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A VOZ E A VEZ DO DISCURSO AMERICANO: UMA LEITURA DE , DE E HISTÓRIA SECRETA DE COSTAGUANA, DE JUAN GABRIEL VÁSQUEZ Lucilene Canilha Ribeiro (FURG)

A conquista do continente americano pelos navegadores europeus sempre foi uma problemática mal resolvida do ponto de vista do “conquistado”. A aceitação da chegada dos aventureiros às praias do “Novo Mundo” – como foi chamado posteriormente – e a colonização desses povos ainda geram muita discussão. O que é irrefutável é nossa condição de sujeito híbrido, que vive as angústias de pertencer, ao mesmo tempo, a duas culturas que inicialmente se antagonizaram: somos fruto da união entre nativos e estrangeiros. Somos o amálgama que José de Alencar, magistralmente, relatou em seu romance Iracema na figura de Moacir, do filho de Iracema e Martim, que nasce na América, mas é levado para a Europa para ser educado. De todas as imagens que esse romance pode nos trazer, talvez essa seja a que mais alimente a angústia de um sujeito pertencente a dois mundos que coexistem ao mesmo tempo em que se interpõem. O americano de hoje já é um sujeito diferenciado com os acréscimos de todas as variáveis trazidas pela globalização. Apesar disso, algumas constantes ainda são pertinentes, tais como a apropriação do discurso acerca do território americano vista pelo europeu. A motivação para essa discussão parte da análise de dois romances, Nostromo (1904), de Joseph Conrad e História secreta de Costaguana (2007), de Juan Gabriel Vásquez, em que a visão sobre o continente americano é problematizada graças à modificação da perspectiva de quem conta a história. As duas narrativas – distanciadas no tempo e no espaço no que se refere aos seus autores – constroem a trama sob o pano de fundo americano, mais especificamente sob a localização da Colômbia e a construção do Canal do Panamá. Essa polêmica acerca da apropriação do discurso é levantada no segundo romance, através da voz do narrador José Altamirano que não se conforma com a história contada por Conrad. Segundo o personagem de Vásquez, o escritor polonês narrou ao mundo uma América diferenciada da que ele, colombiano legítimo, conhecia. A narração do europeu estaria deturpando e controlando a imagem da América mais uma vez, como os navegadores que aqui chegaram e narraram as maravilhas recém “descobertas” aos seus conterrâneos. Em Nostromo, conhecemos a história de um marinheiro de origem italiana que se apodera de uma embarcação cheia de prata. Esse enredo se passa em um país imaginário que o autor designou de Costaguana, uma república latino-americana que concentra em si a imagem da situação política de alguns países naquele lugar e momento histórico. O autor comenta no prefácio que a motivação do livro surgiu de uma história que ele ouviu duas

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vezes na sua vida, em momentos distintos, e representam a influência da viagem que fez à América: [...] a primeira ideia de Nostromo veio sob a forma de uma anedota vadia, completamente destituída de pormenores de importância. Na verdade, foi em 1875 ou 1876, quando eu era muito jovem e estava nas Índias Ocidentais, ou melhor, no golfo do México, pois os meus contatos com a terra eram breves, poucos e fugazes, que ouvi a história de um homem que dizia ter roubado, sem ajuda de ninguém, um batelão carregado de prata, algures no litoral de Tierra Firme durante as agitações de uma revolução (CONRAD, 2007:7).

E o esqueci por vinte e seis ou vinte e sete anos, quando topei precisamente com ele num ensebado volume comprado à porta de uma loja de livros usados. Era a biografia de um marujo americano escrita por ele próprio com a ajuda de um jornalista. No curso de suas andanças, o dito marujo trabalhara durante alguns meses a bordo de uma escuna cujo capitão e proprietário era o mesmo ladrão de quem eu ouvira falar nos primórdios da minha juventude. Eu não tinha qualquer dúvida a respeito, pois dificilmente poderia ter havido duas façanhas de tipo tão peculiar na mesma parte do mundo e ambas ligadas a uma revolução sul-americana (CONRAD, 2007:7).

Para desenvolver essa trama, Conrad utiliza seu conhecimento sobre as terras americanas que obteve enquanto navegava por esses mares. Porém sua história se passa em um local fictício que tenta amalgamar as características daquelas terras que tanto impressionaram o aventureiro polonês. Por mais que isso fique esclarecido o romance pode ser lido, desde o prefácio, como uma narrativa histórico-ficcional. Os dados apresentados servem como base histórica, creditando veracidade a história à ser narrada. A prática de ambientar a trama do romance em uma suposta motivação real foi utilizada inúmeras vezes por escritores que diziam ter encontrado uma carta, um diário ou um manuscrito para dar sustentação verídica aos fatos contados. Conrad soma a esta estratégia a conscientização do leitor a respeito de suas viagens pelo mundo, decidido a convencê-lo da factualidade de seu relato. As descrições da República de Costaguana – e mais precisamente da cidade de Sulaco, onde se passa a maior parte da história – remontam à paisagem paradisíaca e turbulenta dos trópicos que tanta comoção causa no estrangeiro. A terra é descrita pelo narrador com abundância de adjetivos que exaltam a riqueza natural da América. Porém, o mesmo não se pode dizer da apresentação do povo oriundo destas terras e muito menos de seus avanços sociais. A população do lugar é composta (segundo a descrição do livro) por pessoas rudes que parecem obedecer muito mais a instintos animais de dominação do que a impulsos racionais de progresso. Tanto que a exploração dos recursos é feita por estrangeiros que centralizam em si o poder aquisitivo, social e cultural. A extração da prata, posteriormente roubada por Nostromo, é fruto do trabalho da família Gould, ingleses que se instalam nas terras americanas com o propósito de apoderar-se das riquezas que ali estão.

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As revoluções propostas pelos nativos da região são desajeitadas e violentas, levando a uma profusão de batalhas onde pouca coisa se define, resultando apenas em uma transferência superficial entre os que detêm o poder. Em determinado momento a narração rememora o que o personagem Martin Decoud falava de sua terra natal aos franceses, enquanto estudava na Europa: Imaginem uma atmosfera de ópera bouffe em que todos os assuntos cômicos de estadistas, bandoleiros e muitas outras figuras de fancaria, a roubar, intrigar e apunhalar farsescamente são encenados com mortal seriedade. É demais; corre sangue o tempo todo e os próprios atores acreditam estar influenciando o destino do universo. Evidentemente, o governo em geral, qualquer governo em qualquer parte, é coisa refinadamente cômica para um espírito perspicaz; entretanto, nós hispano- americanos ultrapassamos os limites (CONRAD, 2007:142).

Além do olhar estrangeiro do autor, ainda vemos a narração se centralizar em personagens que vieram de outras terras, ou, ao menos, possuem uma educação e um posicionamento análogo. Não só o protagonista Nostromo – oriundo da Itália – pertence à outra cultura, como também a família Gould (ingleses) e Decoud (de formação francesa). Os Gould, por exemplo, são os detentores do poder das minas de Sulaco e mesmo os que nasceram em solo americano receberam educação fora do país, nesse caso na Inglaterra. Podemos perceber isso na declaração de Charles Gould em consideração a sua família e mais especificamente a seu tio. O nome Gould foi sempre altamente respeitado em Sulaco. Meu tio Harry foi chefe do Estado durante algum tempo e deixou um nome ilustre entre as principais famílias. Com isso quero dizer as famílias crioulas puras, que não tomaram parte da miserável farsa do governo. O tio Harry não era nenhum aventureiro. Em Costaguana, nós, os Gould não somos aventureiros. Ele era da terra e a amava, mas continuou essencialmente inglês nas suas idéias (CONRAD, 2007:68).

A hierarquização de culturas européias alia-se também à supervalorização da norte- americana. O trecho a seguir exemplifica esse tipo de situação em relação a possíveis pretendentes de uma moça de alta classe de Sulaco. Era voz geral que a culta e orgulhosa Antonia, com a sua educação estrangeira e suas idéias estrangeiras, nunca iria se casar – a menos, evidententemente, que desposasse algum estrangeiro da Europa ou da América do Norte, agora que Sulaco parecia a pique de ser invadida pelo mundo todo (CONRAD, 2007:141).

A identidade de Decoud é um tanto conflituosa, pois apesar de ser um sujeito nascido na América, sua personalidade é moldada pela cultura francesa, de onde recebeu a educação. Nele o autor salienta a característica do “entre-lugar”, aquele que, devido à sua mobilidade, sente não mais pertencer ao seu lugar de origem e nem àquele para onde se desloca. Notamos essa sua inconstância em muitos momentos de sua trajetória, mas, no trecho a seguir essa ideia se torna mais clara: “Uma espécie de francês; um ímpio; um

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materialista – pronunciou cada termo vagarosamente, como se o pesasse numa cuidadosa análise. – Que não é filho de seu país nem de nenhum outro – continuou, pensativamente” (CONRAD, 2007:181). Decoud torna-se estrangeiro em qualquer lugar que esteja, seja na América ou na França, mas isso não o afasta da alta posição que ocupa na sociedade de Sulaco. Até o momento da revolução, o enredo mostra a sociedade estrangeira como a cúpula daquela cidade. Todo o progresso e a extração de riquezas são obras dos que não pertencem àquela terra, mas de quem possui posição dominadora embasada em um olhar estrangeiro. Mesmo Nostromo, que é de classe inferior, ainda assim possui destaque entre os moradores de Costaguana e também na narração. A corrupção do doutor Monygham, torturado pelo nativo Sotillo, é apresentada como uma condição que o diferencia dos demais europeus: Sotillo também se levantou e, pondo-se no caminho dele, examinou-o da cabeça aos pés. - Com que então os seus compatriotas não confiam muito no señor, doutor. Não gostam do señor, hein? Por que será, pergunto? O médico, erguendo a cabeça, respondeu com um olhar demorado, exânime, e as palavras: - Talvez porque vivi demasiado tempo em Costaguana. [...] Sotillo julgava que o doutor Monygham, tão diferente de todos os outros europeus, estava pronto a vender seus compatriotas e Charles Gould, seu patrão, por uma parte na prata de San Tomé. Sotillo não o desprezava por isso (CONRAD, 2007:313-314).

No enredo, Nostromo é utilizado enquanto massa de manobra dos europeus. A prata cai em suas mãos porque Charles Gould lhe pede que fuja com ela enquanto está instalada a rebelião. Porém, o italiano não consegue resistir e se apodera do conteúdo de sua embarcação. Imediatamente a sombra do tesouro começa a assombrá-lo, levando-o a um final trágico. O caráter de Gian’Battista, vulgo Nostromo, é duvidoso. A narração não deixa que o leitor acredite em sua boa índole, diferente dos personagens que nele acreditam cegamente. Sua fraqueza de caráter parece residir na ânsia de se apoderar das riquezas extraídas naquela terra tão promissora, mas, até então, inacessível a ele. Ao final, com a morte de Nostromo, a prata fica perdida, pois ninguém além dele sabia do paradeiro da fortuna. O texto, que começa com sua narrativa enfocada em um discurso que remonta ao imaginário da exploração dos recursos naturais nas terras americanas pelos povos europeus, termina com a transferência das riquezas de uma terra a outra, sempre dentro das fronteiras americanas. Contudo, essa história impulsionou outro escritor, dessa vez um colombiano, que, por ela influenciado decidiu escrever a sua versão. Juan Gabriel Vásquez, autor de uma biografia acerca da vida do escritor polonês Joseph Conrad, El hombre de ninguna parte,

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escreve o romance História secreta de Costaguana, para dar voz a outro prisma da história. O romance é narrado em primeira pessoa por José Altamirano, que pretende desde o início aclarar o texto que Conrad teria lhe roubado. Assim como o romance Nostromo, História secreta de Costaguana está escorado em dados que aproximam o leitor do que poderíamos chamar de mundo empírico, poderíamos até chamá-lo de metaficção historiográfica, ou simplesmente, de romance histórico. Seu pano de fundo é a construção do Canal do Panamá e em inúmeras vezes se aproxima e sustenta na biografia de Joseph Conrad. A primeira frase já anuncia um fato histórico datado: a morte de Conrad. E em seguida faz uma breve biografia do escritor, que será desenvolvida posteriormente. Melhor dizer de uma vez: o homem morreu. Não, não basta. Serei mais preciso: o Romancista (assim mesmo com maiúscula) morreu. Vocês já sabem de quem estou falando. Não é mesmo? Bom, vou tentar de novo: o Grande Romancista da língua inglesa morreu. O Grande Romancista de língua inglesa, polonês de nascimento e marinheiro antes de escritor, que passou de suicida fracassado a clássico vivo, de vulgar contrabandista de armas a Joia da Coroa Britânica, morreu. [...] Hoje, 7 de agosto de 1924, enquanto na minha distante Colômbia são celebrados os cento e cinco anos da batalha de Boyacá, aqui na Inglaterra, com pompa e cerimônia, lamenta-se o desaparecimento do Grande Romancista. Enquanto na Colômbia se comemora a vitória dos exércitos independentistas sobre as forças do Império Espanhol, aqui, neste solo deste outro Império, foi enterrado para sempre o homem que me roubou... (VÁSQUEZ, 2012:13).

O que irá mover o narrador a contar sua história é justamente esse suposto furto de Conrad, que só será desvendado nas últimas páginas. Após um bloqueio em sua escrita, o autor polonês teria roubado de Altamirano a própria história do colombiano. Após estar exilado em Londres, José conta sua vida na Colômbia para o escritor inglês que a usa – ficcionalizando-a – para compor seu romance Nostromo. Novamente, a história do carregador que roubou a prata das minas de San Tomé volta à tona, mas dessa vez para que seja feita uma revisão, deixando evidente a necessidade (pode-se dizer, desesperada do narrador) de que sua voz seja ouvida. Nesse plano são invertidas as posições antes tomadas no romance de Conrad, ou seja, o discurso agora assume outra perspectiva, a do nativo. É ele quem conduzirá a história e abrirá as portas da América aos que quiserem conhecê-la. A leitura, focalizando esse aspecto, só é válida com a leitura dos dois romances, pois é preciso a existência do primeiro para a compreensão do segundo. O romance, tal qual o de Conrad, é uma fabulação a respeito de um roubo: antes Nostromo representa o ladrão de uma embarcação cheia de prata, aqui o escrito europeu furta a história da vida de um cidadão comum hispano-americano e de sua terra. A história da Colômbia roubada e deturpada – segundo o narrador – precisava ser exprimida por alguém que a conhecesse mais intimamente um colombiano que viveu aqueles momentos

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históricos narrados, por exemplo. Nessa tentativa de recuperação do discurso, permanece a angústia sob o pensamento colonial. José Altamirano, colombiano, vivencia a construção do Canal do Panamá (com todos os adendos enriquecedores da trama) e a narra oralmente ao até então desconhecido escritor polonês. Só após as conseqüências desse encontro em Londres é que o discurso americano ganha voz, ou seja, é necessário que José Altamirano faça o movimento inverso ao dos conquistadores, lhes absorva a sua cultura, para que então possamos redigir nossa própria história. Foi necessário que o americano se apoderasse da cultura ocidental, eurocêntrica, para que pudesse se armar e formular o próprio discurso a respeito de si mesmo. Sobre isso, o teórico e crítico Silviano Santiago escreveu: Em contrapartida, fazendo o texto da cultura dominada retroagir sobre o texto da cultura dominante (inversão não tão gratuita da cronologia), consegue-se realmente que os textos da metrópole tenham também, de maneira concreta e pela primeira vez, uma avaliação real da sua universalidade. A universalidade só existe, para dizer a verdade, nesse processo de expansão em que respostas não-etnocêntricas são dadas aos valores da metrópole. Caso contrário, cairemos sempre nas apreciações tautológicas e colonizantes. Paradoxalmente, o texto descolonizado (frisemos) da cultura dominada acaba por ser o mais rico (não do ponto de vista de uma estreita economia interna da obra) por conter em si uma representação do texto dominante e uma resposta a esta representação no próprio nível da fabulação, resposta esta que passa a ser um padrão de aferição cultural da universalidade tão eficaz quanto os já conhecidos e catalogados” (SANTIAGO, 1982:23) [grifo do autor].

De acordo com o que salienta Santiago, o texto de Vásquez é amplamente pautado nesse discurso que o precede, pois evoca a todo o momento uma nova maneira de se conhecer aquela estrutura antes revelada. A começar pelas epígrafes (uma primeira, extensiva a todo o livro e, posteriormente, uma específica para cada parte da narrativa). A primeira é um trecho de uma carta escrita por Conrad no momento em que está escrevendo o romance Nostromo, quando admite estar falando sobre a história de um país com nome fictício – Costaguana – pertencente à América do Sul. As que antecedem os capítulos são retiradas do romance supracitado e tecem cada uma delas uma imagem pejorativa do “Novo Mundo”. A narração de Vásquez é enriquecida não somente pelo romance escrito por Conrad, mas também por documentos sobre a vida do autor. O colombiano relata em breve texto ao fim do romance que a vontade de redigir essa história-resposta, talvez tenha sido incentivada quando ele leu o livro pela primeira vez, ou até mesmo quando leu artigos sobre o escritor polonês, ou – o que lhe é mais provável – quando é convidado a escrever a biografia de Conrad. Mas também é possível (e esta é minha possibilidade preferida) que o primeiro pressentimento deste romance tenha tomado forma em 2003, enquanto eu escrevia, por encomenda de meu amigo Conrado Zuluaga, uma breve biografia de Joseph Conrad. A encomenda oportuna me obrigou

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a investigar, por rigor ou curiosidade, as cartas e os romances de Conrad, assim como os textos de Deas e de Gaviria e de muitos mais, e em algum momento pareceu-me inverossímil que este romance não tivesse sido escrito antes, o que sem dúvida é a melhor razão que alguém poderia ter para escrevê-lo (VÁSQUEZ, 2012:261).

Tal referência aos documentos estará muito clara na obra, e entre outras estratégias, estabelecerá as bases de uma história que se aproxima da realidade. Mas essa “realidade” é, evidentemente, manipulada pelo narrador, que nos mostra uma faceta muito tendenciosa do escritor acusado de roubá-lo. O discurso todo é uma resposta ao que foi dito em Nostromo. A narrativa em alguns momentos é agressiva e tenta fazer justiça, maculando a imagem daquele que anteriormente deturpou a América. O narrador Altamirano fala apenas dos maus momentos do escritor, por exemplo: sua tentativa de suicídio, sua falência reiterada por causa dos jogos, o bloqueio em sua escrita, o tratamento insensível à mulher doente, o cinismo que faz com que o trate bem quando quer ouvir sua história para depois o destratar, e, é claro, a apropriação da história de vida dele, José Altamirano. A parcialidade do texto é chave para uma construção narrativa que pede revanche para a sua história. José Altamirano parte da ideia de utilizar uma história particular para contar algo mais abrangente. O ponto de partida é a narração de sua trajetória de vida e, para isso, ele recorre às lembranças utilizando recursos que lembram a escrita de um diário (usando marcação temporal datada por meses entre as páginas 163 e 171) ou de um livro de memórias (na maior parte dele). Além de demonstrar parcialidade no discurso, há também a ideia de que aquele relato pode ser um pouco impreciso. Ele explicita isso quando diz logo no início: “O que se segue não é reprodução textual, mas a que minha memória conservou, contudo penso que se coaduna bastante bem com o espírito daquelas palavras” (VÁSQUEZ, 2012:27). Com essa forma memorialista o narrador obtém todo o poder sobre o que contar e quando contar, e isso não é escondido do leitor: Leitores: tenham paciência. Não queiram saber tudo logo no início, não procurem descobrir, não perguntem, que este narrador, como um bom pai de família, ira provendo o necessário à medida que o relato avance... Em outras palavras: deixem tudo comigo. Eu decidirei quando e como conto o que desejo contar, quando escondo, quando revelo, quando me perco nos meandros de minha memória pelo simples prazer de fazê-lo (VÁSQUEZ, 2012:14).

Desde o início, Altamirano rechaça a Grande História, como costuma se referir ao processo de historização de um povo e de uma cultura. Para ele (leia-se aqui como para todos os americanos), a História foi injusta com seus compatriotas, por isso a tentativa de reaver esse poder discursivo sobre sua própria vida. A narração do colombiano só começa com a morte de Conrad, como se o personagem estivesse esperando o momento certo para poder erigir seu discurso. O repúdio ao discurso totalizante da História pode ser visto em vários momentos:

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Vim para Londres, como veio tanta gente de tantos lugares, fugindo da história que me coube. Em outras palavras: vim para Londres porque a história de meu país havia me expulsado. E, ainda em outras palavras: vim para Londres porque aqui a história cessara havia tempos: já não acontecia nada nestas terras, tudo já fora reinventado e feito, já haviam tido todas as idéias, já haviam surgido todos os impérios, todas as guerras haviam sido lutadas, e eu estaria para sempre a salvo dos desastres que os Grande Momentos podem imprimir nas Vidas Pequenas. [...] Eu, que vim fugindo da Grande História, recuo agora um século inteiro para ir até o fundo da minha história pequena, e tentarei investigar nas raízes de minha desgraça. No decorrer daquela noite, a noite de nosso encontro, Conrad me ouviu contar essa história; e agora, queridos leitores – leitores que me julgarão, Leitores do Júri –, chegou a vez de vocês. Pois que o sucesso de meu relato se apóia nesse pressuposto: tudo o que Conrad ficou sabendo, vocês também haverão de saber (VÁSQUEZ, 2012:15).

Ao tomar as rédeas do texto, não se exime de deixar claro que só a partir de seu discurso ele, Altamirano, passa a existir. Como bem diz em determinado momento: “O fato é que comecei, por fim, a existir; começo a existir nestas páginas, e meu relato evoluirá na primeira pessoa. Eu sou aquele que conta. Eu sou aquele que sou. Eu. Eu. Eu.” (VÁSQUEZ, 2012:55). A reparação de sua trajetória só é possível porque o colombiano trouxe para si a responsabilidade de construir seu próprio discurso. Sua existência real só pode ser concebida através de sua narração. Em um adendo sobre o relato a respeito da política de seu país, ele descreve autoritário: (Sim, queridos historiadores escandalizados: as vidas alheias, mesmo as dos personagens mais destacados da política colombiana, também estão sujeitas à versão que eu tenha delas. E será a minha versão que contará neste relato; para os senhores, leitores, será a única. Exagero, distorço, minto e calunio descaradamente? Os senhores não têm como sabê-lo.) (VÁSQUEZ, 2012:81).

A escritora canadense Nancy Huston, em seu livro A espécie fabuladora, nos apresenta a tese de que a espécie humana é naturalmente fabuladora, ou seja, criamos o tempo todo, até mesmo recriamos os conteúdos que nos pareçam mais reais. Tudo é criação, até o próprio sujeito que está criando. Ela explica concisamente no trecho a seguir o que nos impulsiona a fabular sobre tudo: Apenas nós percebemos a nossa existência terrestre como uma trajetória dotada de sentido (significação e direção). Um arco que vai do nascimento à morte. Uma forma que se desdobra no tempo com um início, peripécias e um fim. Em outros termos: uma narrativa (HUSTON, 2010:18).

E é nessa fabulação que o narrador de Vásquez busca refúgio para poder mostrar as verdades que foram ocultadas por outros. É construindo o seu discurso, usando suas memórias, que poderá ser erguida outra história da América. Huston ainda nos diz que “Falar não quer dizer apenas nomear, dar conta do real; é também moldá-lo, interpretá-lo e inventá-lo” (HUSTON, 2010:20). Com a almejada autonomia, José Altamirano proclama a

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revisão da História partindo de um cosmos muito subjetivo, assumindo uma posição privilegiada de dono da palavra. O que ele conta passa a ser verdade de fato. A teórica nos lembra: a História é uma grande ficção, como todos os outros discursos, e essa ideia está inserida, intuitivamente, nas palavras do narrador. Altamirano ataca ainda veementemente esse tipo de narrativa, que teria sustentado durante anos uma falsa ideia de seu país. Ainda nesse sentido, a autora sintetiza o esforço que há na narrativa de Vásquez ao tentar recuperar algo que lhe foi tomado enquanto sujeito americano: a possibilidade de falar por sua própria voz. Huston diz a respeito disso: “As ficções voluntárias (histórias) de um povo, mais do que as suas ficções involuntárias (História), dão acesso à realidade desse povo” (HUSTON, 2010:20). Após muitos anos sob a repressão cultural européia, o “Novo Mundo” parece estar engatinhando na reescrita de sua História. Entretanto, muito já se fez em prol dessa mudança de perspectivas. O que o autor colombiano nos mostra com História secreta de Costaguana, entre outras coisas, é que estamos nos tornando autores de nossas próprias vidas. A mesma cultura que sufocou com sua visão unilateral também instrumentalizou para que novos pensamentos pudessem surgir. José Altamirano, um sujeito simples, imprime em sua trajetória de vida uma nova visão da América, diferente da que havia sido consagrada por Conrad. O jogo vira e quem antes era objeto de observação passa a ser agora o sujeito e o objeto da ação. Além disso, apesar do escritor colombiano utilizar a mesma estratégia do polonês, buscando uma caracterização verídica da narração, José Altamirano desacomoda o leitor conduzindo-o por uma narrativa ancorada na fabulação, ou melhor, na ficionalização dos fatos. Como o próprio protagonista ressalta, a vida é muito mais fantástica do que a própria ficção “porque a imaginação (sejamos sinceros) não dá conta do recado” (VÁSQUEZ, 2012:145). Por isso é preciso que recorramos às mais diversas vozes para podermos compreender o todo (ou o mais próximo do todo). A História pregressa não deve ser esquecida, mas repensada a partir de outro prisma, assim como fez Vásquez ao não apagar a história narrada por Conrad, mas enriquecê-la adicionando novas nuances interpretativas, discutindo e repensando a narrativa sobre a América.

Referências

BERND, Zilá (Org.). Dicionário de mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010.

CONRAD, Joseph. Nostromo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

HUSTON, Nancy. A espécie fabuladora. Porto Alegre: L&PM, 2010.

SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

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SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

VÁSQUEZ, Juan Gabriel. História secreta de Costaguana. Porto Alegre: L&PM, 2012.

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