Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais

Luíza Uehara de Araújo

um anarquismo menor:

práticas libertárias no Japão Imperial

Doutorado em Ciências Sociais

São Paulo

Abril de 2019

Luíza Uehara de Araújo

um anarquismo menor: práticas libertárias no Japão Imperial

Doutorado em Ciências Sociais

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais (Ciência Política) sob a orientação do Prof. Dr. Edson Passetti.

Abril de 2019

Banca Examinadora

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- Brasil (CAPES)- Código de Financiamento 001.

This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- Brasil (CAPES)- Finance Code 001.

agradecimentos ao edson passetti, coração desperto e existência intensa. pelas inquietações anarquistas no agora. por me acompanhar nas intempéries e nas transformações desse percurso. pela orientação libertária, generosa, paciente e delicada. em minha timidez e em singelas palavras: muito obrigada. à beatriz scigliano carneiro, pela revisão atenta, pelos belos desenhos, e também pelos bichos e biblioteca. à flávia lucchesi, pelas conversas, paciência, força no final e pelo destemor nas partidas de futebol e na vida. à eliane carvalho, doce existência, pelas traduções, leitura e pela saudade. ao acácio augusto, pela força do punk. ao vitor osório, de olhar atento. à lúcia soares, elegante trovão. ao gustavo simões, pelos sons anti-harmonia, pela leitura e problematizações na qualificação. à salete oliveira, pela vitalidade e pelos lindos tons azuis na cerâmica. pelo desassossego desde a graduação. ao nu-sol, pelas expansões de vida e vitalidade anarquista que me atravessam e me modificam. banzai! ao josé maria carvalho ferreira, pela leitura atenta e sugestões na qualificação. pela anarquia, caos auto-organizado sem deuses e sem amos. à marianne enckell, pelo incrível cira. aos anarquistas que encontrei em lausanne. ao cyrian pitteloud, pela cerveja pirata e pela troca de materiais. ao narita kei, pelas portas sempre abertas do ira. ao junji, pela dedicação ao cira-japana. à moeko, ao gan, ao tamaki e à ako pelas voltas em fujinomiya. ao tanaka hikaru, pelos primeiros contatos com os anarquismos no japão e pelo congresso anarquista em 2015. à maria flora uehara, uma nissei nada convencional. ao antonio gomes, sempre na luta e no pedal. aos amigos no paraná. à aila villela bolzan, pelas aventuras desde a graduação. ao marcelo puzio, pelo interesse nesta pesquisa. à juliana bellafronte, pelas risadas e passeios nas noites congelantes. à adriana martinez e ao matheus marestoni, pelas brigas, conversas e vinhos. ao wander wilson, pelos vagalumes, por apreciar o antigoverno em akira, por me presentear em 2013 com um livro sobre os anarquismos no japão e por mais um tanto de outras coisas. à katia cristina da silva, pelo auxílio com a burocracia.

resumo

A harmonia comumente refere-se à sensação de tranquilidade, a uma agradável melodia aos ouvidos ou a um certo equilíbrio. No Japão, o termo tem como uma de suas proveniências o Kokutai (corpo nacional), documento estabelecido oficialmente ainda na segunda metade da Era Tokugawa, que manifestava a ausência de confronto e veneração ao Imperador. O Kokutai modificou-se ao longo dos anos e prevaleceu mais do que um documento, um costume com reflexos tanto na obediência, devoção ao Imperador e a uma rígida hierarquia, como na perseguição a qualquer um que pretendesse realizar mudança nessa organização. Diante dessa pretensa harmonia japonesa, investigou-se práticas libertárias no Japão por meio dos arquivos anarquistas no Brasil, na Suiça e no Japão da análise genealógica do poder sugerida por Michel Foucault da noção de arquivo monumento enquanto heterotopias anarquistas elaborada por Edson Passetti. São espaços sem a pretensão de abarcar toda a história, mas interessados na vitalidade das lutas anarquistas. Assim, expõe-se práticas libertárias no Japão Imperial na invenção de novos costumes e em confronto direto à obediência alastrada e fortalecida com o Kokutai. Anarquistas inventaram associações, periódicos, realizaram traduções, estabeleceram contatos com anarquistas em outros cantos do planeta, experimentaram o amor livre, desentenderam-se, travaram ardorosas discussões, transformaram-se, lançaram-se no terrorismo, encararam a morte e, por vezes, o suicídio. Apresentam-se, também, os desdobramentos das lutas anarquistas no pós-II Guerra Mundial, suas respostas às bombas de Hiroshima e Nagasaki e a luta pacifista que os atravessaram. Tais práticas são situadas enquanto expansão da vida, noção elaborada pelo anarquista Ôsugi Sakae, e compreendida como um incessante desacostumar-se a obedecer na afirmação da vida livre e no combate à conquista expressa pelo Estado, governo, polícia, voto, justiça e moral. São práticas de um anarquismo menor em combate incessante ao governo e à autoridade centralizada, sem acordos ou concessões com afirmação da revolta.

Palavras-chave: anarquismos no Japão, Kokutai, expansão da vida, resistências.

abstract

The word Harmony usually refers to a sense of tranquility, a pleasant melody to one’s ears, or some balance. In , one of the origins of this word is the Kokutai (national entity), an official document released during the second half of Tokugawa period that stated the absence of conflict and the worship of the Emperor. The Kokutai has changed over the years and become not only a document but a tradition that would lead to obedience and devotion to the Emperor, a rigid hierarchy, and the persecution to anyone who intended to carry out any change towards this organization. Given this false Japanese harmony, the present work investigated libertarian practices in Japan through the anarchists papers in Brazil, Switzerland, and Japan, using a genealogical analysis of power proposed by Michel Foucault, and the concept of monument archive expressed in the anarchist heterotopias developed by Edson Passetti. Those are not spaces to embrace History as a whole, nonetheless, they target the vitality within the anarchist struggles. Therefore, it shows the libertarian practices in the Empire of Japan, with the invention of new costums and the direct struggles against the obedience spread and reinforced by the Kokutai. The anarchists created associations, journals, provided translations, kept contact with other anarchists around the planet, experienced free love, argued among themselves in passionate altercations, transformed themselves, embraced terrorism, faced death and, sometimes, suicide. The present work also shows how anarchist struggles unfolded at the post–World War II, the anarchists responses to the atomic bombings of Hiroshima and Nagasaki, and their pacifist struggles. These practices are placed as the expansion of life, a concept developed by the anarchist Ōsugi Sakae, understood as the constant untraining of obedience, and the assertion of a free life in the fight against the State conquests such as the government, the police, voting, the justice court, and morals. These are practices of a minor anarchism in a continuous fight against government and centralized authority. No compromises or arrangements but the affirmation of revolt.

Keywords: anarchisms in Japan, Kokutai, expansion of life, resistances.

sumário considerações preliminares, cronologia e mapa ...... 9 glossário ...... 10 apresentação ...... 18 expansão da vida ...... 26 anarquias em expansão, outras conexões: kanno sugako e kôtoku shûsui ...... 76 contra os costumes: itô noe e ôsugi sakae ...... 126 kaneko fumiko e yeol park: contra o império e o tribunal ...... 173 as leis de preservação da paz, o incessante anarcoterrorismo e a comuna shinmin .... 200 novas lutas ...... 259 recordações libertárias ...... 312 bibliografia ...... 321 anexo ...... 1

considerações preliminares, cronologia e mapa

Nomes japoneses estão escritos seguindo o modo japonês (sobrenome nome). Optou-se por usar o acento circunflexo para as marcas de prolongamentos de vogais, como â, î, ô, û. Os termos e nomes em japonês estão escritos romanizados, em alguns casos apresenta-se também a escrita japonesa em kanjii ou em katakana. As idades apresentadas estão na contagem ocidental. Na contagem oriental, conta-se um ano a mais para a gestação.

A cronologia da história japonesa não possui consenso quando transposta para a contagem cristã. Os períodos mais antigos, comumente apresentam maior variação. A Era Tokugawa é marcada pelo período de governo da Família homônima e as Eras seguintes são nomeadas pelo nome do Imperador até sua morte. Para delimitar, aproximadamente de acordo com a contagem utilizada no ocidente, utiliza-se o seguinte recorte temporal para cara período: 1615-1868 – Era Tokugawa (Edo) 1868-1912 – Era Meiji 1912-1926 – Era Taishô 1926-1989 – Era Showa 1989-2019 – Era Heisei 2019-em diante – Era Reiwa

Mapa político geográfico por províncias do Japão atual. Fonte: www.kyuhoshi.com%2Fmap-of- japan%2F&psig=AOvVaw0jyDPRSkumGTWRpMTKVs57&ust=1548328563758466. Acesso em 10/01/2019.

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glossário1

anarquistas Nome Descrição Integrante da Federação Anarco-comunista Coreana e da An Bong-yeon Comuna Shinmin. Morreu na prisão de Seadaemun.

Integrante da Sociedade Negra de Amigos de Anju, foi An Yeonggeun a Tóquio para estudar e participou em ações anarquistas.

(1703-1762) Comumente referido como uma das procedências dos anarquismos no Japão, por isso nomeado por Victor García como o Godwin japonês. Foi crítico dos castigos corporais na Era Tokugawa e do sistema de castas japonês. Desenvolveu o conceito de Andô Shôeki shizen ou hitori suru, o autoagir. Refere-se à ação de cada um em se autogovernar sem uma intervenção exterior. Autogovernar-se está natureza, basta olhar o tenchi (céu e Terra) e o sansensomoku (montanhas, rios, plantas e árvores).

(1887-1981) Ex-companheiro de Kanno Sugako e quem a apresentou a Kôtoku Shûsui. Arahata foi um líder socialista até tomar parte na Heimin Sha em 1904, Arahata Kanson quando se declarou anarcosindicalista. Junto com Ôsugi Sakae, foi preso no Incidente das Bandeiras Vermelhas (1908) e co-editou Kindai Shisô (Pensamento Moderno). No pós-guerra retornou ao socialismo.

(1904-2005) Anarquista na China. Atuante na imprensa libertária, escreveu sobre os anarquistas no Japão e Ba Jin as perseguições no começo do século XX. Destacou as execuções de Itô Nôe, Ôsugi Sakae e seu sobrinho em 1923 e as ações de seus amigos da Giroshin Sha.

(1904-2003) Passou por Tóquio, em 1921, quando entrou em contato com obras de anarquistas, como de Ôsugi Choe Gapryong Sakae. Voltou à Coreia em 1927. Foi integrante da Comuna Shinmin e da FACC (Federação Anarco-Comunista da Coreia).

(1903-1926) Quando criança foi enviada para Coreia para viver com sua avó. Ao retornar ao Japão foi a Tóquio, onde se aproximou de movimentos cristãos e socialistas. Desvencilhou-se de ambos e afirmou-se Fumiko Kaneko anarquista. Junto com seu companheiro, o anarquista coreano Yeol Park, planejou executar o Imperador. O plano foi descoberto e foram presos. Suicidou-se aos 23 anos após receber a sentença de prisão perpétua.

(1900-1925) Fundador da Giroshin Sha e tinha como objetivo vingar as mortes de Itô Noe, Ôsugi Sakae e Furuta Daijirô seu sobrinho. Capturado, foi condenado à forca e executado em maio de 1925.

1 Não foi possível localizar todas as datas de nascimento e morte. Os anos encontrados constam no começo de cada descrição.

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(1884-1911) Jardineiro, tornou-se socialista após frequentar a Heimin sha, próxima a seu serviço. Conheceu Kôtoku e fomentava a possibilidade de uma Furukawa Hikisaku greve geral em Tóquio. Kanno o apresentou a Niimura Tado, integrante dos planos de assassinar o imperador. Furukawa foi um dos condenados à morte no Incidente de Alta Traição, aos 26 anos.

(1912-1997) Anarquista e acadêmico. Foi tradutor de algumas obras de George Woodcock para o coreano, em Ha Ki-Rak A history of Korean Anarchist Movement (1986) também registrou algumas passagens da Comuna Shinmin.

(1893-1923) Quando preso, conheceu Ôsugi Sakae e tornou-se anarquista, foi um dos componentes da Hokufu Kai (Sociedade do Vento Norte) e da Confederação do Trabalho de Minas do Japão, participando de greves em Ashio e Kamaishi. Fundou a Heibei Takao revista mensal Rôdô sha (Os trabalhadores). Como tantos outros, empolgou-se com a Revolução Russa de 1917; foi um dos fundadores do Partido Comunista Japonês. Deixaria o partido em 1923; foi assassinado por um bolchevista, e seu funeral atraiu inúmeras pessoas.

Companheiro de Takamure Itsue. Quando chegou em Tóquio em 1925, separaram-se, mas algum tempo depois, Hashimoto Kenzô uniram-se novamente. A relação dos dois foi alvo de críticas moralistas, pois Takamure andava sozinha pelas ruas.

(1886-1934) Integrante do periódico Jiyû Rengô. Hatta Shuzo Professava o anarquismo puro para opor-se ao anarcosindicalismo.

Anarquista que vivia na França; encontrou-se com Hayashi Shizue Ôsugi em sua passagem por Paris e enviava cartas a Itô Noe com notícias do anarquista.

(1895-1923) Anarquista; assumiu a editoria da revista Seitô, fundada por Hiratsuka Raichô. Deu outros contornos ao periódico com a publicação de traduções Itô Nôe de textos de Emma Goldman. Também foi a última companheira de Ôsugi Sakae, com quem teve 5 filhos. Os dois foram torturados, estrangulados e assassinados em 1923, junto com o sobrinho de Ôsugi.

Escreveu com Taiji Yamaga “Greetings from Japan”, Ishida S. publicado em 1951 no livreto World Scene from the libertarian point of view.

(1876-1956) Anarquista e integrante do Heimin Shinbun durante a Guerra Russo-Japonesa (1904-1905). Foi um Ishikawa Sanshiro dos assinantes do Manifesto dos 16. Foi convidado a assiná-lo quando viajou para Europa e se hospedou na casa de Paul Reclus, também um dos signatários.

(1879-1967) Anarquista que residiu no começo do século XX nos EUA. Lá recepcionou Kôtoku Shusui e, Iwasa Sakutaro quando do Incidente de Alta Traição, que levou Kôtoku e seus amigos à forca sob acusação de planejar

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assassinar o Imperador, escreveu uma carta em protesto e a colocou no consulado japonês nos EUA. Voltou ao Japão em 1911, e foi ativo na imprensa libertária, tendo publicado no Rôdô Undô, junto com Ôsugi Sakae. Fundadou o Clube Anarquista no pós- guerra, voltado à realização de pesquisa sobre práticas libertárias.

Anarquista coreano que estudou táticas de guerrilha Jin Mang-san em zonas rurais. Entretanto, não se sabe se esteve presente na Comuna Shinmin.

(1884-1944) Escritor e tradutor de O único de Max Stirner. Foi o primeiro companheiro de Itô Nôe, de Jun Tsuji quem fora professor. Morreu de inanição durante a Guerra.

(1881-1911) Companheira de Kôtoku Shûsui. Em uma das vezes que foi presa, passou dois meses encarcerada após ter ido à delegacia exigir a libertação de seus amigos presos no Incidente das Bandeiras Vermelhas Kanno Sugako (1908). Em 1910 foi acusada de planejar matar o Imperador. Foi condenada à morte no ano seguinte, no que ficou conhecido como o Incidente de Alta Traição.

Integrante da Sociedade Negra de Amigos de Anju em Kim Hansu abril de 1929.

Ex-militar, conheceu Lee Hwae-young quando foi a Pequim e tomou parte na FACCh (Federação Anarquista Kim Jong-jin Coreana na China). Esteve em Shinmin. Foi sequestrado em julho de 1931, e seu corpo nunca encontrado.

(1889-1930) Conhecido também como Baekya, era considerado um herói por muito coreanos residentes na Manchúria por sua vitória na batalha de Chingsanli e Kim Jwa-jin por sua proximidade com o campesinato. Foi um dos instigadores da Comuna Shinmin. Em janeiro de 1930, foi assassinado por um integrante do Partido Comunista quando foi consertar um moedor de arroz.

Integrante da Sociedade Negra de Amigos de Anju, Kim Yongho agitada por anarquistas na Coreia e próxima à Manchúria.

Amigo de Ôsugi Sakae que descreve os últimos dias do Kongô Kenji anarquista no posfácio de My escapes from Japan.

(1871-1911) Um dos fundadores da Heimin Sha. Estabeleceu inúmeros contatos pelo planeta com socialistas e anarquistas. Traduziu várias obras, Kotoku Shusui como o Manifesto do Partido Comunista. Foi companheiro de Kanno Sugako e executado aos 41 anos, condenado no Incidente de Alta Traição.

Integrante da Comuna Shinmin; estudou as táticas de Lee Eul-kyu guerrilha nas zonas rurais.

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Um dos fundadores da FACCh (Federação Anarquista Lee Hwae-young Coreana na China) e um dos primeiros a sugerir uma experiência autogestionária na Manchúria.

Era vice-secretário da APCM (Associação do Povo Lee Joo-Keun Coreano na Manchúria).

Um dos fundadores da FAJ (Federação Anarquista Japonesa) junto com Yamaga. Era adepto do Masamichi Osawa plataformismo, quando as discussões levaram ao encerramento das atividades da Federação.

(1879-1911) Jornalista que publicava em Ôsaka artigos de Kôtoku. Quando a polícia descobriu que estivera em Matsuo Uitta Tóquio e se encontrou com acusados no Incidente de Alta Traição, também passou a ser réu. Foi condenado à morte.

(1875-1911) Operário, condenado à morte no Incidente Miyashita Takichi de Alta Traição. Em sua casa, segundo a polícia, foram encontrados explosivos.

(1881-1911) Anarquista e editor do Heimin Shinbun de Morichika Umpei Osaka, foi acusado e condenado à morte no Incidente de Alta Traição.

Integrante do corpo editorial do Le Libertaire japonês. Entregou seus rascunhos sobre a história dos Mukai Kou anarquismos no Japão para a composição do livro Museifushugi: The Revolutionary Idea in Japan de García e Tyler.

Integrante da Giroshin Sha; com Furuta assaltou um Nakahama Tetsu banco para financiar as ações da associação.

Fundou a infoshop IRA (Irregular Rythum Asylum) em Tóquio. Narita, conhecido também como Kei, instigou Narita Keisuke os anarquismos pela Ásia, promovendo encontros e discussões na IRA. É integrante do CIRA e diagrama os calendários.

Okabayashi Enlouqueceu na prisão de Nagasaki, após ser condenado Toramatsu à prisão perpétua no Incidente de Alta Traição.

Um dos fundadores da FAJ com Taiji Yamaga, adepto do Osawa Masamichi plataformismo.

(1885-1923) Anarquista, preso inúmeras vezes, atiçou os libertários no Japão. Entre os jornais em que tomou parte estavam: Heimin Shinbun, Rôdô Undô e Kindai Shisô. Desenvolveu a noção de expansão da vida, um Ôsugi Sakae movimento da existência que está em confronto com a conquista. Foi companheiro de Itô Nôe, com quem foi espancado e executado em setembro de 1923, junto com seu sobrinho.

Filha mais velha de Itô e Ôsugi e sempre acompanhava seu pai. Quando Ôsugi estava a caminho da França, a Ôsugi Mako polícia invadiu sua casa e questionou a criança sobre o paradeiro de seu pai. Mako recusou-se a responder.

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Sobrinho de Ôsugi Sakae, redator do posfácio para a Ôsugi Yukata edição em inglês de My escapes from Japan.

(1902-1974) Anarquista coreano, companheiro de Fumiko Park Yeol Kaneko, com quem tramou assassinar o Imperador.

(1886-1971) Feminista liberal fundadora da revista Raicho Hiratsuka Seitô.

Construtor do espaço do CIRA Japana em Fujinomiya, na década de 1970. Apesar de ser possível acessar o Ryô Buichirô arquivo, Ryô não recebe mais visitas por conta de sua saúde debilitada.

Conhecido como o Kôtoku da Coreia, era um bakuninista e um dos agitadores dos anarquismos no começo do Shin Chae-Ho século XX. Em 1924, tomou parte na fundação da Federação Anarquista Coreana.

Editor do jornal anarquista The Echo na década de Tadakata Hirayama 1960.

Morreu na prisão de Chiba em 1914, condenado à prisão Takagi Kennei perpétua no Incidente de Alta Traição.

Takano Fusatarô (1868-1904) Socialista amigo de Katayama Sen.

Takemouchi Redigiu uma carta em São Francisco contra o Tetsugoro Imperador, colada no consulado japonês.

Takamure Itsue (1894-1964) Escritora, dedicou-se ao amor livre.

Integrante da Giroshin Sha. Atentou contra o sobrinho Tanaka Kôgô do capitão Amakasu, responsável pelo assassinato de Itô, Ôsugi e seu sobrinho.

(1852-1919) Primeiro-Ministro do Japão entre 1916- 1918, antecessor de Hara Takashi.

(1933-2018) Anarquista e pesquisadora da obra e vida de Errico Malatesta. Foi integrante do Clube Anarquista, que reuniu pesquisadores no pós-guerra. Com base em seus estudos, enfatizou a harmonia Toda Misato anarquista oposta à harmonia japonesa. Onde existe ordem, não é possível harmonia e, segundo Toda é preciso romper com essas relações para a construção de relações anarquistas harmônicas.

Ex-integrante da FAJ (Federação Anarquista Japonesa). Publicou em 1970, artigo na coletânea organizada por David Apter e James Jol. Ali, situou a dissolução da Tsuzuki Chushishi FAJ na década de 1960 a incapacidade dos anarquistas em formular propostas para uma nova geração, pois muito dos seus integrantes eram sobreviventes da guerra e estavam com a idade avançada.

(1874-1911) Anarquista e sacerdote Zen. Condenado à Uchiyama Gudo morte no Incidente de Alta Traição.

(1868-1956) General no Exército Imperial Japonês e Ugaki Kazushige Ministro da Guerra entre 1924-1927.

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(1892-1970) Desenhista que ajudou Ôsugi Sakae em sua passagem pela China com a falsificação do passaporte Yamaga Taiji quando seguia para a Europa. No pós-II Guerra foi um dos fundadores da Federação Anarquista Japonesa e propagava o pacifismo e o esperantismo.

(1883-1920) Conhecido também como Yamaguchi Koken ou Kaizô, jornalista e socialista amigo de Ôsugi Sakae; foi um dos que se opuseram à Guerra Russo-Japonesa, inteirando-se destas lutas na Igreja Ebina Hongô. Em 1907, foi preso após escrever um artigo no Heimin Yamaguchi Gizo Shinbun contra o sistema feudal japonês, sendo condenado a um ano e dois meses de prisão. Em junho de 1908 sua libertação foi saudada por inúmeros companheiros que foram perseguidos e reprimidos pela polícia desdobrando no Akahata Jiken (Incidente da Bandeira Vermelha).

Professor na Universidade de Tóquio e pesquisador da Yamaguchi Mamoru obra do anarquista Ba Jin. Visitou o CIRA Lausanne em busca de material na década de 1990.

Integrante da Comuna Shinmin e da FACC. Estava entre os que sobreviveram ao sufocamento da Comuna e em Yu Rim 1946; compareceu ao Congresso Anarquista Nacional de Anwi, na província de Kyong-Sang.

Anarquista e editor do Rôdô Undô, fundado por Ôsugi Wada Kyûtarô Sakae, e integrante do Giroshin Sha. Suicidou-se enquanto cumpria prisão perpétua.

Anarquista publicou artigo no jornal operário Nihon Watanabe Daito Heimin resgatando a obra de Andô Shoeki, no começo da década de 1930.

outros Escreveu o Shiron (Novas Teses) (1825) no qual desenvolveu e popularizou o conceito de Kokutai Aizawa Seishisai (política nacional), que estabelecia qual seria a conduta do súdito. Também estabeleceu o mito da Deusa Amaterasu, criadora da Terra.

(1877-1966) General japonês e líder da Kôdôha, uma organização nacionalista. Ministro da Guerra na Araki Sadao década da de 1930, apoiou os testes biológicos na Unidade 731. Foi condenado à prisão perpétua no Tribunal de Tóquio.

(1878-1923) Simpatizante socialista e romancista. Dedicou-se a escrever um livro para crianças a partir de suas recordações, mostrando como a infância no Japão era marcada de humilhações, medo e vergonha. Arishima Takeo Afirmava que qualquer um possui uma recordação de quando criança e que sem ela seria uma pessoa melhor no Japão. Dedicou a obra aos seus três filhos; um ano após o lançamento, cometeu suicídio em 1923.

Ex-diretor do instituto sino-francês em Lyon; Cheng Meng-shien forneceu a Ôsugi quando esteve de passagem pela China

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rumo à Europa, o endereço de onde poderia ficar em Paris: uma casa de jovens anarquistas chineses que estudavam na capital francesa.

(1806-1855) Desenvolveu com Aizawa Seishisai o conceito de michi (caminho), no século XIX, sendo Fujita Tokô este um princípio de virtude estabelecido pelos deuses.

(1774-1826) Samurai e intelectual que se dedicou ao Fujita Yûkoku estudo das questões camponesas e agrícola.

Comandante das tropas que decretou lei marcial após o terremoto de 1923. A Giroshin Sha tinha como um de Fukuda Miyatarô seus objetivos executá-lo para vingar a morte de Itô, Ôsugi e seu sobrinho naquele ano.

(1864-1909) Foi escritor e tradutor, tido como o primeiro redator em esperanto no Japão. Tomou parte Futabatei Shimei nos movimentos contrários à Guerra Russo-Japonesa. Trabalhava com traduções de obras russas, como Tolstói.

(1856-1921) Primeiro civil e cristão a ser nomeado Hara Takashi Primeiro-Ministro no Japão.

(1890-1957) Soldado do Exército Imperial Japonês que Hashimoto Kingorô tentou duas vezes realizar um golpe de Estado na década de 1930.

(1867-1952) Procurador que exigiu pena de morte para Hiranuma Kiichiro os 25 acusados no Incidente de Alta Traição.

(1901-1989) Ex-Imperador do Japão. Governou entre Hirohito 1926 a 1989. Era Imperador durante a invasão da Manchúria e na II Guerra Mundial.

(1887-1967) Monge budista e pensador nacionalista e Inoue Nisshô um dos fundadores da Ketsumeidan (milícia de caça aos liberais).

(1889-1949) General do Exército Imperial Japonês e Ishiwara Kanji integrante do Exército de Kwantung. Foi um dos responsáveis pelo ataque à Manchúria em 1931.

(1888-1960) Protestante e militante das causas trabalhistas. Foi amigo do anarquista Hatta Shuzô, Kagawa Toyohiko com quem compartilhava a mesma religião. Foi indicado duas vezes ao Prêmio Nobel da Paz por ter ajudado a fundar hospitais, escolas e Igrejas pelo Japão.

(1859-1933) Socialista. Um dos fundadores do Partido Katayma Sen Comunista Japonês.

Socialista e fundadora com Itô Nôe da Sekirankai Kikue Yamakawa (Sociedade Onda Vermelha).

(1883-1937) Pensador nacionalista; considerava ser Kitta Ikki necessário somente dois órgãos na política japonesa: o Imperador e o povo.

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(1898-1969) Socialista integrante do Partido Comunista Coreano. Em suas memórias, entretanto, Kim Seongsuk dedica-se a mostrar positivamente as práticas de anarquistas na Coreia.

Socialista e amigo de Ôsugi Sakae. Certa vez foi a Xangai para estabelecer contato com o Komintern e no Kondô Eizô retorno foi preso. Os comunistas entregaram seus dados à polícia.

(1847-1901) Foi integrante do JMU (Jiyû Minkin Undô - Movimento pela Liberdade e pelos Direitos do Povo). Era um professor liberal de Kôtoku Shusui. Instigou Nakae Chomin o anarquista para que aprendesse outros idiomas, o que posteriormente foi vital para que Kôtoku estabelecesse relações com libertários em outros cantos do planeta.

(1882-1911) Lojista e socialista. Quando preso estava Naruishi Heishiro com dinamites usadas para pesca. Foi condenado à morte no Incidente de Alta Traição.

(1843–1890) Fundador da Universidade Dôshisha Cristã em Quioto. Entendia o cristianismo como uma força de Niijima Jô modernização e civilização do Japão por encaixá-lo nos moldes europeus.

(1879-1911) Jornalista, socialista, condenado à morte Niimi Uichiro no Incidente de Alta Traição.

Ôkawa Shûmei (1886-1957) Intelectual nacionalista.

Socialista e condenado à morte no Incidente de Alta Okumiya Tateyuki Traição.

(1828-1877) Ex-samurai e líder na Era Meiji. Metchinikoff estabeleceu relações com ele e recebeu um convite para lecionar em sua escola em Tóquio, Saigô Takamori destinada a retomar os princípios samurai do final da Era Tokugawa e simultaneamente conhecer o pensamento estrangeiro.

(1871-1933) Socialista e escritor. Foi tradutor junto com Kôtoku do Manifesto do Partido Comunista. Com o anarquista também foi um dos fundadores da Heimin Sakai Tashihiko Sha. Em 1906, tornou-se integrante do Partido Socialista Japonês. Foi preso em 1908, junto com Ôsugi Sakae no Incidente da Bandeira Vermelha.

(1881-1956) Ministro das Relações Exteriores que Shigemitsu Mamoru assinou Ata de Rendição do Japão,

(1800-1861) foi um daimyô no Período Tokugawa e Tokugawa Nariaki contribuiu para a ascensão da Era Meiji.

(1797-1829) Governou Mito, na província de Hitachi, Tokugawa Narinobu de 1816 a 1829.

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apresentação

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No segundo dia que estive em Tóquio no ano de 2015, pude assistir do interior de uma loja de eletrônicos uma manifestação de senhores que empunhavam a bandeira do Japão Império. Gritavam em um megafone a favor do país, pelo retorno do Imperador, pela honra japonesa e contra a derrota na II Guerra Mundial. Ressentidos dos acontecimentos recentes, os velhos eram acompanhados da polícia com seus sinalizadores para que não houvesse qualquer interferência na marcha e seguia-se o fluxo: os carros seus caminhos; os neons das fachadas das lojas piscavam; as crianças voltavam da escola; os jovens pedalavam aceleradamente em suas bicicletas para não se atrasarem; os estrangeiros compravam souvenirs high tech, e outras tantas pessoas indo e vindo. Em 2018, retornei ao país. Na saída de uma estação de metrô que dava acesso à principal biblioteca do Japão, deparei-me novamente com uma marcha. Os manifestantes estavam cercados pela polícia, mas dessa vez, havia mais jovens. Eles empunhavam cartazes comparando o atual presidente dos EUA com o Primeiro-Ministro Abe Shinzô. Demandavam políticas mais rigorosas para a entrada de imigrantes no país. E, diante das propostas de Trump com o muro na fronteira com o México, o saudavam: Trump San, we love you. Um dos nacionalistas japoneses, forte e com uma espada de bambu, cercado por policiais, vez ou outra ameaçava alguém que por lá passava. No mais, novamente tudo ordeiro. A sinalização garantia o fluxo seguro do trânsito de pessoas, carros, motos e bicicletas. Nas duas situações, nenhum olhar de aprovação ou reprovação aos manifestantes. Duas marchas nacionalistas. Poderiam ser entendidas como opostas, visto que uma apoiava a II Guerra Mundial, quando Japão compunha as Potências do Eixo contra os Aliados, e a outra estava a favor dos EUA. *** Essa pesquisa iniciou-se diante do questionamento das práticas anarquistas em outros cantos do planeta. Voltei-me ao Japão por costumeiramente escutar sobre a obediência milenar, a devoção ao Imperador, a possível paciência alimentada pelo zen budismo e a rápida assimilação de parte dos costumes ocidentais no pós-Guerra. Construí assim, um projeto de doutorado apresentado no segundo semestre de 2014 no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais na PUC-SP. Pretendia apresentar os embates anarquistas no Japão no começo do século XX a partir da noção de ronin, o samurai desertor. Entretanto, logo no início da pesquisa, abandonei esta noção pela recusa de muitos anarquistas à ascendência samurai e ao seu código de honra, posteriormente retomado na II Guerra Mundial para enaltecer os soldados japoneses. Um samurai,

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desertor ou não, não deixa de ser um soldado em busca de um xogum para sacrificar sua vida, ou de alguém que o pague para realizar alguns serviços. Para as investigações iniciais, voltei-me a arquivos que continham materiais anarquistas como o Arquivo Edgard Leuenroth na Unicamp, o CIRA de Lausanne e o arquivo do Ateneo Libertário, antiga Federação Anarquista, em Buenos Aires. Em arquivos online e livros publicados no chamado ocidente, cheguei às informações sobre os anarquismos no Japão do começo do século XX até meados da década de 1930. Nesse meio tempo, realizei uma viagem ao Japão em agosto de 2015, no aniversário de 70 anos das bombas de Hiroshima e Nagasaki, para pesquisar as práticas anarquistas no pós-II Guerra. Esperava lá encontrar centenas de anarquistas, pois me dirigia ao maior encontro anual de libertários no país. O evento foi para pouco mais de uma dezena, sendo parte dos integrantes pesquisadores não anarquistas sobre anarquismos (na marcha fascista descrita inicialmente, havia ao menos 5 vezes mais integrantes do que no encontro anarquista). Entretanto, no decorrer da viagem, pude conhecer Narita Keisuke, um jovem anarquista que atualmente cuida do espaço onde funciona uma infoshop e onde está a secretária do CIRA Japana e que me atualizou sobre algumas práticas hoje. Em 2018, retornei à Tóquio, e pude ir ao arquivo do CIRA, localizado em Fujinomiya. Ao abrir a porta, Shinji, um dos integrantes do CIRA, pronunciou uma pequena e apaixonada frase: “aqui está a nossa história”. Posteriormente, em minhas idas à segura e salubre Biblioteca Nacional da Dieta em Tóquio, onde boa parte do material do CIRA-Japana também se encontra disponível e organizado, constatei a diferença de onde “está a nossa história” para um lugar que pretende ter “toda a história”. Apesar da quase impossibilidade em se realizar uma pesquisa no CIRA-Japana, “a nossa história” está nas paredes da casa, nos documentos empoeirados, no fazer libertário para manter a biblioteca, no jantar e beber juntos, nas crianças deslizando entre as prateleiras, na generosidade anarquista em abrir o espaço a alguém que chega do outro lado do planeta. Somente aos acadêmicos pesquisadores de anarquismo o CIRA-Japana é um amontoado de ácaros e para quem a salubridade e burocracia da Biblioteca Nacional da Dieta basta. Na pequena casa, construída a mão por militantes anarquistas, os arquivos encontram-se empoeirados, mas não esquecidos. Diferente de toda salubridade e organização que é o Japão, no CIRA a máquina de fotocópias não funciona, não há wi-fi,

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não há scanner, não há banheiro, nem ar-condicionado ou calefação, não é possível chegar sem carro, alguns periódicos e livros estão espalhados sem qualquer índice, as correspondências estão acumuladas... Diante de tanta eficiência e tecnologia computo informacional japonesas, uma pequena casa, próxima ao Monte Fuji e de frente para imensas plantações de chá verde está aberta a qualquer um. Ali, “está a nossa história”, não enquanto uma propriedade, mas o que constitui a atualidade das lutas anarquistas hoje. O CIRA-Japana, assim como o CIRA-Lausanne, está aberto a qualquer um que esteja interessado nas aventuras de inquietos homens, mulheres e crianças preocupados em dar forma à liberdade. Nesse percurso pelo Japão, conheci a noção de expansão da vida elaborada pelo anarquista Ôsugi Sakae. A expansão da vida é um afastamento da pretensa e naturalizada harmonia japonesa e que afirma a destruição de qualquer moralidade, de qualquer governo superior sobre a vida e o combate incessante à obediência. Ao responder à harmonia japonesa, expansão da vida contraposiciona-se ao Kokutai, documento que remonta à Era Tokugawa (1615-1868), e que estabeleceu a posição do súdito japonês na formação do corpo nacional. Mesmo no decorrer da modernização na Era Meiji, esta conduta esperada foi amplamente difundida e institucionalizada. Nas décadas de 1930 e 1940, sustentou as práticas fascistas e a disseminação da pretensa superioridade do povo japonês e seria abandonada somente com a ocupação estadunidense e o estabelecimento da primeira constituição japonesa. Pretende-se, aqui, expor os anarquistas no Japão por meio da noção de expansão da vida, situando as lutas anarquistas em suas diferenças e seus pontos de tensão; apresentar vidas que se colocam diante do Estado com suas urgências e como responderam à sua época. Pouco importa saber se foi o ocidente que mostrou ao Japão o que é a Anarquia, mas aqui interessa apresentar efeitos e procedências de uma prática libertária. No primeiro capítulo, expõe-se o acesso aos arquivos para a realização dessa pesquisa, os anarquismos no Japão entre os historiadores da anarquia e a noção de expansão da vida de Ôsugi. Ao apresentar os anarquistas no Japão pelo material depositado nos arquivos libertários, pretende-se mostrar uma perspectiva sem a pretensão de estabelecer uma verdadeira história, mas de apresentar suas lutas. Também se expõe o Kokutai e a noção de expansão da vida, norteadora da apresentação dos resultados desta pesquisa, buscando-se mostrar como os anarquistas japoneses travaram suas resistências.

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Entretanto, a ascensão do fascismo japonês, pautado no Kokutai, configura a tentativa derradeira de supressão da expansão da vida. O efeito deste combate resulta em como os anarquistas conseguiram se rearticular no pós-guerra, na tentativa de encontrar amigos sobreviventes. Nos capítulos seguintes, apresento os anarquistas no Japão por meio de três paixões, Kanno Sugako e Kôtoku Shusui, Itô Noe e Ôsugi Sakae, e Fumiko Kaneko e Park Yeol. Não se trata de tomá-los como exemplos, mas sublinhar que se conectaram a diferentes anarquistas na Ásia e no planeta. A biografia é irrelevante diante das práticas, pois são estas as norteadoras da exposição dos anarquismos no Japão e suas relações no começo do século XX. Para cada um desses anarquistas foram selecionados textos relevantes de sua obra e de suas experiências registradas para compor essa constelação dos anarquismos no Japão. Uma constelação, sabemos, pode se modificar com a descoberta de outros astros, e também ser surpreendida pela formação ou desaparecimento de outras estrelas. Uma constelação dos anarquismos apresenta uma certa configuração, que pode ser surpreendida por outras existências, experiências e lutas. No movimento seguinte, Kôtoku Shusui e Kanno Sugako expressam o deslocamento do comunismo para os anarquismos e o estabelecimento dos primeiros contatos com libertários, tanto nos EUA como na Europa. Eles constataram a impossibilidade de destruir o governo por vias parlamentares, tornando-se adeptos e expoentes de ação direta2, entendendo que só poderiam romper a obediência secular do povo japonês com a execução do Imperador. Antes mesmo de tentarem, foram capturados e executados no chamado Incidente de Alta Traição, acompanhados de mais 10 anarquistas e socialistas, muitos deles sem conhecimento dos planos do casal. A outra referência conhecida no Ocidente, e talvez a mais famosa, vem de Ôsugi Sakae; também resultante de uma conexão com a Europa quando foi chamado por Phillipe Pelletier de “dinamizador” ao articular os anarquistas após as perseguições do Incidente de Alta Traição, por ser insuportável a muitos desses anarquistas que tentavam governar sua vida e moralizar suas práticas de amor livre. No terceiro movimento, apresento suas relações com Itô Noe, jornalista e tradutora de Emma Goldman, que repudiava as feministas liberais japonesas que tentavam reproduzir as lutas estadunidenses e europeias

2 A recusa da representação. A ação direta não restringe a apenas ataques terroristas, mas está em realizar um jornal, uma prática libertária de educação e na greve geral. Essa última ação, explorada por Kôtoku Shusui enquanto uma possibilidade de romper com o parlamentarismo.

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para a constituição da nova mulher. Eles foram capturados em 1923, após o Grande Terremoto atingir a região de Tóquio, torturados até a morte juntos com seu sobrinho de 6 anos e jogados em meios aos destroços da cidade. Com o terremoto desencadearam-se várias perseguições aos anarquistas e socialistas por parte da polícia. Formaram-se, também, inúmeras milícias de japoneses para assassinar os coreanos que viviam pela região3 . Armados com bambus afiados esquartejavam homens, mulheres e crianças coreanas e colocavam fogo em suas casas. A perseguição era atiçada pela recente anexação da Coreia ao Japão e a destituição de quase todas as propriedades. Pouco conhecida até então pelos socialistas e anarquistas, Kaneko Fumiko, nascida no Japão, e Park Yeol, nascido na Coreia, elaboraram o plano para assassinar o Imperador e, simultanemante, vingar os libertários assassinados e interromper a exploração da Coreia pelo Japão. Como será apresentado no quarto capítulo, o plano não obteve sucesso; delatados por um de seus companheiros, foram condenados à morte. Diante da primazia em perseguir os coreanos em seu território, o governo japonês reduziu a pena para prisão perpétua, declarando ser um ato de benevolência do Imperador. Como Kôtoku e Kanno, Fumiko e Park não se esconderam diante do julgamento ou se acovardaram; afirmaram a anarquia e não negaram seus atos; a luta tinha um alvo claro, acabar com o Imperador e a família real, para escancarar que eles não tinham ascendência divina, e assim provocar o possível rompimento com a subserviência do povo japonês. Para Fumiko a expansão da vida estava também na recusa a qualquer clemência do Imperador: enforcou-se na prisão aos 23 anos. Os três relacionamentos conectam-se e expandem-se de diferentes maneiras entre os anarquistas internacionalistas e corajosos em enfrentar o governo japonês. Por meio dessas práticas, aponta-se para os efeitos da construção da subjetividade pelo Kokutai; a edificação do Império japonês com argamassa de sangue de camponeses e coreanos; a modernização do sistema penal com a introdução de juízes; a guerra Russo-Japonesa; as relações com a Revolução Russa de 1917; a ascensão do fascismo japonês e as lutas dos anarquistas. Por meio dessa história-política 4 , pretende-se mostrar nesses três

3 Com a anexação definitiva do território da Coreia em 1910, muitos coreanos imigraram para o Japão, pois haviam perdido suas terras. Lá se submeteram a longas jornadas de trabalho nas minas de carvão e eram desprezados por boa parte dos japoneses. 4 A partir das sugestões de Michel Foucault (1999), uma análise histórico-política não pressupõe os universais, nem pretende aplicar uma teoria. Mas apresentar a composição das forças em luta que levam a uma certa conformação.

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movimentos como os anarquistas eram uma vitalidade na Era Meiji, abalando a imagem de modernização pacífica, mostrando como os anarquistas se contraposicionaram diante de inúmeros massacres. A Era Meiji não foi somente a abertura para o Ocidente, mas a investida em uma nova tecnologia política que associada a uma série de costumes japoneses, muitos deles expressos no Kokutai5, foi fundamental para a emergência e apoio do fascismo japonês e na reconstrução no pós-Guerra. No capítulo seguinte, apresenta-se a ascensão do fascismo japonês principalmente a partir da legislação de perseguição a qualquer um que fosse contrário ao governo japonês: as conhecidas Leis de Preservação da Paz. No decurso da década de 1930, veio o despontar militar japonês, procedente desde a abertura dos portos, com a formação de um exército e a vitória na Guerra Russo-Japonesa, com a invasão da Manchúria e o sufocamento da experiência libertária da Comuna Shinmin, que fora instigada principalmente por anarquistas procedentes da Coreia e China. Enquanto isso no Japão, seguiam as prisões e execuções de anarquistas e, diante disso, alguns optaram por deixar o país para tentarem sobreviver. Aos fiéis súditos japoneses, restava a missão de deixar sua vida à disposição para servir ao Imperador. No último movimento, apresento os desdobramentos das bombas de Hiroshima e Nagasaki de 1945 que marcaram a rendição do Japão. Com a ocupação estadunidense, e a proclamação de uma constituição tida como pacifista, os anarquistas sobreviventes conseguiram rearticular-se para encarar as novas lutas que se desenhavam. Com ocupação estadunidense, rapidamente assimilou-se a derrota e o discurso de reconstrução do país a qualquer custo. Aos anarquistas desenhavam-se novas lutas, não mais contra o Imperador, mas contra a ocupação e as novas questões. O pós-Guerra foi marcado principalmente pela organização da Federação Anarquista Japonesa que restabeleceu contatos com anarquistas no Japão e em algumas localidades do planeta. Apresenta-se a questão do pacifismo, previsto pela constituição japonesa, e o pacifismo e o antimilitarismo para os anarquistas, situando algumas de suas diferenças e singularidades. Em desentendimentos, festas, paixões e massacres, libertários no Japão construíram heterotopias anarquistas traçando outros percursos inesperados ao súdito devoto. Não ajudaram a ordem do Imperador ou do partido, mas realizaram-nas no

5 A constituição Meiji atualizava os preceitos do Kokutai e está disponível em http://www.ndl.go.jp/constitution/e/etc/c02.html. É possível acessar o Kokutai de 1937 em inglês em: http://afe.easia.columbia.edu/ps/japan/Kokutai.pdf.

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presente, colocando suas vidas em risco e muitas vezes dela abrindo mão para afirmar a vida livre.

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expansão da vida

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os arquivos

Há no Brasil uma série de pesquisas tangenciando o tema Japão. Nos levantamentos preliminares, tracei percurso semelhante ao desses trabalhos. Visitei o museu Histórico da Imigração Japonesa no bairro Liberdade, antes conhecido como Largo da Forca e renomeado após a declaração da abolição da escravidão. Nesse bairro, onde muitos escravos foram executados, localizei informações e registros sobre a entrada de japoneses no Brasil, certificações de boas condutas, laudos médicos, desenhos, objetos e algumas fotos dos imigrantes considerados ilustres, que se tornaram grandes empresários e orgulho para a colônia. Nenhuma notícia ou registro de anarquista imigrado. Visitei o acervo da biblioteca da Bunkyo (Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social), instituição que ficou conhecida por salvar a vida de inúmeros imigrantes castigados nas fazendas no interior de São Paulo, que se dirigiram para a região para não morrerem de fome. Ali podiam comunicar-se no japonês oficial ou, se dessem sorte, em seus dialetos. Com a ascensão do fascismo e a eclosão da II Guerra Mundial, a Bunkyo foi fechada, sendo reaberta somente em 1955. Não localizei qualquer obra sobre anarquistas no Japão. Sem encontrar material nos arquivos mantidos por empresas japonesas e por governos no Brasil, estabeleci contato com espaços anarquistas e organizações dentro e fora do país, conhecidas por terem acervo sobre libertários: • Arquivo Edgard Leueroth (AEL), sediado na Unicamp, Campinas-SP; • Ateneo Anarquista de Constitución, em Buenos Aires; • International Institute of Social History (IISH), em Amsterdã; • Centre International de Recherche sur l’Anarchisme (CIRA), Lausanne; • CIRA Japana, Tóquio. O Arquivo Edgard Leueroth (AEL)6 foi fundado em 1974 e conta principalmente com documentos reunidos pelo anarquista e jornalista de profissão, Edgard Leuenroth (1881-1968); está localizado nas dependências do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Quando vivo, o anarquista agitou a imprensa operária por meio da publicação de artigos em inúmeros periódicos, entre eles o anticlerical A Lanterna,

6 AEL. https://www.ael.ifch.unicamp.br/. Acesso em 29/10/2017.

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fundado por Benjamin Mota em 1901, e coordenado pelo próprio Leuenroth entre 1909 e 1916, e entre 1933 e 1935. Também publicou artigos em A Plebe, periódico fundado em 1917, de cunho anarcossindicalista, que ganhou notoriedade junto ao jornal anarco- comunista La Guerra Sociale, em meio às agitações daquele ano que culminariam na Greve Geral que paralisou a cidade de São Paulo no mês de julho. Em A Plebe, foi possível localizar escritos de anarquistas e notícias de inúmeros cantos do planeta: levantes do Rio de Janeiro a Belém do Pará; fugas do campo de concentração da Clevelândia no Amapá; anarcoterroristas em Buenos Aires; prisões e execuções pela Europa. Foi somente no pós-II Guerra Mundial que passaram a ser editadas pequenas notas no jornal A Plebe sobre anarquistas na Ásia, com notícias sobre as Federações na Coreia e no Japão7. Mesmo com os acordos dos governos brasileiro e japonês para incentivo da imigração no começo do século, não havia qualquer referência na chamada grande imprensa sobre japoneses em meio às agitações anarquistas. Em viagem a Buenos Aires, para participação no I Congresso de Investigadorxs sobre Anarquismo, em outubro de 2016, encontrei materiais sobre anarquismos no Japão no pós-II Guerra no Ateneo Anarquista de Constitución8. Anos antes, o espaço, sediava a Federación Libertaria Argentina (FLA)9, fundada em 1935. Na caixa empoeirada do Ateneo contendo documentos sobre os anarquismos no Japão, localizei alguns artigos em japonês, outros em inglês e algumas notas em esperanto. Eram endereçados à FLA e redigidos em inglês ou esperanto. No International Institute of Social History (IISH) 10 também foi possível encontrar periódicos de anarquistas no Japão do pós-II Guerra. Havia somente um documento que fazia referência ao período anterior: um cartão postal endereçado a Ugo Fedeli, anarco-individualista italiano que escrevia no jornal L’Individualista. O cartão estampava a imagem de quatro anarquistas, distribuídos durante campanhas

7 Em A Plebe, no número 20 de dezembro de 1948 (ano 32), “Movimento anarquista no Japão” (p. 2), de Li Pei Kan, texto publicado originalmente no Freedom; número 22 de maio de 1949 (ano 32), “Movimento anarquista no Japão”, sem autor, com notícias sobre Yamaga Taiji, um dos principais articuladores da Federação Anarquista Japonesa (FAJ) no pós-Guerra; número 31 de 1951 (Ano 33) “Apelo japonês ao povo coreano” (p. 2), sem autor, carta emitida pela FAJ; sobre a Coreia, A Plebe, número 24, outubro de 1949, “O anarquismo na Coreia” (p.4), de W. Yourin, notícia sobre a Federação Geral dos Anarquistas Coreanos. 8 Ateneo Anarquista de Constitución. https://ateneoanarquistadeconstitucion.espivblogs.net/. Acesso em 29/10/2018. 9 Federacion Libertaria Argentina. http://www.federacionlibertaria.org. Acesso em 29/10/2018. 10 IISH. https://socialhistory.org. Aceso em 9/03/2019.

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internacionais contra a execução de um deles pelo governo japonês em 24 de janeiro de 1911, sob a acusação de elaboração de plano para assassinar o Imperador. No IISH há material pós-1945 e estudos sobre os anarquismos no Japão no começo do século XX em inglês, que foram importante referência para encontrar outros livros. Nesses três arquivos – AEL, Ateneo e o IISH – os materiais datavam do final da década de 1940 até o começo da década de 1970, e não havia nada a respeito do começo do século XXI. Contatei Mariane Enckell, coordenadora do CIRA de Lausanne, por e-mail. Ela e seus amigos, generosamente e com paciência, localizavam os materiais, os digitalizavam e os enviavam por e-mail, além de apresentar pesquisadores sobre anarquismos no Japão que por lá passaram. No segundo semestre de 2018, visitei o CIRA onde encontrei outros materiais que eram de difícil localização para Mariane Enckell por estarem em japonês. O acervo do CIRA Japana foi o mais difícil de acessar. Não havia retorno dos e- mails enviados. Quando passei por Tóquio em 2015, ao visitar o infoshop Irregular Rhythm Asylum (IRA)11, Narita Keisuke, um jovem anarquista, informou que, naquela ocasião, o CIRA Japana estava se reorganizando, e por isso o material estava inacessível. Contei com a generosidade de Narita, que me presenteou com outros materiais de anarquistas no Japão e na Coreia do Sul hoje. A visita ao CIRA Japana foi adiada para o segundo semestre de 2018, quando Narita Keisuke me auxiliou a ir até Fujinomiya (próximo a Tóquio) onde se encontra o acervo. Com a generosidade de Moeko, Junji, e as crianças Gan (5 anos), Tamaki (3 anos) e Ako (1 ano), visitei algumas vezes o CIRA, onde localizei alguns periódicos e acessei as obras completas de alguns libertários do começo do século XX. Busquei pesquisar nos arquivos anarquistas não enquanto depósitos de jornais do final do século XIX e início do XX, a partir da velha distinção entre trabalho manual e intelectual, mas a partir da prática libertária atual, pela urgência da prática libertária diante da predominância do trabalho intelectual. Segundo Passetti (2003b), a partir dos estudos de Michel Foucault referentes às sociedades disciplinares e dos apontamentos de Deleuze sobre a emergência das sociedades de controle, o trabalho manual sob comando do trabalho intelectual preponderou na disciplina. Já nas recentes sociedades de controle, o trabalho intelectual de planejamento, de estudo dos investimentos na empresa e em si mesmo, dissolveu o trabalho manual. Há uma disseminação do trabalho intelectual com

11 IRA. http://ira.tokyo. Acesso em 9/03/2019.

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a convocação constante à participação democrática na gestão de seus programas e no aprimoramento de currículos enquanto investimentos no empreendedorismo de si do capital humano – revisão da racionalidade neoliberal sobre a força de trabalho. Interessava apreender essas resistências como heterotopias anarquistas, apresentar seus desdobramentos e a sua urgência. Nesse primeiro movimento, os arquivos são apresentados diante do fluxo computo-informacional nas sociedades de controle. Apesar de estarem dispostos de certa maneira na internet, como o CIRA-Lausanne e o IISH, não são bancos de dados digitais, mas é possível realizar uma pesquisa em seus sites e solicitar uma cópia de um documento. Os arquivos são acessados de acordo com o interesse e a vitalidade da luta anarquista. Não se pretende que ali tenha a totalidade da história, mas sobressai a atualidade das lutas. Os arquivos anarquistas não são um banco de dados com a acumulação de informações sobre um sujeito, ou integrantes do recente artifício big data, que pretende cruzar os inúmeros bancos de dados aos quais estamos inseridos para assim prever e controlar o futuro de cada um. Um arquivo anarquista não é um amontoado de papéis disponível para alimentar as traças e ácaros, mas é onde estão alguns registros de vidas que não temeram encarar seus tempos por mais terríveis que fossem. Esses espaços disponibilizam relatos de lutas, documentos esquecidos, sinais de existência, marcas de desentendimentos e rastros pelos cantos do planeta, próprios à análise genealógica. Anarquistas são internacionalistas e nos arquivos se encontram inúmeras matérias de diferentes associações que pulsam no presente.

CIRA

Pietro Ferrua (1930- ), ao retomar as investidas para a construção de um CIRA no Brasil no ano de 1967, conta como, durante a ditadura civil-militar, anarquistas lutavam pela preservação dos documentos e a importância da existência de arquivos. O CIRA fora fundado 10 anos antes, em Genebra, na Suíça, por Ferrua em companhia de um exilado da Bulgária e de André Bösiger (FERRUA, 2009b). Entretanto, em 1961, Ferrua foi expulso do país e o arquivo passou a ser coordenado por Marie-Christine Mikhaïlo, quando essa se mudou para Lausanne (1964), e depois por sua filha Marianne Enckell (FERRUA, 2009a).

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Em 1965, por iniciativa do René Bianco, uma sede do CIRA foi inaugurada em Marseille. Hoje, ela faz parte da Federação Internacional de Centros de Estudos de Documentação Libertária (FICELD), que se reuniu pela última vez em Bolonha, na Itália, em abril de 2016, e que pretende elencar os arquivos libertários pelo planeta. Essa sede do CIRA e as outras que despontam pelo planeta não são filiais empresariais, nem dependem de alguma maneira da sede de Lausanne. Elas traçam suas conexões com outras associações a partir de seus interesses e das lutas que pretendem travar. Por vezes estabelecem contato para a troca de materiais, informações, além de auxiliarem uma a outra, quando necessário. Instigam a cultura libertária enquanto associações interessadas em afirmar práticas anarquistas, engendrar outras relações contra hierarquias e criar costumes livres no combate às novas tecnologias de poder. No Brasil, o CIRA estabeleceu contato com inúmeras associações e com anarquistas. Para não perder os arquivos diante das perseguições, muitos foram copiados com vistas à preservação. Diante da ditadura civil-militar, seus integrantes não conseguiram levar adiante a proposta de construção de uma editora, mas auxiliaram Roberto das Neves, na editora Germinal, abertamente anarquista. Realizaram traduções, como a da carta de Daniel Guérin em solidariedade a Octavio Alberola, ameaçado de expulsão na Bélgica e deram entrevistas para alguns jornais. Em longo artigo de Pietro Ferrua publicado na revista Verve (FERRUA, 2010, 2009a, 2009b), foram reproduzidos os documentos do CIRA-Brasil, possibilitando a qualquer um verificar a produção intensa, apesar da breve existência do arquivo. Quando do seu fechamento, o arquivo do CIRA-Brasil não era maior que uma centena de livros e foi enviado para a sede do CIRA na Suíça. O acervo de Edgard Leuenroth, morto em 1968, inicialmente seria doado ao CIRA, entretanto, por conta das perseguições, a doação nunca foi concretizada, e, finalmente, o material foi cedido à Unicamp (FERRUA, 2009a, 2009b). O CIRA-Brasil coordenou palestras, contando com a presença de anarquistas de vários cantos do planeta, como os dos grupos Solidaridad del Sur, Solidaridad e Federação Anarquista Uruguaia. Também anarquistas daqui foram à Suíça para conhecer o CIRA- Lausanne. Foi o caso do português radicado no Brasil, Roberto das Neves, conhecido pelo codinome Sr. Satán (DAS NEVES, 2006), que relatou entusiasticamente notícias do outro lado do Atlântico (FERRUA, 2009a). Entre os encontros realizados no Brasil, houve uma série de quatro conferências. Após cinco anos do estabelecimento do regime militar, um cartaz das apresentações em

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vermelho e negro estampava a palavra anarquismo nas universidades; afirmava que era sobre o anarquismo histórico, uma tentativa de driblar os agentes da censura na ditadura12. Quando o anarquista John Cage realizava uma palestra sobre a desobediência civil em Henry David Thoreau, foi questionado por um militar disfarçado sobre a falta de atualidade e a possibilidade de uma revolução no Brasil. O anarquista respondeu que primeiro precisaria haver telefones funcionando para que uma revolução ocorresse no país (FERRUA, 2009a). Diante das perseguições, a seção no Brasil manteve-se relacionada à Suíça e à França e seguiu na tentativa de acumular materiais. As ações do CIRA-Brasil foram interrompidas quando, em 1969, seus integrantes foram presos pela ditadura e libertos alguns dias depois: todos foram denunciados e somente absolvidos em 1971 (FERRUA, 2009a, 2010). Por meio da experiência no Brasil, constata-se que um arquivo anarquista não é um amontoado de documentos, mas a construção de outras relações enquanto associação voltada também à memória. É uma entre as inúmeras práticas que afirmam uma luta por uma vida livre e a invenção de outros costumes, em um outro modo de fazer, autogestionário, como foram os centros de cultura, a editoria dos periódicos, as experiências de educação libertária. Do outro lado do planeta, em outubro de 1970, foi fundado o CIRA-Japana, com artigos também escritos em esperanto para tentar estabelecer contato com outas associações, transpondo as fronteiras. Não pretendia pré-estabelecer uma nacionalidade na anarquia, mas afirmar o internacionalismo entre os anarquistas. Também é possível encontrar referências a este espaço como CIRA-Nippon, o termo em japonês. Em 1968, o estudante Ozeki Hiroshi conheceu o CIRA Internacional, a sede de Lausanne, retornou ao Japão e convidou seus amigos para fundar uma seção. Ozeki ficou impressionado durante sua visita, leu inúmeros panfletos, jornais e outras publicações produzidas em vários cantos do planeta. Anos mais tarde recordaria: “nós podemos ler essas publicações, podíamos sentir a energia do período e a revolução na qual se atiraram” (apud CIRA-JAPANA, 2015, p. 3). Nos momentos iniciais, não reuniram muito material, mas se articularam para a fundação do periódico quadrimestral Libero, em 1973. Realizaram dois encontros em 1974 e, ao final desse ano, lançaram uma biblioteca para

12 Para ver o cartaz, vide FERRUA (2010), p. 141. Disponível também em: http://www.nu-sol.org/wp- content/uploads/2018/02/verve17.pdf. Acesso em 16/01/2019.

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expandir as conexões, como apresentou em carta publicada no periódico: “queridos amigos, (...) Vamos abrir a biblioteca do C.I.R.A.-Nippon ao público, especialmente para aqueles que trabalham ou estudam o anti-autoritarismo, anti-estatismo, libertarianismo e anarquismo. Queremos montar uma biblioteca que possa ajudar com esses materiais. Temos muito trabalho. Um deles é obter as informações de movimentos e grupos de todo o planeta, que possuem os mesmos objetivos e os interessados em consultar os materiais, ou seja, aqueles que visam um mundo libertário. (...) O Libero International, nosso pequeno periódico, começará agora (...). Em breve esperamos que ele possa ter força suficiente para nos conectar com nossos amigos estrangeiros de todo planeta (LIBERO INTERNATIONAL, 1974, n. 0. p. 1). A primeira instalação do CIRA foi uma sala de 30 m2 que abrigava 2000 livros, panfletos e periódicos, em Fujinomiya, entre Tóquio e Osaka. A sala é um anexo no quintal da casa de Ryô Buichirô, que a construiu com a ajuda de alguns amigos13. O CIRA recebeu materiais de libertários espalhados pelo Japão, como do grupo de estudos Clube Anarquista (Nihon Anakisuto Kurabu) 14, ativo entre 1950 e 1980 (LIBERO, 1974, n. 0).

Ryô Buichirô no CIRA, em 1999. Disponível em: http://imaginarymuseum.org/EMB/CIRANippon/CIRA00.htm. Acesso em: 26/02/2019.

13 Quando visitei o CIRA não encontrei o Ryô. Atualmente este não recebe visitas de desconhecidos por conta de seu estado de saúde. Está com mais de 90 anos, com dificuldades de audição e locomoção. Mesmo assim, prefere morar sozinho na casa onde no quintal está o CIRA e de frente para uma imensa plantação de chá verde, recebe visitas esporádicas de amigos e de integrantes do arquivo. 14 Grupo de pesquisadores anarquistas. Entre eles estavam Misato Toda, investigadora da obra de Malatesta, e o geógrafo Philip Pelletier, filiado à Federação Anarquista francesa e um dos ocidentais pioneiros na publicização das práticas anarquistas do outro lado da Terra.

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Na carta, Ozeki aponta que entre os problemas urgentes estavam a desorganização do material, a inexistência de uma seção de comunicação e a ainda incipiente coleta de materiais, sem contar o espaço que logo estaria abarrotado, dificultando a realização de consultas. Entretanto, até hoje, o material do CIRA está no mesmo espaço. Apesar de estabelecido em Fujinomiya, na década de 1970, o CIRA não foi aberto à visitação. O material destinado ao arquivo não era enviado inicialmente para lá, mas para um endereço em Kobe, onde morava um integrante que compreendia outros idiomas. O endereço nessa cidade foi denominado como Seção de Correspondência Internacional. E, ao final da última página da primeira edição, informava: “‘Libero International’, nosso pequeno órgão, vai começar agora. Não terá, talvez, a força de tomar um voo tão leve como Jonathan Livingstone, a famosa gaivota. Mas, em breve, esperamos que tenha força suficiente para nos conectar com nossos amigos estrangeiros em todo o planeta. Esperamos sinceramente, por meio deste folheto, construir uma solidariedade com você” (LIBERO, 1974, n. 0. p. 9). O órgão de imprensa do CIRA, o Libero International, encontra-se disponível na internet para qualquer interessado15. O periódico é redigido em japonês, inglês e esperanto e foi disponibilizado por Phillip Billingsley, estadunidense integrante do CIRA Japana na década de 1990 e conhecido por estudar a passagem de Mikhail Bakunin pelo Japão, publicizado na obra Bakunin in Japan pela editora Christie Books (2014). Entretanto, os textos do Libero foram transcritos, sendo possível visualizar as capas e a formatação somente nos CIRAs. Ao todo, foram lançadas seis edições sem periodicidade regular, entre setembro de 1974 e março de 1980. As edições apresentavam um resgate histórico dos anarquismos e divulgavam as atividades realizadas pelo CIRA. O Libero é uma das fontes vitais para estudar os anarquismos no Japão; em seu primeiro número, registra conexões para a construção dessa rede de solidariedade, com anarquistas na China e na Coreia em textos sobre as lutas nesses locais no começo do século XX; notícias sobre manifestações contra a Nissan Motors; e uma recordação sobre a vida de Kôtoku Shûsui, anarquista no Japão que realizou traduções de Piotr Kropotkin.

15 Ver: http://libcom.org/book/export/html/33862.

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Em uma carta16 da anarquista Toda Misato (02/09/1980) para Mariane Enckell do CIRA-Lausanne, ela comenta sobre a possível tradução de um artigo da anarquista na Suíça para o periódico. Apesar de Toda não pertencer ao corpo editorial da revista, citava o Libero, declarava ter indicado a publicação do artigo de Enckell como referência da época sobre os anarquismos no Japão e na Ásia. Nas edições seguintes, foram resgatados documentos a respeito da FAJ (Federação Anarquista Japonesa), fundada em 1946 e encerrada em meio às eclosões estudantis em 1968; sobre as manifestações nas décadas de 1960 e 1970; sobre os anarquistas na Coreia do Sul diante da ditadura; a passagem de Mikhail Bakunin pelo Japão. Na última edição publicada, o Libero pretendia apenas tirar um longo cochilo e depois retornar. “Cinco anos se passaram desde a primeira edição, e muita água passou debaixo da ponte. No começo, éramos quatro integrantes com alguns apoiadores e agora somos apenas três (...). Libero, por enquanto, vai para cama. Então dizemos ‘boa noite’, não ‘adeus’; e ‘até logo’, não ‘sayônara’” (LIBERO, 1980, n. 6, p. 2-3). Por meio do Libero e das reuniões nesses anos do CIRA, tornou-se possível uma revisão do estudo de Victor García em parceria com Wat Tyler. Tyler chegou ao Japão alguns anos antes quando era estudante e integrou o coletivo do Libero International, também ficaria encarregado da Seção de correspondência internacional. Na época, García já havia concluído o livro Museihushugi: el anarquismo japonês17, quando o Libero foi contactado pela editora Cienfuegos para o lançamento da obra em inglês. Tyler estabeleceu contato com García e em 1979, foi lançado Museifushugi: The Revolutionary Idea in Japan. A diferença com o primeiro trabalho é que o segundo é ampliado com a consulta a documentos do CIRA-Japana e em várias passagens recorre-se aos resgates históricos produzidos pelo Libero (TYLER in LIBERO, 1980, n. 6). A obra, apesar da pretensão de Tyler em estabelecer a verdadeira história da anarquia no Japão, ampliou o panorama apresentado por García por meio da inserção de

16 Na Suíça, encontrei cartas procedentes do Japão e endereçadas a Enckell. As datas eram de 1975 a 1984, e escrita por anarquistas e pesquisadores de anarquismos. Alguns como Shintaro Hagiwara, pesquisador da obra do libertário Heibei Takao, contaram a Enckell algumas passagens das lutas de anarquistas no Japão (1975); outros como Isoya Takero solicitavam cópia de obras e agradeciam a acolhida (30/06/1983); Maeno Minoru escrevia contando do grupo da qual fazia parte, a Associação Internacional dos Trabalhadores do Japão, cuja existência pouco se sabe e que teve curta duração, aproximadamente entre 1983 e 1984. 17 Foi o primeiro estudo sobre os anarquismos no Japão publicado fora do país, afirmou Augustine Seiichi Miura na introdução de Museifushugi: the revolutionary Idea in Japan. Conheceu García por meio do anarquista e esperantista Yamaga Taiji em uma de suas primeiras idas ao Japão na década de 1950.

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outras fontes. O integrante do corpo editorial do Le Libertaire japonês, Mukai Kou cedeu seus rascunhos sobre a história dos anarquismos no Japão, ampliando as discussões no livro, e sobre os burakumin, procedentes da Era Tokugawa, integrantes da casta mais baixa e hostilizados até hoje por realizarem tarefas consideradas impuras, como limpar as ruas, ser açougueiro, fabricar couro (TYLER in LIBERO, 1980, n. 6).

Edição de “hibernação” do Libero International, março de 1980. Até o presente momento não foi retomado. Fonte: CIRA Japana.

Na década de 1980, o trabalho no CIRA ficou estagnado, exceto por possibilitar a muitos pesquisadores entrar em contato com a sede de Lausanne. Em carta de 1997, Yamaguchi Mamoru, professor na Universidade de Tóquio e pesquisador da vida e obra do libertário nascido na China, Ba Jin, contou a Christine e Mariane Enckell sobre sua viagem a Taiwan e recordou sua passagem em Lausanne.

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Comentou sobre seu retorno ao Japão e a difícil readaptação a uma sociedade tão fechada após suas viagens anarquistas pelo planeta. Ao final, explanou um encontro com militantes que trabalhavam no CIRA-Japana e se organizavam para reabrir o arquivo. Como não os conhecia, perguntava às duas se já tinham ouvido falar desses anarquistas. E indicava que pretendia visitá-los quando se restabelecesse, entretanto, não houve o retorno de Yamaguchi. Apesar das reuniões no final da década de 1990, o CIRA só foi retomado no início dos anos 2000, quando da fundação do IRA (Irregular Rhythm Asylum) em 2004. O IRA procede dos movimentos antiglobalização, influenciados pela Batalha de Seattle em 1999. Quando da 34ª reunião do G8 em Tóquio, o espaço foi construído para abrigar anarquistas e manifestantes perseguidos pela polícia, como informou Narita Keisuke, um dos articuladores na época. Inúmeras manifestações explodiram principalmente em Tóquio e Osaka, com sócio-ambientalistas, sindicalistas, anarquistas, ativistas de movimentos sociais contra o uso de energia nuclear e pelo fim das bases estadunidenses que ocupam o Japão. Atentos ao momento, os jovens anarquistas retomaram alguns escritos e reabriram o CIRA. Se anteriormente para Ozeki havia um problema de quantidade de integrantes, agora parecia ter uma solução, com a entrada dos jovens, o CIRA estaria oxigenado. Entretanto, algo que não se resolveu foram os impasses de comunicação com o CIRA-Japana. Durante a existência do CIRA-Brasil na década de 1960, não se encontra qualquer registro de comunicação entre as duas sedes. Há somente alguns trechos de atas de reunião no Brasil mencionando a existência dessa sede. Segundo apresenta Ferrua, simultaneamente à construção do CIRA no Brasil, cogitavam-se sedes na Bélgica, Holanda e no Japão. Quando da fundação da sede no Brasil, Ferrua afirmou que foram trocadas correspondências com os anarquistas do outro lado do planeta, assim como com libertários na Alemanha, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Inglaterra, Israel, Itália, México, Peru, Suécia, Suíça, Uruguai. Entretanto, mesmo na coleção de Ferrua, não foram encontradas essas cartas enviadas ao Brasil, tampouco se sabe se vieram do CIRA-Japana, de militantes isolados ou de algum grupo. O CIRA-Japana é tido até hoje como um mistério pelos integrantes do CIRA Internacional, como está descrito no boletim de maio de 2017. Entretanto, o CIRA-Japana segue na contramão da comunicação rápida e instantânea. Apesar de ter um site, esse pouco é atualizado e as tentativas de contato não são respondidas. O espaço está lá, em

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um pequeno quarto em Fujinomiya. Seus integrantes seguem na tentativa de fazer um resgate histórico, enfatizando a urgência da adoção de práticas anarquistas no Japão. Hoje, a principal iniciativa é um calendário temático, não somente para saudar as esquecidas lutas do passado, pois o calendário de papel, objeto que japoneses tanto apreciam, é o que entra em todas as casas: os japoneses leem atentamente suas inscrições, aprendem sobre as práticas em textos escolhidos sobre a atualidade. Todo ano é feita uma pesquisa sobre algum tema ou em torno de uma figura anarquista. O material é selecionado e são separados trechos de obras ou são redigidos comentários que compõe o calendário diagramado por Narita Keisuke. Em 2015, por exemplo, o esperantista Taiji Yamaga (1892-1970) foi homenageado com a retomada de sua trajetória anarquista e sua luta no pós-Guerra por meio da divulgação do pacifismo, e da tentativa de rearticulação dos libertários sobreviventes em torno da FAJ (Federação Anarquista Japonesa). Desde 2007, os calendários são lançados todos os anos.

Calendário do ano de 2013 com registros dos anarquistas Itô Noe, Ôsugi Sakae e seu sobrinho, Tachibana Munekazu, assassinados em 1923. Fonte: CIRA-Japana.

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O Boletim, por sua vez, ainda é impresso seguindo a mesma diagramação da década de 1970, informando aos integrantes, quando publicado, quais foram as atividades realizadas. O último foi lançado 2015. O reduzido número de integrantes é novamente uma dificuldade para o CIRA se manter, e boa parte desses estão com idade avançada ou debilitados para auxiliar nas tarefas diárias e até mesmo na organização dos materiais. *** Passetti (2013b) em “Da vida dos arquivos anarquistas contemporâneos no Brasil” mostrou como a chegada dos anarquismos nas universidades brasileiras na década de 1980 foi definitiva para reativar associações, organizações e arquivos, como foi o caso do AEL. Passetti, ao acompanhar as indicações Michel Foucault, sugere que os arquivos anarquistas, enquanto arquivo monumento, estão interessados e mobilizados pela luta social e na produção dos enunciados e que não pretende abarcar o máximo da produção a partir do Estado Nacional, como procede a Biblioteca do Congresso dos EUA. O que se destaca em um arquivo não é o que se guardou de uma civilização. Em A arqueologia do saber, Michel Foucault aponta que o arquivo não é somente um registro histórico da coleção de textos a serem armazenados para as próximas gerações. O arquivo é o que faz com que “todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas”. O arquivo não é o que protege, ou uma fortaleza do conhecimento. Mas, é o jogo das regras em uma cultura que determina a permanência ou o apagamento de um enunciado e, diante desse jogo, o arquivo “é o que faz com que [as coisas ditas] não recuem no mesmo ritmo que o tempo, mas que as que brilham muito forte como estrelas próximas venham até nós, na verdade de muito longe, quando outras contemporâneas já estão extremamente pálidas” (2008, p. 147). Provavelmente atravessado por essa leitura, o filósofo italiano Giorgio Agamben ao problematizar o que é o contemporâneo e ao retomar o intempestivo em Nietzsche, afirma que a contemporaneidade é uma relação com o tempo marcada pela desconexão, dissociação e pelo anacronismo. Para Agamben, ser contemporâneo não é ser de uma época, mas dela tomar distância, apesar de saber que pertence irrevogavelmente a sua época. Por ser inatual, é capaz de apreender e apreender o seu tempo. Agamben retoma a astrofísica e indica o contemporâneo: “No firmamento que olhamos de noite, as estrelas

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resplandecem circundadas por uma densa treva. Uma vez que no universo há um número infinito de galáxias e de corpos luminosos, o escuro que vemos no céu é algo que, segundo os cientistas, necessita de uma explicação. É precisamente da explicação que a astrofísica contemporânea dá para esse escuro que gostaria agora de lhes falar. No universo em expansão, as galáxias mais remotas se distanciam de nos a uma velocidade tão grande que sua luz não consegue nos alcançar. Aquilo que percebemos como o escuro do céu é essa luz que viaja velocíssima até nos e, no entanto, não pode nos alcançar, porque as galáxias das quais provem se distanciam a uma velocidade superior aquela da luz. Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo” (2009, p. 64-65). Ser contemporâneo, então, significa olhar para o escuro de uma época e perceber a luz que dirigida a nós simultaneamente distancia-se infinitamente. O arquivo monumento está vinculado à arqueologia foucaultiana. Não é uma metáfora, mas um arquivo no qual se tem diferentes entradas, produz diferentes análises superando o arbitrário ponto de origem. Foucault (2008) aponta os arquivos a partir de duas perspectivas, enquanto documentos e monumentos. O primeiro tipo é algo imóvel, parte de um passado institucionalizado; os arquivos monumentos, por sua vez, estão sempre em construção, passíveis de inúmeras incursões e marcados pela historicidade. Na perspectiva arqueológica, no arquivo monumento há uma busca que vai ao subsolo para desconstruir os efeitos de superficialidade, ou seja, provocar uma série de rupturas sem a pretensão de escrever uma história global. Assim, compreendem-se os arquivos anarquistas como arquivos monumentos. O arquivo como um sistema de discursividade, apresenta o que deve ser conservado e está na formação e transformação dos enunciados. Portanto, o que seria um arquivo anarquista ao guardar uma série de documentos esquecidos e/ou combatidos por uma historiografia oficial? A noção de heterotopia foi tratada por Michel Foucault em As palavras e as coisas (2000) e em “Outros espaços” (2001), texto escrito na Tunísia, em 1967, mas publicado somente em 1984. Entender os arquivos anarquistas inclusos em heterotopias é retomar as experiências, mas também a sua existência, por possibilitarem traçar as atualidades de enunciados de outro momento, a atualidade do discurso anarquista diante da ascensão do fascismo japonês ou até mesmo dos riscos do envolvimento na burocracia de um partido ou federação. Foucault interessa-se pelo espaço permeado por uma série de relações que determinam posicionamentos. Entre todos os posicionamentos possíveis, ele atenta para

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alguns que tem uma curiosa propriedade de inverter ou neutralizar o conjunto de relações que se encontram designadas, pensadas ou refletidas por esses posicionamentos. São espaços contradizendo todos os outros posicionamentos determinados e podem ser utopias ou heterotopias. As utopias são posicionamentos sem um lugar real, são fundamentalmente idealização. No prefácio de As palavras e as coisas, Foucault destaca: “As utopias consolam: é que, se elas não têm lugar real, desabrocham, contudo, num espaço maravilhoso e liso; abrem cidades com vastas avenidas, jardins bem plantados, regiões fáceis, ainda que o acesso a elas seja quimérico” (FOUCAULT, 2000, p. XIII). Entretanto, existem também as contraposições. Essas são utopias que acontecem no presente. “Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e dos quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, de heterotopias; e acredito que entre as utopias e estes posicionamentos absolutamente outros; as heterotopias, haveria, sem dúvida, uma espécie de experiência mista, mediana, que seria o espelho. O espelho, afinal, é uma utopia, pois é um lugar sem lugar (FOUCAULT, 2001, p. 415). Portanto, esse espaço, o arquivo anarquista, não é um depósito de jornais à espera de serem devorados por insetos ou aguardando por uma digitalização, ou um local onde se encontram os desejos de mudar o mundo anunciando uma nova utopia. Proponho analisar o arquivo anarquista enquanto uma heterotopia. Foucault em O corpo utópico (2013), mostra que o arquivo, as bibliotecas também são heterotopias ao pretenderem encerrar todos os tempos em um lugar. Entretanto, as bibliotecas são heterotopias distintas de um arquivo monumento, como o arquivo anarquista. Neste não está em jogo estancar a história dos libertários em sua totalidade, ou atestar qual o verdadeiro documento que demarca o ponto de origem de um acontecimento, mas o arquivo monumento está em constante construção e no qual se tem diferentes entradas e incursões.

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Um arquivo anarquista não é um amontado de documentos mortos, guarda acontecimentos singulares e é reativado de acordo com o interesse e atualidade das lutas. Ali se guardam um conjunto de enunciados e acontecimentos que continua presente, que se transformou na história de acordo com a urgência das lutas e que deu possibilidade de aparecer outros enfrentamentos em vista a uma vida livre. Assim, no arquivo anarquista, não somente no que se disponibiliza para consultas, mas também em como se disponibiliza, e na autogestão dos arquivos está em construção uma heterotopia anarquista. As heterotopias assumem formas variadas, como mostra Passetti. Os anarquistas construíram suas heterotopias de tempo, enfrentado ditaduras e perseguições, problemas financeiros, falta de integrantes, decomposição dos materiais... “Os anarquistas desde o início foram internacionalistas e arquivaram documentações como registros de lutas, produções de suas práticas, vestígios de sua existência, com as diferentes marcas de todos os lugares, construindo os seus espaços de arquivamentos” (PASSETTI, 2013b, p. 56). Seus arquivos são compostos de uma memória das lutas com seus enunciados no presente, não se restringiram a momentos no passado e, simultaneamente, não estão à espera do futuro ou um retorno a um passado ilustre. Passetti e Augusto (2008), ao apresentarem a cultura libertária, mostram como os anarquistas construíram seus espaços de contraposicionamento em relação às sociedades disciplinares. Fundamentaram contracondutas, muitas vezes ao estabelecerem novas justificativas morais ou racionalidades táticas que se inscrevem em renovações do governo de si e dos outros. Mesmo diante das possibilidades desses desdobramentos, um desses espaços impressionantes são os arquivos anarquistas. Seus registros de lutas apresentam a vitalidade de suas lutas sem os sepultarem em meio a ácaros esquecidos de uma biblioteca. “A vida dos anarquistas em suas formas inovadoras e permanentes traz as memórias de suas existências e também das suas resistências nas diferentes épocas. A lembrança oral, os documentos de época, os registros de lutas diárias estão ladeados de inovações trazidas nos costumes como o amor livre, a escola sem distinção de sexo e baseada no talento de cada um; o jeito de alfabetizar crianças e adultos, segundos suas predisposições intelectuais; o fortalecimento de uma imprensa própria; suas deliciosas festas, suas contestadoras peças teatrais encenadas por trabalhadores e trabalhadoras, suas refeições coletivas...” (PASSETTI & AUGUSTO, 2008, p. 13).

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Os arquivos anarquistas também não são bancos de dados, apesar de terem seus materiais online ou transmitidos por e-mail, como ocorreu no contato com o CIRA. Um banco ou base de dados, a partir das considerações de Gilles Deleuze (1992), são armazenamentos de registros de movimentações financeiras, de pessoas, de lugares e até de planetas. Seus dados entrecruzam-se para identificar em meio ao fluxo alguém ou uma ação. Assim, dizem respeito ao divíduo na sociedade de controle que produz ininterruptamente dados em seus registros por meio de smartphones, redes sociais, computadores, tablets, senhas, etc. Esse divíduo não é o indivíduo em meio a uma massa da vigilância descontínua das sociedades disciplinares em que seus registros eram marcados quando estava nas instituições (escola, hospital, prisão, manicômio...), mas um incessante monitoramento com a produção ininterrupta de dados, como localização, dados bancários, estado civil. Apesar da configuração hierarquizada e centralizada na internet por meio de servidores e provedores, fortaleceram-se algumas redes anarquistas, com a possibilidade de comunicar-se rapidamente, acessar um documento, receber um material com agilidade e entrar em contato com outros pesquisadores. A internet ainda possibilita que arquivistas de algum material possam digitalizá-los e disponibilizá-los online. São efeitos das lutas anarquistas mais do que a tentativa de encerrar suas práticas em um banco de dados. “A memória dos anarquismos não é seletiva e não está guardada em nenhum livro, arquivo físico ou digital, bibliotecas, museus. Seus livros, músicas, relatos, poesias, teatros, imagens são efeitos das infindáveis lutas que acompanham cada anarquista. Não são propriedades de ninguém, não estão disponíveis aos julgamentos e aos juramentos de ninguém. Os anarquistas preservam suas memórias fazendo anarquia, desdobrando práticas, inventando lutas, remexendo na história apaziguada, experimentando a liberdade no presente. Só existe o presente libertário se ele for o espaço do devir, e não ficar reduzido a lembranças do passado e nostalgia de futuro” (NU-SOL, 2012, pp. 16-17). Assim, não se pretende descrever um arquivo em sua totalidade – somente um recuo cronológico talvez possibilitasse tal tarefa –, mas apresentar fragmentos por meio de material coletado e traçar a urgência de seus enunciados atuais em um momento em que as estrelas contemporâneas aparentam estar mais pálidas e modulares, principalmente no que tange às práticas libertárias no Japão. Foucault mostrou em “Outros espaços” os contraposicionamentos relacionados ao século XX e como respondiam a outros posicionamentos desestabilizando-os, neutralizando-os, invertendo o conjunto de relações dos posicionamentos estáveis. “Mas

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o que me interessa são, entre todos esses posicionamentos, alguns dentre eles que têm a curiosa propriedade de estar em relação com todos os outros posicionamentos, mas de um tal modo que eles suspendem, neutralizam ou invertem o conjunto de relações que se encontram por eles designadas, refletidas ou pensadas” (FOUCAULT, 2006, 414). Os contraposicionamentos se confrontavam com os posicionamentos e esquadrinhamentos de espaços das sociedades disciplinares, constituindo, por exemplo, sindicatos diante das fábricas e espaços de educação libertária diante da escola. Assim, diante da complementariedade de posicionamentos e contraposicionamentos, como podem emergir os antiposicionamentos? Passetti (2011) atenta para a vitalidade de um antiposicionamento enquanto espaço da constituição da revolta. “Profanar o sagrado de anarquistas e inumano. Não para restituir o humano, mas para permanecer longe do niilismo, mesmo sem deixar de despender as atenções aos seus efeitos. Não há mais a ilusão da não captura ou das louváveis atitudes contraposicionamentos. Um antiposicionamento em busca de um direito anticontrole e diante da vida como alvo remete ao ingovernável. E este espaço é o espaço da revolta, de trazer incômodos para os moderados e bloquear capturas de nossas existências dividuais. Não se trata de recompor o indivíduo, o humano, dissolver massas ou simplesmente aderir à multidão. Livre de soberania está um direito estabelecido dois a dois em torno de um objeto, de um produto, do propício para uma associação. Ele se exercita pela possibilidade de acontecer e se desvencilhar das melhorias” (PASSETTI, 2011, p. 139). Interessa, dessa maneira, a possibilidade de antiposicionamentos que atualizem as lutas diante das tensões e capturas entre posicionamentos e contraposicionamentos. Quais os antiposicionamentos anunciados pelos anarquistas no Japão no decurso do século XX? Por meio do material coletado, apresento práticas anarquistas no Japão durante as chamadas Era Meiji até a Era Showa, referidas também como o período do Império e sua queda no pós-Guerra. Não se trata de escrever biografias na tentativa de personificar os anarquismos nas pessoas e nos acontecimentos aqui mencionados, mas de situar suas relações, e construir essa constelação menor de anarquistas a partir de fragmentos encontrados nos arquivos. Não se pretende estabelecer um panorama geral dos anarquismos no Japão do século XIX ao XX, afinal, os anarquistas não são uma unidade a espera da investigação. Portanto, busca-se aqui não reativar uma utopia, uma programática determinista, como supõe Piotr Kropotkin. O anarquista russo encontrou, em suas investigações, bases científicas para o desenvolvimento do anarquismo. Em La moral anarquista (s/d), indica

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que o pensamento humano se move de maneira pendular em que, depois de um longo período de sono, vem o despertar, e assim se rompe com tudo que o havia acorrentado: “governantes, magistrados, clérigos” (s/d, p. 1). Em Origen y evolucion de la moral (1945) (conhecido também como Ética: origem e desenvolvimento), destacou que “a ciência e a filosofia nos deram tanto a resistência do material e a liberdade de pensamento, que são necessários para pôr em vida as forças construtivas que podem levar a humanidade a um novo progresso. (...) Se o estudo da natureza nos deu as bases de uma filosofia que abarca a vida em todo o universo, a evolução dos seres vivos na Terra, as leis da vida psicológica e o desenvolvimento das sociedades, esse estudo da natureza deve também nos dar a explicação natural da origem do sentido moral” (KROPOTKIN, 1945, pp. 19-20). Nessa evolução científica estaria o desenvolvimento da anarquia, seria um caminhar para a abolição do Estado. Em seu estudo da natureza, observou outras espécies animais, e constatou a solidariedade enquanto um fator de evolução e não a seleção natural do darwinismo social. Neste sentimento de solidariedade, com a constatação de que o progresso está no apoio de um ao outro, é possível a derrocada do Estado e a evolução à anarquia. Não se pretende seguir os passos cientificistas de Kropotkin, ou as possibilidades de alcance da evolução para uma sociedade anarquista no Japão, mas sim destacar o fazer heterotópico das práticas anarquistas. O interesse recai em abordar os anarquismos a partir dos deslocamentos realizados por japoneses no Japão e por ocidentais que transitaram pelos anarquismos nesse país.

os anarquismos no Japão nos relatos de historiadores da anarquia

Edgard Rodrigues é conhecido como um dos maiores arquivistas sobre os anarquismos no Brasil e em Portugal. Em suas extensas pesquisas em periódicos, conseguiu localizar inúmeros anarquistas e suas ligações com diferentes associações. Em sua coleção de cinco volumes, Os companheiros (1997-1998), reuniu informações de grande parte dos anarquistas que tiveram algum envolvimento com a imprensa libertária. Entretanto, não há nenhum relato de alguém procedente da Ásia no começo do século XX.

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Edgar Rodrigues não desconhecia a existência de anarquistas no Japão e alguns verbetes sobre o tema são encontrados em seu Pequeno Dicionário de Ideias Libertárias (1999a). Em História do Movimento Anarquista em Portugal (1999b), Rodrigues destaca a imprensa anarquista em suas relações internacionais, sinalizando para os contatos e oferecendo solidariedade aos perseguidos no Japão, EUA, Rússia, Itália e Espanha no começo do século XX. Entretanto, prevaleceu no autor o interesse em detalhar os estudos dessas relações no que tangenciavam à Europa, devido a sua presença entre os anarquistas e imigrantes no Brasil. O historiador inglês George Woodcock, por outro lado, não se refere aos anarquistas na Ásia. Quando escapa das demarcações dos anarquistas na Europa e Estados Unidos, cita somente algumas experiências na América do Sul. Desconsidera também a atuação dos anarquistas japoneses diante do consulado do Japão na Califórnia para evitar que anarquistas fossem assassinados no Incidente de Alta Traição 18 e as notícias divulgadas no Mother Earth sobre a perseguição aos libertários. Woodcock preocupou-se mais em situar o que chamou de “a morte do anarquismo” após o amassacre curante o acontecimento da Revolução Espanhola. Apesar de ressaltar diferentes abordagens nos anarquismos – como quando organiza Os grandes escritos anarquistas (1998), em que busca “definir um grupo de doutrinas” –, Woodcock identificou os anarquismos por meio de uma matriz europeia, como apontou na sua árvore genealógica em História das ideias e movimentos anarquistas (vol. 1) (1983). Nessa leitura, não há espaço para investigações sobre anarquistas no outro canto do planeta. Práticas não europeias seriam apenas reproduções daqueles sediados nesse continente, que eclodiram em momentos específicos como em 1870, 1890 e 1930, tal qual uma “fênix no despertar do deserto” e falharam por sua “estrutura sempre frágil e flexível, onde o poder do pensamento espontâneo seguiu sendo a força mais importante” (WOODCOCK, 1998, p. 42-43). Ao acreditarem um ressurgir da anarquia, Rodrigues e Woodcock também se limitam a encontrar nos EUA e na Europa os berços dos anarquismos com reflexos mais

18 O Incidente de Alta Traição data de 1910, quando um grupo de anarquistas e socialistas foram acusados de terem planejado assassinar o Imperador. 25 homens e uma mulher foram presos. 12 foram condenados à forca, outros 12 à prisão perpétua e os dois restantes a 8 e 11 anos de prisão respectivamente. Anarquistas nos EUA manifestaram-se contra a decisão do tribunal com ameaças de morte ao Imperador estampadas no Consulado japonês e a revista Mother Earth se engajou em uma campanha para evitar o assassinato dos militantes.

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ou menos marcantes na América do Sul. Assim, condensam o conjunto dos anarquistas na prática do chamado lado ocidental. Paul Avrich, considerado como um historiador dos anarquismos, em Anarchist Portraits (1988), reuniu artigos de anarquistas mais conhecidos, como Mikhail Bakunin, Piotr Kropotkin, Nestor Makhno, Pierre-Joseph Proudhon e outros, como também os menos conhecidos, como Gustav Landauer, Mollie Steimer e o libertário nascido na Austrália, J. W. Fleming. Avrich procura entender a formação dos anarquismos nos EUA, destacando a atuação dos imigrantes. A partir das obras e dos estilos de vida de anarquistas de vários cantos do planeta, não busca um modo único do anarquismo, mas o apresenta em sua multiplicidade (AVRICH, 1988). Entretanto, nos moldes de Woodcock, Avrich desconhece os anarquistas japoneses, que passaram pelos EUA, e as relações que estabeleceram. Retoma a avaliação de somente alguns anarquistas, esquecendo na referida obra, propositalmente ou não, outros que também foram importantes para as experiências anárquicas nos EUA, como Paul Goodman, Emma Goldman e Rudolf Rocker. Uma referência a anarquistas no Japão ocorre somente em Sasha and Emma (2012), escrito em parceria com Karen Avrich, sobre a vida de Emma Goldman e Alexander Berkman, em quecita pontualmente o interesse de Berkman na luta por libertação de presos naquele país, não cita porém como isso ocorreu. Jean Maitron (1992), arquivista francês, explora as várias conexões dos anarquistas na França, restringindo-se às atuações na Europa e nos EUA. Apesar disso, os anarquistas no Japão estabeleceram suas redes de contato com os libertários na França, como Ishikawa Sanshiro, que se posicionou a favor da I Guerra Mundial e assinou o Manifesto dos 1619, e Ôsugi Sakae, que foi à Paris e estabeleceu contatos com a editoria do jornal Le libertaire, uma das fontes primárias de Maitron. Outras entradas possíveis em relação aos libertários no Japão referem-se ao estudo da passagem de Bakunin quando fugia do exílio na Sibéria. Ele passou por Yokohama, seguiu viagem até São Francisco e, finalmente, aportou na Inglaterra. Pequenas passagens sobre a recém-abertura dos portos no Japão figuram nos escritos de James Guillaume (1907) e Max Nettlau (s/d) quando escrevem, cada um sua versão, a biografia de Mikhail Bakunin. Entretanto, não há qualquer menção às possíveis práticas anarquistas ou a qualquer contato que Bakunin possa ter estabelecido em Yokohama. Portanto, entre os

19 Documento escrito em 1916, por anarquistas que apoiavam os Aliados na I Guerra Mundial. Entre eles, estavam Piotr Kropotkin e Jean Grave.

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historiadores mais reconhecidos por seus trabalhos sobre anarquismos, pouco ou nada se encontra em relação à presença libertária no Japão. James Joll (1964), também historiador dos anarquismos, identifica, por sua vez, uma certa mutação na década de 1960. Joll refere-se aos EUA quando afirma que no pós- Guerra, o anarquismo “não passava de uma quimera de acento puramente intelectual ou o símbolo de uma revolta contra a sociedade opulenta suscetível de atrair a atenção de um ou outro estudante, mas na prática há tempos tinha deixado de constituir uma força social efetiva” (1964, p. 131). Essa “força social efetiva” teria se esgotado no massacre dos anarquistas na Espanha revolucionária em 1936, ou seja, “o fim do anarquismo como uma força política de envergadura, ainda que subsista como força intelectual” (IDEM, p. 132). Gustavo Simões (2017), ao apresentar os argumentos de John Cage, destaca que Joll reduzia a meras manifestações artísticas as ações emergentes entre os anarquistas nos EUA desde a década de 1960, como por exemplo, as criações do músico e escritor Paul Goodman e as ações do The Living Theatre. Joll, como Woodcock, identifica o ápice dos anarquistas na Revolução Espanhola (1936-1939), resumindo as outras práticas a expressões culturais. Como apresenta Simões, tais autores pretendem estabelecer a história do anarquismo, ao não valorizar outras práticas libertárias como as artes. Edgar Rodrigues também foi adepto da tese de um esvaziamento nos anarquismos, que demarcam um declínio a partir da década de 1920, com ápice na Revolução Espanhola. Para Rodrigues, os anarquismos entre 1940 e 1960 não passavam de uma “pálida imagem do que fora no passado, não possuindo sequer já o vigor, a combatividade e a obstinação dos primeiros grupos que se formaram na década de 1960 do século XIX” (2006, p. 23). O ressurgir ocorreria no mesmo período, em uma geração que pouco conhecia o “anarquismo histórico”, conforme descrito por Joll. Esse distanciamento, para Rodrigues, foi um dos embates, na década de 1960, entre os grupos jovens e aqueles provenientes da década de 1930, sendo os primeiros “marcados por uma fraqueza congênita: jovens e estudantes”, podendo se dissipar rapidamente. Essas questões enfraqueciam a ação anarquista nos movimentos sociais, esvaziando-a de sua “força política de envergadura”. Em Rodrigues, o impasse entre os anarquistas estaria em repensar sua prática para reconstituir um “movimento federalizado e internacionalista que se relacione de forma ativa e se afirme como alternativa social” (IDEM, p. 35). A assertiva de um ressurgir dos anarquismos sem uma força social ou reduzida a uma prática intelectual ou artísticaé corroborada por parte dos anarquistas e de historiadores. Estes desconsideram as práticas que não seguem os moldes do final do

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século XIX e início do XX, e lamentam a entrada dos anarquismos na universidade, muitas vezes por estarem atravessados pela oposição disciplinar entre trabalho manual e intelectual20. Passetti mostra como no Brasil a entrada dos anarquismos nas universidades teve um duplo efeito, tanto na construção de análises sobre as práticas libertárias nas sociedades disciplinares, quanto nas reflexões sobre as resistências anarquistas diante da emergência da sociedade de controle de comunicação contínua, na qual não se trata mais da divisão entre trabalho manual e intelectual, mas da preponderância do último (PASSETTI, 2013b)21. Nesse retomar dos anarquismos após a década de 1960, a curiosidade dos pesquisadores foi atiçada pelas possíveis práticas anarquistas também no Japão. Pouco se sabia sobre os libertários de lá no chamado ocidente, restritas a notícias pontuais na revista Mother Earth. Soma-se a isso a atenção de pesquisadores no ocidente à efervescência que tomou as universidades japonesas desde o final da guerra. Os estudantes lutavam pelo fim de diretrizes na educação, que remontavam ao fascismo. Também promoviam manifestações contra a ocupação e as bases estadunidenses. Joll em parceria com David E. Apter organizaram e lançaram em 1971, o Anarchism Today, um pequeno livro no qual apresentam a chamada renovação dos libertários pós 1968. Para tal, compilaram textos sobre anarquistas na Argentina e Uruguai, nos Estados Unidos, Espanha, Inglaterra, Índia e Japão. Apter, cientista político, afirma que o advento dos anarquismos no Japão e na Índia foi influenciado pela luta pacifista de Mahatma Gandhi, o que os torna diferentes, em relação ao chamado ocidente, o qual inclui, por exemplo, com práticas anarcoterroristas. Apter argumenta que uma descontinuidade dos anarquismos teria possibilitado seu ressurgimento e renovação enquanto doutrina. Ou seja, uma renovação tanto na

20 Pierre-Joseph Proudhon destacava a separação entre trabalho intelectual e manual. O primeiro voltado à gerência, aos administradores das fábricas, por exemplo, e o segundo para os operários. Assim, sugere uma educação integral enquanto uma resistência a esse governo sobre a vida na sociedade disciplinar. Suas propostas agitarão os anarquistas com repercussões de suas discussões em Bakunin, na prática de educação libertária no Orfanato de Cempuis coordenado por Paul Robin, na experiência de La Ruche de Sébástien Faure e nas Escolas Modernas que se espalharam pelo planeta, motivadas também pelas sugestões do republicano Ferrer y Guardía (Ver: PASSETTI & AUGUSTO, 2008). 21 A partir da década de 1980, as pesquisas sobre anarquismos expandiram-se para além das relações da classe operária e a fundação do partido comunista. Foi com a reabertura dos centros de cultura, que os anarquismos passam a ser associados pelas universidades (PASSETTI, 2013b).

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abertura dos libertários às práticas terroristas quanto a filiações aos pacifismos. Para o autor, naquele momento, os anarquistas dependeriam dos jovens da contracultura, vistos como mais inocentes e menos sofisticados, sendo diferentes dos “anarquistas do passado” que carregariam apenas arrependimentos (APTER in APTER; JOLL, 1971, p. 12). Para Apter, esse leque aberto de possibilidades seria a atualidade da doutrina anarquista, apesar da perda de sua força política, corroborando a tese de Joll. Ao tratarem anarquistas como doutrinadores que carecem de uma renovação de sua ação política e ao desconsiderarem outras práticas anarquistas, como as ligadas à arte, Apter e Joll selecionaram o artigo de Tsuzuki Chushishi para a coletânea. Foi um dos primeiros textos de um pesquisador de anarquismos no Japão a ser traduzido para a língua inglesa. Esse artigo mostra a dissolução da Federação Anarquista Japonesa (FAJ) diante das revoltas nas universidades nas décadas de 1960 e 1970. Tsuzuki entende que a dissolução da Federação foi um atestado da incapacidade dos anarquistas em conseguir formular propostas para uma nova geração, visto que seus integrantes já tinham idade avançada. Tsuzuki faz um balanço das práticas anarquistas no Japão pelo crivo da federação, retomando a década de 1920. Nesse ano, um projeto foi elaborado por Iwasa Sakutarô, que pretendia construir a Federação Negra de Jovens. Entretanto, a forte repressão seguida de prisões, execuções e sequestros nas décadas seguintes quase liquidou com os anarquistas. Os sobreviventes do fascismo e da guerra não recuaram e rapidamente articularam-se em torno da FAJ na tentativa de restabelecer contatos entre si e com libertários em outros cantos do planeta. Tsuzuki apresenta a necessidade de uma organização anarquista e preocupa-se em categorizar as manifestações de jovens anarquistas na década de 1960. Na rearticulação dos anarquistas em torno da Federação, foram fundadas outras associações e periódicos. Entretanto, somente a FAJ estabeleceu contato com libertários em outros cantos do planeta, estampando suas notícias no Le Libertaire, publicado em Paris, e em A Plebe, de São Paulo, por exemplo. As novas associações anarquistas, a efervescência dos jovens nas universidades e a entrada dos libertários nas universidades impulsionaram outros pesquisadores do chamado ocidente que se voltaram para o Japão. Diferente de Apter e Joll, o espanhol Victor García (1919-1990), o francês Philippe Pelletier e o estadunidense Philip Billingsley, por exemplo, tomaram parte nas diferentes associações anarquistas entre as décadas de 1960 e 1990 e produziram pesquisas inéditas consideradas referências até mesmo entre pesquisadores japoneses.

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Victor García, também conhecido pelo pseudônimo de Germinal García, foi combatente na Revolução Espanhola (1936-1939) e escreveu Museihushugi: el anarquismo japonês. Em janeiro de 1939, entrou na França junto com mais de meio milhão de espanhóis, foi ferido e levado para o campo de concentração de Argelés. Em 1944, foi para o campo de concentração de Dachau, conseguindo fugir durante a viagem. Quando voltou clandestinamente à Espanha, foi preso novamente; quando liberto, viajou pela América Latina, passando por Venezuela, Equador, Peru, Bolívia, Argentina, Uruguai e Brasil. Aqui, visitou Manuel Perez e José Oiticica. Somente em 1957, García partiu para o Japão e atravessou a China, Índia, Turquia, Egito, Iraque, Israel, Chipre, Grécia, Itália, Alemanha, Holanda e França; depois, retornou à Venezuela, onde passou a residir. Victor García, além de escrever textos sobre os anarquismos no Japão, também foi o tradutor da Enciclopédia Anarquista francesa de Sébastien Faure para o espanhol (RODRIGUES, 1999a; HERNÁNDEZ, 1993). García percorreu o planeta sem colocar-se na posição de um turista. Em Coordenadas andariegas, livro sobre sua saída do México até a chegada ao Japão, relembrou de suas aventuras: “recordo-me de diferentes encontros com turistas, a maioria das vezes, estadunidenses, que amargaram a minha jornada. Um tal Morrison e a senhora, por exemplo, no barco que me levava de Yokohama a Hong Kong, afirmaram enfaticamente que o mais impressionante de Kyoto foi o barman japonês do Kyoto Palace por sua técnica na preparação dos coquetéis. Kyoto, a cidade que foi capital do Japão por mil anos, abarrotada de templos e palácios, não provocou nos Morrison outra associação de ideias que a de um camareiro de hotel” (1963, p. 5). Nesses percursos, recebeu o apelido de Marco Polo dos anarquistas, como o nomeou José Peirats (HENÁNDEZ, 1993), por realizar longas viagens. García dedicou- se a um resgate histórico dos libertários, apontando procedências desde a Era Tokugawa até o pós-Guerra. Sua produção concentra-se principalmente no que se caracterizou como Era Heróica (1903-1937), quando emergiram as primeiras associações anarquistas. Marcou presença na FAJ, onde estreitou laços com Yamaga Taiji, com quem realizou inúmeras viagens pelo Japão no ano de 1957, quando de sua primeira visita ao país. Yamaga foi um famoso desenhista e esperantista japonês, responsável por publicar no Japão um mangá sobre os anarquismos no começo do século XX. Foi figura presente no periódico Senŝtatano (do esperanto, Grupo sem Estado), coordenado por García e Eduardo Vivancos. Para compor a obra Museifushugi, García entrevistou muitos libertários e utilizou uma matriz europeia para encaixar os anarquistas no Japão.

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O extenso e inaugural trabalho de García é uma das principais fontes sobre os anarquismos no Japão, tanto no oriente quanto no ocidente. Entretanto, o autor busca filiações dos anarquistas no Japão com os europeus. Um exemplo é a referência a Ando Shoeki, um escritor camponês conhecido por suas lutas contra os castigos corporais e a favor da construção de associações livres, como o Godwin japonês. Da mesma maneira que em muitos escritos de William Godwin são identificados como um dos anunciadores dos anarquismos e até mesmo referido como “pai”, Ando seria um precursor dos libertários ao apresentar a luta no campo. García identifica os anarquismos a partir das traduções e conexões com a Europa, perdendo de vista, ou mencionando sumariamente, as ligações dos anarquistas japoneses com libertários na China e na Rússia. Essas conexões não são anunciadas e, muitas vezes, não se menciona os títulos dos periódicos, das associações ou dos libertários nesses países. Philippe Pelletier também se interessou pelo Japão e tomou parte no Grupo de Estudo sobre Anarquismo de Hiroshima (Hiroshima museifu shugi kenkyûkai) nas décadas de 1970 e 1980, associação catalisadora de inúmeras discussões e de manifestações antimilitaristas e de combate ao uso da energia nuclear. Pelletier dedicou- se aos anarquistas no começo do século XX, com foco no anarco-sindicalismo. Diferente de García, entendia que os anarquismos no Japão tinham características próprias, ou melhor, um desvio: as tendências terroristas. Essas seriam não uma cópia da Europa central – para ele o berço da anarquia –, mas teriam sido influenciadas pelo niilismo russo. As ações anarcoterroristas identificadas por Pelletier podem ter levado à Era do Inverno (Fuyu no Jidai), período de arrefecimento das práticas anarquistas devido às inúmeras execuções e perseguições que tomaram a década de 1920. A partir da crítica ao anarcoterrorismo como um desvio, a noção de inverno apresentada por Pelletier aproxima-se do ressurgir da anarquia. Esse ressurgimento foi elaborado por alguns autores ao avaliarem esse período a partir da execução do anarquista Ôsugi Sakae em 1923. Entretanto, esse acontecimento foi catalisador dos anarcoterrorismos como as práticas levadas a cabo por Fumiko Kaneko e Yeol Pak – apresentadas adiante –, mas desconsideradas por Pelletier. John Crump (1944-2005) também se voltou para o Japão durante a década 1980 para estudar a obra de Hatta Shûzô e de outros anarquistas. Hatta foi um anarcocomunista depois de ter sido pastor cristão. A partir da vida deste libertário, Crump esboçou a sua

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versão da história dos anarquistas no Japão. Apontou Hatta, junto com Ishikawa, como os protagonistas dos anarquismos no país. Essas leituras produzidas dos anarquismos no Japão foram fonte vital na realização dessa pesquisa para uma primeira aproximação, entretanto, não se trata de estagnar as práticas e delimitá-las em Eras, sua morte ou seu ressurgir. Acompanhando as sugestões de Christian Ferrer (2004), entende-se que a Revolução Espanhola, por exemplo, não foi a morte do anarquismo como tinha profetizado Woodcock, mas um acontecimento de invenções éticas. Mesmo diante do massacre, como tantos outros que já haviam acontecido e outros que viriam a ocorrer, não cabe pensar em números demográficos. Os anarquistas nunca foram numerosos, sempre estiveram à beira da extinção, mas, como sinaliza Ferrer, “a história dos anarquistas é a história de uma experiência migratória bem-sucedida” (2004, p. 160), onde menos se espera há um anarquista e não importa seu país natal. Não há um centro irradiador que discipline ou doutrine militantes, indicando os passos a serem seguidos. Interessa aqui, enfim, os anarquistas em suas diferenças, sem a pretensão de categorizá-los em uma linha do tempo ou delimitar seu espaço geográfico, mas apresentar uma dessas migrações bem-sucedidas. Anarquistas no Japão irromperam contra a subserviência do súdito. Aqui, buscam- se os percursos que eles traçaram em suas invenções heterotópicas. Como destacaram Edson Passetti e Acácio Augusto (2008) “os anarquistas fazem da sua vida uma experimentação de liberdades. Procuram dar-lhes forma no presente, e não se contentam com idealizações; ao contrário, combatem-nas. Inventam costumes, maneiras de se relacionar com as crianças, os amigos, os amores, os prazeres, os trabalhos, as dificuldades, os conhecimentos, os temperamentos, as inovações e as conversações. Eles são muitos, eles também são poucos; eles variam, numericamente, segundo o desenrolar dos combates na história contemporânea” (p. 12).

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Experiências anarquistas no Japão no começo do século XX são apresentadas aqui enquanto uma expansão de vida por questionarem a obediência e combaterem a pretensa harmonia japonesa. A harmonia pode ser compreendida como uma sensação de tranquilidade, concordância ou como uma combinação de inúmeros acordes para serem agradáveis ao

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ouvido. No Japão, é professada como uma das virtudes do japonês. Em livros de ensino do idioma, um dos primeiros ideogramas ensinados é o de harmonia (和, lido como wa); nos livros de autores japoneses sobre o Japão, a harmonia também sempre se faz presente. No dia-a-dia, wa ainda é usada como um sinônimo de Japão, por exemplo, wa- shoku (和食) é cozinha japonesa, wa-fuku (和服), são vestes japonesas. Encrustada nos costumes japoneses, wa “é o coração do que nutre todo o sistema de valores japoneses” (YOJI, 2011, p. 16). Uma das proveniências da harmonia seria o Kokutai (国体), conceito que remonta à Era Tokugawa e que prevê a ausência de confronto e veneração ao Imperador. O Kokutai, convencionalmente traduzido como “corpo nacional”, é um documento que foi amplamente descrito em estudos voltados à formação da política nacionalista japonesa (GREINER, 2015; ANTONI, KUBOTA, NAWROCKI, WACHUTKA, 2002) como a articulação entre o Shintô, mitologia xintoísta22, e o bushidô (武士道)23, importantes na doutrinação dos samurai para a defesa do seu senhor. Uma das procedências do termo Kokutai é a Escola Mito, fundada por Tokugawa Mitsukuni com o objetivo estabelecer a história oficial do Japão. Por mais de 200 anos, foram formadas gerações de samurai intelectuais, como Fujita Yûkoku (1774-1826), Fujita Tôko (1806-1855), Aizawa Seishisa (1781-1863), Tokugawa Nariaki (1800-1861), entre outros. Eles buscavam a atualização do discurso xintoísta dos primórdios da Era Tokugawa ou período Edo (ANTONI, 2016). O xogunato Tokugawa, da família homônima, ou bakufu, foi estabelecido em 1603 com a reunificação do Japão. Tokugawa Ieyasu foi reconhecido como shôgun pelo Imperador; que exercia principalmente atividades religiosas e a quem se devia o sonnô (reverência), apesar dele não ter participação institucional na política. O Japão da época era composto por aproximadamente 270 daimyô, figuras similares aos senhores feudais, e seus han (terras) de diferentes tamanhos. Os daimyô obedeciam ao shôgun e à política do bakufu pautada principalmente na divisão das castas. Logo abaixo dos daimyô estavam os aristocratas, depois os sacerdotes seguidos pelos samurai (guerreiros). Camponeses, artesãos e comerciantes compunham uma camada

22 Série de ritos referentes à saudação da Corte Imperial Japonesa, cultuando o Imperador como uma divindade. 23 Literalmente “o caminho do guerreiro” que determinava como deveria ser a vida de um samurai, delimitando a lealdade ao seu senhor e a conduta que seguiria.

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intermediária entre esses e a seguinte. Abaixo dessas castas estavam os eta e hinin, conhecidos também como burakumin, que realizavam atividades consideradas impuras pelo xintoísmo, como assassinar pessoas, assassinar animais, fabricar couro, limpar as vias, ser coveiro. Eles eram proibidos de entrar nos templos, viviam em guetos específicos e até hoje muitos trabalhadores de enterros ou das fábricas de carne são descendentes de pessoas dessas castas24 (HANE, 1982). Esse período, comumente caracterizado como pacífico e representado pelo sábio camponês de várias habilidades manuais, foi também seguido de inúmeros massacres, principalmente durante a segunda metade da Era Tokugawa. As revoltas ocorreram contra a cobrança dos tributos que os camponeses eram obrigados a pagar, apesar do pauperismo em que viviam. Greiner (2015) destaca que, se de um lado houve a formação de concepções radicalmente nacionalistas, de outro observam-se levantes revolucionários Ikki, que se estenderam do Japão medieval aos tempos modernos. Essas manifestações, principalmente durante o final do período dos xogunatos, propagavam-se como um sintoma do declínio gradativo da autoridade central e do fortalecimento da competição entre os daimyô. Segundo Michael Lewis (1990), que traçou a genealogia de Ikki no começo do século XX no Japão, essas caracterizavam-se pela ocorrência no campo e geralmente por provocar a destruição de propriedades. Os manifestantes camponeses eram punidos com castigos corporais e espancamentos. As manifestações também eram articuladas durante encontros de poesia renga. Hane (1982) destaca que outra forma que os Ikki tomavam era de yanaoshi Ikki (rebeliões para refazer a sociedade), expressando o aumento das forças contrárias ao regime Tokugawa. Ikki25 propagavam-se por todo o Japão ao final do regime, quando devido ao pauperismo, milhares de pessoas morriam de fome e a prática do infanticídio era comum (HANE, 1982). Durante o Período Tokugawa foram mantidas poucas relações com estrangeiros e os que já se encontravam no território japonês foram expulsos. Fecharam-se oficialmente os portos, os mestiços foram exilados e promoveu-se o retorno dos japoneses dispersos

24 Provavelmente são descendentes de imigrantes filipinos e coreanos. Entre as atividades que desenvolveram está o teatro nô, o kabuki e o kyogen. Desde a década de 1980 fundaram associações voltadas ao combate ao preconceito que se propagou até hoje. 25 As práticas Ikki serão retomadas no começo do século XX no decurso da I Guerra Mundial, com o estopim em 1918, dessa vez expandindo-se para as cidades na generalizada Revolta do Arroz.

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pela Ásia: a presença de alguns holandeses era mantida somente em Nagasaki (CARVALHO, 1998). Entre 1740 e 1800, a Escola Mito destacou-se por suas posições contrárias às pressões do ocidente para a retomada da abertura dos portos. Nesse contexto, o conceito de Kokutai ganhou força na busca por determinar a essência japonesa (ANTONI, 2016). O termo Kokutai ficou conhecido no Shinron (Novas teses) (1825) de Aizawa Seishisai (1781-1863), que havia elaborado o michi (caminho) com Fujita Tokô (1805- 1855), para se referirem a um princípio de virtude estabelecido pelos deuses. Esses deuses exigiam que o ser humano agisse de acordo com este princípio, ou seja, de maneira apropriada à sua casta. O Kokutai exigia o retorno do Japão ao domínio do Imperador, a remoção do bakufu e o combate à entrada de estrangeiros. O Shinron inicialmente não era para ser lido por qualquer um, mas foi endereçado ao daimyô Tokugawa Narinobu (1797- 1829), que governou Mito (1816-1829), na província de Hitachi (ANTONI, 2016). Assim, apesar de fundada pelo bakufu Tokugawa, a escola de Mito professava o retorno do Imperador. Proibido de ser publicado pelo daimyô, o Shinron só viria a público no governo de Nariaki, que distribuiu algumas cópias. Em 1850, no entanto, foi amplamente divulgado sem autorização, coincidentemente quando as pressões estrangeiras pela abertura dos portos se acirravam. O texto é composto por dois volumes e sete capítulos. O Kokutai é expresso entre os capítulos I e III do volume I, sendo os capítulos subsequentes keisei (O estado do mundo) e ryojô (Sobre os bárbaros). O Volume II contempla os capítulos shugyô (Proteção e defesa) e chôkei (Um plano para o futuro) (IDEM). O Kokutai determinou o posto de governante do mundo ao Imperador devido à sua descendência da deusa do Sol, Amaterasu Ômikani, criadora da Terra26. Os japoneses seriam seus descendentes e o Japão estaria localizado no centro do planeta. No passado, a sociedade ideal teria sido alcançada por meio do Imperador. Entretanto, fora arruinada por mentiras e falsas doutrinas, como o cristianismo e o budismo, que destruíram a piedade e a lealdade (IBIDEM). Somado ao restabelecimento do mito de fundação do Japão e de obediência ao Imperador, o Kokutai também prescreveu a reorganização das forças militares sob domínio do Imperador. Dessa forma, este poderia expandir o domínio japonês e o proteger

26 O mito da deusa Amaterasu foi estabelecido por Aizawa Seishidai.

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das forças do exterior. Os países perigosos seriam os cristãos, por quererem sobrepor suas regras. Foi o cristianismo que tornou o ocidente um perigo ao Japão, uma vez que os cristãos que entravam no país conseguiam converter os camponeses. Eram vistos como espiões disfarçados que tentavam enfraquecer internamente o país. Para o futuro glorioso, seria preciso ganhar novamente a confiança do povo, estabelecer a lealdade como virtude “unir o céu e a Terra no culto ao Imperador e civilizando os bárbaros de uma vez por todas” (IBIDEM, p. 165). Só assim seria possível ao Japão salvar todas as nações da Terra. Fundava-se, portanto, um novo mito no país: os descendentes da deusa do sol seriam os governantes da Terra do Sol Nascente e merecedores de reverência e lealdade, pois promoviam a valorização da estrutura nacional e da instituição imperial. Antoni (2002) mostra como o Shintô, a religião nacional, atrelada ao Kokutai, caracteriza o discurso da imutabilidade da cultura japonesa, base do nacionalismo moderno japonês, que estaria apartado de toda a influência ocidental a partir desses propósitos. O autor alerta não haver como compreender o próprio nacionalismo japonês sem atentar para a religião. Com o Kokutai, o enfraquecimento dos daimyôs e as tentativas dos ocidentais de abrir os portos, o Imperador tornou a ocupar a posição de único governante do país.

Antes mesmo do despontar da Era Meiji, o médico Ando Shoeki (1703-1762) criticava a obediência japonesa e a imposição do governo que limita todos. Shoeki desenvolveu em Shizen shieido (1755) o conceito de shizen ou hitori suru, o autoagir. Esse conceito refere-se à ação de cada um em se autogovernar sem uma intervenção exterior. Autogovernar-se estaria na natureza: basta olhar o tenchi (céu e Terra) e o sansen sômoku (montanhas, rios, plantas e árvores)27. Assim, os governantes, ao tentarem dirigir a vida do camponês, roubam esta relação de autogoverno e natureza. Não passam de

27 Possivelmente uma influência da escola Soto Zen de budismo, fundada por Dogen Kigen (1200-1253). Ao dar destaque ao corpo, professava um Buda dentro de cada um, fossem pessoas, outros animais ou seres vivos inanimados como a terra, a montanha, o rio e o vulcão. Esta proposição foi combatida por outras escolas budistas, como a Terra Pura, que entendia a prática budista mais restrita e devota ao Amitaba, Buda da Luz Infinita. Eram comuns os assassinatos e incêndios a templos Zen. Até este momento, o budismo no Japão não era uma prática para todos, mas para uma minoria, pois o que interessava era a busca pelo próximo Buda e não por conversões. Mas, ao defender a existência de um Buda em cada um, o Zen amplia o raio de alcance do Budismo no Japão.

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ladrões, bem como qualquer outro monge budista que tenta se desviar do contato direto com o solo (ANDO, 1992). O conceito que Ando elaborou associado ao auto-agir passou a ser traduzido como natureza humana. Entretanto, é uma noção muito mais abrangente que envolve o autogerir como um movimento natural, da mesma maneira que os outros elementos se autogovernam. Ando afirmou que da terra emana a vida, por conseguinte, criticou as castas japonesas e lutou pela abolição dos castigos corporais. Nesse sentido, compreende-se que a lei se contrapõe ao caminho da natureza. Ela possui como efeito a distinção entre governante e governados, sendo a origem de todas as diferenças sociais, violências, misérias. A produção de Ando foi esquecida no decorrer da Era Tokugawa para ser redescoberta na Era Meiji. Muitos dos escritos foram destruídos durante o grande terremoto de 1923. Poucos anos depois, já na década de 1930, o jornal operário Nihon Heimin retomou as ideias do médico em um artigo redigido pelo anarquista Watanabe Daito. A obra de Ando só seria revisitada no pós-Guerra, em 1949, pelo diplomata e historiador de anarquismos Herbert E. Norman, que publicou o livro Ando Shoeki e a anatomia do feudalismo japonês (Ando Shoeki and the Anatomy of Japanese Feudalism). *** Antoni (2002; 2016) descreve o Kokutai em três fases: formação (1825-1890); clássica (1890-1937) e humilhante (1937-1945), cujas demarcações estão vinculadas, respectivamente aos seguintes eventos: início da Era Meiji; as guerras sino-japonesa, russo-japonesa, invasão da Coreia e industrialização, e II Guerra Mundial. A abertura do Japão para o ocidente marca o restabelecimento do Imperador no governo. Ocorre a modernização do país por meio do massacre em reação a qualquer resistência à ascensão de Mejii, implementada com financiamento da Inglaterra. Mesmo o Kokutai defendendo um Japão hermeticamente fechado, o jovem Imperador pautou-se no documento para promover uma abertura, recebendo uma proteção estratégica do ocidente. Os camponeses, que constituíam cerca de 80% da população, foram os mais afetados com a transição do regime. As classes foram abolidas e novas taxas sobre o uso da terra foram adotadas. Efetuaram-se o reconhecimento da propriedade privada, medidas favoráveis à industrialização do país, criação do exército e de uma marinha aos moldes ocidentais, além da adoção de um sistema universal de educação.

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Apesar da proibição do porte das espadas e o fim dos samurai, muitos desses conseguiram entrar para o genrô (principais líderes da Era Meiji) ou tornaram-se policiais. Aqueles que defendiam seus senhores ou defendiam o regime anterior, quando sobreviviam, tornavam-se errantes, abandonaram a espada ou vendiam seus serviços em troca de alguns sens (0,001 de iene) ou comida, como retratado no prestigiado filme Os sete samurais, de Akira Kurosawa. No decorrer da Era Meiji, popularizou-se os preceitos sonnô jôi (reverenciar o Imperador, expulsar os bárbaros) retomados do bakufu e fukoku kyohei (país rico, exército forte). Afirmava-se a presença do Kokutai com elementos da Era Tokugawa e simultaneamente abria-se a porta para o Ocidente, fortalecendo o discurso nacionalista que se estenderá pela Era Meiji e Showa. O fim do Kokutai, conforme descrito por Antoni, refere-se à sacralização do Imperador, em 1945 ocorrida com a rendição do Japão. Também foi marcado pela promulgação de uma constituição com a invasão estadunidense. Até aquele momento, o soberano pouco era visto ou tocado por alguém, e fotos da família imperial eram raramente divulgadas. Todavia, o que se tornou lei, ou o que a lei substitui está diretamente relacionado aos costumes. Assim sendo, a continuidade do Kokutai nos costumes e nas condutas, ultrapassa os limites impostos pela experiência sob as bombas de Hiroshima e Nagasaki, seguida pela fase de reconstrução no pós-II Guerra. O documento, retomado desde 2017 pelo Primeiro Ministro Abe Shinzo, não deixou de produzir efeitos. O Kokutai também norteia a Nippon Kaigi28, organização de ultra-direita e uma das bases de apoio de Abe. Foi fundada em 1997, com o objetivo de retomar a glória passada do Japão, o caráter divino do Imperador, revisar os livros de história, ensinar o patriotismo nas escolas, declarar o xintoísmo como a religião oficial, rever a constituição e modificar o papel das Forças de Autodefesa do Japão para que possam também atacar. Atendendo às demandas desse grupo e de seus apoiadores, Abe autorizou que o Rescrito Imperial sobre a Educação de 1890, pautado no Kokutai, fosse utilizado novamente nas escolas para ensinar os fundamentos do patriotismo. Assim, a promulgação da nova constituição pelas forças de ocupação dos EUA não barrou o Kokutai, apesar de oficialmente proscrevê-lo. Entendido como um documento vivo do passado, o Kokutai permanece presente, externando uma

28 Disponível em: http://www.nipponkaigi.org/. Acesso em 12/03/2019.

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das possíveis origens dos traços harmônicos e da sociedade japonesa também no pós- Guerra. Os contraposicionamentos dos anarquistas se lançaram no combate às hierarquias existentes e às que se renovavam em um Japão que se modernizava. O Japão passou a adotar tecnologias disciplinares desde a abertura dos portos protagonizada pelos Tokugawa. “Emerge inevitavelmente a reinvindicação de seu próprio corpo contra o poder, a saúde contra a economia, o prazer contra as normas morais da sexualidade, do casamento, do pudor. E, assim, o que tornava forte o poder passa a ser aquele por que ele é atacado... O poder penetrou no corpo, encontra-se exposto no próprio corpo... Lembrem- se do pânico das instituições do corpo social (médicos, políticos) com a ideia de união livre ou do aborto... Na realidade, a impressão de que o poder vacila é falsa, porque ele pode recuar, se deslocar, investir em outros lugares... e a batalha continua” (FOUCAULT, 1996, p. 146). Não foi em busca de remontar o xogunato ou o retorno a uma vida idealizada que os anarquistas no Japão colocaram suas vidas em risco. Na luta contra as relações disciplinares e o direito do soberano personificado no Imperador, não quiseram optar por nenhum desses. Suas práticas se aproximam da sugestão de Michel Foucault acerca de um novo direito indisciplinar e, ao mesmo tempo, liberado do princípio de soberania. Libertários expandiram suas vidas até o limite do insuportável e muitos acabaram assassinados pelo governo japonês ou tiveram de fugir para manterem-se vivos. Outros preferiram acabar com a própria vida antes que o governo acabasse com ela. *** Entre os anarquistas não há quietude, seja nas leituras feitas sobre suas práticas, ou em uma associação libertária. Mesmo entre poucos, há desacordos. Não foi diferente no caso japonês. Por não tentarem pacificar as lutas, desvencilharam-se da suposta harmonia japonesa; suas diferenças constituem também movimento e podem emergir de onde menos se espera. Diferente da noção de harmonia, nos termos do Kokutai, a anarquista Toda Misato – falecida em janeiro de 2018 e estudiosa da obra de Malatesta – em “Anarquia e Anarquismo” (2018), texto divulgado no ano de sua morte no site do CIRA-Japana29, afirma uma outra harmonia, que seria a dos anarquistas. Existiria uma harmonia no universo, e uma ordem no movimento. A vida dos homens e outros seres vivos se moveria

29 Disponível em: http://cira-japana.net/pr/?p=645. Acesso em 08/03/2019.

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de maneira harmônica e nisso estaria a anarquia. Entretanto, a forma não harmônica e criada pelos humanos é hierárquica expressa na imagem de um triângulo: “no topo estão as pessoas que mandam como reis, generais, pais e presidentes de companhias. Quando uma pessoa dessas dá uma ordem, as de baixo precisam dizer ‘sim’, ‘sim’” (TODA, 2018). Para Toda, a não harmonia está nas relações triangulares. Romper com elas, é provocar a harmonia intrínseca à natureza. Toda entendia que para a construção dessa harmonia na anarquia as ponderações de Malatesta eram fundamentais: “Malatesta é, em poucas palavras, uma pessoa que coloca o amor acima de tudo”, sendo esse amor a negação de uma autoridade centralizada, a negação da obediência para a construção de uma associação anarquista. Assim, em sua leitura, o coletivismo em Malatesta é a expressão da harmonia anarquista, que não deve ser entendida com a supressão do indivíduo como aconteceria no comunismo, e sublinha: “o anarquismo não é construído pela teoria dos estudiosos, é construído quando todos se sentem felizes e em liberdade; seria muito bom criar um grupo de pessoas assim, o que só pode ser feito a partir da prática individual” (TODA, 2018). Em carta escrita em 1990 a seus amigos Carla e Giulio, publicada na revista verve, Toda expõe a importância do pensamento de Malatesta para os jovens japoneses. Ali, aponta esse amor em Malatesta: “o programa anarquista, baseando-se na solidariedade e no amor, vai além da própria justiça... o amor facilita tudo o que é possível e sempre dará mais... faça como você deseja que seja feito pelos outros (sobretudo faça o melhor possível)” (apud IDEM, 2003, p. 170). O efeito dessa proposta nos jovens poderia levar a uma ruptura da obediência. Os jovens no Japão, apesar de não serem mais educados como no período pré-guerra, estão diante de um outro militarismo, tornam-se “soldados capitalistas que se dedicam à atividade industrial” (IBIDEM, p. 175)30. Na busca por essa harmonia anarquista, Toda também encontra a obra de Piotr Kropotkin, a quem admirava principalmente pelos escritos referentes à ajuda mútua. Como relata a anarquista, quando Kropotkin vai à Sibéria fazer suas investigações geográficas, nota que os bichos se ajudam mutuamente: não é uma questão do mais forte ou do mais fraco, como determinou a teoria darwinista social. A harmonia estaria aí também, na natureza, “um leão come ovelhas, mas nunca mais do que o necessário. Todos

30 Toda recorda uma passagem dessa educação pós-guerra: “há pouco tempo uma garota foi morta no portão do colégio depois de ter sido presa no pesado portão de ferro. A pessoa que cuidadosamente empurrara a porta era seu professor. Ele queria deixar de fora os alunos que estivessem atrasados para a aula. O novo sistema educacional, moldado segundo os princípios americanos de pós-guerra, hoje parece haver sido revertido para um tipo de ‘militarismo educacional’, especialmente no colégio” (TODA, 2003, p. 175).

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os seres vivos estão vivendo por engolirem a vida ao seu redor. Mesmo entre os herbívoros, a grama está viva, porém, essa vida lhe é tirada; mesmo entre os peixes, os maiores comem os menores, eles comem as algas; todo mundo sobrevive por tomar a vida daqueles a seu redor”. Entretanto, isso não é a guerra condecorada com medalhas, ao contrário, é uma harmonia em que se desenvolve um único ecossistema, tão estranho ao ser humano para quem é distante o pensamento de que existe harmonia até mesmo em morrer. Assim como os libertários na Europa, Toda também estava sob a égide da emancipação humana, em que o anarquismo acabava por ser uma expressão. Entendia que “existem duas correntes de anarquismo. Quando o Iluminismo nasce na Europa, vem da Itália o pensamento de ‘felicidade de todos’, assim, criar uma comunidade e fomentar um senso de liberdade é uma corrente; outra, porém, é a corrente que acredita que o sistema existente é ruim e você não pode ser feliz enquanto não o derrubar” (IBIDEM, 2018). Entre os anarquistas também existe a harmonia, entretanto, não desconhecem as diferenças, mas atentam para viver e aprender com elas. A harmonia para os anarquistas só é possível ao combater o Estado e não deve ser confundida com a promulgada pelo Kokutai que estabelecia a harmonia na obediência e que se tornou alvo das lutas libertárias por uma vida livre. A diferença existe e não é possível ser pacificada. Ôsugi Sakae atestou isso de uma maneira corriqueira, ao ir ao banheiro. Certa vez, ao escapar do Japão e chegar à França, Ôsugi assustou-se com toilettes. Nunca tinha visto um assento sanitário. Estava acostumado com os banheiros japoneses, onde não é necessário sentar, mas sim agachar frontalmente sem contato com nenhuma cerâmica ou algo do tipo. Outra surpresa estava por vir ao tomar banho: não havia um ofurô, mas um chuveiro. Desconsertado por essa pequena experiência, ele constatou como as fronteiras limitam e acostumam aqueles que se prendem a elas. Segundo ele, ao se manterem estas fronteiras, combatem-se as diferenças para propagar o que se entende como o verdadeiro e o correto. A vida de Ôsugi foi um percurso recheado de surpresas, fugas, amores, bom humor e prisões. Foi insuportável a qualquer defensor de universais, fossem do Império, estrangeiros, socialistas e até mesmo anarquistas. Ôsugi combateu qualquer fronteira que limitasse seus movimentos, que o identificasse ou pretendesse fazer dele um prisioneiro de um território ou de um ideal.

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Entre fugas, traduções, escrita de livros, diários e pequenos textos para a imprensa anarquista, Ôsugi elaborou a noção de expansão da vida a fim de afirmá-la enquanto movimento sem a pretensa harmonia e surpreendente em seus combates. A expansão não pode ser apreciada no conviver em paz, mas em provocar confrontos e embates, que possam ampliar experimentações de liberdades. Essa noção passou a ser elaborada por Ôsugi em “Seifuku no jijitsu” (“A verdade da conquista”), artigo publicado no periódico Kindai Shisô (Pensamento moderno) em junho de 1913. Ao fazer uma análise sobre a formação dos Estados europeus, conclui que esse processo nada mais é que o exercício da dominação. Ao retomar a assertiva de Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista (“a história da humanidade é a história da luta de classes”), remonta que antes de classes havia diferentes povos e que foi a guerra de um para subjugar o outro que iniciou a conquista, assim como, é na conquista que também começa a História com o nascer da chamada civilização e o desenvolvimento do espírito militar. Para a conquista, é primordial a subjugação de um povo a outro, determinando quem são os conquistadores e os conquistados. Essas duas categorias não são tão distantes, mas estão conectadas e uma não pode viver sem a outra. Entretanto, apresentam-se como polos opostos que não seriam capazes de harmonia. “Em todas as sociedades, em ambos os lados, a classe de dominadores e dominados possuem um relacionamento íntimo” (ÔSUGI, 1913a, p 104). Para que os dominados não se revoltem é necessário um sistema de leis que garanta a punição daquele que se voltam contra o governo. A educação nacional também seria outro meio para evitar qualquer sublevação, instruindo ao dominado que por este ser inferior, deve obediência a quem o conquistou. Os conquistados, para tentarem atingir o patamar do superior, ajudarão os conquistadores colaborando no adestramento. É assim que nessa educação nacional os mais instruídos se juntam aos dominadores para ambos manterem o processo de dominação. Diante das diferenças e do impossível nivelamento entre dominados e dominadores, emergiu o voto, e isso fez todos se acreditarem capazes de representatividade e igualdade perante a lei. Para Ôsugi, o sufrágio é constitutivo do desenvolvimento da conquista. Cada um pode ser representado por um daqueles que ganhou destaque ao seguir a educação e as leis dos conquistadores. Com o passar dos anos, as instituições se desenvolvem com a finalidade de garantir a conquista: “Os

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métodos de violência e engodo foram se tornando cada vez mais engenhosos. Política! Direito! Religião! Educação! Moral! Forças Armadas! Polícia! Justiça! Congresso! Ciência! Filosofia! E outras instituições sociais” (IDEM, p. 107). Ser conquistado e reconhecer-se é abrir mão da expansão da vida, um instinto que se deixou amansar: a conquista é produtora de misérias e expressa a sede por dominar alguém. Querer ser conquistado e renunciar a si mesmo para misturar-se a tantos outros obedientes: a isso também se nomeia harmonia31. A reflexão de Ôsugi em A verdade da Conquista aproxima-se da ajuda mútua de Piotr Kropotkin. Ôsugi lera suas obras por indicação de Kôtoku Shusui e, em 1917, lançou a tradução de Ajuda Mútua (STANLEY, 1982). A conquista é entendida em paralelo à noção de competição proposta na teoria evolutiva de Darwin e destruída por Kropotkin. Para o anarquista, o desenvolvimento humano ocorreu por meio da cooperação, quando vemos uma colmeia, por exemplo, constatamos que as abelhas se ajudam, não competem entre si. Isso possibilita que elas continuem a existir. A luta entre elas faz parte da existência para se manterem vivas (KROPOTKIN, 2009). Em sua viagem à Sibéria oriental e ao norte da Manchúria, para verificar a competição como fator evolutivo, Kropotkin deparou-se com colônias de insetos proliferando mesmo diante das condições terríveis para sobrevivência. A natureza, imprevisível, não é o controle natural do excesso de população como professou Darwin, mas provoca uma escassez a qual uma espécie em cooperação busca saídas para manter- se. Em uma de suas observações, Kropotkin apontou: “numa migração de gansos que testemunhei no Amur, durante a qual dezenas de milhares desses animais inteligentes se reuniram, vindos de um território imenso e partindo antes da chegada das grandes nevascas para cruzar o Amur no ponto onde ele é mais estreito (...), vi a ajuda mútua e o apoio mútuo acontecerem em tal proporção que fui levado a suspeitar ali da existência de

31 A harmonia no Kokutai tendo como bases o xintoísmo e o bushidô – devoção ao Imperador divino e ao xogun – é similar à harmonia no cristianismo no ocidente. Michel Foucault (2009a) interessado na constituição do poder pastoral componente do dispositivo de governamentalidade, destaca a formação do pastorado cristão e retoma a noção de Apatheia da Grécia. Nos epicuristas e estoicos era por meio da ausência de paixões de um discípulo e sua disposição à direção e governo de seu mestre que o tornaria mestre no futuro. No cristianismo, isso adquire um outro sentido, o da renúncia de si, da ausência de paixões e de prazeres da carne. A Apatheia cristã garante o controle de si já que não há mais a vontade. É nessa renúncia de si que é possível a harmonia fincada na obediência. É por meio dessa devoção que se alcançará a harmonia, o reino dos céus. Assim, o discurso religioso é um exercício de poder. A religião conduz as condutas e reitera formas de assujeitamento seja em nome do Imperador de procedência divina, ou dos céus que virão após a morte para uma vida sem pecados.

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uma característica da maior importância para a manutenção da vida, a preservação de cada espécie e sua evolução posterior” (KROPOTKIN, 2009, p. 12). Assim, o darwinismo social, ao colocar a luta entre uma mesma espécie como um fator evolutivo, pauta-se em uma observação inexistente. A luta entre os mesmos de uma espécie como evolução seguindo uma pretensa lei da natureza é promover a guerra e a conquista enquanto progresso. Em “‘Shu no kigen’ ni tsuite” (“Sobre ‘A origem das espécies’”), publicado em dezembro de 1914, fica evidente a influência de Kropotkin: “o que é estritamente chamado de existência, ou luta, ou seja, a luta por meramente obter alimento, vestuário e abrigo entre os indivíduos, nunca é um princípio universal... Todas as espécies (...) em cada classe de animais, cooperam para evitar a luta” (1914). Com a humanidade não seria diferente, entretanto, a luta, a guerra, é o princípio da conquista e do Estado. Para Ôsugi, enfim, cooperação não é uma harmonia, como a expressa pelo Kokutai, mas conviver na diferença em uma vida livre. Ôsugi também era um observador da natureza, como Kropotkin. Em uma carta de 1907, em uma de suas passagens pela prisão e endereçada a Kôtoku Shusui, afirmou sobre as obras anarquistas e sua relação com a natureza: “os anarquistas começam explicando a astronomia na introdução de suas obras. Então, eles explicam as plantas e os animais. E aí, finalmente, discutem a sociedade humana. No devido tempo, eu me canso dos livros. Então, eu levanto minha cabeça e olho para o espaço. As primeiras coisas que vejo são o sol, a lua e as estrelas, o movimento das nuvens, as folhas da árvore, pardais, papagaios pretos, galinhas e depois, ao baixar o olhar, o muro do prédio da prisão. É exatamente como se eu estivesse praticando o que eu estava lendo. Por mais escasso que seja o meu conhecimento da natureza, fico constantemente envergonhado. E penso: ‘de agora em diante, estudarei seriamente a natureza’” (ÔSUGI, 1907 in STANLEY, 1982, p. 48). Foi nos muros da prisão – que viu por tantos dias de sua vida –, uma das manifestações da conquista, que a cooperação expressa pelo Kokutai foi rompida por Ôsugi. Por meio dessas observações, deu continuidade às reflexões em um combate incessante à conquista e seus efeitos. Em “Sei no kakuju” (“A expansão da vida”), publicado em janeiro de 1914 também no Kindai Shisô, que Ôsugi Sakae retoma o tema na forma de um confronto infindável entre a conquista e a expansão da vida. Apesar do texto ter sido publicado somente em 1914, Ôsugi provavelmente o elaborara antes. Em carta ao anarquista Ishikawa Sanshirô – que dissertava sobre a geografia de Elisée Reclus e com quem romperia quando esse tomou parte no caso do

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Manifesto dos 16, apoiando a I Guerra Mundial –, escreveu sobre sua esperança nos homens: “Existem ervas que secam completamente. Mas elas ainda devem florescer para expandir suas vidas” (in STANLEY, 1982, p. 55). A expansão da vida está na luta contra o poder, entendido por Ôsugi enquanto ação, força; e a expansão, por sua vez era entendida enquanto ação contra relações de poder. A noção de poder para Ôsugi aproxima-se, curiosamente, da elaborada anos mais tarde por Michel Foucault ao entender poder como o conjunto de relações de forças. Em suas aulas iniciais do curso Em defesa da sociedade (1999b), Foucault desfaz-se do conceito de poder originário da teoria jurídica clássica e economicista, e sugere, em vez de uma conceituação do poder, uma análise de seus mecanismos, seus efeitos, suas relações e dos diferentes dispositivos por meio dos quais é exercido. Poder não enquanto um direito, ou um bem que se aliena, se toma e se cede, mas entendido como um ato. O exercício do poder deve ser entendido em relação a algo, como um conjunto de ações que incide sobre o indivíduo que a ele responde em seu exercício. Ou seja, é “uma ação sobre ações” dos outros (2010, p. 288), relações de poder enquanto antagonismos geradores de incitação à luta, agonismo. As relações de poder em Foucault estão associadas ao combate, enfrentamento, guerra, invertendo a proposição do general prussiano Clausewitz ao afirma que a política é a guerra prolongada por outros meios. Em A sociedade punitiva (2015), Foucault retoma a noção de guerra civil – sem aproximá-la da guerra de todos contra todos como o fez Hobbes –, para a análise da penalidade, entendendo que o poder não é o que a suprime, mas o que a trava e lhe dá continuidade. O exercício do poder soberano não expulsa a guerra de seus limites, também por isso “a política é a continuação da guerra civil” (FOUCAULT, 2015, p. 31). A política sempre diz respeito ao confronto de elementos coletivos e seus efeitos são o aparecimento de novos personagens coletivos. Ela não é anterior à constituição do poder, não marca o seu desaparecimento ou enfraquecimento, mas se desenrola para manter ou conquistar o poder, para confiscá-lo ou transformá-lo. “Seria possível mostrar que a guerra civil é, ao contrário, aquilo que assombra o poder: assombrar não no sentido de causar medo, mas no de que a guerra civil habita, permeia, anima e investe o poder integralmente. (...) O exercício cotidiano do poder é de certa maneira travar a guerra civil, e todos esses instrumentos, essas táticas que podem ser distinguidas, essas alianças devem ser analisáveis em termos de guerra civil” (IDEM, pp. 30-31).

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A política enquanto guerra civil produz inúmeras batalhas. É preciso estar atento a essas e à possível emergência de heterotopias anarquistas. A noção de expansão da vida também verifica a urgência em não aguardar um futuro, mas associar-se libertariamente no presente. Ôsugi atentou para os termos de combate ao situar na conquista, relações de poder, não somente de dominação, como também na vontade de ser escravo. “A expansão da vida das pessoas conquistadas foi amplamente destruída. Eles praticamente perderam seu eu. Eles ficaram à mercê da vontade e do comando de seus conquistadores; tornaram-se escravos do trabalho, tornaram-se instrumentos. A vida pessoal e o autodesenvolvimento dos povos conquistados não puderam fazer nada que não estagnar e apodrecer” (1913b, p. 3 – anexo). Nesse movimento de perder o eu, o indivíduo torna-se sujeito. Em “O sujeito e o poder” (2009b), publicado originalmente em inglês, Foucault apresenta como se constitui esse sujeito e destaca como no decorrer da história emergiram três tipos de luta: contra as formas de dominação (étnica, social e religiosa) nas sociedades feudais; contra as formas de exploração no século XIX; e lutas contra a sujeição, contras as formas de subjetivação e submissão. Assim, na atualidade, o confronto está nas formas de sujeição, contra a submissão a uma subjetividade, apesar das outras lutas não terem desaparecido. Para Foucault, as lutas não estariam em torno de uma instituição, ou de uma classe, mas contra uma técnica de poder, contra um exercício de poder que consiste em “conduzir condutas”. Nessas relações, que se faz do indivíduo sujeito, sendo que, atribui dois sentidos para o termo: “sujeito ao outro através do controle e da dependência, e ligado à sua própria identidade através de uma consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e sujeita” (2009b, p. 235). Entretanto, Foucault destaca que os mecanismos de sujeição não devem ser estudados somente vinculados à dominação e exploração, para compreender seu funcionamento atenta-se para uma nova forma política de poder que se desenvolveu de modo contínuo desde o século XVI, o Estado. Para Foucault, o que caracteriza o Estado é a capacidade de exercer relações de poder tanto individualizantes como totalizantes, possível desde a absorção do poder pastoral, tecnologia de poder nas instituições cristãs32.

32 O poder pastoral “1. É uma forma de poder cujo objetivo final é assegurar a salvação individual no outro mundo. 2. O poder pastoral não é apenas uma forma de poder que comanda; deve também estar preparado para se sacrificar pela vida e pela salvação do rebanho. Portanto, é diferente do poder real que exige um sacrifício de seus súditos para salvar o trono.

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Por meio desse diagnóstico da constituição do sujeito ocidental, Foucault retoma Kant e a pergunta “o que somos nós?”, mas, sem a pretensão em descobrir o que somos, recusar o que somos liberando-se das categorias individualizantes e totalizantes do Estado moderno ocidental: “a conclusão seria que o problema político, ético, social e filosófico de nossos dias não é tentar libertar o indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, porém nos libertarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualização que a ele se liga” (IDEM, p. 239). Foucault, por meio deste diagnóstico do presente sinaliza para a constituição de novas subjetividades em “É inútil revoltar-se?”, quando alguém prefere o risco da morte a uma vida de obediência, inserindo sua subjetividade na história. Não se trata de uma revolução e seus funcionários, mas de uma insurreição que pertence à história e simultaneamente lhe escapa. É uma recusa, a coragem e o risco diante das relações de poder. “Ninguém tem o direito de dizer: Revoltem-se por mim, trata-se da libertação final de todo homem’. Mas não concordo com aquele que dissesse: ‘inútil se insurgir, sempre será́ a mesma coisa’. Não se impõe a lei a quem arrisca sua vida diante de um poder. Há ou não motivo para se revoltar? Deixemos aberta a questão. Insurge-se, é um fato; é por isso que a subjetividade (não a dos grandes homens, mas a de qualquer um) se introduz na história e lhe dá seu alento. (...) Todas as desilusões da história de nada valem: é por existirem tais vozes que o tempo dos homens não tem a forma da evolução, mas justamente a da ‘história’” (FOUCAULT, 2006, p. 80). Na invenção de novas subjetividades, Ôsugi combateu os preceitos de um bom súdito japonês para promover a expansão da vida. Diante de um Japão em plena industrialização, que importava tecnologias políticas do ocidente, o anarquista sugeria novas subjetividades apartadas tanto da milenar obediência como de sua atualização

3. É uma forma de poder que não cuida apenas da comunidade como um todo, mas de cada indivíduo em particular, durante toda a sua vida. 4. Finalmente, esta forma de poder não pode ser exercida sem o conhecimento da mente das pessoas, sem explorar suas almas, sem fazer-lhes revelar os seus segredos mais íntimos. Implica um saber da consciência e a capacidade de dirigi-Ia. Esta forma de poder é orientada para a salvação (por oposição ao poder político). É oblativa (por oposição ao princípio da soberania); é lndividualizante (por oposição ao poder jurídico); eco-extensiva à vida e constitui seu prolongamento; está ligada à produção da verdade - a verdade do próprio indivíduo. (...) Não acredito que devêssemos considerar o ‘Estado moderno’. Como uma entidade que se desenvolveu acima dos indivíduos ignorando o que eles são e até mesmo sua própria existência, mas, ao contrário, como uma estrutura muito sofisticada, na qual os indivíduos podem ser integrados sob uma condição: que a esta individualidade se atribuísse uma nova forma, submetendo-a a um conjunto de modelos muito específicos. De certa forma, podemos considerar o Estado como a matriz moderna da individualização ou uma nova forma do poder pastoral” (FOUCAULT, 2009b, p. 237).

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qualquer que fosse. Essas novas tecnologias políticas incidem sobre o corpo e se interessam em extrair docilidade e utilidade. Trata-se do que Foucault nomeou de disciplina, que emergiu no século XVII interessada no corpo-máquina e posteriormente no corpo-espécie, como biopolítica, desde o final do século XVIII; enquanto uma se ocupava do adestramento do corpo, na extorsão de forças e ampliação de suas aptidões, a outra se voltava ao corpo atravessado pelos processos biológicos, como variáveis de uma vida e de uma população medidas em planos estatísticos e capazes de intervenção. Também no Japão, essas novas relações foram absorvidas rapidamente com pretensões à modernização, mas sem abrir mão da pretensa harmonia. Ôsugi, entretanto, interessava-se pelo confronto, a discórdia e a luta contra essas relações de poder, agora recicladas a partir da conciliação com uma nova técnica de poder ao mesmo tempo individualizante e totalizante. No primeiro volume da História da sexualidade (1999a), Foucault destaca que onde há relações de poder, há resistências, e diante delas as relações de poder se refazem. A noção de expansão da vida de Ôsugi interessa-se também por essas resistências: “eu vejo a beleza suprema da vida na expansão da vida, eu vejo a beleza suprema da vida na revolta e destruição, vejo a beleza suprema do meu eu de hoje. Hoje, quando a verdade da conquista atinge seu ápice, a harmonia não é mais tão bonita. Só existe beleza no caos. A harmonia é uma mentira. Só há verdade no caos” (1913b, p. 6 – anexo). A expansão da vida está na experiência, e não é uma revolução. Entretanto, é possível que na revolução encontremos muitas vezes expansões da vida. Ôsugi aproxima- se do anarquista francês Pierre-Joseph Proudhon ao ser crítico da revolução que reconstituirá o súdito. O anarquista francês sugere uma revolução social e não política, uma revolução que gere “um regime econômico e industrial que será o contrário de um regime governamental, na qual os vencedores não se tornem casta dominante ou governante” (RESENDE; PASSETTI, 2007, p. 1). Sugere uma revolução permanente, que se constrói, sem fim e que se amplia em suas associações. Não se trata da elaboração de um sistema que será implementado. Para Ôsugi, em consonância com Proudhon, a revolução política em sua tomada do Estado é a reconstituição de uma nova ordem operando pela mesma lógica da conquista da ordem anterior. “Uma classe média com um eu relativamente saudável toma a iniciativa, a título de salvar o povo conquistado, e usa sua assistência para se elevar. Ou ocorre uma rebelião desesperada da classe conquistada, sob influência da classe média. E, obviamente, sempre termina com a classe média se tornando um novo mestre. A

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história da humanidade é, em suma, este ciclo de repetição. Cada ciclo é uma repetição que passou por alguma evolução” (1913b, p. 4 – anexo). Aproxima-se também da noção de vida como experiência exposta por Émile Armand (2007), quando este mostra que a anarquia na vida se realiza fora dos limites da lei, da moral e dos costumes, que são apenas limitações e não compreendem a vida de uma pessoa. O anarquista na França quebra as convenções que buscam assegurar uma paz interior ou uma harmonia pessoal; para Ôsugi, lei ou moral não trarão calmaria a alguém, só produzem barreiras. Para Armand, a vida não é uma prisão, mas se amplia quando disposta a quebrar regramentos, a pisotear os convencionalismos e “lançar-se na aventura e vagabundear no campo aberto do imprevisto” (ARMAND, 2007, p. 103). É possível que Ôsugi tenha lido os escritos de Émile Armand. Em março de 1912, publicou artigo traçando a história do L’en Dehors, publicado pelo anarco individualista Zo d’Axa (1864-1930) em 189133, interrompido em 1894, e retomado por Armand em 1922. Nesse mesmo ano, Ôsugi publicou artigo sobre Max Stirner, outro autor importante para o desenvolvimento da noção de expansão da vida. Tal artigo, publicado no periódico Kindai Shisô (Pensamento Moderno), em 1 de dezembro de 1912, pouco menos de um ano antes da publicação do artigo “A verdade da conquista”, apresenta a vida de Stirner com uma breve tradução de alguns trechos de O único e sua propriedade. Ôsugi destaca a crítica stineriana a Hegel, distanciando-o de outros críticos à obra do filósofo, como Bruno Bauer e Ludwig Feuerbach. Destaca também a redescoberta da obra de Stirner por John Henry Mackay, que fez uma apresentação de O único. Para Ôsugi, Stirner “pode ser considerado um anticristo. E, ao mesmo tempo, sua filosofia era antimoral e antissocial. Ele rejeitava qualquer autoridade além do ‘único’” (1912a, p. 32). Ôsugi enfatiza a noção de ideia-fixa em Stirner, definindo-a como “um vampiro que suga o sangue dos vivos”: a ideia-fixa é uma ideia a qual uma pessoa se subjugou. Ôsugi cita algumas como a moralidade, a religião e a sociedade. Isso não é uma metáfora, mas a prisão a uma ideia superior,“a verdade da fé de que se não duvida, a majestade (...) em que não se pode tocar (e quem o fizer comete crime de lesa-majestade), a virtude, contra a qual o censor não deixará passar nem uma palavra, para que a moralidade permaneça intacta, etc. (...) Se um pobre diabo encerado num manicômio está dominado

33 Nessa primeira edição, contou com ajuda de vários libertários, entre eles Jean Grave, Sébastien Faure, Errico Malatesta, Octave Mirbau, Émile Henry... (MAITRON, 1992).

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pela ideia louca de ser Deus-pai, o imperador do Japão, o espírito santo, etc., ou se um burguês acomodado imagina que o seu destino é o de ser um bom cristão, um protestante crente, um cidadão leal, um homem virtuoso, etc. - ambas as coisas são uma e a mesma ‘ideia-fixa’” (STIRNER, 2009, p. 42). A ideia-fixa, portanto, é a ideia a qual a pessoa se submete, seja a um Imperador, o Kokutai ou à humanidade. “Sem jamais submeterem à faca cortante da crítica estas suas ideias fixas. (...) Quem delas duvida comete um sacrilégio! A ideia fixa é, na verdade, o que já de mais verdadeiramente sagrado” (IDEM). Sendo assim, até mesmo o homem é uma ideia-fixa, passa a não ser uma pessoa, mas um ideal, um espectro. Sob esse ideal, há o sufocamento do eu, a contenção da expansão da vida. O eu, para Ôsugi é delimitado, formado, dilacerado e destruído quando se impede a sua expansão. Os métodos da conquista, das disputas, massacram o eu formando dois pólos da mesma pessoa: opressor e oprimido. Ou seja, tornar-se um escravo, um súdito a espera do comando do mestre. Para destruir a harmonia do Kokutai, a expansão da vida está em acabar com o altruísmo do Imperador, em deixar de serví-lo. Não afirmar uma nação, uma massa amorfa de súditos, mas o eu. Enquanto isso, Max Stirner, a partir da filosofia ocidental grega, passando pelo cristianismo e pelo liberalismo, afirma o único, o eu-proprietário que afirma a sua vontade em confronto com a subserviência a uma ideia. Ao invés de servir à causa do sultão, do Imperador, do Rei, da nação, da humanidade, da democracia, do presidente, afirmar o único, que é a sua própria causa. Apesar do referencial de Ôsugi não ser a filosofia ocidental, Stirner lhe é pontual para romper com a servidão ao Imperador e com suas derivações. Diante da homogeneização proposta pelo Kokutai e pela subserviência ao Império nipônico, afirmava as singularidades do eu, realizado na expansão da vida. Porém, Ôsugi não se desvencilha de uma luta por uma nova sociedade, ele vê na expansão do eu a possibilidade de que esta atinja toda a humanidade. À sua maneira, Ôsugi conjuga o coletivismo presente em “A verdade da conquista”, que remonta a suas leituras de Kropotkin, com o individualismo radical em Stirner. Interessa-lhe a potência em suas elaborações e práticas para desfazer-se do Estado e não as identidades a que cada um foi destinado (coletivista e individualista). A expansão da vida, para Ôsugi, pode levar a uma nova sociedade. Neste desfazer- se da servidão a uma causa, da ideia-fixa do espírito, uma nova humanidade pode florescer. Sendo assim, se “A expansão da vida só se alcança por meio da revolta. A

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criação de uma nova vida, a criação de uma nova sociedade, somente são possíveis por meio da revolta” (1913b, p. 6 – anexo). Stirner, entretanto, combatia incansavelmente as causas e as ideias, não deixando ilesa a sociedade. Neste caso, a sociedade ou a comunidade são ideias transcendentais. Afinal, a sociedade exige um comportamento, formata um indivíduo, o submete à sua ideia e à sua causa; é a expressão de uma vontade dominante para determinar a vontade individual, que Stirner chama de “vontade do Estado” (STIRNER, 2009, p. 251). “Minha vontade própria é a ruína do Estado; por isso este a estigmatiza como ferrete do “arbítrio pessoal”. A vontade própria e o Estado são forças inimigas; entre elas nunca será possível qualquer “paz eterna”. Enquanto o Estado se afirmar, apresentará sempre a vontade própria, sua adversária e inimiga, como irracional, má, etc.; e aquela vontade se deixa levar por essa conversa e é realmente irracional por ir atrás de tal retórica: ainda não tomou consciência de si e da sua dignidade, e por isso é ainda imperfeita e corruptível. Todo o Estado é um regime despótico, quer o déspota seja um ou muitos, quer sejam todos os dominadores, cada um exercendo sua ação despótica sobre os outros como se pensa que acontece em uma República. Isto acontece de fato quando uma lei, uma vez estabelecida na sequência da clara vontade de uma assembleia nacional, passa a ser uma lei para todo o indivíduo, que lhe deve obediência e perante a qual tem o dever de obediência. Mesmo imaginando que cada indivíduo tinha manifestado a mesma vontade e assim se formaria uma “vontade geral”, mesmo assim as coisas não se alterariam. Não ficaria eu preso, hoje e depois, à minha vontade de ontem? Neste caso, a minha vontade ficaria petrificada. Detestável sensibilidade! A minha criatura isto é, uma determinada expressão de vontade, tornar-se-ia no meu tirano, e eu, seu criador dotado de vontade, ficaria tolhido no meu desenvolvimento e na minha dissolução. Pelo fato de ontem ter sido um idiota, estaria condenado a permanecer assim para o resto da vida. Deste modo, na vida do Estado eu sou, na melhor das hipóteses - também poderia dizer na pior –, um escravo de mim próprio. Porque ontem fui um ser de vontade, hoje sou um ser sem vontade; ontem voluntário, hoje involuntário” (STIRNER, 2009, pp. 252-253). Esse ser de vontade em combate com a vontade do Estado é o único. A vontade própria não se subjuga ao Estado, à ideia, ao espírito e a qualquer outra abstração. Um sujeito também pode abrir mão de sua vontade própria por meio do amor. Em “Algumas observações provisórias a respeito do Estado fundado no amor”, Stirner mostra como a recusa da vontade própria ocorre pelo amor. Ao se determinar pelo amor a um objeto, a alguém, a uma ideia, modula-se pelo e para o outro: “através do amor, o homem

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determina-se, confere-se certas características, torna-se o seu próprio criador. Somente faz tudo isso tendo em vista um outro e não a si mesmo” (STIRNER, 2002, p. 19). Assim, o amor é a privação da vontade, o esforço para tornar o outro sagrado e fundamental para a devoção ao Estado. E para sua ruína, em consonância com o escrito sempre atual de Etienne de la Boétie, Discurso da Servidão Voluntária (1999), basta deixar de servir para que o Estado, e qualquer autoridade centralizada, desmorone. A noção de querer encontra-se em paralelo à expansão da vida; seu alvo também é o Estado, o qual é preciso deixar de servir: “a expansão da vida é o nosso único objetivo. A nossa atividade está em satisfazer nossa vontade implacável da vida. Além do mais, a lógica inevitável do eu requer que nós destruamos e eliminemos tudo aquilo que se oponha à expansão do eu. E, ao desobedecer a essa ordem tudo fica estagnado, apodrece e se destrói” (1913b, p. 2 – anexo). Não cabe a alguém fazer esse movimento pelo outro, não é “uma execução que deva se confiar a alguém”. É preciso se desvencilhar, se desacostumar à obediência. Para Ôsugi: “seres humanos mergulhados em uma sociedade de senhores e escravos por um longo tempo não são capazes de imaginar uma sociedade em que não haja senhor ou escravo. Não conseguem pensar em uma maneira de expandir suas vidas, com exceção da autoridade exercida por alguém superior sobre ele, ainda que esteja em controle de si próprio” (1913b, p. 4 – anexo). Estaríamos tão acostumados a obedecer ao ponto de escolhermos quem será o novo senhor: “o nome dos senhores muda. E, finalmente, não ousam tocar no machado que é a conquista fundamental por si só”. A mudança de representante ou a mudança de regime é irrelevante para Ôsugi, estas mudanças são apenas estágios de desenvolvimento da conquista. Em ambos os casos, a expansão da vida continua abafada, e a vontade do eu, sufocada. “É neste ponto, para que o eu possa continuar a existir, que é preciso surgir o ódio contra a verdade da conquista. O ódio tem que gerar mais revolta. É preciso despertar a vontade por uma nova vida. As pessoas não devem possuir autoridade sobre outras; é preciso despertar a vontade por uma vida livre” (1913b, p. 5 – anexo). O ódio é uma recusa a ser dominado, uma recusa a servir e uma afirmação do eu. Esta afirmação do eu está na luta contra a conquista: “e quando estou nessa fronteira, meu eu contra a verdade da conquista, é o momento mais claro em meu coração. É o momento em que meu eu foi estabelecido com mais certeza. E toda vez que experimento esta fronteira, minha consciência e meu eu vão se tornando cada vez mais claros e confiáveis. O prazer do eu está transbordando” (1913b, p. 7 – anexo). Aí está a beleza dinâmica que

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Ôsugi referiu-se no texto “A verdade da conquista”, uma beleza em que não há harmonia, mas diferença, por isso nunca estática, mas em movimento e surpreendente na afirmação de uma vida livre. Na beleza da revolta, pulsa o desperto coração de Ôsugi Sakae. Ôsugi não faz uma proposta de revolução para romper com a harmonia. Ao final de “A verdade da conquista” faz um convite, principalmente aos estudantes de literatura que se gabam de serem sensíveis e inteligentes, para desacostumarem-se à obediência. Convida-os a atentarem à conquista, e para que produzam reflexões sobre “esta realidade da dominação (...), esta pressão exercida sobre nossa vida cotidiana. Eu já desisiti de esquecer o peso dessa realidade. Ela é um poderoso elemento de desonestidade sistemática”, enquanto não se importunar com isso, as reflexões “serão apenas brincadeira e diversão” (1913a, p. 108). Sabia que poucos se interessariam por suas palavras, acostumados a esta realidade optariam pela situação em que se encontram, pois “permanecer na beleza estática do transe em que estamos é uma questão de escolha” (IDEM). Não se trata de conscientizar a todos para abrir caminho à revolução; para alguém que ama obedecer, basta a literatura que Ôsugi considera brincadeira e diversão; ao anarquista, a questão é outra, a da destruição: “ansiamos por uma beleza dinâmica, que nos trará êxtase e entusiasmo. A literatura que demandamos é uma literatura criativa, da beleza do ódio e da revolta contra esta realidade” (IBIDEM). Em “A expansão da vida” reitera o convite. É preciso revolver o fato da conquista, escancarar que é por esta que se constitui o Imperador, o Kokutai, o Estado, a polícia, o voto, justiça, moral... e importunar, pois há uma revolta contra isso (1913b, p. 8 – anexo). Ôsugi combateu a conquista para afirmar a vida livre, desfazendo-se dos costumes subservientes do Japão. Em uma das vezes em que esteve preso, recebeu a ordem de sentar-se junto a um policial, mas um pouco abaixo em relação ao mandante. No costume japonês da época, o nível em que cada um se sentava em uma conversa expressava as relações de autoridade estabelecidas: o mais alto comanda, o mais abaixo é subordinado. Ôsugi recusou-se a sentar, e afirmou que só conversaria em pé. O policial urrava que se tratava de uma ordem, não de um pedido. O anarquista escancarou a relação de autoridade no simples gesto de sentar-se e questionou sobre o que é uma ordem, além de um conjunto de palavras. Disse ao policial que, se quisesse, poderia fazê-lo sentar, pois era um homem armado. Diante da recusa, Ôsugi foi jogado novamente em sua cela. Em uma outra vez que foi preso, não suportou estar agarrado a um policial e urinou sobre ele.

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Ôsugi fez de sua vida uma expansão, uma aventura insuportável aos guardiões da harmonia japonesa, culminando em longos anos de sua existência na prisão e, por fim, assassinado em 1923. Assim, interessa nos capítulos seguintes, apresentar os libertários no Japão Império, menos por suas filiações, mas como expansão de vida diante da pretensa gloriosa harmonia.

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anarquias em expansão, outras conexões: kanno sugako e kôtoku shûsui

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Para configurar a constelação anarquista no Japão, envereda-se pelos embates libertários no decurso da Era Meiji, quando expansão da vida se desenhava no enfrentamento ao Imperador e à sua divindade intocável. Em meio a perseguições e prisões, alguns anarquistas, como Kôtoku Shusui, realizaram deslocamentos rompendo com as fronteiras estatais e traçando conexões com anarquistas nos EUA. Enquanto Japão e Inglaterra debatiam, discordavam e buscavam um consenso para assinar seus acordos comerciais, também se constituíam associações problematizando a recente configuração de forças. O acirramento das perseguições logo se configurou e, a partir de então, traçaram-se rotas de fugas, sinalizando para irrupção de outros espaços e mobilizações questionadoras à devoção ao Imperador. Nesta passagem, em meio às experiências dos anarquistas Kanno Sugako e Kôtoku Shûsui, situaro alguns embates na Era Meiji. A viagem de Kôtoku aos EUA na década de 1910, o retorno de Kanno a Tóquio, expressam como eles se transformaram: Kanno abandonou o cristianismo, e Kôtoku recusou o liberalismo, o parlamentarismo e o socialismo. Em um país em mudanças com a industrialização, o sufocamento de revoltas camponesas e o fortalecimento das lutas contra o governo japonês acontece a instauração da associação Heimin Sha (Sociedade da Plebe), aglutinando socialistas e anarquistas.

a Era Meiji e a abertura dos portos: um estrangeiro em fuga

Em agosto de 1945, a bordo do navio USS Missouri, o ministro de Relações Exteriores, Shigemitsu Mamoru, assinou a Ata de Rendição do Japão, conhecida como a Declaração de Postdam. Poucos dias depois, durante o encontro do General Douglas MacArthur com o Imperador Hirohito acertavam-se as condições para a rendição, que previam: 1) a não inclusão do Imperador entre os acusados do Tribunal de Tóquio (Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente); 2) negociações a respeito dos territórios da China e da Coreia, que ficariam sob controle da União Soviética. A famosa fotografia desta reunião mostra um despojado General ao lado de um Imperador 20 centímetros mais baixo, despido de suas roupas orientais luxuosas e trajando um terno ocidental. Foi-lhe retirado o que o tornava visível e perceptível a todos os súditos como Imperador, reduzindo-o, imediatamente, a um homem baixo e de bigode (GREINER, 2015).

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A foto foi censurada pelo governo japonês e proibida de ser estampada nos jornais. MacArthur, responsável pela ocupação do país e sua reorganização, revogou a ordem e a foto foi publicada nos jornais japoneses, o que simbolizou a submissão do ex-Império aos EUA pelos anos seguintes. Até então, era raro ver uma foto da família imperial, e muito menos, sem os trajes tradicionais. O Imperador profanado também estava proibido de tomar qualquer decisão política. Aos destroços, corpos mutilados e epidemia de câncer, somava-se a desilusão dos devotos em relação aos ensinamentos de amor e veneração a Hirohito, agora não mais a imagem do Sol na Terra (IDEM). No Brasil, a divulgação da foto gerou respostas da Shindô Renmei (Liga do Caminho dos Súditos), grupo nacionalista de isseis e nikkeis1 fundado no início da década de 1940, e que perseguiu os chamados imigrantes derrotistas, aqueles que entendiam a derrota do Japão como inevitável ou que realizavam qualquer crítica à guerra e ao Império. Os que liam as notícias dos jornais brasileiros, os que recebiam notícias de parentes ou de imigrantes recém-chegados e os que publicizavam a situação do Japão eram espancados e/ou executados pela organização. A Shindô Renmei tinha seu próprio periódico no qual publicava imagens manipuladas do vitorioso Imperador Hirohito em São Francisco sendo saudado e reverenciado pelo presidente Truman. Também noticiava que Getúlio Vargas havia se dirigido a Tóquio para assinar os documentos da rendição. Enquanto isso, os assassinatos de imigrantes eram estampados nas capas dos principais jornais do estado de São Paulo. O processo da Shindô Renmei foi considerado o maior da história jurídica do país até então, tanto pelo número de réus como pela enorme produção de pastas. Hoje esse material está disponível aos pesquisadores no acervo do Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS) do Arquivo Público do Estado de São Paulo2. Muitos japoneses não eram filiados à Shindô Renmei, mas não acreditavam na rendição e afirmavam que a Marinha Imperial estava ancorada próxima ao Rio de Janeiro, aguardando para desembarcar o Príncipe. Em muitas cidades, os tecidos vermelho e branco se esgotaram nas lojas, foram adquiridos pelos isseis para fabricação de bandeiras japonesas visando recepcionar as embarcações. Comerciantes japoneses afirmavam ser do serviço secreto e vendiam condecorações da guerra por mil dólares cada, além de

1 Imigrantes japoneses e seus filhos, respectivamente. 2 Sobre a Shindô Renmei, ver: DEZEN, 2000; HATANAKA, 2002; MORAIS, 2000; NAKADATE, 1988, OKUBARU, 2008.

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retratos falsos com os generais do grupo dos Aliados assinando rendição a bordo do USS Missouri. Notas de réis eram trocadas por notas falsificadas de 100 ienes; passagens falsas eram comercializadas e lotes de terras nas Filipinas e Java eram vendidos como incentivo à ocupação dos territórios adquiridos pelos vencedores da guerra (LESSER, 2000; OKUBARU, 2008). *** Michel Foucault sublinhou que seus estudos tratavam das relações de poder no ocidente. Nas conferências que realizou nas universidades japonesas lembrava que pouco conhecia do oriente, destacando certa vez seu interesse pela prática monástica zen budista. Experimentou-a por alguns meses no templo Seionji em Uenohara com o mestre Omoti Sogen. Em entrevista a um monge em 1978, Foucault (1978) destacou a assimilação dos japoneses a certas tecnologias e ao modo de vida, à aparência e à estrutura social dos ocidentais. Entretanto, ainda restava um jeito de ser do japonês estranho ao ocidente, caracterizado, simultaneamente, por aproximação e distanciamento. Foucault observava que o soberano no ocidente foi destituído de sua força, o que foi acompanhado por mutações nas relações de poder. Essas relações passaram a ter o corpo como objeto e alvo, uma vez que esse deveria ser moldado, treinado, tornado hábil, para dele se extrair utilidade e docilidade. No caso japonês, a apropriação das tecnologias disciplinares anátomo-políticas do corpo e propiciadoras do controle da população, que foram gestadas entre os séculos XVII e XVIII no ocidente, desenvolveu-se com uma forte presença do direito “de causar a morte ou deixar viver” do soberano. De um lado, se o final da Era Tokugawa (1603-1868) abriu espaço para as tecnologias disciplinares que ganharam força nos anos seguintes, de outro lado, fortaleceu a imagem do soberano que ascendeu na Era Meiji (1868-1912) e manteve-se no período Taishô (1912-1926) até parte da Era Shôwa (1926-1989). Assim, neste movimento, também busco apresentar o modo como as tecnologias disciplinares foram assimiladas pelo Japão sem tomar o ocidente como protagonista ou modelo de desenvolvimento, mas também, sem traçar esse percurso com base nos pronunciamentos, sem perseguir a assinatura dos documentos e nem a leitura oficial da modernização japonesa. Pretendo aqui me voltar a outras práticas, a das resistências. Como foi possível nos costumes japoneses a conciliação com costumes ocidentais e como se pôde transmutar o amor ao Imperador ao amor à nação? A queda do Imperador, concretizada na assinatura da rendição em 1945, não foi o exato momento da destruição da sua imagem e da consequente vitória formal

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estadunidense. O dessacralizado Hirohito permaneceu para desempenhar seu papel ao seguir as propostas estadunidenses, obtendo apoio da devota população para a reconstrução do país. Os fundamentos do Kokutai não desapareceram com a promulgação de uma constituição, mas foram atualizados na manutenção da rígida obediência, não mais em nome do Imperador, mas de um país forte que prova sua força ao suportar as perdas para reerguer-se como potência. Portanto, simultaneamente atrelado a uma educação para a guerra, o Kokutai também foi um documento para educar para a reconstrução. Hirohito adaptou-se plasticamente a essa mudança de papel. Foi de inimigo a aliado e sacramentou os interesses dos EUA, chegando a ser considerado uma marionete nas mãos dos militares (IGARASHI, 2011). Entretanto, sua posição foi fundamental para a manutenção da obediência japonesa. Dessacralizar o Imperador e executá-lo seria um impedimento para a ocupação do Japão pelas tropas estadunidenses que precisavam do arquipélago devido a sua posição estratégica, próxima à China e à Rússia. Aplicaram Maquiavel, preferiram ser temidos com a imagem do Imperador a odiados sem a sua presença. Assim, mais do que um simples subserviente, Hirohito tornou-se a imagem de um Japão em reconstrução que, diante da derrota, reergue-se. E, diante de outras guerras refaz-se uma nação e recompõe-se o orgulho japonês. A Era Shôwa perdurou até a morte de Hirohito, marcada pela culpabilidade e adaptação rápida do Imperador ao último súdito, às exigências para a reconstrução. Entretanto, o despontar do Japão enquanto uma potência militar remonta à Era Meiji, anterior à ascensão de Hirohito. O militarismo japonês foi construído através das investidas na Coreia, Manchúria, China e Guerra Russo-Japonesa. Quando, em 1853, o Comodoro Matthew Perry chegou com seus quatro navios de guerra em Edo (Tóquio), ainda no período Tokugawa (1603-1868), por receio de um confronto como o da Guerra do Ópio, o Japão aceitou estabelecer relações comerciais e políticas por meio da compra de armas pelos Xogum3 e do envio de intelectuais para estudar no Ocidente. Em 1854, o Japão assinava o Tratado de Kanagawa com os EUA, abrindo os portos de Shimoda e Hakodate para comércio. Entretanto, aumentava a insatisfação de proprietários de terra que tinham de se adaptar às novas tributações. Somava-se também o descontentamento

3 Os Xogum são semelhantes aos senhores feudais na Europa. Assim, no decurso da Era Tokugawa, a família homônima governou o país, sendo que cada região tinha um Xogum representante da família que administrava o local. O Imperador era somente um símbolo divino e nomeava quem seria o Xogum de cada região.

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do Imperador Komei, o último da Era Tokugawa e pai do futuro Imperador Meiji, com a incapacidade dos Tokugawas em expulsar os estrangeiros, levando a família imperial a posicionar-se contra os xoguns. Komei, que durante sua vida não viu sequer um ocidental, incentivou os samurai errantes, que tinham perdido ou abandonado seus senhores, a atacarem os bárbaros em defesa do Imperador. Em 1867, o Imperador Meiji assumiu o governo, dando nome à Era homônima. Ele estabeleceu o Grande Império do Japão, nome que o país carregou até o final da II Guerra Mundial. Os portos do Japão eram uma escala necessária na rota para a China, tornando-se também interessantes para a Rússia, Inglaterra e França. O Japão transformava-se em uma colônia virtual do ocidente com o Tratado da Amizade e Comércio (1858), responsável pela abertura de outros quatro portos (Kanagawa, Hyogo, Nagasaki e Niigata). Seguiam- se os moldes dos tratados de abertura dos portos no Brasil, em 1808, assinados entre Portugal e Inglaterra4. Com a Rússia, o Japão assinara o Tratado de Amizade, em fevereiro de 1855, e tentava garantir seu passo nessa corrida com o Acordo de Pequim, corroborado também pela China, França e Inglaterra ao final da II Guerra do Ópio, em 1860. O Acordo de Pequim garantia as delimitações de fronteiras e o Rio Amur, na atual região da Manchúria, passava a integrar a Rússia (BEIJING-RUSSIA, 1860), facilitando a navegação até o porto de Hokadate. Inúmeros samurai entendiam que a abertura dos portos colocaria em risco seus senhores e muitos tornaram-se peregrinos para agir de acordo com suas convicções e executar estrangeiros. Segundo Kshetry (2008), muitos samurai degolavam os estrangeiros, desde comerciantes até diplomatas, acreditando que assim limpavam o “divino solo japonês”. Os comerciantes japoneses que estabeleciam contato com qualquer procedente de outras nações eram assaltados. Em agosto de 1859, os samurai empunharam suas espadas e assassinaram marinheiros russos que faziam compras em Yokohama. Em fevereiro do ano seguinte, um capitão de uma embarcação alemã foi assassinado por um samurai. Em janeiro 1861, um intérprete que acompanhava a embaixada estadunidense foi atacado e acabou

4 O Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas (1808) foi assinado por Dom João VI após desembarcar no país com a família real e a nobreza. Era o fim do Pacto Colonial, que previa o comércio exclusivo da colônia com a metrópole. Desdobrou-se no Tratado de Comércio e Navegação (1810) com a Inglaterra prevendo uma série de benefícios de comércio para os britânicos.

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morrendo. Em julho do mesmo ano, 15 samurai atacaram uma embarcação inglesa, ferindo os secretários da delegação. Kshetry (2008) relata que em 1863, alguns líderes racistas atearam fogo no prédio em construção destinado à delegação inglesa. Entre eles, estavam Ito Hirobumi, posteriormente primeiro ministro e responsável por reativar o Kokutai na Constituição Meiji de 1889. Esses grupos perseguiam também qualquer japonês considerado simpatizante dos estrangeiros, como Sakuma Zozan, assassinado por professar a necessidade do governo japonês atualizar seu exército com armas de fogo. Esses são alguns dos inúmeros ataques que ocorriam no porto de Yokohama e arredores.5 Entre mercadorias, turistas, comerciantes e curiosos que frequentavam os portos japoneses, um mês após o ataque aos diplomatas britânicos, desembarcou em Yokohama o anarquista procedente da Rússia, Mikhail Bakunin. A expansão estatal lhe fora favorável para conseguir fugir dos campos de trabalhos forçados na Sibéria. Durante a década de 1840, Bakunin estivera na França, de onde foi expulso após os levantes de 1848. Passou pelas revoltas de Praga e depois retornou a Berlim, mudando- se para Dresden em 1849, quando conheceu o compositor Richard Wagner. Em maio do mesmo ano, estourara a insurreição de Dresden, na Alemanha. Bakunin foi preso em Chemnitz, em maio de 1849. Passou 13 meses encarcerado, em seguida recebeu pena de morte do governo da Saxônia. Rússia e Áustria também queriam sua execução. Entretanto, a pena foi comutada para prisão perpétua e ele foi entregue ao governo austríaco. Após 11 meses de prisão, recebeu uma nova sentença de morte, novamente alterada para prisão perpétua. No final de 1851, Bakunin recebeu a pior notícia: seria extraditado para a Rússia, onde passaria anos nas masmorras subterrâneas da fortaleza Pedro e Paulo e mais quatro anos em Schlüsselburg, condenado ao banimento perpétuo na Sibéria (LIBERO, n. 5, 1978). Em carta a seu amigo Herzen, relembrou esse período. “Encarcerado durante três anos na fortaleza Pedro e Paulo, fui transferido no inicio da guerra de 1854 para Schlüsselburg, onde permaneci detido ainda três anos. Atingido pelo escorbuto, perdi todos os meus dentes. A prisão perpétua é uma coisa terrível, levar uma vida sem objetivo, sem esperança, sem interesse. Dizer a si mesmo todos os dias: ‘Eu me tornei hoje um pouco mais imbecil e amanhã serei ainda mais imbecil’. Com uma horrorosa dor de dentes que durava semanas e voltava pelo menos

5 Essas ações teriam como efeito, em 1876, a promulgação do Haitôrei (Proibição da Katana – espada japonesa) junto com a abolição da classe samurai. Poderiam portar espadas somente polícias, exército e funcionários do governo. O samurai que fosse apanhado com uma espada deveria entregá-la e ajoelhar- se. Muitas vezes, seus cabelos eram cortados com a própria espada para ampliar a humilhação pública.

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duas vezes por mês; não podendo dormir de dia nem de noite, fizesse o que fizesse, lesse o que lesse; e mesmo durante o sono sentir no coração e no fígado uma dor alucinante, com este sentimento fixo: eu sou um escravo, eu sou um morto, eu sou um cadáver” (BAKUNIN, 1987). A saúde de Bakunin cedeu diante da situação em que estava. Após oito anos nesse tormento, cogitou dar um fim à sua vida. Após perder os dentes devido ao escorbuto e de contar com inúmeros apelos de sua mãe ao Tsar Alexander II, Bakunin foi autorizado a permanecer no exílio na Sibéria em fevereiro de 1857 (LIBERO, n. 5, 09/1987; BILLINSGSLEY, 2014). Após quatro anos, tendo conseguido recuperar a saúde, Bakunin já havia se casado com uma professora de francês e estabelecido boas relações com o seu primo, o Conde Nicholas Muraviev, que fora governador da Sibéria por 10 anos e participava das negociações para estabelecer comércio com o Japão. As boas relações de Muraviev com o Tsar possibilitaram a Bakunin um emprego na Agência de Desenvolvimento de Amur. Era somente o começo do seu plano de fuga. Estabelecido, com um emprego estável e uma família, Bakunin enviou uma carta ao então governador da Sibéria, também seu parente, solicitando uma viagem pelo rio Amur para tratar de negócios e com a promessa de não trair sua confiança. Para sua surpresa, a resposta foi positiva, com a indicação de que retornasse antes do congelamento do rio. Em um dos portos que o navio de guerra russo Strelok destinado a Kastri ancorou, Bakunin abordou o capitão da embarcação estadunidense USS Vickery, (GUILLAUME, 1907; CARR, 1975). Solicitou entrada no navio que, após passar pelo porto de Olga, seguiu para o porto de Hakodate, na cidade de Hokkaido, aberto para estrangeiros três anos antes (BILLINSGSLEY, 2014). Bakunin chegou ao Japão no dia 16 de agosto. Logo após negociar com um capitão uma passagem para Yokohama, de onde partiam embarcações para os EUA, Bakunin foi convidado para um jantar do qual participou um convidado especial: o cônsul russo. O libertário não esperou ser abordado e antecipou-se dizendo que estava com uma autorização de turismo para realizar negócios pelo Japão e assegurou que voltaria a Irkutsk por meio de Xangai e Pequim e que não poderia voltar com os russos, pois ainda tinha pendências a serem resolvidas. Para sua sorte, os telégrafos ainda não haviam sido instalados nos portos, tornando impossível ao cônsul verificar as afirmações do anarquista. Na manhã seguinte, a embarcação estadunidense deixou o porto de Hokkaido,

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passando pelos navios da marinha Imperial Russa, para o deleite de Bakunin. Ao final daquele mês, estava em Yokohama (LIBERO, n. 5, 1978; CARR, 1975). Bakunin hospedou-se no Hotel Yokohama, o único que aceitava estrangeiros e pôde desfrutar de uma mesa de snooker e de uma boa adega. Ali, provavelmente, ficou por um mês. No dia 17 de setembro viajou a bordo do Carrington de Yokohama para São Francisco, onde foi saudado por seus companheiros (LIBERO, n. 5, 1978; CARR, 1975). Segundo seu amigo Herzen, Bakunin levou três semanas para chegar aos EUA, realizando a “fuga geograficamente mais longa”. Aos 46 anos de idade, tinha vivido por 12 em prisões e exílios. Alguns meses depois, em 14 de dezembro, embarcou novamente, saindo de Nova York com destino a Liverpool e Londres. Bakunin não manteve relações com os japoneses. Tinha que chamar o mínimo de atenção, pois estava em fuga e ali não era o seu destino final. Assim, pouco se sabe sobre sua passagem bem-sucedida por Yokohama, diferente do que aconteceria quando desembarcou nos EUA (AVRICH, s/d). Billinsgsley (2014), integrante do CIRA Japana na década de 1990, investigou a estadia de Bakunin em Yokohama por meio dos diários de Francis Hall, um comerciante e jornalista estadunidense que viveu em Kanagawa e Yokohama entre os anos de 1859 e 1866. Hall teria auxiliado o anarquista a entrar na embarcação rumo a São Francisco, mas não cita Bakunin em suas memórias, pois provavelmente não soube seu nome. Segundo Billinsgsley, as tensões devidas à influência da Rússia no mercado do Japão foram vitais para que se conhecessem. Hall sinaliza que a amizade possibilitou Bakunin entrar no Vickery para conseguir chegar ao Japão, contando com a autorização do Capitão Brooks. Entretanto, mesmo com essas pesquisas, não é possível saber com exatidão o percurso que o anarquista realizou. Bakunin não era um homem que passaria desapercebido, principalmente por sua longa barba e grande estatura, comparadas às dos japoneses. Entretanto, somente um dos tripulantes alegou que o anarquista estava a bordo do navio. Guillaume (1907) e Nettlau (s/d) citam diferentes portos pelos quais Bakunin teria passado. Talvez não tivesse saído por Yokohama, mas por outro porto, em um barco e não em um navio. Outro de seus biógrafos, E. H. Carr, elogiado por Nettlau e que centra os anarquismos em Bakunin, pouco cita sua passagem pelo Japão, apenas mencionando o porto de Yokohama. Assim, diante das incertezas, não cabe aqui remarcar os passos de Bakunin, mas apresentar um Japão com o qual ele teve contato durante sua fuga extraordinária. Essa inaugurou uma rota para outros fugitivos da Sibéria. Como afirmou certa vez Christian Ferrer (2004), anarquista na Argentina, libertários não deixaram

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rastros para serem seguidos, mas deixaram suas marcas e ebulições que agitaram e desacomodaram seu tempo. O jornal anarquista Libero International, publicado no Japão, afirma que uma das dificuldades em saber o que ocorreu com Bakunin se deve às bibliotecas permanecerem ainda fechadas. As investigações sobre a Era Meijii e os anos seguintes, muitas vezes, possuem como uma das poucas fontes os periódicos libertários que circulavam gratuitamente ou a baixo custo. Apesar de alguns materiais serem de acesso ao público na Biblioteca da Dieta Nacional em Tóquio, materiais referentes aos primórdios da Era Meiji permanecem incessíveis. Assim, a vitalidade de outros percursos, não está estancada em documentos oficiais de acesso autorizado, mas estão nos arquivos anarquistas, como o CIRA-Japana. Foi com o trabalho de Billinsgsley (2014) que a passagem de Bakunin pode ser um pouco mais conhecida. Bakunin conheceu pouco do Japão e não tomou contato com as inúmeras revoltas camponesas que estavam em curso, sufocadas pelas forças governamentais. Não tomou contato também com a devastadora miséria na qual viviam inúmeras pessoas. No Japão, ficou restrito durante um mês na região de Yokohama, em um bairro do qual os estrangeiros não podiam sair. Para irem além, até mesmo do hotel, era necessário obter uma autorização prévia. Em cartas a seu amigo Herzen, Bakunin descreveu sua viagem como uma volta do mundo dos mortos. Afinal, escondeu-se por todo o período em que ficou no Japão, não foi assassinado por um samurai e despistou o czar. Bakunin passou incógnito pelo Japão a fim de escapar da Rússia. “Consegui escapar com sucesso da Sibéria, e depois de uma longa peregrinação no Armur, nas margens do Golfo de Tartária e no Japão, cheguei hoje a São Francisco” (BAKUNIN in HERZEN, 1973, pp. 570-571). Em seguida foi a Londres, percorreu a Europa travando lutas contra o governo da ciência e qualquer autoridade centralizada. Incendiaria a Associação Internacional dos Trabalhadores –AIT (1862) com críticas contundentes ao centralismo de Karl Marx (1818-1883), o que culminou em sua expulsão em 1872. Para Herzen (1812-1870), Bakunin realizou “a fuga mais longa em termos geográficos” (apud AVRICH, s/d, p. 320). Na navegação pelo rio Amur, até chegar a Yokohama, Bakunin não fazia turismo, mas em uma atitude de andarilho, estava sem lugar pré-determinado para chegar e apenas com um objetivo único: fugir do Tsar. “Ir a determinados lugares, como andarilhos, é experiência heterotópica, quase um sétimo princípio relativo à época de dessacralização

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do espaço: não é aqui ou ali que a heterotopia se realiza, mas no percurso levado por barcos no passado ou por astronaves no presente” (PASSETTI, 2003a, p. 48)6. Não é uma busca pelo futuro, ou uma viagem programada de itinerário demarcado, nem uma viagem enquanto investimento para aprender lições, mas uma heterotopia de percurso, um caminho de andarilho levando a espaços surpreendentes. Bakunin em suas viagens mirabolantes e em sua fuga da Rússia, pôde ir a outros espaços e redimensionar sua existência. Sua viagem aconteceu em meio às descobertas de um novo mercado e a acordos políticos. Chegou ao seu destino e incendiou junto a seus companheiros. Dispensou a exigência da burocracia com os seus papeis de permissão para entrar em um país. Estava longe de qualquer roteiro turístico para visitar a então exótica Ásia. Os anarquistas não cessam de se deslocar. Errico Malatesta passou pela Itália, França, Suíça, Egito, Síria, Romênia e Bélgica até permanecer por mais tempo em Londres. Piotr Kropotkin, que também foi preso na Fortaleza de Pedro e Paulo e acometido pelo escorbuto, seria enviado para Cadeia de São Petersburgo, em seguida para a Prisão Militar de São Petersburgo de onde escaparia com a ajuda de seus amigos com destino a Inglaterra, Suíça, França, Bélgica. Luiggi Fabbri e sua pequena filha Luce desembarcariam da Itália em Montevidéu. As fugas do Campo de Concentração de Oiapoque, algumas vezes rumo à Guiana Francesa, relatadas em cartas publicadas no jornal A Plebe na década de 1920. Domingo Passos, também em fuga de Oiapoque, avistado no porto de Santos e depois sumindo no anonimato. Emma Goldman incendiando anarquias com passagem pelos EUA – quando ficaria conhecida como a mulher mais perigosa da América –, Canadá, Inglaterra, indo também à Rússia para tomar parte e criticar os rumos da Revolução, depois seguindo para a Espanha da Revolução

6 Ao afirmar um sétimo princípio relativo à dessacralização do espaço, Passetti refere-se a 6 princípios das heterotopias. Ao estabelecer uma heterotopologia, Foucault aponta para esses 6 itens, sendo eles: 1. Não há cultura que não crie heterotopias, mesmo sendo variadas, podendo ser classificadas em dois tipos, as de crise e as de desvio. A primeira seria encontrada nas sociedades ditas primitivas em lugares privilegiados ou sagrados destinada a indivíduos que se encontram em crise com essa sociedade; a segunda, são os espaços em que são colocados aqueles com comportamentos desviantes, como prisões, hospícios, asilos... 2. Uma heterotopia pode assumir uma outra função que não a sua original, como o cemitério, encontrado em diferentes formas no decorrer da história. 3. Justaposição de espaços diferentes, como no teatro em que uma série de lugares se sucedem. 4. As heterotopias estão ligadas a recortes temporais, e encontram-se em ruptura com o tempo tradicional. 5. As heterotopias pressupõem sistema de abertura e fechamento tornando-as herméticas e penetráveis. 6. São espaços de ilusão que espelham os outros espaços reais, como os bordéis, ou criam um espaço novo, perfeito e organizado em desconformidade com os espaços mal construídos, como a perfectibilidade dos jesuítas (FOUCAULT, 2001).

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Espanhola. A chegada de Roberto das Neves e Edgar Rodrigues ao Rio de Janeiro fugindo do ditador português Salazar... Como destacou Gustavo Simões (2017), em um estudo dedicado aos percursos de John Cage em suas transformações heterotópicas, as imigrações libertárias não ocorrem somente pelas fugas, mas é também um deslocar afirmativo, como nas revoltas de 1968 com a busca de outros espaços. Nesse deslocar também estão as idas em encontros, a festas, jantares, comícios, travando desentendimentos, ardorosas discussões, paixões e transformações. Bakunin, após chegar à Europa em 1872, iria ao Congresso de Haia da Associação Internacional dos Trabalhadores, não dando sossego a Marx, Engels e seus discípulos, o que culminaria na sua expulsão. Christian Ferrer em “mistério e hierarquia” (2002) sublinhou “Em qualquer cidade do planeta, não importa seu tamanho, há pelo menos uma pessoa que se diz anarquista. Esta presença solitária e insólita seguramente oculta um significado que transcende o território da política, da mesma maneira que a dispersão triunfante das sementes não pode ser resumida apenas como luta pela sobrevivência de uma linhagem botânica. [...] Espalharam-se seguindo as ondulações inorgânicas da erva plebeia” (FERRER, 2002, p. 226). Nessa experiência imigratória, os anarquismos se espalharam pelo planeta, dispersaram para inventar associações e ações diretas e para cada um modificar a si mesmo. Onde menos se espera haverá um anarquista, talvez em fuga, inventando um novo espaço, agitando um periódico ou em um plano regicida... Para Ferrer, a imagem da existência anarquista é como “a do gêiser, como também a do transbordamento, da inundação, do rio subterrâneo, da tormenta, do redemoinho do mar, do romper da onda, do olho da tormenta. Fenômenos naturais, todos, inesperados e desordenados, ainda que dotados de uma potência particular e irrepetível” (2002, p. 232). Mesmo sem serem numerosos, em quantidades demográficas dispensadas por um estatístico, os anarquistas traçam seus percursos e irrompem como no inesperado da natureza agitando obediências e governos. A passagem de Bakunin pelo Japão é uma história de fugas bem sucedidas, e por isso, sua presença foi pouco notada. O mesmo não aconteceu com os seus escritos, cujas traduções por Ôsugi Sakae agitaram os periódicos anarquistas na década de 1920. Com a ascensão do fascismo japonês e o empastelamento da imprensa anarquista e as perseguições, Bakunin acabou esquecido. Suas obras foram retomadas nas revoltas de

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1960, quando foram lidas por muitos jovens; hoje, seus escritos circulam pelas redes sociais, em formatos originais ou reeditados por anarquistas no presente.

a vida em transformação

Enquanto Bakunin passava pelo Japão, inúmeras revoltas camponesas eram massacradas pelos xoguns para garantir a abertura dos portos. Em 1868, eclodiu a Guerra Boshin entre o Xogunato Tokugawa e os que defendiam a restauração do Imperador Meiji, que contava com o apoio dos xogunatos do Sul (Satsuma, Choshu, Hizen e Tosa), da Inglaterra e da Irlanda. Os apoiadores do Xogunato foram derrotados no ano seguinte. Os defensores do Imperador professavam que a abertura promovida pelo Xogun levaria à derrocada do Japão e que era necessário interromper tal processo, ou minimamente revê-lo e realizar outros acordos. Clamavam palavras de ordem como “reverenciar o Imperador e expulsar os bárbaros” (HANE, 1993). Entretanto, com a vitória do Império em 1869, adotou-se uma postura de negociação com assimilação de alguns costumes estrangeiros e distribuição de cargos para apoiadores do regime Tokugawa que aceitassem reverenciar o Imperador. Inúmeras reformas passaram a ser realizadas sob o lema da modernização para a garantia de um país forte. Em 1871, ano da Comuna de Paris, o governo Meiji elaborou o primeiro Código Civil japonês. Baseou-se no modelo francês e contratou um jurista deste país como consultor, Gustave Boissanade. Na primeira versão desse código civil, a mulher era tida como independente do poder do chefe da família; duramente criticado por não respeitar os costumes japoneses e não prever a subserviência da mulher, o código foi recusado e um novo, promulgado somente em 1898 (HANE, 1993, p. 9). No mesmo ano nasceu Kôtoku Denjirô, que desprezaria o Código Civil Meiji e suas proposições. Entre elas estavam: o fim das tradicionais classes da Era Tokugawa; obediência irrestrita ao pai de família; a esposa subjugada à autoridade de seu marido e, caso este não estivesse presente, a função deveria ser ocupada pelo primogênito, visto que “as esposas não podem tomar nenhuma medida legal”; o filho não poderia casar-se sem o consentimento do pai até os 30 anos, e uma filha só poderia casar após os 25 anos, sempre com a autorização do pai (HANE, 1993). O Código seria modificado, novamente

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em 1947, após a rendição do Japão, a ocupação estadunidense e a imposição de pressões diplomáticas. Kôtoku nasceu em uma família gâoshi, meio camponesa, meio guerreira, que almejava o reconhecimento social. Seu pai era conhecedor da farmacologia chinesa, mas não conseguiu enriquecer no novo regime e, como boa parte do povo japonês, viu-se diante da miséria. Novos livros, novas ideias e notícias sobre as práticas socialistas e anarquistas no ocidente começaram a circular entre os japoneses. Historiadores comumente travam embates para demarcar este período como o de nascimento dos anarquismos no Japão. Seguindo influências da Europa central, a entrada dos anarquismos seria semelhante à noção de modernização ocidental proporcionada pela Era Meiji, também conhecida como restauração, por devolver ao Imperador o governo da população. O Imperador retornou como ponto unificador dos xogunatos e símbolo de industrialização. Por isso, a era também ficou conhecida como a do fim do feudalismo japonês. O período também é nomeado de Meiji Ishin (novo avanço), termo adotado pelo russo Lev Metchnikoff, geógrafo anarquista e amigo de Bakunin, que se opôs à visão eurocêntrica que atribui ao protagonismo ocidental a modernização do Japão, ao situar as mudanças ocorridas derivadas da Era Tokugawa (KONISHI, 2013). Essa análise permanece atual diante de inúmeros estudos que pretendem identificar a abertura dos portos como o momento do desenvolvimento industrial do Japão. Metchnikoff destaca que o arquipélago não pode ser visto como uma simples cópia do ocidente ou um país moldado por ele. Antes de chegar ao Japão, o russo viajou pela Europa que recepcionava vários shishi, samurai que compactuaram com o novo regime, mesmo que anteriormente se posicionassem contrários, e que iam ao continente para estudar. Metchnikoff conheceu alguns deles e estabeleceu relações com Saigô Takamori (1828-1877), ex-samurai e um líder carismático na Era Meiji (KONISHI, 2013). Metchnikoff já se interessava pelo Japão e dedicou-se aos estudos da língua para se comunicar e realizar leituras sem a mediação de intérpretes. O interesse do russo levou-o a ser convidado por Saigô para lecionar em sua escola em Tóquio, a Shûgijuku, destinada a retomar os princípios norteadores dos samurai no final da Era Tokugawa e, concomitantemente, estudar o pensamento estrangeiro. Entretanto, quando o russo desembarcou no Japão, em 1874, Saigô havia renunciado por discordar da destituição dos samurai e se deslocado para o

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interior do arquipélago, fundando uma escola militar, que posteriormente seria fundamental na articulação de 40.000 samurai na tentativa de derrubar o governo Meiji7. Foi o fim do contato de Metchnikoff com Saigô. O geógrafo não se lamentou, acompanhou as notícias pelos jornais e aproveitou sua estadia no país para lecionar russo. Deu aulas muitas vezes para líderes do Movimento em Liberdade e Direitos Populares (Jiyû minkin undô), onde provavelmente também conheceu Nakae Chômin (1847-1901), futuro professor de Kôtoku (KONISHI, 2013). Nesse contato com o incipiente movimento liberal que se desenvolvia no Japão, Metchnikoff interessou-se pelas transformações pela qual passava o país e as possíveis aproximações ou contrastes, somadas às extensas descrições sobre a geografia, publicadas em Civilização e os grandes rios históricos (1889). Metchnikoff descreveu as transformações da Era Meiji (ou Meiji Ishin) como uma experiência conflituosa e multifacetada que levou ao fim das castas características da Era Tokugawa, mas arraigada em contradições sobre o que viria a ser o Japão. Acreditava que isso poderia desencadear outras relações que levassem a uma revolução, por ter articulado novos movimentos, como os de lutas por direitos, com os quais manteve maior contato. Assim, o Ishin seria um novo tipo de modernização, realizada a partir da abertura dos portos, que só se concretizaria com a ampliação da educação estatal, promovendo a disseminação dos ensinamentos do Kokutai; a repressão às rebeliões no campo e a emergência de outros movimentos. Assim, não houve uma ocidentalização completa, ou, em uma visão sectária, o rompimento com as relações feudais, mas uma modernização múltipla, que não pode ser colocada em uma linha evolutiva enquanto reprodução do ocidente, como afirma Metchnikoff. O anarquista francês e geógrafo Elisée Reclus (1830-1905) interessou-se pelo Japão ao tomar contato com as obras de Metchnikoff. Conheceram-se no retorno deste do arquipélago, enquanto passava pela França, em 1886, e realizaram campanhas contra a prisão de Piotr Kropotkin, que seria liberto quase quatro anos depois (KONISHI, 2013). Ao prefaciar a edição francesa de A civilização e os grandes rios históricos (1889) de Metchnikoff, Reclus recordou as investigações do amigo que tinha acabado de falecer e que lhe emprestara generosamente todas as suas anotações e documentos para que

7 Conhecida como a Rebelião de Satsuma, foi massacrada pelo governo Meiji e é tida como o último levante de samurai. Os guerreiros empunhados por suas espadas foram massacrados por cerca de 30.000 soldados japoneses com suas armas de fogo (Satsuma Rebellion. Disponível em: http://www.historynet.com/satsuma-rebellion-satsuma-clan-samurai-against-the-imperial-japanese- army.htm. Acesso em 10/06/2018).

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fossem usadas na escrita do tomo VII de Nouvelle Géographie Universelle (A nova geografia universal), lançado em 1876, mesmo ano do falecimento de Mikhail Bakunin. Este livro também contou com sugestões de Piotr Kropotkin8, no subtítulo “Ásia Oriental” (KONISHI, 2013). Reclus dedicou um capítulo ao Japão, salientou a geografia do território com atenção ao clima, aos terremotos e tufões: “A abundância de chuvas, a relativa moderação dos invernos e o calor úmido dos verões dão à flora do Japão uma extraordinária riqueza e vigor” (RECLUS, 1876, p. 739). Reclus ainda atentou para os vulcões, pois os admirava principalmente pela beleza e imprevisibilidade nas erupções, que podem tudo destruir. E da destruição, germinar a terra em novas existências. Nas obras de Reclus não é possível compreender a geografia apartada de pessoas, não há separação entre a terra e o homem. Descreve o Japão como: “um dos países mais curiosos da Terra por sua natureza, seus habitantes, sua história e especialmente pelos eventos que ocorrem lá. De todas as nações que vivem fora da Europa, do Novo Mundo e da Austrália, os japoneses são os únicos que aceitaram voluntariamente a civilização do Ocidente (...) são como discípulos voluntários” (RECLUS, 1876, p. 685). E destaca: “a posição geográfica do Japão dá uma particular importância a esta nova anexação. Situado no meio do caminho de São Francisco a Londres e Rússia pelo Oceano Pacífico, o reino do Sol Nascente (...) une o oriente ao ocidente, e pelo mar, comanda todos os caminhos que levam às ilhas da Malásia, à Austrália, à Indochina, aos países do Pacífico e do Oceano Índico. Além disso, sua população é considerável e trabalhadora o suficiente para assumir rapidamente um papel de grande importância na história do comércio. Muitos escritores já falam no Nippon como a Grã-Bretanha do Oriente” (RECLUS, 1876, p. 686). As proposições de Reclus articuladas às de Metchnikoff sinalizam para as transformações Japão. Não se trata de uma relação dominador-dominado marcada pela data da gloriosa chegada dos navios do Comodoro Perry a Edo, mas de um processo, no qual interessam as relações de forças. Sho Konishi em Anarchist Modernity (2013) retoma o conceito de Ishin, uma vez que estava interessado na cooperação entre os anarquistas russos e japoneses a partir da segunda metade do século XIX e início do XX. O autor defende que seria esse o momento em que as relações entre os anarquistas nos dois países estavam mais fortes. Baseado nas

8 Kropotkin também estabeleceu relações por Metchnikoff, que o abrigou após sua expulsão da Suíça em 1881.

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cartas disponíveis na Coleção de Praga de História Russa9, Konishi conseguiu traçar as relações entre os libertários e destacar, principalmente, suas interações durante a Guerra Russo-Japonesa. Como os anarquistas japoneses resistiram às relações de forças diante de uma devoção ao Xogum, transferida posteriormente para amor ao Imperador, somada à obediência ao Ocidente? Reclus não fez uma proposição eurocêntrica, mas a leitura do que consistiria um Estado e seus acordos. O anarquista ainda observou a glorificação do militarismo e o crescimento do país por meio da exploração de outros povos, como os da China e da Coreia. Destoa, portanto, de muitas leituras que indicaram o despontar militarista japonês somente com a Guerra Russo-Japonesa com a abertura das negociações com o Ocidente decorrido do comércio das armas de fogo e dos seus aprimoramentos. O Japão poderia: “enfrentar China, Coreia e até mesmo resistir à Rússia” (RECLUS, 1876, p. 855). Reclus apontou que uma das províncias de maior incentivo a armamentos era Hiroshima, um dos alvos das bombas nucleares de 1945, quando a província fora estrategicamente escolhida por ter se tornado uma potência na produção de armas e um centro de treinamento do exército. Hoje, condecorada pela ONU, também é conhecida como Cidade da Paz10.

viver na diferença: a Heimin Sha

Kôtoku não conseguia trabalhar no campo por conta de sua saúde debilitada e resolveu dedicar-se a estudos e leituras. Já aos 12 anos de idade, tomou parte no recém fundado Jiyûto (Partido Liberal), fundado em 1881, pertencente ao Movimento pela Liberdade e pelos Direitos do Povo (Jiyû Minkin Undô – JMU) onde editou o Kodomo Shinbun (Jornal das Crianças). O JMU era uma organização múltipla que abrigava principalmente liberais, mas também socialistas, com o intuito de realizar estudos sobre os novos conceitos e noções que chegavam com a abertura dos portos. Em 1887, aos 16 anos Kôtoku foi a Tóquio, um centro efervescente com as novas mudanças, para dar

9 Fundada em 1923 por imigrantes russos. Ao final da II Guerra Mundial foi tomada pela URSS, os documentos foram enviados à polícia secreta para aumentar o arquivo dos inimigos do Estado Soviético. 10 Ver: https://history.state.gov/milestones/1937-1945/potsdam-conf; https://history.state.gov/milestones/1937-1945/yalta-conf. Acesso em 10/06/2018.

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continuidade aos estudos. Entretanto, foi expulso com respaldo na Lei para a Preservação da Paz daquele ano, por pertencer ao Jiyûto (PELLETIER, 2015). Os camponeses continuavam a resistir ao governo que se solidificava. Em 1873, em Fukuoka, o preço do arroz não parava de subir. Por volta de 300.000 pessoas declaram insuportável o estado de miséria em que viviam. Elas incendiaram escolas, casas de proprietários de terras e de comerciantes, prédios estatais, postos telegráficos e qualquer outra construção que simbolizasse uma autoridade centralizada. As tropas do governo rapidamente foram chamadas para conter a revolta. Inúmeros camponeses foram assassinados e mais de 63.000 pessoas foram condenadas a castigos corporais (HANE, 1993). Em 1876, camponeses de quatro distritos centrais do Japão recusaram-se a pagar as taxas sobre o uso da terra. Em Mie, 10.000 camponeses protestaram e destruíram edifícios estatais. O movimento espalhou-se pela cidade e também foi esmagado. Aqueles identificados como líderes, foram julgados e condenados à morte ou à prisão perpétua. Mais de 50.000 pessoas foram multadas ou punidas fisicamente. O governo passou a temer que os samurai, que haviam perdido seu status na restauração Meiji, se aliassem aos camponeses. Assim, diminuíram o preço do imposto sobre a terra, o que pouco adiantou para o estado de pauperismo que os camponeses se encontravam (HANE, 1993). Depois de 1877, há registro de um menor número de rebeliões. No começo dos anos 1880, os preços dos grãos vendidos aos camponeses continuavam a cair e os impostos aumentavam sob a política econômica do Ministro das Finanças, . Em 1883, 33.845 famílias haviam falido e a cifra triplicou nos dois anos seguintes. Em 1885, 400.000 pessoas não tinham meios para garantir a sobrevivência. Muitos acabavam endividados na tentativa de conseguir manter suas terras. A terra que os camponeses haviam recebido lhes foi retirada, assim como até seu último sen11 foi sugado (HANE, 1993). Em 1884, foram registrados 80 confrontos entre camponeses devedores e policiais. A região de Kanto12, principal região de abertura ao ocidente, tornou-se um centro aglutinador de protestos e confrontos com a polícia, culminando na Revolta de

11 Sen foi instituído com o Ato da Nova Moeda em 1871, durante a Era Meiji. O sistema monetário passou a ser pautado em moedas sendo o sen 1/100 de iene, por sua vez, o rin era 1/100 de sen. Em 1954, o rin e o sen foram retirados de circulação. 12 Comumente refiro-me à região de Kanto, que cobre as prefeituras de Tóquio, Saitama, Chiba, Kanagawa, Gunma, Tochigi e Ibaraki; outra região referida é a de Kansai, composta pelas prefeituras de Mie, Nara, Osaka, Wakayama, Quioto, Hyôgo e Shiga. Vide mapa nas considerações iniciais.

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Chichibu. Os camponeses dessa região, localizada na prefeitura de Saitama, sofreram entre os anos de 1882 e 1883 com uma queda de 50% no preço das sementes, além das más colheitas no período. Foi neste momento que o Partido Liberal ganhou força ao levantar a bandeira da luta por direitos e, simultaneamente, saber agradar parcialmente o governo por criticar os líderes da revolta chamando-os de extremistas. Foi fundado o Partido das Pessoas Pobres de Chichibu. Repetiu-se o que acontecia nas revoltas camponesas. Somado ao roubo de armas, o número de insurgentes chegou a 8.000 pessoas. Quando o governo massacrou a revolta, 3.000 pessoas tinham sido capturadas. Algumas foram condenadas à morte e o destino de muitos foi a prisão. O partido liberal descendia dos shizoku e seus filiados acreditavam que um Partido das Pessoas Pobres era algo horrível e os camponeses ficaram abandonados à própria sorte. Somente depois da Revolução Russa de 1917, foi que os camponeses passaram a ser referenciados como dotados de “capacidade revolucionária”. No mais, eram tidos apenas como articuladores de uma rebelião desordenada que precisava ser contida. Quanto aos camponeses da região de Kanto (Tóquio e arredores), eles permaneceram em seu pauperismo. Aumentava o infanticídio e as vendas de meninas para os bordéis cresciam cada vez mais nas cidades. Em 1894, eclode a I Guerra Sino-Japonesa, sendo que nesse mesmo ano foi promulgada a Lei de Preservação de Segurança, que legalizava as perseguições aos trabalhadores, a censura à imprensa, a proibição de reuniões públicas, bem como o pronunciamento de discursos. Assim, os argumentos de Kôtoku foram pouco divulgados. Contrário à guerra, entendia que essa apenas produzia a fome e o dinheiro em cima do sangue (KÔTOKU, 1900). Ao encontrar com Nakae Chômi, também integrante do JMU, resolveu segui-lo, tornando-se seu discípulo. Nakae foi vital para Kôtoku, não tanto pelos ensinamentos liberais, mas pela insistência de que ele aprendesse inglês e chinês. Atendendo a esta recomendação, Kôtoku pôde exercer a profissão de jornalista e tecer inúmeras conexões com anarquistas pelo planeta. Nakae rebatizou Kôtoku, em 1893, chamando-o de Denjirô para Shûsui (秋水), ondas de outono, que na simbologia chinesa significa pureza. O nome também pode ser uma referência à estação de outono conhecida por sua melancolia, característica presente de Kôtoku. Nesse mesmo ano, passou a escrever para alguns jornais, chegando ao Yôrozu Chôhô (Novelas da manhã), o cotidiano com maior tiragem na capital (25.000 exemplares) (PELLETIER, 2015).

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Ao publicar um artigo sobre as desigualdades no Japão, foi convidado a tomar parte no grupo de pesquisa Shakaishugi kenkyû-kai (Sociedade de Estudos Socialistas)13 tornando-se integrante ativo (NOTEHELFER, 1971). Logo depois, veio o livro Imperialismo: o espectro do século XX (2008), cujas cópias mais antigas em japonês datam de 1968, quando do lançamento de Kôtoku Shûsui zenshû (Obras Completas de Kôtoku Shûsui), como afirma Christine Lévy (2002), e foi traduzido em 2008, para o francês e em 2009, para o inglês. Nessa obra ele busca identificar os perigos do Imperialismo. Entre eles estariam o patriotismo – um amor às fronteiras e combate a qualquer um que esteja fora delas; e o militarismo – provocador de usurpações para manutenção do exército e de inúmeras mortes, e fortalecedor do patriotismo (KÔTOKU, 2008). O livro é uma resposta à Guerra Sino-Japonesa (1894-1895) travada em torno da disputa pelo território da Coreia. O conflito é apresentado como um dos efeitos na incursão imperialista japonesa e sinaliza para os efeitos devastadores da presença das tropas nipônicas na Coreia. Para Kôtoku, Imperialismo, característica dos Estados, não passa de roubo e violência. “Pense nisso: para expandir seu poderio militar e satisfazer seus interesses, eles invadem os territórios à vontade, saqueiam a riqueza e os recursos dessas terras e ou massacram seu povo ou reduzem à servidão. E então eles proclamam orgulhosamente perante o mundo: ‘Estamos construindo um grande Império’. No entanto, qual a diferença entre a construção de um grande Império e o roubo e a pilhagem?” (KÔTOKU, 2009, p. 187). A crítica de Kôtoku também vislumbrava o que viria a acontecer, “o Imperialismo é apenas um nome dado a uma política baseada em um patriotismo desprezível e em um militarismo. As consequências previsíveis de tal política são declínio e destruição. A construção de um chamado Império não é baseada em qualquer necessidade real, mas simplesmente no livre reinado da ganância, não confere benefícios, mas resulta em desastre” (KÔTOKU, 2009, p. 202). Apesar de estar filiado às ideias socialistas, Kôtoku já explanava nessa obra o que é o Estado e as suas violências. Nesta perspectiva, Kôtoku abandonaria seu mestre, bem como as ideias confucionistas que até então também eram referências para o Império japonês. Em 1900, escreveu matérias sobre as condições de trabalho, e como o dinheiro é uma bactéria que mata em “Abolir o dinheiro!”, artigo de larga circulação. Atualmente, esse artigo é encontrado em sites anarquistas, situando o capitalismo não como um

13 Faziam parte também Abe Isso, Katayama Sen, Kaneko Kiichi, Murai Tomoyoshi, Sugiyama Shigeyoshi.

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sistema financeiro, mas como um gestor das relações. Nesse breve texto, Kôtoku vê no dinheiro o fim da sociedade. “Quando as bactérias entram na corrente sanguínea de uma pessoa, sua saúde gradualmente se deteriora. O mesmo acontece com o dinheiro, como as bactérias, tem poderes ilimitados no mundo, a forma como o mundo funciona, necessariamente, é destruída devido à sua influência. (...) No final, a sociedade está a caminho da destruição” (KÔTOKU, 1900). Ainda influenciado pelas leituras de Karl Marx e Friedrich Engels, Kôtoku entende o dinheiro a partir do fetichismo da mercadoria. O autor passou a se dedicar a este estudo, bem como ao desenvolvimento das forças produtivas, à revolução que se desenrolaria e à chegada do comunismo. Para instigar revolucionários, Kôtoku realizou a primeira tradução para o japonês do Manifesto do Partido Comunista em parceria com Sakai Tashihiko. Em 1900, a Lei de Segurança Pública, que era uma atualização da Lei de 1894, proscreveu o Partido Socialista14 e passou a considerar o sindicato como uma organização criminosa. As perseguições tornaram-se um entrave para os socialistas e anarquistas, restringindo cada vez mais a circulação dos livros e periódicos. Mesmo assim, Kôtoku não deixou de produzir. Instigado pelo socialismo, publicou Shakai shugi to Kokutai (Socialismo e Kokutai), em 1902. Nessa obra, questiona se o documento que delimita o que seria o corpo nacional japonês entraria em conflito com os pretextos socialistas. A conclusão é negativa visto que, imperadores japoneses, como Nintoku (313-399), que teria tentado fazer reformas em benefício das castas mais baixas – apesar dele não explicar como estas ocorreram nem o que seriam –, estariam de acordo com os pretextos socialistas e, seria possível uma composição do Kokutai com o socialismo. O socialista Kôtoku admitia a importância de uma educação para a subserviência aos moldes do Kokutai no caso de ocorrer uma revolução. Não haveria problemas entre os socialistas e o Estado japonês, as metas socialistas seriam as mesmas que as adotadas por um Imperador benevolente. Não estariam em confronto com os ideais da tradição japonesa. Para o autor, Kokutai seria a identidade do povo, como uma possibilidade de emancipação das próprias classes, ou seja, atrelava o Kokutai à teoria revolucionária marxista.

14 Segundo Pelletier (2015), o movimento socialista cresce a partir da organização dos sindicatos que possuem procedência nas experiências de Takano Fusatarô (1868-1904), filho de um alfaiate de Nagasaki que foi para os Estados Unidos onde entrou em contato com a Federação Americana do Trabalho.

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Entretanto, Kôtoku não teve problemas em encarar suas proposições e modificá- las diante da Guerra Russo Japonesa (1903-1905). Constatou que Estado e guerra são indissociáveis e que a paz é somente um momento de suspensão do confronto. No mesmo ano em que a guerra começou, Kôtoku, junto com Sakai Toshihiko fundaram a Heimin Sha (Sociedade Heimin15), um espaço para reunir socialistas, cristãos, liberais e anarquistas. Foi uma resultante das questões levantadas com a abertura dos portos, a rápida industrialização do país e uma tentativa de responder à guerra. Na Hemin Sha havia uma pequena biblioteca que reunia livros de Engels, Marx, Zola e Tolstói. Era um centro aberto de discussões em efervescência. A composição de seus integrantes mudava constantemente, muitos fundavam suas organizações ou associações a partir da experiência naquele espaço. Na Heimin Sha, durante a noite, funcionava a Sociedade para os Estudos do Socialismo (Shakaishigi kenkyûkai). Em uma dessas reuniões, apareceu um jovem chamado Heimin Shinbun e seus integrantes, Ôsugi Sakae, que rodeava os círculos cristãos e provavelmente, em janeiro de 1907. Fonte: http://terute3402.seesaa.net/category/233289 socialistas em uma tentativa de desvencilhar-se 26-4.html. Acesso em 10/06/2018. da educação militarista que recebera. Ôsugi não via muita diferença entre a Igreja e a Heimin Sha. Em sua primeira seção, escutou as palavras de Sakai: “nossas ideias (socialistas) estão se espalhando por todas as esquinas até o céu. Nosso movimento está se esforçando para tornar-se o maior do mundo. A sociedade que queremos não está tão longe” (SAKAI apud STANLEY, 1982, p. 36). A influência do cristianismo nos estudos da Heimin Sha levou Ôsugi Sakae, a afirmar: “No campo intelectual da época, o cristianismo era a força mais progressiva. Sendo incorporado em largas proporções por aqueles que se opunham às ideias correntes de lealdade e patriotismo” (ÔSUGI apud NOTEHELFER, 1971, p. 93). Entretanto,

15 Heimin (平民) é uma categoria que remontava a Era Tokugawa, pode ser traduzida como povo ou plebe. Não dizia respeito a modernização que ocorria no país. Entretanto, o tempo também está em oposição a kokumin (pessoas da nação), amplamente saudada durante a guerra. Heimin contraposicionava-se, enquanto pessoas que não estavam subjugadas à nação, ao Estado.

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Kôtoku, e mesmo Ôsugi, não eram adeptos do cristianismo, apesar de terem tido contato com esta religião, diferentemente de Ishikawa Sanshirô, com o qual Kôtoku teve inúmeros desentendimentos e ardorosos confrontos na Heimin Sha. Apesar disso, conviveram sem apelar para expulsões ou qualquer outro tipo de punição, entendendo que a discussão lhes seria favorável. Somaram-se a Kôtoku e Sakai na coordenação da Heimin Sha, Nishikawa Kôjirô e Ishikawa Sanshirô. O primeiro também era cristão, e se afastaria da Igreja ao conhecer Katayama Sen – futuro adepto do stalinismo, parlamentarista e fundador do Partido Comunista do Japão (PCJ); Ishikawa, posteriormente, romperia com a Heimin Sha para dedicar-se somente ao cristianismo. Também na Heimin Sha seria impresso o Heimin Shinbun (Jornal Heimin), periódico que articulou anarquistas e socialistas. A primeira impressão data de 15 de novembro de 1903. Rapidamente foi censurado pelo governo japonês, que retirava seus números das bancas de jornal. As pressões seriam intensificadas com o anúncio da tradução do Manifesto do Partido Comunista. Muitos socialistas passaram pelo cristianismo e seguiam o catolicismo como uma forma de recusa à idolatria ao Imperador. A influência cristã no Japão data do século XVI com investidas de portugueses, espanhóis e italianos da congregação Companhia de Jesus (jesuítas). Congregações foram construídas entre os camponeses, que recepcionaram também franciscanos e dominicanos. Entretanto, o cristianismo passou a ser perseguido pelo xogunato no sentido de ser uma imagem do ocidente que destruiria o Japão e profanaria o Imperador16. Durante a revolta camponesa de Shimabara (1637-1638) 17 foi decretada a clandestinidade do cristianismo. A perseguição aos seus seguidores já ocorria desde eventos como Os 26 Mártires do Japão18, como ficou posteriormente conhecido. A morte de inúmeros rebeldes em Shimabara promoveu a adoção de uma política de repovoamento pelo governo Tokugawa para diminuir o impacto na queda na produção dos alimentos.

16 Esse período é tratado no filme O silêncio (2016), de Martin Scorsese. A partir da obra homônima de Shusaku Endo, o diretor apresente a chegada de jesuítas portugueses no Japão durante o século XVII e as perseguições, torturas e assassinatos desses e seus seguidores pelas forças do Xogun. 17 Ocorreu por conta do aumento de impostos no clã Matsukura, quando 27 mil camponeses se rebelaram. 125000 homens das forças do xogunato foram necessários para garantir a vitória. Em seguida, Amakusa Shiro, identificado como o líder, foi decaptado e acirrou-se cada vez mais a perseguição aos cristãos. 18 Grupo de cristãos crucificados e perfurados com lanças em Nagasaki a mando de Toyotomi Hideyoshi, sendo 20 japoneses, 4 espanhóis, 1 mexicano e 1 português. Em 1632, outros 55 católicos seriam supliciados na mesma cidade. Estima-se que 300.000 cristãos foram mortos no século XVI no Japão.

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Com essa política, o contingente populacional cresceu entre 3 e 4 vezes nos anos de 1691 a 1856. Entretanto, como vimos, a estagnação das condições de vida dos camponeses levou à comercialização de inúmeras crianças nos bordeis. Na miséria e sob a influência cristã, o aborto era praticamente ausente e o infanticídio era corriqueiro em inúmeros povoados japoneses da época (HANE, 1982). Os integrantes da Igreja Católica passaram a ser conhecidos como kakure kirishitan (cristão escondido) por darem continuidade aos cultos em esconderijos, disfarçando imagens católicas em figuras semelhantes a budistas e fugindo dos xoguns. A caçada aos cristãos diminuiria somente no final da Era Tokugawa, com a assimilação dos estrangeiros. A presença e a perseguição do catolicismo tornaram seus adeptos representantes de demandas camponesas. Com abertura dos portos, os kakure kirishitan encabeçaram discussões como a da reforma agrária. Distribuíam seus panfletos pelas cidades, opondo- se à religião oficial do Imperador. Na efervescência das discussões, no começo do século XX, Kôtoku, influenciado por Tolstói, entendia o cristianismo como uma religião de escravos que se articulava a um moralismo procedente do confucionismo. Dedicou parte de seus escritos a mostrar como o cristianismo não era uma resistência ao Imperador ou ao sistema japonês, mas como poderia ser a perpetuação da subserviência, mesmo que tenha provocado a ira dos governantes nos séculos anteriores. Antes de morrer, escreveria na prisão a obra Da supressão de Cristo (PELLETIER, 2015). Sua crítica identificava as transformações na Era Meiji como resultado de certa influência do cristianismo, que não se restringia ao catolicismo. O contato de Kôtoku com o cristianismo se deu por intermédio de protestantes estadunidenses que passaram a circular pelos portos. Em oposição, Kôtoku entendia que o socialismo combatia qualquer religião, posto que todas elas serviam para sustentar o próprio governo. Ele não se encantou pelo discurso do cristianismo reformulado pelos socialistas. Em 1907, enviou carta a Albert Johnson, seu amigo estadunidense, publicada no mesmo ano na revista Mother Earth, editada por Emma Goldman nos EUA: “O fato mais cômico dos resultados da guerra tardia é a conciliação (ou melhor, o abraço) do cristianismo com o budismo e o xintoísmo. A história do cristianismo no Japão era uma história de perseguições horríveis. Os diplomatas japoneses, no entanto, desejando silenciar os rumores espalhados pela Europa durante a guerra de que o ‘Japão é um perigo amarelo’ ou o ‘Japão é um país pagão’, começaram a vestir a máscara da civilização ocidental ansiando serem bem- vindos como meio de introduzir o Japão nos poderes europeus e estadunidenses como

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uma cristandade civilizada. Por outro lado, os sacerdotes cristãos, aproveitando a fraqueza do governo, obtiveram uma grande ajuda financeira do Estado e, sob sua proteção, estão propagando em pleno vigor o Evangelho do Patriotismo. Assim, o cristianismo japonês, que era antes da guerra, a religião dos pobres, literalmente agora mudou em apenas dois anos para uma grande religião burguesa e uma máquina do Estado e do militarismo!” (KÔTOKU, 1907 in Mother Earth, vol. 6, n. 7). Kôtoku admirava Tolstói e entendia que esse não fazia do cristianismo um caminho para a sociedade do futuro, como apregoavam alguns. Muitas vezes, o citava em suas discussões com os socialistas cristãos japoneses para enfrentar a tentativa de tomada da direção dos trabalhadores. Gustavo Ramus (2011), ao mostrar como Liev Tolstói, precursor do anarquismo cristão, influenciou a literatura social no Brasil entre os anos de 1890 a 1938, apresenta o anarquista como crítico da Igreja Ortodoxa, com posições contrárias ao Estado, à propriedade, além de antimilitarista e antinacionalista. Tolstói entendia a insubmissão como uma resistência que promoveria um estilo de vida sem vassalagem e servidão entre as pessoas: “o cristianismo primitivo negava a ordem estabelecida pelo Estado sem querer tomar para si o aparelho governamental. Este cristianismo se aproxima do anarquismo pela contestação ao reino dos homens e pela ideia de irmandade e fraternidade desdobrando-se em solidariedade e ajuda mútua” (RAMUS, 2011, p. 8). De maneira distinta, os socialistas cristãos no Japão pretendiam apresentar como o caminho de Deus, o caminho do socialismo. Renovava-se a manutenção da obediência irrestrita. Para os socialistas cristãos japoneses, ela se manifestava na forma de obediência aos preceitos da revolução. Tolstói, um dos escritores mais lidos no Japão, ficou conhecido por sua literatura, mais do que por ser anarquista. Todas as suas obras foram traduzidas para o japonês e foram reeditadas inúmeras vezes, sendo tanto o pensador cristão mais conhecido no país quanto o russo mais lido fora de seu país natal. Para Konishi (2013), embora o tolstoianismo tenha sido excomungado da Igreja Ortodoxa Russa e se pautado em uma crítica ao cristianismo do final do século XIX, no Japão ele tem origem na Igreja Ortodoxa.

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As obras anarquistas de Tolstói foram definidas por Konishi Matsutarô, decano no Seminário Ortodoxo19 em Tóquio, como a expressão de uma religião moderna do ocidente, de ideias novas. Konishi, posteriormente considerado um herege, estudou as obras de Tolstói como meio de recusa à autoridade centralizada da Igreja. As traduções de Konishi Matsutarô e outros integrantes da Igreja Ortodoxa do Japão fundiram-se com as versões da Escola de Línguas Estrangeiras de Tóquio. Essa instituição de ensino foi criada por Mechnikov e russos exilados, estabelecendo outras relações com a Europa ocidental que não as do cristianismo. Mas, por terem experimentado de alguma maneira o cristianismo, como foi o caso de Kôtoku, essa abordagem de Konishi pode ser considerada uma das procedências do interesse de muitos que viriam a se chamar anarquistas no Japão. O grupo de Konishi e Mechnikov opunha-se à promoção de líderes religiosos que misturavam cristianismo com nacionalismo, como fazia Niijima Jô (1843–1890), fundador da Universidade Dôshisha Cristã em Quioto. Niijima Jô estudou nos Estados Unidos durante a abertura, no final da Era Tokugawa. Entendia o cristianismo como uma força para modernizar e civilizar o Japão nos moldes europeus, de dentro para fora. Mudança nos costumes para a constituição de um rebanho que fosse orientado pelos preceitos cristãos. Enquanto isso, as narrativas como as de Tolstói foram desconsideradas por tangenciarem a temática cristã (KONISHI, 2013). A influência do libertário russo desmonta a leitura simplista de que o cristianismo europeu ocidental, principalmente o propagado pela congregação jesuíta, teria sido a principal força nas lutas contra o sistema Meiji. As conversões à religião despontavam nas críticas ao cristianismo: a religião anarquista proposta por Konishi era uma atitude que pretendia desafiar a Igreja, apesar de se constituir como uma religião. Assim, o herege Konishi Matsutarô abandonou o cristianismo ortodoxo ao propor o pensamento de Tolstói como uma arma aos preceitos do Kokutai. Em seus textos, Konishi deixava de usar a palavra Deus para evitar o autoritarismo que o termo carrega. Substituía-o por caminho, acreditando que a religião poderia levar a um outro desenvolvimento dos homens contra as explorações. Konishi rompeu com a Igreja Ortodoxa e passou a ser alvo de seu ex-mentor Nikolai, por ele chamado de cachorro louco que vociferava contra a Rússia e a Igreja.

19 Fundado pelo padre russo Nikolai (Ivan Dmitrievich Kasatkin) (1836–1912) no começo da década de 1870.

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Nikolai estendeu tal crítica a Tolstói (KONISHI, 2013, p. 116). Mesmo assim, Konishi era um homem religioso, transfigurando a ideia de shûkyô (religião ocidental) e propondo a conversão de todos à religião anarquista (shûkyôteki anâkizumu) ou a religião tolstoiana (Torusutoi no shûkyô). A grandiloquência de Konishi instigou e incentivou críticas à Igreja, aumentando a circulação das obras de Tolstói nos meios anarquistas e socialistas. A divulgação aumentava com a vinda daqueles que escapavam da Sibéria carregando obras censuradas de Tolstói desde o solo russo (KONISHI, 2013). As obras de Tolstói ganhariam mais vitalidade na época da Guerra Russo- Japonesa, quando ele escreveu “Pensem em vocês mesmos” (“Bethink yourselves”), em setembro de 1904, reproduzido integralmente no Heimin Shinbun. Repudiava a autoridade da Igreja e do Estado, bem como as construções morais do pai, da nação e da monarquia que estavam em voga durante o conflito. Ainda mostrava como os japoneses e os russos não eram diferentes, pois ambos estavam sofrendo com uma guerra perpetrada pelos Estados, sacramentada pela religião e produtora de inúmeros sofrimentos: “o mesmo está acontecendo no Japão. Os japoneses ignorantes assassinam com um fervor ainda maior devido a suas vitórias; o Mikado também revisa e recompensa suas tropas; vários generais vangloriam-se de sua bravura imaginando que, tendo aprendido a matar, adquiriram iluminação. Então, também gemem os infortunados trabalhadores que se despedaçam no trabalho para suas famílias. Também os jornalistas mentem e se alegram com seus ganhos. Provavelmente, também, – onde o assassinato é elevado como uma virtude e onde todo vício deve prosperar, – todo tipo de comandante e de especulador ganham dinheiro; e os teólogos e professores religiosos japoneses, não menos que os mestres das técnicas de armamentos, não ficam atrás dos europeus em técnicas de engano e sacrilégio religioso, mas distorcem os grandes ensinamentos de Buda, não somente permitindo, mas justificando o assassinato” (TOLSTOI, 1904, p. 50). A obra traduzida e editada com uma tiragem de 800 cópias pelo Heimin Shinbun esgotou rapidamente, sendo reimpressa posteriormente. Não é possível estimar o número de pessoas que tiveram contato com a obra porque havia cópias feitas à mão que circulavam (KONISHI, 2013). Alguns dias após o texto de Tolstói, publicaram o breve escrito “Ao proletariado russo”, de Vladmir Lênin (1870-1924), que também buscava promover a solidariedade entre os soldados russos e japoneses e seus líderes revolucionários para combater o capital internacional. Enquanto Lênin convocava os

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líderes, Tolstói analisava a sociedade e como a própria religião sustentava as guerras e a política. O artigo de Tolstói foi amplamente debatido nas edições seguintes do Heimin Shinbun. Kôtoku, ainda socialista, afirmava: “quando nós, socialistas, apresentamos nossos argumentos contra a guerra, a solução e os objetivos que propomos não são vagos e obscuros. Possuímos uma lógica clara e um plano concreto. De acordo com o nosso ponto de vista, o presente conflito internacional não é apenas resultado dos homens abandonarem os ensinamentos de Jesus, como Tolstoi sustenta, mas é do resultado da competição econômica que existe entre os poderes. A razão para essa competição extrema pode ser encontrada no fato da organização social moderna ser baseada no sistema capitalista dos extremos de competição econômica que existem entre os poderes. Além disso, a razão para essa competição extrema pode ser encontrada no fato de que a organização social moderna é baseada no sistema capitalista. Se alguém quiser eliminar a guerra e seus danos, é preciso destruir o sistema capitalista de hoje e substituí-lo por um sistema socialista... Tolstoi atribui a causa da guerra à degradação do homem e, consequentemente, deseja salvá-la por meio do arrependimento. Os socialistas atribuem a causa da guerra à competição econômica e, consequentemente, procuram impedir a guerra abolindo a concorrência econômica” (KÔTOKU apud NOTEHELFER, 1971, p. 104). A guerra estreitava as relações entre anarquistas e socialistas na Rússia e Japão. No verão de 1904, Kôtoku publicou no Heimin Shinbun um apelo anti-guerra em inglês20 para todos os socialistas: “queridos camaradas! Seu governo e o nosso governo começaram uma briga para satisfazer seus desejos imperialistas, mas para os socialistas não existe barreira de raça, território ou nacionalidade” (KÔTOKU apud NOTEHELFER, 1971, p. 104). Alguns dias antes da eclosão da Revolução de 22 de janeiro de 1905, o Heimin Shinbun estampou a charge de dois camponeses de mãos dadas enquanto militares pisam sobre suas cabeças. Cada camponês estava em um país, separados apenas pelo atual mar do Japão. Os soldados pouco se diferem em seus trajes ocidentais, por sua vez, os trabalhadores estão com roupas de camponês. No lado japonês é possível ler a inscrição

20 A seção em inglês do Heimin Shinbun crescia com a guerra, facilitando a circulação do jornal pela Europa, com a reprodução dos textos em outros periódicos.

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“Partido Socialista” na vestimenta, embora este não havia sido fundado até aquele momento.

Sem autor. Heimin Shinbun, 17 de janeiro de 1904.

A conexão entre revolucionários na Rússia e no Japão estreitava-se cada vez mais. Escritos que iam de Kropotkin a movimentos russos mais liberais contra a guerra figuravam nas páginas do Heimin Shinbun. Com a declaração da Guerra, Kôtoku também escreveu um apelo para os socialistas russos, que foi publicado no Heimin Shinbun. Enquanto isso, Katayama, o delegado japonês participante do encontro da Internacional Socialista em Amsterdã em 1904, e o líder russo Georgi Plekhanov deram as mãos em um gesto de união entre os socialistas no combate à guerra. O conflito também marcou o rompimento definitivo de Kôtoku com Nakae Chômin. Este apoiava a guerra na crença de que a miséria aumentaria produzindo maior contestação e um levante revolucionário com o apoio dos exércitos russo e japonês. Para Kôtoku, isso era impossível, e o combate à guerra era urgente, sem ficar a espera ou crer que algo além de mortes poderia ocorrer. As publicações de informes contra a guerra não ocorriam somente na Heimin Sha. O monge Sôto Zen Uchiyama Gudô imprimia clandestinamente textos anarquistas no templo de Risenji, localizado nas montanhas de Hakone, próximo ao Monte Fuji e Tóquio. Escrevia para o Heimin Shinbun, revoltando-se contra o militarismo, o Estado e

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a exploração dos camponeses. Entre os textos impressos, estavam “Museifushugi dôtoku hininron” (“Anarquismo e a repulsa à moral”), escrito pelo anarquista editor da revista Freedom, Max Baginski (1864-1943) e publicado em inglês na revista Mother Earth, organizada por Emma Goldman, nos EUA. Uchiyama realizou algumas adaptações nesse texto e acrescentou algumas citações de Pierre Joseph Proudhon para destacar a repulsa anarquista à propriedade, ao Estado e suas instituições. Um dos panfletos impressos ali foi “Museifu kyôsan kakumei: nyûgoku kinen” (“Revolução anarco-comunista: em solidariedade aos presos”), de autoria de Uchiyama, escrito após o Incidente da Bandeira Vermelha (Akahata Jiken) de 22 de junho de 1908, quando anarquistas tomaram as ruas de Tóquio em comemoração à libertação de seus companheiros. Agitavam bandeiras vermelhas e negras e gritavam museifu (anarquia), museifu kyôsan (anarco-comunismo) e kakumei (revolução) (KOMATSU, 1972). Uchiyama uniu os três termos e compôs o “Museifu kyôsan kakumei: nyûgoku kinen” com tiragem superior a 2000 exemplares, que foram enviados aos assinantes do Heimin Shinbun. Uchiyama não pretendia uma síntese dos termos que compunham o título, mas dar um basta à guerra e ao governo. O escrito foi censurado por muitos que a ele tiveram acesso. Alguns foram queimados e outros enviados à polícia. Quando em 1910, Uchiyama foi ao tribunal junto com outros anarquistas, inclusive com Kôtoku, o texto foi descrito como o mais perigoso de toda a história do Japão (RAMBELLI, 2013). “A guerra acontece porque existem esses ladrões chamados imperadores e governadores. A guerra não é uma briga entre um governo e outro? Resume-se a isso: ladrões brigando entre si, o povo sofrendo. Se destruirmos o roubo chamado governo, a guerra desaparece. Se não existir mais guerra, então não há necessidade de enviar seus filhos para o exército. É isso, é simples. (...) Nada pode ser realizado sem sacrifício. Se você quer se juntar a nós, pela sede da justiça, vamos nos unir e colocar nossa vida em risco! (...) Eu espero que essa mensagem alcance inúmeras pessoas quanto puder, pessoas que não terão receio em jogar uma dinamite” (UCHIYAMA, 2013, pp. 50-1). Sem esquecer de todos aqueles que estavam presos desde o Incidente21, Uchiyama os homenageou e solicitou às pessoas que enviassem cartas ou postais aos camaradas,

21 Ôsugi Sakae (condenado a dois anos e meio), Arahata Kanson, Satô Satori, Momose Susumi, Utsunomiyya Takuji, Morioka Eiji (dois anos), Sakai Toshihiko (dois anos), Muraki Gejirô, Ôsuga Sato, Yamakawa Hitoshi (dois anos), Ogure Rei e Tokunaga Yasunosuke. Para Notehelfer (1971), o Incidente das Bandeiras Vermelhas foi o ponto de partida para a perseguição aos anarquistas e socialistas. Os encontros passaram a ser vigiados por policiais, e as palavras greve, organização trabalhista, boicote,

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para tornar a prisão menos terrível. “Eu imprimo esse panfleto para lembrar a prisão de Ôsugi Sakae, Arahata Kanson, Satô Satori, Momomose Susumi, Utsunomiya Takuji, Morioka Eiji, Sakai Toshihiko, Muraki Genjirô, Ôsuga Sato, Tamakawa Hitoshi, Ogure Rei e Tokunaga Tosunosuke. (...) Aqueles de vocês, depois de ler, que entenderem que a revolução vindoura é anarco-comunista, por favor, enviem cartas pra os camaradas na prisão. É o único consolo para eles” (IDEM, p. 51). O escrito de Uchiyama não dissociava a revolução da atenção a seus amigos encarcerados, sinalizava para a solidariedade que ganharia força nos anos seguintes. Como monge, Uchiyama negou o karma presente no budismo, entendido como uma punição por erros das vidas passadas. Essa crença justificava a posição subalterna de um camponês e previa a sua reverência ao Imperador pela ascendência divina. “Camponeses, vocês que produzem a comida... todo final de ano há escassez para vocês. Que má sorte é essa? Isso é por conta do que o budismo chama de pagar pelas vidas passadas? Mas, se hoje, em nosso mundo no século 20, vocês ainda estão sendo enganados por esse tipo de superstição, vocês realmente irão terminar como vacas e cavalos” (IBIDEM, p. XXI). Seu pequeno e perigoso texto, “Museifu Kyôsan Kakumei” (“Revolução Anarco- Comunista”), não era rebuscado e sim redigido com palavras de fácil compreensão. Seu alvo principal eram os camponeses. Exausto de acompanhar a servidão e o massacre no campo, Uchiyama queria sacudi-los. “Entretanto, quando vocês reclamam, por todo o ano, que vocês não têm o suficiente, isto não é porque, certamente, vocês se permitiram luxúrias. Vocês não compram um novo kimono22 só porque é ano novo ou O-bon23; no nosso mundo civilizado do século XX, a arquitetura tecnológica fez muitos avanços, mas a despeito disso, suas casas não mudaram; de fato, suas casas são exatamente iguais como era 500 ou 1000 anos atrás. Mas isto é pouco óbvio. A fim de comprar um kimono, você tem que dar dinheiro para o comerciante; para a casa, você tem que pagar os carpinteiros. Mas, pessoal, infelizmente, vocês não têm esse dinheiro. É por isso que seus kimonos estão sempre trapos e suas casas como tocas de animais” (IBIDEM, pp. 45-46). Uchiyama salientava que o pauperismo não podia ser explicado por qualquer preceito budista, ou qualquer superstição. Os ensinamentos do Kokutai precisavam ser

socialismo e revolução eram proibidas. E as palavras anarquia, anarco-comunismo e greve geral eram tidas como uma maldição. 22 Vestimenta tradicional japonesa, semelhante a um roupão longo, mas pode variar em cortes, tamanhos e formato. 23 Dia de Finados, comemorado em 15 de julho.

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combatidos, bem como a educação para obediência. O monge alertava que isso servia somente para transformar os camponeses em uma massa obediente e covarde. Para interromper tal educação, era preciso desnaturalizar a subserviência: “Agora, quais são essas superstições que os professores da escola lhes ensinaram? A superstição é uma ideia tornada preciosa como algo sagrado. (...) Deixe-me dizer o que são essas ideias erradas, essas superstições: • Você recebe graciosamente a chance de cultivar os campos do proprietário de terra, você deve pagar o aluguel a ele, demonstrando a sua gratidão; • Porque existe governo, os camponeses podem trabalhar em paz. Você deve pagar as taxas para mostrar a gratidão por isso; • Se nosso país não tem armamento, os camponeses serão mortos por estrangeiros. Por isso, você deve enviar seu garoto forte e jovem para o exército. É isto. Porque essas três ideias entraram profundamente na sua mente, você não protesta contra o pagamento para o arrendamento da terra, taxas ou enviar seus filhos ao exército, não há problema no quão pobre você é” (IBIDEM, p. 48). Mas romper com essa atitude servil não deveria ser por meio parlamentares ou da política. Para Uchiyama cabia a um anarquista acelerar o processo de mudança por meio da ação direta. Adepto da propaganda pela ação entendia que uma resposta à violência do Estado com ataques terroristas seria uma revolução em andamento. “Não existe nada mais violento que o governo – qualquer governo. Esse usa armas para oprimir as pessoas e rouba nosso dinheiro em impostos. Os monges são inúteis para frear essa violência. Se hoje os monges estão preocupados em criar um paraíso, eles devem primeiro derrubar o governo. A mão que segura o juzu (rosário budista) deve sempre segurar uma bomba” (IBIDEM, p. 24). Uchiyama articulava o zen budismo ao anarco-comunismo. Entretanto, não cunhou sua prática como anarcozenbudista ou anarcobudismo como registrou Gary Snyder no ensaio “Budismo anarquista” (1961), revisado posteriormente (1969). Na última versão, a palavra anarquia é suprimida do título e Snyder traça as distinções entre um anarquismo pacifista e outro violento embasado no anarcoterrorismo europeu no final do século XIX. Acaba por dedicar-se principalmente à descrição de algumas vertentes do budismo. Snyder entendia que anarquia e budismo se encontram em uma certa recusa do “mundo judaico-capitalista-cristão-marxista”. Assim, para o autor, é possível uma prática anarcobudista, por meio do protesto, do pacifismo, da pobreza voluntária e do uso

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comedido de certa violência contra algo específico. Snyder não elabora longamente o que seria um budismo anarquista, mas sugere que se trata de uma série de ações que extrapolam a prática meditativa. Entretanto, se o budismo remonta a confrontos no Japão, como visto anteriormente, Uchiyama Gudô não tentou criar uma outra vertente dos anarquismos ou um templo para libertários como fizeram os cristãos com a Igreja Anarquista. Tampouco era adepto do pacifismo, comumente associado ao zen budismo acoplado à paciência. Uchiyama não era paciente. Declarava a urgência em executar o Imperador e detonar com os governos, os produtores da violência. Voltou-se contra preceitos budistas de justificativa da servidão; e à prática meditativa articulou a anarquia, como uma série de outros libertários que transformaram seus trabalhos em terreno fértil de práticas anarquistas. *** Em fevereiro de 1905, Kôtoku foi preso por infringir as leis de publicação promulgadas em 1875. Passaria seis meses na prisão de Sugamo. Nesse período dedicou- se à leitura das obras de Piotr Kropotkin. Os livros de Kropotkin já circulavam pelo Japão desde 1904, quando Nishikawa Kôjirô e Ketsumi Kesson traduziram alguns textos para o Heimin Shinbun. A experiência na prisão fez de Kôtoku um anarquista. Em carta a seu amigo Albert Johnson, reproduzida na revista anarquista japonesa Radical (n. 6, 1975), declarou: “Cinco meses de prisão e um pouco enfraquecido pela saúde (sofreu diarreia crônica que evoluiu para gastrite nos dias anteriores), mas isto me deu muitas lições sobre as questões sociais. Eu tenho visto e estudado um grande número dos chamados “criminosos” e me convenci de que as instituições governamentais... judiciais, a lei, a prisão ... são responsáveis por eles... pobreza e crime. [...] Na verdade, eu tinha ido (para a prisão Sugamo) como um socialista marxista e voltei como um anarquista radical. Para propagar o anarquismo nesse país, no entanto, significa a morte de uma vida longa, pelo menos vários anos de prisão. Por isso o seu movimento deve ser inteiramente secreto, e seu progresso e sucesso precisam de muita, muita persistência” (KÔTOKU, 1975, p. 10). A prisão é uma constante na vida dos anarquistas. Muitos escreveram ali suas memórias. Ôsugi Sakae, em uma de suas passagens pela prisão, entrou em contato com escritores anarquistas, dedicou-se ao estudo de outras línguas e entendeu aquele momento como decisório na afirmação da anarquia. Quando liberto e com a saúde frágil, Kôtoku foi para a Califórnia ao encontro de seu amigo e o Heimin Shinbun foi suspenso pela Lei

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de Preservação da Paz de 1905. Pouco tempo depois, a Heimin Sha voltou-se integralmente às discussões acerca de socialistas cristãos e não cristãos; devido às perseguições do governo, a associação também foi dissolvida. Em carta a Johnson, Kôtoku informou: “Querido Camarada Nosso semanário continua suspenso, nosso escritório foi impelido à dissolução por conta de bárbaras perseguições e por problemas financeiros. Agora, estou pensando em organizar uma associação de trabalhadores japonesas na América” (KÔTOKU, 1975, p. 15). Em sua viagem pelos EUA, Kôtoku manteve contato com alguns anarquistas, como Albert Johnson, e interessou-se pelas atividades da IWW (Industrial Workers of the World – Trabalhadores Industriais do Mundo). Retornou ao Japão, em 25 de junho de 1906, com a convicção de que tinha que propagar duas táticas no sindicalismo: a ação direta (chokusetsu kôdô) e a greve geral (zenesuto). Uma das casas na qual Kôtoku ficou foi a da Senhora Fritz24. Uma mulher simpática que ao saber da vinda de um anarquista decorou seu quarto com uma foto de Bakunin e outra de Kropotkin. Quando soube do interesse de Kôtoku pelo último e de sua intenção de traduzir para japonês A conquista do pão, pediu que escrevesse uma carta que daria um jeito de enviar ao russo. A Senhora Fritz conseguiu, e meses depois, Kropotkin enviou-lhe uma resposta, posteriormente publicada na revista Hikari (Luz), em 25 de novembro de 1906 (CRUMP. 1993). “Caro Senhor Kôtoku, Bromley, Inglaterra, 25 de setembro de 1906, A Senhora Fritz encaminhou sua carta para mim e também informou que você ficou com eles em São Francisco. Mostrei sua carta a vários companheiros e, quando viram que no Japão também se iniciou uma propaganda libertária, não preciso lhe dizer o quanto estavam encantados e felizes. (...) Você me pediu a permissão para traduzir meus escritos e me dá grande prazer atribuir essa permissão a você. Se você precisar de algum dos meus trabalhos, eu ficaria muito feliz em enviar o que você precisar.

24 Não se sabe ao certo quem foi a Senhora Fritz, ou mesmo se era um pseudônimo. Nas biografias de Kôtoku é somente referida por este nome e sem qualquer outra informação sobre seu paradeiro.

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Fraternalmente, P. Kropotkin” (apud CRUMP, 1993, pp. 23-24). No retorno ao Japão, Kôtoku deparou-se com a dissolução da Heimin Sha. Em fevereiro de 1906, fundaram o Partido Socialista Japonês (PSJ – Nihon Shakaitô), que se preparava para a candidatura ao parlamento. O Heimin Shinbun foi reativado enquanto Kôtoku esteve fora e abrigava de socialistas a sociais-democratas. Entretanto, tanto o PSJ como o Heimin Shinbun foram fechados sob as ordens do governo, em 22 de fevereiro de 1907. Em carta a seu amigo Johnson contou sobre as dificuldades financeiras em reabrir o Heimin Shinbun e relatou sobre um jovem anarquista que se tornara seu amigo. “Minha companheira foi esta manhã à corte para acompanhar o julgamento do camarada Ôsugi Sakae. O camarada Ôsugi é um jovem estudante e o meu melhor amigo” (1975, p. 17) Na ocasião, Ôsugi fora preso por infligir a lei de imprensa ao lançar o periódico Hikari, já que o Heimin Shinbun estava suspenso. No novo periódico, traduziu um artigo do francês chamado “Aos recrutas”, cujo objetivo era provocar a deserção (KÔTOKU, 1975). Kôtoku contava ao amigo a aflição em saber qual pena o jovem pegaria, torcendo para que fosse a menor possível. No retorno de Kôtoku ao Japão, seus amigos o esperavam em Tóquio ansiosos e com um convite para que ele entrasse no Partido Socialista25. Atravessado também pelas revoltas camponesas de Ashio 26 , Kôtoku publicou um dos artigos mais lidos por anarquistas no Japão: “Eu mudei minha opinião” (1906) que marcou a retomada do Heimin Shinbun: “o que a classe trabalhadora precisa não é a conquista do poder político (...) não precisamos de leis (...). O que queremos é realizar uma verdadeira revolução social (...), devemos concentrar todos os nossos esforços não no poder parlamentar, mas no desenvolvimento da solidariedade dos trabalhadores. Em suma: a última coisa que os trabalhadores devem fazer é confiar em votos e em deputados” (KÔTOKU, 1906). Kôtoku passou a divulgar no Japão as resoluções adotadas pelo congresso anarquista internacional que ocorreram em Amsterdã, em outubro de 1907. Em novembro daquele ano, no dia do aniversário do Imperador, uma carta foi colada na porta do

25 O mesmo viria a acontecer no Brasil com Edgard Leuenroth, adepto do anarcossindicalismo. Ele e outros anarquistas se recusaram a se filiar, em 1922, ao Partido Comunista, que foi fundado majoritariamente por anarquistas empolgados com a Revolução Russa de 1917. 26 Em 4 de fevereiro de 1906, 3.600 camponeses atacaram a mina de carvão de Ashio por poluir a área, destruindo os equipamentos. O confronto foi reprimido pela cavalaria (ANARKOWIC, 2002).

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consulado japonês na Califórnia, EUA. “Nenhum de nós é amante da violência, mas quando a violência é usada para nos suprimir, então nós devemos responder com violência. Além disso, nós devemos resistir à ordem atual derramando nossas últimas gotas de sangue em oposição ao Imperador. Nós devemos desistir dos nossos lentos e ineficientes métodos de conversar e manifestar e temos que nos voltar ao assassinato, dispostos a matar sem veneração a uma hierarquia ou status a qualquer um que nos espia ou reprime. (...) Matsuhito, pobre Matsuhito! Sua vida está próxima do fim. As bombas estão ao seu redor prontas para explodirem. ‘Tchau vossa excelência, velho amigo’” (apud NOTEHELFER, 1971, pp. 152-3). Takeuchi Tetsugorô e Iwasa Sakutarô foram os principais responsáveis pela carta. Eram figuras próximas de Kôtoku e integrantes do Partido Revolucionário Social de Oakland. O texto, mesmo não tendo uma ligação clara com o anarquista japonês, foi usado anos depois como prova para a acusação de tentativa de assassinato do Imperador. Kôtoku dedicou-se novamente às traduções, entre elas, de Anarquismo e sindicalismo de Malatesta, publicado no Heimin Shinbun nas edições de 5 e 20 de fevereiro de 1908, A greve geral social de Arnold Rolle e A Conquista do pão de Kropotkin, sendo esse último divulgado clandestinamente em 1908. Kôtoku não foi alvo de críticas somente por suas transformações e posições contrárias ao cristianismo. Muitos anarquistas e socialistas criticaram seu relacionamento amoroso com Kanno Sugako. Kanno era uma jovem procedente de Osaka. Tinha sido violentada por um mineiro sob o incentivo da madrasta. Amargurada, interessou-se pelos socialistas quando leu os escritos de Sakai Toshihiko, que combatia qualquer culpa que pudesse decorrer de um abuso – prática recorrente no Japão e sinônimo de vergonha para quem fosse violentado. Assim, passou a frequentar os círculos socialistas e posteriormente os cristãos. Foi assim que tomou parte na Heimin Sha então liderada por Kôtoku e Sakai (HANE, 1993). Mais tarde conheceu Arahata Kanson (1887-1981) com quem fundou o Murô Simpô (Notícias Murô) em Wakayama. Mudaram-se para Tóquio (HANE, 1993). Seus laços com Kôtoku estreitaram-se quando Kanno tomou parte no Incidente das Bandeiras Vermelhas (1908). Após as prisões de seus companheiros, foi à delegacia para exigir a libertação. Acabou detida por dois meses até o julgamento, que a considerou não responsável pelo Incidente. Muitos outros, como Ôsugi Sakae, receberam sentenças de 1 a 2 anos.

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A vida na prisão anunciava a necessidade de dar um fim à autoridade centralizada para atiçar a revolta nas pessoas: “Basicamente, mesmo entre os anarquistas eu estava entre as mais radicais. Quando eu fui presa em junho de 1908 por conexão com o Incidente das Bandeiras Vermelhas fui ultrajada pelo comportamento brutal dos policiais. Conclui que a propagação dos nossos pensamentos de maneira pacífica não funciona. Era necessário despertar as pessoas pela revolta ou pela revolução ou realizando assassinatos” (apud HANE, 1993, p. 56). No ano de 1909, Kanno e Kôtoku passaram a viver juntos. Muitos anarquistas e socialistas entenderam isso como um ato de traição. Condenaram o casal quando Arahata, o ex-companheiro de Kanno, continuou a frequentar o mesmo espaço que eles. Kanno e Kôtoku não estavam vinculados aos costumes japoneses do pretenso casamento até o fim da vida. O Código Civil Meiji previa ao esposo o papel de comandante da casa, e caso morresse, a função seria herdada pelo filho mais velho. O casamento japonês, costumeiramente, era arranjado, em alguns casos com os pares conhecendo-se somente na hora do cerimonial. Também era condescendente às traições do homem e restringiam às mulheres o papel de educadora/cuidadora dos filhos. Assim, o Código Civil Meiji de 1890 estabeleceu no livro I (Provisões Gerais), capítulo I, artigo 12, as tarefas que a mulher e qualquer outro “semi-incompetente” (JAPÃO, 1890a, p. 3) precisariam de autorização do comandante da casa para realizar, como receber algum dinheiro, ter algum imóvel ou bem valioso, solicitar um empréstimo. Já no livro IV (Família), capítulo III, artigo 746, estabelecia-se que os integrantes de uma casa carregavam o nome do patriarca ao casar-se, a mulher abandonaria seu nome de solteira. Kanno e Kôtoku não se casaram. Kanno não abriu mão de seu nome, de sua vida, nem estava disposta a pedir permissão sobre seus atos. A Kôtoku, pouco importava que o Código Meiji lhe ordenasse a governar uma casa e uma família. Os anarquistas viveram juntos, desconsiderando as prescrições da educação que receberam, das de seus companheiros, assim como do Código Civil Meiji. Ignorando um costume autoritário como o casamento, do qual até mesmo muitos anarquistas não se desvencilharam, arriscaram-se no amor livre. No arrebatamento da paixão, não aguardaram um momento ideal ou oportuno para ficarem juntos, não havia o que esperar, era naquele momento ou nunca, era por completo ou nada. Não houve Kokutai, costume, e qualquer outro código, manual ou prescrição de como viver que os barrassem. Atiraram-se por inteiro em uma relação escandalosa para os guardiões da moral sem temer o que lhes poderia acontecer. O amor livre não pode ser disciplinado,

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ou disfarçado e escamoteado para ser o que não é. É livre por não saber para onde vai, por surpreender, por modificar a cada um e não se perder em cálculos das possibilidades de dores futuras. Está longe do sacrifício e da submissão pela família, tão recorrente às mulheres japonesas. Irrompe e não está disponível a concessões para agradar a qualquer um. Para Kanno e Kôtoku, estava evidente e incontível: mergulhar em um amor livre jamais se compara com a vida morna aos moldes de um casamento. *** Juntos, Kanno e Kôtoku distanciaram-se cada vez mais dos itinerários que o Heimin Shinbun tomava. Não ficaram quietos, em 1909, lançaram o jornal Jiyû Shisô (Pensamento Livre). Kanno foi presa novamente por conta da publicação, e condenada a pagar 400 ienes ou a 3 meses de prisão; sem o dinheiro, cumpriu a pena. Longe de Kôtoku, no insuportável da vida encarcerada, passou a arquitetar os planos para assassinar o Imperador. Para Kanno, de nada mais bastava a propaganda anarquista por meios pacíficos, contra a violência do Estado, lançou-se ao anarcoterrorismo (HANE, 1993). Finalmente, quando saiu, entrou em contato com Miyashita Takichi (1875-1911), um operário anarquista e próximo ao círculo do Heimin Shinbun. Miyashita foi instigado por Morichika Umpei (1881-1911), integrante da Heimin Sha, que elaborou a teoria do sistema de manutenção do Imperador, afirmando que este era histórico e não divino. Os panfletos do monge anarquista Uchiyama Gudô sobre a urgência da dinamite consolidaram seu plano (IDEM). Miyashita havia escrito para Morichika em 1908 expressando sua convicção de que o Imperador devia morrer. A carta parou nas mãos de Kôtoku e, em 13 de fevereiro de 1909, eles se encontraram na Heimin Sha. Em carta de dois anos antes, Kôtoku havia anunciado ao seu amigo Albert Johnson a emergência do anarcoterrorismo no Japão: “Japão, que já produziu socialdemocratras e anarco-comunistas, produz agora ação direta, antimilitaristas, greves gerais e também terroristas” (KÔTOKU, 1907 in CRUMP, p. 317). Kanno participou das reuniões seguintes na Heimin Sha, quando também se associaram ao plano Niimura27 e Furukawa Rikisaku (ANARKOWIC, 2002). Okuyama Tateyuki também compôs o grupo e trouxe uma nova fórmula para a bomba na tentativa

27 Niimura visitou Kôtoku em fevereiro, após sair da prisão de Maebashi por violação da lei da imprensa. Sem emprego, hospedou-se na Heimin Sha até conseguir trabalhar na farmácia de Oishi, em Shingu. Miyashita escreveu para ele em junho de 1909, perguntando sobre sua experiência com bombas e solicitando ajuda para conseguir mais cloreto de potássio que tornaria a explosão da bomba mais eficiente.

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de contornar os problemas de carência dos ingredientes químicos. Kanno inspirou-se em Sophia Perovskaya, que ajudou no assassinato de Alexandre II da Rússia, depois foi capturada e tornou-se a primeira mulher russa a receber a pena capital (LUCCHESI, 2017). O plano não foi bem-sucedido como o de Perovskaya. Os anarquistas estavam sob constante vigilância, sendo delatados por infiltrados. Em 1910, quando Kôtoku tentava embarcar para a Europa, foi preso junto com outros 23 anarquistas, entre eles Kanno (HANE, 1993). Não precisaram esperar o teatro do tribunal para saber o que aconteceria: foram condenados à morte, no conhecido Incidente de Alta Traição (Taigyaku Jiken). Em “Discussão sobre a revolução violenta a partir de minha prisão”, já sabendo do destino que lhe aguardava, Kôtoku afirmou a vitalidade das obras de Piotr Kropotkin e Elisée Reclus ao demonstrar que a anarquia não é violência, que violento é o Estado, e que, contra essa violência, haveria de se fomentar a ação direta com a morte do Imperador.

solidariedade: o Incidente de Alta Traição pelo planeta

A prisão dos anarquistas e socialistas no que ficou conhecido como Incidente de Alta Traição marcou um momento de solidariedade anarquista internacional pela vida dos acusados. Nos EUA, Emma Goldman e seus companheiros agitaram manifestações, coletaram depoimentos de apoio, dinheiro para ajudar as famílias; enviaram telegramas ao Primeiro Ministro japonês, cartas ao embaixador nos EUA e publicaram na revista Mother Earth o que acontecia do outro lado da Terra. Goldman instaurou a conexão dos estadunidenses com os anarquistas no Japão, por meio da qual muitos tomaram contato com o que lá acontecia e em quais embates os anarquistas estavam envolvidos. Mesmo com a visita de Kôtoku à Califórnia anos antes, pouco se sabia dos anarquistas do outro lado do Pacífico. Hippolyte Ravel28 articulou uma manifestação para o dia 12 de dezembro de 1910, no Lyric Hall, em defesa dos acusados. Para divulgação, publicou um artigo, em 28 de novembro de 1910, na revista Call, “Facts regarding japanese radical: supplied by oriental information agency and Consul General of Japan”. No ano seguinte, em solidariedade, as

28 Anarquista checo que conheceu Emma Goldman em Londres quando estava em fuga da prisão na Áustria-Hungria. Acompanhou-a até Nova York e passou a escrever na revista Mother Earth.

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correspondências entre Kôtoku e Albert Johson, nas quais o anarquista japonês recordava como se afirmou anarquista, foram reimpressas entre 28 de setembro a novembro de 1911 na revista Mother Earth. Ravel, Emma Goldman, Alexander Berkman, Ben L. Reiman e Sadakichi Hartmann29 enviaram uma carta ao embaixador do Japão na qual constava o trecho: “protestamos energicamente contra a ultrajante e injusta sentença contra nosso amigo Denjiro Kôtoku e seus camaradas” (GOLDMAN, 2012, p. 233). Como não obtiveram resposta, uma nova carta foi publicada na New York Call (12/11/1910), endereçada ao embaixador japonês, contando também com as assinaturas de Hutchins Hapgood e Leonard Abbott (IDEM). No dia 12 de dezembro, a manifestação no Lyric Hall contou com um discurso de Emma Goldman, leitura de cartas de apoio e envio de um telegrama para o primeiro ministro que dizia: “Nós, os libertários em Nova York, protestamos enfaticamente contra a estúpida sentença de Kôtoku Shûsui e seus camaradas”. Emma Goldman também coletou dinheiro para as famílias dos executados; em abril de 1911, entrou em contato com Tokijiro Kato e em maio enviou a ele 150 ienes para ajudar as famílias (IBIDEM). Tanaka (2013) sinalizou que o Incidente de Alta Traição encontrou ressonância no Caso Haymarket (1887) e na execução do republicano e educador Francisco Ferrer y Guardía na Espanha (1909). Anunciou também a solidariedade pelo planeta quando da perseguição e execução de Sacco e Vanzetti (1927). A revista Mother Earth de fevereiro de 1911 foi dedicada aos já então executados no Incidente de Alta Traição. Em cidades nos EUA também aconteceram manifestações contra as execuções, como Boston, St. Louis, Los Angeles, Seattle e Portland, e também em alguns países, como França, Inglaterra, Suíça e Áustria. Entre os integrantes desses protestos estavam anarquistas, socialistas e até mesmo liberais. Em carta à sua amiga Nuna, Goldman evocou os assassinados perpetrados pelo governo japonês: “Eu não me lembro de um outro evento ter me afetado assim, como o assassinato dessas doze almas, especialmente a pequena mulher, que eu conhecia por correspondências. Ela traduziu ‘Tragedy of woman’s emancipation’30” (GOLDMAN, 2012, p. 300). A tradução que Emma Goldman afirma ter sido feita por Kanno não foi

29 Anarquista, artista e escritor na Escola Moderna de Nova York; nasceu no Japão e imigrou para os EUA. 30 Lançado em 1906. Cf.: Emma Goldman’s Anarchism and Other Essays (1911). New York & London: Mother Earth Publishing Association. pp. 219-231.

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encontrada. Em sua autobiografia, a japonesa afirmava que estava iniciando seus estudos de inglês. Uma versão seria traduzida por Ito Noe (1895-1923), que deu o nome de Emma a uma de suas duas filhas, e publicada como um suplemento da revista Seitô em 1913. Berkman, Havel, Rose Strunsky, Jaime Vidal, Louis Fraina e Goldman iniciaram o comitê de defesa Kôtoku, com o objetivo de lutar pelos sobreviventes que estavam presos ou condenados a trabalhos forçados no Incidente de Alta Traição (IDEM). Tanaka (2013) dedicou-se a apresentar as respostas ao Incidente de Alta Traição na Inglaterra junto ao jornal anarquista judeu Arbeter Fraint (Amigos dos Trabalhadores), no final foi publicada, em 1911, a imagem de Kôtoku, Sakai Toshihiko, Ishikawa Sanshirô e Nichikawa Kôjirô. Mesmo sendo somente Kôtoku executado, utilizaram a foto que havia sido tirada em 1904 para comemorar o primeiro aniversário do Heimin Shinbun, mesma imagem utilizada em outras divulgações sobre o julgamento dos anarquistas no Japão. Era a única foto que muitos possuíam, distribuída por Kôtoku em sua passagem pelos EUA, constando o nome de cada um em alfabeto romano. A foto, publicada na Mother Earth, foi enviada por Leopold Fleishman, um socialista estadunidense que havia encontrado Kôtoku na ocasião de sua viagem. Depois disso, Fleishman visitou o Japão algumas vezes para entrar em contato com os socialistas. Segundo Havel (in Mother Earth, vol. 6, n. 7), foi por meio dele que Kôtoku conheceu Albert Cartão postal com “Os mártires Johnson e pôde entrar em contato com anarquistas na japoneses". Fonte: International Institute of Social History. Europa e nos EUA. A mesma imagem, igualmente enviada por Fleishman, também figurou no jornal londrino Freedom, fundado em 1889, por Piotr Kropotkin e Charlotte Wilson31 (TANAKA, 2013). Na França, um cartão postal foi vendido em janeiro de 1912 com a inscrição Les Martys Japonais (Tokio, 24 janvier 1911). Notícias também circularam pela Áustria e pela Argentina (IDEM).

31 Ele permaneceu na editoria de Freedom até 1895.

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A luta pela libertação dos presos torna-se então, a força motriz para outras lutas32. Mas, a solidariedade anarquista não é uma solidariedade universal. Émile Armand, anarquista na França, destaca que a solidariedade muitas vezes foi construída para edificar dogmas e suscitar dominações. “Acredito que é necessário ser solidário com o agricultor devoto, o empregado socialista do correio, o padeiro conservador, o marinheiro patriota, pois todos seriam necessários na vida, contribuindo diretamente para proporcionar o que todos consomem para subsistência. Entretanto, esses são simultaneamente eleitores. Outras vezes são jurados, criadores de hierarquias, exploradores de prontidão. Em resumo, são partidários da autoridade” (ARMAND, 2007, p. 57). Assim, a solidariedade anarquista não é a busca da salvação de todos, mas daqueles que estão envolvidos em uma luta. Da vitalidade em enfrentar as execuções, sumiços e prisões de companheiros, os libertários constroem outras conexões e agitam enfrentamentos. A solidariedade na anarquia desconhece fronteiras e não é para qualquer um. Libertários associam-se com quem lhes interessa e em torno de um objetivo. A solidariedade é aqui também uma expansão da vida, o combate à harmonia e a afirmação de uma luta contra a autoridade hierárquica e centralizada.

a vitalidade de Kanno Sugako diante da polícia e do tribunal

No dia 10 de dezembro de 1910, as defesas foram efetuadas as defesas, sendo todas recusadas pelo juiz. O julgamento foi realizado a portas fechadas, como o do republicano Francisco Ferrer, anos antes, na Espanha, para evitar, segundo a polícia, que os acusados usassem o tribunal como plataforma para expor suas ideias; que fossem os acusados fossem interpretados como mártires ou que causassem qualquer ofensa pública ao Imperador. Em 25 de dezembro, o procurador Hiranuma Kiichiro (1867-1952) exigiu pena de morte para os 25 acusados. A defesa teve apenas três dias para recorrer, em vão. O Japão não possuía uma lei específica de perseguição aos anarquistas como no Brasil 33 .

32 Como no Brasil na defesa e solidariedade a Sacco e Vanzetti, como no surgimento da Cruz Negra Anarquista na Rússia, que tornou pública as repressões dos bolchevistas aos libertários. 33 Foi o caso da Lei Adolfo Gordo destinada a conter os movimentos operários de São Paulo, instituída em 1907 e que visava perseguir e reprimir principalmentes os anarquistas. Com respaldo nesta lei, foram expulsos quase 700 estrangeiros.

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Entretanto, certos pensamentos estrangeiros eram considerados pelo Imperador como perigosos. Era esse o caso dos anarquismos. Declarar-se anarquista já era pretexto para ser alvo do sistema penal. As manifestações internacionais, entretanto, surtiram efeito e em 19 de janeiro de 1911, doze dos condenados tiveram a pena comutada para prisão perpétua. A estadia na prisão de Chiba matou Takagi Kennei, em 1914, e os outros tentaram cometer suicídio para não morrerem aos poucos na mão do Estado japonês (ANARKOWIC, 2002). Entretanto, Kôtoku era conhecido por suas conexões com os EUA e, para muitos, diante das mudanças pelas quais passou, também inconcebível que tentasse executar o Imperador. Apoiado nesta descrição, um dos advogados de defesa isentou Kôtoku de responsabilidades, declarando para os demais companheiros anarquistas: “Ela (Kanno) não é uma mulher adorável. Se Kôtoku não tivesse se enrolado com uma mulher como essa, não terminaria sua vida dessa maneira. O Incidente de Alta Traição foi todo realizado por Kanno Sugako” (apud HANE, 1993, p. 55). Kanno era uma mulher corajosa, assustando até mesmo anarquistas. Mesmo sabendo o que lhe aconteceria, durante seu depoimento não suplicou por clemência, mas escancarou a subserviência dos juízes como a de uma população disposta a seguir o Imperador ou o soberano da ocasião. Todos escutaram as condenações em 18 de janeiro de 1911. Ao ouvir a sentença, Kanno gritou diante do juiz: museifu shugi banzai! (Viva a anarquia!), seguida por Kôtoku (PELLETIER, 2015). Morichika Umpei, também condenado à morte, nos dias que se seguiu comentou sobre o veredito: “Pena de morte! A decisão foi inesperada. (...) Quando ouvi a frase, fiquei tão surpreso que nem uma gota de lágrima caiu. Na verdade, até aquele momento, imaginei muitas coisas para o futuro, na expectativa de minha inocência, e me permiti a belos sonhos, como construir uma estufa com uma estampa azul; cultivar morangos; criar árvores frutíferas e uvas; qual benefício seria gerado aos camponeses e como manter o conhecimento agrícola entre os jovens das aldeias. Mas esses sonhos desapareceram instantaneamente com uma sentença de morte. Eu serei privado da minha vida. Mas é desnecessário argumentar sobre a decisão. (...) A minha morte não é a do mártir da causa, mas a morte de um camponês que se dedicava ao trabalho agrícola” (MORICHIKA in LE LIBERTAIRE GROUP, 1979, p. 89).

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No caminhar solitário, com os chapéus de palha sobre a cabeça, sem estabelecer contato visual, um grito de Banzai também ecoou entre os prisioneiros34. Banzai é a junção dos kanji 万(10 mil) 歳 (anos de idade). O termo também já foi utilizado para desejar anos de vida ao Imperador com Tenno heika banzai (天皇陛下万 岁 – vida longa ao Imperador). Entretanto, aos anarquistas não se trata do prolongamento da vida em tempo. Desejar saúde entre os anarquistas tampouco está vinculado aos investimentos biopolíticos de saúde da população, ou nos termos recentes da qualidade de vida. Como sinaliza Passetti (2003b), remonta aos momentos em que a vida dos trabalhadores anarquistas e seus filhos era mais curta, e mesmo assim não abriam mão de suas lutas para negociações com patrões. Afirmar saúde não enquanto a recuperação de uma doença, mas saúde na luta, saúde diante da morte, e diante da execução; há saúde para o anarquista enquanto expansão da vida. “Meus pobres amigos, meus pobres camaradas! Mais da metade deles eram (...) acusados pelas ações de cinco ou seis (...). Só porque eles estavam associados a nós, eles agora devem ser sacrificados dessa maneira monstruosa. Simplesmente porque são anarquistas. Então, o chapéu de palha [que cobre o rosto do prisioneiro] foi colocado na minha cabeça. Porque fomos marchando na ordem inversa da nossa chegada, fui a primeira a sair. Quando me levantei, pensei em meus camaradas. Embora, eles estivessem no mesmo andar que eu, nunca mais nos encontraremos” (KANNO, 1993, p. 59.) Quarenta anos depois de sua morte, em 1951, foi divulgado o diário que Kanno redigiu na prisão entre os dias 18 a 24 de janeiro, contando com poemas, pequenos escritos de preparação para a morte, relatos sobre a ida ao tribunal. No dia 18 de janeiro, quando recebeu a sentença, registrou a resposta das pessoas da plateia súdita assim que foi proclamada a sentença. “Um sentimento comum brotou no rosto da audiência, cristalizou um sorriso frio ao ver a fúria nos lábios dos acusados” (KANNO, 1979, p. 112). Complementou sua memória com um pequeno poema Waka: “Um sacrifício aos 25 anos de idade é colocado diante de uma manada de leões mostrando garras e dentes” (IDEM).

34 Banzai (万歳) pode ser traduzido como saúde, termo tão caro aos libertários.

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Nunca mais veria seus companheiros, pois seu enforcamento, por ser mulher seria no dia seguinte a deles. Morreria, sozinha, já sabendo da morte do amor de sua vida e de seus amigos. “Amigos, que iriam até a forca juntos. Pode haver amigos que tenham um sentimento ruim em relação a nós. De qualquer forma, eles são meus amigos e camaradas, estávamos juntos na corte. Adeus, 25 pessoas! 25 sacrificados, adeus! Eu digo sayonara a todos vocês. Difícil de dizer. Sim, sayonara. Sayonara (...). O carro chegou e foi em direção a [prisão de] Ichigaya, recebendo uma luz oblíqua do sol, eu nunca mais ira percorrer as ruas da cidade” (IBIDEM, p. 113). Em suas memórias, Kanno lamentou a sorte dos companheiros, e afirmou seus atos e planos. Recusou-se a reverenciar os juízes e escancarou o que era propriamente o tribunal: “Vocês são pobres juízes e lamentáveis. Tudo o que vocês queriam fazer era proteger suas posições. Para salvaguardá-los [a família imperial], vocês transmitiram esses vereditos (...). Vocês, pobres juízes, pobres escravos do governo. Eu deveria estar com raiva de vocês, mas tenho pena (...). Vocês podem viver por cem anos, mas o que é uma vida sem liberdade, uma vida de escravidão? Vocês, pobres escravos” (KANNO, 1993, p. 67-68). Kanno não esperava redenção com a morte e rejeitava qualquer intervenção de monge ou religioso: “Eu não tenho a superstição que a morte será a salvação pela força do sutra, então eu recuso os presentes que recebo do templo (...). Eu não acredito que o espírito sobreviva e deva receber flores, incensos ou outros presentes” (IDEM, p. 70). No dia 19 de janeiro, entretanto, com a visita de um monge, não criticou ao saber que alguns dos que seriam executados encontraram conforto para a espera aceitando as palavras budistas. Era como suportariam aquela violência. A morte não era para construir o mártir, mas era o fim da existência que poderia incendiar novas práticas. Uma das maneiras que Kanno encontrou para diminuir a agonia e ansiedade era de que sua morte serviria para alguma coisa. Mas jamais seria um sacrifício ou, uma penitência para se alcançar algo. Era sua execução. Sem nenhuma glória ou esperança, este era o veredito. “O cristianismo se tornou uma religião mundial com milhões de sacrifícios desde o surgimento do Santo Nazareno. Então, penso que os sacrifícios não valem nada. (...) Nossa execução não será inútil, eu acredito que há algo. Portanto, penso que posso chegar à forca e encarar a minha preciosa morte em conforto

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com a nossa causa, e posso morrer em paz sem ansiedade nem agonia” (KANNO, 1979, p. 114). Em 20 de janeiro, quando caia a neve pela terceira vez naquele ano, escreveu em outros dois Waka: “Você não precisa se preocupar com uma semente caída no campo, Espere até o tempo da primavera Com um vento oriental favorável. *** Eu sorrio da minha inacabada vida Com o pensamento no meu último dia” (IDEM, p. 117-118) Kanno tentou não se abalar pela pena que recebeu. Mesmo sabendo o que lhe aconteceria nos próximos dias, continuou a estudar inglês e alemão, não deixava de enviar cartas a Sakai Toshihiko, um dos fundadores da Heimin Sha com Kôtoku. Mesmo diante da terrível situação, Kanno mantinha bom humor, ciente de que seus escritos seriam lidos por inúmeras pessoas, inclusive seus acusadores. Desejou: “Se eu retornar como um fantasma, existem muitas pessoas, começando pelo juiz da Corte, que eu gostaria de aterrorizar. Seria maravilhoso ver a cara assustada desses imbecis e vê- los rastejar” (KANNO, 1993, p. 72). Não se curvar diante do tribunal ou pedir clemência, mas afirmar a anarquia remonta também aos libertários na Europa. No final de 1893, ao vingar-se da execução de Ravachol, Auguste Vaillant lançou uma bomba no parlamento. Não tendo ferido gravemente ninguém, no ano seguinte, antes de ser guilhotinado, gritou: “Vida longa à anarquia. Minha morte será vingada”. Pouco tempo depois, a tentativa de vingança ocorreria através do jovem Émile Henry em ataque ao Café Terminus, local frequentado pela burguesia parisiense. Também capturado, Émile Henry negou o teatro do tribunal. Quando escutou a sentença, bravejou: “Camaradas, coragem! Vida longa à anarquia”. Foi guilhotinado em 1894. Viria logo em seguida o ataque de Sante Geronimo Caserio. Com um golpe de faca, assassinou o presidente da República Francesa, Marie François Sadi Carnot. Antes de ser executado, repetiu as frases de Henry. A prática anarcoterrorista naquele momento era uma resposta direta ao exercício das disciplinas sobre os corpos, a recusa à política, ao tribunal, ao juiz, ao Estado, ao presidente e ao Imperador. Não interessava desculpar-se ou pedir licença, mas executar uma ação direta para escancarar e destruir a obediência.

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Kôtoku Shusui e Kanno Sugako. Fonte: http://jfdb.jp/title/3685.

Nos dias seguintes, Kanno recebeu a visita de amigos, com os quais não pode sequer comentar sobre o julgamento com receio que algum dos carcereiros pudesse delatá-los ao governo e persegui-los. Conseguiu se despedir de alguns familiares, recebeu parentes de Ôsugi Sakae – este também estava preso por conta do Incidente das Bandeiras Vermelhas –, e também por lá passou Arahata Kanson, com quem tivera um relacionamento amoroso. Durante a vida na prisão, Kôtoku não escreveu memórias como Kanno, mas redigiu “Uma discussão sobre a revolução violenta da cela de uma cadeia” (1910), em que procurava mostrar como ele e seus companheiros não tinham o objetivo de matar o Imperador. Para o biógrafo Notehelfer, Kôtoku tinha como razão para o único arrependimento a execução dos jovens que não haviam tomado parte nos planos, e que nem sequer sabiam deles. O texto, dividido em sete partes, diferencia anarquismo e violência, mostrando que não estão necessariamente vinculados, isso depende da prática anarquista. Kôtoku apresenta o que entendia por revolução e como essa só poderia ocorrer com o fim da Família Imperial, sem necessariamente significar o seu assassinato. O terceiro movimento aborda o movimento revolucionário vinculado à difusão de ideias, diferente do conceito de ação direta. Como mostra Kôtoku no movimento seguinte, a ação direta estaria vinculada às práticas anarcoterroristas; posteriormente apresenta um comparativo entre os anarquismos na Europa e no Japão, sendo que, nesse último, estaria ocorrendo um

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momento de maior perseguição. O argumento, provavelmente, foi construído não para indicar onde a luta é mais perseguida, mas para mostrar que na Europa, tão apreciada e glorificada pelo sistema penal japonês, havia menos perseguição aos anarquistas. O sexto movimento faz uma distinção entre revolta e insurreição, sendo que compreendia um complementar ao outro. As revoltas seriam características no campo, como aconteceu com a Revolta do Arroz, as insurreições aconteceriam nas cidades, ambas poderiam levar a uma revolução que tomaria o Japão. Por último, apresenta as falhas em seu interrogatório, o qual, segundo ele, resultou em um depoimento seu alterado pelo promotor. Submetido à farsa do tribunal, afirmou: “Nós, anarquistas, consideramos que o tribunal e a lei não pode julgar ninguém” (KÔTOKU, 1979, p. 101). Assim Kôtoku entendia que a revolta seria local, enquanto a revolução seu desdobramento. Kôtoku também escrevia pequenos poemas, em um deles, “Meus sentimentos da cela”, de 10 de novembro de 1910 e dedicado a seu amigo Sakai Toshihiko, escreveu sobre estar preso em caracteres chineses. “Todos os erros podem ser atribuídos a mim Como prisioneiro, não posso revidar. Eu me entrego à providência sem nenhum meio, No entanto, eu não tenho orado a um Deus. A vida e a morte são como um sonho Glória e Miséria são poeiras no ar. Quando sorrio em uma cela solitária O Universo reflete nos meus olhos novamente” (KÔTOKU, in RADICAL, 1975, p. 33)35.

Fonte: Revista Radical, 1975, p. 33.

35 Tradução do inglês.

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Quando o redigiu não sabia os rumos que o julgamento tomaria com a condenação à morte. Ao receber sua sentença, escreveu o poema “Da prisão”, em 12 de janeiro de 1911: “Pare o debate por trivial de mérito ou demérito Espíritos permanecem por uns mil anos. Nós emergimos e vamos embora assim do mundo, Até mesmo um prisioneiro aprendeu a respeitar uma vida de pessoas comuns” (KÔTOKU, 1979, p. 110). Em seu último escrito e incompleto, “Shikei no mae” (Enfrentando a pena de morte), declarou-se pronto para cumprir sua pena: “para mim, neste momento, a pena de morte não significa nada. Obviamente não tenho a liberdade de falar hoje no caso e no julgamento realizado a portas fechadas. Daqui a 100 anos, alguém pode falar meu nome. Seja qual for o caso, a pena de morte não é nada” (KOTOKU apud TIERNEY, 2009, p. 19). Kôtoku foi executado juntamente com outros 10 homens no dia 24 de janeiro de 1911, depois de fumar seu último cigarro. Ao todo, 12 anarquistas foram executados. Segundo Kanno, somente cinco estavam nos planos, os outros sete foram assassinados por serem anarquistas: os juízes entenderam que as ideias anarquistas de liberdade e igualdade rejeitavam a família Imperial (KANNO, 1993 p. 67). Na noite antecedente à execução de Kôtoku, 23 de janeiro, Kanno leu algumas cartas, respondeu a todas, escreveu para outras tantas pessoas despedindo-se. Lamentou- se do destino cada vez mais próximo. No dia seguinte, Kanno registrou apenas para quem enviou cartões postais despedindo-se; solicitou em uma carta a Sakai que enviasse um presente para seu irmão mais novo que morava nos EUA. Seu diário se interrompia abruptamente. Na manhã seguinte, Kanno foi executada. Kanno foi uma mulher que combateu os costumes japoneses, queria modificá-los radicalmente. Recusava as práticas budistas, não queria que seu enterro fosse aos moldes de um salvamento, não acreditava na vida após a morte, apesar de desejá-la em certa medida somente para impressionar seus assassinos com seu retorno como fantasma. Kanno não voltou da morte. Mas não deixou de aterrorizar as autoridades japonesas. Até o final da II Guerra Mundial, seu nome e o de Kôtoku Shûsui eram sinônimos de perigo. O caso foi considerado bem-sucedido pela justiça japonesa. Em 1939, o acusador tornou-se Primeiro-Ministro durante o fascismo japonês e a II Guerra Mundial (PELLETIER, 2015). Ao seguirem um costume japonês de categorizar as

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épocas, o Incidente de Alta Traição, inaugurou o inverno, como nomeou O Libertário, grupo de anarquistas no Japão na década de 1970; foi apenas um anúncio das perseguições e execuções que se seguiriam.

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contra os costumes:

itô noe e ôsugi sakae

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O anarquista Tanaka Hikaru destacou a vitalidade de Ôsugi Sakae ao retomar os escritos de Mikhail Bakunin, no começo do século XX. Era um momento em que os anarquismos no Japão estavam filiados às propostas de Piotr Kropotkin, principalmente após o lançamento clandestino, em 1908, de A conquista do pão, com tradução de Kôtoku. A presença de Kropotkin entre os libertários japoneses ocorreu durante a Guerra Russo-Japonesa com a divulgação de seus escritos pelo arquipélago. A sua famosa carta publicada inicialmente em Les Temps Nouveaux, em março de 1904, intitulada “A guerra Russo-Japonesa”, foi amplamente divulgada pelo Japão: “Toda guerra é má, seja com vitória ou derrota. (...) Eu não acredito em guerras “benéficas”. Não foi a derrota na Crimeia que levou à abolição da servidão e à reforma na Rússia, assim como não foi a guerra que trouxe a abolição da escravidão aos Estados Unidos, a independência da Itália, nem o movimento radical e racional da mente na Rússia. (...) De minha parte, não tenho a menor queda pelos sonhos de conquista dos russos, nem a menor simpatia pelos sonhos de conquista dos capitalistas e feudalistas japoneses em modernização” (KROPOTKIN, 1904). Soma-se a isso, a presença de Metchinikoff, como vimos anteriormente, e sua escola de russo, estabelecendo as possibilidades de leitura pelos japoneses, como aconteceu com Kôtoku, em 1904, que na prisão leu “Campos, fábricas e oficinas”, de Kropotkin (1912), lançado originalmente em 1899. Quando liberto, Kôtoku se declarou anarquista. Kropotkin provavelmente muito despertou a atenção dos anarquistas no Japão, apesar de não tratar diretamente do país, mas por apresentar as mutações que a industrialização provocou na Rússia e as novas relações que se apresentavam. No texto lido por Kôtoku, o anarquista russo questiona-se a respeito de tanta miséria diante de tanta produção. Critica a tese de Malthus, a quem considera pseudocientífico ao professar o crescimento populacional em progressão geométrica e o da produção de alimentos em progressão aritmética, levando ao aumento da natalidade e à dilatação da pobreza. Kropotkin contesta a tese malthusiana mostrando que a produção no campo era seis vezes maior do que o crescimento populacional. Posteriormente, em Mutualismo: um fator da evolução, Kropotkin retoma Malthus, articulando-o a Darwin, para mostrar como ambos partem da luta pela sobrevivência e como esta está incrustada no Estado, tendo como um de seus desdobramentos a guerra. Por meio dessa crítica e das pesquisas geográficas na Manchúria e na Sibéria, ele desmontou o darwinismo social apontando para o apoio mútuo como o desencadeador da evolução.

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Entretanto, no texto que Kôtoku obteve acesso na prisão, “Campos, fábricas e oficinas”, Kropotkin ainda não havia elaborado tal proposição, mas ao apresentar o crescimento da miséria, enfrentara a questão da separação entre trabalho manual e intelectual, que considerava necessariamente complementares. Enquanto o trabalho intelectual é chancelado como conhecimento científico, o trabalho manual é tido como subalterno e, portanto, deve ser submetido às suas descobertas. Para Kropotkin, a invenção não está no conhecimento científico, mas na capacidade do homem em transformar, em produzir. A separação entre o trabalho manual e intelectual apenas leva ao estabelecimento de uma autoridade centralizada. A produção nas sociedades capitalistas não salvará os trabalhadores da miséria, não melhorará as condições em que se encontram, pois a capacidade inventiva diante da indústria é cada vez menor, e, por mais que a ciência evolua, os trabalhadores continuarão em posição subalterna. Tal discussão já estava posta por Pierre-Joseph Proudhon e sua proposição de educação integral, também incorporada por Bakunin, mas, no Japão, as ressonâncias desse debate repercutiram com Kropotkin. Entretanto, mesmo este sendo uma das principais leituras dos anarquistas no Japão, não os interessou a crítica às práticas terrorista que realizou em “Sobre os atos de protesto individual e coletivo” (1907). Segundo Notehelfer (1971), biógrafo de Kôtoku, a leitura de Kropotkin na prisão também o levou à convicção de assassinar o Imperador. Mesmo com a passagem de Bakunin pelos portos japoneses, pouco se conheceu sobre seus esparsos escritos e a presença de Kropotkin entre as leituras anarquistas foi predominante. Ôsugi apresentou um certo deslocamento ao investigar quem foi Bakunin e traduzir algumas de suas obras. Ôsugi era filho de ex-samurai, por isso se apresentava como filho de um assassino (TSUZUKI, 1971). O anarquista interessava-se por libertários de todos os cantos do planeta, da China aos EUA. Procurava sempre escrever com kanjis mais conhecidos para que fosse lido por um maior número de pessoas. Sua aproximação com a obra de Bakunin ocorreu após a Revolução Russa e com o acirramento de suas críticas ao bolchevismo. “Kropotkin descreveu Bakunin como um homem inocente que almejava paz e liberdade. Mas essa descrição é impossível de me atrair em Bakunin. Eu prefiro os textos que descrevem Bakunin como um homem que ruiu a paz e a ordem entre os anarquistas e como um homem que semeou mesmo entre os anarquistas a rebeldia nas relações. Eu prefiro os textos que descrevem Bakunin como um revoltado por natureza, um anarquista comum, que viveu irresponsavelmente. Quando eu leio essa descrição de

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Bakunin, eu me sinto encontrando um velho amigo. Quando eu relembro a vida de Bakunin, eu só posso sorrir para mim mesmo” (ÔSUGI apud TANAKA, 2014b). Ôsugi retomava Bakunin não somente por seus escritos, destacando sua crítica à ciência, mas interessava-se também por sua trajetória. Redigiu breves biografias de Bakunin e, até 1965, antes do texto de E. H. Carr ser traduzido para o japonês, os textos de Ôsugiconsistiam núnica descrição disponível da vida de Bakunin, ainda que ele próprio, não fosse um bakuninista ou qualquer outra espécie de discípulo. Na descrição que Ôsugi realizou do anarquista russo, alertava para a revolta em Bakunin, mas não buscou em nessa prática anarquista uma doutrina. Interessava-se pelas lutas e por isso também não temia aqueles que queriam governar sua vida, fosse o imperador, os comunistas ou até mesmo alguns anarquistas. Enquanto cumpria pena por supostamente violar a Lei de Imprensa, em uma carta redigida da prisão a Kôtoku, — a quem conheceu quando frequentava as reuniões na Heimin Sha, em 1904 —, Ôsugi apresentou algumas de suas leituras, como lhe interessava o traço científico presente entre os anarquistas e a presença de Kropotkin: “O calor do verão está passando. As noites estão cada vez mais frescas. No momento, faço brincadeiras com os guardas, mexendo com eles sobre ficar gordos e coisas do gênero. Tenho lido muito e notei algo extremamente interessante nos livros dos anarquistas Bakunin, Kropotkin, Reclus e Malatesta. Eles e outros anarquistas, todos começam discutindo astronomia. Depois expõem sobre biologia. Finalmente, discorrem sobre a sociedade humana. Quando me canso de ler e levanto a cabeça para olhar lá fora, as primeiras coisas que vejo são os corpos celestes, o movimento das nuvens, as folhas da paulonia, pardais, milhanos negros, corvos. Em seguida, descendo meu olhar, o teto da cela no meio do caminho. É exatamente como se estivesse revisando na prática o que acabei de ler. Tenho sempre muita vergonha de como é superficial o meu conhecimento da natureza. Portanto, de agora em diante, decidi estudar a natureza integralmente. (...) Como está a sua saúde? Como está indo Conquista do Pão? Assim que sair da prisão, gostaria de fazer a autobiografia de Kropotkin, como já desejo há muito tempo. Estou lendo ele agora concentradamente” (ÔSUGI, 2002, pp. 157-158). Entre outras leituras de Ôsugi também constavam obras de Alexander Berkman, com especial atenção às críticas à Revolução Russa de 1917; de Emma Goldman, a quem foi apresentado por sua última companheira, Itô Noe; de Max Stirner, de acordo com o biógrafo Stanley, que está presente no texto a expansão da vida, apesar de não ter sido citado.

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A vida de Ôsugi foi marcada pela prisão e por inúmeras perseguições. Quando criança foi expulso da escola por ter relações homossexuais com seus colegas. Aos 19 anos tomou parte no movimento socialista e, passou 3 anos de sua vida na prisão, de 1904 a 19101. Seu rosto ficaria marcado na polícia. Quando preso no Incidente das Bandeiras Vermelhas, não suportou a violência policial e em uma resposta instintiva, urinou sobre um oficial. Os policiais arrancaram suas vestes à força e o surraram (STANLEY, 1982).

a vida na prisão

Conforme relatado por Ôsugi em sua biografia, a prisão o formou, fato recorrente entre os anarquistas no Japão. Eles não aprendiam a aplicar golpes ou a obedecer, nem se tornavam sábios porque tinhamacesso a inúmeros livros por ter aprendido outro idioma, ou porque liam sobre práticas anarquistas. Ôsugi referia-se ao insuportável enclausuramento, à violência cotidiana da prisão vinda de seus carcereiros. Diante deles não era possível conversar, mas somente lutar contra a brutalidade da prisão, a invenção moderna implementada com a reforma Meiji. Não era possível concordar com o absurdo, mas somente voltar-se contra o castigo, contra o governo, contra o Imperador e contra as inúmeras obediências. Ôsugi, bem como seus companheiros anarquistas e socialistas, viveram em um momento de mutações do sistema penal japonês. No período Tokugawa havia inúmeros tipos de penalidades, que variavam de acordo com o nível social do condenado. Essas metamorfosearam-se e permaneceram presentes, de certa maneira, no código penal Meiji de 1907 (Keihô) e estão em vigor até hoje. São influências do período Tokugawa o seppuku, também conhecido como haraquiri, pena de morte que deveria ser realizada pelo próprio condenado, presente nos costumes japoneses; a pena de morte por forca, instituída em 1873 e autorizada até hoje (antes eram comuns as crucificações, as decapitações, as queimas na fogueira ou o afogamento na água ou óleo quentes); os

1 “Infringiu” a lei de imprensa ao publicar dois artigos não autorizados, entre o final de 1906 e início de 1907, contra a guerra Russo-Japonesa; “violou” a lei da paz no Incidente do Telhado no começo de 1908, quando apoiou a noção de ação direta elaborada por Kôtoku e leu A utopia de Thomas More em um telhado, tido como conteúdo perigoso pela polícia; novamente “violou” a lei da paz no Incidente da Bandeira Vermelha em comemoração à libertação de Yamaguchi Gizô. A perseguição a Ôsugi e aos anarquistas e socialistas anunciavam o que estaria por vir com o Incidente de Alta Traição e a execução dos 12 anarquistas.

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castigos físicos, presentes hoje como tortura legalizada para extração de confissão; o exílio; as multas e o confisco. No caso de suspeita, qualquer um pode ser preso por até 23 dias, sem a necessidade de acusação formal, e os interrogatórios podem ocorrer sem a presença do advogado, com duração de até 10 horas por dia. Após uma série de manifestações que tomaram o Japão, Ôsugi foi novamente preso no ano de 1918, em Ichigaya, na cadeia de Tóquio. Recorda em sua biografia os corredores e as celas por onde passou: “A cerca de 3 metros dos dois lados do corredor, até onde eu conseguia ver, havia portas que pareciam rostos gigantes: um visor era o olho; próximo ao chão, a fenda de 40 centímetros quadrados por onde passava a comida era a boca; e, pendendo do ferrolho no meio da porta como um nariz, um dos enormes cadeados lustrosos que faziam barulhos horríveis. A luz de dentro das celas brilhava pelos olhos para o corredor sombrio e fazia a ponta do nariz reluzir. Os estreitos visores que atravessavam as portas de 8 centímetros de espessura deveriam ser feitos apenas para se ver o interior das celas e não o lado de fora. Então, agachei-me e usei as unhas para abrir a fenda para comida. Assim, pude ver de um extremo ao outro do prédio. Havia ainda mais rostos gigantes do que eu tinha conseguido ver antes. Mas, em nenhum lugar entre os olhos daqueles vinte e pouco rostos, pude ver o que esperava: um verdadeiro olho humano olhando para fora da cela. Era, portanto, um pouco solitário ter apenas aqueles rostos gigantes me encarando fixamente” (ÔSUGI, 2002, p. 144). Outra prisão pela qual Ôsugi passou foi a de Sugamo, onde também ficou preso Kôtoku, em 1905. “No mundo comum, ‘Destino: Sugamo’ apenas se refere ao trajeto ao bonde e não tem muita relação com a vida da maioria das pessoas. Para nós, porém, significa ‘Destino: Prisão’. (...) Fui enviado para Sugamo por três vezes. (...) Acho que a antiga casa de detenção provavelmente ficava em Kajibashi. Quando a demoliram, usaram as pedras e os tijolos para construir a nova prisão aqui. E dizem que usaram as madeiras de construção originais na reconstrução de um dos velhos prédios em uma esquina próxima. Esse prédio também era um hospital onde ficavam cegos, aleijados, idosos que não podiam se locomover bem, deficientes e semi-inválidos. Duas vezes fui transferido para uma grande cela nesse prédio. Na primeira vez em que fui levado na cadeia de Tóquio para uma dessas celas escuras e frias, fiquei desolado. Era meio-dia na primavera e o sol brilhava com o calor do início do verão. No entanto, quando entrei naquela cela, senti de repente o ar gelado percorrer o meu corpo. Bastou olhar para as quatro paredes de tijolos cobertos de cal e a grande porta de ferro blindado para me fazer estremecer. Quando fui tocá-las com as mãos, o frio atravessou o meu corpo. Em meio à

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escuridão havia apenas uma luz fraca vindo de uma pequena abertura da janela que, de tão alta, era impossível alcançá-la mesmo com muito esforço. Havia tatames finos para sentar espalhados pelo chão de tábuas, mas estavam pegajosos por causa da umidade. Fiz como me mandaram e sentei de frente para a entrada de um tatame perto da porta, que tinha placas de ferro no alto e embaixo e grades de ferro no meio. A mesa do guarda estava posicionada precisamente de frente para mim. Estar o tempo todo sob observação dessa forma era desagradável, embora o guarda tivesse um rosto bastante comum e não uma expressão má. Lembrei-me do provérbio russo (‘aquele que vive em uma casa de pedra tem o coração frio’) e pensei que sem dúvida aquele guarda que olhava para mim era um homem de coração frio. Enquanto pensava nisso, o barulho de alguma movimentação veio do corredor e o guarda abriu a porta dizendo: ‘venha’. Além da porta, vi vinte presos sentados no chão de concreto em duas fileiras, uns de frente para os outros. Cada um tinha as duas mãos nos joelhos, de frente para uma bandeja de comida. Eu me sentei no fim da fila. ‘Reverência!’ Uma voz alta deu uma ordem que por um momento não entendi. Todos inclinaram a cabeça, mantendo as mãos nos joelhos. ‘Iniciar a refeição!’ A voz alta ordenou novamente, e mais uma vez não entendi de início, ouvindo apenas ‘refeição’. Cada um pegou a tigela de arroz e os hashis imediatamente. Em seguida, muito rapidamente, todos começaram a revolver a grande bola de arroz endurecido que havia sido colocado no meio da tigela. Deve ser isso que as pessoas querem dizer, pensei, quando se referem a ‘almas famintas’. Os homens separavam um pouco do arroz da bola, atiravam para dentro da boca, engoliam, atiravam de novo, engoliam de novo. O ritmo era frenético. Fiquei perplexo com o que estava vendo. O guarda gritou algo novamente. ‘Número 0000!’ Assustado, virei-me para o guarda. ‘o que é que está olhando? Anda logo, coma!’, ele gritou comigo. Olhei para baixo e pela primeira vez percebi que meu nome de família tinha se transformado em número 0000. Peguei minha tigela rapidamente. Mas, antes de atirar para dentro um pouco mais da metade da minha bola de arroz, os outros já estavam sentados com as costas retas e as mãos nos joelhos” (IDEM, pp. 150-151). A prisão de Sugamo, descrita por Ôsugi, para onde inúmeros anarquistas e socialistas foram enviados, foi fundada em 1895. Era um símbolo de modernização do país e seguia os moldes europeus. Anos mais tarde, na ascensão do fascismo japonês durante a década de 1930, a prisão foi utilizada exclusivamente para aprisionar comunistas, anarquistas, liberais, espiões ou qualquer um que se manifestasse contrário ao Império japonês, como previa a Lei de Preservação da Paz. Ao final da guerra, durante

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a ocupação estadunidense, esta lei foi utilizada também para aprisionar os acusados de crimes de guerra. Alí, foram executados os condenados pelo Tribunal Internacional do Extremo Oriente. A prisão de Sugamo foi destruída em 1978, e hoje dá lugar ao prédio Sunshine 60, de 60 andares – o mais alto do planeta na época –, e a um parque. De referência à prisão, restou apenas uma pedra com algumas inscrições em nome da paz mundial, sem quaisquer referências aos assassinados pelo Japão Império. Em nome da paz, ou em memória dos militares executados após o julgamento de Tóquio, às vezes o monumento recebe algumas flores. Alexander Berkman, em 1892, tentou assassinar o patrão Henry Clay Frick, na greve de Homestead. Foi preso aos 22 anos, e passaria 14 encarcerado. Esse longo período ficou registrado em Prison Memoirs of an Anarchist, lançado pela primeira vez pela editora Mother Earth em 1912, e que hoje, circula por sites anarquistas em versões em inglês e espanhol. Nos anos na prisão, Berkman cogitou se matar, foi enviado consecutivamente a solitária por não aceitar mais maus-tratos, redigiu um periódico anarquista que passava de mão em mão entre os presos, fez um plano de fuga que acabou frustrado, depois tentou se matar novamente... “Os dias se arrastam interminavelmente na semi-escuridão da cela. O gongo regula minha existência com uma monotonia deprimente. (...) a sugestão de fuga germinou a esperança. A vontade de viver está começando a se afirmar, tornando-se mais imperativa com o passar dos dias. Em meus pensamentos estão cada vez mais raros o suicídio, cada vez mais superficiais. O pensamento de autodestruição me enche de desânimo. Toda possibilidade de fuga deve primeiro ser esgotada, tranquilizo minha consciência conturbada. Certamente não tenho medo da morte – quando chegar a hora certa” (BERKMAN, 1912, p. 62). Berkman registrou suas impressões iniciais nas primeiras semanas em que esteve na prisão. “Os dias e semanas passam em uma monotonia exaustiva, quebradas apenas pela minha ansiedade sobre o julgamento que se aproxima. Faz parte da crueldade manter- me ignorante da data exata. ‘Mantenha-se pronto. Você pode ser chamado a qualquer hora’ – o Diretor disse. Mas as sombras estão se alongando, os dias vêm e vão, e meu nome ainda não apareceu no calendário da corte. Por que essa tortura? Deixe-me acabar com isso. Minha missão está quase concluída, a explicação no tribunal e, então, minha vida acabou” (IDEM, p. 45). Em uma das vezes, a direção da prisão foi trocada. Parecia-lhe que algumas reformas poderiam melhorar a vida por ali. Entretanto, tudo continuou na mesma, pouco

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importava quem estava na chefia. Em uma carta datada de 18 de agosto de 1902, Berkman contou a seu amigo Carolus: “as coisas são como antes. Homens e carcereiros podem ir e vir, mas o sistema prevalece. Estou cada vez mais convencido: com a autoridade e a oportunidade de exploração, os resultados são os mesmos, não importa quem seja o homem, ou seus princípios” (IBIDEM, p. 238). Encarcerado, escancarava não haver reforma que tornasse a vida na prisão possível. O alvo era a existência dessa invenção moderna, a prisão e a sociabilidade autoritária pautada no castigo que a produziu. A terrível vida na prisão só se tornava menos pior quando recebia cartas de Emma Goldman, que lhe escrevia palavras de ânimo para tentar fazê-lo suportar o aprisionamento. Quando as cartas não chegavam, por estarem presas no escritório do diretor, Berkman enchia-se de ansiedade e desespero. As correspondências lhe eram vitais, como foram para Ôsugi Sakae, Kôtoku e Kanno Sugako que até o último momento escreveu para quem pôde para se despedir. Ôsugi escrevia sobre as saudades do que fazia fora dos muros, sobre as violências cotidianas no encarceramento e como ansiava por agitar novamente com seus amigos. A prisão de Berkman o levou a pensar as violências recorrentes entre os próprios presos. Somados aos espancamentos diários, à solitária, às regras de horário, às grades, havia os violentados e a hierarquia entre os prisioneiros. Quando preso, Ôsugi Sakae também se deparou com as recorrentes violências entre os presos. Observou as brigas entre os prisioneiros mais antigos para violarem os corpos dos que acabavam de chegar. Em uma das vezes em que tomava banho, um prisioneiro se propôs a Ôsugi, que recusou. Mais tarde, tal acontecimento tornou-se piada para alguns machos socialistas (STANLEY, 1982). Entretanto, Ôsugi não relatou em sua biografia sobre sua vida amorosa na prisão. Apesar das experiências afetivas com outros garotos quando jovem2, entendia as relações sexuais na prisão apenas como continuidade da violência por manifestarem-se principalmente por meio de abusos. Em artigo de 1921, dois anos antes de morrer, recordou sobre suas experiências amorosas entre iguais: “Houve, no entanto, alguma insatisfação dentro de mim. Eu quase me esqueci completamente de um assunto com a morte de minha mãe, mas não há dúvida de que, em sequência, fui muito melancólico. (...) não há dúvida de que, tendo virado completamente

2 Em sua biografia, Ôsugi recorda que em uma viagem a Nara com a escola de Cadetes de Tóquio, onde estudava, foi surpreendido por um professor enquanto estava com outro garoto. Ôsugi foi espancado junto com seu amante e condenado a 30 dias de encarceramento dentro da escola, punição comum nessas instituições para garotos entre 12 a 16 anos.

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minhas costas ao amor homossexual, o qual me permiti por vários anos, fiquei muito melancólico em relação a este lado da vida. Quanto aos amigos, havia apenas um corajoso grupo de fugitivos da Escola de Cadetes... mas nós apenas nos imitávamos e não tínhamos relações próximas” (apud IDEM, p. 32). Para Ôsugi, diferente do que vivera nas paixões gays quando mais jovem, na prisão, não era possível as relações amorosas, mas somente relações de autoridades. Ôsugi foi um homem marcado pela prisão, sonhava com o dia em que seria solto e o que faria, o que comeria e o encontro com os amigos. Quando cumpriu a pena em Chiba, recordou a respeito do dia em que foi solto: “No dia em que fui solto, conversei sem parar sobre as coisas da prisão, mas fiquei mudo no dia seguinte. Mal conseguia falar. Terá sido por ficar mais de dois anos sem conversas? Ou era graças à excitação de uma mudança brusca em minha vida, ter saído da prisão? Seja o que for, a gagueira a qual sempre sofri ficou horrível de repente. Estava tão ruim que nem poderia ser chamada de gagueira. Durante um mês, me comuniquei quase sempre somente pela escrita. Em casa ou na rua estava sempre com lápis e papel. Com frequência me perguntavam: ‘Você consegue escutar?’ É claro que não havia nada de errado com meus ouvidos. Quando escrevia algo e entregava às pessoas que não sabiam disso, elas também escreviam a resposta e entregavam para mim. (...) Algo mais comum também ocorreu. Durante um tempo, antes de sair, sonhava com o que comeria do lado de fora e quando comeria. Mas, quando saí realmente, tudo o que comia era extraordinariamente delicioso. Sobretudo arroz branco. Quando peguei a tigela, sua brancura parecia formar uma auréola brilhante. Colocava o arroz na boca. Meus dentes pareciam envolvidos como seu eu tivesse deitado em um acolchoado sob algo intensamente doce que saltava da ponta da minha língua. Arroz branco puro me bastava. (...) Somente um ex-presidiário pode saborear arroz japonês em sua plenitude” (ÔSUGI, 2002, pp. 169-170). Após a publicação de suas memórias na prisão, Ôsugi foi preso mais outras quatro vezes, até ser assassinado em 1923. *** Entre os anarquistas, Ôsugi nunca foi bem quisto. Não era alvo de questionamentos quando casado com Hori Yasuko e mantinha os costumes japoneses com a subserviência da mulher. Entretanto, em seu relacionamento com Kamichika Ichiko e Itô Nôe, ambas mulheres radicais vinculadas à revista feminista Seitô, seu nome passou a estampar os jornais do Japão a partir de denúncias de anarquistas que o acusavam de infidelidade. Tinha com elas relações livres. Todos seguiam três condições: cada

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pessoa deveria ser economicamente independente; morar separada da outra e agir livremente em todas as questões, inclusive nas relações sexuais. Kamichika, entretanto, apesar de ter corroborado com o combinado, não soube lidar com a situação e acabou tentando matar Ôsugi a facadas em 1916. A radicalidade da proposta de Ôsugi deve ser compreendida a partir da formação da família japonesa. Uma de suas expressões está no Koseki Tohon (registro de família), documento em que as famílias deveriam registrar seus integrantes. Procede da Era Tokugawa, mas foi institucionalizado somente nos anos iniciais da Era Meiji. Como o vimos, o Código Civil Meiji exigia que cada família tivesse um chefe, um homem, e um filho que herdaria a autoridade. Quando uma mulher se casava, era inclusa no Koseki Tohon da família do esposo e adotava seu sobrenome 3 . No documento não eram registrados estrangeiros, e o Código Civil não previa casamento entre um japonês e alguém de outra nacionalidade. Hoje são admitidos estrangeiros no Koseki Tohon, mas devem ser apenas mencionados, pois o documento é uma garantia da nacionalidade e da cidadania japonesa. Estas são cedidas somente aos japoneses com linhagem comprovada ou, mestiços nascidos no país e se comunicado três meses após o nascimento ao consulado ou a prefeitura. O Koseki Tohon também passou a ser utilizado para identificar a linhagem de um candidato a uma vaga em uma empresa ou de uma criança que será matriculada em uma escola4. Procedentes da Era Tokugawa, até hoje também são comuns os miai, casamento arranjado, voltados à construção de uma família bem-sucedida, ou seja, com um ou dois filhos, um esposo que trabalhe em uma grande empresa, e uma esposa que cuide da educação das crianças e administre as contas da casa. Comumente no casamento, arranjado ou não, o homem entrega à esposa todos os meses seu salário, ficando somente com uma parte para gastar como quiser. No começo dos meses, é comum a imagem de esposos caídos pelas ruas após terem ido a uma casa de prostituição ou terem passado a

3 Segundo o atual Código Civil japonês, os homens podem se casar a partir dos 18 anos e as mulheres dos 16. Após um divórcio, as mulheres são proibidas de se casarem novamente em menos de seis meses, o homem pode se casar a qualquer momento. Em 1996, o Ministério da Justiça recomendou que as mulheres pudessem escolher se queriam ou não modificar o sobrenome quando casassem. Entretanto, a Assembleia Legislativa opôs-se à proposta declarando que poderia ser prejudicial aos valores da família japonesa. 4 O documento até hoje é disputado entre os descendentes de japoneses residentes no Brasil. Na imigração no começo do século XX, muitos japoneses não trouxeram o Koseki Tohon. A partir da década 1990, quando muitos nissei e sansei (filhos e netos de imigrantes) foram autorizados a trabalhar nas fábricas japonesas, o documento tornou-se a única forma de comprovação da ascendência. As famílias que não o tinham ou que o perderam, ficavam vetadas de entrarem no Japão ou tinham de recorrer ao consulado e ao Museu da Imigração japonesa para verificar a possibilidade de reconstituir a linhagem.

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noite em um bar. À mulher, além de cuidar dos filhos e da casa, soma-se a função de cuidar dos pais do esposo (quando o marido for o filho mais velho). Não passa de uma administradora da contabilidade da casa, cuidadora e progenitora. A relação entre Kamichika, Itô e Ôsugi jamais constituiria um Koseki Tohon e nunca se conformou em um casamento japonês. Entretanto, a presença de costumes machistas era uma das características dos anarquistas do Japão. Émile Armand, escreve em francês sobre o amor livre em El anarquismo individualista. Lo que es, puede y vale no mesmo ano que Ôsugi quase foi assassinado. Ali escancarava como as relações libertárias são também uma luta para se desfazer dos hábitos do amor escravo. Não existe um manual de como agir, como se portar, mas liberdade para os diferentes interesses, as descobertas nas relações, a camaradagem amorosa. Para Armand, as relações de amor livre não estão pautadas em uma lei, elas estão fora do estado civil. É a liberdade em amar um ou vários simultaneamente, é uma questão de potência e não de quantidade, na qual se amam sem qualquer limite externo, sem qualquer regulamentação, ou por uma reputação a ser mantida, ou em nome de uma fidelidade ou defesa de uma aliança. Assim, a camaradagem amorosa não é uma simples busca pelo gozo, pelo prazer físico ou sentimental, mas uma possibilidade de reunir uns aos outros, os anarquistas individualistas, e a liberdade em associar-se com aqueles que se quer e recusar outros. O amor na camaradagem não é um capricho ou tentativa de infringir sofrimento a alguém; é uma associação livre feita por aqueles que a constituem e sem pretensões a ser eterna. “Aliás, como as palavras ‘sempre’ e ‘nunca’ têm uma aparência e uma significação excessivamente dogmática para serem admitidas – senão relativamente – no vocabulário individualista e anarquista: se é ‘como camaradas’ que nos ligamos amorosamente, será também ‘como camaradas’ que nos desligaremos; sem amargura, sem rispidez, com suavidade, como amigos dispostos a recomeçar a experiência amorosa talvez mesmo no dia seguinte a seu fim. Na verdade, bons camaradas não se impõem à cessação de suas relações amorosas; quando colocam um termo a elas, é por que estão de acordo um com o outro” (ARMAND, 2012, p. 27). Emilienne Morin, anarquista francesa e companheira de Buenaventura Durrutti, um combatente na Revolução Espanhola, também escancarava o machismo presente nos anarquistas na Espanha. Eles se espantavam ao ver Durrutti lavando louças ou diante do enfrentamento de Emilienne Morin, que se negava a obedecer qualquer tipo de ordem emitida pelo companheiro. Ela mostrou como alguns libertários mantiveram afastados alguns preconceitos que os atrapalhavam, enquanto mantinham aqueles que lhes

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convinham (ENZENSBERG, 1987)5. Diante dos homens espanhóis, Morin não abaixava a cabeça ou esperava uma ordem, ela os encarava enquanto uma das possibilidades e transformações que a revolução propiciava. A revolução e a ruptura com os costumes espanhóis estavam atreladas ao seu relacionamento e a sua vida. Emma Goldman também entendia que o amor só poderia ser livre; não se preocupava em qualificar qual era a prática amorosa correta, mas interessava-se por relações livres regadas de prazer. Em suas palestras, escancarava a incansável luta contra relações subservientes e mostrava como o ciúme, atrelado ao desejo de punir, é uma obsessão marcada pelo sentido de posse e vingança. Um de seus alvos de combate era o casamento, como afirmara em “Marriage and love” (1910). A união matrimonial não é gerada no amor, mas lhe é oposta. O casamento não passa de um arranjo econômico, de um acordo seguro. O casamento só se manteve pelo costume subserviente da mulher em relação ao homem, destacou Goldman. Desde criança, a menina é ensinada que seu fim último é o casamento e que nele encontrará a felicidade, devendo servir ao bom marido. “Feito a besta muda na engorda, ela é preparada para o abate” (GOLDMAN, 1910, p. 60). E, caso seja livre para experimentar o sexo sem a sanção do Estado ou da Igreja, a mulher é considerada imprópria para o casamento e nunca encontrará um bom homem. As reflexões de Emma Goldman certamente foram lidas por Itô Noe, que era considerada uma dessas mulheres impróprias para um casamento japonês. Itô que via a urgência em realizar traduções da obra de Goldman para a sociedade japonesa, encarou sem pestanejar as feministas liberais de seu tempo e qualquer um que se impôs a suas relações. As reflexões sobre amor livre entre os anarquistas no Japão, também foram uma preocupação vital para a libertária Takamure Itsue. Em 1930, quando as perseguições aos anarquistas se acirravam cada vez mais, publicou Uma visão do amor anarquista. Como Goldman, Takamure entendia que o amor não poderia ser outra coisa que não livre. Apesar do amor estar aprisionado, “nós precisamos lutar persistentemente pelo amor livre, abolindo tradições que enxergam o amor como uma ‘prisão’. Amor livre significa nada menos que o amor anarquista” (TAKAMURE, 1930, p. 384).

5 Destaca-se também na Revolução Espanhola o grupo Mujeres Libres, formado por mulheres anarquistas pouco antes de eclodir a Revolução, dedicando-se a retirar a mulher espanhola do confinamento doméstico, levando-as do obscurantismo religioso às instruções sobre a saúde feminina. Criava-se novos estilos de vidas apartados e contrários à subserviência da mulher em qualquer espaço, fosse no trabalho ou na família (RAGO, 2005).

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A prisão a qual Takamure refere-se é o casamento, que torna a mulher apenas uma reprodutora e útil para saciar um esposo. “Numa sociedade como a nossa, os atos sexuais são totalmente impossíveis, exceto dentro dos limites das cadeias [da família] ou na forma de atos lascivos perversos que as mulheres não desejam” (IDEM, p. 385). Assim, na sociedade japonesa no começo do século XX, destaca a anarquista, é imperativo afastar- se do que atrapalha na produção, como seriam as demonstrações de afeto em público ou algo semelhante. Como tais ações não produzem nada, devem ser relegadas, e o sexo só poderia ocorrer no casamento-prisão com o objetivo de produzir filhos para servirem à nação. “Em uma tentativa de realizar uma exploração voraz fazendo as pessoas acreditarem que o que é feito ‘pela nação’ e ‘por Deus’ é a única coisa que importa, pensam em como se livrar de todos os desejos humanos problemáticos, e uniformemente regimentar as pessoas, afastando-as tanto quanto possível das atividades improdutivas. Isto é, cada indivíduo é emparelhado com outro indivíduo do sexo oposto e feito para privadamente tê-lo ou tê-la sob condições fixas. (...) Desde o surgimento da sociedade opressiva, as atividades sexuais foram fortemente reprimidas e vulgarizadas. Porque elas foram implacavelmente institucionalizadas para a conveniência e manutenção do poder opressivo, a vida sexual que vemos agora diante de nossos olhos apresenta um quadro quase infernal” (IBIDEM, pp. 385-386). O amor livre é um desafio, um desacostumar-se a mandar e a obedecer. Mesmo quando acaba também não é tranquilo. “Um encontro começará com apreço e desejo sincero, e a despedida também ocorrerá com apreço e bondade serena. Podemos experimentar um amor ardente por um curto período sem saber quando e onde, e não há razão para negar a liberdade de realizar esse amor. (...) Às vezes, pode ser necessário enterrarmos em silêncio o amor ardente que nossos corações começam incidentalmente a abraçar (...). Em tais casos, nosso amor pode ser trágico, mas isso é inevitável” (IBIDEM, p. 387). Segundo Sonia Ryang, pesquisadora nascida no Japão pós-guerra e filha de coreanos, a luta de Takamure estava no amor, não aderiu ao socialismo, repudiou as pautas das feministas liberais e combateu incansavelmente o casamento. Entretanto, Takamure não chegou a conhecer Ôsugi e Itô. A anarquista chegou a Tóquio em 1920, ainda casada com Hashimoto Kenzô, de quem se separou em 1925. Apesar da rápida reconciliação, por ter deixado sua casa e peregrinado por algum tempo pela cidade, seu caso tornou-se um escândalo público, desembocando no fortalecimento de sua militância anarcofeminista.

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As relações de Itô e Ôsugi foram rechaçadas como imorais até mesmo por inúmeros anarquistas. Para muitos anarquistas a moral é um ponto fundamental para a discussão de uma sociedade anarquista futura. Errico Malatesta apresenta em Os anarquistas e o sentimento moral, texto originalmente publicado em 1904, que, ao declarar-se contra a moral, um anarquista faz isso apenas em teoria, na prática é uma repulsa específica à moral burguesa. Pois, sem a moral não há como viver em sociedade; para ele, não é possível combater a moral, e aqueles que o fazem “esquecem que se revoltar contra toda regra imposta pela força não quer dizer em absoluto renunciar a toda reserva moral e a todo sentimento de obrigação para com os outros; – esquecem que para combater de modo racional certa moral, é preciso opor-lhe, em teoria e em prática, outra moral superior” (MALATESTA, 2008, p. 55). Essa moral superior seria a anarquista, uma moral de luta e de solidariedade. Assim, a moral em Malatesta é um conjunto de costumes que estará presente em uma sociedade anarquista futura. Há um certo código que precisa ser estabelecido, e que muitos anarquistas já o traçam em suas relações. Kropotkin também sinaliza para a moral e suas possibilidades na anarquia. A sociedade capitalista não é moral, mas imoral. E, por meio da crítica anarquista, uma nova moral emergirá, uma moral que “nada ordenará. Recusará em absoluto modelar o indivíduo ao sabor de uma ideia abstrata, como recusará mutilá-lo pela religião, pela lei ou pelo governo. Deixará ao indivíduo a sua plena e inteira liberdade. Tornar-se-á uma simples constatação de fatos, uma ciência” (KROPOTKIN, 1945, p. 36) A moral aos anarquistas também se faz presente na educação. Por meio das sugestões de Pierre-Joseph Proudhon sobre a educação integral6, Paul Robin propôs uma educação integral que fosse física, intelectual e moral. Aplicou-a no Orfanato de Cempuis (1880-1914), onde o conceito de moral estava em mostrar a meninos e meninas como viver juntos em liberdade. Por isso, uma de suas propostas eram as salas mistas, até então proibidas na França. Essa experiência seria retomada na educação libertária de La Ruche

6 A moral em Proudhon também está em A Pornocracia, obra que relega a mulher ao casamento e a caracteriza como incapaz de qualquer discussão, por sua inferioridade física e intelectual. Proudhon não fora o primeiro nem o último anarquista a aprisionar a mulher ao lar. Sua misoginia está escancarada na Pornocracia: “Eu nunca encontrei uma mulher que fosse capaz de acompanhar um raciocínio durante quinze minutos. Elas têm qualidades que nos faltam, qualidades de um encanto particular, inexprimível, mas em termos de razão, de lógica, de capacidade de articular ideias, encadear os princípios e as consequências e de perceber as relações entre eles, a mulher, mesmo a mais superior, raramente alcança o nível de um homem de capacidade medíocre” (PROUDHON, 1975, pp. 26-27). Proudhon é um exemplo de como não é possível estabelecer um ideal anarquista. E, como os anarquistas no Japão, na Revolução Espanhola e em outros cantos do planeta, é um homem que não se desvencilhou do machismo e para quem era inadmissível e insuportável a existência de mulheres corajosas.

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(1904-1917), também na França e coordenada pelo anarquista Sébastien Faure. Em uma conferência realizada em 1921, em Paris, e com o tema Criança, Faure expôs sua proposta de educação integral – intelectual, física e moral. Esta última sendo um dos pontos principais para a formação do “homem de amanhã”. Isso seria possível em educação por meio do exemplo: apenas professar conceitos morais não leva a nada, enquanto o exemplo seria determinante (FAURE, 2009). A moral anarquista, mesmo vislumbrando uma sociedade futura e tentando delimitar seus preceitos, não deve ser confundida com a manutenção de costumes autoritários, como já traçava Malatesta. Mesmo diante da tentativa de reconstrução de uma moral, libertários realizaram inúmeras experiências para instigar crianças, mulheres e homens. Essa moralidade, por sua vez, também se expressa, em alguns casos, nas condutas de anarquistas. Ôsugi foi um dos poucos que rompeu com os comportamentos esperados e, principalmente, com os costumes japoneses incrustados em muitos anarquistas. O escândalo promovido em torno das relações amorosas de Ôsugi o levou ao ostracismo, somando-se a isso as dificuldades financeiras e a constante vigilância policial. Ele retomou a escrita e o contato com a impressa anarquista, em 1918, por incentivo de Itô Nôe, sua última companheira, quando esta se destacou na revista feminista Seitô (meia azul) ao escancarar os costumes machistas japoneses. Entre os anarquistas, Itô Nôe era comumente colocada à sombra de Ôsugi. Era relegada ao papel de simples companheira de um dos libertários de maior expressão na Ásia e de tradutora das obras de Emma Goldman para o japonês. Itô jamais ocupou uma posição de simples companheira. Quando conheceu Ôsugi, tinha certo destaque nos movimentos feministas por sua radicalidade. Em 1911, a revista Seitô foi fundada por Hiratsuka Raichô (1886-1971) – a primeira revista no Japão produzida somente por mulheres7 – como desdobramento da organização Seitosha, que Itô passou a integrar em 1913. Ela traduziu textos de Emma Goldman sobre a questão da

7 O nome referia-se a um grupo de literatura londrino da metade do século XVIII, que recebeu esse nome por seus integrantes usarem meias azuis. Hiratsuka – conhecida por conta do Incidente de Baien, quando teria planejado um duplo suicídio em 1908 com o seu companheiro Morita Sohei (18881-1949), um escritor que apontou para essas intenções no romance Baien (1909) – destacava em seu primeiro editorial o objetivo da revista: “No começo, a mulher era o sol. Era uma autêntica pessoa. Hoje ela é a lua. Vive para os outros, brilha com a luz dos outros, é a lua com um pálido rosto de um inválido. Hoje nasceu a Seitô, criada pelos cérebros e mãos de mulheres japonesas. O que as mulheres fazem hoje apenas produz risos de desespero... Devemos restaurar o nosso sol escondido. ‘Recuperar o nosso sol escondido e o nosso potencial’” (HIRATSUKA apud HORIMOTO, 1999).

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mulher, dando novos contornos à revista. A primeira tradução de Itô foi “The tragedy of women’s emancipation”, que saiu em setembro daquele ano. Até então, a Seitô indicava brevemente algumas demandas do movimento feminista liberal. Mesmo assim, sofria inúmeras censuras por ser uma revista considerada pelo Ministro do Interior como uma ofensa ao sistema familiar (HORIMOTO, 1999). Por sua vez, o famoso texto de Emma Goldman criticava como a emancipação da mulher tinha se tornado sinônimo de direito ao voto e de conquista de direitos civis, não havendo qualquer confronto com o Estado e as suas violências, mas a adequação das mulheres a uma outra obediência. Para Goldman, é preciso livrar-se da posição de subordinada ou escrava. Para isso é necessário uma transformação de si e esquivar-se da acomodação, que não passa de um vazio para aquietar a luta da mulher na conquista de direitos. Como sugeriu a anarquista lituana, não há direito que faça alguém combater seus tiranos internos (GOLDMAN, 1911). Ao ler o artigo, Ôsugi interessou-se por Itô e convidou-a para escrever no jornal Kindai Shisô (Pensamento Moderno) a respeito de sua leitura sobre a obra de Emma Goldman (LARGE, 1977). As integrantes da Seitô, em sua maioria, lutavam pela emancipação alertada por Goldman. Eram comumente chamadas de atarashii onna (novas mulheres), assim como as feministas liberais nos EUA e na Europa. Itô recusava esse título dado pelos jornalistas japoneses. Sua intransigência, enquanto estava na Seitô, era atribuída, segundo Marion Saucier (2012), à sua pouca idade. Itô também escrevia sobre o ciclo menstrual feminino, visto como uma aberração por muitos escritores japoneses, o aborto e outras questões de saúde feminina. Seus artigos eram constantemente censurados pelo governo japonês. Não é incomum entre as mulheres anarquistas tratar de questões referentes ao corpo feminino. Temas como métodos contraceptivos, aborto e higiene marcam presença entre as libertárias, mesmo sendo um temário considerado muitas vezes como não revolucionário. No entanto, para muitas delas, a mudança começava ao cuidar-se e conhecer-se. Itô assumiu a editoria da revista em 1915, por conta da frágil saúde de Hiratsuka. No ano seguinte a publicação foi encerrada. No período que assumiu a editoria, priorizou artigos anarquistas, tornando a Seitô rapidamente conhecida pelos contornos editoriais, os quais afirmava serem desprovidos de doutrina. “As revistas Seitô serão publicadas sem quaisquer princípios de orientação, sem qualquer doutrina política, sem insistência em um modo de pensar ou qualquer doutrina clara (...). Aqueles que querem uma doutrina ou uma diretriz para seguir, devem começar suas próprias revistas. Quanto a mim, minha

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única intenção é proporcionar às mulheres uma revista sem doutrinas, princípios a serem seguidos ou quaisquer diretivas” (ITÔ apud SHUBE, 1996, p. 25). O periódico sob coordenação de Itô não pretendia guiar as mulheres, dizer o que deveriam fazer, mas apresentar o que estavam fazendo, o que estavam seguindo a partir de suas demandas. Assim, a produção de Emma Goldman parecia-lhe interessante por não ordenar às mulheres o que deveriam fazer, mas indicar ao que se submetiam, fosse no governo da casa, no Estado ou no partido. Itô, acompanhada de Goldman, sabia que a anarquia não é doutrina, estava no combate contra quem queria governar e direcionar a vida do outro. Na leitura de Tomida Hiroko em “The Legacy of the Japanese Bluestocking Society: its influence upon literature, culture and women’s status” (2016), Itô seria a responsável pelo fim do periódico. Apesar das mudanças editoriais, tornou a revista menos atraente, levando a um colapso financeiro. Tomida ainda corrobora com a imagem machista construída por outros estudiosos de Itô como a esposa de Ôsugi. Em sua argumentação, ao unir-se com o anarquista, ela deixou a revista em segundo plano tomando as decisões editoriais sem solicitar aconselhamento da liberal Hiratsuka. Ou seja, até hoje a proposta de Itô permanece insuportável a pesquisadores que buscam o protagonismo do homem para a ação de uma mulher, ou que entendem a luta de mulheres como uma demanda liberal em equiparação de direitos. Com a queda de procura, a Seitô lançou seu último número em fevereiro de 1916 (STANLEY, 1982). Pouco antes, Itô terminou seu relacionamento com Tsuji Jun8, um proeminente poeta e tradutor, para lançar-se no relacionamento com Ôsugi, que também mantinha um relacionamento amoroso com Kamichika Ichiko9. Hiratsuka somou-se aos inúmeros liberais, socialistas e anarquistas que condenaram a paixão de Itô e Ôsugi, afirmando que múltiplas relações levam a um descaso e não cultivam a intenção de continuidade, sendo um abuso do amor livre. Leituras recentes sobre a paixão de Itô e Ôsugi ainda buscam condená-los ou justificar a atração do libertário pela anarcofeminista. Large (1977) afirma que Ôsugi ficou com Itô porque ela seria como uma encarnação de Emma Goldman no Japão. Uma “prova” disso estaria no fato de que uma de suas filhas recebeu o nome de Emma. Em sua leitura, Ôsugi

8 Tradutor da obra O único e sua propriedade de Max Stirner para o japonês. Morreu de inanição em 1944, durante a II Guerra Mundial. 9 Kamichika conheceu Ôsugi quando tinha 26 anos, em abril de 1914, em um encontro da Sanjikarizumu kenkyûkai (Sociedade de Estudos Sindicalistas).

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teria refutado seu pensamento sobre amor livre ao associar-se a Itô. A leitura de Large identifica e reduz o amor livre à relação com vários parceiros e nunca possível entre dois. Relações livres não se pautam em quantidade. Não é uma questão numérica, mas de desfazer-se diariamente dos inúmeros autoritarismos que uma relação pode carregar. A prática de Itô no amor livre estava em não se submeter a qualquer homem; destruir a noção de virgindade e o complementar casamento; não depender financeiramente de alguém (ITÔ, 1915). Itô atentava contra o amor escravo e a vitalidade em recusá-lo, como também mostrou Émile Armand. Uma relação livre não é uma questão de quantidade, como mostrou o libertário na França. Não se trata de se submeter à prisão-casamento como analisou Takamure, mas de associar-se livremente com aquele que lhe atrai, sem qualquer censura. A postura de Itô provocou um boicote de sua produção até mesmo por parte de alguns anarquistas. Em livros a respeito das lutas feministas, no começo do século passado no Japão, muitas vezes seu nome é somente mencionado como quem traduziu Emma Goldman, ou como quem arruinou a revista Seitô (MACKIE, 2003; LARGE, 1977). Por meio da leitura e tradução das obras de Emma, Itô destacava os limites da emancipação que a própria revista tanto aclamava. “Emancipação não significa mudar o penteado. Nem significa andar vestida com uma capa. Muito menos beber algo como ‘um vinho de cinco cores’. No entanto, aquelas pessoas que se consideram nobres e refinadas e riem de mulheres que se vestem com a última moda e bebem, como se estivessem cometendo algum pecado terrível, essas pessoas parecem ser mais incapazes de entender o que significa emancipação. O vestido é uma expressão do gosto individual das pessoas. Beber também não é mais do que a própria preferência pessoal” (ITÔ apud SETOUCHI, 1993, p. 246). Quando foi publicado Anarchism and other essays de Emma Goldmand, Itô rapidamente realizou as traduções de “A tragédia da emancipação da mulher”, “Casamento e amor” e “Minoria versus maioria”. Essa seleção não foi mero acaso. Nos dois últimos textos estão duas questões caras a Itô: o amor livre e a massa obediente. A primeira refere-se diretamente à sua vida e de seu amor com Ôsugi. Seus questionamentos aos costumes e à própria condição da mulher foram de encontro a Goldman e as questões que essa levantava. “Primeiramente, o casamento é um arranjo econômico, um pacto de seguro. Só difere do contrato de seguro de vida naquilo que tem de mais obrigatório, de mais exigente. (...) Ao se contratar uma apólice de seguro se paga em dólares e centavos,

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mas nos resta sempre a liberdade de descontinuar os pagamentos. Entretanto, se o marido é o prêmio do seguro, ela paga por isso com seu nome, sua privacidade, sua autoestima, com sua própria vida “até que a morte os separe”. No mais, o contrato do casamento condena a mulher a uma dependência vitalícia, ao parasitismo, à completa inutilidade individual bem como social” (GOLDMAN, 1910, p. 234). No texto seguinte, Goldman relata como uma massa uniforme pode acabar com invenções livres. “Como massa, seu objetivo foi sempre uma vida mais uniforme, cinzenta e monótona, como o deserto. Como massa, será sempre o exterminador da individualidade, da livre iniciativa, da originalidade” (GOLDMAN, 2008, p. 132). Os costumes livres de Itô surpreendiam qualquer um que pretendesse estabelecer uma nova moral. O temor estava articulado a uma população japonesa acostumada à obediência e à reprodução dos ensinamentos do Kokutai. Atravessada pelas reflexões sobre o casamento, ela tentou publicar na revista Saitô um conto de uma moça que foge do miai (casamento arranjado) e se apaixona por outro rapaz que prometia escapar do Japão junto com ela. Os planos não se tornaram reais, o rapaz traiu a moça que se viu sozinha e mesmo tendo negado o miai, colocava-se à sombra de um homem para que seu desejo fosse realizado. O conto foi censurado e a publicação recolhida. Anos mais tarde, quando Itô assumiu a direção da revista, o governo a fecharia definitivamente sob a acusação de ser um risco ao intocável Kokutai (SHUBE, 1996). Ôsugi tomou contato com os escritos de Itô e surpreendeu-se com a forma com que a jovem mulher destacava seus distanciamentos com o movimento feminista liberal e afirmava a urgência da libertação da mulher japonesa. Em uma resenha, declarou sobre Itô e as publicações feministas japonesas na Seitô: “Eu não estou elogiando a Noe simplesmente porque ela foi fortemente influenciada por Emma Goldman, uma anarquista como nós. Pode parecer bastante rude, mas uma mulher tão jovem e nascida entre mulheres que foram criadas na ignorância por um período tão longo, sinceramente não posso deixar de admirar a maneira como ela alcançou tal escrita e pensamento. Um homem mais velho do que eu poderia dizer a mesma coisa da senhorita Raichô, mas suas ideias já são vagas e confusas, e sua posição já é fixa e imutável. Parece-me que o futuro da senhorita Noe é muito mais digno de atenção...” (ÔSUGI apud SETOUCHI, 1993, p. 251). Itô rompeu com as feministas e com parte dos anarquistas quando esses tentaram governar sua vida. Retomou o contato com essas mulheres somente em 1921, quando foi fundada a Sekirankai (Sociedade Onda Vermelha) em parceria com Kikue Yamakawa,

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uma socialista. O grupo era uma réplica da Nihon Shakaishugi Dômei, onde somente os homens podiam participar, e se opunha ao grupo liberal Shin Fujin Kyôkai (Sociedade da Nova Mulher). Itô e Kikue fizeram-se presentes no 1º de Maio como um meio de divulgarem o grupo. A inaugural manifestação do 1º de Maio no Japão ocorreu em 1920, no Parque Ueno, em Tóquio, com cerca de 5000 participantes. Ali, Kikue lançou um manifesto. Por sua vez, Itô marcou sua diferença ao optar por não o assinar: “A sociedade capitalista nos transforma em escravos em nossas casas e nos oprime fora dela enquanto escravos assalariados. Transforma muitas das nossas irmãs em prostitutas. Suas ambições imperialistas roubam nossos amados pais, filhos, namorados e irmãos para transformá- los em bucha de canhão. Isso força os proletários de outros países a matarem uns aos outros brutalmente. É uma sociedade que, por causa de seus aproveitadores gananciosos, esmaga e sacrifica os jovens, a saúde, os talentos, todas as chances de felicidade, e até mesmo nossas vidas. Não há compaixão. A Sekirankai declara guerra total a essa sociedade cruel e sem vergonha. Mulheres que desejam ser livres, juntem-se a Sekirankai!” (KIKUE apud HANE, 1993, pp. 126-127). O manifesto ainda expunha como condicionante da libertação da mulher uma Revolução Socialista. Esse pode ter sido um dos motivos para a recusa de assinatura por Itô, que não estava à espera de uma revolução, mas conduzia sua vida livre no cotidiano. Cerca de 20 integrantes da Sekirankai tomaram parte nas manifestações, cada uma com uma bandeira negra ou vermelha. Ao final, todas foram presas. As atividades das mulheres passaram a tomar conta dos noticiários jornalísticos que as identificavam como pessoas perigosas para a família. Mesmo assim, elas continuaram a se organizar de acordo com seus interesses e no ano seguinte, a participação das mulheres cresceu. As críticas da Sekirankai à Shin Fujin Kyôkai apontavam para as lutas liberais feministas como fortalecedoras do capitalismo. As críticas, principalmente de Yamakawa, dirigiam-se à Raichô, que proclamava a emancipação apenas das mulheres de alta classe. Em 1921, a Sekirankai seria encerrada pela Lei de Ordem Pública de 1900, que, em um dos seus artigos, proibia as mulheres de reunirem-se em organizações políticas ou tomarem parte em qualquer atividade. Itô passaria então a dedicar-se às traduções e à redação de artigos publicados em jornais editados por Ôsugi.

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anaboru ronsô. a Revolução Russa: não há como compor.

No ano de 1917, o inesperado aconteceu. A Revolução Russa agitou anarquistas e socialistas de todos os cantos do planeta. No Japão não foi diferente. A comemoração e a empolgação com a vitória dos bolchevistas levou, nos anos seguintes, à separação entre socialistas e anarquistas, os quais até então cultivavam uma certa aproximação, convivendo com suas diferenças. Na foto abaixo, vemos da esquerda para a direita, de camisa branca Shinkai; Ôsugi Sakae sorrindo; Sakai Toshihiko; Yamazaki Konoya; Yamakawa Hitoshi – que fundaria o Partido Comunista Japonês –; Kondo Eiji; ao fundo, próximo à porta, não identificado. Esse era um dos momentos em que libertários e socialistas convivam em suas diferenças e, aparentemente, apreciavam um jantar regado a saquê.

Fonte: CIRA-Japana, s/d.

Uma imagem como essa não seria mais vista com tanta facilidade. De um lado, ficaram os pró-bolchevistas como Sakai Toshihiko, Yamakawa Hitoshi, Arahata Kanson e Takabatake Kotoyuki. Em oposição a eles estava Ôsugi Sakae. Segundo o biógrafo do anarquista, Thomas A. Stanley, a repulsa de Ôsugi ao marxismo-leninismo procedia da

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impossibilidade de compactuar com o Komintern. Além disso, perdurava a inimizade jamais aplacada com um de seus integrantes, o autoritário Sakai. Esse transformou a separação de Ôsugi e Hori Yasuko, sua cunhada, em um escândalo. Ôsugi não perdeu tempo com isso, já que considerava que a Guerra Russo- Japonesa havia influenciado a Revolução de 1905. A guerra escancarou o que era o governo, o que era a miséria e como se produziam violências. Entretanto, essa proposição não deve ser confundida com a de Kropotkin e o famoso Manifesto dos 16, que foi redigido pensando-se na possibilidade de desdobrá-lo em uma revolução de mesmo alcance. O Manifesto dos 16 reuniu 15 anarquistas, e foi publicado no jornal La Bataille, em 14 de abril de 1916. Além de Kropotkin, também foi assinado por outros célebres nomes da anarquia como Jean Grave e Paul Reclus, anarquistas que proclamavam a necessidade da vitória da Tríplice Entente sobre a Alemanha, e que acabaram saudados pela imprensa reacionária da época. Apesar de serem somente 15 signatários, o Manifesto recebeu tal nome por Husseindey ser confundido como o décimo sexto assinante, porém, era o nome do local de onde um dos componentes assinou. Mesmo assim, não se restringiu apenas aos 15. Como destaca Hem Day (1933) no verbete “Seize” da Enciclopédia Anarquista, muitos seriam os grupos ditos anarquistas que viriam a declarar apoio ao Manifesto. Entre os assinantes estava Ishikawa Sanshiro (1876-1956), anarquista que viajou à Europa, onde se aproximou de Paul Reclus e que propunha em seus escritos a vida no campo como forma de resistência às violências trazidas com a industrialização10 (PITTELOUD, 2011). Anarquistas na Inglaterra continuaram suas manifestações a favor da guerra mesmo após a publicação do Manifesto. O periódico Freedom, lançado por Kropotkin e Charlotte M. Wilson em 1886, abrigou os debates entre os anarquistas em outubro, novembro e dezembro de 1914. De um lado, Kropotkin, pró-guerra, de outro lado,

10 Traduziu inúmeros textos de Elisée Reclus e, influenciado pelo geógrafo libertário, desenvolveu o conceito de domin shiso (pensamento do povo da terra), ou seja, as pessoas fazem parte da natureza, mas as instituições e a religião as separavam. “Nossa sabedoria só pode vir da cultura desta terra e nossa felicidade só pode existir no cultivo. (...) Nós mesmos somos a Terra. (...) A conquista da natureza significa a sua destruição, ou seja, a nossa própria destruição. Por esta razão, a vida civilizada leva à deterioração da vida humana e nada mais é que uma rebelião contra a terra. O movimento da terra, esse movimento de rotação e revolução, é a grande dança da natureza. (...) O canto do pássaro do alto da árvore, o farfalhar da corrente descendo o vale, o som do vento que sopra entre os pinheiros no topo da montanha, o murmúrio de pequenas e grandes ondas se aproximam da praia tudo isso é apenas uma parte da orquestra da natureza. A terra é uma grande artista” (ISHIKAWA, 1926, p. 49).

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Malatalesta antiguerra. Kropotkin tomava posição em defesa da França, considerando-a mais avançada e que sua derrota poderia trazer piores consequências (DAY, 1934). Um ano antes do Manifesto dos 16, Kropotkin proclamou diante de alguns amigos: “E a guerra? Eu disse, durante uma visita anterior a Paris, numa época em que também era uma questão de guerra, que me arrependi de ter 62 anos e não poder pegar em um rifle para defender a França caso ela fosse invadida ou ameaçada pela Alemanha. Eu não mudei minha opinião sobre este ponto. Não permito que um país seja abusado por outro, e defenderei a França contra qualquer outro país que seja: Rússia, Inglaterra, Japão e também contra a Alemanha” (apud IDEM). Errico Malatesta em sua resposta ao Manifesto na revista Freedom, afirmou que combater a guerra é combater o Estado. Reverenciar e proclamar a guerra é prolongar um massacre mantido pelo Estado. Para Malatesta a luta antimilitarista seria indissociável da anarquia e incitar um confronto é defender o Estado e as relações capitalistas. Então, assinantes do documento não estavam sendo anarquistas, mas apoiadores do governo. Em repulsa à guerra, no começo de 1915, alguns anarquistas lançaram o artigo “A internacional anarquista e a guerra”: “O Estado nasce da força militar; desenvolveu-se usando a força militar; e ainda está na força militar que ele deve confiar logicamente para manter todo o seu poder. Qualquer que seja a forma, o Estado é apenas uma opressão organizada para o benefício de uma minoria privilegiada. O atual conflito ilustra isso” (apud DAY, 1934). Muitos libertários de diferentes nacionalidades como Emma Goldman, Rudolf Rocker, Volin, Émile Armand e Sébastien Faure combateram o posicionamento do Manifesto. Assim também o fez Ôsugi Sakae. Em 1914, ao eclodir a guerra, Ôsugi ansiava que a efervescência russa de 1905 se espalhasse novamente como uma resposta à I Guerra Mundial. Quando do lançamento do Manifesto, ele não escondeu sua repulsa ao documento, destacando que sua expectativa de ebulição na Rússia não era um apoio às matanças, mas uma resposta à violência da guerra. Em fevereiro de 1917, declarou seu apoio à revolução, como destaca Asukai Masamichi11.

11 Há diferentes leituras a respeito do apoio de Ôsugi à Revolução. Para Stanley, o libertário não teria se posicionado até 1919, quando escreveu sobre a Revolução e, posteriormente com a tradução de escritos de Berkman. Entretanto, não se pode esquecer que nos anos anteriores, Ôsugi era boicotado por muitos socialistas e anarquistas pelas relações amorosas e livres que traçava, optando por não divulgar seus escritos.

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Em abril de 1918, ocorreu o Roshiya Kakumei Kinen Kai (Encontro de comemoração da Revolução Russa), reunindo cerca de 40 pessoas de diferentes procedências. Ôsugi teve seu discurso criticado inúmeras vezes, uma vez que não concordava com alguns socialistas quanto à ditadura do proletariado. Nesse mesmo ano, Ôsugi agitou-se com a Revolta do Arroz, destacando que uma revolução não reconhece fronteiras e poderia ocorrer a qualquer momento também no Japão. “A segunda Revolução Russa causou uma profunda impressão nas massas. A rapidez com que foi noticiada nos jornais diários foi recepcionada com grande interesse. Entretanto, os capitalistas e o governo estavam confiantes que a revolução era estrangeira, não japonesa” (ÔSUGI, 1920 apud STANLEY, 1982, p. 130). Um dos reflexos da Revolução Russa, no Japão, foi a Revolta do Arroz de 1918. Contando com algumas particularidades ela eclodiu como uma resposta ao racionamento do alimento, somado à inflação pela qual passava o país desde o final da I Guerra Mundial. Essa revolta remontava às manifestações que ocorreram no campo no período Edo. A Revolta do Arroz é comumente associada ao Incidente Incendiário de Hibuya ocorrido em 1905, no período que vai até 1918, conhecido como Era das Violências Populares, minshû sôjô ki (LEWIS, 1990; GORDON, 2014). Desde o final da Guerra Russo-Japonesa em 1905, inúmeros distúrbios com diferentes características aconteceram em razão do pauperismo que se acumulava desde a I Guerra Sino-Japonesa. Em 1905, as ruas de Tóquio foram tomadas por três dias. Entre os grupos que se manifestavam, encontravam-se os contrários ao Tratado de Portsmouth assinado no fim da Guerra Russo- Japonesa. Estes acreditavam que o Japão estava perdendo território ao abrir mão de parte da Manchúria e que a Rússia deveria pagar uma indenização pelos altos custos da guerra. Jornalistas, professores universitários e políticos apoiadores da guerra convocaram todos que fossem a favor de sua continuidade e contrários à assinatura de um tratado de paz (GORDON, 2014). O cunho nacionalista da manifestação, entretanto, foi acompanhado da destruição das casas de várias autoridades do governo e do incêndio de guaritas policias. Em 18 de setembro de 1905, o periódico Kinji Gahô12 publicou uma ilustração de uma guarita policial sendo incendiada pelos manifestantes.

12 Fundado por Yano Fumio (1851-1931), sua publicação seguias os moldes do jornal londrino The Graphic que conheceu após uma viagem à Inglaterra: continha ilustrações, xilogravuras e alguns textos sobre as notícias diárias. Lançado em 1903, inicialmente tinha o nome de Gráfico Oriental (Tōyō Gahō) sendo renomeado no mesmo ano com Gráficos dos Eventos Recentes (Kinji Gahō). Com a guerra Russo- Japonesa, Yano e seu editor-chefe, Kunikida Doppo, entenderam que era necessário lançar imagens

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Fonte: http://siskoid.blogspot.com/2015/09/adventure-seed-burning-police-boxes.html. Acesso em: 16/06/2018.

Para parte dos russos, a derrota para o Japão escancarou o que é o Estado e era preciso acabar imediatamente com a miséria e as suas violências. Uma das soluções encontradas foi a criação dos soviets, vitais para as Revoluções de 1905 e de 1917. Em Tóquio, os efeitos foram diferentes. A população pedia o fim da miséria com expansão do território que culminasse em uma vitória massacrante, com a produção de mais sangue. O Incidente de Hibuya foi um dos primeiros a ocorrer em uma cidade. Ôsugi não tomou parte das manifestações. Assim como seus amigos anarquistas e socialistas, voltava-se à luta antimilitarista. O Incidente de Hibuya foi uma manifestação nacionalista sem o uso da violência, como as inúmeras que viriam a ocorrer no Japão durante a II Guerra Mundial e que tomam as ruas até hoje. Não há trata de uma continuidade entre 1905 e 1918. São eventos diferentes, há uma ruptura. A Revolta do Arroz incendiou o campo, depois tomou as cidades sem reivindicar uma expansão territorial ou aumento da presença do Estado. A Revolta do Arroz estava mais próxima de uma tentativa de destruir um governo que atuava sobre a vida. Segundo o periódico Libero (n. 5, 1978), o comércio do arroz na época ocorria principalmente por venda a crédito. Não importava para o vendedor se a família era

diariamente sobre o confronto. Em 18 de fevereiro de 1904, renomearam o periódico para Gráfico em Tempos de Guerra (Senji Gahō); na sua quarta edição sob o novo título, as imagens eram acompanhadas de descrições em inglês e japonês (GORDON, 2014).

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paupérrima ou o que faria para ter de pagar. Caso tivessem um endereço, recebiam o alimento, tendo de fazer o pagamento no outono ou no final do ano (períodos tradicionais de acerto de dívidas no Japão). Mas os que não conseguiam pagar, sofriam com as punições dos comerciantes, por isso, muitas famílias abandonavam suas casas na noite de 31 de dezembro fugindo dos vendedores. Entre os anos de 1905 a 1918, inúmeras manifestações ocorreram, como aquelas contra o aumento das tarifas dos bondes (1906), o aumento dos impostos (1908), por reformas na constituição (1913), por políticas de controle da China e o aumento da influência do Japão no país que se acirrava desde a vitória na Guerra Sino-Japonesa (1913), contra a corrupção na Marinha (1914), a favor do sufrágio universal (1918) (GORDON, 2014). O ano de 1918 representou um estopim diante da miséria, diante da guerra. Não havia negociação possível. As vitórias militares japonesas nas guerras Sino-Japonesa e Russo-Japonesa produziam mais pauperismo, como qualquer guerra. Tratava-se somente de uma questão do exercício do dispositivo diplomático-militar e sua relação com o exterior, da sede de conquista e de expansão de um Império recém-modernizado. Internamente, a disciplina da população manifestava-se na adoção de tecnologias políticas importadas, como de imediato, as prisões. O exercício de um poder sobre a vida associado às práticas punitivas do período Tokugawa provocara inúmeras resistências, principalmente camponesas. No auge da modernização da Era Meiji, em um país que despontava como potência militar, em 22 de julho de 1918, a vila rural de Toyama (costa norte de Honshu) foi tomada por manifestações. Esposas de pescadores tentaram impedir a exportação do grão e seu escoamento por conta do alto preço. As tradicionais murakata Ikki13, comuns entre os séculos XVI a XIX, tomaram a vila. Rapidamente as manifestações alastraram-se em saques e bombardeios a delegacias. Mais de 25.000 pessoas foram presas por possíveis conexões com os motins. Diferente das Ikki contra o xogun no período anterior e restritas somente ao campo, essas revoltas repercutiram pelas cidades (LEWIS, 1990). Era apenas o começo. Em Nagoya, os salários dos trabalhadores estavam congelados. Em 9 de agosto, 500 pessoas reuniram-se para reivindicar aumento. Nos dias seguintes, foram 50.000. Cerca de 130.000 pessoas de um total de 437.000 habitantes

13 Revoltas camponesas.

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tomaram parte dos distúrbios na província. As revoltas propagavam-se em meio a manifestações, incêndios e confrontos com a polícia (IDEM). Em 11 de agosto, o incontrolável espalhou-se mais. A região de Kansai estava quase toda tomada: Osaka, Kobe, Kure e Hiroshima. Nos dias subsequentes, Tóquio. No dia 13 de agosto, o preço do arroz começou a cair. Mulheres em Namerikawa, Toyama, invadiram as casas dos comerciantes e levaram seus suprimentos de arroz afirmando que não seriam mais reféns desses (LIBERO, n. 5, 1978). As revoltas continuaram, não era uma simples demanda por negociação (LEWIS, 1990). As manifestações misturaram-se ao Festival Obon – celebração aos mortos que dura uma semana –, as pessoas estavam nas ruas em meio à revoltas, sakês, danças e os tradicionais tambores japoneses (IDEM). Na portuária e industrializada Kobe, 26.000 trabalhadores lançaram-se nas greves, e alguns destruíram as docas da Mitsubishi. A empresa também seria alvo dos mineiros. Estima-se que, em 1914, 1572 mortes tinham sido registradas, tanto por acidentes como por doenças. As péssimas condições nas quais foram mantidos os trabalhadores (crianças, mulheres e homens) por anos, os baixos salários – quando existiam –, e a presença constante de gangues para evitar fugas, foram o estopim para a revolta desses trabalhadores. As greves de mineiros comumente eram isoladas das revoltas urbanas e camponesas, entretanto, a Revolta do Arroz expandia-se, chegando informações a seu respeito por todos os cantos do Japão, instigando outras revoltas (IBIDEM). Integrantes da Burakumin – aqueles que realizavam atividades tidas como indignas, como matar pessoas e animais, manusear couro e realizar enterros – também se juntaram às manifestações, apesar de muitos terem sido presos na tentativa de dar um fim àqueles que seriam a escória dessa nova e moderna sociedade japonesa que se erguia. Estima-se que 10 milhões de pessoas, em um Japão de 56 milhões, tomaram parte das manifestações, greves e motins (LIBERO, n. 5, 1978). Entre os alvos das manifestações, estavam guaritas policiais, lojas de arroz e prédios estatais. Não havia qualquer guia de consciência, direção partidária ou ideológica. Era uma resposta direta às violências do governo e à importação de uma tecnologia política sobre a vida (LEWIS, 1990). O governo japonês temia uma possível revolução aos moldes da Revolução Russa que acabara de ocorrer. As perseguições intensificaram-se. Foram necessários meses na tentativa de conter qualquer motim, enquanto noticiava-se que não havia mais qualquer

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greve ou ataque contra polícia. Ôsugi Sakae estava entre os capturados. Estima-se que outros 7000 seriam condenados à prisão perpétua (GARCÍA, 2013a). Ôsugi estava em um trem voltando de Kyushu para Tóquio. Quando leu o jornal e deparou-se com as notícias sobre a Revolta do Arroz, desceu em Ôsaka para encontrar com Henmi Naozo, anarquista que vivera nos EUA e que, segundo o periódico Libero, encontrou-se com Emma Goldman e Alexander Berkman14. Ele viajara para divulgar o periódico Rôdô Undô (Movimento Operário) e inesperadamente deparou-se com uma mercearia de arroz completamente destruída pelos manifestantes. Reconhecido, Ôsugi e o grupo de amigos que o acompanhava foram seguidos por cerca de 20 policiais. Ôsugi afastou-se do grupo a mando de um policial que ameaçou atribuir responsabilidade a ele se um eventual ato ocorresse por ali. Sabendo o que poderia lhe causar, ele retornou para o local onde estava hospedado. Despistou rapidamente o policial e no dia seguinte partiu para Kyoto, encontrando ali ruas que também estavam em chamas (STANLEY, 1982). Ôsugi seria capturado e preso como medida preventiva, considerado um “perigo” à ordem. Entre 16 e 26 de agosto de 1918, ficou em uma delegacia. Após alguns dias, um policial convidou Itô Nôe, contra quem não havia qualquer acusação, para ficar na delegacia junto ao seu companheiro caso não aguentasse ficar sozinha. Itô jamais respondeu (IDEM). Quando liberto, Ôsugi entendeu que era o momento de voltar à imprensa libertária e no mesmo ano, junto com seu amigo Arahata Kanson, que fora companheiro de Kanno Sugako15, fortaleceu o Rôdô Undô. O periódico era um dos únicos meios de veiculação de notícias com textos de anarquistas e socialistas. Essa seria uma das últimas tentativas de Ôsugi de trabalhar com os socialistas. Em 1920, tomou parte na Shakaishugi Dômei (Liga Socialista). Entretanto, não passaram do segundo congresso, no ano seguinte (IBIDEM). Devido à sua participação no Rôdô Undô e na Liga, Ôsugi recebeu o convite de Yi Ch’un-suk para a Conferência Socialista do Extremo Oriente, em Xangai. Yi era um comunista coreano do qual pouco se tem notícias, e que se recusara a enviar convites a Sakai e Yamakawa. O libertário imediatamente aceitou o convite daquele rapaz que nunca havia visto anteriormente. Pretendia estreitar relações com os anarquistas e socialistas da Coreia e da China. No

14 Não foram localizadas outras informações e referências a Henmi. 15 Vale ressaltar que, como Ôsugi, Arahata também fora alvo de críticas dos anarquistas por não ter reagido energicamente quando Kanno apaixonou-se por Kôtoku Shusui.

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entanto, frustrou-se com a viagem quando soube que as propostas para financiamento de uma possível publicação de um novo jornal editado pelo anarquista só seriam possíveis se fosse editado e revisto por algum comunista. Ôsugi recusou, e da oferta inicial de 10.000 ienes, recebeu somente 200 para conseguir retornar para casa. Se antes seus escritos eram recheados de fusejis (marcas em X feitas pela polícia japonesa para censurar frases ou artigos), agora estariam sob a censura dos socialistas também. Ôsugi retornou ao Japão afirmando que a ditadura do proletariado seria a supressão de todo e qualquer anarquista (ÔSUGI, 2014). Como afirmou Emma Goldman, meios autoritários não levam a fins libertários, mas os sufocam. Pouco depois, o amigo de Ôsugi, Kondô Eizô, com o qual também trabalhava no jornal Rôdô Undô, foi a Xangai para estabelecer contato com o Komintern e no retorno foi preso. A publicação do jornal foi interrompida sob suspeita de que um dos comunistas japoneses entregara os dados de Kondô à polícia (STANLEY, 2016). Somavam-se a isso as críticas de que Ôsugi acompanhava as obras de Alexander Berkman e outros anarquistas, marcando seu definitivo afastamento dos comunistas. Em sua biografia, em alusão a estes eventos referiu-se aos comunistas como “bando de vigaristas” (ÔSUGI, 2014). Mesmo diante de sua recusa, mas por ser conhecido no meio dos sindicatos e entre anarquistas e comunistas, recebeu o convite para participar do Primeiro Congresso dos Trabalhadores do Extremo Oriente na Rússia. Desistiu de ir um dia antes da data de partida, por saber das possibilidades de ser uma viagem semelhante a de Xangai (ÔSUGI, 2014). Provavelmente seria repreendido, assim como tantos outros o foram ao tentarem se manifestar em reuniões na Rússia. As críticas de Ôsugi ao bolchevismo foram retomadas no relançamento do Rôdô Undô, agora como um jornal anarcossindicalista, em dezembro de 1921, e acirram-se em 1922. Ele denunciava as perseguições aos anarquistas sob a acusação de serem contrarrevolucionários ou partidários da restauração do czar. Eram corriqueiras as referências ao jornal Freedom, que mostrava como anarquistas de todos os cantos foram à Rússia para ajudar na revolução e só encontraram o estabelecimento de uma ditadura bolchevista. Ôsugi, diante disso, concluía a respeito da vitória de um governo: “Se você ganha, você é a força Imperial (kangun)”. Ôsugi continuou divulgando as perseguições de Lênin aos anarquistas que protestaram em 1922, em Moscou, e agora estavam sob a lei marcial. Recordava o massacre de Kronstadt e não poupava críticas: “As atuais políticas dos bolchevistas para

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os camponeses soam como o sino da morte para a revolução. Como são corretas as palavras de Kropotkin ao dizer em suas cartas que ‘os bolcheviques mostraram ao mundo como não se faz uma revolução’” (ÔSUGI apud STANLEY, 2016, p. 12). Diante de diferenças com os comunistas japoneses que tentavam reorientar o movimento, Ôsugi tornou a atacar os bolchevistas, principalmente Trotsky e sua estratégia de união no front. Em setembro de 1922, escreveu “Torotsukii no kyôdô sensen ron” (Frente única de Trosky), no número 7 de Rôdô Undô, onde destacou que a proposta do comandante do Exército Vermelho de uma união entre os trabalhadores para a defesa de interesses comuns na luta contra a burguesia, tratava-se de uma união com o controle dos comunistas sobre os operários. Observando os trabalhadores no Japão, Ôsugi constatou que tal estratégia já estava em andamento com a tentativa dos comunistas infiltrarem-se nas organizações operárias e comandar suas operações (ÔSUGI, 1922a). Em setembro de 1922, em Osaka, a união sindical unitária emanada da Yûaikai (Sociedade da amizade) realizou o congresso rôdô kumiai sôrengô (União geral dos sindicatos operários do Japão). A impossibilidade de conviver na diferença estava escancarada: os reformistas e os bolchevistas se aliaram, sob o princípio de centralismo, na tentativa de suprimir os anarquistas (PELLETIER, 2004). Enquanto Ôsugi, após algumas tentativas de aproximação, rompia com qualquer possibilidade de aliança com os comunistas chineses e/ou representantes da Rússia, a anarquista Emma Goldman chegou a Moscou após ser deportada dos EUA para acompanhar os desdobramentos de uma revolução que já tinha assassinado os marinheiros de Kronstadt. Goldman e seu companheiro Alexander Berkman publicizaram as inúmeras perseguições e violências do partido bolchevistas. Ôsugi rapidamente traduzia seus textos e os publicava em seu periódico; Ishikawa Sanshirô, que havia assinado o Manifesto dos 16, posicionou-se contra a Revolução e seus rumos com a publicação do livro Mafuno no nōmin undō (O movimento camponês de Makhno). Ôsugi também era um grande admirador do anarquista Nestor Makhno, que reuniu cerca de 45 mil camponeses em uma Ucrânia submetida aos alemães pelo tratado de Brest-Litovsk. Suas vitórias impressionavam Lênin, que rapidamente fez um acordo com os camponeses para vencer o exército branco, formado por nacionalistas e contrarrevolucionários russos. Quando a guerrilha retornava para Perekop, foi fuzilada pelo Exército Vermelho. Continuou-se a política de perseguição aos anarquistas. Makhno e seus companheiros foram considerados ilegais, alguns optaram por se autodisciplinarem, ou seja, se bolchevizaram, como destacou Georges Nivat (2006);

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outros foram perseguidos, deportados, presos ou executados. Makhno fugiu para Romênia com alguns companheiros e depois se exilou na França. O massacre na Ucrânia, como tantos outros, marca uma tentativa de supressão dos anarquistas na Revolução. Ao voltar de uma viagem mal sucedida pela Europa, em 1923, Ôsugi passou a divulgar pelo Japão as experiências de Makhno, bem como os massacres perpetrados pelos bolcheviques. Entretanto, a admiração de Ôsugi por Makhno não estava na sua capacidade de organizar um exército, mas em como aconteceu um movimento espontâneo, mas não aleatório, na Ucrânia, próximo ao que poderia ter ocorrido com a Revolta do Arroz (1918). A admiração de Ôsugi por Makhno era tamanha que um de seus filhos com Itô recebeu seu primeiro nome, assim como outros anarquistas também foram homenageados: Emma, em referência a Emma Goldman; Louise, por Louise Michel.

As crianças, s/d (provavelmente começo da década de 1920). Da esquerda para direita: um amigo, Mako, Emma e Nestor no berço. Fonte: LE LIBERTAIRE GROUP, 1979. Não consta na foto Louise e Sachiko, esta faleceu pouco depois de nascer.

Um dos últimos escritos de Ôsugi foi “It is a matter of no consequence – a criticismo os the Soviet Russia” (1922b), traduzido para o inglês na coletânea do grupo anarquista no Japão do Le Libertaire. Sem delongas, declarou: “Deve-se reconhecer a Rússia Soviética? (...) Essa pode ser uma questão para o governo japonês de reconhecer ou não. Mas para mim é trivial”. O anarquista recusava as relações diplomáticas da

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Rússia, entendendo que, para negociar, é preciso Estado e todas as suas violências. Em sua leitura, a preocupação com o materialismo histórico e o desenvolvimento das forças produtivas na Rússia, só poderia levar a negociações capitalistas, não se abriria as portas do comunismo como proclamava Lênin em O Estado e a Revolução. Sua crítica fora atestada com a NEP (Nova Política Econômica), proclamada após o massacre de Kronstadt e descrita por Lênin como um desvio tático para reorganizar a economia do país. “Ah, você ainda quer dizer alguma coisa? Um passo para trás antes de um salto? (...) Você deve ver a base da Rússia Soviética, ou seja, as condições dos trabalhadores e dos camponeses. Você vê como eles vivem sob o NEP? (...) Tive pesadelos com uma revolução bolchevista. (...) Então descobri o seu aspecto real, os Estados capitalistas podem apertar a mão do soviete capitalista de uma vez. Eles já podem apertar a mão e dobrar o capital com algum trabalho lucrativo. Eles são uma gangue e farão isso sem piedade. Digo mais, eles gostariam de andar juntos contra uma verdadeira revolução, bem como em ajudar um novo Estado capitalista. Não é uma questão de consequência. Eu tenho outros assuntos que eu devo fazer por mim mesmo” (ÔSUGI, 1922b, pp. 136-137). Ôsugi também acompanhava as críticas de Emma Goldman e Alexander Berkman à Revolução, sendo esse último muitas vezes traduzido para seus periódicos. Goldman descreve em “Minha outra desilusão na Rússia” a vivência com milhares de russos cortando madeira, carregando água, cozinhando. Ao caminhar pelas ruas observava que o capitalismo continuava a ser incentivado para desenvolver a vida industrial na Rússia. Enquanto isso, prosseguiam as perseguições aos anarquistas, posteriormente atingindo também os maknovistas que celebraram acordo com o partido. A Rússia não conseguia romper com a continuidade das práticas de prisão e perseguição do Czarismo, principalmente após a realização do X Congresso do Partido Comunista Russo em 1921, com o lançamento da NEP (Nova Política Econômica) e quando Lênin declarou guerra contra os “elementos anarquistas pequenos burgueses” (GOLDMAN, 2011, p. 112) e tantos outros anarquistas foram perseguidos. “As insuportáveis táticas despóticas do governo em relação aos anarquistas são inquestionavelmente resultados da política geral do Estado bolchevista no controle exclusivo do partido comunista em relação aos anarquismos, ao sindicalismo e a seus defensores” (IDEM, p. 113). Emma Goldman apresentou um relato de quem, como inúmeros anarquistas pelo planeta, agitou-se com o surpreendente irromper da Revolução de fevereiro. Entretanto,

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mesmo antes de Kronstadt, encarava a impossibilidade de articulação com os comunistas, fosse por conta do tratado de Brest-Litovsk (1918) ou pela destruição constante de espaços anarquistas a mando de Trotsky. Mesmo assim, muitos continuaram em seu devoto apoio assumindo inúmeros cargos, inclusive no Exército Vermelho, com o qual romperiam somente com o massacre dos marinheiros de Kronstadt ou se assumiriam comunistas. Goldman constatou que qualquer um está passível de se apaixonar pelo poder e com os anarquistas não é diferente. Em inúmeros cantos do planeta, anarquistas não somente se empolgaram com a Revolução, mas também reviram suas preocupações de vida para se tornarem partidários do bolchevismo. Nos anos seguintes à NEP, Alexander Berkman publicou os opúsculos “A tragédia russa (uma revisão e uma perspectiva – ou panorama)” (2007) e “A Revolução Russa e o Partido Comunista” (2017), artigos da Série Revolução Russa, lançados pelo autor e empenhado em fazer uma revisão crítica da Revolução. A estadia de Berkman na Rússia durou dois anos. Chegou ali empolgado: “meu coração estava radiante, eu disse isso? Fracas palavras para expressar a alegria apaixonada que me inundou quando a certeza da visita à Rússia” (2007, pp. 89-90). Nesse meio tempo, mergulhou na Revolução, ficou perto dos líderes do Partido Comunista, associou-se a homens e mulheres ativos, participou de seus trabalhos, viajou pelo país e esteve no Congresso Sindical Revolucionário de 1921, que produziu ardorosos defensores da versão oficial da Revolução. Em seus escritos, Berkman pretendeu descrever a Rússia para o conhecimento de mais pessoas e também para aqueles que só passaram por lá em excursões guiadas por oficiais que os acompanhavam por toda a viagem. O anarquista não pinta um Eldorado proletário, como o fizeram alguns jornalistas, mas interessou-se em apresentar a dissolução do governo de Kerensky, o estabelecimento do Partido Comunista no governo em 1917, e depois quais eram os efeitos da revolução principalmente com a NEP. Nas observações em sua estadia na Rússia, afirmou: “Contra minha vontade, contra minhas esperanças, contra o fogo sagrado da admiração e entusiasmo pela Rússia que queimava dentro de mim, eu fui convencido que a Revolução Russa fora levada à morte” (IDEM, p. 93). Ao retomar os primeiros dias da revolução, Berkman destacou que apesar dos bolchevistas terem proclamado lemas anarquistas em outubro – como, “a negação do parlamentarismo, a expropriação da burguesia, as táticas de ação direta a apreensão dos meios de produção, o estabelecimento do sistema de Conselhos de Trabalhadores e

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Camponeses (os sovietes) e assim por diante” (BERKMAN, 2017, p. 86) – , permaneciam marxistas, adeptos de sua filosofia social e desconfiados do campesinato. O tratado de paz de Brest-Litovsk (1918) inicialmente teve oposição de Trotsky, ao afirmar que os operários e camponeses, inspirados pela revolução, poderiam derrotar o exército invasor. Incentivados por suas palavras, os trabalhadores reagiaram para ajudar Ucrânia e Rússia Branca, lutando contra o invasor alemão. Sob ordens de Trotsky, o Exército Russo perseguiu e eliminou estas unidades: “A paz de Brest-Litovsk colocou os bolchevistas na posição anômala de gerdame do Kaiser” (BERKMAN, 2007, p. 100). E seguiu-se a supressão de outros movimentos e partidos políticos. Com a liquidação dos menchevistas, socialistas revolucionários de direita e da burguesia russa, restava dar fim ao Partido Socialista Revolucionário de Esquerda, aos revolucionários não-partidários e aos anarquistas. “Prisões, buscas noturnas, zassada (bloqueio de casa), execuções, estavam na ordem do dia. (...) As prisões e campos de concentração estão lotados com supostos contra-revolucionários e especuladores, 95 por cento deles são operários famintos, rudes camponeses e mesmo crianças de 10 a 14 anos” (IDEM, pp. 101-102). Para o partido, seguindo as premissas de Rousseau, como mostra Berkman, era preciso educá-los para a liberdade com a utilização da força. Um doutrinamento, uma “fanática quase-filosofia com sabor a molho pedagógico comunista e auxiliada pela pressão de ‘funcionários canonizados’ (expressão do líder comunista e trabalhista Shliapnikov) representam os métodos reais da ditadura do Partido” (2017, p. 92). Com a NEP, seguiu-se a exploração agrária e os trabalhadores ficaram na mesma posição como em qualquer outro país capitalista. Assim, a ditadura do proletariado, um Estado burocrático centralizado, articulado com uma economia capitalista estabeleceu um governo dando fim à revolução social que estava em andamento. Como afirmou Berkman, “é missão do governo governar, sujeitar, fortalecer-se e se perpetuar” (IDEM, p. 114) Daniel Guérin mostrou, assim como Goldman e Berkman, não somente as perseguições, mas a atenção dos anarquistas. Retomou Voline (pseudônimo de V. M. Eichenbaun)16, que viria a ser exilado pelo governo bolchevista, e já entre 1917 e 1918 afirmava no jornal anarquista Golos Truda, encerrado pela Tcheka, a polícia política, com a promulgação da NEP: “Depois de terem se consolidado e legalizado seu poder, os bolchevistas - que são socialistas, políticos e estatistas, ou seja, homens de ação centralista

16 Conhecido como o incentivador das leituras anarquistas de Makhno enquanto esteve preso entre 1908 a 1917, e presença constante nos periódicos de Ôsugi que nunca escondeu sua admiração e pretendia ir à Rússia somente para conhecê-lo.

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e autoritários – começarão a dispor da vida do país e das pessoas com meios governamentais e ditatoriais desde o centro [...]. Seus sovietes [...] gradualmente se tornarão meros instrumentos executivos da vontade do governo central [...]. Assistiremos à construção de um aparelho autoritário, político e estatal que atuará desde cima e começará a esmagar tudo com a sua mão de ferro [...]. Ai de quem não concorda com o poder central! Todo o poder aos sovietes passará a ser, de fato, à autoridade dos líderes do partido” (VOLINE apud GUÈRIN, 2017, p. 8). As perseguições não cessaram, associando anarquistas ao banditismo, sob pena de prisão, de deportação para os campos de trabalho forçados ou de execução (GOLDMAN, 2011). Goldman ainda recorda como a casa de Kropotkin foi ocupada por uma organização militar antes de ser cedida para o Comitê do Museu Kropotkin. De modo semelhante, anos depois, Yasnaia Poliana de León Tolstói foi utilizada na II Guerra Mundial como enfermaria pelos nazistas e hoje também é um museu que abriga o material que não foi destruído.

um russo no Japão no acirramento das diferenças

Yamamoto Kenso em “Nihon no anaruko-sandikarizumu” (2017) apresenta as relações do anarquista russo Nikolai Ivanovich Petrov-Pavlov (1881-1932) com os anarquistas japoneses. Ao vasculhar arquivos recém-abertos, no ano de 2016, Yamamoto pôde ler inúmeros manuscritos de Petrov-Pavlov que apresentavam a ação anarquista japonesa diante da Revolução. Chegou a Hakodate e estabeleceu sua morada, utilizando a mesma roda de fuga que Bakunin descobriu no século anterior. Lá se dedicou ao idioma japonês para realizar traduções e ajudar os que escapavam da Rússia, fundando uma associação para russos fugidos que precisassem de auxílio para seguir para os EUA ou que quisessem se estabelecer no Japão. O crescimento do número de integrantes na associação, que havia chegado a 100 pessoas, fez com que a polícia japonesa passasse a vigiar as ações do grupo. No final de 1915, começaram as perseguições e tentativas de prisões com a autorização do governo russo. Entretanto, muitos conseguiram escapar, divulgando as atividades do grupo que, nesse momento, já contava com cerca de 600 integrantes, que ajudavam no financiamento ou estavam de passagem para ir aos EUA.

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Em 1916, o governo japonês conseguiu prender alguns dos integrantes e os deportou rapidamente para a Rússia (YAMAMOTO, 2017). Sua companheira, Anna Pavlova, manifestou-se contra o governo japonês na Câmara dos Deputados do Japão quando Petrov-Pavlov foi entregue aos russos, em 1916. Apesar de ter vivido quase seis anos no Japão, poucos historiadores do anarquismo russo mencionam sua fuga e essa passagem. Em março de 1917, ele foi levado para ser julgado por um tribunal militar, mas com o colapso do Império Russo, foi anistiado pelo governo provisório. Sobrevivendo graças à Revolução, Petrov-Pavlov não se ajoelhou para qualquer governo ou partido e, em outubro de 1917, às vésperas da Revolução de Outubro, lançou o texto “Por que eu sou um anarquista?”: “Não estou iludido pela forte e vulgar fase “socialista” da “ditadura do proletariado e do campesinato”. A ditadura é sinônimo de autoridade, e a autoridade é algo estranho às massas. A autoridade sempre e em todos os espaços corrompe os governantes, que desempenham o papel de moscas nos chifres de um boi em uma pastagem, moscas venenosas que de vez em quando o mordem e contaminam seu sangue, drenando sua energia e matando sua iniciativa” (PETROV- PAVLOV, 1917 in AVRICH, 1973, p. 36). Suas críticas renderam-lhes perseguições; em 1920 entrou em confronto com os bolchevistas e foi enviado para uma colônia penal. Pouco se sabe como foram seus últimos dias (YAMAMOTO, 2017). Na leitura de Yamamoto, diferente de Petrov-Pavlov, poucos anarquistas e socialistas russos preocuparam-se em estabelecer contatos quando passaram em suas fugas pelo Japão. Entretanto, os anarquistas japoneses foram influenciados pelos anarquismos na Rússia, como visto anteriormente, com traduções de Kropotkin, Bakunin e Tolstoi. Essa situação mudaria somente após a Guerra Russo-Japonesa, quando muitos exilados da Sibéria chegaram ao Japão e estabeleceram-se em Nagasaki. O revolucionário Nikolai Tchaikovsky (1850-1926), em carta a Kropotkin, em 1906, relatou que Nagasaki era “um dos três principais centros internacionais do movimento revolucionário russo com a Suíça e Londres” (KONISHI, 2013, p. 203). Ao analisar relatórios de reunião dos grupos de russos exilados, Yamamoto notou que não havia qualquer menção a relações desses com japoneses; não houve qualquer ligação que os fizessem permanecer no país; e, na iminência de serem entregues ao governo russo, foram para Filipinas e Austrália, em 1908 (YAMAMOTO, 2017). Portanto, por mais que por alguns anos houvesse revolucionários russos em algumas localidades do Japão, poucos buscaram estabelecer residência ali ou ligações com os japoneses, sendo Petrov-Pavlov a exceção. Este conseguiu entrar em contato com

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anarquistas e socialistas no Japão e destacava principalmente a ação no sindicato, onde, segundo Yamamoto, pôde construir breves artigos referentes às ações anarquistas até 1923 (IDEM). Mesmo tendo sido entregue ao governo russo 7 anos antes, conseguiu obter informações até o momento da execução de Ôsugi Sakae. Destacou a presença de Katayama Sen na Kominter da URSS e sua aliança com Stálin, mostrando como até 1921, anarquistas e comunistas no Japão conseguiam viver na diferença. Kronstadt foi o insuportável que fez com que os libertários recusassem quaisquer novas propostas de articulação. Segundo Petrov-Pavlov, Katayama estava embebedado em seu partidarismo e dogmatismo, que caluniava Ôsugi antes de sua morte, afirmando que era um agente do governo que tinha ido à Europa para aprender sobre as leis de repressão aos comunistas e era um espião quando chegou a URSS. As calúnias de Katayama tinham uma única intenção: afirmar a necessidade de direção dos anarquistas pelos bolchevistas ou sua supressão.

contra as fronteiras: a fuga do Japão

Em uma tarde, Ôsugi deparou-se com uma carta procedente da Europa. Ao abri- la, irrompeu em alegria, era um convite de André Colomer (1886-1931) – então editor do periódico anarquista francês Le Libertaire, fundado por Sébastien Faure e a combatente da Comuna de Paris Louise Michel –, para a comemoração dos 50 anos da Conferência Anarquista de St. Imier (1872) que ocorreria na Alemanha. Encontrava-se sobre constante vigilância e Itô tinha partido em viagem para sua cidade natal por conta de uma gravidez complicada. Neste retiro, Itô se dedicou a escrita de artigos sobre amor livre a partir do respeito e afeto mútuo (SHUBE, 1996). Após ler o convite, Ôsugi abriu o jornal Freedom, que chegou naquele mesmo dia, onde constavam detalhes sobre as pautas da Conferência: questões sobre a organização anarquista; a relação dos anarquismos com o sindicalismo e a formação de uma liga anarquista. Como estava com inúmeros artigos para terminar, conseguiu viajar apenas em 11 de dezembro com a ajuda de seu amigo escritor, Arishima Takeo. Ôsugi estava proibido de sair do país, mas isso não importava. Como sempre tinha de indicar onde se encontrava, enviou cartas a polícia dizendo que estava doente e encomendou entregas de gelo em sua casa para que acreditassem que estava com febre.

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Na noite em que saiu, beijou sua filha Mako, então com aproximadamente 4 anos, dizendo que em breve voltaria com presentes da Europa. Dias depois, quando a casa foi invadida por policiais, questionaram Mako onde seu pai estava e não conseguiram arrancar nenhuma informação da criança (ÔSUGI, 2014). Encontrou com seu amigo Wada na estação de trem dirigindo-se ao porto de Kobe. No caminho aproveitou para retirar seu característico bigode. Como a Coreia estava anexada ao Japão, Ôsugi não teve problemas em fugir por ali, apesar de não ter um passaporte válido. Após entrar no país, atravessou para Xangai no lombo de um burro. Lá, libertários o esperavam com a documentação falsificada.

Itô Nôe, Ôsugi Sakae e Mako. Fonte: CIRA-Japana.

Chegou à China e dedicou-se ao Esperanto e à divulgação da escola que havia montado em Tóquio; estabeleceu relações com a recém-formada Federação Anarquista e lá encontrou o libertário e esperantista japonês, Taiji Yamaga, desenhista vital para a falsificação do seu passaporte (OSUGI, 2014). Anos depois, Taiji desenharia um mangá descrevendo passagens dos anarquistas no Japão, dando destaque a vida de Ôsugi e suas aventuras amorosas (NARITA, 2012). Segundo o periódico Libero (n. 5, 1978), com a

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cisão definitiva com os bolchevistas, Ôsugi passou a dedicar-se em intensificar os contatos dos anarquistas no Japão com outros espalhados pela Ásia. Yamaga apresentou a Ôsugi, Cheng Meng-shien, ex-diretor do instituto sino- francês em Lyon, que lhe forneceu o endereço de onde poderia ficar em Paris, uma casa de jovens anarquistas chineses que estavam estudando na capital francesa.

Mangá desenhado por Taiji, no canto inferior à esquerda, Ôsugi sendo esfaqueado. Fonte: CIRA- Japana.

Ôsugi ainda foi para a China, onde não pôde ficar em nenhum dos hotéis em que estivera dois anos antes, pois os socialistas entregaram todos os seus dados à polícia chinesa. Sua fuga teve de ser cuidadosa. Além das delações dos comunistas, somava-se o fato de que, em Tóquio, os policiais já haviam percebido a sua partida (LIBERO, n. 5, 1978). Novamente em Xangai, caracterizado como um estudante chinês que iria para Lyon, pôde partir para Marseille, no navio André Lebon, em 5 de janeiro de 1923 (OSUGI, 2014; LIBERO, n. 5, 1978). O navio aportou em Marseille em 13 de fevereiro. Ôsugi desembarcou somente no dia seguinte, após se despedir de uma “Madame M” que conheceu a bordo da embarcação. Não teve qualquer problema com os agentes da imigração, os policiais não

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souberam diferenciar os traços fenótipos de um japonês com um passaporte chinês. Partiu para Lyon onde encontrou os companheiros chineses. Ficou por uma semana, e depois partiu para Paris. Lá se encontrou com os anarquistas do Le Libertaire. Colomer, o emissário do convite, o esperava para conhecer os anarquistas que vieram do Japão (IDEM). Ôsugi, quando retornou ao Japão, conforme textos biográficos publicados na revista Kaizo, relatou como entrou em contato com os costumes ocidentais. Via pela primeira vez um assento sanitário; estranhava a baixa frequência dos banhos e a ausência dos ofurôs; emocionou-se com as moças dos cabarés para quem discursou sobre a condição da mulher; apaixonou-se por uma bailarina17; e pode conhecer a única bebida que não atacava seu estômago e o deixava lunático após o primeiro copo: o vinho branco. O anarquista estava encantado e contente com o sucesso parcial do percurso. Entretanto, recebeu a notícia que a polícia alemã descobrira os planos da reunião em comemoração ao St. Imier e o evento fora adiado para abril - alguns dias depois, seria novamente adiado, sem data definida. Apesar de desapontado, Ôsugi aproveitou para conhecer outros anarquistas que viviam por Paris, procurou em especial os exilados da Rússia, por sua curiosidade com os relatos sobre as violências dos bolchevistas. Ansiava por encontrar com Voline, anarquista ex-combatente na Ucrânia e que fora próximo a Nestor Makhno, a quem Ôsugi admirava (IBIDEM). Encontrou-se com outros anarquistas chineses que viviam em Paris e reuniram-se por vários dias elaborando propostas a serem debatidas no encontro em Berlim. Segundo o periódico Libero, pretendiam fundar uma organização anarquista de chineses na capital francesa, entretanto, são desconhecidos os rumos que tomaram. Ôsugi também encontrou com Hayashi Shizue, um amigo artista que vivia por lá e que enviava cartas para Itô Nôe dando notícias sobre seu companheiro, já que Ôsugi evitava enviá-las para que seu paradeiro não fosse descoberto. Entretanto, o governo japonês já havia alertado a embaixada francesa na China sobre a fuga de Ôsugi, solicitando que vigiassem Hayashi,

17 Em sua biografia lançada em inglês em 2014, recordou da bailarina Dolly enquanto estava na prisão para ser deportado, para quem dedicou o poema: Em minha [cela] solitária Deitado no sofá Fumaça de um charuto e pensamentos em Dolly Minha bailarina (ÔSUGI, 2014, p. 65).

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caso o anarquista estivesse na França. Consequentemente, a captura de Ôsugi era uma questão de tempo (IBIDEM). Em sua breve passagem, resolveu tomar parte nas manifestações de Primeiro de Maio que se aproximavam. Foi a um protesto em solidariedade contra a prisão de Nicola Sacco e Bartolomeu Vanzetti, anarquistas italianos acusados de roubo e assassinato, e condenados mesmo após um terceiro assumir a autoria dos atos, sendo eletrocutados em 1927, nos EUA. No evento, Ôsugi realizou um discurso sobre o Primeiro de Maio no Japão. Ao final de 30 minutos foi ovacionado. Nesse momento foi abordado por policiais. Mesmo com manifestações contrárias e os confrontos com a polícia para evitar que Ôsugi fosse levado, foi arrastado pelos pés e braços. Sua fuga não fora tão bem-sucedida quanto a de Bakunin anos antes (IBIDEM). Enquanto estava detido, a frente da delegacia foi tomada por manifestantes que entraram em confronto novamente com a polícia. Cerca de mais 100 foram presos e outros tantos feridos (LIBERO, n. 5, 1978). Simultaneamente ao confronto do lado de fora da delegacia, Ôsugi era interrogado e torturado. Em suas memórias, contou que em meio a esses terríveis sons da violência da polícia contra os manifestantes, também escutou um grupo entoar A Internacional. Enquanto buscava-se descobrir a sua identidade, os jornais franceses diziam que um chinês havia sido preso. Mas a polícia continuava investindo em uma confissão do anarquista. Seguindo os conselhos de Colomer, Ôsugi afirmava que era chinês e que a documentação era verdadeira. Entretanto, a polícia já sabia quem ele era e Ôsugi acabou por assumir sua identidade. Tornou-se uma questão de tempo para que Ôsugi fosse entregue às autoridades japonesas (IDEM). Após a confirmação de que o então chinês era Ôsugi Sakae, anarquista sem passaporte, foi enviado para a prisão La Sante. Em 3 de maio, um funcionário da embaixada japonesa o visitou e o acusou formalmente de resistência à prisão, perturbação da ordem, ausência de documentos de identificação e desacato à polícia. O julgamento ocorreu em 23 de maio, as acusações foram retiradas, com exceção da ausência de identificação. Foi condenado a três semanas de prisão e como estava em La Sante desde 1º de maio, foi solto. Antes de sair da cela, deixou uma inscrição na parede:

“Ôsugi Anarchiste japonais Arrête a S. Denis Le 1er mai 1923” (IBIDEM).

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Ao por os pés para fora da prisão, recebeu a ordem de deportação. O governo francês queria abandoná-lo na fronteira com a Espanha, mas por insistência da embaixada do Japão, foi enviado de volta. Foi escoltado até Marselha e embarcou em um navio com destino a Kobe (IBIDEM). Ôsugi nunca chegou à Alemanha. Da prisão, escreveu um poema para sua filha Mako, nunca publicizado, porém, indicado em sua biografia que o havia escrito. Ficou preso por mais 24 dias até ser deportado e acompanhado por cerca de 100 policiais, lamentou-se não poder trazer os presentes que prometera às crianças (ÔSUGI, 2014). Chegou no Japão em 11 de julho. Policiais o jogaram em uma viatura para que fosse enviado diretamente à delegacia e evitasse qualquer contato com os jornalistas. Após um interrogatório de 5 horas, foi libertado e pôde reencontrar Mako e Ito Nôe para juntos retornaram a Tóquio. Alguns dias depois de sua chegada, a região de Kanto – Tóquio e proximidades, foi atingida por um grande abalo sísmico em 1 de setemtro de 1923. Em meio aos escombros, Ôsugi foi capturado em 16 de setembro de 1923, junto com sua companheira Itô Noe e seu sobrinho de seis anos. Ao chegarem à delegacia, foram espancados até a morte por Masahiko Amasaku, oficial da polícia do Exército Imperial, que depois, assim como o acusador no Incidente de Alta Traição, serviria ao fascismo japonês. Ôsugi Yutaka, outro sobrinho de Ôsugi Sakae, escreveu o posfácio de sua biografia publicada em inglês. Ali contou que os três foram capturados após Itô e Ôsugi Sakae terem visitado seu irmão mais novo, que havia fugido do terremoto para Yokohama. Quando estavam prestes a chegar em sua casa, cinco policiais da Kempeitai, a polícia militar imperial japonesa, os capturaram. O famoso Terremoto de 1923 é citado constantemente na literatura sobre a região por conta da destruição causada. Os jornais foram paralisados, quando eram a principal maneira de circulação das informações; corriam rumores de que se seguiria um tremor maior; que a baía de Tóquio seria engolida por um tsunami; que se aproximava uma erupção do Monte Fuji que afundaria o arquipélago no Oceano Pacífico... (RYANG, 2003). A polícia entendeu o momento como uma oportunidade. Descartou os corpos dos anarquistas e da criança. Foram encontrados dias depois em meio aos destroços do Grande Terremoto de Kantô. Segundo Ôsugi Yukata, quando os corpos de Itô e Ôsugi Sakae foram encontrados estavam irreconhecíveis, as costelas esmagadas, o corpo com marca de pontapés e pisoteados.

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A cidade de Tóquio após o terremoto de 1923. Fonte: https://www.missedinhistory.com/podcasts/great- kanto-earthquake-of-1923.htm. Acesso em 17/06/2018.

Ao final de 1923, foi lançada uma compilação com textos de Ôsugi, incluindo os escritos sobre seu percurso até a Europa, a sua prisão e a deportação. Eram artigos que escrevera durante a viagem e os terminou ao chegar ao Japão, na intenção de compor um livro. Seu amigo, Kongô Kenji o ajudava, realizando leituras e fazendo sugestões. No posfácio, escrito por seu amigo Kongô, este recordou seus últimos encontros com Ôsugi, atarefado com a escrita. Três dias depois do terremoto, em 4 de setembro, voltaram a se encontrar; Ôsugi continuava imerso na escrita e pouco conversaram sobre a viagem. Uma carta assinada pelos Anarquistas Unidos de Tóquio, redigida em outubro de 1923 e lançada em janeiro do ano seguinte no periódico Behind The Bars, da Cruz Vermelha Anarquista de Nova York 18 , escancarava para o planeta as atrocidades perpetradas pelo governo japonês a partir do terremoto. E fazia um último apelo após descrever todos os massacres, como a morte de Ôsugi, ao fim da perseguição aos coreanos e aos assassinatos de socialistas e anarquistas: “Camaradas pelo mundo lembrem-se sempre que o governo japonês é um inimigo prejudicial à humanidade, e que nós, os

18 A Cruz Vermelha Anarquista (CVA) é uma das procedências da Cruz Negra Anarquista (CNA). Seu objetivo era prestar solidariedade a libertários presos. Fundada na Rússia czarista e não é possível precisar com exatidão quando iniciou, provavelmente no começo do século XX. A CVA mudaria de nome para CNA. Associações foram fundadas em vários cantos do planeta, como a de Nova York, entretanto, não há outros registros históricos desta além do número único de Behind The Bars.

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anarquistas japoneses, lutaremos incansavelmente contra o sanguinário inimigo enquanto respirarmos. Anarquistas Unidos em Tóquio” (UNITED ANARCHISTS IN TOKYO, 1924). Entretanto, a carta não obteve ressonâncias como quando da execução de Kôtoku Shûsui. Somava-se a isso as inúmeras perseguições que se acirrariam no Japão e a ascensão do fascismo na década seguinte. Mako ficou sozinha. No filme Eros + Massacre, dedicado à vida de Itô e Ôsugi, a primeira cena é a jovem Mako passando por um interrogatório sobre seus pais. Assim como não disse nada à polícia quando invadiram a casa onde morava quando questionada sobre o paradeiro de Ôsugi que estava na Europa, Mako optou por não comentar, quando jovem, sobre seus pais e como morreram. O menino Nestor, faleceu pouco depois, ainda criança de causa desconhecida (PELLETIER, 2002); as meninas Louise, Mako e Emma viveram com seus avós. Anos mais tarde, Setouchi Harumi publicou Beauty in disarray (1993), uma biografia de Itô Nôe e com passagens de entrevistas de duas de suas filhas com Ôsugi, Mako e Emma. Setouchi destacou por meio dos relatos de Mako o dia do assassinato de Itô e Ôsugi: “estranhamente, meu pai me deixou em casa no dia que foi executado. Talvez ele tivesse uma premonição, porque, onde quer que ele fosse, sempre queria me levar com ele. Mas naquele dia, me deixou para trás com o nosso vizinho Sr. Roan Uchida” (IDEM, pp. 29-30). Sobre os anos subsequentes à morte de seus pais, Mako destacou: “eu fiquei com meu avô até o término do ensino fundamental. Fui para a casa do meu tio paterno que morava em Yokohama no ensino médio. Naquela época, eu esperava, consequentemente, fazer o vestibular da prefeitura, mas meus professores não me deixaram. Mesmo com minhas boas notas, sabiam que eu não poderia entrar [na escola da prefeitura] porque eu era filha de Ôsugi” (IBIDEM, p. 28).

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Foto tirada no dia do funeral. Quatro crianças e três cinzas, da esquerda para direita: Nestor no colo, Mako, Louise e Emma. Ao fundo, Itô, Ôsugi e seu sobrinho. Fonte: YANO (2012), p. 193.

A perseguição a Itô e Ôsugi não cessou até mesmo após estarem mortos. Em 16 de dezembro, seus amigos reuniram-se para realizar o último ritual de despedida. Seguindo um costume budista, as cinzas devem ser enterradas apenas após três meses da morte. Policiais disfarçados entraram na cerimônia e roubaram as cinzas de Ôsugi, que nunca mais foi encontrada. O corpo já frio de um anarquista e até mesmo suas cinzas são perigosas ao Estado. No Brasil, em julho de 1917, o jornal A Plebe (28/07/1917) registrou o enterro do jovem libertário José Martinez, executado pela polícia na Greve Geral daquele ano e que reuniu milhares de pessoas em seu cortejo fúnebre; em fevereiro de 1921; Kropotkin morreu, a família recusou a oferta de Lênin de realizar um cerimonial, seu enterro reuniu dezenas de milhares de pessoas e foi a última vez que a bandeira negra foi hasteada em Moscou, como destacou Paul Avrich (1967); em 1936, na Espanha, quase 300 mil pessoas acompanharam o cortejo fúnebre de Buenaventura Durruti entoando músicas anarquistas e agitando bandeiras negras. Tantos outros corpos seriam perseguidos pela polícia, como Severino di Giovanni, anarcoterrorista italiano, amante da jovem América Scarfó, condenado à morte por fuzilamento, cujo corpo foi enterrado em vala comum, como narrou Christian Ferrer (2011); Errico Malatesta, morto em prisão domiciliar em julho de 1932, foi atirado em vala comum para que seu túmulo não se tornasse um aglutinador de manifestações.

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As execuções do Incidente de Alta Traição e os assassinatos de Ôsugi, Itô e seu sobrinho não seriam esquecidos; as respostas viriam de onde menos se esperava, dos anarquistas da Coreia.

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kaneko fumiko e yeol park: contra o império e o tribunal

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os zainichi hibakusha

No dia 6 de agosto de 1945, estima-se que 20.000 coreanos morreram em Hiroshima com a explosão da bomba. Após as devastações iniciais, os feridos dirigiram- se aos hospitais em busca de primeiros socorros. Os leitos improvisados nos hospitais e escolas destinavam-se somente aos japoneses (NAKAZAWA, v. 2, 2011). Coreanos raramente eram atendidos, poucos recebiam algum auxílio, como um copo de água. Restava-lhes apenas a esperança de sobreviver. Calcula-se que ao todo foram 70.000 coreanos afetados pela explosão. Três dias depois, outros 30.000 foram atingidos em Nagasaki (CHUL, 2000). No ano de 1952 foi inaugurado o Parque Memorial da Paz de Hiroshima. Em monumentos e museus, recordam-se os inúmeros mortos pela bomba, sendo uma das atrações principais a Cúpula Genbaku, o prédio próximo ao epicentro, e cuja estrutura resistiu à explosão. Nesse mesmo ano, festejou-se o fim da ocupação dos Aliados, e revogou-se o status de zainichi1 dos coreanos, vetando ou adiando o recebimento de indenizações aos sobreviventes coreanos da bomba (ROPERS, 2015). Simultaneamente, a economia do Japão viverá o seu milagre impulsionado, principalmente, pela exportação de produtos e pelos investimentos na Guerra da Coreia (1950-1953) pelos EUA. Para manter o apoio à Coreia do Sul, militares estadunidenses necessitavam dos suprimentos logísticos japoneses. Contrataram funcionários para o exército e assinaram contratos de curto prazo para prestação de serviços aos soldados. Sem a aliança militar- industrial entre os dois países durante esta guerra, nenhum milagre seria possível. Os milhares de coreanos mortos em Nagasaki seriam rememorados somente após a confirmação de que estes morreram de fato. Isso foi possível quando, em 1956, foram localizados inúmeros ossos de coreanos em Motomachi. Vinte anos depois, após o recolhimento de inúmeras doações, um monumento, dedicado àqueles que foram submetidos nas fábricas de armamento a trabalhos em condições sub-humanas e que acabaram mortos no bombardeio, foi erguido no Museu da Bomba Atômica da cidade. Em 1980, 35 anos após as bombas, o governo japonês, em aliança com o governo sul coreano, passou a oferecer tratamento para os sobreviventes da bomba, ou hibakusha

1 Literalmente, “estar no Japão”. Refere-se a coreanos residentes há longo tempo no Japão, que não possuíam nacionalidade japonesa, mas pagavam impostos e dispunham de alguns serviços estatais.

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coreanos, exceto aos idosos automaticamente cortados do programa, bem como aqueles em situação de grave do estado de saúde; só seriam aceitas 50 pessoas por ano para um tratamento de 2 meses e, em casos especiais, 6 meses; os tratamentos só ocorreriam nas cidades de Hiroshima e Nagasaki. O programa foi interrompido em 1987 por opção do governo da Coreia do Sul que passou a investir em tratar dos afetados pela bomba em seu próprio território. Na cidade de Hiroshima, em 1999, na margem do rio oposta à Cúpula Genbaku, transferiu-se o monumento dos coreanos mortos para dentro dos limites do Parque. A escultura, pequena – em relação às dimensões do Parque –, permanece desapercebida aos japoneses e turistas, mas por vezes é admirada por algum coreano em suas orações. Ainda no tecnológico museu de Hiroshima, encontram-se expostos e abertos para consulta depoimentos de hibakusha japoneses. Mas pouco se encontra dos hibakusha coreanos. Se a presença de um hibakusha era considerada por alguns japoneses como um corpo radioativo minado de potenciais cânceres, a presença de um hibakusha coreano era ainda mais insuportável. Tinha sido aquele que um dia se curvou diante da grandeza do Império, e agora assistia a sua ruína. Entretanto, não era somente no Japão que os sobreviventes tiveram de lidar com a aversão. Ao final da Guerra, os coreanos puderam optar se retornariam a sua terra natal ou se ficariam no país. Muitos zainichi hibakusha tiveram tratamento médico negado na Coreia do Sul e aqueles cuja radiação manifestava-se na pele foram isolados em campos para leprosos. A montanhosa cidade de Hapcheon ficou conhecida como a Hiroshima da Coreia do Sul, pois muitos dos atingidos pela bomba foram enviados para lá. Hoje, cerca de 25% dos 2.580 sobreviventes, segundo dados de 2016, estão em uma casa de repouso especial (SANG-HUN, 2006). Ropers (2015) retoma memórias esquecidas dos zainichi ao mostrar como a produção do discurso da paz apaga o extermínio de coreanos pelo Império japonês e suas presenças em Hiroshima e Nagasaki. A vitimização do Japão produziu, segundo o autor, uma amnésia na educação voltada para a reconstrução, colocando à margem os zainichi e as violências do Império. Na década de 1960, um grupo de jovens zainichi realizou entrevistas em busca de coreanos sobreviventes das bombas, trazendo à tona o processo de colonização da Coreia

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pelo Japão e a escravização de um povo, marcando também a entrada dessa discussão nas universidades com a elaboração de pesquisas que tangenciavam o tema. A supressão da memória dos coreanos mortos permanece até hoje. Um dos jornais de maior circulação pelo arquipélago, o Asahi, mantém o site Memories of Hiroshima and Nagasaki, disponibilizando material para pesquisadores com depoimentos de hibakusha. Entre as centenas de lembranças, nenhuma delas é coreana.

a construção do Império e a Unidade 731

As guerras entre Japão e Coreia remontam, segundo a historiografia, ao século XVI e às invasões de samurai. Entretanto, os confrontos tomaram contornos de colonialismo somente em fevereiro de 1876. Aos moldes da invasão britânica nas décadas anteriores, a marinha imperial japonesa partiu para Busan para exigir a abertura dos portos com dois navios de guerra e três transportadores de tropas, todos adquiridos com a potência marítima da época, a Inglaterra. A confucionista e agrária Dinastia Joseon (1392-1897) da Coreia se encontrava enfraquecida devido às tentativas anteriores de colonização pelaFrança e peloos EUA e cedeu rapidamente após perder suas principais defesas com os bombardeios ao navio de guerra Un’yô. A derrota culminou na assinatura do Tratado de Amizade Japão-Coreia ou, Tratado Gangwa, na versão coreana, referindo-se à ilha homônima que fora invadida na década anterior por tropas estrangeiras. O Tratado abriu três portos para negociações exclusivas com o Japão; garantiu aos japoneses residência, arrendamento de terras, comércio sem restrições do governo e extraterritorialidade; estabeleceu o fim dos acordos com a China, da qual a Coreia era tributária desde a invasão dos manchus no século XVII 2 , acirrando as tensões diplomáticas entre os Estados. Em 1894, eclodiram rebeliões camponesas de influência cristã, contra o confucionismo e as tributações. O governo coreano solicitou ajuda à China para dar fim aos confrontos, sem antes notificar o Japão como previa a Convenção de Tientsin (1885).

2 Os Manchus eram povos nômades que conquistaram a Dinastia Ming e instauraram a Dinastia Qing (1644- 1912), a última dinastia imperial chinesa. Hoje os manchus são uma das 50 etnias minoritárias que formam a República Popular da China, com cerca de 10 milhões de pessoas.

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Após o massacre dos camponeses, os dois países enviaram representantes para invadirem a Coreia, culminando na Guerra Sino-Japonesa pela disputa do território. A derrota chinesa impôs o Tratado de Shimonoseki3 que decretava o fim do Império Coreano, tornando-o um protetorado japonês. A imigração de comerciantes e industriais japoneses era incentivada sob a promessa de modernização da Coreia. Já em 1897, 95% dos estrangeiros na Coreia eram japoneses, construindo casas de chá, correios, bancos e lojas. Somava-se a isso, a organização de uma polícia própria, bombeiros, telégrafos e o controle sobre o porto de Busan. O Japão era a força de industrialização e de ocidentalização na Coreia, abrindo o comércio para a Europa e os EUA e construindo os primeiros prédios aos moldes ocidentais na capital Seoul (CHUNG, 2006). A Coreia foi novamente alvo de disputa na Guerra Russo-Japonesa, como mostrado anteriormente, onde a vitória do Japão levou ao Tratado de Japão-Coreia de 1905, instituindo o governo geral da Coreia cujo cargo principal deveria ser ocupado por um almirante ou geral japonês indicado diretamente pelo Imperador. O primeiro Residente-General do país foi Hirobumi Itô, um samurai enviado a Londres para realizar seus estudos e que se destacou nos primórdios da Era Meiji, chegando a ocupar o cargo de Primeiro-Ministro em 1885, e fundamental na redação dos documentos que norteariam o Japão. Hirobumi adotou inicialmente um discurso de fortalecimento da Dinastia Joseon, simultaneamente fortalecendo a entrada o exército Imperial japonês e incentivando as possibilidades de anexação da Coreia. No ano de 1909, assumiu o cargo de Presidente do Conselho Privado do Japão, realizado na Manchúria pelo coreano An Jung-geun. Em 1910, os planos de Hirobumi teriam continuidade e o Japão anexou definitivamente a Coreia, com a execução de mais de 17.000 coreanos que se articularam em guerrilhas para combater o exército Imperial. Neste ano, marcado pela apropriação das terras dos camponeses coreanos, restavam-lhes migrarar ao Japão em busca de sub- empregos. O destino comum eram as minas de carvão com a proposta de cumprirem jornadas de 12 horas, mas que se estendiam quando não se cumpria a meta do dia, chegando a períodos que iam das 7 horas da manhã às 3 horas da manhã do dia seguinte.

3 Firmado em 1895, marca do fim da Guerra Sino-Japonesa. Assinado na cidade japonesa homônima, previa ao Japão a ilha de Taiwan, a península de Liaodong e a independência da Coreia que passava a ser um protetorado japonês.

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As refeições eram alguns resíduos de feijão e no caso de horas extras, somava-se uma bola de arroz. Muitos morriam de fome em meio ao trabalho extenuante (HANE, 1982). Com a I Guerra Mundial aumentaram as imigrações que passaram a ter mais incentivos das indústrias têxteis e de minas em Osaka, Kobe, Fukuoka e Hokkaido. Os trabalhadores coreanos eram convocados por representantes das empresas que iam até a colônia, sendo contratados após a autorização da polícia coreana. Aos camponeses no Japão, incentivava-se a imigração para o Brasil visto que a mão de obra coreana era de 30 a 50% mais barata e somente para trabalhos temporários no caso de alta demanda, como na guerra. Após 1917, ao fim dos confrontos, os recrutamentos reduzem-se drasticamente: inúmeros coreanos são demitidos e passam a vagar pelas ruas da cidade em busca de algum emprego. Soma-se ainda a escassez de alimentos em 1920, quando o governo japonês lançou o Sammai zôshoku keikaku, programa de aumento da produção de arroz, pautado na exploração de território e na mão de obra coreana. Dos incentivos para a produção do grão, pouco ficava para os camponeses e esse investimento continuou até o final da II Guerra Mundial, quando, estima-se que o Japão se apropriava de 40-60% do arroz, resultando em crescimento da miséria no campo e em aumento progressivo de coreanos imigrados para o Japão, mesmo sem a perspectiva de conseguirem um emprego. Aos imigrantes restava procurar empregos em outras áreas que não a atividade rural, como a realização de serviços diários e, com sorte, ter um emprego com duração média de 3 meses. Para conseguir esses pequenos trabalhos diários mal remunerados, acordava-se cedo, dirigia-se às esquinas das cidades nas regiões conhecidas como tachinbô ou ankô para encontrar famílias que necessitassem de algum serviço ou de corretores de emprego, tehaishi, para trabalhos temporários. Era preciso contar com um bom clima para que fosse escolhido, ou seja, ter sorte (KAWASHIMA, 2009). Assim, os coreanos, longe dos ideais da industrialização, era um lumpenproletariado desprezível, tanto para os industriais japoneses, como pelos incipientes grupos socialista, daí se associavam, por vezes, aos anarquistas, como veremos adiante. Após o terremoto de 1923, inúmeras pesquisas passaram a ser realizadas sobre o problema coreano, termo popularizado pelo governo para caracterizar a situação de miséria que estes mesmos teriam provocado, cabendo às autoridades encontrar alguma solução. Naquele ano, a província de Osaka lançou uma pesquisa referente ao problema; no ano seguinte e em 1925, a província de Aichi realizou estudo sobre prestadores de

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serviço coreanos que estavam na cidade de Nagoya. Em 1928, o gabinete de investigação criminal do Ministério da Justiça emitiu relatórios sobre a inserção dos coreanos nos movimentos socialistas; seguiram-se desde então, até o final da II Guerra, pesquisas sobre coreanos pela Secretaria de Polícia e do Ministério do Interior; outras pesquisas também eram realizadas paralelamente como a do departamento de polícia de Nara, intitulada “cuidado, eles estão aqui: coreanos sem lei” (KAWASHIMA, 2009). Sakai Toshio publicou em 1931 a pesquisa “Chôsenjin Rôdô Sha Mondai” (“O problema dos trabalhadores coreanos”), encomendado pela prefeitura de Osaka, uma atualização das pesquisas de 1924. O estudo, como os anteriores, descrevia o pauperismo em que se encontravam e propunha soluções para o Kajô jinkô, excesso de população, dos coreanos por meio de medidas institucionais para limitar a imigração e também para controlar suas associações. Em consonância a essas pesquisas, liberais, progressistas e conservadores concluíam que era necessário desenvolver a indústria coreana para absorver o excedente; outros queriam que os deportassem para a Manchúria ou para a Sibéria; que suspendessem as imigrações; que criassem organizações de assistência social; e, que se aumentasse o número de policiais para vigilância dessas pessoas. Os coreanos articularam inúmeras greves para reivindicar o fim do racismo nos locais de trabalho, melhores salários, se opor às demissões... Kawashima (2009) apresenta como as organizações comunistas coreanas Rôsô e Zenkyô sobressaíram na tentativa de dar uma direção ao movimento e de encontrar um “foco para essas diversas greves” (e- book, pos. 484 de 6277). Kawashima, interessado nos sindicatos comunistas de coreanos, desconhece as lutas dos anarquistas. Os libertários não estavam restritos à nacionalidade, ou na construção de associações que se limitassem às fronteiras. Anarquistas associavam-se com quem tivesse interesse no fim do Império japonês, como o caso de Fumiko Kaneko e Yeol Park. Entretanto, o trabalho de Kawashima ressalta os requisitos para a invasão da Coreia, atualizando o conceito de harmonia presente no Kokutai (KAWASHIMA, 2009). Soma-se à harmonia do Kokoutai para a população japonesa a extensa harmonia pela Ásia. Esse discurso, propagado por humanistas japoneses recém-chegados da Europa, afirmava que assim haveria o desenvolvimento da indústria da Coreia e, por consequência, a redução da pobreza no país. A tolerância étnica seria a tática para ampliar o colonialismo. Apoiado no lema de “dois povos, uma nação”, o governo japonês dava continuidade às suas práticas colonialistas, discurso que seria revisitado com mais força durante a II Guerra, com propagandas da aliança Japão-Coreia rumo à vitória.

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Durante a II Guerra Mundial, muitos foram sequestrados para produzirem armas e escravizados em outros serviços nos campos de trabalhos forçados, a baixas temperaturas de Hokkaido (NAKAZAWA, 2011). Em 1944, aproximadamente 128.190 dos trabalhadores nas minas eram coreanos, aproximadamente 32% dos trabalhadores (HANE, 1982). Ainda nesse período, em 1941, as migrações foram incentivadas. Após décadas de assassinatos de coreanos e a reforma no Koseki (documento que atesta ser cidadão japonês e que regula os nomes das famílias), os coreanos não adquiriram nacionalidade, mas puderam alistar-se no exército, formando legiões de voluntário no Exército Imperial. Alguns foram capturados e enviados ao front. Outros tantos coreanos ainda seriam usados em testes na secreta Unidade 731 (Nana san ichi Butai), referida como a Auschwitz japonesa4.

4 Ativa entre 1934-1945, realizava testes biológicos em prisioneiros da Guerra Russo-Japonesa. Ninguém saía vivo dali. A Unidade estava localizada na Manchúria. Inicialmente recebeu o nome de Departamento de Prevenção de Epidemia e Purificação de Água. Esteve sob comando da Kempeitai, conhecida na época como a SS japonesa e referência para a polícia nazista. Posteriormente, passou ao comando de Shiro Ishii, um oficial do exército. Em 1941, foi renomeada para Unidade 731. Estima-se que 70% das pessoas utilizadas para os testes biológicos eram chinesas, e o restante, coreanos, mongóis, soviéticos e prisioneiros de guerra. A Unidade 731 fazia desde treinamento de cirurgiões até experiências químicas e biológicas. Cirurgiões recém-chegados ao exército japonês faziam vivissecções, apendicectomias e traqueostomias nos prisioneiros, outras vezes, atiravam nos presos para poderem retirar as balas de seus corpos, abriam os braços e pernas e costuravam a pele ao redor das feridas, e, quando já não precisavam mais do corpo, matavam. Com a experiência que adquiriam, podiam tratar dos soldados feridos nas linhas de frente. Segundo Tsuchiya Takashi, professor na Universidade de Osaka, em “The Imperial Japanese Medical Atrocities and Its Enduring Legacy in Japanese Research Ethics” (2006), as pesquisas atuavam em três frentes: busca por explicação de doenças; desenvolvimento de cura; desenvolvimento de armas biológicas e químicas. Na busca para explicar algumas doenças, os médicos voltaram-se principalmente aos estudos bacteriológicos, realizando infecções intencionais para observar a progressão da doença, também faziam estudos fisiológicos com a observação da reação do corpo a condições de temperatura baixa, a baixa pressão, altitude, overdose de sal. Na segunda categoria, realizavam experiências com transfusão com sangue armazenado em uma garrafa térmica, sangue de ovelha, sangue congelado e depois descongelado, sangue retirado do coração de um cadáver. Retiravam o pulmão de um prisioneiro e realizavam esse tipo de transfusão para ver qual seria o comportamento. Também testavam cirurgias: “De maio a junho de 1945, o professor Ishuyama Fukujiro, do primeiro Departamento de Cirurgia, e o cirurgião aprendiz do Exército Kokomori Taku, e outros subordinados a Ishiyama realizaram cirurgias experimentais em oito tripulantes estadunidenses na Faculdade de Medicina da Universidade Imperial de Kyushu. Os aviadores estadunidenses foram capturados quando seus B-29 foram abatidos. O Exército do Distrito do Oeste do Japão decidiu executá- los e entregou-os a Komori e Ishiyama. Em 17 de maio de 1945, Ishiyama removeu um pulmão de dois prisioneiros. Em 22 de maio, Ishiyama e sua equipe realizaram ressecção gástrica total e cirurgia cardíaca em um prisioneiro, e removeram a vesícula biliar e metade do fígado de outro prisioneiro. Em 25 de maio, eles realizaram a rizotomia do trigêmeo (cortando as raízes nervosas faciais) em um prisioneiro. Finalmente, em 2 de junho, Ishiyama realizou uma cirurgia no mediastino e removeu a vesícula biliar de dois dos três prisioneiros de guerra. Todos os oito prisioneiros estadunideneses morreram durante essas operações” (TSUCHIYA, 2006, online). Na terceira categoria, eram realizadas experiências com armas biológicas e químicas. Os prisioneiros eram amarrados a estacas e vestidos com uniforme do exército. Bombas de antrax eram explodidas próxima deles. Em outro teste, prendiam as pessoas e usavam armas com bactericidas, infectando-os pelas vias respiratórias. Em setembro de 1940 foi realizado um teste com o gás yperite (gás mostarda). “Vinte

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Os coreanos tornaram-se uma parcela significativa em cidades militarizadas e/ou industriais como Hiroshima e Nagasaki, nesta última, após a explosão da bomba atômica, morreram cerca de 12.500 coreanos, desses, 2.500 eram escravos (HANE, 1982). Seguem até hoje processos contra o governo japonês por assistência médica e por indenizações das empresas que usaram trabalho forçado de coreanos5. Para que fosse possível a usurpação de coreanos, o governo japonês e sua polícia executaram e perseguiram qualquer um que fosse contrário à produção de miséria pela Ásia para alcançar o ideal de desenvolvimento. Ao recordar a vida miserável no Japão, a anarquista Kaneko Fumiko em The prison memoirs of a japanese woman (1991) apresenta as relações com a Coreia a partir de outra perspectiva e da paixão com Yeol Park, nada interessada na escravização de um povo, mas em compor com este povo contra o Império Japonês. Tanaka Hikaru, interessado em investigar as conexões entre anarquistas pela Ásia para construir o que chama de anarquismo global (gorôbaru anakizumu)6, em “Reading the history of japanese anarchism in the contexto of global anarchism history” (2014a), afirma que Fumiko fora esquecida até mesmo pelos libertários, sendo aindapouco conhecida. Entretanto, seu interesse e luta pela Coreia permanece urgente e inaugural até

pessoas foram divididas em três grupos e colocados em posições de combate, trincheiras, gazebos e observatórios. Um grupo estava vestido com roupas íntimas chinesas, sem chapéu e sem máscara, e foi submetido a até 1800 rondas de gás yperite durante 25 minutos. Outro grupo estava vestido com uniforme militar de verão e sapatos; três tinham máscaras e outras três não tinham. Eles também foram expostos a até 1.800 rodadas de gás yperite. Um terceiro grupo foi vestido com uniforme militar de verão, três com máscaras e dois sem, e foram expostos a até 4.800 rondas. Em seguida, seus sintomas gerais e danos à pele, olhos, órgãos respiratórios e órgãos digestivos foram observados em 4 horas, 24 horas, 2, 3 e 5 dias após. (...) Cinco sujeitos foram forçados a beber uma solução de yperite e lewisite gasosa na água, com ou sem descontaminação. O relatório descreve as condições de cada assunto com precisão, sem mencionar o que aconteceu com eles a longo prazo” (TSUCHIYA, 2006, online). Ao final da Guerra, os cientistas receberam imunidade dos EUA em troca dos resultados das pesquisas que haviam realizado. Os prisioneiros que foram resgatados e tentaram publicizar o que acontecia na unidade, tiveram seus depoimentos desconsiderados, sob a acusação de propaganda comunista. Somente na década de 1980 que os dados passaram a ser divulgados com a publicação do livro de Morimura Seiichi, Akuma no Housyoku (A gula do Diabo) (1981), com depoimentos de militares e cientistas que trabalharam na unidade. A obra foi traduzida para o francês como Section 731, expérimentations japonaises sur les cobayes humains (1985). 5 É o caso da Mitsubishi que, em 2007, foi condenada a pagar 1,2 milhões de ienes para ex-escravos hibakusha que trabalhavam em Hiroshima. 6 Para Tanaka é preciso investigar as relações estabelecidas entre os anarquistas no Japão com anarquistas espalhados pelo planeta. Isso permite um resgate histórico, como também traçar o anarquismo global, ou seja, as experiências anarquistas não estão restritas a somente um país, mas modificam-se a partir dos contatos que estabelecem. Assim, no Japão, as viagens de libertários para fora de lá teriam tido impacto nos rumos que tomava o movimento anarquista e com as discussões que travavam.

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hoje entre os anarquistas no Japão, talvez por isso ela tenha permanecido esquecida por alguns. Quando criança, Kaneko Fumiko não foi registrada por seus pais por estes não serem casados. Desde a instauração da Era Meiji, fora instalado um aparelho burocrático aos moldes ingleses para o conhecimento da população, pelo qual se tornava obrigatório o registro de filhos por pais casados, mas, em caso de solteiros, isso era vetado. Assim, essas crianças sem registro oficial também não podiam frequentar as escolas que, desde 1872 – ano da reforma no ensino japonês, anunciando a promulgação da Constituição do Império Meiji (1889) –, era obrigatória para todas as crianças japonesas a partir dos 7 anos de idade. A educação a partir de 1890, se fundava em dois documentos de base para formar o cidadão japonês: a Constituição e o Rescrito Imperial sobre a Educação (Kyôiku Chokugo) (1890b). O primeiro renovava e reforçava a obediência ao imperador, “um ser sagrado e inviolável” (JAPÃO, 1889, Capítulo I, Art. 3). O tratado da educação era decorado por todas as crianças, reverenciado em datas comemorativas por toda a escola junto a uma imagem Imperador e da Imperatriz. Nele se previa o ensino a serviço do Estado; lealdade e prontidão de dispor-se ao Império.7 Assim, ao articular os dois documentos, “o objetivo era produzir bons cidadãos em dois sentidos: em primeiro lugar, leais ao regime; em segundo, detentores dos conhecimentos exigidos pela vida moderna” (OKUBARO, 2008, p. 49). A libertária Toda Misato, em carta aos seus amigos Carla e Giulio, ao comentar a educação japonesa, remonta ao ensino obrigatório aplicado nos primórdios da Era Meiji. Destaca que sem esse, o mito do Imperador como a imagem de Deus na Terra não teria tido tanto sucesso. Já no decurso da Guerra Russo-Japonesa, entre 1904 e 1905, a eficiência da educação pode ser comprovada com uma população convicta na defesa do Imperador. “Todos deveriam parecer crianças na frente do Tenno [Imperador], que deveria amar a todos igualmente” (TODA, 2003, p. 167), era a unidade na subserviência, pronta para dar a vida ao senhor. Em 1906, o ensino japonês atingia 95% das crianças registradas. Até mesmo em regiões miseráveis, como Okinawa, onde em 1880 apenas 2% das crianças frequentavam as escolas, em 1908 o índice subiu para 92,8% (IDEM). O ensino foi fundamental para a construção de uma população que provaria sua devoção durante a II Guerra Mundial.

7 Na primeira gestão do governo de Shinzo Abe (2006-2007), o documento voltou às escolas. O ministro da educação Hirokazu Matsuno afirmou que cabe às escolas decidirem se o usarão, ou não.

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Kaneko frequentou poucas aulas; quando conseguia ir era como ouvinte e sempre exposta por não ser uma cidadã japonesa. Enquanto as ideias de progresso, desenvolvimento e industrialização cortavam o país, parte da população, principalmente no campo, vivia em extrema miséria, morrendo de fome e de outras enfermidades.8 Após uma tentativa frustrada de sua mãe vendê-la, aos 6 anos, a um bordel por alguns trocados de ienes, Kaneko foi registrada aos 9 por sua avó paterna com quem se mudou para Coreia junto com sua tia, cujo esposo era integrante da administração colonial desde a anexação do país em 1910. Sua estadia no vilarejo Bugang foi marcada pelas seguidas surras e humilhações por parte de sua avó que a tratava como empregada, passível de castigos corporais, como o eram os coreanos (KANEKO, 1991). A família que a abrigava na Coreia, era uma entre as várias que vislumbrava no país uma oportunidade de enriquecer. Como os ingleses fizeram anos antes com a China, os japoneses dirigiam-se à Coreia tanto para explorar as terras, como na função de negociantes ilegais de ópio9 (TANAKA, 2014a). Aos 16 anos, Kaneko lutava para sobreviver, por vezes alimentando-se de sobras de arroz que encontrava no lixo e praticando pequenos furtos. Kaneko concluiu o ensino fundamental e foi enviada novamente para o Japão, com 5 ienes no bolso, para que sua avó não tivesse de cobrir os gastos de um possível casamento (KANEKO, 1991). Após sete anos na Coreia, Kaneko retornou em 1919 e foi para Tóquio depois de ser expulsa da casa de seu pai logo que chegou ao país. As ruas da capital, nesta ocasião,

8 Nesse contexto, o Tratado de Amizade Brasil-Japão de 1895, ganhou outros tons. Além de relações diplomáticas, o tratado passou a incentivar a imigração. O Brasil, que recentemente havia abolido a escravidão e suspenso em 1905, a imigração de italianos, parecia ser uma alternativa diante da miséria no campo. Somava-se a isso a escassez de mão de obra nas fazendas de café de São Paulo e as restrições de imigrações de japoneses para Austrália, Estados Unidos, Canadá, e ilhas do Pacífico. Em 18 de junho de 1908, aportou em Santos o Kasatu Maru com 793 trabalhadores. 9 A metanfetamina também foi outro psicoativo introduzido na Coreia pelo Japão no começo do século XX. Na Coreia do Norte o uso é comum o uso e tão casual quanto fumar um cigarro. Na década de 1980 o governo da Coreia do Norte incentivou a produção de ópio e metanfetamina para exportação. Até há pouco tempo era usada como um estimulante nervoso para tirar o sono, como os energéticos em lata. As substâncias eram exportadas pelo mar em negócios com as Tríades Chinesas e a Yakusa japonesa. No começo dos anos 2000, quando a produção passou a diminuir, estimou-se que a Coreia do Norte faturou 100 milhões de dólares por ano, sendo uma das maneiras pela qual o país conseguia moeda estrangeira. Na época ocupam-se 63 hectares para cultivo de papoula. Com a queda da produção, os trabalhadores da indústria de metanfetamina criaram seus laboratórios e passaram a comercializar no mercado local. Hoje é um presente trocado no Ano-Novo lunar, em aniversários e em formaturas, principalmente entre os jovens. (Ver: FOLHA DE S. PAULO (12/02/2019). Metanfetamina é presente mais procurado na Coreia do Norte. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/02/metanfetamina-e-presente-mais-procurado-na-coreia- do-norte.shtml?loggedpaywall. Acesso em 17/02/2019. E THE SYDNEY MORNING HERALD (05/05/2003). Observers disagree on how official the North Korean drug trade is. Disponível em: https://www.smh.com.au/world/observers-disagree-on-how-official-the-north-korean-drug-trade-is- 20030505-gdgplz.html. Acesso em 12/02/2019).

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eram tomadas por inúmeras manifestações exigindo a independência da Coreia. Ela conseguiu emprego como vendedora de jornais e circulou pela cidade, conhecendo diferentes pessoas e escutando vários discursos pela rua. Um dos primeiros que a atraiu foi o do cristianismo, como ocorrera com outros tantos libertários, que se posicionava contra o confucionismo previsto na Constituição. Neste momento, Kaneko teve uma rápida aproximação do Exército da Salvação. Quando se apaixonou por um dos seus integrantes foi convidada a se retirar do grupo, pois as relações amorosas eram proibidas; ela concluiu então que o cristianismo não passava de “uma fé de escravos” (KANEKO, 1993, p. 120). Em uma dessas situações na rua, escutou pela primeira vez sobre a Revolução Russa e comprou um panfleto de Heibei Takao10, que viria a ser assassinado por Yaomemura Kaichiro. Kaneko conheceu os socialistas e passou a frequentar suas reuniões; encontrou ali um grito consoante com seus incômodos. “O socialismo não me forneceu nada de novo. Apenas me deu uma base teórica com a qual eu pude justificar os sentimentos que eu tive como resultado de minhas experiências até agora. Eu era pobre e ainda sou. E então fui privada de liberdade, explorada, dominada, oprimida e usada por pessoas com dinheiro. Com cada uma dessas experiências, acumulei sentimentos rebeldes em relação a essas pessoas com poder. Ao mesmo tempo, simpatizo com pessoas que estão na mesma posição que eu. Na Coreia, eu simpatizo com o servo da casa da minha avó e até senti que estava na mesma posição do lamentável cão e sinto companheirismo por ele. Mesmo quando, apenas em torno da minha avó, existiam casos de opressão, abusos, acossamentos, explorações e dominação do povo coreano. A simpatia que sempre senti em relação a eles foi a forma que meu coração rebelde tomou. O socialismo foi o que lançou fogo no meu coração” (KANEKO apud TANAKA, 2014a, p. 133).

10 Quando preso, conheceu Ôsugi Sakae e tornou-se anarquista. Tomou parte na Hokufu Kai (Sociedade do vento norte) e na Confederação do Trabalho de Minas do Japão, participando de greves em Ashio e Kamaishi. Fundou a revista mensal Rôdô Sha (Os trabalhadores). Como tantos outros, empolgou-se com a Revolução Russa de 1917; foi um dos fundadores do Partido Comunista Japonês. Deixaria o partido em 1923, assassinado pelo bolchevista Yaomemoura Kaichiro. Seu enterro atraiu inúmeras pessoas. O integrante do Le Libertaire no Japão, que publicaria livros sobre os anarquismos na década de 1970, Shintaro Hagiwara, seria um dos estudiosos da vida de Heibei Takao. Em carta enviada ao CIRA Lausanne e sem data, provavelmente em 1975 – ano de resposta de Mariane Enckell ao anarquista –, Shintaro contou que Hagi foi à Rússia empolgado com a revolução e que acreditava em uma luta comum entre anarquistas e bolchevistas no final do ano de 1922, o que não evitou que fosse assassinado. Em seu velório foram mais de 2000 mil pessoas, algo inédito no Japão, como recordou Shintaro “na ocasião de seu funeral, seu desejo de uma luta comum foi realizada” (p. 3), e seus amigos socialistas e anarquistas estavam presentes para a última despedida.

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Se o socialismo lançou o fogo, a anarquia causou o incêndio. Kaneko rapidamente distanciou-se dos socialistas; ela os compreendia como continuidade do cristianismo na promessa de uma recompensa futura. Não aguentava mais esperar. Somava-se a isso, a necessidade dos socialistas em ter um mártir, um símbolo revolucionário. Em depoimento em tribunal, recordou: “Como generais que se orgulham das medalhas no peito, socialistas cobiçavam ser presos para garantir o pão. Eles tinham orgulho disso. Quando eu percebi, afastei-me deles” (KANEKO, 1993, p. 121). Kaneko via na revolução uma restituição da ordem: “socialistas farão a revolução ‘pelo povo’ (...), mas os líderes socialistas tomarão o poder rapidamente, (...) mais uma vez as pessoas serão escravas de uma autoridade. Então isso é a revolução? Isso é apenas a troca de um poder por outro” (KANEKO apud TANAKA, 2014a, p. 133). Na ruptura com o socialismo e sempre próxima aos movimentos de coreanos, Kaneko tomou contato com os poemas de Park Yeol (1902-1974), conhecido também pelo pseudônimo Boku Retsu, coreano imigrado que conseguia alguns trocados com seu riquexó (carroça de duas rodas puxada por uma pessoa) ou realizando pequenos serviços diários destinados aos coreanos. Impressionada por sua escrita, ao conhecê-lo não disfarçou sua curiosidade e pagou-lhe um jantar, ato jamais esperado de uma mulher no Japão. Apaixonou-se e em sua biografia recorda que Park recusava-se a ser identificado como um militante da causa coreana, o que queria era outra coisa. Em poucos dias, estavam morando juntos, realizando traduções de livros, lendo obras de Max Stirner, Mikhail Artsybashev e Friedrich Nietzsche. Em novembro de 1920, Park fundou o Kagakusei Dômei (Aliança de trabalhadores estudantes), grupo ainda vinculado a independência coreana e que reunia japoneses e coreanos. Depois associou-se no Kokutôkai (Associação onda negra) e na Kokuyûkai (Associação negra de amigos) (KAWASHIMA,2009). Também marcou presença no grupo anarquista Heug'uhwe (Os fora da lei). Ambos formados por anarquistas coreanos que pretendiam propagar o pensamento anarquista e vingar-se dos coreanos colaboradores do Império japonês (KIM, 2003). A cada dia intensificava-se a vigilância sobre os coreanos e suas associações. As embarcações procedentes de Shangai eram revistadas em busca de qualquer ligação entre coreanos, chineses e japoneses com os bolchevistas ou associações anarquistas. Kaneko e Yeol fundaram a Insubordinação (Bullyeongs em coreano ou Futeisha em japonês), associação de 20 integrantes, coreanos e japoneses, para estudar obras anarquistas.

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Em 1919, ocorreu uma série de manifestações contra a ação do Império japonês na Coreia, onde muitas acabaram em confrontos entre os manifestantes e a polícia (RADEKKER, 2005). Desde julho de 1921, os grupos socialistas e anarquistas de coreanos estavam sob constante vigilância da polícia. Com a fundação da seção de Casos Coreanos (naisen koto kakari) pela polícia metropolitana de Tóquio, todos estavam ininterruptamente vigiados. Em dezembro daquele ano foi fundada a Kokutôkai (Sociedade Corrente Negra), que se dividiu em novembro de 1922, formando o grupo socialista Hokuseikai (Sociedade Estrela do Norte) e a associação anarquista Kokuyûkai (Sociedade da Amizade Negra). No mesmo mês também se formava a Tôkyô chosen rôdô dômekai (Aliança dos trabalhadores coreanos de Tóquio) (YAMADA, 2012/2013). Na primavera de 1923, antes do terremoto, a perseguição aos coreanos aumentava a cada dia. No Primeiro de Maio, a polícia proibiu socialistas, anarquistas e coreanos de manifestarem-se; quem desobedeceu, foi espancado pelas ruas de Tóquio (IDEM). Meses depois, quando o Grande Terremoto atingiu Kantô, a polícia, o exército e grupos de civis armados viram ali uma grande oportunidade tanto de acabar com os anarquistas, como também de executar os coreanos. Sonia Ryang, pesquisadora na Universidade Johns Hopkins, a partir de documentos oficiais nos quais constam nomes dos mortos no Terremoto e nos dias subsequentes, mostra que se estima a morte de 6.000 entre 20.000 coreanos em Tóquio e Kanagawa, sem contar nas províncias de Saitama, Tochigi, Chiba e Gunma (RYANG, 2003). No dia subsequente ao terremoto e com a declaração de Lei Marcial, às 14 horas, a polícia da região de Hongô Komagome recebeu denúncias pautadas em rumores de que coreanos possuíam água potável, em falta em toda a região, e que estariam realizando atentados com bombas em Tóquio. Duas horas depois, a polícia de Nihonbashi Hisamatsu tomou contato com rumores de que coreanos estavam cometendo atos de violência. Às 17 horas, a polícia de Shiba Mita reportava que 3.000 coreanos destruíam Yokohama e seguiam em direção à capital. Às 18 horas e 20 minutos iniciaram as perseguições e 47 coreanos foram presos pela polícia de Shiba Takanawa. Na noite do dia seguinte, a polícia de Azabu Toriizaka divulgou que um grupo de 300 a 500 coreanos preparavam-se para atacar os japoneses (IDEM). Inúmeros coreanos foram presos. Quando bateram à porta de Park e de seus amigos coreanos, Kaneko tentou evitar que os levassem, entretanto, foi presa por agressão e desacato a autoridade. Yamada Shôji (2012/2013) apresenta um longo estudo sobre a perseguição aos coreanos após o Grande Terremoto de Kantô a partir de dados da polícia de Tóquio,

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registros de jornais, relatórios de comissões de investigações de associações de coreanos e relatos de sobreviventes. Para o pesquisador, houve uma fabricação dos tumultos coreanos, ou seja, o próprio governo e a polícia incentivaram a propagação de informações falsas para justificarem as perseguições. Os rumores cresciam: constam nos registros do Tribunal Distrital de Tóquio que entre setembro e novembro de 1923, foram mais de quatro mil denúncias de saques ou roubos por coreanos, sendo que somente 15 deles não foram arquivados por falta de qualquer evidência (JUNG, 2017). Entretanto, as execuções ocorreram sem julgamentos, tanto por parte dos grupos de japoneses armados, como pela polícia. Alguns foram levados para a prisão de Honjo, na província de Saitama, onde ocorreram inúmeras torturas e execuções. A região abrigava coreanos explorados no cultivo de bichos-da-seda e nas fábricas do tecido. Na noite de 3 de setembro, começaram a ser encaminhados para a prisão; na madrugada, com os caminhões desembarcando inúmeras pessoas já feridas e espancadas, grupos de milicianos os abordavam com espadas, enxadas e lanças. As crianças eram alinhadas na frente dos pais e tinham suas gargantas cortadas; os adultos sofriam a haritsuke (eram pregados na parede pelos pulsos e tornozelos, como uma crucificação), para serem torturados até a morte; outros tinham partes do corpo arrancadas enquanto vivos. Estima-se que 100 coreanos foram exterminados naquela noite (RYANG, 2003). Os nacionalistas inflamavam as perseguições. Uchida Ryôhei, um líder da direita, proclamou: “Toda a cidade presenciou a fuga dos policiais, quando você ver um coreano comportando-se violentamente, você deve surrá-lo até a morte” (UCHIDA apud IDEM, p. 734). Somou-se a presença do exército, que passou a controlar os trens de onde retiravam todos os coreanos e os executavam por decapitação ou com tiros. Enquanto isso, parte dos passageiros japoneses urrava gritos: “vida longa!”, “traidores da nação” e “matem todos os coreanos” (IBIDEM). Ryang ainda retoma relatos daqueles que presenciaram a ação militar. Fukushima Kentarô recordou: “À tarde de [2 de setembro] eu estava caminhando pelo campo de arroz depois de ter recebido minha fração de comida... [Alguém disse] que os soldados estavam batendo nos coreanos até a morte. Todos nós que caminhávamos muito devagar começamos a correr rápido. Depois de um tempo, por trás da multidão, eu vi claramente um evento horrível e brutal. Sete homens, todos vestindo roupas muito finas e velhas, foram arrastados com as mãos amarradas nas costas. Todos amarrados. Foram colocados no chão. Eram coreanos. Perdendo completamente a cor, estavam conversando em um

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dialeto que eu não entendi. ‘Pare de latir, seu merda...’ Um soldado ergueu a espada e a deixou cair na cabeça de um homem que se movia inquieto. A multidão nem conseguiu pronunciar a voz. Todos se afastaram. Quando abaixei lentamente os olhos, [eu vi] a cabeça do homem estava aberta e o brilhante sangue vermelho espalhou-se por toda parte. Seus membros ainda estavam se movendo convulsivamente. ‘Ha, ha, ha. Apenas o que eles merecem’. ‘Todos eles, matem todos eles’. ‘Vocês são animais de merda’. ‘Seus porcos, vão para o inferno’. Cerca de dez soldados levantaram suas espadas e concluíram a ação” (apud RYANG, p. 734). Os grupos de japoneses armados aumentavam. Desde meados de setembro, eram ao menos 1.145 em Tóquio, até o final de outubro o número cresceria para ao menos 1.593, chegando à cifra de 3.698 grupos na região de Kantô (LEE, 2008). Tais grupos estavam armados com bambus afiados, facas, vidros quebrados, espadas de madeira e qualquer outro tipo de arma caseira, e alguns integrantes tinham armas de fogo. Já no dia 2 de setembro, corpos com perfurações e marcas distintas das causadas pelos desmoronamentos do terremoto apareceram nos rios, esquinas e ruas. Quando as características físicas não permitiam a identificação de quem era ou não coreano, as milícias obrigavam a pessoa a recitar ou cantar a letra do Kimigayo (canção de louvor ao Imperador, usado como hino nacional desde o século XIX mas oficializado definitivamente como tal em 1999); caso tivessem dificuldades na pronúncia, eram capturados, o que resultou também na execução de alguns chineses (IDEM). Em 5 de setembro, as milícias, que até então contavam com o apoio não declarado da polícia e do exército, foram proibidas. As autoridades passaram a se valer da senjin no hogokensoku, literalmente proteção e apreensão de coreanos, para protegê-los11. Eram amarrados com cordas em uma longa linha e levados ao campo de Narashino, muitos eram assassinados no caminho e contabiliza-se que 1.052 pessoas morreram ali (RYANG, 2003). Segundo Ryang, os assassinatos de anarquistas e socialistas e dos coreanos eram diferentes. Os primeiros foram assassinados em 1923 por pessoas uniformizadas, como o caso de Ôsugi Sakae, sendo possível identificar os corpos. Já os coreanos foram

11 Senjin é um termo pejorativo para coreanos. Assim como os japoneses também chamam qualquer estrangeiro com o pejorativo de gaijin. Muitos imigrantes brasileiros descendentes de japoneses que foram ao Japão para trabalhar na década de 1990 e início dos anos 2000, eram referidos como gaijin. Posteriormente, com o incentivo ao consumo desses imigrantes e o crescimento do turismo, o governo japonês passou a realizar campanhas para o uso do termo gaikoukojin, que seria mais respeitoso para referir ao estrangeiro.

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desmembrados, destruídos, muitos eram decapitados. Decapitar, para a tradição dos samurai, era o símbolo da vitória sobre um inimigo estrangeiro; a cabeça era um troféu, muitas vezes, lavada e exposta pelas mulheres dos guerreiros no Japão Tokugawa. Por meio dos corpos destruídos e irreconhecíveis, pretendia-se torturar no pós-morte dos coreanos, vetar que o indesejado retornasse. Na tradição japonesa, quando a pessoa morre, sua alma vaga até que encontre um corpo intacto que pode ser um corpo animal ou humano. Para que a alma jamais volte a esse mundo, é necessário desmembrar o corpo, até mesmo as pequenas partes, como arrancar um olho. Os ataques a coreanos era uma tentativa genocida. Pierre Clastres em A arqueologia da violência, ao fazer uma genealogia do termo etnocídio, apresenta-o distinto de genocídio. Destaca que genocídio ganhou relevância somente após o Tribunal de Nuremberg em 1946, ao julgar a perseguição aos judeus pela Alemanha nazista, e que este não foi o primeiro a ser perpetrado. Apesar do genocídio antissemita ter fundamentado um conceito jurídico, a história da expansão colonial e da constituição dos Impérios está marcado por massacres de populações autóctones, como o genocídio dos indígenas com a chegada dos europeus às Américas. E, destacou o antropólogo, “essa máquina continua a funcionar, lá onde subsistem, na grande floresta amazônica, as últimas ‘tribos’ selvagens” (CLASTRES, 2004, p. 56). O genocídio remete à ideia de ‘raça’ e à vontade de aniquilar uma minoria, em assassinar os corpos. É a visão do outro, que é a diferença, uma má diferença. O etnocídio, em contra partida, vê no outro um mal relativo, em que seria possível melhorá-lo, tornando-o igual ao modelo que lhe é imposto. “A negação etnocida do Outro conduz a uma identificação de si” (CLASTRES, 2004, p. 56). Assim, no caso japonês, a manifestação do genocídio com a tortura e execução dos coreanos também só é possível por uma prática etnocida. Sob a égide do Império japonês, os coreanos deveriam ser assimilados como inferiores e prestadores de serviços baratos. Ou seja, a dissolução do coreano, que já é uma generalização, em um colonizado. A diferença com os japoneses seria apenas de hierarquia, e todos servindo ao Estado. “O que significa agora o Estado? Ele é, por essência, o emprego de uma força centrípeta que tende, quando as circunstâncias o exigem, a esmagar as forças centrífugas inversas. O Estado se quer e se proclama o centro da sociedade, o todo do corpo social, o mestre absoluto dos diversos órgãos desse corpo. Descobre-se assim, no núcleo mesmo da substância do Estado, a força atuante do Um, a vocação de recusa do múltiplo, o temor e o horror da diferença” (CLASTRES, 2004, p. 59).

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O etnocídio está no funcionamento do Estado, em sua lógica unificadora. Assim, conclui Clastres “toda formação estatal é etnocida (...). A violência etnocida, como negação da diferença, pertence claramente à essência do Estado” (2004, p. 61). A capacidade etnocida de um Estado não tem freios, e por isso conduz aos genocídios. O massacre a coreanos não ficou restrito a 1923, mas se manifestou durante a guerra com a perseguição também a chineses e pela expansão do Império. Os massacres de 1923 prolongaram-se até o dia 6 de setembro. Os que estavam presos no campo de Narashino foram entregues pelo exército aos camponeses das imediações para que fossem executados. Para o Ministério da Justiça, ao todo foram mortos 230 coreanos, entretanto, a organização japonesa para Consolação dos Compatriotas Assassinados na Região de Kanto (Zainichi Kantō chihō risai dōhō imon han) estipula 6.661 mortes. É impossível ter precisão do massacre, pois muitos corpos desapareceram. Uma dessas medidas foi tomada pelo policial Arai Kenjiro, da delegacia de Honjô, que ordenou a cremação dos cadaveres de maneira que nunca pudessem ser contabilizados. Outros tantos corpos foram enterrados no leito de rio nas proximidades de Tóquio. Os mortos nunca tiveram autorização para serem exumados (YAMADA, 2012/2013).

matar o Imperador

Entre 19 de setembro e o final de outubro, a polícia prendeu alguns dos integrantes dos grupos de japoneses que haviam saqueado postos policiais para conseguir armas para executar coreanos. Segundo Yamada (2012/2013), os jornais que estavam acompanhando as prisões publicaram artigos referindo-se a esses grupos de execução de coreanos como “grupos de vigilantes do mal”, “grupos de vigilantes assassinos”. Os grupos que realizaram execuções com suas próprias armas, pouco eram citados, bem como os policiais que também mataram coreanos. Quando dos julgamentos dos considerados culpados, como relata Yamada, apenas 16,5% dos que foram presos receberam sentença de prisão, o restante seria absolvido ao recorreram da sentença. As investigações em relação aos soldados que executaram coreanos concluíram que estes agiram de acordo com o dever e em defesa própria, pois haviam sido atacados por eles (IDEM).

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Park sobreviveu e logo após o terremoto foi encarcerado. Enquanto Ôsugi, Itô e seu sobrinho eram torturados e assassinados, Park teve a sorte de ser enviado a uma das poucas delegacias que não foram atacadas pelas milícias. Dois dias depois, Kaneko também foi levada pelos policiais. A acusação inicial que recaia sobre os dois era de vadiagem e ficaram detidos por 21 dias, como prevê o código penal Meiji. Segundo Raddecker (2005), investigadora da vida de Kaneko, quando a polícia invadiu a casa dos dois para forjar provas contra eles, disse ao proprietário para encontrar novos inquilinos, pois esses não voltariam mais. Mesmo antes da sentença, a execução ou prisão perpétua dos dois já era esperada pela polícia. Correram dois meses de interrogatórios aos dois anarquistas, quando foram presos 14 libertários coreanos acusados de serem integrantes da Futeisha (Sociedade Fora da Lei). Após mais um mês de inquéritos e torturas, os depoimentos levaram à conclusão de que Park e Fumiko planejavam assassinar a família Imperial durante o casamento do então príncipe Hirohito. Os explosivos seriam adquiridos, logo que possível, com o Eui'yeoldan (Grupo de Ação Justa na China). A acusação dizia que tinham violado a Lei de Controle de Explosivos e, para ter a prova, submeteram os integrantes da Futeisha a interrogatórios a fim de arrancar alguma delação. Sob tortura, Niiyama Hatsuyo12 confirmou que Park e Kaneko iriam atentar contra o Imperador (RADDEKER, 2005). Seus amigos seriam liberados após alguns dias, mas Fumiko e Park permaneceram e só os reencontrariam durante as visitas na prisão e no tribunal. Somava-se ainda a acusação de serem mentores dos motins coreanos dos quais se levantavam rumores (KIM, 2003). Entretanto, com a ausência de provas, a defesa dos anarquistas seguia confiante em conseguir modificar a acusação para violação das leis de explosivos. Em dezembro de 1923, com o ataque a tiros malsucedido de Namba Daisuke – um jovem comunista que pretendia vingar as mortes de Ôsugi, Itô e seu sobrinho e dos milhares de coreanos –, à carruagem da família imperial13, e o lançamento de uma bomba próximo ao Palácio Imperial, levaram ao enrijecimento das acusações contra Fumiko e Park (STEINHOFF, 1992).

12 Em sua biografia, Kaneko conta que a conheceu no ano de 1922, era uma mulher admirável e combatente. Também foi ela quem apresentou para Kaneko a obra de Max Stirner. Niiyama prestou depoimento em 27 de outubro de 1923. De acordo com Raddeker, foi torturada na prisão mesmo tendo tuberculose em estágio avançado. Seus rins ficaram inflamados com as surras. Morreu em 27 de novembro de 1923, aos 21 anos. Não se sabe ao certo se dentro ou fora dos muros da prisão. 13 Conhecido como Incidente Toranomon, ocorreu quando Hirohito era Imperador Regente, auxiliar do Imperador. Namba era filho de ilustres integrantes da Era Meiji, foi condenado à morte em 13 de novembro de 1924 e executado dia 15.

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Nos próximos dias seguiu-se o julgamento, em que nenhum dos dois recuou em negar a ação que pretendiam realizar. Park afirmava que era necessário desmistificar o Imperador, fazê-lo “sangrar como qualquer outro ser humano” (apud RADEKKER, 2005, p. 2). Raddekermostra como a luta dos libertários foi colonizada enquanto símbolo nacionalista coreano, quando a anarquista mesma era anticolonização e antinacionalista. Hoje, quando se pesquisa o nome de Kaneko no Google, um dos primeiros resultados consiste em um blog em japonês identificando a anarquista como companheira de Park e defensora da Coreia, eternizada em um memorial construído neste país14. Porém, apesar de ter utilizado roupas coreanas em seu julgamento, Kaneko não estava interessada na defesa de uma nação, mas em arruinar e expor o ridículo do tribunal. Não era matar o Imperador em nome de uma bandeira, mas arruinar com a autoridade centralizada. Os anarquistas não recusam suas ações diante dos tribunais e não estão em busca de acordos; afirmam uma prática, a ação direta. Diante do tribunal em 26 de fevereiro de 1926, Kaneko não temeu: “Juiz: nome? Kaneko: Kaneko Fumiko. Juiz: idade? Kaneko: de acordo com o seu oficial, 24, mas eu acredito que seja 22. Falando francamente, eu não acredito nessa também. Tanto faz a minha idade, não tem importância, tanto faz, eu estou viva agora. (...) Juiz: ocupação? Kaneko: minha ocupação é demolir o que agora existe. Juiz: endereço? Kaneko: prisão de Tóquio” (KANEKO apud RADDEKER, 1997, p. 234). As palavras de Fumiko repercutiram as de Kanno Sugako, executada em 1911, no Incidente de Alta Traição, quando anarquistas foram acusados de planejar um ataque ao Imperador, sendo mais de uma dezena condenada à forca. Kanno não temeu o tribunal, afirmou seus atos e que pretendia dar continuidade a eles caso fosse liberta. A ruína do tribunal e da subserviência, para ela, começava com o fim da existência do Imperador. Kaneko ecoa a expansão da vida de Ôsugi, apesar de não haver registro de que tenha tomado contato com estes textos do libertário, e a afirmação de si de Max Stirner,

14 http://kanekofumiko.doorblog.jp. Acesso em 12/02/2019.

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que, como atestam seus biógrafos, era uma leitura recorrente. Kaneko afirma a destruição, vital na expansão da vida, e simultaneamente não se interessa em levantar bandeira de uma causa. Sua ação não era em nome dos coreanos, em nome dos anarquistas, da humanidade ou da consciência e da salvação de alguém, mas da expansão de sua vida. Após três anos de prisão, afirmou sobre seus atos, apresentando, sem citar, a influência de Max Stirner. Tratava-se de não mais servir com altruísmo ao Imperador e afirmar a sua causa, ela mesma, e liquidar a família imperial: “Toda a vontade de minha ação só vem de mim mesma e retorna para mim; do início ao fim, essas ações são para mim, e os critérios são meus. (...) Eu sou uma anarquista individualista. (...) Quando qualquer indivíduo desperta o eu, o Estado entra em colapso. Eu recuso qualquer intervenção do Estado ou do governo, fora a ordem que queima dentro de mim” (apud TANAKA, 2014a, p. 42). Quando estava diante do juiz, afirmou a sua vontade recusando-se a ser uma serva do Império: “Você brinca com a vida das pessoas, você mata, ou é gentil quando lhe convêm. O que significa essa graça excepcional? Eu devo aceitar e deixar minha vida depender de seus caprichos?” (KANEKO apud RADDEKER, 1997, p. 184). A vitalidade de Kaneko ressoa outras passagens de anarquistas em julgamento. Os libertários não recuam diante do tribunal. No ano de 1916, a revista Mother Earth publicou a transcrição de Emma Goldman, quando respondia à acusação de um policial de propaganda subversiva ao proferir palestras sobre métodos contraceptivos: “Excelência, eu estive envolvida no movimento social desta cidade pelos últimos vinte e seis anos, como enfermeira, professora e editora. Durante esse período, eu testemunhei situações tão extremas que até os artistas mais criativos teriam dificuldade em descrever. Eu não irei tomar o tempo desta corte, nem tampouco o do senhor, com os detalhes. (...) Mas eu chamo vossa atenção para o fato de que eu não estou sozinha nessa posição. Eu tenho como ilustres colegas os maiores homens e mulheres em todo o mundo, incluindo nos Estados Unidos. (...) É uma fase na luta social mais ampla; ou, como seria mais adequada, uma fase na guerra social mais ampla. Não uma guerra por conquistas militares, por supremacia material, mas uma guerra por um assento à mesa da vida por parte do povo, das massas que criam, que constroem o mundo e não recebem coisa alguma em troca. Eu vejo o controle de natalidade como apenas uma fase desse vasto movimento. E se eu, por meio da minha revolta — por meio da minha educação, eu diria — puder indicar um caminho para o aprimoramento da humanidade, a uma qualidade mais apurada, crianças que deveriam ter uma juventude feliz e gloriosa e mulheres que

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deveriam ter uma maternidade saudável, se isso é um crime, Excelência, eu tenho prazer e orgulho em ser uma criminosa” (GOLDMAN, 2008, p. 246). Emma Goldman foi presa, recusou-se a pagar a multa de 100 dólares e levada à prisão de Queens County. Posteriormente, em “Carta da prisão”, afirmou que não se arrependeu do ato, e que a vida encarcerada aumentou o seu ódio contra tudo que torna a prisão possível. Na França, pós a execução de Émile Henry as perseguições não cessaram na França, culminaram, em 6 de agosto de 1884, no famigerado Processo dos 30. Os mais conhecidos anarquistas da época foram acusados de constituir uma associação de malfeitores, entre eles estavam: Sébastien Faure, Jean Grave, Émile Pouget, Paul Reclus, Charles Chatel, Félix Fénéon, Constant Martin, Louis Duprat, Alexandre Cohen (MAITRON, 1992). O Processo durou longos nove dias, todos foram absolvidos com as exceções de Ortiz, quinze anos de trabalhos forçados; Chericotti, oito anos de trabalhos forçados; e Bertani, oito meses de prisão. Os três foram anistiados meses depois. Na França, pós sufocamento da Comuna de Paris e eclosão do anarcoterrorismo, outras ações somaram- se ao lançamento de bombas para serem consideradas atos do terrorismo anarquista. Como situou Acácio Augusto (2006b), uma sabotagem, um saque ou assalto a mão armada, o assassinato de uma autoridade, e até mesmo, panfletos, cartazes e outros impressos, ou a existência de uma associação ou de um anarquista passaram a ser identificados ao anarcoterrorismo. Foi nessa ocasião, na leitura das forças em luta e com a classificação de anarquista como terrorista, que Sébastien Faure e Louise Michel tomaram a palavra libertário, criada pelo poeta francês Joseph Déjacque em uma carta para Pierre-Joseph Proudhon em 1858, para nomear um novo periódico semanal. Lançado em 1885, Le Libertaire foi o mais duradouro de todos os jornais anarquistas distribuídos na França, com algumas interrupções forçadas por conta das duas guerras mundiais. O exercício da vontade soberana do juiz em um tribunal não é reconhecido pelos anarquistas. Em seus percursos, evidenciam que a vida não está contida em um tribunal, em um julgamento, ou mesmo no Estado e na propriedade. Como mostrou Edson Passetti, os anarquistas afirmam suas utopias mesmo diante de um juiz, estão em um combate incessante contra o tribunal e o Estado. Expõem uma luta no agora, sem ficar a espera do momento oportuno. Apesar de utópicos, os libertários não acreditam em uma nova sociedade construída por meio da revolução constituindo o Estado proletário, mas

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constroem heterotopias “lugares de contraposicionamento no interior dos desvios insuportáveis para a nossa sociedade” (2002, p. 142). Assim, não vivem da utopia, mas inventam heterotopias no presente para dar fim à propriedade, ao tribunal e ao Estado. As afirmações corajosas de Kaneko renderam-lhe uma avaliação psicológica, método inserido no Japão durante a Era Meiji. Ela se recusou a realizar, sendo impossível ao médico produzir o relatório. No transcorrer do julgamento, Park e Kaneko solicitaram permissão para se casar, era uma estratégia para que, caso morressem, seus corpos pudessem ser entregues a família de Park e enterrados juntos, já que não teria ninguém para recolher o corpo de Kaneko. O casamento foi autorizado (RADEKKER, 2005). Executar o Imperador não traria a instauração de uma nova sociedade, ou realizaria a revolução. “Planejei eventualmente lançar uma bomba e aceitar o encerramento da minha vida. Eu não quis saber se esse ato afetaria uma revolução ou não. Estou perfeitamente contente para satisfazer meus próprios desejos. Não quero ajudar a criar uma nova sociedade com base em uma nova autoridade de uma forma diferente” (KANEKO in HANE, 1993, p. 122). Kaneko era avessa à revolução como imposição de uma nova ordem. A destruição do Imperador não levaria a um fim, seria somente uma ação direta contra a autoridade centralizada. Caso fosse posta em liberdade, pretendia terminar o que começaram e expunha isso diante de seus julgadores. Se permanecesse na prisão, tomaria alguma ação que escancarasse a farsa do sistema Imperial e as relações de poder que o mantém, mesmo que fosse necessário dar um fim a própria vida. “Você pode me manter na prisão por anos, mas, assim que sair, tentarei o mesmo. Eu vou destruir meu próprio corpo e salvar vocês desse problema. Você pode pegar esse meu corpo e levar a qualquer lugar que você quiser, para a guilhotina, se desejar ou para a prisão de Hachiôji. Todos nós temos que morrer um dia” (KANEKO in HANE, 1993, p. 123). Certa vez, entre idas e vindas do tribunal para a prisão, Park exigiu um retrato dos dois anarquistas para enviar a sua mãe, visto que provavelmente seria executado e essa não tinha nenhuma foto de sua nora. Para sua surpresa, foi autorizado. A imagem é, talvez, a mais famosa dos dois e a única juntos. Ali também ficou registrada a coragem dos dois em enfrentar os costumes japoneses, com Kaneko próxima a Park que a envolve com seu braço esquerdo (STEINHOFF, 1992). A foto seria amplamente divulgada pelos jornais da direita para mostrar a perversão dos dois anarquistas.

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Park Yeol e Kaneko Fumiko no tribunal. Disponível em: http://m.blog.daum.net/ssem12/12081763. Acesso em 18/06/2018.

Kaneko não negou sua paixão por Park mesmo diante do tribunal. “Eu nunca o deixarei sofrer de uma doença ou algo parecido. Se você morrer, morrerei com você. Viveremos juntos e morreremos juntos” (KANEKO, 1991, p. 247). A paixão na anarquia não é uma devoção de um a outro. Christian Ferrer (2011) recorda a jovem América Scarfó quando conheceu Severino Di Giovanni, anarquista italiano que imigrou para o Brasil e depois seguiu a Buenos Aires. Di Giovanni foi um anarcoterrorista que, além de lançar uma bomba contra o consulado italiano em Buenos Aires e cometer alguns assassinatos, publicou inúmeros jornais com instruções para o manuseamento de dinamites. Scarfó e Di Giovanni apaixonaram-se quando ela tinha 14 anos e ele o dobro de sua idade. Trocavam correspondências, ela em espanhol e ele em italiano, e assim se entendiam. Juntos escreveram em periódicos anarquistas. Scarfó dedicava-se ao amor livre e mantinha correspondência com Émile Armand. Di Giovanni

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foi capturado e fuzilado, após passar por longas torturas, sem entregar nenhum de seus amigos. As relações livres na anarquia não são uma entrega de um a outro, mas relações apaixonadas, assim como Fumiko e Park. Em carta de di Giovanni a Scarfó, este afirmava o amor livre: “Em vez de apagar momentaneamente o incêndio que me devora, cada um dos nossos encontros, cada uma de nossas conversas, cada um de nossos abraços não servem para outra coisa que dar alimento à chama acesa do meu coração” (apud FERRER, 2011, p. 163). O amor livre não é uma prescrição ou uma adoração a uma das partes, mas relações apaixonadas, cada uma a sua maneira.

***

Como esperado, em 25 de março de 1926, receberam a sentença de morte. Poucos dias depois, em 5 de abril, o chefe da prisão de Ichigaya, Akiyama Kaname, informou a Park e Kaneko a benevolência do Imperador ao modificar suas sentenças em prisão perpétua. O coreano aceitou rapidamente. Quando Kaneko foi notificada, agradeceu, negou qualquer piedade e rasgou o documento. Akiyama notificou que ambos haviam aceitado com gratidão. A ação de Kaneko foi divulgada somente em 1959, anos após a promulgação da nova Constituição e dessacralização do Imperador (HANE, 1993). Encarcerada, Fumiko redigiu sua biografia, traduzida para o inglês como Prison Memoirs of a japanese woman, do japonês Nani ga watashi o kô saseta ka?, mais próximo de “o que me levou a fazer isso?”. Contou cuidadosamente sua trajetória sem indicar nenhum nome de companheiros, com exceção daqueles já assassinados pela polícia. Seu texto não é uma confissão, é interrompido várias vezes para que não possa prejudicar ninguém e traz seus deslocamentos, sofrimentos e paixões. Antes de ser encaminhada para a prisão de Utsunomiya, onde encerraria sua vida, enviou aos seus amigos o texto, publicado em 1931 na comemoração de 5 anos de sua morte, mantendo-se em circulação entre os anarquistas. Park ficou preso até o final da II Guerra, quando foi liberto. Segundo Hane, Park teria retornado à Coreia para o Norte após a guerra que separou o país. Esperançoso, tomaria parte na Revolução Comunista tornando-se um proeminente oficial, morrendo em janeiro de 1974. Entretanto, não há consenso sobre seu paradeiro, segundo Dongyoun Hwang (2016), Park teria ido para o Sul, mas foi sequestrado pelos comunistas do norte; alguns anarquistas na Coreia do Sul teriam planejado resgatá-lo, mas não conseguiram.

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Ha Ki-Rak (1986), anarquista sul coreano, em A history of Korean Anarchist Movement (1986) apenas sinalizou que Park retornou a Coreia em 1945, sem apontar o que lhe teria acontecido nos anos subsequentes, nem o ano de sua morte. Ao final de suas memórias, Kaneko mandou saudações a todos os que amou e previu que sua presença logo seria apagada. Suicidou-se aos 23 anos. Permaneceu viva entre alguns anarquistas que conseguiram relançar o livro em 1972, acrescido de inúmeras fotos da anarquista e seu companheiro. Segundo Raddeker, o jornal Asahi, de extensa circulação pelo arquipélago, em 31 de julho de 1926 noticicou que o corpo de Fumiko foi levado secretamente para o cemitério da prisão durante a noite e que os policiais não entendiam o ato da anarquista, já que o Imperador fora benevolente comutando a pena. Já havia uma semana que Fumiko estava morta. Sua família foi então informada sobre a morte e que deveriam retirar seu corpo; foi então que sua mãe e sua irmã souberam o que tinha acontecido, optaram por não seguir as ordens. Fumiko foi levada a Coreia pela família de Park. Suas cinzas, hoje, estão em um parque em sua memória. Após sua morte, ela foi alvo de inúmeras colonizações. Fuse Tatsuji, seu advogado, em comemoração à libertação de Park, pretendeu transformá-la em mártir inocente e em esposa obediente e devota, características que repudiava. Não foi a primeira vez que isso acontecia. Quando da execução de Kôtoku e Kanno, para manter uma imagem pura do anarquista, alguns disseram que o plano de execução do Imperador era da autoria de Kanno; o relacionamento amoroso de Ôsugi com várias mulheres também foi considerado uma perversão e que essas mulheres seriam depravadas. A opção de Fumiko por se matar não foi em devoção a Park, à Coreia, a qualquer símbolo ou abstração. Como afirmou certa vez: “Eu não vivo para os outros” (FUMIKO apud RADEKKER, 2000, p. 5). Escolheu não definhar na prisão, ou deixar que o Estado tirasse sua vida, afirmou a vida e escolheu o fim. “Eu me insurjo contra toda coerção... Então, vocês, os funcionários, vão me perguntar: ‘Por que você pretende destruir sua própria vida?’ Eu responderei: ‘viver não é apenas sinônimo de movimentar-se. É mover- se de acordo com a própria vontade... Pode-se dizer que só se começa a viver quando se age. Se, portanto, agir de forma própria leva à destruição de si mesmo, não é uma negação da vida. É uma afirmação’” (FUMIKO, 1925 apud RADDEKER, 2000, p. 4). O massacre aos anarquistas e a qualquer oposição ao governo anunciava as décadas de 1930 e 1940, marcadas pela Guerra do Pacífico e o enraizamento de uma devoção incondicional ao Império Nipônico.

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Como só se vive uma vez, só se morre uma vez. Fumiko não deixaria sua vida ser encerrada por agentes do Estado, mas afirmou suas escolhas sem render-se, ou ficar no aguardo de uma libertação. Não estava disposta a se tornar símbolo para a revolução ou disponível para apropriações. O suicídio pareceu-lhe uma forma de luta contra o Estado, contra a autoridade centralizada, sendo insuportável para qualquer um que busque nisso um futuro revolucionário ou qualquer tipo de recompensa em nome da sociedade. Não estava em jogo viver ou morrer por uma causa. “Quanto ao significado do meu niilismo... em uma palavra, é o fundamento dos meus pensamentos. O objetivo das minhas atividades é a destruição de todos os seres vivos. Eu sinto a ira sem limites contra a autoridade parental, que me esmagou sob o nome do amor parental, e novamente a autoridade estatal e social, que abusou de mim em nome do amor universal. (...) Concluí que, se não houver uma lei absoluta e universal na Terra, é a realidade de que o forte come o fraco” (KANEKO, 1993, p. 121). Sua morte não deve ser confundida com a de um jovem kamikaze, de um soldado em nome do Imperador. Dar fim à existência foi sua maneira de afirmar a vida livre. E, mesmo declarando seu amor por Park, não esperou para saber qual seria sua decisão diante da modificação da pena. Afirmou seus atos enforcando-se em uma ensolarada manhã.

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as leis de preservação da paz, o incessante anarcoterrorismo e a comuna shinmin

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Junto às perseguições aos anarquistas e a outros contrários ao governo, há a imensa pobreza, principalmente no campo, as contas da vitória do Japão na Guerra Russo- Japonesa e as repercussões da crise de 1929 nos Estados Unidos (SAITO, 2012, p. 1). O governo do Japão, entretanto, pretendia intensificar os investimentos na indústria bélica, em função de segurança e de culpabilização de estrangeiros pelas crises econômicas. O decurso da Era Taisho (1912-1926), referido por alguns historiadores como o período democrático japonês (IDEM), foi marcado pela perseguição a qualquer opositor ao regime, pelas inúmeras censuras à imprensa, pela exploração da Coreia e pelo investimento na indústria das armas. Essa democracia expressava-se, por exemplo, com Hara Takashi (1856-1921), o primeiro civil e cristão a ser nomeado Primeiro-Ministro, entrando para a história como o Primeiro-Ministro Plebeu. Hara assumiu após o General Terauchi ser deposto pelo Imperador como resposta à Revolta do Arroz. Hara não era revolucionário, nem mesmo um reformador; interessava-se em estreitar suas relações com os militares e o Genro (conselho de anciões). Um dos marcos de seu governo foi a repressão ao movimento de libertação da Coreia, que ficou conhecido como Sam-il (3-1 ou, Primeiro de Março) de 1919, que envolveu milhões de coreanos e cerca de 1.500 manifestações. O governo japonês enviou rapidamente suas tropas, matando mais de 7.000 coreanos, prendendo outros 50.000 durante o ano seguinte. Exigiu que os passaportes coreanos fossem emitidos pela polícia japonesa (para requerê-lo era preciso apresentar uma documentação que comprovasse nos devidos argumentos a necessidade de viagem, caso contrário, era vetado). Essa era mais uma das tentativas de impedir que as ideias de independência se espalhassem por outros territórios da Ásia e a obtenção da garantia de que somente chegariam ao Japão os que estivessem certificados pela polícia e que não fossem militantes (KAWASHIMA, 2009). Neste momento, pretende-se situar as reformas na legislação japonesa voltadas para a perseguição a anarquistas e socialistas com as leis de Preservação da Paz, e a resposta imediata veio com os anarcoterroristas da Giroshin Sha (Sociedade da Guilhotina), cujos integrantes queriam vingar a morte de anarquistas pelo governo japonês, principalmente de Itô e Ôsugi. O Japão expandiu seu território com a exploração, principalmente, da Coreia e da Manchúria. Porém, foi na supostamente pacificada colônia da Manchúria que irrompeu a Comuna Shinmin, animada por anarquistas dali; junto com outros procedentes da Coreia e do Japão, inventaram um espaço ao leste do país instigando relações livres e confrontos com o Império. Posteriormente a Comuna Shinmin foi sufocada, tanto por comunistas

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chineses como também pelo exército imperial. O estrangulamento de Shinmin é um dos marcos para o despontamento do Império japonês. Com o massacre, completou-se o domínio da Manchúria que até então estava sob controle da China. A incursão japonesa seguiria para Xangai e Nanquim, em 1937, o sudoeste chinês já tinha sido destruído. O Império avançaria para Hong Kong, Tailândia, Malásia, Singapura, Filipinas, Guam, culminando em 1941, no ataque à Pearl Harbor, base estounidense no oceano Pacífico, em resposta aos embargos comerciais estadunidenses ao Japão, data oficial do início da Guerra do Pacíficio. Enquanto isso, ampliava-se a devoção dos súditos japoneses devido à mobilização de crianças e adultos em atividades que envolviam o enaltecimento do Imperador e as forças militares. Com o esforço de cada súdito, o Japão levaria paz à Ásia ao assumir o posto de liderança por ser uma nação de ascendência divina.

a legislação e a giroshin sha

Em 1925, no Japão, dois anos após a execução de Itô Noe, Ôsugi Sakaee seu sobrinho, de milhares de coreanos e da prisão de Fumiko e Park, foram promulgadas as Leis de Preservação da Paz, atualizando lei homônima de 1894 e a Lei de Ordem Pública e Paz de 1900. A primeira versão foi uma Portaria Imperial instaurada no mesmo ano de início da Guerra Sino-Japonesa (1894-1895), em 25 de dezembro e destinava-se a suprimir qualquer oposição ao governo Meiji e estabelecia a censura à imprensa. Um de seus principais alvos era a organização a qual pertenceu Kôtoku Shushui, o Movimento pela Liberdade e pelos Direitos do Povo (Jiyû Minkin Undô – JMU), que acabaria por se desfazer diante de tantas perseguições. A Lei de Ordem Pública e Paz de 1900 se destinava a qualquer organização trabalhista, proibia greves e censurava os jornais dos trabalhadores. No artigo quinto estava a proibição às mulheres de participarem de encontros políticos, de falarem sobre política em público ou de se juntarem a alguma organização., As mulheres no Japão só seriam autorizadas a votar após o término da II Guerra Mundial1.

1 Como abordado anteriormente, o Código Civil Meiji de 1898 instituiu que as famílias japonesas eram governadas pelo pai e baseadas no princípio da primogenitura. Uma mulher só se casaria com a autorização de seu pai e, caso fosse viúva, casaria caso o filho mais velho permitisse. As casadas não podiam nem mesmo reivindicar as propriedades que eram dadas ao marido enquanto dote (MACKIE, 1988).

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O resultado a aplicação dessas leis foi o aprisionamento de inúmeros anarquistas. Entre eles Ôsugi Sakae, que em ocasiões anteriores, fora encarcerado inúmeras vezes na prisão de Ichigaya, em Tóquio. Uma dessas prisões ocorreu em janeiro 1908, quando Ôsugi foi detido no Incidente do Telhado. Ôsugi e seus amigos estavam em reunião quando a polícia invadiu o local alegando que os encontros anarquistas e socialistas estavam proibidos. O anarquista, Sakai Toshihiko e Yamakawa Hitoshi subiram no telhado da casa e começaram a proferir discursos libertários e socialistas. Foram presos assim que a polícia os alcançou. Itô Nôe, companheira de Ôsugi, também seria alvo da lei, assim como a Seitô Sha, associação da qual fazia parte e que editava a revista Seitô, constantemente censurada. Em uma das edições da revista, Itô escreveu um conto “Shuppon” (“Voar”) (volume 4, número 2, fevereiro de 1914): uma jovem que, com o amante, escapou de um casamento arranjado, em seguida é traída por seu amor (FUKUDA; REICH, 1976). Essa breve história era tida como uma ofensa ao Kokutai, e ao costume amplamente professado nas famílias e escolas para mulheres do ryosai kenbo (良妻賢母) – boa esposa, mãe sábia –, termo cunhado por Masanao Nakamura em 1875, um dos líderes da reforma Meiji, e que preconizava às mulheres a devoção ao esposo e à família (MACKIE, 1988). No final do século XIX e começo do XX, as leis de perseguições aos anarquistas proliferavam pelo planeta. Na França, dois dias após as explosões na Câmara de Deputados de Paris por Auguste Vaillant, em 11 de dezembro de 1893, foi apresentada a primeira das três leis conhecidas como leis celeradas 2 , que estabelecia a censura à imprensa e punia qualquer um que escrevesse algo em defesa ou em apologia ao anarcoterrorismo. A segunda lei, de 13 de dezembro, referia-se à perseguição a “associação de malfeitores”, ou seja, associações anarquistas, e declarava que em caso de delação antes da de uma ação, poderia haver absolvição do envolvido; e por fim, a terceira, votada em 9 de julho do ano subsequente, após o assassinato Sadi Carnot por Gerônimo Caserio, atingia a todos aqueles que fizessem qualquer tipo de propaganda anarquista, os periódicos foram proibidos e as casas dos libertários passaram a ser invadidas em busca de material subversivo (MAITRON, 1992)3.

2 Termo utilizado por Émile Pouget em Les Lois Scélérate, panfleto publicado em 1899 e que descrevia as leis em questão. 3 Como destacou Jean Maitron (1992), após a promulgação destas leis, os jornais de maior circulação, até então, entre os operários interromperam suas publicações. Émile Pouget encerrou a publicação de Le Père Peinard que se encontrava em seu 253º número em fevereiro de 1894. La Revolté de Jean Grave, o sapateiro propagandista, também foi interrompido. Em 1º de janeiro de 1884 uma operação policial

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No mesmo ano do ataque de Vaillant, no Brasil, acirravam-se as perseguições aos anarquistas. Segundo Christina Lopreato, também data de 1893, o primeiro registro policial sobre a ação de anarquistas em São Paulo, quando 20 pessoas foram presas, sendo 10 identificadas como “anarquistas” e as outras 10 como “socialistas e anarquistas”. No Rio de Janeiro, ainda naquele ano, foram presos anarquistas estrangeiros e seus jornais foram apreendidos junto com estatutos das associações que estavam formando no bairro da Gávea. O governo de Floriano Peixoto, na tentativa de inibir os anarquistas, promulgou o decreto presidencial Número 1.566, de 13 de outubro de 1893, e instituiu a expulsão de estrangeiros. Apesar de revogado dois meses depois, segundo Lopreato, o decreto instituiu a ideia de que a expulsão de estrangeiros pode ser necessária para manter a ordem interna e a soberania nacional. Mesmo assim, agitações operárias tomaram o estado de São Paulo no começo do século XX, somadas às publicações anarquistas redigidas em português, italiano e espanhol que cresciam exponencialmente pelo Brasil, como La Battaglia, O Amigo do Povo, A lanterna, A terra livre, Guerra Sociale, Germinal entre outros. A partir de 1907, o que fora sinalizado em 1893, tornou-se uma prática. O Decreto Número 1.641, conhecido como Lei Adolpho Gordo, intensificou a repressão expulsando estrangeiros do país. As perseguições aumentariam com a Greve Geral de 1917. O assassinato pela polícia do jovem anarquista e sapateiro José Iñagnez Martinez em confronto em frente a fábrica Mariângela no Brás, em 9 de julho, deflagrou a greve. Ao seu enterro foram mais de 10 mil pessoas. A cidade ficou paralisada por praticamente uma semana. A resposta do governo foi a prisão de anarquistas e deportações, e em 13 de setembro, nove anarquistas foram embarcados no navio Curvello (PASSETTI &AUGUSTO, 2017)4. Relacionava-se aos estrangeiros o pensamento anarquista no continente americano. Na Argentina, como no Brasil, em 1902, a Lei de Residência permitia a expulsão de qualquer um que pudesse ser considerado perigoso ou indesejável. A resposta dos anarquistas seria com balas e dinamites. Como Francisco Solane Regis em ataque

invadiu as casas de diversos anarquistas e de suspeitos de terrorismo, na procura por explosivos ou substâncias que pudessem fabricá-los, e de manuscritos que levassem a alguma ligação com associações anarquistas. Desde o início da operação até 30 de junho de 1884, 429 pessoas foram perseguidas sob a suspeita de serem terroristas. 4 Sobre o navio Curvello e as fugas dos anarquistas ver textos de Florentino de Carvalho apresentados no artigo de Rogério Nascimento (NASCIMENTO, Rogério Zeferino (2017). Centenário da greve geral anarquista de 1917: registros históricos de Florentino de Carvalho. Verve, n. 31. São Paulo: Nu-Sol, pp. 13-48).

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malsucedido ao presidente José Figueroa Alcorta, em 1908, com o lançamento de uma bomba caseira escondida em uma cesta de frutas. E, posteriormente, também em resposta aos massacres na Patagônia e a supressão da luta dos trabalhadores ao sul da Argentina, com o assassinato do Coronel Valera pelo anarquista tolstoiano Kurt Gustav Wilckens5. Do outro lado do planeta, não era diferente. A insuportável existência dos anarquistas tornava-se cada vez mais alvo de repressão. Diante da Lei de Ordem Pública e Paz de 1900, no Japão alguns socialistas passaram a nomear seus grupos como organizações políticas, e não mais como socialistas. Era uma maneira de tentar se esquivar das perseguições pelo governo japonês. Em 1º de março daquele ano foi lançada a Rôdô Sekai (Mundo dos trabalhadores). Para não ser identificada como uma revista de agitação operária, Katayama Sen a descreveu como uma publicação de agitação política, como indicou Notehelfer (1971). Em seu primeiro número, ainda abordava o socialismo, o que depois seria abandonado. “Nós podemos e devemos assegurar nosso direito nato e nossa herança sob a bandeira vermelha das políticas de trabalho do socialismo” (KATAYAMA, 1900 apud NOTEHELFER, 1971, p. 64). Em duas semanas a revista declarou-se próxima ao parlamentarismo: “A hora está chegando para a formação de um partido político constituído por trabalhadores” (IDEM). Kôtoku chegou a flertar com tal formatação sendo um dos fundadores do Partido Social Democrata Japonês, do qual logo também se desvincularia para afirmar o socialismo, como vimos, com a tradução do Manifesto do Partido Comunista. Contudo, a tradução infligia a Lei de 1900 e o levaria novamente a prisão, de onde saíra declaradamente anarquista. Posteriormente, em sua ida aos EUA, também repudiou as táticas parlamentares. A publicação bilíngue Kakumei (Revolução) (1906), lançada nos EUA, foi influenciada pelo pensamento de Kôtoku e, apesar da relação, no seu lançamento, com o Partido Revolucionário Social de Oakland, publicou em 1906: “O reformismo e a política parlamentar eram uma tentativa de combater um incêndio violento com uma pistola de água de uma criança (...). O único meio é a bomba. O meio pelo qual a revolução acontece também é pela bomba. O meio de destruir a burguesia é a bomba” (KAKUMEI apud CRUMP, 1996, pp. 17-18). Mesmo diante da Lei, os anarquistas não desviaram ou se contentaram com outra tática. A questão era objetiva, acabar com o Estado, e, por isso, foram o alvo preferencial

5 Osvaldo Bayer indica no início de La Patagonia Rebelde (1980) que Wilckens era um inimigo da violência, porém, acreditava que diante da violência do Estado, a única resposta era a violência. A respeito das práticas anarcoterroristas na Argentina, ver: ALBORNOZ, Martín (2013). “Uma aproximação ao problema do anarquismo e a prática do atentado na Argentina (1890-1930)”. Verve, n. 23. São Paulo: Nu-Sol, pp. 110-139.

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da Lei de Ordem Pública e Paz. A sua reedição, sob o título de Lei de Preservação da Paz em 1925, proibiria expressamente qualquer manifestação anarquista ou socialista. No Brasil já vigorava a Lei de Repressão ao Anarquismo e que respondia de maneira inequívoca à Greve de 1917. Em 1921, sob a presidência de Epitácio Pessoa, tal lei previa as penas para os casos de reuniões nas ruas, teatros, clubes ou quaisquer outros lugares públicos que pudessem promover agitações; de falar contra os militares; de explodir edifícios ou qualquer outro local; de provocar incêndio, roubo, etc. Além da previsão de prender quem infligisse a lei6, o governo poderia fechar as associações e sindicatos que pudessem ser “nocivos ao bem público” (BRASIL, 1921)7. No outro lado do planeta, a Lei de Preservação da Paz preconizava em seu primeiro artigo: “Qualquer um que formar associações para alterar o Kokutai, ou o sistema de propriedade privada, e qualquer um que se juntar a tais associações sabendo de seu objeto, poderá ser preso com ou sem trabalho forçado, por um período máximo de dez anos” (JAPÃO, 1925). O Kokutai, retomado neste momento, pautou a defesa aos costumes tradicionais japoneses. Devia se distinguir do seitai, a forma do governo. O primeiro deveria ser a essência do japonês e que encontrava a sua expressão máxima no Imperador, por sua vez, o seitai, seria um arranjo histórico que possibilitava o governo. Assim, a reforma Meiji, por exemplo, não passou de um momento em que uma nova forma de governo foi imposta, sem abalar o intocável Imperador, cujo Kokutai o certificava acima da política. Os anarquistas não faziam essa distinção e entendiam o Kokutai como um dos pilares da política. Seu caráter imutável precisava ser combatido para dar um fim ao governo. Não pretendiam uma reforma do seitai, e por isso, o alvo de muitos ataques sempre foi o Imperador. Em meio às perseguições e à elaboração da Lei de Preservação da Paz, um grupo de libertários não se intimidou. Na industrializada cidade de Osaka, em 1923, o jovem Furuta Dijirô fundou a Giroshin Sha (Sociedade da guilhotina) que tinha como objetivo vingar a morte dos anarquistas executados naquele ano.

6 As prisões, entretanto, não eram somente nos centros urbanos, mas também em regiões afastadas, como a Clevelândia, no Amapá, região inóspita, na fronteira com a Guiana Francesa e próxima ao rio Oiapoque. O local foi escolhido estrategicamente para que não houvesse muita possibilidade de fugas. Assim, durante o governo de Artur Bernardes, o destino de muitos anarquistas foi a Colônia da Clevelândia. Nas páginas do periódico A Plebe, edição 245, foram estampadas cartas de anarquistas que conseguiram fugir para a Guiana Francesa, constando também notas de falecimentos de tantos outros. 7 Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1920-1929/decreto-4269-17-janeiro-1921- 776402-publicacaooriginal-140313-pl.html. Acesso em 09/02/2019.

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Há poucos registros sobre a existência da Giroshin Sha; comumente entre os historiadores dos anarquismos é tratado somente como um breve acontecimento sem que haja qualquer investigação a respeito dos jovens que integraram o grupo e suas ações. Em 2014, o CIRA Japana lançou seu Calendário anual com o tema da Giroshin Sha e permanece até hoje como uma das principais pesquisas sobre o acontecimento. Talvez tenha sido a única publicação que apresentou os integrantes da associação com base em um minucioso levantamento fotográfico. Outra referência importante, mas por vezes confusa, foi um pequeno escrito de Ba Jin8, anarquista nascido na China, e que percorreu a Ásia. Em The anarchist movement in Japan: the martyrs of Tokyo, publicado originalmente em mandarim em 1930, faz um relato sobre as execuções de Itô, Ôsugi e seu sobrinho e também sobre as ações da Giroshin Sha. A associação tinha como objetivo vingar os executados durante o terremoto de 1923 e cessar com as perseguições aos anarquistas. Influenciado pelas ações do grupo e por leituras sobre os terroristas russos, Ba Jin dedicou-se a discutir anarquismos e terrorismo, e considerou que as ações terroristas estariam voltadas à vingança e à autodefesa mais do que à construção de uma nova sociedade. Para Ba Jin a propaganda anarquista deveria ocorrer de outras maneiras, como por meio de traduções e publicações. “Mas isto significa que eu sou contrário ao terrorismo anarquista e ao assassinato? Não. Eu não posso negar que o terrorismo tem a sua importância” (BA JIN, 2013, pos. 531- 532, e-book). Para o anarquista na China, a Giroshin Sha ainda apresentava outra característica, era um enfrentamento declarado à insuportável sociedade em que viviam. Assim, cita Furuta: “Eu não suporto essa sociedade. Nós não podemos mais suportar essa vida e foi isso que nos levou ao terrorismo” (apud BA JIN, 2013, pos. 549-550, e-book). Com Furuta, estava também Wada Kyutarô, que fora amigo de Ôsugi e leu em seu velório uma carta que contava brevemente sua biografia (CIRA-JAPANA, 2014, calendário). Três meses após o estrangulamento de Itô Noe, Ôsugi Sakae e seu sobrinho,

8 Pseudônimo de Li Yaotang (1904-2005), Ba Jin nasceu em Chengdu. Aos 15 anos tomou contato com a obra de Piotr Kropotkin, iniciando suas pesquisas sobre as obras de anarquistas. Era um admirador de Emma Goldman e lia seus artigos em inglês. Em 1927, chegou a fazer viagem à França para estudar francês, quando conheceu Alexander Berkman. Ao retornar à China, fugiu para o Japão em 1934, por ser perseguido pelo governo nacionalista e suas obras estavam sob a constante censura. Hospedou-se em Yokohama e Tóquio, acabou reconhecido e detido pela polícia, sendo enviado de volta a Xangai. Quando eclodiu a Revolução Cultural, foi perseguido como um contrarrevolucionário. Sua companheira, Xiao Shan, ficou gravemente doente e o serviço médico lhe foi recusado, levando a sua morte. Ba Jin retirou- se da militância após esse acontecimento e passou a dedicar-se ao esperanto (BA JIN, 2013).

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publicou no Rôdô Undô: “As autoridades estão tentando nos fazer acreditar que o assassinato de Ôsugi deve ser atribuído à iniciativa do capitão Amakasu e seus cúmplices. Isso é uma mentira vulgar. De fato, todos sabem que os militares sustentaram por vários anos o desejo de aproveitar a primeira oportunidade para cortar as gargantas de todos os revolucionários, e que durante esse tempo os comandantes, em suas inspeções às tropas, proclamaram que: ‘o Estado espera fazer uma guerra contra os socialistas em um futuro próximo’... Com base nos eventos anteriores, pode-se concluir com mais do que suficiente certeza que os assassinatos em massa não resultaram da iniciativa pessoal de um indivíduo, mas foram realizados pelo governo, cedendo à insistente pressão dos militares. Durante o julgamento, Amakasu, o assassino de Ôsugi, pareceu ser visto com desdém pela burguesia. Mais tarde, eles procuraram retratá-lo como um patriota fervoroso com um temperamento ardente” (apud BA JIN, 1930). Por conta de seu alegado excesso de patriotismo, Amakasu foi sentenciado à prisão após os escândalos em torno das execuções dos três. Contudo, apesar de condenado a 10 anos, poucos meses depois, voltava às suas atividades, sendo enviado pelo governo japonês à França, para estudar estratégias militares a serem aplicadas ao exército japonês. Ao retornar em 1930, foi à Manchúria concluir o processo de dominação do território, e por lá permaneceu até o fim da sua vida, quando, ao final da II Guerra Mundial, os soviéticos invadiram o país e Amakasu suicidou-se ingerindo cianeto de potássio. Wada trabalhara com Ôsugi no Rôdô Shinbun (Jornal operário) e no Rôdô Undô em 1918 (STANLEY, 1982). Ansiava por vingar a morte de seu amigo, enquanto parte dos socialistas e alguns anarquistas ainda se ocupavam de condenar o libertário por seus relacionamentos amorosos. Furuta recordou o que o levou a lançar-se no anarcoterrorismo em suas memórias, descobertas 26 anos mais tarde, quando os monges budistas que acompanharam sua execução divulgaram ter escondido seus escritos (CIRA-JAPANA, 2014, calendário). Após o terremoto de 1923, “caminhei ao longo do cais, e vi pessoas pescando com linhas e com varas. Eles não se incomodavam em nada com o terremoto, nem com a calamidade”. O terremoto que havia devastado a região de Kanto parecia não ter interrompido a vida das pessoas. Pouco importava o sofrimento alheio e o que acontecera com os coreanos e perseguidos pela polícia. Furuta conclui: “o terremoto é causado pela natureza, enquanto uma revolução seria realizada pelos esforços humanos. A natureza não pode derrubar a sociedade, mas o homem pode” (FURUTA, s/d, p. 152). Pretendia ferir essa sociedade até que ela apodrecesse: “a sociedade é como um elefante. O trabalho

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que pretendi fazer era a inserção de uma pequena agulha em seu corpo. O trabalho é pequeno como uma cicatriz. Mas a podridão começa a partir da cicatriz até que o elefante, por fim, se decomponha” (FURUTA, s/d, p. 152-153). A primeira ação para destruir essa sociedade ocorreu ainda em 1923, quando Furuta e Nakahama Tetsu assaltaram um banco para financiar as ações, e um funcionário do banco foi morto. O caso ficou conhecido como Incidente Kosaka. Como recordou Furuta em suas memórias, para realizarem a ação precisavam de dinheiro, uma das opções era pedir doações a pessoas próximas, mas o retorno era baixo, além de muito arriscado. A melhor resposta estava em assaltar um banco. Furuta entendia os riscos que corria e expôs que só não queria morrer no assalto. Na Giroshin Sha os anarquistas apoiaram sua ideia, porém somente Nakahama o acompanhou. “Como último recurso, não encontrei outra maneira de levantar um fundo, a não ser por meio do assalto. Eu resolvi isso em meus pensamentos, mas outro problema permaneceu. (...) O último problema era se deveríamos matar alguém que incomodasse nossa ação enquanto tentávamos alcançar nosso objetivo?” Sem pestanejar, Furuta respondeu em seguida “Concluí que se alguém incomodasse, deveria ser liquidado de uma só vez. É verdade que matar um homem é algo doloroso e horrível. Mas quando você corta madeira, as lascas se espalharão e um pequeno sacrifício será inevitável para seu propósito” (FURUTA, 1923, pp. 153-154). O objetivo principal dos anarquistas não era reerguer a sociedade ou simplesmente criar uma nova, mas matar o General Fukuda Miyatarô, comandante das tropas que decretou lei marcial após o terremoto de 1923, e considerado responsável pelas execuções de Itô Nôe, Ôsugi Sakae e seu sobrinho. O ataque foi arquitetado em uma pequena casa no subúrbio de Tóquio e deveria ocorrer em 16 de setembro de 1924, aniversário do assassinato dos três. Kurachi fez a dinamite e Aratani uma bomba. Entre os outros integrantes estavam Muraki, antigo amigo de Ôsugi, que também fora preso no Incidente das Bandeiras Vermelhas e que tinha problemas pulmonares agravados com os vários encarceramentos; Kuratschi, tecelão e fundador do sindicato da fábrica em que trabalhava; Sintani, metalúrgico e militante anarquista. Quando Ba Jin recordou os amigos executados, emocionado, escreveu: “vou tentar um esboço, com sangue e lágrimas para que o mundo europeu saiba que nos países do misterioso oriente existiam e existem aqueles que morreram e morrem pela anarquia” (1930). Ba Jin lembrou os massacres do terremoto de 1923, os assassinatos e as perseguições dos anarquistas.

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Como recorda, em 1º de setembro de 1924, o governo anunciou uma reunião comemorativa do Grande Terremoto do ano anterior e que reuniria algumas autoridades. O primeiro orador seria Fukuda. O ataque seria antecipado e a oportunidade era excelente aos olhos de Wada, que se dirigiu ao evento seguindo o carro que levava o general. Quando este desceu do carro, Wada disparou contra ele. Não acertou o tiro e não houve tempo suficiente para disparar novamente, pois os seguranças de Fukuda o capturaram. Enviado à delegacia mais próxima não negou seu ato, mas procurou poupar seus amigos alegando que agiu sozinho. Afirmou ainda estar convicto de que Amakasu matou seu amigo a mando de Fukuda e a determinação em assassina-lo era por vingança. Como resultado, a polícia invadiu a casa de anarquistas em busca de quem poderia ter ajudado Wada. Porém, seus companheiros da Giroshin Sha ao saberem que Wada estava preso, não desistiram do objetivo e cinco dias depois a casa de Fukuda foi destruída por uma bomba. Segundo Ba Jin, infelizmente o general ali não se encontrava (BA JIN, 1930). Outro evento envolvendo integrantes da Giroshin Sha foi a tentativa de assassinar o sobrinho do capitão Amakasu, porém, Tanaka Kôgô também não obteve sucesso (RADDEKER, 1997). Na noite de 13 de setembro, a polícia prendeu Furuta e Muraki em suas residências. Eles abriram as portas de suas casas ao serem ludibriados por um policial que bateu dissimiluando ser agente do correio, portanto um telegrama. Furuta foi preso imediatamente, mas Muraki tentou fugir e incendiar a própria casa, sem êxito (BA JIN, 1930). Kurachi e Shintani, por sua vez, ainda pretendiam libertar os amigos, e agora munidos com bombas se dirigiam a Ôsaka para libertar Nakahama Tetsu e quem mais pudessem. A polícia descobriu os planos e os prendeu no meio do caminho (IDEM). Não concluíram o resgate e, posteriormente, em 6 de março de 1926, Nakahama foi condenado à morte e executado em 15 de abril. Os anarquistas em Tóquio foram julgados em 1925, entre os dias 21 e 23 de julho e receberam a sentença em 15 de agosto. Muraki não aguentou a vida na prisão e morreu antes por conta da tuberculose. No segundo dia do julgamento, o promotor pediu pena de morte para Furuta, Wada e Kurashi, e 10 anos de prisão para Shintani. Furioso com o tribunal, Furuta levantou-se e gritou: “O tribunal é uma comédia” (IBIDEM). O anarquista poderia ter recorrido à sentença, mas recusou-se. A pena poderia ser modificada para décadas na prisão ou até prisão perpétua, uma vida inimaginável para Furuta. Seu grito ecoava com os de tantos outros anarquistas diante do tribunal. Um dos últimos registros em foto da Giroshin Sha pode ser localizado no CIRA- Japana. Na foto, observa-se um aglomerado de policiais, o público e os anarquistas presos

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com cordas, usando trajes orientais e chinelos. E ali, sem representantes de defesa, receberam suas sentenças.

Da esquerda para direita Furuta Daijiro, Kurachi, Shintani e Wada. Fonte: CIRA-Japana.

Assim como acontecera no Incidente de Alta traição, com Sacco e Vanzetti, com Émile Henry, Auguste Vaillant, Ravachol, Severino di Giovanni e tantos outros, Furuta foi condenado à morte sob a acusação de ter fabricado bombas e assassinado um funcionário de banco em 1923. Wada, que atentou contra o general, foi condenado à prisão perpétua; Kurashi, a 12 anos por ter pego dinamite nas minas e as dado a Furuta; Shintani, a 5 anos de prisão por ter manuseado os explosivos (CIRA-JAPANA, 2014). Wada e Furuta não aceitaram nenhuma sentença. Wada esbravejou: “eu quero morrer. Eu não quero inspirar compaixão, nem pedir redução de sofrimento. Dói-me não ter o mesmo destino de Furuta” (apud BA JIN, 1930). Em 4 de agosto, escreveu seu testamento: “se eu for condenado à morte e executado, deixem minhas cinzas ao lado de vasos de flores, e em vez de cerimônia fúnebre, organizem uma excursão” (apud IDEM). Em 20 de setembro de 1925 foi enviado para a prisão de Akida para cumprir pena perpétua. No insuportável da vida presa, suicidou-se em 1928. Assim como Kaneko e Fumiko anos antes, queria morrer não para se tornar mártir: preferia a morte a uma vida inteira na prisão.

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Furuta foi enforcado em Ichigaya, por onde vários anarquistas passaram. Segundo Ba Jin “O camarada Furuta estava sereno até o último momento. Seu sorriso calmo confortou todos que foram visita-lo. Ele morreu em 15 de outubro no andaime de Ichigaya. À noite, seu irmão e alguns companheiros foram retirar seu corpo”. Um desses amigos escreveria: “Fica escuro quando entramos no complexo da prisão. O guardião nos dá uma lanterna e o seguimos ao longo de uma parede desgastada. Na sala de visitas, avistamos Furuta, sorrindo, mas seu corpo está frio. A corda havia deixado sua marca em volta do pescoço. (...) Enquanto carregávamos seu corpo rígido, sua cabeça pendia. Furuta pareceu dormir” (apud IBIDEM). No enterro, às 10 horas, alguns amigos leram sua última carta, escrita 5 minutos antes de ser executado: “Amigos! Morri. Saúde e força. 15 de outubro, 8h25” (apud IBIDEM). Furuta morreu aos 25 anos. Nasceu em 1900, ano de promulgação da Lei de Ordem Pública e foi executado nos primeiros meses da Lei de Preservação da Paz que estava em vigor desde maio de 1925.

***

Em 1928, a Lei de Preservação da Paz ganhou um acréscimo: a possibilidade de pena de morte. A Polícia Especial Superior, conhecida como a Polícia do Pensamento (Tokubetsu Kôtô Keisatsu ou, abreviada em Tokkô), ganhou força e tinha como objetivo fiscalizar e vigiar os anarquistas e socialistas, bem como os professores e estudantes universitários (TIPTON, 2012). Em 1888, já havia se constituído um embrião da Tokkô, quando em Osaka a polícia destinou uma equipe para vigiar os grupos de discussão que poderiam ser nocivos ao Império japonês. Em 1906, tornou-se uma divisão reconhecida da polícia da prefeitura e foi somente com o Incidente de Alta Traição – que matara Kanno e Kôtoku – que a Tokkô foi fundada e estabelecida por quase todo o Japão, respondendo ao Ministério do Interior. Para cumprir seus objetivos, era composta não somente por forças repressivas ostensivas, mas principalmente por infiltrados e espiões; não hesitava em recorrer a torturas para conseguir um depoimento de um acusado ou suspeito (SEIICHI, et al., 1993). A polícia da Europa ocidental dos séculos XVII e XVIII foi o modelo que o Japão adotou no decurso da reforma Meiji, remontando ao Polizei. Como mostrou Michel Foucault, os autores dos séculos XVII e XVIII entendiam por polícia não uma instituição

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ou mecanismo que funciona no interior do Estado, mas uma técnica de governo própria do Estado. Em sua análise, Foucault apresenta o estudo de J. H. Gottlobs von Justi sobre as funções do governo, que seriam estas: território, sob dois aspectos, como é povoado (cidade ou campo) e seus habitantes (índices de saúde, mortalidade, imigração etc); bens e objetos de uso, ou seja, a circulação dos produtos manufaturados e questões relativas ao custo; e, por fim, a conduta dos indivíduos, as suas capacidades profissionais, seu respeito a lei, sua honestidade. Para Foucault, von Justi define o paradoxo central da polícia: possibilitar o desenvolvimento dos elementos da vida dos indivíduos para que também reforcem o Estado. Von Justi estabelece uma distinção entre Polizei e a Politik. A primeira tem a tarefa positiva de favorecer a vida do cidadão e a força do Estado; a segunda tem uma tarefa negativa, o Estado defrontar seus inimigos internos e externos. A Tokkô tinha entre suas funções, desde o saneamento básico até a preservação da ordem, principalmente interna. Segundo Tipton (2012), a Tokkô tinha como objetivo eliminar qualquer um que fosse contrário ao Imperador, vigiavaos coreanos no Japão, as organizações trabalhistase e as universidades. Também era os responsável pela censura de periódicos e pelas prisões daqueles que publicavam algo tido como “pensamento perigoso”. Ou seja, qualquer um fosse contra o Kokutai ou, que quisesse alterá-lo, já era tido como nocivo ao Imperador. A partir de 1925, a atuação de integrantes da Tokkô expandiu-se para além das fronteiras do Japão, agindo onde quer que houvesse um número considerável de japoneses, como na China, Inglaterra e Alemanha. A Tokkô somava-se à Kempeitai, a polícia militar japonesa, fundada em 1881, e que compunha as forças do exército imperial japonês. Entre seus objetivos estava disciplinar os camponeses e suprimir suas revoltas; “estabelecer a paz” nos territórios invadidos pelo Japão, como ocorreu na Coreia em 1910, e preservar a ordem interna no país. Nos relatos de guerra, essa polícia é comumente citada invadindo residências de japoneses, apropriando mercadoria de comerciantes, chegando a ser comparada com a Gestapo na Alemanha nazista. A Kempeitai também ficou conhecida pelos métodos de tortura: afogamento, espancamento, queimaduras, choques elétricos, perfuração de tímpanos, arrancamentos de unhas e perfuração dos ossos das mãos com o uso de pequenas estacas de bambus. Na década de 1930, a Kempeitai ainda foi responsável por organizar estupros nos bordéis militares, em barracas ou tendas: as mulheres eram presas em espaços cercados por arames farpados e obrigadas a prestar serviços sexuais para os soldados. Estima-se que ao todo 200.000 mulheres japonesas, coreanas, okinawanas e

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chinesas foram forçadas a ter relações com cerca de 3,5 milhões de integrantes do Exército Imperial e da Kempeitai. A Tokkô e a Kempeitai foram abolidas em 1945, durante a ocupação dos aliados. Com a Lei de Preservação da Paz que autorizava a perseguição pela polícia japonesa a qualquer um que ela suspeitasse ser contrário ao regime, os anos 1930 foram marcados por um arrefecimento das práticas anarquistas. Elise K. Tipton (2012) apresenta como entre as décadas de 1920 e 1930 a polícia japonesa foi responsável pela repressão a inúmeros cafés, bares e salões de dança. Com base na Lei de Preservação da Paz, até mesmo esses espaços poderiam ser entendidos como uma ofensa ao Kokutai, já que eram símbolos das ideias ocidentais, um antro de discussão e, principalmente, onde a prostituição não regulamentada ocorria. A polícia japonesa, assim como a polícia alemã, podia emitir portarias com força de lei e executar funções judiciais, em certos casos, e até punir alguns delitos, como seria no caso dos cafés, bares e salões de dança (TIPTON, 2001). No Japão a prostituição era legal desde a Era Tokugawa, mas restrita aos bordéis licenciados localizados em regiões específicas, nomeados por Teruoka (1989) de “quarteirões do prazer”. Por lá circulavam samurai desertores e outros “sujeitos indesejáveis”. As prostitutas sem licença, entretanto, eram perseguidas e presas pelos policiais. Por sua vez, os cafés não eram locais de prostituição, mas serviam comida ocidental, tocava-se jazz, era um local de encontros, oportunidade de beber, conversar e debater com amigos; e onde se admiravam as garçonetes, mulheres que viam nessa profissão uma das poucas maneiras de ganhar dinheiro e serem observadas pelos homens que frequentavam esses locais 9. Assim, sob o argumento de prostituição ilegal, os cafés eram constantemente invadidos enquanto uma agressão ao Kokutai e com respaldo na Lei de Preservação da Paz. Em 1935, foi promulgada a Lei de Manutenção da Paz Pública que levou ao fechamento de todas as seções da Jiyu Rengô, ao encarceramento de 300 anarquistas, somente em novembro daquele ano, e à execução de uma dezena de pessoas contrárias ao governo (GARCÍA, 2013).

9 Essa, possivelmente, é uma das procedências dos atuais e famosos Maid Café no Japão. Nestes, as garçonetes usam uniformes de empregadas domésticas, mas também podem usar roupas de princesas, colegiais ou de personagens de animes; devem dar um atendimento cuidadoso e fazer selfies com os clientes. Ainda é possível contratar serviços de limpeza de ouvidos e massagem. Costumam ser frequentados por jovens que vão sozinhos. Hoje também há a versão para mulheres, os Butler Café, onde rapazes jovens atendem com roupas de mordomos e seguem os mesmos princípios dos Maid Café.

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Enquanto as associações e organizações anarquistas, socialistas e liberais estavam na ilegalidade, somente um grupo era permitido por lei: a Associação de Assistência ao Regime Imperial (Taisei Tokusankai), fundada pelo Primeiro-ministro e príncipe Fumimaro Konoe em 1940. Ela já existia desde 1937, promovendo reuniões, tendo como objetivo fundar o shintaisou (nova ordem). Em seu hino, esse objetivo é descrito: “Uma nova ordem que será a base de nosso país E estará atada ao aprendizado, ao trabalho e se sacrificará pela liberdade Juntos à Bandeira do Sol Nascente Sigamos o novo caminho a toda velocidade Até onde brilhar o caminho do Santuário Que iluminará todos os países da grande Ásia oriental Lideremos a prosperidade do amanhã Levantemos as mãos junto a outros 100 milhões de corações Gritando os ideais do Império Com a Taisei Yokusankai”10 A organização foi fundada após a assinatura do Pacto do Eixo, ocasião em que foram proibidos os partidos políticos no Japão. A Taisei Yokusankai passou a ser o único partido no Japão até 1945, assim como acontecera, na Alemanha com o Partido Nacional Socialista entre 1933 a 1945, na Itália com o partido Nacional Fascista entre 1928 a 1943 e na Espanha com a Falange de 1937 até 1975.

a expansão territorial

Com o final da I Guerra Mundial, o Japão assinou o Tratado de Versalhes e beneficiou-se do território que estava até então sob concessão alemã: a província chinesa Shandong. Com a Coreia já ocupada, o Império japonês pretendia expandir seu domínio para a China. Entretanto, o apoio da Tríplice Entente não foi duradouro e já em 1921, sob a pressão dos EUA, a cláusula que concedia Shandong ao Japão foi revista, retornando esta para o controle chinês.

10 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=spbty0bcECc. Acesso em 10/01/2019.

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Com o veto estadunidense da entrada de japoneses no EUA, pioraram as condições econômicas no Japão, que explodiram com uma crise anunciada que se somaria à crise de 1929. Para Hane, esses fatores foram fundamentais para o fortalecimento dos ideais de nacionalismo, imperialismo e militarismo. Muitos camponeses admiravam os militares e incentivavam suas investidas na Coreia acreditando que assim acabariam os problemas econômicos. Muitos desses militares também eram de famílias camponesas que, sem a possibilidade de frequentar a escola, entravam muito jovens para as academias navais ou militares. A crença na expansão territorial para dar fim aos problemas econômicos, manifestava-se nas vozes de militares. O coronel Hashimoto Kingorô (1890-1957), um dos protagonistas em duas tentativas frustradas de golpes militares na década de 1930, afirmou após a anexação da Manchúria, em 1931: “Nós somos uma grande multidão embalada em um pequeno e limitado quarto” (apud HANE, 2018, s/p). Haveria três maneiras de responder a isso, com imigração, acordos comerciais com outras nações ou, expansão do território. Com essa última, considerada a melhor opção, o Japão poderia tanto aproveitar os recursos de outros locais e desenvolver-se, como também, professava o coronel, beneficiando todos os humanos. Outro expoente em defesa dos militares foi Ishiwara Kanji (1889-1949), famoso após os ataques a Manchúria (1931) e apologista da militarização do governo. Participou de grupos de discussões como o Issekikai (Sociedade noite um), organizada em 1929, reunindo oficiais críticos ao governo. Nesse momento germinavam inúmeras organizações pró-militares para investidas de expansão territoriais. Em 1930, foi fundada a Sakurakai (Sociedade flor de cerejeira) por Hashimoto Kingorô, inicialmente com cerca de 25 integrantes e que chegou a ter mais de 100. Sua principal proposta foi a de estabelecer um governo comandado por militares. Civis também se organizavam e exigiam um governo militar. Segundo Hane, muitos dos militares estabeleceram conexões com pensadores da direita como Kitta Ikki (1883-1937), Inoue Nisshô (1887-1967) e Ôkawa Shûmei (1886-1957). O primeiro era um escritor crítico do governo e de extrema direita, que em 1906 declarava ser necessários somente dois órgãos na política japonesa: o Imperador e o povo. Inoue Nisshô era um monge budista e seria um dos fundadores da milícia de caça a liberais Ketsuimedan, em 1932. Ôkawa Shûmei seria indiciado no Tribunal de Tóquio após a Guerra e classificado como um criminoso de guerra classe A, sendo o único, dos 28 acusados nessa categoria,

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a ser um civil. Foi chamado de Goebbels japonês, em analogia ao Ministro da Propaganda Nazista. Em seu extenso estudo Labirintos do Fascismo, João Bernardo, ao tratar do Japão, refere-se a Kitta Ikki como o “fundador do fascismo japonês” (2018, p. 155) por ideias de expansão territorial, ataque ao colonialismo europeu e estadunidense na Ásia, uma política interna de eliminação da propriedade privada, abolição do parlamento e um capitalismo administrado por uma ditadura militar. De procedência socialista, Kita pretendia ampliar a intervenção do Estado na economia com a regulamentação da produção e das relações de trabalho, em favor dos militares e da indústria bélica, para que dessem continuidade à conquista de outros territórios. Tal pensamento fora desenvolvido em Kokutairon oyobi Junsei Shakaishugi (A teoria da Polícia Nacional do Japão e o Socialismo Puro) (1906) e “teve influência muito profunda e durável sobre os oficiais de baixa patente, deve ser considerada como um dos clássicos do pensamento fascista mundial” (BERNARDO, 2018, pp. 156-157). Apesar de militares e pensadores discordarem, algumas vezes, quanto à deliberação de quais seriam os melhores meios para o estabelecimento de uma nova ordem no Japão, concordavam que o Kokutai e a instituição Imperial eram fundamentais e uma fonte de valores para os japoneses. Esses ainda estavam diretamente ligados à exaltação do Império e ao combate a anarquistas, socialistas, liberais e ao parlamento instituído na reforma Meiji em 1889. Professavam uma liquidação das ideias ocidentais em favor do retorno às tradições, tendo como imagem exemplar o homem do campo que comandava o seu núcleo familiar e respondia à família mais importante de todos os tempos, a imperial. Só com esse retorno seria possível expurgar do país todos os males trazidos pela ocidentalização (HANE, 2018). Para apressar esse retorno, o grupo Sakurakai elaborou um plano para um golpe de Estado. O Exército Imperial japonês, junto com integrantes ultranacionalistas da sociedade civil, tinha como objetivo fazer uma limpeza no governo japonês, varrendo o sistema parlamentarista partidário que seria fruto de corrupção e reduzindo a acumulação de riquezas pelos zaibatsu11 (IDEM). Os militares pretendiam assumir o governo e fazer do então Ministro da Guerra, General Ugaki, o principal nome para instaurar essa nova ordem. Entretanto, o militar

11 Foram conglomerados industriais que existiram até o final da II Guerra Mundial. Assim, um grande conglomerado controlava bancos, minas, áreas dos comércios, etc. Um zaibatsu ainda poderia controlar vários negócios de menor expressão que seriam dele dependentes.

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desistiu. A Sakurakai procurou um novo nome como os generais Araki Sadao e Mazaki. O objetivo do plano passou a ser assassinar o Primeiro Ministro Wakatsuki e outros oficiais que o apoiavam e colocar em seu lugar o General Araki, então inspetor da educação militar. Entretanto, Ishihara e Itagaki, ambos da Sakurakai, eram a favor da anexação da Manchúria, acreditando que seria fundamental para conter um possível avanço da União Soviética. Para isso, os integrantes da organização nacionalista simularam um incidente que seria uma justificativa para o exército de Kwantung tomar o controle de toda a região. O Kwantung formou-se durante a Guerra Russo-Japonesa, quando o Japão obteve a área homônima. Sua tradução significa “leste de Shanhaiguan”, uma passagem que dá acesso à Manchúria. Durante a década de 1930, era tido como invencível. Na II Guerra Mundial, um de seus oficiais e médico Ishii Shiro, assumiu o controle da Unidade 731 e ordenou experimentos em cerca de 3000 homens, mulheres e crianças capturados pela Kempeitai e pelo exército Imperial. Para fomentar o ataque à Manchúria, o tenente Suemori Kawamoto detonou dinamites perto de uma linha ferroviária pertencente à Ferrovia do Sul e acusou os chineses contrários ao Japão de realizarem a façanha. Ao ser questionado pelas autoridades em Tóquio sobre o episódio, os militares responderam que não precisavam dar explicações a ninguém, somente ao Imperador. Em outubro daquele ano de 1931, a Sakurakai com o Exército Imperial, e grupos civis fascistas tramaram planos para um golpe de Estado. Entretanto, foram denunciados anonimamente, e o Imperador Hiroito ordenou que cumprissem uma prisão domiciliar de 10 a 20 dias (SAITO, 2012). O evento foi considerado apenas um excesso de zelo patriótico. Enquanto isso, , integrante do Partido Liberal, assumiu o cargo de Primeiro-Ministro e nomeou Araki, apoiador da Sakurakai, como Ministro da Guerra. Entretanto, essas forças a favor do golpe continuariam atuantes no Japão, marcando presença no Exército de Kwantung que desobedeceu uma ordem do Exército Imperial e atacou o território da Manchúria, então sob controle da China, forçando Tóquio a apoiá-lo. Restou a Inukai fazer alianças políticas com um oportunista como Puyi, o ultimo imperador da China, destituido em 1912, a quem nomeou como Imperador do Estado de Manchuko no começo do ano de 1932. Puyi era totalmente complacente com as políticas de colonização japonesa (IDEM) e ajudou a organizar um conselho

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administrativo do Nordeste que declarou uma independência fantoche, em que o Japão ainda detinha o controle da Manchúria, não enquanto uma colônia, mas como uma aliada. Manchuko foi criado com o apoio da decadente dinastia Qinq, a última dinastia Imperial da China, e sua economia foi direcionada para atender aos interesses do Império japonês. Seus representantes no governo da Manchúria eram responsáveis pela administração, pela política interna e externa, pela comunicação e pelos transportes. O Japão despontava como uma potência militar na Ásia: “Pelo Tratado de Portsmouth, que finalizou a Guerra Russo-japonesa (1904-5), o Japão ganhou o arrendamento de Porto Arthur (Lushun) e parte da estrada férrea do sul da Manchúria, fonte capital de minérios (carvão e minério de ferro) necessários para o desenvolvimento da indústria japonesa. Com a Depressão de 1929 e a catastrófica queda das exportações japonesas, a Manchúria se tornou ainda mais importante para o Japão e a migração japonesa foi incentivada para que a ocupação japonesa fosse rematada, liberando o modelo imperialista de dominação na fórmula do exército de Kwantung: iniciativa de comandantes do baixo escalão, endossada pelo alto comando e aceita pelo gabinete. Manchuko deu a fórmula de como os territórios dominados deveriam funcionar” (IBIDEM, p. 71). Enquanto isso, o exército de Kwantung passava a ser uma força independente das autorizações de Tóquio para a realização de seus atos. A resposta da China foi imediata, enviaram relatórios à Liga das Nações denunciando a invasão japonesa. A instituição declarou o não reconhecimento da Manchúria, culminando com a saída do Japão da Liga, assim como viria a acontecer com a Alemanha em 1933, por desacordo com os termos do Pacto de desarmamento de Genebra. Igarashi, estudioso do corpo no Japão, ao fazer uma análise da obra de Rampo Edogawa, escritor de ficções científicas, apresenta como Manchuko também foi um laboratório para o governo japonês. Ao analisar o conto “Os gêmeos”12, retoma a história política da biometria no Japão. Em Manchuko as digitais foram instituídas na década de 1930 e aperfeiçoadas, tal reconhecimento, segundo Igarashi, era uma prática procedente do colonialismo do século XIX. A Índia britânica utilizava tal meio para controlar a identidade dos colonizados analfabetos. Manchuko servia tanto para o policiamento da

12 No enredo, um homem assassina o irmão gêmeo para assumir sua identidade e assim livrar-se das punições pelos roubos e execuções que tinha cometido.

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população como era também uma forma de controle do trabalho forçado (IGARASHI, 2013a). Em 1938, para controlar os trabalhadores e para reduzir os agitadores, o governo de Manchuko ordenou o recolhimento das impressões digitais e fotografou os trabalhadores que sabiam ler e escrever, que tinham algum grau de instrução e/ou que trabalhassem em indústrias específicas. Dois anos depois, as impressões digitais de 2 milhões de pessoas foram enviadas para a polícia e sua divisão detinha a gestão das impressões digitais (IGARASHI, 2013a). Mo Tian, em seu estudo a respeito da formação de Manchuko, apresenta outras medidas que o governo japonês estabeleceu, simultâneas ao controle biométrico, como a necessidade de registro e o estabelecimento de uma carteira de identidade. Os chefes de família recebiam livretos que além de conter instruções de como controlar a casa os orientavam a contatar a polícia sobre qualquer anormalidade. A polícia também emitia nas aldeias documentos com permissões de viagem, licenças de compra e para portar bagagem de mão. Sempre que solicitado, um residente tinha de apresentar os documentos, caso contrário era tido como um possível insurgente contra o governo e estava sujeito ao confisco de suas terras ou qualquer outro bem. O governo japonês ainda estabeleceu aos moradores de Manchuko um valor máximo para realizar compras, e cabia aos vendedores verificar se a pessoa ainda poderia fazer as compras ou se já tinha extrapolado o seu valor máximo (TIAN, 2015). Entretanto, a Manchúria não estava pacificada. Anarquistas procedentes da Coreia, que migraram ao Japão e agora estavam naquele território, não abaixaram suas armas, nem serviram ao Império do Japão e enfrentaram o temível exército de Kwantung.

a Comuna Shinmin

Um dos acontecimentos mais negligenciados pela historiografia sobre a Ásia é a Comuna Shinmin, por vezes nomeada como a Revolução Anarquista na Manchúria, ou Comuna da Manchúria do Leste ou ainda, Comuna do Rio Negro (CRISI, 2015). Nessa experiência, por três anos (1929-1932), libertários e camponeses combateram e sobreviveram às investidas de invasão do Império Japonês, de nacionalistas e de comunistas.

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Foram massacrados, anunciando a década de 1930, que se iniciava com a declaração de guerra à China pelo Japão e com os aumentos das perseguições aos “pensamentos perigosos” com respaldo na Lei de Preservação da Paz. Assim, enquanto desde a metade da década de 1920 as práticas libertárias no Japão eram sufocadas, ocorreu na colônia uma de suas irrupções seguintes. No final de década de 1920, a Manchúria situava-se a oeste da Mongólia, ao norte do Rio Amur (conhecido também como Rio Negro ou Dragão Negro) e ao sul do Mar Meridional da China. Sua população era de aproximadamente 47 milhões de pessoas distribuídas em 1,3 milhões de quilômetros quadrados. Os revolucionários realizariam a experiência em um espaço de cerca de 350 mil quilômetros quadrados, três vezes o espaço controlado por Nestor Makhno no sudoeste da Ucrânia. O território da Manchúria é uma região de montanhas, vales e planícies. Os libertários estavam principalmente a leste, na atual província chinesa de Heilongjiang e em uma parte de Jilin. É um local também cortado pela cordilheira Grande Khingan e Pequena Khingan e as montanhas de Zhangguangcai, Laoye e Wanda. Mais a leste ficava a fronteira com a União Soviética, e ao norte um vale cortado pelo rio Amur. Por todo ano, a Manchúria recebe os gelados ventos da Sibéria (CRISI, 2015).

A invasão japonesa à Manchúria e o avanço do Império. Fonte: https://br.pinterest.com/pin/88172105178411906/. Acesso em 15/11/2018.

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Por sua localização, no início do século XX, a Manchúria foi disputada pela China, Coreia, Rússia e Japão. O Império Manchu, que englobava a região e também a Coreia, deu início à dinastia Qing no século XVII, que ainda tentava sobreviver quando a Manchúria foi invadida pelo Japão. Mais tarde, seria alvo de disputa na Guerra Russo Japonesa e ficou sob domínio japonês até o final da II Guerra Mundial, quando foi transferida para a China. Até hoje são poucos os estudos sobre a experiência. Em obras conhecidas, como a de George Katsiaficas, Asia’s Unknown Upsrisings, cujo volume de 451 páginas foi lançado pela PM Press em 2012, e com a pretensão de abarcar as revoltas na Ásia no decurso do século XX, a Comuna Shinmim é mencionada em apenas um parágrafo. O libertário nascido na Coreia, Ha Ki-Rak, tradutor de algumas obras de George Woodcock para o coreano, em A history of Korean Anarchist Movement (1986) também registrou algumas passagens da Comuna Shinmin. Entretanto, com maior interesse em apresentar as ações de libertários procedentes da Coreia na experiência. Segundo Dongyoun Hwang em Anarchism in Korea: Independence, transnationalism, and the question of national development, 1919-1984 (2016), nem mesmo em coreano há um estudo extenso sobre a Comuna. Em seu livro, pauta-se na biografia de Yi Eulgyu, militante da comuna e que traça uma descrição da experiência – somente em coreano. Outra referência são as edições do jornal anarquista Libero (ns. 1, 2 e 6), publicado por libertários integrantes do CIRA Japana nas décadas de 1970 e 1980, e o livro de Emilio Crisi, Revolucion Anarquista em Manchúria (1929-1932), lançado pela editora anarquista Libro de Anarres, em 2015. Este último é um dos poucos escritos em espanhol que tangencia os anarquismos na Coreia. No território de Shinmim viviam cerca de 2 milhões de pessoas, sendo boa parte de exilados, somavam-se aos anarquistas procedentes da Coreia, libertários chineses e também soldados do exército coreano, expulsos da organização ao se recusarem a servir o exército do Império japonês. Portanto, não é possível entender a Comuna Shinmin como um acontecimento isolado, mas como efeito de outras práticas dinamizadoras que ocorriam pela Ásia. Uma das proveniências dos anarquistas na Manchúria foram as elaborações de Shin Chae-Ho em 1923, a Federação Anarquista Coreana na China e a Federação Anarquista do Oriente. Shin Chae-Ho nasceu na Coreia e, com a invasão japonesa, foi para a China, onde segundo o periódico Libero, tomou contato com o Partido Comunista Chinês do qual não

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se aproximou muito pela posição autoritária de seus integrantes. No começo da década de 1920 e com o acirramento das lutas pela independência da Coreia, fez uma distinção entre a revolução social e a proclamação de um Estado coreano no Manifesto da Revolução Coreana. O curto texto fora lançado pelo Eiyuldan (Bando de Heróis) que, segundo o Libero, fora o grupo que auxiliou Park Yeol a conseguir explosivos em seu plano de assassinar o Imperador junto com Kaneko Fumiko. O escrito era destinado a um grupo de libertação da Coreia e pontuava o combate ao Império japonês, caracterizado como ladrão. Sinalizava para uma “revolução direta” que moveria as massas e acabaria com todas as desigualdades sociais. Essa revolução não se pautaria pelo abstrato conceito de nação ou na conquista do governo, mas pela insurreição das pessoas que estavam famintas. Para dar fim à exploração e ao sofrimento essa revolução não seria simplesmente uma troca de líderes, mas a destruição do que estava engessado para construir algo novo. “Quando isso acontece (uma revolução), é como uma pedra rolando de um penhasco, ela não para até chegar a seu destino. O caminho para a revolução será aberto pela destruição” (CHAE-HO, 1923, p. 374). Segundo o Libero, Shin Chae-Ho era o Kôtoku da Coreia, mais por ser um dos inauguradores das problematizações libertárias no país do que por afinidade, apesar de suas aproximações com as obras do anarquista no Japão. Segundo o jornal, Shin Chae- Ho era um bakuninista e recusava-se até mesmo a baixar o rosto quando ia lavá-lo: mantinha-se ereto e acabava por molhar o tronco. A quem lhe indagava o porquê da atitude, respondia: “porque eu me recuso até a morte a baixar a cabeça para qualquer um” (LIBERO, n. 2, 1978). Shin tentou chegar à Manchúria para tomar parte das movimentações em andamento e produzir um periódico, mas para isso precisava de dinheiro. A solução foi em parceria com um amigo que trabalhava no correio de Pequim e que falsificou uma ordem de pagamento internacional a ser resgatada no correio de Daire, na Manchúria. Entretanto, o alto valor não passou despercebido e eles foram capturados pela polícia japonesa. Shin não chegou à Coreia e foi condenado a 10 anos de trabalhos forçados por pertencer, segundo a polícia, a uma organização secreta. Não aguentou a vida na prisão e sucumbiu em 21 de fevereiro de 1936. Em 1945, sua existência seria lembrada por seus amigos Chong Hwa-an e Lee Ha-yu que fundaram a editora Escola de Estudos Shin Chae-Ho em Pequim, suprimida pelos comunistas em 1949 (LIBERO, 1978, n. 2). Na década de 1920, o manifesto corria pelas mãos dos libertários inquietos a respeito da distinção entre uma revolução social e o movimento de independência. Em

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1924, foi fundada a Federação Anarquista Coreana (FAC), que teria integrantes espalhados por inúmeros lugares na Ásia, como Seul, Taegu, Pyonguang, Icheon, Manchúria, China e Japão, e da qual Shin Chae-Ho participou da fundação (CRISI, 2015). A divisão chinesa (Federação Anarquista Coreana na China – FACCh) era formada por coreanos exilados e publicava periódicos em Shangai como o Boletim Justiça, e Talhwan (Conquista) em referência à obra de Kropotkin, A conquista do Pão (HWANG, 2016). No primeiro número de Talhwan, os libertários declaram a luta contra o Império japonês e contra qualquer governo: “Todos os produtos da sociedade contemporânea foram produzidos pelo esforço conjunto dos trabalhadores, e a civilização moderna foi criada pelo sangue e pelo suor das massas no passado. Nem um indivíduo, nem um governo, portanto, podem monopolizar os produtos e possuir a civilização exclusivamente, não importa o quê. (...) Para que possamos viver, não podemos deixar de conquistar (talhwan) as posses que inicialmente pertenciam a todos os seres humanos. (...) Nos recusamos para sempre a entrar em acordo com a classe capitalista do nosso país nativo [Coreia], sob a desculpa de que a luta contra o Japão tenha chegado. Isso é só uma desculpa para estabelecer uma frente única nacional. Mesmo que a classe capitalista seja uma classe especial em uma colônia, do ponto de vista de seus interesses, acabará por se comprometer com a classe capitalista dos conquistadores. Para restaurar a verdadeira vida dos seres humanos e provocar um surto espontâneo das massas, publicamos a Conquista” (TALHWAN, n. 1, 1928, pp. 381; 383). A questão coreana estava em plena efervescência entre os anarquistas. Enquanto isso, dois amigos de Kaneko Fumiko e de Park Yeol, Hong Jin-Yu e Seo Sang-Kyeong, que chegaram a ser presos durante o terremoto de 1923, retornaram à Coreia. Em 1924, na cidade de Kiho, no Japão, fundaram a Liga da Bandeira Negra. Um ano depois, quase todos os seus integrantes haviam sido presos pela polícia imperial, muitos outros encarcerados pela divulgação do manifesto de Shin Chae-ho. Ainda no Japão, em 1927, os libertários articularam o Sindicato de Trabalhadores Temporários, constituído principalmente por trabalhadores coreanos (CRISI, 2015). No mesmo ano, em Pyongyang, foi reunida a Associação Fraternidade Negra (Kwang Soh). Em 1930, também fundaram a Liga Juvenil Anarquista (Anakisuto Seinen Remei), a Liga de Talhadores Bandeira Negra (Kurohata Rôdôsha Renmei) e a Federação de Trabalhadores do Oriente (Tôhô Rôdô Dômei), todas no Japão. Segundo Hwang (2016), muitas associações emergiram no norte da Coreia, próximas à Manchúria, entretanto, tinham poucos integrantes e muitas delas não deixaram vestígios para uma reconstrução de sua

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trajetória13. “Kim Hansu, Yi Sunchang, Kim Yongho organizaram a Sociedade Negra de Amigos de Anju em abril de 1929, posteriormente Yi Hyeok e An Yeonggeun se juntaram, ambos estiveram em Tóquio para estudar e envolveram-se em ações anarquistas por lá. Um de seus integrantes, An Bong-yeon morreria na prisão Seadaemun depois de preso por ser integrante da Federação Anarco-Comunista Coreana. Anos mais tarde, em 1930, um grupo secreto de jovens anarquistas, a Sociedade Negra de Amigos de Cheolsan, organizou-se no condado de Cheolsan no norte de Pyeonan. (...) Seus integrantes chegaram a 100, mas foram todos presos. E a Sociedade logo foi dissolvida” (HWANG, 2016, p. 107). As obras de libertários não eram facilmente encontradas em coreano, ainda que, segundo Hwang, boa parte do que os japoneses traduziam fosse encontrada nas livrarias em Seoul e na Manchúria. Com maior facilidade ainda eram disponibilizados os escritos de comunistas. Porém, as obras anarquistas eram as mais solicitadas e nas décadas de 1910 e 1920, era fácil sencontrar um libertário na Coreia. Hwang apresenta a memória do socialista Kim Seongsuk (1898-1969), em que destaca a presença dos escritos anarquistas: “Naquela época [início da década de 1920], os livros sobre o socialismo eram todos traduções de socialistas japoneses. Eu li os livros de Sakai Toshihiko e Yamakawa Hitoshi (...). Por outro lado, o anarquismo era o mais popular entre todos. [...]. Sobre o anarquismo, eu li Memórias de um revolucionário de Kropotkin. Este foi um livro muito bom para mim” (KIM apud HWANG, 2016, p. 94). Foi a partir dessas trocas que a Federação Anarquista do Oriente (FAO) foi fundada em 1928, com libertários procedentes do Japão, China, Vietnã, Taiwan, Filipinas, Índia e Coreia (CRISI, 2015). Segundo Ha Ki-Rak, a FAO adotou o texto de Shin Chae- Ho como seu programa. Assim, Dongyoun Hwang aponta que os anarquistas queriam uma revolução social não restrita a um país e isso se manifestava na Federação, que, apesar de trazer o termo Oriente e em outros momentos o nome de algum país, era internacionalista e não estava restrita às fronteiras estatais.

13 Irrompiam associações anarquistas pela Ásia. O Libero (n. 1, 1975), fez uma linha cronológica com as datas da fundação das associações na China, no Japão, na Manchúria e na Coreia, sendo quase 20 entre a década de 1920 e a de 1930.

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Integrantes da Federação Anarquista do Oriente, 1928 (CRISI, 2015, p. 139).

Em 1928, a FACCh uniu-se à FAO. Os libertários tentaram estabelecer uma distinção e diferenciar-se da luta pela emancipação dos coreanos escravizados pelo Japão. Pontuaram não estarem preocupados com uma afirmação nacional, mas em ampliar o raio de confronto atingindo o Império e qualquer governo. Enquanto isso, a Manchúria era um espaço que transpirava a luta anticolonial por onde circulavam guerrilhas, como a liderada pelo General Kim Jwa-jin, conhecido também como Baekya, e que ocupava um espaço que fora conquistado pelo chamado ‘Exército do Norte’, comandado pelo General (CRISI, 2015, p. 65). Baekya era considerado um herói por muito coreanos residentes na Manchúria por sua vitória na batalha de Chingsanli14 e por sua relação próxima com o campesinato. Procedente de uma família rica ganhou notoriedade entre os camponeses quando, em 1907, aos 18 anos, queimou registros de escravidão e libertou 50 famílias dando-lhes terras para que pudessem sobreviver (CRISI, 2015). Ao seu lado estava Kim Jong-jin. Conheceram-se na carreira militar na China na década de 1920. Kim Jong-Jin chegara à China na condição de exilado após lutar pela independência da Coreia em 1919, e lá completara a sua formação militar em 1926. Quando fora a Pequim, encontrou inúmeros libertários e lá conheceu Lee Hwae-young,

14 Ocorrida 10 anos antes contra o exército japonês em uma de suas tentativas de invadir a Manchúria.

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um dos fundadores da FACCh e, para Crisi, é “o pai do anarquismo coreano” (2015, p. 57). Lee Hwae-young fora um dos primeiros a sugerir uma experiência autogestionária na Manchúria em meio aos confrontos pela independência pelo qual o país passava (CRISI, 2015). Em 27 de outubro de 1927, em Mudanjiang, atualmente a província de Heilongjiang no nordeste da China, encontraram-se Kim Jong-jin, Baekya e outros anarquistas. Nessa oportunidade, Kim Jong-Jin apresentou um Plano para Organizar o Povo da Coreia e sua Formação (CRISI, 2015) que, caso aprovado, seria apresentado como uma proposta às comunidades camponesas e outras forças da região interessadas nos anarquismos. Era uma elaboração inicial do que viria a ser a Comuna Shinmim. Segundo Ha Ki-Rak, o objetivo era estabelecer um programa de autogestão agrária que abarcasse tanto os camponeses mais organizados como os dispersos. Em sua obra, expõe trechos da documentação dessa reunião, como o programa da Organização de autoadministração camponesa como um Órgão Econômico Cooperativo: “A fim de estabelecer no futuro nosso movimento de independência na Manchúria, devemos criar raízes no povo, o que nos permite impulsionar os camponeses a estabelecer seus próprios sistemas de autogestão e organização com estruturas de cooperação econômica, de acordo com suas necessidades por um lado, e o apoio mútuo por outro lado (...). Deste modo o povo coreano na Manchúria alcançará uma via estável e um poder econômico através desse sistema dos camponeses, sistema que será a organização da luta antijaponesa e este poder econômico poderá apoiar financeiramente a luta contra o Japão” (KI-RAK, p. 73). O programa também envolvia a educação para crianças, jovens e adultos, aproximava-se do ensino racionalista proposto por Ferrer y Guardía ao unir instrução manual e intelectual, porém, adicionava a educação militar para o combate ao Império Japonês (CRISI, 2015). Assim, apesar da Comuna tentar distanciar-se da disciplina do exército, ainda estava permeado por ele: uma educação militar é uma educação para as armas, uma educação para a guerra. Provavelmente isso ocorreu tanto por muitos dos anarquistas serem de procedência do exército coreano, como também, apesar do caráter internacionalista da comuna, muitos não terem se desvencilhado do nacionalismo. Nessa mesma reunião, a organização enviou alguns de seus militantes para o Centro de Entretenimento Popular de Chuang Yung, próximo a Taiwan. Entre os que viajaram estavam Jin Mang-san, Yang Yong-kwan e Lee Eul-kyu. Essa viagem era para o estudo de práticas de guerrilha em zonas rurais, porém não existem muitas informações a esse respeito, sendo apenas mencionada por Crisi (2015).

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Meses mais tarde, Kim Jong-Jin foi para Shinmim, quando reencontrou seu amigo Baekya que se aproximou do anarquismo devido à sua relação com Kim Jong-Jin, e chamou seus companheiros que se encontravam na China para comporem as lutas que emergiam naquele espaço. Assim, em janeiro de 1928, Kim Jong-Jin reuniu seus amigos e foram a uma viagem de oito meses pelo leste da Manchúria para conhecer a região e as possibilidades de um enfrentamento com o exército imperial. Iniciaram a caminhada e dividiram-se em grupos, todos com o objetivo de conversar com os camponeses sobre a autogestão (CRISI, 2015). Para Crisi, em confluência com Hwang, seria com a Federação Anarco-Comunista da Coreia (FACC – o Jo-un Gong-san Um-jung-bu Ju-eu-ja Yeon-maeng) que as ações na Manchúria se tonificariam. Segundo Hwang: “A última grande tentativa dos anarquistas coreanos no norte da Coreia colonial foi a FACC, organizada secretamente em 10 de novembro de 1929, após a supressão pelo Japão da Convenção de Reunião dos Militantes da Coreia Negra (Jeon joseon heuksaek sahoe undongja daehoe), que originalmente deveria ocorrer em Pyongyang em 10 e 11 de novembro de 1929. (...) Choe Gapryong presidiu a reunião preliminar da convenção em 5 de agosto do mesmo ano. A decisão do encontro foi realizar um encontro nacional com os anarquistas da Coreia e do exterior. O plano audacioso correu sem problemas, até que a Convenção agendada chamou a atenção da polícia japonesa” (2016, pp. 107-8). A Convenção foi abortada quando alguns integrantes da reunião chegaram ao local e constataram que estavam prestes a serem presos pela polícia; esconderam-se onde e como puderam, e os que chegavam, desviaram o caminho. Mesmo assim, muitos foram capturados e enviados para as prisões ou deportados da Coreia para a Manchúria, e em alguns casos, de volta para o Japão. Foram os anarquistas não capturados que puderam estabelecer posteriormente a FACC, da qual não se têm registros por ter ocorrido em reunião secreta. “A FACC foi produto de um esforço secreto e extenso para estabelecer uma organização de todos os anarquistas coreanos. Os principais expoentes eram cinco anarquistas, incluindo Choe Gapryong e Yu Rim. Diz-se que, antes das suas detenções, conseguiram ter a oportunidade de se encontrar e puderam anunciar a criação da FACC” (HWANG, 2016, p. 109). A FACC lutava pela “abolição do sistema estatal existente e para sua transformação em uma organização baseada na aliança livre e na comuna como seu princípio de unidade” (apud HWANG, 2016, p. 109). Também possuía um código de conduta rigoroso, que proibia a seus integrantes o engajamento em lutas contra os

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comunistas, talvez para evitar perda de forças desnecessária, mas recomendavam engajarem-se no movimento camponês. Não era permitido que seus integrantes se juntassem a qualquer grupo nacionalista (HWANG, 2016). Mesmo com o estabelecimento de um código, os anarquistas na Coreia colonial não puderam fazer grandes ações, pois logo foram presos. Uma seção na Manchúria (FACM) foi inaugurada e crescia em meio aos camponeses contra os senhores da terra (CRISI, 2015). Segundo Hwang, a FACC seria descoberta pela polícia japonesa somente em 1931, quando foi completamente desmantelada, com seus integrantes presos. Os anarquistas na Coreia conseguiriam articular suas ações novamente somente no pós- Guerra, mas encontraram inúmeras dificuldades pela divisão em duas Coreias, nas quais nunca deixaram de ser alvos. As publicações anarquistas e as associações até hoje não conseguiram se rearticular como no começo do século XX. Em 29 de agosto de 1929, junto com a FACC, os anarquistas construíram a Associação do Povo Coreano na Manchúria 15 para a autogestão de Shinmin, “uma federação livre pautada na liberdade espontânea das pessoas”. Foram constituídos três conselhos: Municipais ou da Vila, Distritais, de Área ou Regional, eliminando assim o Estado Central, Estados Provinciais e Estados Municipais. Integrantes da Associação do Povo Coreano na Manchúria percorriam Shinmin conversando com os camponeses, propondo a formação dos conselhos para autogestão das vilas. Nas reuniões deliberava- se quem seriam os integrantes do conselho e quando ocorreriam as assembleias (CRISI, 2015). Conselhos cooperativos também foram estruturados, para agricultura, educação, saúde e outros (MAC SIMOIN, 1991; HWANG, 2016). O exército do Norte, comandado por Kim Jwa-Jin, foi dissolvido oficialmente. Isso não significou que os confrontos com o Império haviam terminado, mas agora cada um se associaria ao outro para lutar sem serem regidos pela autoridade e disciplina de um exército. Com a Associação do Povo Coreano na Manchúria também foram instituídas cooperativas agrícolas de arroz e milho, e as usinas passaram a processar os alimentos. Pouco se sabe sobre o seu funcionamento, existe uma informação ou outra mencionando a criação de escolas para os camponeses e como as usinas produziam a todo vapor para a

15 Como destacou Hwang, quase não há informação a respeito da FACCh e da FACC, nem mesmo em coreano (HWANG, 2016).

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revolução e não em nome de um proprietário (CRISI, 2015; HWANG, 2016; SCHMIDT, 2015). As obras a respeito da Comuna destacam que as tensões nunca cessaram. Em 1929, a Coreia estava cortada por grupos de resistência armada contra as tropas imperiais e na Manchúria diferentes vertentes de tropas coreanas e chinesas estavam em alerta para a iminente invasão japonesa (HWANG, 2016). Para os anarquistas, a pressão do Império era somente mais uma delas. O governo da China, então presidido por Chian Kai-Shek do Kuomintang (Partido Nacionalista Chinês, governou de 1928 até 1945, precedendo os comunistas), estava interessado em dar fim aos libertários e ao Partido Comunista. No campo, eram incentivadas as práticas associativas em cada aldeia. Sem os proprietários, buscavam-se outros métodos de cultivo de arroz e amendoim, que pudessem aumentar os níveis de produção e contribuir com todos da aldeia. Segundo Ha Ki-rak, a Comuna preocupava-se que a produção agrícola de cada vila fosse autogerida, promovendo no período um avanço no processo de armazenamento e processamento de arroz: “A partir de outubro (de 1929), a Associação do Povo Coreano na Manchúria começou a construir um moinho de arroz em Shanshi (local atual de Shangzhi perto de Haerim [nordeste da China]). (...) Agricultores em toda a área de Chungtung estavam produzindo várias centenas de milhares (cerca de 5 toneladas) de arroz por ano em terras recuperadas. O objetivo era proteger o benefício dos agricultores, moendo o arroz por conta própria e excluindo a intermediação de comerciantes chineses que estavam obtendo grandes lucros com o comércio de arroz” (1986, p. 84). Os moinhos tornaram-se um espaço importante na autogestão das vilas e onde se experimentavam outras relações para sua organização, sem que esta estivesse atrelada ao comerciante e a um chefe ou proprietário da terra. Segundo Crisi, “os propulsores da Comuna pensavam que só com progressos técnicos na forma de produção agropecuária se chegaria a importantes avanços para um sistema de produção autogestionário. Por isto, militantes anarquistas com um vasto conhecimento técnico colaboravam na construção de moinhos de arroz que poderia processar as toneladas necessárias produzidas pelas comunidades” (CRISI, 2015, p. 101). Foi em um desses moinhos que a Comuna Shinmin perdeu um de seus proeminentes agitadores. Em 24 de janeiro de 1930, Baekya foi consertar uma fábrica de arroz que os revolucionários construíram para moer alqueires do cereal. Assim que a tarefa foi finalizada, um integrante do Partido Comunista o assassinou. O ataque foi sentido pelos militantes anarquistas e convites da FACC foram emitidos para o Japão e a China para que libertários fossem concentrar suas forças na Manchúria. Era apenas o

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início de uma série de execuções por infiltrados. Segundo Mac Simoin (1991), a FACCh decidiu enviar todos os recursos que tinha para a Manchúria e boa parte de seus integrantes foram para o norte, onde estavam os anarquistas. Mas já era tarde. No início de 1931, o exército Imperial Japonês intensificou a investida contra os anarquistas principalmente ao sul da Manchúria. Ao norte chegava o exército da União Soviética atacando pelas margens do Rio Amur. Segundo Crisi, a URSS passou a atacar a Comuna em aliança com o PC Chinês quando entendeu que não havia necessidade de promover aquelas forças naquela região e que seria melhor acabar com a resistência anarquista. Os comunistas começaram a infiltrar-se pelo norte nas duas margens do Rio Amur e a executar os principais articuladores da Comuna Shinmim. Naquele ano, os comunistas mataram, entre muitos, Lee Joo-Keun (vice-secretário da APCM) e Kim Ya-woon foi emboscado na casa de Kim Dong-chin, irmão de Baekya. Em julho, Kim Jong-jin, com 29 anos, foi sequestrado em frente à estação de trem de Hailin; seu corpo jamais foi encontrado (CRISI, 2013). Ao final de 1931, o exército de Kwantung já havia tomado as principais cidades ao sul da Manchúria, onde estabeleceu sua base para seguir avançando. Em janeiro de 1932, progrediram para o norte, tomando a cidade Hailin. Não há informações sobre o que aconteceu nos meses seguintes, mas em março, o exército japonês ocupava toda a Manchúria e estabelecia o Estado fantoche de Manchukuo. Em 1932, um ano após a invasão, o Exército Imperial tinha o controle total da Manchúria e continuaria as suas investidas para dominar toda a China. Os anarquistas procedentes da Coreia, ao verem a iminente derrota, começaram a buscar refúgio, principalmente, na Coreia e no Japão (IDEM). Em novembro de 1932, Lee Hwae-young, então com 66 anos, e que havia fugido para a China, tentou aproximar-se da Manchúria pela província de Liaoning para procurar anarquistas sobreviventes e rearticular a APCM, mas foi capturado pela polícia japonesa. Poucos dias depois de preso, enforcou-se com suas próprias roupas após ter sido torturado (IBIDEM). Segundo contabilizou George Katsiaficas (2012), na década de 1930, para a construção de Manchukuo e o estabelecimento do domínio japonês, mais de 200.000 pessoas foram executadas pelo Império. Os anarquistas na Coreia quase foram todos dizimados. Segundo o jornal Libero (n. 3, 1975), somente depois do final da II Guerra Mundial, em 1946, voltaram a se reunir no Congresso Anarquista Nacional de Anwi, na província de Kyong-Sang, com a

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presença de militantes sobreviventes de Shinmin, e outros procedentes da Coreia, China, Manchuria e Japão. Entre eles estavam: Yu Rim, Shin Pimo, Lee Eul-kya, Lee Jung-kyu, Pak Sok-honh, Bang Han-sang, Ha Chong-chu, Lee Shi-yan, Han Há-yan, Kim Hyan-u, Yang Il-dong, U Han-ryong e Choi Yong-chun, entretanto, não há notícias no Libero sobre outro reencontro ou a continuidade do Congresso (LIBERO, 1975). Com o desmantelamento da Comuna Shinmim, os anarquistas radicados no Japão entraram em um “período de combate” (HWANG, 2016, p. 119) contra a guerra promovida pelo Japão contra a China e contra os nacionalistas coreanos. Essa luta estamparia o Jornal Negro (Heuksaek sinmun), lançado em 22 de julho de 1930, e que chegou a ser o periódico de anarquistas, procedentes da Coreia no Japão, de maior circulação naquela década. Inicialmente era editado pela Aliança Tôko de Trabalhadores (Tōko Rôdô Domei), uma organização trabalhista de coreanos no Japão onde parte de seus integrantes eram anarquistas; mais tarde, foi editado pela Federação Negra de Amigos (Kokutomo Jiyu Seinen Renmei) (HWANG, 2016). Manteve-se por cinco anos, um longo tempo, visto que as publicações comumente eram censuradas e interrompidas. Ao todo foram 35 edições burlando a censura do governo japonês. Era publicado em coreano e financiado por associações anarquistas e por sindicatos coreanos no Japão (HWANG, 2016). Fez aliança também com o periódico anarquista Jiyû rengô, que por vezes reproduzia alguns artigos em suas edições. Foi um periódico distribuído também no chamado ocidente, podendo-se encontrar alguns exemplares nos arquivos do CIRA Lausanne e no IISH (Internacional Institute of Social History). Entretanto, na década de 1930, o que foi localizado pela polícia imperial, foi destruído. Com a invasão japonesa na Manchúria, muitos anarquistas foram para a China. Em Shanghai, fundaram a Liga de Jovens Coreanos no Sul da China (LJCSC) e lançaram- se no anarcoterrorismo. Se para os libertários no Japão, a Comuna Shinmim era um impossível eclodindo e com o qual mal podiam ter contato devido as fortes repressões que enfrentavam, essa experiência será vital na posterior aproximação entre esses libertários. Até então, uma das poucas pessoas que havia tido maior contato com os anarquistas procedentes da Coreia fora Kaneko.

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A experiência da Comuna Shinmin ecoa com outros acontecimentos anarquistas como a Revolução Espanhola (1936-1939). Não são iguais, provavelmente os militantes espanhóis nem sequer tomaram conta do que acontecera anos antes em um distante país da Ásia oriental, mas são práticas que atiçaram os anarquismos e que rebentaram quando menos se esperava. Na Manchúria, na década de 1920, a situação do campesinato era semelhante ao ucraniano e espanhol. Muitos lutavam pela sobrevivência e outros tantos morriam de fome. As inúmeras investidas da China, Japão e Rússia pelo controle do território tiveram como um dos efeitos o pauperismo dos camponeses. Com a invasão japonesa, acirrada no começo da década de 1930, muitos coreanos que ali estavam já sabiam o fim que teriam com as violências perpetradas pelas tropas imperiais, como execuções e perda de suas terras. A Comuna Shinmin ocorreu pouco mais de 10 anos após a Revolução Ucraniana (1918), e foi sufocada cinco anos antes da Revolução Espanhola (1936). As três eclodiram diante da miséria no campo, como também a Revolta na Patagônia (1920). Enquanto muitas agitações pela Europa, e no Brasil com a Greve Geral de 1917, ocorriam nas cidades diante das longas e insalubres jornadas de trabalho nas fábricas, o campo também eclodia diante do pauperismo. As cidades não são os locais exclusivos da revolução, como previam os bolchevistas com o protagonismo do proletariado industrial conduzido pela vanguarda do partido. A revolução também não depende do alto desenvolvimento das forças produtivas ou, do acirramento do antagonismo de classes no meio urbano, mas irrompe no insuportável com experimentação de liberdades. Os revolucionários camponeses na Ucrânia, Espanha, Argentina e Manchúria não estavam filiados a idealizações, ou caminhos a serem seguidos para alcançar a verdadeira revolução, mas invenções no presente interessadas em uma vida livre. Assim, a discussão das propostas dos libertários que circulavam pela Manchúria animou os camponeses a construir uma outra sociabilidade e a lutarem contra quem quer que quisesse dominá-los, fosse o Império, a China ou a submissão à nacionalidade coreana. Segundo Crisi (2015), como vimos, os anarquistas coreanos expulsos do Japão e de Shangai na década de 1920 chegaram à Manchúria e passaram meses caminhando pelas aldeias do distrito de Shinmim, conversando com os camponeses, falando sobre a autogestão e o combate ao Império japonês. Aproximavam-se do que ocorria na Espanha,

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quando, como aponta o estudo de Hans Magnus Enzensberg (1987), um emissário da AIT circulou pelo país no final do século XIX, conversando com os camponeses sobre as propostas de federalismo e mutualismo econômico de Proudhon. O pensamento anarquista propagou-se pelo campo, em um processo de aprendizado que envolvia tanto a escrita e a leitura, como o estudo das obras libertárias. Assim, o anarquismo “como fogo pela estepe, difundiu-se rapidamente entre os trabalhadores agrícolas e industriais do oeste e sul da Espanha” (ENZENSBERG, 1987, p. 31). Entretanto, apesar da autogestão dos moinhos e das plantações, e das discussões de uma educação que não separasse trabalho manual do intelectual, é importante destacar não haver qualquer referência sobre as mulheres na Comuna. Somente em um trabalho (MAC SIMOIN, 1991), as mulheres foram mencionadas como ativas agitadoras e contrabandistas de armas para a comuna, sem qualquer outra descrição de como e o que mais faziam. Diferia do que acontecera na Espanha com o questionamento dos costumes machistas pelas mulheres anarquistas e com a associação Mujeres Libres em busca da constituição de outras subjetividades (RAGO, 2005). Apesar de formada principalmente por ex-militares, a Shinmin questionava a disciplina militar. Para dar-lhe fim, uma das primeiras ações de Baekya foi abolir o Exército do Norte. Se antes estavam próximos às guerrilhas que habitavam a região da Manchúria, adotaram uma formação mais próxima às de colunas, como aconteceria na Espanha. A Coluna Durrutti foi conhecida por invocar “o princípio da ‘indisciplina organizada’” (ENZENSBERG, 1987, p. 165). Enquanto isso, o governo central de Madri pressionava Durrutti para a formação de um exército centralizado, e o socialista Largo Caballero professava que era preciso vencer a guerra e depois falar em revolução. Para os anarquistas a revolução estava acontecendo e era vital acabar com a disciplina. “Fui anarquista durante toda a minha vida e agora tenho que forçar meus homens a ser disciplinados usando a força? Sei que a disciplina é necessária na guerra, mas deve ser a disciplina interior, que se origine do objetivo pelo qual se combate. [...] Sou contra a disciplina de quartel: ela leva apenas à brutalidade, ao ódio e ao funcionamento mecânico (IDEM, pp. 235; 261). Ainda poderiam ser demarcadas outras proximidades, distanciamentos e tensões entre as duas experiências, porém os poucos registros históricos de Shinmin não as habilitam. Crisi (2015), ao apresentar a obra de Kim Il-Sung, o primeiro líder norte-coreano e que governou o país de 1948 a 1994, demonstra como a indisciplina estava presente

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entre os anarquistas na Manchúria. Em sua biografia, recorda os acontecimentos na região destacando que entre as forças locais estavam comunistas e nacionalistas, porém, havia um insuportável grupo “ultrademocrático” – os anarquistas – que deveria ser desprezado por recusar obediência aos seus superiores. “O abuso da democracia no exército revolucionário foi também expresso pela crítica indiscriminada do sistema de castigo e recompensa. O exército guerrilheiro antijaponês tinha um sistema de recompensa e castigo destinado a fortalecer sua capacidade combativa. Nós, como soldados éramos recompensados exemplarmente em combate, em treinamento e na vida cotidiana e eram castigados os que violavam gravemente o regulamento de serviço, aplicando diversas normas segundo vantagens e desvantagens específicas. Os ultrademocráticos, entretanto, questionaram o sistema para discutir porque um companheiro era premiado com o primeiro lugar e outro com o segundo lugar quando ambos tinham realizado o mesmo trabalho na mesma equipe, ou sobre por que alguém era repreendido e outros tomavam uma advertência sendo que tinham cometido o mesmo erro (...) essa atitude surrealista minou o objetivo básico de um sistema de recompensa e castigo. (...) Um exército em que os subordinados não saúdam os seus superiores, e falam com eles com descortesia, ou discutem suas ordens e instrução, já não é um exército, mas uma canalhice” (IL-SUNG apud CRISI, 2015, pp. 78-79). Nas obras de Hwang, Mac Simoin, Ha Ki-Rak e de Crisi há um esforço para aproximar a experiência da Comuna ao plataformismo. Assim, Ha Ki-Rak refere-se a Baekya como o Makhno coreano16; em uma passagem no jornal Libero (n. 6, 1980), Ozeki

16 Makhno destacara-se na Ucrânia já nos primeiros anos do século XX. Era um dos combatentes revolucionários que ergueu barricadas entre os anos de 1905-1908, um período marcado na Rússia pela miséria e pela derrota para o Japão. Makhno atraiu a atenção das autoridades russas ao ser suspeito de matar um comissário de polícia. Detido em 1908, foi condenado a morte aos 19 anos, mas a pena seria comutada para prisão perpétua, e finalmente seria liberto após a revolução de fevereiro de 1917. Makhno ao fazer uma peregrinação pela Rússia entre 1917 e 1918 constatara os rumos da revolução e retornou à Ucrânia, onde realizou ataques contra os invasores, algo referenciado como uma “libertação nacional” (SKIRDA, 2001, p. 12). Suas ofensivas foram vitoriosas, rendendo-lhe admiração popular e o crescimento de seu agrupamento de combatentes, segundo o seu próprio relato na Dielo Truda de outubro de 1927. A revolução na Ucrânia não teve como marco outubro de 1917, mas já se gestava desde fevereiro com experiências autogestionárias com vista a “uma nova sociedade” (MAKHNO, 2001, p. 22). Entretanto, com as investidas do exército Branco, Makhno foi impulsionado a aliar-se ao Exército Vermelho, aproximação rompida pela acusação de traição pelos soviéticos com sua consequente perseguição. Em suas memórias, Makhno ainda salienta que “nós exprimimos nossa solidariedade entristecida por todos aqueles que lutaram conosco pelo triunfo de Outubro, e que apodrecem atualmente nas prisões e nos campos de concentração, cujos sofrimentos, sob a tortura e a fome, chegam até nós, e obrigam-nos a sentir, em vez de alegria pelo décimo aniversário do grande outubro, uma profunda aflição” (MAKHNO, 2001, p. 24). Alguns anos após esse escrito, a Revolução na Manchúria teria destino semelhante, sofrendo infiltrações pelas forças soviéticas que executaram seus integrantes.

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Hiroshi apresenta um relato de seu amigo Frank Gould que viajou para Coreia17. Por lá ouviu falar de um Makhno coreano que agiu na Manchúria; era Baekya e sobre o qual os anarquistas no Japão pouco conheciam. Crisi se propõe a elaborar quais seriam as lições para o anarquismo organizado que derivaram dessa experiência e advoga em nome do plataformismo. Porém, apesar das adjetivações a Baekya e das aproximações realizadas, não há qualquer registro do contato entre anarquistas na Manchúria com os coordenadores do periódico Dielo Truda, lançado na Europa em 1926 por militantes remanescentes das lutas na Ucrânia e que lançou as bases do plataformismo18. A plataforma é uma questão do chamado anarquismo organizado, questão presente desde 1907, no 1º Congresso Anarquista Italiano realizado em Roma entre 16 e 20 de julho. Naquela ocasião, Luigi Fabbri lançou “A organização anarquista”, que advogava em favor do anarquismo organizado ao retomar brevemente as propostas de Bakunin. “Sem organização a anarquia é tão inconcebível quanto o fogo sem matéria para fazê-lo [...]. Assim, a necessidade de organização permanece. Por organização, entendemos a união dos anarquistas em grupos e a união federal dos grupos entre si, sobre a base de ideias comuns e de um trabalho prático comum a realizar. Tal organização deixará naturalmente a autonomia dos indivíduos nos grupos e dos grupos na federação, com plena liberdade dos grupos e federações para se formarem segundo as oportunidades e circunstâncias, por ofício, por bairro, por província ou por região, por nacionalidade ou por língua, etc. [...] A organização anarquista deve ser a continuação de nossos esforços e da nossa propaganda; ela deve ser a conselheira libertária que nos guia em nossa ação de combate cotidiano. Podemos nos basear em seu programa para difundir a nossa ação em outros campos, em todas as organizações especiais de luta particulares nas quais possamos penetrar e levar nossa atividade e ação: por exemplo nos sindicatos, nas sociedades anti-militaristas, nos agrupamentos anti-religiosos e anti-clericais, etc. Nossa organização especial pode servir igualmente como um terreno para a concentração anarquista (não de centralização!), como um campo de acordo, de entendimento e de solidariedade a mais completa possível entre nós” (FABBRI, 1907). Quase 20 anos depois, o Dielo Truda atualizou a discussão com a Plataforma da Organização. Em 20 de junho de 1926, o grupo publicou: “como a febre amarela, a doença

17 Anarquista estadunidense que estava em viagem pela Ásia e que sumiu nas Filipinas, possivelmente assassinado por policiais (Libero, n. 6, 1980). 18 Os exemplares do Dielo Truda estão digitalizados e disponíveis no IISH.

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da desorganização apossou-se do organismo do movimento anarquista e o vem minando há dezenas de anos (...). Que esta plataforma sirva de palavra de ordem revolucionária e ponto de união para todos os militantes do movimento anarquista russo! Que sirva para lançar os fundamentos da União Geral dos Anarquistas!”19. Três anos após o lançamento da Plataforma Organizacional dos Comunistas Libertários, irrompia a Comuna Shinmim. Entretanto, sem qualquer referência ou anotação de que o escrito foi traduzido para o coreano ou até mesmo para o japonês, nem mesmo o extenso estudo de Sho Konishi sobre as relações entre os libertários na Rússia e no Japão no pós-guerra menciona qualquer ligação entre as discussões do Dielo Truda com os libertários pela Ásia20. As possíveis semelhanças entre a Revolução Ucraniana e a Revolução na Manchúria, não se devem tanto a sua proximidade geofísica, mas provavelmente por terem ocorrido no campo, e principalmente por estarem arraigadas em uma questão nacional e de formação de algo semelhante a um exército que não abria mão completamente de sua disciplina. Algo que a Revolução Espanhola não temeu enfrentar quando os libertários se recusaram a servir ao governo central que deu fim ao Comitê de Milícia Antifascista para a constituição de um exército (ENZENSBERG, 1987). As experiências não são cópias uma das outras, apenas eclodiram diante do insuportável que é o governo. Assim, vale destacar que experiências na Manchúria se diferenciavam das práticas anarquistas no Japão, muitas vezes atreladas ao antimilitarismo; respondiam a outra urgência que tinha como alvo principal o domínio japonês. Os anarquismos na Ásia também não podem ser tomados como uma massa homogênea, mas cada experiência e cada associação tinha um interesse. O pesquisador sul-coreano Cho Sehyun, professor de sociologia na Universidade de Pungyong, situa as distinções entre os anarquistas no leste asiático: “Na China, a luta social é confundida com a revolução antiimperial (bai huang geming). No entanto, mesmo quando o sistema imperial é eliminado (graças ao sucesso da revolução de 1991), a política militarista que acontece desaponta os anarquistas, que então se voltam para uma revolução cultural e participam ativamente do Novo Movimento Cultural. Quanto à Coreia, devido à brutal

19 Traduções em português do Dielo Trouda também estão disponíveis no site The Nestor Makhno Archive, disponível em: http://www.nestormakhno.info/portuguese/index.htm. Acesso em 12/02/2019. 20 No caso do Japão, provavelmente a Plataforma Organizacional foi traduzida no pós-guerra quando as discussões sobre o anarquismo organizado ganharam fôlego no interior da Federação Anarquista Japonesa (CRUMP, 1996). Hoje, o plataformismo também está presente nas discussões dos anarquistas, como pude observar no Encontro Hiroshima em 2015. No ano de 2018, o calendário do CIRA-Japana foi uma homenagem a Makhno e em cada mês apresentava breve relatos sobre sua biografia e a ação na Ucrânia.

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colonização japonesa, o anarquismo está inscrito numa perspectiva de libertação nacional, a derrubada do imperialismo japonês é uma tentativa de obter a independência da Coreia. Por isso, desde o início, o movimento está intimamente ligado às correntes nacionalistas de pensamento, que marcam suas orientações políticas. Em Taiwan, a situação é percebida como idêntica – o país também é colonizado pelo Japão -, mas os anarquistas de Taiwan privilegiam os movimentos culturais sem recorrer à violência” (SEHYUN, 2009). Mesmo diante das diferenças, os militantes da Comuna Shinmin talvez tenham sido um dos homens que Berkman mencionou certa vez ao escrever sobre Makhno no dia em que soube de sua morte: “Certos homens assemelham-se a camafeus: talham sua imagem num forte relevo e nos fornecem uma melhor compreensão do plano secundário social. A história esculpe, amiúde, personalidades de uma tal dimensão que mesmo o decorrer do tempo não pode mais apagá-las. [...] Talvez um dia a história conte completamente a epopeia do indomável revoltado que representou um papel capital na Revolução Russa” (2001, p. 51; 79). Entretanto, diferente da epopeia de Makhno que ao menos entre os anarquistas é uma história viva, a Comuna Shinmin permanece esquecida, mas não apagada. Talvez um dia as pesquisas revelem maiores informações sobre homens, mulheres e crianças que não se tornaram colônia, nem se acomodaram em uma bandeira de independência, mas ousaram enfrentar o PC chinês e o temido exército Imperial japonês.

contra o consenso: as disputas entre os anarquistas

A invasão à Manchúria não passou desapercebida dos libertários no Japão. O jornal da Jiyû Rengô estava atento às lutas travadas por ali e em sua edição 34, em novembro de 1931, lançou o artigo “Como agir sobre a guerra”, redigido em esperanto para que circulasse por todo o planeta. Em seu primeiro parágrafo, explicitava que os capitalistas ganham com a guerra, pois ela só “traz ferimentos e mortes aos jovens pobres, e fome e frio para seus pais idosos e irmãos e irmãs mais novas. Mas para o rico, traz enormes riquezas e honra”. Até mesmo os libertários se sobressaltaram com a rápida preparação dos militares para a guerra e as investidas na Manchúria e na China: “como eles foram capazes de fazer

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preparações tão rapidamente? É claro que a mobilização foi totalmente preparada há muito tempo. Esse é o drama. Nós dissemos drama? Ou seja, os militares criaram a oportunidade de demonstrar e estabelecer sua força”. O Jiyû Rengô repudiava qualquer guerra e afirmava o antimilitarismo anarquista: “Os comunistas dizem ‘defenda e venha em auxílio da revolução chinesa!’. Mas quem será beneficiado na China quando o exército japonês for totalmente eliminado daquele país? Não será outro senão a nova burguesia chinesa e os capitalistas de outros países. Devemos servir intensamente e criticar tudo o que acontece. Em face da guerra, não devemos nos equivocar como o nosso camarada Kropotkin e outros fizeram durante a I Guerra Mundial. Claro, nos opomos à mobilização. Mas descobrimos que a oposição meramente unilateral é uma resposta muito fraca. O único método para erradicar a guerra do nosso mundo é para nós, agindo como as massas populares, rejeitá-la em todos os países simultaneamente. Devemos cessar a produção militar, recusar o serviço militar e desobedecer aos oficiais. A completa unidade internacional dos anarquistas sinalizaria nossa vitória, não apenas economicamente, mas também na guerra contra a guerra” (JIYÛ RENGÔ, n. 34, 1931, p. 1, grifos nossos). Segundo John Crump (1996), o Jiyû Rengô era um jornal anarco-comunista, a vertente predominante no Japão até ser praticamente sufocada em 1937. Um dos principais expoentes foi Hatta Shûzô, conhecido por sua habilidade em oratória e por ter viajado por quase todo o Japão expondo suas ideias a respeito do anarco-comunismo e de repúdio ao bolchevismo soviético. Hatta tinha uma expressão para sua prática anarquista: anarquismo puro. Ao nomear-se assim, tentava se desfazer do anarcossindicalismo. Para John Crump, suas propostas passam desapercebidas ainda hoje até mesmo para os libertários no Japão. Talvez por conta de sua morte prematura. Hatta mudara-se para Tóquio após a morte dos seus pais, sem conseguir emprego. Foi então para Taiwan, anexada pelo Japão ao final da I Guerra Sino-japonesa (1894- 1985), e contratado para trabalhar no correio de Taipei, do qual logo seria demitido e retornaria ao Japão como um convicto protestante. Ingressou no colégio presbiteriano Meiji Gakuin em 1905, onde conheceu Kagawa Toyohiko um proeminente protestante e militante das causas trabalhista que, em 1954 e 1955, seria indicado ao Prêmio Nobel da Paz por ter ajudado a fundar hospitais, escolas e igrejas pelo Japão. Formou-se no colégio e depois passou a cursar teologia na mesma instituição. Com a mudança de seu amigo, Kagawa, para a Kobe Shin Gakko (Escola Teológica de

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Kobe) e por desentendimentos com um de seus professores, pediu transferência, e lá completaria seus estudos em 1912. Nos 12 anos seguintes foi empregado como clérigo em igrejas provincianas pelo Japão. Passou pelas regiões de Gifu, Aichi e Yamaguchi, onde se envolveu com as questões sociais de sua congregação. Seu último posto foi na igreja Mokage em Hiroshima. Chegou na cidade em 1923, quando ainda se comentava muito sobre os dias da Revolta do Arroz de 1918. Um dos frequentadores das sessões dirigidas pelo então pastor Hatta, afirmou: “os sermões do pastor Hatta foram excelentes, tanto que eu achei uma pena que mais pessoas não estivessem lá para escutá-lo. Era como se a bíblia falasse sobre o espírito do socialismo. Um dos meus amigos admirava tanto o Pastor Hatta que o chamou para celebrar seu casamento. (....) Era um período em que éramos ensinados que o pensamento socialista era antipatriótico ou trabalho do demônio” (apud CRUMP, 1993, p. 54). Hatta ainda tentou envolver a igreja nas discussões do recém-fundado Hiroshima Jiyû Rôdô Kumiai (Sindicato de Trabalhadores Ocasionais de Hiroshima), o que foi suficiente para atrair atenção dos jornalistas. Entretanto, não temeu e em seus sermões afirmava que o fim das explorações só poderia ocorrer com o fim do capitalismo e a abolição do Estado. Hatta afastava-se cada vez mais dos preceitos cristãos da salvação pós-morte para se voltar ao paraíso na Terra. O assassinato de Itô Nôe, Ôsugi Sakae e seu sobrinho foi um divisor de águas. Organizou uma missa em memória dos três na Igreja e na ocasião, bradou: “eu mesmo vou encerrar minha vida como um propagador da anarquia. Se você desaprova, não há nada aqui para eu dividir com você” (apud CRUMP, 1993, p. 55). Foi o estopim para a congregação de Mokage exigir a renúncia de Hatta. O anarquista abandonou a já militarizada e reacionária Hiroshima para seguir para Tóquio, lançando-se de vez no movimento anarquista. Na capital passou a contribuir com a imprensa anarquista, contudo tinha dificuldades em se manter. Abandonou a vida cristã e não tinha emprego. As dívidas com seu amigo Kagawa tornavam as questões financeiras ainda mais complicadas. Hatta então realizou algumas traduções, que o ajudaram a se manter minimamente, como A Ciência Moderna e a anarquia de Kropotkin; Deus e o Estado de Bakunin, ambos lançados em 1928. Em 1925, Hatta integrou o grupo de discussão para fundação, no início do ano seguinte, da associação Kokushoku Seinen Renmei (Liga da Juventude Negra), ou abreviado em Kokuren, que se tornou um grupo de atração para os anarquistas que

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tentavam sobreviver diante das repressões do governo japonês (CRUMP, 1993). A associação era uma resposta à Lei de Preservação da Paz de 1925 e à lei de ampliação do eleitorado, também promulgada naquele ano, que previa que todo homem que tivesse mais de 25 anos poderia votar. Com a possibilidade de crescimento, os partidos socialistas passaram a negociar com partidos já existentes para lançar candidaturas. Esse foi o caso do Nômin Rôdôtô (Partido dos Trabalhadores do Campo). Mesmo com a polícia proibindo a existência do partido meia hora depois de ter sido lançado (PITTELOUD, 2011), os anarquistas contraposicionaram-se de imediato. Na reunião de inauguração da Kokuren estavam presentes mais de 700 pessoas. Apoiavam as causas da nova federação, entre elas: rejeitar um movimento ordenado pelo partido do proletariado, os militantes interesseiros e as leis de opressão ao movimento de trabalhadores. A polícia se fez presente. Inconformados, os anarquistas interromperam o encontro e foram às ruas com bandeiras negras dirigindo-se a Ginza, bairro nobre de Tóquio e especializado em comércio de roupas de luxo. Lojas foram destruídas e seus clientes fugiram ou procuraram algum abrigo imediato. Quase quarenta anarquistas foram presos (CRUMP, 1993, 1996). A Federação também possuía um periódico, o Kokushoku Seinen Renmei (Juventude Negra), constantemente perseguido pela polícia, mas comercializado até fevereiro de 1931. Incentivavma os trabalhadores a se associassem à Federação e confrontarem a polícia (CRUMP, 1993). A repressão oficial aos sindicatos vinha desde a promulgação da Lei de Preservação e Polícia de 1900. Com a Kokushoku Seinen Renmei, o anarcosindicalismo passou a ter maior expressão, e participou ativamente nas greves em Hamatsu, na fábrica de Instrumentos Musicais do Japão, de abril a agosto de 1926, e em Kameiro, na fábrica Hitachi em setembro e outubro de 1926. Na fábrica de instrumentos musicais, 1.200 trabalhadores pararam por 105 dias. Em Hitachi, incendiaram a mansão do presidente da empresa, resultando na prisão de 6 integrantes da Kokuren. Como descreve Crump, a Kokuren era movida por uma luta incessante contra a urbanização, entendendo as cidades como centros de trabalho de bens necessários somente ao capitalista. Por isso, era necessário retomar a vida no campo e revoltar-se contra as cidades e contra todos aqueles que nela exercem a autoridade centralizada. Por meio do sindicato seria possível aos trabalhadores da cidade se organizarem e se associarem aos trabalhadores no campo (CRUMP, 1993). Endossando a luta da Kokuren, em maio de 1926 foi fundada a Kenkoku Jiren (Federação Libertária dos Sindicatos) em uma reunião no bairro de Asakusa, em Tóquio,

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contando com 400 delegados de 25 sindicatos no Japão. Similar a Kokuren, a Kekoku Jiren também repudiava qualquer participação na política. “Quando os sindicatos afiliados a Zenkoku Jiren se envolviam em disputas industriais, eram os militantes Kokuren que frequentemente assumiam as formas mais perigosas de ação direta, como lutar com a polícia e bombardear as casas dos patrões. A esse respeito, a relação entre Kokuren e Zenkoku Jiren tem sido frequentemente comparada à relação entre a FAI e a CNT na Espanha” (CRUMP, 1996, p. 39). Para muitos libertários a luta por meio do sindicato não se desvencilhava e nem confrontava os capitalistas. O periódico da Zenkoku Jiren, Jiyu Rengô, passou a publicar artigos de Hatta criticando o anarcossindicalismo que, por estar em contato com os socialistas, poderia facilmente se tornar reformista: “apesar do entusiasmo com o sindicalismo em sua abundância de militantes, esse gradualmente cai em um reformismo e não pode manter a concordância com o anarquismo. (...) A luta de classes requer uma maioria que não concorda com a violência de uma minoria, requer uma coesão forçada, o entusiasmo logo declinará em um reformismo. (...) Espero que os sindicatos trabalhistas avancem pelo mundo no método anarquista, não se tornem mero sindicalismo, bolchevismo ou reformismo” (HATTA, 1927, p. 378). Por sua vez, a proposta de “sociedade anarquista” para Hatta era o anarco-comunismo pautado na obra de Kropotkin, e que nomeia como anarquismo puro. A cisão entre os anarcocomunistas e os anarcosindicalistas foi acirrada com a formação do periódico Han Seitô Undo (Movimento dos Partidos Não Políticos), iniciado em junho de 1927 pelos sindicalistas. As disputadas seguiriam até a década de 1930 quando boa parte dos integrantes do periódico voltarem-se ao comunismo apoiando dos bolchevistas (CRUMP, 1993). A saúde de Hatta piorava a cada dia. Sem dinheiro para pagar o tratamento médico, retira-se das discussões e morre em 1932. Seus últimos momentos foram regados a saquê, sua bebida favorita. A Kokuren foi desfeita em 1931, enquanto isso, a Zenkoku Jiren perdia vertiginosamente o número de integrantes por conta da repressão que os seguia. Em 1933, a associação via-se somente com 2.300 membros, quando no final da década de 1920, chegara a quase 20.000 (CRUMP, 1996). Mesmo assim, as ações continuavam. Em uma greve em abril de 1930, na companhia Nihon Senjû, um sindicato filiado a Jikyô invadiu a fábrica e um de seus militantes subiu em uma chaminé e permaneceu ali por 14 dias com uma bandeira negra (TSUZUKI, 1971).

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Em uma tentativa desesperada em se rearticular, alguns anarquistas uniram-se aos socialistas para fazer frente ao fascismo japonês que ganhava força no começo da década de 1930. Fundaram o Partido Comunista Anarquista (Museifu Kyôsantô), em 30 de janeiro de 1934. Segundo Tsuzuki, seguiam o modelo proposto por Malatesta, mas, principalmente, era uma associação conspiratória, seguindo a Aliança de Bakunin e defensora do Catecismo revolucionário de Sergei Nietcháiev. Em 1897, no artigo “A organização II”, Errico Malatesta discutiu as possibilidades de organizar um partido anarquista, sendo que, por partido, entendia “o conjunto dos indivíduos que têm um objetivo em comum e se esforçam para alcançá-lo” (2008, p. 56) em que, “é natural que se entendam, unam suas forças, compartilhem o trabalho e tomem todas as medidas adequadas para desempenhar essa tarefa”. Para Malatesta, em resposta aos anarquistas individualistas, permanecer isolado era condenar-se à fraqueza, cair na inação. Esse partido não seria o seguidor de um programa ou de uma ideia transcendental até o fim de seus dias, mas fixaria “um objetivo a alcançar e um caminho a percorrer” (IDEM, p. 57). Com essa organização seria possível planejar o que seria feito, como um jornal, quem cuidaria das correspondências com outras organizações, e isso evitaria que um ou alguns se tornassem chefes. Neste partido, os integrantes estariam suficiente e espontaneamente organizados para evitar que a autoridade de um se colocasse sobre outros, dirigindo-nos à sua maneira. Ao concluir, Malatesta orienta os anarquistas que se unam a seus amigos para evitar forças perdidas, pois a desorganização torna-se um alvo para uma força exterior intervir e organizar de modo centralizado e hierarquizado. “É verdade, gostaríamos de poder estar, todos nós, de acordo, e reunir em um único feixe poderoso todas as forças do anarquismo. Mas não acreditamos na solidez das organizações feitas à força de concessões e de restrições, onde não há entre os membros simpatia e concordância real. É melhor estarmos desunidos que mal-unidos. Mas gostaríamos que cada um se unisse com seus amigos e que não houvesse forças isoladas, forças perdidas” (IBIDEM, p. 62). Entretanto, o Partido Comunista Anarquista japonês não era somente a reunião de alguns amigos que propunham se organizar para não serem um alvo, mas havia os que pretendiam orientar uma revolução. Como afirmou Tsuzuki, estava mais próximo da Aliança de Bakunin. Após a fuga de Bakunin da Rússia, passando pelo Japão, chegou a Europa. Em 1866, quando estava na Suíça, após passar por Londres e pela Polônia, fundou a Aliança Internacional da Democracia Socialista e solicitou adesão da

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organização à AIT (Associação Internacional dos Trabalhadores). A Aliança seria uma organização específica e conspiratória, que foi usada como propósito para a expulsão de Bakunin da AIT pelo Conselho Geral no congresso de Haia em 1872 (TRAGTENBERG, 2006). Essa sociedade secreta seguia o juramento da Fraternidade Internacional, fundada por Bakunin em 1864, quando esteve na Itália, e proclamava em seu juramento reproduzido por Tragtenberg a partir da obra de Fritz Brupbacher: “Juro submissão e obediência absoluta à associação internacional; assumo participar nela, provando através da atividade, zelo, observar prudência e discrição, silenciar sobre seus segredos, sacrificar meu amor próprio, minha ambição, meus interesses pessoais, colocando à sua disposição toda minha inteligência, toda minha atividade, minhas forças, minha autoridade e situação social, minha influência, minha fortuna, minha vida” (apud TRAGTENBERG, 2006, p. 34)21. A “Fraternidade” e o “Catecismo Revolucionário” escrito por Bakunin em 1866, darão os tons para sua proposta de Aliança. No “Catecismo”, Bakunin propõe uma última revolução, em escala planetária e que deverá seguir os passos que demarcou no escrito: “Não haverá mais revoluções, mas apenas a revolução universal (...) Que a santa aliança da reação mundial e a conspiração dos reis, do clero, da nobreza e do feudalismo burguês, apoiados em enormes orçamentos, em exércitos permanentes, numa burocracia formidável, armados de todos os terríveis meios que dá a centralização moderna com o hábito e, por assim dizer, com a rotina da ação e o direito de conspirar e de tudo fazer a título legal, são um fato imenso, ameaçador, esmagador, e que, para combetê-lo, para opor-lhe um fato de igual força, para vencê-lo e destruí-lo, é necessário nada menos que a aliança e a ação revolucionária simultâneas de todos os povos do mundo civilizado” (BAKUNIN, 2009, p. 65, grifo do autor). A aproximação de Tsuzuki à Aliança de Bakunin, apesar de não ter apresentado qualquer estatuto a ser seguido pelos seus integrantes, pretendia ser uma aliança secreta que preservaria o anarquismo diante do fascismo japonês. Como afirmou Hwang (2016), entre seus integrantes também havia anarquistas procedentes da Coreia, como Yi Dhongsun, Han Gukdong e Yi Suyong, sendo uma das poucas organizações em que coreanos e japoneses trabalharam juntos.

21 É possível encontrar o programa completo da Fraternidade Internacional no terceiro tomo da edição organizada por Nettlau cotendo as obras de Bakunin.

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John Crump, ao detalhar um pouco mais as atividades do grupo, indicou que os integrantes eram escolhidos a dedo e cada um recebia a sua tarefa. A estratégia principal era a de se infiltrar em outros grupos de anarquistas tanto para direcionar suas decisões, como para conseguir outros adeptos. Quando concluíssem sobre os mais destacados, estes entrariam para a organização. Seguindo as orientações de Sergei Netcháiev22 em seu “Catecismo”, os integrantes não podiam ter laços familiares e deviam se manter disciplinados diante de uma decisão fosse tomada, sem questioná-la (CRUMP, 1993). Os integrantes do Partido Comunista Anarquista se propunham a criar condições para tornar possível uma revolução, pois acreditavam que os japoneses não seriam capazes de fazê-lo. Entretanto, quando iniciada uma revolução, esperavam que as massas realizassem atividades anti-autoritárias, e só assim dariam o primeiro passo. Porém, se houvesse a possibilidade de algumas pessoas se entregarem a um “representante”, os anarquistas deveriam assumir a liderança para evitar a constituição de um novo governo. Sendo assim, e inspirados no autoritarismo bolchevista, só os integrantes do partido poderiam garantir a revolução (IDEM). Porém, um partido sendo sempre um partido, a paranoia tomou conta dos integrantes do Partido Comunista Anarquista e as possibilidades de traição cultivavam desconfianças. Futami Toshio atirou em Shibahara Junzô, desconfiando que este era espião da polícia. Pouco tempo depois, Futami e Aizawa assaltaram um banco para financiar o Partido. O assassinato e o roubo levaram à descoberta da organização e à prisão de Aizawa Hisao que, preso e torturado, confessou e revelou o funcionamento do Partido Comunista Anarquista. Ao final de 1935, uma nova ação da polícia prendeu 400 anarquistas e no começo do ano seguinte seriam mais 300 presos (TSUZUKI, 1971). Os que conseguiram escapar, tentariam se rearticular ao final da guerra. Porém, muitos outros sumiram sem deixar qualquer vestígio, alguns morrendo no anonimato, outros na prisão, ou atingidos por tiros e bombas, ou assassinados pela polícia.

22 Netchaiev destaca 26 pontos para guiar o verdadeiro revolucionário: “O revolucionário é um homem condenado. Ele não possui interesse pessoal algum, nenhum negócio, nenhuma emoção, nenhum vínculo, nenhuma propriedade e nenhum nome. Tudo nele é completamente absorvido num único pensamento e numa única paixão pela revolução” (2007, p. 81). Como destacou o Nu-Sol em nota introdutória a publicação do catecismo na revista verve (n. 11), Netcháiev é a constatação do risco da tirania, do intelectual que fala em nome de alguém e que se diz o portador da consciência para guiar a vida dos outros.

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a devoção dos súditos

A década de 1930, com o sufocamento da Comuna Shinmim, iniciava-se com a perseguição aos anarquistas, e o crescimento em progressão geométrica da militarização do Japão. No início de 1932, foram executados o ministro das Finanças, Junnosuke Inoue, e o diretor da empresa Mitsui, Dan Takuma. Ambos deveriam ser assassinados conjuntamente com outros 11 políticos e empresários, acusados de serem liberais. O evento ficou conhecido como Incidente da Liga de Sangue e perpetrado por integrantes da Ketsumeidan (Irmandade de Sangue). Tal grupo era formado por militares e civis sob a liderança do monge budista Inoue Nisshô. Pretendiam executar políticos e empresários que eram a favor do estabelecimento de relações diplomáticas com outros países ou que haviam enriquecido com a abertura dos portos (HANE, 2018). Em 15 de maio daquele ano, o Primeiro-Ministro Inukai Tsuyoshi do Partido Liberal foi assassinado por suas tentativas em retirar o exército de Kwantung da Manchúria e abrir negociação com o governo chinês. Onze oficiais da Marinha invadiram sua casa e tentaram dar continuidade aos planos da Ketsumeidan. O plano original incluía a execução de Charles Chaplin, que visitava o país e estava hospedado na casa de Inukai. Mas, no momento do ataque, ele estava assistindo a uma luta de sumô com o filho do Primeiro-Ministro (IDEM). Este foi só um dos outros tantos assassinatos justiceiros que se seguiriam em nome da nação. Em 1935, foi executado o General Nagata. No ano seguinte, Lorde Saito, o Ministro das Finanças e o General Watanabe; o Primeiro Ministro Okada também sofreu um atentado, que não obteve sucesso. Com o assassinato do primeiro ministro, o Partido Liberal indicou seu líder para assumir a posição: Suzuki Kisaburo. Entretanto, ele não era bem visto pelo conselho de anciãos – os responsáveis por aprovar o candidato para que esse ocupasse o cargo de Primeiro-Ministro. Assim, o Partido Conservador indicou a , o mais importante dos anciãos, um general aposentado, Saito Makoto, nomeado imediatamente. O Imperador Hiroito não realizava nenhuma intervenção mais enérgica na política japonesa. Segundo Hane, havia o temor de uma desobediência que causasse um abalo sem precedentes à instituição imperial. Os efeitos da investida militar foram sentidos rapidamente no governo, com a piora da condição de vida da população e a corrida desenfreada por recursos naturais para manter a indústria bélica.

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Segundo Hane, Saito Makoto adubou o governo para os militares tanto para o âmbito interno, com a perseguição aos “pensamentos perigosos”, quanto no externo com a invasão da Manchúria e a saída do Japão da Liga das Nações. O amor ao Imperador era insuflado na perseguição a anarquistas, comunistas e liberais. Simultaneamente, reforçava-se a propaganda a favor dos “jovens patriotas”, como ficaram conhecidos os 11 oficiais da Marinha que executaram o ex-Primeiro-Ministro Inukai. Foi realizada uma campanha para que os rapazes fossem soltos, sendo recolhidas mais de 1 milhão de assinaturas a seu favor (IBIDEM). Ao final do julgamento, os 11 foram condenados à pena capital. Entretanto, com a chegada da petição à corte e uma carta de 11 jovens de Niigita que solicitavam ser executados no lugar dos oficiais, fez com que a pena fosse comutada para alguns anos de prisão (IBIDEM). Para João Bernardo havia duas alas fascistas no Japão, uma chamada de fascismo radical e outra conservadora. Os radicais pretendiam dirigir todas as forças do país para os investimentos militares em direção ao expansionismo territorial; para isso, a economia seria controlada pelo Estado e, com o fim do parlamento, composto principalmente por empresários, os militares teriam acesso direto ao Imperador. Já o fascismo conservador mantinha alianças com o empresariado, sendo o principal grupo a família Mitsubishi; defendiam a redução das despesas militares para promover políticas conciliatórias com a China e manter o controle da Manchúria. Os adeptos desta vertente apoiavam as medidas de perseguição e repressão às associações operárias ou a qualquer um que falasse em anarquismo ou socialismo. Assim, estavam duplamente satisfeito, com o governo assumindo a responsabilidade em controlar os revolucionários e uma possibilidade de ampliar os negócios para toda a Ásia (BERNARDO, 2018). As ideias da última ala não ganharam muitos adeptos entre os trabalhadores. No decurso da crise no final da década de 1920, muitos pequenos empresários faliram, tendo de vender suas propriedades a baixo valores para os grandes grupos empresariais. Assim, sob o lema da expansão territorial e o desmantelamento dos empresários, o fascismo radical proliferava, atraindo até mesmo socialistas: “Através de uma ampla penetração na oficialidade mais jovem, as associações patrióticas conseguiram agitar o centro da vida política (...). A ousadia dos planos terroristas de inspiração militar aumentou e era cada dia mais frágil a segurança dos governos civis, sem que os conspiradores ou mesmo os assassinos fossem punidos, salvo com penas ligeiras. E a convicção pública de que a ala radical do fascismo iria encetar reformas econômicas e sociais foi decerto reforçada na

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primeira metade da década de 1930, quando os próprios partidos socialistas, onde se reunia o operariado esclarecido, geraram facções internas que evoluíram em direção ao fascismo e passaram a apoiar as posições nacionalistas da ala militar mais extrema” (IDEM, p. 161). Os militares também estavam divididos em duas facções. A primeira era a Kôdôha (Via Imperial), fundada por Araki Sadao, que fora Ministro da Guerra na década de 1930, e depois seria Ministro da Educação até durante a Guerra, quando apoiou o General Ishii Shiro que comandava os testes biológicos no centro de pesquisa de guerra, a Unidade 731. A Kôdôha propunha uma restauração que retomasse as reformas Meiji, e que enfatizasse a instituição imperial em detrimento do parlamento e dos partidos. Para as relações externas proclamavam o anticomunismo, a guerra contra a Rússia e a quem estivesse sob sua influência, e uma aliança com outros países da Ásia em que o Japão seria a liderança principal (SAITO, 2012). A segunda era a Tôseiha (Controle) que defendia uma preparação do Japão para uma guerra mundial e defendia reformas militares, a população disciplinada e a expansão territorial. No âmbito da economia, seus adeptos queriam a continuidade da aliança entre o Estado e os empresários, com uma rigorosa prestação de contas. “O objetivo dos militares da Controle não era transformar a estrutura econômica, mas controlá-la” (BERNARDO, 2018, p. 162). Assim, a ala da Kôdôha encontrou-se com os anseios dos fascistas radicais. Em fevereiro de 1936, o escritor Kita Ikki organizou junto com os militares um golpe militar. Os membros da Kôdôha ocuparam parcialmente Tóquio e realizaram inúmeros assassinatos de políticos e militares. Entretanto, não ampliaram apoios e nem tinham condições financeiras para se manterem. Renderam-se e, desta vez, 18 foram condenados à pena capital, incluindo Kita. Saindo deste processo completamente desacreditados, a Tôseiha e o fascismo uniram-se e proliferaram. Com uma única facção, professando a vitória sobre os rebelados, passaram a exercer sobre os militares e sobre a vida civil uma tutela cada dia mais completa, graças à aliança que mantiveram com a burocracia imperial, por um lado, e, por outro, com o grande capital, incluindo os administradores dos maiores grupos empresariais e seus representantes políticos. No começo de 1940, o reacionarismo fascista ganhou mais força com a criação do partido único. Os partidos aceitaram e dissolveram-se.

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Nas universidades, também ocorreram perseguições. Já em 1925, mais de mil estudantes foram presos para serem investigadas as relações com os socialistas. Em 1933, Takikawa Yuikitoki, um professor de direito na Universidade Imperial de Quioto, foi demitido por ter escrito que as injustiças sociais seriam propulsoras dos crimes. Entretanto, as prisões aumentariam ao final da década de 1930, e seguiriam até o final da Guerra (SHILLONY, 1986). Antes, as universidades realizavam concursos para a contratação dos professores, o Ministério da Educação depois as aprovava, e por fim, o Imperador era informado da decisão. Quando em 1937, o General Araki Sadao assumiu o ministério, afirmou que esse tipo de contratação atingia a soberania do Imperador, entretanto inúmeras manifestações de repúdio forçaram o General a voltar atrás (IDEM). A todos os professores foi ordenado que observassem qualquer manifestação de “pensamentos radicais”, “práticas corruptas ocidentais” ou “ideologias comunistas”. Para garantir o funcionamento, o Ministério da Educação designou oficiais militares para as escolas, que ficavam nas salas de aula supervisionando a aplicação do Kokutai e verificando o andamento dos cursos obrigatórios de treinamento militar para as crianças (JONES, 1990, p. 81). Toda manhã, em qualquer escola, uma parte do Kokutai deveria ser lido, e as crianças deveriam bradar em seguida: “Tenno heikai banzai” (Morrer pelo imperador!). Nas escolas cristãs, os vidros coloridos das janelas foram removidos sob a alegação de que a imagem de Cristo, olhando para baixo, era entendida como uma ofensa à tribuna sagrada, onde estava uma cópia do Kokutai (IDEM). Qualquer pessoa que cogitasse modificar o Kokutai ou fazer alguma outra interpretação era passível de prisão e interrogado pelos meios “poderosos para descorbertar os suspeitos” que a polícia do pensamento utilizava. Como não havia habeas corpus e estava em vigência o código penal desde a Era Meiji, as pessoas “desapareciam por um tempo” ou mantinham suas opiniões e histórias em silêncio (IBIDEM, p. 84). Para Jones, o forte contorno militar que o Kokutai ganhou na década de 1920, deve-se também às reformas de Kiichiro Hiranuma, o procurador, conhecido por exigir a pena de morte para os 25 acusados no Incidente de Alta Traição que culminou no enforcamento de Kanno Sugako, Kôtoku Shusui e mais 10 companheiros. No ano

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seguinte às execuções, e início do Período Taishô (1912-1926), Kiichiro foi nomeado procurador-chefe do Japão – detinha o controle quase completo sobre os tribunais –, e tornou-se consultor constitucional do trono em 1921. Quando ocupou esse cargo, ordenava quais seriam as punições e os tratamentos para os que fossem considerados um perigo aos ensinamentos do Kokutai. Como filho de samurai, reiterava que lealdade e devoção ao trono eram obrigações fundamentais, acreditava que os ensinamentos ocidentais tinham corrompido a moralidade da nação japonesa. A fiscalização do Kokutai não ocorria somente pelo governo. Inúmeros grupos de nacionalistas devotos foram fundados. Desde 1901 a Aikoku Fujinkai (Associação de Mulheres Patrióticas), composta por ricas esposas de militares e de integrantes do governo, estava em funcionamento sob a supervisão do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde e Bem-Estar. Em 1932, a Organização de Mulheres da Defesa Nacional de Osaka alterou seu nome para Dai Nippon Rengo Fujinkai (Federação dos Grupos de Mulheres do Grande Japão), sob a supervisão do Ministério da Educação. Suas integrantes eram esposas do recente empresariado japonês e de comerciantes. Ganhou notoriedade por realizar campanhas de doação monetária para apoiar a guerra e por enviar imonbukuro (sacolas de conforto) aos soldados que invadiam a Manchúria, contendo frutas secas, produtos de higiene pessoal, doces e cartas com finalidade de encorajá-los. Durante a II Guerra, os alunos tiveram como atividade escolar escrever essas cartas para enviar aos soldados no front. Nos anos subsequentes, as mulheres da Dai Nippon Rengo Fujinkai usavam como uniforme aventais de cozinha, opondo-se aos luxuosos quimonos das senhoras pertencentes a Aikoku Fujinkai, e pretendiam, segundo Vera Mackie (2003), mascarar as diferenças sociais. Nesses trajes serviam chás e comida aos soldados que estavam indo para a Guerra, entoando seu lema: “Kokubô wa daidokoro kara” (“a defesa nacional começa na cozinha”) (p. 104). Em 1932, foi fundada a Dai Nippon Kokubo Fujinkai (Organização Nacional de Defesa das Mulheres do Japão), com supervisão dos Ministérios do Exército e da Marinha. Realizavam comemorações e desfiles de despedida com cartazes com os nomes dos recrutas para desejar sorte aos que iam para a guerra. Comumente os shusei nobori (banner de sorte) carregavam a inscrição “parabéns por ter sido convocado”. No Japão entre a década de 1920 e até o final da II Guerra Mundial, as mulheres estiveram proibidas de formarem associações políticas – como a Serikankai – ou de irem a reuniões políticas, mas podiam formar grupos patrióticos e de assistência aos militares sob supervisão dos ministérios.

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Em 1942, esses três grupos de mulheres e outros de menor expressão foram fundidos na Organização de Mulheres do Grande Japão (Dai Nihon Fujinkai), chegando a 20 milhões de integrantes. Na união, segundo o site do ministério da educação, cultura, esportes ciência e tecnologia do Japão 23, comprometeram-se a cultivar o Kokutai, a propagar as virtudes femininas, e importância da defesa nacional, a purificação da vida familiar, o disciplinamento dos jovens, a promoção da educação doméstica, o encorajamento dos soldados, treinamento para a defesa nacional, serviço à nação por meio da execução das tarefas, cooperação entre vizinhos... No ano seguinte, lançaram quatro princípios para “energizar todas as mulheres nos esforços para a guerra”: levantar o moral dos soldados no campo de batalha; adotar um estilo de vida simples para conservar os recursos e ganhar a guerra; elevar os níveis de produção; dar apoio aos militares. Uniam-se às organizações de mulheres, as tonari-gumi (associações de bairros) que integravam a Taisei Yokusankai. Eram constituídas entre 10 a 15 famílias que se organizavam para combater incêndios e a segurança local. Existentes desde antes do período Edo, foram formalizadas em 1940 para organizarem o bairro para a guerra e também eram responsáveis pela distribuição da propagada do governo e por coordenar os comícios de saudação ao Império. Qualquer casa que recusasse participar das atividades, ou tentasse esconder um dos filhos para não ir a guerra era rapidamente identificada e denunciada (PEKKANEN, 2006). As tonari-gumi mantinham ligações diretas com a Polícia Tokkô para delatar qualquer ação que infligisse o Kokutai e sobre a formação de qualquer grupo político. Com o transcorrer da guerra, as unidades tonari-gumi foram implementadas também nas colônias, como em Manchuko, e passaram a receber treinamento militar para capacitá-las a lutarem no caso de confrontos na cidade. Quando da ocupação estadunidense, eram cerca de 210.000 tonari-gumi, e foram todas abolidas. Entretanto, elas existem ainda hoje, com o nome de chônaikai, uma organização de bairro, formada por voluntários e sem relações com o governo: são responsáveis por organizar o bairro em caso de algum desastre ambiental (PEKKANEN, 2006). As tonari-gumi assemelham-se aos inspetores de quarteirão no Brasil, instituídos na Constituição do Império em 1824. Estes vigiavam uma área de três quadras, podendo fazer investigações com delações, intrometer-se em conflitos entre vizinhos e até efetuar

23 Ministério da educação, cultura, esportes, ciência e tecnologia do Japão. Disponível em: http://www.mext.go.jp/b_menu/hakusho/html/others/detail/1317405.htm. Acesso em 12/02/2019.

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prisões em flagrante. Aqueles que ocupavam essa posição não precisavam passar por exame de seleção, mas eram escolhidos tanto por serem admirados pelas pessoas dos bairros, como também por obter alguma influência que o indicasse ao cargo (BATTIBUGLI, 2006). No Brasil, já no século XX, desde o fim do Estado Novo em 1945, os inspetores de quarteirão estão subordinados à Polícia Civil dos estados, passando a ser subordinados aos delegados. Durante a ditadura civil-militar no Brasil, o estado de São Paulo delimitou quais seriam as obrigações dos inspetores de quarteirão, em suas atribuições constavam: elaborar um cadastro do quarteirão e informar à polícia qualquer mudança que julgasse necessária; conter pessoas embriagadas ou que causassem algum tipo de turbulência; e informar a polícia sobre qualquer contravenção ou sobre a permanência de algum suspeito no quarteirão24. Hoje a função ainda existe, no estado de São Paulo, o último decreto para sua regulamentação é de 2013, em que as mesmas atividades do período ditatorial são mantidas25. No Japão, fundada em 1887 nas áreas rurais e organizada nacionalmente em 1924, havia uma associação para jovens reconhecida pelo governo como a Dai Nippon Seinen Dan (Organização dos Jovens do Grande Japão), que ganhou tons militares e patrióticos em 1934. Na década de 1930, chegou a contar com 14 milhões de integrantes. As crianças faziam trabalhos voluntários voltados aos valores promulgados pelo Kokutai, sempre tendo em vista a guerra (ALTER, 2011). Esses grupos emergiram entre a Era Meiji e a Showa, principalmente durante o governo de Saito, que se estendeu até 1934, mas foram impulsionados por Okada Keisuke, integrante da Marinha, indicado para assumir o governo por Saito, apoiado por Saionji, do conselho de anciãos do Estado, como escolha unânime entre os ex-Primeiros Ministros e a Câmara Alta. Entre suas medidas estava o aumento do investimento na Marinha, rompendo o tratado naval de Washington26 (SAITO, 2012). Okada preparava-

24 Ver: Decreto n . 6.746, de 16 de setembro de 1975, Reorganiza a função de inspetor-de-quarteirão. Disponível em: http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1975/decreto-6746- 16.09.1975.html. Acesso em 12/12/2018. 25 Ver: Decreto n. 59.220, de 22 de maio de 2013, Cria e organiza, na Polícia Civil do Estado de São Paulo, o Departamento de Polícia Judiciária de São Paulo Interior. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/2013/decreto-59220-22.05.2013.html. Acesso em 12/12/2018. 26 O Tratado de Washington foi firmado em 1922 entre os vencedores da I Guerra Mundial: Império Britânico, EUA, Império do Japão, República Francesa e Reino da Itália. As tonelagens dos navios de guerra foram delimitadas para cada país.

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se para uma guerra total e estabeleceu a Secretaria de Pesquisa do Gabinete, encarregados de fazer projetos de lei para incentivar economicamente a produção de armas. Em 1937, uma organização nacionalista para jovens foi fundada pelo coronel Hashimoto Kingorô, fundador da Sakurakai e um dos protagonistas na tentativa de golpe anos antes. A Dai Nippon Sekisei-kai (Associação da Sinceridade do Japão) assemelhava- se à Juventude Hitlerista da Alemanha Nazista. A primeira manifestação do grupo ocorreu ao redor do Santuário Meiji no centro de Tóquio e contou com mais de 600 integrantes. Entre suas principais atividades estava ensinar primeiros socorros e treinamento com armas. Entretanto, como Hashimoto não dispunha de muita confiança do governo, a organização seria diluída na Dai Nippon Seinen Dan (ALTER, 2011). Como recorda Katarzyna Joanna Cwiertka em Modern Japanese Cuisine: food, power and national identity, outra organização de jovens foi a Hinomaru bentô (Lancheira do sol nascente), criada também em 1937, por um grupo de jovens garotas em uma escola de Hiroshima. Faziam marmitas de arroz branco, tendo ao centro uma umeboshi (uma ameixa em conserva), simbolizando a bandeira japonesa. A vida militar estava presente na alimentação e a marmita patriótica ainda consagrava os valores professados de conservação dos recursos durante a guerra. Em 1939, a ideia foi adotada em todas as escolas do país enaltecendo a unidade da mobilização nacional. Todas as segundas-feiras, a alimentação na escola deveria ser composta somente por esses dois itens em apoio aos soldados que estavam na China. Depois de 1941, a realidade de boa parte da população já não era a mesma, o arroz tornou-se um alimento luxuoso no menu e, desde 1940, os restaurantes de Tóquio ficaram proibidos de servirem pratos com arroz. O conhecimento de como se alimentar com poucos recursos foi incentivado: “a propaganda do Estado elevou o conhecimento de comer saudável a um baixo custo para uma virtude patriótica” (CWIERTKA, 2006, p. 119) e cabia aos militares dar os exemplos de uma alimentação eficiente, sendo pouca, saudável e que levasse à longevidade. As escolas secundárias adotaram um novo currículo a partir de 1943, modificaram o currículo da disciplina de economia doméstica que passou a ser dividida em quatro categorias: administração da casa, criação de crianças, vestimentas e preservação da saúde. A alimentação estava inclusa nesse último item, envolvendo meios nutritivos e econômicos na preparação de comidas. No caso do ensino de ciências, o novo currículo ensinava por meio do manual de cozinha militar os valores nutricionais de cada alimento. Segundo Cwiertka foi a instrução alimentar durante a guerra que possibilitou aos japoneses sobreviverem após a rendição quando a escassez de alimentos perdurou por mais alguns

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anos. Entretanto, milhares de crianças morreram de fome e desnutrição no pós-guerra. Enquanto as ferrovias do Japão eram reconstruídas e as cidades retomavam seu funcionamento, muitas crianças ficaram abandonadas nas estações tentando praticar alguns furtos, pedindo alimentos ou alguns trocados de ienes. Ao final do dia, os zeladores das estações passavam recolhendo os corpos daquelas que não aguentaram27. A anarquista Toda Misato, nascida em 1933, passou pelo massacrante ensino militarista japonês pré-guerra. Recordou desse período: “Vou contar-lhe minhas experiências pessoais. Quando eu estava na escola primária, acreditava no que me era ensinado: que o Japão era um país de deuses e Tenno [Imperador] um tipo de deus. Nessa época, meninos e meninas eram persuadidos de que deveriam morrer por Tenno porque eles eram todos crianças (sekishi) de Tenno; portanto, era natural dedicar sua vida a Ele sem nenhuma hesitação. Do mesmo modo psicológico, os jovens deveriam ir ao campo de batalha morrer como Kamikaze (o vento dos deuses)” (TODA, 2003, p. 165-166). As crianças, entendidas como súditos em crescimento, deviam cooperar com a guerra, buscar a vitória e vangloriar seus parentes mortos. A qualquer um que questionasse a existência do Imperador ou, a necessidade da guerra, era tido como antipatriótico e punido com surras para ser exemplo a todos os outros. Em 1937, intensificaram-se os investimentos em propaganda. O Ministério da Educação então lançou um dos principais panfletos que circularam na época: o Kokutai no hongi (Fundamentos da Política Nacional). Foi escrito por educadores para serem aplicados nas escolas. Ao todo, eram 156 páginas estabelecendo a essência do povo japonês. A tiragem inicial foi de 300.000 exemplares, posteriormente, bateria a marca de dois milhões de impressões. Em sua introdução apresentava: “Vários males ideológicos e sociais no Japão atual são resultado de ignorar o fundamental e correr ao trivial; da falta de julgamento e da falha em digerir as coisas completamente. Isso ocorre desde os dias de Meiji, quando muitos aspectos da cultura, do sistema e do aprendizado europeu e estadunidense foram importados rapidamente” (JAPÃO, 1937, p. 1). Entre esses novos pensamentos que chegaram ao Japão, segundo o Kokutai no hongi também estavam as ideologias: “As concepções paradoxais e extremas, como o socialismo, o anarquismo e o comunismo são baseadas, em uma análise final, no individualismo, que é a raiz das ideologias modernas ocidentais e das quais elas não são

27 Essa imagem era recorrente pelo Japão, foi retratada no filme Hotaru no Haka (Túmulo dos vagalumes) (1988) de Takahata Issao. Conta a história de dois irmãos que tentam sobreviver após o bombardeio da cidade de Kobe.

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mais do que manifestações variadas. No entanto, mesmo no Ocidente, onde o individualismo formou a base das ideias, quando o comunismo chegou, eles o acharam inaceitável. Agora eles estão prestes a se desfazerem de seu tradicional individualismo, e isso levou ao surgimento do totalitarismo e do nacionalismo, e ao surgimento do fascismo e do nazismo. Ou seja, pode-se dizer que tanto no Ocidente como em nosso país, o impasse do individualismo levou a uma temporada de crise e confusões ideológicas e sociais. (...) Isso significa que o presente conflito nas ideias de nosso povo, a agitação de seu modo de vida, o estado confuso de sua civilização, podem ser corrigidos com uma investigação completa por nós da natureza intrínseca das ideologias ocidentais e por uma compressão do verdadeiro significado do Kokutai no hongi. Então, isso deve ser feito por uma questão não só da nossa nação, mas também em uma luta pela raça humana que está procurando uma saída para esse individualismo o qual se depara” (JAPÃO, 1937, p. 2). Um dos pontos destacados no Kokutai no hongi era a harmonia, constitutiva do japonês desde os primórdios: “Quando traçamos os dados da fundação de nosso país e o progresso de nossa história, o que sempre encontramos é o espírito de harmonia. Harmonia é um produto das grandes conquistas da fundação da nação e é o poder por trás do nosso crescimento histórico. É também um caminho da humanidade inseparável de nossa vida cotidiana. O espírito de harmonia nos guia na concordância de todas as coisas. Quando as pessoas encaram com determinação seus mestres e afirmam seus egos, não há mais nada a não ser contradição e a luta de um contra o outro; e a harmonia não é criada. (...) Esta é uma sociedade de individualismo, é um dos confrontos entre o povo (...) e toda a história pode ser considerada como uma guerra. A estrutura social e o sistema político de uma sociedade, e as teorias da Sociologia, Ciência Política, do Estado são as manifestações lógicas dessa guerra, são essencialmente diferente de nosso país, que tem a harmonia como o seu Caminho” (JAPÃO, 1937, p. 4). Portanto, segundo o Kokutai no hongi, no Ocidente onde o individualismo é guia, só pode haver guerra. Diferente do que ocorreria no Japão, um país de harmonia, que deveria também guiar a Ásia nesse rumo, a harmonia estaria entre os súditos e na pretensão de leva-la para o restante do planeta, como professava a recente Era Showa. Com a vigência do Kokutai no hongi até mesmo as escolas mudaram de nome para kokumin gakko (escolas nacionais) e o currículo foi reelaborado para ser moldado às ideias nacionalistas. O ensino obrigatório iria até os 13 anos de idade, depois a criança deveria continuar a estudar ou colaborar de alguma maneira com a guerra. Muitos escolheram a segunda opção, e aqueles que preferiam estudar, entretanto, tinham aulas de

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treinamento militar para servirem futuramente. Até 1945, todo o currículo foi abandonado e substituído por atividades consideradas úteis para uma vitória na guerra (ALTER, 2011). Como na Era Meiji, a instrução escolar atingiu grande parte das crianças; e tornava-se um dos principais canais para a educação nacionalista. Segundo Klaus Antoni (1991), os livros eram repletos de sakura (flores de cerejeiras) símbolo do Japão, com comentários a respeito do aniversário do Imperador, e imagens com as vitórias dos militares. O trabalho de Antoni apresenta o conto infantil Momotarô (menino pêssego) na instrução nacionalista. Momotarô, uma criança que nasceu de um grande pêssego encontrado por dois velhinhos que decidem criá-lo. Alguns anos depois, os demônios começaram a atacar a ilha em que morava. Momotarô, acompanhado de um cachorro, um macaco e uma ave vão até a ilha dos demônios e os enfrentam, saindo vitoriosos. A criança retorna a casa dos velhinhos que o esperavam ansiosamente. Um filme de 1942, Momotarō no Umiwashi (Águias do mar de Momotarô), colocava o menino como o líder de uma “tropa divina do oriente” (ANTONI, 1991, p. 165), e profetizava a libedade do povo do sul da Ásia de seus inimigos e opressores. O inimigo era um humano que morava no Havaí – palco do ataque japonês a Pearl Harbor –, falava inglês britânico e na batalha deixava seus chifres aparecerem atestando ser o demônio. Outra versão para o cinema foi Momotarô umi no shinpei, em que a criança se tornou capitã da aeronáutica Imperial e comandava os animais para vencer os demônios, além de apresentar a rotina dos militares recebendo suas sacolas de conforto, lutando pelo Império e pela nação. Ao final, mostrava a rendição dos ocidentais que tremem diante de Momotarô, das armas e da bandeira imperial. O filme foi amplamente exibido aos militares e Momotarô, então, passava a ser a expressão do espírito japonês na guerra. Esses princípios também foram disseminados nos jornais. Enquanto a imprensa libertária em sufocada em perseguições, o jornal Teikoku Shimpo publicou no dia 18 de setembro de 1938: “todos os pecados são perdoados se se fizer um ato a serviço do Imperador”, e se o ato for o sacrifício, tornar-se-iam deuses menores ao lado do Imperador e seriam adorados em santuários (apud, JONES, 1990, p. 100). O rádio também foi submetido ao controle governamental. Os instrumentos comunicação foram fortemente controlados e monitorados pelo governo japonês e deviam servir como instrumentos para a difusão dos valores do Kokutai no hongi (SAITO, 2012, p. 57). O discurso do chamado “pensamento perigoso” foi enunciado ao mesmo tempo em que atividades propagandísticas dos “jovens patriotas”, cúmplices do assassinato de

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Inukai, se expandiram (IDEM, p. 79). Além da perseguição aos intelectuais, houve uma pronunciada censura à informação internacional, não deixando alternativa para a imprensa em geral, restrita às notícias locais. Foi estabelecida uma Secretaria de Pesquisa do Gabinete que, entre outras ações, encarregava-se de elaborar leis voltadas a restrição dos direitos e liberdades civis (IBIDEM). Os sindicatos patronais obedeciam à ordem e à disciplina militares. Apesar de se constituírem em um sindicato, na prática eles eram uma modalidade de milícia. Esses agrupamentos possuíam como principal função a perseguição e a eliminação de pessoas ou grupos sindicais subversivos, fossem eles socialistas, grevistas, enfim, esquerdistas de modo geral (SAITO, 2012, p.88). A propaganda tinha um caráter punitivo e de restrição para convencer o povo japonês a manter um estilo de vida direcionado para o esforço bélico e suportar os sacrifícios necessários pelo bem da nação. Havia um controle sobre a mídia, sobre os fluxos de informação, havia censura. O xintoísmo de Estado e as programações escolares promoviam os preceitos para a estruturação do Estado fascista, pautado na crença da origem divina do imperador. A família que havia enviado todos os seus filhos à guerra deveria ser enaltecida. Quando um jovem servia às forças armadas reafirmava sua ligação com o Imperador e seus atos eram considerados “perfeitos e acima de qualquer reprovação”, pois o sangue daquele estava em todo homem. Ser um soldado era contribuir e ser parte da conquista. As batalhas travadas pelo Japão eram comemoradas e exaltadas. Com base no Kokutai no hongi louvava-se a disciplina dos militares e a sua indisponibilidade em render-se. O panfleto Senjinkun (Instruções para o campo de batalha) era distribuído entre as tropas professando a veneração ao Kokutai: as boas maneiras de um soldado, como deveria venerar e referir-se ao superior, seguir a disciplina, ser honroso, e proibia a rendição ou a retirada em uma batalha. Nos últimos anos da guerra, o Senkinkun também foi distribuído entre os grupos patrióticos para o caso de uma invasão (SAPP, s/d). Esse documento era acompanhado do Gunjin Chokuyu (Rescrito Imperial para Soldados e Marinheiros), instituído em 8 de janeiro de 1882, na Era Meiji, e traçava um histórico dos militares japoneses, promulgava a obediência aos superiores e enaltecia a lealdade das tropas ao Imperador. Ao final do documento lia-se: “o dever é mais pesado que uma montanha: a morte é mais leve que uma pena” (FELTON, 2015, s/p).

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Jones (1990) relembra o General Hideki Tojo, que na conclusão do código de Campo Militar em 8 de janeiro de 1941, ordenou: “Nunca morra em desgraça, esforce-se para satisfazer o desejo do grupo familiar; não viva para suportar a vergonha de ser aprisionado pelo inimigo [...]. É um crime ser capturado (vivo ou inconsciente) enquanto existem meios para resistir” (apud JONES, 1990, p. 100). Render-se não era uma opção, e nos grupos de mulheres, muitas mães comemoravam a morte de seus filhos kamikazes que eternizariam seus nomes no Império japonês. No caso dos capturados, fracassavam em cumprir seus destinos, merecedores de desprezo por falharem no dever com o Imperador. Um dos casos de guerra para evitar a vergonha: quando um hospital do exército japonês estava prestes a ser invadido, os médicos correram pela enfermaria atirando nos soldados japoneses feridos para não terem de passar pela vergonha em falhar (JONES, 1990; NAKAZAWA, 2011-2016). Enquanto as proporções de perda para os aliados era de 4 capturados para 1 morto, os japoneses tinham 120 mortos para cada um capturado. Taxa que se elevava pelos suicídios e execuções momentos antes de serem capturados (JONES, 1990). Na negação das possibilidades de rendição em 1945, formou-se a Kokumin Giyû Sentôtai (Corpo de combate voluntário) e muitas mulheres dos grupos nacionalistas aderiram. Com a assistência do Taisei Yokusankai, o tonari-gumi e a Dai Nippon Sekisei- kai, convocaram todos os homens dos 12 aos 60 anos e todas as mulheres dos 17 aos 40 anos para treinamentos militares em caso de invasão. Ao todo, 28 milhões de pessoas teriam recebido treinamento, mas não foram às batalhas. O Japão se renderia antes e a devoção ganharia outros rumos para a reconstrução e obediência à ocupação estadunidense.

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novas lutas

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as bombas e a humanização do Imperador

Em agosto de 1945, o governo japonês se recusava a render-se mesmo após a promulgação da Declaração de Postdam, em que EUA, Grã-Bretanha e China ameaçavam o Japão de pronta e total destruição. Os aviões B-29 banhavam de sangue as cidades e o exército japonês era derrotado consecutivamente. Seguindo a educação do Kokutai, muitos optavam por suicidar-se quando os militares dos EUA venciam uma batalha, cantando os versos da música “Umi yukaba” (“Ao mar”), entoada muitas vezes antes dos aviões kamikaze decolarem: “Ao mar, morrerei na água Ao monte, morrerei na grama Morrendo aos pés do meu senhor, Arrependimento não deixarei”1. Em 1º de abril de 1945, em Okinawa, ilha ao sul do país, a última fortaleza do Japão começou a ser conquistada pelos EUA. Quase toda a população foi dizimada. Foram cinco ondas de ataque dos caças que decolavam do sul e leste do Japão, já ocupados pelas tropas estadunidenses. Das bases localizadas no interior da China vinham bombardeios, incendiando cerca de 90% da ilha, seus antigos monumentos e documentos históricos foram destruídos. As tropas japonesas na região foram mobilizadas e os residentes de Okinawa foram obrigados a abandonar e ceder suas casas para abrigar os militares (OKUBARO, 2008). Cada um escondia-se onde era possível. Nos arredores do castelo de Shuri, que fora quase completamente destruído por bombardeios, ainda existem pequenos túneis cavados por famílias que tentavam proteger-se. A chuva de kamikaze, normalmente formada por jovens universitários, não conseguiu deter as tropas estadunidenses, causando poucas baixas do outro lado. No dia 5 de abril as tropas estadunidenses tinham tomado a parte central da ilha e começaram a se movimentar, em direção às montanhas do norte e para o sul. O norte foi tomado rapidamente, resultando na morte de 12 mil soldados (OKUBARO, 2008). A estratégia do general Ushijima era a de concentrar suas forças no sul da ilha e repelir os estadunidenses na praia com a preparação de abrigos antibombas e trincheiras e o uso das cavernas. Sabia que não era possível suportar os ataques da marinha e

1 Durante a ocupação estadunidense a música foi censurada. Hoje esse veto não existe mais e é entoada pela Força de Defesa Marítima japonesa. Canção disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sd6YpZ- C9y0.

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aeronáutica estadunidense, principalmente após, em 6 de abril, quando o encouraçado Yamato, o maior navio de guerra até então construído, afundou em um único dia (OKUBARO, 2008). As tropas estadunidenses chegaram ao sul em junho, com cerca de 200 mil homens. O lado japonês não tinha condições de suportar a ofensiva, mas a rendição nunca fora uma opção para boa parte dos generais e soldados. Quando a derrota foi inevitável, o general Ushijima e Isamo Cho, chefe de Estado Maior, cometeram o ritual do seppuku, ou haraquiri, o suicídio com o uso de uma faca perfurando a barriga; outros tantos militares explodiram granadas junto à barriga. Em meio à falta de munição, muitos preservavam somente uma bomba para que, no limite, pudessem se matar. Em casos de grupos suicidas, o militar de mais alta patente assistia aos subalternos morrerem para confirmar que todos o tinham feito e depois cometia o ato. 10.700 soldados japoneses renderam-se, menos de 10% da quantia total mobilizada. 12.000 estadunidenses morreram (OKUBARO, 2008). A batalha de Okinawa, como ficou conhecida na historiografia, durou 82 dias, morreram 107 mil soldados japoneses, outros 23,7 mil ficaram soterrados em cavernas. 142 mil residentes da ilha foram mortos, outros se mataram. Estudantes amarravam bombas em suas costas ou as abraçavam e lançavam-se diante dos tanques. Nas montanhas da ilha, professores e alunos se envenenavam em conjunto saudando o Imperador; soldados com uma granada uniam-se a famílias para explodir a bomba sem desperdiçar munição (OKUBARO, 2008; NAKAZAWA, 2015). Nos dias e anos seguintes após a batalha, com a destruição e predominância da miséria, muitos residentes só sobreviveriam por conta de remessas de dinheiro enviadas por parentes e amigos imigraram no começo do século para as fazendas no interior de São Paulo e Paraná2. A população de Okinawa ficou reduzida em pouco mais de 1/3 após os ataques; muitos outros morreriam nos dias seguintes com os sucessivos sotetsu jigoku (inferno do sotetsu, quando por falta de comida, as pessoas comiam raízes venenosas dessa planta e quase sempre morriam). A péssima terra em que nada nasce, os constantes tufões no verão, a seca, o pauperismo e a fome tornaram ainda pior a vida na ilha (OKUBARO, 2008).

2 A maior parte dos imigrantes japoneses no Brasil procederam de Okinawa. No Kasato Maru, primeiro navio a imigrar em 1908, dos 785 a bordo, 325 eram okinawanos. Hoje, 10% da população de japoneses e descentes residentes no Brasil procedem da ilha (FOLHA DE S. PAULO. Okinawanos são 10% dos nikkeis no Brasil. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/turismo/fx0805200808.htm. Acesso em 11/01/2019).

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A batalha teve fim em 22 de junho de 1945. A ruína de Okinawa não provocou incômodos ao Imperador, e a rendição estava fora de cogitação. Hiroshima era conhecida como a cidade do Exército e Kure, a cidade da Marinha. No dia 22 de junho a última foi atacada por aviões. No dia 1º do mês seguinte, foi atingida por bombas incendiárias que devastaram quase toda sua área, no dia 24, outro ataque aéreo. A cidade de Hiroshima seria o alvo nos próximos dias, mas, enquanto isso, segundo o livro de Masuji Ibuse, Chuva Negra, escrito a partir de diários e depoimentos de sobreviventes, a vida ali continuava a preparar-se para a guerra. Os estudantes das escolas secundárias trabalhavam como voluntários, aqueles que se recusassem eram tachados de antipatrióticos e espancados pelos colegas. Diariamente estas crianças derrubavam casas para formar barreiras contra incêndios, as meninas enrolavam uma faixa branca na cabeça e uma braçadeira no braço com a inscrição “Corpo Estudantil de Voluntários”, e entoavam a “Canção dos estudantes mobilizados” no caminho de ida e volta da usina siderúrgica, onde as meninas afinavam os tornos dos canhões antiaéreos. “Tome você o fuzil e eu o martelo, Só há um caminho para a luta. É uma honra para nós estudantes Dar a vida por nosso país” (apud IBUSE, 2011, p. 210). Lá, as meninas afinavam os tornos dos canhões antiaéreos. Sem mais delongas, a resposta à obstinação japonesa veio com a ordem do presidente estadunidense Harry Truman emitida do navio Augusta, enquanto navegava pelo Oceano Atlântico, retornando do encontro de Postdam. O projeto Manhattan, aprovado nas fases de teste no Novo México, tornar-se-ia público em forma de destruição. O avião Enola Gay junto com outras duas aeronaves partiram dos EUA na madrugada do dia 6. Às 7 horas da manhã, um deles sobrevoou Hiroshima, que soou seus alarmes de ataque aéreo, como fizera por quase toda a noite. Era somente um reconhecimento, que atestou que a cidade era o alvo perfeito para a bomba. A tripulação do Enola Gay, já com seus óculos de proteção, estava pronta e a bomba armada. Em sincronia, há quase quatro quilômetros da aeronave, estava o avião N. 91, que fizera uma curva de 90 graus para tirar uma foto da cidade antes da explosão. Às 8 horas e 15 minutos, as portas do Enola Gay foram abertas e a bomba lançada. Assim que fechadas, os três aviões fizeram a manobra para sair dali. Quando os aviões

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foram avistados para emissão do anúncio de alerta de bomba, já era tarde. O comunicado foi interrompido, e às 8 horas e 16 minutos, a 600 metros do solo, Little Boy3 explodiu. A explosão fora calculada milimetricamente para potencializar os danos e o raio de abrangência. A detonação liberou 16 quilotons de TNT. Quando Enola Gay e os outros aviões estavam a quase 20 quilômetros de distância e a 29.200 pés de Hiroshima, os tripulantes viram uma coluna de fumaça que subia rapidamente com um núcleo vermelho flamejante, como uma massa borbulhante, cinza e roxa; viram incontáveis incêndios propagando-se. E então, apareceu uma nuvem que tinha um formato semelhante a uma água-viva com um tom roxeado (NAKAZAWA, v.1, 2011; IBUSE, 2011). No solo, a explosão gerou uma bola de fogo, com diâmetro de 280 metros e chegou a 3500 graus célsius. A pressão gerada no epicentro fez com que a bola explodisse liberando uma onda de radiação e raios de calor. O que estava em um raio de 1,5 quilômetros do epicentro foi destruído por fogo e, aproximadamente, até 4 quilômetros provocou incêndios. Em 10 segundos, a explosão devastou um raio de 3,7 quilômetros com uma força de 19 toneladas nos primeiros 500 metros. O resultado dessa onda foi uma queda da pressão e, como reflexo, sugou uma grande quantidade de ar, provocando uma outra onda centrípeta nas áreas ao redor da explosão (NAKAGAWA, 2015). A 12 quilômetros da explosão, as repercussões eram vidros quebrados por um vento provocado pela bomba que atingiu 1.200km/h, transformando-se em um ciclone que durou por seis horas. Os habitantes que conseguiram sobreviver àquele forte clarão não sabiam que tipo de bomba os havia atingido, apenas que era diferente e ainda mais devastadora. Chamaram a Fat Man de pikadon, pika de raio, luz ofuscante, e don, de explosão e barulho. As memórias de Nakazawa Keiji recordam uma Hiroshima devastada, com cheiro de morte, corpos carbonizados, pessoas se arrastando com a pele descolando da carne; outras que aparentemente estavam bem, mas que em pouco tempo começavam a se desfazer; corpos alvejados por vidros que quebraram em estilhaços afiados com o vento da bomba. Quando a fumaça começou a baixar, chuvas de mosquitos colavam nas feridas e rapidamente botavam seus ovos. O fogo alastrava-se. As madeiras se contorceram quando atingidas pelo calor e foram um combustível para espalhá-lo. Entre os relatos, seja em memórias ou no

3 A bomba inicialmente recebeu o nome de Thin Man, em homenagem ao presidente Roosevelt. Porém, com o desenvolver das pesquisas seu formato foi modificando-se. Ao final, era menor do que o tamanho previsto e por isso foi batizada de Little Boy.

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Memorial da Paz em Hiroshima, muitos tiveram de abandonar o local onde estava para não serem carbonizados junto com aqueles que estavam presos em destroços e pediam ajuda. Os ferros também se deformaram e os bondes ficaram contorcidos aprisionando corpos carbonizados. Nos muros viam-se as sombras de Hiroshima: pessoas calcinadas que colaram na parede. Como a elevação da temperatura foi instantânea, as pessoas foram calcinadas em um segundo e deixaram nas paredes apenas sua silhueta ou sombra (LAMET, 2015). Nos hospitais e tendas improvisadas, equipes médicas estavam desorientadas diante daquelas queimaduras que faziam as gengivas sangrarem, os cabelos caírem e implodiam os órgãos provocando vômitos e jorros de sangue por qualquer orifício. Enquanto isso, pelo rio Ota, pouco se via de água, mas corpos inchados estouravam como bexigas por conta do gás acumulado (NAKAZAWA, 2011, v. 2). Em menos de meia hora depois da explosão, a cidade foi tomada pela chuva negra, que atingiu o raio de 29 quilômetros do epicentro, espalhando fuligem radioativa e a sujeira que estava no ar. Segundo o físico Okuno Emico (2015), as mortes imediatas da explosão ou em curto tempo foram causadas por: ondas de calor, que atingiu 1,2 quilômetros do epicentro provocando queimaduras fatais; ondas de choque, em que pessoas foram lançadas a vários metros, radiação ionizante, raios gama e nêutrons emitidos durante a explosão e radiação por átomos de césio-137 e de iodo-131 que contaminaram os corpos. A chuva negra foi fundamental para a propagação dessa radiação. Os soldados que chegaram em Hiroshima para amontoar os corpos, após algumas horas de trabalho, sucumbiam com sintomas de disenteria, vômitos de sangue e febre, morriam no mesmo dia. A rendição ainda não era uma opção ao Império. Em 9 de agosto, o Exército Vermelho rompeu o Tratado de Paz e Neutralidade assinando com o Japão e iniciou uma ofensiva contra o Exército Japonês em Guangdong. No mesmo dia, a industrializada Nagasaki foi atacada com a mesma bomba que acabara de devastar Hiroshima. No mesmo dia, Truman fez sua famosa declaração sobre as bombas, às 22 horas no horário de Washington: “Eu percebo o significado trágico da bomba atômica. Sua produção e seu uso não queriam ser levados a cabo por este governo. Mas sabíamos que nossos inimigos estavam na busca. Nós sabemos agora o quão perto eles estavam de encontrá-la. E sabíamos o desastre que viria a esta nação e a todas as nações amantes da paz, a toda civilização, se a tivessem encontrado primeiro. É por isso que nos sentimos compelidos

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a empreender o longo, incerto e dispendioso trabalho de descoberta e produção. Nós vencemos a corrida da descoberta contra os alemães. (...) Continuaremos a usá-lo até destruirmos completamente o poder do Japão de fazer a guerra. Apenas uma rendição japonesa nos impedirá. (...) É uma responsabilidade terrível que chegou até nós. Agradecemos a Deus por ter vindo a nós, em vez de aos nossos inimigos; e oramos para que Ele nos guie para usá-la em Seus caminhos e para Seus propósitos. (...) Agora, vamos usar essa força, todos os nossos recursos e todas as nossas habilidades na grande causa de uma paz justa e duradoura! (...) Continuaremos a marchar juntos para uma paz duradoura e um mundo feliz!” (TRUMAN, 1946). Às 11 horas e 2 minutos, no horário de Tóquio, o avião The Great Artist soltou a bomba de plutônio, que explodiu a 503 metros do solo, liberando 21 quilotons de TNT. Mesmo com maior energia, a bomba causou danos em menor raio por ser contida no Vale de Urakami. Apesar de Nagasaki abrigar boa parte da indústria bélica, tinha sido alvo de poucos ataques por sua formação rochosa dificultar o acerto aos alvos; a presença de um campo de prisioneiro na cidade também reduziu as possibilidades de ser atacada nos anos anteriores. Porém, uma das sedes da Mitsubishi-Urakami Ordance Works, produtora dos Torpedos 91 usados nos ataques a Pearl Harbor, foi completamente destruída; a fábrica de armas da Mitsubishi foi destruída em 58%; a fábrica de aço, quase 80%; e a Mitsubishi Electric Works, cerca de 10% (TRUMAN, 1946). As montanhas não conseguiram deter toda a energia ofensiva da bomba. Juntaram- se aos destroços da fábrica da Mitsubishi, escombros, cinzas e corpos. A destruição se estendeu a um raio de 4 quilômetros, mas os estilhaços de vidro foram registrados a até 19 quilômetros do epicentro. Como em Hiroshima, vários locais tiveram combustão imediata pelos raios de energia e o fogo espalhou-se pela cidade. O vale de Urakami praticamente sumiu, restando apenas esqueletos de prédios. O número de mortos em Nagasaki não é exato; muitas pessoas estavam trabalhando nas fábricas da Mitsubishi, inclusive crianças, e não havia a contabilização correta de quem ali estava. Ao final de 1945, estimou-se que 74 mil pessoas morreram na explosão, nos incêndios, atiradas pelo vento das explosões, atingidas por escombros e pela contaminação da radiação na hora e nos dias seguintes. Outros 75 mil ficaram feridos. A prisão para prisioneiros de guerra foi destruída, resultando na morte de 68 e outros 200 feridos (DIEHL, 2011). Tanto em Hiroshima como em Nagasaki, os que sobreviveram entre os escombros, deficiências congênitas, cânceres e cirrose ainda encararam a insígnia de hibakusha –

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sobreviventes dos ataques nucleares e visto como os que carregavam doenças procedentes das bombas – nos dias seguintes e no decorrer dos próximos anos4.

Hiroshima antes e depois da bomba. Fonte: http://www.worldtreasuresblog.org/2014/08/aug-6-1945- little-boy-atomic-bomb.html. Acesso em 13/03/2019.

4 Diferente do que viria a acontecer em Tchernóbil, Hiroshima e Nagasaki não foram evacuadas, a sobrevivência nas cidades japonesas era possível em meio às inúmeras doenças em efeitos das bombas. Em Vozes de Tchernóbil, Svetlana Aleksiévitch (2016) apresenta por meio de entrevistas e narrativas de sobreviventes do acidente nuclear, como a vida na cidade ucraniana tornou-se impossível, pois atingiu diretamente o solo, contaminando-o por tempo indeterminado. Aquele povo acostumado à vida militar, jamais esperava que em tempos de paz ocorreria algo tão devastador quantos as bombas lançadas no Japão. Enquanto no extremo oriente o átomo levou à bomba da paz, em Tchernóbil o átomo deveria ser para uso pacífico, sem jamais causar uma catástrofe. Em entrevista da autora consigo mesma, relatou: “Teria sido mais fácil nos acostumar à situação de uma guerra atômica como a de Hiroshima, pois sempre nos preparamos para ela. Mas a catástrofe aconteceu num centro atômico não militar, e nós éramos pessoas do nosso tempo e acreditávamos, tal como nos haviam ensinado, que as centrais nucleares soviéticas eram as mais seguras do mundo, que poderiam ser construídas até mesmo na Praça Vermelha. O átomo militar era o de Hiroshima e Nagasaki, o átomo da paz era o da lâmpada elétrica de cada casa. Ninguém imaginava que ambos os átomos, o de uso militar e o de uso pacífico, fossem gêmeos. (...) Tudo o que conhecemos sobre o horror e o medo tem mais a ver com a guerra. O gulag stalinista e Auschwitz são recentes aquisições do mal. A história sempre foi a história das guerras e dos caudilhos, e a guerra se tornou, como costumamos dizer, a medida do horror. Por isso as pessoas confundem os conceitos de guerra e catástrofe. Em Tchernóbil, pode-se dizer que estão presentes todos os sinais da guerra: muitos soldados, evacuação, locais abandonados. A destruição do curso da vida” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 42).

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Nagasaki antes e depois da explosão. Fonte: https://br.pinterest.com/pin/629448485397810059/. Acesso em 13/03/2019.

No dia 15 de agosto de 1945, uma voz lenta, rouca e desconhecida ganhou as rádios e a mensagem foi transmitida aos 75 milhões de pessoas: o Japão se rendia. O Imperador Hirohito, voz até então jamais ouvida pelos súditos, aceitava os termos da Declaração de Postdam. A população demorou a assimilar a mensagem, proferida em japonês antigo e com alguns termos em chinês, mas ao serem traduzidos pelo comentarista, não deixavam dúvidas. Quando foi divulgado que o Imperador falaria no rádio ao meio-dia, muitos japoneses esperavam um pedido de uma morte honrosa em defesa do Japão. Mas o que se escutou foi o contrário: “Aos nossos bons e leais súditos: Depois de profunda ponderação sobre as tendências mundiais atuais e sobre as condições reais de nosso império hoje, decidimos estabelecer um compromisso sobre a atual situação, recorrendo a uma medida extraordinária. Ordenamos ao nosso governo que comunique aos governos dos Estados Unidos, da Grã- Bretanha, da China e da União Soviética que nosso império aceita as disposições de sua declaração conjunta. Esforçar-nos para a prosperidade e a felicidade de todas as nações, assim como para a segurança e bem-estar de nossos súditos, é a obrigação solene que nos foi transmitida por

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nossos ancestrais imperiais, e que temos sempre junto ao coração. De fato, declaramos guerra à América e à Grã-Bretanha movidos por nosso sincero desejo de garantir ao Japão a autopreservação e a estabilização da Ásia Oriental, estando longe de nosso pensamento infringir a soberania de outras nações ou procurar o crescimento territorial. Mas agora a guerra já durou quase quatro anos. Apesar de todos terem feito o melhor possível – a luta heroica das forças militares e navais, a diligência e assiduidade de nossos servos e o serviço devotado de nossas cem milhões de pessoas -, a situação de guerra se desenvolveu de modo não necessariamente vantajoso para o Japão, enquanto as tendências mundiais gerais se voltam contra nosso interesse. Além disso, o inimigo começou a empregar uma nova e mais terrível bomba, cujo poder de destruição é incalculável, tirando a vida de muitos inocentes. Se continuássemos a lutar, isso não apenas resultaria no colapso final e na obliteração da nação japonesa, mas também levaria à extinção total da civilização humana. Dada essa situação, como poderíamos salvar nossos milhões de súditos ou nos explicar diante dos espíritos santificados de nossos antepassados? Esta é a razão por que nós ordenamos a aceitação das exigências da declaração conjunta das potências. Podemos somente expressar o mais profundo lamento diante dos países aliados na Ásia Oriental, que cooperaram consistentemente com o império no sentido da emancipação da Ásia Oriental. O pensamento nos oficiais e homens, assim como outros, que caíram no campo de batalha, os que morreram em seus postos de honra, ou os que encontraram a morte prematura e suas famílias desoladas, entristece meu coração noite e dia. O bem- estar dos feridos de guerra e dos sofredores, e dos que perderam seus lares e sua alegria, é objeto de nossa profunda solicitude. Os percalços e sofrimentos a que será submetido o nosso país daqui em diante certamente serão grandes. Estamos profundamente conscientes dos sentimentos mais íntimos de todos vocês, nossos súditos. No entanto, é de acordo com os ditames do tempo e do destino que nós resolvemos cimentar o caminho da grande paz para todas as gerações vindouras, suportando o insuportável e sofrendo o que é insofrível. Tendo sido capazes de salvaguardar e manter a estrutura do estado imperial, nós estamos sempre com vocês, nossos bons e leais súditos, confiando em vossa sinceridade e integridade. Evitem estritamente quaisquer arroubos de emoção que possam provocar complicações desnecessárias, ou quaisquer disputas e discórdias fraternas que possam criar confusão, desuni-los e fazê-los perder o respeito mundial. Que toda a nação continue como uma família de geração a geração, sempre firme em sua fé na imperecibilidade de sua terra divina, cônscia de seu pesado fardo de responsabilidades e da longa estrada que

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temos adiante. Unam todas as suas forças para se devotarem à construção do futuro. Cultivem os caminhos da retidão; alimentem a nobreza de espírito; e trabalhem resolutamente para que possamos alcançar a glória inata do Estado imperial e mantermo- nos a passo com o progresso mundial. Hirohito [Selo Imperial] 14° dia do oitavo mês do vigésimo ano da Era Showa (HIROHITO apud BEHR, 1991, pp. 470-472)

Minutos após o pronunciamento, o Ministro da Guerra, Korechika Anami cometeu seppuku ou, haraquiri, suicidando-se como os samurai, ao enfiar uma faca em sua própria barriga. Entretanto, destaca-se que em nenhum momento a palavra rendição é mencionada por Hirohito. Fernando Morais em Corações sujos, em análise sobre a Shindô Renmei – grupo nacionalista de japoneses nas fazendas atuantes no interior do Estado de São Paulo que executavam aqueles que assumiam a derrota –, refere-se ao rescrito imperial como um “exercício deliberado de dissimulação” (2000, p. 43). Apesar das menções à Declaração de Postdam, que exigia a rendição incondicional do Japão, para os súditos isso nada significava, não tinham conhecimento do que tal documento se tratava, não sabiam o que era “a aceitação das exigências da declaração conjunta das potências”. E também na voz e leitura de Hirohito, o Japão declarou guerra a outras nações como defesa, sem pretexto de infringir qualquer soberania ou de tentar expandir o território. O fim da guerra ainda seria uma maneira de evitar uma destruição tanto do povo japonês, mas também de toda civilização humana. A transmissão ainda alertava que o país cresceria e, mais uma vez a devoção do súdito é aclamada para os tempos que se seguiriam “suportando o insuportável e sofrendo o que é insofrível” na construção do futuro. Apesar do certo tom de dissimulação por escamotear a rendição, como destacado por Morais (2000), Hirohito não acobertou palavras para enaltecer seus súditos e intimou cada um para a reconstrução. A devoção seria fundamental nos anos que se seguiriam. A cena recorrente quando do pronunciamento foram pessoas em lágrimas; o retorno de sobreviventes a suas casas e, quando chegavam, não encontravam nada; grupos de pessoas vagando pelas ruas levando seus pertences sem terem aonde ir; bandos de crianças órfãs atrás de comida...

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Com a assinatura da Ata de Rendição, o Imperador Hiroito transformava-se em humano. Não era mais um divino inacessível, mas apenas mais um frágil japonês em meio a ruínas da guerra. Era essa a imagem que circulou pelo Japão nos anos seguintes, quando Hirohito começou a viajar pelo país, assumindo rapidamente a imagem que lhe fora destinada, a de “inimigo convertido”, como aponta Greiner (2015). Posteriormente, Hirohito virou biólogo marinho, e tornou-se um homem da ciência que buscava valorizar a natureza. Agora, sua imagem era de um homem pacífico e defensor de qualquer ser vivo. Quando foi pela primeira vez aos EUA, em outubro de 1975, foi recepcionado por algumas manifestações contrárias à sua presença, mas também teve as de apoio atreladas à sua nova imagem. Um avião planava com uma bandeirola com a inscrição “Emperor Hirohito, save our whales” (Imperador Hirohito, salve as nossas baleias). Assim, Hirohito, o homem que nomeou uma das maiores Eras do Japão após a modernização, era no máximo um defensor dos animais para os olhos ocidentais. Aos japoneses, o estado precário em que se encontravam misturava-se com a sensação de abandono provocado também pela perda do sentido de nação, como destaca Greiner (2015). Enquanto a ação direta de Kanno e Kôtoku pretendia executar o Imperador para profaná-lo na expectativa de minar as relações hierárquicas, o que se produziu com sua humanização diplomática foi um reforço do Estado japonês com a ocupação estadunidense e com a guerra da Coreia entre 1951 e 1953.

a ocupação estadunidense e a atualização das Leis de Preservação da Paz

Em 30 de agosto de 1945, duas semanas após a destruição de Nagasaki, o general MacArthur desembarcou no aeroporto naval de Atsugi, na província de Kanagawa. Em 2 de setembro, em uma cerimônia a bordo do USS Missouri na baía de Tóquio, representantes do Imperador formalizaram e assinaram a ata de rendição do Japão. No mesmo mês, o general Douglas MacArthur assumiu o Comando Supremo das Potências aliadas (CSAP), as tropas estadunidenses começaram a ocupar o solo japonês e o mantiveram sob controle direto pelos próximos sete anos. O documento secreto elaborado já em maio de 1944, pelo Comitê do Extremo-Oriente, The post-war objectives of the US

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in regard to Japan, e divulgado após a ocupação, previa dois objetivos que os EUA tinham com a intervenção: impedir o Japão de se configurar novamente como uma ameaça a outros países da área do Pacífico; exigir o estabelecimento de um governo “respeitoso aos direitos de outros Estados e às obrigações internacionais do Japão” (EUA, 1944, p. 1). Para atingir esses pontos, foram definidos três períodos de ação: I. rendição do Japão e o cumprimento dos termos que teriam a punição e as reformas; II. “vigilância próxima” (1944, p. 2), ou seja, ocupação militar até o tempo em que se comprovasse a “disposição e capacidade de viver em paz com outras nações” (EUA, 1944, p. 2); controle econômico para o não financiamento da indústria bélica; “incentivo aos ideais democráticos”; “convencer o povo japonês de que o militarismo é desastroso para seus reais interesses”; “desenraizamento de sociedades ultra-nacionalistas” (1944, p. 2); III. a conclusão de um tratado formal de paz e aliança, com o “Japão cumprindo corretamente suas responsabilidades na família das nações pacíficas” (1944, p. 3). Desde a primeira metade do ano de 1944, os EUA elaboravam como seria a intervenção no Japão e suas premissas. A primeira frente realizou a prisão de ex-ministros e líderes militares. Em novembro, na Alemanha, iniciava-se o Julgamento de Nuremberg. Em 19 de janeiro de 1946, o General MacArthur seguiu o mesmo modelo de Nuremberg e implementou o Julgamento de Tóquio ao lançar a Carta do Tribunal Internacional Militar para o Extremo Oriente. Ali foram estabelecidos os procedimentos do Tribunal que classificava os réus em três classes: A. crimes contra a paz; B. crimes convencionais de guerra; C. crimes contra a humanidade; 28 militares foram acusados na classe A; 5700 nas categorias B e C. Entretanto, os considerados crimes de guerra das tropas japonesas realizados na Coreia, na Manchúria e na China não foram alvo do Tribunal de Tóquio. A China ficou responsável por esse julgamento e instituiu 13 tribunais para condenar 504 réus à prisão e executar 149. A segunda frente de intervenção destinou-se à economia, o SCAP realizou uma reforma agrária para reduzir a influência dos proprietários de terras, muitos dos quais defenderam a guerra e apoiaram o expansionismo japonês na década de 1930. MacArthur investiu na divisão dos grandes conglomerados empresariais japoneses, os zaibatsu. Como efeito, muitos administradores se viram desempregados, e jovens assalariados assumiram seus cargos. Simultaneamente, funcionários de empresas passaram a participar da administração, fazendo com que se aumentasse um sentimento de pertencimento à empresa, que encontrou um forte aliado na disciplina e respeito à hierarquia japonesa. “A dissolução do zaibatsu tornou-se a força motriz para gerar o

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modelo administrativo japonês, o doentio ‘homem das empresas’” (NAKAMAKI, 1998, p. 22). Com a reforma agrária, as terras que estavam abandonadas foram vendidas a agricultores. Antes da guerra 70% dos agricultores trabalhavam em terras arrendadas, depois, o índice caiu para 40%. Além deste “amor à empresa” que emergia, outra mudança foi o fim do lavrador, agora substituído por um agricultor profissional assalariado e que acumulava outras atividades. Entre outubro de 1945 e maio de 1946, o gabinete de MacArthur expurgou ministros e suprimiu os ministérios de Guerra e da Marinha (MOLINA, 2017), em uma tentativa do que ficaria conhecida como a desmilitarização do Japão. O general estadunidense orientou o Imperador a redigir uma nova constituição. Entretanto, considerou-a demasiado semelhante à constituição Meiji, por isso, MacArthur indicou um grupo para redigir a nova versão (MOLINA, 2017). Redigida em inglês e depois traduzida para o japonês, a Constituição pode ser facilmente localizada, nas duas línguas, em uma pesquisa na internet, no site do National Archives of Japan 5 . O documento foi sancionado em 3 de novembro de 1946, e efetivado em 3 de maio de 1947, no ano 22 da Era Showa. Por ter sido redigida em inglês, os tradutores para o japonês tiveram de atualizar termos políticos até então desconhecido em seu vocabulário. Foi o caso do termo civil, em oposição a militar, em que precisou ser forjado o termo bunmin, com a junção dos kanji fun (sentença, literatura) e min (pessoas, nação) (文民). A constituição estabelecia: “Nós, o povo japonês, por meio de nossos representantes devidamente eleitos em nossa Dieta Nacional, determinamos que vamos assegurar para nós e nossa posteridade os frutos da cooperação pacífica com todas as nações e as bênçãos da liberdade nesta terra, e decidimos que nunca mais seremos acometidos com os horrores da guerra por medidas do governo, e proclamamos que o poder soberano pertence ao povo que firmemente estabelece esta constituição. O governo é de confiança sagrada do povo e possui os poderes que são exercidos por seus representantes e com os benefícios que são gozados pelo povo. Este é um princípio universal da raça humana sobre o qual esta constituição é fundada. Nós rejeitamos e revogamos todas as constituições, leis, ordenanças e editos que entrem em conflito com esta verdade. (...)

5 Disponível em: digital.archives,go.jp.

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Artigo 1. O Imperador deverá ser o símbolo do Estado e a unidade do seu povo, derivando a sua posição a partir da vontade do povo no qual reside a soberania do poder. (...) Artigo 6. O imperador deve apontar o primeiro-ministro como designado pela Dieta. O imperador deverá apontar o ministro presidente da Suprema Corte como designado pelo gabinete. (...) Artigo 9. Aspirando sinceramente à paz mundial baseada na justiça e ordem, o povo japonês renuncia para sempre ao uso da guerra como direito soberano da nação ou a ameaça e uso da força como meio de se resolver disputas internacionais. Com a finalidade de cumprir o objetivo do parágrafo anterior, as forças do exército, marinha e aeronáutica, como qualquer outra força potencial de guerra, jamais será mantida. O direito a beligerância do Estado não será reconhecido. (...) Artigo 41. A Dieta será o mais alto órgão de poder do Estado, e será o único órgão legislativo do Estado”. A Dieta Nacional do Japão (Kokkai), que substituía o Imperador, é o legislativo bicameral japonês. Está composto pela Câmara dos Representantes e a Câmara dos Conselheiros. Seus integrantes são eleitos pelo sufrágio, sendo que qualquer um maior de 20 anos pode votar. O mandato da Câmara dos representantes é de quatro anos e dos Conselheiros de seis anos. Cabe à Dieta escolher entre seus integrantes quem será o Primeiro-Ministro a ser indicado ao Imperador que o nomeia em uma cerimônia. No prédio da Dieta Nacional também há uma imensa biblioteca, aos moldes da Biblioteca Nacional dos EUA, que acomoda o que pôde ser localizado nos pós-guerra, inclusive, periódicos anarquistas. Em 1947, além da promulgação da Constituição, foi aprovada a Lei Básica de Educação, que seguia o sistema estadunidense, com comitês de educação locais eleitos por pais e professores, e que garantia o uso livre de qualquer texto. Toda Misato, em uma carta enviada a amigos, recordou as modificações pela qual sua escola passou e o susto ao escutar o novo protocolo. “Para nossa surpresa, em apenas algumas semanas todos os professores que haviam elogiado Tenno [Imperador] como um deus vivo, de repente começaram a falar sobre democracia! [...] [O] sistema político foi quebrado em 15 de agosto de 1945. No sexto ano da escola primária, testemunhei a quebra desse velho sistema. O que eu havia aprendido e acreditava foi negado numa única noite. Nunca me esquecerei da seguinte cena: na classe os alunos estavam apagando com a caneta um grande número de palavras e frases nos seus livros. Algumas páginas ficaram totalmente negras. As partes apagadas eram, segundo as forças da ocupação americana,

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perigosas e maléficas para a democratização japonesa por causa da expressão do militarismo ou do pensamento reacionário. O professor ditava e os alunos pintavam a parte em preto. Era como um cerimonial de enterro do antigo sistema ficcional. Durante este processo, contudo, nós vimos professores negarem aquilo que eles nos tinham previamente ensinado como verdade absoluta. Foi uma experiência dolorosa. Do fundo do meu coração, decidi que nunca mais acreditaria em tais adultos que traem a confiança que as crianças depositam neles; e que eu nunca me tornaria um adulto deste tipo” (2003, pp. 166; 168). Como o ensino obrigatório atingia a quase todas as crianças, a situação descrita por Toda não foi uma exceção. E, assim, como as canetas negras que cobriram o enaltecimento ao Imperador, anos depois, o mesmo aconteceria com as bombas atômicas, hoje tidas como as bombas da paz e necessárias para que o Japão não se destruísse. Apesar das alterações no ensino e em outras áreas, o Código Penal permaneceu o mesmo, sendo aplicado até hoje, com o uso da tortura legalizada e aprisionamentos sumários, enquanto método de investigação, e pena de morte. No final daquele ano de 1947, o Imperador foi visitar Hiroshima. Em seu belo carro, passou pela cidade onde mulheres, homens e crianças foram ordenados a esperarem enfileirados para recepcioná-lo agitando bandeirinhas feitas à mão. Enquanto isso, por lá, a máfia Yakuza crescia mais com o mercado negro de arroz, como viria a acontecer por todo o país. As crianças lutavam para sobreviver e vendiam crânios que encontravam nos escombros, com ideogramas, aos soldados estadunidenses da ocupação. Inscreviam nas testas dos crânios o kanji urami (怨み): rancor, ódio. Os estadunidenses compravam a lembrança sem saber o significado (NAKAZAWA, v.5, 2012; v.6, 2013). O Primeiro-Ministro do Japão no pós-Guerra foi o Príncipe Higashikuni Naruhiko (1887-1990), nomeado em 16 de agosto de 1945, tio do Imperador Hirohito e por ele escolhido para substituir Suzuki. Hirohito tentava assegurar a imagem do Imperador, demonstrar que a família imperial não estava em ruínas como o restante do país. Naruhiko renunciou em outubro por pressão das Forças de Ocupação e com a revogação da Lei de Preservação da Paz de 1925. Naruhiko foi sucedido por Shijihara Kijûrô, casado com Masako, filha do fundador da Mitsubishi e que enriquecera ainda mais na Guerra. Foi o último integrante

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do kazoku6 (família) a ser Primeiro-Ministro. Em 1924, tinha se tornado Ministro das Relações Exteriores e defendia os princípios da Liga das Nações. Entretanto, sua relação com os militares não era próxima, e sua carreira acabou quando o Exército de Kwangtung invadiu a Manchúria desobedecendo suas ordens de não atacar. Shijihara reuniu-se com MacArthur em 11 de outubro de 1945, quando o general estadunidense impôs as Cinco Diretrizes da Reforma para a confecção da nova Constituição, cuja versão japonesa seria desconsiderada7. Em 20 de maio, Shijihara foi substituído por Yoshida Shigeru (1868-1967) que serviria como Primeiro Ministro até o ano seguinte. Este foi sucedido por Katayama Testsu, do partido Social Democrata; depois Yoshida seria novamente nomeado em 1948, ocupando o cargo até 1954, ou seja, até dois anos após o final oficial da ocupação estadunidense do país. Apesar de Yoshida ter apoiado a guerra na China, inclinava-se às boas relações com a Inglaterra e com os EUA. Por conta desse posicionamento, foi retirado da política japonesa em 1938, e permaneceu preso por algum tempo. Entretanto, no decurso da ocupação estadunidense, manteve boas relações com MacArthur e foi um dos principais nomes do período. Ainda sob a nova constituição, formaram-se partidos políticos como o Partido Liberal Japonês (PJL), dirigido por Hatoyama Ichiro; Partido Progressista Japonês (PPJ); Partido Democrático Liberal (PDL); Partido Socialista Japonês (PSJ); Partido Democrata Japonês (PDJ) e o Partido Liberal (PL). Para MacArthur, esse era o caminho para o Japão tornar-se democrático, e que tinha como um de seus repaldos a pesquisa antropológica de Ruth Benedict, O crisântemo e a espada (1997). O trabalho de Benedict foi encomendado ao governo estadunidense para compreender quem era esse novo inimigo orgulhoso de morrer pelo Imperador em ataques kamikaze e que, quando presos, não tentava mandar notícias para a família, mas, muitas vezes, cometiam o suicídio. A antropóloga, ao concluir sua pesquisa, indicou que a

6 A tradução literal do termo é família. Entretanto, possui duas escritas, concedendo-lhes significados diferentes. 家族 pode ser lido como Kazoku e refere-se a qualquer família, é constituído pelos kanji de casa e clã. Já 華族 possui a mesma leitura, e diferencia-se pelo primeiro ideograma relativo a esplendor, flor, ilustre, inicialmente referia-se somente a família Imperial. Em 7 de julho de 1884, o governo Meiji expandiu a Kazoku concedendo o título para aqueles considerados benfeitores da nação. Os títulos foram prescritos em 1947 quando Kazoku retornou a ser somente para designação da Família Imperial. No caso em questão, Shijihara ganhara tal título ao casar-se com Masako. 7 Documento referente à reunião disponível na Biblioteca Nacional da Dieta. Versão digitalizada em: http://www.ndl.go.jp/constitution/e/shiryo/01/033shoshi.html.

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imagem do Imperador era a espinha dorsal da hierarquia japonesa e recomendou ao presidente Roosevelt que em caso de rendição, a imagem do Imperador não deveria ser arruinada. Caso o fosse, a ocupação também estaria arruinada. Benedict destacou a subserviência japonesa à hierarquia em oposição aos ideais liberais da sociedade estadunidense: “A confiança na ordem e hierarquia dos japoneses e a nossa fé (nós, norte-americanos) na liberdade e na igualdade situam-se a pólos de distância [...] os japoneses apreciam todo problema das relações internacionais em termos de hierarquia, assim como apreciam seus problemas internos sob a mesma luz” (BENEDICT, 1997, p. 43). A obra, além de uma extensa descrição da cultura japonesa por olhos ocidentais na guerra, apresenta como seria inevitável um conflito entre o Japão e os EUA. Entretanto, não se trata de um ideal vencer o outro, como destacou Benedict, mas de um funcionamento do próprio Estado. Não tão distantes assim, os dois pólos viriam a enriquecer com a Guerra na Coreia, consentindo e cometendo inúmeros massacres e perseguições, como fizeram aos anarquistas. O Japão assimilou muitos dos ideais estadunidenses. Até mesmo seu vocabulário e culinária modificaram-se8, mas a hierarquia e a devoção permaneceram. Um dos marcos do final da ocupação estadunidense foi um resgate à Lei de Preservação da Paz: a Lei de Prevenção de Atividades Subversivas, que garantia ao governo a dissolução, por meio do uso da força, de qualquer atividade terrorista subversiva. Segundo John M. Maki (1953), em sua análise da Lei de Prevenção de Atividades Subversivas logo após seu lançamento, esta foi a primeira grande legislação a ser promulgada após a ocupação, entrando em vigor em 21 de julho de 1952. A lei previa a articulação entre a Agência de Inteligência de Segurança Pública e a Agência de Polícia Nacional ou, a polícia das prefeituras, na troca de materiais para a investigação de casos. A Comissão de Exame de Segurança Pública deveria identificar uma organização que se envolvesse em atividades terroristas subversivas e solicitaria a sua dissolução; a seguir acompanharia o fim do “perigo” identificado. Caso a organização que teve seu fechamento decretado, buscasse se manter em funcionamento, teria de abrir

8 A mutação nas palavras japonesas deve-se à absorção de algumas palavras em inglês. No idioma japonês pré-invasão o termo para banheiro era benjo, palavra formada pelos kanji 便 (fezes, excremento, conveniência) e 所 (lugar), hoje a palavra está em desuso, sendo conhecida apenas por alguns japoneses nascidos antes da guerra. Para banheiro utiliza-se toire, do inglês toilet.

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uma ação para a retirada do veto. Caberia a um tribunal julgar em 100 dias a partir da aceitação do processo. Em 21 de julho, o governo japonês explicou o porquê da aprovação e a necessidade da lei: “O motivo/razão [para a lei] é que perigosas atividades terroristas subversivas têm sido praticadas por certos elementos de grupos organizados em nosso país. Lamentavelmente, como parece, foram descobertas atividades perigosas que apregoam em diversos documentos a pertinência e a necessidade de se derrubar a Constituição e o governo estabelecido sob ela. Tais atividades parecem se mover em direção à realização destes objetivos por meio do terrorismo armado e da guerrilha. Além disso, estas atividades parecem ser levadas a cabo por grupos organizados com conexões internacionais que se mostram fortes e amplamente desenvolvidos” (apud MAKI, 1953, p. 489). Na análise de Maki, a lei respondia às possíveis conexões de socialistas no Japão com os soviéticos e os revolucionários chineses. Com o desarmamento formal, essa seria uma maneira de fiscalizar os grupos socialistas sem a existência de um exército. Assim, a Lei não é somente uma atualização das legislações do começo do século XX no Japão, mas, promulgada após a ocupação estadunidense e responde ao Tratado de Segurança entre os Estados Unidos e o Japão assinado poucos meses antes, em setembro de 1951, na cidade de São Francisco, que estabelecia: “ARTIGO I O Japão concede, e os Estados Unidos da América aceitam, o direito, com a entrada em vigor do Tratado de Paz e deste Tratado, de dispor das forças terrestres, aéreas e marítimas dos Estados Unidos sobre todo o Japão. Tais forças podem ser utilizadas para contribuir para a manutenção da paz e segurança internacional no Extremo Oriente e para a segurança do Japão contra-ataques armados externos, incluindo assistência dada a pedido expresso do governo japonês para acabar com distúrbios internos em larga escala causados por instigação ou intervenção interna ou externa. ARTIGO II Durante o exercício do direito a que se refere o Artigo I, o Japão não concederá, sem o consentimento prévio dos Estados Unidos da América, quaisquer bases ou quaisquer direitos, poderes ou autoridade que sejam relacionados a bases ou ao direito de

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guarnição ou de manobra, ou trânsito de forças terrestres, aéreas ou navais para qualquer terceira potência”9. A Lei de Prevenção de Atividades Subversivas era a garantia do uso da força para a repressão às ações entendidas como terroristas. No único estudo extenso sobre essa legislação The subversive Activities Prevention Law of Japan, de Uyehara (2010), é apontado que o governo recorrerá a essa lei para reprimir manifestações estudantis vinculadas à esquerda japonesa, a Zengakuren. Zengakuren era a abreviação de Zen Nihon Gakusei Jichikai Sô Rengô (Federação Japonesa de Associações Estudantis), e fora fundada em 1948. Diferente das organizações estudantis da década de 1920 até o fim da guerra pretendia lutar contra uma educação fascista e contra a ocupação estadunidense10. Segundo o Relatório Número 1 (2010), produzido pela Zengakuren e disponível em seu site (www.zengakuren.jp), a organização formou-se como uma resposta direta ao Partido Comunista Japonês. Em 1947, o Partido convocara todos os sindicatos e estudantes para uma greve geral, saudada por muitos como a possibilidade de uma revolução no Japão11. Mas, a empolgação logo se tornou frustração, os líderes do PCJ obedeceram ao governo de MacArthur e abortaram a greve. Com o fracasso, os estudantes passaram a se organizar fora das redes do Partido, exigiam a demissão dos professores universitários que apoiaram a Guerra, a reconstrução dos dormitórios universitários, utilizados pelos militares e destruídos em conflitos, e a direção direta do campus universitário sem a interferência do governo12.

9 Documento na íntegra disponível em: http://worldjpn.grips.ac.jp/documents/texts/docs/19510908.T2E.html. Acesso em 12/12/2018. 10 O estudo de Stuart J. Dowsey (1970) critica a leitura recorrente de que a Zengakuren fora influenciada diretamente pelas organizações estudantis dos EUA. Afinal, fora fundada 12 anos antes do que considera ser o equivalente estadunidense, a Students for Democratic Society, iniciada em 1960. 11 Enquanto isso, a vizinha China estava em guerra civil que culminaria na fundação da República Popular da China, em primeiro de outubro de 1949, proclamada por Mao Tse-Tung; em 1948; a Coreia seria dividida, com o Norte sendo o lado comunista. Fora da Ásia oriental, o Vietnã eclodiria na tentativa revolucionária na década de 1950, que culminaria na Guerra até 1975. O Camboja, explodiu com a revolução na década de 1960. A revolução na Tailândia irromperia em 1973. Sendo assim, os países vizinhos e próximos ao Japão estavam prestes a ebulir em revoluções, oque inquietava os jovens estudantes japoneses pela possibilidade do mesmo acontecer ali. Entretanto, os efeitos foram outros, e o Japão não protagonizou uma tentativa revolucionária, apesar da China estar na fornteira à oeste, a então União Soviética ao norte, e a Coreia do Norte a sudoeste. 12 A adesão do PCJ às ordens de MacArthur demonstra como não haveria no Japão o risco iminente de uma revolução comunista aos olhos estadunidenses. A ocupação do arquipélago interessava por sua posição geográfica em relação à China e à URSS. Segundo Morais (2000), a ocupação ocorrera pela possível ameaça comunista interna, entretanto, para além dos distúrbios causados pela Zengakuren, principalmente na década de 1960, não houve qualquer tentativa de revolução no Japão. O governo de MacArthur tinha

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A proposta do governo de MacArthur para a educação era adotar o sistema estadunidense, com a privatização do ensino superior com o financiamento de empresas. Todas as universidades, exceção às chamadas universidades Imperiais, passariam a ser controladas por bancos e grandes corporações e os valores das mensalidades triplicariam de valor. De 23 a 26 de junho de 1948, a resposta concretizou-se em uma greve geral que mobilizou 300.000 estudantes, de 116 universidades por todo o Japão contra os novos projetos de educação. Em 18 de setembro daquele ano, fora fundada a Zengakuren, que conseguiu organizar outra greve geral, em 24 de maio de 1949, quando 139 universidades pararam e o governo desistiu das privatizações. A Zengakuren despontou como a força de combate à ocupação estadunidense e aos resquícios do fascismo nas universidades japonesas (ZENGAKUREN, 2010). A Zengakuren encaixava-se no artigo quinto da Lei de Prevenção de Atividades Subversivas, que previa três tipos de punição para grupos que representassem um “perigo claro”: “(i) em caso da Atividade Subversiva Terrorista ter sido cometida em uma manifestação em massa, procissão ou assembleia pública, proibir a Organização de realizar qualquer demonstração em massa, procissão ou assembleia pública correspondente em uma área específica por um período fixo não superior a seis meses; (ii) caso a Atividade Subversiva Terrorista tenha sido cometida por meio de qualquer publicação periódica da Organização (ou seja, qualquer publicação continuamente emitida pela Organização para defender, comunicar ou propagar os objetivos, doutrina ou a política da Organização), proibir a Organização da continuação da impressão e distribuição da publicação por um período fixo não superior a seis meses; ou (iii) proibindo a Organização de permitir que um funcionário em particular (ou seja, um representante, diretor ou qualquer outra pessoa envolvida no trabalho oficial da Organização, independentemente do título; o mesmo se aplica a seguir) ou membro da Organização que tenha participado a Atividade Subversiva Terrorista realizasse qualquer ato no interesse da Organização por um período fixo não superior a seis meses (JAPÃO, 1952)13. Mesmo com a obediência do PCJ emnão promover a greve geral de 1947, o governo de MacArthur ordenou, em julho de 1949, que o Partido fizesse uma lista de

o controle sobre o PCJ e este parecia existir, entre os anos de 1940 a 1950, somente como uma expressão do pluralismo partidário instituído pelos EUA. 13 Disponível no site do Ministério da Justiça do Japão em: http://www.moj.go.jp/content/001127771.pdf. Acesso em 12/12/2018.

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expulsão com os nomes dos comunistas que trabalhavam nas fábricas. O PCJ realizou a ordem. O Japão não se constituía como uma ameaça comunista para os EUA, mas, como declarou MacArthur: “é uma fortaleza contra o avanço do comunismo no oriente” (apud ZENGAKUREN, 2010, p. 3). Simultaneamente, a Zengakuren, na década de 1940 e 1950, expandia-se fora das amarras do PCJ. Atraia jovens de diferentes procedências e que estavam inquietos. Em um Japão em reconstrução14, alguns jovens, distintos dos amantes dos empregos e dos ressentidos da Guerra, recusavam-se a obedecer ao Kokutai ou a vangloriar as reformas protagonizadas pelos EUA.

uma resposta aos massacres: o Esperanto e o pacifismo de Yamaga Taiji

Dois partidos de oposição ao governo, o PCJ e o Partido Socialista Japonês p redominavam no Japão. Inúmeros outros grupos se aliariam a eles, como o Nihon Gensuikyô (Conselho Japonês contra Bombas de Hidrogênio e Atômica) filiada ao PCJ, o Gensuikin, orientado pelo PSJ, o grupo Goken Rengô (Liga de Proteção a Constituição), formada por intelectuais e estudantes, também filiado ao PSJ (NAMAZU, n. 3). Entretanto, como afirmou Christian Ferrer, diante de um governo totalitário ou democrático, haverá sempre um anarquista travando novas lutas. “Aos anarquistas, porém, sempre foi indiferente se um território é governando com punho de ferro ou com palavras suaves, pois a zona opaca que combatem é a vontade de submissão à potência estatal (um princípio de soberania antes que um ‘aparato’), centro unificador de uma geometria concêntrica e vertical” (FERRER, 2000, p. 62).

14 Uma das reflexões mais expressivas a respeito do Japão em reconstrução é a de Igarashi Yoshikuni (2011; 2013b), em seu estudo sobre o corpo e as narrativas pós-II Guerra. Ali destaca a imagem do Gojira (Godzilla), lançado em 1950: um daikaijû (monstro enorme) semelhante a um dinossauro e que soltava fogo pela boca. Para Igarashi, Gojira unia o monstro que busca exorcizar o passado e ao mesmo tempo é a imagem do outro, o ocupador estadunidense. Este seria o Japão na passagem do Kokutai para um futuro com a presença do EUA. O monstro fez sua primeira aparição em um filme homônimo e rendeu mais de 30 filmagens posteriores. Gojira era cria de uma explosão nuclear, e simultaneamente também personificava o inimigo que invade Tóquio e a alma dos soldados japoneses que morreram nas batalhas no Pacífico; por vezes o monstro atacava as cidades no arquipélago e por outras as defendia quando havia ataques de outros daikaijû, como em versão recente em que enfrenta o King Kong. Igarashi ainda ressalta que a casa do Imperador sempre está presente no primeiro filme, mesmo não sendo objeto da trama, e permanece intacta mesmo diante dos ataques. Gojira é a imagem do Japão em reconstrução, entretanto, não há qualquer crítica incisiva aos EUA, afinal, o Estúdio Tôhô, responsável pelo filme, recebia financiamento estadunidense.

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Destoando das filiações partidárias, e repudiando a empolgação com a ocupação por parte dos partidos de direita, estava a Federação Anarquista Japonesa (FAJ), fundada em 1946. Yamaga Taiji foi um dos nomes de maior expressão na FAJ, diante da destruição, tentava articulá-la em busca dos anarquistas sobreviventes. Por meio do Esperanto, conseguiu fortalecer o contato com libertários na Ásia, principalmente na Índia, Europa e nos Estados Unidos. Yamaga tomou contato com os anarquistas na Associação de Esperanto Kuroita do Japão, ao conhecer Ôsugi Sakae. Com suas habilidades de desenho, em 1922, ajudou Ôsugi a fugir do Japão quando cumpria prisão domiciliar ao falsificar um passaporte que o permitiu viajar para França. Na década de 1930, com a ascensão do fascismo japonês, a iminente aliança do Japão com a Alemanha e a Itália, e a prisão de qualquer um que se identificasse como anarquista, Yamaga exilou-se e percorreu a China, Taiwan e as Filipinas. No pós-1945, retornou e encontrou um Japão devastado, recheado de bases militares estadunidenses e que estabelecia em sua constituição a renúncia “para sempre à guerra”15, sem abrir mão do fortalecimento das forças de ocupação e da polícia,com a aceitação e também o medo de boa parte dos japoneses. Deparou-se então com a urgência da rearticulação dos libertários no combate às inúmeras violências que ocorriam Yamaga percebeu a inquietação dos estudantes tomando forma com a Zengakuren e considereu isso como um momento propício para propagação do pensamento anarquista. Como destacou Crump, no Japão pós-Guerra, parecia que uma revolução logo eclodiria. “Por um tempo, tudo parecia possível. O odiado Estado militarista estava abalado, as forças policiais sobreviventes não tinham confiança e estavam inseguras de si mesmas no novo clima ‘democrático’, força de ocupação supervisionava tudo e era aparentemente benigna, o que de início encorajou as manifestações em oposição ao antigo regime” (1996, p. 33). Em 1946, Yamaga fundou a Federação Anarquista Japonesa (FAJ), e fez um resgate histórico com o relançamentoem 15 de julho de 1946, do periódico Heimin Shinbun (Jornal Plebeu), inventado por Kôtoku Shûsui e interrompido quando ele fora assassinado pelo Estado japonês no Incidente de Alta Traição.

15 Artigo 9º, Constituição de 1947. Disponível em: http://japan.kantei.go.jp/constitution_and_government_of_japan/constitution_e.html.

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Por comunicar-se em mandarim, japonês, inglês e esperanto, Yamaga ficou responsável pela Secretaria de Relações com o Exterior da FAJ. Para divulgar a Federação pelo planeta, Yamaga enviava para associações anarquistas uma carta em esperanto, como em 1955 quando, junto ao Heimin Shinbun, anexou documento sobre os resultados do congresso da FAJ que ocorreu em 10 de junho. Quando o Heimin Shinbun foi substituído pelo periódico Kuro Hata (Bandeira Negra), Yamaga também ficou responsável pela tradução em esperanto que enviava em anexo para seus correspondentes. A edição do Kuro Hata econtra- Capa Heimin Shinbun de 5 de agosto de 1951 com anúncio sobre manifestação em se no CIRA Lausanne e a versão em esperanto no Hiroshima. Fonte: CIRA. Ateneo Libertario em Buenos Aires.

Fonte: Kuro Hata 1º/08/1958, p. 1. CIRA-Lausanne; La Nigra Flago 1º/08/1958, p. 1. Ateneo Libertario.

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Yamaga se preocupou com as conexões com libertários em outros lugares. Em 1948, a Free Society Group of Chicago16, lançou um convite para libertários pelo planeta para enviarem textos a serem lançados em um livreto. Em 1951, o livreto foi publicado sob o nome de World Scene from the libertarian point of view, com 21 escritos de anarquistas. Entre os textos figuravam conhecidos nomes como do anarco-sindicalista russo, G. P. Maximoff; do autoproclamado “anarquista sem adjetivos” Rudolf Rocker e do historiador George Woodcock, um pequeno escrito do outro lado do Pacífico saudava o grupo estadunidense. “Greetings from Japan”, assinado por Yamaga Taiji e Ishida S.. Segundo nota antecedente ao texto, os editores receberam o artigo escrito em macias folhas de arroz, e tiveram de modificar alguns termos que dificultavam a compreensão. O pequeno artigo destacava o iminente confronto entre EUA e União Soviética, como em ambos locais os trabalhadores permaneciam escravos e o capitalismo continuando a crescer. “A energia atômica alterou a nossa era. Mas essa energia foi usada somente para a terrível guerra. O capitalismo move-se para destruir a si mesmo” (YAMAGA & ISHIDA, 1951, p. 82). Yamaga e Ishida tinham como alvo neste artigo o movimento One World que buscava promover a paz e que estava filiado ao World Federalist Movement, fundado em 1947 e se propunha a promover o “federalismo mundial” com base nos preceitos da ONU, nas reflexões de Albert Einstein – o físico do Projeto Manhattan que levou à construção das bombas atômicas – e de Mahatma Gandhi a respeito da paz. Os anarquistas no Japão destacaram que essa era da paz capitalista levava somente a mais autoritarismos. “Nós tememos que tão logo, a ideologia ‘One World’ será um sucesso na base capitalista, e isso irá terminar em tirania” (YAMAGA & ISHIDA, 1951, p. 82). A breve crítica dos anarquistas foi escrita no contexto da ocupação estadunidense no Japão e respondia diretamente às diretrizes adotadas e ao federalismo proposto pela ONU. Logo após a rendição do Japão, Truman assinou o documento, então secreto, Política Inicial para o Japão pós-rendição17, revelando que: “Os objetivos finais dos Estados Unidos em relação ao Japão, aos quais as políticas no período inicial devem obedecer, são: (a) assegurar que o Japão não volte a ser uma ameaça para os Estados

16 Grupo anarquista fundado em 1923, em resposta à União Soviética e às perseguições aos libertários. Lançaram obras de anarquistas como as de Volterine de Cleyre, Anarchism and American Traditions (1932) e Hyppolyte Havel, What’s anarchism (1932). 17 Texto na íntegra disponível na Biblioteca Nacional da Dieta, versão digitalizada em: http://www.ndl.go.jp/constitution/shiryo/01/022/022tx.html. Acesso em 02/09/2018.

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Unidos ou para a paz e segurança do mundo; (b) promover o eventual estabelecimento de um governo pacífico e responsável que respeite os direitos de outros Estados e apoie os objetivos dos Estados Unidos, conforme refletidos nos ideais e princípios da Carta das Nações Unidas. Os Estados Unidos desejam que este governo se adapte tanto quanto possível aos princípios do autogoverno democrático, mas não é da responsabilidade das Potências Aliadas impor ao Japão qualquer forma de governo que não seja apoiada pela vontade livremente expressa do povo” (EUA, 09/09/1951). Os anarquistas no Japão estavam atentos às apropriações de termos libertários e colocavam-se contra os preceitos da paz aos moldes estadunidenses, apregoados pela ONU. Destacam que o federalismo afirmado pelo movimento One World não passava da proclamação de fronteiras e do incentivo a novas guerras. Não se tratava do federalismo libertário, mas da manutenção e fortalecimento do Estado japonês aos moldes estadunidenses. Eles viviam uma ocupação e entendiam que esta somente poderia produzir novos conflitos. Tanto com a entrada ou apoio a novas guerras protagonizadas pelos EUA, como também nas violências cotidianas para que a ocupação pudesse ocorrer. No mesmo ano da publicação deste artigo, eclodia a Guerra da Coreia, com a invasão do Norte ao Sul. Ambas Coreias reivindicavam para si o controle da península inteira. O lado Norte era apoiado pela República Popular da China, proclamada em 1949, pelo líder Mao Tse Tung e pela URSS; do outro lado, estava a ONU com os EUA e que usava o território japonês para depósito de armas e de tropas. Mesmo sem a vitória do Sul, o Japão fez sua economia crescer com o fornecimento de suprimentos logísticos para os EUA. Foi dessa parceria militar-industrial que se promoveu o milagre econômico japonês (UEHARA, 2003). E assim se seguiria, somados aos sufocamentos internos, principalmente das manifestações estudantis e de operários; no plano externo, o Japão financiava guerras para promover o crescimento da economia. Durante a Guerra do Golfo, em 1990, o pacífico governo japonês doou aos EUA, que liderava o confronto com o aval da ONU, cerca de 13 bilhões de dólares, e tornou-se o segundo maior financiador, atrás somente da Arábia Saudita (WATANABE, 2011). A proposta dos anarquistas era acabar com as guerras por meio do pacifismo e do federalismo. No artigo em questão, os libertários não fazem referência ao federalismo político elaborado por Pierre-Joseph Prouhon18, mas o entendiam como um princípio para

18 O federalismo político em Proudhon é um confronto a uma ideia abstrata que organizaria a sociedade, o Estado. Em sua proposta, prevalecem as diferenças e a multiplicidade, mais do que uma certa

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acabar com o Estado: “Nosso ideal almeja uma federação sem Estado (...). Só, ou quando, o movimento ‘One World’ reconhecer o princípio do não Estado, então poderá ser realizado” (YAMAGA & ISHIDA, 1951, p. 83). A proposta dos anarquistas no Japão para o federalismo anarquista incluía o Esperanto. Este seria uma possibilidade de romper as fronteiras das nações e implodir o Estado. O Esperanto nunca foi consenso entre os anarquistas. Émile Armand, em El anarquismo individualista, propunha o uso de uma língua que já estivesse em uso ao invés de utilizar um idioma artificial. Para Armand, uma língua internacional se formaria no decorrer da comunicação entre os anarquistas, sem a necessidade de uma imposição. “Em todo caso, o tempo consagrado para o conhecimento de uma língua artificial, não seria melhor usá-lo na aquisição e na prática de inglês, alemão, japonês, russo ou simplesmente dinamarquês ou malaio ou qualquer outro idioma? Além disso, o anarquista fica perplexo com aqueles camaradas que, por se relacionarem com os esperantistas burgueses, acabam efetivamente esquecendo que qualquer um que direta ou indiretamente apoie o atual sistema de autoridade e exploração é o inimigo” (ARMAND, 2007, pp. 135-136). Na Enciclopédia Anarquista19, o verbete sem autoria, “Esperanto”, destaca as tensões apresentadas por Armand. Inicialmente, o esperanto é definido como uma língua artificial de fácil estudo que permite às pessoas de diferentes procedências comunicarem- se. O idioma foi forjado por Lazar Markovith Zamenhof ou, Dr. Zamenhof, que lançou o manual de Esperanto em 1887, resultado de um longo estudo linguístico em que são mesclados idiomas de matriz indo-europeias. Zamenhof buscou para o vacabulário os termos mais difundidos e, para a gramática, baseou-se no que entendia como o mais

uniformidade a qual todos seriam submetidos. É uma oposição a qualquer tirania e centralidade. Nesse princípio, as particularidades convivem entre si, em um equilíbrio entre autoridade e liberdade. Sendo que, por meio da análise serial, Proudhon afirma que não há nenhuma sociedade que viva completamente em liberdade, nem mesmo em autoridade. Não há síntese entre elas, mas uma convivência, uma tensão constante e perpétua que seria força motriz da história (Cf.: PROUDHON, 2001). 19 Projeto realizado por Sébastien Faure (1858-1942) quando convidou alguns libertários para escrever sobre assuntos referentes aos anarquismos. Iniciada em 1924, em uma reunião de Faure com alguns amigos na Librairie Internationale (Paris), a enciclopédia tinha como objetivo divulgar a prática anarquista e instigar confrontos a autoridades centralizadas. Foi lançada em 1934 pela editora La Librairie Internationale em 4 grandes volumes, com mais de 600 páginas cada um. São vários artigos, alguns não assinados, outros sim, o de Émile Armand, Max Nettlau, Han Ryner, Errico Malatesta, Ixigrec... Faure pretendia que a Enciclopédia ganhasse várias versões em outros idiomas. Seus amigos procedentes da Espanha, Buenaventura Durruti e Francisco Ascaso comprometeram-se em traduzir para o espanhol. Entretanto, as perseguições aos anarquistas e a eclosão da Revolução Espanhola tornaram impossível a tradução no momento (ENZENSBERG, 1986; ENCYCLOPEDIE ANARCHISTE, 1934 [disponível em: http://www.encyclopedie-anarchiste.org. Acesso em 12/03/2019]).

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simples, o inglês. Entretanto, o Esperanto difundiu-se rapidamente nos meios burgueses: “deve-se reconhecer que, ao contrário das esperanças de Zamenhof, o Esperanto penetrou muito mais rápido nos círculos burgueses que o usaram para fins desprovidos de idealismo. Os comerciantes entenderam especialmente toda a utilidade para o desenvolvimento de seus negócios. Um burguês ocioso aprendeu com esnobismo. As instituições católicas se abstiveram de negligenciar essa ferramenta que poderia servir tão bem a sua propaganda. Os policiais, finalmente, apressaram-se em tirar vantagem disso. Infelizmente, os próprios chauvinistas não tinham escrúpulos em usá-lo para seus projetos durante a guerra” (ENCYCLOPEDIE ANARCHISTE, 1934, v. 2, pp. 709-710). Mais tarde, o Esperanto conseguiu atingir o meio operário, principalmente os anarcossindicalistas na Associação Internacional de Paco-Libereco, “Paz e Liberdade”, com a publicação Internacia Socia Revuo (Revista Social Internacional) e que também realizava traduções de livros e artigos de anarquistas (ENCYCLOPEDIE ANARCHISTE, 1934, v. 2). Em agosto de 1907, Emma Goldman relatou na revista Mother Earth sua ida ao Congresso Internacional Anarquista, acompanhada do então coeditor do periódico Max Baginski. Ali estavam aproximadamente oito representantes de diferentes vertentes dos anarquismos de diversas localidades 20 . Algumas conferências foram realizadas em Esperantoe, segundo as impressões de Goldman, se todos soubessem o idioma haveria melhor utilização do tempo, visto queas falas precisavam ser traduzidas para o francês, inglês, holandês e alemão. Entretanto, apesar das possíveis facilidades que o Esperanto poderia trazer, Goldman questionou: “Mas acreditar que uma língua arbitrária e mecânica pode substituir tudo que cresce fora do solo, a vida e os costumes das pessoas, isso é de fato ser sectário” (GOLDMAN, 1907, p. 236). Na ocasião, Goldman ainda se deparou novamente com a questão do Esperanto quando, ao conduzir a última sequência de exposições do congresso, diferentes anarquistas abordaram temas sobre sociedades

20 O Congresso ocorrera em Amsterdã de 24 a 31 de agosto. Os representantes vieram da França, Bélgica, Itália, EUA, Polônia, Sérvia, Suécia, Romênia e Holanda. Entre eles – o mais velho, mas com os olhos fervendo pela revolução e uma das figuras mais interessante, como descrevera Goldman –, estava Errico Malatesta. As discussões centrais do Congresso eram a respeito de anarquismo e organização, a relevância do sindicalismo e a formação de uma Internacional Anarquista. A discussão referente à organização já estava presente no Congresso Anarquista Italiano, realizado em Roma entre os dias 16 e 20 de julho de 1907, quando Luigi Fabbri lançou seu famoso texto “A organização anarquista” (1907), norteador até hoje de muitos grupos anarquistas partidários da organização.

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cooperativas, coeducação, alcoolismo e a língua artificial. Porém, devido ao controle do tempo, encerrou-se o encontro sem os temas fossem discutidos21 (GOLDMAN, 1907). Posteriormente, a Escola Moderna de Nova York, da qual Emma Goldman tomou parte na fundação e chegou a coordenar suas atividades22, mantinha, além de aulas em francês e inglês, um curso de esperanto, lecionado por James Morton – vice-presidente da Associação de Esperanto da América do Norte (AVRICH, 1980). No Brasil, um dos incentivadores do Esperanto foi Roberto das Neves, anarquista nascido em Portugal, que migrara e se estabelecera no Rio de Janeiro, em 1942. Daqui travou suas lutas contra a ditadura de Salazar por meio da Editora Germinal, onde traduziu, prefaciou e publicou textos de anarquistas pelo planeta23. Das Neves, aos 28 anos, quando ainda residia em Portugal, concluiu o Curso Completo de Esperanto, e foi coautor de um dicionário Português-Esperanto, Esperanto-Português (FERREIRA, 2013). Quando Das Neves foi visitar o CIRA Lausanne, viajou por alguns países da Europa – Itália, Romênia, Bulgária, Iugoslávia, Áustria, Alemanha, Suíça. À exceção da Suíça e da Romênia, em todos os outros locais utilizou o Esperanto para comunicar-se. E escrevera de Lausanne ao amigo Pietro Ferrua, em 7 de abril de 1968: “Foi uma experiência altamente interessante, que vos contarei aí, à minha chegada, e em livros que pretendo escrever. Estou oficialmente convidado pelos esperantistas a voltar, no próximo

21 No decurso do congresso, nas discussões a respeito do anarcossindicalismo, Goldman e Baginski afirmaram a ação individual e eventualmente concordaram com as propostas de insurreição coletiva. O Congresso também deliberou sobre a formação de uma Federação Anarquista Internacional que, após muita discussão, deveria ser formada por grupos, associações e pessoas que quisessem. Seria composta também por um bureau de correspondência, composto por 5 integrantes – Alexander Schapiro, Jean Wilquet, John Turner, Rudolph Rocker e Errico Malatesta. O Congresso encerrou-se com uma declaração de apoio à Revolução Russa daquele ano e concluiu a urgência de promover os anarquismos ali e apoiar a Revolução. Goldman concluiu em seu relato que “independente do que pode vir a ser este trabalho ou das resoluções do Congresso, é indubitável uma aproximação internacional e ficou comprovado para o mundo que o movimento anarquista não pode mais ser tratado como ‘do tempo da manivela’, mas difunde-se no esforço sincero para travar uma guerra contra todo poder e opressão” (GOLDMAN, 1907, p. 245). 22 A Escola Moderna de Nova York, ou Escola Ferrer, foi fundada no primeiro dia do ano de 1911. Seu nome era uma homenagem ao republicano e educador Francisco Ferrer y Guardía, executado dois anos antes na Espanha. A proposta de Ferrer y Guardía era um ensino racionalista, pautado na observação da natureza e das relações sociais e não em dogmas. Anarquistas no Brasil também montaram suas escolas modernas, como as de Florentino de Carvalho, no Brás e na Mooca, em São Paulo, onde alfabetizava trabalhadores e crianças, promovia o ensino de línguas, realizava festas e promovia outras relações apartadas de escolas orientadas pelo Estado e pela Igreja. 23 Entre algumas das obras lançadas pela editora Germinal, estão: Sébastien Faure (1958). 12 provas da inexistência de Deus; Émile Armand (1960). Nova ética sexual; Han Ryner (1961). Manual filosófico do Individualista; José Oiticica (1960). Curso de Literatura; Piotr Kropotkin (s/d). O anarquismo e a ciência moderna; Daniel Guérin (1968). Anarquismo: da doutrina à ação.

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ano, à Bulgária (onde colherei notas para um livro intitulado “Bulgario paradiso de esperantistoj”) e à Polônia” (DAS NEVES in FERRUA, 2009a, p. 154). No periódico O Libertário (junho/julho 1963, n. 20-21), editado por Pedro Catallo, Roberto das Neves publicou o artigo “Aspecto social do esperanto”. Apresentou o idioma como uma “língua neutra e alheia às concepções nacionais, políticas, sociais, religiosas” (p. 1), sendo usada por estadistas a anarquistas. Acreditava que o Esperanto poderia promover outras sociabilidades, assim como pensou Yamaga, aproximando pessoas de diferentes procedências sem demarcá-las pela nacionalidade, formando o que chamava de “cidadão do universo” (p. 1). Em Assim cantava um cidadão do mundo (1952), Das Neves recordou a fundação do Brazila Instituto de Esperanto, que funcionava no 18º andar do Edifício Rex, na cidade do Rio de Janeiro, o mesmo local onde funcionava a editora Germinal. Mas, em 24 de janeiro de 1951, ocorreu um incêndio naquele prédio, destruindo os rascunhos de livros para publicação e também de Assim cantava um cidadão do mundo, posteriormente publicado sem alguns poemas que foram perdidos. A partir daí, Das Neves dedicou-se apenas à editora, deixando de lado reconstrução da escola de Esperanto (DAS NEVES, 1952). A seção do CIRA Brasil, a qual Das Neves fora emissário quando viajou a Lausanne, também possuía seu estatuto em esperanto. Entretanto, como destaca Ferrua, não se tem certeza sobre a qualidade da tradução, visto que, o Dr. Francisco Viotti de Caxambu, o tradutor, não possuía total domínio da língua24. A discussão sobre o Esperanto entre os anarquistas esteve presente como uma possibilidade de contato com quem seria mais difícil de comunicar-se. Yamaga entendia que pelo Esperanto seria possível uma troca das ideias e práticas anarquistas pelo planeta. Em Le Monde Libertaire25 de julho de 1955, um texto de Yamaga foi traduzido do Esperanto para o francês por Etienne Guillemau e publicado na edição número 10 do periódico.

24 Para consulta do estatuto do CIRA, ver FERRUA, 2009a, pp. 165-169. 25 Periódico filiado à Federação Anarquista francesa e identifica-se como o herdeiro do jornal Le Libertaire fundado por Sébastien Faure e Louise Michel em 1895. Fechado pela primeira vez em 1914, por conta da I Guerra Mundial, retornou em 1919, e foi novamente interrompido pela Guerra em 1939. Retornaria somente em 1944, já filiado à Federação contando com o auxílio de Léo Ferré, Albert Camus e André Breton (MAITRON, 1992).

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O artigo “Victimes anarchistes au Japon”, em duas páginas, relatava brevemente o Incidente de Alta Traição26 e o assassinato de Ôsugi Sakae. Este último, destacado por Yamaga como o pioneiro do movimento esperantista no Japão 27 . Sem estender as descrições a respeito do período pré-Guerra no Japão, Yamaga critica a União Soviética, e a violência empregada para sufocar os anarquistas; assim como a ocupação estadunidense, que, com sua promessa de paz, armou o Japão para que combatesse naGuerra na Coreia. E, a respeito dos anarquistas na década de 1950, informou: “Quanto a nós, lutamos pelos jovens, convidando-os por meio da propaganda para nunca obedecerem ao recrutamento, mas oporem-se, que todos se declarem “cidadãos do mundo” e que, se necessário, expatriem-se ou lutem e protestem até a queda do governo para evitar uma nova guerra. E no caso de uma nova guerra, temos de nos organizar para realizar a revolução social no Japão, com o apoio de homens e mulheres do mundo” (YAMAGA, 1955, p. 2). Ao enviar textos em Esperanto, ou mesmo em inglês, para os periódicos libertários, Yamaga restabelecia as conexões com os anarquistas, como muitos o fizeram no começo do século XX. Mesmo os interesses e as inquietações sendo outras, afirmava o internacionalismo anarquista e a urgência em se dar fim ao governo. Para Victor García, “Yamaga chegou a ser a ligação mais importante e regular existente entre o Japão e o resto do mundo. Isso graças a seus conhecimentos magistrais do idioma internacional de Zamenhof” (2013a, p. 73). Em carta enviada à CNT Toulouse – órgão da Confederação Nacional do Trabalho da Espanha em Exílio – e publicizada em 17 de agosto de 1952, Yamaga escreveu às Juventudes Libertárias (FIJL): “A história do nosso movimento no Japão nos diz que muitas vezes lutamos por meios violentos (muitos camaradas usaram a arma de fogo, a bomba e atacaram seus inimigos). Desde a guerra, com o surgimento da bomba atômica, a luta violenta parece inútil. É por isso que estamos preparando a propaganda chamada "resistência passiva" e "desobediência contra a injustiça", segundo a linha de Gandhi;

26 Em 24 de janeiro de 1911, acusados de tentar assassinar o Imperador. 12 anarquistas foram enforcados, entre eles Kôtoku Shusui e Kanno Sugako. Outros 12 foram condenados a prisão perpétua, um a 10 anos e outro a 8 anos. Na época, Yamaga tinha 18 anos. 27 Ôsugi dedicou-se ao Esperanto em uma de suas várias passagens pela prisão de Chiba, onde também estudou italiano e alemão. Anteriormente, aprendeu francês e inglês. O contato de Yamaga com Ôsugi remonta à Federação Esperantista fundada pelo último junto com Toshihiko Sakai. Yamaga foi o secretário da associação quando tinha apenas 15 anos (GARCÍA, 2013a).

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declaramos nosso conteúdo cultural básico como cidadãos do mundo e escolhemos o esperanto como língua mundial” (YAMAGA apud GARCÍA, 2013a, p. 80). Yamaga articulou o Esperanto ao pacifismo, aos moldes de Mahatma Gandhi. Admirava a não violência professada pelo indiano. Anos mais tarde, após essa aproximação feita por Yamaga entre os anarquismos e a não violência, em 1973, o historiador George Woodcock escreveu um post-scriptum para sua obra Anarquismo: uma história das ideias e movimentos libertários, composta em duas partes: ideia e movimento. Apesar de ter decretado a morte do anarquismo após o aniquilamento da Revolução Espanhola em 1939, apontou para o único movimento que via como neoanarquista: “Provavelmente, de fato, a única região do mundo onde ainda existe um movimento neoanarquista entre os desprivilegiados é a Índia. Gandhi, em muitas ocasiões, declarou-se anarquista – à sua maneira – e criou, em parte com suas leituras de Tolstoi e Kropotkin e em parte fundamentado nas tradições comunitárias indianas, o plano de uma sociedade descentralizada baseada em comunidades rurais autônomas” (WOODCOCK, 1984, p. 212). A filiação de Gandhi aos anarquismos já estava presente na obra de Woodcock, no primeiro volume de Anarquismo, ao identificar o anarquismo pacifista com raízes em Tolstói e que se desenvolveria com mais força “na Holanda, Inglaterra e Estados Unidos antes e depois da II Guerra Mundial”. Enquanto isso, na Índia, haveria “seu mais importante discípulo, Gandhi, [que] tentou dar forma prática a essa doutrina [da não violência]” (1983, p. 18). Entretanto, Gandhi era um pacifista estatal. Não pretendia abolir o Estado indiano, ou acabar com as autoridades centralizadas, mas promover a independência em relação à Inglaterra. Por sua vez, Yamaga era um homem de seu tempo e marcado pelas guerras do Japão imperial, pela execução de seus amigos e por exílios. Seu apoio às ideias de Gandhi era uma busca de evitar uma guerra a qualquer custo. Apesar de enaltecer o estatista indiano, jamais abriu mão da luta contra o Estado.

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Yamaga Taiji em agosto de 1951 distribuindo o periódico kuro hata (bandeira negra) em manifestação contra a bomba nuclear. Fonte: CIRA-Japana. Karenda 2011.

Gustavo Simões ao esmiuçar o percurso de John Cage, atentou para o duplo pacifismo/antimilitarismo. Cage sitou seu antimilitarismo na década de 1970, após anos afirmando-se como pacifista. O antimilitarismo estaria fora da sintaxe política, distanciando-se dos inúmeros protestos pacifistas ligados a alguma demanda ao governo, o que significa, segundo Simões ao retormar uma passagem de Cage, entrar no jogo das relações de poder do governo sem criar algo novo, sem destruí-lo, mas ajudando a mantê- lo. O grupo anarquista The Living Theatre, também articulou o pacifismo à anarquia, como salientou Simões, unindo a partir da leitura da desobediência civil, de Henry David Thoreau, o movimento pacifista estadunidense com a anarquia. Muitas vezes, Julian Beck e Judith Malina, fundadores do The Living Treatre foram encarcerados em ações pacifistas. Entretanto, não deve ser confundido com atividades de reforço da sintaxe política em suas negociações, como havia destacado Cage, mas em ações diretas para acabar com o Estado. Uma das leituras que influenciaram a invenção do The Living Theatre fora Paul Goodman, também atravessado pelas discussões pacifistas. Paul Goodman, em 1962, publicou na revista Liberation o artigo, “‘Getting into power’ the ambiguities of pacifist politics”em que realizou uma breve análise do Estado, mostrando que não importa quem exerça os cargos na administração governamental, todos desistiram de si mesmos para trabalhar na maquinaria oficial e, provavelmente,

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ganhar um bom salário. Assim, analisa a candidatura para o Senado estadunidense de Stuart Hughes, que se colocava como um pacifista e uma alternativa ao partido democrático e ao republicano, na época atraindo assinaturas para se candidatar. Para Goodman, tal posição apenas fortalece o Estado, no qual a guerra sempre existirá para sua manutenção. Hughes, na leitura do anarquista, não é pacifista. Ocupar um cargo no governo, um cargo de representante, não faz uma mudança radical nas relações sociais, mas corrobora com essas e as fortalece. O pacifismo seria revolucionário e só acontecendo em articulação com a anarquia (GOODMAN, 2010). No Brasil, no começo do século XX, a atenta anarquista Maria Lacerda de Moura problematizou a emergência do fascismo também afirmando o pacifismo na anarquia. Um dos meios de combate ao Estado seria por meio de uma educação racionalista, como postulada pelo espanhol Ferrer y Guardía, para quem a violência é a razão da ignorância e por isso é preciso combatê-la em todas as suas formas. Com a educação pautada na não violência e uma instrução popular racional e científica, a criança não aceitaria nada pela fé, mas aguçaria a observação, não se tornando assim subserviente ao Estado. Na construção de seu pacifismo, Maria Lacerda de Moura também associou Tolstoi e Gandhi. Em Amai e... não vos multiplicai, lançado originalmente em 1932, chegou até mesmo a sugerir que as mulheres não procriassem mais para que seus filhos não fossem usados como carne para os canhões. “Esse deve ser o método da não-violência feminina, da não cooperação. É a abstenção, a recusa terminante para não alimentar as mandíbulas vorazes das guerras ou dos prostíbulos. As sociedades, as pátrias, as nações, os privilégios têm sua base estabelecida sobre a violência. A única arma eficaz e ao alcance das consciências livres contra a maldade da violência – é a não-cooperação, a não violência” (LACERDA DE MOURA, 1932, pp. 251-251). Contra a nação, o Estado e suas violências, a resposta deve ser a não cooperação. Deixar de servir, como já afirmara séculos antes Etienne de la Boétie. Assim, o pacifismo de Lacerda de Moura não está tangenciado por qualquer afirmação estatal, como ocorreria em Yamaga. A anarquista apresenta uma diferença vital entre o pacifismo que expõe e o pacifismo aos moldes da Cruz Vermelha: “demonstrar a hipocrisia do pacifismo que tem por fim enganar e melhor preparar as guerras, pacifismo de toda a horda dos vampiros – financistas, diplomatas, capitalistas e políticos, reis ou ditadores que se nutrem do material industrial e humano, fazendo-os se destruírem simultaneamente nos campos de batalha. A Cruz Vermelha é uma das mais ferozes armas de guerra: muitos homens vão à

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guerra porque há mulheres na Cruz Vermelha. Ou por sentimentalismo ou por crapulagem” (LACERDA DE MOURA, 1932, 2005, p. 252). Lacerda de Moura afirmava o pacifismo na anarquia; recusava qualquer serviço militar obrigatório, até mesmo quando estendido a mulheres; e combatia instituições financiadoras da guerra travestidas de pacifismo. Estar filiado ao Estado é também apoiar a guerra, afirmou em “Serviço militar obrigatório para a mulher? Recuso-me! Denuncio!”, lançado em 1933: “todos os governos são cúmplices, consciente ou inconscientemente, dos canibais civilizados, forjadores das guerras” (LACERDA DE MOURA, 1932, 2005, p. 346). A anarquista estava em combate ao Estado, recusava participar de qualquer uma de suas políticas. Em “A política não me interessa”, destaca como o voto é uma das armas do vampirismo social; é aplaudir “a miséria parasitária que inventou e representa a tournée da teatralidade dos governos, da política, da força armada, da burocracia e afilhados (...). Depois a rotina, a tradição, a escola, o patriotismo cultivado, carinhosamente, para que a carneirada louve em uníssono, o cutelo bem afiado dos senhores” (LACERDA DE MOURA, 2006, p. 231). O pacifismo, atrelado ao antimilitarismo em Lacerda de Moura, não estava nos acordos ou na constituição, mas em combater a subserviência, a educação para a guerra e a manutenção do Estado. Entretanto, Yamaga, diferente de seus contemporâneos do outro lado do Pacífico, e de Maria Lacerda de Moura, muitas vezes se viu diante da encruzilhada entre o antimilitarismo e o pacifismo. Diante das guerras pela Ásia, na segunda metade do século XX, recorreu a afirmar a Constituição japonesa que proibia o país de constituir um exército. Defendia que, segundo o proclamado pela Constituição, não poderia haver as forças de defesa, e estas, como constatara, também consistiam em um exército. A defesa da Constituição por Yamaga também estava em suas manifestações contra o uso dos portos japoneses como parte de um financiamento da guerra. Assim, junto com seus amigos da FAJ, nas questões referentes à guerra, entendia que era necessária a sintaxe política recorrendo à Constituição, para evitar um retorno de Hiroshima, Nagasaki ou da Unidade 731. No congresso de 10 de abril de 1954, a FAJ lançou uma carta distribuída internacionalmente, em que situava o seu pacifismo a partir da discussão sobre o teste de armas nucleares pelos EUA, com apoio do governo japonês em Atol Bikini, em março daquele ano. “Nós somos inerentemente radicais do ponto de vista da grande maioria dos trabalhadores japoneses, pois protegemos a base da constituição sobre a eterna exclusão da guerra e o rearmamento para sempre, e, portanto, especialmente nós, muitas vezes

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declaramos uma forte oposição na fabricação de armas atômicas que conduz a humanidade à destruição nas guerras. Agora temos de protestar fortemente contra os EUA, que furiosamente ignoram o consenso internacional, e faz o experimento, o que poderia danificar o mar do mundo todo em até 60 milhas de distância de onde estão. Sem compreensão, sem consultar os países vizinhos, mas apenas por sua própria arbitrariedade, sua própria posição. Além disso, você pode imaginar, a partir do resultado imposto, que, se tal experiência seria repetida à diante, a destruição e as cinzas pela explosão causariam danos inimagináveis em alguns lugares do mundo através da estratosfera, especialmente no Pacífico Sul do Oceano que é a principal fonte de recursos dos pescadores japoneses” (FAJ, 10/04/1954, p. 2). No trecho da “Malfermita Letero” (Carta Aberta), observa-se o receio dos anarquistas que integravam a FAJ de um novo confronto; cabia qualquer ação para evitar uma nova guerra, até mesmo apelar para a constituição. Apesar de quererem a destruição do Estado, entendiam que, por vezes, é preciso utilizar-se estrategicamente dos meios institucionais e de um apelo à Constituição. Yamaga foi um dos principais adeptos dessa prática. O artigo de Yamaga citado anteriormente, “Victimes anarchistes au Japon”, enaltece a constituição japonesa imposta pelos EUA, para criticar o rearmamento que vivia o país na década de 1950, incentivado pelos estadunidenses. Segundo Yamaga, a resposta a isso, além de recorrer à lei, seria lutar “pelos jovens recrutas, convidando-os pela propaganda para nunca obedecerem ao recrutamento, mas pelo contrário, para que todos os jovens se declarem ‘cidadãos do mundo’ e que, se necessário, expatriem-se, lutem e protestem até a derrubada do governo, a fim de evitar uma nova guerra. No caso de uma nova guerra, organizar a revolução social no Japão, com a ajuda de camaradas homens e mulheres do mundo” (1955, p. 2). Assim, em Yamaga, a questão inicial está em evitar a guerra de todo modo e incentivar a deserção dos jovens das Forças de Autodefesa do Japão (o substituto do exército pós-1945). Ainda que a FAJ se orientasse pelo pacifismo de Yamaga, havia confrontos entre seus integrantes que pulsavam embates anarquistas no final da década de 1940. No III Encontro da Federação, em 1948, com cerca de 200 integrantes, debateu-se os limites do novo sindicalismo legalizado instituído pela Constituição, a presença da base militar estadunidense em Okinawa e as ameaças frequentes aos anarquistas pelas tropas de MacArthur. A reunião só articulava a região de Kanto (Tóquio e suas proximidades), mas a divulgação do Heimin Shinbun instigou a inauguração de outras associações

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anarquistas, em Kyoto, Osaka, Fukuoka, Hiroshima, Nagoya, entre os mineiros de Kiushu, os pescadores de Chizuoka e os camponeses de Nagano. Cresciam os exemplares que circulavam com traduções de Elisée Reclus, Piotr Kropotkin, Rudolf Rocker, Hebert Reed e anarquistas coreanos (GARCÍA, 2013a). Esse era um momento de reencontro dos anarquistas sobreviventes, de ter notícias do desaparecimento ou morte de tantos outros. No encontro de 195128, a Federação contava com anarquistas de variadas vertentes. O debate sobre a construção de um plano de ação foi posto por alguns integrantes que propunham um programa plataformista. A Federação dividiu-se: de um lado os plataformistas e, de outro, aqueles que achavam importante reunir os libertários da Ásia, localizar materiais perdidos durante a Guerra e estabelecer contato com outras associações pelo planeta. Nesse debate insolúvel e por conta da intransigência dos partidários do plataformismo, parte da Federação pulverizou- se, associando-se a outros grupos ou formando novos29. No encontro de 1951, a FAJ reeditou seu estatuto, enviado juntamente com cópias do Heimin Shinbun para os contatos em vários cantos do planeta. Era uma tentativa de reorganizar a Federação. No documento previa-se a adoção do comunismo libertário, delimitando quais seriam as funções de cada seção da organização, estabelecendo uma hierarquia entre elas e expondo como se daria a representação em seus conselhos. Um dos remanescentes da FAJ que participou da formulação do estudo fora Masamichi Osawa, um dos fundadores da Federação junto com Yamaga e adepto do plataformismo. Posteriormente, na década de 1960, relatou ao jornal anarquista impresso no Japão, The Echo, sobre a organização: “a federação que iniciamos não era um órgão de contato anarquista como antes. Caracterizava-se como um grupo anarquista específico que se propunha a atuar com base em princípios e contrato. Nós organizamos a nova Federação partindo do seguinte pressuposto: a antiga Federação se limitava à reunião social em nome do anarquismo e não tinha força dos movimentos que se propõe à

28 Mesmo ano em que o Japão assinou o Tratado de Segurança, que autorizava os EUA a manterem suas tropas no solo japonês e, em caso de ameaças, responsabilizavam-se por sua defesa. 29 Um grupo chamado de anarquistas puros, seguidores das propostas de Hatta Shuzô, formou o Clube Anarquista do Japão. O Clube opunha-se a qualquer articulação com sindicatos. Iwasa, um dos seus integrantes mais conhecidos, entendia que os sindicalistas eram somente ladrões que roubavam dos capitalistas e quando já não tinham mais nada para saquear, mudavam de alvo, assim, não haveria nada de revolucionário nos sindicatos (OZEKI; BADINOFF, s.d). Posteriormente, o Clube ficou reduzido a cerca de 10 participantes, interessados no resgate histórico dos anarquismos no Japão. Entre seus integrantes estava Misato Toda e Philipe Pelletier, que se interessou particularmente pelo anarcossindicalismo no Japão no começo do século XX.

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emancipação do gênero humano; ou seja, o progresso do nosso movimento não podia ser esperado sem as atividades precisas através de uma organização baseada em princípio e em contrato. Apesar de tais expostos, o princípio e o contrato adotados pela Federação não foram devidamente discutidos por todos os integrantes. (...) O espírito que animara em um começo a Federação foi gradualmente ignorando-se e, como consequência, também se ignorou o significado do pacto” (MASAMICHE in THE ECHO, 25/05/1962). Apesar dos esforços de Osawa em justificar o ostracismo em que cairia a Federação, outros anarquistas levaram adiante suas ações. Yamaga constatou que os associados dos novos grupos que emergiam, tinham em sua maioria, nascido no século anterior e não conseguiam difundir material, a não ser entre eles mesmos. Diante desse impasse, foi lançado o Kuro Hata (Bandeira Negra) já que o Heimin Shinbun não instigava os mais novos. Este atraia a leitura de quem se sentia ligado ao conceito de heimin, uma casta, semelhante à plebe, que existiu antes da Era Meiji. Segundo Tsuzuki Chushichi, ao fazer um levantamento histórico da FAJ, “Heimin, diferente de seus predecessores, editados por Kôtoku e Ôsugi, não criou um choque social” e, segundo o anarquista, já em 1946, o periódico tornara-se idealista, sem muita aproximação com as urgências das ruas e dos jovens (TSUZUKI, 1971, p. 110).

Integrantes da Federação Anarquista Japonesa em 1957. Fonte: CRUMP, 1996, p. 36.

O novo jornal estamparia em suas edições acontecimentos anarquistas. Assim, no seu quarto número, estampava na capa os mártires de Chicago na Revolta de Haymarket, que culminou na execução de 5 anarquistas sob a acusação de terem lançada uma bomba

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contra a polícia matando um deles e ferindo outros 7. Já a edição número 8 do jornal, foi inteiramente dedicada à obra de Mikhail Bakunin, com publicações de alguns textos e destaque para as versões de Ôsugi Sakae, o pioneiro em traduzí-lo para o japonês. Em outra edição, de número 43, discutia-se e se traçava um histórico da Revolução Espanhola, apresentando o combatente Buenaventura Durrutti e as associações CNT e FAI. Esse resgate histórico realizado pelo Kuro Hata tinha como objetivo apresentar àqueles que não tiveram contato com os anarquismos as lutas travadas em outros momentos. O jornal também realizava esse resgate dos anarquismos no Japão, com constantes publicações a respeito da obra de Ôsugi Sakae e Ishikawa Sanshirô – um dos assinantes do Manifesto dos 16 e tradutor das obras de Elisée Reclus. O primeiro seria homenageado na edição de número 13, de 18 de setembro de 1956. Ishikawa estava vivo, porém seu estado de saúde não o permitiu se engajar nas atividades da Federação. Quando de sua morte, em 28 de novembro de 1956, um anúncio foi publicado no Kuro Hata de 3 de dezembro que, além disso, preparou para a edição 19, em 18 de dezembro daquele ano, relatos sobre seu velório e textos com recordações de sua obra. Assim, o Kuro Hata tentava propagar as experiências anarquistas pelo Japão e instigar adesões à FAJ. Mesmo assim, a Federação não conseguia criar novas articulações e perdia o impacto que tivera inicialmente. Um de seus integrantes destacou: “temos que elaborar um programa para atividades atuais, mas nunca consideramos isso. Nós temos um ideal de princípios, mas eles permanecem não realizados. Temos alguns integrantes espalhados pelo país, a maioria são apenas nomes no registro que não fazem nenhuma contribuição; outros são apenas simpatizantes. (...) Temos alguns esforços dispersos. De positivo temos um boletim irregular e esporádicos encontros que ninguém presta muita atenção...” (LIBERO INTERNATIONAL, n. 2). Yamaga, mesmo com o enfraquecimento da Federação, continuou a afirmá-la e realizava viagens à Europa distribuindo artigos sobre os anarquistas no Japão. A Federação perdeu mais espaço ainda ao não se associar a outros grupos anarquistas que criticavam o Stalinismo e sua ação na Hungria em 1956. As agitações que abriram a década de 1960, também seriam marcadas por um silenciamento da FAJ. Em 10 de junho de 1960, chegou pelo aeroporto de Haneda, o Secretário de Imprensa da Casa Branca, James Hagerty, para acompanhar a revisão do Tratado de

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Segurança Japão-EUA (do inglês Amerika-Japan Joint Security Treaty – AMPO)30, proposta pelo então primeiro-ministro Kishi Nobusuke31. Grupos nacionalistas e pró- EUA, com capacetes de construção ou faixas na cabeça com a bandeira do arquipélago, receberam a delegação estadunidense armados com paus para amedrontar e espancar qualquer manifestante que fosse contrário à visita. Cinco dias depois seria a votação da reforma do AMPO. Naquele dia foi decretada greve geral e os estudantes pararam Tóquio. Em frente ao portão sul do prédio da Dieta, estavam cerca de 11 mil manifestantes. A ala principal da Zengakuren ignorou as ordens e a barreira feita pelo PCJ, que pregava uma manifestação pacífica, e entrou em confronto com a polícia, que havia organizado um cerco com caminhões antimotins. Cerca de 400 pessoas invadiram o edifício. Naquela noite, uma jovem de 22 anos, estudante da Universidade de Tóquio, Kamba Michiko, foi espancada e assassinada pela polícia. Os que tinham entrado no prédio foram retirados a força durante a noite (TSUZUKI, 1971; ZENGAKUREN, 2010). As manifestações eclodiram nos dias que se seguiram por todo Japão. Os confrontos com a polícia eram agitados principalmente pela Sôhyô (abreviação de Nihon Rôdô Kimiai Sô Hyôgikai – Conselho Geral dos Sindicatos do Japão), que tinha aproximadamente 6 milhões de integrantes. Mesmo assim, a reforma foi aprovada na noite de 19 de junho de 1960. O PSJ e o PCJ uniram-se e passaram a professar o discurso de revogação do AMPO por vias parlamentares, enquanto isso, seus militantes permaneciam na frente do prédio da Dieta e faziam guarda para evitar que os estudantes, trabalhadores e outros manifestantes invadissem o local (TSUZUKI, 1971; ZENGAKUREN, 2010).

30 O acordo fora assinado após 1952, ano do final da ocupação estadunidense, e previa que os EUA manteriam tropas militares para prevenção de confrontos internos no Japão e para manter a paz e a segurança no extremo oriente. Manifestações tomaram o país após a aprovação do acordo, e estabeleceu- se uma nova data para a revisão dos termos. Em janeiro de 1960, quando seria feita a revisão, manifestações tomaram o país. Inicialmente as greves foram direcionadas pelo PCJ por meio da organização do Conselho do Povo, o que não obteve grande sucesso diante da Zengakuren. A união estudantil aliou-se a trabalhadores, pacifistas e a qualquer outro interessado, organizando manifestações que duravam dias (NAMAZU, 1979, n. 3). 31 Primeiro-Ministro entre os anos de 1957 a 1958. Conhecido por participar das atrocidades cometidas na invasão da Manchuria em 1931, foi apelidado de Shôwa no Yôkai (O montro da Era Shôwa). Ficou preso por três anos após a II Guerra Mundial. Entretanto, o governo dos EUA o considerou importante para dirigir o Japão de acordo com os interesses estadunidenses, assim, ele foi reapelidado como “O criminoso de guerra predileto dos EUA”. Kishi também é o avô materno de Shinzo Abe, Primeiro-Ministro do Japão entre 2006 e 2007 e de 2012 até o presente.

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Enquanto isso, o Kuro Hata chamava por uma greve geral que derivaria em uma revolução social, mas não queria depender das manifestações que ocorriam no Japão por serem majoritariamente da esquerda. Não apoiava diretamente as manifestações para assim marcar um certo distanciamento com a Zengakuren. Não conseguira atingir novos leitores para além dos integrantes da federação, alguns amigos e algumas associações fora do Japão (TSUZUKI, 1971). As manifestações anti-AMPO tomaram outros rumos com a construção de um novo aeroporto na região de Kanto, já que o de Haneda estava sobrecarregado com os voos estadunidenses, que apenas aumentavam com o uso do Japão como base para a Guerra do Vietnã.

Estudantes em protesto anti-AMPO em frente ao prédio da Dieta Nacional. Fonte: https://timeline.com/japan-zengakuren-riots-anarchist-6b6cbcac0a97. Acesso em 10/12/2018.

A região escolhida foi Sanrizuka. Não tardou para que os confrontos que ocorriam em Haneda contra a presença dos estadunidenses e contra a guerra se alastrassem por todo o Japão. Inúmeras greves e confrontos entre camponeses, estudantes, trabalhadores e a

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polícia estavam acontecendo, em uma luta tanto contra a guerra como também contra o governo japonês (GARCÍA, 2013a). Entretanto, a Federação não se atentou ao acontecimento. O jornal The Echo, editado por Tadakata Hirayama na década de 1960 e publicado em inglês e esperanto, fez um levantamento sobre a Federação: “O estancamento do movimento durante 10 anos provocou impaciência e esgotamento em seus integrantes. Suas causas poderiam estar em sua organização defeituosa, uma teoria central do anarquismo exposta enquanto vanguarda” (apud GARCÍA, 2013a, p. 144). Esse distanciamento, entendido por Tadakata como uma certa tentativa de vanguardismo, fizera com que a Federação esmorecesse. O periódico Namazu, anos mais tarde (1979), afirmou que a Federação não conseguiu deixar de ser um minúsculo grupo, incapaz de expandir suas ações para além de um periódico que circulava somente entre alguns, sem instigar qualquer outra atividade. Para o periódico, a influência da FAJ era facilmente negligenciada (NAMAZU, 1979, n. 3). A Federação tentou reanimar-se em 1962, mas o grave estado de saúde de Yamaga também a fez enfraquecer. Dez anos antes, Yamaga apresentava algumas complicações de saúde. Em uma carta enviada à CNT Toulouse, contou aos companheiros: “eu envelheci muito; mas jovens colegas me ajudam a compor e editar de uma maneira simples e primitiva sem uma máquina! Na minha pequena sala, com o dinheiro enviado pelos camaradas russos que estão nos Estados Unidos, compramos uma impressora de 2.500 caracteres e um litógrafo de rolo de mão simples, com as quais posso imprimir no papel. Não podemos comprar outra máquina mais cara e, portanto, recorremos a esta. Os caracteres que precisam de acentuação [para a grafia romanizada em esperanto] fiz eu mesmo com uma chapa de zinco” (YAMAGA apud GARCÍA, 2013a, pp. 71-72). Yamaga, posteriormente, sofreu com uma úlcera e em 1961, perdeu parte de seu estômago; ficou acamado por nove anos, mesmo assim, recebia anarquistas em sua casa e, em 1968, apoiou o fechamento da Federação (GARCÍA, 2013b). Sem conseguir envolver-se diretamente com as discussões e sem se relacionar com as novas lutas que emergiam em um Japão pós-ocupação estadunidense, Yamaga entendeu que a Federação não conseguia atingir aos jovens e estava submersa na discussão sobre o anarquismo organizado. Segundo García (2013b), quando as cartas em esperanto foram enviadas para associações anarquistas, notificando o encerramento da FAJ, os redatores fizeram questão de sublinhar que a Federação terminava com o aval de Yamaga e não houve qualquer

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questionamento à decisão dos japoneses. Yamaga morreu em dezembro de 1970, com a parte direita de seu corpo palisada. Em alguns textos, os anarquistas japoneses tentaram explicar, dar suas versões ou realizar balanços sobre o fracasso/sucesso da Federação e o que levou ao seu fim em 1968. Em abril de 1969, The New Echo32 replicou o anúncio publicado no Jiyu Rengô e noticiou o fim da FAJ. No texto, afirmava que a Federação foi tragada por opiniões sobre organização e movimento, resultando em uma quebra já na década de 1950. Lamentava pelo encerramento das atividades da FAJ às vésperas do ano de 1970, quando seria revisto o Tratado de Segurança Japão-EUA, e os estudantes já ensaiavam algumas manifestações. O artigo encerrava com a afirmação de que não se temia o que estava por vir, mas atestava uma frustração: “Essa não é apenas uma declaração para seguir em frente, mas uma expressão de nossa responsabilidade com o movimento anarquista no Japão” (THE NEW ECHO, 15/04/1969, p. 1). Tsuzuki Chushichi, em “Anarchism in Japan”, artigo publicado em coletânea editada por James Joll e David E. Apter (1971) destaca que “podia parecer curioso para um observador externo que a dissolução da Nihon anakisuto Renmei (Federação anarquista japonesa), foi formalmente anunciada em janeiro de 1969, quando os estudantes estavam determinados em defender seu ‘forte’: o auditório Yasuda na Universidade de Tóquio, o qual tinham ocupado por vários meses, contra um ataque da polícia. Os anarquistas nomearam a dissolução de ‘um desdobramento diante do inimigo’. Ainda que tivessem de admitir que ao mesmo tempo eles tinham alcançado um impasse nas tentativas com a Federação de formular novas teorias do anarquismo e de propor novas formas de organização para uma nova era de ação direta que acreditavam ter começado. De fato, eles eram poucos, e tinham uma influência limitada entre os movimentos estudantis que, a seus olhos, inauguravam essa era” (1971, p. 105). Em fevereiro de 1971, The New Echo noticiou a morte do anarquista esperantista. “Em 6 de dezembro de 1970, Yamaga Taiji, nosso mais respeitável camarada, encerrou sua vida aos 78 anos. (...) O trabalho feito por ele é enorme e incrível. Temos medo que seus esforços se tornem nada com sua morte” (THE NEW ECHO, 20/02/1971, pp. 1-2). Diferente de alguns anarquistas no começo do século XX, Yamaga optou por não cometer

32 Continuação do The Echo que havia sido interrompido. Quando retorna como The New Echo, traz edições em inglês, francês e japonês.

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suicídio. Como revela García (2013a), algumas vezes Yamaga comentou sobre o assunto e afirmou preferir sucumbir na cama a tirar sua própria vida, uma prática que ficara tão famosa entre os jovens devotos do Estado no decurso da guerra. Para Yamaga, seu pacifismo também estava em como iria morrer, optou por continuar na luta como pôde a antecipar o fim de sua existência. Anos mais tarde, em 1974, a proposta da Federação foi retomada por alguns anarquistas. Em uma pequena nota no jornal Radical (n. 5), os editores explicam que novamente caiu-se na discussão sobre plataformismo, defendido por um grupo de anarquistas de Kyoto e uma federação livre que se associasse a outros grupos, “mas nós não chegamos a um consenso” (dez/1974, n. 5, p. 24), e a tentativa de uma nova organização foi abortada. Apesar de definhar 33 , a Federação problematizou a invasão estadunidense, enquanto muitos a viam como um benefício por legalizar os sindicatos e impor um sistema eleitoral. Além disso, ainda possibilitou que muitos libertários se reencontrassem ou se conhecessem e dali se lançassem em outras associações.

a Zengakuren e os anarquistas

Apesar da fé de Yamaga no Esperanto, o que se delineou entre os libertários nas décadas seguintes, foram escritos em inglêsaHavia interesse em publicizar suas ações para o planeta e construir outras relações, daí muitos periódicos adotaram o inglês, sendo publicados somente neste idioma. Nas décadas de 1960 e 1970, eclodiram as greves estudantis da Zengakuren que logo seria mais um braço do PCJ. Um dos trabalhos de maior expressão sobre a organização foi editado por Stuart Dowsey que convidou acadêmicos e militantes para comporem o Zengakuren: Japan’s revolutionary students, lançado pela Ishi Press em 1970. Entretanto, tal estudo aponta somente para as relações da organização com o PCJ e comenta o caso de alguns dos

33 De um lado, John Crump (1996), ao analisar brevemente a FAJ, a considera como sendo uma organização que conseguiu mancar até 1968, indicando que seu fim estava previsto devido às incansáveis discussões referentes à organização. De outro lado, García, amigo de Yamaga, entende a Federação como uma passagem salutar do movimento anarquista no Japão para reagrupar os anarquistas diante da destruição do pós-guerra. Crump, por sua vez, apreciava as leituras de Hatta Shuzo, anarcocomunista que depreciava a aproximação aos sindicatos, algo a que se propunha a FAJ.

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estudantes de direita que passaram a ser financiados pelo governo para confrontarem os comunistas. Em relação aos anarquistas, pouco se fala. No livro, a existência dos libertários é restrita às décadas de 1910 e de 192034. Ao final de tal obra, o artigo de Matsunami Michihiro, “Who’s who in Zengakuren and the Youth Movement in 1969: a profile” elencou algumas organizações estudantis, separando-as em: Facções da Zengakuren; Grupos de estudantes nacionalistas e de direita; Grupos anarquistas diversos; Organizações de jovens antiguerra. No item referente aos libertários, Dowsey afirma que não há como mapear esses grupos, apesar de em alguns momentos, ganharam certa visibilidade. “Na verdade, o problema é que eles são, como seria de esperar, basicamente grupos independentes, e eles não possuem a organização que os grupos de esquerda têm” (1970, p. 263). Quando estive no CIRA Lausanne, acessei materiais enviados para lá e localizei algumas outras informações a respeito da Zengakuren e as manifestações de anarquistas. Alguns desses materiais não localizei no CIRA Japana. Deparei-me com o Namazu, lançado em 1978 na região de Kansai, que já no primeiro parágrafo indicava sem rodeios a sua proposta: “no dia dos trabalhadores o líder Suzuki Kunio foi espancado até a morte em uma prisão em Osaka. Não era 1936, mas 1976, e o Estado que o matou não era sul coreano ou indonésio, mas japonês. (...) A luta contra os pseudos governos democráticos, como o do Japão deve acontecer por meio da exposição da violência inerente ao Estado, mostrar como ele é o perpetuador, não apenas o correspondente da violência. Só assim podemos começar a destruí-lo. Ao publicar NAMAZU queremos primeiro expor a fascistização do Japão em sua prática” (NAMAZU, 1978, n. 1, p. 1-2). Namazu é o nome de um peixe, referido na mitologia japonesa como o que está em baixo da terra e ao escapar do domínio de seu adestrador, provoca terremotos e maremotos. As reflexões presentes em Namazu pretendiam abalar seus leitores e tinham como alvo preferencial o Estado japonês e o PCJ com suas negociações. Ao todo foram cinco edições lançadas entre 1978 e 1980, sem regularidade. O Namazu nas edições de número 2 e 3, evidenciou a participação dos anarquistas nos confrontos da década de 1960 associados ao Zenkyoto, junto com estudantes que tomavam as universidades e erguiam barricadas para evitar a invasão da polícia.

34 Ikeda Kazuo no capítulo 1, Historical background”, menciona os anarquistas ao remontar a história dos comunistas no Japão e cita, sem deter-se, o Incidente de Alta Traição, quando Kôtoku, Kanno e anarquistas e socialistas foram acusados de elaborar um plano para assassinar o Imperador, 12 foram condenados à forca. Menciona também um professor assistente, na universidade Imperial de Tóquio, que foi preso por 3 meses por escrever um artigo mencionando Piotr Kropotkin.

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Entretanto, eram alvo tanto das forças governamentais como das organizações próximas ao PCJ ou ao PSJ, afinal, “os Capacetes Negros eram um risco crescente para a hierarquia e a burocracia” inerente aos partidos (NAMAZU, 1978, n. 3, p. 36). Segundo o periódico, se dos anos de 1950 até a metade de 1970, quase todas as universidades abrigavam grupos de estudos sobre anarquismos, no final da década de 1970, não existiam mais que 200 anarquistas no Japão, divididos no máximo em 30 associações. O periódico Libero, em sua segunda edição também retomou a Zengakuren para apresentar como esta não era a única organização presente nas manifestações. Havia outros grupos e nem todos queriam ajoelhar-se diante do PCJ ou do PSJ. Em meados dos anos 1960, o Behrein (abreviação de Betonamu ni Heiwa o! Shinmin Rengo – Liga pela Paz no Vietnã) foi criado para se opor à Guerra no Vietnã, alheio às estratégias do PCJ. Propunha uma nova forma de organização apartada da centralidade e verticalidade dos partidos. Isso atraiu anarquistas que auxiliaram em algumas ações do grupo, como estimular os soldados estadunidenses a desertarem, fornecendo passaportes falsos. Destacou que muitos dos oponentes ao PCJ estavam nos Zenkyôtô (Comitês de Luta dos Estudantes), formados de maneira espontânea sem os ditames do partido: “a estratégia era tornar a universidade um ‘centro de tempestades’ fora da luta revolucionária” (LIBERO, 1975, n. 2, s. p.). Os estudantes tomaram as universidades e passaram a questionar os costumes japoneses. O pesquisador e anarquista Tanaka Hikaru, em artigo apresentado no “International Conference for Bicentennial of Mikhail Bakunin”, na Rússia, mostrou como as décadas de 1960 e 1970 marcaram a entrada dos anarquismos na universidade. Desde as traduções realizadas por Ôsugi Sakae na década de 1910, os escritos de Mikhail Bakunin haviam permanecido esquecidos ou em circulação restrita somente aos anarquistas35. Os integrantes desses grupos de estudos que tomaram parte no Zenkyôtô foram nomeados de Brigada do Capacete Negro. Eles destoavam dos capacetes coloridos da Zengakuren e não seguiam suas palavras de ordem (LIBERO, n. 2, s. p.). Comumente, os estudos sobre as manifestações dos estudantes descrevem apenas os capacetes coloridos

35 Em 1961 foi publicada a biografia de Bakunin escrita por Osawa Masamichi (1933 -), baseado na biografia escrita por E. H. Carr, que foi traduzida para o japonês somente em 1965; no ano de 1968, foram publicadas traduções dos trabalhos de Bakunin; e somente em 1973, foram lançados seis volumes com a obra completa do anarquista; no mesmo ano sua biografia por Natalia Pirumova também foi lançada. Na década de 1970, também seriam relançados os trabalhos de Piotr Kropotkin (TANAKA, 2014).

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e suas filiações, relegando ao esquecimento os capacetes negros que se recusavam a servir qualquer bandeira. Na edição do The New Echo de 20 de fevereiro de 1971, um artigo do fundador do CIRA-Japana, Ozeki Hiroshi, problematiza os confrontos estudantis e aponta para uma outra associação, a Jiyu Rengô (Federação Livre)36 fundada oficialmente com o fim da FAJ, em 1969, mas que realizava algumas ações no começo da década de 1960. Esta lançou um periódico homônimo substituindo o Kuro Hata e era formado por ex- integrantes da FAJ, entre eles, Ozeki. O principal alvo do Jiyu Rengô eram as divisões feitas pela Zengakuren, já evidenciada pelos capacetes e com o qual fazia eco junto ao periódico The New Echo: “Cada grupo acredita que é a vanguarda e demanda a completa aceitação de suas ideias pelos outros – eles gritam ‘união’, mas querem dizer ‘sigam- nos’” (THE NEW ECHO, 20/02/1971, p. 3). A Jiyu Rengô não era um grupo como as seções da Zengakuren, a depender da situação e do momento, uniam-se para realizar uma ação. Era composto por estudantes e trabalhadores (Ozeki não descreveu quais eram as atividades, mas apenas que se juntavam sem ter de impor como seriam as manifestações ou o que ocorreria). Na edição do Jiyû Rengo de 1º de junho de 1965, a publicação focou a Guerra do Vietnã. Apontava que um confronto que envolvesse uma emancipação nacional levaria a uma guerra antes de fazer uma revolução. Os anarquistas propunham a formação de vilas comunais com base na agricultura, entretanto, os anarquistas deveriam trabalhar para que o confronto terminasse, mas com atenção para que não fossem tragados pelos movimentos de esquerda. Tsuzuki apresenta outros grupos que não possuíam ligação com os anarquistas na federação, como o caso dos militantes no Jiyu Rengo. “A ação direta nas fábricas foi deixada nas mãos dos revolucionários, os anarquistas. Entretanto, eles não tinham seguidores, as organizações dos trabalhadores e, consequentemente, suas propagandas pela ação tomaram forma na ousadia de alguns homens que entravam em fábricas de munições interrompiam a energia elétrica por 10 ou 15 minutos. Isso foi o que aconteceu

36 No ano de 1994, Tokuda Takeshi fundou outro Jiyu Rengô, entretanto, este era um partido liberal (http://www.jiyuren.or.jp/) extinto em 2005, e que não chegou a fazer cadeiras no parlamento japonês. O termo libertário, como vimos, foi a palavra utilizada por Joseph Dejácque em 1851, para nomear um periódico e depois usada por Louise Michel e Sébastien Faure quando fundaram o Le Libertaire, um dos jornais anarquistas mais duradouros na França. Mais de um século depois, partidários neoliberais tentaram sequestrar o uso da palavra tão cara aos anarquistas. Jiyu Rengô é formado pelos kanji 自由連合 sendo os dois primeiros Jiyu – liberdade, libertário e os dois últimos Rengo – organização, federação. Assim, o termo jiyu passou a denominar também liberais.

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quando 12 ou 13 anarquistas invadiram uma fábrica de armas em Tanashi, Tóquio, em outubro de 1966” (TSUZUKI, 1971, p. 118). Esse grupo era o Behan-i. Eram anarquistas anônimos que invadiam fábricas de munição em Tóquio e Nagoya e publicavam seus detalhes em panfletos e convidavam a sabotar e invadir essas fábricas. Referiam-se a seus alvos como os “mercadores da morte”. No dia 1º de fevereiro de 1967, o Jiyû Rengô condenou a ação dos anarquistas, chamando- os de irresponsáveis e de prelúdio para o terrorismo. Apesar de não ter recebido apoio do Jiyû Rengô, o Behan-i ganhou simpatia de estudantes anarquistas. Entretanto, logo após as duas ações, o grupo encerrou suas atividades quando um líder do Haihansha (Sociedade da Revolta), que participou do incidente em Tanashi, na fábrica de armas, tornou-se um infiltrado da polícia (TSUZUKI, 1971). No ano de 1967, o grupo Hansenseimen-i (abreviação de Hansen Seinen Iinkai – Comitê Jovem Anti-Guerra)37 passou a realizar uma série de ações contra a guerra no Vietnã, com uma manifestação na base da aeronáutica em Tachikawa e o Incidente Haneda, quando cerca de dois mil e quinhentos estudantes e trabalhadores foram até as proximidades do aeroporto para evitar que o Primeiro-Ministro Satô Eisaku38 viajasse para o Vietnã do Sul (TSUZUKI, 1971). Quando deste acontecimento, a Zengakuren era a principal organização estudantil, seguida respectivamente pela Sampa Rengô (Aliança das três facções), pela Zenkyôto e pela Beheiren. Entretanto, numericamente, havia mais comunistas. (NAMAZU, n. 3). Os não comunistas que oxigeranaram a Zengakuren nas décadas de 1940 e de 1950 eram minoria, pois cerca de 80% dos integrantes estavam filiados a um partido (TSUZUKI, 1971). Assim, apesar da Zengakuren formar-se em oposição ao PCJ, na década de 1950 ela foi tomada por integrantes do partido, sufocando aqueles que não concordavam com as diretrizes. A guinada da organização estudantil é apresentada, por exemplo, em Noite

37 Foi fundado em 1965, instigado tanto pelas investidas na guerra pelo Japão como também pela assinatura em 22 de junho daquele ano do Tratado sobre as Relações Básicas entre o Japão e a República da Coreia. Estabelecia empréstimos do Japão à Coreia do Sul como indenização pelo período em que este fora colônia. Entretanto, não assumiu a existência das “mulheres de conforto”, coreanas enviadas às tropas japonesas durante a II Guerra para serem usadas pelos militares. O governo japonês só as reconheceria quando a Comissão de Direitos Humanos da ONU exigiu, em 1996. Muitos dos integrantes da organização também pertenciam a Zengakuren e a iniciativa para sua fundação procede da Seção Jovem do Partido Socialista, em conjunção com o Shaseidô (abreviação de Shakaishugi Seinen Diomei – Liga da Juventude Socialista), também filiada ao Partido Socialista. 38 Governou entre 1964 a 1972, premiado com o Nobel da Paz, em 1974, por ter assinado o Tratado de Não- Proliferação Nuclear. Durante todo o seu governo, apoiou a Guerra no Vietnã.

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e névoa do Japão (1960), quando o cineasta Oshima Nagisa conta a história de Nakayama, um stalinista que fora presidente, nos anos 1950, da Zengakuren. Nakayama a submetera às diretivas do PCJ e não hesitou em expulsar e perseguir aqueles que fossem contrários aos seus comandos39. No ano seguinte, em 1968, com a eclosão de revoltas em vários cantos do planeta, a Zengakuren mobilizou manifestações contra a visita do presidente estadunidense Dwight D. Eisenhower, contra a desapropriação de camponeses para a construção do novo aeroporto de Narita e o atracamento de um submarino nuclear dos EUA na costa japonesa. Ao final da guerra, grupos que eram simpáticos aos anarquistas, como o Behrein e o Comitê de Jovens Anti-Guerra, dissolveram-se. E, segundo o Namazu, restou somente alguns grupos de estudos sobre anarquia que tentaram sobreviver, mas que logo desapareciam, alguns sem deixar qualquer registro ou rastro. Como afirmou o próprio jornal, o final dos anos 1970 marca uma pulverização dos libertários no Japão. Sendo assim, somente anos mais tarde, em 1993, o grupo Warrior40 de anarquistas em Kyoto, na região de Kansai, publicaram um calendário em referência às manifestações que ocorreram nas décadas de 1960 e 1970. Estampavam um selo com um jovem com um capacete com um A na bola, uma espada de bambu em uma mão e um coquetel molotov em outra, sendo esta uma imagem recorrente no jornal.

39 Vale ressaltar que Oshima tomou parte das manifestações da Zengakuren e, muitas vezes, foi identificado como sendo comunista. Seus filmes apresentavam o erotismo, sob influência de Bataille, em oposição ao corpo da guerra, como em O Império dos Sentidos. A guerra foi um de seus motes para suas gravações, como Furyo, em nome da honra, em que o erotismo também se fazia gritante em um campo de prisioneiros no Japão. Entretanto, quando era questionado sobre ser comunista, recusava o rótulo e afirmava ser antifascista e anticomunista. Não deixava de criticar a Zengakuren sobre o uso obrigatório dos uniformes. Em uma entrevista, quando o perguntaram a respeito dos trajes nas manifestações dos estudantes, afirmou: “sim, sentia-me incomodado [com o uso das vestimentas], não gostava de uniformes. O Japão é o país do uniforme. Por exemplo, em Marunouchi, área de negócios, em Tóquio, os homens não usam propriamente um uniforme, mas seus ternos são todos iguais, de cor cinza” (OSHIMA, 1995, p. 275). 40 Localizei algumas edições no CIRA Lausanne e no Ateneo Libertário em Buenos Aires, indicando que o Warrior foi enviado para alguns cantos do planeta. Em uma estética semelhante aos fanzines, foram oito edições que datavam de 1993 a 1996, sem regularidade de lançamento. Era escrito em japonês e continha uma pequena seção de uma página com rápidas notícias do que acontecia no Japão em relação aos anarquismos. As matérias comumente abordavam o movimento punk, apresentando bandas; noticiavam práticas anarquistas de outros lugares; manifestavam-se pela libertação de presos e pela preservação do planeta. Diferente dos jornais no pós-Guerra mostrados até o momento, não havia matérias voltadas à história dos anarquismos, nem mesmo notícias sobre a Zengakuren.

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Calendário do ano de 1993 com referência às manifestações anarquistas na década de 1960 e 1970. Onde se lê 総破壊 (sô hakai) – destruição total; 反逆の牙をとぎ済ませ (hangyaku no kiba o togi sumase!) – Que se afiem as garras da revolta!; 無政府やらんか (museifu ya ran ka!) – fazer a anarquia!. Fonte: CIRA Lausanne.

A partir da coleta de informações nos periódicos anarquistas, não é possível delimitar ou remontar os movimentos dos anarquistas nas manifestações de 1960 e 1970. Porém, estavam lá presentes. Os periódicos confirmam, mesmo que em menor número. A densidade demográfica não é uma questão para os libertários, nunca foram numerosos, mas se fazem presentes diante das autoridades centralizadas. As transformações da Zengakuren a tornaram cada vez mais engessada nas medidas do PCJ. Hoje permanece viva entre alguns poucos jovens que lutam contra o esquecimento da Guerra. Em entrevista, Mauro Neves (2013), professor na área de línguas da Universidade de Sophia e estudioso do Japão, ao analisar os efeitos da II Guerra Mundial e a cultura pop do país, identificou que para os jovens a história do Japão na guerra terminou em Pearl Harbor. Pouco se estuda nas escolas sobre a bomba atômica, sendo abordadas como algo necessário para o Japão ser salvo, caso contrário, o arquipélago não existiria mais. Acredita-se e professa-se que sem as bombas, não haveria democracia. O esquecimento das guerras é massacrante, resumindo-se a uma lembrança da perda de amigos e familiares, mas sem qualquer crítica ao sistema imperial japonês que vigorou até a rendição. E, graças aos EUA, acredita-se que o Japão é um país pacifista e os militares estadunidenses sempre estarão presentes para protegê-los.

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Contra essa pacificação do povo japonês, e fora das possibilidades do pacifismo de Yamaga e com repercussões na FAJ, em Hiroshima, um outro libertário, Yoshioka Fumiharu, sobrevivente da bomba, com uma bandeira negra nos ombros foi até a Cúpula Genbaku (Bomba Atômica), no hipocentro da explosão de 6 de agosto de 1945, enquanto ocorria a confraternização de memória do lançamento da bomba. Instaurou sozinho uma diferença. Todos os anos, muitos choram às margens do rio Ota, rezam pelos seus parentes, enfeitam a cidade e observam os monumentos. Naquele ano de 1975, Yoshioka, com a bandeira e alguns cartazes, escancarou que a bomba é produto do Estado. A ele pouco importava que se vivia em uma democracia aos moldes estadunidenses. Não acreditava na constituição e que não haveria outras guerras, para ele, enquanto anarquista, se houver Estado, haverá guerra. Distante dos levantes da Zengakuren, apartado dos conflitos na FAJ, Yoshioka fez uma ação direta sem ficar à espera de alguém para ordenar o que fazer ou como fazer. Irrompeu onde menos se esperava, surpreendendo até mesmo aos anarquistas. Afinal, como já afirmou Christian Ferrer (2004), até na menor cidade, no caso, uma cidade militarizada e pacificada, há um anarquista, a pereba negra nos 360º graus do atlas. Nos anos seguintes, outros anarquistas se associaram a Yoshioka, e fundaram a Associação para Estudos Anarquistas de Hiroshima, entre seus integrantes estavam Philippe Pelletier, também integrante da Federação Anarquista francesa e um dos responsáveis pela divulgação das práticas libertárias no Japão na Europa. No ano de 1985, lançaram a carta “Naze anâkisuto wa yôka rokugatsu ni Hiroshima de shûkai o hikaru no ka?” (“Por que os anarquistas se reúnem no 6 de agosto em Hiroshima?”) comentando os propósitos do grupo e convidando libertários para participar da reunião: “qual é a conexão entre Hiroshima e o movimento anarquista? Gostaríamos de convidar os camaradas anarquistas para a manifestação. Hiroshima agrega todo o processo pós-guerra, pode-se dizer que se forma um povo de acordo com o ‘sistema simbólico do imperador’. Hiroshima foi formada da mesma maneira que o processo pós-guerra consolida a ilusão de uma cooperação de ‘paz’ (...). Temos de lançar uma lâmina rebelde contra o ‘simbolismo de Hiroshima’. Junto com o desmantelamento do ‘símbolo de Hiroshima’, deve ocorrer o desmantelamento do simbólico sistema do imperador, que estão juntos no processo pós-guerra. A luta contra o ‘simbolismo de Hiroshima’ é o começo da luta contra o soldado japonês do pós-guerra. Em outras palavras, estamos preocupados em disparar contra o “princípio de nacionalidade”, que

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está se transformando no pós-guerra com o ‘simbolismo de Hiroshima’ como um mediador” (ASSOCIAÇÃO PARA ESTUDOS ANARQUISTAS DE HIROSHIMA, 1985). O simbolismo de Hiroshima ao qual o documento se refere é a reconstrução da cidade sob uma imagem da paz, enterrando todas as violências perpetradas pelo Império japonês, tanto durante a II Guerra Mundial, como nos anos seguintes da reconstrução com a Guerra na Coreia e no Vietnã. A cidade da paz, articulada com a atualização do Imperador, foi fundamental para a reconstrução. Mesmo diante da destruição, das mortes e dos cânceres, a imagem de Hirohito enquanto um pequeno homem remodelado em um pacífico defensor do meio ambiente renovou a devoção dos súditos em nome da reconstituição de um país forte e que supera as terríveis adversidades. O grupo de Hiroshima alertava para a urgência do antimilitarismo no Japão pós- Guerra dissociado do pacifismo presente entre os anarquistas principalmente na região de Kanto, onde estava a FAJ. Esse foi o único escrito publicado na década de 1980, apesar de Tanaka indicar que os encontros continuaram a ocorrer. Assim, foram poucos registros sobre os encontros em Hiroshima, reunidos no blog da Associação para Estudos de Anarquismo na região de Kansai41 e mantido pelo anarquista Tanaka Hikaru. No blog é possível encontrar também breves relatos dos encontros em Hiroshima desde 2015, indicando o número de pessoas presentes e reunindo o material daqueles que apresentaram imagens. O blog de Tanaka é um dos principais meios de divulgação das práticas anarquistas no Japão hoje para o planeta, com algumas traduções para o inglês. Possibilita a um pesquisador tomar conhecimento de alguns eventos que ocorrem por lá, porém o site não é atualizado constantemente, muitas vezes, apenas anuncia os encontros de Hiroshima. Assim, anarquistas e, nos últimos encontros, também pesquisadores de anarquismos, encontram-se todo dia 6 de agosto em frente ao epicentro para protestarem contra o Estado. Percorrem as ruas de Hiroshima gritando: “contra a guerra, contra a energia nuclear, contra o Estado!”. A curta frase rompe com outras manifestações que rogam por paz em solicitações a ONU e abaixo-assinados. Posteriormente, reúnem-se para realizar discussões sobre práticas libertárias e finalizam bebendo em algum izakaya nas proximidades.

41 Disponível em: http://kansaianarchismstudies.blogspot.com.

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É o maior encontro de anarquistas que ocorre hoje no Japão, com presença virtual ou física de libertários de alguns cantos do planeta. Yoshioka, próximo aos 80 anos e com algumas limitações físicas, marca presença todos os anos. Homem de poucas palavras, deixa aos estudiosos exporem suas pesquisas e tenta escutar quando anarquistas contam sobre suas experiências. Os encontros anuais não reúnem mais que 20 pessoas. Em 2018, a manifestação chegou a ser cancelada. As poucas pessoas que foram, não conseguiram se encontrar em meio à multidão que visita Hiroshima todo dia 6 de agosto. Mesmo assim, no ano de 2019 se reunem novamente, afirmando a anarquia e lutando pela abolição do Estado. Das agitações das décadas de 1960-1970, são os que permanecem inquietando ainda hoje. A Zengakuren, entretanto, ainda abriga a memória de alguns e é tida como um marco entre os jovens japoneses ao escancarar que não é preciso servir, que não é preciso obedecer à nação e ao Imperador. Porém, como visto, logo reconstituiu uma hierarquia com as delimitações de como o movimento deveria ser e quais capacetes cada um deveria usar. Apesar da crítica anarquista ter alertado para os riscos de tal ordenamento, muitos grupos praticamente desvaneceram, como a própria Zengakuren. Sem lamentos, as práticas anarquistas podem irromper a qualquer momento, como em Hiroshima, atestando que não é possível sepultar os anarquistas e, onde e quando menos se esperar, colocam-se diante de um novo enfrentamento.

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recordações libertárias

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Em suas memórias, Kaneko Fumiko recordou as violências da qual foi alvo quando criança. Somaram-se às surras no meio familiar, a escola que frequentava e que tentava incutir os preceitos do Rescrito Imperial sobre a Educação, promulgado em outubro de 1890, com base no Kokutai e orientando como deveria ser o ensino: “Nossos ancestrais imperiais fundaram o Nosso Império numa base ampla e eterna e implantaram profunda e firmemente a virtude; nossos súditos sempre unidos em lealdade e piedade têm de geração em geração ilustrado a sua beleza. Esta é a glória do Nosso Império, e aqui reside a fonte da nossa educação. (...) em caso de emergência, ofereça-se corajosamente ao Estado; e assim vigie e mantenha a prosperidade do Nosso Trono Imperial conexo com o céu e a terra” (JAPÃO, 1890b). Ôsugi Sakae, ao lembrar quando era criança, recordou também das sucessivas surras que tomou na escola de cadetes para a qual fora enviado. De tanto apanhar, tornou- se gago, característica que se manifestou algumas vezes quando esteve preso. Um dos alvos de investimento do Kokutai na construção da pretensa harmonia foram as crianças, entendidas como pequenos súditos que em breve deixariam suas vidas à disposição do Império. Em “A verdade da conquista”, Ôsugi atentava para a educação como fundamental para a construção da harmonia entre os súditos e os conquistadores; é na escola em que se aprende a obedecer e a venerar o superior, e onde se pacificam os instintos de uma criança para uma vida harmônica prevista no Kokutai com a sua entrega ao Imperador e à nação. Um dos efeitos dessa educação, se deu nas inúmeras organizações de estudantes para contribuir com as Forças Armadas na guerra, desde ajuda na produção bélica até o envio de imonbukuro (sacolas de conforto) aos soldados. Assim, na educação-escolarização, a harmonia só é possível para a obediência e não abre mão das surras, da força e poder das autoridades hierárquicas e das humilhações. Nessa propagação de costumes autoritários, certifica-se que a pressuposta e virtuosa harmonia japonesa se estenderá até o fim dos tempos. No decurso do Japão Império e na promulgação da democracia, pela via da ocupação estadunidense no pós-guerra, os anarquistas tiveram como um de seus alvos a harmonia, apresentando-a como possibilitada apenas por massacres e violências cotidianas. Em um sonho, descrito em 1913 no artigo “A fábrica de correntes”, Ôsugi descreveu uma fábrica em que os trabalhadores forjavam suas próprias correntes, as entrelaçavam em seus corpos e as prendiam com um cadeado localizado no meio da barriga. No centro da fábrica, um grupo de pessoas descansava nos sofás, fumavam charutos e soltavam anéis de fumaça. Ôsugi começou a sentir seu corpo doer pelo peso

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das correntes: ele também era um trabalhador forjando suas amarras. Então, o anarquista decidiu conversar com os outros trabalhadores, e observou que estes se contentavam em eleger um representante que dialogava uma vez por ano com o grupo de pessoas no centro da fábrica. Satisfaziam-se com a promessa de que gradualmente suas correntes seriam afrouxadas e até quebradas. Outros reduziam a questão à economia, e que os processos econômicos mudariam o sistema da fábrica e um dia finalmente seriam livres. Em nenhum momento pensavam em destruição, em arrancar imediatamente aquelas correntes, em roubar as chaves dos cadeados. “Preguiça não tem ambição. Preguiça não faz história. Eu olhei ao meu redor mais uma vez. Estou cercado quase inteiramente por preguiça. (...) Eu desisti desse grupo banal” (ÔSUGI, 1913c). Entretanto, havia um grupo menor, quase escasso de pessoas que “percorriam suas próprias revoluções” (IDEM), não estavam à espera de ninguém, mas tinham um fogo que não apagava mesmo com todas as correntes e nem estavam dispostos a se submeterem a qualquer representante. Ôsugi então exclamou que era preciso enfrentar as amarras, derrubar os proprietários da fábrica, acabar com submissão, e então “virarmos bichos selvagens” (IBIDEM). Sabia que estes seriam uma minoria, mas que de suas ações derivariam outras experiências, “nós vamos lutar até o fim” (IBIDEM). Ôsugi então se insurgiu. Seu sonho foi interrompido. “Eu acordei. A noite passou e o sol da manhã de meados de agosto brilha no meu rosto adormecido” (IBIDEM). No sonho de Ôsugi, a expansão da vida está em tornar-se esse bicho selvagem, sem domesticar os instintos, mas no combate em transformar a vida e, sem previsibilidade, fazer no agora. Apodrecem os que aceitam a conquista, estão na harmonia e não possuem mais vontade. A vida dos anarquistas não se contém em representação, na espera da revolução, na requisição por melhorias ou reformas, mas inventam um futuro no agora, lançando-se no anarcoterrorismo, no amor livre, em lutas antimilitaristas, em fugas, e, na convivência na diferença, não se pacificam em harmonia. Sacodem a putrefata obediência, preocupados em dar forma à liberdade em cada instante. Inventar outros costumes não é simples. Na erupção de paixões entre anarquistas e a recusa em se acomodar nos moldes da família japonesa, libertários enfrentaram reprovações de seus companheiros machistas e guardiões da moral anarquista. Tocar de outro jeito na vida é insuportável aos que amam governar o outro. No escândalo do amor livre, Kanno e Kôtoku não tiveram problema em inventar outras publicações anarquistas fora do círculo da Heimin Sha; Itô e Ôsugi teciam outras relações com seus filhos, contrárias à formação da criança enquanto um pequeno súdito; Kaneko e Parklançaram-

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se no anarcoterrorismo e assustaram o Japão em uma foto estampada nos jornais com ela sentada no colo dele. Até hoje, casais raramente são vistos em público trocando de carícias. Diante das edificações da harmonia, da glorificação ao Kokutai, não restou dúvida a muitos anarquistas no Japão. Contra a ideia que governava suas vidas, a resposta era simples: matar o Imperador. Para os libertários, o princípio do amor à obediência no Japão erigiu suas bases em torno dos mitos da família imperial tendo como efeito o respeito a uma hierarquia difundida como natural que se manifestava no governo do patriarca na casa, no carcereiro na prisão, no policial nas ruas e avenidas, nos professores na escola, passando pelos agentes da Tokkô, da Kempeitai, do Exército Imperial até alcançar o que seria a imagem divina, o Imperador. Diante do insuportável da subserviência e da perseguição a seus amigos, deram forma às suas expansões de vida nas práticas anarcoterroristas. Entre eles, Kôtoku, Kanno, Gudô, Kaneko, Wada, e a Giroshin Sha, recusaram uma vida subserviente ao Imperador. Mesmo sabendo que seus planos certamente os levariam à forca caso fossem pegos, encararam com coragem o risco da morte. E, a coragem de outros ainda se manifestou no suicídio: antes encerrar a própria vida a sobreviver na esperança de um dia ser liberto da prisão com a condescendência do tribunal. No Japão Império acirrava-se o empastelamento dos jornais, prisões e execuções. A legislação em nome da paz trucidava qualquer prática que indicasse um questionamento ao Kokutai. Em meio às lutas na Manchúria, território que constituiria o Estado fantoche de Manchuko, permeado de acordos com o Império japonês, irrompeu a Comuna Shinmin (1929-1931) agitando os camponeses na autogestão dos moinhos de arroz, amendoim e milho, e não mais respondendo aos proprietários da terra, mas inventando outras relações desvinculadas da luta pela bandeira de um Estado, da espera de uma revolução que os orientasse, fazendo o presente livre acontecer. Anarquistas lançaram-se em uma nova invenção, sem a pretensão de estabelecer um universal, de serem tomados como parte de uma evolução, mas preocupados com outros costumes, em fazer de suas vidas uma experimentação de liberdade. Acabaram sufocados por nacionalistas, socialistas e pelo exército do Império. Muitos foram assassinados, outros passaram a vida na prisão e alguns desapareceram anônimos sem deixar rastros para tentar sobreviver aos anos que se seguiriam. Os embates anarquistas não sossegam. Na democracia, onde as possibilidades de experimentações de liberdade são mais férteis, permanecem inquietos. Afetados pelas

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experiências da II Guerra Mundial e das bombas de Hiroshima e Nagasaki, os anarquistas no Japão voltaram-se algumas vezes ao pacifismo, mais que ao antimilitarismo; alguns aderiram ao plataformismo anarquista; outros se espalharam em meio às revoltas estudantis nas décadas de 1960 e 1970, atentando para os riscos das setorizações e identificações dos manifestantes; e inventaram seus espaços de arquivamento, com registros de seus inovadores costumes. A democracia deixou os anarquistas mais distantes do escândalo. Neste trabalho busquei lembranças de lutas libertárias no Japão principalmente entre as Eras Meiji e Showa. São passagens de existências que não temeram enfrentar a autoridade centralizada e a devoção dos súditos. Poderiam ter sido contadas de outra maneira, com levantamentos de erros, falhas e acertos. Entretanto, não tive a pretensão de estabelecer a verdadeira e completa história dos anarquismos, de mostrar um caminho ou de não deixar nenhum buraco sem preenchimento. Mas por meio dessas histórias, busquei apresentar essa constelação dos anarquismos no Japão sempre em movimento. Os anarquistas no Japão encararam a vida mais do que as prescrições do Kokutai, mais do que um determinismo biológico, ou uma determinação histórica. Não a limitaram, mas a expandiram no agora, sem ficar à espera de qualquer sinal divino, de autorização ou do momento oportuno. Em suas associações, ataques, enfrentamentos a autoridades centralizadas, paixões, conexões com outros anarquistas pelo planeta, fizeram da vida uma experimentação de liberdade. São práticas constituintes do anarquismo menor, não enquanto localização geográfica, estatura, quantidade ou em relação à maioridade iluminista de Kant. É uma prática que se constrói enquanto devir, é o que está no meio, é o movimento, o turbilhão. Não é uma média, nem uma minoria, esta “designa, primeiro, um estado de fato, isto é, a situação de um grupo que, seja qual for o seu número, está excluído da maioria, ou está incluído, mas como uma fração subordinada em relação a um padrão de medida que estabelece a lei e fixa a maioria” (DELEUZE, 2010, p. 63). É um excesso. Não pretende melhorar a política, participar ou reivindicar democracia. Mas uma antipolítica, e presente nas ingovernáveis revoltas (AUGUSTO, 2013). Assim, como afirma Deleuze, o que interessa não é o passado ou o futuro da revolução, mas o devir-revolucionário. “Não é nem o histórico nem o eterno, mas o intempestivo” (DELEUZE, 2010, p. 35). É uma resistência ao desejo de maior, ao recusar-se em constituir uma massa, uma doutrina, se conformar no partido ou na

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vanguarda. Mas, minorar “para liberar devires contra a História, vidas contra a cultura, pensamentos contra a doutrina, graças ou desgraças contra o dogma” (IDEM, p. 36). Um anarquismo menor em combate incessante ao governo em que não se trata de morrer pela causa, mas da morte enquanto parte da existência e a afirmação da revolta. Como destacou Foucault: “E porque o homem que se rebela é em definitivo sem explicação, é preciso um dilaceramento que interrompa o fio da história e suas longas cadeias de razões, para que um homem possa, ‘realmente’, preferir o risco da morte à certeza de obedecer” (2006, p. 77). Essa atitude é inevitável, não há relação de poder, autoridade ou acordo, negócio, Kokutai e comando que a contenha. Algumas vezes, tenta- se inserir a revolta em projetos revolucionários para encadear uma história racionalizada. Entretanto, a revolta não é esperar pelas revoluções, restituir uma soberania, ou a busca por participação para melhorias democráticas. É indomesticável, o instante em que qualquer um, decide não mais servir, não viver essa realidade e não se deixar mais governar. Rompe-se o fluxo dessa história racionalizada. “Por trás de todas as aceitações e coerções, mais além das ameaças, violências e persuasões, há a possibilidade desse momento em que nada mais se permuta na vida, em que os poderes nada mais podem e no qual, na presença dos patíbulos e das metralhadoras, os homens se insurgem” (IDEM).

Hoje, em um Japão reconstruído com os ideais vencedores da II Guerra Mundial, honra e nacionalismo, transmutaram-se. Os efeitos da harmonia são outros. Não mais a devoção ao Imperador enquanto uma proteção das forças do exterior, mas uma renovação da harmonia em uma busca de melhor performance, de resiliência e de melhora. Em 30 de abril de 2019, o Imperador Akihito fará um pronunciamento renunciando ao trono japonês. Será o fim da Era Heisei (1989-2019), traduzida como “alcançar a paz” eproclamada após a morte de Hirohito (Era Showa). No dia 1º de maio de 2019, Naruhito, primogênito de Akihito, assumirá o trono. Para fins de organização do calendário e da programação de eletrônicos, no dia 1º de abril de 2019, o Japão parou para conhecer o nome da nova Era. Smartphones filmaram a transmissão ao vivo nos telões da cidade de Tóquio quando o Secretário Chefe do Gabinete, Yoshihide Suga, professou: Reiwa. O termo une os caracteres de ordem e harmonia, com a tradução sugerida por um professor da Universidade de Nagoya como “venerável harmonia”. Segundo a declaração de Abe Shinzo – primeiro-ministro –, o termo representa a esperança em cada japonês que, como as flores de ameixa após um inverno rigoroso, florescem. Abe prosseguiu seu depoimento: Reiwa será o nascimento

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de uma civilização em que reina a harmonia entre os seres e nessa nova era se transmitirá à próxima geração a história do Japão, sua nobre cultura e a beleza natural de suas quatro estações. As prospecções de Abe para o futuro confluem com um momento em que se busca sucesso na vida na empresa. Não mais morrer em nome do Imperador, mas do emprego. Florescer em uma nova era com o sucesso profissional. Segundo o depoimento de Abe, Reiwa será um momento em que os jovens, aptos e inseridos no fluxo computo- informacional, poderão realizar seu potencial e concretizar seus sonhos e esperanças. Segundo um dos consultores para escolha do nome, Yamanaka Shinya, laureado em 2012 com o Nobel de Medicina pelas pesquisas sobre células-tronco, Reiwa unirá o cultivo das tradições com as transformações do Japão. Ou seja, a harmonia agora está em venerar o país e, simultanemante, obter sucesso o mais jovem possível. Reiwa expressa efeitos da racionalidade neoliberal e de costumes já encrustrados nos japoneses. Como os jovens karoshi que no sonho de ser bem-sucedido, de tanto estudar para ser o melhor da turma ou trabalhar, têm uma morte súbita por um ataque cardíaco, por overdose de medicamentos... Ou jovens karokisatsu, que se suicidam em decorrência do fracasso no trabalho. Aos que não conseguem o tão saudado emprego, sobra a reclusão para evitar a vergonha, são os hikikomori isolados em seus quartos, por vezes conectados full time, que preferem virar ermitões a encarar a vergonha de não terem o bom emprego e não estarem em um nível elevado da hierarquia social japonesa. Outros jovens, também frustrados na saga pelo emprego, tornam-se freelancers, os furiitaa, que trabalham em meia jornada em empresas com salários mais baixos, em restaurantes de fast food e supermercados. Muitos, sem terem condições de pagar um aluguel, passam as noites nos neto cafe nanmin, em seus mini-quartos equipados com um computador e uma cadeira reclinável ou com um futom para deitar. A alguns desses jovens, quando mais velhos, sejam eles hikikomori ou sobreviventes da vida corporativa, também só lhes restarão o isolamento e, costumeiramente, tornam-se um caso de kodokushi – morte solitária –, que atinge não só idosos, mas também os jovens. Em suas casas, normalmente cedidas pelo governo, acabam morrendo de alguma doença, queda, inanição, fome, sede... Os corpos são descobertos somente meses ou até décadas depois do falecimento. Preferem a certeza de um kodokushi a serem um meiwaku, um peso, um problema.

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Tal configuração já não se trata da mesma que enfrentaram os libertários no Japão na primeira metade do século XX. São outras forças em luta transmutadas principalmente devido aos altos investimentos no pós-II Guerra Mundial para a reconstrução, pautados no aumento da produção e extração de inteligências. Não mais o assalariado disciplinado que vendia a sua força de trabalho, mas agora um empreendedor de si que recebe um salário e é reconhecido por seu investimento em “capital humano” acumulado com a educação recebida, conhecimentos adquiridos, genética... e, para o japonês, um componente fundamental de seu capital humano está em saber respeitar a hierarquia, ter disposição a melhorar, a se esforçar mais e a suportar mais comandos. O que fizer e o que conquistar, será resultado de sua dedicação, efeito de suas escolhas e investimentos. Nesse desejo de ser maior, são sujeitos resilientes. É preciso se adaptar, alcançar as metas e, por mais que um corpo insista em dormir ou morrer de exaustão, melhorar a performance para que produza o mesmo e até mais sem causar danos e prevendo evitar as adversidades (OLIVEIRA, 2012). Da resiliência de cada um em se adaptar para se tornar mais eficiente, caminha-se para a resiliência do planeta governado diante da iminente destruição. Em nome da sustentabilidade, em 2011, diante do tsunami e dos vazamentos de Fukushima, súditos formados em engenharia escancararam um dos efeitos da obediência, da convocação da participação de cada um para salvar o planeta e da resiliência. No cálculo da vida, estipularam quando iriam morrer e as probabilidades do aparecimento de doenças em decorrência da exposição à radiação. Concluíram que, pelo planeta, pelos mais novos, pelo Japão, eles mesmos limpariam a usina nuclear. Assim, não mais somente um governo sobre a vida nas sociedades disciplinares, e não apenas a passagem para uma sociedade de controle, como sinalizou Deleuze, mas também uma transformação da biopolítica em ecopolítica1, atravessada pelos cuidados com o planeta, sustentabilidade, convocação a participação de cada um, proliferação de monitoramentos, investimentos em capital humano... As lutas mudaram de configuração. Por mais que as práticas anarquistas no Japão possam ter arrefecido, podem eclodir e enfrentar as atualizações da subserviência. Talvez, em meio a tanta salubridade e ordem, irrompam novas experimentações para a expansão da vida.

1 Entendida como a “prática de governo do planeta em tempos de transformação de si, dos outros, da política, das relações de poder e do planeta no universo, com desdobramentos transterritoriais e variadas estratificações conectadas” (PASSETTI, 2013a, p. 89).

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Como disse Ôsugi certa vez, é preciso um tanto de ódio e paixão para irromper a expansão da vida. Diante de tanta domesticação, educação, reverência, licença, obrigações e obrigadas, uma expansão da vida para liberar o “bicho selvagem”, afirmar o intempestivo da revolta para dar vazão a essa potente força menor. A vida anarquista se faz em meio aos combates por liberdades sem almejar a paz ou qualquer negociação de um tratado. Não se contenta em conformações democráticas, tampouco é resiliente. Inventa, resiste e onde e quando menos se espera explode. Talvez por isso, muitos libertários apreciavam a beleza dos incontroláveis vulcões. O presente está fora de controle, é movimento e inesperadamente surpreende com alguma erupção. Pelos cantos do planeta, anarquistas seguem vivos, inquietos em um percurso sem o estático fim pré-determinado, e sim na dinâmica da invenção de outros costumes em expansões da vida.

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Periódicos e panfletos Lançados no Japão: The Echo Heimin Shinbun Jiyu Rengô Kuro Hata Le Libertaire Namazu The New Echo Radical Warrior Libero

A Plebe O Libertário Mother Earth Talhwan

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anexo

a expansão da vida ôsugi sakae

I.

Na edição anterior de “A Verdade da Conquista”1 discorri a respeito da conquista como “verdade fundamental da sociedade humana durante alguns ou vários milhares de anos entre o passado, o presente e o futuro próximo”. Isto é, conclui “que enquanto não se tiver uma certa compreensão, não se pode compreender corretamente seus fenômenos”.

Assim, estendi esse pensamento ao mundo da arte, observamos que “nesta Verdade da Conquista e até onde ela não encontra resistência, vossas obras são brincadeira e diversão”. Pode ser só uma resignação que nos faz esquecer a pesada realidade que nos impele para a rotina diária. É um elemento fundamental de uma fuga sistemática.

E no final chegamos à seguinte conclusão:

“Permanecer na beleza estática do transe em que estamos é uma questão de escolha. Quero admirar a beleza dinâmica que nos trará êxtase e entusiasmo. A literatura que buscamos é uma literatura criativa, da beleza do ódio e da revolta contra essa realidade”.

1 Artigo publicado em Kindai Shisô (Pensamento moderno), volume 9, de 1º de junho de 1913. Ôsugi detém-se na conquista, característica da civilização e o começo da História. Assim, formaram as sociedades, divididas entre conquistadores e conquistados. Os últimos só conhecem a violência e se submetem a força do primeiro. Com o passar do tempo, os métodos de dominação evoluíram, manifestam- se em política, religião, polícia, voto, nas instituições... Segundo Ôsugi, para encarar o tempo de hoje, é preciso deter-se na conquista, caso contrário, as coisas permanecerão da mesma maneira. Da conquista derivam as formas de obediência e sujeição.

1

Agora, entrarei novamente nesta questão e irei aprofundar o contato entre estes três termos. Por isso, irei dar um pouco mais de clareza ao meu argumento.

II.

Não é preciso dizer que, ao se falar do eu2, a expansão da vida tem sido a tônica do pensamento moderno. É o alfa e o ômega do pensamento moderno. Porém, para se entender o que é o eu ou a expansão do eu, existe um primeiro ponto em que devo chegar.

Em relação ao eu, existe o senso amplo e o estrito. Neste momento, vou considerar a moral do indivíduo no senso mais estrito possível. O verdadeiro sentido desta vida é o eu. E o eu é, em essência, uma espécie de força. É o tipo de força que segue a lei das forças dinâmicas.

A força deve imediatamente aparecer em forma de ação. Qualquer que seja o poder, sua existência e sua ação são sinônimos. Assim sendo, a ação do poder é inevitável. A ação, por si só, é completamente força. A ação é o único aspecto do poder.

Portanto, a lógica inevitável de nossas vidas é determinar ações para nós mesmos. Mais do que isso, determinar nossa expansão. Qualquer que seja a ação ela representa o desenvolvimento de uma existência no espaço. No entanto, a expansão da vida deve vir acompanhada de sua realização. É a realização da vida do eu que força sua expansão. Portanto, realização e expansão devem ser a mesma coisa.

2 O termo utilizado por Ôsugi é Jiga (自我), podendo ser traduzido tanto como eu ou ego. A palavra ego possui outros sinônimos, inclusive ego (エゴ) como no inglês. Optou-se por traduzir como eu.

2

Desta maneira, a expansão da vida é o nosso único objetivo. A nossa atividade está em satisfazer nossa vontade implacável de vida. Além do mais, a lógica inevitável do eu requer que nós destruamos e eliminemos tudo aquilo que se oponha à expansão do eu. E, ao desobedecer a essa ordem tudo fica estagnado, apodrece e se destrói.

III.

A expansão da vida é uma propriedade fundamental da vida por si só. Desde os tempos primitivos, o homem vem lutando com o ambiente a seu redor e usando este ambiente para expandir o eu. Ademais, mesmo entre companheiros humanos, viemos continuamente lutando e usando uns aos outros de forma a expandir a vida. E estes conflitos e o uso dos seres humanos não são ainda realizados à luz do conhecimento desenvolvido, de modo que o caminho para o eu encontra-se perdido.

Os conflitos entre os homens, em vez de expandir a vida, uns dos outros, acabou por se tornar um obstáculo. Em outras palavras, como resultado de métodos errados de lutas e usos, entre os homens existiram ambos os polos de conquistadores e conquistados. Assunto que já foi discutido em detalhes em “A Verdade da Conquista”.

A expansão da vida das pessoas conquistadas foi amplamente destruída. Elas praticamente perderam seu eu. Eaes ficaram à mercê da vontade e do comando de seus conquistadores; tornaram-se escravas do trabalho, tornaram-se instrumentos. A vida pessoal e o autodesenvolvimento dos povos conquistados não puderam fazer nada que não estagnar e apodrecer.

Acontece o mesmo com os conquistadores. A corrupção dos escravos e a depravação não perdoam nem mesmo os mestres com seus danos. Além do mais, se nos escravos há o vício da

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escravidão, nos mestres há o vício do domínio. Se os escravos são submissos, os mestres são arrogantes. Ou seja, enquanto os escravos enfrentam suas vidas com relutância, os mestres destroem suas vidas com vigor. É o mesmo que criar obstáculo à expansão da vida de uma pessoa.

Ademais, os conflitos e abusos da raça humana e a luta da humanidade com o meio-ambiente, se tornou um obstáculo considerável ao uso deste espaço.

IV.

Sempre que pensamos que os danos ao eu dessas polaridades estão para acabar, uma invasão ou revolução acontece aqui. Uma classe média com um eu relativamente saudável toma a iniciativa, a título de salvar o povo conquistado, e usa sua assistência para se elevar. Ou ocorre uma revolta desesperada da classe conquistada, sob influência da classe média. E, obviamente, sempre termina com a classe média se tornando um novo mestre. A história da humanidade é, em suma, este ciclo de repetição. Cada ciclo é uma repetição que passou por alguma revolução.

No entanto, a humanidade não conseguiu retornar ao primitivo, afinal. A humanidade não conseguiu voltar ao primitivo, onde não havia a divisão entre mestres e escravos. Não soube regressar à era livre primitiva, onde não havia autoconsciência, com a consciência mais que suficiente que lhe fora dada. Não sabia que estava a repetir uma história de enorme significado.

Seres humanos mergulhados em uma sociedade de senhores e escravos por um longo tempo não são capazes de imaginar uma sociedade em que não haja senhor ou escravo. Não conseguem pensar em uma maneira melhor de expandir suas vidas, com

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exceção da autoridade exercida por alguém superior sobre ele, ainda que esteja em controle de si próprio.

Eles simplesmente escolhem os senhores. O nome dos senhores muda. E, finalmente, não ousam tocar no machado que é a conquista fundamental por si só. Este é o maior erro da história da humanidade.

Nós precisamos acabar com esta repetição da história. Esta peregrinação de milhares e milhares de anos já nos ensinou a estupidez desta repetição. Para acabar com este ciclo, precisamos realizar uma última imensa repetição. Para uma verdadeira expansão de vida como indivíduos, para uma verdadeira expansão de vida como seres humanos.

V.

A verdade da conquista na sociedade moderna praticamente já alcançou seu ápice. Nem as classes de conquistadores, nem as classes médias, nem mesmo as classes conquistadas podem mais suportar o peso desta realidade. A classe conquistadora vem sofrendo com o desenvolvimento desta vida cheia de excessos ou anormal. A classe conquistada está sofrendo ao ser sufocada por uma vida de opressão. Até mesmo a classe média está sofrendo pela pressão acumulada dessas duas classes. Esta é a principal causa dos problemas da vida moderna.

É neste ponto, para que o eu possa continuar a existir, que é preciso surgir o ódio contra a verdade da conquista. O ódio tem que gerar mais revolta. É preciso despertar o desejo por uma nova vida. As pessoas não devem possuir autoridade sobre outras; é preciso despertar a vontade por uma vida livre. Como esperado, entre a minoria, especialmente entre a menor parte das pessoas conquistadas, este sentimento,

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esta ideologia, este desejo surgiu de uma minoria, especialmente da minoria de conquistados.

A revolta contra a verdade da conquista apareceu pela primeira vez como a única ação efetiva para satisfazer esse desejo implacável do nosso eu. Diante da verdade da conquista, ficou visível a destruição de todas as coisas que impedem a expansão da vida.

Eu vejo a beleza suprema da vida na expansão da vida, eu vejo a beleza suprema da vida na revolta e destruição, vejo a beleza suprema do meu eu de hoje. Quando a verdade da conquista atinge seu ápice, a harmonia não é mais tão bonita. Só existe beleza no caos. A harmonia é uma mentira. Só há verdade no caos.

Agora, a expansão da vida só se alcança por meio da revolta. A criação de uma nova vida, a criação de uma nova sociedade, somente são possíveis por meio da revolta.

VI.

Em minha própria vida, no meio desta revolta, estou aproveitando a infinita beleza. E o significado daquilo que chamam de minha arte está resumido aqui. A execução é a ação direta do eu. E o desempenho da sofisticação científica do cérebro de um homem moderno não pode ser chamada de uma execução “não realmente séria”. Não é uma execução que não tenha sido pensada antes e depois. Além disso, não é necessariamente uma execução para confiar a alguém.

Através de anos de observação e reflexão, é o desempenho que acredito que seja a ação mais efetiva do eu. É uma prática cujo cenário de um evento corrente se reflete completamente na mente, antes, depois e, obviamente, durante. Há um êxtase que acompanha a meditação. Há um fervor que acompanha o

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êxtase. E este fervor chama por uma nova ação. Então, já não há mais uma única subjetividade, nem uma única objetividade. Subjetividade e objetividade entram em um acordo. Esta é a fronteira de meu êxtase como revolucionário. É a fronteira da arte.

E quando estou nesta fronteira, meu eu contra a verdade da conquista, é o momento mais claro em meu coração. É o momento em que meu eu foi estabelecido com mais certeza. E toda vez que experimento esta fronteira, minha consciência e meu eu vão se tornando cada vez mais claros e confiáveis. O prazer do eu está transbordando.

VII.

Este enriquecimento da minha vida é, ao mesmo tempo, a expansão da vida. E, ao mesmo tempo, a expansão da humanidade. Entre as ações do meu eu, vejo as ações da humanidade.

Além disso, não sou o único a tomar a direção de um eu mais efetivo dessa forma. Ainda que hoje sejam poucas, existem conscientes de si mesmas, pessoas conscientes de seu relacionamento entre elas e o ambiente a seu redor e que estão avançando neste caminho. Com exceção dos cegos, qualquer um pode ver que o pensamento da sociedade do futuro está sendo moldado.

Ao se estabelecer os fatos, por que na Literatura Japonesa contemporânea não se menciona a conquista como fato fundamental da sociedade, ou mais, que ela está hoje em seu ápice? Por que não tocar na raiz dos problemas da vida moderna? Dando um passo adiante, por que não tocar no fato de que há uma revolta contra isso? Não iremos tocar na criação deste novo eu, desta nova sociedade? Formada sobre

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uma base de conhecimento social confiável, a literatura criativa sobre a beleza do ódio e a beleza da revolta não irão surpreender?

Eu, atendendo a um pedido do meu eu, quero literatura contemporânea nesse sentido, quero ciência, quero filosofia.

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