ferrajoli, “É formal, antes de tudo, o conceito de ‘paradigma constitucional’ ou ‘garantista’. Como já acenamos, tal paradigma equivale, sob o plano teórico, ao sistema dos limites e dos vínculos substanciais, quaisquer que sejam, impostos a todos os poderes públicos por normas de grau superior àquelas produzidas pelo seu exercício” (FERRAJOLI, Luigi. Garantismo – uma discussão sobre direito e democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 27). Este caráter também é ressaltado em: SOUZA, Alexandre Araújo. Prefácio. In: FERRAJOLI, Luigi. Garantismo – uma discussão sobre direito e democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. VII-XIII; FERRAJOLI, Luigi (Org.). STRECK, Lênio Luiz (Org.); TRINDADE, André Karam (Org.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo – um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. 131 Em principia iuris, Ferrajoli desenvolve sua teoria para além (mas incluindo) da caracterização penal. Com enfoque na teoria do direito e na democracia, realiza desenvolvimento mais detalhado dos postulados iluministas/contratualistas e sua aplicação para os dias de hoje. Ferrajoli se utiliza, além da argumentação derivada dos postulados iluministas presente em Direito e Razão, de complexas fórmulas matemáticas para tentar comprovar a força da prova e sua valoração interpretativa. (FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris – Teoría del derecho y de la democracia. Tradução de Andrés Perfecto-Ibañez. Madrid: Trotta, 2011, v. 1, p. 29; p. 320).

208 209 fazia necessária diante dos movimentos de política criminal. Seu conteúdo era a expansão punitiva das décadas de 80 e 90, que, tanto na Itália quanto na Espanha, ameaçavam os princípios de um direito penal da ilustração que não havia chegado a desenvolver- -se completamente e que, portanto, podia ser usado mais por suas promessas do que propriamente por suas realizações132. A epistemologia garantista é um produto predominante- mente moderno. Os princípios sobre os quais se fundam o garan- tismo clássico – a estrita liberdade, a materialidade e a lesividade dos delitos, a responsabilidade pessoal, o juízo oral e o contradi- tório, a presunção de inocência – em grande parte, são o fruto de uma tradição jurídica iluminista e liberal133. É possível dizer, então, que, dentre os principais objetivos da doutrina, estão o máximo grau de racionalidade e a confia- bilidade do juízo e, para tanto, a limitação do poder punitivo e a tutela da pessoa contra arbitrariedades, que não se realizou no passado e nunca se realizará plenamente134. A relevância contemporânea da Teoria do Garantismo Penal é afirmada por Wunderlich e Oliveira no seguinte sentido:

A teoria garantista – que não está isenta de críticas, pois não é, e nem há de ser uma teo- ria absolutamente perfeita – pode contribuir e cumprir o seu papel na (re)afirmação dos direitos fundamentais no palco do processo penal. Até mesmo diante do atual estágio civilizatório, no novo ideário da globaliza- ção, como fenomenologia, política, cultural com repercussão (também) na esfera jurí- dica, a proposta garantista pode servir como

132 ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 726. 133 FERRAJOLI, op. cit., p. 33. 134 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2009, p. 34-38.

210 211 técnica para a reconstrução e regulação social. Para tanto, a teoria garantista deve ser contextualizada, deve ser inserida na história, e a historicidade se manifesta por ela ser (ainda) uma exigência das condições sociais e culturais desta época135.

De acordo com Ferrajoli, devemos falar, ao invés da impo- sição de um dos modelos (garantismo e autoritarismo), em graus de garantismo dos sistemas penais que serão medidos pelo grau de decisionismo136 quanto à verdade processual, vinculada ao de- vido processo penal. Na realidade, colocadas que as condições de decidibilidade não só constituem critérios de decisão da verdade processual, são também condições e critérios jurídico-normati- vos, dependendo da estrutura legal do ordenamento penal e pro- cessual permita, predominantemente, a cognição ou, de forma predominante, à disposição137. Os graus serão considerados mais fortes quanto mais esti- verem presentes os axiomas do chamado “sistema garantista”. Esses axiomas (e os seus princípios limitadores correlatos seriam os que seguem): A1) Nulla poena sine crimine (princípio da re- tributividade ou da sucessividade da pena face ao delito); A2) Nullum crimen sine lege (princípio da legalidade); A3) Nulla lex

135 WUNDERLICH, Alexandre; OLIVEIRA, Rodrigo Moraes de. Resistência, prática de transformação social e limitação do poder punitivo a partir do sistema de garantias: pela (re)afirmação do garantismo penal na contemporaneidade. In: WUNDERLICH, Alexandre (Coord.). Política criminal contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 65. Neste sentido, também, CARVALHO que afirma ser o garantismo “interessante mecanismo de fomento à minimização dos poderes punitivos” (CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 122). 136 Este decisionismo consiste na “falta de elementos precisos e conseguinte subjetividade das pressupostas do apenamento e as aproximações essencialistas nas técnicas de prevenção e defesa social. Esta subjetividade se manifesta em duas direções: por um lado, o caráter subjetivo da questão processual consistente mais em fatos determinados ou em qualidades pessoais” (FERRAJOLI, op. cit., p. 43). 137 Ibidem, p. 69-70.

210 211 (poenalis) sine necessitate (princípio da necessidade ou da econo- mia do direito penal); A4) Nulla necessitas sine iniuria (princípio da lesividade ou da ofensividade da ação); A5) Nulla iniuria sine actione (princípio da materialidade ou da exterioridade da ação); A6) Nulla actio sine culpa (princípio da culpabilidade ou da res- ponsabilidade pessoal); A7) Nulla culpa sine iudicio (princípio da jurisdicionalidade); A8) Nullum iudicium sine accusatione (princí- pio acusatório ou da separação entre juiz e acusação) ; A9) Nulla accusatio sine probatione (princípio da carga da prova ou da verifi- cação); A10) Nulla probatio sine defensione (princípio do contra- ditório, ou da defesa, ou da refutação)138. Tais critérios/princípios definidores são de concepção nota- damente minimalista de direito penal. Existe, portanto, uma re- lação não só entre o direito penal mínimo e o garantismo, como também, entre o direito penal Mínimo, efetividade e legitimação do sistema penal. Somente um direito penal concebido estrita- mente para tutelar os bens primíarios e os direitos fundamentais pode assegurar, junto com as demais garantias penais, também a eficácia da jurisdição frente às formas cada vez mais poderosas e ameaçadoras da criminalidade organizada139. “Garantismo” e “direito penal Mínimo”140 são, assim, termos sinônimos que de- signam um modelo teórico e normativo de direito penal capaz

138 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2009, p. 93. Os axiomas são novamente mencionados em na obra mais recente do autor: FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris – Teoría del derecho y de la democracia. Vol. 2. Tradução de Andrés Perfecto-Ibañez. Madrid: Trotta, 2011, p. 351. 139 FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Garantismo. 2. ed. Madrid: Trotta, 2010, p. 69. 140 Em Principia Iuris Ferrajoli segue trabalhando neste sentido: “Entendo o direito penal mínimo, de acordo com a máxima de Beccaria de que a pena deve ser a mínima possível de acordo com as circunstâncias, e materializado em dois aspectos: um paradigma metateórico de justificação do direito penal e um paradigma teórico e normativo do direito penal” (FERRAJOLI, op. cit., 2011, v. 2, p. 348). Ainda, deixa mais claro que, efetivamente, seu minimalismo possui tom justificacionista, como é possível ver: “Como paradigma metateórico, ‘direito penal mínimo’ designa uma doutrina que justifica o direito penal se e somente se é possível a realização dos fins enunciados, ou seja, não apenas a prevenção ou ao menos também a prevenção e a minimização dos castigos

212 213 de minimizar a violência da intervenção punitiva – tanto na pre- visão legal dos delitos como na sua comprovação ao longo do processo penal – submetendo-a a estritos limites impostos para tutelar os direitos do indivíduo141. A definição dos chamados “graus” serve justamente para evi- tar a vinculação a um sistema estritamente positivista. Carvalho afirma que a concepção “paleopositivista”, crente de sistemas ju- rídicos avançados processualmente e harmônicos, constitui uma falácia142. Portanto, Ferrajoli é consciente do problema do garan- tismo: elaborar tais técnicas em plano teórico, fazê-las vinculantes no plano normativo e assegurar sua efeitividade no plano prático143. Ferrajoli define, ainda, três asspeções de garantismo penal. A primeira irá designar modelo normativo de Direito: precisa- mente, no que diz respeito ao Direito Penal, o modelo da “es- trita legalidade” do sistema garantista (SG), próprio do Estado de Direito que: no plano epistemológico, se caracteriza como um sistema cognoscitivo ou de poder mínimo; no plano político, atua como uma técnica de tutela, capaz de minimizar a violência e de maximizar a liberdade; e, no plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos pelo poder punitivo do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. Em consequência, é “garantista” todo

arbitrários; resumindo, se e somente se é um instrumento de minimização da violência e da arbitrariedade que ocorreriam caso ele não existisse”. (Ibidem, p. 348). 141 FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris – Teoría del derecho y de la democracia. Tradução de Andrés Perfecto-Ibañez. Madrid: Trotta, 2011, v. 2, p. 193). 142 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 123. 143 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2009, p. 70. Conforme Carvalho, “desde o modelo garantista, portanto, seria imprescindível não apenas a existência de sistema jurídico que enuncie direitos, dotando-os de mecanismos processuais satisfatórios direcionados à possibilidade de sua efetiva satisfação (acesso aos direitos), mas igualmente de estrutura de poder razoavelmente sensível às demandas que reconheça e não obstrua espaços sociais de resistência” (CARVALHO, op. cit., p. 123).

212 213 sistema penal que se ajusta normativamente a tal modelo e o sa- tisfaz de maneira efetiva144. Ao tratar-se de um modelo limite, será preciso falar, mais do que de sistemas garantistas ou antigarantistas, mas, de graus de garantismos e, ademais, teremos que distinguir sempre entre o modelo constitucional e o funcionamento efetivo do sistema. Assim, Ferrajoli afirma que o grau de garantismo do sistema penal italiano é decididamente alto, se se atender aos seus princípios constitucionais, entretanto terá descido a níveis baixíssimos, se levarmos em consideração as suas práticas efetivas, possivel- mente como no Brasil. E mediremos a bondade de um sistema constitucional, sobretudo, pelos mecanismos de invalidação e re- paração idôneos, em termos gerais, para assegurar efetividade aos direitos normalmente proclamados: uma Constituição pode ser avançadíssima por seus princípios e os direitos que tutela e, sem dúvida, não passar de um pedaço de papel, caso careça de técni- cas coercitivas – ou seja, de garantias – que permitam o controle e a neutralização do poder e do direito ilegítimo145. Em uma segunda acepção, o “garantismo” designa uma teo- ria jurídica da “validade” e da “efetividade” de categorias distintas e não somente entre si, como também, da “existência” ou “vigên- cias” das normas. Neste sentido, a palavra “garantismo” expressa uma aproximação teórica que mantém separados o “ser” do “de- ver-ser” no Direito e, inclusive, propõe, como questão teórica central, a divergência existente nos ordenamentos complexos entre modelos normativos (tendenciosamente garantistas) e prá- ticas operativas (tendencialmente antigarantista), interpretando- -a mediante a antinomia – dentro de certos limites fisiológica e fora deles “patológica” – que subsiste entre validez (e inefetivi- dade) dos primeiros e efetividade (e invalidade) das segundas146.

144 FERRAJOLI, op. cit., 2011, v. 2, p. 852. 145 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2009, p. 852. 146 Ibidem, p. 852.

214 215 Finalmente, ainda, garantismo designa uma filosofia política que impõe ao Direito e ao Estado o ônus da justificação externa, conforme aos bens e aos interesses, cuja tutela e garantia consti- tui precisamente a finalidade de ambos. Neste último sentido, o garantismo pressupõe a doutrina laica de separação entre direito e moral, entre validade de justiça, entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na valoração do ordenamento, isto é, entre “ser” e “dever-ser” do Direito. E equivale à assunção de um ponto de vista únicamente externo, aos fins da legitimação e des- legitimação ético-política do Direito e do Estado147. Admitindo que o Direito Penal precisa ser reduzido, e os efeitos danosos do cárcere, imediatamente minimizados, Ferra- joli formula algumas propostas de cunho político-criminal. A pri- meira delas é pela limitação do tempo máximo de reclusão em 10 anos148. Em suas palavras:

O cárcere é, portanto, uma instituição ao mesmo tempo antiliberal, desigual, atí- pica, extra-legal e extra-judicial ao menos em parte, lesiva à dignidade das pessoas, penosa e inútilmente aflictiva. Por isso, resulta tão justificada a superação ou, ao menos, uma drástica redução da duração149.

147 Idem, p. 853. 148 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2009, p. 414-416. 149 Ibidem, p. 413. A questão carcerária também é trazida em Principia Iuris: “Ante a gravidade da atual crise, compromete de maneira radical a legitimidade do direito e da jurisdição penal, a meu juízo, a única resposta racional é a refundação do sistema punitivo em seu conjunto, dirigida a restaurar sua eficiência e garantias de acordo com o modelo normativo que tem se chamado de direito penal mínimo. Um programa reformador semelhante deveria orientar-se a restaurar o papel do direito penal como instrumento danoso, somente utilizável como extrema ratio e dirigido à minimização da violência tanto dos delitos como das penas e a tutela dos bens e dos direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos. Orientado, pois, de um lado, a uma drástica despenalização e radical descarcerização do sistema penal; de outro, a procurar seu retorno à função de defesa frente às ofensas mais graves a tais bens e direitos. Se trata de um programa diametralmente oposto às políticas predominantes hoje que,

214 215 Além disso, o fenômeno do “decisionismo judicial”, que desvincula o magistrado de critérios claros e racionais no mo- mento de julgar, deveria ser a justificativa para a abolição da pri- são preventiva, apesar das dificuldades inerentes reconhecidas pelo autor150. Ainda, a imposição de penas de cunho pecuniário deveriam ser absolutamente afastadas, não apenas por violarem o caráter subsidiário do Direito, como também poderem permitir desigualdades na tutela protetiva da liberdade151. De acordo com Ferrajoli, seria possível hoje realizar um salto civilizatório e retirar a pena de reclusão do seu papel central e, se não a abolirmos, ao menos reduzir drasticamente a sua duração e transformá-la em sanção excepcional, limitada a ofensas mais gra- ves contra direitos fundamentais (como a vida, a integridade pes- soal e similares), as únicas que justificariam a privação da liberdade pessoal, que também é um direito fundamental garantido152.

como se viu, tem provocado a dupla expansão patológica da demanda inflacionária da legislação penal e do uso crescente do cárcere em relação à pobreza. E cabe delineá- lo, de forma sumária, com três ordens de indicações, relativas aos três momentos naqueles que se articula a intervenção penal, ou seja, o delito, a pena e o processo”. (FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris – Teoría del derecho y de la democracia. Tradução de Andrés Perfecto-Ibañez. Madrid: Trotta, 2011, v. 2, p. 366; 368). 150 FERRAJOLI, op. cit., 2009, p. 560. 151 Ibidem, p. 416-417. O autor ressalta a necessária relação de complementariedade entre garantismo penal e social, no seguinte sentido: “Novamente se revela, no terreno do direito penal, a complementariedade e a convergência já assinalada entre garantismo liberal e garantismo social; entre garantias dos direitos de imunidade – à segurança dos potenciais prejudicados pelos delitos e ao justo processo dos potencialmente criminalizados – e garantias dos direitos sociais, entre segurança penal e segurança social. Precisamente, a causa principal da ‘delinquencia por necessidade’ está na ausência de garantias sociais de emprego e de subsistência. Por isso a prevenção deste tipo de delinquencia requer políticas sociais ao invés de políticas penais, políticas de inclusão ao invés de exclusão. Exige o desenvolvimento de efetivas garantias de trabalho, educação, a previsão social e, mas genericamente, uma política dirigida a ‘destruir’ o que Marx camou de ‘raízes antisociais do crime’ e a ‘dar a cada um o lastro social necessário para exteriorizar de um modo digno a sua vida’. Uma política social capaz de tratar dos ‘antisociais lugares de nascimento do delito’ é também a política penal mais eficaz em matéria de segurança”. (FERRAJOLI, op. cit., 2011, p. 365). 152 FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Garantismo. 2. ed. Madrid: Trotta, 2010, p. 203.

216 217 Por último, em recente palestra realizada no Uruguai, Fer- rajoli153 defendeu a legalização das drogas, face ao retumbante fracasso do Estado na tentativa de realizar o seu controle. Impor- tante ressaltar que tal medida representaria, ao menos em nosso país, forte impacto carcerário, eis que se estima em 23% o número total de presos no Brasil, reclusos por tráfico de drogas154.

153 GOMES, Luiz Flávio. Criminalidade organizada e Democracia, por Luigi Ferrajoli. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2013. Para Ferrajoli, um processo de minimização do direito penal teria de levar em consideração as seguintes condutas delitivas a serem despenalizadas: “(...) desde os vários delitos de bagatela que demandam os tribunais, até todas as condutas apenadas com sanções pecuniárias. A não ser que entendamos que, por sua gravidade, teriam que ser castigados com mais severidade como delitos, o próprio fato do apenamento pecuniário sugere pouca relevância do bem protegido e não é admissível que um bem digno de tutela penal possa ser monetarizado. Assim, então, deveriam ser reformadas as leis, criminógenas, que levam a droga ao mercado criminal, e fazer-lo em sentido de legalizar e controlar sua produção e distribuição, limitando a repressão penal unicamente ao tráfico das drogas mais nocivas. Deveriam converter-se em perseguíveis somente mediante queixa parte dos delitos como furto, os lesivos a direitos patrimoniais e, portanto, disponíveis.” Cita, ainda, bens jurídicos que deveriam continuar a ser protegidos pelo direito penal como: vida, integridade física, liberdade, os bens públicos e comuns, o correto exercício das funções públicas (FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris – Teoría del derecho y de la democracia. Tradução de Andrés Perfecto-Ibañez. Madrid: Trotta, 2011, v. 2, p. 367). Propõe, ainda, a reserva de código, estratégia direcionada também a reduzir o aparato penal nos seguintes termos: “A única reforma capaz de realizar efetiva a fronteira e separação entre o poder dos juízes e dos demais poderes públicos é, pois, uma refundação da legalidade penal direcionada a reduzir a excessiva discricionaridade daqueles e garantir o máximo possível, com o caráter cognoscitivo da jurisdição, sua principal fonte de legitimação. Este objetivo é tanto mais essencial tendo em vista a ampliação e a relevância política que tem assumido o papel e os espaços da atividade judicial, mas para consegui-lo, ainda sendo necessárias, não bastam as reformas já indicadas. É necessário uma reforma mais radical que incida sobre as normas formais de produção das leis penais. A meu juízo, esta reforma deveria constituir em um reforço do princípio da legalidade em matéria penal, que substitua a simples reserva de lei por uma reserva de código, entendendo por este um princípio, dotado de lastro constitucional, de que em matéria de delitos, penas e processos penais não é possível introduzir nenhuma norma que não seja através da modificação ou integraçao dos códigos penais ou processual, aprovada mediante um processo legislativo mais rigoroso” (Ibidem, p. 375-376). 154 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Relatório de população carcerária. Disponível em:

216 217 Ainda assim, Ferrajoli segue admitindo a possibilidade de jus- tificação racional da pena. O “princípio da paz” seria o justificador de todo o direito penal, no seguinte sentido trabalha sua necessi- dade: “para alcançar a exclusão da força e, portanto, da violência, a não ser quando o uso dessa força esteja juridicamente previsto e regulado como alternativa a maior violência que se produziria se não existisse.155” Será considerada enquanto violação da paz:

(...) obviamente, a guerra, como será da mesma forma a utilização de violência na prática de crimes, em definitivo, estará vio- lada quando houver punição arbitrária do inocente. Aqui está o ponto de interdepen- dência entre a paz e o modelo garantista do direito penal mínimo, estatal e internacio- nal, que chamo de paradigma precisamente porque garante a minimização da violência na sociedade – tanto a violência das agres- sões como a violência das reações informais frente as mesmas – são unívocos e o mesmo que o paradigma da paz.

Assim, constitui a única alternativa à guerra e à violência em geral do mais forte. O principio possui uma dupla dimensão, tem repercussão em um sentido negativo (como expectativa do não uso da força) e por aquilo que afirma (enquanto expecta- tiva de um uso regulado da força como san- ção a um ilícito): porque também a impu- nidade da violência arbitrária, por ausência ou violação da expectativa de sanção ou,

CD8065}&ServiceInstUID={4AB01622-7C49-420B-9F76-15A4137F1CCD}>. Acesso em: 15 abr. 2012. 155 FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris – Teoría del derecho y de la democracia. Tradução de Andrés Perfecto-Ibañez. Madrid: Trotta, 2011, v. 1, p. 838.

218 219 pior ainda, a punição do inocente indicam não só a violência injustificada como a que- bra do direito e o regresso à lei do mais forte e à lógica selvagem da guerra156.

A refundação do sistema penal (e da pena por via de con- sequência), em Ferrajoli, está assentada nas seguintes premissas:

Ante a gravidade da atual crise, compro- mete de maneira radical a legitimidade do direito e da jurisdição penal, a meu juízo, a única resposta racional é a refundação do sistema punitivo em seu conjunto, dirigida a restaurar sua eficiência e garantias de acordo com o modelo normativo que tem se chamado de direito penal mínimo. Um programa reformador semelhante deveria orientar-se a restaurar o papel do direito penal como instrumento danoso, somente utilizável como extrema ratio e dirigido à minimização da violência tanto dos deli- tos como das penas e a tutela dos bens e dos direitos fundamentais constitucional- mente estabelecidos. Orientado, pois, de um lado, a uma drástica despenalização e radical descarcerização do sistema penal; de outro, a procurar seu retorno à função de defesa frente às ofensas mais graves a tais bens e direitos. Se trata de um programa

156 Ibidem, p. 838. No segundo volume de Principia Iuris, Ferrajoli deixa claro que o direito penal é a única alternativa à guerra, vejamos: “O direito penal resulta assim definido e justificado como alternativa à guerra, ou seja, como minimização da violência e da arbitrariedade, tanto das ofensas constitutivas do delito, como das reações informais e excessivas que se produziriam diante da falta desta previsão. Para impedir que os cidadãos recorressem à violência. Por isso defino o direito penal mínimo como a lei do mais débil, frente a lei do mais forte que reagiria em sua ausência; a que garanta ao sujeito mais fraco, que no momento do delito é a parte ofendida, e no momento do processo é o acusado, e no momento da execução penal é o preso”. (Ibidem, p. 348).

218 219 diametralmente oposto às políticas predo- minantes hoje que, como se viu, tem pro- vocado a dupla expansão patológica da demanda inflacionária da legislação penal e do uso crescente do cárcere em relação à pobreza. E cabe delineá-lo, de forma sumá- ria, com três ordens de indicações, relativas aos três momentos naqueles que se articula a intervenção penal, ou seja, o delito, a pena e o processo.

(...)

Por este motivo um programa de direito penal mínimo deveria procurar a restaura- ção da certeza da pena, eliminando a atual divergência entre pena legal, pena imposta e pena cumprida, com a redução da pri- meira para a segunda até a terceira157.

Por outro lado, para criminólogos, como Batista, as teses de- fendidas pelo minimalismo garantista são simplesmente critérios a serviço da (re)legitimação do poder punitivo158. O cumprimento de quesitos específicos ainda não excluiria o maior problema apontado pelos críticos de Ferrajoli quanto ao sistema punitivo: a inflição inútil de dor. Mesmo que o autor teça duras críticas ao cárcere, como tecnologia moderna de privação de dignidade, ele ainda con- sidera que uma possível abolição da pena privativa de liberdade não pode significar o afastamento do sistema penal como um todo:

admitindo que, algum dia, em uma hipoté- tica e improvável sociedade perfeita, deixe

157 FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris – Teoría del derecho y de la democracia. Tradução de Andrés Perfecto-Ibañez. Madrid: Trotta, 2011, v. 2, p. 366-368. 158 MALAGUTI BATISTA, Vera. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 110.

220 221 de ter sentido os delitos e as vinganças, a pena deverá ser preservada, como medida sancionadora mínima e exclusiva, para o único caso de que o delito provocar alguma reação de caráter aflictivo159.

Christie ressalta as qualidades, mas também aponta as limi- tações das teorias consideradas como “neoclássicas”:

[...] estas ideologias levam a um favorável efeito clarificante: provaram ser necessário o despertar da consciência. A simplicidade e a rigidez do neoclassicismo também faci- lita o entendimento do assunto: quando a culpa, a reincidência e as circunstâncias agravantes e atenuantes foram quantifi- cadas, o resto é simplesmente aritmética. Também mostra que um sistema desse tipo não é aceitável como base do sistema de controle da delinqüência160.

Para Baratta, entretanto, a questão prisional e a possibili- dade de sua derrocada têm significado um tanto quanto diferente dos propostos por Ferrajoli, conforme é possível depreendermos da passagem abaixo:

Uma análise realista e radical das funções efetivamente exercidas pelo cárcere, isto é, uma análise do gênero daquela aqui suma- riamente traçada, a consciência do fracasso histórica desta instituição para os fins de controle da criminalidade e de reinserção do desviante na sociedade, do influxo não só

159 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2009, p. 413. 160 CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Tradução de Mariluz Caso. Cidade do México: Fundo de Cultura Econômica, 1988, p. 58 e 70.

220 221 no processo de marginalização de indivíduos isolados, mas também, no esmagamento de setores marginais da classe operária, não pode deixar de levar a uma conseqüência radical na individualização do objetivo final da estratégia alternativa: este objetivo é a abolição da instituição carcerária161.

Assim se considera que Ferrajoli: “duelava com as amplia- ções do poder punitivo e com a teoria crítica. Sua obra não pro- duziu uma teoria deslegitimante da pena. Seu garantismo critica a expansão, mas justifica o sistema penal”162. Para Batista, o minimalismo apresentado por Baratta, ao tomar o sistema economicosocial como ponto de partida, é capaz de produzir efeitos mais amplos e concretos no sólido punitivismo

161 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e Crítica do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 203. Neste sentido também trabalha Cirino dos Santos, defendendo a radical descarcerização e abandono de práticas consideradas degradantes como é o caso do Regime Disciplinar Diferenciado (CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia crítica e a reforma da legislação penal. Disponível: em: . Acesso em: 01 ago. 2013. Em recente entrevista, o autor, ao ser perguntado de como deveria ser direcionada a reforma vindoura de nosso Código Penal, responde: “ Em primeiro lugar se os criminólogos e penalistas da comissão de juristas tivessem uma visão avançada e progressista o novo Código não teria esse caráter repressivo e punitivo e nano teria essa quantidade de artigos. Deveria ser um Código Penal reduzido à proteção de bens jurídicos individuais. Os bens jurídicos do Estado e da comunidade (que deveriam fazer parte do direito administrativo e cível) não fariam parte deste estatuto repressivo. E como a pena é o instrumento mais inadequado para combater a criminalidade as penas não teriam essa extensão, seriam bem menores. O Direito Penal ainda tem um papel a cumprir nesses crimes que lesionam os direitos humanos fundamentais como o direito à vida, à integridade, à sexualidade. Essa seria a nossa concepção.” (OGAWA, Vítor. “Somos o país que mais pune no mundo”. Entrevista de Juarez Cirino dos Santos. Jornal Folha de Londrina, 15 jul. 2012. p. 3. 162 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 27.

222 223 contemporâneo163. Da criminologia crítica partia, então, a crítica ao garantismo pelo abandono da sociologia164. Nos anos 1980, Baratta escreveu clássico artigo, utilizando- -se do denominador ‘minimalismo’. Em “Os princípios do direito penal mínimo”, eram trazidos uma série de princípios relativos a critérios políticos e metodológicos para a descriminalização e a construção dos conflitos e dos problemas sociais de uma forma alternativa à que o sistema penal atual oferece165. Baratta classificaria esses princípios em “intra” e “extra- -sistemáticos”. Os do interior do sistema serviam para limitar a potencialidade lesiva do poder punitivo existente e dividiam-se em: princípios de limitação formal, princípios de limitação fun- cional e princípios de limitação pessoal ou de limitação da res- ponsabilidade penal. Com isso, ele reatribuía um importante papel à dogmática penal, que é afetada pelos princípios de “res- posta não contingente”, de “proporcionalidade’, de “identidade”, de “subsidiariedade” e de “implementabilidade administrativa da lei”. Todos eles representarão um limite para a aplicação de leis punitivas e também para a criação de novas figuras típicas. Os princípios externos têm a ver com a decisão política. Daí surge tanto a descriminalização necessária, que conduz a um direito penal mínimo e limitado, quanto a um chamado à “imaginação sociológica e política”, para satisfazer os direitos humanos, sem apelar à cultura do penal. Era feita referência a esse ponto rela- tivo à criminologia crítica como a da contração e superação do direito penal. Os princípios extra-sistemáticos são divididos entre os princípios de descriminalização e os de construção alternativa dos conflitos e problemas sociais”166.

163 Ibidem, p. 27. 164 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 724. 165 BARATTA, Alessandro. Os princípios de direito penal minimo de Baratta. Revista Doxa, v. 5, p. 284, 1988. 166 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 728.

222 223 A máxima contração do sistema penal tinha como limite a sua própria superação, já que existe uma compatibilidade desse paradigma com uma lógica “cada vez mais capilar e totalizadora de controle do desvio, através de instrumentos administrados por uma autoridade superior e distante das classes sobre as quais, so- bretudo, este aparato repressivo exerceu sua ação”167. Importante referir que a superação do direito penal não seria confundida com a superação do Direito que regula o seu exercício. Baratta considera muito perigoso para a democracia abrir mão de garantias em troca de algo que é incerto. Citando Gustav Radburch, lembra-se de que “não precisamos de um direito penal melhor, mas algo melhor que o direito penal”168. Isso somente irá ocorrer, quando houver a substituição de nossa sociedade por uma sociedade melhor, mas não é possível desconsiderar que uma política criminal alternativa e a luta ide- ológica e cultural que a acompanha devem desenvolver-se com vistas “à transição para uma sociedade que não tenha necessi- dade do direito penal burguês”, inclusive com o desenvolvimento de formas alternativas de autogestão da sociedade, também no campo do controle do desvio169. Porém, Baratta não nega a importância de regras limitadoras do poder punitivo:

Embora a intervenção punitiva no forneci- mento de sofrimento é a condição real, sem que seja o propósito declarado, o caminho que intervém de justiça penal em conflitos, como interpretar e transcrever artificiais esses conflitos, que a sua própria instituição, é ineliminável e deve ser mantida.

167 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e Crítica do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 205. 168 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e Crítica do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 207. 169 Ibidem, p. 208.

224 225 Isolar uma ação voluntária do macrocosmo contexto social e situacional e microcosmo da continuidade da equipe para se concen- trar em sua determinação judicial da quanti- dade de sofrimento que devem ser prestados a uma pessoa, operação imprópria para uma interpretação científica da realidade do con- flito, mas ainda é uma técnica indispensável para limitar a responsabilidade criminal170.

Apesar de também confiar em princípios de direito penal mínimo171, a Teoria Crítica, apresentada por Baratta, apresenta uma perspectiva muito mais otimista do futuro do que a de Fer- rajoli. O autor não considera possível a substituição do Estado como mediador de conflitos de cunho penal, isto porque have- ria uma “anarquia punitiva, com respostas estatais ou sociais sel- vagens, diante de um fato reputado improvável, ou à existência de uma sociedade disciplinar na qual o cometimento desses fatos morais seria faticamente impossível devido à existência de uma vigilância social ou estatal total”172. Ferrajoli confiava no papel “civilizador” do sistema penal, inspirando-se em Hobbes, para justificar o temor de um retrocesso ao “estado de natureza”173. A Teoria Minimalista de Ferrajoli deriva de sua proposta político-criminal de, em curto prazo, reduzir o sistema penal174. No entanto, como não é difícil de notar, esta tendência original dificilmente tem-se revelado na prática.

170 BARATTA, Alessandro. La vida y el laboratorio del derecho. A propósito de la imputación de responsabilidad en el proceso penal. Revista Doxa, v. 5, p. 284, 1988. 171 BARATTA, Alessandro. Os princípios de direito penal minimo de Baratta. Revista Doxa, v. 5, p. 284, 1988. 172 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 731. 173 Ibidem, p. 732. 174 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 363.

224 225 3.3.2 Dos Abolicionismos: Contribuições para a Discussão sobre a (I)Legitimidade do Sistema Penal Contemporâneo Desde uma perspectiva abolicionista, passaremos a explorar algumas das mazelas do sistema penal atual e as alternativas para esses problemas. Sendo assim, iremos discutir as origens dessa “escola”, os seus principais teóricos (Christie175, Mathiesen176 e Hulsman177) e as suas contribuições, além das possibilidades da utilização dessa ótica no Brasil e América Latina (mais notada- mente, com Zaffaroni178). Vimos que, entre os criminólogos críticos (especialmente Ba- ratta), é comum apontar o maior uso da prisão, como um reflexo de que algo funciona mal em nossas sociedades. Para os representan- tes dessa corrente, é fundamental investigar as causas do aumento do uso desse expediente179. Por isso, o problema dos entorpecentes é tão recorrente entre os autores identificados com aquelas teo-

175 Especialmente em: CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Tradução de Mariluz Caso. Cidade do México: Fundo de Cultura Econômica, 1988; CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito – La nueva forma del Holocausto? Buenos Aires: Del Puero, 1993; e CHRISTIE, Nils. Uma quantidade razoável de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2011. 176 Principalmente em: HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. 3. ed. Rio de Janeiro: LUAM, 1999; HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. A aposta por uma teoria da aboliçao do sistema penal. Revista Verve, n. 8, p. 246-275, 2005; e HULSMAN, Louk. Pensar en clave abolicionista. In: KOSVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012. 177 Trabalharemos as idéias centrais dos textos seguintes: MATHIESEN, Thomas. Juício a la prisión. Tradução de Mario Coriolano y Amanda Zamuner. Buenos Aires: Ediar, 2003; MATHIESEN, Thomas. A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?. Revista Verve, n. 4, p. 82, 2003; e MATHIESEN, Thomas. Diez razones para no construir más cárceles. Revista Nueva Doctrina Penal, Buenos Aires, Argentina, n. 1, p. 5-11, 2005. 178 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991. 179 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 749.

226 227 rias180, pois expressiva parcela da população carcerária brasileira é constituída de pessoas que cometeram delitos relativos a tóxicos. Assim, os criminólogos dessas correntes se preocupavam em pensar sobre alternativas ao cárcere em um primeiro momento e, como horizonte, na possibilidade da redução absoluta do sistema penal181, como explica Anitua:

No entanto, a crítica criminológica não se limitou apenas a criticar a instituição peni- tenciária, como também propôs alternati- vas que iam desde a abolição dessa forma de castigo, na condição de um primeiro passo para a abolição de todos os castigos, até a busca de soluções alternativas. Essa seria talvez a prática crítica mais decidida nos anos 1970, ao longo dos quais se bus- cava evitar a idéia do tratamento mediante a abolição da obrigatoriedade do mesmo ou por pensar em algum que não fosse estig- matizante. Em todo caso, tratava-se de desinstitucionalizar. Desde o tratamento comunitário até a reparação, eram pro- postas alternativas. O mais interessante é que algumas delas foram aceitas em muitos casos pela legislação dos países ocidentais, da mesma forma que aceitava as velhas propostas positivistas de pena condicio- nal ou probation. Contudo, nos anos 1980,

180 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático. 4. ed. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007; ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudanca e permanencia de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Sequência, Florianopolis, UFSC, n. 30, p. 24-36, jun. 1995; e BARATTA, Alessandro. Fundamentos ideológicos da atual política criminal sobre drogas. Tradução de Francisco Inácio Bastos. In: GONÇALVES, Odair Dias; BASTOS, Francisco Inácio. Só socialmente... Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992. 181 HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminologia. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001, p. 124.

226 227 outra vez as vozes críticas fizeram ouvir a sua queixa diante do panorama que essas ‘alternativas’; apresentavam, que vinha a se somar à não desaparecida, antes reforçada, pena de prisão. As ‘alternativas’ funciona- vam como um suporte e como um aliado da prisão, ao mesmo tempo em que podiam assumir outras funções para o Estado182.

As origens do abolicionismo são atribuídas à desconstrução epistemológica do controle penal, iniciada a partir das críticas e da análise das reais funções do cárcere. Para tanto, foram utiliza- das desde as análises marxistas de Rusche e Kirkhheimer, como também ‘Vigiar e Punir’ de Foucault. Esses foram os pontos de partida para a radicalização da problemática relativa à lógica pu- nitiva presente no controle social183. Batista184 afirma que Rusche foi o primeiro pensador mar- xista a analisar, de forma sistemática, a questão criminal, bem como proceder à análise histórica das relações entre condições sociais, mercados de trabalho e sistemas penais. Sua obra de- monstrou o caráter histórico dos sistemas penais pela comparação entre as diferenças nas diversas fases do processo de acumulação do capital, focando as mudanças ocorridas entre os séculos XV (época na qual a mão de obra abundante resultou em um sistema penal contra as massas empobrecidas) e XX. Na visão de Rusche e Kirchheimer, a história das penas é, principalmente, a história da crueldade e irracionalidade

182 ANITUA, op. cit., p. 749-750. 183 PRANDO, Camila Cardoso de Mello. Uma proposta de leitura abolicionista: onde Louk Hulsman e Alessandro Baratta se encontram. In: KOSOVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 131. Neste sentido também: BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 91. 184 BATISTA, op. cit., p. 91-92.

228 229 humanas185. A ineficácia das penas severas e dos tratamentos cruéis pode ser demonstrada por mil vezes, entretanto, até o mo- mento em que a sociedade seja capaz de resolver os seus pro- blemas sociais, a repressão, enquanto mais simples das respostas, continuará sendo a alternativa preferida. Ela proporciona a ilusão da segurança, ocultando, assim, os sintomas do mal-estar social, com um conjunto de juízos morais e legais186. Seria possível perguntar, citando Thompson187: “Alguém já conseguiu fazer prisão punitiva ser reformativa?” Ao que o pró- prio responde: “Não, em nenhuma época e em nenhum lugar”. A partir dos anos 1980, o embrião constante das obras de Rushe e Foucault188 passou a ser sistematizado e ganhar espaço não só nas discussões acadêmicas, como também, em movimentos sociais. Apesar de abolicionismo ter seu nome designado a partir da luta história contra a escravidão189 e contra a pena de morte, naqueles anos, especialmente no interior da criminologia crítica, a denominação seria atribuída à deslegitimação mais radical do sistema carcerário e da lógica punitiva. A reflexão antipunitiva

185 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Ott. Pena y Estructura social. Bogotá: Themis, 1984, p. 24. 186 Ibidem, p. 254. Sobre o “mito” da segurança jurídica e a repercussão dessa promessa na esfera criminal, veja-se: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. 187 THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 10. 188 CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Tradução de Mariluz Caso. Cidade do México: Fundo de Cultura Econômica, 1988, p. 11. 189 Para Karam: “A comparação com a escravidão não é exagerada. A luta pela abolição das prisões e do próprio sistema penal, a luta pelo fim do poder punitivo também é uma luta pela liberdade; uma luta contra um sistema que estigmatiza, discrimina, produz violência e causa dores; uma luta para pôr fim a desigualdades; uma luta para reafirmar a dignidade inerente a cada um dos seres humanos”. (KARAM, Maria Lucia. Abolir as prisões: um passo indispensável para a efetivação dos direitos fundamentais e o aprofundamento da democracia. In: KOSOVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 95).

228 229 estava estritamente ligada às matrizes teóricas e práticas de crimi- nólogos dos países escandinavos e na Holanda190. Da mesma forma, o Labelling Approach, trabalhado no iní- cio deste nosso capítulo, foi fundamental para a consolidação das premissas abolicionistas. Como pode se ver:

Desde o ponto de vista político-criminal, a única conseqüência da teoria do etiqueta- mento que iremos discutir são as consequ- ências dela mesma são derivadas para dis- cutir a forma de reação ante ao delito, entre elas o chamado abolicionismo, ou seja, a possibilidade de conseguir uma solução mais eficaz para novos problemas sociais, sem ter que recorrer ao castigo, senão a alternativas a ele191.

Passetti situa o abolicionismo penal como uma vertente li- bertária que coloca o foco na crítica à punição e que encontrou, no século XX, soluções livres de utopias. Sua ressonância ini- ciou a partir da Segunda Guerra Mundial, para acuar o direito penal e questionar os princípios de uma sociabilidade autoritária, pautada na centralidade de poder. Pretende debater o discurso penalizador que está “ancorado numa profusão de reformas que atestam e publicizam a inoperância da melhor punição e de seus efeitos disciplinares e de controle, segundo o fluxo contrário ao do ‘ruim com, pior sem’ ”192. Para Zaffaroni, “o abolicionismo representa a mais original e radical proposta político-criminal dos últimos anos, a ponto de ter seu mérito reconhecido até mesmo por seus mais severos

190 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 695. 191 HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminologia. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001, p. 169. 192 PASSETTI, Edson. Sociedade de controle e Abolição da punição. São Paulo em Perspectiva, v. 13, n. 3, p. 61, 1999.

230 231 críticos”193. Seu surgimento foi possível, pois “o momento em que a falsidade do discurso jurídico-penal alcança tal magnitude de evidência, que este desaba, desconcerta o penalismo da região”194, a ponto de se questionar sobre a sua utilidade e permanência195. O abolicionismo não pode ser classificado, é produto da dife- rença e, por isso, não pode ser considerado propriedade de juristas, nem de doutrinas político-ideológicas. Pode ser entendido como “uma generosa associação de ativistas contra desigualdades, que convide com as suas diferenças internas e sabe lidar com parce- rias nas fronteiras com outras práticas voltadas para a obstrução de castigos”196. Não é somente uma escola, é um movimento197. Zaffaroni faz a seguinte tipologia desse movimento: Fou- cault estaria na análise estrutural historicista das fundações dis- cursivas; Mathiesen, no paradigma marxista-materialista; Chris- tie, no modelo fenomenológico-historicista do controle e da dor; e Hulsman, em uma fenomenologia das situações problemáticas na perspectiva da abolição de todos os sistemas formais198. Passaremos, a seguir, a analisar as premissas dos pensamen- tos dos três principais teóricos do abolicionismo penal: Christie, Hulsman e Mathiesen. A ordem de nossa exposição será colo- cada justamente, conforme nos aproximemos ou afastemos de uma concepção minimalista, cujo conteúdo poderá, em alguns momentos, se aproximar das ideias de Baratta que trabalhamos

193 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 98. 194 Ibidem, p. 16. 195 Idem, p. 97-98. 196 PASSETTI, Edson. Louk Hulsman e o Abolicionismo libertário. In: KOSOVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 67-80. 197 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 27. 198 ZAFFARONI, op. cit., p. 98-102. Tal classificação também é citada por Vera Andrade em: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismos, abolucionismos e eficienticismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Revista Sequência, n. 52, p. 163-182, jul. 2006, especialmente p. 66 e ss.

230 231 neste capítulo (a discussão inicia do mais para o menos identifi- cado). Em verdade, a partir da identificação dos núcleos de cada uma das teorias, será possível entendermos por qual motivo Za- ffaroni199 nos convida a falar em abolicionismos.

3.3.2.1 Nils Christie: Os Limites da Dor, De- sinstitucionalização e a Quantidade Razoável de Crime Primeiramente, é necessário deixar claro que Christie200 es- creve de um determinado local. Este lugar é a Escandinávia, região cujos índices de desenvolvimento humano estão entre os maiores do mundo201. Desta forma, as ideias debatidas a seguir, por mais importantes que sejam e algumas possivelmente compatíveis com nossa realidade, precisariam, necessariamente, serem repensadas especificamente de acordo com o contexto Latino-americano. Em “Os Limites da Dor” (edição original de 1981), Chris- tie trabalha com a seguinte tese central: a imposição de um cas- tigo dentro do marco legal significa causar dor, dor deliberada. Tal ideia está assentada no sentido de a atividade punitiva estar frequentemente em desacordo com valores fundamentais, como bondade e perdão. Para reconciliar estas incompatibilidades, usu- almente, se esconde o caráter básico do castigo, e, em todos os casos em que não é possível essa ocultação, se trabalha com todo o tipo de justificativa para a imposição intencional de dor202. As justificações da pena são consideradas como bastante questionáveis, e nenhuma parece fundamentar a dor intencional

199 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 98. 200 CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Tradução de Mariluz Caso. Cidade do México: Fundo de Cultura Econômica, 1988, p. 9. 201 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório de Índice de desenvolvimento humano de 2013. Disponível em: . Acesso em: 1 ago. 2013. 202 CHRISTIE, op. cit., p. 7.

232 233 de forma suficientemente satisfatória. As intenções de ressociali- zar o infrator da lei criam problemas de justiça, especialmente em nosso país, onde os índices de reincidência são extremamente sig- nificativos203. Geralmente, as teorias que tentam justificar a san- ção criminal costumam criar sistemas rígidos, insensíveis às ne- cessidades individuais: “é como se a sociedade, em sua luta com as teorias e práticas penais, vacile entre possibilidades de resolver alguns dilemas insolúveis”204. O autor considera que chegou o momento de colocar fim às va- cilações, através da descrição da futilidade da pena e tomar uma po- sição moral que defenda o estabelecimento de restrições severas ao uso da dor provocada pelo homem como um meio de controle social. A partir disso, tenta apontar alguns caminhos que possam propiciar condições gerais, para que se inflija um baixo grau de dor205. Christie é considerado um autor menos radical em relação aos demais abolicionistas, justamente porque considera possível visualizar situações nas quais a dor ainda possa ser justificada. Assim, “caso tenhamos de infligir dor, deve ser uma dor sem um propósito manipulativo e que tenha uma forma social seme- lhante à considerada como norma quando nós mesmos temos uma onda de aflição.” Isso poderia levar a uma situação em que se extingua o castigo aos delitos e, assim, as características básicas do Estado também se extinguiriam. Pensada como um ideal, essa situação poderia ser tão valiosa, para fazê-la explícita e tê-la presente, como as situações em que reinaram a bondade

203 Tanto é verdade que importantes agências de pesquisa brasileiras, como o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) tem investido em Projetos que possam esclarecer algumas das razões de índices tão altos, como podemos notar da chamada pública 98/2012 (PESQUISAS ECONÔMICAS APLICADAS (IPEA). Disponível em: Acesso em: 01 Ago. 2013). 204 CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Tradução de Mariluz Caso. Cidade do México: Fundo de Cultura Econômica, 1988, p. 8. 205 Ibidem, p. 7-8.

232 233 e as ideias humanitárias: ideais que nunca se alcançaram, mas, pelos quais, valem a pena lutar206. Apesar de ser considerada como uma das categorias centrais de seu pensamento, o autor reconhece a impossibilidade tanto de definir quanto de graduar a dor: “Para captar a essência da dor, teríamos que entender o núcleo do bom tão bem quando o do mau, o que também possui dificuldades de definir”207. Algumas possíveis acusações quanto à desvalorização da evolução do castigo, notadamente descrita (longe de uma pers- pectiva ingênua) por Foucault208, são antecipadas. Diz sincera- mente não saber se houve evolução, pois “cada forma teria que ser avaliada, de acordo com sua própria época, por aqueles que experimentaram a dor, conforme os costumes daquele tempo, e de acordo com a cultura predominante.”209 Autoconsidera-se como um “imperialista moral”, cujo maior imperativo é a luta para que se reduza no mundo a dor infligida pelo homem. Em função disso, tenta, novamente, antecipar pos- sível resposta a esta concepção: “dirão que a dor faz a pessoa cres- cer, que as fazem mais maduras, as fazem renascer, ter um discer- nimento maior, valorizar a alegria quando a dor se vai e, de acordo com algumas crenças, aproximar-se mais de Deus ou do céu”210. Ainda assim, argumenta não conseguir imaginar alguma si- tuação a justificar o aumento da dor imposta pelo homem. Tam- bém, não consegue perceber alguma boa razão para acreditar que o nível recente de imposição de dor seja correto e natural211. Para evitar tais situações, são necessárias regras e uma delas seria: quando se está em dúvida, não se deve impor dor. Além dessa, os

206 Idem, p. 8. 207 Idem, p. 11. 208 Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. 209 CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Tradução de Mariluz Caso. Cidade do México: Fundo de Cultura Econômica, 1988, p. 12. 210 Ibidem, p. 14. 211 Idem, p. 14.

234 235 sistemas sociais deveriam construir-se de maneira a reduzirem ao mínimo a necessidade percebida de imposição de dor, para reali- zar o controle social, já que “a aflição é inevitável, mas não é o inferno criado pelo homem”212. O controle do crime se converteu atualmente em uma ope- ração limpa e higiênica. Afirma que “a dor e o sofrimento desapa- receram dos manuais jurídicos, mas, como é natural, não desapa- receram da experiência dos apenados”213. O olhar para a linguagem, apesar de, como veremos, co- mumente estar associado às ideias abolicionistas de Hulsman214, também aparecem em Christe. Em seu pensamento, ela constitui importante aliada na discussão da cultura punitiva. Além das evi- dentes melhores condições das instalações carcerárias (note-se que o local de fala de Christie, vinte anos depois, possui uma das melhores estruturas prisionais em todo mundo215), a mudança de termos medievais, como “cela”, para “quarto” faria todo o sentido para diminuir a imposição de dor216.

212 Idem, p. 14-15. 213 Idem, p. 21. 214 PASSETTI, Edson. Louk Hulsman e o Abolicionismo libertário. In: KOSOVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 75; HERMANN, Leda Maria; ANDRADE, Verga Regina Pereira de. Vida: vocação para a liberdade. In: KOSOVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 121; FONSECA, Hermes da. Travessia abolicionista: licenciosidades para uma leitura cronópia da obra penas perdidas, de Louk hulsman. In: KOSOVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 177; CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 28. 215 Na Noruega, de acordo com estudos bastante recentes, o índice de reincidência pode ser considerado como extremamente baixo (em comparação com países como o Brasil – 70% e Estados Unidos – 60%), já que ocorre em apenas 20%. Isto pode significar um sucesso das políticas criminais abolicionistas, mais ou menos 30 anos após o seu surgimento (MELO, João Ozório de. Noruega consegue habilitar 80% de seus criminosos. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2013). 216 CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Tradução de Mariluz Caso. Cidade do México: Fundo de Cultura Econômica, 1988, p. 14-15 e p. 18.

234 235 Além da linguagem, a questão comunitária para compreen- são do crime é fundamentel em Christie217. Para o autor, estes membros possuem uma “histórica em comum”, que não pode ser dissociada. Quando falamos em tribos (ou qualquer outro exem- plo de estratificação como a classe), é considerado por ele que o grau de interação entre elas é fundamental, para a compreensão das raízes do problema, conforme a narração feita pelo teórico:

A arena do fato a ser descrito é um pequeno parque, cercado de edifícios residenciais. Estamos em junho, o mês de celebração da luz, do Sol e do verão no norte. É um domingo, pouco antes do meio-dia; ‘hora de missa’ é o termo tradicional para esses momentos quietos da semana. Em muitas varandas voltadas para o parque, as pessoas desfrutam cafés da manhã tardios, ou ape- nas leem ou relaxam.

Um homem chega ao parque. Ele carrega sacos plásticos, entre os quais se senta. Os sacos contêm garrafas. Ele abre uma gar- rafa, duas, várias, fala um pouco consigo próprio e, em seguida, com algumas crian- ças que logo se aproximam dele. Ele fala e canta, para deleite da platéia.

Pouco depois, o homem se levanta, vai na direção de uns arbustos e abre a braguilha da calça. Várias crianças o acompanham.

Aqui recorremos a dois edifícios, não ape- nas um, para obter nossa perspectiva: os dois parecem idênticos, construídos que

217 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 760.

236 237 foram de acordo com a mesma arquitetura. Mas suas histórias não são idênticas. Um edifício foi construído à maneira moderna, por uma construtora profissional. Estava pronto e acabado quando os moradores o ocuparam, com as chaves na porta e ele- vadores em pleno funcionamento. Chame- mos este de Casa da perfeição. O outro edi- fício teve uma trajetória mais turbulenta. O construtor faliu; não sobrara dinheiro. Os elevadores não funcionavam, não havia portas de entrada, as cozinhas não estavam instaladas, enfim, uma situação desespera- dora. Os compradores, que tinham pago tudo antes da falência, foram obrigados a reparar os piores defeitos. Afotaram-se ações conjuntas para o conserto de portas, tetos e pisos; comitês de crise foram for- mados para processar o construtor. Tudo girava em torno de trabalho pesado e socia- bilidade forçada. Chamemos este edifício de Casa da Turbulência.

E agora voltemos ao homem no parque.

Um homem, meio escondido nos arbustos, cercado por crianças e abrindo a braguilha configura situação suscetível de interpre- tações bem distintas. Na Casa da Turbu- lência, a situação era clara. O homem nos arbustos é Pedro, filho de Ana. Ele sofreu um acidente, quando pequeno e, em geral, comportava-se de maneira um pouco estra- nha, mas era doce como uma noite de verão é longa. Quando ele bebe demais, deve-se ligar para a família dele e alguém vem buscá- -lo. Na Casa da Perfeição, a situação é dife- rente. Ninguém o conhece. Um homem

236 237 estranho cercado por crianças, exibindo o pênis. Espectadores decentes correm ao tele- fone para chamar a polícia. Uma ocorrência de ato obsceno foi registrada; um sério caso de crime sexual provavelmente evitado.

O que mais poderiam ter feito os bons vizi- nhos da Casa da Perfeição, empanados que estavam pela modernidade? Seu constru- tor não falira. Eles não foram obrigados a cooperar com vizinhos. Não foram obriga- dos a tomar ferramentas emprestadas entre si ou a cuidar das crianças dos vizinhos, enquanto estes deitavam asfalto no vão de estrada. Não foram obrigados a se reunir em intermináveis sessões de discussão sobre como perder menos com a falência do cons- trutor. Não foram obrigados a se conhece- rem, a criar um sistema de cooperação e de compartilhamento de informações. Assim, o conhecimento de Pedro e Ana não os alcançou, como ocorreu na outra casa. Eles, enquanto cidadãos conscientes, foram deixados com apenas uma alternativa: cha- mar a polícia. Pedro se tornou criminoso em razão da saúde financeira na Casa da Perfeição, ao passo que na Casa da Turbulên- cia teria sido ajudado a voltar para casa. Em termos mais genéricos: quantidades limita- das de informação dentro de certo sistema social possibilitam a um ato ser atribuído o significado de crime.

Isso gera consequências na percepção do que é o crime e de quem são os criminosos. Em sistemas sociais em que há mais comu- nicação interna, pode-se colher mais infor- mação sobre as pessoas à sua volta. Entre

238 239 pessoas que não se conhecem, funcionários das agências de controle se transformam na única alternativa. Tais funcionários, porém, produzem o crime por sua só existência. O sistema penal é análogo ao rei Midas. Tudo o que este tocava se tornava ouro e, como sabemos, ele morreu de fome. Muito do que a polícia e a prisão tocam se converte em crime e criminosos, e interpretações alterna- tivas de atos e atores se desvanecem. Nesse tipo de sociedade, as atividades de sobre- vivência talvez estejam um pouco fora da zona do legalmente aceitável. Uma ampla rede também aumentará as chances de que se encontrem pessoas definidas pelas autori- dades como criminosas. Voltamos, assim, ao meu tema geral: atos não são; eles se tornam. Pessoas não são; elas se tornam. Uma larga rede social com ligações em todas as dire- ções cria incerteza, no mínimo, sobre o que é crime e quem são os criminosos218.

A concepção de comunidade de Durkheim219 é central para a compreensão das idéias defendidas por Christie. Solidariedade orgânica era a ideia central de Durkheim, sendo encontrada em sociedades com divisão de trabalho altamente desenvolvida. Nes- tes grupos, os participantes tornam dependentes uns dos outros e, através de trocas, acabam por controlar um ao outro. O resultado é uma sociedade de iguais, em que os membros estão, de alguma forma, ligados por sua semelhança. No tocante à utilização da pena, Christie parece partir do mesmo fenômeno social de que tanto se ocupou Durkheim – a solidariedade orgânica – para chegar à conclusão diametralmente

218 CHRISTIE, Nils. Uma quantidade razoável de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 23. 219 Cf. DURKHEIM, Émile. Da divisão social do trabalho. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

238 239 oposta: para o sociólogo francês, o crime, além de ser um fato social normal, seria útil ao corpo social, pois, à medida que jus- tificasse a pena, serviria como instrumento de fortalecimento do consciente coletivo (ofendido com o ato criminoso) e, portanto, dos laços de solidariedade social. Para Christie, a larga utilização da pena é, na verdade, um mecanismo de erosão da solidariedade social, é o sintoma maior das sociedades monoinstitucionais, aquelas em que a vida das pessoas é regida apenas por uma instituição social – na Pós-mo- dernidade, a economia de consumo220. Surgida em meio ao colapso do ideal ressocializador, “Os Li- mites da dor”, o que propiciou o retorno das velhas justificativas para a pena, Christie afirmava que a imposição de um castigo, ainda que se enquadre dentro de um Estado de Direito e se cer- que de todas as garantias legais, não é razoável em função da in- tenção deliberada de causar dor. E ainda: “o recurso à inexistente categoria ‘natural’ de ‘delito’ só ocorre quando os indivíduos não se conhecem”221. Entre conhecidos, sempre se tende a buscar outra maneira de evitar violências ou de solucionar os problemas produzidos. Dessa forma, propõe, com imaginação, alternativas ao castigo, mais do que castigos alternativos ou justificativas al- ternativas para o castigo222. Em “Indústria do Controle do Delito”, que pode ser consi- derada a obra mais conhecida do autor no Brasil, são analisados os números e as estatísticas carcerárias (especialmente na Eu- ropa) na década de 80. Apontando o estonteante crescimento das taxas de encarceramento, realiza importantíssima advertên- cia: “o maior perigo relativo ao delito nas sociedades modernas

220 NASCIMENTO, André. Apresentação à edição brasileira. In: CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 9. Também ver: CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Tradução de Mariluz Caso. Cidade do México: Fundo de Cultura Econômica, 1988, p. 120-122. 221 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 708. 222 Ibidem, p. 708.

240 241 não é o delito em si, mas, sim, a luta contra o crime que pode conduzir as sociedades rumo ao totalitarismo”223, já que “O crime não existe em si, ele se torna”224 (grifos nossos). As sociedades ocidentais enfrentam dois problemas princi- pais: a distribuição desigual de riqueza e a distribuição desigual de acesso ao trabalho. Ambos os problemas são enfrentados pela in- dústria de controle do delito, que está preparada para isso. Porém, como qualquer indústria, o seu caminho natural é crescer, expan- dir-se. O problema é encontrar o limite deste controle e determi- nar quando ele é suficiente225. Em sua obra mais recente, “Uma razoável quantidade de crime”, continua denunciando as falácias expansivistas do Direito punitivo. Tenta demonstrar, através de suas experiências de vida, que:

mesmo os conflitos aparentemente mais ter- ríveis, aqueles para os quais o senso comum criminológico não preconiza senão a solu- ção penal, podem ser tratados com modelos

223 CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito – La nueva forma del Holocausto? Buenos Aires: Del Puero, 1993, p. 24. Também ressaltam a importância desta advertência: MORAIS DA ROSA, Alexandre; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um processo penal democrático: crítica à metástase do sistema de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 60-61; KARAM, Maria Lucia. Abolir as prisões: um passo indispensável para a efetivação dos direitos fundamentais e o aprofundamento da democracia. In: KOSOVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 87-98; BARREIRAS, Mariana Barros. Controle Social Informal x Controle Social Formal. In: SÁ, Alvino Augusto de; SHECAIRA, Sérgio Salomão (Orgs.). Criminologia e os problemas da atualidade. São Paulo: Atlas, 2008, p. 315. Capítulo das páginas: 295-320. 224 NASCIMENTO, André. Apresentação à edição brasileira. In: CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 10. 225 BARREIRAS, Mariana Barros. Controle Social Informal x Controle Social Formal. In: SÁ, Alvino Augusto de; SHECAIRA, Sérgio Salomão (Orgs.). Criminologia e os problemas da atualidade. São Paulo: Atlas, 2008, p. 315.

240 241 alternativos, sem a intencional inflição de sofrimento a quem lhe deu causa226.

Neste sentido, afirma Christie sobre os limites do sistema penal:

A lei penal é o instrumento perfeito para certos propósitos, mas, inadequado para outros. É o instrumento que nos permite eliminar muitas preocupações, e que se baseia em dicotomias: tudo ou nada, cul- pado ou inocente. Em muitas situações, somos apenas meio culpados. Se essa meia culpa é vista à luz dos anteriores atos erra- dos da outra parte (ou de seus associados), apresenta-se uma possibilidade de solução consensual. Soluções civis são mais inte- grativas, no sentido de que mantêm o sis- tema social como um corpo de indivíduos em interação227.

Daí podemos depreender alguns dos motivos pelos quais os teóricos abolicionistas, não raro, são vinculados às origens da construção da justiça restaurativa, enquanto modelo alternativo. Não seria necessário reagir com uma pena a um comportamento a respeito do qual queremos mostrar repúdio, mas, antes, no mo- mento conciliador ou de discussão sobre a sua gênese e respon- sabilidades, parece mais razoável cair na opção restauradora. A reparação do dano e a participação da sociedade em um problema que, na realidade, lhe pertence, não levavam os abolicionistas a abdicar de qualquer modelo de justiça, mas, sim, da justiça atual. Ao contrário, apostavam em uma justiça mais democrática e

226 NASCIMENTO, André. Apresentação à edição brasileira. In: CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 9. 227 CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 122.

242 243 participativa e que estivesse, particularmente, atenta aos atingi- dos, também é o caso de Christie228. Sugere o autor que:

Os presos compartem da maioria dos valo- res das pessoas comuns. Os levem diante um juiz e os coloquem em quatro paredes como consequência dos atos que, como conseqüência, possivelmente se envergo- nhem. Se não se envergonham dos seus atos, ao menos devem o fazer por estar nesta situação. Caso não se envergonhem. ao menos irão se encher de tristeza pelo simples fato de a vida estar passando, sem que dela participem229.

Nesse sentido, a vítima230 precisa ser recolocada no centro do conflito. Não só ela como também o ofensor devem ser leva-

228 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 710. 229 CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Tradução de Mariluz Caso. Cidade do México: Fundo de Cultura Econômica, 1988, p. 22-23. 230 Não em um sentido original (clássico) que se remonta à vitimologia, como alerta o próprio Christie: “As vítimas e associações de vítimas se mostram constantemente ofendidas, quando seu sofrimento não é refletido na forma de punição talional. Esse sentimento se expressa em críticas à justiça, avidamente publicadas pela imprensa, que as transmite aos políticos. Como lidar com essa situação? Não há outra forma senão a convencional: contraargumentar, trocar ideias, tentar esclarecer. A escolha de política criminal é uma questão cultural. Não se trata de ações e reações instintivas, mas, de uma área repleta de questões morais profundas. É uma área para romancistas, dramaturgos, atores e para todos os cidadãos. Certamente, não é apenas para especialistas, do mesmo modo que não é somente para vítimas. Deve haver um coro de vozes que introduzem “inúmeras preocupações de difícil solução e sobre as quais inexiste unanimidade. Quanto mais se vê o campo como cultural, menos espaço sobra para soluções simplificadas”. (p. 130). Também, neste sentido: “Nessa última, Christie voltaria a reclamar um maior protagonismo para a vítima e também destacaria a importância do comportamento expressivo para limitar o terror de um novo ‘holocausto’ silencioso e silenciado por alguns sistemas penais que, ‘ao modernizarem-se, tornam-se piores’. O desconhecimento entre as pessoas, o anonimato da vida moderna, permitem que a perigosa categoria de ‘delito’ se

242 243 dos em consideração, é necessário que seja identificada a neces- sidade de as partes retomarem o conflito para si, e que o mais importante seria a participação das partes envolvidas na tentativa de entender a situação do que a própria solução231. Fundamental, então, é que a “pena não pode se equiparar ao dano”. Ainda que exista uma necessária vontade de vingança, isto não pode significar a volta de uma impensável “vingança pri- vada”. Ou seja, “se desejamos preservar a humanidade, a pena não pode ser pura retribuição. O filho morto não voltará; o dano proporcional consistiria em tirar a vida do culpado de forma se- melhante ao seu crime”. Nossa ética, entretanto, deve possuir uma perspectiva mais ampla. Para o caso de punir, essa punição representa a totalidade dos nossos valores232. A aproximação com o minimalismo fica mais evidente em Uma quantidade razoável de crime233. Apesar de deixar claro con- cordar com os argumentos contrários à ética da vingança, o autor afirma que “não pode seguir os abolicionistas até o fim”234.

estenda a todo tipo de comportamento e, portanto, aumente a imposição de castigos como um esquecimento ou uma recusa dos ‘outros’. O autor norueguês mantém, até os dias de hoje, a sua posição crítica em relação à ‘solução’ punitiva e não apenas diante dos pequenos infratores, mas também, no caso de fatos tão graves como o genocídio e outros tipos de violência – como a sexista – nos quais as categorias legais poderiam ter uma função simbólica. Até mesmo nestes casos é mais importante o diálogo, a reflexão comunitária, o julgamento e a condenação ética e moral do que o próprio castigo, para um Christie, que propõe ‘deixar andar com sua vergonha’ os responsáveis por fatos tão desprezíveis como os mencionados, ainda que também entenda e respeite as opções punitivas”. (ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 710). 231 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 710; CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 179. 232 CHRISTIE, op. cit., p. 130. 233 NASCIMENTO, André. Apresentação à edição brasileira. In: CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 10. 234 Explica Christie que “Os abolicionistas fazem perguntas, como: que lógica ou ética afirma a prioridade da punição sobre a paz? Você perdeu um olho graças ao meu comportamento deplorável, mas lhe darei a minha casa. Você me feriu com a sua

244 245 Para Christie, o abolicionismo, “em sua forma mais pura”, não é alcançável, pois inexiste a possibilidade de abolir total- mente o sistema penal, pois, em certos casos, a pena é inevitá- vel. No entanto, é possível avançar em outros sentidos, especial- mente em relação à cultura punitiva, já que “o crime não existe como fenômeno natural, é apenas uma forma, dentre inúmeras, de se classificarem atos deploráveis”235. O diagnóstico de Anitua é bastante preciso:

Verifca-se, assim, que Christie não é um abo- licionista facilmente enquadrável nessa deno- minação. Sua proposta se oporia a outro tipo de leis ou normas consensuadas, e de julga- mentos ou rituais participativos, caso isso reconduzisse para a redução ou a eliminação da dor e da violência. Todavia, ele seria, sem dúvida, um crítico radical da forma que o sis- tema penal conhecido adotou. Seriam, pois, de grande valor, as suas obras, extremamente lúcidas, que denunciavam o poder punitivo do final do século [...]236.

maneira insana de dirigir, mas te perdoei. A pena é inflição consciente de dor. Esta inflição consciente de dor tem alguma eficácia em restaurar os valores violados? Esse mecanismo tem vantagens e, logo, prioridade em comparação com a reconciliação, a restauração e o perdão? Concordo com o pensamento que está por trás dessas questões”. (CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 124). 235 Ibidem, p. 130. Tal posicionamento torna-se explícito também na passagem a seguir: “Deixemos, porém, claro o seguinte: não digo, nem direi, que atos inaceitáveis, completamente inaceitáveis também para mim, não existam. Não nego que pessoas sejam baleadas pelas armas de foto manuseadas por outras pessoas. Tampouco nego que pessoas sejam mortas pelos veículos dirigidos por outras pessoas, que o dinheiro seja retirado das gavetas ou das contas bancárias sem o consentimento do dono. Não nego, ainda, que possuo fortes objeções morais à maioria desses atos – tento evitá-los, tendo preveni-los. Também não nego que talvez seja útil considerar alguns desses atos como crime”. (Idem, p. 30). 236 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 719.

244 245 A perspectiva do giro cultural defendido por Christie é no sentido de “fazer com que a análise parta dos conflitos, e não, do crime”. Dessa forma, estaria viabilizada uma perspectiva liberta- dora, que significa “não ser capturado pela ‘necessidade penal’, e, sim, estar livre para escolher”237. Veremos, nos tópicos seguintes, que esta escolha do autor traz repercussões bastante sérias, pois segue a linha da ultima ratio238, ainda assim seria aceitar um modelo historicamente amparado em violências. Seria “continuar a chocar o ovo da serpente”, pois, em nossa conjuntura, a necessidade de controle de certas parcelas da população, a maior parte das vezes, é pautada pela expansão239. Qual é a razoável quantidade de crime? Essa será, necessaria- mente, a pergunta em termos político-criminais a ser respondida

237 CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 131. 238 O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal – Parte geral. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 1, p. 13). Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não, recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não, as penais (Ibidem, p. 13). Por isso, o direito penal deve ser a última alternativa (ultima ratio), isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade (Ibidem, p. 13). No Brasil, a “nomorréia” penal tem aspectos alarmantes (LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 43), isto se explica também, por existir uma crença popular no sentido do seguro triunfo do braço penal do Estado contra qualquer tipo de mal. Quanto ao caráter fragmentário, nem todas as ações que lesionam bens jurídicos são proibidas pelo direito penal, como nem todos os bens jurídicos são por ele protegidos. O direito penal limita-se a castigar as ações mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais importantes, decorrendo daí o seu caráter fragmentário, uma vez que se ocupa somente de uma parte dos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídica (BITENCOURT, op. cit., p. 14). 239 NASCIMENTO, André. Apresentação à edição brasileira. In: CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 11.

246 247 logo a seguir. Contudo, antes de trabalharmos com as possíveis respostas de Christie, é fundamental não nos esquecermos da existência/persistência do discurso minimalista por mais de três séculos na história ocidental. Mesmo que Beccaria seja frequen- temente lido nos bancos acadêmicos (ao menos nas instituições brasileiras), o viés punitivo-cultural não diminuiu. Ao contrário, jamais tivemos uma população carcerária tão expressiva, índices de reincidência tão contundentes e o consequente fenômeno da vitimização, cada vez mais massificado. A escolha de bens jurídi- cos240 que contenham dignidade penal241 será cada vez mais com- plexa e, dependendo do ponto de vista do observador, arbitrária. Responder a essa pergunta, de acordo com as conclusões apresentadas em sua última obra, necessariamente, seria dizer que o mínimo será o razoável. Para forjar esse mínimo, teríamos que admitir algumas premissas de forma a reduzir o sistema. A primeira seria: “se nós acreditamos nos valores da bondade e do perdão, então devemos manter o sistema penal reduzido”242. Especular o conteúdo do “bom” nos parece bastante problemá- tico, ainda que se tente vincular como “aquilo que podemos e o que não podemos fazer a outras pessoas”243, sendo autoevidentes. Tal concepção nos parece perigosamente aberta. Parece- -nos muito mais precisa e útil, por conseguinte, quando o autor

240 Ferrajoli afirma que um processo de despenalização deverá levar em consideração tão-somente os bens que consideramos fundamentais, ou seja, “somente aos crimes que considerarmos possam ser julgados eficientemente pelo sistema judicial”. Nesta perspectiva, seriam despenalizados, além dos inumeráveis “delitos-bagatelas”, todas as contravenções e todos os delitos apenados com sanções pecuniárias. No entanto, Ferraoli dá-se conta que todo este debate carece de uma discussão mais ampla. Portanto, é certo que seria necessário “reescrever a lista completa dos bens penalmente protegidos, elencados pelo código fascista e enormemente ampliada pelo legislador republicano”. (FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Garantismo. 2 ed. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2010, p. 203). 241 No sentido, trabalhado em: ANDRADE, Manuel da Costa. A dignidade penal e a carência de tutela penal como referências de uma doutrina teleológico-racional do crime. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, ano 2, fasc. 1, p. 173 e ss., jan./mar. 1992. 242 CHRISTIE, Nils. Quantidade razoável de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 155. 243 Ibidem, p. 156.

246 247 vincula as adjetivações acima com a ideia de punição como “um ato praticado com a intenção de causar sofrimento a outros seres humanos”, já que “a punição significa ministração intencional de dor”244. Conclui, dizendo que, “se nós acreditamos nos valores da bondade e do perdão, devemos manter o sistema penal reduzido, com o uso intencional da dor no menor nível possível”245. “Se nós acreditamos no valor de manter civilizadas as socie- dades civis, então devemos manter o sistema penal reduzido”246, eis a segunda premissa do autor. Esta se constitui, talvez, em uma das primeiras reações ao não-iniciado ao abolicionismo: a crença na ausência de regras como início de um processo (quase mne- mônico) rumo à barbárie, efeito colateral absolutamente indesejá- vel aos identificados com a Teoria Minimalista (especialmente no sentido de Ferrajoli). Ocorre que nem mesmo, como veremos, os abolicionistas, considerados mais radicais (especialmente Mathie- sen), pugnam o abandono completo de punições. A questão crucial no discurso de Christie, que o afastará das concepções de Mathie- sen, é justamente o fato de o primeiro confiar no Estado como ins- trumento fundamental na consolidação e promoção dessas regras, ainda que defenda a ideia de multi-instituição247, enquanto o úl- timo parece ser muito mais cético em relação ao Leviatã. Por último, “se acreditamos no valor de viver em uma socie- dade integrada e coesa, então devemos conter a expansão do sis- tema penal”248. A segregação não colabora para o fortalecimento dos vínculos sociais, pelo contrário. Caso os processos de crimina- lização diminuam e, por conseguinte, a população prisional tam- bém, será possível pensar o desvio como situação excepcional, pois “a normalidade só se fortalece pelo conhecimento de alguns

244 Idem, p. 156. 245 Idem, p. 157. 246 CHRISTIE, Nils. Quantidade razoável de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 157. 247 CHRISTIE, Nils. Quantidade razoável de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 45. 248 Idem, p. 158.

248 249 raros casos de anormalidade. Com uma grande população carce- rária, porém, a metáfora muda do desvio para a guerra”249. Pensarmos alternativas para a guerra e o encarceramento em massa, a fim de que passem a ser prioridade para os que estu- dam o sistema penal. Como passos iniciais para nos distanciarmos deste modelo secular, estaria dar a essas populações “uma fatia adequada da sociedade normal – educação, emprego e participa- ção política e cultural. O atual uso do encarceramento em massa bloqueia o caminho para tais conquistas”250.

3.3.2.2 Louk Hulsman e o Abolicionismo de Raízes Cristãs, Socialmente Engajado e Subver- sivo da Linguagem Neste ponto, iremos aprofundar as ideias de Louk Hul- sman, considerado um dos maiores teóricos abolicionistas e, talvez, o de maior influência na América Latina251, tendo sido um dos representantes desse movimento que mais visitou os seus países. As ideias, emancipadoras acerca do sistema penal, enunciadas por ele, produziram forte repercussão, tendo in- clusive a sua obra mais representativa (“Penas Perdidas”) sido

249 Idem, p. 158. 250 Idem, p. 159. 251 Diz-nos Fonseca que “A América latina, segundo Hulsman, teria importante contribuição a dar ao abolicionismo, vez que, dos encontros e seminários sobre o tema realizados na região, surgiriam frutíferas contribuições, especialmente aproveitáveis em ‘lugares do mundo central onde a justiça criminal está crescendo rapidamente’. Quase trinta anos depois, o discurso da impunidade impulsiona o clamor por pena de morte; as superlotações carcerárias, as milícias urbanas, o tráfico de armas e drogas e os seus desdobramentos sociais, os ‘tribunais’ do tráfico em áreas controladas, o rareamento do debate deslegitimanete do sistema prisional entre pesquisadores e profissionais etc. Parecem ser indicativos de que a América Latina sofre os influxos de um contexto fortemente conservador (de que dão exemplo as legislações antiterror), em que, mesmo movimentos sociais, são criminalizados”. (FONSECA, Hermes da. Travessia abolicionista: licenciosidades para uma leitura cronópia da obra penas perdidas, de Louk hulsman. In: KOSOVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 202).

248 249 respondida quanto às possibilidades abolicionistas na América Latina, por Eugênio Raúl Zaffaroni252. O enfoque do etiquetamento (especialmente a ideia de reação social), visto por nós anteriormente, teve grande repercussão na terra natal de Hulsman, a Holanda. As próprias características culturais daquele país, marcadas por um forte traço de tolerância, facilitaram as condições para o desenvolvimento de uma das mais fortes cate- gorias abolicionistas: o autoconstrangimento do ofensor. Portanto, o contexto local auxiliou, e muito, o desenvolvimento de uma “po- lítica criminal baseada mais no deixar fazer do que na intervenção punitiva”, que seria considerada socialmente menos danosa253. Um exemplo de reação ao delito é trazido por Hulsman:

Cinco estudantes moram juntos. Num determinado momento, um deles se arre- messa contra a televisão e a danifica, que- brando também alguns pratos. Como rea- gem os seus companheiros? É evidente que nenhum deles vai ficar contente. Mas cada um, analisando o acontecido à sua maneira, poderá adotar uma atitude dife- rente. O estudante número 2, furioso, diz que não quer mais morar com o primeiro e fala em expulsá-lo de casa; o estudante número 3 declara: ‘o que se tem que fazer é comprar uma nova televisão e outros pratos e ele que pague’. O estudante número 4, traumatizado com o que acabou de presen- ciar, grita: ‘ele, está evidentemente doente; é preciso procurar um médico, levá-lo a um psiquiatra, etc.’. O último, enfim, sussura: ‘a gente achava que se entendia bem, mas

252 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 253 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 695.

250 251 alguma coisa deve estar errada em nossa comunidade, para permitir um gesto como esse [...] vamos juntos fazer um exame de consciência’. Quando se dá à conduta uma qualificação legal de crime, toda tentativa de melhor compreensão do ocorrido, toda aquela busca de soluções efetivas, todas as outras reações possíveis são afastadas pela monopolizadora e enganosamente satisfa- tória reação punitiva254.

Sem dúvidas, a realidade local colaborou para o desenvol- vimento das ideias centrais do pensamento de Hulsman. O autor (falecido em 2009) era descrito como uma pessoa que “demons- trava a absoluta incompatibilidade de seu modo de ser com um sistema que, eliminando a liberdade, só produz violência, danos, dores e enganos”255. Esse modo de ser tinha repercussão em sua escrita, consi- derada “otimista” e objetivadora da “consecução de um mundo melhor”, que exigia ideais fundamentais, como a equidade e a solidariedade. Assim, a ausência do Estado e o seu intervencio- nismo, inclusive juridicamente, poderiam levar a uma resposta mais satisfatória desde formas comunitárias, autônomas e pací- ficas de intermediar conflitos. Como estamos vendo, suas ideias comunitaristas se aproximam, em muito ao, que Christie conce- beu (ver acima), baseadas em um controle de informação e com participação de seus membros na resolução de problemas256.

254 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. 3. ed. Rio de Janeiro: LUAM, 1999, p. 100. 255 KARAM, Maria Lucia. Abolir as prisões: um passo indispensável para a efetivação dos direitos fundamentais e o aprofundamento da democracia. In: KOSOVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 81. 256 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 709.

250 251 O sistema penal tem uma dimensão nonsense257, pois existem sofrimentos úteis que nos fazem progredir, no entanto o cárcere é “um sofrimento não criativo, desprovido de sentido” e “estéril”. Afirma Batista que:

Nas mãos de Louk Hulsman, o automatismo da burocracia dos sistemas penais, a seletivi- dade imanente a todos eles, a marginaliza- ção real da vítima (contraposta, hoje, a um protagonismo puramente simbólico, já que a decisão sobre o processo e a solução jurídica não estão, regra geral, em seu poder), a cifra oculta, as mentiras da ressocialização, tudo isso foi implacavelmente desmontado, des- sacralizado, reduzido à imagem chapliniana da linha de montagem industrial258.

A ideia da edição de leis centralizadas, como instrumentos de criminalização, é considerada pelo autor como uma visão legalista do mundo. Como legitimadora desta condição, está a sociedade que, a exemplo do já trazido por Christie (acima), deve ser vista com re- servas no que concerne à perspectiva comunitarista (Durkheim)259. Essa visão legalista da sociedade consiste em contrapor as instituições burocráticas do Estado (de um lado) e o indivíduo (de outro). Divisão esta amparada em dois aspectos diferentes. Em uma concepção, é possível intepretar o fenômeno a partir de uma ideia religiosa: “Deus é seguido pelas pessoas que são regi- das pelos dez mandamentos”. Outra secular: “as pessoas são livres para se organizar através de um pacto social”260.

257 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 66. 258 BATISTA, Nilo. Relembrança de Louk Hulsman. In: KOSOVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.) Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 58. 259 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. A aposta por uma teoria da aboliçao do sistema penal. Revista Verve, n. 8, p. 246-275, 2005. 260 Ibidem, p. 51.

252 253 No discurso político, bem como no contexto sociológico e criminológico, a visão de sociedade, que é a legal, é a seculari- zada. A partir desse ponto de vista, a sociedade é vista como um grupo de pessoas submetidas à jurisdição do Estado. São pessoas que compartilham de valores e significados em comum, se en- volvem constantemente em interações e permanecem juntas por questão ritualística261. Existe, por conseguinte, um pressuposto de solidariedade que somente será dado dentro de uma estrutura informal, desins- titucionalizada, no sentido trazido por Scapini:

A noção de solidariedade de Hulsman é referida pelo sentido que se dá a sua própria existência. Um sentido profundo, radical, que muda o modo de ser e existir no mundo. Ao percebermos a própria existência desde a ótica desta solidariedade que deve escanda- lizar toda e qualquer instituição, as ofertas, absolutamente formalistas de igualdade que propõem os discursos oficiais, já nos apare- cem como violentas, perdendo completa- mente o seu sentido ético no sentido pro- priamente dito de neutralizar a diferença262.

Porém, para Hulsman, está claro que a maioria das sociedades não possui propriedades de um grupo, nesse as pessoas comparti- lham uma ideia próxima de sentido sobre a vida. O compartilha- mento dessas experiências é a fundação da sociedade, que serão:

261 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. A aposta por uma teoria da aboliçao do sistema penal. Revista Verve, n. 8, p. 52, 2005. 262 SCAPINI, Marco Antônio de Abreu. O salto mortal de Louk Hulsman. Revista Instituto Humanitas, n. 170, p. 10. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2013.

252 253 [...] em grande medida, regulada pelos meios e instrumentos formais, baseados em experiências em diretas. Ainda, quando estas experiências indiretas em comum estejam quase sempre grosseiramente exa- geradas pelas pessoas que produzam os discursos científicos e políticos; eles gene- ralizam irreflexivelmente a sua própria experiência sobre outros ‘membros’ da ‘sociedade’. Uma importante parte das fun- ções de regulação social (que inclui o cui- dado às vítimas) pode somente ter sucesso em um contexto de grupo, pois precisam ser fundamentadas no consenso cognitivo263.

Logo, a conclusão parcial a que podemos chegar é que essas projeções sobre a sociedade serão, provavelmente, arbitrárias. Isto porque o conjunto de controles formais jamais poderá crista- lizar as práticas e as interações sociais que darão o conteúdo deste chamado consenso cognitivo. Vista a questão das dificuldades em encontrar harmonia entre controle formal e informal, passamos à análise de uma dos fatores mais importantes para a compreensão da interpretação de Hulsman acerca do sistema punitivo: o que abolir? Normalmente, a essa pergunta se responde: “o cárcere”, ou ainda, o próprio “direito penal”. Entretanto, a proposta hulsma- niana não se restringe à prisão ou ao sistema penal e de sua lógica punitiva. Esse é um pressuposto diferenciador da crítica abolicio- nista: “o que está sendo problematizado não é o grau de violência do funcionamento do sistema penal, enquanto tal, mas a própria lógica de violência deste controle punitivo”264.

263 HULSMAN; CELIS, op. cit., p. 51. 264 PRANDO, Camila Cardoso de Mello. Uma proposta de leitura abolicionista: onde Louk Hulsman e Alessandro Baratta se encontram. In: KOSOVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 130-131.

254 255 Em mesmo sentido, Andrade define o centro do direciona- mento das críticas abolicionistas:

O objeto da abolição ou minimização (como também de estudo) não é o Direito Penal (que é a programação normativa e tecnoló- gica do exercício de poder dos juristas), mas, o sistema penal em que se institucionaliza o poder punitivo do Estado e a sua complexa fenomenologia a que os abolicionistas cha- mam de “organização cultural do sistema de justiça criminal” e que inclui tanto a enge- nharia quanto a cultura punitiva, tanto a máquina quanto sua interação com a socie- dade, de modo que se o sistema é, formal e instrumentalmente, o “outro”, informal, difusa e perifericamente somos todos Nós (que o reproduzimos, simbolicamente)265.

Por sistema penal entende-se, consequentemente, neste con- texto, a totalidade das instituições que operacionalizam o controle penal (Parlamento, Polícia, Ministério Público, Justiça, Prisão), a totalidade das leis, as teorias e as categorias cognitivas (Direito mais ciências e políticas criminais) que programam e legitimam, ideologicamente, a sua atuação e os seus vínculos com a mecânica de controle social global (mídia, escola, universidade), na constru- ção e reprodução da cultura e do senso comum punitivo266. Ao falarmos em abolição do encarceramento, a ideia não é substituí-lo por outras práticas punitivas (discurso bastante comum aos reformadores do sistema) mais humanas, já que o

265 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismos, abolucionismos e eficienticismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Revista Sequência, n. 52, p. 169-170, jul. 2006. 266 Ibidem, p. 169-170.

254 255 abolicionismo rechaça a ideia evolutiva da “racionalidade” puni- tiva, eis que visa à superação dessa lógica267. Para a superação dessa lógica secular, Hulsman desenvolve uma série de fundamentos (notadamente, mas, não apenas em “Penas Perdidas”). Primeiramente, trabalha com a noção de bu- rocratização do sistema penal, lógica escrava de um carreirismo, identificado com o “combate à criminalidade”, que os próprios policiais, em seu íntimo, sabem impossível. Isto resulta em um mecanismo “sem alma”268. A prisão é o lugar da degradação dos corpos. Não só deles, como a própria psiqué do “sequestrado institucional”269, sendo os homens despersonalizados e dessocializados270. Também a cifra oculta, trabalhada previamente, é de impor- tância crucial271 para a reflexão do sistema. “Como achar normal um sistema que só intervém na vida social de maneira tão marginal, estatisticamente tão desprezível?” O nervo está exposto: “longe de parecer utópica, a perspectiva abolicionista se revela uma necessi- dade lógica, uma atitude realista, uma exigência de equidade”272.

267 PRANDO, Camila Cardoso de Mello. Uma proposta de leitura abolicionista: onde Louk Hulsman e Alessandro Baratta se encontram. In: KOSOVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 131. 268 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. 3. ed. Rio de Janeiro: LUAM, 1999, p. 59-60. 269 Expressão utilizada por Luiz Antônio Bogo Chies em: BOGO CHIES, Luiz Antônio. A capitalização do tempo social na prisão. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. Disponível em: < http://www.lume. ufrgs.br/bitstream/handle/10183/8031/000565308.pdf?..>. Acesso em: 01 jul. 2013. 270 HULSMAN; CELIS, op. cit., p. 62. 271 Hulsman afirma que “O viajante que aceita adentrar nos territórios exteriores a órbita de gravidade do sistema penal deve saber, porém, que se arrisca a uma surpresa: descobrir que esse sistema do qual tanto se fala e que, como sublinhamos insistentemente, constitui um mal social e uma aberração, ocupa-se unicamente de uma ínfima parte das situações teoricamente ‘criminalizáveis’”. (HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. A aposta por uma teoria da abolição do sistema penal. Revista Verve, n. 8, p. 254, 2005). 272 HULSMAN; CELIS, op. cit., 1999, p. 66.

256 257 Outra importante dimensão desse fenômeno também é apontada, já que essas taxas representam a “evidência de que este sistema não é, de maneira nenhuma, indispensável para nossa so- ciedade, em contraste ao que o discurso oficial profere”273. Há ignorância do sistema penal em relação à “grave e com- plexa” noção de culpabilidade. A categoria será revestida de inerente artificialidade a partir do momento em que “o sistema penal fabrica culpados, na medida em que o seu funcionamento mesmo se apoia na afirmação da culpabilidade um dos protagonistas, pouco impor- tando a compreensão e a vivência que os interessados tenham da situação”274. Herança das escolas sociológicas americanas é também a noção de “culpa interior”275, haja vista que o rótulo acaba por ser internalizado pelo indivíduo que sofre os efeitos da dor. Além dessas dimensões extremamente importantes (e per- sistentes), o sistema penal é considerado por Hulsman276 como ineficaz (já que produz os efeitos diametralmente opostos em re- lação aos objetivos originais), como é, em nosso caso, a pretensa “reinserção social e harmônica do indivíduo”277. A esfera formal também ignora que “a maioria dos conflitos interpessoais se re- solve fora do sistema penal graças a acordos, mediações, decisões privadas dos interessados”278. Tal condição demonstra que “uma sociedade sem sistema penal já existe, aqui e agora”279.

273 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. A aposta por uma teoria da abolição do sistema penal. Revista Verve, n. 8, p. 255, 2005. 274 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. 3. ed. Rio de Janeiro: LUAM, 1999, p. 66-67. 275 Ibidem, p. 69. 276 Idem, p. 72. 277 De acordo com o artigo 1o da Lei de Execução Penal brasileira (7.210/84): “Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” 278 HULSMAN; CELIS, op. cit., 1999, p. 74. 279 HULSMAN; CELIS, op. cit., 2005, p. 247.

256 257 Também não pode ser ignorada a seletividade penal como inata ao modelo punitivo contemporâneo. Por mais que ele tente se (auto)justificar, a pergunta parecerá sempre contundente de- mais para ser simplesmente ignorada: “E, por que justamente estes?”280. Não só os motivos da escolha são de difícil visualiza- ção, como ainda, em regra, os juízes de carreira estão socialmente apartados dos réus que julgam, o que prejudica sobremaneira a possibilidade de compreender a dimensão particular do problema (desde a perspectiva da cognição comunitária)281. Portanto, o sistema “rouba o conflito das pessoas diretamente envolvidas nele”282, se constituindo em verdadeiro “mal social”283. A crítica às instituições pode ser entendida a partir da se- guinte colocação de Scapini:

Hulsman não nega a utilidade que as insti- tuições possam ter, de modo que fornecem marcos regulatórios que pretendem organi- zar o viver. Todavia, esta regulamentação tem sido insuficiente e demasiado violenta. Isso porque, ao fazerem uma simplificação do viver, ao pretenderem tornar as coisas maleáveis, as instituições se transformam em um grande problema, justamente por esta dimensão totalizante que se desdobra em infinitas estruturas de violência284.

280 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. 3. ed. Rio de Janeiro: LUAM, 1999, p. 74-75. 281 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. 3. ed. Rio de Janeiro: LUAM, 1999, p. 81-82. 282 Idem, p. 82. 283 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. A aposta por uma teoria da abolição do sistema penal. Revista Verve, n. 8, p. 247, 2005. 284 SCAPINI, Marco Antônio de Abreu. O salto mortal de Louk Hulsman. Revista Instituto Humanitas, n. 70, p. 16. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2013.

258 259 Ainda, a (re)produção dos fatos na justiça penal também apre- senta dificuldades, sendo que se tende “a produzir uma construção irreal do que de fato aconteceu; e, sendo assim, tende também a dar uma resposta irreal e ineficaz”285 ao problema. A(s) dificuldade(s) da(s) narrativa(s), dentro do processo, foram discutidas em nossos capítulos prévios, porém será sempre necessário discutir as catego- rias anteriores (e cada vez mais), enquanto as violências institucio- nais perdurarem, através de “mecanismos reducionistas dos proble- mas humanos”286. Enquanto tivermos a imposição de castigos, de dores, de inumanidades, segundo Hulsman, perderemos a chance de enxergarmos o conflito em sua integralidade, algo apenas pos- sível com o redimensionamento da lide, para entregá-la aos seus legítimos proprietários: autor e vítima. Realizar o giro epistemológico que permite reviver a pers- pectiva comunitarista (nos termos de Christie e Hulsman) é uma forma de não se deter na mera crítica do sistema penal, mas se comprometer à redefinição dos problemas287. Hulsman afirma que a teoria abolicionista analisa, ao menos, cinco modelos de “resposta” para uma situação que o interessado não pode mais suportar, e foi provocada por pessoa responsável: punitivo (clássico), compensatório, terapêutico, conciliatório e educativo. Para o autor:

O sistema penal conhece apenas o modelo punitivo. De fato, todas as “medidas” diferen- tes da “pena” que se aplicaram no interior do sistema repressivo estatal e que pretendiam ser educativas ou terapêuticas nunca chega- ram a perder, sabemos isso hoje, o seu caráter angustiante e desonrado. Sem dúvida, isso se explica pela própria gênese do sistema penal,

285 HULSMAN; CELIS, op. cit., 1999, p. 161. 286 HULSMAN; CELIS, op. cit., 2005, p. 250. 287 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. A aposta por uma teoria da aboliçao do sistema penal. Revista Verve, n. 8, p. 246-247, 2005.

258 259 que foi idealizado numa época de transição entre a sociedade religiosa e a sociedade civil e que continua sendo devedor do modelo escolástico, razão pela qual aparece também impregnado da cosmologia medieval. Uma verdade definida definitivamente imposta de cima, juízes encarregados de distribuir uma justiça tão absoluta quanto serena, um deter- minado sofrimento imposto como réplica a atos considerados maus que se devem “puri- ficar”, uma filosofia maniqueísta que divide os homens em bons e maus, em inocentes e culpados, tal foi sempre, e ainda é, a lógica do sistema penal vigente em nossas sociedades, que não é mais do que a lógica do Juízo Final, na qual o Deus onipresente, onisciente e jus- ticeiro dos escolásticos foi substituído pelo código penal e o tribunal de cassação288.

A concepção de que uma mera reforma do sistema penal sig- nifica, necessariamente, a vitória do monopólio do controle das instâncias formais é, portanto, uma constante no pensamento do autor. Para ele: “não está em jogo legitimar penalizações a céu

288 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. A aposta por uma teoria da abolição do sistema penal. Revista Verve, n. 8, p. 251, 2005. É também importante a compreensão de Passetti que nos remete à necessidade de transcendência ao reformismo e à possibilidade do novo em Hulsman: “Importa, para ele, romper com o universal da punição consagrado no direito penal, a penalização, a cultura do castigo, a prevenção geral, e também com o alternativo. Sua proposta de modelos está disposta a inovações nos relacionamentos e nos equacionamentos da situação-problema e orientadas pelo dispositivo da conciliação que norteia o direito civil. Deste ponto de vista, o alternativo não está restrito a uma nova face do mesmo, mas passa a ser uma possibilidade para passar, ultrapassar limites, romper com modelos e descolar-se das modulações. Em Hulsman, o alternativo não é finalista, mas, abertura de uma nova série para as práticas de liberdade e que, por isso mesmo, supõe romper com os modelos”. (PASSETTI, Edson. Sociedade de controle e abolição da punição. São Paulo em Perspectiva, v. 13, n. 3, p. 74-75, 1999).

260 261 aberto, tampouco restringir a prisão a celas socialmente aceitas289 ou preparar-se para a chegada da revolução, com uma nova lei libertadora aquecida embaixo do braço”290. Talvez o principal mérito dos autores abolicionistas seja jus- tamente negar o poder reformador e a justiça convencional. Essa negação é fundamental, para que novas práticas não sejam tão- -somente arremedos para a manutenção e a (re)afirmação do status quo, mas, sim, instrumentos efetivos que levem à atenuação de uma cultura (exacerbadamente) punitivista na contemporaneidade. Para a superação do sistema penal, em Hulsman, é neces- sário também transcender à linguagem geralmente associada às situações tratadas como “criminosas”. O autor compartilha da ideia de o crime não possui definição ontológica, sendo somente o resultado da política criminal que o constrói, assim como da rea- lidade social. Considera, assim, que os problemas podem ser reais, no entanto o delito é um mito, cujas consequências são reais, pois são criados novos problemas ainda mais graves291. A eliminação da adjetivação “delito” para “situação” pre- tendia evitar que a comunidade tratasse dos problemas, como

289 Neste sentido, apresenta-se a seguinte passagem em Hulsman “A história nos ensina que não adianta pretender ‘humanizar’ a prisão e que não se muda de sistema simplesmente, retocando os objetivos da pena, a sua duração, os seus fundamentos teóricos ou as suas modalidades. O sistema penal, da forma que hoje ele é, não pode ser mais do que uma máquina produtora de sofrimentos inúteis, tão sobrecarregado por seus mecanismos burocráticos e estereotipados que despreza os reais protagonistas. Se verdadeiramente se deseja sair de uma situação esgotada, se pretende-se com seriedade que este sistema deixe de gerar um mal que muitos, honestamente, desprezam, é necessário imaginar outra coisa. É isso que pretendem fazer com o sistema penal os partidários da abolição que se propuseram, a longo prazo, alcançar o seu desaparecimento e, a curto prazo, evidenciar suas partes. Para consegui-lo, trabalham no interior de um novo marco conceitual, que tentaremos precisar em seguida e que terá alguns efeitos previsíveis na dinâmica social”. (HULSMAN, Louk. Pensar en clave abolicionista. In: KOSVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 261-262). 290 PASSETTI, Edson. Sociedade de controle e abolição da punição. São Paulo em Perspectiva, v. 13, n. 3, p. 75, 1999. 291 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 698.

260 261 criminalizados, mas os considerasse como problemas sociais. Dessa forma, seria possível ampliar as hipóteses de respostas pos- síveis, não se limitando à punição292. Ou seja: “tudo poderia ser civilizado, se existisse uma vontade política para tanto”293. A transição pretendida por Hulsman intenta não só a des- legitimação do sistema penal contemporâneo, mas também, as categorias que permitiram sua perpetuação historicamente. Para tanto, tentou realizar um giro linguístico da expressão “delito” até “situação problemática”294. Porém, ainda que reconhecesse a importância (e não mera formalidade) do estudo da gramática do crime, era demonstrada a autocrítica acerca da categoria acima:

292 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 698. 293 HULSMAN, Louk. Pensar en clave abolicionista. In: KOSVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 261-262. 294 ANITUA, op. cit., p. 698. Sobre as repercussões do giro linguístico proposto por Hulsman são importantes as observações de Carvalho: “[...] as tendências pós- modernas em criminologia retirariam do foco central da discussão os tradicionais objetos de análise – crime, criminoso, reação social, instituições de controle, poder político e econômico – inserindo na investigação a formação da linguagem da criminalização e do controle. A pesquisa sobre a formação linguística e as formas de produção, de proliferação e de relocação dos discursos que se estabelecem nos processos de criminalização formal (primária e secundária) e informal amplia as fronteiras do pensamento criminológico, reforçando a ideia de fragmentação. Nova tarefa, portanto, é agregada ao trabalho dos investigadores do campo criminológico: análise e crítica da gramática do crime” (CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 28). Ainda, o próprio Hulsman, sobre os limites dessa compreensão, assevera que “a utilização privilegiada da noção de situação-problema, que implica uma rejeição ao conceito legal de crime (ou de delito), permite adotar uma postura de exterioridade que caracteriza a perspectiva abolicionista”. Destaquemos que a noção de situação-problema não foi proposta para substituir a noção de crime, como se se tratasse de procurar uma chave melhor para abrir a mesma fechadura. Em oposição à noção de crime, da forma em que esta é utilizada no sistema penal, a de situação-problema aparece como um conceito aberto que deixa, nas mãos dos interessados, a possibilidade de escolher o marco de interpretação do acontecimento, assim como a orientação que deve levar a uma possível resposta”. (HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. A aposta por uma teoria da abolição do sistema penal. Revista Verve, n. 8, p. 264 2005).

262 263 Somos conscientes de que pelo fato de des- criminalizar um ato este não deixa de ser problemático, mas o fato de não enquadra- -lo como um ato punível por princípio per- mite muitas vezes que apareçam outras dimensões do problema: nos países nos quais o aborto não é penalizado, as mulheres que decidem abortar sabem que podem expe- rimentar problemas psicossomáticos, e os dependentes químicos são mais conscientes do fenômeno de dependência que pode bre- car o desenvolvimento de suas atividades ou seu enriquecimento pessoal. Em todo caso, a descriminalização outorga aos interessados a possibilidade de colocar explicitamente os seus problemas, de consultar outras pessoas para obter conselhos úteis, etc295.

A abolição do sistema penal não implica também a supres- são das medidas coercitivas colocadas à disposição da polícia atu- almente, mas, sim, uma de reordenação dessas práticas, neces- sariamente controladas por um juiz “como efetivo guardião dos direitos humanos, numa perspectiva redefinida e reforçada”296. Ao imergir nas entranhas do sistema, desde a perspectiva abo- licionista, policiais e magistrados são convidados “a passar para uma situação muito mais gratificante que a que ocupam atual- mente, quando trabalham no sistema penal. É este um aspecto capital dessa nova perspectiva”297. Uma possibilidade para (re)pensar o sistema penal é a com- posição de conflitos. A partir desta perspectiva, não só os vínculos

295 Ibidem, p. 266. 296 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. A aposta por uma teoria da abolição do sistema penal. Revista Verve, n. 8, p. 268, 2005. 297 Ibidem, p. 268.

262 263 sociais se fortalecem, como também a alienação da vítima do pro- cesso penal é corrigida. Sobre as possibilidades alternativas, diz Hulsman:

Sem negar a existência — compreensí- vel — de casos nos quais os sentimentos de retribuição são explicitamente, e por vezes violentamente, expressados, pesqui- sas coincidentes, realizadas em diferentes países a partir de uma ótica de vitimiza- ção, mostram que as pessoas que se con- sideram vítimas de uma desgraça — que pode ser atribuída, segundo elas mesmas, a um indivíduo concreto, não recorrem nor- malmente à via penal; desejam geralmente obter reparação, mais do que saber que se castiga ao autor, isto é, desejam entrar num processo de conciliação. Ligam-se assim, sem saber, a uma tradição ancestral: a dis- tinção entre assuntos civis e penais não existe nas sociedades “naturais” e só apare- ceu tardiamente no Ocidente. Esta distin- ção jurídico-política não recobre nenhuma “natureza” particular dos problemas em questão, e as pessoas vitimizadas a ignoram saudavelmente [...]298.

298 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. A aposta por uma teoria da abolição do sistema penal. Revista Verve, n. 8, p. 258, 2005. Neste sentido, propostas cunhadas em um modelo alternativo de justiça penal, o restaurativo, tem sido trabalhadas recentemente pela doutrina jurídica. A proposta restaurativa tem lastro justamente nos teóricos abolicionistas, ao pugnaram o retorno do conflito às partes envolvidas. Sobre o tema ver: ACHUTTI, Daniel Silva. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. Tese (Doutorado em Ciências Criminais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012; e NIEKIFORUK, Mahyra; ÁVILA, Gustavo Noronha de. Justiça restaurativa em Santa Catarina: a experiência joinvillense na implementação do projeto piloto de justiça restaurativa junto à Vara da Infância e Juventude. Revista Jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina - Unisul de Fato e de Direito, v. 1, p. 55-68, 2010.

264 265 Quando Hulsman299 fala em justiça penal, tem em mente, então, uma forma especial de cooperação entre polícia, tribunais, sistema prisional, Ministério da Justiça, parlamento e mundo aca- dêmico. Essa forma especial de cooperação (este marco referen- cial) está em boa medida determinado pelo direito penal em um corpo de textos, doutrinas e ideias. Um dos traços mais marcantes desta forma de cooperação é que os grupos e as pessoas concre- tas que se sentem vitimizadas não tem status real neste marco de referência. Os conflitos que ocorrem na sociedade entre as pes- soas e os grupos não são definidos pelo sistema de justiça penal, em termos de partes encadeadas através de regulações (legislação penal) e os requerimentos que o próprio sistema possui. As regu- lações legais e os requerimentos de organização estão orientados para a sociedade e não, para a vítima. As partes diretamente inte- ressadas podem exercer muito pouca influência sobre o curso dos fatos, uma vez que tenha intervido a justiça convencional, sendo o conflito cooptado pelo sistema. As ideias da composição, para determinados casos, inclusive, podem funcionar melhor para a vítima do que as tradicionais. Não só para a vítima, mas também para a sociedade como um todo. Passetti nos faz interessante paralelo:

Falamos junto com Louk Hulsman que, para se combater o investimento de dinheiro e suor públicos em prisões para pobres e subversivos, pois sabemos quanto é mais barato responder à vítima com inde- nização e quanto é estúpido retribuir uma infração com crime, direito penal e teatro- -tribunal, com sentenças e prisões podres que renovam os presídios e os ilegalismos em empresas capitalistas, mais ou menos humanizadas. E nisto não há e nunca

299 HULSMAN, Louk. Pensar en clave abolicionista. In: KOSOVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 50.

264 265 houve perversão ou banalização do mal; somente funcionamento empresarial que procede de práticas de campos de concen- tração, máfias e Estado acopladas à crença em tolerância zero, democracia participativa e representativa, vigilâncias e seguranças em fluxos que caracterizam esta época de neoconsevadorismo moderado300.

Um breve exercício de imaginação pode servir para ilustrar os argumentos acima. Suponhamos que determinado crime de furto de um veículo (avaliado em R$ 40.000,00) tenha ocorrido em via pública, tendo sido o responsável identificado, mas o carro não recuperado. Ao final do processo, houve condenação à pena de 5 (cinco) anos de reclusão. Considerando que é estimado um gasto de R$ 2,3 mil por mês301 com cada apenado, ao final do prazo previsto para o cumprimento da pena, o Estado teria gasto para manter um sistema absolutamente ineficiente e desumano a estonteante quantia de R$ 138.000,00 (cento e trinta e oito mil reais), sem considerarmos juros e eventuais correções. Isto é aproximadamente três vezes e meia o valor original do veículo302. Como resposta, a vítima seria simplesmente intimada da sentença condenatória, conforme artigo 201, parágrafo 2o do Código de Processo Penal. Estaria ela satisfeita? Provavelmente, não. Estaria o destinatário da pena satisfeito? Provavelmente, não. A sociedade estaria satisfeita (considerando os altíssimos

300 PASSETTI, Edson. Sociedade de controle e abolição da punição. São Paulo em Perspectiva, v. 13, n. 3, p. 77-78, 1999. 301 DUARTE, Alessandra; BENEVIDES, Carolina. Brasil gasta com presos quase o triplo do custo por aluno. Disponível em: . Acesso em: 01 jun. 2013. 302 Ainda devemos considerar que os crimes contra o patrimônio são considerados os principais responsáveis por prisões em nosso país, neste sentido: GOMES, Luiz Flávio. Crimes contra o patrimônio são os principais responsáveis por prisões no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 01 jul. 2013.

266 267 índices reincidência)? Provavelmente, não. A irracionalidade da punição, neste caso, é evidente (poderia ser o exemplo de muitos outros em matéria penal). É necessário deixarmos claro que o argumento acima, de cunho nitidamente utilitarista, precisa ser lido com cuidado. A lógica economicista, historicamente, não tem demonstrado maior atenção com os costumeiramente criminalizados. No entanto, a argumentação serve para demonstrar a possibilidade de repensar os padrões punitivos dentro da própria sustentação que o apóia. As ideias de compaixão e arrependimento, ambas imbrica- das à de solidariedade trabalhada logo acima, faz com que exista uma possível nova clave para a (não) diminuta rapsódia criminal, no seguinte sentido:

Gostaríamos que quem causou um dano ou um prejuízo sentisse remorsos, pesar, com- paixão por aquele a quem fez mal. Mas, como esperar que tais sentimentos possam nascer no coração de um homem esmagado por um castigo desmedido, que não com- preende, que não aceita e não pode assimi- lar? Como este homem incompreendido, desprezado, massacrado, poderá refletir sobre as consequências de seu ato na vida da pessoa que atingiu? [...] Para o encar- cerado, o sofrimento da prisão é o de seu ato na vida da pessoa que atingiu? [...] Para o encarcerado, o sofrimento da prisão é o preço a ser pago por um ato que uma justiça fria colocou numa balança desumana. E, quando sair da prisão, terá pago um preço tão alto que, mais do que se sentir quites, muitas vezes, acabará por abrigar novos sentimentos de ódio e agressividade. [...] O sistema penal endurece o condenado,

266 267 jogando-o contra a ‘ordem social’ na qual pretende reintroduzi-lo303.

Hulsman304 considera que a opinião pública, em grande nú- mero, já percebe os efeitos nefastos e contraditórios do sistema penal. Menciona as denúncias de escândalos, os movimentos an- ticarcerários, a atuação de especialistas na tentativa de ruptura, como magistrados e advogados. Infelizmente, o contexto holan- dês305, neste sentido, parece ser radicalmente diferente do brasi- leiro neste sentido. Em nosso país, a atuação de representantes civis em rela- ção ao sistema penal, não raro, se dá no sentido da expansão e do recrudescimento do discurso punitivo (exemplo do movi- mento “Brasil Sem Grades”). O paradoxo se dá na medida em que a grade será tão-somente a da “minha casa”. Teóricos, como Hulsman, defendem a derrubada de toda e qualquer grade, toda e qualquer barreira que nos impeça de exercer a liberdade, en- quanto pressuposto da condição humana.

3.3.2.3 Thomas Mathiesen e seu “Estrategismo Marxista”306 Mathiesen é um dos três principais pensadores do abolicio- nismo. Não só isso: “‘As políticas da abolição’, de 1974, é considerada

303 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. 3. ed. Rio de Janeiro: LUAM, 1999, p. 71-72. 304 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. A aposta por uma teoria da abolição do sistema penal. Revista Verve, n. 8, p. 270, 2005. 305 Em Junho de 2013, o governo holandês anunciou o fechamento de 19 estabelecimentos prisionais por falta de presos. Os baixos índices de criminalidade e os monitoramentos eletrônicos impostos deixaram as celas vazias: G1. Governo holandês estuda fechar prisões devido à falta de criminosos. Disponível em: Acesso em 17 jul de 2013. 306 Expressão trazida por Zaffaroni em: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 98.

268 269 o ponto de partida da teoria”307, como o que levou a teoria às últi- mas consequências a partir de uma atuação no plano teórico (abo- licionismo acadêmico) e também prático308 (através de movimentos sociais que trouxeram importantes repercussões políticas). Daí o mo- tivo pelo qual é considerado “estrategista do abolicionismo”309. O autor centrou a sua análise naquele que parece ser, efeti- vamente, o elemento referencial de reflexão das doutrinas aboli- cionistas: a prisão. Toda a sua construção teórica e de movimento social vai no sentido de sua análise e posterior superação. É o fundador Krom (1969) norueguês, abreviatura de Norsk Forening for Kriminal Reform (Associação Norueguesa para a Reforma Penal)310. Possui uma visão essencialmente pessimista do sistema penal, acreditando que ele sempre pode piorar. Ainda afirmava ser “a estratégia abolicionista inacabada e discutia com o garantismo e o realismo de direita”311. Quanto ao conteúdo estratégico, este se dá desde pres- supostos alinhados com as políticas de esquerda. Isto ocorre porque, em um sentido amplo, a esquerda ataca frontalmente a solução do cárcere em substituição a uma resposta social ao delito. Os pressupostos ideológicos da solidariedade (também

307 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 702. 308 Zaffaroni descreve as premissas do abolicionismo empírico aqui trabalhado: “Em sua action research, Mathiesen assinala que um movimento abolicionista deve reunir determinadas condições para manter a sua vitalidade, tais como: a sua permanente relação de oposição e de competição com o sistema. A oposição requer uma considerável diferença de pontos de vista sobre as bases teóricas do sistema, e a competição requer uma ação política prática fora do próprio sistema”. (ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 100). 309 Ibidem, p. 99. 310 ANDRADE, Vera Regina. Minimalismos, abolucionismos e eficienticismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Revista Sequência, n. 52, p. 164, jul. 2006. 311 MALAGUTI BATISTA, Vera. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 110.

268 269 identificados acima em Hulsman) e compensação são comuns aos socialistas e às socialdemocracias312. A solidariedade irá atuar nas relações sociais, para instru- mentalizar “empatias afetivas” entre dois ou mais agentes de um grupo ou entre dois ou mais grupos sociais. Também, irá implicar a inclusão política e econômica dos membros mais vulneráveis do grupo social, no sentido de as ações serem direcionadas ainda no benefício dessas pessoas, além do necessário apoio emocional313. Quanto à compensação, se refere aos mecanismos que le- varão a concretizar a solidariedade. O processo de “acumulação’ (desde o princípio de São Mateus, Mt. 13:12), no qual os ricos ficam mais ricos e os pobres mais pobres, é fundamental para a estrutura social capitalista da época. A acumulação, vista desta forma, pode ser percebida em vários estratos sociais. Funcio- nando em sentido diametralmente oposto, estaria a compensação objetiva reparar a vulnerabilidade através da redução ou inversão do processo de acumulação314. Desde a postura de um socialista de esquerda, seria possível afirmar que a socialdemocracia de países, como Noruega, Suécia e Grã-Bretanha, estão falhando em termos de solidariedade e mé- todos efetivos de compensação. Ainda: aquele observador poderia dizer que solidariedade e compensações efetivas exigem mudan- ças substanciais na economia e no sistema de produção capitalista, pois nestes a tendência não solidária e a acumulação exacerbada constituem traços muito fortes. Mas reconhece Mathiesen que a socialdemocracia ao menos alimenta a ideologia da solidariedade e da compensação, importantes para os propósitos abolicionistas. É

312 MATHIESEN, Thomas. Juício a la prisión. Tradução de Mario Coriolano y Amanda Zamuner. Buenos Aires: Ediar, 2003, p. 230. 313 MATHIESEN, Thomas. Juício a la prisión. Tradução de Mario Coriolano y Amanda Zamuner. Buenos Aires: Ediar, 2003, p. 230. 314 Ibidem, p. 231.

270 271 possível perceber, então, que esta ideologia está em direção oposta às soluções carcerárias, desafiando a sua legitimidade315. A teoria do norueguês também pode ser compreendida em sentido ainda mais amplo. Conforme Zaffaroni, a vinculação da existência do sistema penal, no modo de produção capitalista, permite entender que a proposta de Mathiesen: “parece aspirar não apenas à abolição do sistema penal, como também, à aboli- ção de todas as estruturas repressivas da sociedade”316. Em nosso país, é possível perceber mudanças significativas desde o marco dos governos efetivamente democráticos. Políti- cas afirmativas, se ainda não produziram os efeitos desejados, o que pode ser compreendido a partir da duração (e permanência) de injustiças históricas, ao menos demonstram um movimento no sentido de fomentar solidariedade através de compensações. Ainda assim, o Brasil continua sendo citado frequentemente como um dos países mais desiguais do mundo. É preciso lembrar que a solução carcerária não é, em pri- meiro lugar, solidária nem com a vítima nem com o ofensor; em segundo lugar, igualmente não é compensatória nem com vítima nem com ofensor. Segundo Mathiesen, não é surpreendente a inexistência de solidariedade e a compensação para o criminoso, o qual se considera pura e simplesmente culpável (no sentido problemático de culpabilidade trabalhado em Hulsman no ponto anterior), submetendo-o a dor previsível. O mais surpreendente, ou ao menos parece afrontar mais gravemente a ideologia do cár- cere, é a falta de solidariedade e compensação com a vítima: “se fala muito sobre a vítima, mas se faz muito pouco”317.

315 Idem, p. 231-232. 316 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 99. 317 MATHIESEN, Thomas. Juício a la prisión. Tradução de Mario Coriolano y Amanda Zamuner. Buenos Aires: Ediar, 2003, p. 231-232. Salo de Carvalho afirma que o giro de se utilizar ao invés de escalas de punição escalas de apoio à vítima é a proposta mais interessante e inovadora do abolicionismo. (CARVALHO, Salo de. Anitmanual de criminologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 135).

270 271 A ausência desses dois objetivos fundamentais também apa- rece em relação às vítimas potenciais do sistema, pois a prisão não dissuade nem reabilita o ofensor. Por outro lado, a ideologia política conservadora priorisa mais a iniciativa individual do que a solidariedade e mais, a regulação desde forças do mercado que pela compensação, ou seja: “não só é compatível com a solução carcerária, como a reforça”318. Uma das perguntas que poderiam ser feitas é: Quem pagaria pelo sistema de apoio às vítimas? Mathiesen responde que são as próprias prisões. Isto porque o desmantelamento do modelo prisio- nal implicaria a economia de muitos milhões de dólares, que pode- riam ser gastos com as vítimas e os desviantes. Vimos que, no Bra- sil, são gastos atualmente mais de R$ 2.000,00 por mês, em média, com o apenado. Para um sistema que pouco agrega em termos de perspectiva de vida futura ao condenado e muito menos em rela- ção à vítima, podemos considerar um péssimo investimento319. Sinteticamente, é defendido que “a guerra contra o crime de- veria tornar-se uma guerra contra a pobreza”320. Além de moradia, programas de pleno emprego, políticas educacionais inclusivas, tra- tamentos não baseados na força, além da defendida radical mudança em nossa política de drogas321 são ações que devem ser realizadas. Hoje, nossa população carcerária possui número bastante ex- pressivo de pessoas criminalizadas por condutas relacionadas a en- torpecentes322. Desta forma, a regulação dessas condutas fora do sistema penal já permitiria, ao menos, sensível melhora no quadro de superlotação carcerária presente. Ainda: atingiria o “centro do crime organizado da droga, que é dependente das forças do mer-

318 Ibidem, p. 232. 319 MATHIESEN, Thomas. A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?. Revista Verve, n. 4, p. 82, 2003. 320 Ibidem, p. 97. 321 Idem, p. 97. 322 Neste sentido: GOMES, Luiz Flávio. Tráfico é o crime mais encarcerador do país. Disponível em: . Acesso em: 01 jul. 2013.

272 273 cado”. Teria, em última análise, a possibilidade de liquidar “o poder dos figurões que hoje em dia não terminam na prisão, porque ela está sistematicamente reservada para os pobres”323. De acordo com Shecaira, cinco são as funções geralmente atribuíveis ao cárcere e trabalhadas em Mathiesen:

[...] nenhuma delas se aproxima daquela que os penalistas estão acostumados a veri- ficar em seus manuais de direito. [...] a pri- meira função é depurativa.

Tal sociedade pode libertar-se da impro- dutividade de várias maneiras, mas a mais difundida é a internação. Anciãos vão para uma casa de repouso; os loucos são condu- zidos a um hospital psiquiátrico; os alcoóla- tras e viciados em drogas se tratam em clí- nicas especializadas. Ladrões e traficantes são destinados ao cárcere. O muro que se ergue entre a sociedade produtiva e aquela improdutiva perpassa a muralha, real e sim- bólica dessas instituições.

A segunda função da prisão é de redução da impotência. Para a sociedade produtiva, não é suficiente colocar os “improdutivos” em uma instituição fechada. É importante que não se ouça mais falar deles, para que a depuração tenha bom êxito.

A terceira função do cárcere é a diversiva. Na nossa sociedade, são cometidos inú- meros crimes por pessoas perigosas e que representam perigo à sociedade.

323 MATHIESEN, op. cit., p. 97.

272 273 Enfim, são ações que atingem bens difusos, prejudicando toda comunidade. Essas são, de fato, as pessoas mais perigosas social- mente. A pena privativa de liberdade, no entanto, destina-se aos autores de crimes contra a propriedade, delitos nem sempre relevantes para comunidade como um todo.

A quarta função é simbólica. Embora possa se parecer com a função anterior, podem ser destacados alguns aspectos específicos. É com a entrada no cárcere que se inicia o processo de estimatização. A detenção de poucos simboliza a infalibilidade de muitos. Talvez nesta função seja encontrada a razão profunda para o fato de, enquanto o detido é submetido a um complexo processo estig- matizante ao entrar para a prisão, não recebe um equivalente processo desestig- matizante ao sair da prisão.

Por fim, a quinta e última função é demons- trar a ação. O encarceramento é o tipo de sanção com maior impacto e visibilidade na nossa sociedade324.

Mathiesen refere que um dos principais motivos pelos quais o aprisionamento convive em sociedades democráticas é o desconhecimento das pessoas sobre sua realidade:

Se as pessoas realmente soubessem o quão fragilmente a prisão, assim como as outras partes do sistema de controle criminal, as protegem — de fato, se elas soubessem como a prisão somente cria uma sociedade

324 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 375.

274 275 mais perigosa por produzir pessoas mais perigosas —, um clima para o desmante- lamento das prisões deveria, necessaria- mente, começar já. Porque as pessoas, em contraste com as prisões, são racionais nesse assunto. Mas a informação fria e seca não é suficiente; a falha das prisões deveria ser “sentida” em direção a um nível emo- cional mais profundo e assim fazer parte de nossa definição cultural sobre a situação.

A direção desse novo clima é, com cer- teza, difícil de predizer, mas provavelmente implicaria uma ênfase renovada no apoio real às vitimas, assim como nos recursos e serviços sociais ao transgressor, uma vez que a solução, altamente repressiva, falhou completamente. Os políticos que criaram, mantiveram e, de fato, expandiram o sis- tema atual, teriam de adaptar-se, rapida- mente, a fim de não perder os eleitores, a sua principal preocupação325.

As pessoas não conhecem as contradições internas de nos- sas prisões são levadas a acreditar que elas funcionam. Estamos seguros326 a partir do momento em que a ameaça (sempre proje- tada n’outro) foi contida. Não sabem, essas pessoas, quão irracionais são nossas prisões. Esse é “um dos segredos melhor guardados em nossa sociedade,

325 MATHIESEN, Thomas. A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? Revista Verve, n. 4, p. 95-96, 2003. 326 No sentido de Vera Andrade (A ilusão da segurança jurídica). Sobre a necessidade de abertura das prisões à sociedade civil, possível ver também: BATISTA, Nilo. Introdução crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1994, p. 38.

274 275 pois, se o segredo fosse revelado, destruiria as raízes do sistema atual e implicaria o começo de sua ruína”327. Existem três “camadas” que funcionam como guardiãs da prisão. Na primeira, estão os administradores do sistema de con- trole, que conhecem o estado de falência e de sombras das pri- sões, mas permanecem em silêncio. Isto ocorre, pois estes agen- tes “foram cooptados pelo sistema; tornaram-se uma parte e uma parcela dele. A cooptação ocorre através de um processo sutil no qual a evidência contra o sistema – tão abundante no contexto carcerário – é seletivamente eliminada [...]”328. Também irá funcionar como escudo, em uma segunda ca- mada, o silêncio dos adiministradores em lealdade ao sistema: “Existe uma cultura de lealdade assim como havia uma cultura de lealdade aos líderes alemães entre a população durante a última parte da Segunda Guerra Mundial”329. A aparência de legalidade do sistema também contribui para o espírito de lealdade. Em último lugar, os administradores serão disciplinados através do silêncio. Por meio de medidas ocultas ou bruscas, que podem va- riar, no primeiro caso, de reuniões para evitar atos que ameacem a normalidade e o continuum do sistema, até mesmo, no segundo caso, a ameaças e as reprimendas que podem levar à perda do emprego330. Elenca dez motivos fundamentais pelos quais devemos de- clarar uma moratória à construção331 de novos estabelecimentos prisionais: 1) a ineficácia da reabilitação, já que poucos que pas-

327 MATHIESEN, Thomas. A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? Revista Verve, n. 4, p. 96, 2003. 328 Ibidem, p. 98. 329 Idem, p. 99. 330 MATHIESEN, Thomas. A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? Revista Verve, n. 4, p. 99, 2003. 331 MATHIESEN, Thomas. Diez razones para no construir más cárceles. Revista Nueva Doctrina Penal, Buenos Aires, Argentina, n. 1, p. 5-11, 2005. Como primeira exigência de seu abolicionismo político, propõe moratória de quinze anos na construção de novas prisões, exigência que deve ser levada aos governantes locais e parlamentos nacionais. Também deve a exigência ser levada à União Europeia e às Nações Unidas. Em torno dessa conclamação, é possível forjar um

276 277 saram pelo sistema conseguem efetivamente reintegrar-se ao convívio social; 2) a ineficácia preventiva (prevenção geral332, já que existe dificuldade em conseguir medir o quanto a norma tem efeito dissuasivo em relação ao delito); 3) a ineficácia incapaci- tadora do sistema (no sentido de impedir que o recluso pratique novos crimes, o que é uma falácia especialmente verdadeira no Brasil, onde são notórias as práticas de delitos dentro do cárcere ou dos ordenados desde ali); 4) as teorias da justiça filosóficas, ainda que complexas, dificilmente dão suporte à lógica carcerá- ria contemporânea; 5) a irreversibilidade (uma vez construídas, dificilmente são derrubadas); 6) a insaciabilidade das prisões re- velada pela superlotação, como regra generalizada (mesmo que os níveis de criminalidade diminuam, os estabelecimentos con- tinuam cheios); 7) a inumanidade (afastamento dos ideais mais básicas de humanidade); 8) a quebra de valores jurídicos (como a saúde e a dignidade); 9) a ausência de ajuda às vítimas (o inves- timento no cárcere poderia ser direcionado333 diretamente para

novo movimento anticarcerário internacional, inspirado pelos atuais movimentos antiglobalização e pacifistas. 332 Sobre este ponto, afirma Anitua que “a prevenção aparecia diante do irrealizável do ideal ressocializador, que assim se via criticado por todos os flancos ideológicos possíveis. O problema residiria no fato de que, como já disse, tampouco era possível demonstrar que o ideal dissuasivo funcionava. Apesar da maior dificuldade de encontrar com tanta clareza como com relação à ressocialização a famosa prova empírica do seu fracasso de hoje e de sempre, as numerosas pesquisas realizadas para medir os efeitos preventivos gerais negativos mostravam, igualmente, que estes eram inexistentes ou, em todo caso, muito secundários”. (ANITUA, Gabriel. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 798). 333 Mathiesen descreve três formas de compensação às vítimas: I) compensação material automática, mediante uma política de seguros com esse fim, suportados pelo Estado (provavelmente, um valor bastante reduzido face aos gastos já existentes com o sistema carcerários, que não são baixos); II) compensação simbólica em forma de novos rituais e pena e dor, na qual haveria utilização de recursos para entender profundamente todo o contexto do crime e dos atores envolvidos (não somente o ato final), alterando-se o ‘status’ do criminoso e atribuindo à vítima uma dignidade renovada; III) através de redes de apoio social, incluindo os mais variados tipos de suporte à vítima, como o de assistência social e também psicológica.

276 277 quem sofreu a ação delituosa, já que a reclusão, per se, não alivia o sofrimento causado; 10) o grande encarceramento pode ser re- solvido por outras vias (como a dos substitutivos penais334). Além disso, Mathiesen identificava uma indústria da dor, em sentido semelhante ao trabalhado por Christie335, organizada em torno dos estabelecimentos carcerários:

Em “Sonho impossível?”, o autor explicita e pormenoriza algumas práticas desejáveis: “apoio simbólico em situações de luto e pesar, abrigos para onde levar as pessoas quando necessitarem de proteção, centros de apoio para mulheres espancadas, solução de conflitos quando isso for possível e assim por diante. As vítimas não recebem absolutamente nada do sistema atual, nem da aceleração e ampliação do sistema presente, no entanto poderiam receber muito se houvesse a mudança de direção do sistema na forma como sugerida. Uma ideia e um princípio fundamental seria guinar o sistema em 180 graus: ao invés de aumentar a punição do transgressor, de acordo com a gravidade da transgressão, o que é básico no sistema atual, proporíamos o aumento de apoio à vítima de acordo com a gravidade da transgressão. Em outras palavras, não, uma escala de punições para os transgressores, mas, uma escala de apoio às vítimas.” (MATHIESEN, Thomas. A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? Revista Verve, n. 4, p. 96, 2003). 334 Veja-se: Sobre a necessidade de abertura das prisões à sociedade civil, possível ver também: BATISTA, Nilo. Introdução crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1994, p. 38. 335 Sobre a indústria do controle do delito, CHRISTIE faz as seguintes colocações: “Este libro es una advertencia ante el reciente desarrollo del control social del delito. La idea central es simple. Las sociedades occidentales enfrentan dos problemas principales. la distribución desigual de la riqueza y la distribución desigual del acceso al trabajo remunerado. Ambos problemas pueden dar lugar a disturbios. La industria del control del delito está preparada para enfrentarlos: provee ganancias y trabajo al mismo tiempo que produce control sobre quienes de otra manera perturbarían el proceso social. En comparación con la mayoría de las industrias, la industria del control del delito se encuentra en una situación más que privilegiada. No hay escasez de materia prima: la oferta de delito parece ser infinita. También son infinitas la demanda de este servicio y la voluntad de pagar por lo que se considera seguridad. Y los planteos habituales sobre la contaminación del medio ambiente no existen. Por lo contrario, se considera que esta industria cumple con tareas de limpieza, al extraer del sistema social elementos no deseados” (CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito – La nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Editores del Puero, 1993, p. 21). Es necesario ponerle límites al crecimiento de la industria carcelaria. Nos encontramos en una situación en la que resulta crucial discutir seriamente hasta dónde se puede permitir que se extienda el sistema de control formal. Las ideas, los valores, la ética -y no el empuje industrial- deben determinar los límites del control, deben disponer cuándo es suficiente. El tamaño de la población carcelaria depende de ciertas decisiones. Somos libres de elegir. Es solamente cuando no tomamos conciencia de esta libertad que las condiciones económico- materiales reinan libremente. El control del delito es una industria. Y las industrias deben

278 279 O objetivo mais imediato ao qual ele se propunha era o de deter a construção de prisões, para a qual defendia uma ‘morató- ria’. Ele também tinha claro que a indústria que se organizava em torno dessa constriu- ção era o inimigo mais poderoso, para que os seus objetivos fossem alcançados. Os cárceres ficam cheios, uma vez que estão sendo construídos: trata-se, pois, de um negócio infinito. Por isso, Mathiesen for- necia os argumentos para deter essa cons- trução e evitar o possível holocausto para o qual se encaminham, caso contrário, as sociedades ocidentais, e oferecia explica- ções de como a sociedade podia organizar- -se melhor sem prisões, prestando atenção à pobreza e a outros problemas sociais, à integração dentro das comunidades e às reais necessidades daqueles que são vítimas desses problemas336.

Portanto, o fracasso da prisão requer, desde um ponto de vista racional, a redução deste sistema e a sua eventual abolição. Reconhece, entretanto, que a questão não é simples. Pelo contrá- rio. Existe uma chamada “ideologia do cárcere”337, culturalmente introjectada no tecido social, em função da permanência histó- rica de tal modelo punitivo, e, por isto, a forma estratégica de atuação é decisiva, levando sempre em conta que a perspectiva é inicial, não, um modelo pronto e acabado338.

mantenerse dentro dé ciertos limites. Este libro trata sobre la expansión de la industria carcelaria y también sobre las fuerzas morales que se le oponen (Ibidem, p. 21-23). 336 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 704-705. 337 MATHIESEN, Thomas. Juício a la prisión. Tradução de Mario Coriolano y Amanda Zamuner. Buenos Aires: Ediar, 2003, p. 218. 338 Ibidem, p. 229.

278 279 Em um de seus últimos textos, traduzidos para o portu- guês339, Mathiesen pergunta: É um sonho possível a abolição do cárcere? Apesar de, em momento algum, negar as dificuldades inerentes ao processo, responde que o “sim” pode ser sonhado. Para tanto, são referidos dois exemplos históricos, nos quais o contexto favoreceu um notório avanço em sentido de direitos humanos. A queda do Império Romano e a Abolição da Escra- vatura ocorreram, transcenderam ao campo do sonho. Ambos os fatos passados, à época, eram quase que impensáveis, e os seus defensores classificados de utopistas, no entanto ocorreram340. Mathiesen crê que taxar o abolicionismo como “sonho im- possível” seria muito apressado. Em um trecho provocativo sobre as vitórias abolicionistas do passado, Scheerer lembra-nos que “nunca houve uma transformação social significante na história que não tenha sido considerada irreal, estúpida ou utópica pela grande maioria dos especialistas, mesmo antes do impensável se tornar realidade”341. Para Mathiesen, a ideia de se pensar afirmativamente acerca da possibilidade é animadora, mas, ainda assim, ressalta as severas resistências punitivistas existentes:

Para um abolicionista, é animador mostrar que a abolição de sistemas penais inteiros, de fato, é possível. Mas, como eu disse, hoje em dia, as condições são completamente dife- rentes. Se a Inquisição quisesse, ela pode- ria ter se voltado completamente contra o povo. E completamente contra os meios de comunicação de massa, que não existiam — exceto pelos livros publicados. A mudança

339 MATHIESEN, Thomas. A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? Revista Verve, n. 4, p. 82, 2003. 340 Ibidem, p. 82. 341 SCHEERER, Sebastian. Towards abolitionism. Crime, Law and Social Change, v. 10, n. 1, p. 7, 1986.

280 281 cultural na Inquisição, vitória de uma parte de uma cultura alternativa e a compreen- são dentro do sistema, foi, portanto, uma condição suficiente para a abolição. Hoje em dia, uma mudança cultural no sistema penal e uma mudança na direção de um senso de responsabilidade pessoal por parte daqueles que lá trabalham é muito necessá- ria. Contudo, não seria uma condição sufi- cientemente plena, porque o sistema penal atual, elaborado por políticos, é muito mais dependente no contexto geral daquilo que chamamos de “opinião pública” e meios de comunicação de massa342.

Entre as camadas de proteção ao sistema penal, o autor con- sidera que a mais fundamental são justamente os meios de comu- nicação343. Uma mudança cultural passaria pelos mass media, pois a percepção desses veículos influencia (e muito) a visão social a respeito da prisão e dos seus efeitos344.

342 MATHIESEN, Thomas. A caminho do século XXI - abolição, um sonho impossível?. Revista Verve, n. 4, p. 89, 2003. 343 Ibidem, p. 89. 344 “Se a mídia, especialmente a televisão, mudasse o conteúdo do divertimento superficial para o conhecimento crítico criaria uma mudança cultural básica, uma mudança no clima cultural, que teria repercussões em todas as áreas de pesquisadores e intelectuais, assim como de administradores. Como eu já mencionei, os administradores e os pesquisadores, dentro e na ponta do sistema, geralmente “seguem o exemplo”. Quando o clima cultural envolvendo a prisão torna-se difícil, eles tornam-se difíceis. Quando o clima cultural abranda, eles abrandam. Não são heróis independentes, ao contrário, suas antenas estão basicamente dirigidas para fora, em direção ao clima cultural, mediado como é pelos meios de comunicação de massa. Uma mudança no clima cultural externo, na opinião sobre o que é a “linha correta”, criaria uma mudança paralela entre os pesquisadores próximos ao sistema e os administradores dentro dele. Certamente, ainda estariam envolvidos em longas batalhas, na margem, assim como dentro da prisão. Talvez a mudança cultural básica no centro e na margem deva parcialmente esperar pela próxima geração, mas aconteceria mais cedo ou mais tarde”. (Ibidem, p. 104-105).

280 281 Assim como Christie e Hulsman, também Mathiesen não abre totalmente mão da possibilidade ainda de termos de subme- ter alguns indivíduos à prisão:

Temos que admitir talvez a possibilidade de que encarcerar alguns indivíduos perma- neça. A forma de se tratar deles deveria ser completamente diferente do que acontece hoje em nossas prisões. Uma forma disto ser assegurado, contra o aumento de seu número devido a uma mudança de crité- rios, seria estabelecer um limite absoluto para o número de celas fechadas para tais pessoas a ser aceito em nossa sociedade345.

Portanto, os fundamentos históricos sobre os quais as prisões se assentaram, antes em um sentido de avanço346 em relação aos castigos medievais, agora sob o signo da ideologia da segurança e do controle347, precisam ser urgentemente revistos à luz de uma

345 MATHIESEN, op. cit., p. 98. 346 Muito mais relevante é saber como castigar, ou seja, o tema da desprisionalização. Cremos que os tempos tenham amadurecido o suficiente para colocar como centro da discussão a questão do cárcere. Este, sabemos, foi uma invenção moderna, considerada como grande conquista dos ideais humanitários da ilustração, enquanto alternativa à pena de morte, aos suplícios, penais corporais, à tortura em praça pública e a outros horrores do direito penal pré-moderno. (FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Garantismo. 2. ed. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2010, p. 203). 347 No sentido de GARLAND, citando algumas das características da cultura do controle: “o que emerge é a mudança de ênfase dos métodos de reabilitação para o controle efetivo, da perspectiva do bem-estar para modalidade puramente “penal”, centrada em objetivos retributivos, incapazes, dissuasivos, e voltada à dita segurança pública. Em especial, as leis e prática de semi-liberdade iniciam-se a serem vistas como simples castigos à comunidade, em que minimizam os objetivos habitual e tradicionalmente dispostos de reabilitação em prol da vigilância intensiva dos liberados confiada à polícia. Assim, se pelo aspecto da modalidade penal vê-se claramente seu caráter mais prioritário, proeminente e punitivo, a espécie do welfare tem-se tornado mais centrada no delito e no risco. Noutros termos, os delinqüentes submetidos aos regimes semi-liberdade são postos no discurso não mais no lugar de sujeitos com privações sociais que, neste estado, necessitam de ajuda. São confrontados como riscos que necessitam ser geridos, indignos e perigosos que devem ser

282 283 possível moratória. A (necessidade de) deslegitimação do modelo é agravada por todas as variáveis complexas que circundam um julgamento penal, dentre elas, claro, a possibilidade de ocorrên- cia de falsas memórias.

3.3.3 Entre Minimalismos e Abolicionismos: em Busca da Efetiva Redução de Danos Após discutirmos as principais propostas minimalistas e abolicionistas, iremos analisar a possibilidade de qual(is) do(s) projeto(s) apresenta(m) os melhores fundamentos para propiciar uma efetiva redução de danos dos (possíveis) efeitos das falsas memórias para o processo penal. Além de mecanismos, como as entrevistas cognitivas (dis- cutidos em nosso capítulo anterior), poucas alternativas têm sido descritas para a urgente amenização do problema. Temos visu- alizado como resposta mais premente a redução de danos pelo reforço das garantias processuais penais do acusado. Também são suscitadas possíveis reformas na inquirição de testemunhas. No entanto, observamos que, no texto do Projeto de Lei Substitutivo nº 156/2009 (Código de Processo Penal) o tratamento dado ao problema segue basicamente a sistemática atual. Há certo otimismo relativo ao cross examination348, como se ele tivesse resolvido os problemas acerca da colheita da testemunha. Quanto aos elementos colhidos em fase poli- cial, a argumentação tende a ser homogênea, no sentido de simplesmente estes serem desconsiderados em âmbito pro- cessual. Tais posturas, infelizmente, não refletem nossas prá- ticas atuais. Em primeiro lugar, o sistema do cross examina- tion outorgou tarefa dificílima ao magistrado: julgar quando

cuidadosamente controlados para a proteção do público”. (GARLAND, David. Cultura do controle. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 278-289). 348 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 411.

282 283 uma pergunta possui conteúdo sugestionável, ou não, sem que aquele tenha tido o devido tratamento para tanto. Se, em um contexto interdisciplinar (como se tentou demons- trar no capítulo anterior), já percebemos a dificuldade de enfrentar a questão, quem dirá em um terreno meramente (com vontade de) disciplinar. Em segundo lugar, a utilização de elementos colhidos no inquérito policial, em um sentido geral, é uma constante em nossos processos criminais. Contudo, medidas de redu- ção de danos não são pensadas em relação a esta fase. Pelo contrário: as opções geralmente são a abolição do inquérito ou simplesmente que ele deixe de ser anexado à Denúncia, quando esta é enviada ao judiciário. Não é possível ignorar que a prática continua a ser re- alizada e, desde que amparada em elementos trazidos ao longo do processo, os elementos policiais continuam a ser utilizados. À primeira vista, nos parece que a exclusão fí- sica dos autos de Inquérito ou sua readequação/redireciona- mento com a intervenção do Ministério Público não tocam o âmago da questão: a diária legitimação de práticas antiju- rídicas (principalmente inconstitucionais). É necessário voltarmos ao âmbito global da discussão, especialmente, a questão cultural. Discutir os motivos pelos quais as injutiças (de parte a parte) são socialmente tolera- das/toleráveis (?) é algo fundamental. Escolher entre dois sistemas de deslegitimação, um mais radical (abolicionismo) e outro menos (minimalismo), é algo fundamental, não olvi- dando que existem muitos pontos de toque entre elas. As violências institucionais encontram terreno fértil nas brechas expostas pela lei. Por este caminho, perpetuado por modelos burocráticos, impregnados de uma linguagem complexa (quase hermética), consolidam a imposição de dor sobre o outro. É importante dizer, porém, que, apesar das preten- sões universalistas do modelo do garantismo penal, autores

284 285 vinculados a essa teoria demonstram, por vezes, ciência acerca de seus limites. Mais explicitamente: “o garantismo jurídico não é a salvação de todas as situações sociais”349. Em sentido semelhante, ressalta Prado:

O garantismo não é uma religião, e os seus defensores não são profetas ou pregadores utópicos. Trata-se de um sistema incom- pleto e nem sempre harmônico, mas a sua principal virtude consiste em reivindicar uma renovada racionalidade, baseada em procedimentos que têm em vista o objetivo de conter os abusos do poder e criar condi- ções para que este mesmo poder possa inte- grar as pessoas, eliminando, dentro do pos- sível, todas as formas de discriminação350.

Ferrajoli reconhece que toda a estrutura epistemológica do modelo garantista penal tem como inegável defeito correspon- der a um modelo limite, revestido de idealismo “porque, de fato, nunca se realizou nem nunca será realizável” (grifo nosso)351. Mesmo considerando e reconhecendo os inerentes problemas ao modelo do garantismo, ainda assim esse autor visa a afastar a possibilidade de confusão de sua teoria com um caráter absoluta- mente deslegitimador ou abolicionista352. Ferrajoli trabalhará o problema da justificação da penal, ou seja, a ideia de uma comunidade política qualquer exercitar

349 MORAIS DA ROSA, Alexandre. Garantismo jurídico e controle de constitucionalidade material: aportes hermenêuticos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 1. 350 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório – A conformidade constitucional das leis processuais penais. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. XVII. 351 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2009, p. 38. 352 Neste sentido, é bastante importante ver SOUZA, Alexandre Araújo. Prefácio. In: FERRAJOLI, Luigi. Garantismo – uma discussão sobre direito e democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. VII-XIII e p. XI-XII.

284 285 violência programada sobre um de seus membros, que considera um dos problemas mais antigos da filosofia do Direito. Em que irá se basear este poder, chamado, por vezes, de “pretensão punitiva” ou “direito de punir”? Existem e se sim, quais são as razões que fazem “justo”, ou “justificado” ou “aceitavel moral e/ou politica- mente” que a violência ilegal representada pelo delito seja res- pondida com essa segunda violência legal, colocada em prática através da pena? E como se justifica o exercício de uma violência organizada, que emana de uma coletividade e é dirigida contra apenas uma pessoa? Esse problema colocou em segundo plano outras duas questões de justificação externas relativas a “se” e “por que’ do direito penal: “se e por que proibir”, que é uma ques- tão que antecede o “se e por que castigar” e “se e por que julgar”, que é uma questão consequente das outras duas353. Às três questões, historicamente, tem-se dado duas respos- tas: uma positiva e outra negativa. As positivas são dadas por doutrinas chamadas justificacionistas, pois justificam os custos do direito penal com fins, ou razões, ou funções morais ou social- mente irrenunciáveis. As respostas negativas são, por outro lado, oferecidas pelas chamadas doutrinas abolicionistas, que não reco- nhecem justificação alguma ao direito penal e propõe a sua elimi- nação, até porque atacam a raiz de seu fundamento éticopolítico, eis que consideram as vantagens proporcionadas por ele inferio- res ao custo da tripla constrição que é produzida: a limitação da liberdade de ação de seus cumpridores, o submetimento ao juízo de todos aqueles que se suspeita sejam descumpridores e o castigo de tantos quantos se julgue que são354. Ferrajoli considera como abolicionistas somente aquelas dou- trinas axiológicas que impugnam como ilegítimo o direito penal, já que não admitem moralmente nenhum fim possível a justificar os

353 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2009, p. 247. 354 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2009, p. 248.

286 287 sofrimentos que dele decorram, nem consideram vantajosa a aboli- ção da pena através de sua substituição por meios pedagógicos ou por instrumentos de controle de tipo informal e imediatamente social355. O autor diferencia, ainda, abolicionistas, substitucionistas e reformadores. São somente substitucionistas, aquelas doutrinas cri- minológicas, por vezes libertárias e humanitárias em sua intenção, mas, convergentes na prática do correcionalismo positivista, que, amparadas pelo programa da “abolição da pena”, propõe, em rea- lidade, a substituição da forma penal (reação punitiva) por “trata- mentos” pedagógicos ou terapêuticos de tipo informal, contudo, sempre institucional e coercitivo e não meramente social. Por fim, são simplesmente reformadoras as doutrinas penais que propugnam a redução da esfera de intervenção penal ou, por outro lado, a abo- lição em favor de sanções penais menos aflictivas”356. A defesa realizada por Ferrajoli vai exatamente no sentido do excerto abaixo:

Pessoalmente, por exemplo, sustentarei neste livro a necessidade de reduzir e, num horizonte, de abolir as penas privativas de liberdade na medida em que excessiva e inutilmente aflictivas e em muitos aspectos danosas, assim como limitar os tipos penais de forma a dar cumprimento a um programa de direito penal mínimo. No entanto, defen- derei, ao mesmo tempo, em contrariedade às hipósteses abolicionistas propriamente ditas e às substitucionistas, a forma jurí- dica da pena como técnica institucional de minimização da reação violenta à desviação não socialmente tolerada e como garantia do imputado frente às arbitrariedades, os

355 Idem, p. 248. 356 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2009, p. 248.

286 287 excessos, os erros ligados aos sistemas não jurídicos de controle social357.

Ferrajoli afirma que abolicionistas, como Hulsman e Chris- tie, propõem a tese do abolicionismo anarquista do século XIX, oscilando na prefiguração de alternativas ao direito penal, que constituem formas de regulamentação e delimitação da violência punitiva entre improváveis projetos de comunidades, baseadas na solidariedade e fraternidade, “vagos” objetivos de “reprovação social” dos conflitos entre ofensores e partes odendidas e méto- dos primitivos de composição patrimonial das ofensas, que lem- bram as antigas formas do “preço e do sangue”358. As garantias se configuram como fontes de justificação do direito penal, como alternativa à anarquia que pode reger as reações entre a ofensa e a retribuição em uma possível ausência do direito penal359. Em verdade, vimos que os abolicionismos defendidos pelos autores acima possuem diferentes fundamentações. Em Hul- sman, a ideia de comunidade existe justamente para evitar a anulação do outro no momento de julgar360. Aquele autor não necessita trabalhar intermitentemente com a categoria de indi- víduo, algo indispensável a Ferrajoli, daí a dificuldade em enxer- gar algo para além das garantias, indissociáveis em seu adjetivo moderno, invidivuais. Christie tem em comum com Hulsman a ideia de um comunitarismo, então aquele autor, ainda que se considere minimalista, vai muito além da proposta de Ferra- joli, como vimos, quando propõe a redução radical do sistema

357 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2009, p. 248-249. 358 Ibidem, p. 252. 359 FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Garantismo. 2. ed. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2010, p. 194. 360 Sobre possíveis aproximações entre abolicionismo penal e a ética da alteridade, recomendamos os seguintes textos: SCAPINI, Marco Antônio de Abreu. Criminologia & Desconstrução – Um Ensaio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012; e LAITANO, Grégori Elias. Por uma criminologia do encontro – um ensaio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.

288 289 penal. Equivoca-se o autor italiano quando chama Christie de anarquista, pois esse, inclusive, trabalha com a concepção de multi-instituições361. Portanto, não é possível confundir a des- centralização do Estado com um anarquismo. Ferrajoli, apesar da forte crítica ao abolicionismo, admite e consegue reconhecer pontos fortes nesta teoria. Afirma que “des- graçadamente, as perspectivas abolicionistas demonstradas são utópicas em parte” (grifo nosso)362. A implantação das ideias deslegitimadoras não constituem somente exercício intelectual colocado como argumento contrário, a fim de satisfazer a carga da justificação do direito penal. Os sistemas trabalhados acima, embora na condição de “alternativos”, convivem sempre, em al- guma medida, com todo direito penal positivo, precisamente na medida em que está ausente em plano normativo e/ou se viole em plano prático o conjunto de garantias que definem e justifiquem as suas formas mínimas para a tutela dos direitos fundamentais. Abolicionismo e justificacionismo apriorístico se revelam, em suma, pelas hipotecas ideológicas que pesam sobre ambos, para- doxalmente convergentes na legitimação da obsoluscência do di- reito penal e que parece demonstrar uma utopia”363. Almeida da Costa afirma como grande problema das teorias abolicionistas a desconsideração da lei, já que aquelas sugerem “seu final, sua extinção, ao passo que a idéia de direito penal mí- nimo está intimamente ligada à manutenção da legislação desde

361 CHRISTIE, Nils. Uma quantidade razoável de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 45 e ss. 362 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2009, p. 341. 363 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2009, p. 341. “De fato, quando observamos o efetivo funcionamento dos ordenamentos penais, e especificamente o italiano, parece interessante a ‘abolição’ da pena ou a justificação no lugar de instrumentos de controle extra-penais. A pena, propriamente dita, como sanção legal pós delito e pós jurisdição – é cada vez mais na Itália uma técnica punitiva secundária. A prisão preventiva, conjuntamente com o processo de espetacular estigmatização pública, antes da condenação, ocupou o lugar da pena como sanção primária ao delito ou até mesmo da suspeita de delito” (Ibidem, p. 341-342).

288 289 que aplicada em última instância”364. Por conseguinte, se consi- dera que o minimalismo é um instrumento importante de contra- posição ao direito penal de emergência e também para a reforma da legislação penal e processual penal. A leitura da adequação minimalista levará às seguintes con- clusões:

Na perspectiva processual penal, o direito penal mínimo e o garantismo mostram-se tendentes a realizar a aplicação da pena e a proteger o acusado do arbítrio e do poder demasiado do Estado. Frente a essa pers- pectiva, mais uma vez, o abolicionismo revela-se incapaz de solucionar qualquer tipo de problema ou de prejuízos gerados nesta seara. O processo, não sendo um fim em si mesmo, jamais poderá ser abolido; dele depende o exercício de garantias subs- tanciais (penais) e instrumentais (proces- suais), que têm como fim, em si mesmas, o primado constitucional e democrático. Daí se falar em abolicionismo utópico (por- quanto irrealizável) e em garantismo tópico (porque indicado no próprio ordenamento jurídico e passível de realização prática)365.

Por outro lado, o otimismo gerado pela leitura minimalista, certamente (historicamente) muito mais familiar à tradição jurí- dica, não é compartilhado pelo próprio Ferrajoli. Em edições mais recentes de “Direito e Razão”, é deixado bastante claro que o ga- rantismo constitui, ele próprio, uma utopia:

364 COSTA, Renata Almeida da. Abolicionismo utópico e garantismo penal tópico. Revista Justiça do Direito, v. 1, n. 16, p. 77, 2002. 365 Ibidem, p. 77.

290 291 [...] sendo a utopia um elemento integrante da noção de valor no sentido em que é pró- prio dos valores o fato de não ser nunca perfeitamente realizável ou de uma vez por todas e de admitir sempre uma satisfação somente imperfeita, ou seja, parcial, rela- tiva e contingente366.

Não é o ideal, mas, o menos mal possível367. Explica que a única justificação racional que pode oferecer o direito penal, em detrimento às hipóteses abolicionistas, é que se permita reduzir, ou seja, minimizar a quantidade e a intensidade da violência na sociedade: não só a violência decorrente dos delitos, como tam- bém a das reações frente a estes delitos. As doutrinas abolicio- nistas têm, sem dúvida, um mérito neste particular: de reverter sobre o direito penal a carga de sua justificação. O direito penal se justifica se e somente se, além de prevenir os delitos – algo que também os sistemas policiais desregrados e de justiça privada podem fazer – puder minimizar a violência das reações ante aos delitos. Se e somente se, em consequência, puder ser instrumento de defesa e garantia de todos: não somente da maioria não des- viante, mas também, da minoria desviante. Se, em síntese, for capaz de realizar, como direito penal mínimo, um duplo objetivo: não somente a prevenção e a minimização de criminalidade, como ainda a prevenção das reações informais frente aos delitos e à diminuição das penas368. Considerando este utilitarismo des- medido, o paradigma do direito penal mínimo estabelece a justi- ficação do direito penal no seu papel de lei do mais fraco como alternativa à lei do mais forte que regeria em sua ausência.

366 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoria del garantismo penal. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2009, p. 866. 367 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 736. 368 FERRAJOLI, op. cit., p. 194.

290 291 As garantias, por conseguinte – todas as garantias, desde as penais relativas à taxatividade, materialidade, ofensividade e culpabilidade até as processuais de presunção de inocência e contraditório – são técnicas engendradas para minimizar a vio- lência e o poder punitivo; ou seja, reduzir ao maior nível possí- vel os espaços de criminalização, os espaços de arbítrio judicial e a dramaticidade das penas369. Em termos penais e político-criminais, mesmo que o ga- rantismo constitua um paradigma minimalista de contenção dos “tipos incriminadores”, por meio de processos de descriminaliza- ção legais ou judicial (controle de constitucionalidade concreto e difuso), “ao redesenhar a teoria justificacionista da pena, acaba por legitimar variadas formas de intervenção punitiva”370, isto é, pode ser considerado “como uma forma de limitar legitimando”371. Portanto, o garantismo penal de Ferrajoli:

[...] parte da deslegitimação do sistema penal, mas acredita que ele possa ser rele- gitimado, e o minimalismo e apresentado como fim em si mesmo – um direito penal mínimo para uma sociedade futura.

Enquanto o abolicionismo põe em relevo os custos do sistema penal, o Direito Penal mínimo de Ferrajoli centra-se nos custos potenciais de uma anarquia punitiva, sus- tentando que o Direito Penal mínimo esta- ria legitimado pela necessidade de proteger,

369 Ibidem, p. 195. 370 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 125. 371 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 736. Ver também: HERMANN, Leda Maria; ANDRADE, Verga Regina Pereira de. Vida: vocação para a liberdade. In: KOSOVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 121.

292 293 a um só tempo, as garantias dos “desvian- tes” e “não-desviantes”372.

Mellim Filho373 afirma que esta legitimação tem como signo a seletividade, pois punição e seleção são “indissociáveis”. Desta forma, “abolir a seleção significaria abolir a punição, já que a seleção, com seu alto grau de arbítrio, não pode sair das mãos do Estado”374. Novas formas de resolução de conflitos, além de necessárias, “não devem reproduzir as formas clássicas do poder, especialmente a ideia de tribunal, que estabelece o certo e o errado, o vencedor e o perde- dor da batalha, numa estrutura de guerra permanente”375. Carvalho376 assevera que, apesar das propostas abolicionis- tas apresentarem conteúdo sério e potencialmente colaborador para o aperfeiçoamento dos projetos políticos, a proposta, desde o

372 ANDRADE, Vera Regina. Minimalismos, abolucionismos e eficienticismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Revista Sequência, n. 52, p. 176, jul. 2006. 373 MELLIM FILHO, Oscar. Criminalização e seleção no sistema judiciário penal. São Paulo: IBCCRIM, 2010, p. 258. Ainda sobre as vantagens de adoção de uma agenda abolicionista, afirma: “Uma agenda abolicionista serviria também para esvaziar a função seletiva das normas processuais e suas estratégias e também da própria jurisprudência, naquilo que ela tem de busca de permanência, homogeneidade e universalização. Cuida-se, assim, de esvaziar a potência dessas estratégias seletivas, todas ligadas ao exercício do poder de dizer o Direito, classificar as pessoas e definir as situações problemáticas, o que só se mostrará viável num programa abolicionista, ainda que em forma de prolongado percurso” (Ibidem, p. 266). “A abolição resolveria, em outros termos, a questão das zonas limítrofes entre crimes em sede de suas definições normativas e perfil dogmático, uma inesgotável e estratégica fonte da seletividade, como ocorre com os crimes de furto e roubo, abertamente manipulados pelos operadores do Direito, ou com as formas simples e qualificadas, consumadas e tentadas dos delitos, na conformidade com a maior ou menor necessidade de respostas punitivas a determinados indivíduos, e que abrem aos julgadores a possibilidade de uma criminalização ou menos expressiva, a resultar em penas mais ou menos elevadas, para não falar no maior ou menor rigor no exame das provas e cumprimento de normas processuais” (Ibidem, p. 268). 374 Ibidem, p. 266. 375 MELLIM FILHO, Oscar. Criminalização e seleção no sistema judiciário penal. São Paulo: IBCCRIM, 2010, p. 266. 376 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 140.

292 293 ponto de vista de sua efetividade, irá encontrar limites constitu- cionais. Isto porque, ao delinear modelo de persecução criminal dos fatos puníveis, e inclusive a pena privativa de liberdade em regime fechado, quando do estabelecimento de sanções, nossa Constituição parece ter escolhido um modelo justificacionista da pena. Por outro lado, mesmo com “limites intransponíveis”, o mesmo texto abre campo para, em termos de política criminal, a atuação cotidiana dos atores do sistema penal poder se voltar à “redução dos danos causados pelas violências do sistema penal”. O medo, portanto, não pode ser paralisante. A acusação frequente aos pensadores, vinculados às teorias abolicionistas, é o caráter “utópico” atribuível a sua realização (já visualizado em Ferrajoli). Anitua sugere que os autores, vin- culados às teorias abolicionistas, possuíam em comum (especial- mente, Hulsman e Mathiesen), um natural desejo de resolução dos ‘problemas sociais’. Nesse sentido, é possível deslegitimar a imputação realizada a estes teóricos de pleitearem ‘utopias’ e des- valorizar os que sofrem ou não levar em consideração a realidade dos ‘crimes’. Hulsman estava especialmente atento ao sofrimento humano (necessário lembrar que, quando criança foi submetido às violências dos campos de concentração nazistas). Acreditava na abolição do sistema penal como apenas um passo a evitar esse sofrimento em vários indivíduos, um avanço que poderia permitir aproximar a realidade social sem “utopias negadoras”, rótulo que caberia bem “aos que acham possível conciliar um sistema penal liberal e humanista ao mesmo tempo.”377 Passetti considera que falta aos garantistas “coragem para enfrentar o nosso Tempo Histórico”378. E ainda:

377 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 697. Neste sentido também: HULSMAN, Louk. Entrevista à Nilo Batista. Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, n. 5-6, p. 10, 1998. 378 PASSETTI, Edson. Louk Hulsman e o Abolicionismo libertário. In: KOSOVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.) Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 121-122.

294 295 Dizem, como Raul Zaffaroni, que os liber- tários se apropriaram das propostas aboli- cionistas de Louk Hulsman e que estas não possuem conexões com os anarquismos. Não se deve represar a prática do inclassifi- cável Louk, nem pedir licença a um pensa- dor generoso e demolidor como Hulsman. Contudo, outros, como Luigi Ferrajoli, situam o abolicionismo num campo utó- pico, para isolá-lo em nome da sua doutrina do garantismo reprisada por parágrafos e páginas de seus intermináveis livros.

Nos dois casos, estamos diante do vício e da virtude de escritores que pelejam pela palavra vencedora, a institucionalização da verdade da justiça, do direito universal e do tribunal. Estes estudiosos produzem calhamaços morais que agilizam ou engri- pam a interminável máquina da reforma dos reformadores que deve estar sempre ali- mentada. Eles ampliam argumentos, geral- mente humanistas, para multiplicar manei- ras de punir com maior ou menor rigor o corpo e as atitudes, estabelecendo variados governos das condutas. Propiciam por meio do ‘debate livre’ em encontros universitá- rios, seminários de especialistas, programas de televisão e aulas acasalamentos entre conservadores e progressistas – supostos extremos políticos, quando são apenas par- tes constitutivas do pluralismo uniforme e constante no regime de punições aplicado democraticamente379.

379 PASSETTI, Edson. Louk Hulsman e o Abolicionismo libertário. In: KOSOVSKI, Ester (Org.); BATISTA, Nilo (Org.) Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 121-122.

294 295 Batista380 considera que, no abolicionismo, ao contrário dos movimentos da “lei e ordem” e do “direito penal mínimo”, não há maniqueísmos. No entanto, o abolicionismo é amplo e pode ser amplo o suficiente, na deslegitimação mais profunda da pena, in- clusive para adotar “diferentes estratégias políticas e jurídicas: no liberalismo, no marxismo, no anarquismo, mas também na crimi- nologia crítica e no garantismo”. Afirma, ainda, que “quem per- correu esse caminho crítico, fatalmente, será um abolicionista”381. Ademais, não é possível ignorar que, de certo modo, um aboli- cionismo já existe382, isto porque a regra é o fato de as condutas não serem criminalizadas, não o contrário (recordemos aqui o impres- sionante quadro de cifra oculta no tocante ao crime de homicídio). Qual caminho escolher então? A perspectiva da vitória, a par- tir das consquistas e microrevoluções cotidianas, praticadas dentro do próprio sistema (minimalismos) ou uma revolução cultural ne- cessariamente externa aos sistemas jurídicos (abolicionismos)? A resposta, certamente, não é fácil. Andrade nos indica ca- minho bastante interessante. Para ela:

A antítese bipolar do abolicionismo não é o minimalismo, mas, o eficientismo penal e o rumo da política criminal contemporânea que ele protagoniza associado, paradoxal- mente, ao minimalismo reformista, que é, em definitivo, um minimalismo como fim383.

380 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 108. 381 Ibidem, p. 111. 382 MELLIM FILHO, Oscar. Criminalização e seleção no sistema judiciário penal. São Paulo: IBCCRIM, 2010, p. 258. 383 ANDRADE, Vera Regina. Minimalismos, abolucionismos e eficienticismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Revista Sequência, n. 52, p. 178, jul. 2006. No mesmo sentido a autora: “O dilema do nosso tempo não é, portanto, a escolha entre minimalismo e abolicionismo, mas, a concorrência, absolutamente desleal, entre a totalizadora colonização do eficientismo e a aversão ao abolicionismo, mediados pelo pretenso equilíbrio prudente de minimalismos de híbrida identidade” (Ibidem, p. 182).

296 297 Ainda assim, a política criminal brasileira, inspirada no mini- malismo (“baseada nos binômios criminalidade grave/pena de pri- são x criminalidade/penas alternativas”384), que tem preponderado desde a década de 80 do século passado, talvez com a exceção da Lei nº 8.072/90, “tem se caracterizado, segundo a lógica do sistema penal, por uma ‘eficácia invertida’, contribuindo, paradoxalmente, para ampliar o controle social e relegitimar o sistema penal”385. O que se quer não é simplesmente indicar o caminho rumo ao abolicionismo(s) e minimalismo(s), mas, sim, negar aquelas teorias que, em seu âmago, apresentam uma pretensão de rele- gitimar o sistema penal como um todo (o garantismo penal de Ferrajoli que se propõe como fim). É momento de transcender ao “bipolarismo” entre um e outro e entender a opção pelo minima- lismo de conteúdo abolicionista (defendidos especialmente por Christie) como forma de negar as políticas-criminais de conteúdo notadamente punitivista386. Para além da evidente conclusão que nosso sistema penal não estaria suficientemente preparado para enfrentar o complexo e persistente problema das ‘falsas memórias’, ‘memórias perdidas’ e/ou ‘distorcidas’, são necessárias medidas de redução de danos.

384 Idem, p. 178. 385 São mencionadas textualmente: “a partir da reforma penal e penitenciária de 1984, com a introdução das penas alternativas (Leis nº 7.209 e 7.210/84) e culmina na atual lei das penas alternativas (Lei nº 9.714/98), passando pela implantação dos juizados especiais criminais estaduais (Lei nº 9.099/95) para tratar “dos crimes de menor potencial ofensivo” (Idem, p. 167-168). 386 ANDRADE, op. cit., p. 177. E ainda: “É possível, por essa via, ressignificar os minimalismos; apontar fronteiras móveis onde parece edificar-se muros. E ainda que não seja possível fundamentá-la, é possível enunciar aqui, por essa via, a seguinte tese: Enquanto o minimalismo teórico crítico tem se dialetizado com o abolicionismo, o minimalismo pragmático reformista tem se dialetizado com o eficientismo e o relegitimado, paradoxalmente, a expansão do sistema penal. E isto significa que os diferentes minimalismos (teóricos e reformistas) são pendulares, apresentando diferentes potencialidades de apropriação, pela razão abolicionista ou pela razão eficientista; para fins transformadores ou conservadores. Daí resultam combinatórias, pares explicitados ou silenciados” (Ibidem, p. 178).

296 297 Entretanto, por sua inerente natureza paliativa, essas reúnem con- dições máximas de superficialmente alcançar o âmago da questão. Portanto, entre as duas utopias, a priori, deveremos preferir aquela que propicia uma maior quantidade de (e esta é a dimen- são de redução de danos trabalhada nesta Tese) diminuição de dor e sofrimento inúteis. Neste sentido, o abolicionismo e o mini- malismo, que o tenha, enquanto horizonte factível, surgem como políticas a serem perseguidas, para além das teorias que conti- nuam a legitimar um sistema desigual e de resultados tímidos387.

387 Especificamente no sentido trabalhado por Andrade, mostrando a reversibilidade do discurso garantista na trajetória entre suas promessas e seu enclausuramento (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Construção e identidade da dogmática penal: do garantismo prometido ao garantimo prisioneiro. Revista Sequência, v. 29, n. 57, 2008. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2012.

298 299 Considerações Finais

A história da humanidade (ao menos da ocidental) foi escrita com sangue, e este sangue, ao ser derramado, representa conse- quências. Longe vai o tempo de guerras mundiais. Hoje, a vio- lência tem dimensões ampliadas, não estando, necessariamente, vinculada ao sangue. Existem outros tipos de criminalidade que se expandem a partir de demandas punitivas, que constituem um dos fenômenos mais sensíveis ao sistema criminal como um todo, nos dias de hoje. O “populismo punitivo” ganha corpo. Os exemplos de política criminal, utilizados nos sentidos acima, demonstram o insucesso dos mecanismos penais. Legis- lações, notadamente pautadas de acordo com esta resposta pu- nitiva, fracassaram retumbantemente. Mesmo as justificativas negativas, em sentido de se evitar excessos na retribuição ao mal causado (aplicação e execução da pena), precisam ser lidas, de acordo com nossa realidade atual que é extremamente dura. As proteções são frágeis e facilmente reversíveis. Impunidade, sensação de insegurança e o medo acabam sendo os combustíveis a tentar justificar o expansionismo penal. Como resultado, mais crimes, mais penas, mais submissão inútil de dor. Não só inútil como, em alguns casos, injustas, especial- mente quando tratamos de possíveis condenações amparadas em testemunhos acometidos de falsas memórias. O essencial é ignorado pela norma, visto ser característica da memória a coexistência do passado com o presente (Bergson). Quando os processos de criminalizações iniciam, efetivamente, tentaremos uma reconstrução, que jamais possuirá meios fidedig- nos para trazer o passado ao presente. Muito menos, ao futuro. A insuficiência da narrativa é ignorada por nosso sistema de justiça criminal. Desde o inquérito policial até o processo penal, inexistem controles de forma a tentar recuperar as informações

298 299 passadas com qualidade mínima. Pelo contrário, as práticas inqui- sitoriais/autoritárias ainda persistentes revelam uma vontade de verdade absolutamente incompatível com os critérios de narrativa livre, identificados pelos achados da psicologia do testemunho. Por mais que os estudos de neurociências nos levem a pos- sibilidades de encontrar “o”(s) lugar(es) da memória e as suas formas de conservação, parece improvável que essa determina- ção nos leve à certezas definitivas. Os problemas de recuperação e evocação, notadamente, parecem ocupar posição de destaque entre aqueles considerados persistentes. Ainda que existam avanços importantes das neurociências, notadamente os diagnósticos por neuroimagem (Han, Kushner, Yiu, Hsiang, Buch, Waisman, Bontempi, Neve, Frankland Jos- selyn) e perspectivas futuras, sabemos que, ao menos hoje, é im- possível trabalharmos como se a pessoa que presenciou o evento criminoso fosse “Funes – O Memorioso”. Infelizmente, nosso sis- tema penal lida assim com a(s) memória(s). Portanto, são passados anos entre a elaboração dos inquéri- tos policiais em delegacias e a oitiva da pessoa na condição de tes- temunha no processo penal. A igualdade, naturalizada do Direito, trata todas as testemunhas da mesma forma, independentemente de suas características individuais (lesões, transtornos psiquiátri- cos, traumas pretéritos, por exemplo), o que parece estar em de- sacordo com os achados mais recentes da neurociência (notada- mente em Rossato, Bevilaqua, Izquierdo, Medina e Cammarota). Deve-se evitar o modo de tentativa e erro (Wilson), que é justamente o visualizado nas Delegacias, e sabemos, também, em diversas Varas Criminais. Por enquanto, dado o nosso trabalho de campo, podemos afirmar que aprendemos muito pouco com a psicologia do testemunho. Temos um longo caminho. A entrevista cognitiva, apesar de constituir importante instrumento de redução de danos (Lopes Jr. e Giacomolli), com resultados expressivos em outras realidades (Milne), não pode representar o ponto de chegada. Não podemos perder de vista que esta minimização é sempre redutora, insuficiente e inapta

300 301 a atingir o cerne dos problemas inerentes ao sistema penal. Ela apresenta dificuldades de implementação, de utilização prática e nem sempre permitem a recuperação da narrativa da melhor forma, pois dependerá inexoravelmente da forma pela qual é ma- nipulada, novamente: dependerá da carga (maior ou menor) pu- nitiva existente dentro de cada um que a manipule. A partir do momento em que hesitam as neurociências sobre como evocar a memória autobiográfica de melhor qualidade, ou seja, inexistem critérios seguros ou possibilidade absoluta de afas- tamento de falsas memórias ao longo do processo penal (e, pro- vavelmente, jamais existirão), será necessário deslocarmos a dis- cussão. Não só de um microcosmo em que se constitui a forma de realização de entrevistas, como também, para o sistema como um todo, daí a necessidade de (re)trabalharmos com as teorias criminológicas (críticas) contemporâneas e as suas possibilidades. Temos de admitir que nossa pesquisa (felizmente) nos levou a caminhos não previstos, ao menos, com tanta intensidade, em nossas linhas iniciais (especialmente no Projeto de Tese). Acreditávamos, sim, em critérios para tentarmos diminuir as hipóteses de sugestio- nabilidade nas entrevistas policiais e judiciais. A exemplo de outros países (notadamente, o Reino Unido), que reformou integralmente seu sistema de inquirição a partir de dados do campo (Milne). No entanto, a hipótese acima fora implementada em cir- cunstâncias e em um lugar radicalmente diferente do nosso. O mero apego a novas fórmulas certamente não será, imediata- mente, forma de reduzir a submissão inútil de dor (Christie). Trabalhar com a memória traumática exige, também, a cria- ção de resiliência (Peres, Mercante e Nasello). Talvez aqui seja possível já iniciarmos vinculação com as dificuldades do sistema penal atual em lidar com a dor. É fundamental termos como critério básico de análise a dor, que representa a materialização de uma violência contra o outro (especialmente, no caso de homicídio) e, ao fim, em como essa descrição é realizada por quem a vivencia. O sistema penal, de- finitivamente, não lida bem com a dor. Apenas a potencializa a

300 301 todos os envolvidos, por meio de seus tentáculos e por sua tecno- logia mais eficiente neste sentido: o aprisionamento. A experiência com o depoimento sem dano apenas demons- tra que o auxílio de peritos pode redundar em (mais) um retum- bante fracasso paliativo, quando o conteúdo das práticas continuar a ser informado por uma cultura punitivista (Morais da Rosa). Os problemas com testemunhos podem gerar condenções equivoca- das. Não só: podem levar aquelas pessoas a enfrentar a duríssima realidade carcerária, especialmente, quando falamos de nosso país. Discutir alternativas para o sistema penal não pode significar o afastamento da discussão acerca do seu próprio alicerce. Daí a necessidade de identificarmos teorias que possam propiciar meios viáveis de redução dos processos de criminalização a níveis drásti- cos. A redução de danos é insuficiente, na medida em que ela pres- supõe o sistema e a sua atuação prévia. É necessário (re)pensarmos a atuação anterior e os processos de criminalização primária. Podemos, a partir de teorias de conteúdo crítico (iniciando pelo labelling approach), pensar em um aprofundamento dos estu- dos acerca da própria cultura punitiva/punitivista, para além das usualmente reminiscências do discurso etiológico das ciências psi e da medicina. Será necessário também realizarmos, com o apoio da sociologia do desvio (notadamente Becker), o giro criminoló- gico em relação a estas disciplinas. O conteúdo desta virada estará justamente na tentativa de trabalhar com a própria reação social ao delito, eis que as contri- buições no que concerne à construção de categorias importantes como as falsas memórias, expõem uma das fraturas do sistema. Isso poderia auxiliar no reforço à garantias históricas do processo penal (como o in dubio pro reo), como também, na produção de importan- tes impactos no momento das definições político-criminais. Trabalhamos, basicamente, com duas perspectivas de redu- ção do direito penal e, por conseguinte, exposição dos indivíduos aos efeitos das falsas memórias. Dentre elas, estão os minimalis- mos (notadamente, os de Baratta e Ferrajoli) e também as ideias advindas dos abolicionismos.

302 303 Em nosso país, verificamos as dificuldades da afirmação pragmática das ideias de Ferrajoli. Por mais que possamos afirmar as dificuldades de inserção de discursos minimalistas em uma so- ciedade, marcadamente punitivista (Carvalho), temos a neces- sidade de pensarmos nas realidades carcerárias. Não só ela que constitui, talvez, a maior fratura dos sistemas penais modernos. As disseminadas e as infinitas dores produzidas pelo sistema penal clamam por respostas (mais) efetivas, mesmo que saibamos não ser o garantismo o contrário das perspectivas minimalistas radicais (Andrade). Importante ressaltar o caráter utópico conferido ao garan- tismo pelo próprio Ferrajoli, dificilmente trabalhado pelos autores filiados a esta perspectiva teórica. Por mais que desloquemos a dis- cussão para os graus de garantismo, não é possível perder de vista que devemos lutar, sim, pela mínima inflição deliberada de dor. Nesse contexto, ainda que reconheçamos a importância da perspectiva minimalista-garantista, especialmente, em contextos nebulosos e cujo horizonte aponta para o ecrudescimento de políti- cas criminais, não podemos deixar de sustentar a máxima redução do sistema penal a partir de sua atuação (muitas vezes) irracional pela desproporcionalidade e discutível utilidade de seus meios. A parábola da “casa da turbulência” versus a “casa da per- feição” (Christie) se aproxima muito de como vemos a narração, enquanto possível meio de prova. De acordo com o observador, teremos percepção diversa dos eventos, e essas diferenças são de- terminantes para a reação social a ele. Ao trabalharmos com for- tes ideais comunitários, as percepções tendem a ser mais sensíveis, mais próximas ao fato e às suas particularidades. Algo dificilmente atingível, quando trabalhamos um minimalismo-garantista. O processo penal (também o sistema como um todo) é bas- tante insensível às peculiaridades do caso. A regra do cotidiano forense é a burocratização eficientista, materializada em sobre- carga de trabalho aos magistrados, ausência de paridade de armas e a busca pela celeridade. Essa insensibilidade potencializa o per- sistente problema das falsas memórias.

302 303 Reconhecemos, entretanto, por um lado, a força do discurso e das práticas punitivas/ punitivistas. Trabalhar a possibilidade de transformação dessa cultura é algo difícil e, provavelmente, não atin- gível a curto prazo. Por outro lado, não pode ser motivo para deixar- mos de caminhar e acreditar em uma futura sociedade fundada em uma dimensão (mais) pacifista e pacificadora, sabendo ser a “paz” não derivada de uma submissão, mas, sim, de uma fiel admissão. São necessárias pesquisas em campo ou em laboratório, que possam identificar as possíveis gerações de falsas memórias não apenas no tocante ao depoente/testemunha, como também, no reconhecimento. Interessará não só observar a forma a ser utili- zada para realizar os procedimentos, como ainda fazer compara- ções entre a fase policial e judicial, o que demandará, certamente, amplo estudo e de longa duração. Acreditamos que não é mais tolerável observarmos o fla- gelo humano que constituem, no geral, as prisões brasileiras. No entanto, sabemos que a cultura das alterações legislativas, como forma de atingirmos processos de criminalização menos abran- gentes, provavelmente seguirão sendo o corriqueiro. Isso quando as reformulações não permitem a nefasta expansão. Em nossa tese, repisamos a opção por aquela utopia (consi- derando-se garantismo e abolicionismos) que tem a possibilidade de diminuir, de forma mais drástica, a dor e os sofrimentos inúteis. Portanto, os abolicionismos e o minimalismo, que buscam a su- peração do sistema penal, enquanto horizonte possível (Baratta), são os caminhos escolhidos. Dessa forma, será possível transcen- der à teorias que continuam a legitimar um sistema terrivelmente desigual e de resultados tímidos. Insistir em projetos reformistas pode significar ainda mais injustiças em um sistema já eivado de contradições internas in- suportáveis. Não só reformas são necessárias, como também, a paulatina redução do sistema, visto que mais uma de suas fraturas potencialmente está à mostra: as falsas memórias.

304 305 Referências

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