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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE-UERN PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO-PROPEG CAMPUS AVANÇADO PROFª MARIA ELISA DE ALBUQUERQUE MAIA-CAMEAM DEPARTAMENTO DE LETRAS ESTRANGEIRAS - DLE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS-PPGL CURSO DE MESTRADO E DOUTORADO ACADÊMICOS EM LETRAS

Eliana Pereira de Carvalho

O COLONIALISMO EXTEMPORÂNEO DE ANGOLA, AS RICAS DONAS, DE ISABEL VALADÃO

PAU DOS FERROS-RN 2020 0

ELIANA PEREIRA DE CARVALHO

O COLONIALISMO EXTEMPORÂNEO DE ANGOLA, AS RICAS DONAS, DE ISABEL VALADÃO

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade do Rio Grande do Norte, como requisito à obtenção do título de Doutor em Letras. Linha de Pesquisa: Texto Literário, Crítica e Cultura. Orientador: Prof. Dr. Sebastião Marques Cardoso

PAU DOS FERROS-RN 2020 1

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A tese “O colonialismo extemporâneo de Angola, as ricas- donas, de Isabel Valadão”, autoria de Eliana Pereira de Carvalho, foi submetida à Banca Examinadora, constituída pelo PPGL/UERN, como requisito parcial necessário à obtenção do grau de Doutor em Letras, outorgado pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN

Tese defendida e aprovada em 21 de dezembro de 2020.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Sebastião Marques Cardoso – UERN (Presidente)

Prof. Dr. Sebastião Alves Teixeira Lopes – UFPI (1º Examinador)

Prof. Dr. Douglas Rodrigues de Sousa – UEMA (2º Examinador)

Profa. Dra. Maria Aparecida da Costa – UERN (3ª Examinador)

Profa. Dra. Concísia Lopes dos Santos – UERN (4ª Examinador)

Prof. Dr. Tito Matias Ferreira Júnior – IFRN (Suplente)

Prof. Dr. Manoel Freire Rodrigues – UERN (Suplente)

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AGRADECIMENTOS

Ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UERN. À SEDUC-PI, pela liberação. Ao meu orientador, professor Sebastião Marques Cardoso, pela paciência em me atender, pelas dicas sempre pontuais e por ter me acolhido enquanto pesquisadora. Ao professor Sebastião Lopes, pelas colocações bastante pertinentes. À minha família: Marcos Antônio, Fabrício Delano e Welton, pelo amor, alicerce e incentivo fornecidos. Aos meus amigos felinos e caninos que dão um sentido maior a minha vida. Aos amigos da Pós-Graduação que me ajudaram de alguma forma durante o período em que fiquei em Pau dos Ferros-RN e que continuaram comigo. Em especial, Jonh Jefferson com o qual compartilhei confidências e rotas. Aos que conheci e não ficaram, mas deixaram suas marcas. A todos os que não citei, mas certamente estiveram presentes nesta jornada de minha vida. À vida e à liberdade, pois, ‘apesar de você, amanhã há de ser outro dia’.

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À Weverton Guilherme Silva Bezerra (in memoriam) e Cleonice Oliveira (in memoriam). Vocês permanecerão vivos em nossas vidas.

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Uma vez

Uma vez caminhando pelas ruas Da minha cidade natal, Com o coração cheio de sonhos. Fui ao Mercado Velho de Floriano, Ao quiosque de dona Isabel Carneiro, Uma amiga antiga da minha rua, da minha casa.

Eu era uma criança, tinha doze anos, E o coração quase a saltar pela boca, Com a minha aprovação No exame de admissão ao Ginásio, No Colégio Industrial São Francisco de Assis. Dona Isabel me abraçou e disse: ‘Este menino vai ser um grande homem, um doutor!’

O homem de bigode vendia joias de ouro, Num tabuleiro defronte, na esquina. O homem branco sorriu com desdém, Ele apontou para mim e disse: ‘Doutor, hein... Isso aí na minha terra é um rolo de fumo preto!’

Eu era criança, tinha doze anos E não me esqueci desse acontecimento.”

(ELIO FERREIRA, 2014) 6

RESUMO

Angola, as ricas-donas, de Isabel Valadão, publicado em 2014, narra o contexto angolano do século XIX. A autora portuguesa possui um interesse particular por Angola, cenário usual de seus romances e lugar onde morou grande parte de sua vida, entre 1951 a 1974. Neste período, que antecede a independência de Angola, o território era considerado província ultramarina de . Isabel Valadão se inicia na escrita muito tarde, impulsionada, talvez, por suas memórias e a paixão pela história. O primeiro romance é de 2011. Em 2012, ela publica o segundo, A sombra do imbondeiro: estórias e memórias de África, no qual narra o período em que viveu em Angola e o retorno a Portugal. Como escritora, ela se põe simultaneamente entre três tempos: o da escrita, o da memória e o do narrado. A fusão desses tempos fez com que a escritora ressuscitasse o colonialismo português em seus romances de uma forma apologética. Dentro de uma noção de colonialidade e de transmodernidade, o presente trabalho tem como objetivo analisar Angola, as ricas-donas (2014), de Isabel Valadão, como romance colonial, considerando que a autora ressuscita, em sua escrita, o colonialismo português, mas sem se afastar do conceito de colonialidade que o tempo da escrita do romance solicita, no sentido de refletir sobre as vítimas do mito da modernidade eurocêntrica e sobre a construção de uma alteridade que foi negada. Nessa perspectiva, os objetivos específicos são: a) Dialogar sobre os conceitos de transmodernidade e de colonialidade a partir de uma reconfiguração da modernidade enquanto origem e sistema- mundo, no intuito de preencher as lacunas entre a produção e o contexto do narrado no romance de Isabel Valadão; b) Analisar as duas vozes que se cruzam na narrativa, produzindo um só timbre, a da autora e a da narradora, para justificar a concepção eurocêntrica bastante presente na voz da narradora, a escrava Eufrozina, como se esta fosse um avatar da autora; c) Verificar os esquemas coloniais e escravocratas da narrativa dentro do mito da modernidade, como também abordar a elite crioula e o reinado das ‘donas’ no círculo econômico e racial da sociedade colonial de Luanda no século XIX. Com isso, foi possível verificarmos — por intermédio das representações literárias de Valadão, em Angola, as ricas-donas (2014) e A sombra do imbondeiro (2012) — como a percepção da modernidade da autora se aproxima das narrativas sacralizadas pelos arquivos públicos da história portuguesa sobre Angola e como o arquivo pessoal da autora, principalmente o da memória, reforça essa percepção. Embora o distanciamento entre o tempo da escrita e o tempo narrado tenha sido propício para uma reflexão sobre o mito da modernidade e a colonialidade de nossos tempos, a autora persistiu na feitura de um romance colonial, reforçando outros mitos, como o do colonialismo cordial e o da democracia racial ou do lusotropicalismo. O diálogo com o arquivo público da história portuguesa é constante, não havendo questionamentos sobre os erros cometidos por esta história, insistindo-se também na culpabilidade das vítimas.

Palavras-chave: Angola, as ricas-donas. Colonialidade. Isabel Valadão. Romance Colonial. Transmodernidade.

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ABSTRACT

Isabel Valadão, in Angola, as ricas-donas, a novel published in 2014, narrates the 19th century angolan context. The Portuguese author has a particular interest in Angola, the usual setting for her novels and the place where she lived most of her life, between 1951 and 1974. In this period, which precedes Angola's independence, the territory was considered an overseas province of Portugal. Isabel Valadão starts writing very late, perhaps driven by her memories and passion for history. The first novel is from 2011. In 2012, she published the second, A sombra do imbondeiro: estórias e memórias de África, in which she recounts her period in Angola and her return to Portugal. As a writer, she puts herself simultaneously between three times: that of writing, that of memory and that of the narrated. The fusion of those times made the writer resurrect Portuguese colonialism in her novels in an apologetic way. Within a notion of coloniality and transmodernity, the present work aims to analyze Angola, as ricas-donas (2014), by Isabel Valadão, as a colonial novel, considering that the Portuguese colonialism represented in the author's novel does not depart from the concept of coloniality which the time of the novel's writing calls for, in order to reflect on the victims of the Eurocentric modernity myth and on the construction of a denied otherness. In this perspective, the specific objectives are: a) Dialogue about the concepts of transmodernity and coloniality based on a reconfiguration of modernity as origin and world-system, in order to fill the gaps between the time of the novel's writing and the context of Isabel Valadão's narrative; b) Analyze the two voices that intersect in the narrative, producing a single timbre, that of the author and that of the narrator, to justify the Eurocentric conception very present in the voice of the narrator, the slave Eufrozina, as if they were an avatar of the author; c) To verify the colonial and slave-making schemes of the narrative within the myth of modernity, as well as to approach the Creole elite and the 'donas' reign in the economic and racial circle of colonial society in Luanda in the 19th century. With that, it was possible to verify — through the literary representations of Valadão, in Angola, as ricas-donas (2014) and A sombra do imbondeiro (2012) — how the author's perception of modernity approaches the narratives sacralized by the public archives of Portuguese history about Angola and how the author's personal archive, especially that of memory, reinforces this perception. Although the distance between the time of writing and the time narrated was conducive to a reflection on the myth of modernity and the coloniality of our times, the author persisted in the making of a colonial novel, reinforcing other myths, that of cordial colonialism and or lusotropicalism. The dialogue with the public archive of Portuguese history is constant, with no questions about the mistakes made by this story, insisting also on the guilt of the victims.

Keywords: Angola, as ricas-donas. Coloniality. Isabel Valadão. Colonial Romance. Transmodernity.

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RESUMEN

Isabel Valadão, en el libro Angola, as ricas-donas, novela publicada en 2014, narra el contexto angoleño del siglo XIX. La autora portuguesa tiene un interés particular en Angola, escenario habitual de sus novelas y lugar donde vivió la mayor parte de su vida, entre 1951 y 1974. En este período, que precede a la independencia de Angola, el territorio fue considerado una provincia del ultramar de Portugal. Isabel Valadão empieza a escribir muy tarde, tal vez impulsada por sus recuerdos y su pasión por la Historia. La primera novela fue escrita en 2011. En 2012 publicó la segunda, A sombra do imbondeiro: estórias e memórias de África donde narra el período que vivió en Angola y su regreso a Portugal. Como escritora, se sitúa simultáneamente entre tres tiempos: la escritura, la memoria y el tiempo de lo narrado. La fusión de aquellos tiempos hizo que la escritora resucitase el colonialismo portugués en sus novelas de forma apologética. Dentro de una noción de colonialidad y transmodernidad, el presente trabajo tiene como objetivo analizar Angola, as ricas-donas (2014), de Isabel Valadão, como novela colonial, considerando que el colonialismo portugués representado en la novela no es apartado del concepto de colonialidad que reclama el momento de escribir la novela para reflexionar sobre las víctimas del mito de la modernidad eurocéntrica y sobre la construcción de una alteridad negada. Tomando en cuenta esa perspectiva, los objetivos específicos son: a) Dialogar sobre los conceptos de transmodernidad y colonialidad desde una reconfiguración de la modernidad como origen y sistema-mundo, con el fin de llenar los puntos huecos entre el momento de escribir la novela y lo del contexto de la narrativa de Isabel Valadão. b) Analizar las dos voces que se entrecruzan en la narrativa, produciendo uno solo timbre, lo de la autora y lo de la narradora, para justificar la concepción eurocéntrica muy presente en la voz de la narradora, la esclava Eufrozina, como si ella fuera un avatar de la autora; c) Verificar los sistemas coloniales y esclavistas de la narrativa dentro del mito de la modernidad, así como abordar a la élite criolla y al reinado de las 'doñas' en el círculo económico y racial de la sociedad colonial de Luanda al siglo XIX. Así, fue posible comprobar a través de las representaciones literarias de Valadão, en Angola, as ricas-donas (2014) y A sombra do imbondeiro (2012), cómo la percepción de la autora de la modernidad se acerca a las narrativas sacralizadas por los archivos públicos de la historia portuguesa sobre Angola y cómo el archivo personal de la autora, especialmente la memoria, refuerza esta percepción. Aunque la distancia entre la época de la escritura y la época narrada ha propiciado una reflexión sobre el mito de la modernidad y la colonialidad de nuestro tiempo, la autora persistió en la realización de una novela colonial, reforzando otros mitos, como lo del colonialismo cordial y el mito de la democracia racial o lusotropicalismo. El diálogo con el archivo público de la historia portuguesa es constante, sin cuestionar los errores cometidos por esta historia, reforzando también la culpabilidad de las víctimas.

Palabras-clave: Angola, as ricas-donas. Colonialidad. Isabel Valadão. Novela Colonial. Transmodernidad.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...... 10

2 POR UM CONCEITO DE COLONIALIDADE E DE TRANSMODERNIDADE QUE PREENCHA AS LACUNAS ENTRE O ESCRITO E O NARRADO NO ROMANCE ANGOLA, AS RICAS-DONAS, DE ISABEL VALADÃO ...... 24

2.1 Eurocentrismo, modernidade e colonialidade: a transmodernidade do mundo pós-colonial e periférico ...... 27 2.2 Transmodernidade, colonialidade e colonialismo na escrita de Isabel Valadão, em Angola, as ricas-donas ...... 33

3 DUAS VOZES E UM MESMO TIMBRE: A AUTORA E A NARRADORA DE ANGOLA, AS RICAS-DONAS ...... 37

3.1 O lugar de fala da autora a partir de um olhar sobre A sombra do imbondeiro: o sujeito histórico da terra prometida e dos retornados na constituição da escrita ...... 43 3.2 A narradora Eufrozina: pode uma escrava falar? ...... 88

4 ENTRE A TERMINOLOGIA DO ROMANCE E A HISTÓRIA DOS PORTUGUESES ...... 114

4.1 Angola, as ricas-donas como romance colonial ...... 123 4.2 O retrato de Angola no século XIX: colonização e escravidão ...... 128 4.3 A elite crioula (ou luso-africana): a outra face da dominação colonial 179 4.4 O reinado das donas: as mulheres mestiças, negras e brancas da elite colonial de Angola ...... 197

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 213

REFERÊNCIAS ...... 219

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1 INTRODUÇÃO

Isabel Valadão, em Angola, as ricas-donas (2014), transita ficcionalmente pelas fronteiras geográficas e culturais de Angola, Portugal e Brasil, nas rotas transatlânticas do comércio de escravos do século XIX, reconstruindo as relações políticas, sociais, econômicas e culturais dos territórios citados, em torno da escravidão. No romance, a autora enfatiza a formação da sociedade crioula1 de Angola – na época, colônia de Portugal – e a forte presença de mulheres luso-africanas que comandavam, com mãos de ferro, o comércio escravista. A Angola do século XIX, reconstruída por Valadão (2014), em especial Luanda, onde as principais ações acontecem, seria marcada por três eventos: “o tráfico atlântico da escravatura, a deportação ou degredo de criminosos para Angola e a superioridade das famílias crioulas, ou lusodescendentes” (VALADÃO, 2014, p. 14). Na narrativa, as protagonistas, que são as denominadas ricas-donas, pertenciam a estas famílias. Estes três elementos circulam no romance supracitado da autora, encontrando em Eufrozina a voz condutora da narrativa. Na escrita de Isabel Valadão, a literatura e a história portuguesa se alinham para representar a história colonial de Angola em um período de intenso comércio escravagista e onde os interesses de uma elite crioula entravam em conflito com o cenário europeu de restrição do tráfico de escravos, impulsionando uma aliança com o Brasil, na afirmação de uma independência. Nessa história colonial, a presença das ricas-donas é fundamental para a trama. Duas delas são amplamente descritas no romance: Dona Anna Joaquina dos Santos e Silva, mulher de grande personalidade e de poder de mando em um mundo predominantemente masculino; e Dona Anna Francisca Ferreira Ubertaly, reconhecida por uma beleza incomum e também pela bondade que, diziam, tinha para com os escravos dos quais era proprietária. Além dessas duas figuras históricas outras surgem na narrativa, representando ora o elemento português e ora o elemento angolano. Em relação às personagens femininas, outra representação de destaque no romance e que requer um olhar especial é a narradora-personagem Eufrozina que, na narrativa, assim como na realidade, é uma escrava, mas que já foi princesa e mulher principal de um poderoso

1 Falaremos extensivamente sobre o termo crioulo no capítulo 4, subcapítulo 4.3 A elite crioula (ou luso- africana): a outra face da dominação colonial. De antemão, podemos entender como a relação entre culturas, povos e línguas. 11

jaga2. Ela é a voz que a autora se utiliza para narrar não só a história das protagonistas, Dona Anna Joaquina e Dona Anna Francisca, mas também a história colonial de Angola no contexto escravocrata da época e dos interesses da elite crioula. Esta pesquisa é um prolongamento do mestrado da doutoranda, havendo apenas uma mudança de corpus de estudo. No mestrado, foi trabalhado o romance Nação crioula: a correspondência secreta de Fradique Mendes, de José Eduardo Agualusa, numa interseção com A correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queirós. O autor angolano, aproveitando-se de uma lacuna no romance do autor português, lança o personagem queirosiano em contato com o continente africano, projetando para Fradique Mendes todo um trajeto narrado em forma de cartas destinadas a três pessoas diferentes. Em relação ao romance de Isabel Valadão, não houve distanciamento do contexto ficcional, pois, assim como Nação crioula, de Agualusa, o espaço de atuação dos personagens é a tríade Angola, Brasil e Portugal, e o questionamento dos binarismos colônia-metrópole, colonizado-colonizador, mulher-homem, negro-branco, entre outras dicotomias inerentes também estão presentes no romance da escritora portuguesa. Outro ponto em que os dois romances se assemelham é a questão do tempo ficcional, o século XIX. No livro de Agualusa, a história se passa no final do referido século, entre 1868 e 1900; enquanto, no livro de Valadão, é no início desse mesmo século, entre 1804 e 1869. Há semelhança, ainda, em relação a dois personagens históricos: Dona Anna Francisca Ferreira Ubertaly e Arsénio Pompílio Pompeu de Carpo. A primeira personagem, no livro de Agualusa, recebe o nome de Ana Olímpia, que, na trama, casa-se, em um segundo casamento, com Fradique Mendes. Na ficção, esse personagem é amigo de Eça de Queirós, autor português que escreveu A correspondência de Fradique Mendes (1900). Já Arsénio de Carpo, nos dois romances, é um que, do nada, torna-se um rico comerciante de escravos em Luanda-Angola. Os dois romances propõem um diálogo com eventos e figuras históricas da colonização portuguesa em Angola, divergindo no tocante à construção romanesca. Enquanto Agualusa se utiliza essencialmente de epístolas para dar à narrativa um caráter de real,

2 Para Valadão (2014, p. 369), eram grupos guerreiros. “Jaga e imbangalas eram as denominações que os Portugueses davam ao povo do Reino de Cassanje, instalado por um chefe lunda de nome Cassanje, no alto do rio Kwango, por volta de 1620. Segundo Birmingham (2004 apud VALADÃO, 2014, p. 369), “jagas e imbangalas são dois povos diferentes [...]. Os jagas seriam um povo formado após a desintegração dos territórios do povo luda [...]. Os jagas traziam uma divisa distintiva como guerreiros e que era os dois dentes arrancados da parte da frente da arcada dentária superior. Eram os grupos rebeldes e violentos e os Imbangalas passaram a ser chamados Jagas em função dos seus hábitos e costumes. Os Imbangalas seriam jagas, mas nem todos os jagas eram de origem imbangala. 12

Valadão recorre à reprodução dos acontecimentos históricos à disposição nos arquivos públicos, como também à memória individual para aproximar o tempo em que ela viveu em Angola com o tempo narrado. Todavia, ambos entrelaçam literalmente o ficcional com a possibilidade dos acontecimentos históricos, procurando dar veracidade ao narrado. Isabel Valadão viveu em Angola entre 1951 a 1974 e, possivelmente, isso justifica o interesse da autora pelo território africano como espaço deste e de outros romances de sua autoria, assim como contribuiu para uma percepção mais detalhada do narrado. A época em que Isabel Valadão viveu em Angola compreende as últimas décadas do em Portugal, cujo fim culmina com a Revolução dos Cravos, em 25 abril de 1974 e a independência de Angola. À época, o território angolano era considerado província ultramarina de Portugal, designação dada pelo Estado Novo para ludibriar a comunidade internacional no tocante à colonização portuguesa em África. O período posterior à Revolução dos Cravos em Portugal foi de intensa produtividade cultural e literária, tendo em vista o período anterior de estagnação desses campos na ditadura salazarista. Após 1974, o romance histórico em Portugal se revitaliza, tendo como temas principais as indagações de orientação pós-colonial e a valorização da guerra colonial. Por outro lado, uma escrita de autoria feminina se intensifica. É o momento em que Valadão está reestruturando sua vida sob a alcunha dos ‘retornados’ para, mais tarde, iniciar-se como escritora. Isabel Valadão nasceu em Lisboa, Portugal, mas é também praticamente angolana. Em Angola, viveu parte da infância, a adolescência e o começo da vida adulta. Casou-se com Guilherme Valadão e teve duas filhas. A saída de Angola foi obrigatória, em face da independência angolana e dos conflitos que ocasionaram a expulsão de muitos portugueses. Em Angola, morou em Lobito e em Malange, até se fixar em Luanda, a capital. No regresso a Portugal, refugiou-se por pouco tempo na África do Sul. Morou também em Macau, na China, e em Cascais, em Portugal. Hoje em dia, vive na região saloia de Mafra, também em Portugal, na companhia do marido e dos gatos e cachorros que adotou. Licenciada em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, Isabel Valadão se interessou pela escrita de narrativas após o término do curso. Depois disso, publicou Loanda: escravas, donas e senhoras (2011) e A sombra do imbondeiro: estórias e memórias de África (2012), além de Angola, as ricas-donas (2014), romance acima destacado, e Rio das Pérolas (2017). Em entrevista ao Suplemento Literário 13

Parágrafo do Jornal Ponto Final3, a autora compartilhou os projetos de suas futuras narrativas, externando a vontade de escrever, a pedido de leitores, uma continuação de Rio das Pérolas (2017); assim como um romance que fale sobre a história do reino do Congo, retornando ao contexto ficcional africano, já que o espaço narrado de seu último romance foi a China portuguesa. As vivências africanas, principalmente em Luanda-Angola, são a matéria-prima dos romances de Isabel Valadão, com exceção do último, cujo cenário é a Macau chinesa, colonizada também por Portugal, onde a autora também viveu. Em seus romances de cunho africano, a escritora opta pela grafia de Luanda com a letra ‘o’, ou seja, Loanda, por ser esta a utilizada, até o final do século XIX, em quase todos os documentos da época e também porque a grafia com ‘o’ é aquela que abarca a cidade das memórias da autora, representadas no romance autobiográfico, A sombra do imbondeiro, de 2012. Loanda: escravas, donas e senhoras (2011) é outro romance da autora cujos personagens são também predominantemente femininos e que transitam na Angola do século XVII. Neste romance, Isabel Valadão já destaca a presença marcante das famosas ‘donas’, mulheres que, desde o século XVII até o final do século XIX, já se constituíam figuras importantes da sociedade angolana por sua liderança no comércio de escravos e pela influência política que detinham. A representação das ‘donas’ se dá com a personagem Anna de São Miguel. No mesmo romance, temos a representação da degredada, a personagem Maria Ortega, uma mulher condenada por bruxaria pelo Santo Ofício e que é banida de Portugal para Angola em decorrência disso. A sombra do imbondeiro: estórias e memórias de África (2012) trata-se de uma autobiografia da autora em que o relato de suas memórias tem o imbondeiro como elemento desencadeador dessas lembranças, por ser este o símbolo de Angola, lugar onde a autora viveu da infância à fase adulta. Neste romance autobiográfico, a pequena Isabel, numa “manhã cinzenta e fria de Setembro de 1951” (VALADÃO, 2012, p. 15), parte de Portugal rumo a Angola, no Timor, que era, segundo Isabel Valadão (2012), “um pequeno paquete, misto de carga e passageiros, pertencente à Companhia Nacional de Navegação” (idem). Nas palavras de Valadão, não era sua intenção publicar tais memórias, escreveu-as mais em decorrência do falecimento dos pais que despertou em si todas as histórias vividas em Angola e que se encontravam ainda bastante nítidas em sua mente.

3 Entrevista concedida ao Suplemento Literário Parágrafo do Jornal Ponto Final, na pessoa de Hélder Beja, em 02 de agosto de 2017. Disponível em: < https://paragrafopontofinal.wordpress.com/2017/08/02/isabel-valadao- em-entrevista-foi-o-papel-da-mulher-chinesa-que-me-interessou/>. Acesso em: 05 fev. 2019. 14

Rio das Pérolas (2017) é resultado da convivência de Isabel Valadão em Macau, onde viveu durante o período de 1983 a 1986. O regresso a Portugal não foi harmonioso e a falta de oportunidades profissionais para o marido a obrigou a tentar uma nova vida em Macau como sendo uma extensão da experiência vivida em África, já que o território era ainda colônia de Portugal. A narrativa do romance problematiza a condição da mulher na sociedade chinesa durante a Segunda Guerra Mundial, apresentando como personagens principais Maria (Mei Lin) e Luísa; duas mulheres bastante diferentes nos espaços e nas situações vividos, mas semelhantes na condição de inferiorização da mulher na sociedade chinesa. É plausível dizermos que o tema do feminino é uma constante na escrita literária de Isabel Valadão e nem ela, como mulher, escapa de suas narrativas, apresentando-se como personagem em uma delas, como é o caso de A sombra do imbondeiro: estórias e memórias de África (2012). Na entrevista ao Suplemento Literário Parágrafo do Jornal Ponto Final, referenciada em nota de rodapé na página anterior, a autora explica a preferência:

Interessa-me mais o tema do feminino pelas experiências que tive, por haver em Angola aquelas mulheres que eram muito poderosas quando Luanda era um mundo essencialmente masculino. Não havia mulheres praticamente nenhumas, mas as que havia eram muito poderosas, eram grandes escravocratas, entre outras coisas. Em Macau, foi o papel da mulher chinesa que me interessou, os pés de lótus, a questão de serem afogadas à nascença, abandonadas à porta de orfanatos e igrejas, isso fez-me muita confusão. Muitas não sobreviviam, morriam ainda crianças, mas outras conseguiam sobreviver à custa sabe-se lá de quê, de uma luta muito grande. O papel da mulher chinesa é sempre muito subalterno, muito apagado e humilde.

No tocante à Luanda, a história oficial da colonização confirma que, em um contexto majoritariamente masculino, havia mulheres capazes de se sobrepor à condição patriarcal que dominava o pensamento eurocêntrico da época, tendo, inclusive, o direito à herança. É claro que devemos considerar que as colônias eram um território em que a lei sálica4 não era aplicada e onde as regras do jogo econômico e político eras outras.

4 A Lei Sálica foi um código de lei redigido em latim e promulgado em 10 de maio de 1703, compilado pela primeira vez no século VI pelos sálios (parte do povo germânico dos francos) que tinham conquistado a Gália (Europa Ocidental) no século V. O documento inclui principalmente as multas que tinham que ser pagas por ofensas e delitos. Mas entre suas leis civis havia uma que proibia as filhas de herdarem terras. Este é o aspecto pelo qual o termo lei sálica é empregado com mais frequência, devido fundamentalmente a seu uso errôneo como argumento contra a sucessão das mulheres ou dos descendentes das filhas de reis aos distintos tronos da Europa [...]. A lei sálica em Portugal foi contrariada pela primeira vez com sucesso no Reino de Portugal, pelo jurista José Ricalde Pereira de Castro, em 1777, na eleição de D. Maria I para rainha com direito de governar o seu país em pleno (FERNANDES, 2015, grifos do autor). 15

Estas mulheres eram denominadas ‘donas’ e chegavam a ocupar cargos de liderança, imprimindo seus nomes nas narrativas históricas de Angola. Por um lado, essas histórias entusiasmam pelo elemento feminino e negro que se sobrepõe em um contexto colonial/patriarcal, pois são mulheres que fascinam pelo poder de mando, pela altivez e desenvoltura com que coordenam suas vidas, a política e a economia em torno da escravidão. Por outro lado, no entanto, a constatação de que tal poder emane da subjugação e comercialização do elemento negro no triângulo do tráfico negreiro, cujos vértices eram Portugal, Angola e Brasil, não colabora totalmente como um dado positivo de empoderamento dessas mulheres. No período de colonização portuguesa e de escravidão em Angola, segundo Valadão no prefácio de Angola, as ricas-donas (2014), a sociedade era constituída, em princípio, por três categorias populacionais: a) e degredadas (em menor número), que eram enviados por Portugal para cumprir pena, entre estes havia os condenados pelo Santo Ofício; b) famílias crioulas, possuidoras de filhos de origem europeia, geralmente pelo lado paterno, e que se concentravam na elite colonial de Angola; c) os nativos, nascidos no território angolano antes da colonização ou não reconhecidos como descendentes de portugueses. Toda a atividade econômica da época era baseada no comércio de escravos. Angola, nas palavras de Valadão (2014, p. 15), girava em torno dessa atividade que favorecia “as grandes figuras da sociedade loandense, os ricos comerciantes e as ricas viúvas comerciantes, mulatas e negras”. Por muito tempo, o comércio de escravos enriqueceu diferentes nações europeias, entre elas, Portugal.

No comércio de escravatura, Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Holanda desempenharam um destacado papel, estabelecendo relações comerciais com as diversas sociedades africanas. Entre o século XV e meados do século XVIII, seriam os Portugueses a dominar o comércio do bois d’ébéne — nome que os negreiros davam aos escravos em toda a costa africana —, ditando as regras do mesmo, e só em finais do século XIX essa dominação cessaria, graças à intervenção naval da Inglaterra, que conduzia, finalmente, à total proibição do tráfico negreiro em todo o mundo atlântico (VALADÃO, 2014, p. 15-16, grifo da autora).

É claro que a autora idealiza aqui a atuação naval da Inglaterra e a proibição total do tráfico de escravos. Sabemos que a realidade dos eventos históricos não se resume a uma intervenção enérgica e definitiva. Por exemplo, Bois d’ébéne é um termo francês que significa ‘madeira de ébano’ e foi muito utilizado para desviar a fiscalização das ‘mercadorias’ dos 16

navios negreiros. De acordo com Rodrigues (2005, p. 172), no período de ilegalidade do tráfico “a documentação dos navios era, via de regra, falsificada”. Assim, justificativas diversas eram dadas pelos traficantes e facilmente aceitas por quem fiscalizava o tráfico. Este, por sua vez, perdurou ainda por muitos anos na clandestinidade após a proibição. Ademais, o fim do tráfico de escravos não significou o fim da escravidão interna. A atividade econômica angolana, que girou em torno do comércio de seres humanos, fez emergir uma elite crioula que abrigou em seu ventre a geração das famosas ‘donas’. As imagens marcantes dessas mulheres, que possuíam características comuns, embora fossem singulares em suas atuações, fazem-se presentes principalmente no romance Angola, as ricas- donas, de Isabel Valadão (2014), ainda que tenham aparecido antes em um outro romance da autora, Loanda: escravas, donas e senhoras, de 2011. Um olhar mais acurado sobre o colonialismo impresso na escrita de Isabel Valadão nos possibilita perceber a potência dos discursos de poder. Em pleno século XXI, na contramão das indagações sobre as consequências da modernidade europeia para a construção atual de países e grupos periféricos, mantendo uma relação de dominação e opressão imposta pelo colonialismo e a escravidão, a autora se volta para a escrita de um romance colonial que, propositalmente ou não, deixa em sua urdidura as marcas desses sistemas opressivos. Isso nos possibilita, por outro lado, a entender como o racismo permanece ativo em nossa sociedade e como os sujeitos possuem dificuldade de considerar certas atitudes como racistas, tendo em vista a naturalização desses discursos raciais. Ademais, compreendermos a formação da sociedade angolana é, em contrapartida percebermos a sociedade brasileira e a portuguesa, uma vez que as histórias desses três países se encontram entrelaçadas, embora seja por um passado marcado pela colonização e pela escravidão de povos africanos. Entendermos esse passado é procurar negociar um futuro que seja celebrado pela extinção de um racismo estrutural que se faz presente e pela fuga a uma neocolonização que se firma em nosso país tanto dentro de uma política interna como também externa, tendo em vista que o Brasil nunca se descolonizou realmente, assim como Angola. Por outro lado, a abordagem desse romance em questão procurou fazer-se substancial na contribuição ao estudo sobre gênero, já que, ao relatarmos a história das ‘donas’, estaremos contribuindo para uma história das mulheres africanas em uma época em que o elemento masculino dominava incólume, ainda mais se tratando de colônia. Essa subversão pôde se estender não somente aos aspectos do gênero, mas também ao de raça e de classe, uma vez que a história das ricas donas de Angola ultrapassa as fronteiras específicas do gênero para 17

relacionar o poder de mando delas ao poder aquisitivo que possuíam, mesmo sendo estas negras ou mestiças, dentro de um contexto colonial e escravocrata da época em que viveram. No que concerne também ao aspecto do gênero, atentamos para a questão de ser uma escrita de autoria feminina, embora a necessidade de fazermos uma problematização a respeito da voz autoral que se apresenta no romance fosse mais pertinente, considerando a possiblidade de uma representação ficcional hierarquizada, tendo em vista a vivência da autora no processo de colonização angolana por Portugal. Dessa forma, a experiência de vida da autora a coloca na condição de ex-colono e a abordagem do tema histórico não deixa de se impregnar por um olhar de cima para baixo no que tange às representações ficcionais. É um olhar que pode trazer para o discurso ficcional uma construção estereotipada do sujeito africano, contaminado pela visão eurocêntrica de mundo, da qual talvez não escape também a pesquisadora. Outrossim, o romance, de Isabel Valadão, aborda a elite angolana, dando a função de narrar para a personagem Eufrozina. Ela ocupa posições marginais na narrativa, seja em função da raça, do gênero e da classe. Nasce princesa, filha de um soba5, que a oferece a um jaga de Kassanje para que seja sua bansacuco6; é raptada do jaga pelo capitão-mor Félix Velasco Galiano que a estupra, antes de deixá-la sob a guarda de um sertanejo que, saberemos mais tarde, trata-se de Joaquim Rodrigues da Graça. Este se satisfaz do corpo de Eufrozina da mesma maneira para, em seguida, vendê-la como escrava. É na condição de escrava que ela chega a Dona Anna Joaquina, para quem Eufrozina foi uma serva dedicada. Após a morte de sua “ama e senhora” (VALADÃO, 2014, p. 32), torna-se uma liberta (denominação dada ao escravo ao qual se concedia a alforria), porém, fugitiva devido à invalidade da carta de alforria recebida. Por fim, já quase no final de sua vida, aos 68 (sessenta e oito) anos, a narradora encontra guarida e refúgio na quinta de seu raptor, Velasco Galiano, driblando assim a condição de escrava e encontrando nele um relacionamento que talvez a transforme numa possível ‘dona’ aos sessenta e oito anos de idade ou mais. A lei de extinção da escravidão determinava a libertação dos escravos, mediante uma indenização aos senhores de escravos pelo prazo de dez anos (reduzidos depois

5 Os sobas eram os responsáveis por fornecer para os estrangeiros a permissão de obter escravos nas áreas adjacentes aos seus domínios. Sem esse consentimento a captação dos escravos só poderia ser feita através de guerras, o que nem sempre era visto como a melhor opção, já que a contestação do poder local poderia acarretar desentendimentos maiores, prejudiciais ao andamento das atividades da Fazenda real portuguesa (CARVALHO, 2010). 6 Bansacuco é a esposa principal do jaga, sultana favorita, segundo Valadão (2012, p. 32).

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para sete), em forma de prestação de serviços e, por isso, o refúgio de Eufrozina na quinta de Galiano não se mostra como sendo voluntário, já que ela era uma fugitiva. A denominação de romance histórico dada por Isabel Valadão a Angola, as ricas- donas (2014), bem como o desejo de que toda sua produção literária seja entendida como metaficção, é outro elemento relevante para a pesquisa, pois entre a terminologia dada ao romance e o desejo expresso se encontra um anacronismo escritural que insere a narrativa da autora na categoria de romance colonial. Partindo desse pressuposto, averiguamos as engrenagens do discurso narrativo para justificarmos nossa leitura a partir do romance. Isabel Valadão se inicia na escrita muito tarde, impulsionada, talvez, por suas memórias e a paixão pela história. O primeiro romance, como vimos, é de 2011 e, em 2012, ela publica o segundo, A sombra do imbondeiro: estórias e memórias de África, no qual narra o período em que viveu em Angola e o retorno a Portugal. Em Angola, as ricas-donas, de 2014, temos uma narrativa complexa, que sobrepõe tempos diferenciados em sua tessitura: o da escrita, o da memória e o do narrado. O romance é escrito na denominada pós-modernidade/pós-colonialismo, narrando uma modernidade colonial que se apoia também nas memórias da colonização da autora. Uma modernidade que foi, por sua vez, imposta a povos considerados pré-modernos, os colonizados. Povos que, ainda hoje, vivem suspensos numa modernidade que os coloniza não enquanto sistema, mas enquanto maneira de pensar hierarquicamente uma sociedade, transformando o colonial em periférico ou marginal, seja a partir de uma microfísica ou de uma macrofísica do poder. A modernidade, fenômeno que se relaciona ao colonialismo, ao imperialismo e ao capitalismo, permanece na atualidade, pois a colonialidade do poder e do saber constrói a periferia a partir de uma centralidade euro-americana. Assim sendo, não podemos falar em pós-modernidade e muito menos de modernidade, se considerarmos que, para grande parte da população ocidental, principalmente para aqueles que foram colonizados, ela nada mais é do que um mito. Dessa forma, traremos para nosso trabalho o conceito de ‘transmodernidade’, considerando que as pessoas e as culturas que o arquivo pessoal da autora, assim como o arquivo público da história portuguesa trazem para o romance de Isabel Valadão não atendem aos desafios da modernidade e, até mesmo, da pós-modernidade euro-americana e, dessa forma, são transmodernos. Dentro de uma noção de colonialidade e de transmodernidade, o presente trabalho tem como objetivo geral analisar o romance Angola, as ricas-donas (2014), de Isabel Valadão, como romance colonial, considerando que a autora ressuscita, em sua escrita, o colonialismo 19

português, mas sem se afastar do conceito de colonialidade que o tempo da escrita do romance solicita, no sentido de refletir sobre as vítimas do mito da modernidade eurocêntrica e sobre a construção de uma alteridade que foi negada. A escritora, como sujeito, e sua escrita representam a percepção da modernidade eurocêntrica, enquanto mito e, por isso, traduz uma espécie de apologia ao colonialismo, ao mesmo tempo que consolida a classificação racial que o definiu. Nessa perspectiva, os objetivos específicos são: a) Dialogar sobre os conceitos de transmodernidade e de colonialidade a partir de uma reconfiguração da modernidade enquanto origem e sistema-mundo, no intuito de preencher as lacunas entre a produção e o contexto do narrado no romance de Isabel Valadão. b) Analisar as duas vozes que se cruzam na narrativa, produzindo um só timbre, a da autora e a da narradora, para justificar a concepção eurocêntrica bastante presente na voz da narradora, a escrava Eufrozina, como se esta fosse um avatar da autora; c) Verificar os esquemas coloniais e escravocratas da narrativa dentro do mito da modernidade, como também abordar a elite crioula e o reinado das ‘donas’ no círculo econômico e racial da sociedade colonial de Luanda no século XIX. Para tanto, dividiremos nosso trabalho em cinco partes principais: esta introdutória, três capítulos e as considerações finais. O primeiro capítulo de nosso trabalho é esta introdutória, como dissemos. No segundo capítulo – Modernidade e pós-modernidade na escrita de Isabel Valadão: por um conceito de transmodernidade e de colonialidade que preencha as lacunas entre o escrito e o narrado –, procuramos dialogar sobre os conceitos de transmodernidade e de colonialidade. Aqui, partindo de uma concepção eurocêntrica de mundo, cuja origem data do final do século XV, entendemos a modernidade como um mito, cujo propósito foi a expansão do colonialismo para o mundo não europeu sob a bandeira de um projeto civilizatório. Consequentemente, como mito, a modernidade nos territórios colonizados só existiu e existe como pensamento hegemônico. Na prática, tais territórios vivem na transmodernidade. Em contrapartida, considerando o conceito de transmodernidade, entendemos o colonialismo impresso no romance de Valadão (2014) como reflexo da colonialidade existente nos espaços hegemônicos de poder e de saber. Para nos fundamentarmos, além das palavras de Appiah (2016), Foucault e Hutcheon (1991), sobre os conceitos de modernidade, discurso de poder e pós-modernidade, foram fundamentais os estudos de Dussel (1995; 2005; 2007; 2016), de Lander (2005) e de Quijano (2005) sobre transmodernidade, eurocentrismo, colonialismo e colonialidade; como também 20

os de Torres (2000) sobre a economia portuguesa e de Said (1995) sobre a mecânica do poder colonial na cultura literária. O terceiro capítulo – Duas vozes e um mesmo timbre: a narradora e a autora de Angola, as ricas-donas – analisa as duas vozes presentes na narrativa de Valadão (2014): a da autora e a da narradora, concebendo-as como uníssonas, portadoras, portanto, de um único timbre. A intenção é justificar a voz da narradora como avatar da autora, tendo em vista a concepção eurocêntrica da fala da segunda bastante presente na fala da primeira, a escrava Eufrozina. O capítulo se desdobra em duas partes. A primeira traz outro romance de Valadão, A sombra do imbondeiro (2012), para tratar do lugar de fala da autoria apresentando sua escrita como um sintoma. No conjunto da obra da autora, a compulsão à repetição do passado colonial é uma marca. Todavia, a recorrência de Isabel Valadão ao colonialismo padece de um ‘mal de arquivo’; ou seja, o desejo de retorno a um ponto de origem. Isso leva a autora a revisitar as memórias e a vasculhar os arquivos oficiais da história portuguesa. Consequentemente, ela acaba expondo um colonialismo extemporâneo em sua escrita. A segunda parte trata da representação da narradora pela autora ou da presença da autora na narradora. Partindo do questionamento do direito de fala dado ao subalterno, uma escrava, verificamos se realmente a narradora possui a autonomia da fala ou se estamos diante de uma falácia produzida pela autora. Como fundamentação teórica, utilizamos, principalmente, os estudos de Dalcastagnè (2012) e Spivak (2000; 2010) para falarmos de representação enquanto apresentação de um novo olhar sobre um determinado evento e enquanto ato político de estar no lugar de alguém, bem como o conceito de ‘mal de arquivo’ de Derrida (2001). Outros estudiosos se fazem presente de forma substancial como Almeida (2019), Barthes (2004), Fonseca (2013), Foucault (2001), Freyre (2003), Dacosta (2013), Davis (2016), Said (1995), Santos (2003), dentre outros. No quarto capítulo – Entre a terminologia do romance e a história dos portugueses em Angola, as ricas-donas, de Isabel Valadão –, verificamos, além da terminologia dada ao romance, o contexto histórico do enredo, procurando mostrar a representação dos esquemas coloniais e escravocratas da narrativa dentro do mito da modernidade, como também abordarmos a elite crioula e o reinado das ‘donas’ no círculo econômico e racial da sociedade colonial de Luanda no século XIX. O capítulo se desdobra em quatro partes. Na primeira, procuramos confirmar o romance de Isabel Valadão como literatura colonial, já que este se encontra ideologicamente marcado, mostrando uma visão hierarquizadora de mundo; o que caracterizaria o romance colonial. O interessante é que se trata de uma ramificação do gênero 21

romance pouco usual em tempos de contestações da modernidade e do colonialismo. Na segunda, trazemos as relações e os conflitos entre a sociedade crioula de Luanda e as autoridades portuguesas no percurso histórico do comércio transatlântico de escravos. Na terceira, verificamos a formação da elite crioula e a percepção eurocêntrica da autora sobre as relações entre essa elite e a sociedade colonial de minoria branca. Por último, vemos a caracterização das ‘donas’ mestiças, negras e brancas e as armadilhas raciais em torno da sociedade crioula e de suas ‘donas’. Nesse capítulo, trouxemos especialmente Noa (2002) para retermos o conceito de literatura e romance colonial e Mbembe (2014) para discorrer sobre a criação da raça no imaginário europeu. Utilizamos também Bethencourt (2018), Laranjeira (2015) e Glissant (2005) para significar o termo crioulo; assim como Said (1995), Wheeler (2013), Alexandre (2000), Rodrigues (2005), Dias (2000), Bethencourt (2018), entre outros estudiosos, principalmente do campo da história, para comentar sobre colonização e escravidão. Para fundamentar sobre a formação da elite crioula e das ‘donas’, Bittencourt (1999), Dias (1984) Marzano (2013) e Pantoja (2004) foram essenciais. Isabel Valadão é uma escritora pouco conhecida do público leitor brasileiro e, entre os leitores portugueses, ela não parece ser um dos escritores mais lidos. Por parte da crítica literária, já pouco presente nos dias de hoje, não encontramos também material de apoio para dialogarmos sobre os comentários feitos a respeito da escrita da autora. Nos sítios digitais, há uma quantidade substancial de entrevistas dela, mas nada encontramos advindos da crítica. Isso talvez se deva ao aparecimento tardio da escritora no meio literário. Em suas palavras:

A escrita chega quando tudo mais se aproxima do fim. Chega-me numa idade mais madura, depois de todas as experiências que a vida me proporcionou. Chega-me também da necessidade de me ocupar e de me manter viva. De me manter, sobretudo, alerta. E da necessidade imperiosa de não esquecer! É a última casa de quem sobe na direção da saída grande. Tenho 72 (CASTRO, 2017).

A entrevista dada a Isabel Castro, do Jornal Macau, na internet, foi em 2017. Atualmente, a escritora deve estar com 75 anos completos ou por completar, mas, mesmo assim, pretende continuar com a escrita de romances, já tendo dois temas em vista. A escrita da autora é sintoma, como veremos, é experiência, é preservação da memória, é ócio criativo e é, sobretudo, uma forma de se manter viva, como diz. Outrossim, no espaço acadêmico, a obra de Isabel Valadão não despertou o interesse dos pesquisadores ou ainda se encontra também no anonimato diante de tantos autores que 22

solicitam serem lidos e da insistência no cânone literário por parte de alguns pesquisadores. Poderíamos aqui supor um ineditismo diante da pesquisa em torno de uma de suas obras literárias, mas descobrimos a dissertação de mestrado de Maria Margarida Martins, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com a orientação do professor Dr. Everton V. Machado. Pelo menos em termos de Brasil, podemos supor o ineditismo da pesquisa sobre a obra da autora. Martins (2020) se concentrou na questão identitária e no orientalismo presente no romance histórico, de Isabel Valadão, O rio das Pérolas, publicado em 2017. A pesquisadora analisou “o modo como a identidade — em particular da personagem principal (Maria/Mei Lin) se constrói e evolui ao longo do livro, em relação com as diferenças sociais e culturais existentes no território” (idem, p. 5) , assim como observou e descreveu os “estereótipos relativos ao Oriente [que] dão vida à trama pela alta carga de exotismo” (idem). A reafirmação de estereótipos, principalmente com a insistência no exótico, parece ser uma marca nos romances de Isabel Valadão, pois, tal qual no romance analisado por Martins (2020), veremos isso também no romance autobiográfico A sombra do imbondeiro (2012) e, especialmente, em Angola, as ricas-donas (2014), ambos da citada autora portuguesa. No parecer da análise de Martins (2020, p. 85),

[...] não são espaços e personagens isentos de estereótipos. O Rio das Pérolas não deixa de ser mais um dos romances de carácter orientalista, como muitos outros que se escreveram no passado sobre o Oriente e se continuam a escrever. Estando a mente ocidental formatada por topoi que têm como base o exotismo, é-nos dada a descrição recorrente das mulheres orientais, das suas roupas, de vícios como o da droga, do sexo, do jogo e do crime [...]. Muitas vezes esses topoi surgem como críticas veladas a usos e costumes que seriam considerados próprios, naturais do Outro

As concepções de Martins (2020) acrescentam e reforçam nossa pesquisa, pois, se pela leitura do romance Angola, as ricas-donas (2014) já percebíamos na estrutura da trama a carga de estereótipos endereçada ao outro, dado como colonizado, escravizado e inferior, com o estudo aprofundado dele fomos capazes de construir um raciocínio na direção de estarmos diante de um romance colonial impregnado de um olhar tendenciosamente eurocêntrico. A dissertação de Martins (2020) só comprova nosso direcionamento. Esperamos que a pesquisa possa servir de suporte para os estudos acadêmicos da área de Letras e/ou de Humanas, provocando ou ofertando alguns direcionamentos para os estudos culturais no que concerne ao eurocentrismo, ao colonialismo e à representação de Angola no século XIX, a partir do olhar português. No mais, esperamos também que ela sirva para 23

percebermos o quanto nossos olhares estão viciados por uma estrutura colonial e escravocrata e o quanto isso se reflete na construção de nossa vida atual, de nossas ações, de nossas falas, de nossas escritas e de nosso modo de pensar e proceder com o outro. Precisamos pensar seriamente em um tratamento para o vício do racismo que assola nossa sociedade e sobre o qual todos temos nossa parcela de culpa, como também de compromisso com o outro. É necessário nos encaminharmos nesse sentido não apenas para cuidar do outro, mas para cuidarmos de nós, pois cuidar do outro implica pensar num mundo melhor em que o pensar para fora reverbera em nós mesmos, no nosso bem-estar, em uma nova forma de humanidade, desatrelada das concepções da modernidade eurocêntrica.

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2 POR UM CONCEITO DE COLONIALIDADE E DE TRANSMODERNIDADE QUE PREENCHA AS LACUNAS ENTRE O ESCRITO E O NARRADO NO ROMANCE ANGOLA, AS RICAS-DONAS, DE ISABEL VALADÃO

Para Appiah (2016), nos discursos totalizantes da sociedade moderna ocidental, há uma prática que reivindica ‘exclusividade de discernimento’; ou seja, status de verdade. Em contrapartida, nesses mesmos discursos, o pós-modernismo pode se afirmar como a rejeição a essa reivindicação de exclusividade sem, no entanto, deixar de refletir que tal rejeição deve considerar as especificidades do contexto em que cada pós-modernismo se apresenta. A cultura é plural e não comporta sempre os mesmos tempos e espaços e, muito menos, as mesmas configurações dentro desses mesmos tempos e espaços. Dessa forma, assim como Hutcheon (1991), Appiah (2016) enfatiza o caráter contraditório, histórico e político do pós-modernismo. O autor também alega que a rejeição a uma reivindicação de exclusividade “é quase sempre mais lúdica, mas não necessariamente mais séria, do que a prática que pretende substituir” (APPIAH, 2016, p. 6). Nesse aspecto também, Appiah apresenta uma certa cumplicidade com as palavras de Hutcheon (1991). Para a autora, o pós-modernismo precisa ser atencioso no tocante a “não transformar o marginal num novo centro”, tendo em vista que a ideia é abolir “as garantias absolutas oferecidas por sistemas metafísicos tiranizantes” (HUTCHEON, 1991, p. 30). Tanto Appiah (2016) quanto Hutcheon (1991) temem cair no mesmo discurso totalizante no deslizamento de um conceito para o outro. Em suma, de acordo com Hutcheon (1991, p. 15):

O que está sendo contestado pelo pós-modernismo são os princípios de nossa ideologia dominante (à qual, talvez de maneira um tanto simplista, damos o rótulo de ‘humanista liberal’): desde a noção de originalidade e autoridade autorais até a separação entre o estético e o político. O pós-modernismo ensina que todas as práticas culturais têm um subtexto ideológico que determina as condições da própria possibilidade de sua produção ou de seu sentido [...].

Em outras palavras, os discursos não podem ser analisados sem considerarmos os poderes que o engendram e, nesse aspecto, o contexto em que foram produzidos. A partir de um ataque a uma ideologia concebida como dominante, concentrando-se em seu ponto nevrálgico que são os discursos, o pensamento pós-moderno produz seus mecanismos e sua 25

força (des)construtora, mas com parcimônia, procurando aparar excessos no temor de cair em uma outra centralidade. Nesse tocante, Foucault (2009, p. 10) alerta que o discurso não é apenas um instrumento de dominação, de poder; ele é o próprio poder, posto que quem o detém determina o establisnment. Todavia, não se trata aqui, como dissemos, da inversão da lógica do sistema dominante, mas de revelar as estratégias discursivas que se impõem na ordem do discurso, como diz Foucault (2009, p. 9):

[...] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certos números de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada materialidade.

Nem tudo pode ser dito, nem todos estão habilitados a dizê-lo, assim como o dito deve obedecer a protocolos de organização e espaços de fala específicos e determinados. A cultura pós-moderna compreende o funcionamento das estruturas dominantes, seja em seus aspectos econômicos de um capitalismo que regulamenta o que é necessário e útil para o sujeito, assim como em seus preceitos ideológicos. Entretanto, ela procura desarticular os mecanismos que regem esse sistema e que se concentram nos discursos totalitários e excludentes, procurando questioná-los a partir de dentro, de suas construções, de suas convenções, desnaturalizando a cultura e possibilitando que discursos totalizantes sejam desmascarados e que outros reverberem minando a ideia de centro. O pós-modernismo propõe a demolição da ideia de hierarquias naturais, sob a perspectiva de que tudo é uma construção cultural firmada através de discursos que materializam a linguagem. Essa, por sua vez, é ideológica e, portanto, política. Nesse ponto, ele atenta para a necessidade humana de estabelecer a ordem, assim como para a constatação de que as ordens não são outra coisa que não elaborações humanas, e não entidades naturais ou preexistentes, como imaginamos ser. De acordo com Hutcheon (1991, p. 31), o pós-modernismo assente sob a concepção de que “nenhuma narrativa pode ser uma narrativa ‘mestra’ natural” e, sendo assim, é possível para ele se contrapor às “narrativas que de fato pressupõem o status de ‘mestras’, sem necessariamente assumir esse status para si”, considerando, dessa forma, as narrativas que foram relegadas às margens ou que foram invisibilizadas, por não se enquadrarem na noção de centro, elaborada pelo homem, constituindo-se narrativas ‘ex-cêntricas’ no parecer de Hutcheon (1991). 26

O pós-modernismo procura, por um lado, abolir as certezas do humanismo, contestando a ideia do indivíduo unificado e coerente e, por outro, questionando e se opondo a qualquer concepção totalitária e homogeneizante. Ao provocar tais rupturas, o pós- modernismo dá lugar ao provisório e heterogêneo, ao mutável e ao diferente; como também à possibilidade de culturas e discursos plurais. Como ideia o pós-modernismo seria uma saída para um equilíbrio na balança social e econômica da sociedade ocidental, mas sabemos que, na prática, ele não existe, uma vez que, em alguns espaços ocidentais, a modernidade é um mito que ainda não foi superado. Portanto, talvez o termo pós-moderno não seja adequado para denominar nossa contemporaneidade, considerando-se as mudanças ainda solicitadas pelo prefixo pós. Tanto o prefixo pré- como o pós- parecem funcionar como provisório para designar períodos difíceis de definirmos devido à complexidade que comportam e para quem o porvir caberá classificar o nosso. Ademais, a concepção de que o ocidente, como o entendemos, cultural, mas não geograficamente falando, está atualmente inserido na pós-modernidade e que a modernidade é resultante do esforço da razão e do desenvolvimento humano que teve início no século XVIII, não é consensual. Pensadores como Anibal Quijano, peruano; Enrique Dussel e Walter Mignolo, ambos argentinos; Catherine Walsh, norte-americana, naturalizada equatoriana; Bhabha, indo- britânico; e Said, palestino, partindo de pontos diferentes, contestam os paradigmas hegemônicos em favor de assimetrias de dominação global e trabalham com a concepção de tempos sobrepostos na relação periferia e centro. Nessa perspectiva, o ocidente comporta lugares em que a pós-modernidade não existe e a modernidade é apenas determinada pelo pensamento hegemônico, mas não exatamente vivida. Neste capítulo, pretendemos dialogar sobre os conceitos de transmodernidade e de colonialidade, a partir de uma reconfiguração da modernidade enquanto origem e sistema- mundo, no intuito de preencher as lacunas entre o contexto de escrita do romance de Isabel Valadão e o contexto nele narrado. Não podemos conceber o contexto da escrita da autora como sendo o da pós-modernidade ou da pós-colonialidade, pois ela não atende aos anseios de quebra com uma narrativa ‘mestra’ natural, tendo em vista a forma como aborda o colonialismo em Angola, as ricas-donas (2014). Tampouco, podemos entender determinadas culturas como sendo pós-modernas, uma vez que o conceito de modernidade ainda regula as condutas e o pensamento como é o caso de Portugal. Por outro lado, há culturas como Angola em que, em certos espaços, a modernidade só existe enquanto conceito, pois, na prática, as 27

culturas se regulam conforme o pensamento da tradição, que é anterior ao conceito de modernidade.

2.1 Eurocentrismo, modernidade e colonialidade: a transmodernidade do mundo pós- colonial e periférico A perspectiva combativa do imperialismo presente nos estudos pós-coloniais e nos estudos subalternos, assim como a contestação de uma epistemologia notadamente eurocêntrica para nortear esses estudos no que concerne à América latina e à África anteriormente colonizada é uma postura que passou a ser adotada a partir do final do século XX. Diante de tal postura, o eurocentrismo, a modernidade e a colonialidade despontaram como pautas necessárias para serem discutidas e, simultaneamente, uma epistemologia adequada para direcioná-las também começou a tomar forma. Enrique Dussel, filósofo argentino, sustenta que há lugares no denominado ocidente que sequer são modernos e isso se deve à definição eurocêntrica de ‘Modernidade’ que homogeneizou a cultura ocidental, concebendo a Europa como centro do mundo e relegando todo o restante à periferia. Para Dussel (2005, p. 27), há dois conceitos de modernidade. Um deles é “eurocêntrico, provinciano, regional”; e, o outro, é mundial. Na concepção de Dussel, é necessária uma oposição à interpretação eurocêntrica de modernidade, “não como um tema alheio à cultura latino-americana, mas sim, contra a opinião corrente, como problema fundamental na definição da identidade ‘latino-americana’” (DUSSEL, 2005, p. 26-7). Isso se faz necessário para que entendamos que tal modernidade é uma forma de dominação e de apropriação da força de trabalho de outrem em favor do lucro de uma determinada parcela da sociedade capitalista. Do ponto de vista de uma definição mundial, a modernidade data de 1492, pois, antes, “os impérios ou sistemas culturais coexistiam entre si. Apenas com a expansão portuguesa desde o século XV, que atinge o extremo oriente no século XVI, e com o descobrimento da América hispânica, todo o planeta se torna o ‘lugar’ de ‘uma só’ História Mundial” (DUSSEL, 2005, p. 27). Na outra vertente, conforme Dussel (2005), uma definição eurocêntrica concebe a modernidade com características ou determinações exclusivamente europeias, constituindo para ela uma subjetividade cujo princípio se encontra em acontecimentos históricos essenciais: “a Reforma, a Ilustração e a Revolução Francesa” (idem, p. 27). Esta modernidade aconteceria na Europa, no século XVIII. 28

A ideia de nos opormos à definição eurocêntrica de modernidade implica entendermos a condição periférica em que se encontra parte do mundo não europeu em relação à Europa e entendermos a inadequação de uma cultura da pós-modernidade para designar tais espaços. De acordo com Dussel (1995, p. 86-7):

Todas as grandes culturas neolíticas foram ‘centro’ de subsistemas civilizadores, com suas ‘periferias’ próprias, mas sem conexão histórica importante com os demais ecumenismos. Somente a cultura europeia moderna, a partir, portanto, de 1492, é que foi ‘centro’ de um ‘sistema mundial’, de uma História Mundial, que de certo modo está em contradição (pelos diversos tipos de ‘subsunção’ e ‘exterioridade’ [...]) com todas as outras culturas do planeta Terra, culturas estas que (em primeira instância) serão militarmente dominada em forma de periferia. (Grifos do autor).

Ao criar uma subjetividade, baseada em um centro que exclui e define o não europeu como inferior, a Europa universalizou uma cultura e estendeu-a ao restante do mundo como modelo de superioridade a ser seguido, suplantando todos os ecumenismos existentes. O ‘eurocentrismo’, no entanto, não foi gestado a partir de elementos puramente europeus, mas tais elementos foram construídos como tal, introjetando para o restante do mundo uma particularidade essencialmente europeia, dotada da racionalidade necessária para governar numa esfera mundial. Ao deslocar a modernidade, antecipando-a para 1492, Dussel (2007) conecta quatro fenômenos que considera, com o da modernidade, simultâneos:

Por mi parte, pretendí anticipar la Modernidad hasta fines del siglo XV, articulando y situando a los cuatro fenómenos indicados como originándose simultáneamente: la Modernidad, los imperios europeos, el colonialismo y el sistema capitalista. La Modernidad (fenómeno cultural, histórico, filosófico, literario y científico) comienza, según mi tesis, y se desarrolla, cuando Europa deja atrás el Mediterráneo renacentista y se ‘abre’ al Atlántico; entra al ‘ancho mundo’ que supera el enclaustramiento latino-germánico al que le había sometido el mundo islámico-otomano en la llamada ‘Edad Media’ (desde el siglo VII). Todo parecía indicar que desde finales del siglo XV Europa, Lisboa y Sevilla primero, después Ámsterdam y posteriormente otros puertos atlánticos, se habían constituído como el ‘centro’ de la historia ‘mundial’, mundial por primera vez en la historia. Poco a poco, primero América latina, después América anglosajona, el mundo indostânico o islámico y por último el África bantú, iban a transformarse en ‘colonias’ de la Europa moderna, metropolitana, capitalista. Era un proceso que duró cinco siglos7 (DUSSEL, 2007, p. 196-7, grifos do autor).

7 De minha parte, procurei antecipar a Modernidade até o final do século XV, articulando e localizando os quatro fenômenos apontados como originando-se simultaneamente: a Modernidade, os impérios europeus, o colonialismo e o sistema capitalista. A modernidade (fenômeno cultural, histórico, filosófico, literário e 29

A modernidade, portanto, situada no final do século XV, nasce sob o signo da expansão, da dominação, da opressão e do capital. Sob tal signo cria a ideia de um outro inferior a partir de um centro, a Europa. A partir de então são estabelecidas as dualidades: metrópole e colônia; colonizador e colonizado; centro e periferia; cultura e natureza; civilização e barbárie. Esse deslocamento da modernidade sugerido por Dussel (2007) é oportuno para entender a assimetria que se instalará entre a modernidade europeia, entendida como sendo emancipadora e desenvolvimentista, e o mundo periférico colonial que ela criou, atrasado e carente de civilização do ponto de vista da Europa. Para Quijano (2005), ao se transformarem no centro do moderno sistema-mundo, os europeus desenvolveram o etnocentrismo que serviria como categoria para determinar sua superioridade. A partir de então, tal categoria atenderia não somente a sua dominância nos territórios coloniais, mas também como classificação racial universal no porvir. A posição de centro da moderna história mundial deu à Europa a oportunidade de redefinir o mundo e o tempo, conforme sua posição de centro.

[...] os europeus geraram uma nova perspectiva temporal da história e re- situaram os povos colonizados, bem como a suas respectivas histórias e culturas, no passado de uma trajetória histórica cuja culminação era a Europa (Mignolo, 1995; Blaut, 1993; Lander, 1997). Porém, notavelmente, não numa mesma linha de continuidade com os europeus, mas em outra categoria naturalmente diferente. Os povos colonizados eram raças inferiores e –portanto– anteriores aos europeus (QUIJANO, 2005, p. 121).

Dessa forma, a história da Europa é construída como trajetória humana, numa perspectiva linear de desenvolvimento em que, aos outros povos, restavam os papeis secundários e a submissão ao ideário europeu, a modernidade. Supostamente dotados da racionalidade e do conhecimento necessário para este desenvolvimento, os europeus determinavam os rumos da história sob os discursos de verdades que precisavam para manter a dominância. Nas palavras de Lander (2005, p. 13), estamos diante de:

científico) começa, segundo minha tese, e se desenvolve, quando a Europa deixa para trás o Mediterrâneo renascentista e se ‘abre’ ao Atlântico; entra no ‘vasto mundo’ que supera o cerco latino-germânico a que o mundo islâmico-otomano o havia submetido na chamada ‘Idade Média’ (desde o século VII). Tudo parecia indicar que, desde o final do século XV, a Europa, primeiro Lisboa e Sevilha, depois Amsterdã e mais tarde outros portos atlânticos, haviam se tornado o ‘centro’ da história ‘mundial’, mundial pela primeira vez na história. Pouco a pouco, primeiro a América Latina, depois a América anglo-saxônica, o mundo indostânico ou islâmico e, finalmente, a África bantu, seriam transformados em ‘colônias’ da Europa moderna, metropolitana e capitalista. Foi um processo que durou cinco séculos (Tradução nossa). 30

[...] uma construção eurocêntrica, que pensa e organiza a totalidade do tempo e do espaço para toda a humanidade do ponto de vista de sua própria experiência, colocando sua especificidade histórico-cultural como padrão de referência superior e universal.

Em decorrência disso, se, por um lado, há uma validação da Europa como naturalmente superior; por outro, este “metarrelato da modernidade” funcionará como uma “forma de dispositivo colonizador do conhecimento” que possibilitará com que as formas de sociedade não circunscritas dentro dessa categoria superior e universal se reconheçam como “diferentes”. Mais que isso, “carentes, arcaicas, primitivas, tradicionais, pré-modernos”, por se sentirem inseridas em um “momento anterior do desenvolvimento histórico da humanidade, o que, no imaginário do progresso, enfatiza sua inferioridade” (LANDER, 2005). Isso se dará essencialmente a partir de uma classificação racial, o etnocentrismo. De um ponto de vista eurocêntrico, este dispositivo visa, falaciosamente, a banir o atraso através de uma “ação civilizatória ou modernizadora”, que se encarregaria, na verdade, de esconder a “aniquilação” de formas diferentes de sociedade, assim como a imposição da “civilização” desejada, uma vez que estas se tornam “os únicos destinos possíveis para os outros”. (LANDER, 2005). Dussel (2005) descreve tal estratégia eurocêntrica de mito da modernidade, uma vez que o relato da modernidade não se sustenta como verdadeiro. Ela propõe a racionalidade como saída para a retirada da humanidade de um estado primitivo, contraditoriamente, a partir de um processo irracional que se utiliza da violência e da opressão para obter tal saída. Para o filósofo argentino, o mito da modernidade pode ser assim descrito:

1. A civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior (o que significa sustentar inconscientemente uma posição eurocêntrica). 2. A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos, bárbaros, rudes, como exigência moral. 3. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa (é, de fato, um desenvolvimento unilinear e à européia o que determina, novamente de modo inconsciente, a ‘falácia desenvolvimentista’). 4. Como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, a práxis moderna deve exercer em último caso a violência, se necessário for, para destruir os obstáculos dessa modernização (a guerra justa colonial). 5. Esta dominação produz vítimas (de muitas e variadas maneiras), violência que é interpretada como um ato inevitável, e com o sentido quase-ritual de sacrifício; o herói civilizador reveste a suas próprias vítimas da condição de 31

serem holocaustos de um sacrifício salvador (o índio colonizado, o escravo africano, a mulher, a destruição ecológica, etcetera). 6. Para o moderno, o bárbaro tem uma ‘culpa’ (por opor-se ao processo civilizador) que permite à ‘Modernidade’ apresentar-se não apenas como inocente mas como ‘emancipadora’ dessa ‘culpa’ de suas próprias vítimas. 7. Por último, e pelo caráter ‘civilizatório’ da ‘Modernidade’, interpretam-se como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da ‘modernização’ dos outros povos ‘atrasados’ (imaturos), das outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser frágil, etcetera (DUSSEL, 2005, p. 30, grifos do autor).

Como vimos, a Europa moderna, fincada como centro do mundo e reconhecida como racionalmente superior, em um processo que teria início no final do século XV e duraria cinco séculos, iria pouco a pouco colonizar boa parte do mundo, tendo como bandeira o mito da modernidade; ou seja, levar a civilização aos povos carentes de racionalidade e de desenvolvimento, tendo em mente um projeto colonial. A Europa moderna, incorporada pela racionalidade que a hierarquizava, colonizou boa parte do mundo, principalmente a África subsaariana e uma parte da América latina, utilizando-se da teoria das raças para negar a alteridade a povos considerados carentes de proteção e de amparo no projeto desenvolvimentista da modernidade. Toda opressão e violência perpetrada foi justificada pela proteção e pelo amparo dado a estes povos. Houve, com isso, a aniquilação de muitas culturas e a assimilação de outras, mas houve também as resistências e os isolamentos A modernidade que trouxe consigo a relação império e colônia ainda persiste em nossos dias em termos de centro e periferia e em termos de uma colonialidade do poder e do saber. Ela se introduz nas relações de desigualdades sociais em que a visão eurocêntrica e, portanto, ocidental se insere. Assim sendo, considerando-se o mito da modernidade que nega determinadas alteridades em detrimento de outras, há culturas que, embora estejam inseridas na modernidade, não podem ser consideradas modernas e, por não serem modernas, não podem ser pré-modernas. Elas estão inseridas em um outro tempo. Para Dussel (2015, p. 63):

Essas culturas foram, em parte, colonizadas, mas a maior parte de suas estruturas de valores foram sobretudo excluídas, desprezadas, negadas, ignoradas mais do que aniquiladas. O sistema econômico e político foi dominado no exercício de poder colonial e da acumulação gigantesca de riqueza, mas essas culturas têm sido interpretadas como desprezíveis, insignificantes, sem importância e inúteis. Esse desprezo, no entanto, permitiu-lhes sobreviver em silêncio, desdenhadas simultaneamente por suas próprias elites modernizadas e ocidentalizadas.

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Essas culturas, possivelmente, são pré-modernas por guardarem os resíduos da identidade que possuíam anterior ao colonialismo, contemporâneo da modernidade e do capitalismo. Dentro do contexto da modernidade, a alteridade dessas culturas foi negada, segundo Dussel (2015), mas se manteve latente e pronta a renascer, embora permaneça como exterioridade. Elas, no entanto, embora não sejam modernas, são contemporâneas da modernidade. Como não chegam a ser pós-modernas, por não serem modernas, elas estão inseridas naquilo que Dussel (2015) denomina de transmodernidade. Ao reconhecermos a modernidade como um mito, conscientizando-nos de quem são as vítimas do sistema eurocêntrico e quais as injustiças perpetradas por ele, adquirimos, assim, uma dupla consciência que nos libertará do jugo da violência e da omissão, possibilitando-nos compreender determinadas culturas a partir do conceito de transmodernidade. Por mais paradoxal que pareça, este conceito nega a racionalidade por meio da racionalidade. Ou seja, a transmodernidade nega aquilo que foi dado como fruto da razão, a modernidade eurocêntrica e desenvolvimentista, por meio de um projeto racional e mundial que reivindique a alteridade negada por esta modernidade.

[...] o conceito estrito de ‘transmoderno’ indica essa novidade radical que significa o surgimento – como se a partir do nada – da exterioridade, da alteridade do sempre distinto, de culturas universais em desenvolvimento, que assumem os desafios da Modernidade e, até mesmo, da pós- modernidade euro-americana, mas que respondem a partir de um outro lugar, other location (Dussel, 2002), do ponto de sua própria experiência cultural, diferente da euro-americana, portanto capaz de responder com soluções completamente impossíveis para a cultura moderna única (DUSSEL, 2015, p. 63).

Essas culturas que, como Dussel (2015) afirma, em parte, foram colonizadas, costumam ser denominadas, hoje em dia, de mundo pós-colonial e periférico. Angola e Brasil certamente estão inseridos nesse mundo de um modo ou de outro, pois foram ex-colônias de Portugal. Somos, provavelmente, transmodernos. Nosso lugar de fala e atuação não respondem a partir de uma cultura moderna única, apesar de sermos contemporâneos dela. Ou, tentamos responder a partir dela, mas os resultados são quase sempre desastrosos. É na perspectiva do mito da modernidade europeia que poderemos pensar o contexto literário do romance Angola, as ricas-donas (2014), de Isabel Valadão, verificando como a modernidade/o colonialismo é visto pela autora, considerando-se o lugar de fala dela. Como sabemos, o romance é o retrato do século XIX, mostrando mais da metade desse século, com a elite crioula luandense em seu conflito de interesses escravocratas com as autoridades 33

portuguesas e brasileiras. Dentro dessa relação império x colônia, devemos atentar para a dominação portuguesa sobre Angola e a dominação das elites luso-africana (crioulas) que serviam de intermediárias entre a metrópole e a população nativa e que também se beneficiavam do comércio de escravo transatlântico.

2.2 Transmodernidade, colonialidade e colonialismo na escrita de Isabel Valadão, em Angola, as ricas-donas O mercantilismo, cuja doutrina é a de que uma nação só pode enriquecer e se fortalecer à custa das outras nações; ou seja, à custa da violência, da força bélica, foi, conforme Torres (2000, p. 61) “o modelo que influenciou decisivamente a história colonial portuguesa, tanto no século XIX como no próprio século XX até pelo menos à segunda guerra mundial”; ou mesmo até 1961. Para Torres (2000, p. 65), “o mercantilismo português sobreviveu para além da primeira metade do século XX”. E ainda se estendeu “nos projectos dos regimes monárquico, republicano e do Estado Novo”. O mercantilismo não pode ser equiparado totalmente ao capitalismo, mas não deixa de ser a sua pior vertente, tendo em vista que preparou o terreno para o capitalismo. Enquanto o capitalismo é baseado no trabalho supostamente livre, o mercantilismo se sustentou na exploração do trabalho escravo e na acumulação primitiva do capital. O fato de o trabalho escravo, em Angola, assim como em outras colônias portuguesas, ter se mantido em forma de trabalho forçado no Estado Novo em parte justifica a sobrevivência do mercantilismo até mais da metade do século XX. Isabel Valadão, como narradora de um passado angolano e como colono em terras angolanas na segunda metade do século XX, acompanhou a história de colonização de Angola de perto e com mais propriedade, pelo menos do ponto de vista de um português. A autora nasceu sob o domínio do Estado Novo em Portugal. Ainda nova, com a idade de seis anos, foi para Angola com sua família, que se beneficiou das vantagens do trabalho forçado nesta colônia portuguesa como colonos. Lá, viveu sob a barreira racial que inseria os portugueses numa categoria superior, conforme determinação eurocêntrica. Ao voltar a Portugal, temendo o preconceito contra os ‘retornados8’, e buscando novas oportunidades profissionais para o marido, resolveu se mudar para Macau, na então China portuguesa, já que viver lá seria como a extensão da experiência em Angola. Em Macau,

8 Falaremos sobre isso no tópico “O lugar de fala da autora: a terra prometida e a história dos retornados sob a égide de A Sombra do Imbomdeiro”. 34

viveu durante o período de 1983 a 1986, um ano antes de a colônia portuguesa voltar à soberania chinesa. A idade com que foi morar em Angola a inseriu em um território colonial e entre pessoas que comungavam de um pensamento eurocêntrico e de uma modernidade calcada na negação da alteridade africana. O retorno a Portugal já alcança a autora, salvo engano, com a idade de trinta anos, quando as ideias de mundo de um sujeito já estão praticamente consolidadas. Ela retorna sob o trauma da revolta de ser retirada de sua condição de destaque social e econômico para a sina de uma vida cheia de restrições e penúria em Portugal. Aos poucos, ela se reconstrói, mas ainda busca ascensão econômica em outra colônia portuguesa, retornando anos depois para se envolver com a escrita de seus romances e de sua autobiografia. Ao olharmos rapidamente a trajetória de vida de Isabel Valadão, percebemos que ela parece guardar um certo saudosismo ao colonialismo, pois vive presa a ele em sua vida e em sua escrita. A infância da autora em Angola, no contato com a população angolana nativa, nas fazendas de sisal onde seu pai trabalhava e onde a família morava, a introduziu numa cultura que oscilava entre a pré-moderna e a moderna ou numa cultura pré-moderna inserida na moderna. Isso é mais forte no contato da pequena Isabel com Romeu, José e Cecília (personagens de A sombra do imbondeiro, de 2012). Já na fase adolescente e adulta, a autora viverá em Luanda, uma cidade que, nas palavras dela, é “fascinante e cosmopolita” (VALADÃO, 2012, p. 106), provida de tudo o que a modernidade capitalista é capaz de fornecer aos portugueses privilegiados pela categoria da raça e que fecha os olhos para os crimes cometidos contra a população nativa e mestiça. Ela é secretária em um grande jornal e participa da vida agitada e repleta de atrativos em Luanda. Após os conflitos da guerra de independência, ela retorna a uma Portugal que se encontra no atraso da ditadura salazarista e que tenta se reerguer. Mas, logo depois, ela volta à condição de colona em uma sociedade obrigada a se modernizar, como é o caso de Macau, na China portuguesa. Este trânsito entre tempos diferenciados, mas sempre inseridos na colonização moderna, provavelmente nos permite, fazendo um esforço epistemológico, aplicar o conceito de transmodernidade para a autora. O romance Angola, as ricas-donas (2014), de Isabel Valadão, cujo contexto histórico é o século XIX, tendo como cenário a cidade de Luanda/Angola, situa-nos na modernidade. Porém, a escrita do romance é bem atual (2014), já em tempos considerados de pós-coloniais/pós-modernos. 35

Retornando a Dussel (2007, p. 196), vemos que a modernidade, se antecipada para o final do século XV, irá articular e situar, simultaneamente, quatro fenômenos: a modernidade; os impérios europeus; o colonialismo e o sistema capitalista. A dificuldade de pensarmos a contemporaneidade como pós-moderna ou pós-colonial é a de identificar nela a superação daquilo que a modernidade uniu e que o próprio prefixo pós implica; a saber: o colonialismo, os impérios e o sistema capitalista. Se hoje em dia o colonialismo como o imaginamos já se extinguiu; por outro lado, ele permanece como estrutura na colonialidade do poder e do saber, segundo Dussel (2005), Quijano (2005) e Lander (2005), aqui já citados. Com a modernidade, a ideia de império como centro permanece, constituindo o colonial como periférico. Tudo isso dentro de um sistema capitalista que ressuscita as vítimas do etnocentrismo dentro das mesmas categorias eurocêntricas. A diferença que se insurge no trabalho livre é abolida pela dinâmica do capital que se apropria de inúmeras estratégias para criar sua reserva de mão de obra escrava, através da própria estrutura da sociedade capitalista, exclusivamente preocupada mais em preparar para o mercado de trabalho do que para a vida em sociedade. Na contemporaneidade, é quase impraticável falarmos em termos de pós-moderno ou mesmo pós-colonial; ainda mais se considerarmos que as discussões sobre isso se concentram expressivamente numa colonialidade do saber. Se o conceito de transmodernidade implica a condição de alteridade negada pelo colonialismo e pela colonialidade modernos, então não podemos aplicá-lo a Isabel Valadão que se insere na contramão de uma alteridade reivindicada. É mais conveniente falarmos, no caso da autora, de uma escrita e de uma escritora que se coloca em um colonialismo extemporâneo, dissociado da modernidade que o produziu como escrita, mas pensado em termos de colonialidade da modernidade atual. A escrita de Isabel Valadão apresenta um colonialismo inquestionável do ponto de vista das estruturas de poder que o produziu e o registrou como sistema. Na contemporaneidade, este colonialismo soa como uma agressão às vítimas da alteridade negada pela modernidade eurocêntrica, que, dessa forma, reivindica sua inocência e nega-se como mito, conforme a linha de pensamento de Dussel (2005, p. 30). Said (1995, p. 23), embora não crendo “que os escritores sejam mecanicamente determinados pela ideologia, pela classe ou pela história econômica”, acha “que estão profundamente ligados à história de suas sociedades, moldando e moldados por essa história e suas experiências sociais em diferentes graus”. Com Isabel Valadão não é diferente, ela faz parte da sociedade moderna e colonial e, ocupando a posição central dessa lógica europeia, 36

reivindica para a sua escrita a percepção dessa sociedade, seja pelo arquivo pessoal de suas experiências e memórias, seja pelo arquivo público da história colonial portuguesa.

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3 DUAS VOZES E UM MESMO TIMBRE: A AUTORA E A NARRADORA DE ANGOLA, AS RICAS-DONAS

Com a inserção dos estudos pós-coloniais no calendário acadêmico do primeiro mundo, a partir dos anos 1980, ocorreu uma “crise geral de representação do Outro [...]. A partir de então, falar sobre o Outro poderia ser um problema e a forma propositiva e despreocupada de narração da alteridade na academia não poderia mais ser aceita” (MACHADO, 2004, p. 23). Representar torna-se, portanto, uma tarefa difícil. Os aspectos das narrativas ocidentais sobre o outro se insere nas análises literárias e a principal questão incide em quem fala e quem é representado. Na condição de representante, “o escritor faz outros, suas criaturas, ganharem voz por meio de sua obra” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 49). Representar implica, pois, sempre escolhas subjetivas que consideram certos aspectos e outros não ou certos sujeitos e outros não. Tais escolhas comportam a dimensão de um sujeito histórico da escrita. Essas duas questões: quem fala (representante) e quem é representado se torna o ponto crucial para análise de uma obra literária. Não há como afastar o sujeito da enunciação9 de seu enunciado, não há como desvincular o sujeito das circunstâncias históricas que o marcam e, consciente ou inconscientemente, condicionam-no.

Aquilo que é inventado pelos artistas, ou mediado por suas subjetividades, sempre deixa transparecer, como sintoma ou como análise, a situação e o contexto específicos que lhe são chão e calha. São criações que estabelecem e que reiteram, a cada ambiente e a cada momento, um conjunto de pistas e de vestígios que desenham maneiras singulares de estar no mundo, próprias a uma dada comunidade. É nesse sentido que se pode dizer que essas criações são equivalentes sensíveis de uma determinada realidade e se configuram, portanto, como práticas de representação (ANJOS, 2017, s/p., grifos do autor).

O sujeito histórico da escrita está inserido na representação que faz da realidade, embora as marcas de si não sejam perceptíveis a olho nu e a todos de maneira uniforme, mas

9 O termo enunciação refere-se à atividade social e interacional por meio da qual a língua é colocada em funcionamento por um enunciador (aquele que fala ou escreve), tendo em vista um enunciatário (aquele para quem se fala ou se escreve). O produto da enunciação é chamado enunciado. A compreensão do enunciado – oral, escrito ou organizado por meio de múltiplas semioses (linguagens) – pressupõe sempre a situação de enunciação. É dela que vêm as orientações para o sentido do enunciado: (i) quem enuncia (seu papel social e conhecimentos partilhados com o enunciatário); (ii) a quem se dirige (seu papel social e conhecimentos partilhados com o enunciador), (iii) onde ocorre (lugar físico) [...]; (iv) quando ocorre, entre inúmeras outras condições. Isso significa, ainda, que o enunciado, embora se revele em uma materialidade linguística, pois dela depende, não é uma realidade da língua; é uma realidade do discurso (ASSIS, Juliana Alves. Glossário on line Ceale*). 38

elas estão no discurso e deliberam ser encontradas, retiradas do “vazio que o esquecimento evitou ou mascarou, que recobriu com uma falsa ou má plenitude” (FOUCAULT, 2001, p. 284). Em Angola, as ricas-donas, Isabel Valadão, escritora portuguesa, narra a cultura e a mulher africana ou luso-africana, tornando-as objeto de sua leitura do passado. Percebemos que não se trata de uma escrita de si, mas uma escrita do outro, embora, ao mesmo tempo, pareça uma escrita de si por meio do outro. Por se incumbir de narrar o outro e não se ocupar de uma escrita de si, o narrado é comprometido pela concepção da autora sobre o representado. No romance, a voz narradora é de uma mulher africana, a escrava Eufrozina, mas, até mesmo isso, sofre a interferência da autoria. O direito de fala dado àquele que foi invisibilizado e silenciado no processo de escravidão não significa que a fala seja realmente dele, no caso uma escrava, uma vez que a autoria trata de interditar essa voz, mascarando-a sob a denominação de narradora-personagem, aquela que fala, que conta uma história de si na interação com o outro. Narrar o outro implica representá-lo à revelia, determinando, ao mesmo tempo, o lugar de quem o representa, afinal de contas, como acentua Dalcastagnè (2012, p. 19), “Um dos sentidos de representar é, exatamente, falar em nome do outro. Falar por alguém é sempre um ato político, às vezes, legítimo, frequentemente, autoritário”. No entanto, isso não significa que a representação do outro esteja interditada, que a representação literária de grupos marginalizados, como expõe Dalcastagnè (2012), esteja restrita a um olhar de dentro que comungue do universo e da vivência do narrado; ou seja de uma autorrepresentação. Em seu ensaio Pode o Subalterno Falar?, Spivak (2010, p. 31) traz para a discussão sobre o subalterno os dois sentidos do termo representação: “a representação como ‘falar por’, como ocorre na política, e representação como ‘re-presentação’, como aparece na arte e na filosofia”. Se o intelectual que almeja falar pelo outro não consegue se desvincular do sujeito soberano do ocidente, então ele não conseguirá representar o outro, seja num ou noutro sentido. Ele estará apenas fadado a reproduzir as forças de domínio e opressão.

De fato, o sujeito não é visto como uma consciência representativa (uma consciência que ‘re-presenta’ a realidade adequadamente). Esses dois sentidos do termo representação – no contexto da formação do Estado e da lei, por um lado, e da afirmação do sujeito, por outro – estão relacionados, mas são irredutivelmente descontínuos (SPIVAK, 2010, p. 32).

Os dois sentidos do termo estão relacionados, já que, ao representar um determinado grupo, aquele que o representa politicamente, que o agencia, precisa descrever este grupo. Ou 39

seja, ‘re-presentá-lo’, encenando uma performance de modo que esse grupo pareça uno e indivisível. A descontinuidade dos termos opera nas funções de desejo, poder e subjetividade que Spivak (2010) aborda como relacionados por uma teoria dos interesses e que, por sua vez, está relacionada a uma teoria da ideologia. No século XXI, a preocupação com “os problemas ligados ao acesso à voz e à representação dos múltiplos grupos sociais” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 17) é uma constante nos estudos literários e cada vez mais aparecem produções literárias de grupos sociais que falam em nome de seus próprios integrantes. Em alguns casos, tais vozes adquirem legitimação social como escritores e se destacam dentro das instituições, devido mais à contestação do cânone literário ocidental. Mas, como não poderia deixar de ser, há casos em que o “silêncio dos marginalizados é coberto por vozes que se sobrepõem a eles, vozes que buscam falar em nome deles” (idem, grifo da autora); este é o caso de Angola, as ricas-donas, de Isabel Valadão. O romance em questão possui elementos ficcionais (espaço, tempo, personagens, narrador) que se contrapõem, em parte, ao lugar de fala da autora. Ela nasceu em Portugal e morou, no período de 1951 a 1975, em Angola, colônia portuguesa na época, em contato com o regime de semiescravidão existente lá, denominado trabalho forçado ou trabalho contratado. Com a independência de Angola, ela volta para Portugal sob a alcunha de ‘retornados’. Em sua escrita, a autora narra o espaço angolano de mais da metade do século XIX, trazendo personagens, que, em sua maioria, são figuras históricas da elite crioula ou luso- africana de Angola dessa época e que participavam do tráfico transatlântico de escravos. O mais surpreendente no romance é a narradora Eufrozina, uma escrava que se denomina, no começo da narrativa, como amiga e confidente de sua ama, Dona Anna Joaquina dos Santos e Silva, uma rica-dona da elite crioula. A escrava se propõe a narrar a história de sua ama que é também a história da elite colonial angolana. No romance, não temos um caso de autorrepresentação, mas de representação. Por isso, precisamos, ainda mais, de uma dose de desconfiança em relação à voz autoral que, consequentemente, irá intermediar a voz da narradora, estabelecendo um contraponto entre ambas ou mesmo silenciando-a. Precisamos colocar o narrado sob suspeita, na tentativa de conter os excessos conscientes ou inconscientes da autoria. O romance possui quarenta e um capítulos e, à exceção do primeiro, narrado em terceira pessoa, todos os outros quarenta capítulos são narrados a partir da personagem Eufrozina. Tudo flui a partir do ‘suposto’ ponto de vista dela. Ela paira na trama como uma espécie de alegoria, representado as mulheres negras ou mestiças do século XIX angolano que 40

são comercializadas como escravas. Na trama, Eufrozina, em decorrência dos interesses coloniais, mesmo depois de receber a alforria e, mesmo diante da abolição da escravidão, em 1869, nos territórios portugueses – do qual Angola era parte – precisou se manter como fugitiva para se abster do processo escravocrata que permanecerá sob a forma de indenização por serviços por parte dos libertos. Para tanto, refugia-se na casa do luso-africano Félix Velasco Galiano que, no começo da narrativa, capturara Eufrozina do sobado onde vivia como vingança ao jaga de Kassanje. Daí em diante, ela se tornaria escrava. No romance, Eufrozina não é a protagonista, mas ganha protagonismo por ser a narradora. As protagonistas, que dão título ao romance, são as ricas-donas de Angola. Durante toda a narrativa, temos Eufrozina como submissa. Todavia, em grande parte, essa submissão é como escrava de Dona Anna Joaquina dos Santos e Silva. A narradora é também bastante próxima de Dona Anna Francisca Ferreira Ubertaly. Ambas são as ricas-donas também descritas, supostamente, a partir do ponto de vista da escrava. Os questionamentos pertinentes ao presente capítulo se referem à presença dessa narradora-escrava que adquire o poder de falar e narrar através da autora Isabel Valadão, em um contexto narrativo em que a voz dessa escrava estaria aprisionada tal qual o corpo que a comandaria. Eles se inserem na possibilidade de apreendermos na narrativa o mascaramento da autora na narradora-escrava, uma vez que não vislumbramos na tessitura da trama a subjetividade de Eufrozina, mas a objetificação da mulher negra e escravizada que se anula em função de narrar o outro a partir de um olhar europeizado. Dessa forma, questionamos: que importância tem o lugar de fala de Eufrozina na representação do imperialismo colonial e dessas mulheres africanas ou luso-africanas denominadas ‘donas’? Pode uma escrava falar? Será que realmente ela tem o direito de fala? Será que a narrativa de Valadão dá a Eufrozina uma subjetividade ou a envolve em estereótipos consagrados? Estes questionamentos são importantes em relação à narradora e pretendemos buscar resposta para eles. No que concerne à autora é salutar sabermos: Como se deu a vivência da autora sob o aparato do Estado Novo na Angola portuguesa do século XX? Como se comporta a voz autoral na abordagem das estratégias coloniais e escravocratas do século XIX em Angola, as ricas-donas? Como avaliar essa voz autoral no romance colonial que se apresenta a partir da vivência da autora em espaços coloniais? Sabemos que, entre a autora e a narradora de Angola, as ricas-donas (2014), há uma relação racial e colonial. A primeira, uma escritora portuguesa; e a segunda, uma narradora angolana. À segunda é dada a voz, mas é a primeira quem comanda essa voz ou mesmo fala por ela. O conceito de raça, como enfatiza Almeida (2019, p. 18), é relacional e histórico; ou 41

seja, implica uma relação de poder, de hierarquia, entre raças e isso deveu-se a um processo histórico em que o colonialismo ganhou papel fundamental. Almeida (2019, p. 28) afirma que “na visão institucionalista, o racismo não se separa de um projeto político e de condições socioeconômicas específicas”. Dessa feita, as instituições que coordenam as demandas e os interesses de determinados grupos sociais que estão no controle podem, no intuito de apaziguar os ânimos revoltosos e de preservar a estabilidade do sistema, fomentar o aumento da representatividade das minorias nos espaços institucionais. Todavia, “a mera presença de pessoas negras e outras minorias em espaço de poder e decisão não significa que a instituição deixará de atuar de forma racista” (idem, p. 32) e nem tampouco que tal liderança implicará na detenção realmente do poder dado.

A representatividade, insistimos, não é necessariamente uma reconfiguração das relações de poder que mantém a desigualdade. A representatividade é sempre institucional e não estrutural, de tal sorte que quando exercida por pessoas negras, por exemplo, não significa que os negros estejam no poder (ALMEIDA, 2019, p. 69).

Partindo desse entendimento, o aparecimento de Eufrozina na condição de narradora de Angola, as ricas-donas, de Isabel Valadão, não significa que tenha sido dado a ela, uma escrava, o poder de falar a partir de um olhar de si, concebendo-se como ser dotado de subjetividade, inteligência e racionalidade própria; ou, de falar sobre o outro, o colonizador, a partir também de uma percepção própria. De acordo com Kilomba (2019, p. 33), a máscara de Flandres era usada para tapar a boca dos escravos, colocada para castigar ou mesmo silenciar o escravo. O uso da máscara também era uma forma de educar o escravo e determinar quem mandava, pois, através da estratégia da violência e do medo utilizada pelo opressor, o oprimido só se sabia com voz, quando lhe era ordenado falar e o que falar. Na atualidade, o racismo substitui a máscara. Como a boca é o órgão que simboliza a fala e a enunciação, é sobre ela que o racismo estenderá seus tentáculos interditando-a. A boca é “o órgão da opressão por excelência, ela representa o órgão que os(as) brancos(as) querem – e precisam – controlar e, consequentemente o órgão que, historicamente, tem sido severamente repreendido” (idem). Considerando-se a enunciação do romance de Isabel Valadão em um contexto colonial e escravocrata, a voz de Eufrozina, como representatividade negra, não seria sequer cogitada ou passível de ser-lhe dado voz. A autora, no entanto, rompe com essa perspectiva e coloca a escrava como narradora, dando a entender que irá inovar no tocante ao tratamento dos acontecimentos históricos. Todavia, a escrita da autora, em Angola, as ricas-donas, apesar de 42

inserida dentro de um contexto de crise representacional e de questionamento da voz autoral, não promove rupturas consideráveis no fazer literário de Isabel Valadão que desvie seu romance da designação de literatura colonial, como veremos adiante. Na análise da autora e da narradora, neste capítulo, consideraremos três tempos. Na parte que aborda a autora, solicitaremos uma leitura de A sombra do imbondeiro (2012) para verificarmos como a experiência da autora, em território angolano no século XX, entre as décadas de 1950 a 1970, será importante para percebermos as marcas da colonização na memória e na constituição de Isabel Valadão como escritora. Essa leitura também será propícia para a perspectiva de Angola, as ricas-donas (2014) como romance colonial. Ao falarmos da narradora, traremos o contexto da narrativa, mais da metade do século XIX. Um terceiro tempo, o da escrita dos dois romances, no século XXI, intermediará os outros dois tempos para termos um ângulo de percepção melhor das análises feitas sobre a autora e a narradora, tendo em vista que o tempo decorrido entre os acontecimentos das narrativas e o momento de escrita dos dois romances atende a um processo de maturação que implicaria na depuração do narrado. É relevante sabermos que, em relação ao contexto do romance Angola, as ricas-donas (2014), o negro era considerado uma propriedade do branco europeu e nem sequer era visto como ser humano, dotado de sentimentos e de racionalidade. No que diz respeito ao tempo em que a autora morou em Angola, na época do Estado Novo de Portugal, quando falaremos sobre A sombra do imbondeiro (2012), é importante atentar para o mascaramento da escravidão por meio do trabalho forçado e para a existência de uma falaciosa democracia racial ou, em um termo mais comum em Portugal, de um lusotropicalismo. Em tempos atuais, ou antes mesmo da segunda metade do século XX, considerando que a Segunda Guerra Mundial produziu mudanças significativas no sistema ocidental, deparamo-nos com a crise da representação do outro e a possibilidade de autorrepresentação das denominadas minorias, principalmente no que concerne ao negro e à mulher e, mais atualmente, à mulher negra com o feminismo negro. Isso, é claro, sem desprivilegiar o racismo existente e uma negação deste, apontando os problemas sociais enfrentados pelo negro como decorrentes de outros fatores. Disso decorre a culpabilização do negro pela história e a numérica taxa de permanência dessa população em espaços de marginalização e inferiorização, seja em termos de indivíduos de uma nação ou de uma nação em relação a outra considerada periférica (ex-colônia).

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3.1 O lugar de fala da autora a partir de um olhar sobre A sombra do imbondeiro: o sujeito histórico da terra prometida e dos retornados na constituição da escritora Ao proclamar A Morte do Autor [La Mort de l’Auter], em 1968, Barthes (2004, p. 58) anuncia que este “é uma personagem moderna”. Com isso, o estudioso situa historicamente a questão da autoria na modernidade eurocêntrica. Inferimos, assim, que é a partir do século XVIII que ocorre o aparecimento do autor como proprietário de textos originais, uma vez que em tempos medievais e renascentistas a autoria não era algo reivindicado. Nascido em um mundo burguês e incorporando sua ideologia, o autor ascende à categoria de universal. Em se tratando de Literatura, diz Barthes (2004, p. 58), o Positivismo, síntese e auge da ideologia capitalista, foi quem mais atribuiu importância à ‘pessoa’ do autor. Nos dizeres de Compagnon (2010, p. 50),

O autor não era senão o burguês, a encarnação da quintessência da ideologia capitalista. Em torno dele se organizam, segundo Barthes, os manuais de história literária e todo o ensino da literatura. ‘A explicação da obra é sempre procurada do lado de quem a produziu’, como se, de uma maneira ou de outra, a obra fosse uma confissão, não podendo representar outra coisa que não a confidência.

Compreender a obra era, em uma palavra, compreender o autor. A explicação dela encerrava-se, portanto, no autor e tudo consistia em encontrar a intencionalidade deste a partir de suas vivências e de sua biografia. A obra era possuidora de um sentido único, já que concentrado apenas no autor. Os manuais de literatura se resumiam a reproduzir este sentido que era repassado à exaustão. Conforme Barthes (2004), é Mallarmé, poeta francês da segunda metade do século XIX, o primeiro a abalar o primado do autor, suprimindo-o em proveito da escrita. O autor não é o proprietário da linguagem, diz Barthes (2004, p. 59), “é a linguagem que fala, não o autor; escrever é, através de uma impessoalidade prévia [...], atingir esse ponto em que só a linguagem age, ‘performa’, e não ‘eu’”. Ou seja, a explicação do texto não está no autor e sim na sua escrita que caberá ao leitor, como coautor, decifrá-la. Na sequência, Valéry e Proust colocaram também o autor no banco dos réus e o Surrealismo, na esteira de uma escritura coletiva, contribuiu, segundo Barthes (2004, p. 60), “para dessacralizar a figura do Autor”. Por fim, a linguística veio e promoveu a morte do autor com o conceito de enunciação que pressupõe um ‘eu’ situado. Com isso, a morte do autor promovida por Barthes (2004) significou a abertura para a construção não do sentido, mas dos sentidos da obra. Isso a partir do leitor, não mais da pessoa do autor. O leitor, 44

perseguindo o ‘eu’ do ato da produção escrita em contato com o contexto situacional da recepção, desconstrói a ideia de um sentido único já posto pelo autor. É claro que a morte do autor não representa a morte física da pessoa do autor, mas, como disse Hutcheon (1991, p. 107), a morte do “conceito de artista como fonte única e originante do sentido final e autorizado”. Em consonância com Barthes (1968), a conferência O que é um autor? [Qu'est- ce qu'un auteur?], de Foucault, em 1969, retorna à metáfora da morte barthesiana, enfatizando que não bastava proclamar a morte do autor, seria necessário “descobrir, como lugar vazio [...], os locais onde sua função é exercida” (FOUCAULT, 2001, p. 274). O autor, enquanto sujeito individual, desaparece perante o público, mas permanece a função-autor que é coletiva. A sociedade exige, para certo número de discursos produzidos, uma autoria. A função-autor é fundamental para determinar o modus operandi desses “discursos no interior de uma sociedade” (FOUCAULT, 2001, p. 274), relacionando autores a obras específicas. Entretanto, Foucault destaca que, durante o século XIX, na Europa, ocorre o aparecimento de autores que poderiam ser denominados como fundadores ou instauradores de discursividade por estes não cerrarem seus discursos em si mesmos. De acordo com Foucault (2001, p. 280-281), “Esses autores têm de particular o fato de que eles não são somente os autores de suas obras, de seus livros. Eles produziram alguma coisa a mais: a possibilidade e a regra de formação de outros textos”. Eles “estabeleceram uma possibilidade infinita de discursos”, não apenas do ponto de vista do semelhante, como também do diferente”. Essa proliferação e entrecruzamento de discursos, no entanto, só será possível devido ao retorno a esses instauradores discursivos. Mas tal retorno não se direciona ao discurso fundante, mas aos silêncios, às lacunas deixados por ele e que podem assumir a partir daí outros discursos que reverberaram em outros e mais outros em uma cadeia infinita de dizeres. Para Foucault (2001), o papel de regulador da ficção que fora atribuído ao autor após o século XIX, era perfeitamente apropriado para uma era industrial e burguesa, regida pelo individualismo e pela propriedade privada. No entanto, as mudanças históricas que estavam em curso, quando do pronunciamento de sua conferência, em 1969, não concebia mais a permanência do autor neste papel privilegiado e exclusivo. Há, em decorrência disso, um desvio da função-autor, que implica um sentido original, para a função-sujeito, de um sentido plural. Com a concepção de instauradores discursivos, Foucault propõe, portanto, uma quebra com a ideia de origem ou originalidade, assim como também de autoridade. “Trata-se, em suma, de retirar do sujeito (ou do seu substituto [a função autor, por exemplo]) seu papel de fundamento originário, e de analisá-lo como uma função variável e 45

complexa do discurso” (FOUCAULT, 2001, p. 287). Em outras palavras, não importa quem fala, mas, o que fala e por que fala de um modo e não de outro. Ou, em que circunstâncias históricas e culturais se produziu essa fala. Ou tantos outros questionamentos que, numa síntese, diz respeito à enunciação ou, em outros termos, ao lugar de fala. Sabemos que, para a linguística, o dizer (o discurso) só é produzido a partir de um sujeito e o sujeito só ganha existência quando interpelado pela ideologia (ORLANDI, 2001, p. 46). Ou seja, o indivíduo só fala a partir de um determinado lugar social, que, por sua vez, é histórico, ideológico e político. A função-sujeito seria, por certo, uma forma de confrontar e dialogar com os discursos já postos a partir de um lugar específico a fim de produzir outros discursos, num dialogismo bakhtiniano10 incessante. Não é que quem fala não importa, porém essa fala não diz muito se as circunstâncias da enunciação não forem consideradas. No ato de fala (oral ou escrita), o sujeito ressignifica o mundo, representa-o conforme as condições históricas e culturais que o situam e conforme os discursos que o orientam; o que implica dizer que a autoria não é dissociada de suas representações. “No momento em que se agudiza a consciência de que [o] autor (a) é socialmente situado (a), e de que tudo o que ele (a) produz traz as marcas dessa situação, a legitimidade de suas representações torna-se passível de questionamento” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 49-50). O sistema ao qual Dalcastagnè (2012) se refere não é apenas o literário, mas também o social, tendo em vista que um interfere no outro e vice-versa. As representações supõem o que é representado e quem representa (ou seja, o representante, aquele que fala em nome de alguém ou de algo no sentido político do ato). Em nosso trabalho, ao trazermos Angola, as ricas-donas (2014), de Isabel Valadão, ao campo da discussão, vemos um romance em que o representado é o passado colonial angolano e o representante uma autora portuguesa. A relação histórica e ideologicamente dicotômica inserida entre o representado e o representante neste romance parece desfazer-se quando nos deparamos com uma autora que, na trama, dá voz a uma escrava como narradora. Contraditoriamente, uma leitura não tão apurada de A sombra do imbondeiro (2012) poderá nos mostrar um sujeito que, por meio do relato de suas memórias, recebe as ‘benesses’ da

10 Em Problemas da Poética de Dostoiévski, Mikhail Mikhailovich Bakhtin, conforme Marcuzzo (2008), faz uma observação original à obra do grande romancista russo. Contrapondo-se aos críticos anteriores do autor, Bakhtin destaca que Dostoiévski reencena, na obra literária, aquilo que seria a própria essência da linguagem: o dialogismo. O dialogismo define as relações linguageiras, as práticas discursivas e, mais do que isso, a visão de mundo de Bakhtin. Ele é o princípio constitutivo da linguagem e resulta de um embate de vozes. Sendo assim, todo texto é, por essência, dialógico. 46

colonização. Este sujeito é o ‘eu’ autoral tanto deste romance como daquele outro; o que possivelmente nos coloca diante de um único sujeito e duas autorias diferentes. Já é de nosso conhecimento que a matéria-prima das obras literárias de Isabel Valadão é o espaço angolano, com exceção de seu último romance Rio das Pérolas, de 2017. Esse direcionamento da autora para Angola, em suas obras, em parte, justifica-se pela vivência da autora nesse país, num período em que o território era ainda colônia de Portugal. Ela viveu praticamente a metade de sua vida em Angola como narra em A sombra do imbondeiro: “Passei lá a minha infância, a minha juventude, foi lá que tive os melhores momentos da minha vida, e foi lá que me fiz mulher e mãe. Dificilmente poderia apartar de mim, ou esquecer, o que Angola me ensinou e as experiências que lá vivi” (VALADÃO, 2012, p. 10). A saída involuntária da autora do país, em decorrência da independência de Angola, deixou em Isabel Valadão marcas dolorosas que talvez sejam mitigadas pela escrita. No retorno, ela e os outros colonos portugueses que, após a Revolução de 1974, em Portugal, deixaram os territórios africanos, considerados ultramarinos à época (uma Portugal além- mar), enfrentaram o olhar inquisidor, as palavras acusadoras e até mesmo os atos violentos por parte daqueles portugueses que se mantiveram longe dos territórios coloniais e que culpavam os retornados ou pelo conluio à colonização e à escravidão dos africanos ou por tê- los deixados padecer, enquanto se beneficiavam dos privilégios de uma terra prometida (cenário construído para atrair os portugueses que iam para Angola). O pendor para a literatura é algo que, em Isabel Valadão, aparece tardiamente. Quando publica seu primeiro romance, Loanda: escravas, donas e senhoras, em 2011, ela já está com sessenta e seis anos de idade. Neste momento de sua existência, a autora já terá passado por inúmeras experiências: a de ser um português em terras angolanas e de lá constituir família; a de viver sob a alcunha de retornado, convivendo com o conflito de ser um estrangeiro em seu próprio país; a de angariar oportunidades de vida em outra colônia portuguesa, Macau, na China; e, a de retornar para Portugal e lá se fixar. Somente após todos esses eventos e experiências é que Isabel Valadão se volta para o fazer literário. Antes de tudo isso, nenhuma escrita literária surge da pena da autora. Ela também não fala de espaços em que não tenha vivido e nem de cultura (esteja ela admitindo ou não a existência de uma nesses espaços) em que não tenha se inserido. Suas obras abarcam o conhecido e o aceito pela história oficial. Qualquer ousadia fora disso é o que, possivelmente, possa derivar de sua verve criativa, mas que se aparenta mais à atividade do 47

historiador, preencher as lacunas. Em uma entrevista dada a Daniela Soares para o Programa Todas as palavras11, Isabel Valadão assim se expressa:

Só escrevo, só me sinto à vontade a escrever sobre aquilo que conheço ou então investigo, mas sempre baseado em situações, em sítios por onde passei e conheço ... e vivi [...] mas sempre sítios que eu cheirei, onde eu estive e que me apercebi das coisas, da história. E, depois, já está sendo a minha formação, histórica; vou estar sempre a roubar histórias à história porque é assim que eu consigo escrever, que eu consigo desenvolver as coisas e ficcionar também.12

Dessa forma, a escrita de Isabel Valadão parece para ela uma forma de aliviar as dores mentais que interferem na realidade prática da vida. Escrever se assemelha a estar no divã de um psicanalista, em que este, na função de leitor, procura desvendar o sintoma que se apresenta na narrativa dada pelo analisado. O sintoma mais presente é a “compulsão à repetição” que se verifica não só na temática do colonizador no conjunto de suas obras, enfatizando o território dominado, o trabalho escravo, as questões raciais e de gênero, como também na propensão a seguir uma estrutura fixa em que a história do dominador se sobrepõe ao do dominado e em que o discurso oficial não é contestado. Neste aspecto, A sombra do imbondeiro (2012) e Angola, as ricas-donas (2014), sobre as quais aqui tratamos, não negam a regra. Freud, em o Mal-estar na civilização (1930[1929]), diz que o passado se encontra preservado na vida mental, esperando apenas as circunstâncias apropriadas para se fazerem presente, pois “na vida mental, nada do que uma vez se formou pode perecer” (FREUD, 1930[1929], p. 47). O “esquecimento”, como parte do processo de rememoração do passado, “não significa a destruição do resíduo mnêmico – isto é, a sua aniquilação”. Ele representa apenas fragmentos reprimidos do passado de forma consciente ou inconsciente. O psicanalista também, na mesma obra, afirma que o ser humano é guiado pelo “princípio do prazer” (idem, p. 49). Ou seja, tendemos a evitar aquilo que nos causa sofrimento, o desprazer, e somos impelidos a buscar sempre o máximo de prazer. A felicidade, porém, não é uma constante em nossa vida, tendo em vista que a forma de experenciar o prazer é individual e o viver em sociedade visa o coletivo; o que faz com que o sofrimento seja mais comum que a felicidade, pois esta vai contra “todas as normas do universo” (idem). Por outro lado, o princípio do prazer impõe a felicidade como norma e

11 Disponível em: . Acesso em: 04 nov. 2020. 12 Transcrição nossa da fala de Isabel Valadão. 48

impossibilita que o programa de ser feliz seja recusado. Disso implica que, com frequência, o prazer é reprimido, mas não eliminado, apresentando-se como sintoma. Em uma outra obra, Além do princípio do prazer (1920), constatamos que, na teoria da psicanálise, “a compulsão à repetição”, como forma de rememorar experiências do passado, é um sintoma muito comum nos neuróticos, mas que podem se apresentar em pessoas que aparentemente “nunca tenham mostrado quaisquer sinais de lidarem com um conflito neurótico pela produção de sintomas” (FREUD, 1920, p. 12). Isabel Valadão, como já dissemos, possui uma compulsão para repetir o passado em sua escrita e este é essencialmente colonial. Dessa forma, sua obra literária, tendo aqui, como exemplo e análise, A sombra do imbondeiro (2012) e Angola, as ricas-donas (2014), apresenta-se como sintoma desse comportamento neurótico de rememorar. A razão disso talvez seja o saudosismo de um passado em que os territórios coloniais, com todas as benesses oferecidas à população portuguesa, tenham representado para esta a terra prometida; o lugar destinado por uma força divina aos eleitos da teoria das raças. A independência desses territórios jogou esta população na mácula dos retornados. A história da terra prometida e dos retornados é, inclusive, a temática do romance autobiográfico de Isabel Valadão, A sombra do imbondeiro (2012), cuja leitura se faz aqui necessária para entender o lugar de fala da autora em Angola, as ricas-donas 2014). Jacques Derrida, em Mal de arquivo, de 1930, a partir de “uma impressão freudiana” (subtítulo da obra), analisou “a impaciência absoluta de um desejo de memória” (DERRIDA, 2001, p. 9), desejo este infinito, desproporcional e sempre em curso, segundo ele. O termo impressão, utilizado no subtítulo, serve para mostrar a própria instabilidade do que pode ser entendido como arquivo e do conceito dado por Freud ao arquivo. É comum “reduzirmos o arquivo [..] a experiência da memória e o retorno à origem” (DERRIDA, 2001, p. 8) ou aquilo que estava perdido e precisa ser resgatado. No fim, a busca incessante a um sentido único, original e verdadeiro. Entretanto, o arquivo não se prende à fixação de uma origem, pois a intenção é que seu começo se perca no fundamento das ideias universais e incontestáveis por força de uma autoridade que o confirme. “O arquivamento tanto produz como registra o evento” (idem, p. 29). Ele é ao mesmo tempo o objeto (documento ou monumento), o lugar e a lei que o determina como tal e o impulsiona para o futuro. Em Derrida, o retorno a Freud traz para o conceito de arquivo a pulsão de morte ou pulsão de destruição que é, “acima de tudo, anarquivíca, poderíamos dizer, arquiviolítica. Sempre foi, por vocação, silenciosa, destruidora do arquivo” (DERRIDA, 2001, p. 21). A 49

pulsão de morte não é um princípio, mas uma ameaça ao princípio e é, por isso, que Derrida irá denominá-la de mal de arquivo (idem, p. 23). Para Derrida, o arquivo já nasceria com a pulsão de morte, com a intenção de apagamento de seus rastros, ficando nada mais que um espectro que induziria ao desvendamento. A impossibilidade de rastrear sua origem, traria a perturbação que derivaria de um mal de arquivo.

A perturbação do arquivo deriva de um mal de arquivo. Estamos com mal de arquivo (em mal d’archive). Escutando o idioma francês e nele, o atributo ‘em mal de’, de estar com mal de arquivo, pode significar outra coisa que não sofrer de um mal, de uma perturbação ou disso que o nome ‘mal’ poderia nomear. É arder de paixão. É não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde mesmo se há bastante, alguma coisa nele se anarquiva. É dirigir-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico, um desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do começo absoluto. Nenhum desejo, nenhuma paixão, nenhuma compulsão, nem compulsão de repetição, nenhum ‘mal-de’, de nenhuma febre, surgirá para aquele que, de um modo ou outro, não está já com mal de arquivo (DERRIDA, 2001, p. 118-9, grifos do autor).

O arquivo, portanto, provoca ao imprimente (aquele que busca dar um sentido, que imprime um sentido a algo) uma perturbação e ela nada mais que o mal de arquivo; ou seja, o desejo de origem, de retorno ao começo, ao ponto onde o arquivo despontou como verdade. No momento em que o imprimente deixa sua impressão sobre o arquivo; ou seja, constrói um sentido para o arquivo, já não sofrerá ele de mal de arquivo. Nessa perspectiva, o arquivo seriam os conceitos flutuantes que permeiam uma sociedade e o mal de arquivo o desejo de seguir as pistas, os rastros desses conceitos, desses discursos de verdade. Isabel Valadão, para narrar a história de Angola, tanto a do século XIX, em Angola, as ricas-donas (2014), como a do século XX, em A sombra do imbondeiro (2012), parte de uma memória residual, proveniente de sua história; ou seja, de um arquivo pessoal, para uma história oficial, os arquivos públicos existentes. A escrita da autora surge como uma “compulsão à repetição”, um sintoma que nasce de um mal de arquivo, um desejo de voltar às origens não apenas do arquivo pessoal, mas também do arquivo público que assegurou sua história, o colonialismo de Portugal em Angola. A escrita literária proporcionaria para Isabel Valadão o princípio do prazer que Freud relata, pois o retorno à história pessoal e à história oficial significaria a felicidade, o projeto de se tornar feliz através de sua escrita, rememorando o passado. Por outro lado, seria também a forma de desconjurar o sofrimento causado pela ruptura com tal passado. A escrita da autora, 50

como rememoração do passado, produziu seus esquecimentos. No entanto, aquilo que foi reprimido pela sua escrita não foi aniquilado. Os esquecimentos, o não dito ou não questionado, permanecem para ser analisado como um sintoma, um mal de arquivo que deseja ser eliminado no intuito de fornecer prazer para aquele que deseja imprimir um sentido à escrita de Isabel Valadão. A compulsão do leitor de Isabel Valadão a eliminar o mal de arquivo proveniente de sua escrita, detecta também a compulsão a detectar o arquivo do mal, aquele que, segundo Derrida (2001, p. 7), se encontra no cerne dos “desastres que marcam o fim do milênio” e que, certamente, ainda estão presentes em nosso século. Como autora, Isabel Valadão carrega consigo a responsabilidade de imprimir um sentido ao seu arquivo pessoal, o romance enquanto escrita de um sujeito, eliminando o mal de arquivo que a persegue, sem, no entanto, reter o arquivo do mal que é transposto para sua escrita literária, esteja ela consciente ou não disso. Ao analisarmos a narradora, no subcapítulo posterior, veremos que, no ato da escrita, a rendição à compulsão repetitiva do passado, fez da narradora de Angola, as ricas-donas (2014) uma espécie de eco da voz da autora, um avatar desta. Eufrozina se torna, assim, uma voz muda em decorrência da imperiosidade da voz autoral que, consumida por seu sintoma, não permite que a história do colonizador seja calada em detrimento da do colonizado. Desta feita, iremos nos desvencilhar da equivocada ideia de uma suposta narradora que, como escrava, consegue narrar sua subjetividade e relatar seu entorno e cultura com autonomia, precisamos saber aqui se nos equivocaremos também com relação à autoria de Angola, as ricas-donas (2014), supondo uma escrita que questione o passado colonial. É claro que, de antemão, já sabemos que isso é ilusório pelo o que já antecipamos da narradora, mas para termos uma confirmação ou não dessa ilusão precisamos verificar o lugar de fala de Isabel Valadão. Para tanto, A sombra do imbondeiro (2012), como romance autobiográfico, mostra-se providencial. Nele, o sujeito autobiográfico recebe as benesses da colonização ou estamos diante de uma outra faceta autoral de Isabel Valadão? Nesta incursão pela rememoração do passado de Isabel Valadão, através de A sombra do imbondeiro (2012), cuja temática é a história da terra prometida que inclui também a dos retornados, dialogaremos, principalmente, com as obras de dois jornalistas, Ana Sofia Fonseca e Fernando Dacosta. Os dois autores nos darão suporte para compreendermos o romance autobiográfico de Isabel Valadão que, por sua vez, ajudará a construir um arquivo do lugar de fala da autora no romance Angola, as ricas-donas, tendo em vista que qualquer 51

produção artística mantém, em menor ou maior grau, uma relação com os lugares e tempos vividos de seus autores. A jornalista Ana Sofia Fonseca, em Angola, Terra Prometida: a vida que os portugueses deixaram, de 2009, descreve, por um lado, os anos dourados vividos pelos milhares de portugueses que, em Angola, a partir dos anos 1950, desembarcaram em uma terra quente e generosa, provida de encantos, prazeres, dinheiro e mão de obra fartos; e, por outro, o retorno sob o peso de um rótulo, a saudade da terra prometida e a perda de uma forma de vida economicamente fortalecida. Tudo isso é exposto no livro da jornalista a partir de entrevistas feitas por ela ao longo de dois anos em que ouviu “mais de oitenta pessoas, entre Portugal e Angola. Muitas, então, chamadas colonos; algumas, assimiladas; e outras, indígenas. Designações há muito abolidas” (FONSECA, 2009, p. 18). São relatos, diários, documentos, biografias, sensações vividas que constituíram, na obra de Fonseca (2009), as memórias da vida que os portugueses deixaram em Angola, a terra prometida. Se o livro de Ana Sofia Fonseca se concentra na terra prometida, na Angola que ecoa através da memória dos retornados como saudade e luto pela perda; o livro do escritor e jornalista Fernando Dacosta, Os Retornados Mudaram Portugal, reedição de 2013, mas publicado em 1984 com o título Os Retornados Estão a Mudar Portugal, concentra-se no retorno a Portugal daqueles que, segundo Dacosta (2013, p. 09), seriam pessoas dispostas e trabalhadoras que, assim como foram capazes de mudar Angola com seu esforço, seriam também capazes de mudar Portugal após o retorno trágico. A história de vida de Isabel Valadão é, na verdade, a história desses portugueses que viveram anos dourados em Angola e que de lá voltaram para revitalizar Portugal com a mesma garra e o mesmo destemor que, supostamente, utilizaram nas terras ultramarinas, entendidas, na época, como uma extensão de Portugal, e, sendo assim, para alguns estudiosos como Dacosta (2013), a alcunha de retornados dada a eles não lhes cabia, uma vez que, teoricamente, nunca se apartaram de terras portuguesas. Se formos analisar, há certamente uma inversão da diáspora negra na história desses portugueses tanto no que diz respeito ao trajeto feito, quanto ao posicionamento dos sujeitos e do destino a eles reservados em terra estrangeira. No primeiro caso, a saída de África, a terra natal, para terras desconhecidas, na condição de objeto, sob o jugo da escravidão e da despersonalização. No segundo caso, a saída de Portugal, a terra natal, para terras desconhecidas, mas na condição de sujeito e sob a insígnia da prosperidade e do lucro, elevando-se pessoal e socialmente às custas da despersonalização do colonizado. Isso sem considerarmos o flagelo do trauma coletivo 52

decorrente da diáspora negra e de uma inferiorização que se tornou histórica e estrutural, invadindo a atualidade e perpetuando o trauma por meio do racismo. De qualquer forma, Isabel Valadão fala em termos de diáspora no que concerne a esse fluxo de portugueses. Acalentados pela narrativa de uma terra prometida, o espírito de prosperidade de milhares de portugueses é arrebatado para a existência de terras coloniais cheias de oportunidades. Entretanto, o sonho durou pouco e os portugueses são expulsos do Paraíso do Éden para o conflito de um novo recomeço em Portugal.

A diáspora portuguesa em África fez-se graças a esses milhares e milhares de portugueses anónimos, que não hesitaram em partir para um continente praticamente por desbravar, procurando uma vida melhor para si e para seus filhos, dispostos a dar o que tinham como contrapartida: a sua juventude, o seu esforço, o seu trabalho. Os ventos da História não sopraram de feição e tudo acabou, para quase todos, num gigantesco apocalipse, no despertar angustiante de todos os sonhos (VALADÃO, 2012, p. 12).

Isabel Valadão, marcada por essa experiência diaspórica vivida por ela e por muitos outros portugueses, na segunda metade do século XX, apresenta-nos, no começo do século XXI, o retrato de uma Angola do século XIX que ela não vivenciou, mas que pressupôs através dos arquivos públicos oficiais e do arquivo pessoal da memória. Na Angola ficcional de Isabel Valadão, o comércio de escravos, o trânsito de raças e culturas, a estrutura social e política da época, a elite crioula, o poder das ricas-donas e, principalmente, a narradora do romance, Eufrozina, são constituídos como representação de um passado colonial. A questão da representação em Angola, as ricas-donas passa pela subjetividade da autora, traduzindo-se como a realidade da época. Tudo adquire contorno a partir do lugar de fala da autora e nada escapa a seu olhar e forma de representar. Pelas palavras de Valadão (2012), no excerto citado anteriormente, percebemos que a memória do tempo vivido em Angola por parte dos portugueses é de benevolência e de saudosismo, sob a concepção de quem possivelmente considerava a colonização como algo positivo. Esta concepção tanto era dos portugueses que lá se aventuraram quanto era propagada para os nativos que lá lhes serviram. Se houve uma colonização benéfica, certamente, ela só pode ser assim concebida do ponto de vista do colonizador, pois, para o colonizado, só resultou em exploração e desumanização. Boavida (1981, p. 85), referindo-se à escravidão em Angola, relata que a “própria natureza do sistema colonial escravagista português – simultaneamente o mais bárbaro e o mais primitivo – é de uma brutalidade e de uma intensidade ímpar”; isso já, por si, reflete o 53

nível de subdesenvolvimento em que se encontravam as colônias portuguesas, em especial Angola. Nestas, o olhar do português era apenas de exploração, sem o intuito de investimento para a melhoria da própria colônia. Já para Freyre (2003), entre os colonizadores europeus, o colonizador português foi o “que melhor confraternizou com as raças chamadas inferiores. O menos cruel nas relações com os escravos”, “menos rígido no contorno” e “menos duro nas linhas do carácter”; aquele que “sempre pendeu para o contato voluptuoso com mulher exótica” (leia-se africana), desejoso de um cruzamento, com vistas à miscigenação, devido sua tendência ao social (FREYRE, 2003, p. 265-6). No parecer de Santos (2003, p. 35), o colonialismo português possui na indecidibilidade sua marca de reconhecimento. Ou seja, ele não possui uma identidade determinada, pois, diferente do colonialismo britânico, que tende sempre à soberania de um Próspero, o colonialismo português transita entre as identidades de Próspero e Caliban. Dessa forma, os portugueses transitam também entre as determinações de racistas e miscigenadores natos. Se, de um lado, “muitas vezes [foram reconhecidos] violentos e corruptos, mais dados à pilhagem do que ao desenvolvimento”; por outro, carregaram o selo “da democracia racial, do que ela revela e do que esconde, melhores que qualquer outro povo europeu na adaptação dos trópicos” (idem). Santos (2003) acusa Freyre (2003) de tratar os portugueses como “um Próspero benevolente, cosmopolita, capaz de se aliar a Caliban para criar uma realidade nova”. Seja como for, não existe colonialismo mais ou menos violento e nem mais ou menos danoso; consequentemente, nem colonizador. Nas palavras de Bosi (1996, p. 12), “o traço grosso da dominação é inerente às diversas formas de colonizar e, quase sempre, as sobredetermina. Tomar conta de, sentido básico de colo, importa não só cuidar, mas também mandar” (grifos do autor). E, quanto a isso, as palavras de Bosi (1996) confirmam a posição de Portugal no processo de colonização, não apenas no tratamento dado pelos portugueses aos nativos de suas colônias africanas no começo da colonização, como também o que se intensificou com o Imperialismo e o que se manteve após a República e na era salazarista do Estado Novo. Pinto (2018, p. 35) esclarece que:

Embora contando com alguns simpatizantes portugueses desde que surgiram na década de 30, as teorias do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (1900- 1987), que ficariam conhecidas pela denominação de lusotropicalismo, só começaram a ter impacto em Portugal depois de 1951. Até esta data, a ideologia justificativa da dominação portuguesa sobre os povos das colônias africanas – veiculada, quer pela Primeira República, quer pelo Estado Novo 54

salazarista – assentava essencialmente nas concepções evolucionistas do darwinismo social vindas do século XIX, que preconizavam a superioridade da raça branca sobre a raça negra.

Isso confirma o acontecido durante a República que colaborou com a colonização, criando o Estatuto dos indígenas ou Indigenato. Em 1913, segundo Neto (2010, n.p.), o etnólogo Ferreira Diniz teria chamado a atenção para um combate à política de assimilação das colônias até mesmo pelos franceses que lhe deram origem. Outrossim, havia a necessidade de separar a vida da colônia da vida da metrópole, evitando que se criasse, no futuro, um impasse para as políticas de Estado ao se ter de considerar os indígenas como cidadãos portugueses com iguais direitos e deveres. Em razão disso, era urgente uma medida que desse conta de frear aquilo que seria considerado um absurdo. Com isso, a República criou o Indigenato. A Lei Orgânica de 1914 deixava a cargo do governador da colônia a definição e regulamentação do estatuto civil, político e criminal dos indígenas. Paralelo a isso, a proposta de Ferreira Diniz designava indígena aquele indivíduo de cor que tivesse nascido na província e falasse fluentemente a língua portuguesa e que também assimilasse a cultura portuguesa em seus hábitos e costumes. Ao atendimento desses critérios, era concedido ao indígena a condição de cidadão de pleno direito. A primeira legislação a respeito da categorização do indígena foi a laboral e a fiscal (NETO, 2010). A primeira metade do século XX assistiu ao expansionismo colonial português e uma legislação laboral e fiscal darei subsídios aos portugueses para angariar mão-de-obra semiescrava através da imposição de impostos aos indígenas. Houve o imposto de cubata ou palhota de 1906 que se revestiu em outra nomenclatura, em 1920, tornando-se mais amplo. Este imposto permaneceria mantendo ativo o trabalho forçado até 1962. Nas palavras de Bittencourt (1999, p. 73),

O imposto deveria ser entendido, segundo as autoridades coloniais como uma taxa de ‘civilização’ paga ao Estado português pela sua dedicação ao território angolano. Na verdade, com esse imposto procurava-se a mobilização de maior contingente de mão-de-obra. Para adquirir os meios necessários a tal pagamento, o camponês teria que comercializar os seus produtos – sempre sujeito a um preço desfavorável – ou, por outro lado, caso não conseguisse o suficiente para pagá-lo, através da sua própria plantação, submeter-se ao trabalho forçado, que na década de 30 seria mais conhecido pelo nome de trabalho contratado. (Grifo do autor).

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Na verdade, o trabalho forçado começou a criar raízes antes mesmo do fim do tráfico de escravos, quando já havia na legislação oficial da época, segundo Bittencourt (1999), artifícios legais para obrigar o indígena a trabalhar. Tais artifícios apenas foram se aprimorando com o decorrer do tempo e ganhou relevância com a efetiva erradicação da escravidão em 1869, pelo menos como ela era entendida, e com a inserção de vários colonos na primeira metade do século XX. O colonialismo na fase salazarista veio aprofundar a exploração de mão de obra africana, além de abater financeiramente a elite crioula, enfraquecendo as lutas de independência, no entender de Bittencourt (1999). Os anos mais intensos do colonialismo português foram as décadas entre 1950 e 1970. “Tão festivos quanto violentos, brutais em todos os sentidos”, conforme Fonseca (2009, p. 17). Estes anos são considerados como o último capítulo da presença portuguesa em África. Em outras palavras, do império colonial português, mas que, em tese, não poderia mais ser assim designado. Antes disso, a presença portuguesa neste recanto do mundo passou de quase nula, no início da colonização, a moderada nos anos seguintes e intensa nos anos finais desta, embora as colônias já principiassem suas independências até mesmo motivados também pelos crioulos e pelos portugueses que nelas moravam. Vale ressaltarmos que, no século XX, a política salazarista do Estado Novo (1933- 1974) em Portugal, opondo-se à pressão anticolonialista das instâncias internacionais e no intuito de enganá-las, altera o quadro jurídico do colonialismo português, modificando a expressão ‘Império Colonial Português’ por ‘Ultramar Português’ e ‘Colônias’ por ‘Províncias Ultramarinas Portuguesas’ (PIMENTA, 2014). Isabel Valadão, em A sombra do Imbondeiro (2012), relata que as novas terminologias “destinava-se, sobretudo, a mostrar à comunidade internacional que o caso das ex-colónias portuguesas era diferente da situação em que se encontravam os domínios das ainda restantes potências coloniais” (VALADÃO, 2012). Era uma propaganda do Estado Novo para ludibriar a comunidade internacional e, ao mesmo tempo, colocar as colônias como uma extensão de Portugal em além-mar, no sentido de desinflar a economia da metrópole e impulsionar a da colônia, fazendo convergir para elas portugueses ávidos por oportunidades e por riquezas que se sentiam atraídos pela ideia propagandista de uma terra prometida.

Ouviam falar sobre os grandes espaços, os campos a perder de vista, o imenso mar azul, o céu abençoado e a terra vermelha, o novo país das oportunidades, tão diferente do ambiente e do regime opressivo, da fome e da miséria, que se viviam em Portugal continental. Porque não tentarem a sorte, estabelecerem família, criarem os filhos nesta terra onde o espaço para todos nunca faltaria? O trabalho nunca lhes metera medo. Os mais idealistas 56

chegavam mesmo a acreditar que iriam tomar parte no processo de desenvolvimento de um continente que, se sabia, possuía graves lacunas existenciais. Se já o haviam feito em relação ao Brasil, porque não continuar em África? (VALADÃO, 2012, p. 11-12).

O Brasil, desde os tempos dos ‘descobridores’, recebeu sobre si a carga simbólica de um paraíso terrestre que permeou por muito tempo o imaginário coletivo. A ideia de paraíso terrestre, ou ainda Jardim do Éden, além de considerar o simbolismo bíblico de um presente divino, também se incorporava da concepção da existência de um ser privilegiado que o habitasse. Para isso, os portugueses foram pródigos em se eleger como sendo este ser digno de receber tal presente. Terra prometida também é outro termo que se reveste de simbologia bíblica. É a terra dos eleitos, daqueles que, após anos de privações, foram agraciados com uma terra que lhes seria dada, mesmo que tal terra já possuísse donos, ainda que fosse preciso destruí-los para dela se servir. Arvorando-se do relato bíblico, a simbologia da terra prometida foi estendida ao Brasil e aos territórios africanos colonizados pelos europeus. Para Fonseca (2009, p. 21), colonizar Angola era, nos anos cinquenta, uma “aventura dos diabos. É com as entranhas e as vontades num bulício que a metrópole se lança a África”. Há uma lista de chamadas e aqueles que recebem um aceite obrigatório, através de uma carta, cuja aquisição é difícil, lançam-se ao oceano Atlântico num misto de necessidade e coragem. Longe vai o tempo, segundo a jornalista, em que as colônias portuguesas se abriam para todos e era depósito de bandidos e opositores. Nos primeiros cinco anos da década de 1950, são quase 23 mil pessoas que zarpam e, na maioria, o destino é Angola.

Em 1950, contavam-se 78.826 brancos em Angola, seriam cerca de 500 mil no último sopro de colonialismo. A província ganhara famas de pérola do império. Chão prometido, que a todos livrara da miséria. Oferecia aventura e outra liberdade. Portugal era então um país triste, amordaçado pelos homens de Deus e do Governo. O mais pobre da Europa Ocidental (FONSECA, 2009, p. 24).

Fonseca (2009) atesta a quantidade de brancos despejados em 1950 em Angola e a crise econômica que Portugal enfrentava naquela época em face do regime salazarista. Angola surgia como uma forma de livrar o povo português da miséria e notamos que somente o bem estar dos portugueses interessava. Segundo Dacosta (2013), a concepção do Estado Novo de Salazar era de manutenção dos territórios ultramarinos a qualquer custo, contrapondo-se à política europeia vigente de descolonização. O custo dessa política salazarista enfraqueceria os cofres do Estado português. 57

Fonseca também revela que a inserção de brancos em Angola fazia parte da política de embranquecimento de Salazar. Em 1961, a carta para viajar em direção à Portugal deixou de ser obrigatória, dando livre passe “aos aspirantes a colonos” e servindo aos “interesses de uma política cuja sobrevivência exige colocar mais brancos em terra de negros”. Antes disso, a permissão era dada apenas a “quem tivesse um estatuto profissional e social que não causasse dano à imagem de superioridade dos europeus” (FONSECA, 2009, p. 24). Isabel Valadão foi para Angola em 1951 e isso parece confirmar que a autora detinha um certo privilégio econômico ou favorecimento de quem o detinha. Em Portugal, vivia em Paço de Arcos e os contatos de sua família incluía pessoas de estrato social mais alto como Maria Helena Raposo, noiva do ‘africanista13’ Carlos Alberto Figueiredo, na companhia de quem Isabel, em sua infância, passava os dias. O cargo de mecânico-chefe em Angola foi arranjado por este que era sócio da firma Figueiredo & Irmãos, proprietária de várias fazendas de sisal, distribuídas pelo território angolano, entre elas a Fazenda Elisa onde, de início, Fernando, o pai de Isabel, ficou trabalhando (VALADÃO, 2012). Os avós maternos Libânia e Constantino foram caseiros da Quinta Carlos Luz. Nela, nasceram os cinco filhos do casal, entre eles Margarida, a mãe de Isabel. Quando ficou viúva, a avó Libânia teve permissão para continuar na Quinta. Depois de partir para Angola, Isabel não tornaria a vê-la, pois essa viria a morrer em 1961. A tia Isabel era outra pessoa de destaque na vida da pequena Isabel em Paço de Arcos. Ela era irmã do pai dela e casada com Óscar Pinhanços, da família Pinhanços, proprietários de um café na vila que servia “deliciosos cacetes”. A tia tinha sido modista no passado e tinha um ateliê de costura. Foi nesse ateliê que Margarida conheceu Fernando (VALADÃO, 2012). Enquanto Margarida reproduzia a figura da mulher recatada da época, Fernando era a concepção do rapaz solteiro e cobiçado por sua beleza, trejeitos e posição social. O pai de Isabel pertencia à classe média da vila de Paço de Arcos, enquanto a mãe era de uma família muito humilde e precisava trabalhar para ajudar na renda familiar. Devido à diferença social existente entre os dois, o namoro de Fernando com Margarida não era bem aceito pela família dele, muito embora tenham casado e constituído a família Antunes, tendo a pequena Isabel como única filha do casal (VALADÃO, 2012). A propaganda do Estado Novo de uma nação que se estendia do Minho a Timor foi eficiente, conforme Fonseca (2009, p. 25), pois fazia com que os portugueses vissem Angola como um Portugal distante e, dessa forma, sentiam-se em casa. No navio da Companhia

13 De acordo com Valadão (2012), os donos de propriedades em Angola eram conhecidos como africanistas. 58

Colonial de Navegação comprado dos ingleses e destinado ao transporte dos portugueses, os passageiros eram distribuídos em cinco classes, cujas acomodações declinavam em conforto à medida que a classe aumentava na ordem.

O espaço da terceira classe vai cheio de mão-de-obra metropolitana. Entusiasmado com a ideia dos colonatos, réplicas perfeitas de Portugal em África, o Estado chega a financiar a travessia do Atlântico. Não é dádiva, é empréstimo. A ser pago com 1/6 das primeiras colheitas. Legiões de portugueses vêem na nova política viagem certa para dourar biografias. Embarcam com o destino aos colonatos, de que a Cela, em Angola, e o Limpopo, em Moçambique, são os aprumados exemplos (FONSECA, 2009, p. 25).

O Estado Novo procurava cobrir seus gastos com a colonização e com uma política de contenção de revoltas africanas nas colônias através, também, dos portugueses que partiam em busca de um sonho de prosperidade e, de sobra, garantia que a exaltação ao império português permanecesse no desenho das cidades africanas que estavam sendo invadidas pelos colonos portugueses. Outros navios cortavam o mar Atlântico àquela época e, na maioria deles, não se poderia falar em conforto, principalmente naqueles em que milhares de rapazes, considerados soldados rasos, partiam de Lisboa em direção à Angola em embarcações fedidas a vômito e fezes. Mas, em outra ponta, havia navios como o Príncipe Perfeito onde “a alta-roda do império” português, que tinha negócios em Angola, fazia o trajeto abastecidos de amplo conforto. Nestes navios, havia festas, jantares requintados e inúmeras animações para que a viagem fosse suntuosa. Carlos e Lurdes Seixas eram um dos que iam a bordo nestes navios e a viagem começava com a longa bagagem que faziam, recheadas de indumentárias para cada evento que acontecia no navio. Eram donos de enormes plantações de café e algodão, além de uma robusta criação de gados, aclamados como “os senhores de Novo Redondo” (FONSECA, 2009, p. 41). Naquela época, a viagem em direção à Luanda, Angola, também era feita por via aérea, mas esta opção era para poucos, pois adicionava inúmeras regalias ao trajeto de Lisboa à Luanda, em especial o ar-condicionado. Em uma dessas viagens aéreas, um passageiro de ‘camisa caqui’, um dos símbolos dos colonos, com negócios nas duas cidades, permite-se ao humor durante a viagem:

— Ouçam lá está... De manhã, em Luanda, vão três pessoas a correr: um branco, um mestiço e um preto. O que é que estão a fazer? — Os restantes passageiros olham-no num silêncio curioso. A resposta não se faz esperar. — 59

Ora, o branco está a fazer ginástica, o mestiço a correr para o trabalho e o preto a fugir à polícia! — a piada solta risadas. Ninguém perde tempo a avaliar tal jeito de ver Angola (FONSECA, 2009, p. 36).

A ‘piada’ infame, provinda de um passageiro sempre regular nos voos do comandante Silva Soares e do qual ele guarda lembrança, dá a conhecer o racismo que está nas atitudes dos portugueses e que se insere nas instituições do império português em Angola. É um racismo de um ‘colonialismo cordial’, tal qual a concepção de Gilberto Freyre. A República trouxe consigo o combate à assimilação. Nessa época, a mestiçagem era evitada ou combatida, pois redundaria na infertilidade ou na degeneração da raça considerada superior. Ademais, “onde houvesse significativa presença europeia, [...] a discriminação racial [era considerada] essencial à ordem imperial” (NETO, 2010, n.p.) que investia seu poder discriminador a partir do indigenato.

No caso de Angola, colónia portuguesa onde, historicamente, era mais numerosa a população negra influenciada por ‘usos e costumes’ de origem europeia, o papel do ‘indigenato’ como sistema protector da pequena minoria branca era óbvio e como tal defendido, até ao fim, pelas entidades administrativas, com poucas excepções. A discriminação racial ganhara base legal, já que os classificados como ‘brancos’ eram por inerência cidadãos, apesar do elevado analfabetismo, das bolsas de pobreza e da percentagem de degredados, longe dos padrões de vida e integridade moral exigidos a negros e mestiços para a inclusão no grupo dos ‘civilizados’ (NETO, 2010, n.p.).

Com o Estatuto dos Indígenas, reinterpretado diversas vezes sob os olhos das leis portuguesas, a assimilação obrigatória e o trabalho forçado se tornaram práticas comuns que interditaram os direitos da população negra, imprimindo-lhe, na prática, apenas deveres. O reconhecimento de cidadania do indígena passava por uma série de condições e imposições difíceis de serem atendidas e a cobrança de impostos feita a todo negro ou mestiço considerado incivilizado enveredava para o trabalho forçado como pagamento. O Acto Colonial de 193014 e a Carta Orgânica do Império Colonial Português de 1933 que, na teoria, deveriam impedir a submissão de trabalhos forçados aos indígenas, com exceção dos trabalhos em obras públicas de interesse coletivo, sob determinações judiciárias de cumprimento de penas ou no intuito de abolir obrigações fiscais; como também proteger os indígenas e velar pela conservação e desenvolvimento das populações (VALADÃO, 2012,

14 Cabe ressaltarmos que as informações sobre o Trabalho Compulsivo e o Acto Colonial de 1930 se encontram nos anexos do livro de Isabel Valadão, A sombra do imbondeiro (2012), mas provenientes, na íntegra, de outras fontes. 60

p. 241). Na prática, era um engodo e deixava muitas brechas para a contratação ilegal de indígenas ao trabalho forçado. O regime de semiescravidão era reiteradamente negociado entre sobas e autoridades coloniais. A manutenção e controle desse sistema de escravidão era da competência de vários funcionários sob a tutela do Estado Português, entre eles os Sipaios15. Nos anos de 1935 e 1945, o Acto Colonial de 1930 sofreria modificações e, em 1951, pela Lei nº 2048, ele seria revogado devido aos “processos de descolonização que então se iniciaram nas colónias de Inglaterra e França” (VALADÃO, 2012, p. 243). Depois disso, o termo colónia desaparece para dar lugar a províncias ultramarinas, mas o trabalho forçado não foi erradicado nas vias ilegais, ele permaneceu vigorando até 1962, quando foi abolido.

O trabalho compulsivo ou ‘forçado’, que os africanos experimentaram na própria pele, nas zonas rurais, tornar-se-ia uma das principais razões para o ressentimento da população negra contra a governança portuguesa. Esta e outras formas de abusos laborais, como a cultura obrigatória do algodão, conduziriam à intensificação dos conflitos raciais, na década de 1960. Em 1961 verifica-se a extinção do regime da cultura obrigatória do algodão e a revogação do Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas. E em 1962, a substituição do Código de Trabalho dos Indígenas e a abolição do trabalho compulsivo ou forçado (contratados) (VALADÃO, 2012, p. 244).

Paralelo ao trabalho forçado, existia a Política de Assimilação do Estado Novo16 que em 20 de maio de 1954, instituía o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias Ultramarinas (Guiné, Angola e Moçambique), dividindo as populações em três grupos distintos: indígenas, e brancos. Tal política não se afasta dos pressupostos das missões civilizatórias do início da colonização, pois entendia que as populações autóctones eram incapazes de se autogerir, porém isso poderia ser gradativamente solucionado através de uma categorização racial, cujo propósito era identificar quem estaria mais próximo ou mais distante da categoria de civilizado sob os moldes ocidentais e apto a receber um ‘alvará de cidadania’.

O estatuto do ‘’ era um estatuto especial que o governo concedia somente a alguns cidadãos que tivessem evoluído para os padrões de cultura ocidental e demonstrassem ter atingido um nível social e económico

15 Eram indígenas, odiados pelos demais indígenas, em especial os contratados, pois sua função era agir como elemento repressor e de coleta de novos contratados. Os sipaios eram impiedosos nos castigos corporais, cujo mais aplicado era o da temida ‘palmatória’ (a menina dos cinco dedos) (VALADÃO, 2012, p. 243). 16 Cabe ressaltarmos que as informações sobre a Política de Assimilação do Estado Novo se encontram nos anexos do livro de Isabel Valadão, A sombra do imbondeiro (2012), mas são provenientes, na íntegra, de outras fontes. 61

compatível com os das populações brancas – ‘alvará de cidadania’. Só as populações assimiladas, ou os seus descendentes, poderiam frequentar o ensino mais avançado, secundário ou liceal. Como os programas de ensino nestas escolas só contemplavam o que se relacionasse com Portugal continental (História, Geografia, Língua, etc.), desprezando os vários aspectos da cultura da província ultramarina em questão, cavava-se um fosso entre essa camada da população (assimilada), instruída na cultura portuguesa, mas desconhecedora da cultura de seu próprio país, e a restante população africana, não-instruída (VALADÃO, 2012, p. 245).

Certamente, a mobilidade social e econômica permitida à população negra era pequena, pois os privilégios dados à população branca pelo governo português e pelas instituições das ‘províncias ultramarinas’, em conformidade e com o aceite desta população branca que nelas residia, aqui, em especial Angola, não permitia maior mobilidade e possibilidades de concessão do alvará de cidadania. Ademais, a obtenção do alvará significava um declarado genocídio à cultura e à história das populações autóctones, provocando também uma segregação entre essas populações com vistas a provocar divergências de interesses, impossibilitando as lutas de independência. O próprio termo ‘províncias ultramarinas’ tratava de unificar, em tese, indígenas, assimilados e brancos, dando uma falsa impressão de totalidade que, na prática, não se aplicava. A presença de negros em lugares que, em uma política excludente, são exclusivos de brancos causa admiração, reduzindo o ato a uma questão de mérito, como é o caso de Fonseca (2009, p. 52):

Em Angola, encontram-se brancos e negros nos musseques e, sobretudo depois de 1961, negros abastados no asfalto. São os assimilados, gente que se apegou à educação, aos costumes e aos valores europeus para ultrapassar a barreira da cor. Conquistaram poder económico suficiente para serem aceites, a maioria trabalha para o Estado. Muitos são mestiços, quase todos filhos de pai branco e mãe negra. Formam uma espécie de terceira classe, à mercê da desconfiança de uns e de outros.

Se, nas cidades, os indígenas assimilados recebiam algum reconhecimento, nas fazendas, o sistema de contratados mantém a fortuna dos portugueses em crescendo e os indígenas aprisionados em um trabalho sem fim. Nelas, a discriminação racial era mais severa, pois os lugares dos negros eram fixados sem que houvesse fissuras.

[Cada contrato] Tem a duração de um ano ou mais, pago em duas voltas – na data da partida, metade é confiado à mulher; no último dia, o resto é entregue ao trabalhador. Ou seria, se as contas corressem certas. Toda a roça tem sua cantina, balcão com meia dúzia de comidas e roupas dobradas. 62

Enclausurados no trabalho, entre mata e emboscadas, é o único lugar onde os contratados tiram os olhos dos cafeeiros. Todos por lá têm conta-corrente – as compras que fazem em parcelas que aprisionam. No fim do contratado, não acumular dívidas já é alívio; escapar a novo requisito, fortuna (FONSECA, 2009, p. 101).

Pela lei colonial, o indígena, designação jurídica dada aos naturais da terra pelo Estado Novo para se valer de uma mão de obra quase escrava, tinha a “obrigação moral e legal de procurar adquirir pelo trabalho [...] os meios que lhes faltassem para subsistir e melhorar sua própria condição social” (BITTENCOURT, 1999, p. 80). A desobediência à lei dava às autoridades coloniais o direito de fazê-la se cumprir à força. Já para o branco que chegava de Portugal e não dispusesse de muitos recursos financeiros, não havia nem lei e nem falta de emprego. Este era o caso de Fernando, pai de Isabel, que já vem da vila de Paço de Arcos, em Portugal, com emprego garantido. Quando a pequena Isabel e sua mãe, Margarida, chegam em 1951, em Luanda, Angola, e se dirigem à fazenda de sisal onde o pai, Fernando, está trabalhando e onde irão morar, ela se depara com uma divisão de lugares e funções na fazenda que demarcam bem as relações entre brancos (portugueses) e negros (população autóctone).

A Fazenda Elisa ficava situada num sítio chamado Mungué, na região da Hanha-Cubal, fundada, em 1937, por Sebastião das Neves, um dos homens mais empreendedores de toda aquela zona [...]. Na parte mais alta da fazenda, ficavam as casas do pessoal da fábrica (mecânicos, serralheiros, motoristas, eletricistas), do pessoal administrativo e ainda a residência do administrador que era também um dos donos, o Sr. Sebastião das Neves. Na zona baixa, ao pé da fábrica, ficavam os armazéns de sisal e a cantina, onde os contratados, trabalhadores que estavam vinculados por um trabalho compulsivo, se iam abastecer de víveres e, também, o escritório e o posto de enfermagem [...]. Um pouco mais afastados, ficavam os barracões onde viviam os trabalhadores de cor, na sua maioria contratados, e ali perto erguia-se uma pequena senzala constituída por cubatas de colmo ou de pau-a-pique, onde vivia a população autóctone daquela zona, de etnia Ovimbundu, e que trabalhava também na fábrica ou em profissões diversas: salga de peixe, confecção de farinha de milho e mandioca para a alimentação básica, lavadeiras, criados, cozinheiros, etc. A casa onde viviam Isabel e os pais era uma bonita vivenda geminada, com varandas em pedras rústicas e muretes de tijolo. Não era muito grande [...]. Não havia eletricidade, e a iluminação fazia-se com candeeiros a petróleo. Também não havia água canalizada” (VALADÃO, 2012, p. 39).

Na fazenda, a hierarquia de raças é visível na disposição do espaço geográfico onde, na parte alta, ficam as moradias dos senhores brancos, entre eles o dono da fazenda, e onde ficam também os postos mais altos de trabalho. Na parte baixa, os armazéns, a cantina, o 63

escritório e o posto de enfermagem. Estes postos eram assim concentrados para manter vigiados os contratados, uma vez que estes eram os locais por onde eles transitavam. A cantina era o lugar onde se abasteciam de artigos alimentícios que se resumiam a poucos produtos: “farinha de mandioca e uns gramas de peixe seco, uma porção de óleo de palma e uma ‘cruz’ de sabão macaco (sabão azul)” (VALADÃO, 2012, p. 243). O povo de cor era mantido afastado e vivia em moradias bem inferiores: em barracões ou em sanzalas. A casa de Isabel era modesta e compatível com a função que Fernando exercia. Ademais, havia as condições de desenvolvimento do próprio lugar que não permitia luxos como luz elétrica e água encanada. No entanto, para a família não faltava um criado que abastecia de água a casa, fazia limpeza nela e ajudava Margarida na cozinha. De acordo com Fonseca (2009, p. 55), na Angola do Estado Novo, “toda remediada casa de branco tem os seus negros. Requinte banal, sem direito a rótulo de luxo”. Apenas a quantidade sinalizava “melhor posição na apertada hierarquia colonial”. O pagamento era “água de ribeiro – comida, cama e cobertor”, além de “meia dúzia de moedas”. Na casa da família Antunes, Romeu e José eram criados. Sobre eles, recaiam os estereótipos decorrentes da discriminação racial fincada sob as bases legais do indigenato. Quando Isabel é apresentada a Romeu, a narradora diz que ele solta uma “espécie de grunhido” (VALADÃO, 2012, p. 41) e que a menina se assusta, encolhendo-se principalmente ante o olhar de Romeu, cujos olhos são apresentados “com um globo ocular muito amarelo e raiado de vasos sanguíneos, numa face inexpressiva e muito escura” (idem). A portuguesa Isabel, recém-chegada em Angola, carregava em si o medo do negro. Fanon (2008, p. 103), falando sobre a experiência vivida do negro, lembra que, diante do branco, o negro precisa “confirmar seu ser”, pois este se sente diferente. O branco introduziu no negro uma série de construções, cuja base é um esquema histórico-social, mantido por “mil detalhes, anedotas, relatos”, que transformaram o negro em um ser exótico, perigoso, violento, desprovido de intelecto, descivilizado, entre outros estereótipos. Na França, o martinicano percebe-se negro através do olhar do branco e isso o isola. Ele percebe também que pouco importa o que faça para se alçar à condição de igual perante o outro branco, pois, no racismo, a cor da pele é que determina sua condição social de ser inferior. Ele se vê impelido pelo olhar de medo de uma criança que diz para a mãe: “Mamãe, olhe o preto, estou com medo!” (FANON, 2008, p. 105). Fonseca (2009), em muitos momentos de seu livro, relata a inferioridade do negro em relação ao branco nessa época de 1950 a 1974 em Angola. Ao falar dos Teixeiras, ela diz que eles “atravessam a cidade de asfalto. Têm cor e bolsa para não questionarem qual o seu 64

pedaço de Luanda” (idem, p. 53). Em outro momento, ao falar da sobrinha de Carlos Seixas que afrontou a família casando-se com um russo, expressa o racismo da família em algumas falas destes: “Pior mesmo, só trocar alianças com um negro”; “branco é superior; preto, inferior”; “Os pretos em África têm de ser dirigidos e enquadrados por europeus mas são indispensáveis como auxiliares destes” (idem, p. 83). É aprisionado nessa barreira racial que Romeu se sente ao perceber o olhar de medo que se estampa no olhar de Isabel, devido aos estereótipos, por ela incorporado no convívio com os seus pares. São estas construções estereotipadas do negro que acompanham outras denominações dadas a Romeu, como calado, fiel, relaxado e apto a consumir álcool em grandes quantidades. Tudo isso, no fundo, podem esconder uma pessoa afetada por uma vida de opressão.

O Romeu chegava, fazia o trabalho, e abalava para a sanzala. Ninguém sabia nada da vida dele, se tinha mulher e filhos, onde é que vivia e que idade tinha. Apesar de não falar muito, o Romeu era educado e respeitador. Tratava Margarida com deferência e Isabel com condescendência (VALADÃO, 2012, p. 48).

Romeu era um mistério, mas certamente escondia um trauma. É possível que a falta de família fosse decorrente da destruição do grupo familiar e tribal ao qual pertencia, em função da imposição de trabalhos forçados em lugares que o distanciaram de sua família e tribo. Fonseca (2009, p. 102) relata que muitos contratados nunca retornavam ao seu lugar de origem. Talvez fosse esse o caso de Romeu que se viu aprisionado nos contratados ou por acumulação de dívidas (consumo excessivo de bebidas) ou por alongamento da pena. O silêncio constante, os atos comedidos e a obediência calada talvez fossem frutos de um longo processo de despersonalização e de desânimo ante uma sina da qual não via saída. A idade avançada lhe concedeu um acúmulo de experiências dolorosas que, possivelmente, deram-lhe a tristeza no olhar e as lembranças amargas que encontravam lenitivo no álcool. Romeu “andava constantemente embriagado! Era, aliás, seu estado normal. E bebia de tudo [...]”, além de consumir kimbombo (um tipo de aguardente fabricado pelos indígenas nas sanzalas), e fumar maconha (VALADÃO, 2012, p. 48). José aparece na vida da família de Isabel após o episódio da cobra. Romeu, investido do conhecimento sobre as plantas medicinais, consegue salvar Margarida da morte, depois que esta foi atacada por uma cobra cuspideira. Ela se recupera e lhe fica agradecida. É quando José aparece para ajudar Romeu na cozinha e Margarida nas tarefas de casa. Antes, ele trabalhava na fábrica da fazenda de sisal e talvez tenha sido por sua deficiência física que 65

Fernando o tenha tirado da fábrica para os afazeres de sua casa. Por sua deficiência, era conhecido como Pés de Chumbo. “Andava sempre descalço, porque não havia sapatos nem sandálias de borracha que lhe servissem. Era um bom rapaz, puro e sem maldade. Seria um adolescente mas ele próprio não sabia que idade tinha” (VALADÃO, 2012, p. 52, grifos nossos). A concepção do negro como um ser puro, sem maldade, infantilizado, carente de alguém que o conduza por não ter capacidade de se autoconduzir também foi muito propagada para dar fundamento à escravidão. José passaria a fazer parte da vida da família Antunes. A pequena Isabel aprendeu com ele a comer pirão com peixe seco na brasa, como também a comer o múcua ou pão-de- macaco que seria a fruta dos imbondeiros, entre outras coisas. Ele acompanharia a família a cada nova fazenda para onde se mudavam, pois, segundo a narradora, ele insistia em não os deixar. Isso transparece uma certa afetividade da família para com José. No entanto, a narradora relata que, nas mudanças feitas pela família, José ia na “camioneta juntamente com as bikuatas, das quais já fazia parte, rumo a outras paragens” (VALADÃO, 2012, p. 52). Bikuatas, em Angola, significa tralhas, haveres, tudo aquilo que pertença a uma pessoa e do qual ela pode dispor como quiser. Isso implica que José é comparado a coisas, objetos, sendo destituído de sua condição de pessoa humana. Nas viagens, geralmente ele se protegia da chuva debaixo do “oleado” (a lona que cobria os pertences da família) e era também lá que ele dormia. Entre coisas, José cresce e torna-se homem. É interessante esse tornar-se homem, uma vez que ele não é considerado como um. Acompanha a família até Luanda, onde permanece durante dez ou quinze anos a serviço dela para depois desaparecer sem deixar vestígios, segundo a narradora. Além de Romeu e José, havia Cecília que sempre acompanhava Isabel nas brincadeiras como uma espécie de entretenimento para a menina branca. Cecília era “uma pretinha da sua idade, filha de uma das lavadeiras, de corpo magrinho, cara simpática e um sorriso permanente que descobriam uns dentes pequeninos e muito brancos” (VALADÃO, 2012, p. 40, grifo nosso). O “sorriso do negro, chamado grin, parece ter interessado muitos escritores”, diz Fanon (2008, p. 59), principalmente com o destaque para todos os dentes à mostra, em uma clara alusão a uma felicidade decorrente da gratidão ao homem branco, ou como sinal de deformação do negro. Essa representação do negro refletia o racismo. Nas palavras de Fanon (2008, p. 47), foi Leopold Sedar Senghor que denunciou o ‘riso banania17’, no prefácio do

17 Conforme Fanon (2008, p. 47): A expressão y’a bom banania remete a rótulos e cartazes publicitários criados em 1915 pelo pintor De Andreis, para uma farinha de banana açucarada instantânea a ser usada ‘por estômagos 66

poema Hóstias Negras, como “um sorriso estereotipado e um tanto abestalhado” e que dava “reforço ao racismo difuso dominante”. Em A sombra do imbondeiro (2012), Eduardo Nascimento também é representado com destaque ao sorriso. Marca que não é comum na caracterização de outros personagens não negros. Ele é vocalista de uma banda de música e amigo de Isabel. É descrito como “um rapaz negro, alto e bem constituído com uma cara redonda, lábios grossos e nariz largo e achatado, sempre sorridente. Tinha uma voz fabulosa, rouca e poderosa, como a de certos cantores americanos negros” (VALADÃO, 2012, p. 122, grifo nosso). Outros aspectos da população negra que eram próprios da cultura angolana eram tidos como inerentes à raça. É o caso das lavadeiras que são admiradas pela pequena Isabel, por possuírem uma “resistência incrível”, em decorrência de os trabalhos delas obrigarem-nas a carregar seus filhos amarrados às costas ou serem capazes de equilibrar objetos à cabeça. “Nas sanzalas e nos kimbos, eram as mulheres que faziam os trabalhos mais pesados [...]. As sekulas (as mais idosas), normalmente já não faziam estas tarefas [...]” (VALADÃO, 2012, p. 44). A hierarquização das raças também se vê na disposição física das cidades coloniais. Ao relatar a vida dos Teixeiras, em Luanda, Fonseca (2009) enfatiza a surpresa deles ao perceber a divisão da cidade em duas:

[...] no centro, a de asfalto; na periferia, os musseques. O baptismo nada tem de acaso. Na cidade de asfalto, casas de tijolo e avenidas pavimentadas, vivem os brancos. Nos musseques, assim se diz ‘onde há areia’ em kimbundu, amontoam-se os negros. São bairros-de-lata com textos desabridos de conforto e ruas de terra. Tão visível na geografia quanto na melanina, a divisão atenuar-se-á com o correr dos anos (FONSECA, 2009, p. 51-2).

Em 1961, há uma certa modificação no cenário dessa divisão. Já se vê, como vimos com Fonseca (2009), brancos pobres nos musseques e negros assimilados no asfalto, ainda que esta aceitação implicasse na política de assimilação, baseada no mérito. Uma outra determinação da política de assimilação e que Valadão (2012) destaca, é quando se refere à vila Cacuso onde estudava na escola de D. Sara, logo depois que foi morar na Fazenda Esperança para onde seu pai foi solicitado a trabalhar, após ter estado na Fazenda Elisa e na Fazenda Fernando Alberto. Na semana, ela era aluna interna dessa escola. Nela, segundo a

delicados’ no café da manhã. O produto era caracterizado pela figura de um tirailleur sénégalais (soldado de infantaria senegalês usando armas de fogo), com seu filá vermelho e seu pompom marrom, característicos daquele batalhão colonial. 67

narradora, “havia crianças brancas, mulatas e pretas”, com ensino de 1ª à 4ª classe. Na aula da 3ª classe, havia mais “crianças de cor do que brancas” e isso, para a narradora, significava um avanço:

Em Angola, antes de 1960, embora a frequência do ensino primário tivesse aumentado substancialmente, a educação para além da instrução primária era permitida a muito poucos africanos e restrita às áreas urbanas. Naquela época a responsabilidade pela educação dos africanos era da Igreja Católica e das Missões Protestantes. Cada Missão estabelecia o seu próprio sistema escolar, embora sujeito ao controlo do Governo Português. Tudo isto estava relacionado com a ‘política de assimilação’ do Estado Novo em relação ao Ultramar Português (VALADÃO, 2012, p. 88, grifo da autora).

Havia, pois, um controle rigoroso do Estado Novo sob a população africana e, por parte dos próprios portugueses, via-se também uma exigência que a cultura portuguesa fosse assimilada pelos africanos nas ‘províncias ultramarinas’, para não dizer colônias, muito embora a governança não se desligasse de uma característica colonial, pois não se tratava de territórios como extensão de Portugal, mas como submissos a ele. A população portuguesa abraçava a propaganda do Estado Novo, elegendo a cultura portuguesa como aquela que deveria prevalecer e o povo português em Ultramar representavam, na verdade, uma nação portuguesa, dentro de um território africano, como se depreende do discurso da narradora de A sombra do imbondeiro (2012):

Em Angola, a família iria encontrar um estilo de vida muito diferente do da metrópole, uma maneira de viver tipicamente africana. As pessoas eram mais simples e afectuosas, havia um grande espírito de fraternidade e entreajuda. Em especial no mato, onde [...] existia uma grande unidade entre as pessoas, como se tratasse de uma grande família. Muitas daquelas pessoas já pertenciam a uma terceira ou quarta gerações ali nascidas. E havia um sentimento que os unia a todos — já sentiam aquela como a sua verdadeira terra (VALADÃO, 2012, p. 40).

O espírito de fraternidade e ajuda, bem como a ideia de unidade aqui tratada não se relaciona a brancos e negros, mas apenas aos brancos portugueses, vindos de Portugal e de seus descendentes nascidos em Angola. Aquelas que viviam no mato eram as pessoas que, como o pai de Isabel, trabalhavam em diversas funções na fazenda de sisal ou eram proprietárias ou responsáveis por elas, tal como outros negócios relacionados a este espaço. Portanto, a grande família não incluía pessoas não portuguesas e, naturalmente, a narradora as exclui como se não fossem pessoas, como se fossem apenas a mão de obra que tornaria a terra das oportunidades uma realidade. 68

Os eventos comemorativos, apesar de remodelados a um contexto africano, não perdiam a cultura portuguesa de vista, como é exemplo um dos acontecimentos em que a narradora relata as festas natalinas:

Aqui e ali cada família celebrava um natal tipicamente africano, indiferente às velhas tradições. Tendo deixado as famílias na Metrópole, aquela era só mais uma oportunidade para uma reunião de amigos e vizinhos. O primeiro Natal que Isabel passou na fazenda Elisa foi, pois, diferente daqueles que a que estava habituada em Portugal, sempre celebrados em casa da tia Isabel, com o bacalhau cozido, o arroz doce, as rabanadas, tudo aquilo que à mesa fazia essa época tão típica e tradicional. Na fazenda, não houve bacalhau, mas um galo que o Romeu apanhou na capoeira [...]. Abriu (a mãe) ainda uma excepção e decidiu fazer as suas tradicionais fatias paridas (rabanadas) [...]. No dia 25, de manhã, lá apareceram alguns brinquedos no chão da sala, onde também não havia a tradicional árvore de Natal (VALADÃO, 2012, p. 45, grifos da autora).

Tudo aqui se trata de um evento da cultura ocidental, celebrado exclusivamente entre portugueses, todavia em contexto africano e com os elementos culinários desse lugar. As tradições portuguesas são ressignificadas, mas a matriz da tradição permanece intacta no evento natalino, na reunião familiar em torno da ceia, na troca de presentes e até nas receitas de família. O ‘tipicamente africano’ fica presente apenas nos elementos de substituição. Muito embora, dependendo da condição financeira do colono, não houvesse substituição alguma e a tradição era mantida inalterada, “como era o caso da casa do sr. Sebastião das Neves, [onde] o Natal continuava a ser celebrado da forma tradicional, como se ainda estivessem em Portugal” (VALADÃO, 2012, p. 45). A reprodução não estava apenas na cultura portuguesa, mas no ensino, no formato das escolas, nas estruturas das vilas e cidades e, principalmente, na hierarquização do povo português. Na escola de D. Sara, os janelões e paredes seguiam a arquitetura portuguesa e a enorme sala era ornamentada com diversos mapas de Portugal continental e com fotografias do presidente da República, o marechal Craveiro Lopes, na época, e do Presidente do Conselho, Dr. Oliveira Salazar. A construção do imóvel seguia o modelo das escolas primárias do Estado Novo. A vila onde ficava a escola, Cacuso, possuía também a “mesma divisão e semelhança das outras vilas fundadas por portugueses (VALADÃO, 2012, p. 85-7). Em relação à cidade, a mesma disposição geográfica que os Teixeiras encontraram quando atracaram em Luanda em abril de 1952, encontrou Isabel no ano de 1958, observando uma cidade que se dividia em duas. Porém, a Luanda de Isabel era “uma cidade fascinante e cosmopolita”, constituída por “modernos edifícios, largas avenidas, bonitos jardins, 69

movimentados cafés e restaurantes, cinemas, lojas de modas, grandes livrarias, e gente e mais gente, circulando nas ruas, no meio de um intenso trânsito” (VALADÃO, 2012, p. 106). Era um lugar repleto de pontos atrativos e eventos que demandavam tempo e dinheiro para desfrute e deleite de todos os prazeres disponíveis. Mas tudo isso era apenas para uma pequena parcela da população luandense branca, com raras exceções. Entretanto, a arquitetura da cidade era o retrato das cidades de outros territórios ultramarinos e, na descrição da narradora, “possuía uma beleza exótica e tropical”. Na “Cidade Alta”, havia um jardim imenso com o mesmo nome que se estendia de uma ponta a outra da Marginal, uma réplica da avenida Copacabana, no Rio de Janeiro. Lá, ficavam concentrados os pontos mais importantes como o Palácio do Governador, o Paço Episcopal, a igreja dos Jesuítas, o Observatório Meteorológico João Capelo, além de belos edifícios e dos tradicionais sobrados e sobradinhos. Naquela época, “a arquitetura tradicional dos séculos XVII, XVIII e XIX estava bem exemplificada, através de um conjunto de edifícios, uns mais bem conservados do que outros, que imprimiam à cidade um cunho colonial muito sui generis” (VALADÃO, 2012, p. 107). A arquitetura colonial também se apresentava na parte baixa da cidade, registrando a presença portuguesa “desde a zona do Bungo, ao pé do porto de Luanda, atravessando toda a Baixa, até ao morro da Fortaleza”, além da zona dos Coqueiros, onde ficava o Estádio. Seguindo a divisão dos Teixeiras, de uma Luanda dividida em duas, a zona mais alta da cidade é descrita pela narradora de A sombra dos imbondeiros como o ponto onde o asfalto terminava e onde se iniciavam “os bairros periféricos ou musseques, palavra que significa ‘terra vermelha’ [...], onde vivia a maioria da população indígena e também alguma população europeia”, mais ou menos 5%, na década de 1960. Nestes lugares, de acordo com a narradora, não existia saneamento básico, as ruas eram estreitas e de terra batida, as moradias eram de madeira ou adobe, com telhados de chapa de zinco ou colmo e não existia água encanada ou luz elétrica, apesar de Luanda se apresentar como uma cidade iluminada (VALADÃO, 2012, p. 108-110). O que há de extremamente revelador na descrição de Luanda feita pela narradora de A sombra do imbondeiro é o tom fatalista que imprime ao descrever os bairros periféricos, ao dizer que o panorama desses bairros é uma presença constante “ainda hoje” (VALADÃO, 2012, p. 110). Considerando a publicação da obra, o hoje da narradora é bem atual, tem apenas oito anos. Continuando, a narradora atesta a existência desses tipos de bairros “ em quase todas as grandes cidades, seja de África, do Brasil ou da Europa”, apresentando-se sob diversas denominações, “mussseques, bidonville, favelas, enfim, guetos onde a população de 70

fracos recursos económicos ou marginalizada socialmente consegue viver ou sobreviver em condições adversas, muitas vezes no limite do humanamente aceitável”. E ela finaliza dizendo: “Foi e será sempre assim” (grifo nosso). O tom fatalista da autora, além de atestar um atraso no desenvolvimento de Angola com o fim do domínio português, afirma o quão natural é a colonização, como se a submissão dos mais fracos fosse a norma a ser seguida. A narradora se esquece de mencionar que esses espaços comportam populações nativas, negros que, dentro de seu próprio território, foram excluídos e colocados à margem da sociedade por questões raciais, culturais e econômicas em decorrência da invasão e exploração dos portugueses e da imposição de padrões europeus, ocasionando a destruição da cultura nativa. Fora isso, a narradora coloca a marginalização como algo que existe na história e que sempre existirá, talvez por acreditar que a hierarquização seja essencial. A partilha do continente africano entre os países europeus no final do século XIX tornou efetiva a posse do solo africano. Nessa época, a reformulação ordenada de Paris, capital da França, impulsionou outros países a fazerem o mesmo. Na reformulação dessas cidades, a lógica era a constituição de um centro em torno do qual as margens se movimentavam e para onde tudo convergia. Seguindo esse modelo, de acordo com Macêdo (2008, p. 87):

[...] as cidades africanas europeizadas começam a surgir, constituindo-se em um duplo perverso das urbes europeias. Nelas os colonos procuraram refletir o modus vivendi da Europa, copiando-lhe a arquitetura e o traçado, mas tendo para isso de tentar, inutilmente, abstrair a população nativa ou, no mínimo, efetuar uma brutal segregação para tentar seu apagamento. Surgem, dessa forma, os ‘bairros indígenas’ a ‘cidade’ do colonizado, que se contrapõe à cidade do colono.

Há uma higienização das cidades, com a limpeza dos centros e uma progressiva varredura para as margens daquilo que pudesse ofender aos olhares dos mais abastados. Embora com um aspecto cosmopolita, “Luanda era, nas décadas de 1950 e 1960, uma cidade eminentemente colonial, onde tudo se fazia sem pressas, ao ritmo normal e pachorrento de uma cidade africana”. Entretanto, era o sonho americano que inspirava em especial a Luanda dessa época. A cultura estadunidense estava em muitos aspectos do pensamento e dos hábitos da cidade. Os filmes de cowboys eram os mais comuns e apreciados nos cinemas. “John Wayne e Charlon Heston eram os mais populares heróis da pequenada e progenitores” (VALADÃO, 71

2012, p. 111). Nas noites de Luanda, havia “as populares farras, ao som de rock’n’roll ou baladas da Sandra Dee, do Paul Anka e da Timmy Youro, ou os animados twists do Chuck Berry” (VALADÃO, 2012, p. 130). Além dos famosos concursos de Misses que passaram a ser realizados em Angola a partir de 1971. A chegada em Luanda da família de Isabel foi em 1958. De 1955 a 1957, a família Antunes esteve na Fazenda Esperança, mas como Isabel precisava dar seguimento ao ensino secundário e os pais dela não queriam colocá-la num colégio interno, resolveram seguir com ela para Luanda após Fernando arranjar um emprego de “serralheiro mecânico, numas grandes oficinas pertencentes a uma empresa de Luanda, a SOMETAL” (VALADÃO, 2012, p. 90). Em Luanda, sem ter onde morar, “foram acolhidos por uns amigos dos pais de Isabel, de Paço de Arcos: O Rijo e a Maria das Dores” (VALADÃO, 2012, p. 103). Mas, depois, alugaram “uma bonita vivenda no bairro Dr. Manuel Figueira, na Vila Alice”, para onde se mudariam também, depois de umas férias na metrópole, a família Rijo. A Vila Alice, assim como os bairros da Vila Clotilde, CAOP, Cruzeiro, S. Paulo e Cuca, segundo a narradora, nasceram na década de 1930 a partir da constituição de bairros limítrofes, entre a Baixa e os musseques. Nesta época,

Luanda tinha sido uma cidade dominada por uma classe média branca, mestiça e negra, que habitava os mesmos bairros e estava separada dos ‘indígenas’ que habitavam os musseques. Após a II Guerra Mundial, a emigração maciça de população europeia, fez com que a antiga classe média não-branca fosse afastada para longe da Baixa, para bairros limítrofes, mas que não eram musseques (VALADÃO, 2012, p. 110).

Vale ressaltarmos aqui o impacto, na população negra de Luanda, de um intenso colonialismo de ocupação que aconteceu com os primeiros impulsos do Estado Novo na política colonial. A Baixa é considerada o centro de Luanda, o lugar mais abastado e mais conceituado. A classe média da década de 1930, com a chegada dos emigrantes portugueses, é rebaixada, mas não aceita os musseques. Os bairros que eles constroem tornam-se a classe média das décadas seguintes. A família Rijo tinha um poder aquisitivo excelente. Na casa deles, as acomodações dadas à família Antunes eram confortáveis e a mesa era farta e repleta de iguarias caras. Eles tinham um cachorro da raça Leão-da-Rodésia e, entre outros carros, “um Fiat 1200, vermelho 72

e preto, giríssimo18, cujas portas abriam ao contrário, da frente para trás” (VALADÃO, 2012, p. 105), lançamento na época e privilégio de poucos, e um jipe da marca DKV, muito popular em Angola. No Fiat 1200, Isabel e os pais faziam grandes passeios com os anfitriões pelos lugares mais interessantes da cidade e dos arredores, aproveitando todos os sabores de Luanda, em matéria de comidas e bebidas. Ainda em 1958, o programa de variedades, denominado Cazumbi, organizado por Luiz Montez era a atração das tardes de Luanda. Os carnavais já faziam parte dos eventos anuais da cidade e o divertimento nas praias era comum na vida dos luandenses. Em 1961, o aparecimento de um programa do mesmo gênero do Cazumbi, cujo nome era Chá das Seis e Meia, resultaria na popular eleição dos Reis da Rádio, que, nos anos de 1970, dariam espaço para as “eleições das Misses, uma nova moda importada de Lisboa, bastante mais apelativa pela sua componente visual” (VALADÃO, 2012, p. 111). Após o casamento com Guilherme Valadão, em 1966, e o nascimento da primeira filha, Margarida, Isabel começaria a trabalhar como secretária da administração da revista Notícia, que era também jornal. Isso ocorreria em fins de 1970, no mesmo ano em que “o Notícia seria convidado por Vera Lagoa para organizar, pela primeira vez no território, o concurso de Miss Angola” (VALADÃO, 2012, p. 161). A preparação do Miss Luanda 1972 veria no ano seguinte, 1971. Estes concursos movimentavam uma grande quantidade de recursos, profissionais e órgãos de comunicações de Luanda e de outras cidades. Um aspecto interessante desses concursos era o traje típico da mulher mucubal, uma tribo nômade do sul de Angola, usado para ganhar o concurso. Foi usado pela primeira miss, Riquita, na intenção de ser mais realista e se tornou tradição nos concursos. O problema era que o traje, preparado pela própria tribo nômade, consistia em panos, adereços, pulseiras e colares “tratados com uma pasta de leite azedo e esterco de boi, tal qual usavam as mulheres mucubais” (VALADÃO, 2012, p. 161). As candidatas a misses são descritas pela narradora de A sombra do imbondeiro (2012) como possuidoras de uma beleza ‘exótica’, com fenótipos mais próximos dos portugueses do que dos africanos. O primeiro concurso, por exemplo, foi vencido por Maria Celmira Bauleth, a Riquita. “Era uma miúda alta, de pele muito morena e farta cabelereira castanha. Tinha um andar elegante, de gazela, um sorriso rasgado numa boca grande de lábios carnudos e um magnetismo que atraia logo os olhares” (VALADÃO, 2012, p. 161, grifo nosso).

18 Lindo, bacana. 73

A morte de uma candidata a miss marcaria a vida de Isabel. O nome dela era Fátima e, embora não tenha ganhado o concurso que lhe daria “o ambicionado passaporte para a fama como modelo”, atraia os olhares e conquistava “os corações masculinos”.

Fátima era uma bela morena, em cujas veias corria ainda sangue indiano. A família era originária de Moçambique mas já viviam em Angola há largos anos [...]. Era uma bela miúda alta e esguia, com longos cabelos negros, talvez um pouco magra demais, mas o exotismo das suas feições e a sua elegância natural, chamaram a atenção do grupo encarregado da seleção (VALADÃO, 2012, p. 141, grifo nosso).

Ela conquistou, em especial, não diria o coração, mas o olhar do administrador da revista Notícia onde Isabel trabalhava e da qual ela era a secretária direta dele, dedicada não só aos negócios da revista, mas também aos casos amorosos do administrador, o João Fernandes, descrito pela narradora como “um homem sedutor”, “um autêntico Casanova” ou, ainda, como “um playboy incorrigível”. João Fernandes não tinha um currículo que o habilitasse ao cargo, mas tinha as pessoas certas nos lugares certos e, de resto, o casamento com Bina que possuía “as melhores relações com administradores da Central de Cervejas” do grupo Cuca, garantindo-lhe proteção (VALADÃO, 2012). Fátima adquire “o estatuto de namorada, com direito a ocupar o ‘ninho de amor’ [de João Fernandes], situado num edifício de apartamentos do Bairro dos Coqueiros” (VALADÃO, 2012, p. 141). É o local dos vários encontros amorosos do administrador e de relacionamento com os amigos mais chegados. Fora desse círculo, a única pessoa com acesso ao apartamento era Isabel, que detinha a guarda das chaves, e Cristóvão, que fazia a limpeza: “o simpático contínuo da Administração, um preto de meia-idade, alto e ligeiramente gordo que formava a entourage de João” (VALADÃO, 2012, p. 142-3). Para João Fernandes, Fátima era uma “bela mulata, segundo ele, uma autêntica bomba sexual” (VALADÃO, 2012, p. 142). Estes atributos da namorada eram divulgados aos amigos aos quais “combinava a partilha de tal prodígio, porque aquelas coisas só tinham graça se todos pudessem experimentar!” (idem); inclusive as amigas homossexuais com as quais namorava e compartilhava as namoradas, no dizer da narradora. Entre muitos encontros, Fátima engravida de João Fernandes e este exige que ela faça um aborto. João Fernandes diz que a esposa não se importa com as aventuras dele, “desde que [...] não arranje bastardos e ainda por cima, mulatos!” (VALDÃO, 2012, p. 144). Isabel será encarregada de acompanhar Fátima até o local onde a parteira faria o aborto, tendo que levá-la 74

e trazê-la de volta. O aborto, porém, não dá muito certo e Fátima é acometida por uma hemorragia violenta, mas consegue sobreviver. No entanto, em novembro de 1971, João Fernandes viaja para um congresso de duas semanas em Joanesburgo, na África do Sul, com reservas de passagem feitas por Isabel. Afirma que, ao retornar, passará por Moçambique para visitar o amigo Jorge Jardim. Na ausência dele, Fátima, junto com uma amiga, Tainá, pedirá as chaves do apartamento a Isabel que não mais a verá, pois, semanas depois, o corpo de Fátima será encontrado neste mesmo apartamento já em estado de putrefação e “com um negro orifício de bala numa das têmporas” (VALADÃO, 2012, p. 148). Uma investigação criminal é aberta. João Fernandes ainda está fora de Angola, mas dá instruções a Isabel para queimar todos os documentos e fotos que atestassem algum indício de relacionamento com Fátima, ao que prontamente ela atende. Isabel é indiciada e interrogada e chegou, inclusive, a ficar em prisão preventiva, sendo libertada por um habeas corpus. Foi impedida de sair do país e na obrigação de se apresentar para interrogatórios sempre que notificada. E realmente voltou outras vezes, ao contrário de João Fernandes que tinha um álibi sólido, mas que, mesmo assim, não evitou uma prisão preventiva. “Quando o libertaram, ainda ficou alguns meses em Luanda [...] e, antes que o processo avançasse [...], agarrou na Tainá [...], e fugiu para a África do Sul, a coberto da proteção do grande amigo Bernardo Figueiredo” (VALADÃO, 2012, p. 153). Isabel foi solicitada a depor outras vezes e chegou a desmaiar em um dos interrogatórios, descobrindo-se em uma gravidez de alto risco. O caso do assassinato de Fátima que abalou Luanda se arrastou por mais de um ano. Os principais indiciados, João Fernandes e a parteira Maria Elisa, fugiram. Um para a África do Sul e outro para Portugal. Os acontecimentos de 25 de abril de 1974, em Portugal, e a expulsão dos portugueses de Angola, em 1975, acabaram, de alguma maneira, por dar fim ao processo. O relacionamento de João Fernandes com Fátima, a gravidez interrompida e a morte da concubina levantam muitas questões sobre o racismo dos portugueses e, é claro, do nosso também. Sabemos de antemão que a herança da escravidão traz em seu cerne o racismo e que na relação entre colônia e metrópole a exploração de um, o nativo colonizado, sempre foi a possibilidade de poder econômico do outro, o colonizador. Para que essa relação se mantivesse, a discriminação racial era essencial, tornando-se um meio e não um fim. No caso em questão, como vimos, a colonização portuguesa foi mantida até mesmo depois da instauração da República, quando crescia “a expectativa de que o triunfo republicano não só daria autonomia política a Angola como libertaria das peias dos interesses 75

metropolitanos o potencial económico do território e, não menos importante, irradiaria a ‘luz’ essencial ao progresso da humanidade: a instrução” (NETO, 2010, n.p.). Com o advento do Estado Novo, para fugir à pressão anticolonialista das instâncias internacionais, preferiu-se optar pela terminologia de províncias ultramarinas, em vez da descolonização, que só viria tardiamente após a Revolução dos Cravos, em abril de 1974, já em descompasso em relação aos outros países europeus. Tanto em relação à abolição da escravidão quanto em relação à descolonização, Portugal agiu sempre tardiamente, procurando desesperadamente se manter preso ao passado colonial de uma política de exploração, uma vez que a povoação se revestia da mesma intenção. A exploração não se restringia apenas à apropriação da terra e dos recursos naturais, mas também da mão de obra do nativo, reduzindo-o também a uma propriedade. Não vamos aqui discorrer sobre os conceitos de raça e de racismo que a questão engloba, deixemos isso para a análise de Angola, as ricas-donas, da autora. Vamos nos concentrar na mulher negra e na sua objetificação. De início, é bom esclarecermos que, nos espaços coloniais de escravidão, os corpos de negros e negras eram vistos sob a ótica da capacidade física para exercer o trabalho e produzir resultados positivos sob a ameaça de castigos e punições. Nisso, homens e mulheres escravizadas se igualavam.

Mas as mulheres também sofriam de forma diferente, porque eram vítimas de abuso sexual e outros maus-tratos bárbaros que só poderiam ser infligidos a elas. A postura dos senhores em relação às escravas era regida pela conveniência: quando era lucrativo explorá-las como se fossem homens, eram vistas como desprovidas de gênero; mas, quando podiam ser exploradas, punidas e reprimidas de modo cabíveis apenas às mulheres, elas eram reduzidas exclusivamente à sua condição de fêmeas (DAVIS, 2016, p. 19).

No tocante à sua condição de fêmea, na escrava também se explorava a capacidade reprodutiva de gerar novos corpos para o trabalho ou para a venda, gerando lucros. Se esses corpos, em alguns casos, fossem dos senhores de escravos, ainda assim, eram tidos apenas como produtos. “Afinal, homens, mulheres e crianças eram igualmente ‘provedores’ para a classe proprietária de mão de obra escrava” (DAVIS, 2016, p. 20). Comparando a época do comércio escravista português com a sociedade racista do Estado Novo, vemos que a distância temporal e de pensamento é mínima ou quase nula. Na província ultramarina de Angola, constante na memória da narradora de A sombra do imbondeiro (2012), por um lado, a escravidão tinha sido abolida na teoria, mas ainda existia na prática, por meio do trabalho forçado; e, por outro, a discriminação racial se fazia 76

especialmente presente por meio de uma política de embranquecimento, cujo propósito era prover privilégios a uma minoria branca, enquanto exterminava a maioria negra, utilizando-se de inúmeros artifícios de desumanização e de pauperização. Nesta sociedade racista, o negro e a negra, categorizados como não-cidadãos portugueses dentro da terminologia do Indigenato, ainda eram propriedades do branco e seus descendentes, uma anomalia decorrente de uma degenerativa mestiçagem. Daí, a rejeição de João Fernandes ao filho bastardo que trazia no sangue a raça negra por conta da mãe progenitora. Ademais, nesta mesma sociedade de lugares estabelecidos racialmente, serviam da mesma forma as palavras de Freyre (2003, p. 71-2) em relação ao Brasil ao dizer que “a mulher morena tem sido a preferida dos portugueses para o amor, pelo menos para o amor físico” e onde era frequente o ditado: “‘Branca para casar, mulata para f..., negra para trabalhar’; ditado em que se sente, ao lado do convencionalismo social da superioridade da mulher branca e da inferioridade da preta, a preferência sexual pela mulata”. O mito de que os portugueses seriam miscigenadores natos colabora para que lhes seja atribuído a invenção do mulato. Segundo Pinto (2018, p. 36),

[...] o mulato [...] à luz desta nova concepção, passaria de ser híbrido e degenerado – conforme a terminologia, alusiva a mula, indica – a objeto de atração sexual e sensualidade, sobretudo se do sexo feminino (a mulata), e a instrumento de uma operação de ‘branqueamento’ dos povos (a expressão mais popular em Angola é ‘apuramento da raça’) que, em substância, não difere nem deixa de servir o propósito preconizado pelas teses eugenistas do conde de Gobineau no século XIX.

Em A sombra do imbondeiro (2012), vimos como as lavandeiras negras na Fazenda Elisa foram admiradas por Isabel por sua força física apta ao trabalho duro. A autora talvez não se lembre que, nas sociedades escravistas ou nas que mantiveram este sistema sob outras configurações como aconteceu na do Estado Novo português, as mulheres negras não eram dispensadas do trabalho por estarem grávidas ou com filhos pequenos. De acordo com Davis (2016, p. 21):

Obviamente, os proprietários buscavam garantir que suas ‘reprodutoras’ dessem à luz tantas vezes quantas fosse biologicamente possível. Mas não iam tão longe a ponto de isentar do trabalho na lavoura as mulheres grávidas ou as mães com crianças no colo. Enquanto muitas mães eram forçadas a deixar os bebês deitados no chão perto da área em que trabalhavam, outras se recusavam a deixá-los sozinhos e tentavam normalmente com eles presos às costas.

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Por outro lado, nos concursos de miss em Luanda, é a morena (a mulata) que se destaca por sua beleza ‘exótica’ e por sua volúpia, como enfatiza grotescamente João Fernandes ao falar dos atributos sexuais de Fátima. Bina era a esposa branca, aceita como exemplar da superioridade portuguesa, já Fátima era a mulata ‘boa de cama’. A esposa, responsável pelo sucesso do marido, até aceitava como natural as escapulidas sexuais dele com a mulata, objeto sexual do marido, mas não aceitaria um fruto ‘degenerativo’ de tal relação. De acordo com Pinto (2018, p. 36), “Sendo multirracial e pluricontinental, Portugal teria toda a legitimidade para colonizar, não apenas com a cruz ou com a espada, como outrora, mas preferencialmente com o sexo”. João Fernandes, como um legítimo português, não escapava de incorporar esse discurso como verdadeiro, colhendo o direito de colonizar a mulata. É interessante que, no episódio de Fátima, a narradora traga a presença de Cristóvão, contínuo da administração do Notícia e zelador do apartamento de João Fernando, e de uma “funcionária mulata, bastante simpática” que recebeu Isabel para “ouvir as suas declarações” sobre o assassinato de Fátima, quando em uma das idas à Polícia Judiciária para prestar depoimento e desmaiou em decorrência da gravidez de risco. A presença desses sujeitos-personagens, ainda que mínima, não parece aleatória, pois dão ao episódio uma suavização às ações de Isabel. Se, de um lado, ela se mostrou conivente com o assassinato de Fátima, escondendo relatos, documentos e fotos que pudessem incriminar João Fernando a ponto de ela própria ser incriminada; por outro, teremos Cristóvão e a funcionária da PJ que, negro e mulata, mais próximos racialmente de Fátima, não tiveram a sensibilidade de se opor ou se indignar ao ato nem de Isabel e nem de João Fernando. O assassinato de Fátima foi a eliminação de um incômodo, tanto pela amplitude da relação com João Fernando, ocasionando uma gravidez e que poderia dar em outra, pois, ao que parece, Fátima, assim como a Mayotte de Fanon (2008, p. 54), se negava a perder o “pouco de brancura na vida” (FANON, 2008, p. 54), proporcionada pelo amante; quanto pelo risco que isso acarretaria aos seus negócios, tendo em vista a influência de Bina, a esposa, no sucesso profissional do marido. Além do mais, ela era já sem ‘utilidade’ para suprir os desejos sexuais de João Fernando. A morte dela parece ter sido obra dele, pois tudo apontava para um ato premeditado: a construção do álibi perfeito com a viagem ao congresso; a suposta participação de Tainá e talvez de Cristóvão também para atrair Fátima ao apartamento e para manter o corpo por longo tempo nele sem que ninguém notasse; a compra da arma no nome de Isabel, alegando morar perto da “bandidagem” do musseque Prenda e a ordem para fazer desaparecer qualquer 78

indício que apontasse seu relacionamento com Fátima. Houve provavelmente também uma primeira tentativa de assassinato com o aborto feito pela parteira Maria Elisa que fugiu para Portugal sem prestar depoimentos. Por último, há talvez a participação das próprias autoridades coloniais para jogar o ‘incômodo’ do assassinato de Fátima para ‘debaixo do tapete’, tendo em vista a condição tripla de inferioridade (racial, social e de gênero) da vítima perante o réu. Não podemos deixar de acentuar também a indiferença de Isabel (da protagonista) ou talvez a participação dela no crime. Mas, nem só de indiferença vivia a protagonista, ela compartilhava também de uma falácia peculiar à época e que a nós, brasileiros, é bem familiar: a democracia racial. Não são raros os momentos em que a narradora descreve as relações raciais em Angola como sendo de uma total comunhão entre as raças. Freyre (2003, p. 116) descrevia a formação da sociedade brasileira como decorrente de “um processo de equilíbrio de antagonismos”, sendo que o predomínio maior desse processo se dava no antagonismo entre senhor e escravo. Essa ausência de conflitos, inerente à cultura brasileira, na concepção do sociólogo, era proveniente de uma herança colonial cujas marcas eram a capacidade de adaptação e uma tendência à hibridização. Tal entendimento parece se estender à colonização portuguesa em outros territórios coloniais, como é o caso de Angola. Corrobora com isso, o convite feito em 1951 do então ministro das colônias portuguesas ao sociólogo brasileiro Gilberto Freyre para “visitar a Guiné, Cabo Verde, Angola, Moçambique e Índia” com o intuito de propagar uma das ideias correntes em sua obra, Casa-Grande & Senzala, e já banalizada no Brasil, “a de que os portugueses, ao contrário dos outros europeus, se misturariam com outras ‘raças’ com enorme facilidade, adaptando-se espontânea e voluptuosamente à vida nos trópicos” (PINTO, 2018, p. 36). Em 1962, Isabel ainda morava com os pais e se mudava com eles para um edifício na Avenida dos Combatentes, que, de acordo com a narradora de A sombra do imbondeiro, “era um pequeno mundo dentro de uma grande cidade” (VALADÃO, 2012, p. 129), por nela conter tudo que se precisasse sem que fosse necessário se deslocar à Baixa. “Naquela época, o convívio entre as pessoas de todas as cores continuava a ser uma constante, fosse no mato ou na cidade. Fazia parte da natureza dos angolanos e, muito particularmente, dos luandenses, aquela quente e calorosa camaradagem, só possível em terras de África” (VALADÃO, 2012, p. 130). Todavia, nesse ambiente de um convívio harmonioso entre pessoas de todas as cores, fica explícito o realce descritivo da narradora ao padrão e à ideologia europeus. Os Penha 79

Rodrigues, família que foi morar ao lado de Isabel, tinham três filhos, dos quais dois rapazes, “extremamente populares [...], lindos, loiros e de olhos claros, que eram uma simbiose de verde e de castanho, herdados da mãe. Eram, ainda por cima, fisicamente bem constituídos” (VALADÃO, 2012, p. 131). Os dois, segundo a narradora, faziam sucesso entre o sexo feminino nas festinhas e bailes que promoviam. Nestes, entre os rapazes, quem fazia sucesso e roubava atenções eram as irmãs Diana e Winnie, havendo até competição para dançarem com elas. Estas eram de nacionalidade belga, loiras e desinibidas. Percebemos que o padrão europeu é colocado como superior e a ideologia europeia permeia a fala da narradora que, ainda assim, nega que houvesse em Angola, particularmente em Luanda, uma barreira racial. No entanto, era visível a presença dos brancos em lugares de destaque e a presença dos negros em lugares de exclusão e marginalidade. Em 1959, por exemplo, a narradora registra a existência de uma prisão em frente à casa onde Isabel morava na época, localiza à rua D. João II. Segundo ela, da prisão, “construída por edifícios pintados de amarelo compridos, construídos em adobe, com coberturas de zinco [...], Isabel, cujo quarto ficava na parte da frente da casa, costumava ouvir as vozes dos prisioneiros, que eram todos negros” (VALADÃO, 2012, p. 116, grifo nosso). Em 1961, um ano antes da Avenida dos Combatentes, os sons das revoltas em favor da independência já atingiam a cidade de Luanda e provocavam tumulto e mortes, fazendo emergir os conflitos sociais e raciais da sociedade luandense e o sentimento de insatisfação de um incipiente nacionalismo, embora, no universo escolar da adolescente Isabel, a vida continuasse “sem grandes tensões” (VALADÃO, 2012, p. 124) e as preocupações e resoluções políticas, assim como o futuro de Angola eram deixados a cargo dos adultos. Todavia, na concepção de Waals (2015, p. 116), “Angola já estava pronta para a insurreição em começos de 1961”, pois “do ponto de vista dos africanos acumulavam-se muitas injustiças para serem rectificadas e muitas reclamações de longa data”, sem quaisquer perspectivas de serem ouvidas e/ou atendidas. Tais como: trabalho forçado, desemprego generalizado, cobrança cruel de impostos, discriminação racial, educação e assistência social deficitárias, arrogância geral, repressão administrativa e sinais de uma emancipação política. Onze anos depois, em 1972, já casada com Guilherme e ainda trabalhando no Notícia, Isabel faz duas viagens com o marido e a filha Margarida no carro do casal, o belo Alfa Romeo GT Junior 1600, sem muitas preocupações com o rumo de Angola. Em 1974, as agitações em torno da luta pela independência começaram a incomodá-la. Nesse tempo, a segunda filha do casal nascia em meio ao palco das revoltas dos movimentos de libertação 80

(MPLA, FNLA e UNITA19) em Angola e da conhecida Revolução dos Cravos em Portugal, ocorrida no dia 25 de Abril. De acordo com a narradora, a FNLA era mais tribalista por herança das etnias da antiga UPA; a UNITA tinha um tom mais pacificador, mantendo-se à parte do conflito, enquanto os outros dois movimentos, ferozes rivais desde o início de suas formações, confrontavam-se; a MPLA, formada em grande parte por elites crioulas era o movimento que, de início, “trouxera maior esperança para a integração de todos os angolanos” (VALADÃO, 2012, p. 194). Não é nosso interesse fazermos um apanhado dos conflitos e guerras que se sucederam entre os movimentos de libertação em Angola e entre Angola e Portugal. Resta sabermos que, para Portugal, conforme Roani (2004, p. 16), “o 25 de abril transformou a vida de todos os portugueses, modificando as instituições sociais e, sobretudo, influenciando o âmbito artístico lusitano”. Para Angola, houve o conflito entre os três movimentos independentistas pelo poder político que resultou, segundo Waals (2015, p. 417), “em uma sangrenta guerra civil” que teve início em 1975, com conciliações somente em 2002. No que concerne a Isabel, de início, houve a contestação de que as “revoluções trazem mudanças nem sempre pacíficas” e a ameaça ao futuro da família em Angola, tendo que talvez abandoná-la (VALADÃO, 2012, p. 184) e, por fim, a realidade da expulsão em 1975, em decorrência da guerra de independência, tendo que retornar a Portugal. Isabel foi a primeira a sair de Luanda, com a filha mais velha em direção a Joanesburgo, na África do Sul, onde a filha seria tratada de tuberculose óssea. Do avião que sobrevoava a baía de Luanda, Isabel teve a repentina impressão de que seria talvez a última vez que veria aquela paisagem da baía e o pânico se instalou em seu coração. “Era um adeus que fazia àquela terra, no seu pensamento, numa insólita intimidade entre si e o seu passado, ali revivido fugazmente e em privado” (VALADÃO, 2012, p. 203).

19 MPLA – Movimento Popular para a Libertação dos Povos de Angola, fundado em Dezembro de 1956, resultaria da fusão do PLUA, Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola (1953) com o PCA, Partido Comunista de Angola (1955), organizações políticas clandestinas criadas por angolanos que tinham acedido ao estatuto de assimilados. O MPLA foi, desde o primeiro momento, uma organização nacional e, ainda que a sua base de apoio tenha sido a etnia Mbundu, que se estendia a Luanda e Malanje, contou sempre com apoios noutros grupos tribais, elementos da pequena burguesia negra e mestiça e dos sectores operários. A sua ideologia evidenciou-se, com o tempo, de raiz marxista. Era liderado por Agostinho Neto (VALADÃO, 2012, p. 249, As Raízes dos Acontecimentos de 1961, nos anexos). FNLA – Frente Nacional de Libertação de Angola, criado em 1962, era fruto da junção da União das Populações de Angola (UPA), cujo líder era Holden Roberto e que depois se tornaria o principal nome da FNLA, com o Partido Democrático de Angola (PDA). Usava a bandeira racial, anticomunista e nacionalista, declarando-se contra os brancos portugueses (SILVA, 2018, p. 5). UNITA – União Nacional para a Independência Total de Angola, foi fundada em 1964, mas só aderiu à luta armada em 1966, sob o comando de Jonas Savimbi. Os principais componentes da UNITA eram das etnias do sul – Ngangela, Chokwe e Ovimbundu. Com base na Zâmbia, visava o apoio popular e a mobilização das massas, mas era militarmente muito fraca. Embora se declarasse maoísta, alterava sua posição ideológica de acordo com o apoio externo recebido (SILVA, 2018, p. 7). 81

Guilherme Valadão, o marido, saiu às pressas e fugido de Luanda, sob a denúncia de ser “militante da Revolta Activa”, definida como “um sonho [...] [de] muitos angolanos de alma e coração” que passaria para as “mãos dos comunistas”, cuja intenção era “não deixar ninguém vivo para lhes fazer sombra”. O Alfa Romeo vermelho do casal, “o orgulho de Isabel”, foi vendido “por uma ninharia” para que custeasse a fuga de Luanda em direção à Joanesburgo, onde Isabel e a as duas filhas estavam. A filha mais nova tinha ido antes com o casal António e Graça. “Doía-lhe o coração por abandonar a cidade onde havia sido tão feliz, onde conhecera Isabel, onde tinham casado e onde tinham nascido as duas filhas, mas não queria tornar-se em mais um mártir. Ainda não tinha chegado sua hora” (VALADÃO, 2012, p. 207-9). Marques (2013) relata alguns acontecimentos daquele ano de 1975 em relação à expulsão dos portugueses, diante dos ânimos acirrados dos angolanos.

Os portugueses eram personae non gratae para todos os Movimentos. Aos automobilistas que circulavam na estrada de Catete era-lhes apontada uma arma à cabeça ‘quando os pedidos de boleia para os seus familiares não eram satisfeitos’. O incitamento à expulsão do branco era transversal e acolhido pelos africanos mais carenciados, aos quais era garantido que, com a partida dos colonos, poderiam ficar com tudo o que lhes pertencia. No seu programa radiofônico, a FNLA dizia que os portugueses não passavam de uns ‘esclavagistas e miseráveis. Entre os colonizadores eram os piores’. Em Salazar, um apoiante do ENLA20 roubara uma caçadeira e duas carabinas da residência da fazenda Bananeira: matou de seguida o proprietário, a mulher e a irmã deste. Em Quimbele, um outro militar deste movimento violara uma jovem de 16 anos ‘quando foi detida para averiguações’. No Novo Redondo, uma regente agrícola também tinha sido detido por passar por cima de uns panfletos e uma menor branca submetida a ‘um interrogatório violento’ numa das delegações da FNLA (MARQUES, 2013, p. 250).

Entretanto, o livro de Alexandra Marques, Segredos da Descolonização de Angola, precisa ser lido com certa cautela, tendo em vista que se coloca como “segredos sobre a descolonização de Angola [que] não foram revelados ao público decorridos quase 40 anos a independência da que era a maior e a mais rica colónia africana do império português”, descobertos em arquivos militares sobre “a situação político-militar em Angola durante a transição para a independência, por aqueles que nela participaram”. A própria historiadora atenta para as fontes documentais e humanas consultadas, dizendo que elas “reflectem interesses e pontos de vista (de índole pessoal, corporativa ou ideológica) associados à conjuntura da época” (MARQUES, 2013, p. 13).

20 De acordo com Marques (2013), sigla para Exército de Libertação Nacional de Angola, pertencente à FNLA. 82

Considerando o relato de Marques (2013), a saída de Angola se fazia urgente para os portugueses, assim como para a família de Isabel que ainda tentou refazer a vida na África do Sul, mas o processo foi “lento e doloroso”. Guilherme, com as cartas de recomendações que recebeu, conseguiu emprego na Philips, como Internal Auditor e Isabel ficou com os serviços domésticos e o cuidado das filhas. “Tal como muitos outros portugueses que se tinham refugiado na África do Sul, era necessário começar tudo do zero. Tinham deixado tudo em Angola” (VALADÃO, 2012, p. 210). Para completar, Margarida, a mãe de Isabel, encontrava-se em um processo de Alzheimer. O pai, que Isabel descobrira ter tido vários casos extraconjugais e um filho de outro relacionamento, recusava-se a deixar Luanda por causa de um caso com uma militante do MPLA, “uma mulata, muitos anos mais nova do que ele e filha de um seu amigo de Luanda”. Isabel, no entanto, não culpava o pai pela doença da mãe, pois estava convencida de que o início da doença dela era decorrente da “fuga de Angola” e da “perda de todas suas referências de vida, a estabilidade que haviam conseguido ao fim de muitos anos de trabalho e sacrifícios”. O pai, vindo à África do Sul foi impedido de voltar à Angola e ficou novamente com sua antiga família. A doença de Margarida gradativamente a consumiria num percurso que levaria doze anos. Nestes anos, Isabel e a família abandonariam a África do Sul, cogitariam ir para o Brasil, mas acabariam se decidindo pelo retorno a Portugal para depois irem constituindo aos poucos novamente suas vidas (VALADÃO, 2012, p. 213-5). A volta a Portugal, em 1976, foi em um voo lotado. Quando aterrissaram, encontraram um aeroporto mais lotado ainda de “desalojados das ex-colónias, os retornados, segundo a nova denominação que lhes fora atribuída, e que continuavam a desaguar na Metrópole transportadas pela ponte aérea que começara em Julho de 1975”. A narradora relata que os portugueses que chegavam aos montes encontravam-se tão abandonados quanto em Angola, “pela tropa que não os defendia e pelo MFA [Movimento das Forças Armadas], que decidira tomar o partido de um dos movimentos de libertação” (VALADÃO, 2012, p. 220). Ao contrário de Isabel, conforme Dacosta (2013), muitos daqueles que retornaram a Portugal abandonaram África a bordo de embarcações minúsculas. O álcool era o único lenitivo na viagem marítima, em que a fome, as doenças e o frio eram uma constante assim como as intempéries do mar. A zona de Lagos, em Portugal, eleita pelo Infante D. Henrique, no início de sua gigantesca aventura marítima rumo aos ‘descobrimentos’, era o principal destino desses retornados, cujas embarcações em nada se assemelhavam à do Infante. Por outro lado, entendemos que tais embarcações e os percalços nelas sofridos nem de longe 83

podem ser comparados ao transporte de africanos como escravos nos navios negreiros por sob o Atlântico. De acordo com Dacosta (2013), daqueles que se aventuraram na fuga em pequenas embarcações, alguns tomaram o rumo de Portugal; outros, do Brasil que era mais perto e houve aqueles que não chegaram a destino algum, tendo encontrado morada no mar. Contrapondo-se à rota pelo mar, alguns, com mais sorte, como acreditamos ter sido o caso de Isabel, conseguiram voltar de avião, mas sob o mesmo misto de desespero e desamparo que acompanharam aqueles por sobre o mar. Para auxiliar os retornados, segundo o romance autobiográfico de Valadão (2012, p. 220), o governo português havia criado IARN (Instituto de Apoio aos Retornados Nacionais), cuja função era receber os retornados, dar apoio monetário e encontrar alojamentos. O fenômeno da vinda dos portugueses residentes em África, nos anos de 1974 e 1975, é considerado por Dacosta (2013) como “um dos êxodos mais trágicos do Ocidente”. De acordo com o autor,

No passado, centenas de milhar de pessoas foram, na sequência da descolonização, deslocadas das suas terras ultramarinas (muitas não retornaram, pelo que a palavra ‘retornado’ é desajustada) para a até aí designada Metrópole. Gente na sua maioria empreendedora e persistente, ousada e determinada, depressa revitalizaria os locais e os setores onde se fixou, mudando Portugal como jamais acontecera na sua longa história (DACOSTA, 2013, p. 9).

Do ponto de vista de Dacosta (2013), o espírito de luta dos denominados ‘retornados’ foi fundamental para modificar o cenário português que se encontrava fragilizado após o regime salazarista que culminou na Revolução dos Cravos, em 1974, destituindo o poder estabelecido até então. A trajetória de Isabel e da família após o retorno pode assim ser entendido. Isabel, Fernando e as filhas pretendiam ficar por uns tempos na casa de uma prima, a Maria Odete, e do marido dela, o Eduardo. Recebidos com alguma cordialidade pela prima e um pouco friamente pelo marido dela, seria lá que ouviriam de Eduardo as mais duras palavras e que, de certa forma, representavam o pensamento da maioria dos portugueses que recebiam aqueles que denominavam de retornados. Após serem questionados se já haviam arranjado lugar para ficar e terem respondido negativamente, inclusive, pedindo a compreensão e apoio do casal, como se percebe no seguinte diálogo:

84

— Lamento muito pela vossa situação, mas, na verdade, vocês tiveram o que mereciam! O seu tom era de censura. — Não percebo! — Guilherme estava agora na defensiva. — O que é que nós fizemos para merecer que nos expulsassem da nossa terra? — Aquela nunca foi a vossa terra, mas sim dos negros que sempre lá viveram e que todos vocês, colonialistas, exploraram! ‘Colonialistas’... ali estava, o chavão que mais se ouvira a seguir ao 25 de Abril, aplicado aos milhares de refugiados, de todas as raças e cores, que desaguavam em Portugal, a maioria, apenas com as roupas que levavam no corpo. Antes da Revolução dos Cravos, soubera sempre bem à Metrópole os lucros e as riquezas que os territórios africanos para ali canalizavam. Os metropolitanos gostavam de fazer vista de ricos, quando viajavam até Angola ou Moçambique, em férias ou em comissões de serviço pagas a peso de ouro, mas, agora que a teta tinha secado, era uma chatice de todo o tamanho ter de levar com os ex-‘colonialistas’ em cima! Vinham ameaçar os postos de trabalho, tirar o pão da boca dos filhos, conspurcar com os seus hábitos e cheiros tropicais a Pátria lusa! (VALADÃO, 2012, p. 222-3, grifo da autora).

Depois dessa desconfortável troca de palavras, Isabel e a família, junto com os pais de Isabel, encontram um alojamento conhecido como a Casa da Condessa. O lugar era uma espécie de comunidade de retornados, composta por portugueses ou luso-africanos de vários cantos das províncias ultramarinas e de vários extratos sociais. Isabel via, nessa comunidade, o fortalecimento de uma solidariedade, “já típica dos africanos de qualquer cor [...]. Todos eles haviam perdido, material e espiritualmente, as suas referências, sentiam-se apátridas e, pior do que isso, indesejados, numa terra desconhecida para a maior parte deles”. Uma proposta de trabalho dada a Fernando faz com que todos sigam para Cascais, onde ficaram em outro alojamento, a Casa da Piscina, e onde Isabel conseguiu ficar em um quarto sozinha com a família. O convite feito a Guilherme para abrir um escritório imobiliário em Oeiras leva todos a um apartamento em Santo Amaro de Oeiras, onde as filhas de Isabel puderam finalmente ir à escola, mas ainda se sentiam estranhos em Portugal, embora a situação deles já começasse a melhorar. Ao observar o estado de demência da mãe, acometida pelo Alzheimer, nasce em Isabel o desejo de um dia escrever sobre “as memórias de tempos felizes e da maravilhosa viagem que, com seus pais, havia empreendido naquele longínquo ano de 1951” (VALADÃO, 2012, p. 235). A intenção era que essas memórias não se perdessem como as memórias de sua mãe e pudessem ser repassadas para seus descendentes, imortalizando-as, mais tarde, em 2012, em A sombra do imbondeiro: estórias e memórias de África. 85

A autora Isabel Valadão é hoje uma escritora que tem Angola como chão e calha de suas obras, com raras exceções como é o caso de Rio das Pérolas, de 2017. Entre suas obras, temos a aqui analisada e Angola, as ricas-donas, de 2014, sobre a qual ainda falaremos. O marido, Guilherme Valadão, também é escritor. Atualmente, eles possuem uma vida estável e um padrão de vida talvez melhor daquele que tinham em Angola, mas certamente a trilha até aqui foi difícil depois da saída de Angola. Alguns retornados tiveram igual sorte, outros mais, outros menos e a alguns ela faltou. Não sei se podemos chamar de sorte, mas usaremos o termo como substituto para as inúmeras circunstâncias apresentadas a cada um deles.

Refeitos os bocados de cada um, ergueram-se e atiraram-se em frente. Emergiram em pequenos grupos por todo o país e, em pequenas ocupações, por todos os sectores. Como novos bandeirantes, colonos uma vez mais, foram para o interior carregando cóleras e pânicos, vinganças e ousadias. A sua cólera foi a sua força: fê-los mover montanhas, dominar medos, vencer a loucura e o desamor. E dar provas espantosas de coragem e engenho. Com ajudas de instituições, de subsídios, de empréstimos, de familiares, de amigos, fixaram-se e transformaram os locais onde se detiveram. Chamaram-lhes retornados, impropriamente, porém, pois muitos nunca haviam estado, sequer, na Metrópole (DACOSTA, 2013, p. 15-6).

A chegada a Portugal não representou uma recepção calorosa. João de Almeida, que nasceu em Porto em 1925 – sendo, portanto, português de origem, e que foi para Moçamedes em 1960, fixando-se lá como mestre de estaleiros – relata a Dacosta (2013, p. 14) que, por um período de mais de dois anos, trabalhou incessantemente até que obtivesse reconhecimento e aceitação por parte dos portugueses. Para ele, Angola deixou em si o sentimento de pertença pela chegada e o de melancolia pela partida. Em Portugal, encontraram um país quase que despovoado. A emigração e o exílio, principalmente da década de 1960, advindos das repercussões do regime salazarista, deixara o país coberto por “deserções e decrepitudes a viver das mesadas dos emigrantes e dos militares e das gorjetas dos turistas” (DACOSTA, 2013, p. 16). A saída para os retornados foi tentar reconstituir, paradoxalmente, em Portugal, os fulgores da terra que deixaram para trás. Se em África, a intenção era construir uma nova Portugal; no retorno, o desejo se inverteu no sentido de africanizar Portugal. Todavia, na África portuguesa, diferente da nação portuguesa que os retornados encontraram, os colonos dispunham de riqueza, de abundância e de uma solicitude de recursos e mão de obra sem limites. Lá, “Um homem tinha, se quisesse, a dimensão de um criador” 86

(DACOSTA, 2013, p. 16). O retorno a Portugal mostrou um cenário bem diferente e catastrófico. Acreditamos que não seja estranho, portanto, que os portugueses retornados se encontrassem deslocados, como usurpados de seu trono de reis e como que jogados nos porões de navios negreiros, uma vez que se viam como submissos e incertos sobre a existência ou não de um futuro, ainda que a comparação pareça absurda aqui, tendo em vista o genocídio praticado contra os africanos cativos e escravizados. A forte possibilidade de os retornados terem sido expulsos de África sem lucros, pelo menos em sua maioria, não lhes retira a mácula de terem sido eles colonialistas que se beneficiaram amplamente da mão de obra escrava nos denominados territórios ultramarinos, Portugal em além-mar. Mas também isso não faz deles uma espécie de ‘bode expiatório’ de todos os males da colonização, afinal os que foram e os que ficaram tiveram sua parcela de culpa. No retorno, eles sofreram preconceitos, foram vistos com desconfiança e acusados de aumentarem o custo de vida de Portugal e de adquirirem benefícios do governo, além de retirarem os empregos dos que não emigraram. Por um lado, é inegável que tais preconceitos se devam à percepção de que parte dos retornados não eram portugueses e sim africanos de origem e que, outros tantos, já carregavam no sangue e/ou na constituição familiar os genes da mistura de raças. Por outro, é inegável também que a maior parte dos retornados fortaleceram a economia fragilizada de Portugal com sua chegada e impulsionaram o país com mão de obra especializada, angariando os melhores postos de trabalho. Logo prosperaram e a perda que tiveram foi revestida de um saudosismo de uma terra próspera, a Terra Prometida que deixaram, principalmente no que concerne à segunda leva de retornados. Embora, é claro, isso não se aplique a todos os retornados, pois houve aqueles que amargaram dificuldades e inadaptações, como foi o caso daqueles que perderam a nacionalidade portuguesa com a independência das colônias. “Sem pátria, sem ajudas, viram-se estrangeiros na sua terra, na sua língua, nos seus sentimentos”, relata Dacosta (2013, p. 74). Segundo Morrison (2019, p. 47), há no colonizador branco uma “necessidade de transformar o escravizado numa espécie estrangeira”, numa “tentativa desesperada de confirmar a si mesmo como normal. A urgência em distinguir quem pertence à raça humana e quem decididamente não é humano é tão potente que o foco se desloca e mira não o objeto da degradação, mas seu criador”. Em outras palavras, há um desvio para o branco que requer se definir como o elemento superior dessa oposição, mostrando quem é que manda e quem tem poder. Para isso, ele precisa definir o outro como estrangeiro, negando-se, conforme Morrison 87

(2019, p. 48), ao risco de sentir, por ele, empatia; o que o sujeitaria à possibilidade de se tornar também estrangeiro. O sentimento dos portugueses aos seus compatriotas retornados é decorrente desse mesmo risco de se tornar estrangeiro. “Perder o status racializado é perder a própria diferença valorizada e idealizada”. Ainda que pareça redundante, mas podemos dizer que a marca de retornados é o retorno ao colonizado, é o risco de se tornar a espécie estrangeira, de perder a superioridade racial. A (auto)biografia21 de Isabel Valadão é uma forma de verificar o escravizado como essa espécie designada por Morrison (2019). No prefácio de A sombra do imbondeiro (2012), no decorrer da narrativa e no final dela, o alterego da autora enfatiza à exaustão que viveu em Angola os melhores momentos de sua vida. Certamente os viveu, pois a realidade dos acontecimentos numa (auto)biografia é subjetividade em alto grau. No entanto, a maior contribuição das memórias escritas e publicadas da autora é revelar a ideologia colonialista e escravocrata sob a qual construiu sua vida e sobre a qual vivenciou o mundo em Angola, afinal a escrita não vive apenas dos ditos e dos lembrados, mas principalmente dos esquecimentos22. São esses esquecimentos que retornam para assombrar a escrita do outro em releituras e reescritas doutros. Ainda que A sombra do imbondeiro (2012) aponte aproximações em relação ao contato entre povos portugueses e africanos, considerando de início uma relação sem conflitos, numa terra prometida, a história dos retornados mostra o avesso da moeda. É quando o retorno se torna iminente que a democracia racial desmorona mostrando a latência dos conflitos sociais e raciais. Ela ainda considera essa mesma democracia racial entre a comunidade dos retornados, mas a relação aí já é outra; trata-se da solidariedade a um mesmo trauma, a um mesmo preconceito e a um mesmo destino. Esta comunhão se dá em torno de uma mesma designação, os retornados. Não importa de que lugares das colônias eles vieram, a que extrato social pertenciam, se portugueses ‘autênticos’ ou crioulos, importa que todos foram julgados indesejados nas ex-colônias e estrangeiros na terra que lhes deu origem,

21 Referimo-nos à (auto)biografia com auto (eu) entre parênteses, em razão de a obra ser autobiográfica, mas em terceira pessoa. Daí falarmos em alterego narrativo. 22 Quando Foucault (2001, p. 284), em O que é um autor?, fala em instauradores de discursividades, como Freud e Marx, ele concebe o retorno ao ato instaurador desses discursos como só possível, se tiver havido inicialmente “esquecimento, não esquecimento acidental, não encobrimento por alguma incompreensão, mas esquecimento essencial e constitutivo”. O esquecimento que Foucault fala a respeito dos discursos instauradores de Freud e Marx, trata-se daquilo que o discurso deles não deu conta de conter e que emerge a cada releitura e reescrita destes. É a isso que nos referimos ao tratar da obra de Isabel Valadão, como um discurso em que os esquecimentos emergem, como aquilo que foi silenciado ou ficou latente, que não pertence ao dito e nem ao lembrado, mas que permaneceu nas entranhas da escrita. 88

contraindo-os em um povo à parte, flutuando sobre a fronteira de dois mundos, de duas culturas e de uma única designação: os retornados.

3.2 A narradora Eufrozina: pode uma escrava falar? Para Spivak (2010), a concepção de que os subalternos podem saber e falar por si mesmos é uma estratégia política. As instituições, na sua posição de poder, fazem de seus desejos e interesses, os desejos e interesses de outrem. Isso se dá por intermédio da ideologia pela qual operam estas mesmas instituições. Para tanto, há que se valerem de uma violência epistêmica, produzindo um outro a partir da sua condição de sujeito soberano do ocidente como ocorreu, segundo Spivak (2010, p. 47), na constituição do sujeito colonial. No prefácio do livro A Companion to Postcolonial Studies (2000), Spivak assim define o subalterno:

[...] the subaltern ‘is’ not the absolute other. (Nothing) (is) the absolute other. The ‘subaltern’ describes ‘the bottom layers of society constituted by specific modes of exclusion from markets, political-legal representation, and the possibility of full membership in dominant social strata’. (o subalterno não ‘é’ o outro absoluto. (Nada) (é) o outro absoluto. O ‘subalterno’ descreve ‘as camadas inferiores da sociedade constituídas por modos específicos de exclusão do mercado, representação política-jurídica, e a possibilidade de adesão plena a estratos sociais dominantes23) (SPIVAK, 2000, p. XX).

A ideia de ‘outro absoluto’ da autora diz respeito ao conceito de alteridade. Não há alteridade e, consequentemente, identidade, sem a pressuposição de um outro para o qual nos inclinamos e estamos condicionados desde a origem de um ‘eu’. Todavia, esse outro é intraduzível, só concebível a partir de uma experiência ética do impossível, mais aproximada do campo do histórico e do político. Nesse sentido, esse ‘eu’ só é possível através de imagens, de representações. Considerando-se o contexto da produção colonial, conforme Spivak (2010, p. 85), “o subalterno não tem história e nem pode falar, e o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade”. Falar sobre o sujeito subalterno pressupõe, como bem atenta Spivak (2010), falar sobre aquele que o constitui como subalterno, o sujeito imperialista. No prefácio de A Companion to Postcolonial Studies (2000), Spivak elege Carolyn Boyce Davies como a intelectual que melhor aprendeu o sentido de seu ensaio Pode o

23 Tradução de Fabrício Delano Pereira de Sousa – graduando do último período de Bacharelado em Engenharia Mecânica da Universidade Federal do Piauí. 89

subalterno falar?. No entender de Davies, “Gayatri Spivak addressed the way the ‘subaltern’ woman as subject is already positioned, represented, spoken for or constructed as absent or silent or not listened to in a variety of discourses. Her speech is already represented as non- speech” 24 (DAVIES apud SPIVAK, 2000, p. XX). Para Spivak (2000, p. XX), seu ensaio não é sobre colonialismo, mas sobre agenciamento institucionalizado, a possibilidade de falar pelo outro, constituindo-o como o outro. Ou seja, representando-o a partir de desejos, interesses e subjetividades específicas. É sob essa perspectiva que retomamos ao título do ensaio de Spivak (2010) em Angola, as ricas, donas, de Isabel Valadão, questionando sobre a narradora do romance: pode uma escrava falar? A escrita do romance de Isabel Valadão é, em meados do século XXI, em Portugal, mas o contexto narrativo dele compreende mais da metade do século XIX e em território colonial. Eufrozina, uma escrava, mesmo na condição de narradora, não deixa de ser submissa e de falar segundo o ponto de vista do colonizador, em especial da mulher branca, pois, no contexto em que vive, apenas o discurso do branco é permitido. Ela realmente está presente em todos os espaços sociais e políticos em que sua ama está; é conhecedora de todos os mecanismos e atitudes daqueles que compõem a alta sociedade luandense da época; está ciente dos acontecimentos na metrópole e no Brasil; além de fazer parte dos eventos que ocorrem na alta sociedade, mas Eufrozina também está ciente de sua condição, como afirma: “Nessa noite, como sempre, Dona Anna não prescindiu da minha companhia, apagada, como me competia, discreta na minha humilde condição de escrava com o estatuto de dama de companhia” (VALADÃO, 2014, p. 121). A inserção no meio da elite local de Luanda, como vimos, decorria da servidão que Eufrozina devia a Dona Anna Joaquina, sendo obrigada a acompanhá-la em todos os lugares. Em vários momentos da trama, isso é reiterado: “afinal, daquela festa eu seria apenas uma humilde e silenciosa testemunha das alegrias dos seus participantes” (VALADÃO, 2014, p. 84). A presença imperceptível da escrava possibilitava que ela estivesse ciente até mesmo das mais íntimas confidências que eram escutadas atrás da porta, relatadas por Dona Anna ou ouvidas sem que ninguém desse por sua presença. Eufrozina estava apta a narrar, mas era mero adereço, apenas um serviçal, ainda que sua ama dissesse ser a escrava sua amiga e confidente. “Do meu lugar observava tudo isto mas nem por isso partilhava daquele ambiente festivo” (idem, p. 114), dizia Eufrozina na festa de comemoração de independência do Brasil.

24 “Gayatri Spivak abordou o modo como a mulher ‘subalterna’ como sujeito já está posicionada, representada, falada ou construída como ausente ou silenciosa ou não ouvida em uma variedade de discursos. Sua fala já é representada como não fala”. (Tradução de Fabrício Delano Pereira de Sousa – Bacharel em Engenharia Mecânica-UFPI). 90

Se, em alguns casos, chegasse a ser percebida por mais alguém neste entorno da elite local, das autoridades portuguesas ou dos estrangeiros que chegavam a Luanda, era por despertar em alguém, geralmente do sexo masculino, o desejo sexual, como foi o caso de Joaquim Ferreira, segundo marido de Dona Anna; ou o preconceito, como foi o caso do médico italiano, Tito Omboni. No mais, nestes lugares da elite, merecia a atenção de outros serviçais como o camareiro do teatro: “conhecedor da minha condição de escrava, mas generoso na condescendência a ponto de me permitir assistir sentada e ser servida como qualquer convidado, certamente em atenção a Dona Anna” (VALADÃO, 2014, p. 192). No primeiro dos quarenta capítulos narrados por Eufrozina, ela assim se descreve:

Eufrozina é o meu nome agora sou liberta, mas já fui uma escrava pertencente a uma das mais ricas senhoras da cidade de Loanda, Dona Anna Joaquina dos Santos e Silva. Num passado distante, antes de ser escrava, fui uma princesa, filha do soba Sabiango, da região do Holo e também uma das consortes e favorita a bansacuco, de um jaga de Kassanje, Malange a Ngonga, cujo nome português era D. Pascoal Rodrigues. Desses tempos, guardo poucas e nem sempre agradáveis recordações, uma vez que ser mulher de um jaga equivale também a um certo tipo de escravidão. Por esse motivo, a minha captura acabaria por constituir uma espécie de libertação (VALADÃO, 2014, p. 32).

Eufrozina recebe este nome quando se torna escrava. Ela narra a história das ricas- donas de Angola após a morte de Dona Anna Joaquina e após ter se tornado parcialmente liberta. Ela recorda o passado anterior à escravidão portuguesa como a saída de uma outra escravidão. Assim, a escravidão atual seria para ela uma espécie de libertação. Da ótica da escrava, isso não parece fazer sentido, mas do ponto de vista da narradora talvez. A lamentação de Eufrozina não se concentra na dominação racial em que se encontra como escrava, mas na dominação de gênero em que se encontrava enquanto mulher do jaga de Kassanje nas terras de sua aldeia. Dessa forma, a impressão que temos é que quem fala não é a narradora, mas a autora transvestida de narradora, pois as questões de gênero, mais propícias a uma mulher branca, e não as de raça, mais adequadas para serem problematizadas pela narradora é que tomam espaço no relato da escravidão portuguesa por parte de quem propriamente sofreu este flagelo e que deveria denunciá-lo ao adquirir o direito de fala. Eufrozina acaba empreendendo uma trajetória própria da mulher europeia, saindo do poder do pai para o do marido e considerando-se livre na ausência do poder patriarcal dos dois. No caso de Eufrozina, essa liberdade implicaria um outro tipo de escravidão, consideravelmente sem comparativo em 91

termos de um patriarcado inerente a uma mulher europeia; o que torna o relato incompatível com a fala da narradora. As questões de gênero talvez importassem sob uma outra perspectiva não ocidental, mas, certamente, não iriam se sobrepor às de ordem racial em um contexto em que africanos eram arrancados do ventre familiar de suas tribos para servirem de escravos, constituindo-se, na história da África negra, um verdadeiro genocídio. Ademais, os costumes africanos designam uma outra configuração, tornando talvez improvável o lamento de Eufrozina diante da condição de princesa ou de ‘bansacuco’, posições de prestígio e de poder que não seriam renegadas em favor de uma vida de escravidão nas mãos do colonizador. Se a poligamia era uma prática que só veio a ser condenada com o contato dos africanos com a cultura portuguesa e com sua subsequente instituição, o catolicismo, devemos considerar também que, nas culturas africanas, a matrilinearidade25 era mais comum, embora já houvesse também uma resistência ocidental a este modelo calcado na figura da mulher. Entretanto, para tornar patente a fala de Eufrozina, confirmando a captura dela como “uma espécie de libertação”, tendo em vista “o certo tipo de escravidão” em que vivia como ‘bansacuco’, Isabel Valadão se funde a um mito português sobre os jagas. O estado de Kassanje era, segundo o narrador do primeiro capítulo do romance, “de fundamental importância económica para a colónia, pela existência daquela feira [de escravos]”, além de “mais forte estado africano” e “aliado poderoso do [governador-geral de Loanda, Fernão António de Noronha]” (VALADÃO, 2014, p. 19). Tudo isso denota a posição social que Eufrozina teria ao lado do jaga Malange a Ngonga, cujos “cerimonial e pompa que o rodeavam eram, quanto a solenidade, dignos de qualquer soberano europeu” (idem, p. 22). Segundo Macedo (2013, p. 54), em 1568, as populações do reino do Congo seriam “atacadas e parcialmente massacras por um grupo nômade de guerreiros que ficaram notabilizados pelo nome de jagas”. O enfrentamento ao ataque só foi possível graças à ajuda de tropas europeias, munidos de armas de fogo. Para Gomes (2019, p. 296), os jagas eram tidos como “uma temida dinastia de guerreiros vindos do atual interior de Angola e descritos pelo viajante Felippo Pigafetta como ‘uma horda feroz, nômade e antropófoga que vivia da guerra e do saque”. No parecer de Macedo (2013, p. 57-8), os jagas constituíam, na imaginação dos portugueses, “as mais grosseiras formas de selvageria”; aptos ao crime, à falsidade, à violência desmedida; eram incontroláveis nos apetites e nos instintos; como

25 No processo de organização social e política dos africanos, a matrilinearidade delegava a mulher poder de comando e decisão. Em função desse modelo de organização a mulher não se limitava a participação no poder ao lado do homem, mas também era quem decidia sobre as questões políticas, administrativas e econômicas. Desta feita, era a responsável direta pelos destinos e manutenção das comunidades tradicionais (CHAGAS, 2011, p. 2). 92

também, praticantes do infanticídio, de sacrifícios humanos e, como dissemos, do canibalismo (antropofagia). A prática do canibalismo é reforçada por Galiano, personagem da narrativa, no capítulo em terceira pessoa, não narrado por Eufrozina:

Normalmente a alimentação dos jagas resumia-se ao consumo de legumes e frutas, e apenas em ocasiões especiais, comiam carne de boi, porco, carneiro e caça e, por vezes, carne humana, como acontecia por altura das cerimônias do tâmbi [cerimônia fúnebre] de um jaga falecido e também nas festividades do sambamento [eleição do novo jaga]. Então sacrificavam um homem, escravo ou não, o nicango [vítima para o sacrifício], que era depois consumido por todos (VALADÃO, 2014, p. 22).

Os jagas se concentravam nas regiões mais afastadas; inclusive, o estado de Kassanje, reino dos jagas, era conhecido por seu difícil acesso. Sobre os jagas havia a peja de mercenários, pois era comum que vendessem suas habilidades de guerrilha e de conhecimento territorial para facilitar a introdução dos portugueses no interior das terras angolanas, tornando-se, assim, fortes aliados dos portugueses. Para estes, os jagas eram a representação dos povos africanos mais afeitos aos antigos costumes e mestres e, por sua vez, os mais distantes do cristianismo. Por isso, eram também os mais propensos a atos de selvageria. Em Angola, as ricas-donas, a narradora reforça as características depreciativas dos jagas, do ponto de vista da cultura europeia, ao relatar ter sido vendida ao jaga de Kassanje por seu pai Sabiango que era aliado do jaga; como também, a preferência do esposo por mulheres jovens como forma de atestar socialmente sua virilidade, associada ao costume dele de substituir a bansacuco por outra, assim que estas mulheres jovens fizessem treze anos de idade. O relato de Eufrozina sobre o jaga de Kassanje denota a presença da autora na voz da narradora. Toda essa mácula que encobria os jagas, acrescida do relato de Eufrozina, dando a entender que a mulher africana era um objeto nas mãos de seu próprio povo são elementos perfeitos para travar uma repulsa aos jagas na narrativa, reforçando no leitor a concepção da autora de que, para Eufrozina, seria mais adequado preferir a escravidão com os portugueses; expondo, assim, este cativeiro como uma espécie de salvação; afinal, dentro de uma lógica colonial, ‘salvar’ os povos selvagens, incivilizados, de si próprios era a missão dos portugueses e o colonialismo deles era certamente o mais benevolente. Como afirmamos antes, quando nos referimos ao conceito de colonialismo português com Boaventura de Sousa Santos e com Gilberto Freyre, não existe colonialismo bom ou 93

mais ou menos ruim. Colonialismo implica sempre uma relação de poder e dominação e está na mesma linha que racismo. Para tanto, Fanon (2008) assim se pronuncia:

Defendamos, de uma vez por todas, o seguinte princípio: uma sociedade é racista ou não o é. Enquanto não compreendermos essa evidência, deixaremos de lado muitos problemas [...]. Pedimos desculpas, mas gostaríamos que aqueles que se encarregam de descrever a colonização lembrem-se de uma coisa: é utópico procurar saber em que um comportamento desumano se diferencia de outro comportamento desumano (FANON, 2008, p. 85).

Não estamos aqui colocando em discussão a cultura africana e a relação dos jagas com suas mulheres, pois isso implica uma problemática a ser discutida dentro campo da própria cultura da qual ela provém, mas a dissolução dela como ocorreu na relação entre colonizados africanos e colonizadores portugueses. Estamos aqui nos referindo ao mito de uma colonização cordial por parte dos portugueses que, em nome de estender seus tentáculos civilizacionais e proliferar sua fé, construiu a ideia de um outro (inferior), contestando-lhe a cultura e ampliando sua força por séculos através de um racismo que persiste e se concentra na escrita de autores cuja linguagem ainda abriga uma literatura colonial. Precisamos seguir o conselho de Fanon (2008) para que tais problemas não continuem a serem deixados de lado. E falando de racismo, há um aspecto de submissão muito forte da narradora em relação à Dona Anna Joaquina que simboliza uma obediência à assimilação da cultura portuguesa:

Ao longo de todos estes anos, fui uma escrava dedicada de minha ama e senhora. Passei de moleca a escrava principal ou mucama, depois a confidente e, por último, a conselheira e amiga, mas sempre sem perder o estatuto de escrava... até há bem pouco tempo, quando finalmente Dona Anna me concedeu a ambicionada carta de alforria. Durante todo este tempo, ela não o fez por recear que, se me devolvesse a liberdade, eu a abandonasse e procurasse outra vida em Angola, como o têm feito centenas dos seus mais de mil escravos. Isso eu nunca faria, pois a ela já havia dedicado, sem qualquer sombra de arrependimento, a minha juventude e os melhores anos da minha vida (VALADÃO, 2014, p. 33).

Dona Anna Joaquina é fruto de uma relação de um homem português e uma mulher africana. Uma paternidade portuguesa era comum a muitos integrantes da sociedade crioula. Segundo Bittencourt (1999, p. 31), essa se consolidou a partir do século XVII, em Angola, e Luanda se constituiria o principal espaço dessa sociedade que encontrava no comércio de escravos sua fonte de enriquecimento econômico e poder político. 94

No ano de 1805, Eufrozina chega à cidade de Luanda, principal porto de escoamento de escravos para o Brasil, “depois de ser capturada, no interior de Angola, subtraída da banza de seu esposo, D. Pascoal Rodrigues, o jaga de Kassanje, por militares portugueses, durante uma noite de festa e libações” (VALADÃO, 2014, p. 33) e ser entregue ao domínio de um sertanejo brasileiro da região de Ambaka. Seu destino, assim como de outros cativos, seria a casa de um “dos grandes negociantes negreiros para quem o sertanejo trabalhava como aviado” (idem, p. 35). No caso, o pai de Dona Anna Joaquina. Por ser a cativa mais jovem entre os capturados, foi escolhida para o serviço doméstico na casa desse negociante negreiro, tornando-se “moleca da menina da casa, Dona Anna Joaquina, uma jovem crioula alguns anos mais velha” que Eufrozina, descrita pela narradora como “riquíssima e poderosa e de uma beleza” jamais vista “em nenhuma outra mulher da minha cor”; ou seja, da cor de Eufrozina. Para a narradora, a pele de Anna Joaquina era mais clara, próxima “a de alguns pumbeiros da feira de Kassanje a quem chamavam de ‘pardos’, tinha olhos escuros, quase negros, e cabelo castanho muito escuro, farto e volumoso, ligeiramente encrespado e sedoso”, os quais eram submetidos ao truque do ferro quente para torná-los mais liso (VALADÃO, 2014, p. 33-6). No dizer de Oliveira (2018, p. 448), em uma “sociedade luso-africana e escravocrata, elementos como descendência portuguesa, posse de bens e adesão à cultura lusa conferiam prestígio e determinavam trajetórias pessoais de mulheres livres e escravizadas”. Esta era a relação entre Dona Anna Joaquina e Eufrozina. À medida que ambas cresciam, esta última passaria de moleca à conselheira e amiga, no entender da narradora, todavia “sem perder o estatuto de escrava” (idem), como consta no excerto acima. Como filha da elite luso-africana, a primeira era reconhecida desde a infância como ‘dona’, externando sua posição social e econômica que incluía o acúmulo de “escravos, terras e objetos de luxo” (idem), adquiridos, no decorrer do tempo, “através de heranças e da participação no comércio local e de longa distância como mercadoras e intermediárias entre comerciantes estrangeiros e fornecedores africanos” (idem). É evidente, então, que a questão da raça tem um peso bastante forte nas relações entre a rica-dona de Angola e a escrava Eufrozina e isso é reforçado pela fala da autora transvestida de narradora, quando esta diz que, embora suas funções perante sua serva tenham se modificado no decorrer do tempo, ela permanecia em seu “estatuto de escrava”, externando não apenas uma realidade social da época como também uma classificação racial. De acordo com Mendes (2016, p. 80),

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Nos séculos XVIII e XIX, o ‘nome’, o ‘status’ e a ‘origem’, que tradicionalmente servem para marcar a filiação de uma pessoa a uma linhagem, uma comunidade, um território definido, duplicam-se de designações ‘coloniais’ que classificam os indivíduos de acordo com uma ‘condição’ (livre, liberto, alforriado), e uma ‘qualidade’ (branco, preto, negro, crioulo, mulato, mestiço).

Na classificação racial dos indivíduos, adotada pelos projetos coloniais, os negros estavam no último patamar, lembra Bethencourt (2018, p. 336). Embora, considerando as condições locais de Angola na primeira metade do século XIX, houvesse a possibilidade de mobilidade social do negro, tendo em vista os casamentos raciais e as estratégias do comércio de escravos. Entretanto, essa mobilidade não incluía o negro escravizado que era em si uma propriedade e, como tal, sem direitos. A tendência a servir é uma marca muito forte na narradora Eufrozina a ponto de ela dedicar a sua ama, sem arrependimento algum, sua juventude e os melhores anos de sua vida. Noa (2002, p. 319), ao falar da representação da mulher negra na literatura colonial, enfatiza que a “preta-serva ou submissa” é uma das imagens mais recorrentes. A condição de dócil é o que habilitaria o negro, numa concepção racista, ao cativeiro da escravidão, tendo em vista sua tendência a servir, a se submeter. É uma característica, inclusive, já impressa pela figura bíblica de Cam26. Isabel Valadão, no entanto, não para no estereótipo da negra dócil e submissa, ela segue adiante propondo uma relação de dependência mútua entre as duas personagens. Dona Anna Joaquina não concede a libertação à Eufrozina por recear o abandono da escrava e Eufrozina, por sua vez, teme que a ama não mais precise da dedicação dela. A dependência da primeira talvez se justifique em função do gênio terrível de Dona Anna Joaquina, já conhecido de Eufrozina desde a época em que era apenas a moleca de companhia, imprimindo-lhe uma certa solidão que se acentuaria com as sucessivas mortes dos maridos e com o abandono da única filha. A dependência da segunda, no entanto, é mais complexa. O primeiro capítulo narrado por Eufrozina é após a morte da ama e, como Horácio a um Hamlet27 já defunto, ela declara: “E eu, Eufrozina de meu nome, aqui estou para testemunhar, no pleno uso das minhas faculdades mentais, a grandeza da senhora que foi

26 No período medieval, diversas imagens subalternizantes a respeito dos africanos foram articuladas no seio do imaginário europeu. Uma das peças imaginárias foi a infame teoria camita, interpretação que estigmatizava os negros enquanto descendentes do personagem bíblico Cam como indignos, posteriormente conotada pelo pressuposto de que os africanos estariam fadados à escravidão (SERRANO; WALDMAN, 2008, p. 24-25). 27 Estamos nos referindo à tragédia de William Shakespeare, Hamlet, príncipe da Dinamarca. Nela, Horácio acompanha todas as peripécias trágicas do príncipe e o acompanha também na hora da morte, encarregando-se de ser a voz de Hamlet após sua morte. Do mesmo modo acontece com Eufrozina em relação à Dona Anna Joaquina. 96

minha Ama, Dona Anna Joaquina dos Santos e Silva” (VALADÃO, 2014, p. 43). Para a narradora, não restava outra coisa a não ser servir a ama até a morte desta (ou de sua própria morte) e narrar seus feitos, pois a função do escravo era servir feliz ao seu senhor. Se não fosse a um, seria a outro e, considerando o trabalho nas lavouras de cana de açúcar no Brasil, para onde teria sido levada caso não fosse serva de Dona Anna Joaquina, o trabalho doméstico se mostrava mais leve, mas não menos submisso e afeitos aos caprichos de domínio da ama. Como escrava, o destino de Eufrozina era incerto, mas sempre indigno, e tudo se tratava de se manter em terreno já conhecido, mantendo-se obediente e fiel e esperando a tão sonhada carta de alforria para uma liberdade vigiada. Em meados do século XIX, as proles da elite luso-africana eram classificadas como portugueses, não importando a cor da pele. Segundo Oliveira (2018, p. 449), os filhos e filhas dessa elite podiam receber todos os sacramentos da igreja católica, entre eles o batismo, o casamento e a extrema unção. Eles também eram fluentes no idioma português e dominavam a língua local, o kimbundu (ou quimbundo, como Isabel Valadão registra), além de misturarem falares africanos com o idioma português “numa espécie de linguajar crioulo” (VALADÃO, 2014, p. 36). Viviam, portanto, entre duas culturas. A assimilação com a cultura portuguesa era uma norma a ser seguida por esta elite, mas os costumes africanos também eram mantidos em parte. Aliás, isso era o que os colocava como mediadores do tráfico de escravos. Dona Anna Joaquina, por pertencer a uma família ‘ambaquista’ detinha “o privilégio” de ser intitulada “branca” (VALADÃO, 2014, p. 52). A integração de Eufrozina na casa da família crioula foi demorada e o maior obstáculo dizia respeito à língua. Ela não sabia “uma palavra da língua dos brancos” e “falava apenas o dialecto da região onde [nasceu] e o quimbundo” da região de Kassanje. Apesar de Dona Anna Joaquina falar o quimbundo, as ordens dadas a Eufrozina eram em português, dificultando a comunicação entre ambas e deixando a ama bastante irritada. Nesses momentos, a escrava era chamada de matumba (burra), cuja única serventia era “despejar os bacios na praia do Bungo!”. Como água corrente e saneamento básico não eram termos utilizados nas circunstâncias históricas dadas, havia escravos encarregados de despejar os dejetos fisiológicos de seus senhores nas águas do mar (VALADÃO, 2014, p. 36). Com o tempo, as funções da escrava “foram ganhando importância muito devido à preferência que minha Ama tinha por mim” (VALADÃO, 2014, p. 37), diz Eufrozina. A capacidade da escrava de ser servil e obediente, suportando as humilhações da ama, faz com que ela ascenda na escala de funções do trabalho doméstico e do cuidado exclusivo com a ama, a ponto de obter o direito a aprender “a falar como deve ser e também a ler e a escrever 97

português” (idem, p. 38). Um direito que, na verdade, atesta a dominação, tendo em vista que a imposição do idioma é a primeira das estratégias coloniais. E a ponto também de ser considerada não uma propriedade, mas uma pessoa dotada de uma origem e de uma história.

Dona Anna começou a interessar-se por saber quem eu era. Um dia teve uma longa conversa sobre isso. Entrou na saleta que eu estava a arrumar, pois ela deixava sempre roupas e sapatos espalhados pelo chão. Trazia, certamente, a pergunta preparada e ainda não tinha assomado à porta quando me perguntou: — Diz-me, Eufrozina, de onde é que tu vens? Tens pais? Quem é tua família? Fiquei surpreendida com a pergunta inesperada [...]. Endireitei-me para responder. Foi um desabafo que eu não esperava ter naquela casa e muito menos com ela. Contei-lhe toda a minha estória sem que nunca, nem sequer por um gesto, ela me interrompesse. Via-lhe estampado no rosto e percebi que pela sua cabeça nunca passara uma narrativa tão confessada e emotiva como aquela que eu lhe fazia. Falei durante algum tempo, nem sei quanto, até que cheguei ao fim do relato (VALADÃO, 2014, p. 38).

Se falamos aqui na possibilidade de fala de uma escrava no século XIX é porque a colonização europeia tratou de interditar o direito de fala do colonizado. Ao colonizar seus territórios, colonizou também seus corpos, impondo a escravidão. Nela, os corpos são vistos a partir de sua funcionalidade. Na domesticação dos corpos, a boca foi interditada, assim como seu poder de fala. A interdição da fala silenciou muito mais que o protesto, uma vez que este mesmo não encontrava ouvidos aptos a escutá-lo. Ela silenciou as origens, as histórias e os sentimentos. Os colonizados, aqueles transformados em cativos, em seres escravizados, perderam suas referências individuais, familiares e históricas, tornaram-se seres invisibilizados, desprovidos de humanidade. Saber-se reconhecido como ser dotado de uma origem e de uma história causa estranhamento como aquele experimentado por Eufrozina diante da pergunta inesperada de sua ama e daí o desabafo que para ela parecia impossível ali, naquela casa, e para aquela que não a reconhecia como pessoa. Do ponto de vista da personagem, Eufrozina é o similar racial do qual há a necessidade de distanciamento, através da posição de mando e da assimilação com o mundo europeu de Dona Anna Joaquina. Ainda que lhe dê instrução, esta não chega a ser igual e, ademais, da altivez de sua pessoa uma cativa jamais lhe faria sombra. Do ponto de vista da autora, Isabel Valadão, Eufrozina é o ser digno de comiseração, para quem se deve ao menos um olhar de sutil solidariedade, tentando conceder-lhe o poder de voz e a possibilidade de narrar sua história, mas é exatamente na história de vida de Eufrozina que se encontra o lado mais voraz de dominação: os estupros, podendo estes serem vistos sob diversos ângulos. 98

Said (1995, p. 62), ao falar dos mecanismos formais da narrativa de Conrad para conter o ímpeto do narrador de Heart of darkness (O coração das trevas) de introduzir, na narrativa, o mundo vago e indefinido do continente negro primitivo, revela que o romancista assim o faz através de uma “artificialidade da construção [narrativa] instigando-nos a sentir o potencial de uma realidade que parecia inacessível ao imperialismo”. Parece bem o procedimento narrativo de Isabel Valadão, dando ao leitor a impressão inicial de que há na autora uma preocupação com a história do colonizado. No entanto, quando, enfim, ouvimos a narrativa de Eufrozina que rompe no desabafo a Dona Anna Joaquina, numa espécie daquilo que deveria ser uma avalanche de opressão represada, a autora acaba procedendo um caminho inverso, reafirmando na voz da narradora o domínio do colonizador. Voltemos à história de Eufrozina antes de sua chegada em Luanda, quando ela ainda era a bansacuco do jaga de Kassanje, Malange a Ngonga. No capítulo narrado em terceira pessoa, denominado Kassanje, 1804 – a ‘fábrica’ dos escravos, após o banquete ofertado pelo jaga e quando “Malange a Ngonga e os seus mais directos súbditos estavam completamente embriagados, e não tardou que adormecessem no meio dos despojos do banquete real” (VALADÃO, 2014, p. 22), Galiano teve a ideia de tomar por cativos alguns dos súditos mais importantes do jaga, entre eles, possivelmente, filhos ou esposas numa tentativa de intimidar o jaga, mostrando que ele não estava acima da Coroa Portuguesa e “refreando-o quando voltasse a prevaricar e a cometer mais barbaridades” (idem, p. 23). É bastante elucidativa essa parte do romance por inúmeros motivos. Primeiro, a autora, ao descrever a cerimônia de recepção de Galiano pelo jaga, encena o primeiro contato português.

Em 1482, o navegador português Diogo Cão descobriu a foz do rio Congo e entrou em contacto com o maior reino bantu da África Central Ocidental: o Reino do Congo. Diogo Cão regressou a Portugal em meados de 1484, trazendo consigo quatro bacongo a quem desejava ensinar a língua portuguesa, para que pudessem estabelecer-se relações entre os dois reinos [do Congo e de Portugal] [...]. Os congoleses deram as boas-vindas aos estrangeiros brancos, aceitaram os seus padres e mostraram-se desejosos de aprender os seus costumes e de adoptar a sua religião [...]. Os portugueses mantiveram relações razoavelmente pacíficas com o estado do Congo até depois de 1575, quando deslocaram a sua concentração de esforços para o sul, para Angola (WHEELER, 2013, p. 59).

Assim como Diogo Cão, agiu Galiano se mostrando pacífico de início para angariar as benesses da relação e, em seguida, usar de traição, capturando os súditos após o banquete de 99

recepção dado a ele por D. Pascoal. A mesma relação de invasão, exploração e escravidão com diferenças temporais é aqui vista. Fica também estabelecido o domínio de Portugal que, movido por vontades e interesses repentinos, poderia tomar, a qualquer momento, um dos nativos do território por ele colonizado, tornando-o cativo, escravizando-o, independentemente da posição de comando que este exercesse. Além do mais, a relação de domínio fica impresso no castigo advindo a qualquer desobediência ou discordância à ordem estabelecida. Mas a condição de domínio português e de modelo de colonização recebe um acento bem maior nesta parte do romance com a artimanha narrativa da ação de Galiano, cuja consequência realmente notável será a captura, entre os súditos, de uma das esposas do Jaga de Kassanje, ou seja, Eufrozina. É interessante percebermos que, enquanto a narradora do romance não adentra o domínio dos portugueses, ela não é nominada: é a filha do soba Sabiango, a bansacuco do jaga ou mulher de D. Pascoal Rodrigues, a rapariga mais nova, a escrava negra, a concubina, para, só depois, já nas mãos do comerciante brasileiro a quem fora deixada por Galiano, receber um nome português, Eufrozina. Antes disso, Eufrozina não é vista pela autora como uma pessoa, mas uma coisa, um objeto, uma propriedade e, como tal, ela pode ser violada. Há três estupros direcionados à narradora. O primeiro, como não poderia deixar de ser, é por parte do capitão-mor Félix Velasco Galiano; o segundo, pelo comerciante brasileiro, Joaquim Rodrigues da Graça; e, o terceiro poderíamos usar de um neologismo e dizer que se tratou de um semiestupro, mas deixaremos para falar dele quando discorrermos sobre a elite crioula, uma vez que se trata de um relacionamento com o segundo marido de Dona Anna Joaquina. Os dois primeiros estupros adquirem tonalidades totalmente diferentes e são narrados sob pontos de vista também diferenciados: o primeiro, de um narrador em terceira pessoa e, o segundo, de um em primeira pessoa, a protagonista Eufrozina. Já falamos aqui sobre Galiano e sua condição de figura histórica da colonização de Angola por Portugal. Vimos, através do livro de memórias de João Carlos Feo Cardoso Castellobranco e Torres, o registro dele em uma das expedições realizadas durante o governo de Luiz da Motta Feo e Torres (1816 a 1819), em Angola, justamente na missão aqui ficcionada.

Filho de uma antiga e tradicional família luso-africana, há muito radicada em Loanda, Velasco Galiano atingira já um ponto elevado no exército graças à sua bravura e espírito aventureiro, evidenciados em diversas operações de pacificação dos povos do interior, que se rebelavam constantemente contra a 100

Coroa de Portugal, e a sua ainda curta carreira militar tinha-o guindado à importante posição de regente do presídio de Mpungo-a-Ndongo. Fisicamente era um homem bem-parecido, alto, corpo musculoso, feições correctas, pele crestada pelo sol do sertão que não disfarçava, porém, as raízes crioulas da sua origem. O uniforme do exército português caía de modo elegante sobre a sua figura angulosa (VALADÃO, 2014, p. 18).

O primeiro capítulo do romance é, como dissemos, em terceira pessoa. Portanto, quem descreve Galiano aqui não é Eufrozina. É uma voz que soa anônima, aproximando a figura de Galiano a um belo exemplar europeu, filho ilustre de Portugal, cuja única semelhança com a identidade crioula é um leve tom acentuado da pele, que muito bem poderia ser explicada pela exposição prolongada ao sol. A captura de Eufrozina, decorrente da missão dada a Galiano pelo governador-geral da época, dá início à narrativa. O refúgio dela na pequena quinta de Galiano, no capítulo Epílogo, dá o desfecho. O encontro dos dois é apenas em três momentos na narrativa. No momento da captura, em que o involuntário encontro é narrado em terceira pessoa. Depois, em uma sessão de teatro em Luanda, estando Eufrozina como dama de companhia de sua ama, Dona Anna Joaquina. Na época do segundo encontro, Galiano não a reconheceu ou sequer notou a presença da escrava ao lado da rica-dona de Luanda. Mais tarde, o terceiro encontro se dá quando Arsénio de Carpo leva Eufrozina para se esconder na casa, justamente, de Galiano, em razão da morte de Dona Anna Joaquina e da impugnação da carta de alforria de Eufrozina por parte da filha dela, Dona Thereza Luíza. Ele também demora dias para reconhecer em Eufrozina a mulher negra que estuprou ou, como a narrativa quer aparentar ser, a mulher negra com quem fez amor. Após a captura dos súditos do jaga, Galiano parte em caravana por entre as “picadas do sertão”, procurando inevitavelmente escapar da “milícia enviada pelo jaga em seu encalço”. Às margens de um lago, procura descansar da marcha cansativa de fuga, desviando- se também do terror dos negros em viajarem à noite, pois, na concepção deste narrador em terceira pessoa, os negros temiam “os zumbis, espíritos que vagueavam durante a noite, pelas florestas e descampados do sertão, exercendo os seus poderes sobrenaturais de encantamentos e feitiços, em vinganças e castigos terríveis” (VALADÃO, 2014, p. 24). As crenças dos africanos eram ressaltadas pelos portugueses como práticas primitivistas que demonstravam o quão longe estavam eles da civilização e o quanto isso os tornava necessitados do contato europeu para que evoluíssem espiritual e materialmente. Antes de prosseguirmos para narrar o ato sexual entre Galiano e Eufrozina, é importante frisar que a descrição desse ato não é dada a Eufrozina, pois o primeiro capítulo é 101

em terceira pessoa. Talvez isso seja uma estratégia da autora, uma vez que há ações desse primeiro capítulo que não poderiam ter sido de conhecimento da narradora para que ela os relatasse. Então, devemos também considerar isso no tocante à idealização do ato sexual em si, do qual falaremos adiante. Para passar a noite, Galiano recolhe-se à tenda montada, estrategicamente, no centro do acampamento improvisado, como a estabelecer seu poder de mando na missão de captura e, por parte da autora, o domínio de Portugal em Angola. Antes de recolher-se, repassa uma ordem a um soldado:

— Vai buscar aquela rapariga mais nova que está entre os prisioneiros do jaga e traz-ma cá! Observou-a quando chegou. Era ainda uma adolescente, o corpo esbelto de gazela, os seios mal despontados, a pele de um ébano aveludado. Os olhos negros como tições, ligeiramente amendoados, fixavam o oficial, desafiantes. Tinha uma boca de lábios carnudos e o nariz pequeno e achatado. Como indumentária, envergava apenas o curto saiote de ráfia que vira nas raparigas mais jovens, fiadas de missangas cruzavam-lhe o tronco nu, e nos antebraços e nos tornozelos usava várias argolas de latão, que indicavam, por norma, a riqueza da sua portadora ou a sua elevada posição social. O cabelo estava artisticamente entrançado com missangas coloridas e todo o conjunto era muitíssimo atraente. Tinha-a visto no banquete real, sentada muito próxima de Malange a Ngonga, presumindo que seria uma das suas concubinas. A rapariga não esboçou qualquer movimento de resistência porque sabia instintivamente que seria em vão. E que se o fizesse seria castigada. Se tentasse a fuga, seria com grande probabilidade morta. Olhou o homem branco na sua frente sem mostrar acanhamento. Na sua atitude era manifesta a promessa de uma entrega sem resistência. Adivinhava no seu captor, ao observá-lo com demora na penumbra da tenda mal iluminada, a promessa de algumas horas de um prazer diferente do que sentia nas noites com o velho jaga, cansado e tantas vezes embriagado, brutal nas frequentes crises de impotência. Esperava que este jovem e bonito militar não fosse muito diferente daqueles de quem já ouvira falar, fogosos e possantes, apaixonados e resistentes. Submissa, e sem esperar que ele tomasse qualquer iniciativa, deitou-se no luando28 estendido sobre o chão de terra batida e esperou a investida. Surpreendeu-se com a delicadeza dele, com as palavras e frases entrecortadas que não conseguia entender mas de significado óbvio e manteve-se silenciosa durante todo o tempo, interagindo sem dúvida com ele. Quando, por fim, o homem terminou, atirando-se de seguida, pesadamente, para o outro lado da esteira, onde adormeceu quase de imediato, a jovem arrastou-se para um canto da tenda e ali permaneceu encolhida sobre si mesma, até que as primeiras luzes da aurora começaram a penetrar pelos orifícios da lona. Podia, nesse instante, ter fugido e sub- repticiamente ter-se embrenhado no mato circundante, mas qualquer coisa a impediu. Acabou por dormitar naquela posição, despertando com os ruídos dos homens que no exterior preparavam o reinício da caminhada de mais um dia. (VALADÃO, 2014, p. 24-5).

28 Esteira de ráfia 102

Perdoe-nos a tão longa citação, mas foi necessária para que não se perdesse o clima do momento e muito menos a sequência do que dele se poderia depreender. A sensação que fica ao término da leitura, ou pelo menos essa é a nossa, é a de estarmos diante de uma das cenas do filme épico britano-malto-estadunidense Troy (ou Tróia), de 2004, cuja direção é de Wolfgang Petersen, com roteiro de David Benioff, conforme Campos (2018). A cena a qual nos referimos é a encenada por Brad Pitt e Rose Byrne nos respectivos papeis do guerreiro grego Aquiles (ou Achilles) e de Briseida (ou Briseis). Não vamos aqui narrar a cena do filme devido à similitude com a cena do romance há pouco descrita. Em ambos os casos, estamos diante de um guerreiro/militar cuja constituição física e a nobreza são a personificação do ideal grego/romano29 e que toma para si uma escrava como espólio de guerra para seu deleite sexual. Em Ilíada, segundo Carpeaux (2012, p. 41), “O fim de Troia não é absolutamente o assunto do poema”, pois, embora o título da epopeia se concentre nos troianos (Ílion), estamos diante de “um poema grego; a maior parte dos acontecimentos narrados passa-se entre os gregos, e o ponto de vista do poeta parece grego, contra os troianos assediados”. Em Angola, as ricas-donas, temos, da mesma forma, um forte acento na história dos vencedores, os portugueses, embora estejamos diante de uma possível história de Angola. Por sua vez, é a história dos portugueses contra os colonizados assediados, repetindo-se a mesma narrativa. Galiano, não como um Aquiles abatido por seu calcanhar (Briseida, em uma análise), parte como um Ulisses na direção de uma glória lusitana, a possessão dos territórios africanos e dos nativos que neles habitam, deixando sua Briseida africana (Eufrozina), por amor a sua fiel esposa, que, ao contrário de Ulisses, não é Penélope, mas a Angola saqueada e rendida. Na Ilíada, Briseida30 é, na verdade, Hipodâmia. Os gregos assim a denominavam por ser o termo ‘briseida (brises ou briseis)’ um patronímico. Nossa Briseida africana também só

29 No livro Mensagem, obra poética que tem como proposta reconstruir a narrativa – apresentada por Camões, n’Os lusíadas – das navegações lusitanas até as Índias, Fernando Pessoa intitula o terceiro poema com o nome do herói grego Ulisses, fazendo uma relação entre ele e Portugal. Não é por acaso que o herói grego é eleito por Pessoa para inaugurar a segunda parte de seu livro, denominada “Os castelos”, na qual, à semelhança do Canto III d’Os lusíadas, faz uma apresentação poética sobre personagens importantes da história portuguesa. O mito referido por Pessoa, explicitado no título do poema, corresponde à teoria inverídica de que Ulisses teria fundado o que viria a ser a cidade de Lisboa em meio a seu caminho de retorno a Ítaca após a guerra de Troia – o que constitui a odisseia propriamente dita. Ainda que sem veracidade possível, visto que Ulisses é um personagem mítico e literário, ou seja, ficcional, é curioso o modo como essa lenda se instalou na memória portuguesa (MATOS; FARIA, 2016, p. 677-8). 30 Briseida – Dicionário Etimológico da Mitologia Grega, 2017. Disponível em: . Acesso em> 15 ago. 2020. 103

adquire existência na narrativa a partir de uma designação dada pelo poder masculino do sertanejo brasileiro da fazenda Bango Aquitamba, na região de Ambaka. Ele recebe de Galiano a posse da escrava e a batiza de Eufrozina. O patronímico da Briseida de Ilíada é o equivalente a ‘filha de Briseu ou Briser’, rei e, talvez, sacerdote de Pédaso. Hipodâmia era casada com o rei Mines, que governava Lirnesso, saqueada por Aquiles. O patronímico em Hipodâmia diz respeito ao poder do pai como representante da família e, assim, Briseida seria um designativo de pertencente a esta família e a tudo o que ela representaria. Já a designação dada a nossa Briseida africana a coloca na condição de propriedade colonial, é a marca do colonizador sendo posta em sua propriedade, desalojando-a de sua condição de pertencente a uma família, a um grupo. Segundo a narradora: “Para mim tudo terminara quando chegara a Bango Aquitamba. Despira a minha pele de mulher imbangala para assumir completamente a de escrava cativa. Dessa altura em diante, só restara a escrava Eufrozina” (VALADÃO, 2014, p. 39). Depois de conquistar a cidade, o guerreiro grego mata o marido e três irmãos de Briseida, levando-a como troféu de guerra. Ela é importante, no poema épico, como concubina de Aquiles e como causa da primeira ira do herói épico. De acordo com D´Onofrio (2007, p. 43), Aquiles obriga Agamenon a restituir a Crises, sacerdote de Apolo, a filha dele, Criseida (um outro patronímico), devido a fúria de Apolo que se volta contra os navios gregos. Agamenon como compensação toma posse de Briseida e precisará suportar a ira de Aquiles que, com a ajuda da deusa Tétis, recebe a promessa de Zeus que os gregos não triunfariam contra Tróia até que Agamenon restituísse Briseida a Aquiles. Assim acontece. Em relação à nossa Briseida africana, restou a submissão ao estupro, evitando o castigo ou a morte por insubmissão. Como nosso Aquiles português estava mais para um Ulisses, cujo interesse concentrava-se na nação portuguesa, restava a nossa Briseida ser invadida por meio do encanto do colonizador. Depois de deitar e esperar a posse passivamente, restou à agora cativa a penetração do tempo por sob os orifícios do espaço angolano, aguardando, na posição de cativa, o despertar dos homens para a descolonização, pois fugir não era uma opção. Eufrozina se torna, assim, a metáfora da Angola colonizada e submissa ante o invasor português. Nada há de romântico no ato sexual criado pela autora e narrado por uma voz anônima, mas que se reveste da fala do domínio colonial. Tudo no ato é invasivo e carregado de estereotipias. A negra fogosa e exótica é apresentada como objeto para saciar a sede de sexo do colonizador e, uma vez saciado, ela é posta de lado, encolhida diante da dor da posse e do trauma de ter seu corpo desapropriado de seu querer. Mais tarde, para amplificar a 104

situação de abandono, Eufrozina seria entregue nas mãos de um comerciante brasileiro como escrava. Em uma circunstância histórica diferenciada ou mesmo na mesma circunstância, mas se considerando uma mulher branca, isso seria especificado como estupro, mas no contexto situacional da narrativa e direcionado a uma mulher negra cativa, o ato se passa, nas palavras de Morisson (2019, p. 27), como o “direito do senhor”. Em suma, sobre o encontro sexual entre Galiano e Eufrozina, Isabel Valadão intenta desqualificar o estupro, querendo tratar o assunto como uma atração amorosa entre duas pessoas que se olham e se sentem atraídas para um relacionamento sexual, dando inclusive ares cinematográficos ao coito. Isso se comprova, como diz Morisson (2019, p. 27), em “tentativas literárias de ‘romantizar’ a escravidão, de torná-la aceitável, preferível até, humanizando-a e até mesmo valorizando-a”. A autora portuguesa desconsidera ou, premeditadamente, ignora que não houve uma ação de comum acordo, mas a posse do colonizador sobre a propriedade que é a mulher negra e cativa. Galiano não usa de galanteios e de etapas para direcionar o relacionamento para o ato sexual em si, como usualmente agiria com uma mulher branca, ele simplesmente ordena a presença de Eufrozina em sua tenda com a deliberada urgência de praticar a posse sobre o corpo da cativa e convicto de estar exercendo o direito sobre tal posse, tendo em vista a captura ousada de agredir o poder do jaga de Kassanje em relação ao domínio de seu reino e principalmente do corpo da bansacuco. Como representante da autoridade portuguesa, ele invade e toma posse de ambos, mostrando o poder colonial português sobre seus territórios e corpos colonizados. Davis (2016, p. 37-8) lembra que a literatura tradicional da escravidão minimizou o tema sobre estupros e coerção sexual, partindo “até mesmo do princípio de que as escravas aceitavam e encorajavam a atenção sexual dos homens brancos” e argumentando sutilmente se tratar não de “exploração sexual, mas ‘miscigenação’”. Para este tipo de literatura, o problema do estupro não era tão relevante quanto os tabus que envolviam a miscigenação, que era tratada como “luxúria e exploração sexual”, quando deveria se considerar “o prazer, o afeto e o amor que muitas vezes surgiam a partir da vulgaridade inicial”. Mas Davis (2016, p. 38) alerta para a questão de que, entre os autores desse tipo de literatura, havia uma dificuldade extrema para entender a impossibilidade de se falar em “prazer, afeto e amor quando os homens brancos, por sua posição econômica, tinham acesso ilimitado ao corpo das mulheres negras”. É para uma literatura tradicional da escravidão que investe a escrita de Isabel Valadão, principalmente por se tratar de um romance cujo tema são as ricas-donas de Angola, mulheres 105

provenientes de uma elite luso-africana, frutos de uma miscigenação aparentemente forçada, tendo em vista os interesses no tráfico de escravos e outros produtos da colônia que pautavam tais relações. No entanto, no caso de Galiano e de Eufrozina, como a relação se concentra no binarismo propriedade e proprietário, a miscigenação é impossibilitada por intermédio de uma outra artimanha narrativa da autora. Durante todo o percurso das ações narrativas, Eufrozina se volta para narrar o outro, colonizador ou assimilado. Ela está exclusivamente envolvida na tarefa de cuidar do outro, em especial de sua ama, Dona Anna Joaquina. Em função disso, procura observar os feitos desse outro, descrevendo suas ações e emoções da melhor maneira possível. Quando ela tem tempo para si, para cuidar de si, já é em avançada idade e, por um acaso do destino, é colocada diante de seu violador, Félix Velasco Galiano.

O espanto emudeceu-me. Acontecera o que eu tanto temia. Como era possível que o capitão me tivesse reconhecido ao fim de tantos anos, sendo eu uma jovem adolescente na altura? É certo que fisicamente eu não mudara muito. Tinha sessenta e oito anos, mas não ganhara peso como acontecia com a maioria das mulheres africanas, pois nunca tivera filhos. A minha pele escura mantinha o toque acetinado de todas as peles negras, e a única coisa que realmente mudara em mim era o cabelo crespo, que embranquecera, mas eu usava-o sempre coberto com um lenço (VALADÃO, 2014, p. 335).

Ao deslocar o estupro praticado por Galiano para um outro nível, a miscigenação, implicando, com isso, uma relação de “prazer, afeto e amor”, a autora trata de considerar a narradora, Eufrozina, sob a perspectiva de uma sutil subjetividade. Depois de uma vida inteira de entrega e dedicação ampla de Eufrozina à elite crioula, através de Dona Anna Joaquina e de seus pares, após a morte da ama, a autora finalmente desperta para a condição humana da narradora, fazendo com que o ‘amor’ do passado de Eufrozina reapareça na forma de seu salvador. Nesta hora, a preocupação da escrita criativa da autora se volta para o corpo exótico e potente da mulher negra, sua integridade ou deterioração perante o tempo decorrido para o encontro com o homem amado. Quando o sentimento ameaça aparecer, vem através da incredulidade da narradora diante do reconhecimento de Galiano, mostrando a inferioridade de um em relação ao outro, embora a autora incite no personagem uma paixão recolhida que desperta com o reconhecimento da pessoa amada. 106

Todavia, as expectativas do leitor ‘brocham31’ diante da espera de uma tórrida relação entre Galiano e Eufrozina, pois não há um durante, apenas um antes e um depois. A cena ‘caliente’ e cinematográfica do coito entre os dois adquire contorno e volume no início da narrativa e se completa no final, amarrando as pontas desta através do relacionamento entre o nobre descendente de portugueses e a africana, como a sugerir uma integração pacífica entre os elementos da colonização, o colonizador e o colonizado, numa proposta de um colonialismo cordial32, envolvendo o coração e o afeto. No entanto, há que considerarmos que a integração pacífica, tanto entre portugueses e africanos, quanto entre Galiano e Eufrozina, iniciam mascarando uma realidade. Naquela, a invasão e a exploração dos territórios colonizados se revestem de uma filantrópica ‘missão civilizadora’; nesta, a prática do estupro é romantizada para aparentar uma saudável relação entre duas pessoas unidas, separadas e novamente unidas pelo acaso. Ou mesmo pelo descaso do colonizador. Spivak (2010, 104) ao falar da autoimolação das viúvas na Índia, o sati, já dizia que a “gravidade do sati foi ele ter sido ideologicamente imbuído de ‘recompensa’, assim como a gravidade do imperialismo foi ele ter sido ideologicamente imbuído do sentido de uma ‘missão social’”. No último capítulo, os dois amantes se encontram e se reconhecem; ela muito antes que ele. Ao reconhecê-la, Galiano diz que havia se convencido de que ela estaria no Brasil, vendida como escrava. Quanto a Eufrozina se propõe a lhe narrar a história de sua vida, correspondente ao intervalo entre o primeiro e este último encontro dos dois, mas não sem antes pedir-lhe o consentimento para falar:

— Mas é claro que me interessa ouvir! Durante todos estes anos me interroguei, vezes sem conta, até mais do que as desejaria, o que te teria acontecido depois de te ter deixado com o sertanejo, em Ambaka. Eu tinha- lhe pedido para te manter até que eu voltasse para te ir buscar, mas com a

31 Com o sentido de “não conseguir ter uma ereção”, “ser ou estar sexualmente impotente”, “ficar desanimado, sem forças”, a grafia correta é broxar, com x. Algo desanimador é algo broxante, também com “x”. É assim (com “x”) que o Dicionário Aurélio e os dicionários da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa – assim como os dicionários de Aulete, Luft, Bechara, Michaelis, Priberam, e do Professor Pasquale – escrevem as palavras “broxa”, “broxar”, “broxado” e “broxante”, em seus sentidos ligados à impotência sexual (Grifos do site). Disponível em: Acesso em: 16 ago. 2020. 32 Cordial adj. 2g. ‘orig. relativo ao coração’ ‘ext. afetuoso, afável’ XV. Do lat. Med. Cordiãlis, de cộr cordis ‘coração’ (CUNHA, 2010, p. 180). 107

revolução provocada por D. Pascoal Rodrigues acabei por lhe ordenar que fosses embarcada para o Brasil (VALADÃO, 2014, p. 336).

Percebemos o quanto Galiano estava ciente do destino escravo de Eufrozina, tendo- lhe, inclusive, reservado um destino pior, o embarque para o Brasil. Outrossim, foi banal seu esforço em reavê-la das mãos do sertanejo em Ambaka, bastou, para tanto, os compromissos com a Corte Portuguesa na contenção do jaga de Kassanje, conhecido entre os portugueses por D. Pascoal Rodrigues e ex-esposo de Eufrozina e do qual foi raptada por Galiano. A desculpa a Eufrozina soa frívola e fria diante das consequências do ato do raptor e o interesse em ouvi-la descabido perante aquilo que ele lhe devia como compensação. Do ponto de vista da autora do romance, parece mais um pedido de desculpas do colonizador para o colonizado; um pedido que transparece ser mera conveniência social. Do ponto de vista da narradora, Galiano não estava errado, a culpa era dela. Então, era ela que devia se desculpar ante o acontecido. Tanto é assim que Eufrozina, ao terminar de narrar os acontecimentos de sua vida até ali, simplesmente diz: “Não quero causar-lhe incômodo” (VALADÃO, 2014, p. 336). No presente, a colonização e subsequente escravidão do africano é colocada como um incômodo na história de Portugal e, apesar de todo o sofrimento vivido pelo povo africano, é ele quem pede desculpas por ser um incômodo. Isso lembra as palavras de Fanon (2008, p. 125), quando fala da experiência vivida do negro: “Sentimento de inferioridade? Não, sentimento de inexistência. O pecado é preto como a virtude é branca”. Em outras palavras, o negro não se sente inferior ao branco, pois, para este, ele simplesmente não existe. Ademais, entre o branco e o negro, o branco é sempre o correto, ele nunca erra, pois, para ele, o erro é uma característica do negro. Galiano apenas diz para Eufrozina não ir embora, pois pode ser apanhada, voltando à condição de escrava. Diz que fique o tempo que desejar, mas não esboça qualquer arrependimento ou sentimento. Ele se cala e ela permanece com ele sem nenhuma promessa por parte dele:

Alguns anos passariam, nove, para ser mais exacta, e não me arrependi de ter continuado na fazenda, ao lado de Félix Velasco Galiano. Finalmente, voltara a reencontrar o rumo que havia perdido quando me vi sozinha, sem Dona Anna Joaquina. Ela fora o meu pilar e, por ela, conhecera uma vida para lá daquela que me fora destinada quando nascera imbangala. Conhecera outras terras e outras civilizações, conhecera o significado de ser escrava e também o de ser mulher livre (VALADÃO, 2014, p. 336).

O jugo da subordinação ao colonizador é esboçado como o destino de Angola, como o é também o de Eufrozina, seja por intermédio da elite crioula que enriqueceu através da 108

comercialização da mão de obra escrava, seja pelo invasor e explorador português. A autora parece dizer que, para o negro africano colonizado, a dependência ao colonizador é algo desejado, reportando-nos aqui às palavras de Mannoni (1950 apud FANON, 2008, p. 94):

Podemos dizer que, quase em todos os lugares em que os europeus fundaram colônias [...], eles eram esperados e até mesmo inconscientemente desejados pelos nativos. Em todas as partes, lendas os prefiguravam sob a forma de estrangeiros vindos do mar e destinados a trazer benefícios.

Para Fanon (2008), no entanto, retrucando a fala de Mannoni, a dependência do colonizado não está estabelecida em nenhum “hieróglifo fatídico”, mas no “inconsciente”. Foi-lhe incutido por diversas estratégias e discursos coloniais “um complexo de inferioridade” e é necessário considerarmos a libertação dele “desse desejo inconsciente”, promovendo “mudanças das estruturas sociais”, no sentido de o negro não permanecer mais no dilema de “branquear ou desaparecer; ele deve tomar consciência de uma nova possibilidade de existir” (FANON, 2008, p. 95). O desejo de embranquecer do negro é uma presença muito forte em Angola, as ricas- donas. Nas relações sexuais de Eufrozina, a autora faz questão de enfatizar isso. Ela era esposa do jaga de Kassanje e a convivência com ele era, segundo a narradora, uma espécie de escravidão e, pelo o que a narrativa deixa transparecer, maior que a imputada pelo colonizador português. Depois, veio a romantização do estupro com Galiano. Este a entregará para um comerciante brasileiro em uma fazenda na região de Ambaka. Com o brasileiro, o corpo de Eufrozina será novamente usurpado. Todavia, para Isabel Valadão e no parecer da narradora, este ato sexual adquirirá outra conotação. Eufrozina assim o narra:

Certa noite na fazenda, já depois de todos se terem recolhido, o brasileiro procurou-me na cubata onde dormiam a deitar as escravas e, depois de mandar sair toda a gente, obrigou-me a deitar no luando e possuiu-me de forma brutal e quase animalesca, muito diferente daquilo que acontecera com o português. E, enquanto me subjugava, ia falando em frases entrecortadas, algumas palavras em quimbundo, outras em língua de branco, das quais eu pouco entendia [...]. Depois de me violar de forma brutal, saiu da cubata, deixando-me entregue à minha dor, que não era só física. Nunca mais esqueceria aqueles momentos de pesadelo! A minha cabeça fervilhava com pensamentos desencontrados e ideias de vingança inundavam-me o coração, também contra o capitão que me entregara nas mãos do vil sertanejo. ‘Era ele quem eu desejava sentir, e não este!’ (VALADÃO, 2014, p. 34).

109

Antes de partimos para as considerações a respeito desse excerto, propomos um diálogo com outro momento da trama. No primeiro capítulo sob a narração de Eufrozina, no qual nos concentramos mais e do qual o excerto acima também é retirado, Dona Anna Joaquina surpreende Eufrozina com uma pergunta. Se ela gostaria de ter a companhia permanente de um homem. Ao que a narradora relata o seguinte trecho:

No meu pensamento passaram vertiginosamente as imagens daqueles encontros que eu tivera no passado com outros homens. Lembrei-me de D. Pascoal Rodrigues e senti arrepio de náuseas. Lembrei-me do capitão e devo ter sorrido misteriosamente pelo prazer que sentira naquela noite de há tanto tempo e, no entanto, sempre presente no meu espírito como se tivesse acontecido na noite anterior. Veio depois a noite de sofrimento atroz que passara com o meu carcereiro na fazenda Bango Aquitamba. Mas aqueles não tinham sido os únicos três homens que me haviam possuído. Muitos outros se lhe seguiriam. Alguns por obrigação, quando testava mancebos antes de dormirem com minha Ama, geralmente escravos bem dotados, rebeldes como potros por domesticar que eram os que ela mais apreciava (VALADÃO, 2014, p. 42).

Daquele dia em diante, após a pergunta da ama, seguida de um sim como resposta, Eufrozina não mais guardaria “segredo sobre os homens com quem dormia”, ainda que fossem aventuras passageiras. Entretanto, o tal homem permanente nunca apareceria na vida de Eufrozina e, ao que parece, ele já está impresso em sua vida como destino: Galiano. Mas o que Galiano tem de diferente em relação aos outros homens da vida de Eufrozina? É claro que não renegaremos aqui a possibilidade de um amor sincero por parte de Eufrozina e nem queremos também afirmar a impossibilidade de Galiano, considerado branco por sua descendência portuguesa, apaixonar-se realmente por uma cativa em meados do século XIX. Entretanto, como diria Said (1995, p. 93), não há como desvincular a cultura das relações políticas que constituíram o império colonial. Neste tocante, a literatura se coloca como representação e, como tal, sua produção, circulação, história e interpretação devem ocupar um lugar central como entendimento das relações de poder. Outrossim, Spivak (2010, p. 53) enfatiza a questão da violência epistêmica, quando o intelectual, ao falar do outro, se habilita como especialista da civilização do outro, sem se preocupar em representar esse outro com discursos reduzidos e/ou desqualificantes, como é o caso de Valadão (2014). Dito isso, é possível então deslocarmos nosso olhar do aspecto meramente romântico da relação entre Galiano e Eufrozina para focar naquilo que nos foi abstraído pelo direcionamento ao par romântico entre um português e uma cativa angolana. É o elemento português que obtém uma elevação hierárquica em detrimento do nativo africano e do mestiço 110

(o brasileiro). Vimos que Eufrozina denomina a relação sexual com o brasileiro de “brutal e animalesca”, embora tal relação pouco se diferencie da tida com o descendente português Galiano, ainda que Eufrozina insista no contrário. É para Galiano que se volta o desejo de Eufrozina e não para o “vil sertanejo”. Foi com ele que sentiu prazer e nele que pensa sem parar. De outro lado, a relação sexual com o jaga Malange a Ngonga lhe causava “náuseas” e os escravos-objetos (é redundante, sabemos) de Dona Anna Joaquina eram para Eufrozina apenas seres fálicos, envoltos em estereótipos do negro potente do imaginário português. Dentro de uma perspectiva colonial, Fanon (2008, p. 57) alerta para aquilo que é primordial no inconsciente das mulheres negras: “Embraquecer a raça, salvar a raça, mas não no sentido que poderíamos supor: não para preservar a ‘originalidade da porção do mundo onde elas cresceram’, mas para assegurar sua brancura”. Casar-se com o negro seria recusar o ideal de brancura que garantiria uma entrada no mundo branco e, com o mestiço, é regredir nesse ideal de brancura. Então é necessário ir à cata do homem branco, ainda que este homem branco não veja na mulher negra a ideal para se casar, ainda que o relacionamento com o homem branco se reverbere no discurso da dupla colonização. Os acontecimentos que envolvem as cópulas da narradora são, aparentemente, os únicos momentos da narrativa em que Eufrozina é percebida realmente pela própria autora, Isabel Valadão. Como dissemos, Eufrozina se dedica quase que exclusivamente a narrar a elite crioula no entorno das relações comerciais do tráfico negreiro e das estratégias políticas que o envolve, entre elas os rumores da independência angolana, incitada pela do Brasil, e a mobilidade dos governadores-gerais na cidade de Luanda, bem como a realização dos bailes do Palácio do Governador. A narradora só é percebida em função da existência dos outros personagens da narrativa; longe disso tudo, ela é invisível e serve apenas para amarrar as pontas de uma narrativa que não é iniciada por ela e nem fala dela. Isso parece confirmar a presença da autora através da narradora e a distância que há entre as duas, pois, se, por um lado, as questões que envolvem a elite crioula e os acontecimentos políticos que envolvem o território angolano nos primeiros quartéis do século XIX são uma constante na trama; por outro, a presença e as minúcias de uma narradora escrava, capaz de, por sua condição de narrar, ser dotada de subjetividade parece ser um entrave demasiado grande para a autora. Até mesmo no capítulo intitulado Eufrozina, quando a narradora deveria se expor exclusivamente para que o leitor a conhecesse, a autora rouba a fala da narradora para ressaltar aspectos de Dona Anna Joaquina, pertencente à gloriosa elite crioula, ressaltando a origem da ama, sua beleza e atributos intelectuais e sociais, sua generosidade para com a 111

escrava, sua grandeza ao ser capaz de ouvir a história de vida dela, seu cotidiano e suas idiossincrasias. Ainda que exista um capítulo intitulado ‘Dona Anna Joaquina dos Santos’, para comportar toda a glória da rica-dona, ela também rouba o tempo e o espaço dedicados à escrava na narrativa. Dentro da perspectiva da narradora, temos uma história que deveria relatar um olhar de dentro, uma vez que a autora dá voz ao ‘outro’ da dualidade da colonização. Embora Dalcastagnè (2012, p. 24) se refira a uma perspectiva de dentro como sendo aquelas obras, cujos autores são eles próprios ‘o outro’, poderemos, assim falar de Angola, as ricas-donas, considerando a narradora que, do ponto de vista empregado na narrativa, deveria ser capaz de saber e falar por si mesma, trazendo à tona as condições do colonizado escravizado e as opressões sofridas ante o dominador, bem como suas sensações ao ser tocada por tudo isso. Todavia, como diz Kilomba (2019, p. 47), “dentro do regime repressivo do colonialismo” há uma dificuldade do subalterno falar. Em Angola, as ricas-donas, na contramão de uma perspectiva de dentro, deparamo- nos com o exotismo do sujeito do ocidente. De acordo com Dalcastagnè (2012, p. 24), em algumas narrativas contemporâneas, “o ‘outro’ aparece com as feições que a tradição lhe deu – deformados pelo nosso medo, preconceito e sentimento por reforçar essa imagem. Obras que, mesmo tentando ser críticas, acabam por reforçar essa imagem”. Esperamos que os exemplos que aqui trouxemos sobre a representação da narradora a partir do olhar da autora possam conferir ao romance de Isabel Valadão uma representação do marginalizado, no caso do colonizado, sob o modelo do exótico, apontado por Dalcastagnè (2012). Há que considerarmos também no romance de Valadão a perspectiva do cínico, dentro da subdivisão que a estudiosa faz do modelo exótico, uma vez que, na narrativa, aquilo que é idealizado e até aplaudido em Galiano, o português; tornar-se brutal e animalesco no mestiço (o comerciante brasileiro) e nauseabundo no nativo africano (o jaga de Kassanje). Eufrozina é animalizada e nem mesmo Dona Anna Joaquina, como mestiça, escapa dessa animalização dos instintos sexuais. Eufrozina é obrigada a testar os “escravos bem dotados, rebeldes como potros por domesticar” (VALADÃO, 2012, p. 42) para que, depois, eles fossem usados sexualmente por sua ama, que saciaria sua sede de sexo como um animal sedento de prazer e desejo. Isabel Valadão faz questão de demarcar a distância que a separa de seus personagens africanos, apreciando a performance de Galiano, seu ‘igual’, em detrimento dos demais. Nessa perspectiva, não é a escrava Eufrozina que fala no romance, mas a autora que, sutilmente, procura mascarar sua voz por meio de uma narrativa que aparentemente, em seus 112

esquemas linguísticos, aponta a escrava como narradora. Tal estratégia narrativa visa marcar a ausência da mulher subalterna, a escrava, já inscrita como muda, desde o início, quando se submete passivamente aos vários estupros; ou seja, às várias violações de seu direito de fala e de agente. Estando a escrava muda e imobilizada, a autora assume a narração como o sujeito do conhecimento e inconscientemente disposta a fazer da narradora ‘o outro’ de sua escrita, envolvendo-a em estereótipos consagrados pelo imperialismo colonial. Afinal, como especula Said (1995, p. 36), não levamos “em conta o fato de que a extraordinária extensão mundial do imperialismo europeu clássico, do século XIX e começo do XX, ainda lança sombras consideráveis sobre nossa época”. Kilomba (2019), ao falar sobre o ensaio de Spivak (2010), reatualiza a fala da indiana sobre a questão de o subalterno não poder falar:

É impossível para a subalterna falar ou recuperar sua voz e, mesmo que ela tivesse tentado com toda sua força e violência, sua voz ainda não seria escutada ou compreendida pelos que estão no poder. Nesse sentido, a subalterna não pode, de fato, falar. Ela está sempre confinada à posição de marginalidade e silêncio que o pós-colonialismo prescreve (KILOMBA, 2019, p. 47).

Apesar de Kilomba (2019) considerar algumas críticas a respeito da fala de Spivak (2010), em que a acusam de deixar subentendido uma ausência de resistência por parte do subalterno ou uma vitimização deste, apresentando-o como em conformidade com o discurso dominante, a escritora (também portuguesa) alerta para a essência do ensaio de Spivak (2010) que é ressaltar a violência epistêmica de alguns intelectuais do pós-colonial que falham no tocante à representação dos subalternos, tanto no campo político, de um agenciamento (falar por), quanto no campo econômico, de descrição dos grupos oprimidos (re-presentação). No tocante ao comprometimento dos intelectuais para com os subalternos, Spivak (2000) fala de uma política que exija e construa infraestruturas que possibilitem a audição dos subalternos quando estes se prontificarem a falar. “A representação não definhou”, nesse sentido, segundo a autora, e, no que concerne à mulher subalterna, desprezada pelas “prioridades globais”, cabe à mulher intelectual “uma tarefa circunscrita que ela não deve rejeitar com um floreio” (SPIVAK, 2010, p. 126). Estamos cientes, como enfatiza Kilomba (2019, p. 58), de que não há neutralidade nos discursos. Todo sujeito fala “de um tempo e lugar específicos, de uma história e uma realidade específicas”, mas isso, ao nosso ver, deve implicar uma reflexão a respeito dos 113

discursos que são propagados e advindos do centro numa tentativa de revê-los à luz de uma nova postura. Para algumas intelectuais, a tarefa circunscrita de que fala Spivak (2010) parece não encontrar terreno propício para uma contestação do sujeito soberano do ocidente e, nisso, a rejeição à tarefa posta por Spivak (2010) parece ser a saída viável. O olhar de Isabel Valadão se concentrou no corpo de Eufrozina enquanto espaço de violação e exploração, deixando de lado o corpo político do colonialismo que o aprisionou nesse espaço, idealizando inclusive essa relação de domínio e opressão.

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4 ENTRE A TERMINOLOGIA DO ROMANCE E A HISTÓRIA DOS PORTUGUESES EM ANGOLA, AS RICAS-DONAS, DE ISABEL VALADÃO

O romance, assim como a literatura em geral, está na base daquilo que Williams (apud SAID, 1995, p. 45) denominou de “estruturas de sentimento” e cujo termo Said (idem) se apropria para falar do poder da literatura para a aceitação e a legitimação da “expansão européia no ultramar”. Segundo o autor, este poder também pode estar em mãos opostas, daqueles que combatem os governos totalitários e autoritários. De um lado ou de outro, é importante termos em mente que “a maneira como formulamos ou representamos o passado molda nossa compreensão e nossas concepções do presente” (idem, p. 35). E, consequentemente, nossa visão de futuro. Outrossim, o romance é dotado de plasticidade e, por tal propriedade, abriga dentro de si as mais diferentes áreas do conhecimento humano e se estrutura das mais diferentes formas, solicitando para sua construção os mais variados gêneros textuais, literários ou não. Nas palavras de Konder (2005, p. 31):

Como gênero literário, o romance explora caminhos estéticos extremamente diversificados e possibilidades expressivas inovadoras, que muitas vezes contrastam com os padrões constituídos do gosto dos leitores e dos critérios dos críticos. E não é raro, também, vê-lo recriar e reanimar recursos expressivos que davam sinais de esgotamento.

O romance histórico é uma forma deste gênero literário que já estava em vias de extinção, principalmente diante da polêmica contemporânea de contestação do histórico como discurso linear e homogêneo de uma determinada cultura, registrando até a inviabilidade da utilização do romance histórico como gênero literário possível no atual contexto literário ocidental. Na contramão da expectativa de inviabilidade desse tipo de gênero literário, em 2014, Isabel Valadão escreve Angola, as ricas-donas, autodenominando, na capa do livro, sua narrativa de romance histórico. Por outro lado, no lançamento de seu primeiro livro, pela Bertrand, Loanda-escrava, donas e senhoras, em 24 de maio de 2011, na livraria Buchholz, em Lisboa-Portugal, após falar sobre o livro, assim se expressa:

[...] eu não gosto muito de chamar um romance histórico. É isso! Eu gosto mais de chamar uma metaficção. Numa metaficção nós podemos agarrar nessas personagens que existiram e... fazer..., alterar até, o curso da história como ela está registrada, mas podia ter acontecido assim, podia perfeitamente 115

ter acontecido assim; as histórias delas podiam ter acontecido assim e foi assim que eu fiz. Me deu muito prazer.33

Isabel Valadão, portanto, coloca-nos diante de duas terminologias para suas obras, romance histórico e metaficção historiográfica; considerando que, ao falar de metaficção, a autora esteja se referindo à metaficção historiográfica, uma vez que não faz sentido, neste caso, falar simplesmente em metaficção. De antemão, regendo-nos pela explicação da autora, podemos dizer que os romances dela não se aplicam a tal denominação. A fala de Sales (2017) e Hutcheon (1991), abaixo, apenas confirmam essa incoerência terminológica de Isabel Valadão. De acordo com Sales (2017, p. 20), a autorreflexividade é a característica principal da metaficção. O próprio prefixo meta já implica um algo que se volta sobre si mesmo. No caso, uma ficção que fala sobre si mesma, uma linguagem que discute seu próprio modo de proceder. Dito assim, a metaficção historiográfica seria uma “estratégia da narrativa contemporânea que mescla, no mesmo texto e, de forma simultânea, a autorreflexividade da narrativa especular junto à revisão crítica do fato histórico problematizado na ficção” (idem, p. 26). Para Hutcheon (1991, p. 186), a metaficção historiográfica parte do pressuposto de que o acesso ao passado só é possível a partir da materialidade discursiva. Ou seja, a partir de um passado textualizado. Isso implica que ele será sempre mediado pelas estruturas discursivas de seu nascedouro enquanto escrita produzida numa situação específica. Dessa forma, a metaficção historiográfica concebe a história e a ficção como discursos e, portanto, como “construtos humanos, sistemas de significação” (HUTCHEON, 1991, p. 127). Sendo assim, ela visa ao questionamento do passado narrado, através de uma recorrência ficcional de um dado episódio histórico, sem deixar de lado o questionamento de si mesma enquanto discurso de verdade. A metaficção historiográfica se volta para os acontecimentos históricos não apenas reproduzindo-os, mas procurando problematizá-los. Nisso, ela se diferencia do romance histórico, pois se propõe a uma autorreflexão ao questionar as ‘verdades históricas’. Por isso também, a metaficção historiográfica não pode ser vista como apenas uma versão do romance histórico.

33 Lançamento do livro de Isabel Valadão, gravado e postado no Youtube por Isabel Santiago. Disponível em: . Acesso em: 21 set. 2020. A transcrição da fala da autora é nossa. 116

Em Angola, as ricas-donas (2014), de Isabel Valadão, não percebemos, na arquitetura do romance, uma escrita que reflete sobre o passado narrado, problematizando-o, e muito menos sobre a própria escrita. A autora não questiona os acontecimentos do passado angolano que narra, atendo-se a reproduzir o discurso oficial da história, escondendo-se em Eufrozina, como se ela fosse seu avatar34, para narrar uma história dos colonizadores. A narradora se torna, assim, a encarnação da autora, uma mulher europeia e branca que vai narrar a história de Angola não sob o ponto de vista de uma narradora escrava, mas do ponto de vista de uma autora portuguesa; Ou seja, uma escrita que transita entre duas culturas, mas que concentra em si o pensamento eurocêntrico, como já percebemos quando falamos sobre a narradora do romance e como discorreremos adiante neste capítulo. Descartado como metaficção historiográfica, estaríamos diante de um romance histórico? A trama ficcional da autora, em Angola, as ricas-donas (2014), situa-se no período que vai de 1804 a 1869. No primeiro capítulo, um acontecimento no ano de 1804 marca o início da narrativa com a apresentação da feira na região de Kassanje, uma fábrica de escravos, e com o aparecimento do capitão-mor Félix Velasco Galiano, regente do presídio do Pungo Andongo, que é “chamado a Loanda pelo governador-geral, Fernão António de Noronha, para ser encarregado de uma delicada missão” (VALADÃO, 2014, p. 17). No último capítulo, denominado Epílogo, cujo título já em si sinaliza o fim da narrativa, há um dado histórico que anuncia o ano em que as ações ficcionais são encenadas. A narradora-personagem, Eufrozina, recebe uma carta de Farto da Costa dizendo que: “Foi promulgada no passado dia 25 de Fevereiro a lei que proclama a extinção da escravatura em todo o Império Português” (VALADÃO, 2014, p. 337). Com base na história oficial, percebemos que se trata do ano de 1869, momento em que, finalmente, a abolição, em todo Império português, acontece de forma prática e completa, pelo menos no que concerne ao que diz a lei.

34 Silva (2010) afirma que a expressão ‘avatar’, empregada para os mais diversos usos no contexto da Cibercultura, adquire sentidos distintos para os orientais e para os ocidentais, embora, entre estes dois mundos, os sentidos atribuídos ao termo sejam também compartilhados. A expressão, no mundo ocidental, também adquire contornos diferenciados entre os profissionais de diferentes áreas. No entanto, todos esses usos, segundo Silva (2010, p. 122), “revelam o potencial alegórico que o termo carrega” e que provém do “hinduísmo ‘aquele que tudo penetra’”. De acordo com a autora: “A expressão ‘avatar’ vem do sânscrito e serve para designar o representante corpóreo de uma divindade na Terra. Há registros de que o termo seja usado há mais de dois mil anos, com a origem da religião hinduísta. Segundo a denominada Doutrina dos Avatares, o deus hindu Vishnu possui dez encarnações ou avatares, entre os quais Krishna e Sidarta Gautama, o Buda”, e até mesmo “Jesus Cristo”.

117

No instante em que Eufrozina recebe a carta, a narrativa se encaminha para um final e a narradora-personagem relata o seguinte:

As notícias não me trouxeram nem alívio nem preocupação e, apesar de o prazo do serviço obrigatório para os escravos libertos vir a ser encurtado, posteriormente, para o ano de 1876, para mim não faria grande diferença, pois não estava nos meus planos voltar para Loanda, agora que tinha encontrado aquilo que verdadeiramente era importante na minha vida  a estabilidade de um relacionamento maduro entre duas pessoas que no ocaso de suas vidas se haviam reencontrado por força de um destino comum. (VALADÃO, 2014, p. 337, grifo da autora)

O ‘destino comum’ que a narradora enfatiza induz à presença de uma metáfora da nação. Ela, Eufrozina, e Galiano seriam a origem dessa nação que nasceria sob a marca da crioulização35 e da colonização, já que o corpo de Eufrozina (o território colonizado) é invadido por Galiano (o colonizador). É uma nação que já nasce submissa às conveniências dadas pelas circunstâncias postas e impostas pelo colonizador. Logo após, Eufrozina produz o desfecho da narrativa com as seguintes palavras: “Tal como eu afirmei no início deste relato, não sou dona nem nunca o serei... Sou apenas uma mulher livre!” (VALADÃO, 2014, p. 337), mostrando sua condição em relação às ricas-donas de Angola. Nela, não havia a descendência portuguesa que a inserisse na elite crioula transformando-a numa ‘dona’, apesar de ter sido um dia uma princesa e uma bansacuco. A união com Galiano vem tarde, ela estava já com seus sessenta e oito anos. Em função do excerto acima, comungamos de duas informações. A primeira informação é um dado histórico. A lei de extinção da escravidão não significou seu fim definitivo em Portugal e em seus domínios ultramarinos, pois ela condenava os ‘libertos’ a sete anos de trabalhos forçados como forma de indenização, revelando assim as contradições, as arbitrariedades e as violências perpetradas por um sistema opressor, o colonialismo, que não se contentou apenas em se apropriar de territórios e destruir culturas, mas também de

35 De acordo com Carvalho (2014, p. 132), em Introdução a uma poética da diversidade (2005), Glissant anuncia uma crioulização de proporção mundial, que se realiza a partir de uma complexa relação de elementos que se aproximam mesmo em função da distância cultural e geográfica. A relação entre esses elementos poderá produzir resultados imprevisíveis, próprios do processo de crioulização que aponta para uma identidade como rizoma, que, de acordo com Glissant (2005, p. 27), é uma ‘identidade não mais como raiz única, mas como raiz indo ao encontro de outras raízes’. Para Carvalho (2014, p. 132), “Glissant (2005, p. 21) alerta que ‘a crioulização supõe que os elementos culturais colocados em presença uns dos outros devam ser obrigatoriamente ‘equivalentes em valor’ para que essa crioulização se efetue realmente’. Entretanto, no processo de crioulização resultante do sistema de plantation das colônias escravocratas, segundo Glissant (2005, p. 21), ‘a crioulização se dá [...] mas deixa um resíduo amargo, incontrolável’, pois nela os ‘os componentes culturais africanos e negros foram normalmente inferiorizados’” (GLISSANT, 2005, p. 21)”. 118

aprisionar corpos e deles usurpar a força vital de seres humanos até a última gota, sem nenhum ônus, apenas bônus. A segunda é que compartilhamos do desejo de Eufrozina de ficar ao lado de Félix Velasco Galiano em um relacionamento afetivo que, de acordo com ela, era fruto da maturidade de ambos. Será? Esta é uma história contada aqui, mas atentemos agora para um elemento sutil no romance de Valadão e que confirma a metáfora da nação: a história de Eufrozina e Galiano unem os dois fios da narrativa, o começo e o final. Ou seja, a colonização começa com uma invasão, o estupro de Eufrozina por Galiano, e termina com a união imposta dos dois por circunstâncias também impostas pela colonização e, claro, pelo colonizador. Félix Velasco Galiano é figura notória na história de Portugal. No livro de memórias de João Carlos Feo Cardoso Castellobranco e Torres, é relatada a passagem de Galiano por uma das expedições realizadas durante o governo de Luiz da Motta Feo e Torres (1816-1819), em Angola. Três expedições foram realizadas durante este governo e a segunda “sahio do Prezidio das Pedras de Pungoandongo, em 23 de Janeiro de 1818, comandada pelo Capitam Mór, Felix Velasco Galiano, para castigar o Sôva rebelde Quicanco” (TORRES, 1825, p. 318). Esta expedição é ficcionada na narrativa de Valadão com outros tons. Por outro lado, Eufrozina não possui notoriedade, parece mais uma criação artística de Isabel Valadão em Angola, as ricas-donas (2014). A autora portuguesa, nos agradecimentos deixa registrado seu ímpeto criativo a respeito da personagem: “À Eufrozina  e a todas as Eufrozinas que se escondem na Penumbra da História  musa inspiradora nascida do sonho que vivi nas páginas deste livro, numa viagem ao passado de Angola” (VALADÃO, 2014, p. 371). Entretanto, detectamos a presença real de Eufrozina no artigo de Gabriel Felipe de Silva Bem, Resistências e colaborações africanas em dois relatos de viagens em Angola no século XIX (2019). Nesse artigo, o autor conecta Eufrozina a Joaquim Rodrigues da Graça que a menciona em seus relatos de viagem como uma escrava de Dona Anna Joaquina, enviada a Mussumba, capital do país da Lunda, com presentes ao Muatiânvua. Porém, a verdadeira intenção de Eufrozina era criar um conflito entre o Muatiânvua e Rodrigues da Graça, ocasionando-lhe a ruína. Segundo Bem (2019), ‘país’ ou ‘paiz’ é o termo mais usado nas fontes para se referir à Lunda. Joaquim Rodrigues da Graça é o sertanejo que, na narrativa de Valadão (2014), recebe Eufrozina de Galiano e a estupra antes de entregá-la como escrava aos domínios de Dona Anna Joaquina que, aparentemente, era proprietária de Eufrozina na vida real. O mesmo relato que Bem (2019) menciona sobre a viagem descrita por Rodrigues da Graça é descrito 119

na narrativa de Valadão (2014) como uma vingança orquestrada por Dona Anna Joaquina para Eufrozina se vingar da violência sofrida por ela. Embora Galiano e Eufrozina sejam reais, o relacionamento entre os dois é pouco provável que tenha existido, além do mais há muito de ato imaginativo envolvido nos eventos históricos trazidos pela narrativa de Valadão (2014). Não nos resta dúvidas, estamos diante de um entrelace entre o histórico e o ficcional. No campo dessa relação, ancorada sobre o conceito de representação, a apropriação da temática da história pela literatura considera três categorias:

[...] ao lado daquelas ficções literárias que aludem a situações históricas, com os mais diversos objetivos (entre eles, parece-nos que o mais usual seja o de criar certo ‘efeito de real’) e, ao lado também daquelas ficções que apenas situam sua intriga num determinado contexto-histórico, é preciso pensar naquela série de romances que tomam uma realidade qualquer do universo histórico e a transformam em sua matéria, em parte integrante de sua estrutura. Estas ficções fazem da realidade histórica, então, uma (outra) realidade estética. (GOBBI, 2004, p. 38, grifos da autora).

Inferimos que a história se faz presente na ficção literária seja por meio de uma realidade estética que se faz verossímil à realidade histórica, mas que se fecha em si mesma; seja pela referência explícita a um acontecimento ou a um período histórico amplamente reconhecido em torno do qual gira a narrativa ficcional; ou, seja pela natural construção de um mundo ficcional que não deixa também de ser um mundo real possível. No caso das ficções literárias que fazem referência explícita a um acontecimento ou a um período histórico, em torno do qual gira a narrativa ficcional, estaríamos falando aqui do romance histórico que fundem de forma mais ou menos ampla a relação entre história e ficção, fazendo dessa relação um campo fértil para suas produções. Gobbi (2004, p. 38) relata que “o exercício da criação literária tem dado, indiscutivelmente, e em especial a partir do século XIX, exemplos perfeitamente acabados de romances históricos [...]” (grifo da autora). No caso da narrativa de Isabel Valadão, talvez não possamos negar que estamos mesmo diante de um romance histórico. A existência de referentes extratextuais que são possíveis de serem verificados e que sustentam a rede de significações do texto ficcional tendem a enredar o leitor, colocando-o temporariamente em suspensão e em suspeita diante do dito da obra. Embora cientes de estarem diante de uma narrativa literária e, como tal, produto da elaboração e criatividade da autora Isabel Valadão, os referentes históricos confundem o leitor e o arrastam para a narrativa conhecida da história tentando revalidá-la enquanto discurso oficial. 120

Considerando os referentes históricos na narrativa ficcional de Isabel Valadão, poderíamos denominar sua escrita, em Angola, as ricas-donas, como romance histórico. Percebemos que esses referentes não discordam do discurso histórico oficial e atendem aos anseios de uma narrativa colonial. No que concerne aos personagens, temos um dado que é no mínimo curioso, principalmente em relação à narradora. Ao fazermos uma listagem dos personagens do romance, verificamos que, em sua maioria, pertencem ou ao mundo europeu, em especial a Portugal, ou à elite crioula. Além disso, esta parcela maioritária dos personagens são figuras históricas. A exceção desse panteão romano de personagens são os chefes africanos e a arraia-miúda envolvida no comércio de escravos que ocupam na narrativa um plano secundário e que, geralmente, não chegam a ser nominadas. Alguns podem despontar nos relatos históricos oficiais e outros designam tipos sociais, perdendo sua individualização. Nesse contexto, destacamos Eufrozina, um caso à parte na narrativa. Ela é uma escrava comum como tantas outras da época, cuja visibilidade é condicionada pela servidão. Ou seja, ela serve aos propósitos da autora como máscara de si para narrar, como já discutimos antes; serve enquanto corpo que é útil ao trabalho de prover as necessidades de dona Ana Joaquina; e serve ao prazer invasivo e abusivo de homens que representam o poder dominante na narrativa. Isabel Valadão, certamente, ficcionaliza episódios da história de Portugal. Sim, de Portugal e não de Angola e, por isso, poderíamos denominar o romance dela de histórico. No entanto, se a pretensão da autora era, tal como cita na capa do livro, fazer um “retrato de Angola no século XIX e das mulheres que a dominaram”, ela pecou pela falta de imparcialidade em ver apenas o lado dos portugueses e pelo racismo que a fez invisibilizar a atuação e subjetivação dos nativos angolanos, principalmente os mais servis. Se a narrativa de Isabel Valadão por não problematizar a história colonial como foi repassada e nem problematizar sua própria escrita por essa falta, é descartada como metaficção historiográfica. Por outro lado, em termos de romance histórico, ela se volta para o tradicional, pois se apresenta nos moldes da tradição desse gênero. Dentro dessa perspectiva, o romance histórico pode se apresentar de diversas maneiras, tendo sempre em vista, segundo Reis (1992, p. 142), “le respect vis-à-vis des faits historiques; la fiction ne les transforme pas, 121

parce qu’íls fontionnent comme décors encadrant des personnages qui, d´um point de vue sémantique, sont conditionnés, par ces mêmes décors36”. No romance histórico tradicional, há respeito e obediência à história oficial. No que concerne à Angola, as ricas-donas, de Isabel Valadão, percebemos a atenção ao modelo, pois a autora se concentra nas minúcias da história do colonizador, como veremos através de sua narrativa logo mais. Discutimos isso antes, ao falarmos da questão da autoria. Naquele momento, observamos a fala da autora em uma entrevista em que ela afirmava buscar suas histórias na história; ou seja, em seu arquivo pessoal de memórias e experiências vividas como colono em Angola ou no arquivo público dos documentos e monumentos históricos de Portugal. Entretanto, considerando os tempos modernos de colonialidade em que vivemos e a discussão sobre O mal de arquivo, de Derrida, e, por que não, sobre o arquivo do mal, precisamos ver com cautela a rememoração do passado colonial no romance Angola, as ricas- donas, de Isabel Valadão. Reforçando a discussão sobre a obra de Derrida, é essencial enfatizar que, segundo o filósofo, “Não há arquivo sem um lugar de consignação, sem uma técnica de repetição e sem uma certa exterioridade. Não há arquivo sem exterior” (DERRIDA, 2001, p. 22, grifos do autor). Por consignação, Derrida entende não somente o sentido literal da palavra, o de designar um local ou um suporte de confiança em que se possa reunir e acomodar o arquivo, mas também “o ato de consignar reunindo os signos” (grifos do autor).

A consignação tende a coordenar um único corpus em um sistema ou uma sincronia na qual todos os elementos articulam a unidade de uma configuração ideal. Num arquivo, não deve haver dissociação absoluta, heterogeneidade ou segredo que viesse a separar (secernere), compartimentar de modo absoluto. O princípio arcôntico do arquivo é também um princípio de consignação, isto é, de reunião. (DERRIDA, p. 14).

Partindo de um outro princípio arcôntico, o de que o arquivamento não só produz, mas registra o evento, o da consignação daria a ideia de conjunto, de totalidade e de unidade dos discursos para construir uma verdade histórica. O mal de arquivo, dotado de uma pulsão de morte, viria para introduzir “a priori o esquecimento e a arquiviolítica no coração do monumento. No próprio ‘saber de cor’” (idem, p. 23). Ou seja, o mal de arquivo viria para perturbar o sentido (do imprimente e do arquivo), pois impossibilitaria o retorno a uma

36 “[...] o respeito aos fatos históricos; a ficção não lhes transforma, porque eles funcionam como cenários, emoldurando os personagens que, de um ponto de vista semântico, estão condicionados por esses mesmos cenários” (Tradução de Maria Iara Zilda Návea da Silva Mourão). 122

origem, propondo ao imprimente a aceitação do arquivo como verdade, uma vez que ele simboliza o lugar da lei e a própria lei. Outrossim, o arquivo não é, conforme Derrida (idem, p. 50), “uma questão do passado”, mas “do futuro”. Em outros termos, trata-se da projeção dos discursos de verdade como repetição, como impressão. Birman (2008) relata que uma leitura crítica da problemática do arquivo, em Derrida, solicita uma incursão no contexto de produção da obra Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Isso é importante porque a desconstrução é para o filósofo, segundo Birman (2008, p. 107), “uma reflexão empreendida pela filosofia com base no que se realiza e se produz efetivamente no campo da história”. Sendo assim, a discussão de Derrida sobre o arquivo está situada nas “múltiplas desconstruções dos arquivos sobre o mal” (idem), como, por exemplo, o do holocausto e o do nazismo. Dessa forma, para falarmos sobre o romance de Isabel Valadão, Angola, as ricas- donas (2014), na perspectiva de uma problemática do arquivo, faz-se necessário enfatizar as desconstruções dos arquivos sobre o mal, como também a do mal de arquivo. De um lado, pelo contexto colonial do romance em questão e pelo posicionamento da autora em reconstruir o passado colonial a partir de um arquivo histórico tradicional. De outro, pela impressão que o romance pode trazer ao se livrar de um mal de arquivo, recriando a colonização e a escravidão como campo natural de uma disputa salutar entre os interesses de uma elite crioula e os das autoridades coloniais, relegando ao esquecimento, consciente ou não, as opressões e violências impetradas. Isso posto e retornando à terminologia apropriada para identificar o romance de Isabel Valadão, propomos para o impasse entre romance histórico ou metaficção historiográfica, a designação de romance colonial. A história que a autora representa, literária e politicamente, é questionável e problemática do ponto de vista de uma cultura pós-colonial, devido ao acento apologético ao colonialismo em sua tessitura, sendo mais adequado para ele a denominação que aqui propomos. Ao falarmos em literatura colonial, de antemão vem a ideia de uma estética ideológica, concentrada em espaços circunscritos e direcionada a tempos específicos. A colonização se apresenta como um aspecto do passado, mas, como diz Noa (2002, p. 15), é sintomático que “a questão colonial de modo algum está ultrapassada”. Na atualidade, a prova disso são as “manifestações discursivas e comportamentais visceralmente identificadas com esse ideário e [...] as tentativas de esbatimento ou de camuflagem dos factos relacionados com o fenómeno colonial” (idem, p. 15-6). 123

Se nos países africanos de língua oficial portuguesa “o Ocidente e seus avatares (lugares, locais, sujeitos) continuam a ser o modelo”, conforme Mata (2014, p. 37), não é de se estranhar que as representações desses africanos, aqui em especial os angolanos, possam ainda serem vistas pela literatura a partir de uma perspectiva, exclusivamente europeia, ou portuguesa como é o caso do romance de Isabel Valadão. A comprovação da vivência da autora no período do Estado Novo na angola portuguesa só intensifica e justifica a apologética colonial exposta em seu romance Angola, as ricas-donas (2014), ainda que extemporâneo. É claro que precisamos trabalhar no sentido de desvendar e desconstruir tais discursos para revelar e desestruturar o racismo que cria desigualdades de toda ordem. No entanto, mais que isso, em nossa contemporaneidade, a questão eurocêntrica, inserida como discussão nos estudos pós-coloniais, precisa promover uma descolonização teórica, nas palavras de Mata (2014). O propósito é mitigar ou mesmo interditar o processo de globalização que insiste em aprofundar “as desigualdades entre um norte hegemônico e um ‘sul subserviente’” (idem, p. 36). A transição é lenta, mas necessária, ainda que aqui tenhamos pecado por isso. Procuraremos sanar nossa culpa doravante. Neste capítulo, partindo de uma classificação do romance como literatura colonial, cabe-nos analisar as representações históricas em Angola, as ricas-donas, de Isabel Valadão, tentando dialogar criticamente com os aspectos coloniais e escravocratas da narrativa da história portuguesa feita pela autora em sua escrita literária, assim como, examinarmos a atuação de poder e mando das mulheres africanas ou luso-africanas que pertenciam à elite crioula de Luanda, Angola, no século XIX, e que enriqueceram em função do mercado de escravos existente, seja por meio de heranças paternas e/ou vários casamentos, em especial Dona Anna Joaquina dos Santos e Silva. Tudo isso por intermédio do pseudo-olhar de Eufrozina, a narradora do romance, visto que ela é, como dissemos, um avatar da autora.

4.1 Angola, as ricas-donas como romance colonial A literatura, como objeto cultural, reflete as estruturas de uma dada sociedade e, como discurso, estabelece quem pode ou não falar. No terreno literário, a narrativa de ficção, segundo Said (1995, p. 13), por um lado, “tornou-se o método usado pelos povos colonizados para afirmar sua identidade e a existência de uma história própria deles”, mas, de forma mais usual, por outro lado, foi o espaço utilizado pelo colonizador para definir quem tinha o “poder de narrar, ou de impedir” que se formassem ou surgissem narrativas outras que contestassem o poder do centro. 124

Para interditar o outro, impedindo-o de narrar (falar) era preciso construí-lo como uma negação em relação ao colonizador, no que concerne à alteridade. A estratégia do discurso colonial foi “apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução” (BHABHA, 2010, p. 111). Com isso, o colonizador retirou do colonizado a condição de agente, incapacitando-o de ser responsável por si mesmo e de gerir sua própria vida, para, por fim, reduzi-lo à coisa (propriedade), tal qual a terra e os recursos naturais de seus territórios que também foram usurpados. O colonizador se apropriou dos corpos colonizados como força de trabalho, como instrumento de prazer, estuprando corpos ou infligindo outros tipos de dor e sofrimento, e/ou utilizando-os como mercadoria. Ademais, na condição de escravizados, os negros tiveram uma subjetividade negada e uma cultura destruída. Para tanto, a despersonalização do negro através da justificativa racial foi essencial para a colonização. De acordo com Almeida (2019), a noção de raça para distinguir seres humanos “é um fenômeno da modernidade que remota aos meados do século XVI”. Seu sentido está vinculado às circunstâncias históricas de uso do termo que, nessa época, obtém um sentido específico, segundo o autor, devido à configuração da época:

A expansão econômica mercantilista e a descoberta do novo mundo forjaram a base material a partir da qual a cultura renascentista iria refletir sobre a unidade e a multiplicidade da existência humana. Se antes desse período ser humano relacionava-se ao pertencimento a uma comunidade política ou religiosa, o contexto da expansão comercial burguesa e da cultura renascentista abriu as portas para a construção do moderno ideário filosófico que mais tarde transformaria o europeu no homem universal (atentar ao gênero aqui é importante) e todos os povos e culturas não condizentes com os sistemas culturais europeus em variações menos evoluídas (ALMEIDA, 2019, p. 18).

A Europa se torna o centro do mundo e, também, o modelo para medir o grau de civilidade dos outros povos, estando hierarquicamente calcada no poder do homem (do sexo masculino), branco e europeu. Se o europeu era tido como civilizado, o não europeu representava a barbárie, a selvageria, o primitivismo. Se era ele o ser superior, seu oposto significava a inferioridade desejosa de civilidade e para a qual a Europa investia sua missão civilizadora, como pretensa fundamentação para uma prática colonialista e escravagista. Conforme Bethencourt (2018, p. 249),

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Os outros povos do mundo eram hierarquizados de acordo com os critérios europeus para a definição do que era um comportamento controlado ou civilizado. Esses critérios eram expressos segundo a cor da pele, com base na oposição entre preto e branco, algo reforçado com a experiência colonial.

Nos espaços coloniais, a discriminação racial potencializou o projeto de construção do sujeito colonial no ‘outro’ através de uma gama de estereótipos que a religião e em grande parte a ciência trataram de criar e reforçar. Para o homem branco, o negro, desprovido de humanidade, tornava-se propriedade. A mulher negra, sofria, por sua vez, uma dupla colonização, seja pela condição de ser mulher, tida como objeto de prazer do homem branco e/ou objeto reprodutor de mão de obra escrava; seja pela condição da raça no que concerne à força de trabalho escrava. Dentro de um sistema escravocrata, como dissemos antes com Davis (2016, p. 19), embora a mulher negra tenha sido considerada como desprovida de gênero, quando se tratava de seus atributos sexuais e reprodutores, ela era reduzida à sua condição de fêmea pelo senhor de escravos. Observamos anteriormente que é temeroso considerar nossa contemporaneidade como sendo de pós-modernidade, uma vez que ainda estamos inseridos nas concepções da modernidade, estabelecida pelo sistema-mundo de uma Europa central em que os não europeus eram a periferia do mundo. Na atualidade, este conceito, como discutimos, transferiu a dualidade metrópole versus colônia aos sujeitos do sistema capitalista vigente. É nessa perspectiva que trouxemos o conceito de transmodernidade, acreditando que até mesmo a modernidade não pode ser estendida para todas as sociedades que foram abarcadas pelo mundo ocidental, estando tais sociedades numa pré-modernidade, embora inseridas na modernidade. A concepção de transmodernidade implica o reconhecimento de que a modernidade é um mito e que não houve e nem há uma inocência da razão eurocêntrica, hoje euro-americana, em exaltar o progresso e o desenvolvimento contínuo como projeto humanístico extensivo à totalidade mundo. Por trás desse projeto, havia a acumulação de capital de uma elite privilegiada e a subjugação dos menos favorecidos pelo capital. Com isso, a modernidade, tanto em termos colonial como em termos de periferia, na atualidade, produziu suas vítimas. É em função desse entendimento, que as relações de poder existentes no colonialismo podem ser vistas como colonialidade do poder dentro das sociedades capitalistas. Dentro dessa ótica, a escrita de Isabel Valadão, Angola, as ricas-donas (2014), pode ser analisada como uma forma de colonialidade, pois é na condição de centralidade do poder e do saber que a autora revisita o passado colonial angolano em pleno século XXI. Se 126

considerarmos todas as discussões em torno das desigualdades propagadas pela modernidade capitalista na atualidade e as incongruências de “uma ideologia lusotropicalista de que Portugal produziu uma colonização e um colonialismo [...] diferentes e [...] apaziguadores”, discutida por Laranjeira (2015, p. 33), a escrita de Isabel Valadão se encontra desconectada da prática vigente na atualidade, a de contestação da modernidade capitalista, do colonialismo e das práticas de dominação e opressão que geram desigualdades humanas. Além de a autora descrever a elite crioula como representante da totalidade angolana dentro de um processo de colonização, o que daria a impressão de um colonialismo essencialmente benéfico, uma vez que trouxe o progresso e o desenvolvimento ao povo angolano; a escravidão acaba sendo descrita no romance como o capital necessário para a modernidade desejada. Sob esse ponto de vista, estamos diante de uma literatura colonial que é produzida na colonialidade, configurando-se como um colonialismo extemporâneo. Noa (2002) situa o início da literatura colonial, em Portugal, no século XX, como decorrente de um processo de perda de hegemonia. Segundo o autor, no século XVII, quando Portugal, que desde o século XV sofria com a perda de sua hegemonia perante a Europa, esmorece com o protagonismo inglês, francês e holandês diante da saga expansionista. Tal esmorecimento se transformará em desencanto com a perda do Brasil no século XIX. Nessa época, era prática comum entre os escritores portugueses, como Antero de Quental, lamentar a aventura ultramarina concebendo-a como dispendiosa e perniciosa para o país. No século XX, esta concepção, aliada ao desconhecimento da realidade africana, irá impulsionar “a criação e consolidação de mitos e imagens preconceituosas” sobre a África e sobre os negros. (NOA, 2002, p. 17-8). No referido século, quando a problemática colonial se torna gradativamente uma questão de Estado e o povoamento extensivo das colônias portuguesas demanda o aparecimento do Estado Novo, o embranquecimento das colônias obtém na discriminação racial sua estratégia mais poderosa. É nesta época que os intelectuais portugueses solicitam a criação urgente de uma mentalidade colonial. Noa (2002, p. 19) relata que, neste contexto, José Osório de Oliveira, em um texto de 1926, intitulado ‘Literatura colonial’ irá dizer que tal mentalidade, “só a literatura a pode criar” e insiste “sobre a necessidade de romances...”. Dessa forma, “uma das criações mais representativas da colonização moderna é exactamente a literatura colonial” (idem). De acordo com Noa (2002), no período em que essa literatura mais se produziu, precisamente o do Estado Novo em Portugal, três anos antes de 1933 até 1974, tínhamos, 127

considerando o grau de analfabetismo dos nativos das colônias, uma literatura escrita por e para portugueses. Para Noa (2002, p. 21-22), a literatura colonial é:

[...] toda a escrita que, produzida em situação de colonização, traduz a sobreposição de uma cultura e de uma civilização manifesta no relevo dado à representação das vozes, das visões e das personagens identificadas com um imaginário determinado. Isto é, trata-se de um sistema representacional hierarquizador característico, de modo mais ou menos explícito, pelo predomínio, num espaço alienígena, de uma ordem ética, estética, ideológica e civilizacional, neste caso, vincadamente eurocêntrica.

Por um lado, essa literatura “recria um imaginário e todo um discurso que acaba por traduzir, no essencial, a forma como o Ocidente (West) tem processado a sua relação cultural e civilizacional com o Outro (Rest), neste caso, o Africano” (NOA, 2002, p, 21, grifos do autor); e, por outro, ela pode ser considerada responsável, “por ter provocado, em determinado momento, uma escrita reactiva que se conhece nas literaturas nacionais que surgiram nos países africanos” (NOA, 2002, p. 22).

A literatura colonial, enquanto modo particular de gerar (e gerir) o mundo, acaba por consagrar esteticamente a expressão O mundo que o português criou, uma das mais emblemáticas expressões de Gilberto Freyre e título de uma das suas obras mais representativas. Trata-se, aliás, de uma das crenças que mais alimentam e povoam, mesmo que de forma subterrânea, o imaginário dos portugueses. E a literatura colonial não só se limita a criar mundos possíveis ou alternativos, como torna seriamente indissolúvel a compatibilidade entre esses mundos e o mundo real, isto é o seu devir. Daí a sua importância e atualidade. (NOA, 2002, p. 91, grifo do autor).

Ou seja, a literatura colonial é inflexível a mudanças e privilegia a representação de um mundo estático onde a construção de uma identidade do tipo etnocêntrica, circunscreve a realidade a um único quadro de referências. Anteriormente, comentamos que na atualidade a literatura colonial se faz presente seja de forma explicitamente declarada ou de maneira mascarada. Há ainda que considerarmos a concepção de uma literatura-mundo que se coloca “acima de localismos, regionalismos, casticismos, particularismos, racializações, classismos, e assim por diante” (LARANJEIRA, 2015, p. 30). Em suma, neutra como se propõe a ser, como veremos, a narrativa de Isabel Valadão. Em relação ao gênero literário utilizado pela autora, Kristeva (1970, apud NOA, 2002, p. 81) enfatiza que um aspecto essencial do romance é seu caráter transgressor e a capacidade de acompanhar as concepções do tempo da escrita. Não há como um sujeito da escrita não ser 128

tocado pelas circunstâncias históricas de seu tempo e, para isso, o romance se mostra quase sempre atento. No entanto, como literatura colonial, o romance de Isabel Valadão se encontra ideologicamente marcado, mostrando uma visão de mundo hierarquizadora; o que, nas palavras de Noa (idem), caracterizaria o romance colonial. No caso de Isabel Valadão, o gênero se encontraria, do ponto de vista da escrita, totalmente extemporâneo, considerando-se as atuais contestações da modernidade e do colonialismo inerente a ela. Angola, as ricas-donas é constituída de um poema preliminar cujo tema são as ricas- donas; um pequeno currículo histórico sobre estas; um prefácio da autora, situando as ricas- donas dentro do contexto de colonização e de escravidão dos séculos XVIII e XIX na cidade de Loanda/Luanda, em Angola; uma introdução do romance, colocando, como o próprio título anuncia, ‘Portugal e Angola no contexto Atlântico do século XIX’, o primeiro capítulo: ‘Kassanje, 1804 – a ‘fábrica’ dos escravos’, com um narrador em terceira pessoa, apresentando a feira de Kassanje, o personagem histórico Félix Velasco Galiano, a designação da missão de Galiano e todas as ações e consequências dessa missão, bem como o rapto e ‘estupro’ de Eufrozina que, na época, era, nas palavras de Galiano, “a concubina de Malange a Ngonga” (VALADÃO, 2012, p. 28). Constam ainda outros quarenta capítulos, cuja narradora é Eufrozina, e os anexos: Carta de Dona Anna Joaquina ao Barão de Santa Comba Dão, Decreto de 10 de dezembro de 1836, Relação dos objetos em navios que se configuravam como provas do tráfico de escravos, Tratado de 3 de julho de 1842 entre Portugal e a Inglaterra para a abolição do tráfico da escravatura.

4.2 O retrato de Angola no século XIX: colonização e escravidão Em Angola, as relações entre africanos e europeus sempre foram pacíficas, afirma Wheeler (2013). Entretanto, elas começaram a se modificar a partir do momento em que os portugueses adentraram o interior com o objetivo de firmar “uma grande fábrica de escravos para o império português no Atlântico meridional” (idem, p. 68). A partir de então, um novo padrão nas relações entre portugueses e angolanos começava a surgir e se manterá até a metade do século XIX como projeto colonial. A interiorização no território que, mais tarde, seria Angola, começa entre 1579 e 1580, quando os portugueses empreendem uma guerra de conquista à colônia e que não regride nem com a conquista espanhola de Portugal. Em finais do século XVII, eles desaceleram a penetração em direção ao interior e se voltam para a costa de Angola, numa tentativa de inibir o contrabando estrangeiro de escravos que ameaçava os lucros da metrópole 129

portuguesa. “Até 1836, quando novas mudanças começaram a ter lugar em Angola, a colônia era pouco mais que uma ‘feitoria militar comercial’” (WHEELER, 2013, p. 85). Na expansão ultramarina de Portugal, a historiografia, segundo Alexandre (2000), detecta a existência de três impérios distintos: o do Oriente, que começa e termina no século XVI; o do Brasil, que tem início nesse mesmo século e finda na primeira metade do século XIX; e, aquele que aqui nos interessa, “o africano, que abre difícil caminho no decurso de Oitocentos, ganha consistência territorial nas primeiras décadas de Novecentos e termina com a descolonização, em 1975” (idem, p. 11). O romance de Isabel Valadão – Angolas, as ricas-donas, antecede a criação desse império que ganha fôlego, conforme Alexandre (2000, p. 17), na “década de setenta [1870]” do século XIX. O contexto enunciativo do romance da autora compreende um período que vai de 1804 a 1869, quando alguns eventos já começam a dar forma a este império colonial em África e que ganharia robustez com a Conferência de Berlim, realizada no período de 15 de novembro de 1884 a 26 de novembro de 1885, onde ocorreria a partilha da África. De 1800 a 1836, de acordo com Wheeler (2013, p. 86), Angola passaria por uma fase de transição marcada por três acontecimentos que anunciariam uma reviravolta na colônia. As invasões napoleônicas (1807-1811) e as violentas disputas políticas (1820-1845); a independência do Brasil (1822); e a abolição gradual do tráfico de escravos africanos (1810- 1836). Todos esses acontecimentos são pontuados pela narrativa de Isabel Valadão (2014) e são pontuados pela autora numa espécie de pré-capítulo do romance:

Em Portugal, todo o século XIX ficaria marcado por um longo período de crise e de convulsões políticas, que começaria logo em 1807, com a fuga para o Brasil da corte portuguesa, na sequência do Bloqueio Continental decretado por Napoleão Bonaparte e das subsequentes Invasões Francesas. Grandes revoluções, convulsões e mudanças no Reino tiveram, naturalmente, repercussões nas colónias e também a Angola chegava o eco, mais ou menos amortecido dos conflitos que se iam verificando na Europa, onde tinham já começado a surgir, implementados pelos ventos humanistas do iluminismo, os movimentos para abolir a escravatura nas colónias das diversas potências europeias. Desde o início daquele século que se assistia a uma viragem política e de mentalidade e o grande impulsionador da abolição da escravatura seria o liberalismo. Angola passaria por uma conjuntura profundamente turbulenta, especialmente desde 1836, com a luta para o fim e, ao mesmo tempo, a manutenção do comércio da escravatura, em torno do qual girava toda a sua vida económica e na qual tomavam parte as grandes figuras da sociedade loandense, os ricos comerciantes e as ricas viúvas comerciantes, mulatas e negras. A situação da colónia reflectia a instabilidade que se fazia sentir na metrópole, registrando por vezes uma completa ausência de lei, quase de anarquia. As autoridades procuravam impor as novas directivas, sem 130

resultados práticos, esbarrando na força dos traficantes de escravos, pouco escrupulosos, bem como na de outros agentes de origem europeia ou pardos, os degredados e os lançados (mesmo que pumbeiros), completamente imersos no rendoso comércio de seres humanos (VALADÃO, 2014, p. 15- 6).

Tais acontecimentos vão sendo inseridos na narrativa à medida que a história da elite crioula em conjunto com a atuação das ricas-donas é narrada por Eufrozina. Em todos eles, vemos o entrelaçamento da “manutenção dos territórios coloniais e a operacionalização do tráfico negreiro” (RODRIGUES, 2005, p. 46), principalmente pela elite crioula ou luso- africana, no contexto de uma Angola de mais da metade do século XIX. Segundo Rodrigues (2005, p. 47), a presença portuguesa em África até meados do século XIX será pequena em relação aos outros europeus e isso implicava, para o período, uma política colonial africana diferenciada. As relações regulares, sem que houvesse uma efetiva ocupação dos portugueses em territórios africanos, demandava uma política colonial “marcada pelo contrabando ou pela posse de áreas reduzidas” (idem). Esse tipo de política colonial, com o tempo, consistiria no surgimento de uma elite crioula, constituída dos denominados ‘filhos do país’ os quais, pouco a pouco, adquiririam autonomia que possibilitaria poderes para conduzir o tráfico negreiro seja dentro ou fora da legalidade imputada por Portugal no transcurso de 1804 a 1869, tempo da narrativa do romance de Isabel Valadão. Para Dias (2000, p. 76):

Nas primeiras décadas do século XIX, segundo estimativas contemporâneas, os dois núcleos coloniais centrados em Luanda e Benguela teriam abrangido um total de 250.000 a 300.000 indivíduos, de origens muito heterogêneas. Entre elas incluíam-se cerca de 3.000 mestiços – rotulados no vocabulário colonial da época como ‘pardos’, ‘mulatos’ ou ‘filhos do país’. A distribuição irregular dessa população pela colónia, acompanhava as correntes do tráfico transatlântico.

Dentro desse contexto de inserção dos ‘filhos do país’, verificamos, na narrativa, três pontos importantes que enfatizam as relações da elite crioula da colônia angolense com a governança da metrópole portuguesa: a relação da colônia com a metrópole no que concerne às questões da escravidão; a questão do comércio de escravos na colônia, compreendendo o período citado cujos marcos, inicial e temporal, abarcam alguns anos antes da partida da família real portuguesa para o Brasil e a extinção da escravidão em todo o império português; e, os reflexos da independência do Brasil para a colônia angolense. 131

Luanda, conhecida como o maior porto negreiro do Atlântico, no último quartel do século XVIII, devido à precária presença portuguesa na colônia angolense era gerida, em grande parte, por grupos nativos, miscigenados cultural e racialmente, que concentravam as suas riquezas e seus poderes em torno do comércio transatlântico de escravos, detendo, com isso, privilégios administrativos e um prestígio social e político de enorme contribuição para a manutenção do tráfico de escravos (AZEVEDO, 2015). Era este o caso das ricas-donas de Angola; entre elas, Dona Anna Joaquina dos Santos e Silva:

Na cidade, havia outras donas, quase todas crioulas, umas poucas de pele negra e algumas, muito poucas, de pele completamente branca, estas últimas casadas com militares vindos do Reino ou com funcionários públicos da administração colonial. Dona Anna Joaquina dos Santos representava, a par de outros moradores e negociantes locais, os interesses dos filhos da terra em oposição às vozes e aos interesses dos poderes políticos e mercantis metropolitanos, representados pelos homens de mar em fora. No palácio da Cidade Alta, os governadores-gerais iam mudando ao sabor das nomeações e das políticas de Estado em Lisboa, mas a todos minha Ama conseguia agradar e tornar-se numa presença indispensável [...]. Dona Anna era solicitada para aconselhar o governador-geral em alguns assuntos oficiais e nas leis locais, especialmente naquelas que o governo da colônia ia criando nas várias áreas dos negócios com os povos do interior (VALADÃO, 2014, p. 60-1).

Os negociantes brancos, alguns funcionários portugueses e, principalmente, os governadores coloniais (ou governadores-gerais) dependiam imensamente, conforme Dias (2000, p. 78) “dos conhecimentos e da experiência dos ‘filhos do país’”. Tal estado de dependência gerou, ao longo do século XIX, uma série de conflitos decorrentes de interesses de um e de outro grupo, colônia x metrópole. Nesse cenário conflituoso, estava Luanda que, em fins do século XVIII para o começo do século XIX, em razão da intensificação do comércio de escravos para as Américas, tornava-se o lugar privilegiado das transações do tráfico transatlântico de cativos e, por sua vez, adquiria traços mais urbanísticos. De acordo com Azevedo (2015, p. 29), a cidade de Luanda, nesta época, estava dividida em duas, a “cidade alta” e a “cidade baixa”. A primeira era constituída pelos “poderes político, militar e religioso, assim como os serviços administrativos e judiciais” (idem). A segunda abrigava “os entrepostos comerciais, as tabernas, as estalagens, as oficinas, as palhotas dos africanos livres e dos escravos que trabalhavam na região e, especialmente, as residências dos mercadores de escravos” (idem). 132

Tais residências eram habilmente construídas com todo o aparato necessário para o armazenamento e embarque dos cativos para o Novo Mundo, nas palavras de Azevedo (2015, p. 29). O Palacete do Bungo, residência de Dona Anna Joaquina dos Santos e Silva em Luanda, era de uma imponência e tamanho que simbolizava adequadamente o poder da rica- dona e que se estendia também à riqueza e poderio dos comerciantes de escravos em Angola. A ampla arquitetura da construção comportava os espaços destinados aos cativos que chegavam aos montes à costa atlântica de Luanda, onde residia Donna Anna Joaquina. Eufrozina descreve sua chegada na cidade no ano de 1805, juntamente com uma leva de cativos, que iriam parar no pátio da propriedade do pai de Dona Anna Joaquina, ainda vivo na época.

Fomos encaminhados para uma das casas, muito grande, como eu nunca tinha visto nenhuma, que ficava ao pé de um rio ainda maior do que o Kwango e o Kwanza juntos, e que devia ser o tal pai de todos os rios a que, saberia mais tarde, chamavam ‘mar’ e tinha água salgada em vez de doce como a dos rios da minha terra. A casa pertencia à família dos negociantes negreiros [...]. Fomos todos reunidos num enorme pátio, onde já se encontravam outros escravos. E vieram uns homens inspecionar-nos e falar com o sertanejo que nos acompanhara até ali [...], selecionavam os escravos que chegavam do sertão e escolhiam os que ficavam ao serviço da família, em Loanda e nos arimos do Bengo [...]. Constava que em Loanda e nos arimos do Bengo a família possuía mais de mil escravos! De facto, o pátio grande que ficava nas traseiras da casa do Bungo, aonde eu primeiro tinha chegado, estava sempre cheio de homens e mulheres que nunca permaneciam por muito tempo. Tão depressa chegavam em caravanas vindas do interior, como logo desapareciam e eram substituídos por novas levas de escravos acabados de chegar (VALADÃO, 2014, p. 35-37).

O patrimônio de Dona Anna Joaquina era gigantesco. Com a morte de seu pai, ela herdara todos os negócios do tráfico, além dos arimos da família e das terras deixadas pela mãe como herança. Sua riqueza apenas se comparava a sua importância em Luanda para quem os sucessivos governadores-gerais recorriam ao chegar em Luanda. Em 1808, ela é solicitada às pressas pelo atual governador-geral da colônia para providenciar a recepção da comitiva Molua, que celebraria “o estabelecimento das relações de amizade e de cooperação entre o imperador da Lunda e as autoridades portuguesas da colónia” (VALADÃO, 2014, p. 67).

133

Desde que tomara posse do governo de Angola que era firme intenção de António Saldanha da Gama, conde de Porto Santo, erradicar a rivalidade comercial que se vivia na altura nos diversos estados tribais vizinhos, dos quais o principal era o reino de Kassanje, e estabelecer relações directas com a nação dos Moluas [povos da Lunda] ou do muatiânvua, o termo português para mwata yanvo, o imperador da Lunda, o ‘Senhor dos Senhores’. Esta nação que confinava, na costa oriental com outra do Mutua Cazembe, um vassalo do mwata yamvo, era de onde provinha o grosso dos escravos que chegavam a Loanda, comercializados posteriormente na feira de Kassanje (VALADÃO, 2014, p. 64).

António Saldanha da Gama foi governador-geral da colônia angolense de 1807 a 1810. De acordo com Dias (2000, p. 74), o império da Lunda foi o “principal gerador de escravos exportados das costas de todo o litoral angolano e fonte de riqueza de todos os sistemas políticos africanos mais a oeste, incluindo a própria colónia portuguesa”. As relações da Lunda e da colônia portuguesa até os primeiros anos do século XIX eram mediadas por “Estados intermediários do vale do Cuango, nomeadamente, Matamba, Holo, Mbondo e, em especial, Cassange” [ou Kassanje]. Este último, segundo a autora, na figura de seu rei ou jaga, “tentou impedir o livre trânsito de comerciantes estrangeiros nas suas terras, de modo a exercer o monopólio do comércio com a Lunda”. A feira de Kassanje era de importância vital para a Coroa Portuguesa, pois dela provinha o abastecimento do tráfico transatlântico de escravos, além de possuir também um valor estratégico como aliado poderoso das autoridades portuguesas. Mediante isso, conforme a narrativa de Valadão (2014), foi exigido do jaga de Kassanje que ele liberasse o trânsito dos comerciantes estrangeiros sob a ameaça de, havendo recusa, que o governador-geral iria ordenar-lhe “a evacuação imediata da feira de Kassanje” e a criação “de outra feira noutro local” (VALADÃO, 2014, p. 65). Diante da recusa do jaga, haverá uma gradual evacuação da feira de Kassanje para a “feira de Mucari e Bondo”. Enquanto isso, “Honorato Costa logrou ultrapassar os entraves apresentados pelo jaga, fazendo com que os seus pumbeiros37 chegassem à mussumba38 do muatiânvua, onde foram muito bem recebidos”. O imperador da Lunda concorda em enviar “extensa comitiva composta pelos embaixadores mulas” que chega na cidade em janeiro de 1808. “Foram recebidos no palácio da Cidade Alta com honras protocolares”, celebrando “o

37 Eram comerciantes itinerantes que percorriam o interior. No início, o nome foi usado para designar os comerciantes portugueses, supostamente ‘brancos’, do interior. Depois, com o tempo, houve um predomínio de negros e mulatos. Já no século XVII os pumbeiros eram escravos dos comerciantes portugueses que faziam negócios para eles no interior. Para Valadão (2014, p. 33), os pumbeiros eram pretos descalços, assim chamados por não serem transculturados. 38 Capital, onde vive o muatiânvua (VALADÃO, 2014). 134

estabelecimento das relações de amizade e de cooperação entre o imperador da Lunda e as autoridades portuguesas da colónia” (VALADÃO, 2014, pp. 66-7). A forte presença de Dona Anna Joaquina na cerimônia de recepção da comitiva molua, agindo “como mediadora e, de certa forma, também no papel de anfitriã”, estabelecia a amplitude dessas relações “com os interesses que ela simbolizava ali”. Ou seja, os interesses dos filhos do país. Ela era o símbolo da “presença prestigiada e respeitável de uma ilustre angolense” (VALADÃO, 2014, p. 67), representando os mais dignos moradores de Luanda. Sua presença era um sinal da dependência da metrópole portuguesa aos filhos do país.

O governador soubera da deslocação de Dona Anna ao encontro dos embaixadores moluas em determinado ponto da sua viagem pouco antes da sua chegada em Loanda. Nesse encontro de algumas horas, seriam removidas as dúvidas sobre as intenções do governador quanto ao respeito das autoridades portuguesas pelo conteúdo dos tratados a assinar na recepção da embaixada. Para assegurar o êxito dessa missão, Dona Anna fizera-se acompanhar por sobas das suas relações, chamados de urgência ao palacete do Bungo para serem esclarecidos. Além disso, muito contribuiu o prestígio da Na Andembo, cujo eco chegava às terras daquela Lunda tão distante, para que os embaixadores chegassem a Loanda e à presença do Muene Puto39 com a confiança indispensável para aceitarem a letra dos tratados em nome do seu soberano (VALADÃO, 2014, p. 70).

A intercessão de Dona Anna Joaquina a favor das intenções do governador-geral torna-se uma peça-chave para a obtenção do tratado entre o império da Lunda e a figura do governador-geral. A partir deste acordo, António Saldanha da Gama ficou conhecido na história de Portugal. Em um dos relatos sobre seu governo, feito por Torres (1825), é descrito exatamente aquilo que é exposto por Valadão (2014), incluindo a atuação do tenente-coronel de milícias Francisco Honorato da Costa, responsável por informar o governador-geral sobre os entraves da relação desejada e de fazer o contato entre a Nação dos Moluas e Luanda. Conforme Torres (1825, p. 296): “Foi no seu tempo e pelos seus desvelos, que se estabelece a comunicação directa com a Nação dos Moluas, por cujo intermédio se veio ter conhecimento da contra costa”. Em um governo anterior, “o de D. Francisco Innocencio de Souza Coutinho” já existia o “projecto da comunicação das duas costas, oriental e occidental da Africa”, mas este havia sido abandonado, tendo sido retomado no governo de Saldanha da Gama. Duas expedições, nessa época, saíram igualmente de Moçambique e Angola com o mesmo intuito, porém a que alcança êxito é a de Angola.

39 O reino de Portugal; também o seu representante, o governador-geral (VALADÃO, 2014). 135

Os Moluas representavam, ao contrário de outros povos africanos, aqueles que se submetiam à vassalagem a Portugal, através da prática do undamento que, conforme a trama ficcional de Valadão (2014, p. 317), foi originada no século XVII. Por intermédio de um ato solene e público, firmado por um juramento oral e escrito, “os chefes africanos tornavam-se vassalos do rei de Portugal”, jurando “obediência às ordens do governador-geral” e prometendo suprir anualmente “os empreendimentos comerciais e militares portugueses” com “um certo número de súbditos para trabalharem”. De acordo com Wheeler (2013, p. 70),

Algumas variantes deste sistema persistiram em Angola até o século XX. Os sobas que assinassem tratados formais ou que fizessem acordos verbais eram obrigados, pelo menos em teoria, a ajudar os seus aliados portugueses em campanhas militares, a transportar mercadorias e a obter escravos. O sistema nasceu da debilidade numérica dos portugueses, das suas tradições no meio ibérico e da natureza fragmentária dos sistemas políticos africanos. O sistema de vassalagem, ou aquilo que um académico português designou como ‘feudalismo luso-africano’, baseava-se na experiência de insegurança dos portugueses. Embora inúmeros chefes africanos fossem designados ‘vassalos’, muitos deles eram aliados relutantes, mais do que vassalos. O simples peso do seu número, ou ‘essa massa de gentios’, como Cadornega chamava à maioria africana, constituía o fundamento do poder africano e do carácter defensivo dos portugueses.

A prática do undamento e a condição de vassalagem dos chefes africanos obrigava-os a apagarem um tributo ou taxas aos portugueses. Segundo Wheeler (2013, p. 71), esse tributo provavelmente foi instituído em 1600 e sua origem se reveste de tributo religioso ou dízimo. Entretanto, logo perde a conotação religiosa e passa a ser pago sob diversas formas: “em escravos, marfim, uso de carregadores ou, mais tarde, em dinheiro”. Data de 1838 a assinatura de um dos primeiros tratados ou ‘autos’ de vassalagem, embora já se assinassem esses tratados desde o século XVIII, como é o caso do imperador de Lunda na narrativa de Valadão (2014). A escritora denomina de baculamento esse tributo. O termo provém do quimbundo ou quicongo bakular, ‘pagar tributo’. Os sobas que não pagassem o tributo eram perseguidos e atacados pelos portugueses. Nisso, contavam com aliados africanos naquilo que chamavam ‘guerra preta’, pois a vassalagem incluía dos sobas “auxiliar na guerra fornecendo forças militares, a guerra preta, abrir os caminhos e permitir o livre-trânsito dos comerciantes” (VALADÃO, 2014, p. 318), entre outras obrigações. No decorrer do século XIX, entre 1804 a 1869, as autoridades portuguesas, na forma de seus governadores-gerais, acompanharam o processo de comercialização do tráfico 136

transatlântico de escravos fortalecendo-o, enriquecendo com ele ou reprimindo-o. Nesse percurso, a colônia, representada pela elite crioula e outros negociantes que se mantinham quase que exclusivamente através do tráfico de escravos, viviam apreensivos a cada mudança de governo. Por outro lado, não se abstinham de se agruparem em reuniões para que pudessem resolver os obstáculos que se punham perante o comércio de escravos que sustentava a colônia, principalmente para o Brasil. Diante disso, as oscilações políticas em Portugal demandavam preocupações também. Até 1810, conforme Tammone (2019, p. 204), a falta de uma política colonial em Angola fazia com que a economia da colônia se resumisse à relação com o Brasil e o tráfico de escravos, sob o controle brasileiro e luso-africano, estando Portugal em posição secundária nessa relação. Ademais, a economia das colônias portuguesas não estava em condições de competir com os produtos comerciais das grandes potências europeias. Para complicar, a acomodação da Corte Portuguesa no Brasil, em 1808, deslocou, de Lisboa para o Rio de Janeiro, os recursos financeiros dedicados ao comércio de escravos nas colônias. Com isso, as autoridades portuguesas viram a necessidade de contemplar outras potencialidades econômicas da colônia angolense.

No quadro de quase penúria em que se encontravam as colónias africanas, sempre postas em último lugar pelos responsáveis no Reino, o recente estabelecimento de relações comerciais com o império lunda, conseguido por D. António Saldanha da Gama, viria a dar novo alento a todos os comerciantes e negociantes de grosso trato, bem como aos angolenses em geral, pois significariam maior intercâmbio com aquele reino e um incremento nas trocas comerciais, ultimamente tão comprometidas. Os cofres estavam exauridos e os problemas acumulavam-se, perante a insensibilidade e o afastamento da Metrópole em relação aos assuntos africanos. (VALADÃO, 2014, p. 73).

Os problemas na colônia angolense se acumulavam, produzindo revoltas nos membros das tradicionais famílias luso-africanas que se sentiam, enquanto colônia, ignorados e abandonados pela Metrópole. Diante disso, as conspirações ganhavam força na crítica a Portugal e a sua governança das colônias. Nesse ínterim, a Inglaterra se preparava para um combate contra o tráfico de escravos o que acirrava os ânimos dos escravocratas nas queixas a Portugal. Para estes, Luanda estava diante de “uma fase de declínio sem precedentes” (VALADÃO, 2014, p. 74). Angola, diferentemente do Brasil, não obteve dos portugueses uma colonização efetiva e tampouco teve meios e incentivos para agricultura de plantação em ampla escala. De acordo com Wheeler (2013, p. 85), “o facto de o comércio dominar todos os outros empreendimentos 137

e de a atividade comercial predominante ser o comércio de seres humanos não podia deixar de atrofiar o desenvolvimento do país”. A centralização no comércio de seres humanos desencadeou uma série de fatores que contribuíram para o declínio da colônia. Esse tipo de comércio implicava um contrabando em que as perdas de lucros eram constantes. Aliado a isso, havia a concorrência estrangeira e a pobreza de Portugal. O comércio de seres humanos também provocava o despovoamento na colônia, limitando a mão de obra que poderia ser designada para as atividades agrícolas e industriais. Diante do ataque à base comercial da colônia, restava o desespero e as conspirações dos angolenses, como demonstra a narrativa de Valadão (2014) através da fala de Inocéncio Mattoso de Andrade Câmara, pertencente a uma das mais antigas famílias luso-africanas de Angola na narrativa de Valadão (2014). Segundo este, se o comércio dos negros acabasse, estaria decretada o fim da colônia, estando ela, para sempre, perdida para Portugal. Embora com o tráfico, nas palavras de Mattoso Câmara, provedor “de ruína e miséria” para “as colónias de África”, em função do desprezo do Reino “os seus filhos deste lado do Atlântico!” a colônia também encontraria seu fim. Dessa forma, o comércio de escravos se tornava um círculo vicioso, pois terminar com ele ou continuar nele resultaria em ruínas e misérias para as colônias portuguesas do mesmo jeito. Nessa balança de comercialização de seres humanos, verificamos, no romance de Valadão (2014), uma completa ausência da Metrópole em relação à colônia angolense na atuação dos governadores anteriores à independência do Brasil, em 1822. D. António Saldanha da Gama, além de estabelecer contato com os povos Moluas, também executou outras ações dignas de notas como a fomentação da agricultura e a tentativa, embora infrutífera, de introduzir a vacina na colônia, conforme destaca Torres (1825, p. 303-4). Depois dele, governaria Angola, de maio de 1810 a julho de 1816, “o Marechal de Campo Graduado, Joze de Oliveira Barboza” (TORRES, 1825, p. 306), mas Valadão exclui esse governador de sua narrativa. O Marechal nasceu no Rio de Janeiro (ainda sob o domínio de Portugal) e provinha de uma família de militares, carreira que também seguiu, chegando a ocupar a posição de Marechal do Exército. Seu único posto administrativo foi como governador de Angola40. De acordo com Tammone (2019, p. 208), o ofício de instruções encaminhado a este governador- geral quando de sua nomeação em 1810, constitui-se, tal qual toda correspondência entre

40 Informação do Superior Tribunal Militar. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2020. 138

governadores-gerais e autoridades coloniais metropolitanas, como importante descrição da aplicabilidade dos projetos coloniais metropolitanos. Neste ofício de instruções, segundo Tammone (2019, p. 210),

[...] destaca-se o discurso da coroa sobre a importância da agricultura. Aproximando-se das ideias liberais que deram o tom dos primeiros anos de estadia da corte no Brasil, as instruções da coroa afirmam que é a agricultura a grande responsável pelo aumento da população e esse aumento, por fim, a medida da riqueza do Estado, objetivo último das políticas coloniais que o Governador deveria perseguir.

Este projeto colonial já havia sido exposto no governo de Saldanha da Gama, assim como em outros governos anteriores, mas a relação direta entre riqueza e promoção da atividade agrícola configurava-se como um avanço liberal nas medidas de administração colonial, demonstrando o avanço do liberalismo nessa época. Todavia, o maior obstáculo para a efetivação desse projeto, apontado inclusive neste ofício de instruções, conforme Tammone (2019, p. 211), era “a indolência dos agricultores, muito provavelmente ligada à maior lucratividade do tráfico de escravos”. Demais instruções são dadas ao governador no tocante aos produtos que interessariam à corte portuguesa instalada no Brasil, mediante o bloqueio europeu, e, também, à moralidade dos funcionários e das autoridades coloniais que acabavam comandando as relações comerciais em Angola em benefício próprio.

Por fim, as questões relativas ao tráfico de escravos ocupam uma parte significativa das instruções. O governo no Rio de Janeiro demonstra que a crescente interferência da opinião estrangeira sobre a escravidão e, principalmente, a política abolicionista inglesa eram elementos importantes, que interferiam diretamente na forma como tal tráfico era conduzido na colônia. Além disso, incorporam-se as questões humanitárias e a legislação que determinava que o transporte de cativos deveria ser feito para que respeitasse as condições mínimas de humanidade de tal comércio e se reduzissem as taxas de mortalidade (TAMMONE, 2019, p. 215).

Se considerarmos os relatos de Torres (1825) a respeito do governo do Marechal Joze de Oliveira Barboza, não há nenhuma ação que ateste a realização e o uso das instruções a ele dadas em ofício. Pelo o que Torres (1825) descreve há mais desperdício de dinheiro público que obras e ações realizadas, muito mais em função da ingenuidade do governador que se deixou instruir por pessoas experientes nos tratos da colônia. Consta também ter sido 139

responsável por Angola padecer de fome pelos anos seguintes de seu governo, tendo em vista os quinhentos escravos retirados das lavouras para construção do canal do Coanza e que se debandaram, segundo relata Torres (1825, p. 306), mas nada é falado sobre o Marechal na narrativa de Valadão (2014). O governo seguinte torna-se motivo para a narrativa de Valadão (2014), denominado como um tempo de “paz e prosperidade” para a colônia angolense. Nele, teremos a atuação “do vice-almirante Luiz da Motta Fêo e Torres” que, formalmente, toma posse “em Julho de 1816” (VALADÃO, 2014, p. 77). Novamente a narrativa de Valadão (2014) sobre o governador Motta Fêo se assemelha por inteiro a de Torres (1825), desde sua chegada, celebrada por todo o lado, incluindo os detalhes de damascos e colchas nas janelas das casas. Porém, não consta no relato de Torres (1825) a primeira iniciativa do representante de Portugal de receber uma embaixada angolense no Palácio do Governador:

Dona Anna Joaquina encabeçou a comissão composta pelos mais importantes moradores de Loanda, alguns dos quais eram também membros do Senado da Câmara, que no palácio lhe apresentaram as boas-vindas, pondo-se à sua disposição incondicionalmente para o que ele viesse a pedir de esclarecimentos e assistência na sua acção governativa. Ela era, nessa circunstância e como sempre, a figura incontornável do processo e a intérprete das pretensões e queixas dos negociantes de grosso trato, dos comerciantes da cidade e, como era natural, dos principais interesses dos filhos do país (VALADÃO, 2014, p. 78).

Dona Anna Joaquina, na reunião, em nome do povo da colônia angolense, afirma apoio e disponibilidade ao novo governo para “colaborar no engrandecimento e enriquecimento” da colônia e relata a preocupação dos comerciantes no que concerne aos “últimos acontecimentos ocorridos na Metrópole” que, em suma, se referiam às consequências da mudança da Corte Portuguesa para o Brasil no governo da colônia. Ela relata sobre “as relações muito vantajosas” conseguidas com o império Lunda pelo último governador, mas externa a falta de apoio da “Metrópole para ultrapassar a desleal concorrência dos Ingleses, que conseguiram derrubar o Pacto Colonial que dava aos [...] navios [da colônia] a exclusividade de aportar aos portos brasileiros” (VALADÃO, 2014, p. 79). O governador Motta Fêo, entretanto, isenta-se de qualquer atitude em relação à derrubada do Pacto Colonial que assegurava o monopólio em portos brasileiros a Portugal. Lembra aos colonos que a Metrópole está em dívida com a Inglaterra e sujeita a suas regras. Além do mais, ressalta que a ida da Corte Portuguesa para o Brasil onerou ainda mais a 140

dívida. Fora isso, compromete-se a empenhar-se com os interesses dos comerciantes e, por sua vez, da colônia. Dentre estas questões de ordem interna da colônia, estava a de maior queixas, “os contínuos roubos que ocorriam na cidade perpetrados por alguns soldados – as tropas eram maioritariamente compostas por degredados – e também pelos negros [do sertão]” (VALADÃO, 2014, p. 80). Tal evento é relatado também por Torres (1825, p. 310):

Compoe-se a força militar em Loanda, pela maior parte de degradados, e com taes homens, longe dela manter o socego dos Povos, ao contrario o perturba: achou o Governador, os Moradores da Cidade, vexados pelos continuos roubos, que os Soldados fazião na mesma Povoação, e nas estradas aos pretos que voltavão para o Sertão, com os produtos dos seus negócios: brevemente atalhou ele estes males, reduzindo a guarniçaõ da Capital á precisa disciplina e subordinaçaõ, com as severas e bem aplicadas medidas (1) que para esse fim tomou, as quaes merecêraõ completa approvaçaõ (2) de El Rey N. Senhor.

Outrossim, no governo de Motta Fêo, segundo a narrativa de Valadão (2014, p. 80-1), há “inúmeros melhoramentos na cidade, no plano urbanístico, como a construção do elogiado e belo Passeio Público na Ponta da Mãe Isabel”; além da casa de campo ao fim do Passeio Público, em estilo chinês, para ele e todos os outros governadores que viessem depois dele; do jardim farmacêutico, no mesmo local, a fim de suprir as necessidades da Santa Casa da Misericórdia; de algumas praças grandiosas e do melhoramento de outras, em especial a que se situava em frente ao Palácio do Governador; da Praça do Mercado Público; do Jardim da Cidade Alta e da Muralha do Recreio. Ademais, “por altura da aclamação de D. João VI, em Abril de 1817” deliberou que “as avultadas quantias” a serem gastas no evento, fossem destinadas a sanar “o estado de decadência em que se encontrava a Santa Casa de Misericórdia” (VALADÃO, 2014, p. 81-2). A atenção dada à segurança pública em Angola, assim como à saúde foram as principais contribuições de Motta Fêo. Há que ressaltarmos também a solução empreendida para o problema da fome do governo anterior que seria solucionada com provisões vindas de outras colônias mais próximas como o Brasil e São Tomé. Essa solução teria sido viável não fosse a Revolução de Pernambuco que atrapalhou a manobra e fez com que o governador taxasse o preço da mandioca para evitar monopólios, segundo Torres (1825, p. 313). O término do governo de Luiz da Motta Fêo e Torres traz tristeza e preocupação à colônia angolense:

Toda a gente sabia que as comissões em Angola pouco acrescentavam à carreira militar, eram postos e lugares pouco ambicionados, que ninguém 141

queria e, por isso, muitos deles logo que chegavam a Loanda se deixavam envolver pelos inefáveis prazeres pelos negócios do tráfico da escravatura. Isto continuava a acontecer apesar de, desde 1720, ter sido proibido aos oficiais, administradores, militares e judiciários envolverem-se nele. Mas o apelo de uma rápida fortuna era quase irrecusável, e era a própria elite local que impunha os seus interesses aos governadores e capitães-generais e também aos funcionários públicos, seus patrícios. Era uma rede imensa, como um polvo de muitos tentáculos! (VALADÃO, 2014, p. 81).

A Coroa Portuguesa sempre alegava, em suas correspondências oficiais, segundo Tammone (2019), que os funcionários da administração colonial utilizavam suas funções em benefício próprio e que cabia ao governo-geral coibir tais práticas, mas o abandono de Portugal em relação à colônia era patente e, aliado a isso, o enriquecimento fácil se mostrava sedutor por demais para ser evitado. Além do mais, a ilegalidade parecia ser a marca da colônia o que facilitava tudo. Até mesmo os governadores-gerais não se furtavam de participar das estratégias do tráfico para enriquecimento, ajudando os afamados comerciantes negreiros na desobstrução dos obstáculos jurídicos que pudessem atravancar o comércio. De acordo com Marques (1994, p. 98), apesar de Portugal ser visto como “o primeiro a emparceirar com o Governo britânico na luta contra o tráfico de seres humanos, tal só sofisticamente corresponderá à verdade. Durante trinta anos os legisladores e os diplomatas iludiram a abolição total”. A partir da década de 1820, as atenções metropolitanas, em face dos rumores de independência do Brasil em Angola, voltam-se para a construção de uma nova política colonial. Portugal, no entanto, estará envolvida a esta altura com as revoltas liberais que se iniciam no Porto. Em 24 de agosto de 1820, ocorria nesse lugar a primeira revolução liberal vitoriosa. O estabelecimento da Corte Portuguesa no Brasil desde 1808 abalava as estruturas econômicas e políticas do reino português, apartado de seu rei. No Brasil, ainda que isto não representasse um consenso, era defendida “a permanência definitiva da Corte no Brasil, a construção de um Império Brasileiro e o abandono de Portugal, em uma clara reação às consequências advindas da Revolução do Porto” (MEIRELLES, 2015, p. 55). A independência jurídica do Brasil era cogitada, embora ela existisse desde 1815. Ainda segundo Meirelles,

Toda essa problemática vivenciada pelos acontecimentos da Revolução do Porto era resultado de uma conjuntura histórica que permeava a vida política luso-brasileira desde 1815, quando o Brasil fora elevado a Reino Unido de Portugal e Algarves. A conjuntura política era deveras delicada, quase insustentável. Assim, em 15 de setembro, os mesmos governadores que até então defendiam ‘acirradamente’ a manutenção da ordem monárquica 142

absolutista da Dinastia de Bragança sob a chefia de D. João VI formaram uma junta governativa – um governo interino –, acataram as exigências dos ‘rebelados’, ao convocarem as antigas Cortes e assumiram uma nova postura política diante dos fatos e, consequentemente, do próprio Rei (MEIRELLES, 2015, p. 58).

Toda essa conjuntura exigia a volta do monarca a Portugal o que aconteceu de imediato, mas o sonho de independência foi apenas adiado, vindo a acontecer, na prática, dois anos depois, em 1822, como sabemos, uma vez que a saída da Corte deixará os cofres brasileiros vazios. As razões da permanência da Corte no Brasil já sabemos também. Em decorrência das invasões napoleônicas que exigiam que Portugal aplicasse o Bloqueio Continental em seus domínios marítimos e dentro de seus territórios, foi necessária a aceitação do projeto de transferência da Corte para o Rio de Janeiro, determinado pelas condições inglesas impostas a Portugal devido à dívida enorme contraída pelo reino. Por esse tempo, em Luanda, Angola, a notícia da revolução de 1820 já se fazia sentir. Valadão (2014), em Angola, as ricas-donas, retrata o clima de instabilidade e preocupação quanto aos rumos da colônia, bem como a repercussão das ideias liberais da revolução do Porto em Luanda. Por outro lado, a saída da Corte do Brasil para Portugal traz consigo a possibilidade de fechamento dos portos brasileiros ao comércio internacional, reabilitando o Pacto Colonial, que dava exclusividade aos portugueses e, em conseguinte, a suas colônias, como era o caso de Angola. Até então, a colônia angolense tinha que disputar com a concorrência desleal dos ingleses. Havia também a indagação quanto à independência ou não do Brasil.

— Não sei se o rei estará na disposição de abandonar o Brasil, onde tão bem se sente. Tem lá uma nova corte e agora a colónia é o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, enfim, um novo império. Como poderá ele tomar a decisão de regressar a Portugal? — A sua [de D. Anna Joaquina] pergunta permaneceu no ar durante alguns instantes. — Então, e no caso de o rei aceitar regressar a Portugal qual irá ser o futuro do Brasil? Na certa, acabará por perder o seu estatuto de reino a que D. João VI o elevou em 1815, e voltará à condição de mais uma colónia portuguesa. Hum... não creio que os brasileiros estejam pelos ajustes de que isso aconteça pacificamente! (VALADÃO, 2014, p. 100-1).

Nesse sentido, não podemos denominar de pacífico o processo de independência, pois precisamos considerar a Inconfidência Mineira, ocorrida em fins do século XIX e a Revolução Pernambucana um pouco antes da Revolução do Porto, em 1820, mas, o que interessa aqui, é que o ato em si não resultou em guerra, segundo a história oficial relata. 143

Entretanto, ela foi declarada, pois, conforme Guizelin (2015), na proclamação dirigida aos súditos portugueses, logo após a independência, o então Imperador do Brasil, assim dizia aos portugueses do outro lado do Atlântico: “Portugueses: eu ofereço o prazo de quatro meses para a vossa decisão decide, e escolhei, ou a continuação de uma amizade [...]; ou a guerra mais violenta, que só poderá acabar com o reconhecimento da Independência do Brasil ou a ruína de ambos os Estados” (GUIZELIN, 2015, p. 87). Na narrativa de Valadão (2014), após a Revolução de 1820, são convocadas as Cortes Gerais e Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa. Em Luanda, os “membros das três facções políticas da cidade: o ‘partido brasileiro’, os filhos da terra e aqueles que representavam a simbiose entre os filhos da terra e os homens de mar em fora” (VALADÃO, 2015, p. 104) se reúnem para eleger os deputados representantes nas Cortes. A realização desse evento só viria a acontecer em 1822. Os deputados eleitos em Luanda, ao seguirem para Lisboa, traçaram sua rota primeiro pelo Rio de Janeiro, onde presenciariam as “fases finais do processo de independência da colónia” (VALADÃO, 2014, p. 105). Viram-se, assim, entre a possibilidade de se “reunirem- se à causa brasileira e a integrarem o movimento independentista. Elaboraram mesmo uma proclamação convidando o povo de Angola a fazer o mesmo” (idem, p. 106); ou de seguirem caminho a Lisboa, integrando-se aos portugueses. O impasse acaba implicando a divisão do grupo de deputados. Queirós Coutinho e Amaral Gurgel resolvem permanecer, no Rio de Janeiro, aguardando notícias de Luanda sobre as proclamações por eles enviadas, desejosos de saber o destino de Angola com a decisão separatista do Brasil, por estar a colónia angolense mais ligada ao Brasil do que a Portugal; enquanto o padre Corrêa de Castro segue para Lisboa. Em Luanda, a mensagem dos três deputados requisitaria uma reunião com “o Senado da Câmara, maioritariamente composto por filhos do país” (VALADÃO, 2014, p. 106). Para uns, a aceitação do “patrocínio do Brasil” (idem) representava um “‘mal menor’, já que Angola sozinha nunca iria conseguir ter peso político para ganhar a autonomia, por falta de recursos económicos e humanos” (idem). Para outros, a anuência à proclamação feita pelo padre Côrrea de Castro, “dirigida aos ‘Compatriotas Angolenses’” (idem), propondo “a permanência de Angola no seio da nação portuguesa” parecia mais sensato. Dona Anna Joaquina e seu marido na época, o luso-brasileiro João Rodrigues Martins, decidem-se pela união de Angola com o Brasil no processo separatista de Portugal. A mensagem com a adesão, no entanto, chega com atraso ao Brasil, quando a independência já havia sido proclamada. Por outro lado, o padre Côrrea de Castro, em nome 144

de Angola, adere à causa de Portugal, jurando “obediência a estas Cortes e ao Sr. D. João VI, assegurando que tem aversão à causa do Brasil se ele se desunir de Portugal” (VALADÃO, 2014, p. 109). Estava assim enterrado o sonho de independência. Em 1825, o Tratado de Paz e Aliança entre D. Pedro, imperador do Brasil, e D. João VI, rei de Portugal, reconhecendo a independência do Brasil e estabelecendo que nenhuma das colônias portuguesas poderia se juntar ao Brasil no processo de separação de Portugal, poria um fim definitivo a este sonho. No entender de Guizelin (2015, p. 82), a repercussão da independência do Brasil no continente africano, principalmente em Angola, não representa algo surpreendente, devido à ligação maior de Angola com o Brasil em relação à Portugal, caso bastante comentado no âmbito da historiografia brasileira. Um exemplo disso é José Honório Rodrigues que, no prefácio da segunda edição de sua obra Brasil e África, relata a ajuda do Brasil na derrubada do domínio holandês em Angola e a adesão de Queirós Coutinho e Amaral Gurgel quando da independência do Brasil, ação mencionada por Valadão (2014). Rodrigues (apud GUIZELIN, 2015, p. 82) também enfatiza que a anexação ao Brasil só não foi realmente possível devido ao Tratado de Aliança e Amizade de 1825, que estabelecia a proibição aqui exposta. No entendimento desse historiador:

[...] foram os tratados internacionais celebrados pelo país com as nações europeias, marcadamente com Portugal e Inglaterra, no contexto do reconhecimento da Independência, que impediram o governo imperial de manifestar apoio ao chamado partido brasileiro (ou brasílico) de Angola, formado basicamente por negociantes de escravos ciosos em converter a colônia portuguesa na África em mais uma província do novíssimo Império americano (RODRIGUES apud GUIZELIN, 2015, p. 84, grifos do autor).

Guizelin (2015) também cita as palavras de Nilcea Lopes Lima dos Santos. Em sua dissertação de 1979, a estudiosa revela as ações de alguns representantes da sociedade angolana à causa brasileira como foi o caso de Eusébio de Queirós Coutinho e Francisco Martins de Amaral Gurgel. Pelo visto a recorrência de Valadão (2014) a estes dois nomes não é à toa. Foram presenças marcantes na relação entre Angola e Brasil. Conforme Santos (1979 apud GUIZELIN, 2015, p. 84),

[...] por trás do desejo do chamado partido brasileiro em unir oficialmente Angola ao Brasil, estava o anseio de converter o tráfico de escravos entre os portos das duas costas atlânticas em um comércio legitimamente doméstico. Tal medida teria o mérito de fazer com que o tráfico entre as costas angolana e brasileira deixasse de constituir uma questão de comércio internacional; o que, por conseguinte, ia na contramão da campanha abolicionista promovida pela Inglaterra, que tudo fez para salvaguardar os direitos de D. João VI 145

sobre os seus domínios na África, justamente para garantir o distanciamento entre o regime de D. Pedro I e os seus aparentes ‘partidários’ de Angola.

Em Angola, as ricas-donas (2014), Valadão, ao tratar da preocupação dos angolanos com a independência do Brasil, representando essa preocupação em torno de Dona Anna Joaquina e aqueles que compunham a elite luandense no começo do século XIX, toca de leve em um tema, que segundo Guizelin (2015, p. 84), se discute pouco, tanto pela historiografia brasileira quanto pela portuguesa, que é justamente “o impacto que a independência do Brasil teve sobre Angola de princípios de Oitocentos”. Guizelin (2015, p. 86), em artigo sobre esse tema, se propôs a discutir “as medidas cautelares implantadas pela administração colonial de Angola diante da proclamação da independência do Brasil e do risco à ordem interna colonial que veio a representar”, verificando “o posicionamento da Coroa Portuguesa na querela aberta entre os seus administradores coloniais e membros da comunidade mercantil angolana acusados de comporem [...] partido brasileiro”, com o fim de apresentar um panorama do “mal-estar que se seguiu entre as autoridades coloniais de Angola e sua elite mercantil favorável à adesão daquela ao império brasileiro”. A abordagem do artigo de Guizelin (2015) se conecta com a narrativa de Valadão no sentido de que esta traz, em parte, os elementos favoráveis para este diálogo. Logo após a independência do Brasil, ao ver definitivamente extinta a “oportunidade de Angola tomar parte activa no processo de independência da colónia brasileira”, Dona Anna Joaquina ainda não fazia ideia que em 1825, a “esperança, mesmo que tênue, de união com o Brasil” (VALADÃO, 2014, p. 110) estaria encerrada definitivamente. Era em finais do ano de 1822 e, estrategicamente falando, ela considerava a derrota no tocante à anexação, mas não acreditava ainda que a guerra estava perdida. Havia tempos que no Palacete do Bungo se faziam reuniões secretas do partido brasileiro para a anexação de Angola ao Brasil e em Benguela os cidadãos brasileiros eram constantemente vigiados pelas autoridades portuguesas. Mesmo assim, Dona Anna Joaquina abria as portas de seu palacete para festejar a independência do Brasil.

Nos salões feericamente iluminados, podiam-se ver-se membros da melhor elite de Loanda! [...] pude observar membros das famílias crioulas cujas origens se encontravam naquele Brasil que nessa noite celebrávamos em festa. Os Mattosos de Andrade Câmara e os Amarais Gurgéis e ainda os Andrades e Silva era, de facto, filhos ilustres daquele Brasil que nessa noite 146

estava mais próximo de nós como nunca antes tinha estado. E por lá, entre a multidão de convidados ilustres, estavam também muitos dos membros do partido brasileiro. A cidade de Benguela tinha enviado uma grande representação, contando-se nessa embaixada muitos brasileiros que viviam naquela cidade do Sul de Angola (VALADÃO, 2014, p. 113).

A rica-dona de Angola acreditava que “as revoluções liberais na Europa, a independência do Brasil e de outras colónias da América Latina” serviriam para lançar Angola em seu sonho de liberdade, trazendo consigo “o progresso e a prosperidade”. A instalação plena de uma sociedade liberal seria para Angola o “prelúdio de uma nova ordem política e social”, dizia João Rodrigues Martins, marido de Dona Anna Joaquina. (VALADÃO, 2014, p. 115). As esperanças de anexação ao Brasil foram se atenuando conforme se dava o distanciamento da festa no Palacete do Bungo. A ideia que circulava era que a previsão de um Brasil muito rico com a independência se dissipava, com a informação de que “D. João VI, antes de abandonar o Rio de Janeiro, esvaziaria os cofres do Banco do Brasil e levaria consigo o que ainda restava do tesouro real que transportara para a colónia em 1808”. Com isso, a independência do Brasil ocorria em uma “inesperada penúria institucional” (VALADÃO, 2014, p. 116). Com os cofres vazios ou não, a documentação do Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal (AHU), onde Guizelin (2015) colheu suas informações, aponta que D. Pedro I ordenou às autoridades competentes o sequestro das propriedades portuguesas, lançando-se contra os súditos leais da Coroa Portuguesa que habitavam o Brasil à época, retirando deles mercadorias, prédios, embarcações ou parte delas, excetuando, no entanto, ações do Banco Nacional, das Casas de Seguro e da Fábrica de Ferro da Vila de Sorocaba. Essa atitude do imperador brasileiro provocou um efeito semelhante na outra margem do Atlântico Sul, tanto em Benguela quanto em Luanda, conforme registra Guizelin (2015), em seu artigo, e Valadão (2014) em sua narrativa sobre a Angola do século XIX. Na narrativa de Valadão (2014, p. 125), esses acontecimentos são relatos como tumultos e revoltas ocorridas em Loanda no período de 1822 a 1824. Nesse intervalo de tempo, o Senado da Câmara que, entre os membros, contava com a participação de Dona Anna Joaquina, reúne-se para votar a proposta das Cortes de Lisboa de substituir os governadores-gerais por Juntas Provisionais Governativas. Dona Anna Joaquina e a maioria dos votantes era contra sob a alegação de que tal forma de governo implicaria “mais embaraços na governança”, devido ao quantitativo de pessoas e de ideias e de que havia “bons exemplos de excelentes governadores”, não havendo, portanto, necessidade de mudanças. Por 147

outro lado, o marido dela, João Rodrigues Martins, juntamente com o partido brasileiro eram contra, alegando “os abusos de muitos governadores” que usavam o cargo “para aumentarem seus proventos enquanto não transitam para um lugar principescamente pago no Brasil!”. Feitos os votos, as Juntas Provisionais são aprovadas com sete membros. Todavia, na narrativa de Valadão (2014, p. 126) ressalta-se a questão de tais juntas serem constituídas por membros das elites locais que acabavam por reprimir a autoridade da Coroa e de seus representantes. Isso também é exposto por Guizelin (2015, p. 91-2):

Instaladas na primeira metade da década de vinte do Oitocentos e sintonizadas com o espírito de adesão à política contestatória ao absolutismo das Cortes Gerais, as Juntas de Governo eram constituídas por representantes dos interesses locais de cada capitania ou Estado ultramarino, e costumeiramente caracterizados pela historiografia por disputarem com as figuras dos capitães e governadores-gerais – receptáculos do antigo regime – a exclusividade do poder de mando no cenário ultramarino português. No caso específico das Juntas de Governo angolanas [...], desde o princípio dominou a desinteligência e a desconfiança não só entre elas e as autoridades coloniais, como entre os membros das próprias Juntas devido à existência de facções mais empenhadas em impor seus interesses pessoais, centrados no comércio de escravos com o Brasil.

Na narrativa de Valadão (2014, p. 126), observamos o embate das discussões sócio- políticas na economia da colônia a partir das ideias divergentes entre as três facções políticas existentes. Por um lado, quando da eleição da nova forma de governo e dos membros que comporiam a junta, o bispo João Damasceno Póvoas, um brasileiro escolhido como o cabeça dos sete membros constituintes, teria que enfrentar, logo no início, “a oposição dos membros do partido brasileiro, que não estariam em sintonia com as ideias de João Rodrigues Martins”, também brasileiro. Nesse sentido, Cristóvão Avelino Dias (1823-1824), governador-geral de Angola, e João António Pussich, governador da capitania de Benguela, não consultaram as Juntas de Governo dos principais centros de Angola, quando do sequestro das propriedades brasileiras em Angola. Como sabemos, o sequestro das propriedades portuguesas no Brasil pelo então imperador do Brasil, D. Pedro I, foi feito com o intuito de minar os insurgentes favoráveis à Portugal que residiam no Império. Já o sequestro das propriedades brasileiras na colônia angolense tinha como objetivo “demover aqueles que de alguma forma mostravam-se comprometidos com a causa brasileira de suas intenções sediciosas e anexionistas em relação à Portugal e ao Brasil, respectivamente” (GUIZELIN, 2015, p. 90). 148

Além, de interditar os ânimos para a anexação ao Brasil, Avelino Dias pretendia “ressarcir o dano que o sequestro ordenado pelo governo brasileiro teria causado aos súditos do Reino de Angola”, fiéis à Coroa e residentes ou com negócios no Brasil. Mediante isso, achou por bem proibir “a saída de navios com destino aos portos considerados dissidentes e rebeldes da América, ou seja, para o Rio de Janeiro e Pernambuco, até que o governo central português ordenasse o contrário” (Guizelin, 2015, p. 89). A atitude dos dois governadores causou rebeliões e instabilidade na Angola da primeira metade da década de 1820. Valadão (2014) descreve os conflitos em Benguela e Luanda nessa época.

Tudo teve início quando começaram a circular nas ruas de Benguela panfletos dizendo que a união da capitania ao Brasil estava iminente. O principal responsável e autor dos pasquins era o tenente-coronel Francisco Ferreira Gomes, um abastado comerciante negro, natural do Rio de Janeiro, associado de João Rodrigues Martins. Quando chegou a Angola como degredado, foi incorporado no corpo dos Henriques, um esquadrão do exército constituído por soldados negros, quase todos provenientes do Brasil. Tornou-se num dos maiores traficantes de Benquela [...]. Ele era um dos principais impulsionadores do partido brasileiro e o maior defensor da anexação de Benguela ao recém-independente Brasil. Este partido apoiava a Junta Provisória Governativa eleita na cidade e a prova era que [...] os navios provenientes do Brasil continuavam a chegar a Benguela, mas não a Loanda, o que indicava a evidente ligação daquela cidade ao Brasil [...]. Em Loanda, onde a comunidade brasileira não era a dominante, as sublevações em Benguela acabaram por ser encaradas pelos naturais e filhos do país como meros ‘assuntos desagradáveis’ (VALADÃO, 2014, p. 129).

Ferreira Gomes fizera circular a notícia de um ataque iminente e que estavam apenas esperando o auxílio militar do Brasil, tendo já apoio das tropas locais, como também dos marinheiros dos navios negreiros estacionados em Benguela e do vigário da Igreja de Nossa Senhora do Pópulo. Na tranquilidade de seu palacete, como natural e filha do país, Dona Anna Joaquina não deu muita importância aos conflitos, classificando Ferreira Gomes como um agitador e a ação como inútil diante das perseguições ao partido brasileiro, impetradas pelos miguelistas no poder. Francisco Ferreira Gomes viria a ser preso com outros quatro implicados e seus negócios seriam entregues à gerência de representantes por eles designados.

Francisco Ferreira Gomes, era um homem negro, livre, que tinha sido, em 1800, exilado como criminoso em Benguela - o segundo maior porto de escravos de Angola. A despeito disso, conseguiu tornar-se um dos maiores negociantes de escravos da região. Entre 1809 e 1831, o velho Gomes enviou quase 7 mil cativos de Benguela para o Brasil, cerca de 7% do número total de cativos embarcados naquela cidade na época. Ele chegou ao mais alto escalão da sociedade de Benguela, tornando-se chefe do tesouro real, juiz do juízo que administrava os bens de comerciantes falecidos (o 149

Juízo dos Defuntos e Ausentes), e comandante da milícia local (o batalhão dos Henriques). Em 1834, ele retornou ao Rio de Janeiro, levando sua família africana com ele (FERREIRA, 2013, p. 681).

Segundo Lopes (1979 apud GUIZELIN, 2015, p. 89), o projeto de anexação de Angola ao Brasil surgiu do lado do Atlântico Sul sem um posicionamento oficial do governo imperial, mesmo que as denúncias às autoridades portuguesas sobre as relações secretas entre autoridades brasileiras e angolanas, representantes dos interesses escravistas, ocorressem frequentemente e fosse publicamente conhecido. No entanto, segundo a autora, “razões não faltavam para que o regime de D. Pedro se abstivesse da questão angolana” e, entre elas, estava a necessidade de ter que resolver primeiro as rebeliões internas “antes de aceitar a adesão de uma província distante e externa à própria configuração geográfica do Brasil”. Em setembro de 1823, por ordem do rei D. João VI, os sequestros das propriedades brasileiras cessam e são restituídos a seus legítimos donos ou representantes e os portos de Angola, por sua vez, abrem-se para dar continuidade às relações comerciais com o Brasil. Nessa época, estavam extintas as Cortes após a insurreição absolutista41 ocorrida a 27 de maio de 1823 em Portugal. Para Guizelin (2015, p. 94-5), a restauração dos poderes absolutos de D. João VI dava crédito à “recomposição da unidade do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve”, assim como “abria caminho para uma política de reaproximação com D. Pedro I. Dessa forma, a reconciliação com os brasileiros em Angola, por um lado, pareceu ser uma forma de “limpar o campo da negociação de possíveis entraves”. Por outro, poderia ter sido para evitar maiores embates com “a facção sediciosa da colônia africana cujos negócios haviam sido diretamente atingidos por aquelas restrições”. Em Angola, as ricas-donas, Valadão (2014) fala em uma Luanda absolutista no ano de 1823 e da presença do primeiro governador miguelista em Angola. De acordo com a autora:

41 Em 27 de Maio de 1823, o infante D. Miguel, instigado por sua mãe, proclamava em Vila Franca a restauração do regime absoluto. D. João VI, numa clara viragem de atitude política, deu desta vez cobertura à posição do seu filho [D. Miguel], a fim de evitar a própria deposição, prevista e desejada no seio do partido da Rainha. Em seguida, no Porto, é também aclamado o Absolutismo. Em 29 de Abril de 1824, um golpe contra D. João VI é perpetrado por seu filho D. Miguel e que ficou conhecido como Abrilada. Logo depois, a bordo de uma nau inglesa D. João VI é restituído ao trono, enquanto D. Miguel mostra vontade de encetar um exílio forçado em França e na Áustria. D. João VI, regressa ao modelo de governo absoluto, desenhado a partir do golpe contra-revolucionário de Vila Franca. Após exílio mais demorado na capital da Santa Aliança, logo após a morte de D. João VI (1826), D. Miguel regressa a Portugal. D. Pedro IV, herdeiro do trono, então já Imperador do Brasil, outorga a carta constitucional e abdica em sua filha D. Maria da Glória que, em conformidade com o arranjo dinástico e político então acordado, casaria com seu tio, logo que atingisse a maioridade. Até D. Maria II subir ao trono, asseguraria a regência à infanta D. Isabel Maria. Em 1828, D. Miguel assume a regência de Portugal em nome da sobrinha e noiva D. Maria da Glória (CARDOSO, 2014). 150

Os governadores que haviam tomado as rédeas do poder em Angola, na sequência da contra-revolução absolutista que, entretanto, varria Portugal, eram homens fiéis ao príncipe D. Miguel, e dirigiam com pulso de ferro os destinos da colónia. Apesar de D. Miguel só ter sido aclamado em 1828, logo em 1823 chegou a Angola o primeiro governador miguelista, o tenente- coronel de cavalaria Nicolau Abreu Castelo Branco, verdadeiro integrista monárquico. A colónia ficaria à mercê do seu despotismo e prepotência durante os seis anos que durou o seu longo mandato (VALADÃO, 2014, p. 134).

Castelo Branco, logo que ficou conhecedor dos incidentes ocorridos no governo de seu antecessor Avelino Dias, tratou de “acompanhar de perto a movimentação dos comerciantes angolanos”, reagindo “com a máxima presteza possível a qualquer indício de rebelião ou a qualquer novo rumor de um eventual ataque brasileiro”, informa Guizelin (2015, p. 103). Na narrativa de Valadão (2015, pp. 134-5), o governo de Castelo Branco foi de “uma perseguição implacável aos seus adversários políticos, os liberais, e a própria Dona Anna Joaquina” chegou “ao extremo de ser considerada persona non grata pelas autoridades locais”. A constatação que se tinha era que “só os protegidos do governador, aqueles que são da mesma cor política, conseguem que lhes sejam atribuídas as licenças para as caravanas poderem deslocar-se ao interior para efectuarem trocas comerciais”, constituindo-se a colônia em um celeiro de privilégios a determinados comerciantes e a outros não. Castelo Branco, em um período de um pouco mais de seis anos, conduziu o Reino de Angola com severidade e seu governo “não garantiu uma convivência pacífica com o chamado partido brasileiro”. Em 1825, o Tratado de Aliança e Amizade é assinado, restabelecendo a paz entre o Brasil e Portugal, mas, segundo Guizelin (2015, p. 104), nem mesmo isso favoreceu uma relação possível entre o governador-geral e muitos dos comerciantes de Angola. Em 1828, ele pede remoção do posto, alegando essa inimizade como sendo decorrente de anos de chefia no governo de Angola. Todavia, até no último ano da permanência de Nicolau Abreu Castello Branco, em 1829, segundo a narrativa de Valadão (2014), ele não se deteve em suas perseguições. “Joaquim António de Carvalho Menezes, um filho da terra, crioulo nascido em Loanda e membro de uma antiga e preeminente família loandense” (idem, p. 132), perde o cargo na administração pública e, em seguida, é preso e expulso de Angola por suas posições políticas liberais. Arsénio de Carpo, convicto defensor da causa liberal, é “posto a ferros na Fortaleza de São Miguel [...] por causa de uns sonetos de sua autoria em que ridicularizava o governador-geral” (idem, p. 144). 151

No mesmo ano de 1829, outro “miguelista de profundas convicções políticas, José Maria Almeida e Vasconcellos, barão de Santa Comba Dão, foi nomeado [...] para substituir um odiado Nicolau Castello Branco” (VALADÃO, 2014, p. 144) e este manteve o modelo de governo de seu antecessor. Tanto foi que Arsénio de Carpo, devido às perseguições implacáveis de Santa Comba Dão aos liberais, teve que, a conselho de Dona Anna Joaquina, fugir para o Brasil, tendo de lá também fugido para Nova Iorque, “onde acabou por conseguir estabelecer-se com novos negócios, graças aos seus inesgotáveis recursos e aptidões para dar volta por cima” (idem, p. 145). Em torno de Dona Anna Joaquina, apesar de perseguida também por suas convicções políticas, concentrava-se “uma tertúlia política” que “conspirava contra o governador-geral e contra o governo português” nas reuniões e festas que continuavam acontecendo no Palacete do Bungo. Na alta burguesia que a rodeava, brancos, negros e mestiços “conviviam sem preconceitos rácicos” (idem, p. 146). O Barão de Santa Comba Dão ficará como governador-geral de Angola durante o período de reinado de D. Miguel que ascendera ao trono no ano de 1828, em nome de D. Maria Glória, sua sobrinha e noiva, e é destituído dele após o fim da guerra civil e a vitória dos liberais em 1834. A morte de D. João VI criara um problema na sucessão dinástica do reino português e um acordo entre irmãos, D. Miguel e D. Pedro, apaziguara os ânimos por algum tempo, mas o acordo é quebrado e D. Miguel implementa suas ideias absolutistas em Portugal, estendo-as às suas colônias como foi o caso de Angola, onde houve a mudança do representante de Portugal para um homem da confiança do novo governo. A partir de 1833, novas mudanças administrativas nos domínios ultramarinos de Portugal são realizadas, a contar com Angola (TAMMONE, 2019). Valadão (2014, p. 170) registra a saída do barão de Santa Comba Dão:

Alguns dias depois, o barão de Santa Comba Dão foi destituído do cargo de governador-geral por movimentos populares organizados, na sequência da derrota infligida em Portugal pelas forças liberais às tropas miguelistas, em Maio desse ano, e do triunfo do regime constitucional [...]. No dia 25 desse mês [de junho de 1834], Dona Anna foi informada de que o barão e todo o seu estado-maior, além dos seus familiares, tinham embarcado durante a noite numa enseada da costa perto de Loanda, e que se encontravam àquela hora navegando em suas águas profundas numa viagem sem regresso a caminho de Lisboa.

A autora se refere à invasão de D. Pedro, imperador do Brasil, ao norte de Portugal, derrotando os absolutistas com seu exército liberal e, em seguida, exilando o irmão, D. Miguel, que perderá o estatuto real e a pretensão ao trono. A Convenção de Évora Monte é assinada em 29 de maio de 1834, pondo fim à guerra civil em Portugal. Segue-se, então, na 152

metrópole, um plano de um novo Brasil em Angola. Para tanto, há a necessidade do combate ao tráfico, tentando-se implementar um projeto de colonização agrícola em substituição das redes comerciais do tráfico, causando conflitos entre governadores-gerais e os colonos, segundo Tammone (2019, p. 233). Sobre isso, Alexandre (2000) afirma que a instabilidade criada no ultramar pelo confronto entre princípios de legitimidade diversos, possibilitando, inclusive, a constituição de juntas de governos locais cujos interesses se opunham ao de Portugal, colocaram-se diversas vezes como empecilho para os primeiros projetos de formação de um novo sistema colonial em África, com a criação de um novo império em substituição ao perdido. Para o autor:

A ideia de compensar a perda do Brasil pela criação de um outro império é muito precoce – surge-nos já no primeiro período liberal (1820-1823), nos debates suscitados pela própria questão brasileira, quando se torna evidente a incapacidade das Cortes para evitarem a secessão do território americano [...]. O impulso colonizador, de raiz ideológica ou mercantil, não deixou de tocar os sucessivos governos de Lisboa, a partir de meados da década de 1820, sendo especialmente sensível a preocupação de consolidar o domínio de Portugal em África contra qualquer ameaça externa, em particular em Angola e Moçambique. Também é patente o intuito de relançar as relações comerciais entre a metrópole e as colônias. Na prática, no entanto, não se vai além de medidas avulsas, de alcance limitado, que para mais ficam na sua maioria por aplicar. A um nível mais geral, hesita-se entre fundar a atividade colonizadora na continuação do tráfico de escravos ou na sua abolição (ALEXANDRE, 2000, p. 13).

Esse projeto de um império africano, comportando uma governança ultramarina mais ampla, só encontrará força com a vitória liberal na guerra civil entre 1832 e 1834 e, em especial, com a ascensão do poder dos setembristas42 em 1836, tendo no marquês de Sá de Bandeira o principal articulador, segundo Alexandre (2000).

42 De acordo com Bonifácio (1982, p. 370): “O conflito entre os que, depois da Revolução de Setembro, se denominariam cartistas e setembristas radica em divergências político-ideológicas que se foram avolumando [...]. A guerra civil obrigara naturalmente a uma trégua temporária entre ambas as facções — radical e moderada — da família liberal portuguesa, mas, regressado o País à normalidade constitucional após Évora Monte, cada uma delas buscaria, por todos os meios, obter a hegemonia no aparelho de Estado e confiscar a direcção dos negócios públicos. Num país em que, pelo seu conhecido subdesenvolvimento, escasseavam os incentivos e oportunidades de recompensa e promoção económico-social à margem dos empregos públicos, o controlo do aparelho de Estado era essencial à angariação e conservação de clientelas políticas através da distribuição de benesses, cargos e influências. A ala moderada dos liberais usufruíra logo de início da enorme vantagem de beneficiar dos favores do Paço, quer na pessoa de D. Pedro, quer, posteriormente, na de D. Maria II [...]. A ‘oposição constitucional’, como a si própria se denominava a ala dos futuros setembristas, viu-se assim excluída dos centros de decisão 'política, preterida na distribuição de cargos e influências, reduzida a uma magra representação parlamentar e cada vez mais empurrada para a acção política à margem dos canais institucionalizados de oposição [...]. 153

Entre as principais ideias de Sá de Bandeira, relacionadas às questões coloniais, estava “a necessidade de abolição imediata da exportação de escravos a partir de qualquer das possessões portuguesas”, pois isso se constituía na lei capital para a civilização e prosperidade dos povos africanos, uma vez que seria inútil “promover a cultura das terras” diante do “tráfico de escravo”, muito mais “lucrativo que qualquer outra indústria”. Ademais, “o colono negro escravo” estaria sempre à mercê da ganância e dos desígnios do tráfico. Para isso, necessário seria reorganizar a “administração ultramarina”, tanto no tocante aos “órgãos centrais (de forma a dar continuidade à política colonial) como aos governos locais (reforçando simultaneamente a autoridade dos respectivos governadores e a fiscalização a que estavam sujeitos”. (ALEXANDRE, 2000, p. 13-4). Em Angola, as ricas-donas, os ventos da mudança a partir de 1836 trazem consigo o rufar da abolição da escravidão, pois, em Luanda, apareciam “os rumores de que se preparava, em Lisboa, um decreto-lei para abolir todas as formas de escravatura e do seu tráfico em todas as possessões portuguesas do Ultramar” (VALADÃO, 2014, p. 188). Com isso, aflora-se a procura dos filhos da terra à Dona Anna Joaquina, no palacete do Bungo, onde ela acalma os ânimos dos exaltados e comunica a chegada a Luanda do novo governador-geral, Domingos Saldanha de Oliveira e Daun. Dona Anna Joaquina seria o primeiro morador a ser recebido pelo novo governador em audiência privada e caberia a ela comunicar também aos “principais moradores, comerciantes e negociantes de grosso trato” o convite de Oliveira e Daun para participarem de uma reunião que aconteceria no Palácio do Governador, onde seriam apresentadas “propostas alternativas para o desenvolvimento da colónia, uma vez extinto o nefando tráfico de seres humanos em que até hoje assentou o seu desenvolvimento económico” (VALADÃO, 2014, p. 198-9). Segundo a narrativa de Valadão (2014), as propostas do novo governador, no entanto, não são bem recebidas, havendo resistência principalmente em relação ao prazo de três meses dado para que os negócios em curso fossem liquidados e começasse a repressão ao tráfico. Outro conflito foi no tocante às medidas punitivas que os escravagistas sofreriam caso se opusessem à nova lei. Para eles, isso seria abuso de autoridade, tendo em vista que os escravos eram propriedades dos mercadores da terra. Para atenuar os conflitos, o governador

Não existiam antagonismos ideológicos irredutíveis, nem a lógica causal da Revolução de Setembro pode ser linearmente reduzida de contradições económico-sociais insuperáveis. Ela resultou das tensões explosivas geradas por um sistema político vedado à representação efectiva das diversas forças sociais e políticas situadas na área do regime. O Estado era, ele próprio, uma facção e, nestas condições, à facção marginalizada não restava outra alternativa se não enveredar pela via insurreccional”. (Grifos nossos). 154

fala do desenvolvimento da indústria e da agricultura da colônia em substituição ao comércio de escravos, com a ‘Companhia de Agricultura e Indústrias de Angola e Benguela’, cujas ações seriam postas à venda em Angola e na metrópole.

No entanto, a passagem de Domingos Saldanha de Oliveira e Daun pelo governo acabaria por ser meteórica. Numa visita que efectuou ao presídio de Pungo Andongo, foi acometido por terríveis febres, em consequências das quais acabaria por morrer, a 25 de Agosto desse mesmo ano de 1836. Domingos Saldanha governara apenas durante seis curtos meses. Em Loanda, respirou-se de alívio, pois acharam que, assim, ganhariam tempo, dependendo do governador que o viesse substituir. Nas circunstâncias da morte de um governador-geral, em sua substituição seria nomeada uma Junta Governativa (VALADÃO, 2014, p. 203).

Após a morte de Domingos Saldanha e do término do governo da Junta de 1836 a 1837, assumiria Manuel Bernardo Vidal de 1837 a 1839. Nas palavras de Valadão, o novo governador trazia “na bagagem o decreto da abolição da escravatura em todas as suas formas, incluindo o tráfico nas possessões portuguesas no Ultramar. Assinava-o, em 10 de Dezembro de 1836, o marquês de Sá da Bandeira, primeiro-ministro de Portugal”. Em suas medidas, estavam o fim “a todas as formas de escravatura e ao seu tráfico”; a criação do “Conselho Consultivo, composto por altos funcionários da administração pública” com indicações da metrópole e com poder para resolver queixas; a estipulação do prazo de três meses já exposto por Domingos Saldanha (idem, p. 205-6). As medidas de Bernardo Vidal alteram ainda mais os ânimos, acirrando os conflitos já existentes entre interesses da metrópole e da elite local de Luanda. Dessa vez, é a voz de Dona Anna que, indignada, soa mais forte, dizendo: “É preciso que muita água corra no Bengo até que tenhamos de aceitar as consequências da sua imposição imediata”. E continua: “No Brasil, a lei de 1831 foi totalmente ignorada. Estou confiante de que alguma coisa com o mesmo efeito acabe por acontecer cá, pelo menos por algum tempo”. Por fim, ela argumenta que o fim do tráfico acentuaria a crise econômica atual já existente na colônia, impetrada pelos próprios governadores anteriores (idem, p. 207). Bernardo Vidal sente o peso da pressão do cargo que ocupara e comunica seu parecer à metrópole, convidando as autoridades portuguesas a virem enfrentar em Angola os interesses da população. Pouco tempo depois, incitado mais por Arsénio de Carpo, ele acaba por ceder ao comércio do tráfico e o “consulado de Bernardo Vidal foi marcado por uma despudorada corrupção. O governador aceitava, sem rebuços o jogo dos traficantes” e até estipula um preço por sua proteção. Ele se relaciona intimamente com a elite local a ponto de 155

Dona Anna Joaquina oferecer-lhe “uma grande recepção no palacete do Bungo”. Por vias contrárias, a repressão acabará ajudando o tráfico de escravos, elevando-lhe o preço (idem, p. 208-210). Sá de Bandeira destitui Bernardo Vidal, mandando-o regressar a Portugal. Para assumir seu lugar é nomeado “o vice-almirante António Manuel de Noronha, um oficial da marinha”. Arsénio de Carpo externa que a escolha do oficial para o cargo não poderia ter sido pior. “É de uma integridade inquestionável e por isso merecedor da confiança do governo de Portugal”. O novo governador chega a Luanda “no dia 24 de Janeiro de 1839” e vem com instruções “para dar rigorosa execução ao decreto de 10 de Dezembro de 1836”, comunicando que ordenará “a aplicação imediata das medidas enunciadas na lei abolicionista” (idem, p. 217-8). Durante o pouco tempo que permaneceu no governo de Angola, incentivou “todos os negociantes para formarem uma associação para exploração das minas de ferro”. Outrossim, providenciou a fundação da “Companhia de Comércio, Agricultura e Pescas de Benguela”; a entrega da “exploração de jazidas de petróleo na região do Dande e na serra do Libongo a um cientista suíço, o doutor Lang” e a “exploração do sertão ao sul de Benguela até Moçâmedes”, entre outros melhoramentos como aplacar a falta de água potável em Luanda e instalar um novo teatro. Mas, acima de tudo, se preocupou com a aplicação do decreto da abolição. Ao observar que a vigilância portuguesa em mar era inoperante para vigiar os navios negreiros, faz parceria com o tenente inglês William Tucker para aprisionar navios transportando escravos (Idem, p. 218-220). O descontentamento da elite local da colônia com o vice-almirante Noronha aumentava e a solicitação à metrópole de sua destituição chegou a ser solicitada. A fama de integridade do novo governador inibia qualquer atitude de aliciamento e nem mesmo o padecimento por febres tropicais, comuns aos estrangeiros que chegavam em Angola, fez com que ele morresse ou desistisse do cargo, deixando os negociantes de escravos muito tristes. Ocorreram rebeliões, contestações, perseguições e até uma campanha de descrédito a Noronha, imputando-lhe incapacidade para continuar a desempenhar o cargo, por perda das faculdades mentais. Por fim, não suportando a pressão, abandonou “Angola num navio de guerra que o conduziu a Portugal, em 23 de Novembro [...] de 1839” (VALADÃO, 2014, p. 222). Manuel Eleutério Malheiro assume o governo de Angola em 1839, logo após a saída de Noronha. Segundo a historiadora Tammone (2019, p. 237), Noronha “temia por sua vida caso permanecesse na colônia”. Na trama, o governo de Malheiro tratou de “tornar 156

completamente operacional o plano de perseguição aos navios negreiros, ao mesmo tempo que impunha medidas para fazer cumprir a lei da abolição em todas as suas vertentes” (VALADÃO, 2014, p. 227), atitudes já tomadas por governos anteriores. Além disso, ele se preocupou em “explorar a costa até Moçâmedes, onde foi construído um novo presídio” (idem) e em ampliar a vigilância e repressão ao tráfico por rotas terrestres. Arsénio de Carpo, no entanto, conseguia romper, juntamente com outros escravagistas, os bloqueios do tráfico, assim como a resistência do novo governador que “optou finalmente pela teoria do lesser evil – o menor dos males”. Em suma, a teoria considerava que o comércio de escravos, de seres humanos, era o menor dos males diante da catástrofe econômica que seu fim acarretaria, sob a defesa do valor humanitário. Sucedendo Malheiro que governou Angola até 1842, veio José Xavier Bressane Leite que ficou apenas até 1843. Sobre ele, a narrativa de Valadão (2014, pp. 262-3) dedica poucas linhas. Diz que o governador exerceu anteriormente as funções de chefe de esquadra da Armada, sendo, por isso, profundo conhecedor das movimentações e das rotas dos comerciantes de escravos. Outrossim, é registrada pela escritora uma explícita demonstração de proteção de Bressane Leite a Dona Anna Joaquina, mostrando que ela tinha uma enorme influência sobre ele. Em correspondências oficiais a defendia dizendo que seus navios não eram dedicados a “negócios ilícitos”, que ela se prestava apenas “a empresas úteis e que não estava nem nunca estivera implicada no tráfico proibido”, estando sempre pronto a “elogiar os seus bons serviços”. Em julho de 1853, Bressane Leite tem as funções do cargo interrompidas pelas famosas “febres tropicais” que o levam a morte. Mas, em 1842, em seu governo ainda, os negociantes e traficantes de Angola sofreriam um abalo com um tratado abolicionista assinado entre Portugal e Inglaterra que trazia em seu cerne a instalação das comissões mistas britânicas e portuguesas, cuja efetiva concretização só aconteceria em 1844. Para substituí-lo, aparece em Luanda o governador-geral Lorenço Germak Possolo (1844-1845) com as mesmas medidas de contenção do tráfico e de aplicação do desenvolvimento agrícola e que, da mesma forma que a maioria dos governadores anteriores, deixa-se também “enveredar pela teia dos traficantes” (idem, p. 269), mais uma vez sob o aceno de Arsénio de Carpo. Pedro Alexandrino da Cunha (1845-1848) também aparece na narrativa de Valadão (2014) como mais um governador conivente com o tráfico. Chegou em Luanda providenciando, com o reforço dos meios navais, “patrulhamento intensivo da costa” e a “perseguição implacável de embarcações transportando escravos” (idem, p. 271). Além disso, continuo com as medidas repressivas ao tráfico já implementadas e que estavam engavetadas 157

por seus antecessores. Em seu governo, Arsénio de Carpo não escaparia de ser preso e expulso “de Angola com extradição compulsiva para Lisboa” (idem, p. 271). Aconteceria o mesmo com Francisco de Salles Ferreira. No entanto, o novo governador-geral não se eximia de acobertar o tráfico de Augusto Guedes Coutinho Garrido e de seu sócio, José Maria Mattoso de Andrade Câmara, favorecendo-os com favores. “Não obstante todas as dificuldades levantadas, a maioria das firmas do litoral continuavam a dedicar-se à exportação clandestina de escravos, mantendo uma capa de aparente legalidade e justificando-a perante as autoridades com a comercialização de produtos coloniais” (idem, p. 274). Entre tantas medidas de repressão ao tráfico de escravos e de punições a comerciantes e negociantes desse comércio que se tornará ilegal, Dona Anna Joaquina permanecia intocada pelos governadores e chegava mesmo a ser exaltada por alguns deles, como foi o caso também de Pedro Alexandrino da Cunha que, em 1846, elogia a rica-dona pela primeira fábrica angolana de transformação de açúcar e aguardente. Ele, inclusive, recomenda, ao chefe do Icolo e Bengo, proteção à empresa dela. Pelo visto, Dona Anna Joaquina soube não apenas requerer favores para a continuação ilegal de seus negócios com o tráfico de escravos, mas também aproveitar o momento certo para mudar de ramo gradativamente, acompanhando as mudanças da colônia. O governo posterior, o de Adrião Acácio de Silveira Pinto (1848-1851), presenciaria a efetiva produção da fábrica da Baronesa do Bungo, recebendo dela uma rica e opulenta recepção quando em uma das visitas do governador-geral ao vale do Bengo, onde ficava o arimo Capela de Dona Anna e a fábrica dela. Na narrativa de Valadão (2014), as relações comerciais da elite crioula, em especial a trajetória de Dona Anna Joaquina dos Santos e Silva, acompanham as mudanças da metrópole na política colonial de mais da metade do século XIX, apresentando todos os governadores- gerais no período de 1804 a 1851. Há, depois disso, um pequeno salto para o governo de Coelho do Amaral que, em 1856, é representado na narrativa consagrando “a atividade industrial de Dona Anna Joaquina em Angola” (idem, p. 304), dando-lhe conselhos para continuar contribuindo com o desenvolvimento da colônia e reiterando apoio institucional para seu crescimento industrial.

Estava agora consolidada a carreira industrial de Dona Anna Joaquina, com a sua total rendição ao comércio legítimo. Infelizmente, esta fantástica fase não duraria muito tempo, porém, até à sua morte, em 1859, ela ganharia o estatuto de maior industrial de Loanda, tal como já acontecera com a sua 158

carreira de maior negociante e traficante de toda a colónia angolense (VALADÃO, 2014, p. 305).

Dona Anna Joaquina é inocentada, embora tendo sofrido um processo judicial em 1852 que, na narrativa, deveu-se à acusação “de cumplicidade numa parte importante dos crimes apontados ao comerciante” (idem, p. 306) Arsénio de Carpo. Tanto ela, como ele mais tarde. A rica-dona de Angola segue toda a narrativa de Valadão (2014) elevada à soberana do tráfico de escravos e, depois, à industrial de renome. Foi solicitada pela maior parte das autoridades coloniais que chegavam a Luanda e com raras exceções deixou de ser ouvida. A única intriga que teve foi com o governador-geral José Maria de Sousa Macedo Almeida e Vasconcelos, o barão de Santa Comba Dão, que seria o responsável por Dona Anna Joaquina ter deserdado a filha, Dona Thereza Luíza de Jesus. Como observado, com a monarquia constitucional e as ideias liberais em curso, em Portugal, pouco houve de mudanças na forma de organização de seus domínios ultramarinos. Após a independência do Brasil, as tentativas de um império africano, voltando-se principalmente para Angola como um novo Brasil, tendo em mente uma colonização agrícola efetiva e o incentivo à indústria, foram ineficazes. A razão disso era uma economia lucrativa fundamentalmente baseada no tráfico de escravos. Perante a ilegalização da exportação de escravos, tanto em Angola como em Moçambique, nas palavras de Alexandre (2000, p. 15):

[...] os governadores sucessivamente nomeados para ambas as possessões ou se bandearam com os negreiros ou, mais raramente, foram obrigados a retirar-se. O tráfico continuou atingindo de novo números elevados em finais da década de 1840. Também a repressão desse comércio pela marinha britânica – efectuada sobre navios portugueses desde 1839 por acto unilateral e desde 1842 por virtude do tratado anglo-luso nesse ano firmado – teve efeitos limitados, levando sobretudo a uma mudança de rotas do tráfico negreiro, que passou a efectuar-se a partir de pontos isolados da costa.

Percebemos isso na narrativa de Valadão (2014). Em 1842, por exemplo, no governo de Bressane Leite, ocorreria a instalação das comissões mistas britânicas e portuguesas como resultado da repressão do comércio de escravos em Angola. Até 1836, os tumbeiros de Dona Anna Joaquina “partiam abertamente do porto de Loanda. Mas, depois começaram a procurar portos que não estivessem sujeitos à legislação portuguesa, como Ambriz e Moçâmedes, locais onde ela possuía igualmente feitorias” (idem, p. 226). Outras medidas também foram tomadas como não receber as caravanas de escravos que chegavam em Luanda à luz do dia, 159

mas à noite. Os escravos que saíam do palacete do Bungo para serem transportados pela rota transatlântica seguiam:

[...] por um subterrâneo que ligava as caves do palacete, no Bungo, à Ponta da Mãe Isabel, onde os navios permaneciam ancorados ao largo. Outras vezes, eram transportados em barcaças até à ponta norte da ilha de Loanda, onde ela possuía uma quinta, e daí eram embarcados nos seus navios (VALADÃO, 2014, p. 226).

Para burlar as leis que ilegalizavam o tráfico de escravos, não faltava criatividade lucrativa, nem para a rica-dona e nem para os seus pares. No caso de Dona Anna Joaquina, a sensação de perigo dava-lhe “enorme prazer” (idem, p. 226). Nas primeiras décadas do século XIX, segundo Tammone (2019, p. 245), “o tráfico era o elemento de articulação econômica entre o sertão e a costa, ou seja, entre os colonos e a metrópole”. Até em 1830, quando a repressão ao tráfico se tornou mais intensa, foi então a época mais lucrativa para comerciantes e negociantes do comércio escravagista. Valadão (2014) acentua isso nas palavras de Dona Anna Joaquina, quando ela diz que: “A repressão só vem ajudar a subir bastante o preço dos escravos e eu tenciono tirar o máximo partido dessa situação” (idem, p. 212). Há que considerarmos na implementação de um projeto colonial em África que suplantasse o tráfico de escravos em favor do desenvolvimento agrícola e do comércio lícito, sobretudo, o desconhecimento da metrópole em relação às suas colônias, aqui, em específico, Angola. Isso pode ser visto através dos representantes da Corte Portuguesa, os governadores- gerais narrados por Valadão (2014), que, na falta de apoio da metrópole acabavam ou desistindo ou deixando-se seduzir pelo enriquecimento fácil do tráfico de escravos. Por outro lado, nas palavras de Tammone (2019, p. 247):

Somados, a crise do Antigo Regime, a formação de uma nova estrutura política, as lutas pela consolidação da monarquia constitucional, a falta de recursos para serem aplicados nos projetos coloniais e nas novas especulações intentadas pelo governo e a falta de unidade e continuidade nas políticas estabelecidas para as colônias foram fatores que levaram a não efetividade do projeto de Novo Brasil.

A partir de 1836, esse projeto colonial implicava a extinção do comércio de escravos que teria início com o decreto-lei de supressão da exportação de escravos em todas as possessões portuguesas, assinado pelo marquês Sá de Bandeira, o primeiro-ministro de Portugal à época. Para Sá Bandeira, a supressão do tráfico não era apenas uma questão de 160

convicção política, mas de condição imprescindível para o sucesso de um projeto colonial em África, segundo Marques (2000, p. 41). Mas a política de extinção da escravidão de Sá de Bandeira, na verdade, não foi algo amplo e imediato e muito menos sem conflitos e resistências; muito pelo contrário como atesta, em parte, a narrativa de Valadão (2014). Já havia na virada do século XVIII para o XIX, uma mudança de pensamento e de comportamento no mundo ocidental que tocava a extinção das instituições escravagistas. Conforme Marques (2000, p. 31):

Essa transformação radical repercutiu em todos os planos do humano, das sensibilidades aos comportamentos económicos, e a um ponto tal que não será abusivo considerar que a ‘Era das Revoluções’ e ‘do Capital’ foi, também, uma ‘Era das Abolições’. Portugal viveu essa Era das Abolições de uma forma intermitente e indecisa, seguindo uma trajectória sinuosa que muitas vezes o aproximou perigosamente da obstrução à então chamada causa da humanidade.

No entanto, no entender de Marques (2000), essa transformação na Europa estava mais para o reflexo de um iluminismo tardio que se sustentava em demasia no lamento ao sofrimento do escravo e em medidas paliativas de abrandamento da escravidão, mas que não ousava enfrentar, na prática, o sistema que “constituía o sustentáculo económico das colónias americanas” (idem, p. 32). Em suma, as medidas abolicionistas podiam ser definidas como toleracionistas. Em Portugal, principalmente, comprovava-se uma diplomacia no trato dessas questões, dispensando-se o radicalismo de uma extinção imediata e ampla da escravidão, implantada pelo abolicionismo, em direção a medidas graduais como foi o decreto-lei de 1836 de Sá da Bandeira que se colocava no fogo cruzado de atendimento às imposições britânicas e aos interesses econômicos da escravidão nos domínios ultramarinos e na própria metrópole portuguesa, tendendo a uma política toleracionista para tentar agradar a todos. A política toleracionista de Portugal em relação à escravidão teria início, segundo Marques (2000), a partir de 1807, quando a Inglaterra, grande credora de Portugal, resolve abolir o tráfico de escravos e estender tal atitude a todas as nações ainda resistentes; começa, então, para Portugal, “um jogo de promessas e de resistências, de acordos e de recriminações, que iria perdurar até ao início da década de 1840” (idem, p. 35). Em agosto de 1839, é imposto o bill de Palmerston, com o objetivo de conceder poderes à Royal Navy “para interceptar e apresar quaisquer navios com bandeira portuguesa (ou sem bandeira) que transportassem escravos ou estivessem equipados para fazer esse transporte” (idem, p. 38). 161

Na narrativa de Valadão (2014), percebemos Dona Anna Joaquina tentando burlar o sistema, providenciando, em relação a seus navios negreiros, algumas medidas essenciais: Primeiro, nas palavras da rica-dona, “A carga humana pode sempre justificar-se como sendo constituída por escravos pessoais, que vão trabalhar para as minhas fazendas no Brasil ou em São Tomé” (idem, p. 225). Segundo, quando o capitão de Dona Anna lhe assegura que já havia reduzido “ao mínimo os artefatos que são identificados com o tráfico [...]. As equipagens dos seus navios não diferem muito das de um navio mercante” (idem). De acordo com Ferreira (2011), que analisou o tráfico de escravos em Angola entre 1830 e 1860, em artigo publicado em inglês The suppression of the slave trade and slave departures from Angola, 1830s-1860s:

Although shipments of slaves in nineteenth-century Angola were directly affected by external forces, such as international eff orts to suppress the slave trade and the tight economic links with , the supply of slaves for the coast and local politics were also key factors in the continuation of the trade during illegality. External forces - represented by partial abolition of the slave trade - affected first northern Angola, and only much later took a toll on the trade in Luanda and Benguela. In Luanda and Benguela, Brazilian and local investors held tight grip over shipments of slaves, in addition to dominating local politics and crippling early attempts to ban the trade. It is not surprising, therefore, that slave trading continued until the mid-1840s. The geography of the northern Angolan coast and Congo River ensured an almost daunting number of potential slave-embarkation points and there was no local Portuguese administration present to either help or hinder shipments of slaves. 99Th e region thus provided a safe haven for slave dealers when pressure on the traffic built up in Luanda and Benguela43 (FERREIRA, 2011, p. 12-13).

O fim do tráfico transatlântico de escravos não era uma tarefa fácil de se conseguir, mas, nos anos finais de 1839, com os setembristas retirados do poder, inicia-se “uma política de apaziguamento e de demonstração de boa fé que acabaria por se saldar na conclusão do tão aguardado tratado anglo-português (3 de julho de 1842)” (MARQUES, 2000, p. 38). Com

43 Embora as remessas de escravos em Angola do século XIX fossem diretamente afetadas por forças externas, como esforços internacionais para suprimir o tráfico de escravos e os estreitos vínculos econômicos com o Brasil, o suprimento de escravos para a costa e a política local também foram fatores-chave na continuação do comércio durante a ilegalidade. As forças externas - representadas pela abolição parcial do comércio de escravos - afetaram primeiro o norte de Angola, e apenas muito mais tarde teve um impacto sobre o comércio em Luanda e Benguela. Em Luanda e Benguela, investidores brasileiros e locais mantiveram forte controle sobre os embarques de escravos, além de dominarem a política local e prejudicarem as primeiras tentativas de proibir o comércio. Não surpreende, portanto, que o comércio de escravos tenha continuado até meados da década de 1840. A geografia da costa norte de Angola e do rio Congo garantiu um número quase assustador de potenciais pontos de embarque de escravos e não havia administração local portuguesa presente para ajudar ou impedir o embarque de escravos. A região, portanto, proporcionou um refúgio seguro para os traficantes de escravos quando a pressão sobre o tráfico se acumulou em Luanda e Benguela. (Tradução de Fabrício Delano Pereira de Sousa) 162

este tratado, o tráfico seria equiparado à pirataria e haveria a imediata condenação de qualquer navio mercante que transportasse qualquer tipo de escravos, com a existência ou não de equipamentos comprobatórios para o transporte deles. Ademais, criam-se “as comissões mistas para julgamento rápido dos navios infractores (uma das quais em Luanda)” (idem). Em Angola, as ricas-donas, Valadão (2014), a assinatura do tratado, como vimos, dar- se-á no governo de Bressane Leite.

O documento, outorgado pelo duque de Palmela em representação de Portugal e por Lorde Howard Walden, pela Inglaterra, representava o mais duro revés para os antiabolicionistas, cuja causa estava já seriamente comprometida pela parafernália legislativa publicada até então pelo governo português, criando mais e sempre dificuldades nas suas atividades. (VALADÃO, 2014, p. 263).

A preocupação maior da elite de Luanda em relação ao tratado, devia-se à implementação das comissões mistas que, na narrativa de Valadão (2014, p. 264-5), chega a Luanda apenas em 1844. Da parte de Portugal, seria nomeado para dirigir este organismo “o capitão-tenente da Armada Pedro Alexandrino da Cunha”, que, depois, seria governador- geral. Do outro lado, “o comissário e o árbitro britânicos foram nomeados por Lorde Aberdeen”, sendo estes, respectivamente, John Thomas e Charles Clinton. O comissário e árbitro portugueses eram, nas palavras de Dona Anna, “pessoas das nossas relações [...], filhos da terra”, Eusébio Catella de Lemos Pinheiro e Félix António Domingos. John Thomas, que ficaria hospedado no palacete de Arsênio de Carpo, faleceria em 29 de janeiro de 1844, acometido por uma crise de cólera. Dona Anna chega a cogitar a ação de Arsênio de Carpo na morte do comissário inglês, mas o clima quente e a água insalubre acabam sendo os culpados da morte do inglês. Charles Francis Clinton, que também se hospedara no palacete de Arsénio de Carpo, adoeceria também e seria encontrado morto, com a “garganta cortada com uma lâmina de barbear” (VALADÃO, 2014, p. 273), sem que a polícia atestasse ter sido crime ou suicídio em decorrência dos flagelos da doença a qual estava acometido. Novamente, Dona Anna se surpreende por ter sido a vítima hóspede de Arsénio de Carpo. De acordo com Rodrigues (2005, p. 57):

Em nove anos (entre 1818 a 1827), a população branca de Luanda aumentou em mais de 400% [...] - aumento que seguramente se deveu à atração exercida pelo tráfico negreiro ou outras atividades ligadas a ele nesse período. No intervalo de dezoito anos entre 1827 a 1845, apesar da queda no número absoluto de habitantes, a cidade teve um crescimento da 163

população branca da ordem de pouco mais de 10% [...]. Essa desaceleração pode ser explicada tanto pela falta de interesse dos comerciantes portugueses em se estabelecer na capital angolana quanto pela dispersão do tráfico em direção aos portos menores.

O governador-geral Nicolau Castelo Branco, em 1826, já atestava que o local onde Luanda havia sido erguida era inadequado para os europeus. Em conjunto, ventos desfavoráveis, o odor fétido vindo das casas onde ficavam os escravos e do material que as cobria, a falta de limpeza das praias, entre outros fatores, tornavam Luanda uma cidade perigosa, em especial na estação das chuvas. Segundo Rodrigues (2005, p. 55): “Até meados do século XIX ainda não havia solução para problemas urbanos elementares, como o abastecimento de água potável [...], havendo na cidade apenas dois poços públicos (maiangas)”. Além dos poços, o rio Bengo era o grande responsável pelo maior consumo de água da cidade, cujo transporte era feito por tanques através de bancos, sem que houvesse nenhum tratamento. Considerando-se que, naquela época, os dejetos humanos também iam parar no rio, a água não poderia ser saudável. Dessa forma, havia um desinteresse dos europeus em morar em Luanda, devido às condições insalubres da cidade que resultava em altos índices de mortalidade, principalmente entre a população europeia não acostumada com o ambiente tropical da colônia, que aliado à falta de água e de saneamento básico, tornavam-se fonte de doenças e epidemias. Com isso, a comissão mista ficou reduzida à representação portuguesa, constituída dos angolanos, “filhos da terra”, pertencentes à elite local e voltada para os interesses do comércio de escravos. Mas, embora sendo um filho da terra, acostumado com o clima e as condições da cidade de Luanda, um dos membros da comissão portuguesa vem a falecer também, apresentando os sintomas habituais. A autora deixa implícita a participação de Arsénio de Carpo na morte dos ingleses, mas como o índice de mortalidade de estrangeiros na Angola, do século XIX, devido a fatores climáticos e de infraestrutura era grande e, portanto, comum, as mortes não chamarem a atenção das autoridades, embora, mais tarde, no governo de Pedro Alexandrino da Cunha, ele venha a ser preso, expulso de Angola e extraditado para Lisboa, vindo a retornar para Luanda apenas no governo seguinte. Ainda que os ingleses fossem indesejados, a formação de uma comunidade britânica em Luanda não foi detida. Valadão (2014) destaca a participação dessa comunidade em um capítulo que ela denomina de “O bairro dos ingleses” (idem, p. 292), tal como ficaria registrado na história de Luanda. 164

A comunidade britânica aumentava em Loanda, conferindo à cidade um aspecto cada vez mais cosmopolita. A firma Newton & Carnegie, a única casa comercial inglesa existente na cidade, instalara-se no Bairro do Bungo, à beira-mar, muito próximo do palacete de minha Ama, num bonito chalé [...]. Como alternativa ao palacete de Arsénio de Carpo, que, no entanto, continuaria a gozar das boas graças dos ingleses, ali passariam a instalar-se todos os súbditos da colónia britânica na cidade. A vivenda ficaria conhecida como Bungo House e lá se realizavam animados serões com música, teatro e, de vez em quando, com sessões de ilusionismo amador. Todas essas ocasiões serviam para a confraternização da comunidade inglesa com os membros das melhores famílias de Loanda (VALADÃO, 2014, p. 292).

Os ingleses deixariam sua marca na Luanda do século XIX. Segundo a narrativa de Valadão (2014), eles alterariam a configuração do bairro do Bungo, fazendo com que este superasse até mesmo a Cidade Alta, passando a ser conhecido como “Bairro dos Ingleses”. Isso faria com que parte das famílias mais importantes da cidade de Luanda, à época, preferisse o bairro do Bungo em detrimento da Cidade Alta, pois aquele passaria a concorrer com esta em cosmopolitismo, no dizer de Valadão (2014, p. 293). Dois acontecimentos contribuíram, segundo Marques (2000, p. 38), para que Portugal assumisse de forma mais ampla “uma prática de cooperação abolicionista com a Inglaterra”, “o bill de Palmerston e a posterior queda dos setembristas em Portugal”, ambos ocorridos em 1839. Esse espírito de cooperação permaneceria “até a extinção total do tráfico transatlântico em meados da década de 1860”. Tal extinção, no entanto, não inviabilizou, em especial em Angola e Moçambique, uma “conivência para com os negreiros [como eram conhecidos os comerciantes de escravos], nomeadamente por parte das autoridades administrativas e judiciais” (idem, p. 39). Ou seja, o tráfico de escravos persistiu de outras formas. Ademais, o decreto-lei de 1836 e as demais medidas em 1839, apenas suprimia legalmente o tráfico de escravos, proibindo a sua exportação das colônias africanas de Portugal para além-Atlântico, mas não abolia a escravidão. “O comércio negreiro constituía, pela sua própria natureza, um problema internacional que envolvia nações de três continentes; ao invés, a escravidão era, ou podia ser, algo que ocorria exclusivamente no interior de um Estado independente e soberano” (Marques, 2000, p. 42). Se, por um lado, havia um compromisso entre britânicos e portugueses no tocante ao tráfico; por outro, nada havia sido firmado em relação à escravidão, “a não ser um compromisso moral, tacitamente aceite pelas nações que se queriam civilizadas e progressivas” (idem). 165

No que concerne à escravidão em Angola, ela continuaria a existir mesmo depois de sua efetiva abolição em todo território português em 1869. Se considerarmos, e devemos, o trabalho compulsivo ou forçado, ela ainda permanecerá até a década anterior à de 1970, bem próximo da independência de Angola. Diversas terminologias acompanhariam as formas de escravidão nas colônias. A narrativa de Valadão (2014), que abarca o período entre 1804 a 1869, acompanha o trajeto da escravidão nas colônias, indo da legalidade da escravidão a uma semiliberdade do escravo. Nesse percurso, vimos que 1836 e 1842 foram decisivos para a abolição do tráfico de escravos nos territórios portugueses. Entretanto, somente em 1853, segundo Marques (2000, p. 48): “impunha-se a libertação dos escravos do Estado e a dos que, daí em diante, fossem importados por terra, ficando todos, obviamente, na condição de libertos e obrigados a trabalhar por períodos de sete e dez anos, respectivamente”. Na teoria, a condição de liberto implicava uma fase de aprendizagem de um ofício para que o ex-escravo pudesse ter autonomia após obter a liberdade, mas, na prática, tornou-se um patamar da escravidão e seus serviços, às vezes, eram vendidos, dando lucro a seus proprietários. Em 1854, a condição de liberto é ampliada aos escravos das Câmaras Municipais, das igrejas e das Misericórdias; e, em 1855, concedia-se a liberdade do ventre, que determinava que os “filhos de escrava que viessem a nascer depois da publicação da lei teriam de servir gratuitamente os seus senhores até aos 20 anos de idade” (MARQUES, 2000, p. 49). Em 29 de abril de 1858, um decreto determinaria o prazo máximo de 20 anos para o fim da escravidão em todo o território sob administração portuguesa. É em decorrência do decreto de 1858 que, na narrativa de Valadão (2014), Eufrozina, após a morte de Dona Anna Joaquina, em 1859, tendo recebido a alforria das mãos de sua ama, precisará fugir para não ter que servir à família de Dona Thereza Luíza, filha de Dona Anna Joaquina. A alforria é impugnada em nome de uma dívida contraída por sua ex-ama e o decreto de 1858 obrigaria Eufrozina a outra forma de escravidão, uma vez teria que estaria sujeita ao trabalho escravo por mais vinte anos como forma de indenização. Diz Farto da Costa, procurador de Dona Anna Joaquina:

— Os senhores que possuem escravos podem libertá-los, mas têm o direito a uma indemnização paga pelo governo, e esse processo pode arrastar-se durante o período de tempo estipulado no decreto. O que na prática significa que a Eufrozina ainda não está livre de que os Coutinho Garrido, segundo a lei, a tomem por escrava. Aconselho-a vivamente a prosseguir com o seu plano de sair da cidade (VALADÃO, 2014, p. 331).

166

Em 25 de fevereiro de 1869, conforme Neto (2017, p. 112), seriam considerados libertos todos aqueles que se achassem, na mencionada data, na condição de escravos, independente do sexo, sem exceção alguma. Todavia, a nova condição vinha com a obrigatoriedade de os ex-escravos trabalharem para seus antigos donos em troca de um pequeno salário. Além do mais, “eram marcados com ferro em brasa com o novo símbolo de ‘liberto’, tal qual tinham sido marcados pelos seus sucessivos proprietários”. É este o fim da narrativa em Angola, as ricas-donas, de Isabel Valadão. Eufrozina fugiu e se abrigou sob a proteção de Félix Velasco Galiano. Os únicos que sabiam de seu destino eram Arsénio de Carpo e o advogado Farto da Costa. Este último faz-lhe uma visita, comunicando sobre a novidade da promulgação da lei de “extinção da escravatura em todo o Império Português” e apontando a desvantagem da mesma: “É que obriga todos os ex- escravos na sua nova condição de libertos a prestarem serviços aos seus antigos senhores pelo menos até ao ano de 1878, o que estende por quase dez anos as cadeias de sujeição” (VALADÃO, p. 337). Depois dessa visita de Farto da Costa, “o prazo do serviço obrigatório viria a ser encurtado [...] para o ano de 1876” (idem). Posteriormente, a condição de liberto daria lugar à de serviçal. Sob a denominação de serviçais, milhares de angolanos, segundo Neto (2017, p. 112-3), foram designados para as plantações de café e cacau em S. Tomé, apoiados numa legislação que justificava o recurso ao trabalho forçado dos colonizados. Mas não ficou apenas nisso. De acordo com Neto (2017, p. 113):

Desde o ‘Regulamento do Trabalho dos Indígenas das Colónias’ de 1899 até 1961, quando a guerra de libertação que eclodiu em Angola obrigou a rápidas reformas, a legislação colonial portuguesa permitiu sempre formas diversas de trabalho forçado (com ou sem ‘contrato’ formal), que não se aplicavam aos cidadãos portugueses, mas apenas àqueles pela lei classificados como ‘indígenas’. Não sendo já a escravidão, ainda não era o trabalho livre que só a legislação de 1961 veio consagrar, abolindo o ‘Estatuto dos Indígenas’ e tornando todos ‘cidadãos’. No entanto, o sistema colonial não estava preparado para os efeitos económicos do fim da discriminação laboral e foi instituído um ‘Código do Trabalho Rural’ que, apesar do nome, também se aplicava nos centros urbanos, por exemplo aos trabalhadores da construção civil que antes fossem considerados ‘indígenas’. Esse subterfúgio legal permitia que esses trabalhadores continuassem a ser pagos por tabelas salariais com valores inferiores aos dos ‘cidadãos’. (Grifos da autora).

Na prática a escravidão perduraria o tempo da colonização portuguesa em Angola. Em A sombra do imbondeiro (2012), também de Isabel Valadão, consideramos a questão do 167

indigenato que, na verdade, funcionava como uma proteção à pequena minoria branca, resguardando, a partir de parâmetros raciais, o direito a se sobrepor à maioria negra ou mestiça em termos econômicos e sociais. Sobre isso, cabe-nos ressaltar a questão da assimilação que, de diversas formas, atuo como forma de branqueamento. Sabemos que, desde a Antiguidade Clássica, a história registrou a presença da escravidão como prática na vida social de diferentes povos. Na África, ela foi praticada por líderes africanos muito antes da chegada dos colonizadores portugueses, incluindo, em alguns casos, não apenas nativos africanos, mas também cativos brancos. Entretanto, não seria possível assegurar esse tipo de escravidão como forma de exploração do trabalho e muito menos com vistas à desumanização e ao desaparecimento ou silenciamento da cultura e da história do cativo. A configuração era outra (SOUZA, 2003). A escravidão moderna, no entanto, adquire outros contornos, pois o escravo se torna uma propriedade lucrativa, tanto no que concerne ao valor comercial a ele agregado quanto às possibilidades de uso de sua força de trabalho, geradora de lucros inigualáveis e com ínfimos custos de manutenção. É claro que, nesse comércio transatlântico de escravos, havia toda uma engenharia que envolvia uma gama de pessoas e, entre elas, africanos, embora isso não fosse propriamente uma opção e nem consenso. Mas, por outro lado, e bem mais crítico para a prática da escravidão moderna, foram as justificativas para comercialização de seres humanos, fundamentadas por teorias, discursos e instituições que construíram, ao longo do tempo e dos espaços, a superioridade do homem europeu em detrimento da inferioridade do negro africano. Isso, certamente, não coube aos africanos. Ademais, há que considerarmos o impacto do comércio de escravos para a destruição das sociedades africanas e da diminuição desses povos em solo africano. De acordo com Bethencourt (2018, p. 260), a estimativa do comércio escravagista transatlântico excede os 12,5 milhões de africanos. Deste total, os “portugueses foram responsáveis pelo transporte de mais de 5,8 milhões de escravos”; o que significou uma porcentagem de 47% sobre o total de escravos transportados para as Américas. Acrescentemos também o impacto do tráfico no contingente populacional das sociedades africanas, principalmente em relação à colônia angolense. De acordo com Dias (2000, p. 71): “a população de Angola era extremamente escassa no século XIX, comparada com outras regiões do continente africano [...]”. Para alguns autores a razão disso se encontrava, em grande parte, no “tráfico ultramarino” em conjunto com “o contexto ecológico em que ele ocorreu” que incluía “a variabilidade e instabilidade das chuvas”, responsáveis por 168

“secas e fomes que, juntamente com epidemias, periodicamente devastaram as sociedades” africanas. Nesse contexto de escravidão, a questão da raça foi um fator fundamental. De acordo com Souza (2003, p. 14), “no século XIX, através de um projeto de expansão europeia pelo mundo, o sistema escravagista, essencialmente econômico, adquiriu contornos raciais, sendo o negro, transplantado para as Américas, identificado, então, como escravo”. A colonização manteve no conceito de raça a força para se apropriar dos territórios coloniais e de suas gentes e, mais que isso, manteve nele a estratégia para despersonalização do outro, reafirmando-se aqui as palavras de Morrison (2019) de que a raça é um efeito de poder e de que os negros são fundamentais para uma definição branca da humanidade. No entender de Almeida (2019) “a história da raça ou das raças é a história da constituição política e econômica das sociedades contemporâneas”. Com isso, Almeida (2019) depreende que o racismo não é patológico e nem um critério de anormalidade do ser humano, mas que ele está inserindo nas sociedades contemporâneas através das estruturas que as compõem e que raça e racismo estão relacionados. Disso, subentendemos que o racismo é histórico e relacional e está presente em nossa sociedade, em maior ou menor grau, desde o século XVI. Nas colônias, os portugueses se colocavam como o grupo racial dominante, ainda que numericamente inferiores. Conforme Wheeler (2013, p. 78), havia nos portugueses aquele sentimento europeu de “superioridade branca consciente” e a convicção de que “a escravização dos negros era legítima, visto que estes eram, alegadamente, intrinsecamente inferiores aos brancos”. Em Luanda, a cor e a raça se tornaram, desde os primeiros contatos, em fatores de estratificação social.

Em meados do século XIX, a sociedade luandense estava dividida naquilo a que um almanaque contemporâneo chamava ‘castas raciais’. Havia a casta superior dos brancos, depois os ‘pardos’ ou ‘mestiços’ (mulatos) e, finalmente, a casta mais baixa, os ‘pretos’ (negros africanos). Embora existisse pouca segregação racial, havia uma série de distinções sociais e económicas – associadas à cor – na sociedade. Dentro de cada casta existiam as subcastas: os oficiais e os funcionários portugueses, por exemplo, detestavam os degredados e os pequenos comerciantes e por vezes recusavam associar-se a eles. Ainda assim, um cidadão oprimido de Lisboa ou do Porto poderia, em Angola, impor-se às ‘castas’ inferiores de negros e mestiços. Deste modo, a cor tornou-se desde muito cedo um símbolo de posição social e continuou a funcionar como tal nos séculos XIX e XX. Igualmente importante em Angola, no entanto, era a riqueza e a sua ostentação (WHEELER, 2013, p. 79-80, grifo do autor).

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Em Angola, as ricas-donas, percebemos a existência dessas castas e subcastas, sendo que o foco é a elite crioula ou luso-africana em suas relações sociais, comerciais e políticas com as autoridades portuguesas e com as luso-brasileiros. As relações amorosas, por sua vez, não se eximiam de estarem atreladas também ao aumento do poderio econômico e sócio- político. A base de sustentação de todas essas relações e pano de fundo do romance histórico de Valadão (2014) são os pretos escravizados. Para esta massa de incivilizados, como assim os denominava os europeus, havia inúmeras justificativas para a escravidão, baseadas nas teorias europeias já existentes. Entre essas justificativas, o lesser evil é o mais comentado na narrativa de Valadão (2014, p. 228).

O lesser evil era uma das mais poderosas justificações ideológicas para a escravatura, defendida em esmagadora maioria por aqueles que viam nas consequências de um abolicionismo precipitado e intempestivo a pior das catástrofes económicas para a colónia, em confronto com os que o defendiam como valor humanitário.

A escravidão como o menor dos males diante da crise econômica que sua falta acarretaria e que não se equipararia ao valor humanitário de sua abolição era considerada a pedra angular da manutenção do comércio de escravos, como vimos, e a base da resistência a sua extinção para um sistema fincado na economia do tráfico transatlântico de escravos. Ademais, para acalmar a consciência daqueles que supostamente teriam uma, não faltavam argumentos para a existência da escravidão, ainda que estes argumentos não passassem de narrativas, crenças e comprovações infundadas. Valadão (2014) traz em sua narrativa alguns desses mitos e teorias descabidos. Havia o argumento mais fútil, o da naturalização da escravidão; ou seja, ela sempre existira e, por isso, continuaria a existir. Dizia Dona Anna Joaquina a seus pares em uma de suas conhecidas reuniões: “As nossas famílias estão, desde há muito, envolvidas e dependentes deste comércio [...], uma atividade privada lucrativa e pouco importa a quem o pratica que seja cruel e desumano! Sempre foi assim e [...] acredito que não há como o mudar” (VALADÃO, 2014, p. 176). A naturalização da escravidão africana certamente devia se basear na concepção religiosa da maldição de Cam, há muito difundida. Em outra reunião, no palacete do Bungo, Arsénio de Carpo expõe a todos os presentes o artigo de um jornal metropolitano, O Nacional, que assim diz:

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Se os negros não tiverem compradores para os seus escravos, eles matarão os seus inimigos em vez de salvarem as suas vidas, à luz do que a abolição da escravatura não é uma boa coisa para a África; a abolição deve dizer-se, não conduzirá a uma menor doença nesta parte do mundo, a crueldade e sede de sangue que são da natureza dos Negros, será encorajada, e até mesmo o canibalismo, porque muitas aldeias Negras partilham o abominável costume de esquartejarem e venderem em mercados a carne dos seus prisioneiros; ‘À quelque chose malheur est bon’, o comércio de escravos que desafia a cobiça destes bárbaros, reduz a frequência destes homens, e levarão certamente à sua extinção (VALADÃO, 2014, p. 228-9).

Esta mesma concepção se reproduzirá logo depois na fala do próprio Arsênio de Carpo que ainda acrescenta a seu discurso a benesse que receberiam os escravos logo após a Middle Passage. Para ele, a chegada nas Américas, além de representar o afastamento dos negros escravizados de um destino atroz sob o domínio de chefes africanos, significaria a oportunidade de “serem instruídos no conhecimento do verdadeiro Deus e de se integrarem na civilização, sem estarem sujeitos a uma servidão como a que sofriam quando eram livres” (idem, p. 229) em territórios africanos. Adiante, o mesmo discurso é reforçado na narrativa de Valadão (2014, p. 250), mas agora pela voz de um chefe africano, o soba Bandua:

— Também é nosso costume a prática de escravizar os que cometem crimes de assassínio, roubo, adultério e desobediência a feiticeiros. Não havendo que os compre, somos obrigados a mandar matá-los, para exemplo dos demais, e se o Muene Puto proibir a venda deles, outro meio não me resta senão puni-los com a morte

Isso também era defendido por Dona Anna Joaquina:

— Quem conhece de perto os povos negros de África, a feroz crueza das suas leis e dos seus usos, a enorme quantidade de crimes e de contingências fortuitas que envolvem a perda de liberdade, ou a tirania feroz com que são tratados os escravos pelos soberanos africanos, não pode deixar de reconhecer o tráfico, ou como mais propriamente se dizia noutros tempos, o ‘resgate dos negros’, constitui um bem para a humanidade. — E rematava: Na minha opinião, a escravidão em terra de cristãos, por muito dura que seja, é sempre preferível à escravidão em terra de bárbaros! E a verdade é que havendo no Brasil grande número de negros forros, não existem muitos que queiram regressar à sua terra, apesar dos frequentes navios que dali partem disponíveis para os trazer de regresso à África das suas origens! (VALADÃO, 2014, p. 75).

Algumas questões podem se depreender desses excertos. Primeiro, a condição de bárbaros associada aos africanos e a de civilidade aos europeus e, em contrapartida, a 171

necessidade de civilizar os africanos por meio da conversão ao cristianismo e da abnegação ao trabalho de construir o progresso nas Américas. Considerando-se a barbárie inerente aos africanos, a escravidão dos europeus seria, portanto, benéfica e livraria os africanos escravizados de um terrível fim. A escravidão do colonizador, por sua vez, seria melhor do que a condição de livres em territórios africanos, pois haveria sempre a ameaça de uma escravidão nas mãos dos seus. Desta feita, seria compreensível que, embora alforriados, estes ex-escravos não retornassem a suas origens, em regresso à África. O problema ao se ler a diferença é tentar olhar o outro e aquilo que o circunscreve a partir do conhecido. É daí que vem a oposição entre barbárie e civilização, em que a noção de estranho ou estrangeiro é fundamental para designar o outro como diferente e inferior. De acordo com Said (2004, p. 25):

[...] o conceito de barbárie é essencialmente moderno. Esse foi constituído na viragem do século XVIII para o século XX, no Ocidente, quando se passou a pesquisar as sociedades arcaicas em oposição à moderna. Com efeito, a barbárie, assim como a primitividade, seria tudo aquilo que não atingiu os limiares de racionalidade e o controle correlato da afetividade que estariam presentes na modernidade. Além disso, a oposição conceitual entre barbárie e civilização era o que legitimava o projeto colonialista, segundo o qual as nações europeias procuravam dominar as nações e continentes periféricos.

Por extensão, a barbárie serviu para classificar o não ocidental como o outro. O ocidente, no entanto, não compreende aqui o aspecto geográfico, mas conceitual. O ocidente é o espaço do homem civilizado e, como dotado de civilização, se lança sobre o outro não civilizado no intuito de impor uma missão civilizatória que excluísse a barbárie, tida como negativa para o progresso da humanidade. Nessa perspectiva, grande parte do continente africano era vista sob a condição de barbárie. A chegada dos europeus, dando início à colonização, significaria o anúncio da civilização, imprimindo sobre o outro não europeu um olhar estereotipado, tendo em vista a diferença entre uma e outra cultura, principalmente se consideramos a concepção eurocêntrica de mundo que adicionou ao critério de não civilizado o peso da raça. Essa dicotomia é perceptível na narrativa de Valadão (2014). Ao falar do preconceito da sociedade crioula em relação ao negro gentio, Eufrozina, a narradora, relata que este é apontado: como portador de um estado de aviltamento que o impedia de possuir ‘pundo-nor, brio e honra’. E era opinião de todos que tal estado contribuía para a corrupção da moral e dos bons costumes e transmitia péssimos exemplos para as ‘virtuosas senhoras e meninas’ da sociedade, obrigadas a 172

conviver com as escravas e escravos sexualmente dissolutos! (VALADÃO, 2014, p. 186-7).

Ademais, os escravos eram vistos como preguiçosos e constantemente eram punidos com castigos que incluíam o uso da palmatória. A representação destes ou era comparada a animais pelo tratamento a eles dados ou a crianças pela necessidade de serem instruídos e castigados. Tudo isso é reforçado pela fala de Arsénio de Carpo ao argumentar a prática da escravidão: — Quando estive em Nova Iorque, tive o privilégio de assistir a uma conferência de um famoso cientista de Filadélfia chamado Samuel Morton, que estava a percorrer o país com uma apresentação digna de um espetáculo de magia, e onde utilizava uma impressionante colecção de mais de mil crânios representando todos os grupos raciais humanos para fazer medições da capacidade craniana. Os resultados apontavam para que a dos homens brancos era superior, demonstrando que estes seriam os mais inteligentes, vinham a seguir os asiáticos, depois os índios americanos e no fim da tabela é que vinham os africanos (VALADÃO, 2014, p. 230).

A fala do personagem representa em si a participação da ciência na perpetuação do cativeiro africano. Em conformidade com aquilo que a narrativa de Valadão (2014) traz sobre os estereótipos dados ao africano para justificar a escravidão, temos as palavras de Bethencourt (2018, p. 249):

Com a expansão europeia, as características fenotípicas tornaram-se um aspecto essencial para a definição dos diferentes tipos de humanidade. Além das características fenotípicas vinha a descrição estereotipada de atitudes e comportamentos, que viria a ser absorvida pelas teorias das raças. Os outros povos do mundo eram hierarquizados de acordo com os critérios europeus para a definição do que era um comportamento controlado ou civilizado. Esse critério era expresso segundo a cor da pele, com base na oposição entre preto e branco, algo reforçado com a experiência colonial.

A ideia de povos primitivos carentes de civilização deu amplos poderes aos colonizadores para expandir seus territórios e a religião serviu de sustentáculo a este projeto. Já as teorias das raças, por sua vez, acalentaram a consciência dos europeus para abraçar a escravidão como algo inerente a uma raça tida como inferior e naturalmente propensa à servidão e à domesticação, como era o caso dos negros africanos. Dessa forma, não se tratava de um genocídio humano, tendo em vista que a teoria das raças desprovia o negro de sentimentos e racionalidade; ou seja, da condição de humano, dotado de subjetividade. Todavia, nos territórios coloniais de Portugal, a política de escravidão era outra. As relações em torno do comércio de escravos concentravam uma gama de pessoas das mais 173

diferentes raças e misturas; todas empenhadas em atender seus interesses. Na primeira metade do século XIX, como veremos adiante, as pessoas que pertenciam à elite luso-africana, altamente assimilada com a cultura europeia, eram reconhecidas como brancos e, no comércio de escravos, compartilhavam dos mesmos interesses que os portugueses e com eles corroboravam:

Havia a Coroa Portuguesa interessada na conquista de territórios e na arrecadação de impostos, estrangeiros que faziam o contrabando, grandes traficantes que disputavam a primazia nos embarques, pequenos traficantes que lutavam com mais dificuldades para manter-se no negócio, brancos residentes em Angola que viviam de intermediar o comércio de escravos, soberanos africanos em luta constante (contra seus vizinhos e contra os invasores europeus) pelo controle de terras e cativos, comerciantes ligados ao abastecimento dos navios e das concentrações de escravos para venda em feiras, barracões ou presídios do interior e do litoral, além de uma miríade de homens de etnias e inserções sociais variadas, de uma maneira ou de outra ligados ao tráfico negreiro. Por fim, o mais importante: havia os homens, mulheres e crianças escravizados (RODRIGUES, 2005, p. 75).

No meio dessa cadeia imensa de pessoas envolvidas em tal comércio, homens, mulheres e crianças escravizadas eram tirados de sua condição de humanos e passavam, inescrupulosamente, a serem vistos como um produto altamente rentável. Desta feita, não havia também uma escravidão mais benéfica que outra, mas desculpas espúrias para que os privilégios e a acumulação de capital decorrente de tal comércio pudessem permanecer. Ademais, ainda que falemos em uma escravidão interna pré-colonial, esta possuía uma configuração totalmente diferente da escravidão moderna:

O suprimento de escravos para o tráfico atlântico, depois do século XVI, reestruturou a organização das sociedades africanas, modificando o estilo da escravidão doméstica, transformando-a em escravidão de larga escala. A partir de então se difundiu a prática de ataques a vilarejos e raptos de pessoas, com o incremento de sistemas internos de comercialização para um mercado externo emergente (SOUZA, 2003, p. 17).

Por outro lado, sempre houve uma resistência angolana ao domínio português, embora essa resistência não tenha sido articulada. É claro que, em algumas regiões, esse domínio foi aceito, ou melhor foi negociado, pois dependia, segundo Rodrigues (2003, p. 67), “das vantagens que as exportações de cativos traziam às chefias tradicionais”. Nisso, havia também o receio por parte dos portugueses à ameaça de rebeliões por desacordos ou fechamento dos mercados do tráfico. 174

Se no argumento exposto na narrativa de Valadão (2014), ela fala de uma escravidão em terras de cristãos ser preferível a uma em terras de bárbaros, isso só se sustenta como desculpa para a manutenção do comércio de seres humanos por parte daqueles que lucravam com ele. Entre uma e outra, havia circunstâncias e modelos totalmente diferenciados como afirma também Rodrigues (2005, p. 84):

Embora os conflitos interétnicos e a própria escravidão fossem anteriores à colonização européia iniciada no século XVI, o significado de ambos foi transformado com o tráfico transatlântico, a ponto de a própria escravidão ter sido reinventada em outros moldes nas diversas partes da África.

Talvez fosse correto afirmar tal preferência se considerarmos que, com a escravidão moderna, viver em terras africanas colonizadas, estando fora do circuito que movia a comercialização de escravos, era estar sujeito ao medo constante da captura ou, como Dona Anna Joaquina diz, do ‘resgate dos negros’. Com a escravidão moderna, era comum práticas abusivas de captura e inúmeras estratégias para viabilizar essas capturas com o apoio armamentista de Portugal. Outrossim, não há como falarmos simplesmente que um retorno à África não fosse desejado, mas certamente ele seria impossível, seja pelas condições financeiras inexistentes de um ex-escravo; seja por este retorno, ainda que real, ser impraticável, pois a África à qual ele retornaria não seria a mesma de seus antepassados e tampouco o africano que voltasse seria o mesmo. O cativeiro certamente teria operado mudanças significativas nele e o trauma da escravidão seria para sempre uma marca em sua memória e em suas relações. Além do mais, para quem voltar e para onde, se a prática da escravidão moderna devastou e/ou desestruturou famílias e tribos africanas inteiras? Porém, sob o ponto de vista africano, devemos considerar a concepção do mar como kalunga, a travessia para a morte. Esse significado é próprio dos escravos falantes do kikongo, principalmente os bakongo, como também dos falantes do kimbundu e umbundu; ou ainda dos povos que compartilham essas culturas africanas.

kalunga [...] significava a linha divisória, ou a ‘superfície’, que separava o mundo dos vivos daquele dos mortos; portanto, atravessar kalunga (simbolicamente representada pelas águas do rio ou do mar, ou mais genericamente por qualquer tipo de água ou por uma superfície refletiva como a de um espelho) significava ‘morrer’, se a pessoa vinha da vida, ou ‘renascer’, se o movimento era no outro sentido. Os estudos mais densos sobre o conceito de kalunga se referem aos bakongo, os falantes de kikongo [...]. Para os bakongo, como para boa parte dos povos da região Congo- 175

Angola, a cor branca simbolizava a morte; os homens eram pretos, os espíritos brancos. Como resultado desta crença, do tráfico de escravos e da associação do oceano com a barreira de kalunga, foi fácil para os bakongo identificar a terra dos brancos, mputu, com a dos mortos (mputu, ‘Portugal’ ou ‘português’, deriva de mputulukeza, que era como os bakongo pronunciavam ‘português’). De acordo com o antropólogo Wyatt MacGaffey, muitos dos bakongo de hoje ainda acreditam que ‘os mortos vão para a América [concebida como um composto de América e Europa] e sempre foram. O fato histórico do tráfico de escravos é lembrado como uma forma de feitiçaria, pela qual grande número de africanos foi [...] transportado para a outra costa’. Ainda de acordo com este autor, muitos bakongo consideram que ‘barcos de vários tipos são veículos para o transporte das almas’, como também o são outros veículos do homem branco, como trens e caminhões. Por outro lado, considerava-se, também, que o lugar próprio para espíritos era junto com os vivos, ou melhor, com seus vivos, seus descendentes. Mais dia menos dia, os espíritos voltariam para ficar perto de seu povo e aldeia de origem (SLENES, 1992, p. 53-4, grifos do autor).

Em suma, a travessia sobre águas do mar significava uma passagem para a morte, uma ‘porta do não retorno’; uma morte, mas não física do ser africano que renasceria para os seus após essa morte física, retornando para as suas origens enquanto espírito. Talvez isso explique a quantidade de suicídios entre os escravos, principalmente na travessia no navio negreiro por sobre o Atlântico. Mais que uma forma de resistência, esses suicídios significavam também uma libertação do espírito para o retorno à África. Para alguns, essa volta seria possível ainda em vida, sem que a morte física ocorresse. Para tanto, era necessário que se guardasse a pureza de espírito. De acordo com Slenes (1992, p. 54), uma crença antiga dos bakongo afirmava que “os espíritos não comem sal, e a abstenção do sal conferia poderes especiais iguais aos dos espíritos, fazendo com que as pessoas viessem como um bruxo, interpretassem todas as coisas e tivessem força suficiente para voar de volta para a África”. Na história do comércio transatlântico de escravos, é comum os escravizados adquirirem papel secundário, sendo narrados como sujeitos passivos ou mesmo como objetos, destituídos de qualquer indício de subjetividade. Eles são as vítimas ou as peças de um jogo sem protagonismo algum. Em Angola, as ricas-donas, não chega a ser diferente, apesar da narradora ser Eufrozina, uma escrava, cuja presença é quase imperceptível pelos outros personagens por sua condição de escrava. Ela se equipara a outros tantos “excluídos” que Dona Anna Joaquina usava sexualmente e depois colocava “misturados no rebanho”, que seria “exportado para outras latitudes” (VALADÃO, 2014, p. 215). A ama de Eufrozina também tinha um “prazer erótico” de, pessoalmente, castigar a “chibatadas” seus escravos.

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De uma forma geral, os proprietários tratavam os seus escravos, mesmo aqueles que se destinavam ao prazer sexual, por vezes com uma brutalidade apenas reservada aos animais. Um exemplo disso era Dona Catarina, a mulher do físico-mor, uma espanhola pardacenta, que sujeitava os seus jovens escravos ao castigo da palmatória [...]. Toda a gente conhecia dela o conceito que tinha dos escravos, da forma como deveriam ser tratados, e deles extraída radicalmente qualquer semelhança com um ser humano, além da forma. Eram equiparados a macacos. De resto, esta era uma ideia partilhada pela maioria dos europeus e muitos crioulos, que explicava a razão por que os escravos eram raramente tratados com humanidade. Havia exceções, claro! (VALADÃO, 2014, p. 215).

A escravidão era valorizada e mantida por razões políticas, econômicas e pessoais também. A existência do outro escravizado implicava a posição hierárquica de quem mandava e de quem desejava permanecer nesse lugar privilegiado de mando e de enriquecimento. Em 1834, a vitória dos liberais contra os miguelistas trazia ânimo a Luanda. Dona Anna Joaquina brindava o fim do regime absolutista e vislumbrava para Angola um futuro de paz e prosperidade. “Estou certa de que este novo governo liberal não irá olhar para Angola apenas como uma ‘fábrica de escravos’. Teremos de mostrar que este é um país capaz de fomentar prosperidade por outros meios e por outros canais” (VALADÃO, 2014, p. 175). Mal sabia ela, como vimos, que a partir dali, principalmente com o decreto-lei de 1836, do marquês de Sá da Bandeira, teria início uma guerra entre comerciantes e negociantes de escravos, lidando agora com um comércio ilegal, e as autoridades portuguesas sob a pressão abolicionista da Inglaterra. De acordo com Marques (2000, p. 32-3), o abolicionismo, além de ser resultante de “um novo horizonte cultural”, mantinha inegavelmente “uma relação ideológica com o capitalismo nascente” e, como não poderia deixar de ser, com uma vertente religiosa, “o protestantismo anglo-americano da segunda metade de Setecentos”. Adeptos dessa vertente, “os Quakers, os pioneiros e principalmente promotores da luta anti-escravista”, proclamavam que “a libertação do escravo negro – o mais destituído dos homens – era perspectivada como a maior das boas ações e como algo que, por retribuição, traria consigo a correspondente prosperidade material”. Havia, portanto, uma relação muito estreita entre economia liberal e o lema liberdade e prosperidade. Todavia, seria errôneo imaginar, como enfatiza Marques (2000, p. 34), que a lógica das economias coloniais seria a mesma das mais avançadas economias capitalistas do mundo àquela época e isso ficou comprovado na política toleracionista adotada pelo governo português e suas colônias no que concerne à abolição do tráfico de escravos. 177

Para Torres (2000, p. 58) seria imprudente “falar de ‘capitalismo’ nos territórios africanos”, pois tal sistema implicava a existência de três critérios que em tais espaços seria impossível encontrar: um mercado de trabalho (livre), a criação de moeda submetida a um mecanismo automático e a livre circulação de bens entre países. Nesses territórios, a força do trabalho escravo era a moeda de venda e de troca e a circulação dessa mercadoria, com a interdição abolicionista, estava circunscrita à ilegalidade e, portanto, a mercados restritos e vigiados. Ademais, a política colonial de exploração de Portugal em relação a suas colônias e os avultosos lucros do tráfico de escravos, de um e de outro lado, não permitiam que o comércio de escravos deixasse de existir da noite para o dia. Dessa forma, ainda que no ocidente a história da colonização e a do capitalismo tenham sido contemporâneas, isso não se aplicou à colonização portuguesa em África. Segundo Torres (2000, p. 58), a colônia angolense podia estar “parcialmente inserida no sistema econômico mundial através de fluxos de mercadorias e de serviços”, mas não poderíamos falar em “capitalismo em Angola”. Na verdade, seria mais correto falar em mercantilismo. Por sua vez, mercantilismo e liberalismo eram, conforme Torres (2000, p. 63), diametralmente opostos. O mercantilismo se baseava no belicismo e na convicção de que “uma nação só pode enriquecer-se e fortalecer-se à custa das outras”. Tal convicção valia para as relações internas no caso dos territórios coloniais. Já o liberalismo concebia, pelo menos em tese, “um mundo pacífico”, onde os povos coabitassem também pacificamente. Os liberais acreditavam que “a concórdia internacional e a colaboração económica” seriam imprescindíveis para todos os povos”. Haveria, portanto, por parte de Dona Anna Joaquina, em Angola, as ricas-donas, uma contradição querendo a manutenção do comércio de escravos em uma sociedade liberal e uma certa incompreensão em relação ao que seria o liberalismo, pois, como afirma Torres (2000, p. 63), embora não exista uma polarização entre mercantilismo e liberalismo no que concerne aos fins que propõem, há certamente no que diz respeito à presença do Estado. No primeiro, o poder estatal é amplo; no segundo, nulo, pois se concentra na concepção do indivíduo portador de potencialidades. É claro que estamos aqui nas primeiras concepções do liberalismo e do capitalismo, nada sabíamos do futuro e da nova forma de escravidão que deles viriam e da presença do Estado como subserviente ao capital liberal. O século XIX deveria ter dado um ponto final nos sistemas coloniais e escravocratas, mas, infelizmente, eles apenas assumiram outras formas bem mais eficazes e potentes pela capa de legalidade que obtiveram. Antes mesmo de findar o século XIX, a Europa fatiou o continente africano instituindo, com Portugal, o 178

Imperialismo colonial. A escravidão, por sua vez, pelo menos em Portugal, se manteve sob a chancela do Estado Novo durante mais da metade do século XX, sob o modelo do trabalho forçado. Com o Imperialismo colonial o Estado-nação exportou seu poder através dos seus instrumentos de violência, a polícia e o exército que passaram a ser “representantes nacionais em países fracos ou não civilizados” (ARENDT, 2012, p. 204). Em função de um poder do Estado, sem a interferência de um corpo político, os administradores coloniais puderam fazer suas próprias leis e ordenamento jurídico garantindo o sucesso imperialista.

O segredo do sucesso estava precisamente no fato de terem sido eliminadas as leis econômicas para não barrarem o caminho à cobiça das classes proprietárias. O dinheiro podia, finalmente, gerar dinheiro porque a força, em completo desrespeito às leis – econômicas e éticas -, podia apoderar-se de riquezas. O dinheiro exportado só pôde realizar os desígnios de seus proprietários quando conseguiu estimular e concomitantemente exportar a força. Somente o acúmulo ilimitado de poder podia levar ao acúmulo ilimitado de capital. (ARENDT, 2012, p. 204).

O poder político traz consigo a geração de capital e, dessa forma, o imperialismo expansionista desejado pela burguesia e nutrido pelos nacionalistas obtém êxito. Nesse momento, com a expansão do poder nacionalista para os projetos imperialistas da burguesia capitalista, confirma-se, segundo Arendt (2012, p. 204), “uma das mais importantes funções permanentes do Estado-nação”, que seria a exportação do poder. É em face do Imperialismo que a burguesia se emancipa, ocorrendo uma inversão de valores. Na era do Imperialismo, comerciantes se transformam em políticos e estadistas, ao passo que os estadistas se assemelham a comerciantes, compartilhando pensamentos e atitudes capitalistas burguesas. Os interesses privados tornam-se interesses públicos. A descolonização dos países africanos do ranço imperialista colonial ganhou expressão na década de 50, do século XX, mas, na década seguinte, ela adquire força com as mudanças conceituais operadas nesta época e que revolucionaram o ocidente. Todavia, Portugal, com a instalação do Estado Novo só atentara para a descolonização das denominadas províncias ultramarinas após a Revolução dos Cravos, em abril de 1974, já tardiamente em relação aos outros impérios. Da mesma forma se dará com o tráfico de escravos que, como relata Ferreira (2011), com o apoio de nacionais angolanos e de brasileiros, permanecerá na ilegalidade por um bom tempo. A escravidão interna demorará muito mais e alcançará a independência dessas províncias. 179

4.3 A elite crioula (ou luso-africana): a outra face da dominação colonial Em Angola, as ricas-donas (2014), de Isabel Valadão, a denominação crioula às elites coloniais remete o termo crioulo à mistura de raças e de línguas, mas também ao poder político e econômico de uma classe miscigenada que dominava Angola no século XIX. Em síntese, o termo, para a autora, designaria uma elite colonial descendente de portugueses e cuja superioridade estaria relacionada principalmente a essa descendência, aos aspectos civilizados da Europa e ao comércio de escravos em Luanda. Percebemos, destarte, que a questão da raça é determinante para a acepção da palavra em contexto colonial. O pensamento europeu, conforme Mbembe (2014), sempre entendeu a alteridade como reflexo de si mesmo. Nesse processo “de autoficção, de autocontemplação e, sobretudo, de enclausuramento, o Negro e a raça têm significado para os imaginários das sociedades europeias a mesma coisa” (MBEMBE, 2014, p. 10). O eurocentrismo não apenas estabeleceu o centro do poder, mas também o centro do saber. Em ambos os casos, a centralidade era branca e direcionou toda a sua repulsa e ódio para o oposto que produziu, a raça e, consequentemente, o negro. De acordo com Mbembe (2014, p. 17),

A raça não passa de uma ficção útil, de uma construção fantasista ou de uma projecção ideológica cuja função é desviar a atenção de conflitos antigamente entendidos como mais verossímeis – a luta de classes ou a luta de sexos, por exemplo. Em muitos casos, é uma figura autônoma do real, cuja força e densidade podem explicar-se pelo seu carácter extremamente móvel, inconsciente e caprichoso. Aliás, ainda há bem pouco tempo, a ordem do mundo fundava-se num dualismo inaugural que encontrava parte das suas justificações no velho mito da superioridade racial. Na sua ávida necessidade de mitos destinados a fundamentar o seu poder, o hemisfério ocidental considerava-se o centro do globo, o país natal da razão, da vida universal e da verdade da Humanidade.

A criação da raça como justificativa para constituir um ser superior e universal deu à Europa, como encarnação do ocidente, o poder para definir o outro, para constituir o restante do mundo como inferior. Nesse ímpeto onipotente, a Europa moderna apresentou a “África, de um modo geral, e o Negro, em particular, [...] como símbolos acabados dessa vida vegetal e limitada” (idem, p. 18). O negro africano passou então a ser afirmado como a negação do europeu e, sendo assim, como não humano dentro de uma lógica racional de humanidade desse outro europeu. Como criação do europeu, superior, senhor e civilizado; o negro nasce sob o signo da submissão. “Todo o negro recebe a forma de seu mestre. O mestre dá a forma ao seu negro, e 180

este ganha essa forma através da destruição e da explosão da sua forma anterior. Fora desta dialéctica da posse, da pertença e plástica, não existe ‘negro enquanto tal’”, afirma Mbembe (2014, p. 258, grifo do autor). A modernidade que surge no final do século XV, com a Europa como centro do mundo, traz consigo o colonialismo que se estenderá mais tarde pela África. Nesse momento, a classificação racial, juntamente com a ideia de civilização e seu correlato, a modernidade, estabelece o comércio transatlântico de escravos. De acordo com Laranjeira (2015, p. 19),

A construção da modernidade, cujo início, no âmago da Era Moderna, pode ser recuado ao Renascentismo, e que corresponde à expansão ultramarina do capitalismo e sua expressão industrial, tecnológica e comunicacional, assentou em inúmeras barbáries, desde o tráfico negreiro e o trabalho escravo à ocupação colonial, aos genocídios e massacres, guerras de extermínio, exploração da mão-de-obra miserável e coisificação humana, em todos os tempos e latitudes.

Antes da expansão europeia, iniciada no final do século XV, as questões raciais não eram tão determinantes. Jack B. Forbes (apud BETHENCOURT, 2018, 248) entende que, no mundo pré-moderno, tanto o conceito de raça como o de mistura de raça eram inexistentes ou existiam apenas no que concernia às questões nacionais ou religiosas. Bethencourt (2018, p. 248), rebatendo o entendimento de Forbes, relata o uso do termo ‘raça’ na Idade Média, inicialmente, significando linhagem, passando depois a fornecer subdivisões da humanidade. Nesta época, a raça não se detinha apenas em características fenotípicas, mas também na comunhão de ideias, de crenças, de costumes e de uma raiz genealógica.

Com a expansão europeia, as características fenotípicas tornaram-se um aspecto essencial para a definição dos diferentes tipos de humanidade. Além das características fenotípicas vinha a descrição estereotipada de atitudes e comportamentos, que viria a ser absorvida pelas teorias das raças. Os outros povos do mundo eram hierarquizados de acordo com os critérios europeus para a definição do que era um comportamento controlado ou civilizado. Esses critérios eram expressos segundo a cor da pele, com base na oposição preto e branco, algo reforçado com a experiência colonial (BETHENCOURT, 2018, p. 249).

A experiência colonial, unindo à revelia dois mundos, os europeus e os não europeus, traria inevitavelmente o contato entre raças. Considerando aqui a hierarquia europeia, podemos dizer raças inferiores. Esse contato geraria não somente um choque linguístico, mas também racial e cultura. No tocante a isso, a missão civilizadora daria o propósito para a 181

invasão europeia em África, já que a condição de civilidade era um critério da modernidade que a Europa estabelecerá para o restante do mundo. A ocorrência dessa mistura linguística, racial e cultural traria à tona o termo crioulo. O termo crioulo é plurissignificativo e proporciona uma chave para compreendermos mundos e línguas diferentes. A palavra vem do latim creare, significando, entre outras coisas, ‘reproduzir’. Conforme Bethencourt (2018), nos impérios português e espanhol, do século XVI, a palavra aparece como pertencente “à série de metáforas animais integradas na taxonomia racial” (idem, p. 239). Mais tarde, no século XVIII, “o termo ‘crioulo’ é usado para se referir a um escravo nascido na casa do dono” (idem, p. 240). Na América Espanhola, a palavra ascende na hierarquia social e passa “a designar brancos nascidos na sociedade colonial” (BETHENCOURT, 2018, p. 240). Na língua inglesa, no século XVII, o termo crioulo é aplicado para designar a “reinvenção das línguas europeias num contexto colonial”; o que, na prática, significava línguas “deturpadas” (idem). No Brasil, em tempos mais atuais, o termo crioulo adquiriu conotações racistas, pois designava “as massas populares com pele escura”, numa clara alusão a uma inferioridade da população negra. Como o mulato da classe média e alta, no Brasil, era considerado branco e ele, vivendo numa sociedade racista, assim se via, o termo crioulo soava como um insulto. A “dupla classificação racial e social quanto à cor da pele e ao status remonta ao período colonial” (BETHENCOURT, 2018, p. 241). Glissant (2005, p. 31), na Introdução a uma poética da diversidade, retoma o termo crioulo como designação de língua para denominar um fenômeno que, para ele, estaria acontecendo mundialmente, a “crioulização”. Este se realizaria a partir de elementos heterogêneos, mas equivalentes em valor, e que postos em relação produziriam resultados imprevisíveis nas culturas, diferenciando-se da miscigenação que, segundo ele, é previsível. O estudioso martinicano ao usar o termo “crioulização” diz que não se refere à língua crioula diretamente, “mas sim ao fenômeno que estruturou as línguas crioulas” (idem), o que para Glissant (2005) seriam coisas diferentes. No entender de Bittencourt (1999, p. 33),

[...] o termo crioulo faz referência a uma mestiçagem de tipo cultural, ou seja, o crioulo [...] tanto pode ser um indivíduo negro, como branco ou mulato. É a presença simultânea de elementos das culturas africana e europeia lado a lado no seu comportamento que o irá caracterizar como crioulo. Ou seja, é a sua capacidade de atuar nesses dois mundos e realizar uma interligação entre eles.

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Para Bittencourt (1999), o termo crioulo se diferencia da acepção de assimilado. Enquanto o segundo “corresponde a um estatuto jurídico com pretensões de legislar sobre fenômenos culturais” (idem, p. 33) e cujo propósito é a integração irrestrita dos indivíduos da colônia à cultura portuguesa, assim como o abandono completo dos “vestígios de outras vertentes culturais” (idem); o primeiro estaria ligado a uma perspectiva cultural de junção ou interpenetração de culturas diferenciadas. De acordo com Laranjeira (2015, p. 32-3),

O critério de designar algo como ‘crioulo’, no espaço da colonização portuguesa de África e do Oriente, é relativo às línguas ditas ‘crioulas’. No tocante a África, pode-se falar, então, de elites crioulas quando elas emanam de sociedades em que existe uma língua crioula (Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Malaca, etc.) e, portanto, a elite política, económica e cultural se expressa nessas línguas e detém o poder político e a ascendência social em relação à restante população, mesmo quando a ‘língua oficial’ do novo Estado-nação seja a língua portuguesa, tal como acontece na Guiné- Bissau, onde a faixa da população que acede às línguas crioula e portuguesa detém os vários poderes, desde o económico, ao político e ao cultural.

O termo crioulo, possivelmente advindo do sentido de reproduzir um outro, ou mesmo criar no sentido do imaginário europeu em relação ao negro escravizado, remete a mistura de raças ao estereótipo e ao racismo. O termo e a discriminação estão também na recriação de línguas a partir do contato entre povos diferentes numa relação de hierarquização. Em ambos os casos, o crioulo é encarado como degenerativo e depreciativo na perspectiva do pensamento eurocêntrico. No contexto colonial, as línguas crioulas, tal qual afirma Laranjeira (2015), estão relacionadas ao poder de uma elite específica que nasce do contato dos colonizadores europeus com os povos destes territórios colonizados. Elas são, ao mesmo tempo, uma forma de intermediação política e de intervenção nos idiomas europeus que representavam as metrópoles. No entender de Laranjeira (2015) não existe elite crioula que não emane de uma língua crioula, confirmando assim sua existência como tal. No caso de Angola, em nosso século XXI, há, segundo o estudioso, uma elite negra “europeizada ou ‘ocidentalizada’, mas não crioula” (idem, p. 33), talvez por entender que a assimilação com a cultura portuguesa foi mais profunda, restando nos dias de hoje, no que concerne à elite política de Angola, pouca relação com outros vestígios culturais, principalmente no que diz respeito à língua oficial. Isso se confirma, diante da Política de Assimilação do Estado Novo que instituiu, na segunda metade do século XX, o Estatuto dos indígenas portugueses das províncias ultramarinas. Com a instituição do Indigenato, os 183

indivíduos da colônia que ‘evoluíssem’ nos padrões sócio-cultural-econômicos poderiam receber um alvará de cidadania que os equiparava aos indivíduos brancos. Na Angola do século XIX, contexto do romance de Isabel Valadão, teremos ainda, pelo o que parece, uma elite crioula, visto que ela emana de uma língua crioula de matriz africana e, portanto, pode assim ser considerada. Essa elite crioula provém da tradição de vassalagem que se estabeleceu com a colonização portuguesa. É reconhecida por estabelecer o contato entre duas culturas diferentes e, igualmente, entre duas línguas também diferentes. Dela provém Dona Anna Joaquina, “sem dúvida, a mais ilustre e a mais poderosa”, “rica-dona de Loanda” (VALADÃO, 2014, p. 119), cujo pai era “um próspero e ambicioso comerciante português” que “soube engrossar seu património casando com uma bela mulata originária da família ambaquense” (idem, p. 52). Os ambaquistas, conhecidos assim pelo local de origem, Ambaka, tinham sido, desde o começo da colonização portuguesa, mediadores do contato entre africanos e portugueses e, em vista disso, enriqueceram com o comércio de escravos.

[Eles] constituíam um numeroso grupo de chefes de família e empresários patriarcais, negociantes e artesãos cuja riqueza e independência se fez após vários séculos de participação no tráfico de escravos, como mediadores entre a Coroa portuguesa e os diversos reinos mbundos adjacentes, Matamba, Holo e Kassanje. Distinguiam-se, principalmente, pela posse de escravos e pelo uso de sapatos, um símbolo de poder nas sociedades mbundas e que permitia aos seus detentores o privilégio de se intitularem ‘brancos’. Os ambaquistas eram considerados uma espécie de ‘aristocracia’ angolana e tinham posições vantajosas junto dos chefes do território mbundo, onde se tornavam conselheiros e intérpretes nos negócios entre estes, os mercadores portugueses e as autoridades oficiais. Eram, igualmente, poderosos agentes mercantis junto dos povos do Leste, na Lunda, sendo o dialecto ambaquista do quimbundo a língua franca do comércio daquela região (VALADÃO, 2014, p. 52).

Até a segunda metade do século XIX, segundo Rosa (2013, p. 88), eram comum as relações de vassalagem entre a coroa portuguesa e os reinos ou sobados africanos já existentes. Com isso, os estados nativos conseguiam fortalecer seu poder político e econômico, uma vez que se sabiam essenciais para os interesses portugueses. Por sua vez, tais relações introduziam aspectos muito fortes da cultura europeia na cultura nativa. Na narrativa de Valadão (2014), tais estratégias políticas são observadas constantemente. Um exemplo foi o dos ambaquistas no começo da colonização portuguesa; outro, o do episódio da comitiva Molua em 1808, citado anteriormente, em que Dona Anna Joaquina se encarrega de 184

estabelecer relações de amizade e de cooperação entre o imperador de Lunda e as autoridades portuguesas da colônia. As primeiras vassalagens prestadas à coroa portuguesa gerariam um abalo significativo na população nativa, pois além de os portugueses se beneficiarem da força bélica e do conhecimento da região dos reinos e sobados africanos para avançar no projeto de colonização e de captura de escravos, eles também procurariam minar a crença religiosa da população nativa com a imposição do catolicismo, assim como muitos soberanos, reconhecendo a importância da Língua Portuguesa para as relações comerciais e diplomáticas com a administração colonial, destinavam seus filhos ou outros súditos a uma educação europeia. É claro que, simultâneo a tudo isso, havia as resistências. Essas questões também são colocadas em vários momentos no romance de Isabel Valadão. A longo prazo, o contato racial e cultural entre portugueses e africanos decorrente da colonização desembocaria em relacionamentos interétnicos que, de início, não resultariam em sociedades coloniais como enfatiza Bettencourt (2018). A presença de portugueses nos territórios coloniais se resumia a alguns homens brancos “que se uniam em casamentos miscigenados e tinham filhos com nativos, mas esses descendentes eram reabsorvidos pela sociedade nativa local [...]”, tornando-se “nativos com mais de uma identidade”, mas “as suas comunidades não pode[ria]m ser consideradas coloniais” (BETHENCOURT, 2018, p. 274). Em se tratando de Angola, somente quando uma pequena parcela de portugueses se concentrou em locais litorâneos propensos para a atuação do comércio de escravos transatlântico, estruturando tais locais com todos os mecanismos necessários para esta atuação, foi possível formar grupos miscigenados que se constituiriam como sociedades coloniais. De acordo com Santos (2007), na época moderna, estes locais eram restritos:

[...] a um espaço geográfico relativamente exíguo que coincide com as áreas de efectiva implantação da sociedade colonial nesta zona da África Ocidental e, portanto, se circunscreve às cidades de Luanda ou Benguela e aos presídios, dispostos maioritariamente à volta da malha de rios que atravessa o hirterland de Luanda” (SANTOS, 2007, p. 224).

Em Luanda, ‘ilha’ crioula, de 1968, Mário António Fernandes de Oliveira já falava sobre isso. Ele, segundo Bittencourt (1999), foi o primeiro autor a abordar com profundidade o estudo sobre crioulidade em Angola.

[O grupo crioulo] seria fruto de pequenos núcleos populacionais resultantes da penetração portuguesa na África, restrita a uma faixa litorânea pontuada 185

por portos para o comércio de escravos, além de uma pequena inserção nas margens do rio Cuanza, através da construção de presídios e do estabelecimento de mercados ou feiras. A presença crioula ter-se-ia consolidado nessas regiões a partir do século XVII e Luanda constituiria o local privilegiado pelos seus componentes (OLIVEIRA apud BITTENCOURT, 1999, p. 31):

Em torno da rota do comércio transatlântico de escravos, em que havia toda uma estrutura montada para esse tipo de comércio, possibilitando a compra e venda de escravos, como também o transporte das mercadorias e o controle das relações sociais e comerciais firmadas por força da presença dos presídios, era propício ao aparecimento de uma população que não apenas se concentrasse em torno desse enriquecimento fácil, mas também que estabelecesse seu domínio sobre a colônia e a comercialização de escravos. O sucesso desse empreendimento era favorecido pela miscigenação cultural e racial. A pertença a dois mundos diferentes, o português e o africano, possibilitava a mediação do comércio de escravos entre as duas pontas: o fornecedor e o negociador transatlântico. Para tanto, era preciso conhecer ambas as culturas e se relacionar com as duas. A constituição de um grupo coeso em torno de interesses econômicos idênticos e com capital necessário para movimentá-los terá dado início às elites coloniais em Angola. Embora as elites crioulas tivessem no elemento negro ou mestiço a sua essência, a questão da raça negra como inferior e incivilizada era preponderante na colônia. O pertencimento à elite colonial estabelecia a diferença entre os angolanos. Havia, de um lado, os negros ou mestiços que eram escravizados ou servos e representavam a parcela maior da população angolana; e, de outro, os negros ou mestiços que detinham o capital, assimilavam a cultura europeia e se constituíam como a elite crioula ou luso-africana. Esta parcela bem menor de angolanos era considerada branca e detinha o mesmo status dos brancos. De acordo com Dias (1984, p. 61):

Os habitantes crioulos da colónia portuguesa constituíam desde há muito uma elite que, por virtude dos seus níveis mais elevados de riqueza e de educação, ocupava uma posição privilegiada em relação à maioria da população, sujeita a padrões mais especificamente africanos de organização social e política. Os seus membros, cristãos em nome, eram definidos pelos funcionários portugueses como ‘nativos’ ou ‘filhos do país’, termos que os distinguiam dos ‘pagãos’, mole incivilizada de africanos a que chamavam ‘gentio’.

No romance de Valadão, Dona Anna Joaquina, “nascida no seio da exclusiva elite angolana, cresceu rodeada de escravos e de mordomias e, nesse contexto, também recebeu 186

uma esmerada educação [europeia]” (idem). Dominava o português, o quimbundo e sabia o francês apropriado aos saraus e aos bailes do governador, ponto alto dos eventos culturais de Luanda. Desde cedo se interessara pelos negócios da família e, quando o pai morreu, “herdou toda a sua fortuna e rapidamente se lançou na aventura transatlântica” (VALADÃO, 2014, p. 57). Depressa se inseriu “no círculo restrito de loandenses importantes” (idem), tanto pela posição que ocupou com a morte do pai como pela habilidade em “se relacionar com os povos do interior do sertão” (idem). Nesse tocante, a função estratégica que exercia, assim como o capital econômico que detinha possibilitava que a questão da raça fosse invisibilizada pela questão econômica, mas não desprezada.

Dona Anna movia-se neste mundo cada vez com mais segurança e à vontade. Representava já grandes empresas sediadas no Brasil e um pouco por toda a América Latina. Ela e outros membros de importantes famílias crioulas de Loanda, os denominados ‘crioulos’, ‘filhos da terra’ ou ‘filhos do país’, tinham na mão as rotas comerciais entre o litoral e as sociedades africanas do Hinterland, desempenhando o papel de intermediários. (VALADÃO, 2014, p. 184).

Conforme abordamos anteriormente, este papel de intermediação não se destinava meramente a facilitar a relação entre a população nativa angolana e os portugueses nas esferas do comércio escravagista, mas também ao apaziguamento de conflitos entre reinos africanos, à desarticulação das ações de jagas revoltosos que dificultassem o acesso dos comerciantes no interior ou à recepção de chefes africanos para acordos comerciais. Tudo isso no sentido de, por um lado, eliminar os obstáculos que pudessem dificultar as transações comerciais de escravos desde a captura das ‘mercadorias’ humanas até a chegada no litoral para o transporte por sob o Atlântico; e, por outro, de favorecer tais transações com acordos entre os chefes africanos que iam até Luanda e as autoridades portuguesas da colônia. No romance, Valadão faz questão de enfatizar sempre que os crioulos pertencentes às elites coloniais são considerados brancos, porém esta enfatização será sempre acompanhada de um elemento linguístico que minimize o peso da raça negra ou que maximize o da raça branca. É extremamente visível as conotações racistas da narradora transvestida de autora nos adjetivos que emprega para se referir aos traços físicos que distinguem o homem europeu do africano e os exemplos abundam no romance. Felix Velasco Galiano, por exemplo, é assim descrito: “Fisicamente era um homem bem-parecido, alto, corpo musculoso, feições correctas, pele crestada pelo sol do sertão que não disfarçava, porém, as raízes crioulas de sua origem” (VALADÃO, 2014, p. 19, grifo 187

nosso). Inocêncio Matoso de Andrade Câmara é um “Negociante crioulo mas considerado branco devido à sua importância entre os principais moradores da cidade” (idem, p. 73, grifo nosso). Ou, então, é “membro de uma das mais prestigiadas famílias de Loanda, gozando mesmo do estatuto de ‘branco’, apesar de crioulo” (idem, p. 177, grifo nosso). José da Silva Maia Ferreira é um “ilustre filho do país”, cuja “herança crioula” só é adivinhada “Apenas pelo cabelo negro ligeiramente crespo e pelo tom moreno da pele” (idem, p. 283, grifo nosso). A filha de Dona Anna Joaquina tem é “de tez muito clara e traços quase europeus [...]. Apenas no cabelo anelado se adivinhava a sua ascendência crioula” (idem, p. 95, grifo nosso). A própria Dona Anna Joaquina se mortifica tendo que passar o ferro quente nos cabelos para alisá-los, na intenção de ficar mais próxima do padrão europeu. Eufrozina, ao descrever o italiano Tito Omboni, além de repetir o adjetivo bem-parecido, enfatiza que a tez dele é “clara apesar do recente bronzeado” (idem, p. 192, grifo nosso) adquirido em alto-mar, ressaltando, com isso, que suas características europeias não são ofuscadas pelo sol. É preciso lembrarmos que o colonialismo não teria sido possível sem a criação do mito racial. Com ele, a Europa moderna obteve justificativas para invadir territórios, implantando sua ‘missão civilizadora’ a povos incivilizados; o que traria progresso e desenvolvimento a esses povos. Isso também é outro mito, o da modernidade, como discorremos, e este produz suas vítimas atualmente. A classificação racial permanece como projeto de exclusão e dominação nas colônias e, pelo visto, ela ainda permanece como tal até hoje. No caso em questão, a raça se reflete como fator preponderante no século XIX e na escrita de Isabel Valadão como resultado desse projeto seja em termos de representação ou de representante colonial. A explicação para que a elite crioula se colocasse no topo da pirâmide social luandense, até o século XIX, é elucidativo enquanto projeto colonial, como antevimos e agora reforçamos. A estratégia colonial portuguesa, aplicada em decorrência da presença reduzida de colonos portugueses, principalmente, no interior de Angola, fazendo com que a metrópole optasse pela vassalagem, produziu ao longo do tempo uma sociedade mestiça cujas raízes, segundo Dias (1984, p. 63),

[...] remontavam em parte aos laços estabelecidos entre os primeiros colonizadores portugueses e mulheres africanas, mais de dois séculos antes [do século XIX]. Incluíam também os descendentes de muitos antigos escravos, bem como de africanos livres que se tinham colocado sob a proteção dos mesmos colonos, a troco de serviços militares e outros. Com o correr dos tempos, a estes se foi juntando um fluxo constante de colonos brancos e bem assim de africanos de diversas origens, atraídos estes para a 188

órbita das fortalezas portuguesas como escravos ou como partes interessadas no tráfico de escravos para o exterior. Tais comunidades eram de características mais africanas do que europeias, por um lado porque o número de africanos com ligações com as fortalezas era sempre muito maior do que o de europeus, por outro devido ao elevado índice de mortalidade destes últimos. Consequentemente, a língua franca da colónia era o kimbundu, e não o português, mesmo entre os cidadãos mais proeminentes, ao passo que no que respeita aos credos religiosos e políticos se criara toda uma série de sincretismos de fusão dos credos portugueses com o dos Mbundu.

A origem de uma elite crioula, para Dias (1984), é fruto de relações entre homens portugueses e mulheres africanas. Essas relações se fazem presentes desde o começo da colonização portuguesa e se intensifica e se diversifica com as atividades em torno do comércio de escravos. A forte presença africana nessa relação justificava o acento na língua nativa e a fusão tanto da língua quanto de credos religiosos e de interesses políticos, dando amparo à sustentação de uma elite crioula. Em Angola, as ricas-donas (2014), a história dos pais de Dona Anna Joaquina exemplifica a origem da elite crioula, assim como a própria aparição das ricas-donas no cenário luandense. Um ponto importante para a formação de uma elite crioula é a mudança substancial que ocorrerá nos valores e costumes da cultura africana em contato com a cultura europeia. A “propriedade colectiva de terras e bens móveis” (DIAS, 1984, p. 64) é substituída pela “propriedade privada”. Os bens que, na cultura africana, seguiam uma linha materna cuja redistribuição entre parentes permitia o acúmulo de riquezas em uma mesma família durante várias gerações é substituído pelo modelo europeu cuja transmissão de bens é dada por testamentos de pai para filho. (DIAS, 1984). Outra curiosidade em relação à elite crioula e da qual falaremos adiante, quando nos concentrarmos no reinado das donas, direciona-se para a centralização na figura feminina. A presença portuguesa em Angola era pequena e isso fazia com que a criação de uma elite crioula fosse fortalecida em torno de características mais africanas que europeias. Os portugueses que adentravam Angola, geralmente, eram homens brancos atrás de enriquecimento e que costumavam sair à cata de casamento com mulheres africanas que pertencessem às famílias tradicionais da elite crioula. Como o território em si era inóspito para os europeus era comum que eles morressem cedo e que as mulheres africanas assumissem o comando dos negócios e das fortunas acumuladas. Em pleno vigor e vitalidade, elas tornavam a casar no intuito de encontrar uma figura masculina que lhe ajudassem a engrossar a fortuna existente, lidando com o trato mais frontal do comércio de escravos. Como as leis em relação ao dote e à herança eram mais 189

flexíveis e as mulheres europeias eram poucas, as mulheres crioulas conseguiam prosperar incólumes na sociedade colonial angolense. De acordo com Oliveira (2016, p. 139):

Ao longo do século XIX, mulheres adquiriam propriedades agrícolas chamadas de arimos através de diversas formas, particularmente por meio de compra, herança e dote [...]. Mulheres também adquiriam bens por meio de heranças, inclusive terras. De acordo com as Ordenações Filipinas, sistema de lei utilizado em Portugal e seus domínios, mulheres tinham direito à propriedade da família como filhas e esposas.

As mulheres crioulas sobreviviam aos homens e como a herança costumava ser dividida entre esposa, filhos e filhas igualmente, elas iam construindo seus impérios. Elas também ainda podiam adquirir bens através do dote que recebiam por ocasião do casamento. Se os homens brancos já eram poucos frequentes nas colônias, a presença de mulheres brancas então era quase inexistente e isso era outro fator que contribuía para os casamentos mistos entre portugueses e angolanas e para a concentração de bens nas mãos das mulheres africanas. De outra forma, os portugueses de posses e que possuíam família em Portugal, na colônia, acabavam tendo relacionamentos com mulheres africanas seja como um segundo relacionamento conjugal, seja com escravas de sua posse, constituindo famílias com laços bem mais fortes que a família portuguesa que deixaram do outro lado do Atlântico. No entender de Dias (1984, p. 64),

[...] a base corporativa crioula foi reforçada pela poderosa influência feminina. A formação e a homogeneização da cultura crioula angolana, através da integração de valores e crenças africanos e europeus, foram realizadas em grande parte através da criação e socialização das crianças feita pelas esposas africanas, concubinas ou escravas. Uma proporção substancial das famílias crioulas da colónia era dirigida por mulheres, e elas também contribuíram significamente para a organização e produção económicas, como comerciantes e fornecedores de produtos agrícolas para o mercado.

Na narrativa de Isabel Valadão, a ênfase no elemento feminino, na elite crioula, dar- se-á pela presença e comando das famosas ricas-donas, intitulando o romance Angola, as ricas-donas. Delas falaremos adiante. Seja como for, não há como negar a influência e a participação dessas mulheres africanas na formação da elite crioula em Angola. Isso talvez decorra de uma característica da cultura africana de base matrilinear muito comum no 190

parentesco kongo, cuja linhagem se baseia na ‘Kanda ou Nkanda’. De acordo com Pereira (2013, p. 19),

A Kanda é o grupo de parentesco organizado em linha materna, descendente de uma antepassada comum. A kanda define o grupo exógamo [...]. A Kanda se divide em linhagens, ou ‘barriga’ (vumu), ou seja, o grupo de descendência até a quarta geração que regula os direitos de herança. A Kanda, que por sua própria definição abrange os vivos e seus antepassados, estabelece duas categorias fundamentais de pessoa entre os bakongo: os indivíduos de livre direito, que são aqueles pertencentes a uma dada linhagem materna, com todos os direitos relativos a sucessão e herança, e os outros, estrangeiros ou escravos que, não possuindo Kanda e incapazes de declarar sua mvila (genealogia), têm um lugar subordinado na estrutura social. (Grifos da autora).

Isso talvez também justifique, em parte, a divisão estabelecida entre negros e mestiços da elite crioula e os outros que se encontravam na condição de subordinados do ponto de vista colonial. É evidente que a cultura europeia trazida pelo colonizador instalará com maior precisão essa separação. A posição social, política e econômica que a elite crioula ocupava em Luanda, em conjunto com a assimilação à cultura europeia e a educação recebida no modelo da metrópole portuguesa serviam para construir no imaginário da elite crioula a concepção de branquitude, de serem percebidos como brancos realmente, afastando-se do restante da população negra e mestiça subordinada ao colonizador como mão de obra escrava, seja interna ou externamente. Este restante seria, portanto, inferior e incivilizado. Conforme Marzano (2013, p. 33-34, grifo da autora):

Essa elite como um todo, e não apenas a parcela de colonos portugueses, se dedicava ao comércio, ocupava cargos públicos na restrita administração colonial, tinha funções eclesiásticas e assumia postos no Exército. Os negros e mestiços que dela faziam parte por serem considerados civilizados – que prefiro denominar ‘angolenses’ — usufruíam dos direitos civis e políticos da metrópole, nomeadamente a isenção de trabalhos forçados e o reconhecimento do direito à propriedade. Os demais africanos, em sua grande maioria dependentes dos sobas avassalados, eram sujeitos a serviços como o de carregador e à própria escravização.

Essa diferenciação entre negros e mestiços, na sociedade colonial angolense, observamos também no romance de Valadão. Na narrativa, percebemos que o privilégio detido pela elite crioula não impedia que, do ponto de vista dos portugueses que viviam em Luanda e dos estrangeiros europeus que lá chegassem, esta mesma elite não fosse percebida como parte da raça negra e, numa concepção eurocêntrica, inferior e sujeita a caracteres estigmatizados. Percebemos esse aspecto, principalmente, na descrição das mulheres 191

africanas, cujos instintos sexuais são exacerbados para exaltar o estereótipo da mulata insaciável, decorrente do clima quente da colônia. Sobre a mulata insaciável e os instintos sexuais que afloram em Luanda, comentaremos adiante, ao falarmos do reinado das donas. No que concerne ao clima, já é lugar-comum a visão eurocêntrica de que o clima quente da África subsaariana afetaria não somente o comportamento e a moral dos povos nela habitados, como também a intelectualidade. O clima quente favoreceria, por sua vez, a indolência e a lascívia. O Brasil, com um clima igualmente quente, também sofria do mesmo estigma, como afirmava Freyre (2003), em Casa-grande & senzala:

Nada nos autoriza a concluir ter sido o negro quem trouxe para o Brasil a pegajenta luxúria [...]. A precoce voluptuosidade [...] não vem do contágio ou do sangue da ‘raça inferior’ mas do sistema econômico e social da nossa formação; e um pouco, talvez, do clima; do ar mole, grosso, morno, que cedo nos parece predispor aos chamegos do amor e ao mesmo tempo nos afastar de todo esforço persistente. Impossível negar-se a ação do clima sobre a moral sexual das sociedades. Sem ser preponderante, dá entretanto para acentuar ou enfraquecer tendências; endurecer ou amolecer traços sociais [...]. Pode-se concluir, com Kelsey (1928), que certos climas estimulam o homem a maiores esforços e conseqüentemente a maior produtividade; outros, o enlanguescem (FREYRE, 2003, p. 403).

Para Freyre (2003), “o erotismo, a luxúria” e “a depravação sexual” não seriam “um defeito da raça africana” (idem, p. 398) como acreditavam certos estudiosos, mas “do sistema social e econômico em que funcionaram passiva e mecanicamente. Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime” (idem, p. 399). Entretanto, o clima teria sua parcela de culpa na propensão ao sexo, pois ele afetaria a moral e a vontade das pessoas, tornando-as indolentes e lascivas. Por outro lado, o clima afetaria também o caráter das pessoas e sua disposição para o conhecimento. Atrelado ao clima quente da colônia angolense, outro fator que acentuaria os instintos sexuais seria o apelo excessivo aos negócios negreiros em um território onde todo tipo de artimanha era aceita para lograr êxito nos lucros do comércio escravagista e onde a morte estava sempre à espreita por meio das doenças decorrentes do clima. Dessa forma, o medo da morte e a tendência a satisfazer os desejos de lucro estimularia os instintos sexuais. Nas palavras da narradora de Angola, as ricas-donas,

Pervertidos pelos hábitos do comércio negreiro, a maioria dos habitantes da cidade procurava atingir tanto a fortuna como o sucesso e o prazer imediatos, ultrapassando sem rebates de consciência os sentimentos de virtude e de escrúpulo que os pudessem tolher. Numa terra em que ninguém estava seguro quanto à sua própria esperança de vida [...], a maior preocupação era 192

obter o máximo de prazeres, proporcionados pelas fortunas alcançadas graças ao tráfico da escravatura. A ausência de preconceitos de cor bem como de escrúpulos morais seriam, na época, as características mais marcantes da sociedade loandense, maioritariamente crioula. (VALADÃO, 2014, p. 186).

Certamente, o mito de uma ausência de preconceito de cor transposto para a narrativa decorre da propagação do lusotropicalismo em Portugal e em seus territórios no século XX, época em que a autora viveu em Luanda-Angola. Não há como falarmos em ausência de preconceito de cor, pelo contrário. Aquilo que se entende como ausência é a expressão maior do preconceito. Há por trás dessa declarada ausência o estigma quanto ao espaço africano que deturpa a moral de seus habitantes com seu clima e seus costumes, incluindo neles a atividade negreira e o preconceito quanto a uma raça entendida como inferior, cuja mistura física ou racial degeneraria a raça branca. Por sua vez, percebemos a pretensão do homem europeu a colonizar os corpos africanos que compõem a colônia da mesma forma que colonizou o território. Outro estereótipo criado pelo pensamento eurocêntrico em relação à África subsaariana e exposto na escrita de Valadão, desencadeia na referência constante ao exótico. Bethencourt (2018, p. 116) diz que na “história das bases ideológicas da supremacia europeia, o exotismo é o elemento crucial no contraste entre a Europa e os demais continentes. A produção do exótico foi um elemento inerente à expansão europeia”. Através do exótico se estabelecia a diferença entre aquilo que era considerado europeu e civilizado e o que não era, devendo, portanto, ser depreciado. Exemplos também não faltam no romance de Valadão para atestar o exotismo presente. A narradora, ao falar sobre a comitiva Molua que chega a Luanda, descreve-a como os “exóticos súbditos do soberano da longínqua Lunda”. Para ela e os circunstantes da cerimônia receptiva, os Moluas apresentavam “vestimentas e adornos assaz exóticos” e eram “um povo já um tanto quanto civilizado” (VALADÃO, 2014, p. 67-8, grifo nosso). Mais adiante, na narrativa, o governo do “mantiânvua [soberano] da Lunda” é descrito como “despótico e bárbaro” (idem, p. 247). Por sua vez, Dona Anna Francisca, cuja beleza é admirada como incomum ou mesmo imprópria para uma “mulher de cor”, é descrita como “exótica e sensual” (idem, p. 119, grifo nosso). A ênfase nos estereótipos em relação ao negro africano e aos mestiços é a tônica do romance de Isabel Valadão, mas a maior discriminação constante na escrita da autora talvez seja a que se aplica ao apetite voraz da elite crioula. Não estamos nos referindo aqui ao apetite sexual que veremos adiante, mas do apetite ao capital econômico, ao domínio do tráfico 193

negreiro. Em Angola, as ricas-donas, a elite crioula é descrita como predadora, avançando contra todos aqueles que se opusessem à manutenção do comércio de escravos como fonte principal de enriquecimento da colônia. A impressão que permanece é de os interesses do tráfico de escravos serem de exclusividade da elite crioula. Portugal, que se servirá longamente dos lucros desse comércio, inclusive com o largo fornecimento de escravos para o Brasil, é colocado na narrativa numa posição cômoda de ser conduzido pelos ventos das circunstâncias que vão remodelando o cenário do século XIX no triângulo do tráfico negreiro com a inserção da Inglaterra no jogo político de forças de interdição do tráfico, com a independência do Brasil e com o conflito entre miguelistas e liberais. No começo do século XIX, de acordo com a narrativa de Valadão (2014, p. 72), a “colônia atravessava na altura nova crise política ocasionada pelos acontecimentos ocorridos em Portugal”. O projeto colonial de Portugal para Angola limitava a economia ao comércio de escravos, em especial, com o Brasil. O comércio de outros produtos não era incentivado pela metrópole e tampouco a colônia tinha condições de competir com os produtos do comércio externo. Nessa época, as invasões napoleônicas obrigaram a corte portuguesa a um exílio no Brasil, aumentando a dívida da metrópole com a Inglaterra que, por sua vez, iniciava uma campanha “em várias frentes contra o tráfico da escravatura” (idem, p. 72). O cenário político do começo do século XIX realmente não era confortável e nem promissor para Angola e muito menos para a elite crioula que via em todo ele a possiblidade de declínio econômico e da própria existência. Simultâneo a todos esses acontecimentos, existia o clima de abandono da metrópole em relação à colônia, agravado ainda mais com a instalação da corte portuguesa no Brasil. No romance, quem mais se revoltava com o clima de desprezo da metrópole eram os membros das famílias luso-africanas. No palacete de Dona Anna, “os mais destacados moradores da cidade juntavam a sua voz à dos filhos do país, comentando e criticando o que se passava em Portugal” (VALADÃO, 2014, p. 73). O clima de acirramento diante do profundo colapso da economia colonial, fez nascer no seio da elite crioula um sentimento de angolanidade, cuja essência era mestiça. Dias (1984, p. 61) confirma que, na primeira metade do século XIX, nascia uma “embrionária consciência de grupo de uma diminuta aristocracia crioula” em Angola. Mais tarde, esse sentimento uniria Luanda e Benguela. Na narrativa de Valadão (2014, p. 75), Dona Anna Joaquina aparece acalentando esse “sonho de uma Angola para os angolenses” em Luanda, embora soubesse que a colônia, por si só, não teria “peso político para se tornar independente”. Por isso, “aceitava, igualmente, uma ligação ao Brasil, onde se sediavam grande parte dos seus 194

interesses comerciais”. No mais, o mesmo sonho era compartilhado pelos “membros da sociedade crioula de Benguela, cidade onde se encontravam muitas famílias vindas do outro lado do Atlântico, e que formavam o denominado ‘partido brasileiro’”. No romance de Valadão (2014), o dilema de uma elite crioula que se nega a morrer diante das leis que complicavam e aceleravam o fim da escravatura, pelo menos de forma externa, implicaria em duas consequências. Por um lado, nas revoltas liberais e nos conflitos com os miguelistas e com os ingleses. Por outro, nas saídas possíveis para economia colonial com o fim do tráfico de escravos. Nesse último quesito, a escravidão se manteria internamente, pois os escravos continuariam no cultivo agrícola e na movimentação das indústrias de açúcar e de aguardente, saídas encontradas por Dona Anna Joaquina para o fim da economia que movimentava Angola. A mão de obra escrava interna reduziria os custos dos produtos externamente, tornando-os mais competitivos. A elite crioula angolana, em Angola, as ricas-donas (2014), de Isabel Valadão, apresenta-se como a grande vilã da narrativa. Primeiramente, ela é a aliada fundamental na operacionalização e movimentação do comércio de escravos, intermediando as relações entre reinos e sobas africanos e intercedendo nos conflitos que possam dificultar tais operações e movimentações, mostrando-se insensível ao sofrimento de seu povo e conivente com as violências impetradas para a coleta de escravos, com as concepções raciais impostas à escravidão e com o tratamento dado aos escravos. No romance, as benesses da colonização e do comércio escravista é descrito através da vida opulenta da elite crioula, assim como na ostentação de suas moradias, trajes, cerimônias e presença nos bailes do governador, bem como nas participações políticas e na composição dos quadros administrativos. O declínio do comércio transatlântico de escravos revela uma elite crioula resoluta em dirimir todos os entraves que possibilitassem o fim de uma economia que era a base da colônia e do enriquecimento dos membros dessa elite. O envolvimento com a agricultura e a indústria como saída para a crise implantada foi impossível para a maioria, resultando na destruição de uma grande parcela de membros da elite crioula angolana, pelo o que atesta a narrativa de Valadão, assim como muitos meios escusos foram empregados para se evitar a destruição. Na narrativa, há um apagamento das ações dos portugueses. Ao falar do emaranhado de setores e pessoas envolvidas no tráfico de seres humanos em Angola, a narradora/autora estabelece duas pontas neste comércio: “o potentado negro, vendedor de escravos, e o plantador das Américas, que o utiliza como mão de obra barata e descartável” (VALADÃO, 2014, p. 183). As ações da metrópole ficam de fora e só aparecem na forma de seus 195

governadores-gerais, impondo a ordem e a instalação das leis, principalmente as que se propõem a dificultar o comércio de escravos. É claro que atestamos um envolvimento frequente dos governadores-gerais e de outras autoridades coloniais no comércio de escravos, burlando constantemente as leis que deveriam preservar. No entanto, eles incessantemente são colocados como vítimas de um sistema difícil de romper devido à pressão das elites locais e das facilidades de um enriquecimento fácil e difícil de resistir. Ademais, eles acabam sempre sendo punidos com a perda do cargo e com a expulsão de Angola pela própria metrópole que reconhece e condena a corrupção empregada por seus representantes. Funcionam como bode expiatório para os verdadeiros culpados, o reino português como representante da Europa moderna e do colonialismo diabólico, e como forma de desviar o olhar do leitor de Angola, as ricas-donas (2014) deste colonialismo, colocando-os na direção de uma elite crioula ou luso-africana que se mostra aviltante e que, por sua vez, não parece ser, para a autora, a outra face da dominação colonial, mas a única. O epílogo da narrativa, cujo cenário é o ano de 1869, apresenta o desmantelamento do patrimônio de Dona Anna Joaquina que morrera em 1859 e cujo único descendente, a filha, evadira-se para Portugal, renegando-a como mãe, anos antes da morte desta que foi a grande representante da elite crioula:

Começava o desmoronamento do império de minha Ama e eu assistia com grande desgosto à perda do seu palácio, o símbolo maior de seu imenso poder dentro da cidade de Loanda. Nunca mais os seus imensos salões acolheriam a nata da sociedade em bailes, festas, reuniões e conspirações. Nunca mais aquelas paredes assistiriam às fantásticas transações comerciais que ali se fechavam e receberiam as ricas caravanas vindas do sertão profundo carregadas de valiosos produtos. Nunca mais o enorme pátio se encheria de vozes e dos cantares dos escravos em trânsito (VALADÃO, 2014, p. 328).

O fim de Dona Anna Joaquina e de seu patrimônio é bastante simbólico. Ele representa também o ponto final de uma elite que, em nosso século, segundo Laranjeira (2015), deixou de existir enquanto crioula. A evasão de Angola de Dona Thereza Luíza, filha de Dona Anna Joaquina, na narrativa, prenuncia isso. Com a morte da rica-dona, sua herança é reivindicada pelo marido português da filha, como pagamento de dívidas, mesmo diante do testamento de Dona Anna Joaquina que doava toda sua fortuna e do fato de ela ter renegado a filha, impedindo-a de receber sua herança para não beneficiar o marido. Na Angola atual, conforme Laranjeira (2015, p. 33), “a língua portuguesa [...], tende para uma (nova) norma, a norma angolana, tal como aconteceu no Brasil, embora a norma na 196

comunicação social, no Estado e entre essa elite seja muito próxima da de Lisboa”. Ou seja, não há ênfase numa “língua franca”, como ressalta Dias (1984), mas na língua do colonizador que é normatizada como língua oficial e de uso entre os poderes e as principais instituições do país. Uma língua que, em comparação à do Brasil, que foi colonizado por Portugal também, está bem mais próxima da do colonizador. Dessa forma, não há elite crioula em Angola, há, sim, uma elite negra ocidentalizada e europeizada. Este final proposto pela autora representará o início de um projeto colonial de ampla expansão no século posterior. Quando a elite crioula é enfraquecida por não ser mais necessária à escalada do tráfico transatlântico de escravos, é o momento do surgimento do imperialismo colonial na cena europeia, cujo início é a partilha do continente africano na Conferência de Berlim no final do século XIX. A narrativa de Valadão (2014) tem seu epílogo no ano de 1869, quando a escravidão externa tem seu fim, mas a interna se manterá ainda por longos anos, seja em forma de indenização dos libertos a seus algozes com mais oito anos de trabalho escravo pela perda financeira que estes teriam com o fim da escravidão, seja pelo trabalho forçado ou contratado que será instituído depois. Neste momento da história europeia, há a necessidade de embranquecimento das colônias e de sua ocupação de fato pelos europeus como é o caso de Portugal. Com o enfraquecimento das elites crioulas, as funções e postos mais altos da administração colonial começam a ser preenchidos essencialmente por portugueses, havendo, com isso, um contingente maior deles nas colônias. Em contrapartida, as dificuldades financeiras por falta de apoio governamental e da taxação de altos impostos, bem como em decorrência de secas e epidemias, segundo Dias (1984), afetam a estabilidade das remanescentes elites crioulas, levando-as à falência. Parte da última frase de Eufrozina como narradora, “não sou dona nem nunca o serei” (VALADÃO, 2014, p. 337), não revela somente a impossibilidade de Eufrozina se tornar uma ‘rica-dona’, com um possível casamento com Galiano aos sessenta e oito anos de idade, como já dissemos aqui em outro momento, mas também a erradicação das ricas-donas do contexto angolano e o fim da elite crioula. A partir de então, uma série de entraves são colocados pela metrópole no sentido de dificultar ou mesmo de minar a ascensão e poder das elites crioulas, em favor da maior inserção de brancos portugueses na colônia, dando-lhes oportunidades maiores em relação à população negra ou mestiça. Daí em diante, a classificação racial começaria a agir também com mais força contra estes. O contingente de brancos em Angola só aumentaria no século XX, enquanto a população negra e mestiça estaria inserida em cargos menores ou mesmo 197

submetida a trabalhos forçados, uma estratégia para a escravidão interna a favor dos portugueses. Tudo isso é deixado em aberto pela narrativa de Isabel Valadão dando ao epílogo um sentimento de saudosismo ao legado das ricas-donas de Angola por meio do relato de Eufrozina que se enternece diante do desmoronamento do patrimônio de Dona Anna Joaquina. A autora, todavia, não percebe, ou não quer perceber por ter se tornado beneficiária da destruição do poder da elite crioula, que tal desmoronamento é, em si, pelo menos, o início de um colonialismo mais perverso ainda, pois eliminará a atuação e a ascensão de negros e mestiços em Angola. Isso acontecerá com o Estado Novo e com o estabelecimento do indigenato no começo do século XX. Nessa nova ordem colonial, o estatuto de cidadão e, consequentemente, a assimilação se tornam critérios obrigatórios e difíceis de serem alcançados pela maioria da população negra e mestiça de Angola que se volta para uma escravidão e uma colonização mascaradas, respectivamente, de trabalho contratado e de província ultramarina portuguesa. Antes de finalizarmos nossa discussão sobre a elite crioula ou luso-africana de Angola ou, em especial, de Luanda, trazida pelo romance de Isabel Valadão, é importante ressaltarmos, conforme Bittencourt (1999, p. 99), “que [neste espaço] tanto os crioulos do século XIX e início do século XX quanto os recém-chegados, a partir do pós-Segunda Guerra, a esse convívio cultural sincrético, todos esses, não assumem quer o nome de crioulos, quer o de assimilados”. Para todos eles, a convicção era a de serem angolanos. E, realmente, sempre que, na narrativa de Valadão (2014), algum membro da elite crioula se referia a algum deles era sempre em termos como angolanos, famílias tradicionais, filhos ilustres ou filhos do país, entre outras terminologias. A ideia de elite crioula advém da narradora/autora, confirmando Bittencourt (idem), quando este diz que o termo crioulo “trata-se de uma construção analítica, proposta inicialmente por Mário António e depois seguida por outros autores”.

4.4 O reinado das ricas-donas: as mulheres mestiças, negras e brancas da elite colonial de Angola A enorme influência feminina na base corporativa crioula de Angola já foi aqui enfatizada por Dias (1984). Tal influência, inclusive, é a razão para que, do ponto de vista da cultura, a presença africana seja mais decisiva do que a portuguesa na constituição da sociedade crioula de Angola. Entre os principais fatores que desenvolveram essa influência feminina nesta sociedade, como observamos, teremos, no parecer de Ferreira (2006, p. 31), “o desequilíbrio demográfico da imigração majoritariamente masculina de portugueses nos 198

séculos XVII e XVIII”, favorecendo relações maritais entre homens europeus e mulheres africanas. Devido a isso, a educação dos filhos se tornava responsabilidade das mulheres africanas que reservavam maior peso à cultura nativa, incluindo nela o uso costumeiro da língua de seu povo, em especial, o Kimbundo. Por outro lado, os portugueses, no núcleo dessas famílias, acabavam se africanizando; o que favorecia também a matriz africana no seio delas. A presença marcante de mulheres na formação de uma sociedade crioula, em Angola, atesta o que Isabel Castro Henriques fala no prefácio da obra A mulher em África: vozes de uma margem sempre presente:

As histórias coloniais não recusaram sempre a importância do papel das mulheres africanas, e não faltam figuras primordiais, capazes de assegurar a valorização da parte das mulheres na organização das sociedades, e muitas foram as que exerceram funções políticas ou religiosas essenciais. Não havendo em África a lei sálica, as mulheres puderam ocupar lugares de chefia política, tendo participado também na organização religiosa e sobretudo na organização das relações económicas” (HENRIQUES, 2018, p. 10).

Nas narrativas angolanas, as mulheres africanas ou luso-africanas da era colonial tiveram papel importante para o enfrentamento da colonização. De várias maneiras elas procuraram fazer suas interferências para a preservação, pelo menos em parte, da cultura local. No romance de Isabel Valadão, Angola, as ricas-donas, cuja narrativa se propõe a detalhar as relações entre a constituída elite crioula de Angola, em especial a de Luanda, e as autoridades coloniais portuguesas no período de 1804 a 1869, trazendo à cena a independência do Brasil e os conflitos em torno da abolição da escravatura e do rentável tráfico transatlântico de escravos, encontraremos no protagonismo de todo esse cenário as ricas-donas de Angola. Nossa intenção aqui é destacar, na narrativa de Valadão (2014), o reinado das ricas- donas de Luanda, destacando a importância delas em um mundo onde a atividade econômica predominante era quase exclusiva dos homens, mas onde as mulheres africanas ou luso- africanas souberam se sobressair, entre elas, as bem-sucedidas e denominadas ‘donas’. Na história das ricas-donas de Valadão (2014), o protagonismo maior é dado a Dona Anna Joaquina dos Santos e Silva, mas sem perder de vista Dona Anna Francisca Ferreira Ubertaly, a qual a autora dedica menos protagonismo. Partindo da caracterização das ‘donas’ nos arquivos públicos da história, em um contraponto com a caracterização das duas ricas-donas trazidas pelo romance de Isabel 199

Valadão, iremos verificar a importância dessas mulheres pertencentes à elite crioula ou luso- africana de Luanda, procurando ressaltar as articulações delas no cenário cultural e político destacado por Valadão (2014). No mais, procuraremos fazer alguns comentários a respeito dos estigmas que as ricas-donas carregam no tocante à barreira racial colocada entre elas e as mulheres brancas de Portugal, principalmente no tocante ao estereótipo da negra ou mulata insaciável. No início da colonização portuguesa em Angola, as mulheres africanas estabeleciam seu papel na formação de uma sociedade crioula, pois, na ausência total de mulheres portuguesas, a prática do amasiamento era comum. Muito cedo, portugueses e africanos souberam tirar proveito disso. Para os portugueses, conforme Oliveira (2016, p. 137), esses “‘casamentos da terra’” garantiam “acomodação, uma escravaria doméstica que cuidava de suas necessidades básicas e assistência em caso de doença que podia ser decisiva entre a vida e a morte”. Ademais, as mulheres africanas desses portugueses serviam como “tradutoras”, “agentes comerciais” e “intermediadoras culturais” (idem). Na outra ponta, esses casamentos garantiam às mulheres africanas um aprofundamento da língua, da religião e da cultura europeias. Em conexão com as línguas, crenças e culturas locais, estas mulheres conseguiam se inserir nas relações comerciais de seus companheiros, garantindo-lhes também riqueza e poder. Como as cidades coloniais geralmente eram um oponente para os portugueses em termos de insalubridade, “muitas esposas e amásias rapidamente se tornavam viúvas, herdando os bens deixados pelos seus companheiros” (OLIVEIRA, 2016, p. 138). Estrategicamente, elas contraiam um novo casamento com portugueses e iam, assim, engrossando suas fortunas e gerindo seus negócios. Disso decorre que, o surgimento de “uma aristocracia luso-africana culturalmente crioula” (OLIVEIRA, 2016, p. 138) é fruto desses relacionamentos e, consequentemente, do empenho dessas mulheres que, com o passar do tempo, passaram a ser reconhecidas como ‘donas’. Para Pantoja (2004, p. 79), a presença das ‘donas’ no contexto colonial luandense é detectada nos séculos XVII, XVIII e permanece até a primeira metade do século XIX. Reconhecidas em Luanda pelo poder e pela fortuna adquirida, as ‘donas’ se mantiveram ativas através de várias gerações de mulheres que souberam conduzir “as grandes empresas atlânticas, como proprietárias de navios e administrando agências entre os dois continentes” (idem). No mundo luso, o tratamento ‘Dona’ designava prestígio e era aplicado para diferenciar nobres de plebeus. As mulheres portuguesas recebiam esse tratamento por consequência de algum parentesco masculino. Em consequência dos deslocamentos coloniais, em territórios portugueses de África e América latina, o tratamento se revestiu de outro 200

sentido, passando assim, em um mundo pautado pelas hierarquias de classe e cor, a designar mulheres brancas, ou consideradas brancas e ricas. Nos espaços do litoral africano, o tratamento novamente se reestrutura para acompanhar o contexto em voga, fazendo com que, na região de Angola do século XVII ao XIX, fosse desconsiderada a melanina da epiderme e se levasse em consideração a condição social e econômica da mulher que o recebia e, principalmente, a descendência portuguesa dela. De acordo com Pantoja (2004, p. 80):

[As Donas] foram verdadeiramente construtoras de um lugar de mando com novas formas de arranjos familiares, de desempenho de comando no mundo dos negócios e de direção no seio familiar, que acabaram por criar papéis singulares na fronteira de dois mundos, o africano e o europeu. Em geral, à mulher branca, quando pobre, não era permitido ser chamada de Dona. Mas para as Donas da região de Angola, que eram quase sempre mestiças ou negras, o significado era de muita concentração de poder.

No romance de Isabel Valadão (2014), a escritora destaca as ‘donas’ de Luanda, em Angola, ressaltando que a designação de ‘dona’ é algo predominante apenas numa segunda geração e os casamentos entre mulheres angolanas e homens portugueses se dava ou por casamentos que seguiam os moldes europeus ou pelas vias tradicionais que incluía, acreditamos, a prática do alambamento44.

As ricas-donas de Loanda tinham o mesmo tom de pele escura e caracterizava-as um tronco genético comum — as famílias mistas ou crioulas, embora, numa primeira geração, as mães dessas mulheres, negras, pardas ou mestiças, fossem conhecidas apenas pelo seu nome próprio. Casavam legalmente ou ‘conforme os usos da terra’ com homens de origem europeia, negociantes, militares e funcionários da Coroa e as filhas resultantes dessas uniões, em segunda geração, adquiriam já o direito ao título de ‘Dona’. Também se podia dar o caso de mulheres negras adquirirem esse título pelo casamento com um europeu (VALADÃO, 2014, p. 13, grifo da autora).

Os casamentos legais eram celebrados pela Igreja Católica. Oliveira (2018, p. 449) relata que, entre 1837 a 1859, as petições de casamento em Bispado de Luanda atestavam celebrações da união de estrangeiros com filhas da elite luso-africana. A prole desses relacionamentos também era reconhecida pela instituição religiosa que dava aos filhos e filhas

44 A prática do alambamento ou alembamento era comum entre os povos africanos e, ainda hoje, praticada. Ela se concentra na matrilinearidade (linhagem e sucessão por via materna). Consiste na oferta de bens por parte do noivo ao tio materno da noiva e a prática atende a todo um ritual que compreende etapas que vão desde o pedido de casamento na casa da pretendente com a oferta de presentes aos pais dela, até às garantias materiais para se proceder ao casamento (MARTINS; TAVARES, 2017). 201

da família crioula o sacramento do batismo. “Enquanto os filhos nascidos de pais casados na Igreja eram reconhecidos como legítimos, os demais eram classificados como naturais” (idem). Assim como Pantoja (2004), a narrativa de Valadão (2014) também ressalta o “lugar de destaque” das donas “nas camadas mais alta da sociedade angolense que integravam” (idem, p. 123). Seguindo o fluxo narrativo de Angola, as ricas-donas (2014), percebemos que o título de ‘dona’, em Angola, podia ser dado a qualquer mulher, independente do estado civil, da condição social ou racial. Nos centros urbanos como Luanda, no entanto, o tratamento marcava uma diferença social e racial. Era designado às mulheres brancas e ricas, mas como estas eram raras na colônia, o título acabava sendo característico das mulheres mestiças ou negras que concentravam em torno de si “consideração e poder” (idem, p. 124). De acordo com Freudenthal (2005, p. 154), a riqueza das ‘donas’ não provinha apenas do tráfico de escravos, mas também do trabalho delas na exploração de terras herdadas ou doadas por seus descendentes africanos, bem como da prática do comércio lícito. A existência dessas mulheres, com tamanho acúmulo de riquezas, eram casos comuns na elite crioula do século XIX. As duas ricas-donas de Angola, representadas por Isabel Valadão (2014), são descritas nos relatos do médico alemão, George Tams, Visita às possessões portuguesas na costa occidental d´África, de 1850, onde o médico descreve as viagens realizadas às partes meridionais do continente africano entre 1841 e 1842, em decorrência da expedição comercial de um negociante português de Hamburgo, Alemanha (WISSENBACH, 2008). Em sua narrativa, Valadão (2014) atesta a passagem de George Tams por Luanda nessa época. Nos relatos de Tams, os comentários sobre Dona Anna Francisca é a tônica de seus escritos, ao passo que a figura de Dona Anna Joaquina é raramente mencionada. Para Freudenthal (2005), dentre a constelação de proprietários de arimos, de escravos e de navios com destaque na elite colonial de Angola, a documentação histórica comprova a presença das ‘donas’.

Destes casos o mais eloqüente no domínio da iniciativa empresarial, materializada em investimentos no tráfico, no comércio e na agricultura e transformação da cana, é o de D. Ana Joaquina, eminente figura da sociedade luandense, traficante e proprietária de arimos no Bengo, curiosa personagem de compromisso entre a economia mercantil, a agricultura ‘tradicional’ e as novas estratégias empresariais. Sendo proprietária de vários prédios urbanos e de numerosos e extensos arimos (FREUDENTHAL, 2005, p. 155).

202

Entretanto, o destaque de Dona Anna Joaquina não se restringia somente à concentração de riquezas, mas também a popularidade que detinha, fazendo com que sua fama atravessasse os sertões e atingisse “o longínquo reino dos lundas com o qual ela procurava fazer acordos comerciais” (FREUDENTHAL, 2005, p. 155). Pantoja (2004), em Gênero e comércio: as traficantes de escravos na região de Angola, descreve Dona Anna Joaquina como:

A mais famosa traficante de escravos, em Angola [...], rica proprietária de grande prestígio na sociedade luandense na primeira metade do século XIX. Era proprietária de navios que faziam a carreira entre Luanda e os portos brasileiros, acionista de companhias na indústria e agricultura, empreendedora de engenhos de açúcar, dona de valiosos prédios na cidade e residente numa suntuosa mansão de estilo setecentista de frente para o porto. Dizem que dessa mansão, a partir de 1836 com a abolição do tráfico, Dona Ana mandou construir um túnel que levava os escravos diretamente aos navios nos portos clandestinos. No interior de Angola ela era conhecida como Ná-andembo (senhora do Dembo) (PANTOJA, 2004, p. 86).

A predileta do médico alemão George Tams, Dona Anna Francisca Ferreira Ubertaly, é descrita como cônjuge de um degredado natural da Sardenha, o médico Carlos Ubertaly. Ao ficar viúva dele, provavelmente herdou navios e o comércio de escravos em direção à Cuba e a Pernambuco, conforme informa Wissenbach (2008, p. 20). George Tams (1850) é extremamente generoso ao descrever Dona Anna Francisca:

D. Anna tinha nascido no interior da África e havia sido trazida como escrava para Loanda, onde vivia então com pompa, manejando um prospero negócio d´escravatura; mas eu farei justiça ao seu procedimento, pois que ella nunca praticava crueldades, antes tratava seus subordinados com grande humanidade (TAMS, 1950, apud WISSENBACH, 2008, p. 20).

Em seus relatos da Visita às possessões portuguesas na costa occidental d´África, de 1850, Tams enaltece traços específicos do comportamento e caráter de Dona Anna Francisca como a opulência, a beleza, a astúcia e a inteligência. Observando-a em uma festa da elite crioula de Luanda, destacou a forma como estava adornada, ricamente coberta de ouro e joias e “que tendo [ela] vindo para este paiz, havia poucos annos, d´uma província do interior como miserável escrava, por sua belleza e astucia tinha obtido a liberdade e riquezas” (TAMS, 1950, apud WISSENBACH, 2008, p. 20). Em outro momento, falando novamente de Dona Anna Francisca, Tams destaca que:

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Uma das pessoas que maior negócio tinha d´escravatura em Loanda, era uma mulher que primeiro havia sido escrava igualmente; a qual depois de ter obtido a liberdade, havia estudado a língua portugueza de per si mesmo com tal energia, que não só a fallava correctamente, mas até por sua propria mão fazia a correspondência commercial neste dialecto (TAMS, 1950, apud WISSENBACH, 2008, p. 20)

As ricas-donas de Luanda, representadas em Angola, as ricas-donas (2014), de Isabel Valadão, eram certamente símbolos de grande poder, beleza e sensualidade. Não era à toa serem amplamente cobiçadas não só pela riqueza e poder que detinham, mas também pela sensualidade que despertava o desejo dos homens europeus sedentos de poder e de desejo. Se no início da colonização esses casamentos interraciais se estabeleciam como acordos comerciais, no século XIX, o mesmo propósito permaneceria. É o que comprova a narrativa de Valadão (2014):

[Joaquim Ferreira dos Santos e Silva] Era um dos grandes traficantes do Rio, proprietário de uma das maiores frotas de navios, que ligavam as constas angolanas e brasileira, transportando escravos e outros bens. Mas Angola era uma parte importante desse império e era por lá que passava anualmente um bom par de meses todos os anos [...]. Assim, em 1837, aos cinquenta e oito anos de idade, Dona Anna Joaquina aceitou casar-se com Joaquim Ferreira dos Santos e Silva. Não foi um casamento por amor nem foi, certamente, um romance apaixonado parte a parte. Sempre esteve na sua origem o interesse e a conveniência determinante para os negócios de ambos (VALADÃO, 2014, p. 214).

A forma como as relações pessoais são descritas no romance de Valadão (2014) é uma questão bastante emblemática na narrativa. Neste cenário econômico e político de interesses e acordos comerciais, os relacionamentos são avessos ao amor, sendo conduzidos pelos benefícios financeiros obtidos. O sexo é puro instinto e descrito apenas em relação aos negros ou mestiços. Provavelmente, a própria espacialidade do território africano impulsione a autora a dispor os personagens africanos, luso-africanos ou luso-brasileiros nesse campo semântico da barbárie em que a ética e o amor estão interditados pela afloração dos instintos mais primários. Inferimos uma resistência inconsciente (ou não) da autora em considerar tal espaço como propício à civilização. Por sua vez, a barbárie nele inscrita afetaria quem o adentrasse ou nele habitasse. O termo cafrealização indica essa resistência por parte dos portugueses. Embora Valadão não o cite em seu romance, enquanto ideia ele permanece na caracterização dos personagens. Nas palavras de Santos (2003, p. 35),

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‘Cafrealização’ é uma designação utilizada a partir do século XIX para caracterizar de maneira estigmatizante os portugueses que, sobretudo na África Oriental, se desvinculavam de sua cultura e seu estatuto civilizado para adotar os modos de viver dos ‘cafres’, os negros agora transformados em primitivos e selvagens. Trata-se pois de portugueses apanhados nas malhas de Caliban e de fato calibanizados, vivendo com mulheres e filhos calibans, segundo os costumes e línguas locais.

Nos relatos geralmente de religiosos, Santos (2003) destaca a crítica que designava os indígenas como primitivos e selvagens. Consequentemente, os adjetivos se estendiam aos portugueses que a eles se misturavam e adotavam seus modos de vida. O estereótipo do português cafrealizado, segundo Santos (2003) se devia ao modus operandi de colonização portuguesa que implicava, na maioria dos casos, a inclusão de degredados em território colonial; o que significava, em maior parte, dissidentes da metrópole. No romance de Valadão (2014), observamos a frequente presença de personagens, membros da elite colonial, que possuíam um passado como degredado. Por exemplo, Arsénio de Carpo, “um dos mais acérrimos defensores da causa liberal e também [...] um dos maiores escravocratas da colônia” (VALADÃO, 2014, p. 136).

Arsénio Pompílio Pompeu de Carpo desembarcava em Loanda como degredado. Vinha acompanhado por toda a família, a mulher, dois filhos pequenos, dois irmãos menores e os pais, já idosos. ‘Uma desgraçada família’. Fora condenado na Madeira, sua terra natal, como constitucional vintista, por conspirar contra a monarquia e ridicularizar D. João VI. Também fora implicado numa conspiração de cariz maçónico que intentava separar o arquipélago madeirense da Coroa portuguesa. ‘Os verdadeiros factos eram porém um pouco nebulosos’ (VALADÃO, 2014, p. 137).

Na narrativa de Valadão (2014), Arsénio chega em Luanda em 1823, junto com outros tantos degredados como ele, e é integrado ao exército. Paralelo a isso, exercia também a atividade de taberneiro, junto ao porto de Luanda, lugar propício ao contato com os comandantes de navios negreiros. Nesse ponto estratégico, em pouco tempo, já estava inserido na elite colonial de Luanda e fazia parte das festas e cerimônias da cidade, incluindo o baile do governador. Nos arquivos públicos da história, Arsénio de Carpo destaca-se entre os degredados que obtiveram uma ascensão meteórica na sociedade colonial de Angola. João Pedro Marques, em Arsénio Pompílio Pompeo de Carpo: um percurso negreiro no século XIX (2001), descreve-o como “grande traficante à escala angolana”, mas “comparsa menor numa escala global, transatlântica” (MARQUES, 2001, p. 611). O autor descreve a origem 205

enigmática dessa figura histórica, marcando sua ascensão e decadência no comércio de seres humanos em Angola. Anne Stamm, em La société créole à Saint-Paul de Loanda dans les années 1838-1848 (1972), identifica Arsénio de Carpo como: “La fortune la plus curieuse et qui montre à quel point les situations extrêmes sont proches45” (STAMM, 1972, p. 597). Para a autora, o degredado português passou de simples comerciante a um dos principais do local em pouco espaço de tempo em se considerando a fortuna obtida e o prestígio que tinha em Luanda. Foi condecorado com a Ordem de Cristo em 1840. Era solícito com o governo para angariar favores escusos e fazia-se de amigo dos oficiais antiescravagistas britânicos, ao mesmo tempo que lucrava altamente com o tráfico transatlântico de escravos. O caso de Arsénio Pompílio Pompeo de Carpo deve ser explicativo para entendermos o projeto colonial de Portugal e as relações mistas em Luanda, Angola. De um lado, tínhamos um território sem lei, onde a metrópole se abastecia da mão de obra escrava, produto bastante lucrativo para os cofres da coroa portuguesa, e onde depositava os indesejados do reino. Por outro, uma terra que atraía os homens brancos para uma rápida ascensão econômica, alcançada por meio do casamento com uma ‘dona’ luandense e com a possibilidade de se inserir no comércio lucrativo da colônia. Um exemplo desse segundo caso foi o primeiro marido de Dona Anna Joaquina:

João Rodrigues Martins tinha optado por permanecer em Angola, e a sua sorte estava lançada! O sargento-mor, tal como muitos outros homens brancos nas mesmas condições, que chegavam de Portugal ou do Brasil com patentes militares, mas sem terem nada de seu, viam no casamento com uma mestiça rica uma forma de integração nos negócios da colónia e de fácil e rápido enriquecimento. Eram assim quase todas as estórias que conheci dos casamentos de militares em Loanda – aliar a carreira ao casamento com a filha de uma rica família da terra, o que acabava por ditar a assimilação dos homens brancos às famílias africanas das quais passavam a fazer parte integrante (VALADÃO, 2014, p. 93).

Na ficção de Valadão (2014), as ricas-donas de Luanda eram altamente cobiçadas pelos homens brancos europeus, fossem eles portugueses ou brasileiros. Tornavam-se assim excelentes prêmios para os caça-dotes que chegavam em Luanda. Estas, por sua vez, não eram inexperientes e ingênuas, viam no casamento excelentes oportunidades de fortalecer seus negócios, fosse agregando fortunas ou então munindo-se de homens brancos que favorecessem, de alguma maneira, suas estratégias comerciais.

45 Tradução nossa: A fortuna mais curiosa e que mostra como as situações extremas estão próximas. 206

Embora raras, as ‘donas’ ricas e brancas na narrativa de Valadão (2014) determinavam seu espaço de diferença racial e cultural. Para a autora, “o papel das poucas europeias da cidade era muito restrito e rodeado de um recato aparente e notado” (VALADÃO, 2014, p. 186). A reclusão e o recato de tais mulheres incluíam o “luxo” e o “ócio” vivido entre as “paredes de suas casas”. Algumas traiam abertamente o cônjuge, mas sempre com o consentimento deste que recebia em troca “uma recompensa em peças de ouro ou em jóias do amante ocasional” (idem). Em contrapartida, as mulheres crioulas são descritas como libidinosas, insaciáveis sexualmente e pouco dadas ao decoro, embora o mantivesse por conveniências sociais exigidas pela cultura europeia. No romance de Valadão (2014, p. 185): “As mulheres crioulas, mulatas e pardas partilhavam o mesmo sangue quente e a mesma sensualidade das suas congêneres africanas”. Na cama, elas preferiam o desempenho sexual dos “belos espécimes de raça negra para devaneios ocasionais ou desempenhos mais prolongados, cuja masculinidade superava os frustres desempenhos dos cônjuges minados pelas doenças próprias do clima africano” (idem). Enquanto os cônjuges delas preferiam a “concubinagem com escravas negras, por onde corriam suas aventuras mais ou menos em privado” (idem). Afora o clima quente africano que, na imaginação estereotipada do europeu, afetaria a moral das sociedades, favorecendo a lascívia e a fornicação, a narrativa de Valadão (2014) expressaria também o estereótipo do negro potente e, principalmente, a da negra e da mulata insaciável. Além do mais, ela envolve a mulher branca numa aura de santidade e pureza em que o sexo só entraria por obrigação ou obediência matrimonial. Segundo Noa (2002), no romance colonial:

[a mulher europeia é] uma presença discreta, sobre a qual o investimento composicional tem pouca expressão. Daí que ela nos apareça preenchendo um quadro figurativo pouco variável e reduzido: subserviente, ao lado do marido na sua missão ‘civilizadora’, empregada num escritório da cidade, aventureira ou prostituta, ou, então, não passando de uma personagem aludida com contornos difusos e que, na metrópole, aguarda o regresso (ou o chamamento) do noivo ou do marido (NOA, 2002, p. 316, grifo do autor).

Valadão (2014) não denega este modelo de representação a suas personagens femininas europeias. Elas aparecem na narrativa, mas são raras, assim como sua presença na colônia. Quando aparecem, geralmente não são nomeadas ou, quando são, restringem-se a ocupar ações mínimas e específicas na narrativa como, por exemplo, a baronesa de Santa Comba Dão para intermediar o romance entre Elísio Tudella Guedes Coutinho Garrido e 207

Dona Thereza Luíza de Jesus, filha de Dona Anna Joaquina. Outro caso é o da “esposa de Robert Scott Newton, uma senhora inglesa de pele muito branca e cabelo muito loiro, [...] a anfitriã perfeita das distintas senhoras de Loanda” (idem, p. 292), cujo aparecimento, na narrativa, serve para marcar a presença da comunidade britânica em Luanda, modificando a estrutura social e a arquitetura da cidade. De outro modo, as personagens femininas europeias também apareceriam para imprimir seu racismo e servir de comparativo para uma elite crioula descrita como igualmente racista, como é o caso de Dona Catarina, aqui mencionada, conhecida pelos horríveis castigos que destinava aos escravos e cujo tratamento e ideias, em relação a eles, eram compartilhados “pela maioria dos europeus e muitos crioulos” (VALADÃO, 2014, p. 215). No mais, essas personagens eram apenas citadas na narrativa como esposa de determinada autoridade colonial ou de algum degredado como a esposa de Arsénio de Carpo. A única referência mais forte sobre a mulher branca europeia na narrativa de Valadão (2014) diz respeito à vida fútil delas de entrega ao ócio, ao luxo, ao recato ou à condição de objeto de troca nas dívidas de jogo de seus maridos. Nesse aspecto da aposta de jogos, a mulher branca simbolizaria também um regalo pouco comum àquelas paragens coloniais, algo que só era permitido aos europeus e, como tal, bastante cobiçado a ponto de seus maridos se renderem ao fato de serem traídos. O sexo com as mulheres brancas, no seio de uma cultura racista, simboliza a obtenção de um troféu para homens mestiços ou para aqueles que, longe da metrópole e diante da escassez de mulheres brancas, estavam habituados às mestiças ou negras da colônia. É evidente que tal exposição da mulher branca se caracteriza como preconceito à raça negra. Diametralmente oposta à mulher branca, encontraremos, na narrativa de Valadão (2014), a mulher crioula da elite colonial, cuja falta de pudor, insaciabilidade sexual e autonomia financeira para aplacar seus desejos mais insanos a insere no estereótipo da mulher hipersexualizada. A autora ainda justifica o estereótipo da mulata insaciável, atribuindo tal instinto sexual à herança de “suas congêneres africanas”. Ao fazer isso, ela amplifica o preconceito e o confirma quando relata que os cônjuges das mulheres crioulas preferem “a concubinagem com as escravas negras” (VALADÃO, 2014, p. 185). De acordo com Noa (2002, p. 321), a imagem mais recorrente da mulher mestiça no romance colonial a envolve “numa auréola de erotismo e que a faz fonte de sensualidade e de sexualidade”. O termo mulata que lhe é atribuído se torna redundante, uma vez que “não só substantiva como também adjectiva” (idem). Em outras palavras, ser denominada mulata já é, em si, ser chamada de sensual e fogosa. 208

No romance, o estereótipo da mulata hipersexualizada é visto a partir de Dona Anna Francisca Ferreira Ubertaly e, principalmente, de Dona Anna Joaquina dos Santos e Silva.

Dona Ana Francisca era um pouco mais nova do que Dona Anna Joaquina [...]. Fisicamente, tinham em comum uma pele macia e aveludada, lábios carnudos, seios rijos e bem formados. Mas era nos olhos de um negro profundo e no corpo de gazela que partilhavam uma beleza típica, comum a quase todas as mulheres angolenses. A diferença flagrante entre as duas estava no tom de pele, uma crioula e Anna Francisca quase negra [...]. [Elas] encontravam nas suas vidas de negociantes de grosso trato alguns pontos em comum, o que nem sempre acontecia relativamente a outras donas da colónia angolenses, mais dedicadas à vida social e ao ócio (VALADÃO, 2014, p. 120-121).

Percebemos na descrição em conjunto das duas ricas-donas, Dona Anna Joaquina e Dona Anna Francisca, feitas pela narradora/autora, uma beleza ‘comestível’, considerando aqui a associação entre ‘comer’ e o ato sexual em si. Tal beleza aprisiona essas mulheres crioulas, juntamente com suas congêneres africanas, no rótulo freyriano de mulher ‘boa de cama’, enquanto a mulher branca seria a de casar-se; rótulos estes que, infelizmente, ainda hoje sobrevivem em nossa sociedade racista como herança infame da colonização. Tal qual uma Bertoleza saída das páginas de um Aluísio Azevedo, as ricas-donas estão aptas a erguer economicamente a metrópole, mas não estão aptas a serem seus representantes culturais. Na percepção eurocêntrica, elas representam a colônia e por ela são marcadas racialmente não podendo, assim, ser comparadas às mulheres brancas da metrópole. Por outro lado, isso também não é desejo delas, pois o posto de mulher branca as coloca na condição de meros adereços de luxo, jogadas no ócio da subordinação ao homem branco. Como ricas-donas da elite crioula elas possuem seu poder e a possibilidade de gerenciar suas vidas de uma forma que as mulheres brancas da metrópole jamais sonhariam. Ademais, elas representam a resistência da matriz angolana no projeto de colonização portuguesa, uma vez que fincada na matrilineariedade o sangue angolano permaneceria presente. Era esse poder e essa autonomia o que uniam Dona Anna Joaquina e Dona Anna Francisca. Diante do exposto, sabemos que Dona Anna Joaquina era filha de um negociante português que chegara pobre em Luanda, mas que se casara com uma mulata da região de Ambaka, pertencente a uma elite de agricultores-comerciantes. Com o casamento, ele soubera engrossar seu patrimônio, deixando, após sua morte, tudo para a filha. Desde cedo, Dona Anna Joaquina fora introduzida no mundo dos negócios do pai, à medida que recebia uma 209

educação equiparada “ao que de melhor se ministra[va] nas escolas privadas da Europa” (VALADÃO, 2014, p. 53). Dona Anna Joaquina se casou duas vezes e duas vezes ficou viúva. A primeira vez com o sargento-mor João Rodrigues Martins e a segunda, com o rico negociante português Joaquim Ferreira dos Santos e Silva. O primeiro casamento só veio a se realizar um ano após o nascimento da filha, Dona Thereza Luíza, e antes mesmo de o marido falecer ela dava suas escapadas conjugais. Eufrozina, em determinado momento da narrativa, relata o seguinte:

Conhecia bem o lado libidinoso de Dona Anna. O apetite sexual que a assaltava com frequência. E, sobretudo, que o marido não era capaz de satisfazer esse apetite. E vinha ainda de muito jovem essa característica da mulher que eu vira crescer. Era eu quem lhe preparava desde solteira os encontros secretos para tratar de ‘negócios com carácter particular’ (VALADÃO, 2014, p. 118, grifo da autora).

É visível o estereótipo da mulata insaciável em Dona Anna Joaquina. Seu apetite sexual parece-lhe algo inerente, pois, conforme a narradora/autora, já dava indícios na adolescência. O marido português é incapaz de saciá-la e para aplacar seu clamor libidinoso de mulata ela recorre a inúmeros amantes, fossem eles do meio da elite colonial ou não. Era comum também que Eufrozina testasse, entre os escravos de Dona Anna Joaquina que chegavam aos montes para o comércio transatlântico, os mais “bem dotados, rebeldes como potros por domesticar que eram os que ela mais apreciava” (VALADÃO, 2014, p. 42). Como vemos, Dona Anna Joaquina seria uma espécie de ninfomaníaca, hipersexualizada enquanto mulher por ser mulata. Na sequência, observamos também o homem negro animalizado por seu sexo. Ele é o potro; animal que sintetiza a força, a juventude e a virilidade selvagem. Fanon (2008, p. 144) diz que o preto, no imaginário europeu, “simboliza o biológico”. Nos pretos, tudo o que se refere ao sexo é antecipado; o que comprovaria sua potência sexual: “sua puberdade começa aos nove anos, eles têm filhos aos dez, eles são quentes, eles têm o sangue forte, eles são robustos” (idem). Em suma, o preto é a própria imagem do membro sexual. Ele “foi eclipsado. Virado membro. Ele é pênis” (idem, p. 146). Ele é percebido como um corpo dotado de um sexo bestial, nada além disso; puro instinto primitivo. O segundo casamento de Dona Anna Joaquina é um declarado jogo de negociações comerciais que favorecia os dois lados. As obrigações matrimoniais também não escaparam das negociatas. Entre os cônjuges foi acordado a liberdade sexual:

210

Joaquim Ferreira dos Santos e Silva viria a instalar nela [a residência, o palacete do Bungo de Dona Anna Joaquina] um principesco harém, constituído por uma dúzia de molecas seleccionadas dos rebanhos acabados de chegar a Loanda. Igualava-se, assim, em direitos conjugais, a sua mulher, que já tinha alguns cómodos do palacete reservados para os jovens escravos favoritos, também eles seleccionados pelo mesmo processo e da mesma fonte. Estes escravos eram, na sua maioria, substituídos anualmente por recém-chegados, esgotados os encantos e os mistérios das aventuras que cada um deles proporcionasse aos respectivos senhores. Os excluídos eram então misturados no rebanho e exportados para outras latitudes (VALADÃO, 2014, p. 214).

A cena aqui representada é digna de um Marquês de Sade46. A diferença torna a cena mais dantesca, pois o mundo representado não é o europeu e na cena apresentada não há sexo com animais, mas seres animalizados, reduzidos a gados que são selecionados para o abate. O negro e a negra aqui são objetos de prazer, escolhidos pelo design; ou seja, pela sua forma e funcionalidade, como também por sua potência. Eles também são vistos pelo prisma da mercadoria, corpos escravizados e aptos ao uso de seus senhores, assim como Eufrozina que não escapa do apetite sexual voraz de seu senhor e marido de sua ama.

Ele se aproximou de mim sem um instante de hesitação. Senti-me arrebatada por braços possantes, elevada no ar como uma pluma. No instante seguinte estava no meu quarto. Vi a porta fechar-se silenciosamente. Pousou-me com delicadeza no chão e senti-lhe o beijo húmido e sôfrego, inapelável e arrebatador. Senti-lhe as mãos percorrerem-me o corpo numa carícia possessiva, quase brutal. Aquele foi o instante de rendição das minhas últimas resistências e entreguei-me incondicionalmente àquele terramoto humano! Entre a dor e o prazer a noite prolongou-se por muito tempo! Despontava a luz pelas cortinas do quarto quando, sem uma palavra, sem um sorriso, sem sequer um olhar, ele se retirou silenciosamente (VALADÃO, 2014, p. 216).

Esta outra cena é por demais piegas e gravita entre o trágico e o cômico. A idealização nela posta nos leva ao riso, mas, em contrapartida, a representação de um estupro dessa ordem, ou semi-estupro como anteriormente denominamos, é imensamente trágica para ser envolvida em tintas de um romantismo tosco e pela voz da vítima. Como escrava, Eufrozina aceitaria o ato passivamente, mas certamente sem a satisfação e o prazer demonstrado.

46 Donatien Alphonse François, o marquês de Sade (1740-1814), emprestou seu nome para a psicopatologia humana que se convencionou chamar de sadismo, na qual castigos sexuais são infligidos com a finalidade de gerar o sofrimento da vítima e o deleite do algoz. O marquês de Sade passou grande parte de sua vida encarcerado por sodomia e atos de libertinagem. Durante o tempo em que permaneceu preso, desenvolveu uma forma oblíqua de compreender a Natureza. Seu entendimento revela uma concepção caótica da Natureza e uma orientação fundamentalmente sexual do mundo, produzindo um universo que exalta a mistura entre violência e libido, e jamais procura refúgio na espiritualidade ou no princípio divino. (SÁ, 2008). 211

Na narrativa de Valadão (2014), a cena representaria o terceiro estupro da narradora e apenas em um ele seria realmente aceito como tal, mostrando o trauma de Eufrozina. Isso se dá por o personagem deste estupro ser um elemento menor na malha do tráfico e da colonização, um mestiço sem valor, quase equiparado ao negro escravo. Os outros dois, apesar de notadamente não terem sidos por consentimento, mas atos de posse do corpo escravizado como este aqui apresentado, são descritos, na trama, como sinônimos de satisfação e prazer. Por sua vez, o negociante português e sua dama crioula, ele protagonista das duas cenas dantescas e ela da primeira, assumem a forma de seres hipersexualizados como a justificar a conduta de seus comportamentos por meio da existência ou permanência em solo africano. Afinal, “Era, de resto, uma questão de mentalidade numa sociedade sem os preconceitos e atavios de uma Europa distante [...], mais acolhedora das tradições milenares da sua gênese, de uma ingenuidade próxima da inocência, de rituais cruéis e de sentimentos expostos (VALADÃO, 2014, p. 186). Ademais, o contato com o “negro gentio [...], “portador de um estado de aviltamento que o impedia de possuir ‘pundonor, brio e honra’ [...], contribuía para a corrupção da moral e dos bons costumes e transmitia péssimos exemplos” (idem). O europeu era enfim uma vítima da degeneração das raças, produzida pelo contato com o negro africano. A origem de Dona Anna Francisca é misteriosa, mas repassada à Dona Anna Joaquina em confidência em leito de morte. Ela era filha “de uma jovem escrava negra que pertencia a um comerciante estabelecido em Benguela. Era uma negra muito bonita e sensual e por ela se apaixonou um rico traficante brasileiro” (VALADÃO, 2014, p. 289), de quem engravida. Temendo que seu dono tomasse a filha como propriedade dele ao nascer, ela esconde a gravidez e consegue tê-la na casa do traficante brasileiro. Este “tinha mais filhos de outras mulheres, todas suas escravas negras, e viviam todos sob o mesmo tecto” (idem, p. 289). No entanto, Dona Anna Francisca recebe um tratamento especial do pai que lhe dar todo o conforto e instrução europeia. Quando se torna adulta, o dono e senhor de sua mãe descobre a existência da filha da escrava e exige a posse de uma propriedade que, por direito, é sua. Anna Francisca é colocada em leilão e se torna alvo de muitos interesses, pois todos queriam arrematar a “escrava branca” (idem, p. 290). Seu progenitor, entretanto, mesmo diante de enormes ofertas, consegue arrematá-la e sua filha regressa, enfim, para a casa de seu pai que lhe dá, de imediato, a alforria. Ao morrer, deixa-lhe em testamento toda sua fortuna. 212

É importante ressaltarmos aqui três pontos em relação à história de Dona Anna Francisca. Primeiro, a incrível semelhança com a narrativa de A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães. Uma escrava que recebe esmerada educação europeia e que, por isso, é considerada branca, embora a pele fosse “praticamente negra” (VALADÃO, 2014, p. 290). O segundo, ao qual não vamos nos deter, pois já discutimos aqui quando falamos da narradora Eufrozina, é a questão da tripla objetificação da mulher negra durante a colonização, visível representação da mãe de Dona Anna Francisca. O corpo da mulher negra estava sujeito ao uso como força de trabalho, como objeto de prazer e como instrumento de reprodução de outros corpos escravos. Nisso, tanto o pai de Dona Anna Francisca, quanto o dono e senhor de sua mãe representam esse colonizador. O terceiro ponto diz respeito à beleza da mulher negra ou crioula no mundo colonial; ela está sempre atrelada ao sensual e, neste caso, ao sexo também. É uma beleza para ser desfrutada, uma vez que, ao pertencer ao corpo negro, vira também propriedade do homem branco que a requisita. Dona Anna Francisca era conhecida como a bela do baile, pois nenhuma mulher disputava com sua beleza. Estava entrando no quarto casamento e “na casa dos cinquenta” (VALADÃO, 2014, p. 285) anos de idade. Todavia, “os anos passavam por ela sem beliscarem a sua juventude e mantinham-na irresistivelmente sedutora. As suas formas exuberantes, continuavam a cativar os olhares masculinos à sua passagem” (idem). Era como se o sexo fosse um antídoto para a velhice das mulheres crioulas de Luanda, que mantinham, assim, sua sensualidade intacta. Aqui, enquanto, de um lado, as donas brancas são apresentadas com o recato moral que rege os costumes europeus, assim como a delicadeza dos gestos que definem a feminilidade e a obediência patriarcal que compete à mulher moderna; de outro, as donas mestiças ou negras são vistas sob o manto do obsceno, do sensual libidinoso e do excessivamente sexualizado. Os negros e negras que lhe servem também não desmerecem os estereótipos designados a elas. O negro é dotado de membro e potência sexuais fora do comum e a negra não rejeita o sexo selvagem de modo algum. Ricas ou escravas, as mulheres mestiças ou negras são percebidas como corpo desejante e desejado. Se as ricas-donas mandam, a posição de mando é o outro lado do instinto sexual aflorado pelo território colonial e pelo comércio degradante de seres humanos que, consequentemente afetam os estrangeiros e os cafrealizam.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa conversa teve início com o poema Uma vez, de Elio Ferreira, constante no livro de poesias América negra & outros poemas afro-brasileiros (2014). Nele, o poeta piauiense, reconhecidamente negro, entoa em seus versos o cântico traumático do racismo como marca da escravidão outrora vivida por seus (e nossos) antepassados. Nesse canto de dor e sofrimento, ecoa a história de um povo submetido ao cativeiro da escravidão. Cativeiro que ainda persiste e é permanentemente sentido na pele, na mente e na vida do povo negro constantemente diminuído em seu direito de ser e de existir. Isso inclusive é sentido pelo eu poético de Uma vez, quando o homem branco castra o seu direito ao saber, reenviando-o à condição de inferioridade do cativeiro. O estigma do sujeito negro, que ainda o insere na periferia do mundo, é a herança da modernidade e de seu inerente colonialismo e imperialismo europeus. A análise do romance de Isabel Valadão, Angola, as ricas-donas (2014), reforçada pela verificação das memórias da autora em A sombra do imbondeiro (2012), trouxeram à tona essa herança da modernidade e que se fez presente como discussão em nosso trabalho. A modernidade é um advento europeu. Enrique Dussel, entre outros pensadores latino- americanos, endossaram, aqui, esse posicionamento, ao realocarem o nascimento da modernidade para o ano de 1492, quando a Europa se colocava, então, como centro da história mundial. Ao reivindicarem a posição de centro do mundo, houve a submissão do restante do mundo não europeu à condição de periferia. Enquanto fundadores da modernidade, a Europa se encarregaria de determinar um padrão civilizatório, assim como estabeleceria a razão europeia como exigência para a agora então periferia do mundo. Sustentada sobre os paradigmas da civilização e da racionalidade, a Europa seguiria numa empreitada colonial em direção ao progresso e ao desenvolvimento da humanidade. Estabelecendo-se como superior diante de povos que, segundo o pensamento eurocêntrico, eram primitivos, bárbaros e selvagens, carecendo, portanto, progredir e se desenvolver, a Europa submeteria os povos colonizados por ela, aparentemente desprovidos de cultura e de religiosidade, à superação de si mesmos na busca de ascensão ao padrão europeu. Tal exigência de comportamento moral, cristão e cultural se revestiu em um projeto minuciosamente pensado para colonizar corpos e mentes, cujo objetivo era, na verdade, reverter os povos colonizados em corpo de trabalho escravo para custear um projeto civilizatório em prol da Europa. Na prática, o projeto civilizatório se configurou em uma missão humanitária que visava suprir todos os povos de progresso e desenvolvimento. Em 214

tese, porém, esse projeto se mostrou como um mito da modernidade europeia, cujo propósito era racionalmente submeter os povos colonizados à violência física, conceitual e epistêmica, negando-lhes o reconhecimento a uma alteridade. Quando a Europa submeteu conceitualmente sua modernidade aos povos que colonizou, ela encarcerou esses povos em um círculo vicioso difícil de ser rompido, pois, julgando-se modernos, eles não perceberam o jugo da colonização e, consequentemente se deixaram colonizar em favor da mesma modernidade que almejaram alcançar, mas que jamais lhes seria concedida, tendo em vista que os povos colonizados são anteriores à modernidade europeia e, portanto, considerados inferiores. Em consequência de uma modernidade eurocêntrica imposta, os territórios colonizados viveram, em tese, na modernidade, mas, na prática, ainda eram pré-modernos. Disso implicou a transposição do conceito de transmodernidade para trabalharmos o romance de Isabel Valadão. Na perspectiva da transmodernidade, foi possível preenchermos as lacunas que separavam o tempo da escrita de Isabel Valadão e o tempo narrado em Angola, as ricas-donas (2014). A partir daí, foi possível entender o colonialismo apologético presente no romance da autora, tendo em vista o conceito de colonialidade do poder e do saber. Como epistemologia que se alça ao centro, a escritora se arvorou de uma verdade absoluta sobre a história dos colonizados e sobre os conceitos que condicionaram os povos da colônia como inferiores e circunscritos a estereótipos estigmatizantes. Consequentemente, negou-lhes uma epistemologia também. Por outro lado, a autora requisitou para si o poder de negar aos colonizados uma alteridade. Em seu romance, o colonizado, principalmente o escravizado, é visto como espelho do colonizador, uma imagem reproduzida, mas que jamais alcança a exatidão do modelo imposto, tornando-se mímica que produz seus deslocamentos. Dessa forma, apesar de Isabel Valadão, conceber seu romance como histórico ou desejar que ele seja metaficção, não há como negar-lhe a categoria de romance colonial, considerando que a autora ressuscitou em sua escrita o colonialismo português, mas sem se afastar do conceito de colonialidade que o tempo da escrita do romance solicitou no sentido de se refletir sobre as vítimas do mito da modernidade eurocêntrica e sobre a construção de uma alteridade que foi negada a estas vítimas. A escritora, como sujeito, e sua escrita representam a percepção da modernidade eurocêntrica, enquanto mito e, por isso, traduzem uma espécie de apologia ao colonialismo, ao mesmo tempo que consolidam a classificação racial que o definiu. Por intermédio das representações literárias de Isabel Valadão, em Angola, as ricas- donas (2014) e A sombra do imbondeiro (2012), verificamos como a percepção da 215

modernidade da autora se aproximou das narrativas sacralizadas pelos arquivos públicos da história portuguesa sobre Angola e como o arquivo pessoal dela, principalmente o da memória, reforçou essa percepção. Embora o distanciamento entre o tempo da escrita e o tempo narrado tenha sido propício para uma reflexão sobre o mito da modernidade e a colonialidade de nossos tempos, a autora persistiu em uma escrita colonial, em Angola, as ricas-donas (2014), reforçando outros mitos, o do colonialismo cordial e o da democracia racial ou do lusotropicalismo. O diálogo com o arquivo público da história portuguesa foi constante e não se percebeu um questionamento sobre o mesmo e nem sobre os erros cometidos por esta história, insistindo-se também na culpabilidade das vítimas. Dessa forma, ficou difícil encontrar elementos que pudessem inserir o designado romance histórico de Isabel Valadão como metaficção historiográfica. Nosso parecer é o de que o mais sensato seria designá-lo como romance colonial, ainda que em pleno século XXI. A terminologia se explica pela presença de um colonialismo extemporâneo no romance da autora; temática que se torna anacrônica em relação à escrita da obra. Em Angola, as ricas-donas, a autora revela sua escrita como sintoma, já que, não apenas nesse romance, mas, no conjunto de sua obra literária, Isabel Valadão atesta uma certa compulsão à repetição do passado colonial, numa extrema preocupação de rememorá-lo ou mesmo de retê-lo como um tempo de felicidade plena, cuja forma de revivê-lo seria através da escrita. Nesse aspecto, a escrita da autora se apresentou como um mal de arquivo. Uma enfermidade que, segundo Derrida (2001), afeta o sujeito de uma tal maneira que ele, impreterivelmente, necessita buscar a origem dos fatos, ou melhor, dos arquivos oficiais para atestar sua veracidade. O retorno, no entanto, é impossível, pois o arquivo não apenas se constrói como um discurso de poder e de saber, mas trata de apagar seus vestígios para que paire como originário e perene. A solução para se livrar do mal de arquivo é, então, reconstruí-lo a partir do existente e do arquivo pessoal. Aqui, o romance autobiográfico da autora, A sombra do imbondeiro (2012), surgiu para cumprir essa função memorialística, fornecendo-nos um amplo quadro do pensamento eurocêntrico e racial do século XX, onde a autora exerceu um elucidativo papel de conformidade e aceitação ao sistema colonial vigente na época e à classificação racial que, inclusive, a beneficiou enquanto mulher branca e europeia. Nesse quadro do século XX, a autora se beneficia, primeiramente, do trabalho forçado ou contratado do Estado Novo, assim como, mais tarde, dos privilégios dados à população branca na cidade de Luanda. Mas, a independência na colônia foi proclamada e a revolta contra os brancos revelou a falácia do lusotropicalismo existente na época, só comparada à democracia racial em nosso país. 216

Em relação à narradora do romance, Eufrozina, escrava de Dona Anna Joaquina na vida real e na narrativa, ela já estava inscrita como mulher subalterna no romance desde o princípio, devido à condição de escrava que a insere no mutismo, na invisibilidade e na violação de seu corpo escravo, como força de trabalho e objeto de prazer. Na trama do romance, Eufrozina, como dama de companhia de Dona Anna Joaquina, foi capaz de ocupar todos os espaços e saber de todas os acontecimentos que envolviam a elite crioula de Angola, pois tal dinâmica comportava a servidão a sua ama e senhora. Foi devido à obrigação de segui-la e servi-la fielmente que Eufrozina se tornou ciente de todos os acontecimentos. Por sua vez, a morte de sua ama e senhora e a condição de liberta a habilitou a narrar o romance. Todavia, não é a história da escrava e a de seu povo também escravizado que se sobrepuseram à história da elite crioula e das autoridades portuguesas. Pelo contrário, vimos na narração de Eufrozina a presença constante do pensamento europeu, levando-nos a acreditar que estávamos diante da autora e não da narradora, pois a primeira se colocou como avatar da segunda. A justificativa maior para fortalecer essa ideia se evidenciou pelos estupros sofridos por Eufrozina. Na narrativa, eles simplesmente se revestem ou de um ato de amor platônico, no caso de Félix Velasco Galiano, ou de um ato violento que foi sanado com a vingança da escrava, no caso de Joaquim Rodrigues da Graça, o sertanejo, ou ainda de uma violação que se transforma em sexo selvagem e consentido, no caso de Joaquim Ferreira dos Santos e Silva, segundo marido de Dona Anna Joaquina. No entanto, os estupros de Eufrozina, na narrativa, não esconderam a violação da colônia, enquanto corpo coletivo, territorialmente constituído, ou corpo individualizado dos escravos, tantas vezes concebidos como propriedade. Em especial, das escravas triplamente colonizadas por seu sexo, por sua força de trabalho e por sua capacidade reprodutiva de gerar novos corpos escravizados. Em Angola, as ricas-donas (2014), observamos o retrato da época descrito com finezas de detalhes em um cenário conflitivo de interesses coloniais e portugueses. Nesse cenário, como vimos, as relações do comércio de seres humanos entram em confronto com as articulações a favor da abolição do tráfico de escravos, iniciadas com a Inglaterra. Diante dessa pressão, as articulações políticas também ganham fôlego e se intensificam com as ideias de independência do Brasil. As elites coloniais ficam divididas entre a adesão à causa brasileira, formando uma aliança que levaria a anexação de Angola ao Brasil e a independência de ambos, ou o apoio a Portugal com o propósito de um novo império português em Angola. Ambos os sonhos foram frustrados, a anexação não ocorreu e as tentativas de um império africano, voltando-se principalmente para Angola como um novo Brasil, tendo em mente uma colonização agrícola efetiva e o incentivo à indústria, foram 217

ineficazes. A razão disso era uma economia lucrativa fundamentalmente baseada no tráfico de escravos. Nesse retrato de Angola do século XIX, Isabel Valadão se deteve amiúde na política colonial de Portugal, mostrando, por um lado, os investimentos portugueses na colônia e os interesses da coroa portuguesa para transformar Angola em uma promissora colônia, fosse pelo comércio de escravos, fosse pelo desenvolvimento da agricultura e da indústria. Descreveu também as divergências de ideias em Portugal através dos governadores-gerais que se dividiam, na narrativa, entre miguelistas e liberais, evidenciando a batalha pelo trono no reino português com reflexos na política governista do Brasil. Em contrapartida, Isabel Valadão foi enfática em mostrar uma elite colonial ardilosa, capaz de burlar todas as leis e praticar todos os atos necessários para que o comércio transatlântico de escravos permanecesse. Embora diante de um comércio escravagista que se anunciava em fases de extinção, a elite colonial se revelava engenhosa em manter a escravidão internamente, favorecendo as novas atividades econômicas e o lucro delas decorrentes. A autora fez questão de ressaltar uma elite colonial, principalmente crioula, fascinada pela ostentação do poder e do luxo que moralmente corrompia quem adentrava os territórios coloniais do comércio transatlântico de escravos. Nessa transmodernidade que atravessava os personagens de Angola, as ricas-donas (2014), colocando-os sob o jugo de um tempo imposto pelo europeu (português) e a permanência em um espaço de pré-modernidade, encontramos as elites crioulas inseridas em um tempo de conflito econômico e racial. Ao fim da narrativa, percebemos que a representação literária da colonização e da escravidão do século XIX, não revelara as investidas de Portugal como participante das estratégias da Europa moderna, mentora de um sistema de opressão e dominação, cujas estratégias se fundamentavam na classificação racial para subjugar e desumanizar os africanos, destinando para eles a condição de escravo. Há uma mitigação das ações portuguesas no que concerne a isso; o que inscreve a escrita de Isabel Valadão como anuente ao modelo colonial europeu e, consequentemente, pactuando com as projeções desse modelo na atualidade, cujo racismo é a sua síntese. Por outro lado, Valadão culpabilizou os próprios africanos. As concepções eurocêntricas sempre apontaram a escravidão como prática comum entre os africanos, embora saibamos que nada se comparava à escravidão moderna e que a escravidão anterior se fundamentava na ética da guerra, em que escravos eram tidos como espólios. Talvez a escravidão praticada, na pré-modernidade, pelos africanos justificasse a maneira como Valadão, em Angola, as ricas-donas (2014), apresentou a elite crioula como a maior 218

beneficiária de um sistema que essa própria elite ajudou a engendrar e a manter, conforme reiterava sempre a autora na narrativa. Em relação às ricas-donas mestiças e negras, no comparativo racial que Isabel Valadão descreveu, em Angola, as ricas-donas (2014), é visível o racismo que impregnou a narrativa. Poderíamos supor, através de um exercício imaginativo, que a autora, ao trazer estas imagens estereotipadas, pudesse propor um recurso irônico no decurso da narrativa para desviar o leitor da estereotipia em sua escrita, mas não é isso o que percebemos. Valadão (2014) fez questão de marcar a diferença racial decorrente também de uma diferença cultural entre europeus e não europeus, enfatizando o território angolano, por ser parte da África subsaariana, a denominada África negra, como o espaço do exótico, da selvageria, da ganância, dos instintos sexuais mais ativos e que, provavelmente, corromperia qualquer um que adentrasse suas fronteiras demarcadas como território sem lei, cuja civilização moderna, numa concepção eurocêntrica, jamais conseguiria ‘salvar’ da barbárie, devido, principalmente, a raça ‘inferior’ proveniente desse território. Para quem lê Angola, as ricas-donas (2014), de Isabel Valadão, com um olhar menos observador, perceberá possivelmente apenas a representação idílica de um território repleto de possibilidades e de enriquecimento fácil em que personagens transitam por um espaço cheio de luxo, lugares exóticos e justificadamente marcado pela escravidão, tendo em vista o contexto colonial do século XIX. Nesse território, haveria mulheres empoderadas e capazes de desafiar o poder patriarcal vigente por sua riqueza, poder de mando e, sobretudo, sensualidade e sexualidade. É sem dúvida uma forma de leitura possível, mas é também uma maneira de perpetuar um sistema, o colonialismo que, em nossos tempos, permanece como colonialidade de poder e do saber.

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