UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM LABORATÓRIO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM JORNALISMO

ÉRICA ARAIUM NOGUEIRA

DIÁLOGOS COMESTÍVEIS O GOSTO DO SEMINÁRIO FRUTO 2018 – DIÁLOGOS DO ALIMENTO, A DIVULGAÇÃO CULTURAL E O SEMEAR DE UMA GASTRONOMIA BRASILEIRA E SUSTENTÁVEL

CAMPINAS, 2020

ÉRICA ARAIUM NOGUEIRA

DIÁLOGOS COMESTÍVEIS O GOSTO DO SEMINÁRIO FRUTO 2018 – DIÁLOGOS DO ALIMENTO, A DIVULGAÇÃO CULTURAL E O SEMEAR DE UMA GASTRONOMIA BRASILEIRA E SUSTENTÁVEL

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem e Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestre(a) em Divulgação Científica e Cultural, na área de Divulgação Científica e Cultural.

Orientador (a): Prof(a). Dr(a). Mónica Graciela Zoppi-Fontana

Este exemplar corresponde à versão final da Dissertação defendida pela aluna Érica Araium Nogueira e orientada pela Profa. Dra. Profª Draª Mónica Graciela Zoppi-Fontana

CAMPINAS, 2020

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem Leandro dos Santos Nascimento - CRB 8/8343

Nogueira, Érica Araium, 1979- N689d Diálogos comestíveis : o gosto do Seminário Fruto 2018 - Diálogos do Alimento, a divulgação cultural e o semear de uma gastronomia mais brasileira e sustentável / Érica Araium Nogueira. – Campinas, SP : [s.n.], 2020.

Orientador: Mónica Graciela Zoppi-Fontana. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

1. Gastronomia brasileira. 2. Gastronomia sustentável. 3. Jornalismo gastronômico. 4. Fruto. 5. Análise do discurso. I. Zoppi- Fontana, Mónica Graciela. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Edible dialogues : the taste of the "Seminar Fruto 2018 - Dialogues on food", cultural disclose and sow of a sustainable brazilian gastronomy Palavras-chave em inglês: Brazilian gastronomy Sustainable gastronomy Gastronomic journalism Fruit Discourse analisys Área de concentração: Divulgação Científica e Cultural Titulação: Mestra em Divulgação Científica e Cultural Banca examinadora: Mónica Graciela Zoppi-Fontana [Orientador] Cristiane Pereira Dias Tatiana Lunardelli Data de defesa: 17-12-2020 Programa de Pós-Graduação: Divulgação Científica e Cultural

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0001-9231-1380 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/1922161532348241

BANCA EXAMINADORA

Mónica Graciela Zoppi-Fontana

Cristiane Pereira Dias

Tatiana Lunardelli

IEL/UNICAMP 2020

Ata da defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria de Pós Graduação do IEL.

À sustentável gastronomia brasileira.

AGRADECIMENTOS

Carolina, Mirna, Manu, Lolô: o comer é a gente quem desenha e sempre será assim. Essa pesquisa tem tudo de nós. E, cá “entre(-)nós”, espero que nossas memórias, alimentadas a todo instante, mostrem isso adiante de nossos olhos e do mundo. Vocês me inspiram e são a melhor “banca” que posso ter: me desafiem! <3 Tatiana: gosto do “gosto” da gastronomia que sente, enxerga, descreve com absoluta generosidade, coerência e propriedade. Gosto de acreditar que há um caminho a seguir. Obrigada por tornar tudo tão possível. Mônica: na trama de sentidos dos acontecimentos, aprendi um bocado, pouco a pouco. A palavra muta e muda os sentidos. E eu me calo e ouço. Cris: do “A”nalógico ao “D”igital, aprendi contigo que o discurso precisa de ação. A resposta ao tempo está na ponta da língua e dos dedos, não é? Érika: todo diálogo comestível é você quem desenha! Alex, Felipe: o Fruto é um objeto paradoxal. Um nó carregado de sentidos sobre o alimento no percurso da gastronomia sustentável. Temos muitos #MotivosParaDialogar.

Rosalvo (in memoriam): o gosto! O gosto! Que gosto tem o gosto?

RESUMO

Esta pesquisa se debruça sobre a constituição, formulação e circulação dos discursos sobre a “gastronomia brasileira” e a “gastronomia sustentável” no período recorte de 1999 a 2019, época de importantes acontecimentos históricos e jornalísticos relacionados a ambas as expressões e em que, no Brasil, tem-se expressiva mediatização gastronômica. Os sentidos em evolução das palavras “alimento”, “cozinhar”, “comensalidade”, “agricultura”, “comida”, “cozinha”, “receita”, “culinária” e “gastronomia” servem como pontos iniciais de deriva à investigação histórica sobre o que se entende por “discurso gastronômico”. Como ponto de partida para a composição do corpus discursivo, observou-se a cobertura jornalística da primeira edição do “Seminário Fruto - Diálogos do Alimento”, evento idealizado pelos gastrônomos Alex Atala e Felipe Ribenboim; e pelo Instituto ATÁ e realizado em São Paulo/SP, entre os dias 26 e 27 de janeiro de 2018. Tomado, a priori, por “acontecimento histórico” e “acontecimento jornalístico”, revelou-se “acontecimento discursivo” por atualizar o “discurso ecogastronômico” que passara a circular, nos anos 1980, com o movimento Slow Food e tratar de um objeto paradoxal. Com auxílio do aparato teórico da Análise do Discurso (AD), buscou-se, da recolha de 24 enunciados em língua portuguesa de 81 textos jornalísticos produzidos pelos veículos nacionais e internacionais que procederam à cobertura do evento, compreender de que maneira a imprensa retrata os sentidos de “sustentabilidade” e “gastronomia” dadas as noções de “efeito-leitor” e “função-autor” (AD) que mobilizam os “repórteres” e “produtores de conteúdo” na escrita de seus textos. Entende-se que esses textos “circulam” e, boa parte deles, compôs a memória discursiva sobre o “Fruto” e sobre a “gastronomia sustentável”. A partir da análise, conjectura-se que, à medida em que esses textos que são atualizados no e pelo digital pelos leitores-comensais (consumidores de alimentos e de informação), pode-se (re)desenhar o “gosto”, as “paisagens comestíveis” e estabelecer-se um novo tipo de relação das práticas políticas discursivas sobre a gastronomia, muito afetada pelas noções de consumo (de “dados” e de “alimentos”). Ademais, recupera-se nesta dissertação os conceitos de campo e habitus formulados por Bourdieu; bem como as noções antropológicas sobre o comer, formuladas por Lévi-Strauss a partir da década de 1960, a fim de compreender os gestos de interpretação dos diferentes “atores da gastronomia” em relação aos sentidos de “alimento”, “comensalidade” e, sobretudo, “gosto”. Averígua-se assim a noção de “gastronomia” como “cultura”, tão cara à constituição da “culinária brasileira”. E se observa o sentido da gastronomia como “arte” (enquanto objeto estético) e a maneira como o jornalismo (cultural) brasileiro retrata as práticas gastronômicas no Brasil. Tem-se, assim, uma dissertação construída sobre camadas de saber interdisciplinares dos campos gastronômico e jornalístico que conduzem o leitor- comensal à deslizar entre “o diálogo” e “o comestível”, entre “o discurso” e “o consumo”, entre a “palavra” e o “sentido”. Objetiva-se, assim, ponderar sobre a responsabilidade de cozinheiros e jornalistas sobre os textos que produzem e põem a circular em redes de saber e de “inteligência coletiva”. Por agregar discussão tão multidisciplinar quanto a própria gastronomia, este trabalho de divulgação cultural e científica está dividido em três partes: 1) Gastronomia como Linguagem e Discurso, onde se discute como a noção de gastronomia se constitui; 2) Discurso Gastronômico, onde o conceito de “sustentabilidade” é introduzido e a memória discursiva sobre a “gastronomia brasileira” é revisitada; 3) Texto Jornalístico Gastronômico, onde faz-se a análise do objeto.

Palavras-chave: gastronomia brasileira, gastronomia sustentável, sustentabilidade, alimento, análise do discurso, jornalismo gastronômico, Fruto, Alex Atala

ABSTRACT

This research leans upon the conception, formulation and circulation of the discourses around “brazilian gastronomy” and a “sustainable gastronomy” during 1999 to 2019, periods of time of important happenings historical and journalistically within both expressions in which, in Brazil, there are expressive gastronomical “midiazations”. The evolution of the meanings of the words: “food”, “cooking”, “commensality”, “agriculture”, “kitchen”, “recipe”, “cuisine” and “gastronomy” are taken as starting points derived from historical investigation about what is understood from “gastronomical discourse”. As a starting point to compose the discourse corpus, observed the media coverage of the first edition of the “Seminar Fruto - Dialogues on Food”, idealized event by chefs Alex Atala and Felipe Ribenboim; and by the Institute ATÁ which took place in São Paulo/SP, on January 26th and 27th of 2018. Taking as priority, as “historical happenings” and “press happenings” revealing as “discourse happenings” later updating to “eco- gourmet discourse” that circulated in the 1980s as the Slow Food movement. With the aid on the theoretical approach of Discourse Analysis (DA), seeking the withdrawal of 24 enunciations in portugues language from 81 press publications produced by national and international broadcasters of the event, to comprehend the manner in which media depicts the meanings of “sustainability” and “gastronomy” given the concepts of “effect-reader” and “function-author” (DA) who mobilize the “reporters” and “content producers” in writing their texts. Understanding that these texts “circulate” and a portion of them, composed the discourse memory on “Fruto” and “sustainable gastronomy”. From the analyses, conjectures that, as these texts are updated in and by the digital diner-readers, allowing (re)drawing the “taste” as well as “edible landscapes” and establishing a new type of relationships on practices of discourses policies about gastronomy highly affected by consumptions concepts (of “data” and of “foods”). Furthermore, this dissertation recovers the concepts of “campus” and “habitus” formulated by Bourdieu; as well as anthropological notions of eating, formulated by Lévi-Status as of the 1960s, with the intent of comprehending the gestures of interpretation of the different “gastronomy actors” in relation to the senses of “foods”, “diners” and above all “taste”. Inquiring the idea of “gastronomy” as “culture”, to the expense of constituting the “”. And observes the senses of gastronomy as “art” (as estetical object) and the manner in which brazilian (cultural) journalism portrays gastronomical practices in Brazil. Bearing, therefore a dissertation constructed upon interdisciplinary layers of knowledge from the gastronomical and journalistic fields who conduct a diner-reader to shift between “the dialogue” and “the edible”and between the “word” and the “meaning”. Objectifying thus pondering about the cooks and journalists responsibility upon produced and published texts circulating in knowledgeable networks and of “collective intelligence”. Due to gathering such a multidisciplinary discussion within gastronomy itself, this scientific and cultural disclosure paper is divided in three parts: 1) Gastronomy as Speech and Discourse, which discusses how it consists in itself. 2) Gastronomical Discourse, where the “sustainability concept is introduced and the discursive memory about “brazilian gastronomy” is re-visited; 3) Gastronomic Journalistic Text, where the objective analysis is done.

Keywords: brazilian gastronomy, sustainable gastronomy, sustainability, food, discourse analisys, food writing, gastronomic journalism, Fruto, Alex Atala

LISTA DE FIGURAS E GRÁFICOS

Pág. Figura 1, Fatos relacionados ao “discurso da sustentabilidade” na gastronomia...... 37

Figura 2, Eixo sustentável...... 38

Figura 3, Eixo antropológico-cultural...... 38

Figura 4, Eixo ecogastronômico...... 38

Figura 5, “Diálogos Comestíveis” ...... 39

Figura 6, “Gastroperformance” de Simone Mattar no Seminário Fruto – Diálogos do Alimento de 2018. Foto: Érica Araium ...... 55

Figura 7, Felipe Ribenboim e Alex Atala no palco da Unibes Cultural (São Paulo/SP) durante a abertura do Fruto de 2018. Foto: Érica Araium...... 68

Figura 8, Alex Atala em palestra do Congresso do Mesa Tendências de 2015. Foto: Érica Araium...... 86

Figura 9, Representação do triângulo culinário de Lévi-Strauss (1964). Fonte: a autora...... 106

Figura 10, Atala (2008) se ampara no triângulo culinário de Lévi-Strauss (1964) para dizer da gastronomia como elo entre o homem e a natureza. Fonte: a autora...... 109

Figura 11, O alimento “bom, justo e limpo” é preconizado pelo “discurso ecogastronômico” do Movimento Slow Food. Fonte: a autora...... 125

Figura 12, O “tripé da sustentabilidade” decorre da noção de “desenvolvimento sustentável” (ONU, 1987): equilíbrio entre os pilares econômico, social e ambiental, conforme Elkington (1997)...... 129

Figura 13, Representação esquemática de interdiscurso (eixo A, vertical) x intradiscurso (eixo B, horizontal) no Fru.to 2018. À medida em que o evento se desenvolve em direção ao ponto mais vertical, os debates ocorrem e duram tempos distintos (x e y para os exemplos hipotéticos “a” e “b”). Fonte: a autora...... 145

Figura 14, Felipe Ribenboim e Alex Atala na abertura do Seminário Fruto – Diálogos do Alimento de 2018, considerada a edição “zero” do evento. Foto: Érica Araium...... 154

Figura 15, Expressões relacionadas ao discurso gastronômico, ao discurso sobre a ecogastronomia, ao interdiscurso sobre a gastronomia sustentável e ao interdiscurso do Fruto buscadas nos textos jornalísticos durante a primeira etapa de leitura. Fonte: a autora...... 165

Figura 16, Os textos jornalísticos veiculados antes do Fruto de 2018 “repetem” o release e, assim, reforçam os já-ditos da marca Fruto. São do tipo “apresentação do evento” e circularam em veículos diversos, entre eles Hypeness, Folha de S. Paulo, Bom Gourmet (Gazeta do Povo), CicloVivo, Projeto Draft, Conexão Planeta, Diálogos Comestíveis, ONU...... 167

Figura 17, Os textos jornalísticos veiculados durante a visita à Fazenda Sta. Julieta Bio “reforçam” o release do Fruto e os já-ditos da marca Fruto. São do tipo “apresentação do evento”, guardam o tom de “coluna social” e circularam em blogs...... 167

Figura 18, Os textos jornalísticos veiculados durante o evento “reforçam” o release do Fruto e os já-ditos da marca Fruto. Uns são do tipo “apresentação do evento”, outros trazem recortes de cobertura jornalística mais precisos, como o site Organics News Brasil, onde a repórter diz haver aprendido que “sustentabilidade e mudança climática não são uma bobagem”; e Rádio CBN, que trouxe áudio de entrevista feita por telefone com o idealizador Felipe Ribenboim em que a repórter diz, em resposta ao fato de o evento ser online: - “Ah, eu tô achando que a pessoa pode ir até aí comer uma coisinha”...... 168

Figura 19, Os textos jornalísticos desta fase de publicações são os que, segundo a “audiência” apontada no clipping, mais circularam nacional e internacionalmente. Houve interesse por materiais (foto e textos) de agências internacionais como a AFP (Agência France Press). Somente no site UOL (Universo On Line) houve 14.270.003 de views da reportagem e, no site Yahoo, houve mais de 7.926.315 de views do mesmo “texto”. A reportagem da AFP foi assinada pela correspondente Carola Solé...... 168

Figura 20, Carlo Petrini, fundador do Movimento Slow Food, em palestra no Seminário Fruto – Diálogos do Alimento de 2018. Foto: Érica Araium...... 171

Figura 21, A chef e nutricionista Bela Gil em palestra no Fruto de 2018. Foto: Érica Araium...... 174

Figura 22, Simone Jones, da Seafood Watch, ONG do Aquário de Monterey Bay (Califórnia, Estados Unidos) no Fruto de 2018 (Diálogos Comestíveis, 2018): “O pescador embrulhava no jornal as escolhas de minha mãe”. Foto: Érica Araium...... 178

Figura 23, A neurocientista Suzana Herculano-Houzel endossa o “cozinhar” como determinante à evolução da espécie humana: exemplo de discurso científico no Fruto de 2018. Foto: Érica Araium...... 181

SUMÁRIO

Amuse-bouche (ou aperitivo sobre os por quês) (pré-textual) ...... 12 Mise en place (cada conteúdo em seu lugar) (pré-textual) ...... 14 1 Menu du jour (introdução: o há para “comer”?) ...... 27 1.1 Sobre o objeto lido no digital ...... 31 1.2 Como ler o cardápio? ...... 33 1.3 Sobre os eixos dos “diálogos comestíveis” ...... 38 1.4 Por que “ler” este arquivo “hoje”? ...... 45 1.5 Condições de produção desta pesquisa ...... 47 2 Parte I - Gastronomia como linguagem e discurso ...... 51 2.1 Que gosto tem “o gosto”? ...... 51 2.1.2 O gosto (gastro) midiático ...... 56 2.1.3 O gosto da gastronomia ...... 58 2.1.4 O gosto de cultura ...... 60 2.1.5 O gosto da criatividade ...... 63 2.1.6 O gosto em tempos líquidos ...... 66 2.1.7 Condições para o gosto do Fruto ...... 68 2.1.8 O design do gosto do Fruto ...... 70 2.2 Come-se cultura...... 78 2.2.1 #EuComoCultura ...... 86 2.2.2 No jornalismo, gastronomia é cultura ...... 89 2.2.3 Quando “nasceram” os jornalistas gastronômicos? ...... 93 2.2.4 Efeitos metafóricos da representação da cultura alimentar ...... 98 3 Parte II - Discurso gastronômico ...... 99 3.1 Gastronomia à brasileira ...... 99 3.1.1 Um mapa a partir dos gostos do Brasil ...... 101 3.1.2 Do cru ao cozido, da natureza à cultura e à “nova gastronomia brasileira”...... 107 3.1.3 Gastronomia brasileira? ...... 109 3.2 O gosto da sustentabilidade ...... 113 3.2.1 Os enunciados do “desenvolvimento sustentável” ...... 121 3.3 As condições de produção do jornalista “produtor de conteúdo” ...... 139 4 Parte III - O texto jornalístico gastronômico ...... 142 4.1 O gosto do Fruto (segundo o Fruto) ...... 143 4.2 A narrativa transmídia do Fruto ...... 148 4.3 A promessa de gosto do Fruto a partir do release ...... 155 4.3.1 A análise da constituição do discurso da marca Fruto ...... 157 4.4 O texto jornalístico sobre o Fruto ...... 164 5 Futuros imaginários 1 (considerações finais) ...... 188 Futuros imaginários 2 (apêndice) ...... 195 Referências bibliográficas ...... 199 12

AMUSE-BOUCHE (ou aperitivo sobre os por quês)

Eis um texto pers.cru.ta.dei.ro.

Nunca havia cogitado escrever sobre o alimentar. Embora já escrevesse sobre a gastronomia há uma década (a contagem “oficial” começa em 2009). Essa Érica Araium que não se sabia “pesquisadora” – até 2015, ano natal de Diálogos Comestíveis1. Ela pôs-se a escarafunchar as escaras do jornalismo - abalado pelas condições de produção discursivas (PÊCHEUX, 1988) da década de 2010, em todo o mundo, mas especialmente no Brasil. Especialmente no final daquela década em que se torna cada vez mais ilusório identificar “a” fonte do sentido de uma sequência de enunciados.

Essa Érica Araium que não se sabia “pesquisadora” pôs-se a revolver as feridas dos escritos multitelados a fim de apaixonar-se, mais uma vez, pelo ofício. E pela divulgação cultural e científica. A fim de experimentar o gosto da palavra nesses novos anos 2020 em que insosso e vazio predominam – os sacos pararam em pé de tanto ficarem cheios. Essa Érica Araium que não se sabia pesquisadora até 2015 está a fim de degustar os sentidos. Comecemos pelas baratas, ícones da insetaria. Repugnantes para uns. Até que o gosto se assente.

Pode-se traçar um paralelo (distópico) entre a G.H. de Clarice e os ativistas gastronômicos que, otimistas, se multiplicam e tanto relutam em ressignificar as coisas... Em metamorfosear as possibilidades? Uns, aqueles até muito estranhos no ninho 4.0 do paradigmático comer automatizado, industrial – em fase ainda pueril de conectividade, uso de inteligência artificial, de data science, de big data, de Internet of Things - IoT, de aprendizado de máquina (machine learning) - podem até se sentir como o de Kafka. Serão mortos por “inofensivas” maçãs? Ou agirão como performáticos “artistas da fome”2 – imbuídos de extrema seletividade alimentar, idealistas, perante a audiência?

Ora, o mundo desumanizou-se? Ou já não somos estritamente humanos e, por isso, há licença algorítmica para consumir impulsionada e coletivamente? Híbridos? Será que tipográficos (ainda) e atentos ao potencial do “impresso” (MCLUHAN, 1972), das palavras tão estrelares que orbitam a Galáxia de Gutenberg? Ciborgues (HARAWAY, 2000)?

1 Projeto comunicacional voltado à gastronomia sustentável, dedicado à produção jornalística de conteúdo e à gestão de branding conectada à efetividade da narrativa afetuosa/ storytelling.

2 Referência ao conto homônimo de Franz Kafka, contido no livro “Essencial”, que ganhou tradução Modesto Carone em 2011 (São Paulo: Companhia das Letras).

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Aqui, caberia um ensaio. Pois, como nos lembra Nicola Perullo (2013), o ensaio (em italiano, saggio) é uma tentativa, uma exploração, uma experiência. Um degustar! E qual seria a solução Eureka! para inventar-se outra paixão entomofágica nesta binária busca antropofágica do comer? Margeado por dietas, por jejuns intermitentes, por conteúdos líquidos e líquidas soluções afáveis socialmente...

No atravessamento de cultura e natureza, do cru ao cozido, tem-se, no gosto, a experiência. Nela cabem o mero prazer estético, a arte, a indiferença. O comer com os olhos da alta gastronomia e do bom gosto. O comer trivial, temperado de afeto. Escolhas.

O paladar - aqui inicialmente entendido como “habilidade endocorpórea, que interage com outros atores participantes em múltiplos contextos nos “cenários de sentido” (PERULLO, 2013). O gosto depende mais da relação com o alimento e, portanto, da “educação do gosto”, conforme Bourdieu. A estética do paladar é, portanto, relativa e relacional. E o que é “alimento”, afinal?

Bem, na ordem do dia, evita-se o que é ultra processado, os alimentos carregados de excesso de defensivos agrícolas (que tanto contaminam a água, em profundeza). Fala-se sobre a fome como algo ultrajante e decreta-se #nãodesperdício. O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) número 2, aquele que decreta fome zero até 2030, parece intangível segundo o relatório 2018 da Organização as Nações Unidas (ONU) “O estado da segurança alimentar e da nutrição no mundo”: incomoda saber das 820 milhões de pessoas com acesso insuficiente a alimentos.

Mas teme-se, como G.H. temia, desvendar-se as entranhas dos ditos alimentos do futuro, ora insectum, ora fungus, ora plant, ora pill. E de onde eles virão? Quem serão os designers do alimento e do conteúdo?

Eis um texto pers.cru.ta.dei.ro. Para quem gosta de desenhar e semear amanhãs.

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MISE EN PLACE (cada conteúdo em seu lugar)

É preciso rastrear3 o comestível. Ponderar sobre a origem, o caminho e o fim dos alimentos. A segunda frase, aqui parafraseada por já haver sido incorporada a ene discursos poliglotas, inclusive a este, permeia um sem fim de noções.

A primeira, porção mais original, situa o leitor de que o Dossiê Comida4 da edição 198 da ComCiência (Unicamp, 2018), marchado a muitas mãos numa cozinha imaginária, barulhenta e linotipada à medida; e servido ainda fresco, deve ser devorado da capitular ao ponto final e revisitado como repeteco daquela saideira “das boas”.

Desde 1999,5 nunca se falou tanto em gastronomia no Brasil. Não com a propriedade multidisciplinar que merece este prato cheio do jornalismo cultural6. Pela força do hábito, pode-se determinar a organoléptica do amanhã.

Falar em gastronomia pressupõe legislar pelo estômago, tal postulara o pai da gastronomia Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826); cuja obra mais renomada, Fisiologia do Gosto (1825), que eleva a comida à categoria cultura, ecoa e conversa com teoria sobre o “gosto” de Pierre Bourdieu (1930-2002)7. Para esse último, “as diferentes classes sociais se distinguem menos pelo grau em que reconhecem a cultura legítima do que pelo grau em que elas a conhecem” (BOURDIEU, 1983, p. 94). Há, portanto, um sentido de luxo, de pertencimento à exclusividade, de sucesso e acesso privilegiado, de abastamento no ato de consumir algo “diferenciado” / “top” - duas expressões que já estão desgastadas já ao final de década de 2010 por serem muito like and share nas redes sociais. Mas, traduzem o mote.

O perigo consumista, que tem relação com a noção de estilo de vida, reside no fato de as escolhas sobre quase tudo que se pretende (ou pode) comprar, e a despeito de serem alimentadas pelo

3 “Segundo JURAN et al. (1974), a rastreabilidade deve fazer parte de um processo produtivo, a fim de se ter a habilidade de identificar o produto e suas origens”. Mais em: Acesso em: 22 abr. 2018.

4 Referência ao Dossiê Comida, publicado em maio de 2018 na revista eletrônica de jornalismo científico ComCiência (edição 198). Este texto, aliás, foi artigo originalmente publicado na Revista Eletrônica de Jornalismo Científico Com Ciência sob o título “Para não ficar raso de tanto too much, rastreie o comestível, semeie amanhãs” (Nogueira, 2018).

5 Em 1999, não custa lembrar, começou o boom gastronômico, ano de implementação do Curso Superior de Formação Específica em Gastronomia no formato sequencial na Universidade Anhembi Morumbi em São Paulo, por exemplo. Em 2000, o Senac passa a oferecer o curso de tecnologia em Gastronomia. Ainda assim, o número de cursos de Gastronomia no Brasil era inexpressivo.

6 Referência a “Gastronomia: prato do dia do jornalismo cultural”, dissertação de mestrado da pesquisadora Renata Maria do Amaral, que dá início a um mapeamento do jornalismo gastronômico, inserido no contexto do jornalismo cultural brasileiro contemporâneo. Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006. Disponível em: Acessado em: 22 fev. 2018.

7 Ver, ainda: BOURDIEU, Pierre, La distinction. Critique sociale du jugement. Paris: Minuit, 1979.

15 constante produzir e atualizar e disponibilizar de informações atualizadas (santa tecla F5) não são exatamente escolhas. Sobretudo no ambiente digital, onde a experiência do usuário dita os rumos, por exemplo, da construção de novos (e tão caros ao Google) micro momentos; ou estabelece relações causais entre segundos de atenção e conversão de vendas – para conteúdo, o mesmo se aplica.

Em troca de dados pessoais para a navegação em meia dúzia de sites ou em redes sociais; ou ao preencher formulários ou o que for; ou ao acessar às redes de Wi-Fi via check point, os esforços de marketing, branding e vendas, com um empurrãozinho da neuromarketing8, são geniais em fazer com que a terceirização do gosto ou a premeditação dele, no sentido do consumo, também ocorra. O consumidor é e será cada vez mais “levado a”. Momento para déjà vu para 1984 de George Orwell ou para o contemporâneo meme “isto é tão Black Mirror9”.

Esses e outros muitos exemplos já foram ilustrados, com maestria, por jornalistas brasileiros bem informados. A revista Época Negócios, na edição de abril de 2018, apresentou a reportagem especial “A próxima revolução: seu prato”, que ganhou a capa, com fotos embaladas pelas técnicas de design gastronômico e de food styling. Abarcou a discussão sobre uma gastronomia (mais) “sustentável” sem soar pedante. É sobre este tipo de divulgação científica e cultura pela qual dever- se-ia ter mais apreço, espera-se, sim.

Gosto, sim, se discute. Pois gostar, afinal, é apreciação, sentimento, costume, julgamento, ritual. Não deveria ser ação “pasteurizada”. Mas debatida de forma tão multi (e trans e inter) disciplinar quanto a própria gastronomia.

Se “consciente” ou coprodutor (PETRINI, 2009) em frente à gôndola on ou off-line a decisão de consumo tende a ser em prol do produto ou serviço que respeita a biodiversidade e o meio- ambiente, a diversidade de culturas, os saberes tradicionais, o comércio justo. A ética. Leva-se em conta o que haverá de legado para as próximas gerações o desenvolvimento sustentável. E o alimento, nesses casos, volta ao lugar central na cadeia produtiva para sustentar uma nova leva biodiversa e sistêmica.

8 Vale à pena ler o artigo “Neuromarketing: uma nova disciplina acadêmica?”, publicado em 2017 na Marketing & Tourism Review, disponível em: www.revistas.face.ufmg.br/index.php/mtr/article/download/4560/pdf

9 Black Mirror é uma série de televisão britânica criada por Charlie Brooker e que trata das relações homem-máquina/ com humor e realismo. Febre nos anos 2010, estreou em 2011 e ganhou notoriedade na plataforma de streaming Netflix.

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A indústria de alimentos sabe que precisa recobrar a confiança de seu público – havia mais de 7,7 bilhões de pessoas no mundo em junho de 2019, segundo a ONU, que previa crescimento de 0,4% no final do século XXI. Estimava-se que a população mundial chegaria a 9,7 bilhões em 2050.

“Na pesquisa Barômetro de Confiança 2018, feita globalmente pela agência de comunicação Edelman, o setor de alimentos e bebidas sofreu a maior queda de confiança entre 11 setores avaliados (empatou apenas com o de bens de consumo). A parcela de entrevistados que diz(ia) confiar no setor caiu de 73% em 2017 para 62% em 2018”, destacava a já citada reportagem da revista Época Negócios. 2017, para quem tem memória curta, foi o ano da Operação Carne Fraca no Brasil.

E esse batalhão de pessoas “diz” ter “fome” de quê? Qual o papel do chef de cozinha na promoção (melhor seria dizer divulgação cultural e científica) de uma alimentação mais sustentável? E do jornalista? Esses últimos, sobretudo os especializados em gastronomia, sabem que cabe hoje, ainda, o aforismo savariano10 aplicado dos “gastrônomos não por fisiologia, mas por condição”: - “Diz-me o que comes e dir-te-ei quem és”.

Os foodies11, por exemplo, são os novos epicuristas que não perdem uma novidade ou gadget culinário à mesa. Muito embora não sejam talhados, tecnicamente, para serem críticos formais e se permitam ser tratados por digital influencers, não raro, são casos dessa fatia gourmand contemporânea.

Destas inquietações iniciais, e à luz da análise do discurso francesa (AD) engendrada no final dos anos 1960, por Michel Pêcheux, revista pelo autor nos anos seguintes e reverberada no Brasil a partir do final dos anos 1970 por Eni Orlandi e outros autores busca-se compreender, de forma ampla num primeiro momento desta pesquisa, como se dá a constituição dos discursos gastronômico e jornalístico gastronômico; e a tomada de posição dos sujeitos do discurso – daqueles que operam os enunciados sobre a gastronomia no contexto histórico brasileiro, especialmente a partir do início dos anos 2000, quando passou-se a dizer muito sobre os chefs e sobre os veículos dedicados à pauta gastronômica, sobre “a gastronomia”.

Semântica discursiva e disciplina de entremeio, a AD investiga a “determinação histórica dos processos de significação” (ORLANDI, 1996, p. 22). Busca compreender o discurso em seu

10 Referência ao gastrônomo Jean Anthelme Brillat-Savarin, autor de Fisiologia do Gosto (1825).

11 A expressão apareceu, pela primeira vez, em The Official Foodie Handbook (1984), miniguia gastronômico de Ann Barr e Paul Levy publicado no Reino Unido. Significa “filhos do boom do consumo”.

17 funcionamento. A fundamentação teórica acerca da AD será dada ao longo do texto e, paulatinamente, apresentada desde a introdução. Adianta-se aqui, contudo, ponderação acerca da distinção entre indivíduo, sujeito e sujeito discursivo conforme a AD: ao conceder uma entrevista a um jornalista, por exemplo, ou ao enunciar do proscênio de um evento ou ao vocalizar as regras de uma preparação culinária a pares, tem-se o que se entende por “sujeito do discurso gastronômico” (seja ele cozinheiro profissional, gastrônomo ou cozinheiro autodidata etc.) determinado pela ideologia. Conforme Pêcheux, o sujeito nunca diz algo sem estar afetado por ela. Então ocupa uma certa posição que traduz certo lugar social de onde ele pode ou não dizer certas coisas. Algo que se entende por posição-sujeito (PS) (Pêcheux, 1995). E que, entre o silenciar e o dizer, ele atravessa uma gama de sentidos, de forma consciente ou inconsciente, quando transita entre posições-sujeito distintas e se inscreve em formações discursivas (FD)12 igualmente distintas para dizer.

Assim, a AD nos lembra do efeito por vezes “egóico” de dizer e de que, num mesmo texto (e aqui entender-se-á o texto em seu sentido mais amplo, seja ele escrito, fotográfico, videográfico, vocal, comestível, escultural, performático-teatral etc.), pode-se ocupar muitas posições – isso tem relação com as FD’s que são afetadas pela ideologia, pela historicidade, pelo que já foi dito, pela cultura, pelos comportamentos. Não raro, “tem-se o discurso de um outro, colocado em cena pelo sujeito […] mas também e sobretudo a insistência de um “além” interdiscursivo que vem, aquém de todo autocontrole funcional do ‘ego-eu'” (PÊCHEUX, 1995, p. 152). Isto é, os indivíduos são “‘interpelados’ em sujeitos falantes (em sujeitos de seu discurso) por formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes. (PÊCHEUX, 1995, p. 214[1975]).

Enfim. Cozinheiros ou consumidores? Produtores de conteúdo ou jornalistas? Vai-se além ao ponderar sobre a posição dos sujeitos, portanto, dependendo-se do que se chama genericamente de “contexto” - o discurso não se restringe à língua enquanto estrutura. Produz sentido a partir combinação entre língua, sujeito e história.

12 A noção de formação discursiva (FD) é central ao funcionamento da engrenagem de análise discursiva tanto de Michel Foucault como de Michel Pêcheux. Contudo, as abordagens são relativamente diferentes para cada um desses autores. De modo genérico, pode-se dizer que, para Foulcault, o sujeito carrega consigo uma FD e se vale de certas estratégias para dizer, o que permite certos contraditórios, certas incoerências ao dizer. Para Pechêux (1977), as formações ideológicas, que têm relação com as posições de classes, influenciam o sujeito e, por isso, as palavras mudam de sentido de uma FD a outra. Mais em: SIQUEIRA, Vinicius. Formação discursiva em Foucault e Pêcheux: diferenças e semelhanças. (Colunas Tortas, 2020). Disponível em < https://colunastortas.com.br/formacao-discursiva-em-foucault-e-pecheux-diferencas-e-semelhancas/#2> Acesso em 15 jul. 2020.

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Nessa década 2010-2020, de certa forma, todos são foodies e, portanto, “filhos de novas relações de consumo”, especialmente de alimentos. Basta uma câmera na mão, um prato bem montado à frente, certa capacidade de apuração e ótimas hashtags rastreáveis para narrar-se a última novidade “gastronômica”. O conteúdo será dissipado em questão de bytes por segundo. Se de boa qualidade ou não, saber-se-á quando esse texto circular.

É ainda pertinente que se diga que a gastronomia, com tantos enunciados compartilhados numa rede sobre o comestível que não cessa, se bem “lida”, pode trazer à luz a relevância da informação sobre o “alimento” e nortear a tomada de decisões que sustém. Esse é o ponto: a dimensão do aprofundamento em prol da relevância.

Note-se a sequência de derivas semânticas (uma palavra leva a outra); de paráfrases e derivas (cf: Orlandi, 2005b, p. 78) e de metáforas, no sentido de Pêcheux, (1997 [1975]) acolhidas neste trecho anterior, de forma (quase) inconsciente. Elas também importam à fundamentação teórica, muito amparada pela noção de efeito metafórico da AD de Pêcheux. É ao autor que recorre Orlandi (2001) para dizer do sentido, que só existe se houver metáfora, tão cara ao analista e, portanto, a esta pesquisa:

[...] o sentido é sempre uma palavra, uma expressão ou uma proposição por uma outra palavra, uma outra expressão ou proposição; e é por esse relacionamento, essa superposição, essa transferência (metaphora), que elementos significantes passam a se confrontar, de modo que se revestem de um sentido. Ainda segundo este autor, o sentido existe exclusivamente nas relações de metáfora (realizadas em efeitos de substituição, paráfrases, formação de sinônimos) das quais uma formação discursiva vem a ser historicamente o lugar mais ou menos provisório. (ORLANDI, 2001: 44, grifo nosso)

Para Orlandi (2005a, p. 59) sujeito, discurso e sentido estão conectados a “uma memória que se estrutura pelo esquecimento”, cuja base está situada no interdiscurso – que é onde o discurso se formula. O sentido se constitui na PS, e para isso, o sujeito se inscreve em certa posição ao “ler” o texto. Didaticamente, o “isso faz sentido” (“entendi o que quis dizer”, no popular) é próprio do processo discursivo.

Pois o que se observa ao longo da constituição do discurso gastronômico é que, desde quando a “gastronomia” se consolida na corte francesa e passa a circular “como ferramenta que permite fazer funcionar um código e quase já uma verdadeira linguagem” (POULAIN, 2004, p. 226), ou seja, desde o século XVII, a gastronomia “fala” sobre e com outros campos (BOURDIEU, 1996); sobre o que se consome (sobre o habitus, conforme Bourdieu) em termos de informação e de alimento. Assim, a gastronomia dialoga sobre os sentidos do que é comestível. Com o jornalismo e com a divulgação científica, sobremaneira ao “gastronomar”.

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Ora, gastronomar, neologismo desta jornalista, pressupõe flertar com a alta cozinha (haute cuisine) e com o empratado mais simples e simbólico de qualquer resistência ao habitus - tão umbigar, individual (e tão social ao mesmo tempo). É subverter a lógica do comer ao tornar- se parte do que é comestível. É, portanto, antropogarfar: deglutir os sentidos que há para além do gosto(so) e, assim, decidir pelo que fará bem (e não, necessariamente, será meramente prazeroso) para si (ligado à noção da saudabilidade), para as gerações que virão e para o meio-ambiente.

Sabe-se: é possível comer de tudo um pouco contanto que não se deixe nenhum terço à margem (da estrada ou do prato)13, frugalmente. E que sobre um pouco de conteúdo bom, limpo e justo (PETRINI, 2009), em fatias ou em discursos, para a próxima geração.

Ao escrever um texto jornalístico, o que falar sobre o comer e o que silenciar? A quem ouvir e a quem dar voz? O que revisitar-se-á, anos adiante, quando a tag, cantada ou digitada no buscador (isso se ainda houver um) for pela expressão “gastronomia brasileira sustentável”? Estes “diálogos comestíveis” pretendem, também de forma geral, compreender a relação entre o consumo de alimentos e o consumo de informação, especialmente, no contexto histórico-social brasileiro. Daí a importância de revisitar-se uma sequência de fatos históricos que geraram interesse jornalístico ao longo do tempo, marcadamente entre 2000 e 2020 e podem servir materialização dos discursos sobre a gastronomia.

Vale lembrar que a restauração e os chefs brasileiros passaram a conjugar ingredientes em muitas línguas graças à influência do tecnicismo e savoir-faire de cozinheiros franceses aqui radicados desde o início dos anos 1980 (caso de Claude Troisgros e Laurent Suaudeau); e da abertura às importações no Brasil (na curta era Collor, no início dos anos 1990). Se os planos Cruzado (1986), Collor (1990) e Real (1994) tornaram, por assim dizer, incipientemente, possíveis a “pasteurização” e a “globalização” do gosto, os cozinheiros europeus (sobretudo os franceses) abriram caminho à obstinação pela sustentável localidade, pelo ativismo From Farm To Table (do campo à mesa, em tradução livre, conceito que remonta aos anos 1960-1970 em prol de uma cadeia de consumo mais curta); pelo locavorismo - conceito engendrado, também no início dos anos 1990, nos Estados Unidos, com reflexos na Europa; e ressonado, nos anos 2010, sob o mesmo apelo pela sazonalidade, pelo frescor, pela relação estreita entre cozinheiro e camponês, pela promoção à

13 A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) no Brasil alertou, em novembro de 2017 que, anualmente, 1,3 bilhão de toneladas de comida é desperdiçada ou se perde ao longo das cadeias produtivas de alimentos. Volume representa 30% de toda a comida produzida por ano no planeta.

20 agricultura urbana e pelos sistemas agroalimentares sustentáveis etc., com se verá, detalhadamente, adiante.

A “gastronomia sustentável” (2017, ONU), contudo, singra um mar bravio de possibilidades e interpretações, conforme o ditar de pegadas - ora digitais, ora ecológicas -, nas ondas da convergência digital avolumadas pelas drásticas e mudanças climáticas – o aquecimento global e toda a problemática decorrente é indubitável, segundo especialistas como pesquisador do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura David Lapola (Amazon Face); e pela já citada avalanche de dados – vive-se em BIG DATA14, em meio a fake news15 e Fear of Missing Out (F.O.M.O.), o medo de perder alguma coisa. Tudo em dimensão omni-channel16.

Ela, “ecogastronômica” na origem (portanto memória discursiva da “gastronomia sustentável”), faz jus ao cerne do vibrante movimento internacional Slow Food, encampado pelo jornalista italiano Carlo Petrini, desde 1986 (formalmente, desde 1989). E é endossado por uma plêiade de especialistas multiversos, para sorte das próximas gerações. Nela, o mais (in)dócil dos expoentes e contemporâneos coristas seja, talvez, o jornalista estadunidense Michael Pollan, para quem “cozinhar” é uma “história natural de transformação” (referência ao livro homônimo, de 2014), com quaisquer que sejam os elementos preponderantes (ar, terra, água, fogo) evocados para a ação mais sapiens de todas. Aquele homo com 86 bilhões de neurônios contados e recontados, desde 2009, pela neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel, felizmente, tem ido de sapiens a consumericus17 (avanço do “consumidor consciente” ou “responsável”).

Entre os cozinheiros, Dan Barber é muito atento aos rumos da alimentação no futuro; chef- agricultor-ativista à frente do restaurante Blue Hill, em Nova York, e do Blue Hill at Stone Barns,

14 Dados com maior variedade que chegam em volumes crescentes e com velocidade cada vez maior (3V’s). Grande volume de dados heterogêneos e descentralizados. (Erl, Khattak, Buhler, 2016). O termo foi citado pela primeira vez em 1997, em artigo da NASA, disponível em: < https://www.nas.nasa.gov/assets/pdf/techreports/1997/nas-97-010.pdf > Acessado em 05 nov. 2020.

15 “Notícias falsas”, foi um termo amplamente usado por Donald Trump durante a campanha à para a presidência dos Estados Unidos da América e se popularizou a partir de 2017, quando entrou para o Dicionário Oxford, que anualmente elege uma palavra de maior destaque na língua inglesa.

16 Didaticamente, conforme a agência de marketing Rock Content, pode-se definir omni-channel como “estratégia de uso simultâneo e interligado de diferentes canais de comunicação, com o objetivo de estreitar a relação entre online e offline, aprimorando, assim, a experiência do cliente. Essa tendência do varejo permite a convergência do virtual e do físico”. Conteúdo disponível em: Acesso em 16 out 2020.

17 Termo do filósofo Gilles Lipovetsky esmiuçado em “A Felicidade Paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo” (2006). Na fase III do consumo, há uma maior preocupação com a ética e a sustentabilidade. Nasce a figura do “neoconsumidor”. Vale lembrar que a expressão “sociedade de consumo” nasceu nos anos 1920 e popularizou-se entre 1950 e 1960.

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é autor de O Terceiro Prato (2014). Ele sabe que a cozinha é o ambiente mais Lavoisier de todos. Nada pode se perder, sobretudo quando o desperdício marca “fome” na pele e nos ossos.

Para se ter uma ideia, “se a tendência atual continuar, o número de pessoas com fome chegará a 840 milhões em 2030”, situava o mapa global da fome crônica elaborado pelo Programa Mundial de Alimentos (PMA) da ONU, divulgado em agosto de 2020. Em outubro desse mesmo ano, o programa criado em 1961 como um braço ONU para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e que atendia a 97 milhões de pessoas venceu o Nobel da Paz. Depreende-se que as pautas “fome” e “não-desperdício devem guiar os discursos e as ações de cozinheiros em todo o mundo por ao menos mais uma década. Bem como o cozinhar e o alimentar.

Pois, entre outros cozinheiros conscientes, Barber, como bom ativista, tem noção, ainda, de que não há mais pescados naturalmente disponíveis para a alimentação humana. Mesmo com a Revolução Azul. E ventila isso desde 2010, em eventos como o famoso TED Talks18. Busca alternativas. Ao jornal Folha de S. Paulo, em 2015, defendeu: - “Qualquer coisa que encoraje as pessoas a cozinhar é um passo adiante. Mas não acho que seja possível ensinar uma pessoa a verdadeiramente cozinhar sem ensiná-la sobre a proveniência dos ingredientes, a história do que está no prato. Precisamos de mais gente (chefs, escritores, pensadores) para dizer esse tipo de história sobre nossa comida”.

Ele e outros chefs estrelados19 brilham mais por educarem o gosto de seus comensais que pela atitude em frente às câmeras de TV ou pelos prêmios que receberam. A constelação de, apelide- se, “ativistas da gastronomia sustentável” trajados com dólmãs cresce à medida em que novos chefs surgem ao redor de suas referências supernovas, para usar uma metáfora da física. Inclui tudo que cintila ao redor de figuras como Massimo Bottura (Itália), René Redzepi (Dinamarca), Virgílio Martínez (Peru), Enrique Olvera (México), Dominique Crenn (Estados Unidos), Ferran Adrià (Espanha), Alex Atala (Brasil). Este último nome tem especial conexão com esta pesquisa e seu objeto.

Em janeiro de 2018, o cozinheiro brasileiro promoveu, em parceria com o produtor cultural Felipe Ribenboim e o Instituto Atá a primeira edição do Seminário Fruto – Diálogos do Alimento (tratado

18 TED “is a nonprofit devoted to spreading ideas, usually in the form of short, powerful talks (18 minutes or less). TED began in 1984 as a conference where Technology, Entertainment and Design converged, and today covers almost all topics — from science to business to global issues — in more than 100 languages. Meanwhile, independently run TEDx events help share ideas in communities around the world”.

19 Referência ao Guia Michelin, prêmio que aponta os melhores chefs e restaurantes do mundo desde 1900. Desde 1933, o Michelin Rouge premia os melhores cozinheiros do mundo.

22 aqui como Fruto), evento restrito a 300 convidados e sediado na Unibes Cultural em São Paulo/SP, com transmissão “ao-vivo”, pela internet, pelo site http://fru.to. Propósito: dialogar sobre o alimento com 31 especialistas de múltiplas áreas sob a intersecção de três eixos: “ambiental, social e cultural”, espécie de releitura ou ressignificação dos pilares da sustentabilidade (ELKINGTON, 1994) e do Slow Food (Petrini, 2009).

Conjectura-se, nesta dissertação, que a compreensão acerca do que se entende por “gastronomia sustentável” especialmente, no Brasil, pode avançar para além daquela que circundara a “ecogastronomia” (PETRINI, 2009) e o “desenvolvimento sustentável” (1987, ONU), ambos conceitos gestados a partir dos anos 1960, como se verá nos capítulos adiante. Tem-se nessa sequência de palavras negritadas e aspadas neste parágrafo um efeito metafórico, a partir da paráfrase e da deriva, sobre a noção de “sustentabilidade” (na “gastronomia”, quiçá na “gastronomia brasileira”) que provoca o deslizamento dos sentidos sobre a complexa noção de “desenvolvimento sustentável”, que atravessa as noções de desenvolvimento econômico e cultural. Conforme Orlandi (2007):

“Como esse efeito (o efeito metafórico) é característico das línguas naturais, por oposição aos códigos e às línguas artificiais, podemos considerar que não há sentido sem essa possibilidade de deslize, e, pois, sem interpretação. O que nos leva a colocar a interpretação como constitutiva da própria língua (natural)”. (ORLANDI, 2007, p.80, grifos nossos)

Assim, levanta-se uma hipótese, a partir da materialidade do discurso do e sobre o Fruto: um conjunto inicial de 80 textos jornalísticos publicados sobre o evento; além do press release do evento, o que entende-se aqui por arquivo textual – e de um recorte de enunciados que dizem respeito aos possíveis sentidos de “alimento” no contexto da “gastronomia sustentável”, expressão que passa a circular, oficialmente, a partir de 2017 (ONU) e, em 2018, no Brasil, também a partir do “Fruto”. Tem-se, assim, maior compreensão do funcionamento desses enunciados no interior do arquivo.

Analisa-se o Fruto para além de fato histórico da gastronomia brasileira/ mundial e acontecimento jornalístico (fato a ser noticiado, conforme definição de Dela-Silva, 2008) pode ser considerado um “acontecimento discursivo”, conforme dispõe a teoria da AD por inaugurar um novo sentido à noção de “gastronomia sustentável” no Brasil. Isso depende da análise de PS e FD’s do discurso do/sobre o Fruto. O método será detalhado, mas cabem já mais algumas observações acerca da interdiscursividade.

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Ora, ainda que sejam infinitas as sinapses a dar conta dos recados cotidianos, por vezes, faltam “junções comunicantes” ao cérebro do consumidor para que ele perscrute e haja de forma sustentável em prol de um futuro viável quando beira a mesa, a gôndola ou negócio que atenda à tendência fresh food to go (comida fresca para levar)? Sugere-se pois: há gaps num universo gourmet e raso de tanto too much.

O que é “gastronomia sustentável”? Melhor: quando a gastronomia passou a ser “sustentável” no Brasil? Será que a partir da nomeação “desenvolvimento sustentável” (ONU, 1987)? Se a “identidade nacional” é um discurso, como outros, é constituída, dialogicamente, por muitas vozes (BAKHTIN, 1981, 2000). E o que é a “gastronomia brasileira”? Um emaranhado de memórias, de formações discursivas diversas? Uma visão “antropogárfica” do registro do gosto pessoal em vez do mero aceno/ reconhecimento ao que é “bom”? E o que é “bom”? E quem define o que é “bom”? E quem é o “outro” que define o que não é “de qualidade”?

Novamente, mobiliza-se aqui uma rede de possíveis sentidos, de palavra em palavra, para desdobrar-se, adiante, uma análise discursiva assertiva acerca da “gastronomia brasileira” e dos sentidos da “gastronomia (brasileira) sustentável”. Essas perguntas serão retomadas (e, possivelmente, respondidas) na segunda parte desta dissertação, que trata do “discurso gastronômico”.

Leva-se em conta, ainda, que, na construção da “gastronomia brasileira”, parece prevalecer mais a cultura de “mistura”, do permitido (FONTANILLE e ZILBERBERG, 2001, p. 20-30), do acolhedor que nos põe a matutar na cultura da “triagem” ou do interdito (exclusivo/ excluído; puro/ impuro). A matutar sobre a união da “natureza” com a “cultura”, do que é selvagem com o que é civilizado, do caráter tupi-luso. A pensar sobre os sentidos do discurso colonialista. E, conforme discute Orlandi em Terra à Vista (2008):

Essa divisão – civilização/cultura – transplantada para o colonizado, instala-se, no mínimo, em uma contradição. Nós, submetidos aos desígnios (deve ser) da civilização ocidental, somos seres culturais, sobretudo quando resistimos em nossas diferenças, mas para isso perdemos a possibilidade de termos uma história. Já que é pela parcela que nos cabe na civilização ocidental que somos contados em uma história (a da colonização). Voltamos, pois, à questão da identidade. (Orlandi, 2008, p. 54).

Parece que se vai além do silêncio ao múltiplo, ao “real”, pois é nele que pode haver discurso (ORLANDI, 1995, p. 31). Mas a mistura já foi deveras excludente. Já tangenciou a mestiçagem e a triagem em simultâneo. O “índio” e o “branco” se misturam. O “índio” e o “negro” se misturam.

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O “negro” e o “branco” se misturam. Em que acepipes, para além da feijoada, há iguaria identitária, se é que há uma iguaria identitária? E, se há, quais poderiam vir a ser símbolos/ ícones de uma “nova” gastronomia brasileira? Aqui, o processo é de coleta de indícios, de investigação sobre o discurso gastronômico no contexto brasileiro.

Busca-se, para isso, estabelecer alguns gestos de leitura, com ajuda de autores referenciais aos gastrônomos, como Luís da Câmara Cascudo (1967), Carlos Dória (2009), Gilberto Freyre (1933) acerca do que se entende por “gastronomia brasileira” e “gastronomia sustentável” a partir da evolução dos significados de termos avizinhados no recorte sócio-histórico de 1999-2019.

Período esse que se inicia com a popularização do ofício “cozinheiro”, com a “midiatização” quando “a imagem do que se vai comer ou se pretende comer impacta mais nessa sociedade tecno- interativa do que a própria alimentação, em um processo contínuo de midiatização da cozinha e dos alimentos” (Jacob, 2013, p.30). Período que se inicia com a possibilidade de formação acadêmica do gastrônomo (Amaral, 2016); e culmina na realização de eventos gastronômicos mais abrangentes, caso do Fruto, objeto desta pesquisa.

Nele, há, ainda, sentidos a dizer, muito a ser atravessado pela linguagem, muitos interditos. Conforme Orlandi (1995):

Por isso distinguimos entre a) o silêncio fundador, aquele que existe nas palavras, que significa o não dito e que dá espaço de recuo significante, produzindo as condições para significar e b) a política do silêncio que se subdivide em b1) silêncio constitutivo, o que nos indica que para dizer é preciso não dizer (uma palavra apaga necessariamente as outras palavras) e b2) o silêncio local, que se refere à censura propriamente (aquilo que é proibido dizer em uma certa conjuntura). (ORLANDI, 1995, p. 24, grifos nossos)

Esta pesquisa também põe em circulação os sentidos da memória digital (DIAS, 2018), uma vez que a materialidade do texto sobre o Fruto e do Fruto circula nesse meio forrado de arquivos. Nesse ponto, deve-se lembrar, conforme Dias, que as tecnologias digitais são desenvolvidas por sujeitos que, em função das relações sociais de poder, se assujeitam para poder dizer (e não dizer). E que o que circula no meio digital, “essa unidade totalizante de memória, produzida por distintos meios, se constrói, hoje, por um certo movimento de “desvinculação” da memória da sua relação com as instituições” (DIAS, 2018, p.69).

Ora, ao contrário do que a melhor A.I. (artificial inteligence) e o melhor algoritmo possam projetar, as escolhas afetivas - mais éticas, em muitos casos e, portanto, mais inteligentes coletivamente,

25 conforme sugere Lévy (1996), capazes de estabelecer uma espécie de Wi-Fi direct20 memória- gosto, denotam: não são, assim, tão binárias.

Tampouco “metálicas” (afetadas pelos dispositivos tecnológicos de escrita, conforme Orlandi (1996). O bolinho de chuva da avó tem sabor de saudade, doce de salgar. Não estará perto da saudabilidade e sustentabilidade exceto se a relação entre calorias vazias e prazer for proporcional à medida de quão justa foi a produção dos alimentos e mínimo o impacto à biodiversidade. É nesse ponto que impera a importância do conteúdo, tanto dos comeres quanto dos dizeres.

Consumir, ao pé da letra, como está nos dicionários, significa destruir, gastar até a total destruição; também desaparecer da memória; apagar(-se)... Conforme Lévy (1996, p. 69), “mesmo o consumo é produtor”, pois “a atualização (o “consumo”) de uma informação” é “simultaneamente uma pequena criação (uma interpretação).

Contudo, há mais: o consumo destrutivo clássico, tão logo é captado e devolvido ao produtor, ao vendedor, a uma instância qualquer de regulação ou de medida, torna-se ele também, ipso facto, criação de informação, contribui para um aumento da inteligência social global. Essa ideia pode ser generalizada assim: todo ato é virtualmente produtor de riqueza social via sua participação na inteligência coletiva (LÉVY, 1996, p.69).

Também no dicionário, tem-se que alimentar é “nutrir, sustentar”; e, ainda, “fornecer assunto a”. E houve ao menos 80 pretextos (os textos sobre o/ do Fruto) para fornecer-se assunto sobre o “futuro da alimentação”, em 2018, disponibilizados no ciberespaço. Como esses textos circularam e que sentidos podem mobilizar são aspectos da análise da discursividade do Fruto aqui apresentados.

Espera-se, também, contribuir à análise futura de como foram produzidos e consumidos os textos sobre o Fruto de 2018 e, portanto, à noção de sustentabilidade na produção e consumo de alimentos.

20Essa metáfora refere-se à tecnologia Wi-Fi Direct, protocolo que dispensa o uso de um roteador de Internet para que dois dispositivos “conversem” entre si. Essa alternativa é útil para a redução do tráfego de dados nas redes de celulares e possibilita a conexão entre aparelhos de “marcas” diferentes sem o uso de aplicativos, por exemplo. No texto, a pretende-se, por analogia, dizer da conexão entre sensações/ experiências do gosto guardadas na memória e o estômago (que, fisicamente, reage aos comandos do cérebro quando se tem fome). Entende-se que o “gosto”, como uma “experiência positiva”, possibilita a inscrição de uma “memória afetiva” acessada pela emoção, ou seja, por algo que se antecipa à cartesiana razão.

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De mãos dadas à etimologia, à semiologia e à análise do discurso, parece lógica a relação que se deve fazer entre alimentar-se o consumidor de informação21 para que ele sustente a si ao futuro22.

De mãos dadas à ciência, parece imperiosa a relação entre a pesquisa, a divulgação cultural e científica e o desenvolvimento sustentável.

De mãos dadas à sociedade, parece ímpar a necessidade de zelar pelos brotos dos textos sobre a gastronomia.

Navegar é preciso? Rastrear o comestível será preciso.

21 Adiante voltaremos a Lévy para dizer da noção de continuidade na produção de informações. O termo “coprodutor”, especialmente, interessa muito à pesquisa dado que o fundador do movimento Slow Food, Carlo Petrini, trata do gastrônomo como coprodutor, ou seja, consumidor e, em simultâneo, produtor de alimentos. Essa aproximação entre os conceitos de produção de informação e de alimentos é produtiva à noção de “processo de criação” dos chefs de cozinha (ocorrem em rede e coletivamente, segundo Cecília Salles, 2012) e de construção de uma “inteligência coletiva”, conforme Lévy (1996). Ao mesmo tempo, Lévy, Salles e Petrini se aproximam justamente pelas noções que apresentam sobre “rede”, como será demonstrado adiante.

22 Falo mais sobre o tema gastronomia sustentável neste artigo: Gastronomia para saciar o futuro, disponível em: Acessado em: 06 nov. 2020

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1 MENU DU JOUR (introdução: o há para “comer”?)

Acomode-se à mesa dos sentidos. Após esses textos iniciais, que visam expor os objetivos, o corpus e o método da pesquisa, esta dissertação avança à discussão teórica, dividida em três partes: 1) “A gastronomia como linguagem e discurso”, 2) “O discurso gastronômico” e 3) “O texto jornalístico gastronômico”. Repleta de metáforas (notas de sabor) e de diálogos comestíveis (conversas entre a gastronomia e o jornalismo), ela se debruça sobre o gosto em um sentido mais amplo, mais filosófico.

Assim, o gosto será tomado em todo o texto como um objeto discursivo opaco produzido e significado por efeito metafórico (PECHÊUX, 1988), como já exposto no Mise em Place, a partir do modo de agir do consumidor de alimentos, considerado aqui como leitor-comensal. Leitor-comensal, em toda a dissertação, será o termo utilizado para descrever o genérico “consumidor de alimentos e de informação”.

A prática gastronômica e discursiva desse leitor-comensal é analisada a partir de duas ações, orientadas por gestos de interpretação (o que é “perceptível ou não para o sujeito e/ou seus interlocutores e decide a direção dos sentidos”, conforme Orlandi, 1996, p. 22) específicos:

1 - consumo de alimentos: ação futura, decorrente do gesto de interpretação do leitor comensal perante a produção e o consumo de informação

2 - consumo de informação: ação presente, pretérita e futura decorrente do gesto de interpretação do jornalista e, também, do “neo-consumidor” (SOUZA, 2009; LIPOVETSKY, 2007). Entende- se que jornalista e “neo-consumidor” são ambos sujeitos de “tempos hipermodernos”, conforme Lipovetzky (2003, 2007). Para o filósofo francês, o indivíduo, imerso em uma “sociedade de hiperconsumo”, encontra prazer no consumir cada vez mais personalizado (inclusive de informação) por estar disposto à “felicidade” assentada, paradoxalmente, entre a estética e a ética; entre o consumo destrutivo e o responsável (quiçá sustentável).

Parte-se, assim, da compreensão da “escolha” (e dos norteadores de escolha) ao “gosto” e ao “consumo” para entender-se o que é consumido – alimento e informação. Ao ponderar-se sobre a gastronomia e as relações estabelecidas no partilhar de conhecimento sobre o “alimento” na “comensalidade” (no “comer junto”), nota-se no gosto: o prazer, a experiência, a memória afetiva que reafirma, no “sujeito” em relação com “o outro” sua “subjetividade insubstituível” (LIPOVETZKY, 2007, p. 247). O que ficará mais claro ao final da primeira parte. 28

A partir daí, busca-se entender-se o gosto da sustentabilidade na gastronomia - especialmente quando a pauta “gastronomia sustentável” (ONU, 2017) e seus múltiplos sentidos é noticiada no meio “virtual”, onde “circula”, é lida e atualizada e sentida (LÉVY, 1996, p. 35-39) e torna a circular em rede - marcadamente a partir dos anos 1990. Comportamento que pode tornar a influenciar novas relações de consumo do/no digital no futuro. Isso será feito a partir de uma série de 24 enunciados: recortes recolhidos de 81 textos jornalísticos veiculados no meio digital que tratam da “edição zero” do Fruto (2018) – a fim de compreender-se processo discursivo do seminário. Pelo trajeto temático proposto por Maldidier e Guilhaumou (1997) e indicado por Dela- Silva (2008), verificar-se-á a expressão “diálogos do alimento” como uma marca do acontecimento discursivo do Fruto no percurso da “gastronomia brasileira”. Da compreensão da materialidade do Fruto nesses textos jornalísticos sobre ele, ter-se-á um caminho de possibilidades sobre a “constituição, formulação e circulação” (ORLANDI, 2005a) dos sentidos da “sustentabilidade” para a “gastronomia brasileira” – ainda em formação. Dos dispositivos constitutivos do corpus de análise delimita-se as entradas no arquivo que possibilitam a análise discursiva.

Ao pensar-se sobre essas relações do/no virtual, caminha-se à luz de Pierre Lévy (1996), para quem “o consumidor não apenas se torna coprodutor da informação que consome, mas é também produtor cooperativo dos “mundos virtuais” nos quais evolui, bem como agente de visibilidade do mercado para os que exploram os vestígios de seus atos no ciberespaço” (LÉVY, 1996, p. 63). O termo coprodutor é reverberado por Petrini (2009) ao definir os “princípios da nova gastronomia”, por isso, e pela noção de “pensamento em rede” que defendem, faz-se a leitura do diálogo entre comunicólogo e o gastrônomo.

Toma-se por princípio, então, que o gosto pode/ deve ser construído e discutido a partir de processos discursivos que interpretam a atualidade numa relação constitutiva com a memória discursiva. Por isso, há que se ter cuidado (responsabilidade) ao analisar-se a “anatomia do gosto”, a variação do gosto entre os segmentos sociais, conforme Bourdieu (1979). Ora, depreende-se que o gosto é significado no ambiente virtual. Especialmente o gosto cultural, conforme Bourdieu (1979), produto e fruto de um processo educativo influenciado pelo volume de capital econômico (renda), volume de capital cultural (saber e conhecimento), volume de capital social (relações entre indivíduos) e volume de capital simbólico (honra, influência).

Pensando com o autor, se a gastronomia é cultura, foi construída e será herdada. Se ampliada a oferta de gastronomia brasileira, ampliado será o desejo de manter-se esse bem cultural disponível 29 e pulsante. Tem-se aqui, a partir da leitura de Bourdieu (1979, p. 95-96), o deslizamento dos sentidos do gosto:

O duplo sentido do termo “gosto” – que, habitualmente, serve para justificar a ilusão da geração espontânea que tende a produzir esta disposição culta, ao apresentar-se sob as aparências da disposição inata – deve servir, desta vez, para lembrar que o gosto, enquanto “faculdade de julgar valores estéticos de maneira imediata e intuitiva” é indissociável do gosto no sentido de capacidade para discernir os sabores próprios dos alimentos que implica a preferência por alguns deles. A abstração que leva a isolar as disposições em relação aos bens de cultura legítima acarreta, de fato, uma outra abstração no nível do sistema dos fatores explicativos que, sempre presente e atuante, revela-se à observação apenas através daqueles seus elementos – no caso analisado, mais abaixo, o capital cultural e a trajetória – que se encontram na origem e na eficácia no campo considerado. O consumo dos bens culturais mais legítimos é um caso particular de concorrência pelos bens e práticas raras, cuja particularidade depende, sem dúvida, mais da lógica da oferta – ou, se preferirmos, da forma específica assumida pela concorrência entre os produtores – que da lógica da demanda e dos gostos ou, se quisermos, da lógica da concorrência entre os consumidores. De fato, basta abolir a barreira mágica que transforma a cultura legítima em universo separado para perceber relações inteligíveis entre “escolhas”, aparentemente, incomensuráveis – tais como as preferências em matéria de música ou cardápio, de esporte ou política, de literatura ou penteado. (BOURDIEU, 1979: 2017, p. 95, grifos nossos).

Assim, passa-se à importante análise do funcionamento dos sentidos do gosto da/na gastronomia brasileira desde o início do século XXI, quando ela se populariza, nos meios televisivo e digital (Amaral, 2016), a fim de aferir-se como ela se modifica quando afetada pela noção de sustentabilidade, ampla e discutida, globalmente, desde os anos 1960 (BUENO, 2016). Neste ponto desdobrado na análise sobre a evolução do texto gastronômico no Brasil, situado na terceira parte desta pesquisa, chega-se à relação entre oferta de informação sobre a gastronomia brasileira e a oferta de informação sobre a sustentabilidade. Entende-se, ainda, que o gosto da sustentabilidade se vê afetado pelas alterações econômicas e climáticas globais características do início do século XXI e deriva de razão (da escolha racional, norteada por alimentos tomados como “bons” e informações bem “apuradas”) em sazão (em função da sazonalidade e do contexto histórico-social).

A principal e mais abrangente pergunta mobilizada nesta pesquisa é: de que maneira a divulgação cultural e científica executada por jornalistas brasileiros dedicados à editoria “gastronomia”, sobretudo nos últimos 20 anos (1999-2019), tem contribuído à construção e educação do gosto do consumidor brasileiro e em uma modulação mais sustentável, ou seja, com vistas ao desenvolvimento sustentável (ONU, 1987; ELKINGTON, 1994; PETRINI, 2009 et al)?

Por isso, mais importa analisar-se o como ou que sentidos são produzidos quando noticiadas informações sobre “a gastronomia”, no Brasil, por meio do objeto desta pesquisa e pelas 30 características que ele encerra de “acontecimento discursivo” e “acontecimento jornalístico” (DELA-SILVA, 2008, p.17), como será demonstrado a seguir:

O acontecimento discursivo, contudo, não pode ser ladeado, por equivalência, à noção de acontecimento jornalístico, pois ele possibilita ao sujeito ocupar novos espaços de significação. E, ao mesmo tempo, estabelecer ruptura em relação aos já-ditos que foram relacionados entre si. Neste ponto, toma-se aqui a noção de acontecimento discursivo conforme Zoppi-Fontana (1997): como sendo “a emergência de um enunciado ou de uma posição enunciativa novos que reconfiguram o discurso, e através deste participam do processo de produção do real histórico (1997, p. 51). (DELA-SILVA, 2008, p.17-18, grifo nosso).

Outrossim, e tal ensina a autora (2008, p. 18), da “compreensão do acontecimento discursivo como observável na relação entre dizeres, de forma a produzir rupturas, silenciamentos e novos processos de significação”, este trabalho visa identificar, se o evento Fruto pode ser considerado um fato de interesse do campo jornalístico e, se por configurar-se acontecimento discursivo, está apto a pautar a discussão sobre a “gastronomia sustentável” no Brasil. Reformulando-se a pergunta, ter-se-ia: o Fruto pauta os debates sobre a “gastronomia sustentável”?

Mais especificamente, visa-se também identificar como o jornalista contribui à divulgação cultural da “gastronomia brasileira” ao tratar do consumo de alimentos levando em conta a noção científica de “sustentabilidade”. Isso será feito a partir da análise da cobertura do Fruto, isto é, nas evidências do que é o Fruto segundo a mídia. Eis um primeiro gesto de análise amparado fortemente, pela AD de Pechêux, Orlandi, Zoppi-Fontana e Dias.

Atente-se que, na mesma França em que interlocutores como o linguista Ferdinand de Saussure (1857-1913), o filósofo Louis Althusser (1918-1990) e o psicanalista Jaques Lacan (1901-1981) “dialogavam” com o principal teórico da AD para rever-se os sentidos do “discurso”, na alta cozinha (haute cuisine), Paul Bocuse (1926-2018) “dialogava” com Georges Auguste Escoffier (1846-1935), Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755- 1826), Marie-Antoine Carême (1783-1833) e François Vatel (1631-1671) para rever-se os sentidos da gastronomia.

Há, portanto, uma interessante “sincronicidade” entre o advento da AD, com Pechêux, em 1969 e dois movimentos gastronômicos que trouxeram, por ruptura, novas proposições à gastronomia: a nouvelle cuisine, ou a nova cozinha francesa (anos 1960); e o movimento Slow Food, capitaneado pelo jornalista italiano Carlos Petrini (anos 1980). Ambos introduziram “alterações radicais na maneira como os chefs passaram a se relacionar com as tradições e com a instituição gastronômica, de um modo geral, deflagraram revoluções parciais no campo (Bourdieu), mudando a composição de forças em seu interior.” (BUENO, 2016, p. 450, grifos nossos). 31

1.1 Sobre o objeto lido no digital

Em relação especificamente ao Fruto, serão lidas “as forças em seu interior”, a “paráfrase” e a “polissemia” das discursividades que o atravessam, conforme Orlandi (1998), a “fluidez dos sentidos” ao agregar “o mesmo e o diferente”; bem como as características de inter e intradiscursividade (PÊCHEUX, 1983) desse evento gastronômico e “holístico” (acepção dada por Petrini ao evento, em 2018). Isso a fim de se demonstrar sobre o que a marca promete dialogar (o texto do release do Fruto dá indícios dessa intenção dos “diálogos do alimento”) e sobre o que foi registrado, jornalisticamente, sobre ele. Apesar de a alteridade ser parte constitutiva do discurso (Orlandi, 1995), e de haver muitas “vozes” no Fruto, algumas foram “ouvidas” pela imprensa, como se verá no capítulo dedicado a este objeto.

O evento reuniu 31 palestrantes (31 “vozes”) de diversos países em sua edição de estreia (2018). Foi idealizado pelos renomados gastrônomos brasileiros Alex Atala e Felipe Ribenboim e pelo Instituto ATÁ (fundado em 2013 para fortalecer a cadeia produtiva e valorizar os pequenos produtores brasileiros) e equipe multidisciplinar. Em 2020, o Fruto veio a configurar-se como plataforma de conteúdo gastronômico.

Para compreender-se a discursividade do Fruto, procedeu-se à:

1) à leitura do press release da marca para identificação da “voz” do Fruto;

2) à leitura de 80 notícias produzidas sobre a edição de estreia do Fruto e publicados no ambiente digital (sites, blogs, revistas eletrônicas etc.). Contou-se com auxílio da assessoria de imprensa do evento e assessoria direta do grupo D.O.M.;

3) à leitura com ênfase em 35 textos publicados após o término do evento.

4) à impressão dos textos (geração de PDF’s) “validados” (cujos links encontravam-se ativos, buscando-se a materialidade dos textos que circularam no e pelo digital);

5) análise de uma série de 24 enunciados escritos em português recortados desses textos pós-evento – colocando como foco a compreensão do funcionamento do texto jornalístico sobre a relação “alimento” e “sustentabilidade” a partir do Fruto. Assim, tem-se o “retrato” das publicações em língua portuguesa que procederam a cobertura do Fruto. A linguagem verbal foi priorizada na análise, embora a não-verbal fosse considerada quando disponível.

Entende-se que os idealizadores e palestrantes e jornalistas em cobertura se inscrevem numa função-autor (FOUCAULT, 2006) à medida em que se submetem a certas regras sociais na 32 circulação e funcionamento do discurso inicial do Fruto para, ao longo do evento e durante as entrevistas à imprensa e adiante (edições seguintes), se colocarem, conforme as condições de produção, em uma formação discursiva que expõe o viés antropológico da gastronomia ou da ciência ou do jornalismo etc. Na função autor (podendo ser aqui entendido como “palestrante autor”, “jornalista autor” etc.) há escolhas, cortes e delimitações, conjuntos de enunciados.

Entende-se condições de produção conforme Orlandi (2001, p. 30), que considera os sujeitos, a memória discursiva e, portanto, o interdiscurso e o contexto relacionado à prática discursiva analisada. São essas “pistas” que o analista deve seguir para “compreender os sentidos aí produzidos, pondo em relação o dizer com sua exterioridade”. E, ainda, os não ditos ou ditos em outros lugares.

Assim, como será demonstrado no trecho sobre a análise do discurso do e sobre o Fruto, Ribenboim e Atala reforçam a necessidade do “diálogo sobre o alimento” por meio da multiplicidade temática dos participantes do evento que idealizam; e da diversidade dos enunciados que esses participantes e que a mídia põe a circular.

Com ajuda da AD, sobretudo da noção de memória digital proposta por Dias (2018, p.104-105), procura-se entender a relação entre a memória histórica sobre a gastronomia brasileira e a constituição, no virtual, do discurso sobre o Fruto, promovida pelos jornalistas que procederam sua cobertura, que integra o interdiscurso sobre uma gastronomia brasileira sustentável, paulatinamente executada no “real” à medida em que é “virtualizado” (LÉVY, 1996, p. 71-123); pelo sujeito no atribulado contexto da sociedade do hiperconsumo (LIPOVETSKY, 2007). Depreende-se que, para “desempenhar seu papel antropológico, o objeto (aqui o Fruto) deve passar de mão em mão, de sujeito a sujeito, e subtrair-se à apropriação territorial, à identificação a um nome, à exclusividade ou à exclusão”. (LÉVY, 1996, p. 123, adendo e grifo nosso)

Não se pretende, nesta etapa de pesquisa, comparar-se o Fruto a outros eventos ou marcos gastronômicos brasileiros a fim de ranquear-se ou laurear-se o que quer que seja, muito ao avesso; mas demonstrar-se a relevância do objeto de análise que denota estar, como será demonstrado, situado no ponto inicial da compreensão do sentido de “gastronomia brasileira” e, mais incipientemente, da “gastronomia sustentável” – essa, vista para além das fronteiras da cozinha e da restauração: conectada à “cadeia do alimento”. Ou seja, entre a estrutura (o real da língua) e o acontecimento (PÊCHEUX, 1983), o que depende da interpretação do analista, da leitura dos sentidos. 33

Além disso, não se quer esmiuçar as condições de produção jornalísticas das últimas duas décadas, embora se saiba haverem sido determinantes à discursividade ou ao repertório ou à espessura linguística da imprensa brasileira dedicada à editoria de gastronomia desde então. Contudo, esta pesquisa acolhe apontamentos possíveis, tracejados ao longo do período do recorte acerca da construção dos discursos sobre a “gastronomia” e a formação da “gastronomia brasileira” para chegar-se às condições de produção jornalísticas para a/da cobertura do evento Fruto em 2018. Dependendo da constituição e formulação do texto de determinado veículo especializado, tem-se uma visão mais ou menos “holística” (para resgatar Petrini) da gastronomia e de seus “diálogos do alimento”, como será discutido na terceira parte desta dissertação.

O conjunto de textos que constitui o arquivo representa um fragmento de possibilidades de leitura acerca do Fruto, é bom que se frise. Tal acontece com o conjunto de textos sobre qualquer temática delimitada. Não necessariamente, tem-se o todo, mas parte dos ditos, como situa Guilhaumou (2009, p. 125): “o arquivo de uma época não é nunca descritível na sua totalidade, ele se dá a ler por fragmentos: sua descrição é sempre aberta...” A partir desse possível gesto de leitura, descrever-se-á, por fim, o “gosto do Fruto”.

1.2 Como ler o cardápio?

Vê-se que, entre os gostos, ou acepções do “gosto”, perscruta-se bibliografia tão multidisciplinar quanto a própria gastronomia sem distanciamento de seu campo (Bourdieu, 1979), que admite a antropologia, a culinária, a semântica, a semiótica, a análise do discurso, a história, o jornalismo, a arte, a biologia, a botânica, o design, o marketing, a agronomia, a economia e mais.

O campo gastronômico, neste sentido, poderia ser descrito como o espaço onde circulam os discursos acerca de: o alimento, o ato de comer e exercer-se a comensalidade, os valores simbólicos das preparações culinárias, os valores simbólicos de pertença à gastronomia. É no campo gastronômico que circulam os “diálogos comestíveis” imbricados na relação entre discurso e alimento.

Preterir-se este ou aquele alimento, este ou aquele conteúdo depende da noção de gosto, de hábito (habitus, cf. BOURDIEU, 1979), de capital, de sistemas e de produtos da cultura que decorrem de uma “complexa construção histórica” conforme definição do historiador italiano Massimo Montanari (2013, p.11). 34

Na primeira parte da dissertação, intenta-se compreender a “gastronomia como linguagem” a partir, especialmente, das contribuições do filósofo italiano Nicola Perullo (O Gosto Como Experiência, 2013); da jornalista Helena Jacob (2013); dos historiadores Rebecca Spang (A Invenção do Restaurante, 2003), Montanari (Comida Como Cultura, 2004) e Tatiana Lunardelli (A Estética do Gosto, 2012); além de Cecília Salles (Redes da Criação – Construção das Obras de Arte), pesquisadora das relações de processos de criação em grupo.

Por isso, acolhe-se, como já explicitado anteriormente, “o gosto” de muitos “gostos”: o gosto conforme o gastrônomo francês Jean Anthelme Brillat-Savarin (dado como “pai da gastronomia”), o gosto conforme o sociólogo Pierre Bourdieu (tal elemento de distinção social), o gosto conforme o filósofo italiano Nicola Perullo (como experiência), o gosto conforme Montanari (como produto cultural próprio de uma realidade coletiva e partilhada comensalidade), o gosto conforme Tatiana Lunardelli (cozinheiro e comensal se unem por uma ponte chamada estética do gosto e, na contemporaneidade, tangenciam a arte), o gosto conforme Roland Barthes (o duvidoso gosto pasteurizado da indústria cultural, o gosto do saber e do sabor, o gosto do texto).

Se pensar-se em gosto como escolha das práticas culturais ligadas ao nível de instrução e que perdurará tal herança familiar (BOURDIEU, 1979) às futuras gerações, tem-se, ainda, no conceito de desenvolvimento sustentável (ONU, 1987) e/ou sustentabilidade (Elkington (1994), um arcabouço de gostos que, coletivamente, poderão contribuir à perpetuação de mensagens, espécies e memórias ou “saberes e sabores” - conforme Carlo Petrini (2009), Michael Pollan (2014) e plêiade. Gostar de certos alimentos globalmente e demandá-los sem critério localmente pode não ser bom negócio para a Terra (ou Gaia, a mesma de James Lovelock, da década de 1970), cujos recursos naturais são limitados e ou finitos. O gosto da sustentabilidade, especificamente, será descrito na segunda parte desta pesquisa.

Tem-se, em seguida essa espécie de “primeiro prato”, uma análise sobre a noção de “comida como cultura”, mais digesta e performática, por assim dizer; mais conectada ao que postulara outrora, o antropólogo estruturalista Lévi-Strauss, que versa, em Mitológicas (1964), sobre Le triangle culinaire [O triângulo culinário], basal a todo gastrônomo. Abarca-se a noção de transformação culinária propiciada pelos complexos gestos e procedimentos de cozinhar que, segundo Montanari (2004), compõem unidades de sentido e redes de significados conforme a habilidade de quem cozinha (e domina léxico gastronômico e retórica).

O intrincado dualismo “natureza e cultura”, bem como a rica noção da transição entre o cru e o cozido mediada pela cultura acendem, nesta dissertação, a revisão do que se entende por podre ou 35 residual ou desperdício. Pretende-se, neste ponto da fundamentação, ponderar-se acerca do banal “jogar fora”, tão paradoxal quanto os paradoxais dialogismos considerados por Lévi-Strauss em Mitológicas (1964) e as certas artimanhas comunicacionais que podem vir a funcionar como “ruído” (enquanto aquilo que atrapalha a comunicação e pode causar mal entendido) ou mesmo “podre” (por metáfora) comunicacional.

Na segunda parte da dissertação, a Análise do Discurso francesa (1969), que permeia toda a esta pesquisa, como já destacado, norteia a discussão acerca da “constituição, formulação e circulação” do “discurso gastronômico” pelos gastrônomos e pela imprensa. Este é afetado, como será detalhado, desde seu engendrar na corte francesa, no início do século XVII (BUENO, 2016), pelo contexto histórico-social, pela ideologia, pelas relações de poder entre sujeitos que operam nos campos (BOURDIEU, 1996) gastronômico e jornalístico. Buscar-se-á descrever a relação entre o savoir-faire gastronômico, com suas regras, nomenclaturas, técnicas e subjetividades; e o savoir- faire jornalístico (a prática jornalística).

Neste ponto da pesquisa, fica mais clara a influência do discurso colonizador (conforme Orlandi, 2008) e dos embates entre as ideias do Velho e do Novo Mundo, sobre a constituição da identidade do que se entende por “comida” brasileira, a partir da ideia de nação ou unidade nacional e quando “vários símbolos se articulam, materializando o seu conceito. O desejo de ter uma literatura, uma pintura, uma música ou uma culinária funciona como diretriz do trabalho criativo; a ele se dedicam especialmente os intelectuais, peneirando o que entendem ser a “cultura do povo” (DÓRIA, 2009, p.11). Da cozinha à culinária e à gastronomia (à) brasileira tem-se sentidos deslizando sobre o discurso gastronômico no Brasil. O sociólogo situa o movimento modernista, empreendido a partir de 1922, como influenciador do discurso sobre a “culinária brasileira”, que antecede os sentidos da gastronomia no Brasil.

Quais seriam os sentidos da gastronomia à brasileira, aliás? Ou noções do que, quiçá, poder-se-á denominar “alta gastronomia brasileira” ou “culinária brasileira renovada”, conforme Dória (2009)?

A filosofia nos ensina que ninguém é livre onde só uma pessoa é livre. De modo análogo, podemos dizer que, se na culinária não há liberdade, também não prospera a gastronomia. Isso quer dizer que nem sempre a liberdade de criação esteve presente em nossa história e, por tal motivo, o colonialismo foi um terreno limitado para a construção gastronômica. Sob um regime escravocrata, não se desenvolve a expressão do espírito de um povo, embora nos interstícios dessa sociedade seja sempre possível detectar um fio de liberdade empenhado na criação, conforme a pesquisa histórica mais recente permite ver. (DÓRIA, 2009, p.20-21, grifo nosso). 36

Tem-se a evolução dos estudos acerca da “culinária” e do papel da “gastronomia” “brasileira” para a formação da identidade nacional, com base nos escritos de importantes autores como o próprio Dória (2009); e Luís da Câmara Cascudo (1967) e Gilberto Freyre (1933) que teceram os principais argumentos sobre a tríade cultural formadora da culinária brasileira (indígena, africana e portuguesa) e os aspectos ou mitos da miscigenação.

Pode-se dizer que, nas obras desse trio de teóricos, constam os registros sócio literário, sócio- histórico e sociocultural do comer à brasileira e da própria comensalidade à (moda) brasileira. E passa-se a ponderar com eles a noção de desenvolvimento da gastronomia local (Brasil) frente aos acontecimentos globais (mundo) em três tempos: início do século XX, meados dos anos 1960, início dos anos 2010.

Visa-se, assim, demonstrar que se passa a entender por “gastronomia brasileira” originou-se da compreensão e valorização de ingredientes e de técnicas culinárias nacionais “apagados” ou “silenciados”, em muitas circunstâncias, pela “escolha” ou preferência de ingredientes e técnicas culinárias estrangeiros. Algo que se amparará em Bueno (2016).

Ainda nessa segunda parte desta dissertação, será descrito como o discurso gastronômico ganha um tom mais ecológico, no Brasil, partir dos anos 2010, marcadamente. Quando se vê na mídia a expressão do gastrônomo brasileiro ambientalista/ativista, por assim dizer, defensor dos insumos brasileiros e dos modos de preservá-los de modo que o cancioneiro de “receitas originais” (nacionais) não se extinga em função da biodiversidade ameaçada sob a alta demanda consumista.

Isso porque, em função dos “refinamentos da boca” e da “individualização do gosto”, as esferas do comer e do beber também foram estetizadas (LIPOVETSKY, 2007, 2015). Essa manifestação mais conectada ao que se entende por “consumo consciente” – melhor e de forma mais responsável com o meio ambiente naquela que é denominada a “terceira fase do consumo” (LIPOVETSKY, 2007) ou a “ecogastronomia” (PETRINI, 2009) - se exprime fortemente no Brasil.

O diálogo entre consumidores sobre as consequências de suas escolhas alimentares se amplia na “sociedade do consumo” (LIPOVETSKY, 2007) à medida em que são realizados eventos expressivos – e por isso tomados como marcos históricos gastronômicos como: a) o evento Mesa Tendências (gestado em 2006 como Mesa ao Vivo e lançado, oficialmente, em 2007), congresso internacional de gastronomia dedicado a destacar a relevância da “culinária brasileira” e do “alimento”; b) o evento Mad Foodcamp, organizado pelo Comitê de Festivais de Gastronomia da Dinamarca desde 2011 e que, em sua primeira edição, teve como tema o “Reino Vegetal”. 37

Neste ponto, pondera-se, então, que, se o gosto é construído e parece haver oferta de uma “gastronomia brasileira” (bem cultural) mais sustentável a partir da década de 2010, pode-se ter a apropriação desse bem (BOURDIEU, 1979) e a noção de uma “gastronomia brasileira sustentável”, boa para pensar e para comer, pois dará sustento e sustança a muitas gerações.

Explica-se que a identidade do cozinheiro profissional brasileiro e o comer sobre o qual ele “fala” (ou o texto que circula a partir de seus enunciados) “muda” quando o debate sobre as mudanças climáticas se acende desde meados da década de 1960 (ONU, 1987; PETRINI, 2009; Bueno, 2016), consolidando-se na segunda década do século XXI, quando a noção de sustentabilidade (ELKINGTON, 1994) ganha lugar cativo nos discursos gastronômico e jornalístico. Nesse contexto, quando se realiza o Fruto inauguralmente, em 2018, tem-se o indício de uma gastronomia brasileira de fato mais amadurecida e disposta a ser mais sustentável local e globalmente.

Figura 1 – Fatos relacionados ao “discurso da sustentabilidade” na gastronomia

38

1.3 Sobre os eixos dos “diálogos comestíveis”

Frise-se que, ao longo de toda esta dissertação, mas destacadamente a partir da segunda parte, o leitor-comensal será convidado a mover-se por três eixos complementares, “adaptáveis” à historicidade e às ambiências que propiciaram a construção de algumas das teorias e dos enunciados aqui abraçados como fundamentação teórica.

A fim de demonstrar-se como se dá a constituição e formulação do que se entende por “discurso gastronômico”, serão analisados o cenário antropológico-cultural, determinado pela tríade natureza-cultura-desperdício (podre), com base em Lévi-Strauss (1964) em simultâneo ao ecogastronômico, amparado pela noção de coprodução entre os pilares bom-limpo-justo (conforme PETRINI, 2009); e em simultâneo ao sustentável, ativado pela tríade economia/meio- ambiente/sociedade (ELKINGTON, 1994).

A hipótese que se levanta é de que a releitura do eixo antropológico-cultural neste contexto em que a sustentabilidade é posta como inquestionável conceito norteador das escolhas dos consumidores aproxime a ética da memória afetiva e da estética; o homem do alimento.

Figura 2 - Eixo sustentável Figura 3- Eixo antropológico-cultural Figura 4 - Eixo ecogastronômico

A emoldurar esses eixos, pensando-se no sentido que se pretende dar à expressão “diálogo comestível”, tem-se a comunicação entendida como meio/ panela e ponto de partida/lume às transformações do comer. Isto é, por meio da mídia e das redes comunicacionais disponíveis, a linguagem gastronômica se transforma e é, muitas vezes, traduzida pelo cozinheiro, em narrativas empratadas – consumidas de “garfo e faca” ou, simplesmente, de forma telada. Ele é hábil em cocriar e inventar “novos contextos” para o “comer”.

Daí a importância do jornalismo à gastronomia e a tradução da “realidade” gastronômica (do real possível) e dos comportamentos do consumo de alimentos que podem afetar (atualizar, modificar) a gastronomia e o comer por um “devir que alimenta e volta ao virtual”. Afinal, conforme Lévy 39

(1996, p.16-22), o processo de “virtualização”, uma “mutação de identidade”, é acelerado na medida da modificação dos comportamentos sociais, ou seja, da “cultura”, propondo uma desterritorialização dos indivíduos.

O universo cultural, próprio dos humanos, estende ainda mais essa variabilidade dos espaços e das temporalidades. Por exemplo, cada novo sistema de comunicação e de transporte modifica o sistema das proximidades práticas, isto é, o espaço pertinente para as comunidades humanas. (...) Cria-se, portanto, uma situação em que vários sistemas de proximidades e vários espaços coexistem. (LÉVY, 1996, p. 22).

Assim, se tomar-se especialmente o período veloz que vai do final da década de 1990 ao início dos anos 2020, tem-se um recorte temporal importante em que a cozinha afeta e se vê afetada pela mídia, pelas mudanças tecnológicas, pelas mudanças comunicacionais e pelas mudanças climáticas. Em que se transforma em linguagem própria. E quando o cozinheiro passa a cozinhar de forma mais “virtualizada”.

Para o referencial teórico de tais apontamentos, destaque ao que preconizam as pesquisadoras Helena Maria Afonso Jacob (2013), Renata Maria do Amaral (2016) e Maria Lúcia Bueno (2016).

Figura 5 – “Diálogos Comestíveis”

Figura 5 - Quando a narrativa é empratada, quando o discurso sobre o comer é transformado em paisagem, tem-se diálogos comestíveis. Logo, as “escolhas” do leitor-comensal implicam em transformações na cadeia do alimento. É no campo gastronômico que circulam os diálogos comestíveis, como nomeia-se aqui a relação entre discurso e alimento. Fonte: a autora. 40

Decorre daí a necessidade de trazer-se um breve apanhado histórico sobre a construção do conceito (e dos sentidos de sustentabilidade) e, consequentemente, de uma gastronomia mais sustentável, atenta a uma cadeia produtiva mais complexa e curta (onde produtor e consumidor estão mais próximos); alinhada aos conceitos do movimento Slow Food (Petrini, 1999) e a tríade bom-limpo- justo; da sustentabilidade (ELKINGTON, 1994), amparada sobre o Tripple Botton Line (equilíbrio entre os pilares social, econômico e ambiental); e conectada à criatividade do cozinheiro por meio da transformação dos sentidos do alimento a cada gesto de aproximação (mediação) de natureza e cultura (LÉVI-STRAUSS, 1964)

Falar-se-á, portanto, sobre uma gastronomia mais afeita ao que preconiza, mais contemporaneamente, a Organização das Nações Unidas (ONU) em seus 17 objetivos do desenvolvimento sustentável (os ODS’s da Agenda 2030, publicada em 2015), com destaque às prerrogativas do ODS-2 (“acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável”) e do ODS-12 (“assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis”). Leva-se em conta que, no início dos 1990, especialmente, falava-se já mais comumente em conceitos como os de Marketing Verde (KOTLER, 1995) ou Marketing Ambiental (do inglês green marketing ou ecological) ou Marketing Ecológico, que, posteriormente, deram esteio a discursos “greenwashing”, ou seja, a discursos “pintados de verde” (em tradução livre) ou “eco-maquiados” ou vazios (NEW SCIENTIST, 1989).

Intenta-se discutir, neste ponto, como cozinheiros profissionais brasileiros parecem demonstrar dispor-se, na prática (ou para além do “discurso” e para além do “marketing verde”), à transição de seus modelos de negócios “convencionais” para “sustentáveis”. Tem-se, então, uma leitura possível sobre os por quês da realização do Fruto, evento não de/ sobre a gastronomia, mas sobre o alimento (e os sentidos de “alimento”) e prerrogativas de sua idealização por dois gastrônomos em certo contexto histórico.

Ainda no trecho dedicado à gastronomia sustentável, trata-se da igualmente relação paradoxal entre a pegada digital nutrida pelo desejo de consumir-se, que faziam os “gastroepicuristas” do século XVIII (SPANG, 2003, p. 185), para estabelecer-se status ou distinção social (BOURDIEU, 1979), que muito tem a ver com o “ver e ser visto” das contemporâneas redes sociais sem tanto apelo do marketing, mas com apelo do ego; e a militância gastronômica em prol de uma (alta) gastronomia mais sustentável (contudo ainda pouco acessível) disseminada pelos netizens (MOUNIER, 2006) e prosumers (TOFFLER, 1995) num contexto de consumerismo político e de neoconsumidores levados pelo distrator marketing a hiperconsumir (conforme LIPOVETSKY, 2007, 2015) e, quiçá, coprodutores (PETRINI, 2009). 41

Na terceira parte da dissertação, tratar-se-á, do texto jornalístico gastronômico, assentado no campo jornalístico (BOURDIEU, 1997) e dependente da noção de função-autor do sujeito- jornalista. A partir de Pêcheux (1990), tem-se a noção de interpretação de redes de sentido, geradas em dadas condições de produção - a escrita jornalística é afetada por elas. Ademais, a partir de Foucault (2006), recolhe-se a noção de que o sujeito-jornalista se relaciona com muitos outros sujeitos (fontes de informação, editores, pares etc.) e está submetido a regras sociais na circulação e funcionamento dos discursos.

Entende-se por campo (BOURDIEU, 1997) um espaço estruturado em que há diversas forças, dominantes e dominados, em embate. Nele, as práticas sociais são lugares de produção simbólica. Para Bourdieu, a prática jornalística, relativamente autônoma, depende muito dos campos político e econômico. A prática social de um indivíduo pode ser compreendida como de uma ligação a um campo, em função da relação habitus e capital.

Neste sentido, tem-se ainda que a noção de habitus contribui à escrita jornalística na medida em que o sujeito-jornalista, em sua função-autor, é capaz de reconhecer, em suas fontes de informação, um “sistema de disposições (mecanismo de ação) duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funcionam como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações” (BOURDIEU, 1983, p.65).

Serão descritas as condições de produção do jornalista contemporâneo com base nas pesquisas de Schmitz (2018) sobre o perfil do jornalista brasileiro para fazer-se uma descrição mais precisa sobre o sujeito que escreve sobre gastronomia no final dos anos 2010.

Neste ponto, dá-se a intersecção entre os diálogos provocados pela mídia e os comestíveis propostos à dieta e à culinária ao longo do tempo em que a gastronomia se assenta como conceito e informação no contexto brasileiro – formalmente, em nível acadêmico, desde 1999, quando surgem os primeiros cursos superiores de gastronomia no país (COSTA, 2011) e a mídia passa a “glamourizar” a profissão “cozinheiro”.

Pode-se adiantar dizendo que a “mídia” gastronômica, não raro no contexto contemporâneo brasileiro, tende a “mascarar” a “realidade” ao divulgar o comestível “cinco estrelas” com certa naturalidade, ou seja, como se não houvesse o sentido historicamente construído do acesso restrito ao quase inacessível (raro/ exótico/ caro) ou pouco costumeiro, ou seja, à seara da haute cuisine ou da cozinha culta – consolidada, no século XVII, para atender aos desejos de uma elite francesa detentora de poder real de escolha (BUENO, 2016), mas que deveria tornar-se uma ciência mais 42 democrática. “Por que a possibilidade de se nutrir com produtos de qualidade, o prazer de saborear uma boa comida e a defesa da soberania alimentar devem ser direitos de todos” (PETRINI, 2009).

Por outro lado, a compreensão acerca dos valores contemporâneos da alta gastronomia, como a preferência a ingredientes locais, sazonais, orgânicos e produzidos de forma sustentável por uma rede de pequenos produtores, contribui a melhores “escolhas”: parece paradoxal defender o habitus (Bourdieu, 1979) das elites quando justamente são elas as consumidoras da “gastronomia sustentável” pelo estilo de vida que mantém.

Os estilos de vida são, assim, os produtos sistemáticos dos habitus que, percebidos em suas relações mútuas segundo os esquemas dos habitus, tornam-se sistemas de sinais socialmente qualificados - como “distintos, “vugares” etc. A dialética das condições e dos habitus é o fundamento da alquimia que transforma a distribuição do capital, balanço de uma relação de forças, em sistema de diferenças percebidas, de propriedades distintivas, ou seja, em distribuição de capital simbólico, capital legítimo, irreconhecível em sua verdade objetiva. (BOURDIEU, 1979, p. 1964).

Verifica-se então, a partir da cobertura do Fruto de 2018, o que pode vir a despertar o “apetite” do jornalista profissional, à cobertura de pautas relacionadas à gastronomia à brasileira/ à gastronomia sustentável. E, finalmente, de que maneira a evolução do sentido do gosto caminhou do início da gastronomia enquanto “ciência”, com Brillat-Savarin (1826) à teoria do gosto de Bourdieu (1979), indicadora da relação entre classe social e práticas de consumo – e, portanto, à necessidade de criar-se produtos adequados ao gosto de leitores “mais gourmets” – que não leem sem critério, como fariam leitores glutões, por analogia (graças à deriva) entre campos (gastronômico e jornalístico). Análise que se dá mediante a leitura dos recortes selecionados do discurso sobre o Fruto, o que ficará evidente na descrição do corpus discursivo e da metodologia.

De qualquer maneira, a constatação sobre a aproximação possível entre habitus - as estratégias de trabalho e as práticas jornalísticas - e o “saber” do jornalista mobiliza outras pensatas, insights e verbetes à medida em que se compreende que a formação do repertório do degustador ou comensal – quem decide o que levar à boca - está para o repertório do leitor ou consumidor de informação – quem decide o que levar ao âmago. Toma-se que cada prato de comida é uma materialidade discursiva extremamente complexa, repleta de escolhas e significados. E que relevância e qualidade alimentar, portanto, ditam mais a noção do verbo “gostar” que a quantidade de dados ou de insumos disponíveis. Tudo depende da interpretação.

A partir de Pêcheux (1990) e de Dela-Silva (2008) entende-se que os papéis sociais desempenhados pelos “leitores” incidem sobre os efeitos de sentido construídos num texto e, assim sendo, tem-se que as formulações que ele faz dependem de certa inscrição no interdiscurso, ou 43 seja, na memória do dizer. Dado o contexto sócio-histórico do Fruto e as condições do jornalista que procedeu a cobertura daquele evento, tem-se que para:

Compreender o discurso como estrutura e acontecimento é trabalhar com a possibilidade de interpretação própria do dizer, de modo a observar os seus efeitos de sentido, que se produzem no jogo entre regularidades e rupturas. O batimento entre a repetição e a inovação, entre o mesmo e o diferente, é próprio da produção discursiva, que traz sempre consigo uma memória do dizer, enquanto interdiscurso, e uma atualidade. A produção discursiva é concebida pela análise de discurso como o resultado desta relação permanente entre um eixo vertical, que se marca pelo interdiscurso, e um eixo horizontal, do intradiscurso (Cf.: COURTINE, 1985). O discursivo inscreve-se neste encontro de uma atualidade com uma memória, sob condições de produção específicas. Assim se constituem os sentidos e, ao mesmo tempo, os sujeitos do discurso: no movimento constante entre repetições e rupturas. (DELA-SILVA, 2008, p. 51).

A análise discursiva do Fruto leva em conta, portanto, uma sequência de gestos de interpretação sobre a relação entre o consumo de “informação” e o consumo de “alimento” no Brasil a partir do digital (uma vez que os textos jornalísticos analisados foram publicados no digital). Dado que à medida em que se alimentam de informação e a cocriam; e em que se alimentam e retroalimentam a ágora virtual, ou “ciberespaço”, dispositivo da “comunicação todos-todos” (LEVY, 1999)23, de forma folksonômica (WAL, 2004), esses consumidores do início dos anos 2020 tornam-se capazes de influenciar a maneira como a alimentação global é projetada pela indústria de alimentos “glocal” – influenciada pela globalização do que se consome, mas atenta às demandas locais capazes de personalizar ou diversificar a oferta de produtos.

Ou seja, esses “leitores-comensais”, protegidos em seus “bunkers glocais” (cf. TRIVINHO, 2007, p.248), entre toques de teclado e tela tornam-se capazes de antecipar modelagens de consumo escaláveis por uma indústria de alimentos mais inovadora e eficiente justamente por ela estar: 1) atenta às demandas do “usuário” (na acepção do design) e 2) atenta à noção de reterritorialização dos espaços própria do contexto glocal onde há, muitas vezes, a mimesis do real no digital, os aparecimentos e os desaparecimentos de informação e de autores. Note-se que glocal, conforme Trivinho (2007, p.248) é um fenômeno comunicacional recente: “Um bunker de acoplamento corporal e simbólico imaginário entre ser humano e máquina processado no lugar de acesso como ambivalência representativa do contexto local e umbilicalmente vinculado aos conteúdos da rede como dimensão representativa do universo global”.

Ademais, se levados em conta, ainda, os conceitos de marketing de conteúdo (REZ, 2016) e de conteúdo de marca (cf. ZOZZOLI, 2010; branded content ou brand content ou o branded

23 Pierre Lévy diz que “realidades virtuais compartilhadas, que podem fazer comunicar milhares ou mesmo milhões de pessoas, devem ser consideradas como dispositivos de comunicação ‘todos-todos’, típicos da cibercultura” (Lévy, 1999, p. 105). 44 entertainment), pode-se concluir que, neste novo milênio, boa parte das mais sérias marcas gastronômicas ativadas dá conta de criar vínculos emocionais com o consumidor sem interrompe- lo, como faziam reclames e propagandas dos anos 1960 até meados dos anos 1990, justamente por compreender o mecanismo das narrativas ou do storytelling, ferramenta tão comum ao jornalismo/ à prática jornalística.

Noutras palavras, as marcas, em momentos estratégicos (caso do lançamento da marca Fruto em coletiva de imprensa ainda em 2017), passaram a produzir “conteúdos relevantes” sobre si mesmas e, assim, a serem consumidas não somente pela utilidade de seus bens e produtos, mas pelo significado de seus discursos, de suas histórias impregnadas de valores e posicionamentos adequados aos “arquétipos”, segundo a teoria de Mark e Pearson (2001), esperados pelos usuários. Então, “não causa surpresa que o apetite do público por significado seja tão intenso que as marcas arquetípicas (na forma de personalidade, figuras públicas e oferta comercial) são abraçadas com fervor e defendidas ferozmente”. (MARK E PERSON, 2001, p. 56).

A noção de inocência presumida do consumidor ou de impulso à conversão de compra causado pela publicidade (a sensação de “eu comprei porque fui induzido a”) se corrói à medida em que as mudanças nos diversos estilos de vida, desde os anos 1960, da contracultura e da indústria cultural, impulsionam justamente o consumo e a produção de opiniões sobre o que se consome – seja alimento (gastronomia) ou seja informação (jornalismo), ambos campos levados em consideração nesta pesquisa. Por isso, as marcas buscam se diferenciar umas das outras em minúcia a fim de “conquistar”, numa nova espécie de “luta diária”, os “corações e mentes” de seus clientes/usuários/fãs/comensais.

Conforme Aaker (2015), “criar uma marca interna forte”, sobretudo em tempos contemporâneos em que se pode desbancar o discurso publicitário institucional com um certo afã netnográfico (ou seja, a partir da etnografia virtual, metodologia científica utilizada para compreender-se o comportamento do consumidor na internet), “envolve três fases complexas”: “aprender”, “acreditar” e “viver a marca”. Não há espaço para ilusão num contexto em que se pode aferir, em tempo real, se a marca vai além de seus enunciados, histórias ou discursos.

Neste sentido, o Fruto pode ser aferido e validado por seus leitores-comensais. Em sendo os próprios gastrônomos produtores de conteúdo e de discurso, tem-se uma sequência de proposições engajadas capazes de obstinar novos diálogos comestíveis, sustentáveis ou não. É este um 45 importante ponto de inflexão no discurso Fruto. Por outro lado, há que se levar em conta a noção de repertório ao jornalista posto a traduzir certos discursos e enunciados.

É à mesa dos espaços públicos, nem sempre no tempo livre, no entanto, e desde o século XVIII, em que “apetites privados” (SPANG, 2003) são externalizados, ainda que de forma “disciplinada”, por gourmands e gourmets. Se, para Adorno (2002), cultura e entretenimento se equivalem, em certo ponto, e graças à indústria cultural, “comer” como opção de lazer, experiência e diversão (caso do Fruto) pode denotar bom ou mau gosto (BOURDIEU, 1979) gastronômico, de boas ou más referências estéticas. Aqui toma-se o “comer” significado no equívoco entre pares dialógicos: cultura/entretenimento; sustentabilidade/ saudabilidade; identidade e consumo etc.

Noções importantes da AD, sujeito e equívoco permitem analisar o Fruto tanto pelos textos que a marca produz (press release) quanto nos textos jornalísticos sobre ele. Na análise do objeto Fruto no digital vê-se que ao constituir-se “sujeito” - o palestrante, o idealizador, o chef, o jornalista, o ouvinte, o participante etc. - ele se torna aberto ao equívoco, às falhas na língua em função de sua inscrição em certas formações discursivas (ORLANDI, 1996). Esse equívoco revela as evidências que constituem o sujeito que enuncia, ao produzir um texto (algo materializado) que o desnuda. Isso faz com que sejam produzidos outros sentidos sobre o que foi dito pelo “sujeito” quando lido por “outro”, o que pode gerar ruído, mal estar.

Assim, para escrever sobre o fato jornalístico e gastronômico, o jornalista especializado precisa interpretar os processos de textualização com responsabilidade sobre a leitura dos enunciados e considerando os efeitos de sentido e efeitos de verdade que produzirá no meio sócio-histórico. A “materialidade descritível” do Fruto (o conjunto de recortes que constitui o corpus desta análise) “coloca em jogo o discurso-outro como espaço virtual de leitura” (PÊCHEUX, 2008, p. 55), estabelecendo relação com a memória histórica (o Fruto foi...). Portanto, “buscar a compreensão de processos discursivos” nos textos jornalísticos é “pensar a imprensa historicamente, em relação aos sujeitos jornalistas, envolvidos na produção dos discursos, e aos sujeitos leitores, a quem ela se dirige em uma época dada” (DELA-SILVA, 2008, p.1).

1.4 Por que “ler” este arquivo “hoje”?

Ao mesmo tempo em que há certa escassez de produções acadêmicas sobre a relação contemporânea entre a produção jornalística e o consumo de gastronomia no período recorte (de 46

1999 a 2019, expressivo por ladear-se ao início da produção acadêmica sobre os conceitos de “hospitalidade” e a “gastronomia brasileira”), há divulgação científica sobre a imprensa que trata da culinária brasileira (muitas vezes confundida ou nomeada como gastronomia) e sobre a dietética à brasileira. Nesse contexto, esse evento gastronômico que não centralizou seus debates no espetáculo de chefs de cozinha renomados e seus receituários, mas na complexidade do debate sobre a cadeia do “alimento”, chama a atenção.

O corpus analítico acolhido, estável e restrito a uma seleção textos de diversos repórteres/ produtores de conteúdo sobre o Fruto, traz marcas de uma discursividade pensada pelo digital e disponibilizada, por vezes, em “sistemas lógico-portáteis”, conforme Pêcheux, que se transformam em “sistemas lógicos digitais”, em Dias (2018) - como as redes sociais.

Ora aparece afetado por memórias discursivas sobre o que se entende por “gastronomia” e ora por muitas memórias metálicas (ORLANDI,1996) - aquelas que não são esquecidas (ao menos até que o arquivo fique instável, ou seja, fique indisponível ou seja atualizado etc) às quais os sujeitos recorreram em sua jornada de escrita, em certo momento histórico e em certas condições de produção. A noção de memória metálica, particularmente importante a esta análise, é de que ela é:

Produzida pela mídia, pelas novas tecnologias de linguagem. A memória da máquina, da circulação, que não se produz pela historicidade, mas por um construto técnico (televisão, computador etc.). Sua particularidade é ser horizontal (e não vertical, como a que define Courtine), não havendo assim estratificação em seu processo, mas distribuição em série, na forma de adição, acúmulo: o que foi dito aqui e ali e mais além vai se juntando como se formasse uma rede de filiação e não apenas uma soma, como realmente é, em sua estrutura e funcionamento. Este é um efeito – uma simulação – produzido pela memória metálica, memória técnica. Quantidade e não historicidade. Produtividade na repetição, variedade sem ruptura. E o mito, justamente, desta forma de memória é o “quanto mais, melhor. (ORLANDI, 2010, p. 9, grifos nossos).

Tem-se aqui a noção de que o discurso sobre a “gastronomia brasileira” elaborado no século XXI se constitui a partir da memória sobre a sua própria historicidade (atada à noção de formação da “cozinha” e da “culinária brasileira”, formuladas desde 1500) e dos discursos esquecidos sobre a “gastronomia brasileira” (por assim dizer, o que já não mais se sustenta dizer sobre formulações anteriores), conforme Pêcheux. Tem-se então um corpus representativo (GUILHAUMOU, 2002).

Buscou-se, recortar o corpus a partir do arquivo lido conforme as condições de produção do discurso, organizando-o em três séries, consideradas as datas de circulação dos textos na mídia: “pré-evento” (1), “durante evento” (2) e “pós-evento” (3). A análise aprofundada se dá 47 especificamente acerca de enunciados recolhidos de 35 textos identificados como sendo produzidos na fase pós-evento.

Foram muitos os gestos de leitura e as interpretações dos sentidos ditos e não-ditos; dos entremeios e dos silêncios. Afinal, o texto “coloca em jogo o discurso-outro como espaço virtual de leitura” (PÊCHEUX, 2008, p. 55) e foi preciso observar-se também os sentidos para além dos enunciados, das palavras-chave e dos próprios ditos para avançar-se aos equívocos, aos interditos, às paráfrases e às contradições. Foi preciso provocar e interrogar os sentidos.

Cabe ao analista, na elaboração de sua análise, e na explicitação de seus resultados, mostrar a eficácia de seus procedimentos e a consistência teórica com que a conduziu. O ponto de partida de sua análise é sua questão, sendo, esta, parte da sua investigação, de sua inteira responsabilidade. O que não significa que a análise não tenha sua necessidade e balize teoricamente seu campo de validade. Mas seus resultados levam a muito mais do que aquele objeto de que partiu em sua análise, e pode, inclusive, produzir deslocamentos na teoria. (ORLANDI, 2013, p.4, grifos nossos).

1.5 Condições de produção desta pesquisa

O interesse pelo tema desta pesquisa se deu em meados de 2015, quando o cenário das redações brasileiras se tornou ainda mais árido, erodido e silencioso e, portanto, houve mudanças consideráveis no contexto das ambiências e condições de produção dos profissionais de imprensa (ver relato sobre)24. À época, segundo levantamento do Portal Comunique-se25, mais de 1.500 jornalistas foram desligados de seus postos e diversos veículos de comunicação foram extintos, caso da Gazeta Mercantil e do Jornal da Tarde.

24 À época, trabalhava, semanalmente, pela divulgação de pautas relacionadas à noção multidisciplinar da gastronomia em minha coluna “Comer e Beber”, na Revista Metrópole, suplemento dominical do jornal Correio Popular, em Campinas (SP), certa de que os leitores do veículo estariam mais interessados em pensar com as fontes de informação do que em replicar receitas em casa – tema que povoava outras páginas da mesma publicação e de muitas outras, Brasil adentro, mundo afora. A coluna que redigi de 2009 a 2015 era uma de minhas tarefas cotidianas – todo jornalista da era multifunção desde o final dos anos 1990, não seria exceção. Ao conviver com colegas da mesma editoria (gastronomia) em coletivas e afins, passei a notar o grau de especialização de quem a cobria para seus respectivos veículos. Muitos eram “focas”, literalmente. Outros sequer cozinhavam normalmente, o que não é exatamente um problema. Uns raríssimos detinham noções técnicas de culinária, ou seja, falava a língua da gastronomia e traduzia o discurso desse campo direitinho. E uma parcela diminuta já havia acessado literatura robusta sobre o tema, poderia ser definida como pesquisador ou especialista. Voltando ao contexto em que todos esses tipos se cruzavam e trocavam figurinhas. Os cozinheiros, em entrevistas concedidas a mais de um repórter, não raro, precisavam traduzir seus jargões, muito distantes do jargão jornalístico. E, se porventura, dissessem da gastronomia mais holística e pensada para as gerações futuras, que faziam nomes como Paulo Martins (saudoso embaixador da cozinha do Pará) ou pontuassem algum viés ecogastronômico, pronto. Passara, no início dos anos 2010, a questionar-me sobre as competências (não formações) mínimas para reportar-se pautas relacionadas à “gastronomia sustentável” (termo que não circula efetivamente, mas está intimamente ligado à transição da ego(cêntrica)gastronomia para a ecogastronomia) a diversos grupos de leitores ou “buyer personas”, termo comum ao marketing: leigos, iniciantes no universo gastronômico, experts, chefs de cozinha etc. Este “prato do dia do jornalismo cultural” (Amaral, 2016) estava servido a muita gente com fome de incerta novidade, de tendências, de entretenimento, nem tanto de comida boa para pensar. Por outro lado, havia uma sensação de que as pautas boas para pensar em coisas além do que havia dentro do prato (comportamento, saudabilidade, botânica, arquitetura, design etc.) eram justamente as mais interessantes para apurar e ler.

25 Leia reportagem sobre o cenário apresentado aqui em: Acesso em 02 jul. 2020> Acessado em: 01 nov. 2019. 48

Ao mesmo tempo, notava-se uma aparente recorrência de reportagens relacionadas às consequências do aquecimento global, sobretudo nas editorias de política e economia, em função dos desdobramentos da 21ª Conferência das Partes (COP-21) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) e da 11ª Reunião das Partes no Protocolo de Quioto (MOP-11), realizada em Paris. Coincidentemente, foi na cidade em que a gastronomia “nasceu”, Paris, onde 195 partes (ou representantes mundiais) determinaram 17 objetivos comuns ao desenvolvimento sustentável. Jornalistas tinham um sem fim de pautas novas sobre o tema “desenvolvimento sustentável” a tratar, boa parte delas relacionada ao consumo. À gastronomia, claro, interessaria saber mais sobre o consumo de alimentos.

Também já se discorria muito acerca dos reflexos econômicos da Indústria 4.0 (ou 4ª Revolução Industrial) e da Agricultura 4.0 - movidas pela revolução digital e focadas no aumento da produtividade. Sobretudo à época do Fórum Econômico Mundial, evento sediado na Suíça desde 1971 e que, marcadamente desde 2015, tem colocado a sustentabilidade e as mudanças climáticas no centro de seus debates.

Em 2015, aliás, os mais de 2.500 participantes do evento vislumbravam encontrar soluções para a crise econômica global em meio à valorização do dólar, ao crescimento da China, à queda do preço do petróleo, à deflação na União Europeia e à inflação e à corrupção galopantes no Brasil. Esse “celeiro” do mundo a enviar commodities como soja, açúcar, frango e carne bovina para países como a China - importante parceira comercial do Brasil desde 2009, com 22% do total das exportações e 18% das importações em 2017, segundo o Governo Federal. Dados como esses e milhares de outros atrelados às abas agronegócio e indústria chamavam a atenção de repórteres acerca da produção de alimentos no Brasil.

Também havia um clima de incerteza sobre produção de informações, em meados de 2015. Acerca da fragmentação de informações e do temor acerca da perda da privacidade em um contexto de marketing 4.0. Conforme Philip Kotler (2016) passa-se a uma comunicação que vai da tradicional à digital e pensada para o novo consumidor – omni-channel, expressão complexa, plural e emergente do campo do marketing que serve para definir um consumidor sempre conectado aos meios digitais e disposto a consumir em todos os pontos de contato que tiver com a marca, sejam eles online ou offline, a fim de ter experiência de compra integrada ou “sem costuras”.

Noutras palavras, significa também dizer que as marcas passam também a produzir seus próprios conteúdos e a discuti-los em multiplataformas com seus consumidores omni-channel. Em boa parte 49 da apuração de pautas, tem-se justamente em multiplataformas os dados que podem contribuir à construção da reportagem ou à produção noticiosa.

No início desta pesquisa, havia a noção de que o leitor-comensal parecia transitar, desde os anos 2010, do prazer (hedonista) à fruição que propõe o texto jornalístico mais denso, mas em raras oportunidades – ou quando se propusesse a experimentar (aproveitar ao máximo) um texto.

Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem. (BARTHES, 1987, p.21-22, grifo nosso).

Pois os textos sobre a gastronomia [à brasileira] pareciam começar a fazer sentido, na medida de sua circulação em massa em suplementos específicos, conforme Amaral (2016). Quanto mais complexos e mais sedutores, melhor, por serem direcionados aos experts e aos aficionados, justamente, pelos textos gastronômicos.

Essa linguagem gastronômica tão peculiar, que delimita os públicos leitores e, portanto, seus gostos, está no centro do interesse desta pesquisa. Neste sentido, pretende-se compreender se a linguagem gastronômica que acolhe a noção de sustentabilidade no Fruto é consumida e digerida, ou seja, compreendida enquanto discurso, pela leva de jornalistas que acompanhou esse evento e o traduziu para a audiência disposta a consumir alimentos de forma mais sustentável ou consciente. Ou, se como dito anteriormente, se o gosto do Fruto corresponde ao gosto provado e feito circular pela mídia.

Conforme Helena Jacob (2013), defensora da ideia com a qual concorda-se aqui de que a gastronomia é, em suma, uma linguagem em si, os textos midiáticos sobre a gastronomia inauguram uma nova linguagem capaz de “criar cultura” em seu público “fixando sentidos, símbolos e valores” (p.120). E, para que sejam aderidos a esse público, é preciso que circulem e que modulem os gostos dentro de uma rede de sentidos com vocação para ser interpretada e compreendida por quem detém, além de condição econômica e formação cultural (ou herança cultural, cf. BOURDIEU, 1979), a noção de gostar de ler esse texto de gastronomia – geralmente mais apurado, intelectualizado.

Com frequência, consumir gastronomia é devorar aquilo que é exótico e diferente para a nossa vida. Assim, precisamos pontuar que a constituição da gastronomia como linguagem do sistema cultural da cozinha advém primeiramente do fato de que a gastronomia é um fenômeno comunicativo de exposição. (JACOB, 2013, p.120, grifo nosso). 50

Aposta-se, portanto, que o texto gostoso, gastronômico, é dizível. É complexo e, ao mesmo tempo, acessível. Simples ou erudito, vai do cru ao cozido e bem apurado, como na antropologia se propõe, mas não é “cozinhado”, como se diz no jargão jornalístico sobre o texto mal escrito. Também se afasta do texto tipo “gilete press” (de uma nova versão do release), das paráfrases, tão presentes no digital.

Toma-se que o texto gostoso, gastronômico, é mais slow news do que fast news, bem como propõe a teórica literária Susan Greenberg (Hermann, 2016) em analogia ao que dissemina, a partir de 1989, o Movimento Slow Food do jornalista italiano Carlo Petrini. Nele, o leitor encontra prazer na palavra devorada e exprimida, muitas vezes, em forma de crônica ou crítica gastronômica (cf: AMARAL, 2016). E com ela dialoga – porque sente prazer no que lê. Porque desfruta de uma experiência decorrida do diálogo com esse outro tipo de alimento. Isso ficará mais claro na parte três, que trata do texto jornalístico-gastronômico.

Após a análise dos textos, parte-se às considerações finais, que acolhem duas perspectivas. Uma mais analítica e motivada a avaliar em que medida as questões levantadas nesta introdução foram respondidas a contento e quais mereceriam alargamento de investigação no futuro. Espécie de fecho de pesquisa, mostra-se impregnada pelo contexto/ condições de produção da pandemia de Covid-19 e traz novas ponderações acerca da “alimentação do futuro” disparada por um “novo normal” detonado no início de 2020: instável, paradoxal e veloz.

Outra, literária e ficcional (considerada por isso, apêndice), tece uma conversa imaginária entre teóricos abraçados ao longo do texto, num cenário distópico: feminino, ciborgue, brasileiro e gastronômico. Ambientado em Manaus (AM/ Brasil), às vésperas do Carnaval, propõe um novo começo para a discussão sobre o gosto. “Conversas (im)prováveis de um futuro comestível” se passa no Entrudo imaginário de 2018, no Bar do Armando, no último dia do ano. Às vésperas de uma pandemia de riso e alegria, Pierre Bourdieu, Donna Haraway, Lévi-Strauss e Richard Barbrook bebericam e discorrem sobre o poder da divulgação cultural e científica, mobilizados por uma crítica gastronômica que os levou até aquele lugar. Uma maneira sutil de encarar a realidade e “ler o arquivo” já.

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2 PARTE I – A GASTRONOMIA COMO LINGUAGEM E DISCURSO

2.1 Que gosto tem “o gosto”?

Antes de analisar-se os possíveis sentidos e derivações do pensar com e sobre o gosto, é útil definir- se o que é “gosto”, essa baliza das “preferências”. Termo que encerra noções antropológicas, sociológicas, biológicas, filosóficas, gastronômicas, comunicacionais e jornalísticas, como já se adiantou em Menu du Jour.

No campo jornalístico, a teoria do gosto de Bourdieu (difundida a partir de 1979) é amplamente discutida em função da clareza que estabelece entre a disposição cultural e social ao consumo e o consumo em si. É do sociólogo francês, por exemplo, a descrição do “gosto de necessidade”, próprios às classes populares, e do “gosto de luxo (ou de liberdade)”, característico das elites. Portanto, uma forma de pensar sobre o consumo de alimentos de forma conectada à renda.

Para Lipovetsky (2007, p. 48), na sociedade do hiperconsumo, gestada nas três décadas após a segunda guerra mundial, esse pensar decai em função da transição ao “consumo intimizado” e “emocional”, ou seja, “em função de gostos e de critérios individuais”, algo orquestrado por uma lógica desinstitucionalizada, subjetiva, emocional” (LIPOVETSKY, 2007, p. 41). A despeito de o habitus não fazer tanto sentido mais nesta terceira era do capitalismo de consumo, pela individualização do gosto, escolher-se comer o que se gosta pode ser considerado um “luxo” que trará certas consequências nutricionais:

À medida da ascensão na hierarquia social, a parcela do consumo alimentar diminui ou que a parcela no consumo alimentar dos ingredientes pesados e gordurosos e que levam engordar, além de serem baratos – massas, batatas, feijão, toucinho, carne de porco (F.C., XXXIII) - e, também, vinho decresce, enquanto aumenta a parcela dos ingredientes magros, leves (de fácil digestão) e que não levam a engordar – carne de boi, de vitela de carneiro, de ovelha e, sobretudo, frutas e legumes frescos, etc. (BOURDIEU, 1979, p.168).

Ao mesmo tempo, conforme Bourdieu, que ao longo dos anos 1970 se dedicou a pesquisas sobre o processo de diferenciação social tendo por ambiente de observação a França, as práticas culturais podem situar o gosto (e, por conseguinte, o consumo) na “zona da privação” ou do “luxo eletivo”.

Pensando-se contemporaneamente, o jejum intermitente das dietas da moda (que seria o luxo eletivo de não comer) ou dos atos de fé pode ser erroneamente compreendido quando descrito ao e interpretado pelo famélico em seu contexto cultural e sócio histórico. A fome é inadmissível. 52

Pensando-se sobre a fé, é dada como aceita ou muito comum a noção de privação do comer para a elevação do espírito – rituais que o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), por exemplo, discute ao longo de suas “mitológicas” ao etnografar as formas de organização e comportamento dos povos ameríndios: O cru e o cozido (1964); Do mel às cinzas (1966); A origem das maneiras à mesa (1968) e O Homem Nu (1971).

Deslizando-se ainda mais os sentidos do gosto, conforme Perullo (2013), que trata aprofundadamente do “gosto como experiência”, pode-se conjecturar de que maneira o paladar, que precede a noção de gosto, é modulado a fim de propiciar o desenvolvimento mais subjetivo do que se entende, de forma análoga, por predileção (escolha). E compreender-se-á que há certa noção estética do paladar. Que é multissensorial e guiada pela visão, um dos sentidos mais aguçados ao longo da evolução humana cuja memória é recheada de... sabores (as memórias discursivas sobre os alimentos, pois seu funcionamento se dá “através da repetição de enunciados” sobre o objeto, conforme a teoria de Pêcheux). Assim:

O cozinheiro, nesta concepção, seria como um arquiteto ou um designer, ou, ainda, um artista conceitual. Portanto, a culinária artística não seria a culinária “normal” e ordinária, mas somente a especial e excepcional; e esta excepcionalidade não residiria na maior capacidade técnica e prática do cozinheiro, mas na sua originalidade. (PERULLO, 2013, p. 40).

A originalidade decorreria, portanto, para além do domínio técnico (da repetição dos gestos culinários e da repetição da prova dos sabores dos alimentos) e da criatividade, do domínio dos sentidos que o cozinheiro, em seu papel artístico-performático, pretenda compartilhar com o comensal. Assim, pode-se pensar que há um território comunicacional próprio da relação cozinheiro-comensal muito amparado pela forma de apresentação da “criação” de um prato; de uma narrativa empratada, de um diálogo comestível.

Isso porque cada discurso, cada afirmação sobre o valor do paladar e sobre a importância da gastronomia é um enunciado intelectual. Em outras palavras, é possível graças a ideias, a conceitos teóricos. [...] O paladar precisa ser observado, ser refletido, ser introspectado, mas também ser expresso, compartilhado e conceitualizado para poder ser avaliado e utilizado em todas as suas potencialidades. [...] Em outros termos: são a qualidade e a apreciação da introjeção, da assimilação e do metabolismo de determinado alimento que lhe determinarão o valor estético, não a instauração de analogias formais com outros objetos (por exemplo, os artísticos, no sentido tradicional), expressão de outros valores (a beleza formal, a elegância e a harmonia forjadas na “contemplação” a distância, porque tais objetos não poderão jamais ser introjetados. (PERULLO, 2013, p. 41-42, grifos nossos).

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Se transposta essa discussão para a seara da AD, ter-se-ia a noção da importância da circulação dos discursos. E, portanto, da circulação dos sentidos, sempre inexatos, toda vez que o sujeito cozinheiro e o sujeito degustador “conversam” sobre o comestível.

A interpretação está presente em toda e qualquer manifestação da linguagem. Não há sentido sem interpretação. Mais interessante ainda é pensar os diferentes gestos de interpretação, uma vez que linguagens, ou as diferentes formas de linguagem, com suas diferentes materialidades, significam de modos distintos. (ORLANDI, 1996, p.9).

Nas palavras de Perullo sobre o paladar humano, essa “habilidade endocorpórea”, que interage com outros atores importantes em múltiplos contextos nos “cenários do sentido” (PERULLO, 2013, apud PERULLO, 2011), entender-se-á que ele está submisso (condicionado) a uma “estética do cotidiano” – ou seja, às práticas do sujeito, às condições de produção que o envolvem e suas contradições.

Se o hábito individual é “o comer saudável”, por exemplo, o paladar pode estranhar o fast food, que significa, para esse sujeito, o “comer não saudável”. Se os pratos gastronômicos são “complexos”, esses podem não apetecer ao sujeito que prefere os “menos elaborados”.

Tem-se assim uma ilustração acerca do que se entende, em AD, por formação discursiva (ORLANDI, 2003, p. 32), pois as palavras não têm um sentido em si mesmas, dado que seus sentidos dependem das formações discursivas (e ideológicas) em que se inscrevem os sujeitos. Sendo assim, tem-se que o paladar evolui à medida em que é provocado a aprender de forma prazerosa (educado); o que nem sempre ocorre no ambiente estritamente formal, algo que fazem por obrigação os estudiosos, os eruditos da gastronomia.

O paladar é “natural” e afetado pelos gestos de interpretação disponíveis sobre os alimentos Os níveis de gradação para “amargor” podem, por exemplo, se descritos em uma receita, o “texto- código” da linguagem culinária, como define Jacob (2013, p.71), nortear o paladar mais ou menos filiado aos sentidos do “amargo” e capaz, por isso, de suportar desde o pouco amargo até o muito amargo em uma escala de referências de amargor conhecidas.

Pode-se dizer, de forma introdutória, que o mesmo raciocínio acerca dos “gestos de interpretação” (ORLANDI, 1999)26 sobre os sabores de um “alimento” vale para a compreensão do “texto” a ser

26 Em “Análise do discurso - princípios e procedimentos” (1999), Eni Orlandi distingue “a inteligibilidade, a interpretação e a compreensão”. A inteligibilidade está no plano da codificação da língua. Para que haja interpretação, é preciso haver atribuição de sentidos, ou seja, estabelecer-se relações entre o texto, o co-texto e o contexto imediato. Já a compreensão depende do reconhecimento da determinação sócio-histórica dos sentidos e da articulação entre os sentidos produzidos em um 54 lido - quer seja de notícias “inteligíveis” e “interpretáveis” mais complexas (do campo jornalístico) ou de obras de arte mais “inteligíveis” e “interpretáveis” mais complexas (do campo artístico). Ou seja: quanto maior o repertório ou a vastidão de referenciais acumulados pelo sujeito-leitor, mais opaca a interpretação e compreensão dos discursos que o atravessam. Afinal,

“O mesmo leitor não lê o mesmo texto da mesma maneira em diferentes momentos e em condições distintas de produção de leitura, e o mesmo texto é lido de maneiras diferentes em diferentes épocas, por diferentes leitores. E isso que entendemos quando afirmamos que há uma história de leitura do texto e há uma história de leitura dos leitores.” (ORLANDI, 2012 p. 62, grifos nossos). Da percepção de “distinção” pelo “discernimento”, o que depende de treino do paladar e dos sentidos, pela “leitura dos textos”, até que ambos se tornem apurados para “decretar” entre o que é de “bom” e o que é “mau” gosto, tem-se, ainda, o “gosto para tudo”. E assim, associa-se o gosto, como juízo de valor, como dom de discernir, a outros tantos substantivos possíveis, em “quaisquer idiomas”, como define Voltaire, em seu Dictionnaire philosophique (1764):

“O gosto, esse sentido, esse dom de discernir nossos alimentos, produziu em todos os idiomas conhecidos a metáfora que expressa, pela palavra gosto, o sentimento das belezas e defeitos em todas as artes: trata-se de um discernimento rápido, como o da língua e do palato, e que predispõe como ele à reflexão; como ele, é sensível e voluptuoso em relação ao bom; rejeita, como ele, o mau de forma violenta [...]. Do mesmo modo que o mau gosto, do ponto de vista físico, consiste em ser lisonjeado apenas por temperos picantes e rebuscados em demasia, assim também o mau gosto nas artes é se comprazer apenas com ornamentos artificiais e não sentir beleza alguma. (VOLTAIRE, 1764 apud FLANDRIN e MONTANARI, 1996, p. 685). Pode-se, então, observar a influência que os códigos sociais, sendo muitos de distinção (BOURDIEU, 1979), exercem sobre os territórios do gosto. E sobre as recomendações e os comentários sobre o gosto, que pode denotar o domínio de certo “capital cultural” – “as necessidades culturais são o produto da educação”, sendo que as “preferências do gosto” têm relação com o “nível de instrução”, com a “origem social”, com a “educação familiar e a educação escolar” (BOURDIEU, 1979, p. 9).

Assim, se compreender-se, no campo gastronômico, “o alimento” (em seu sentido mais amplo, como foi abordado no Fruto) como um “bem cultural”, e analisar-se o “campo jornalístico” – que cobre as pautas gastronômicas – poderá se verificar se, em função da diversidade de produções jornalístico-gastronômicas e do repertório e estilo empregados nos textos houve adequação ao público leitor, considerados os sistemas de disposições (habitus) desses sujeitos leitores. Para Bourdieu (1979, p.13):

“O gosto classifica aquele que procede à classificação: os sujeitos sociais distinguem-se pelas distinções que eles operam entre o belo e o feio, o distinto e o vulgar. (...) Oposições

dado gesto de interpretação e a memória do saber. 55

de estrutura semelhante às que se observam em matéria de consumo cultural encontram-se, também, em matéria de consumo alimentar: a antítese entre a quantidade e a qualidade, a grande comilança e os quitutes, a substância e a forma ou as formas, encobre a oposição, associada a distanciamentos desiguais à necessidade entre o gosto de necessidade – que, por sua vez, encaminha para os alimentos, a um só tempo, mais nutritivos e mais econômicos – e o gosto da liberdade – ou de luxo – que, por oposição à comezaina popular, tende a deslocar a ênfase da matéria para a maneira (de apresentar, servir, comer, etc.) por um expediente de estilização que exige à forma e às formas que operem uma denegação da função”. (BOURDIEU, 1979, p.13, grifos nossos)

Pois se há um pré-texto sobre o Fruto, “um evento restrito”, conforme informa o press release, ou seja, pensado para convidados previamente selecionados assistirem à versão presencial no auditório da Unibes Cultural, em São Paulo/SP, limitado a 300 assentos), há uma consequente percepção de segmentação de produção textual por parte de quem cobriu o evento (jornalistas/ produtores de conteúdo); e de leitura, também por conseguinte, dos sujeitos leitores desses textos.

Trocando em miúdos, aposta-se, com base nos já-ditos sobre os organizadores – representantes icônicos da alta gastronomia, com destaque à figura de Atala - e os sentidos que circulam sobre os seus enunciados – complexos, por estarem inscritos no campo gastronômico, que não será qualquer mídia que interpretará e compreenderá o Fruto a ponto de noticiar seu “gosto” com base nos sentidos de “alimento” que o evento aborda; assim como não será qualquer leitor-comensal que entenderá “o gosto” do Fruto “edição zero”.

Figura 6 – “Gastroperformance” de Simone Mattar no Seminário Fruto – Diálogos do Alimento de 2018. Foto: Érica Araium

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2.1.2 O gosto (gastro) midiático27

Há um importante processo de mediação na alimentação, como ensina Jacob (2013, p. 28) a ser considerado, pois “quando se aborda o processo comunicativo do alimento, é preciso lembrar que existem inúmeros processos mediativos envolvidos neste sistema”. Nesta análise, entende-se que a imprensa cumpre o papel de mediadora na tradução dos sentidos de “alimento” para o Fruto, portando-se, metaforicamente, como faz o cozinheiro na preparação de seu texto cultural (culinário) mediante o comensal.

Aqui vale ressalva acerca da noção “pré-construída”, ou seja, de construção anterior e exterior ao discurso do sujeito gastronômico, que se tem de uma suposta “alta gastronomia brasileira” - entendida, aqui, com base em discussões de autores como Dória (2009) e Bueno (2016), como movimento ainda em construção, à borda da segunda década do século XXI -, retratada com distinção e menções assinaladas aos “chefs de cozinha” na mídia, marcadamente, a partir dos anos 1990.

Essa noção não difere muito daquela burguesa e própria da alta gastronomia mundial ao longo da história. Escolher o que se vai comer ou o cozinheiro que preparará a refeição é código de distinção social mesmo para aqueles que, não tendo futuro ou dinheiro, vez por outra, cometem excessos em prol dos bons momentos ou do luxo da liberdade de escolha.

A definição de nobreza cultural é o pretexto para uma luta que, desde o século XVII, até os nossos dias, não deixou de opor, de maneira mais ou menos declarada, grupos separados em sua ideia sobre cultura, sobre a relação legítima com a cultura e com as obras de arte. (BOURDIEU, 1979, p. 9)

Consumir a “alta gastronomia” (como comida ou como notícia) é fazer parte de um nível social distinto. Contudo, como já antecipado, há uma confusão, no Brasil, entre as nomeações “gastronomia” e “culinária”, escancarada pelo fenômeno “gourmet” - do gosto pelo exótico e caro, da espetacularização da gastronomia. Como destaca Jacob (2013) em sua tese:

Na gastronomia, a posse, e até mesmo o excesso de informação moldam esta linguagem como mídia ao consolidar alguns dogmas como: comida gourmet precisa harmonizar com o vinho certo; restaurantes de alta gastronomia usam ingredientes naturais; o bom restaurante possui um chef mais conhecido do que o próprio local. Assim, vemos que a gastronomídia se processa no território da posse da informação, do “quem sabe mais demonstra que é um gourmet de verdade (JACOB, 2013, p. 186).

27 O termo “gastronomídia” já foi título da dissertação de mestrado de Sinval do Espírito Santo: Gastronomídia - A midiatização da gastronomia na contemporaneidade (2009). É a ele que se faz referência. 57

A hiper valorização da “informação”, ou o gosto (no sentido aqui da preferência) pelo excesso de informação situa o consumidor de gastronomia numa posição de mau gosto (de má escolha) em que, por vezes, ele valoriza mais estar perto do cozinheiro estrelado que provar o gosto de uma comida que ele preparou, destaca a autora.

Jacob exemplifica esse fenômeno pela análise de reportagens publicadas sobre o caso da “Galinhada de Alex Atala”, transformada, segundo ela, em “mídia própria” (JACOB, 2013, p. 168) durante Virada Cultural Paulista de 2012. Naquele ano, o restaurante D.O.M., de Atala, fora apontado pelo ranking The World´s 50 Best Restaurants como “o quatro melhor do mundo”. O cozinheiro fora citado, pela primeira vez, no mesmo ranking, em 2006.

A galinhada, preparação culinária originalmente do interior do Brasil, “representativa e conhecida dos restaurantes de Atala” e cuja versão foi “criada pelo sub-chef do restaurante D.O.M. Geovane Carneiro” para a brigada de cozinha (refeição dos funcionários), foi escolhido por Atala para ser servido gratuitamente naquele evento cultural, no Centro de São Paulo/SP. A promessa gerou filas e muita confusão porque as pessoas foram ao Minhocão mais pela “fome de Atala” - termo empregado em reportagem do jornal O Estado de S. Paulo de 7 de maio de 2012 para descrever o ocorrido, que pelo prato. “O que nos interessa observar é que “a fome de Atala” demonstra que o interesse pela gastronomia vai além da própria mídia. A receita foi incorporada ao menu do restaurante Dalva e Dito, outro negócio de Atala - figura que se tornou ainda mais midiática ao longo dos anos e que, desde “a galinhada”, enuncia, comumente, que “comida é cultura”.

Isso posto, vai-se ao pensar sobre o “gosto do Fruto”. Ele decorre de um “menu” composto por 31 pratos (metáfora para as palestras, carregadas de notas de sabor) e pode ser tão ou mais complexo quanto o “gosto da comida” de Alex Atala ou de Felipe Ribenboim. Sua descrição dependerá dos gestos de interpretação (ORLANDI, 2012) da imprensa sobre eles e, ainda, sobre seu próprio discurso.

Ao analista compete a responsabilidade ética pela formulação das questões da análise, do recorte do dispositivo teórico bem como das descrições a que chegou (ORLANDI, 1999). Esses procedimentos serão feitos adiante, mas aqui repete-se uma pergunta cara a esta pesquisa: o Fruto pauta os debates sobre o gosto pela gastronomia sustentável? É preciso mobilizar o sentido do gosto em seu viés gastronômico mais original para encontrar-se a resposta nos recortes tomados para a análise. Para entender-se o quanto o discurso gastronômico e as regras do campo gastronômico afetam a compreensão sobre o “gosto do Fruto”. 58

O “gosto” que normalmente se associa a um chef de cozinha como Atala ou Ribemboin é o da comida que ele “cria” (ou cocria, dadas as “redes comunicacionais na gastronomia”, conforme Lunardelli, 2017), com ajuda da repetição, da prática gastronômica. Da paráfrase sobre discursos- outros e outros jeitos (técnicas) de preparar e cozinhar o mesmo ingrediente. Portanto, da memória discursiva sobre determinado alimento, ingrediente, técnica.

2.1.3 O gosto da gastronomia

Outro sentido de “gosto”, mais comum, fica claro em um dos principais tratados gastronômicos do século XIX, A Fisiologia do Gosto (1865). Nele, Jean Anthelme Brilliat-Savarin, tomado como “pai da gastronomia”, define o gosto como “aquele de nossos sentidos que nos põe em contato com os corpos sápidos” (SAVARIN, 1995, p.46), por meio da sensação que causam na língua. O autor participou, como leitor-comensal, da ressignificação dos sentidos do alimento, da cozinha, da comensalidade e dos costumes no contexto francês dos séculos de XVII a XVIII (MONTANARI, 2008) – época de abundância alimentar.

Recheada de descrições dos modos de comer das elites, da burguesia em ascensão, a obra, que remonta ao contexto de uma conturbada França do século XVIII, norteia as tomadas de decisão dos “paladares mais delicados” que desconheciam, até aquela época, a restauração engendrada a partir de 1765 e que teriam em Antoine Beauvillers a figura do “inventor do restaurante”, local de consumo da comida restauradora, servida como caldo, conforme Spang (2000). É permeada por aforismos como “diz-me o que comes e te direi quem és”, “o destino das nações depende da maneira como elas se alimentam”, “a gastronomia é um ato de nosso julgamento, pelo qual damos preferência às coisas que são agradáveis ao “paladar” (SAVARIN, 1995, p.21).

Destaque-se o ponto de vista savariano acerca do caráter hedonista e seletivo do gosto, pois ele “nos ajuda a escolher” entre as substâncias que há na natureza, [...] “as que são próprias para servir de alimentos”. (Op. cit.) Há ciência na cozinha a orientar o que é ou não é, por seu caráter saudável, não comestível.

Curioso é que, na ponta de cá da vanguarda, o físico e químico francês Hervé This (1955-), apontado pela mídia como “pai da cozinha molecular”, também defende a gastronomia como conhecimento. “Por isso não pode haver uma culinária gastronômica. Para fazer “o gosto” a 59 questão é artística, não científica”, como definiu o cientista da gastronomia em entrevista ao site G1, em 200728. O gosto, no sentido de This, é de ciência (gastronômica) e de arte (culinária).

Embora não se tenha sacramentado a gastronomia como “ciência” ou como “arte” neste diálogo entre eras e gastrônomos, não se pode ignorar certo consenso entre os dois estudiosos sobre o “holístico” da gastronomia (como gosta de definir Carlo Petrini), capaz de nortear um sem fim de tomadas de decisão que transportam o homem da natureza (ou do estado natural) à cultura (ou ao estado cultural), algo preconizado pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss em sua obra a partir de 1964.

É ela, a gastronomia, afinal, quem “sustenta” o homem, esse poderoso onívoro degustador, “o grande gastrônomo da natureza”,

Pois, como se poderia rejeitar aquela que nos sustenta do nascimento ao túmulo, que faz crescer as delícias do amor e a confiança da amizade, que desarma o ódio, facilita os negócios e nos oferece, na curta trajetória da vida, o único prazer que não se acompanha de fadiga e ainda nos descansa de todos os outros? (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 56).

Para Savarin, além de arte, uma vez que postula seu alto valor estético e utilitário, sobretudo “às camadas mais abastadas da sociedade”, a gastronomia era uma ciência, o “conhecimento fundamentado de tudo o que se refere ao homem na medida em que ele se alimenta”. Neste sentido, a gastronomia savariana passa a um campo intelectual – cultural - de regras e interesses próprios, de produção de bens simbólicos através de um “processo de autonomização”, conforme Bourdieu (2007):

O processo de autonomização da produção intelectual e artística é correlato à constituição de uma categoria socialmente distinta de artistas ou de intelectuais profissionais, cada vez mais inclinados a levar em conta exclusivamente as regras firmadas pela tradição propriamente intelectual ou artística herdada de seus predecessores, e que lhes forneceu um ponto de partida ou um ponto de ruptura […]. (BOURDIEU, 2007, p. 101, grifo nosso).

Adiante, em “Jornalismo Gastronômico no Prato, será retomada a noção de autonomização da gastronomia no campo jornalístico graças à atuação de Grimod de la Reynière (1758-1837) como literário e crítico gastronômico consumidor do discurso sobre a gastronomia inaugurado por Savarin. Para o intelectual, conforme Bourdieu (2007), a gastronomia seria tomada como um

28 “Cientista da cozinha, Hervé This mostra fórmulas em SP”, reportagem do G1 publicada em 27/10/2007. Disponível em: Acesso em 1 fev 2020. This cunhou, com Nicholas Kurti, cunhou o termo científico "Gastronomia Molecular e Física", em 1988, que ele alterou para "Gastronomia Molecular” após a morte Kurti, em 1998. 60

“campo de produção erudita” que poderia ser definido como “sistema que produz bens culturais (e os instrumentos de apropriação destes bens) objetivamente destinados (ao menos a curto prazo) a um público de produtores de bens culturais que também produzem para produtores de bens culturais (…)” (BOURDIEU, 2007, p. 105). Um campo em que o reconhecimento do “outro” importa.

Em paráfrase, pode-se dizer que tanto os chefs de cozinha autorais (artistas) quanto os jornalistas especializados em gastronomia (e, portanto, em cultura) criam textos para leitores-comensais que podem vir a ser meros leitores ou pares (e, portanto, concorrentes), simultaneamente. “É justamente isto que ocorre com a qualidade de escritor, de artista ou de erudito, qualidade que parece tão difícil definir porque só existe na e pela relação circular de reconhecimento recíproco entre os artistas, os escritores e os eruditos. Todo ato de produção cultural implica na afirmação de sua pretensão à legitimidade cultural. (BOURDIEU, 2007, p. 108). Tem-se, assim, na gastronomia, o gosto da e pela cultura. Tem-se na gastronomia o “gosto como produção cultural”, conforme Montanari (2008, p. 95).

2.1.4 O gosto de cultura

Analisando-se o sentido de gosto de cultura com Lévy (1995), e graças ao devir gastrônomo savariano, pode-se arriscar dizer que o acesso ao alimento desenha a gastronomia, modela os comportamentos sociais, desenha o chef de cozinha e a imprensa gastronômica capaz de redefinir, palavra a palavra, o acesso ao alimento... Que desenha a gastronomia, modela os comportamentos sociais, desenha o chef de cozinha e a imprensa gastronômica, capaz de redefinir, palavra a palavra, o acesso ao alimento...

Por que o mundo da cultura, no sentido burguês do termo, ou seja, os grupos humanos que produziram e desfrutam a ciência, a filosofia, a literatura e as belas-artes, exerceu por tanto tempo tal atrativo? Provavelmente porque se aproximou, à sua maneira elitista e imperfeita, de um ideal da inteligência criativa. Eis algumas normas sociais, valores e regras de comportamento que regeriam (idealmente) o mundo da cultura: avaliação permanente das obras pelos pares e pelo público, reinterpretação constante da herança, inaceitabilidade do argumento de autoridade, incitação a enriquecer o patrimônio comum, cooperação competitiva, educação contínua do gosto e do senso crítico, valorização do julgamento pessoal, preocupação com a variedade, encorajamento à imaginação, à inovação, à pesquisa livre. (LÉVY, 1995, p.120, grifos nossos).

Assim, o chef de cozinha criativo, “autoral”, como se diz no jargão gastronômico, seria, hierarquicamente, o representante “mais culto” do campo gastronômico. Fala-se aqui da prática discursiva, na qual o sujeito “é, constitutivamente, colocado como autor responsável por seus atos 61

(por sua ‘conduta’ e ‘palavras’), em cada prática que se inscreve” (PECHEUX, 1997, p. 215). Mais uma vez a noção de “disciplina de entremeio” permeia a gastronomia, onde também interessa o inacabado (pense-se na interação do comensal com a obra comestível, inacabada até o serviço ou montagem à mesa ou ao bocado final, por exemplo e nos sentidos outros que esse “texto comestível” ganhará).

Sob esse ponto de vista, “o gosto não é de fato uma realidade subjetiva e incomunicável, mas coletiva e comunicada”, como define Montanari (2008, p. 96), de cultura em cultura. As inovações, as criações que fazem cintilar cozinheiros como autores e técnicas como caminhos às rupturas de sentidos, aos acontecimentos, decorrem de uma trama de “experiências de cultura e de gosto” (MONTANARI, 2008, p. 96), igualmente comunicadas por meio da oralidade, do receituário, da literatura, da imprensa, da produção de conteúdo. Com a historicidade, o gosto se torna um produto social. Para o historiador, comida é cultura “quando produzida”, “quando preparada” e “quando consumida” sendo que, em todos os casos, há escolhas, gostos. Contudo, também com a historicidade e, sobretudo, a partir da lógica da “aldeia global”:

Hoje, nos países industrializados, é possível encontrar produtos frescos em todas as épocas do ano, empregando o sistema-mundo como área de produção e de distribuição. (...) No plano cultural, todavia, essa revolução é apenas aparente: as necessidades e os desejos que ela satisfaz são necessidades e desejos antigos, mesmo que antigamente se realizassem em espaços mais limitados e para um número mais restrito de consumidores. (MONTANARI, 2008, p.44).

A cultura alimentar europeia, como lembra Montanari (2008, p. 32) “colocava no mesmo plano o pão e a carne, a atividade agrícola e o aproveitamento da floresta”. A variedade dos recursos e dos gêneros consumidos pelo europeu situa, segundo o historiador, “o patrimônio alimentar e gastronômico europeu” como único no mundo. Vale pensar quantas apropriações e substituições alimentares ocorreram ao longo do desenvolvimento do povo europeu, inclusive incorporações dos alimentos “brasileiros” ao longo da colonização.

Se a comida, no entanto, é, para o autor, a “linguagem cultural” do “comer junto”, há que se compreender que o excesso de informações disponíveis sobre “alimento”, nem sempre, representa diversidade alimentar. Há mais do mesmo em circulação, mas não há mais o original. Assim, pode- se pensar na substituição do original pelo “equivalente”. Ao invés de trigo, tem-se outro “cereal” para seu posto na receita de pão. Ao invés de arroz com feijão, tem-se fast food para o almoço do brasileiro. E passa-se a discutir, por outro viés, o gosto da cultura (ou da linguagem cultural), neste caso, brasileira, que mais se “conhece” contemporaneamente, algo determinante à compreensão 62 dos hábitos do consumidor em função de uma ramificada cadeia de decisões anteriores à escolha do que estará “no prato”: fatores climáticos, econômicos e sociais são capazes de redesenhar o gosto da cultura. Bem como as guerras e as epidemias.

O complexo discurso gastronômico tem relação com as linguagens que precederam as escolhas do “comer”, onde “a comida media as relações entre as pessoas que consomem e produzem comida” (JACOB, 2013, p. 25); da “cozinha”, onde a “comida media as relações entre quem cozinha e quem serve a comida” (JACOB, 2013, p. 25) e os alimentos são “modelizados”; da “culinária” e da “gastronomia”.

A autora faz a distinção, ainda, entre a linguagem gastronômica e a culinária. Nessa, as receitas funcionam como “textos-código” (LOTMAN, 1996) que organizam “os modos de fazer um determinado prato e estrutura, assim, a transmissão de informações culinárias em uma organização comunicativa e compreensível” (JACOB, 2013, p.74).

Entre a culinária e a gastronomia, dá-se a valorização dos chefs altamente midiatizados, caso de Auguste Escoffier e Antoine Carême. Contemporaneamente, segundo Jacob (2013, p.110) “a culinária que se metamorfoseia em gastronomia fornece uma nova construtibilidade do espaço, gerando uma comunicabilidade exponencial, que cria uma espacialidade do show, do grande acontecimento”.

Esses chefs e outros, que passam a surgir num movimento “pós-culinário”, na passagem dos séculos XIX para XX, (JACOB, 2013, p. 115). Mediado pelos “acontecimentos comunicativos e culturais do Movimento Moderno e da Modernidade”, a pós-culinária se desdobra em uma linguagem que pressupõe os conhecimentos técnicos da culinária, pois implica em muita midiatização e de mediação para ser ali exposta” (Ibidem). Da cozinha de superposição de ingredientes e da mistura executada nas cozinhas palacianas medievais, passa-se ao processo culinário, à organização dos modos de preparo e execução de receitas. Essas exigiam de seus leitores “um esforço de atenção que nem sempre era coroado pela compreensão perfeita” (REVEL, 1996, p. 221 apud JACOB, 2013, p. 115). Esse linguajar culinário difícil funciona como fator de distinção cultural. E o domínio gastronômico, “o mergulho nesse universo parece pressupor esse caminho rumo ao complexo, do qual a comunicação da gastronomia amplamente se alimenta” (JACOB, 2013, p. 115).

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2.1.5 O gosto da criatividade

Se a mídia produz, pelo contato com a linguagem gastronômica, os sentidos de seu gosto, há que se levar em conta as muitas tessituras dos processos criativos na gastronomia. Especialmente na haute cuisine, as preparações criadas pelos chefs podem ser compreendidas como efêmeras (porque serão degustadas) obras de arte. Conforme Cecília Salles (2003, p.95), “sua textura é feita de palavras, imagens, som, corpo, gestualidade etc.”.

O prato da vez, o Fruto, não é comestível, no sentido literal. Mas comestível, no sentido subjetivo, pois alimenta o leitor-comensal com os diálogos sobre o alimento. No interdiscurso sobre o gosto, tão interdisciplinar, tem-se as condições para a formulação do gosto do Fruto. Para isso, toma-se a língua em seu funcionamento a fim de encontrar-se os nós que denotam um processo gastronômico e discursivo de construção do gosto no Fruto.

Da materialidade do texto institucional do Fruto (release) à análise de uma seleção de enunciados acerca do gosto que comunica ter à imprensa, por exemplo, pode-se descrever seus primeiros sentidos, como se fará adiante. Parte-se do princípio de que houve escolhas gastronômicas executadas em sequência, pelos idealizadores, em um pensar em uma “rede de gastrônomos” (PETRINI, 2009), para que esse evento ganhasse um gosto discursivo (de evento cultural e científico, portanto gastronômico).

Numa leitura ainda superficial, e por isso ousada, do conceito de “processos de criação em grupo”, elaborada por Salles (2017), mas pertinente a esta pesquisa e aos seus possíveis desdobramentos, deve-se lembrar que os processos criativos na gastronomia são naturalmente intersemióticos e constituídos por textos de muitas linguagens - uma relação entre diversas materialidades significantes; há diálogos comestíveis, como aqui se denomina a provável noção de que a comida “fala” e “articula” pensamentos.

Entre a inspiração detonada pelo insumo e seu gosto (que servirá a ingrediente de uma preparação, a posteriori), ou pelo texto (poesia, música, literatura, filme etc.) ou pelo “silêncio”, conforme Orlandi (1997). E a preparação da “obra” - a comida empratada/ servida, tem-se uma rede de discursos a ser acolhida, uma “rede de processos de criação”, conforme Lunardelli (2017), que se dedica à compreensão do processo criativo dos chefs de cozinha, útil aos jornalistas de gastronomia que pretendem “se despir do gosto e dos julgamentos pessoais” em seus textos. 64

Assim, dizer sobre o gosto, jornalisticamente, é dizer “do real”, num jogo de observação e descrição minuciosos sobre os gostos e discursos outros. De acordo com Orlandi (2007, p. 31), compreender os enunciados e suas condições de produção no contexto imediato (onde o discurso circula) e no contexto amplo, afetado pelos acontecimentos sócio-históricos.

No amalgamado discurso gastronômico há informações técnicas (por exemplo, de cocção, de corte, de finalização etc.), há descrição de modos de serviço (à francesa, à russa, à inglesa, à brasileira etc.) e há menções a alimentos e a gostos icônicos a serem descritos de forma muito fiel ao leitor- comensal num texto jornalístico.

Para ler-se os sentidos do gosto dentro do campo gastronômico é também necessário compreender- se as regras desse campo em que o chef dá a última palavra em seu território mais seguro (a cozinha) e o comensal faz o comentário sobre o já-dito, ressignificando-o de um território outro, mais subjetivo.

No campo gastronômico, às vezes o alimento “fala primeiro” sobre uma problemática, por outras “o produtor de alimentos” será quem virá a discuti-la. Por outras, um membro da brigada de cozinha dará uma solução ao chef para que este vá da memória ao acontecimento para “criar algo” (a ruptura). Noutros (muitos) casos será o próprio comensal/ consumidor o detonador do processo criativo do cozinheiro. Assim, ao longo da carreira, o chef constrói seus gostos e educa novos paladares e gostos, podendo, inclusive, criar “movimentos gastronômicos”: da nouvelle cuisine francesa, nos anos 1960 à cozinha molecular/ cozinha de vanguarda, no final dos anos 1990 houve muitas “leituras de arquivo” até chegar-se ao “novo”. No discurso digital, na internet, aliás, “pensa- se que tudo é novo, incorrendo naquilo que Orlandi (2012, p. 29) chamou de “narrativa das filiações” (DIAS, 2015, p.980)

Com base em Lunardelli (2017), que se debruçou justamente sobre o processo criativo de chefs como o catalão Ferran Adriá e o brasileiro Alberto Landgraf, entende-se que, conforme a característica do criador, a elaboração de um prato/menu pode derivar de um sem fim de possiblidades, um “percurso impregnado da cultura daqueles sujeitos responsáveis pela criação do projeto gastronômico”. (LUNARDELLI, 2017, p. 71). O gosto do tomate em fatias, por exemplo, é completamente distinto do gosto do interior do tomate, algo que Adriá descreve como “produto consecuente” - um “produto gerador”, nas palavras de Lunardelli (2017, p.73).

O projeto gastronômico, que culmina em processo criativo, é “pensar em movimento e continuidade: um tempo contínuo e permanente de rumos vagos” (SALLES, 2008: 59 apud 65

LUNARDELLI, 2017, p. 70). Ele pode derivar, portanto, de longa e detalhada pesquisa de campo e contato estreito com os produtores, de esboço e croqui do prato; do design gastronômico do serviço (escolha de objetos que irão à mesa, uniformes, guardanapos, talheres e demais objetarias etc.). Podendo haver o planejamento de food styling para a preparação de fotos de divulgação e afins, o design arquitetônico da escultura que servirá a uma gastroperformance (conforme define a gastroperformer Simone Mattar) na recepção dos comensais etc. Um sem fim de propostas, de único autor ou de um coletivo de autores pode dar corpo a um “diálogo comestível” – termo que, aqui, se situa no intradiscurso.

Ainda conforme Salles (2012), justamente o processo criativo (gastronômico no caso desta pesquisa) pode ser a obra. Neste sentido, pode-se pensar no Fruto como obra, como processo criativo de dois gastrônomos dispostos a dialogar sobre o “alimento”. Tome-se cada palestra com “nó” para onde convergem possíveis interações (diálogos). Tem-se, nesta imagem mental, uma rede de sentidos sobre o “alimento”, sobre a “cadeia do alimento”, sobre o “consumo de alimentos” e sobre a “gastronomia”.

A criação como rede pode ser descrita como um processo contínuo de interconexões, com tendências vagas, gerando nós de interação, suja variabilidade obedece a princípios direcionadores. Esse processo contínuo, sem ponto inicial nem final, é um movimento falível, sustentado pela incerteza, englobando a intervenção do acaso e abrindo espaço para a introdução de novas ideias. (SALLES, 2017, p.117, grifo nosso).

E, tal ocorre no teatro, sem o espectador (aqui o leitor-comensal do Fruto, especificamente) não há “cena gastronômica”. Ela se ilumina diante dos olhos “quando se expõe os apetites privados em locais públicos” (SPANG, 2000, p.83). O teatro da Unibes Cultural, nesta análise, é metáfora ao proscênio. Por analogia tem-se que, no Fruto, os “apetites privados” permanecem privados até que se exprima a aceitação ou declínio pelos “pratos” servidos na ordem dos dois dias de evento: 31 palestras, boa parte “científicas”, de gostos diferentes e tematizadas por três grandes eixos: social, ambiental e cultural.

Pode-se recorrer, mais uma vez, à AD para dizer-se que o sabor da “sabedoria” coletiva dessas falas tem seu próprio gosto. E, não ao acaso, elas foram organizadas de maneira a fazer um certo sentido (resultar num certo gosto, que pode evoluir numa mesma escala) na organização do discurso do Fruto e denotar um sentido inicial – um gosto inicial, traduzido em um texto de apresentação sobre o Fruto (press release), marcado por suas condições de produção. Como ficará elucidado na segunda parte desta dissertação (Discurso Gastronômico) no nível do interdiscurso do Fruto há os já-ditos sobre os sentidos da “ecogastronomia”, conceito formulado por Petrini 66

(2009). No nível do discurso gastronômico, marcas de formações ideológicas sobre o gosto por certos alimentos que circulam na sociedade.

Por ora, pode-se conjecturar ainda que, graças à discursividade dos muitos gastrônomos contemporâneos desejosos de estarem inscritos em narrativas gastronômicas, gastronomia e gosto são ambos termos polissêmicos e parafraseáveis. Contudo, esta pesquisa reúne indícios de que foi nestas duas últimas décadas que a gastronomia (e não a culinária) se firmou em enunciados e discursos brasileiros, muito influenciada pela mídia e pela formação de novos gastrônomos. Ademais, conforme Orlandi:

A paráfrase é a matriz do sentido, pois não há sentido sem repetição, sem sustentação no saber discursivo, e a polissemia é a fonte da linguagem uma vez que ela é a própria condição de existência, pois se os sentidos – e os sujeitos – não fossem múltiplos, não pudessem ser outros, não haveria necessidade de dizer. A polissemia é justamente a simultaneidade de movimentos distintos de sentidos no mesmo objeto simbólico. (ORLANDI, 2001, p.38)

2.1.6 O gosto em tempos líquidos

Da motivação editorial, ao texto jornalístico (conteúdo) escrito sob determinadas condições de produção e posições-sujeito, conforme Pechêux (1997); à seleção - por preferência do leitor/ por contingência de recomendações e ou algoritmos, o que depende de interações homem máquina - de determinado veículo de informação; ao dispositivo preferencial para leitura (tablet, revista impressa, telefone móvel e muitos etc); e, por fim, à leitura e compreensão de determinado texto (ou de gama de textos), tem-se uma “jornada do leitor” a ser mapeada, sobretudo nas últimas duas décadas.

Se colocadas num mapa, as tomadas de decisão do “usuário” (o “leitor-comensal”), poderiam servir para ilustrar como são estruturadas a experiência de leitura e, quiçá, customizar-se a produção noticiosa. Noutro sentido, em tempos de excesso de informação num “mundo líquido”, conforme Bauman (2001), onde há sede por conteúdos igualmente líquidos (adaptáveis a diversas plataformas, no jargão do Content Marketing Institute) há que se entregar um texto cujo “gosto” seja agradável e ajustável ao usuário.

Está-se neste ponto de interrogar sobre o que é e como é produzida a “notícia” no dialogismo senil das fake news (que desinformam) e das news (que informam). No tocante à análise do discurso, no meio digital, especialmente, porém, não se pode ignorar o processo de busca do usuário feito com ajuda da internet, que vai da criação à aquisição e armazenamento da informação; até a formulação 67 da pergunta e recuperação da informação. Desde o início dos anos 1990, aliás, tenta-se mapear o conhecimento produzido em rede, a inteligência coletiva, definir-se a “antropologia do ciberespaço” (LÉVY, 1998).

Desafiador ao analista do discurso, é saber em quais posicionamentos ideológicos acerca do que é “gastronomia brasileira” ou “gastronomia sustentável”, no caso desta pesquisa, o sujeito produtor de conteúdo/ a imprensa especializada se inscreve ao “escrever”. Bem como o leitor-comensal, ao “ler” um texto gastronômico – algo que, infelizmente, não é analisado aqui. Há aí uma noção de efeito-leitor e de sentido que a AD pode esclarecer. Quem decreta o que é arte (“alta gastronomia”, “bom gosto”, por exemplo) e o que não é (“culinária”, “fast food”, por exemplo)?

Pêcheux (2009) define efeito-leitor como algo constitutivo da subjetividade e, “para que ele se realize, é necessário que as condições de existência deste efeito estejam dissimuladas para o próprio sujeito” (PÊCHEUX, 2009, p. 60). O sujeito tem a ilusão de ser a “fonte” de seu dizer e dos sentidos. O efeito-leitor é, assim, uma unidade imaginária do sujeito e do sentido lido (ORLANDI, 2001) e tanto determina quanto é determinado pelo lugar discursivo e pode projetar posições-sujeito para o sujeito leitor.

O “jornalista gastronômico”, neste sentido, produzir nos seus textos o lugar discursivo de um “porta-voz da gastronomia” (enunciando as evidências produzidas a partir de posições dominantes no interdiscurso) na relação com o efeito-leitor “leigo em gastronomia”. Ele pode ainda parecer ao leigo um “consumidor de informações gastronômicas”. Ao passo que não são apenas leigos os leitores de notícias relacionadas à gastronomia, pois tem-se cientistas, pesquisadores, gastrônomos, cozinheiros e jornalistas e produtores de conteúdo gastronômico a “ler” os textos. Tem-se o efeito-leitor “especialista gastronômico”.

Entende-se que esses especialistas gastronômicos constituam a maioria dos leitores dos textos sobre o Fruto, objeto desta pesquisa, por estarem aptos e interessados pelo discurso gastronômico e pelos sentidos de “alimento”. Contudo, a temática “alimento” parece interessar a todo tipo de consumidor – incluindo-se os “leigos em gastronomia”. Outra temática, ainda que aparentemente opaca no Fruto, mas interessante à imprensa e ao consumidor de notícias, é Alex Atala, um dos idealizadores do evento, chef renomado mundialmente (“famoso”) e, também por isso midiático.

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Figura 7 – Felipe Ribenboim e Alex Atala no palco da Unibes Cultural (São Paulo/SP) durante a abertura do Fruto de 2018. Foto: Érica Araium

2.1.7 Condições para o gosto do Fruto

Retomando-se a noção de acontecimento jornalístico (DELA-SILVA, 2008, p.13) e de acontecimento discursivo conforme Zoppi-Fontana (1997), pode-se contextualizar uma série de condições de produção que propiciaram a idealização e realização do Fruto em 2018. Como será demonstrado adiante, após breve apanhado acerca da história da gastronomia e da constituição e formulação do Discurso Gastronômico, posto a circular desde a época de Savarin, como já antecipado, tem-se a gestação, no final dos anos 2010, da noção de uma “gastronomia brasileira”29. Entre seus representantes está Alex Atala.

Por uma série de indícios que serão apresentados a seguir, pode-se tomá-lo por “porta-voz” de seu próprio evento e, por conseguinte, de uma série de enunciados sobre a temática “sustentabilidade”, amparada nos muitos sentidos de “alimento”. Visa-se demonstrar, assim que, entre as pautas trabalhadas pela imprensa gastronômica a partir do acontecimento jornalístico Fruto tem-se o

29 Se a gastronomia pode ser entendida como um “metadiscurso” sobre o comer (DÓRIA, 2006; 2009; 2014), é preciso compreender o comer à brasileira para discorrer-se sobre a formação da culinária brasileira e, consequentemente, da “gastronomia brasileira” e seus representantes – Atala é um deles e no contexto da alta gastronomia (haute cuisine), conforme Bueno (2016). 69 sujeito Alex Atala também como “pauta”. Esse Atala que enuncia no Fruto, em certa medida, representa, politicamente, um grupo de pares que “lidera” (dado o reconhecimento da mídia e de seus pares e de seus antagonistas em relação a ele): gastrônomos representantes da “gastronomia brasileira” ainda em formação e cujas vozes nem sempre são ouvidas (ou são silenciadas).

Conforme Zoppi-Fontana (1997, p.23) a figura do porta-voz, cuja origem remonta aos acontecimentos da Revolução Francesa,

definida como um funcionamento enunciativo de mediação da linguagem, como forma nova de enunciar a palavra política, através da qual um sujeito pertence a um grupo, e reconhecido pelos integrantes como igual, destaca-se do resto como centro visível de um nós em formação, que o coloca em posição de negociador potencial com poder constituído (Pêcheux, 1982). Assim, devido a essa posição de intermediação ocupada pelo porta-voz, a função enunciativa se configura como uma relação de destinação da palavra realizada em duas direções: do grupo para o porta-voz e através deste para o poder ou adversário, e do poder ou adversário para o grupo, passando necessariamente pelo porta- voz, direções que no discurso político contemporâneo se representam como: “povo”  líder, a primeira, e líder  “povo”, a segunda. (ZOPPI-FONTANA, 1997, p.23, grifos nossos)

Não se pretende analisar, nesta pesquisa, as características do discurso político moderno. Contudo, seria imprudente deixar-se de relacionar a noção de “comida como cultura” e comida como “ato político” (cf: MONTANARI, 2008; PETRINI, 2009) que inspiram já-ditos que circulam no discurso gastronômico. Às vezes estampadas até em camisetas de chefs como o próprio Atala: “Comida é cultura” é um desses já-ditos reditos e ressignificados por ele e outros gastrônomos. Outro, “comer é um ato político” (enunciado reforçado por Bela Gil e Paola Carosella, por exemplo, cozinheiras e apresentadoras de programas culinários).

Há um porta-voz comum aos gastrônomos contemporâneos que se reconhecem “ativistas ambientais”: Carlo Petrini, fundador do movimento Slow Food (1989) e defensor da “ecogastronomia”, conceito que precede o de “gastronomia sustentável”, como se verá em “O gosto da sustentabilidade”. Para Petrini (2009, p.74), comer não só é um ato político como “o alimento, sendo um elemento cultural primário, presta-se perfeitamente ao estudo das culturas e identidades”, sendo a sociologia e a antropologia duas ciências capazes de contribuir à compreensão da complexidade das escolhas feitas pelo homem e da constituição das “identidades gastronômicas e os sistemas alimentícios”.

Para ele, o “impulso crescente para a industrialização e a globalização da agricultura coloca em perigo o futuro da humanidade e o mundo natural”, atestando assim, a “falência do modelo agrícola industrial” no manifesto público em prol do “futuro da comida” (PETRINI, 2009, p. 239). 70

Tem-se o gosto de quase todas as ciências no Fruto – nós intrincados da gastronomia. Como parece desde seu anúncio, o evento pretende-se estabelecer como um ponto de inflexão. Um convite ao tomar-se gosto pela gastronomia sustentável.

2.1.8 O design do gosto do Fruto

A partir do que se expôs e fundamentou até aqui, pode-se tomar o release do Fruto (seu todo e/ou suas partes), inicial e bastante livremente, como um “texto” que transita entre vários gêneros, sendo nomeado à maneira dos respectivos discursos desses gêneros: branded content (relativo ao marketing/branding, pormenorizado adiante), press release (próprio do campo jornalístico), registro de parte do processo criativo do Fruto. Arrisca-se dizer que esse “texto”, preparado de certa maneira com “notas de sabor” de campos como o design, o jornalismo, o marketing, das artes, tem certo “gosto”.

Como também já exposto, e partindo-se da evidência de que o Fruto foi idealizado por dois gastrônomos e chefs de cozinha – Felipe Ribenboim e Alex Atala -, parece natural afirmar que tanto o “processo de criação em rede” (SALLES, 2008, p.116-121) da elaboração do evento quanto o “processo de criação” de sua apresentação (que poderia ser descrita como performance coletiva, uma vez que o texto sobre o Fruto é cênico e as falas são divididas sob o mesmo palco) carrega o sentido da interatividade, próprio da discursividade gastronômica, como será detalhado na próxima sessão. Como falar sobre/ com o alimento no Fruto? Essas perguntas são possíveis nós de uma tessitura que se constrói, enquanto sentido, nesse texto do release. E a resposta, apesar de delimitada, é inacabada. Pois o Fruto é “o processo” (SALLES, 2017):

A criação como rede pode ser descrita como um processo contínuo de interconexões, com tendências vagas, gerando nós de interação, cuja variabilidade obedece a princípios direcionadores. Esse processo contínuo, sem ponto inicial e final, é um movimento falível, sustentado pela lógica da incerteza, englobando a intervenção do acaso e abrindo espaço para a introdução de ideias novas. (SALLES, 2017, p.117, grifo nosso)

Nessa rede de sentidos do texto de apresentação do Fruto, como será detalhado em “O gosto do Fruto (segundo o Fruto)”, tem-se os rastros de um processo relacional, termo utilizado por Cecilia Salles (2008), em que “vários elementos aparentemente desconexos fazem parte do processo de criação. Já os critérios que selecionam esses pensamentos e os transformam em ações são particulares de cada chef” (LUNARDELLI, 2012, p.87). Assim, do diálogo entre gastrônomos nasceram os “diálogos do alimento”. 71

Destaque-se que Ribenboim, ao contrário de Atala, não é “midiático”, mas faz muito no campo artístico. Mais discreto, identifica-se, costumeiramente, como “produtor cultural”, mesmo sendo gastrônomo e havendo passado pela cozinha do extinto restaurante El Bulli, de Ferran Adrià, e do Arzak, de Juan Mari Arzak, apenas para citar-se nomes de chefs apontados como “inovadores” com os quais trabalhou. Desde 2018, é sócio da plataforma Fruto, sobre alimentação e sustentabilidade, em parceria com Alex Atala e assim se apresenta. Também frisa seu eixo de ação em consultorias e projetos: “alimento, cultura e sustentabilidade”, numa ordem sugestiva à dinâmica do discurso gastronômico – nele, como se verá adiante, a noção de “alimento” precede e a de “cultura” que se relaciona com a “gastronomia” (pois “come-se cultura”) e com a de “sustentabilidade”. Um de seus trabalhos mais expressivos – de onde se pode depreender esse caminho de significações em crescente – é a exposição “Alimentário - arte e construção do patrimônio alimentar brasileiro”, apresentada no MAM-RJ (2014), OCA-SP(2015 ) e Expo Milão (2015) e que traça um estreito diálogo entre “a arte” e “o alimento”. Ribenboim frisa em seus projetos as “conexões”, nem sempre aparentes, entre os sentidos do alimento e da própria gastronomia.

Portanto, para Atala e Ribenboim, dialogar com/ sobre o alimento no Fruto parece ter significado compor um “discurso sobre o alimento e a gastronomia”, um diálogo comestível - igualmente em coletivo, feito em rede, pela troca de informações; mas nem sempre evidentemente interativo na acepção de Pierre Lévy (1999), em que os envolvidos na comunicação, simultaneamente, se transformam em emissores e receptores da mensagem durante o evento; ou participativo a ponto de haver um “espectador emancipado”, conforme Rancière (2008); ou seja, apto a “trocar de posição” com quem atua, com quem está em cena. Com quem encena e enuncia. Num:

teatro sem espectadores, em que os assistentes aprendam em vez de ser seduzidos por imagens, no qual eles se tornem participantes ativos em vez de serem voyeurs passivos. (...) É preciso arrancar o espectador ao embrutecimento do parvo fascinado pela aparência e conquistado pela empatia que o faz identificar-se com as personagens da cena. A este será mostrado, portanto, um espetáculo estranho, inabitual, um enigma cujo sentido ele precise buscar. Assim, será obrigado a trocar a posição de espectador passivo pela de inquiridor ou experimentador científico que observa os fenômenos e procura suas causas. Ou então lhe será proposto um dilema exemplar, semelhante aos propostos às pessoas empenhadas nas decisões da ação. Desse modo, precisará aguçar seu próprio senso de avaliação das razões, da discussão e da escolha decisiva. (RANCIÈRE, 2008, p. 9-10).

Como ocorre no ambiente do “teatro”, houve diversas “reações da plateia” às falas dos 31 palestrantes, que tinham cerca de 20 minutos para falar cada um sobre o palco do auditório da Unibes Cultural em São Paulo/SP. Por plateia, entenda-se um grupo de cerca de 300 convidados e 72 representantes da mídia: imprensa local e internacional, bloggers e produtores de conteúdo independentes.

Contudo, não houve, ao final de cada fala, sessões de “perguntas e respostas”; tampouco interação, em tempo real via internet, com quem, da posição-sujeito palestrante, compartilhasse informações sobre uma pauta temática do palco. Pêcheux (1975) chama de “posição-sujeito” a relação de identificação entre o “sujeito enunciador” e o sujeito do saber (forma-sujeito) em uma determinada Formação Discursiva (FD).

A interação da audiência que estava in locu e dos espectadores virtuais com o evento ocorria muito nas redes sociais – nos canais oficiais da marca Fruto no Instagram e no Facebook, principalmente; e no chat do YouTube, plataforma usada para a transmissão “ao-vivo” e hospedagem dos conteúdos disponibilizados, em março de 2018, em streaming.

Pode-se dizer, por isso, que a proposta, além de assemelhada ao formato do popular TEDx, lembra iniciativas como o “MAD Feed” do dinamarquês René Redzepi (edição inaugural em 2011); o Kitchen Dialogues” , de Andoni Aduriz (edição inaugural foi em 2007); e o “Farm of Ideas” do dinamarquês Christian Puglis (edição inaugural em 2016). Esses três exemplos comungam da acepção de “alimento” como algo “bom para pensar”, ensinamento dado pela antropologia aos gastrônomos contemporâneos. Para Lévi-Strauss (1964), muito caro a Atala (2008), a prática da alimentação humana, este fenômeno biocultural, ajuda o homem a compreender os significados do humano.

No “ao-vivo” presencial, houve ainda reações e diálogos entre participantes nos intervalos entre as palestras e almoço. No “ao-vivo” assistido em telas (do computador pessoal, do smarthphone e de outros dispositivos), o mesmo espetáculo, transmitido via internet, pode ser conferido “real time” (em simultâneo) ou “on demand” (sob demanda). Havia espectadores. Por isso, a palavra “espetáculo”, nessa colocação, encontra a “sociedade pós-industrial” descrita pelo filósofo francês Guy Debord, para quem:

O espetáculo é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é o suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do irrealismo da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos -, o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade. É a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o consumo que decorre dessa escolha. (DEBORD, 1997, p.14-15).

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A discursividade do Fruto depende, portanto, de uma trama de acesso à memória discursiva sobre a gastronomia brasileira, ao arquivo sobre a gastronomia e aos efeitos de sentido produzidos em relação ao que se entende por “alimento” ao longo das 31 apresentações dos participantes organizadas em sua “estreia”. À medida em que dividem o palco (e o tempo disponível para a realização do evento), os palestrantes “coproduzem” “o alimento” do Fruto, “do futuro”. Põe-se em análise nesta dissertação os efeitos produzidos no discurso do Fruto pelas paráfrases, equívocos, silenciamentos em relação às condições de produção e à memória discursiva.

Não se pode ignorar o fato de haver, conforme propõe a AD francesa, a sobreposição entre a língua, a história e o inconsciente no discurso. Ações como “comer” e “dizer” são ambas atravessadas pela ideologia – falante por vozes alheias de sujeitos multifacetados.

Essa metamorfose dos sentidos se expande quando o diálogo é posto à mesa, lugar da comensalidade - do latim “mensa”, que significa conviver à mesa - onde se pode provar o/ do outro de um modo específico (ritualístico). Tem-se, conforme Montanari (2008):

Mesa como metáfora da vida. A própria etmimologia da palavra “convívio” sugere isso, identificando o viver junto (cum-vivere) com o comer junto. (...) E, se a mesa é metáfora da vida, ela representa de modo direto e preciso não apenas o pertencimento a um grupo, mas também as relações que se definem nesse grupo. (MONTANARI, 2008, p. 159-160).

Neste sentido, dizer “o que é” o Fruto significa estimular o leitor-comensal a sentar-se à “mesa” de seus gostos e sentidos. Ainda que essa “mesa” esteja simbolizada, metaforicamente, pelas expressões “evento” e “seminário”.

Essa última palavra remete, imediatamente, à noção de “seminário acadêmico”, gênero discursivo (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 293) em que os enunciados ganham certas expressões típicas. Há, portanto, caráteres educativo e científico no Fruto, próprios do discurso de divulgação científica, bastante heterogêneo – convivem nesta mesa muitos sujeitos, vozes, ordens de saberes.

Com base em Pêcheux (1975), em “Semântica e Discurso”, pode-se dizer que, na cobertura deste seminário, o “sujeito-jornalista” se subjetiva e se alternando em diferentes posições-sujeito para traduzir ao leitor-comensal os fatos de interesse jornalístico, sempre afetado pelas condições de produção, pela exterioridade. E, ao ler esse discurso, comenta-o, atualizando-o.

Em outras palavras, se, no ambiente da restauração, o comensal exerce a escuta/ observação/ leitura no silêncio da prova de uma obra de arte comestível e com ela dialoga sobre o gosto; e, se, num devir analítico-discursivo, discorre sobre o que entendeu da opacidade do texto, ao (re)dizer, o que 74 os 31 palestrantes fizeram foi oferecer um banquete de 31 pratos, divididos em três eixos temáticos, à audiência.

Assim, o design ou o desenho do evento decorre de um extenso processo criativo que, em uma de suas muitas fases, culmina na “escolha” dos palestrantes, dos “quem” (“poderia falar sobre isso?”). Ao invés de criarem um prato com ingredientes deliciosos, os idealizadores do Fruto o compuseram, metaforicamente, a partir de enunciados impregnados de sabor: uns doces, uns amargos, uns salgados, uns ácidos, uns tostados etc. até que, ao final da prosopopeia, o Fruto de 2018 tivesse um “gosto” mais equilibrado e memorável inscrito na memória discursiva da “gastronomia sustentável”.

O release fornecido aos jornalistas dava pistas, no campo “serviço”, dos sabores predominantes e da organização do seminário. Atala e Ribenboim promoviam, assim, uma nova “experiência gastronômica” denominada “Fruto” aos leitores-comensais, repleta de sensações. A ordem do “serviço” e as “notas de sabor” aparecem descritas a seguir, respeitando-se o texto da divulgação oficial. Em itálico, adicionou-se o apontamento desta analista acerca dos sentidos possivelmente mobilizados, em primeiro plano, nas apresentações, a partir de uma análise temática das propostas.

“Programação das palestras: Eixo Cultural Sexta (26): 1. 9h: Abertura, com Alex Atala e Felipe Ribenboim. (discurso institucional – Fruto) 1. 9h25: Sociobiodiversidade – Conservação e soberania alimentar, com Jerônimo Villas- Bôas. (discurso indígena/ discurso ambientalista/ ecogastronômico) 2. 9h50: Os guardiões – A importância dos povos indígenas na preservação da agrobiodiversidade, com Manuela Carneiro da Cunha. (discurso indígena) 3. 10h15: Da floresta à mesa – Dos conhecimentos ancestrais às novas aplicações, um grande número de alimentos está nas florestas, com Jeferson Straatmann. (discurso indígena, discurso da inteligência da floresta) 4. 10h40: O poder de uma escolha – A complexa relação social da cadeia do alimento e como ela afeta do produtor ao consumidor final, com Lúcio Brusch. (discurso da economia azul30/ “não desperdício”)

11h05 – intervalo.

Eixo Biológico 1. 11h25: Genético ou natural? – De que maneira as diferentes técnicas de cultivo impactam na sua saúde, com Rodrigo Corrêa-Oliveira. (discurso da biossegurança/ dos transgênicos)

30 “O azul é a cor do mar e é a cor do planeta visto do alto. O azul é o todo. Traduzido em termos industriais, quer dizer voltar-se à eficiência da natureza, eliminar completamente os dejetos”, na definição de Gunter Pauli em entrevista ao site Ecodebate, e 2010. Disponível em: < https://www.ecodebate.com.br/2010/06/08/os-segredos-da-economia-azul-entrevista-com-gunter-pauli/ > Acessado em 01. Nov. 2020

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2. 11h50: A inteligência da floresta – Como criar plantações entendendo a dinâmica da natureza, com Ernst Götsch31. (discurso sintrópico, da agrofloresta) 3. 12h15: Agricultura extrema – De desertos a áreas urbanas, entenda de quais soluções o mundo precisa, com David Lehrer e Ria Hulsman. (discurso ambientalista urbano)

13h00 – intervalo.

4. 14h35: Gangsta Gardening – Ron Finley, o homem que está revolucionando comunidades urbanas da Califórnia. (discurso ambientalista urbano) 5. 15h00: Biodiversidade nativa – Re-plantando florestas na cidade, com Ricardo Cardim. (discurso ambientalista urbano) 6. 15h20: Terra, Ar e Água – Qual o panorama desse importante tripé para a vida na Terra?, com Céline Cousteau, Paulina Chamorro e Simone Jones. (discurso ambientalista/ dos oceanos/ das mulheres dos oceanos)

16h25 – intervalo.

7. 16h45: Alimentos e natureza – Como potencializar a produção de alimentos sem destruir a natureza?, com Rodrigo Medeiros e Maurício Antônio Lopes. (discurso ecogastronômico, discurso da indústria de alimentos) 8. 17h30: Fome. Existe uma solução? – Conheça propostas e caminhos para acabar com a fome mundial, com Isadora Ferreira. (discurso institucional da ONU/ discurso sobre a fome)

Sábado (27): Eixo Social

1. 09h: Abertura, com Alex Atala e Felipe Ribenboim. (discurso institucional – Fruto) 2. 9h25: Homo culinarius – Como a cozinha transformou a nossa evolução, alimentação e cultura, com Suzana Herculano. (discurso científico / evolutivo-antropocêntrico) 3. 9h50: O poder de transformação – Como o Slow Food muda o mundo, com Carlo Petrini. (discurso ecogastronômico, discurso do Slow Food) 4. 10h15: Dá para mudar a produção e o consumo? – Tendências, mudanças, paradigmas, sistemas, indústrias e lobby, com Jason Clay e Roberto Rodrigues. (discurso institucional da WWF/ discurso científico)

11h – intervalo

5. 11h20: A nova ordem – Já ouviu falar de Sistema B? De que forma ele vem criando empresas melhores para o mundo?, com Marcel Fukayama. (discurso empreendedor ativista/ socioambientalista) 6. 11h45: Jovens Empreendedores – Eles largaram os negócios da família para empreender com alimentação, com Alex Seibel, Rafael Coimbra, Pedro Hennel, Luciana Quintão. (discurso empreendedor ativista/ socioambientalista)

12h50 – intervalo

31 Agricultor e pesquisador suíço com mais de 40 anos de experiência e realizações no campo da agricultura sustentável. “Na Agricultura Sintrópica trabalha-se o desenho dos arranjos com diferentes espécies, passando pela implantação e, depois, continuando em cada passo na condução das nossas plantações de modo que elas produzam o seu próprio adubo” em post de abril de 2018: < https://agendagotsch.com/pt/diferencas-entre-a-agricultura-sintropica-e-organica-2/> Acessado em 01. Set. 2018

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7. 14h30: Inovação que transforma – Entenda como tecidos e filtros de água vêm transformando a vida de milhares de pessoas, com Jon Rose e Oskar Metsavaht. (discurso ativista/ socioambientalista) 8. 15h15: Uma refeição centrada no ser humano – A visão analítica do alimento sob o aspecto cultural e representativo de uma organização social, com Mark Emil. (discurso ativista/ socioambientalista)

15h40 – intervalo.

9. 16h: Comida é cultura – Entender o alimento como elemento cultural é essencial para um país, com Luis Ginocchio Balcázar e Rose Mendes. (discurso educomunicacional – a educação do gosto) 10. 16h45: Educação Alimentar – Os possíveis caminhos para um maior acesso à alimentação saudável, com Bela Gil. (discurso educomunicacional – a educação do gosto) 11. 17h10: Encerramento e assinatura da agenda, com Alex Atala e Felipe Ribenboim. (discurso institucional – Fruto)

Se organizados os principais discursos dos painéis em seus respectivos eixos, pode-se notar uma preocupação maior dos idealizadores, ao menos na programação, em destacar as pautas sociais da gastronomia – justamente aquela dentre as mais “esquecidas” no contexto do discurso gastronômico brasileiro. Tem-se quatro painéis para a temática cultural, oito para o eixo biológico e dez para o painel social.

Neste último, de acordo com a programação, poder-se-ia esperar pautas sobre as relações humanas estreitadas na cadeia do alimento e as soluções que as pessoas encontram para seus empreendimentos, problemáticas regionais ou globais. A insegurança hídrica, a fome e a educação do gosto seriam, assim, tratados nesse “eixo social” com maior ênfase.

O que se conjectura é que, a partir dos temas elencados pelos organizadores e descritos na programação/ release, tenha havido uma conexão, por interesses noticiosos, entre os jornalistas e o Fruto, um mapeamento “de gostos” e sujeitos discursivos. Assim, dar-se-ia uma cobertura jornalística mais assertiva.

Os textos produzidos pelos jornalistas que procederam à cobertura, assim, tenderiam a refletir as tomadas de posição desses sujeitos-leitores sobre enunciados mobilizados pelos palestrantes, havendo a circulação de palavras e expressões que “falam” mais em determinadas condições de produção, ou seja, carregam mais sentidos que em outras. Isso será aferido mediante a leitura dos textos produzidos sobre o Fruto que circularam no digital até fevereiro de 2018 (pós-evento), considerando-se, como já exposto, conceitos da AD como sujeito, posição-sujeito, efeito-leitor, 77 inter e intradiscurso, enunciado, recorte, arquivo, acontecimento discursivo, entre outros, a fim de compreender-se os sentidos dos textos jornalísticos sobre o Fruto – o que decorre de muitos gestos de interpretação. Entende-se que, ao final de cada painel (palestra) coberto pela mídia tem-se um apanhado de sentidos possíveis sobre um determinado discurso e, ao final do evento, sobre o “discurso do Fruto” lido pelo jornalista e comentado pelo leitor-comensal.

Apesar de o seminário não ser apresentado à imprensa e aos leitores-comensais como “gastronômico”, tem-se os diversos sentidos da gastronomia incutidos nele. A começar pela deriva de “alimento”. A partir desse termo fundamental que funciona à distinção entre o homem e outros animais, pelos seus significados comestíveis e compartilháveis, desdobram-se todos os outros sentidos que culminam na prática gastronômica. Ao propor uma discussão sobre “como levar alimento de qualidade a uma população mundial que pode chegar a 8,6 bilhões de pessoas em 2030, de acordo com a ONU” como consta no texto do release, o Fruto acena à importância da aplicação do conceito de sustentabilidade na alimentação, como demonstrado no capítulo dedicado à gastronomia sustentável: “O gosto da sustentabilidade”.

Em função do recorte sócio-histórico em consideração para esta pesquisa (o período que vai de 1999 a 2019), tem-se, ainda, a noção de que o discurso ecogastronômico/ o discurso do movimento Slow Food (PETRINI, 2009) estava ainda muito impregnado no campo gastronômico até, pelo menos, o início de 2020.

Isso posto, vai-se defender que muitas menções à sustentabilidade no Fruto são, na verdade, menções aos sentidos da “ecogastronomia” aplicados à indústria de alimentos. O que será explicado oportunamente na terceira parte desta dissertação, onde voltar-se-á à análise do gosto do Fruto.

A seguir, segue a transcrição fiel, conforme o texto de divulgação do Fruto (2018), das biografias dos idealizadores evento, respeitando-se a ordem de créditos dadas a essas fontes de informação então disponíveis. O objetivo é destacar-se as características e atributos da narrativa dessas personas que, normalmente, são reforçadas na mídia. Os grifos são nossos.

Sobre o Instituto ATÁ O Instituto ATÁ é a primeira entidade brasileira a se dedicar exclusivamente à relação do homem com o alimento. Iniciativa de um inédito e diverso grupo de lideranças da sociedade civil e do mundo empresarial, incluindo nomes como o chef Alex Atala, Beto Ricardo (Instituto Socioambiental), Roberto Smeraldi (Instituto ATÁ) e Georges Schnyder (SlowFood e Editora 4Capas), a missão do Instituto é “aproximar o saber do comer, o comer do cozinhar, o cozinhar do produzir, o produzir do ambiente”. Nesse 78

quadro, procura valorizar e fortalecer a diversidade de territórios e saberes, o ato de se alimentar como fator integrante da cultura, as melhores práticas de sustentabilidade na produção e no consumo, a limitação de perdas e desperdício, a qualidade e identidade das cozinhas do Brasil no mundo, a segurança alimentar e nutricional, a tecnologia e inovação na produção, transformação e distribuição do alimento e a valorização de negócios de base familiar e comunitária. Entre os projetos de destaque da entidade estão: a marca Retratos do Gosto, a pimenta baniwa (em parceria com o ISA), o projeto Gastronomia nos Presídios, os arrozes especiais do Vale do Paraíba, mel de abelhas nativas, cogumelos comestíveis brasileiros, Galinhadas beneficentes e outros. Mais informações em: www.institutoata.org.br | www.facebook.com/institutoata.

Sobre Felipe Ribenboim Formado em gastronomia, trabalhou em restaurantes de São Paulo e da Espanha - elBulli e Arzak - e tem prática como personal chef. Desde 2004 empreende investigações em gastronomia, como expedições em cultura e gastronomia, iniciadas com a região amazônica [Projeto Biomas Brasileiros]. De 2008 a 2011 foi sócio proprietário e chef do restaurante Dois | cozinha contemporânea, em São Paulo. Em 2012 inaugura o segmento de cultura alimentar na Base7 Projetos Culturais, empresa de produção cultural com atuação no Brasil, América Latina e Europa. Foi responsável pela concepção e texto da exposição “Alimentário – arte e construção do patrimônio alimentar brasileiro”, apresentada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM RJ, em 2014; no Museu da Cidade – OCA, em São Paulo; e na Expo Milão, na Itália, ambos em 2015 e pela concepção e curadoria da exposição Sergio Coimbra – panoramas da comida no Brasil, de junho a agosto de 2016 no espaço Unibes Cultural. Responsável pela concepção e realização da exposição Satoyama | Yoshihiro Narisawa e Sergio Coimbra, na Japan House SP, em 2017, além de Coordenador no projeto Arte & Sabor 2017, do Instituto Tomie Ohtake, que utiliza o alimento, a arte, cultura e educação com agentes transformadores para 70 merendeiras conveniadas do município de São Paulo, com impacto em 10 mil crianças.

Sobre o chef Alex Atala Chef e proprietário dos restaurantes D.O.M., Dalva e Dito, Açougue Central e Bio – Comer Saudável, Alex Atala é reconhecido internacionalmente por sua cozinha autoral brasileira e por seu trabalho de valorização dos ingredientes e produtores de todo o Brasil. Em 2013, entrou para a lista das 100 personalidades mais influentes da “Revista Time”. Em sua trajetória internacional, além de dezenas de premiações e participações em eventos, protagonizou um dos episódios da segunda temporada da prestigiada série “Chef’sTable”, da Netflix. Em abril de 2013, criou o Instituto ATÁ com uma equipe multidisciplinar que reúne fotógrafos, empresários, publicitários e um antropólogo, com o objetivo de aproximar o saber do comer, o comer do cozinhar, o cozinhar do produzir, o produzir da natureza. Entre outros projetos, o instituto é responsável pelos boxes de biomas do Brasil do Mercado Municipal de Pinheiros, em São Paulo”. (FRUTO, 2018)

2.2 Come-se cultura Para avançar-se em relação à compreensão dos sentidos da “gastronomia brasileira”, contexto em que se inserem Atala e Ribenboim, idealizadores do Fruto, é preciso voltar algumas camadas de significados e atentar-se ao que a frase “comida como cultura” denota representar no campo gastronômico. Assim, dizer-se com finalidade didática que, desde 1500, o mundo come brasis e brasis comem o mundo passará a fazer mais sentido.

“Há 500 mil anos, o homem teria dominado o fogo, diferenciando-se de forma definitiva de seus ancestrais hominídeos, que ainda viviam num estado de animalidade”, atestam Flandrin e 79

Montanari em História da Alimentação (1996, p.31). Daí a se afirmar que “a cozinha faz o homem, e que tanto um como o outro têm 500 mil anos é um passo” (Ibidem).

A obra é precisa em enumerar a historização do gosto ao narrar os principais acontecimentos históricos que importam à compreensão de termos em evolução como “alimento”, “cozinhar”, “comensalidade”, “agricultura”, “comida”, “cozinha”, “receita”, “culinária” e “gastronomia”. Para Flandrin (1996), a passagem do século XVIII para o XIX, aliás, marca a transição da preocupação estritamente dietética, nutricional, para o encontro do prazer à mesa por meio do paladar.

Aproximar-se “alimento” de “homem” ao dizer-se da “humanização das condutas alimentares”, como fazem os historiadores, parece pertinente à análise dos sentidos dos “diálogos do alimento” do Fruto e da noção de que comida é cultura.

O comer e beber juntos para além dos ritos religiosos e dietética, remonta, nos registros históricos, ao terceiro e segundo milênios, na Suméria e nas regiões da Mesopotâmia e da Síria. Mas o simbólico tem origem na cozinha a partir do período paleolítico (2,5 milhões a.C.), quando “as preferências culturais”, entendidas pelos autores como “gostos” passam a ser “transmitidos de geração a geração” (FLANDRIN e MONTANARI, 1996, p. 51). Comer cultura, assim, é também comer diversos gostos dos outros. É situar-se no ponto de intersecção entre tradição e inovação, conforme Montanari (2008, p.26):

É tradição porque constituída pelos saberes, pelos valores que nos são transmitidos. É inovação porque aqueles saberes, aquelas técnicas e aqueles valores modificam a posição do homem no contexto ambiental, tornando-o capaz de experimentar novas realidades. Inovação bem-sucedida: assim poderíamos definir a tradição. A cultura é a interface entre as duas perspectivas. (MONTANARI, p.26-27). Numa leitura mais simplificada, pode-se concluir que os processos criativos dos chefs de cozinha dependem muito da preservação dos saberes tradicionais e, portanto, da “cultura”. E que a preservação da cultura contribui à preservação de espécies, da biodiversidade. O que, por fim, resulta na relação avançada 1) espécie  2) alimento  3) ingrediente. Essa representação didática se ampara na noção de Montanari (2008, p.165) para o “léxico” sobre o qual a gastronomia, como linguagem, se fundamenta. Afinal, “o modo de comer é regrado por convenções análogas àquelas que dão sentido e estabilidade às linguagens verbais” (Ibidem).

Se uma espécie “some” em decorrência de mudanças ambientais, econômicas, sociais, culturais etc. e, não havendo substituição possível (seu equivalente), deixa-se de ter um alimento (o comestível) ao uso culinário/gastronômico. A ideia de não-desperdício emerge do aproveitamento integral de “sabores e saberes”. “O gosto é, ao mesmo tempo, sabor e saber. A aliteração indica 80 um vínculo estreito e sistemático, mas não linear, entre a esfera perceptiva e a cultural”. (PETRINI, 2009, p 100).

Desprezar algo comestível pode simbolizar o desprazer e a perda cultural – ou a falta do saber ou de uma técnica culinária. O tucupi, caldo típico da culinária amazônica, pode matar se o sumo da mandioca-brava não for bem cozido. O fresco camarão se perde se não for salgado e seco. E nada de haver tacacá.

Esse exemplo conduz à lembrança do “óbvio” – as técnicas de preservação de alimentos mais rudimentares, como a defumação, a cura e as conservas, são meios de conter-se a fome na penúria ou na ausência de tecnologias (a invenção da geladeira, no século XIX, seria um exemplo). Nasceram assim muitos “‘produtos típicos’ que constituem uma parte decisiva do nosso patrimônio gastronômico, vínculos talvez insuspeitos entre o mundo da fome e o mundo do prazer” (MONTANARI, 2008, p. 41).

Avançando-se à noção de conquista de territórios, fica mais nítido ainda o fato de que, ao comer- se cultura, diversifica-se a lista de alimentos, de receitas e de tecnologias conhecidos e, possivelmente, à disposição. O período das Grandes Navegações é bastante revelador: a partir do século XVI muda fortemente a relação dos homens como espaço até evoluir-se ao que se entende por “aldeia global”, como já mencionado anteriormente. Neste sentido, pode-se pensar sobre o quanto o conceito de globalização, amplamente discutido por autores como Octavio Ianni (autor de A Sociedade Global, de 1992) e Renato Ortiz (Mundialização e Cultura em 1994), afetou os gestos de interpretação da culinária brasileira sobre a identidade nacional e seus “pratos típicos”, algo que será abordado em “gastronomia à brasileira”.

De qualquer forma, pretende-se pensar já na responsabilidade dos cozinheiros ao misturarem gostos diversos. Conforme Ortiz (1999):

Se as diferenças são socialmente produzidas, isso significa que à revelia de seus sentidos simbólicos elas serão marcadas pelos interesses e conflitos definidos fora de seu círculo interno. A diversidade cultural é diferente e desigual porque as instâncias e instituições que as constroem possuem distintas posições de poder e legitimidade. (ORTIZ, 1999, p.169).

Olhando-se para a AD, pode-se entender que é no intradiscurso da “gastronomia brasileira”, que a noção de “culinária brasileira” é definida. Dependendo-se do efeito-leitor, o texto culinário (o receituário brasileiro) pode ser ressignificado a fim de reforçar-se determinada posição-sujeito, ou seja, de onde fala o sujeito em certas condições de produção. Assim, um chef, enquanto sujeito enunciador pode tratar da cultura popular, apenas para ilustrar o que se pretende dizer, como 81

“sábia” ou como “simplista” em relação ao conhecimento científico. E tratar da gastronomia como “acessível” (no sentido de ser democrática) ou “elitista” (acessível apenas aos cultos e ricos, pelo habitus dessa classe social).

Contudo, “na corrida às coisas e aos lazeres, o Homo consumericus esforça-se mais ou menos conscientemente em dar uma resposta tangível, ainda que superficial, à eterna pergunta: “quem sou eu?” (LIPOVETSKY, 2007, p. 45). A identificação entre o leitor que procura se informar sobre o que consumir, muitas vezes com ajuda da mídia, de acordo com seu “perfil” e o comensal que procura gostar do que consome faz surgir diversos sujeitos leitores-comensais.

Da primeira (1760-1850) à segunda (1850-1945) revoluções industriais, há uma sequência de eventos científicos e tecnológicos capazes de revolucionar o comer e o comestível, entre eles o desenvolvimento da indústria química, do motor de combustão interna e da indústria elétrica e eletrônica, como pode ser destrinchado em obras como Trajetórias da Inovação – A mudança tecnológica nos Estados Unidos da América no século XX, de David C. Mowery e Nathan Rosenberg (2005, p. 21, 2005). Os autores se dispõem a compreender a dinâmica das “revoluções industriais” e, mais marcadamente, dos processos de “inovação”. Processos, pois “tão logo a renda de uma sociedade aumenta, a composição de suas demandas muda e, junto com essas mudanças na demanda, a lucratividade das invenções em diferentes setores da economia também mudam.”

Assim, eletrodomésticos como os fogões industriais abastecidos ou não por gás liquefeito de petróleo (anos 1910), os refrigeradores (remontam aos anos 1850) e uma gama de materiais (a exemplo do teflon, que remonta a 1938) e dos utensílios que possibilitaram a melhoria dos processos culinários nas cozinhas profissionais têm relação com pesquisa (descobertas científicas), desenvolvimento (socioeconômico) e, sobretudo, crescimento populacional e demandas dessas populações.

Vista da perspectiva dos anos 1990, a íntima conexão entre o petróleo e as indústrias químicas parece natural e, portanto, inevitável. Mas, para um observador da década de 1920, essa conexão devia ser bem menos óbvia. Na verdade, essa conexão foi uma criação humana complexa. (MOWERY e ROSERNBERG, 005, p.97).

Pode-se dizer ainda que, para um observador dos anos 2020 pouco familiarizado com a história da gastronomia, a íntima conexão entre o petróleo e a mídia gastronômica deve ser pouco óbvia, exceto se pensar-se na óbvia conexão entre premiações como o Guia Michelin e ao estrelato dos chefs de cozinha a partir dos anos 1900. Na febre da revolução automóvel, André Michelin decidiu criar, na França, um “guia gastronômico” para promover o “turismo automóvel” e terminou por 82 incentivar a invenção do “turismo gastronômico” e o consumo da “gastronomia autoral”. O prêmio Michelin é “mais alta condecoração da gastronomia mundial” (LUNARDELLI, 2012).

Imitar um chef premiado em casa, sobretudo na contemporaneidade e com tantos dispositivos de interatividade à mão (tablets, smartphones e afins) parece promissor ao cozinheiro amador que detém os meios necessários para consumir, indiretamente, a “arte” culinária; ou seja, além dos insumos e do receituário do chef inspirador, capital cultural para compreender a gastronomia como linguagem e mídia capaz de delinear novos desejos.

Não basta cozinhar, é fundamental ser chef. [...] Desse modo, mais do que nunca, nos inserimos no bios midiático e tal fato é amplamente observável na linguagem da gastronomia, tanto nos tabletes que customizam a informação, como nas redes sociais. [...] No bios midiático, há uma interligação entre o real e o virtual tão grande, que pouco se distingue o que é comida de fato e o que é a representação da comida – aliás, acreditamos que a imagem seja mais representativa, porque ela só precisa ser degustada com visão, não implica em execução daquela comida. Tal estado mostra-se como uma das características que qualificam a gastronomia como mídia, transformando seu conteúdo em pura mensagem, mídia em si própria. (JACOB, 2013, p. 172).

Pontue-se, em breve parênteses, que boa parte das grandes inovações tão presentes no cotidiano, aliás, têm origem em “estratégias de guerra”, caso do forno de microondas, desenvolvido na década de 1940, nos Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial, pelo engenheiro Percy Spencer, enquanto estudava como desenvolver um radar.

Caso, também, da cozinha. Em 1926, a arquiteta vienense Margareth Schutte-Lihotzky (1897- 2000) desenvolveu o conceito da Cozinha de Frankfurt32, em parceria com o arquiteto alemão Ernest May. Com apenas 6,5m², segundo o Museu de Artes e Artesanato de Hamburgo, fora inspirada nas diminutas cozinhas navais alemãs, sob os princípios da eficiência, da economia e do design para atender à classe “média” que vivia em apartamentos. Tratava-se do protótipo da cozinha embutida moderna.

Numa deriva de sentidos, os micro ondas (e gadgets culinários afins) ajudaram a descongelar os cozinheiros amadores preguiçosos de entrar na cozinha, espaço do cozinhar, sobretudo a partir dos anos 1950. É nessa época que o consumo deixa o nível “ostentatório” do “ter” e começa a significar a “experiência”, o “ser” (LIPOVETSKY, 2007, p.39) algo que se populariza a partir dos anos 1990.

A verdade é que, a partir dos anos 1950-60, ter acesso a um modo de vida mais fácil e mais confortável, mais livre e mais hedonista constituía já uma motivação muito

32 Mais sobre o projeto pode ser lido no site do Museu de Artes e Artesanato de Hamburgo: 83

importante dos consumidores. Exaltando ideais de felicidade privada, os lazeres, as publicidades e as mídias favorecem condutas de consumo menos sujeitas ao primado julgamento do outro. (LIPOVETSKY, 2007, p.39)

Tem-se a cultura da “experiência” nos ambientes privado e público (os restaurantes figuram aí) e uma busca obstinada pela “emoção”, conforme o autor. Segundo Jacob (2013), em um mundo de efemeridades, a busca pelo “outro”, pelo diferente, passa a tema obrigatório nas relações de consumo. Especialmente na gastronomia, “ser visto como diferente”, o que se dá pela modelização e pela ação dos textos da gastronomia”. (JACOB, 2013, p. 122). Em seus estudos, a autora se ampara nos conceitos da Semiótica da Cultura, de origem russa, advindos principalmente da obra de Iúri Lótman (1996).

A Semiótica da Cultura afirma que a própria cultura é um grande texto, erguida que está na junção e no intercâmbio entre tantos outros textos que ali se constroem e se modificam. No caso deste estudo, a cultura da alimentação agrupa todos os textos já gerados que se relacionam à comida e à cozinha, desde o primeiro alimento consumido pela espécie humana até o prato mais sofisticado surgido em um laboratório experimental de cozinha: todo e qualquer texto deste sistema da cultura faz parte do tecido cultural da alimentação. E na junção entre eles estruturam-se os vínculos comunicativos que constroem novos textos, em um processo contínuo de semiose e de recodificação inerente a qualquer sistema cultural. (JACOB, 2012, p. 116). Neste sentido, enquanto a sociedade caminha à descoberta dos sentidos do consumo, ou do hiperconsumo, com tempo cada vez mais escasso à degustação, à apreciação, os gastrônomos se obstinam na descoberta de linguagens próprias, o que depende de “comer cultura” (no sentido metafórico e no conceitual, proposto pela Semiótica da Cultura).

O fast food popularizado nos anos 1950 resolve a refeição rápida para “a massa” e avança globalmente conforme avançam as tecnologias dos transportes e as comunicações. Simboliza o “processo de convergência dos hábitos culturais” (ORTIZ, 1994, p. 181) e não, necessariamente a padronização do gosto pela mundialização, uma vez que há peculiaridades nas linguagens culinárias e, por conseguinte, na linguagem gastronômica.

Para criar um prato, o chef tem de sair do cotidiano e entrar no tempo do sensível, isto é, entrar em contato com lembranças de sabores, de cores, de cheiros, de sensações, para traduzir isso sem pinceis, tintas, barro ou metal e, sim, com carnes, verduras, legumes e frutas. E essa tradução de lembranças deve ser repetida todos os dias, com precisão e exatidão. (LUNARDELLI, 2017, p. 23).

Logo, se a constituição, formulação e circulação (conforme a AD) da “linguagem gastronômica” dependem de tempo; e se a leitura desse texto gastronômico (Lótman, 1996) carece de tempo, não há como massificar a gastronomia como ocorre com a culinária. Se se diz que uma culinária é 84 típica “do Brasil” (e volte-se ao exemplo do tucupi), ao longo da formação da culinária brasileira, comunicou-se isso pelo cozinhar (transmissão de sabres de geração a geração) e pela mídia.

Assim, passa-se do “consumo de massa” e da “escolha” que persiste até os anos 1990 ao “consumo hiperindividualista” e da “hiperescolha”. Tem-se uma nova ordem cultural, mundializada em que hábitos e costumes de outros lugares do mundo transformam os modos de vida. Esse processo é acelerado com o advento da internet, no final da década de 1980.

A mundialidade é parte do presente das sociedades que nos habituamos a chamar de ‘periféricas’, ela encontra-se ‘dentro’ de nós. Uma cultura mundializada deixa raízes em ‘todos’ os lugares, malgrado o grau de desenvolvimento dos países em questão. Sua totalidade transpassa os diversos espaços, embora, como vimos, de maneira desigual. (ORTIZ, 1994, p.219).

Esse processo de mundialização da cultura ao qual se refere o autor é relativamente dado, como se vê e complementa a noção de texto de Lótman. Para compreender os sentidos de “cultura de massa” no campo gastronômico, é prudente olhar em revés para a “Cozinha Ornamental”, artigo de Roland Barthes, em Mitologias, publicado em 1957. Nele, o autor critica ideologicamente “a linguagem da cultura dita de massa”, a “norma burguesa” e estuda o mito, que define como um sistema semiológico, não um sistema de fatos.

A revista Elle, que define como “verdadeiro tesouro mitológico” (BARTHES, 2003, p. 130), e que coloca em oposição à popular Express, segundo o autor, apresentava reportagens sobre culinária semanalmente destinadas ao “imenso público popular” a fim de coroá-lo “com o sonho do chique”. Para isso, trazia fotos coloridas de um prato muito bem acabado. O “alimento” era “escondido”33 sob coberturas, como molhos lisos: “perdizes douradas ponteadas de cerejas, “quente-e-frio” de frango rosado, empadão de lagostins” etc. “Há, com efeito, nessa constância do revestimento, uma exigência de distinção” (Ibidem). Toma-se aqui distinção no sentido de Bourdieu (1979), de diferenciação de classes sociais pelo habitus e pela noção de conhecimento das normas dos campos, no caso, o gastronômico.

A “cozinha da Elle”, emprestada como metáfora ao ambiente editorial (jornalístico gastronômico) onde ocorrem as produções dos alimentos para ilustrar os textos escritos, é:

33 Há, aí, referência indireta à técnica do food styling, que surge nos anos 1950 para atender à demanda publicitária da indústria de alimentos para na ilustrar os produtos alimentícios nas embalagens e, posteriormente, os culinarista nos programas de TV. Trato mais desse assunto em artigo para Diálogos Comestíveis: https://www.dialogoscomestiveis.com.br/na-ponta-da-faca/104-food- styling-para-deixar-tudo-de-comer-com-os-olhos

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uma cozinha de ideias. Nela, entretanto, a invenção relegada a uma realidade feérica, deve limitar-se obrigatoriamente ao enfeite, visto que a vocação “distinta” do jornal lhe proíbe abordar os problemas reais da alimentação (o verdadeiro problema não é conseguir espetar cerejas sobre uma perdiz, mas encontrar a perdiz, ou seja, pagá-la. (BARTHES, 2003, p. 131).

A mídia de massa disseminava, assim, o mito do acesso ao alimento “distinto”, “culinário”. Assim, uma interpretação sobre o interdiscurso da gastronomia contemporânea. Algo reforçado pelo principal veículo de massa dos anos 1950 em diante: a televisão; e subsequentemente pela internet, a partir dos anos 1980. O “comer” está em “tudo”.

Em função da “massificação” do comer, em seus muitos sentidos, em numa fase que se inicia nos anos 1990, o consumidor, segundo Lipovetsky (2007), paradoxalmente, mais desejoso de liberdade de escolha opta por opções antagônicas à fast life, como o Slow Food (oposição ao fast food) e às opções de lazer situada numa noção de tempo heterogênea, a fim de estender-se o prazer pela lógica do “eu mereço”.

Neste sentido, o dinheiro disponível e, não necessariamente a noção de habitus e de classe social que integra a lógica dos campos (Bourdieu, 1979), passa a nortear o que o filósofo denomina “turboconsumidor”.

É nesse ponto que o consumo da gastronomia, formatado inicialmente para e no ambiente das elites, da burguesia, ganha outros sentidos e aspirações. É o que se chama de “efeito Diva”, pois “as escolhas de consumo, cada vez menos determinadas unilateralmente pelo habitus e cada vez mais pela oferta mercantil e midiática, têm como características ser muito imprevisíveis, descoordenadas, desunificadas.” (LIPOVETSKY, 2007, p. 117).

Em artigo intitulado “O que é a gastronomia hoje” da edição 198 da Revista Cult (2015), o sociólogo Carlos Alberto Dória trata dos efeitos da “vulgarização” da gastronomia (decorrente do “efeito-diva” que nomeia Lipovetsky em 2007):

Passados quase duzentos anos, a gastronomia desempenha um papel completamente novo na sociedade. Tornou-se um tema cultural tão importante quanto a moda, a sexualidade, a violência. É reivindicada como aparentada às artes, à simples nutrição, ou mesmo aos negócios. Sua assombrosa vulgarização parece exigir de cada um de nós que saiba explicar, a qualquer momento, afinal porque escolheu comer determinada coisa e não outra. (DÓRIA, 2015).

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Figura 8 – Alex Atala em palestra do Congresso do Mesa Tendências de 2015. Foto: Érica Araium

2.2.1 #EuComoCultura

Quando mobilizou a campanha “Gastronomia É Cultura/ Eu Como Cultura”, em meados de 2013, ufanista, via Instituto Atá, o chef Alex Atala conclamou uma plêiade de cozinheiros- discípulos a dar novo sentido ao termo “cultura”: colheu um milhão de assinaturas para conseguir a aprovação do projeto de lei (PL) 6.562-A, de 201334 que: “altera a Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991 - Lei Rouanet - para incluir a gastronomia brasileira como segmento beneficiário da política de incentivo fiscal”.

Numa atitude metalinguística e simbólica vestiu, literalmente, a camisa para que o Estado reconhecesse a “gastronomia como cultura”. Isso importa saber, soma-se à análise do “gosto do Fruto” – os sentidos que a imprensa põe a circular.

34 Ementa: Altera a Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991 - Lei Rouanet - para incluir a gastronomia brasileira como segmento beneficiário da política de incentivo fiscal. Disponível para consulta em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=596141> Acessado em 01 nov. 2020. 87

Alex Atala “educa o gosto” há mais de 20 anos. Oficialmente, desde 1999, quando inaugurou o D.O.M., e voltou a ganhar destaque na mídia. Como critérios aos acontecimentos noticiáveis, a imprensa se baseia em critérios como “ineditismo”, “improbabilidade”, “interesse”, “apelo”, “empatia” e “proximidade”, segundo definição da importância da notícia no Manual da Redação Folha de S. Paulo (MANUAL, 2001). O D.O.M. era uma pauta. Alex, outra.

Isso fica mais claro em reportagem de “resgate” publicada no Blog do Lorençato, em outubro de 202035, sobre o que se chamou, genericamente, de “boom da gastronomia no Brasil”, nos anos 1990. Assinada pelo crítico gastronômico e editor sênior da Revista Veja Arnaldo Lorençato, leva o título: “A capa que revelou Alex Atala e outros chefs que desejavam a profissão”. Nela, o jornalista revela o caminho de construção de sua reportagem publicada na Vejinha São Paulo, suplemento da Revista Veja, em 1997.

À época, numa condição de produção jornalística em que as “assessorias de imprensa não vendiam storytellings36 prontas sobre seus clientes”, ele contava “dos jovens de classe média que queriam ostentar o título de chef”, uma profissão mal vista e quando “não havia faculdade de gastronomia — a primeira delas, a Anhembi Morumbi, surgiu só em 1999”, indica.

Há pouco mais de duas décadas, começava uma verdadeira revolução. Algo inédito acontecia em restaurantes paulistanos, um movimento que a posteriori se espalhou por todo o Brasil. Não ocorria a olho nu... [...] levei a proposta de uma grande reportagem ao editor daquele tempo, que me pediu, com justo rigor, dados concretos. Havia uma lista de meia dúzia de jovens talentosos que apontavam a tendência. (...) “Na primeira semana de fevereiro de 1997, chegava às bancas e às casas dos leitores a Vejinha com a capa “A moçada das panelas”. (LORENÇATO, 2020).

Ali, Atala trabalhava no extinto restaurante paulistano Filomena. Inaugurou o D.O.M. dois anos depois daquela reportagem que trazia somente uma cozinheira, Renata Braune. Desde então, Atala, especialmente, é personagem recorrente de reportagens sobre temas relacionados ao campo gastronômico.

Aos poucos, foi desenvolvendo receitas cada vez mais pessoais a partir de ingredientes nacionais, até se tornar o mais autoral dos chefs brasileiros. Eu estava lá desde o início e acompanhei, como observador privilegiado, toda essa evolução, não só de Atala, mas da gastronomia paulistana nas últimas três décadas. (LORENÇATO, 2020).

35 A íntegra do texto pode ser conferida em: Acessado em 01 Nov. 2020

36 O termo em inglês corresponderia à literal “história contada”, na tradução livre; mas pode ser substituído por “narrativas”. 88

Como sujeito conhecedor das regras dos campos jornalístico e gastronômico, Atala discorre sobre os sentidos do gosto com desenvoltura e protagonismo. Dita tendências sobre os sentidos da gastronomia brasileira em formação ciente de que “um chef que pretende realizar um trabalho autoral tem que ser um experimentador nato” (LUNARDELLI, 2017, p.25) e começou a fazê-lo pelos ingredientes amazônicos, amplamente divulgados em seu trabalho.

Enuncia, desde seu surgimento na mídia, que “a maior rede social do mundo é a comida”. Laureia prêmios por seu trabalho – o D.O.M. foi condecorado com duas estrelas Michelin. Em 2013, figurou na lista da revista “Time” que aponta as 100 personalidades mais influentes do mundo – a edição europeia da publicação o incluiu em matéria de capa sob o título “Deuses da Comida”, ao lado de dois outros importantes chefs - René Redzepi, do restaurante dinamarquês Noma e David Chang, do extinto Momofuku. De acordo com a reportagem, esses eram os cozinheiros que mais influenciavam como e o que comem as pessoas”. É, por essas e outras razões, comumente chamado pela mídia (internacional e local) de “embaixador” da gastronomia brasileira”.

Atala fala sobre “comer cultura” mesmo sem usar a boca para dizer. Por vezes tendo o corpo como um dispositivo midiático, tomando-se aqui dispositivo na acepção de Foucault (1977): “um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título”. Alterna, porém, entre outros discursos igualmente serigrafados na camiseta que veste: Fruto (desde 2018); Instituto ATA (desde 2012); Death Happens (MAD Symposium, 2014), entre outros manifestos culturais.

A ideia do manifesto político de 2013, da campanha “Gastronomia É Cultura/ Eu Como Cultura”, era redesenhar a Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, conhecida como Lei Rouanet, que institui o “Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC) e oferece três importantes mecanismos de captação de recursos para o setor cultural brasileiro – o Fundo Nacional da Cultura (FNC), os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (FICART) e o incentivo a projetos culturais”.

Pelo texto inicial do projeto de lei (PL) 6.562-A, de 2013, de autoria do deputado Gabriel Guimarães (PT/MG), que “visa incluir a gastronomia brasileira como segmento beneficiário da política de incentivo fiscal”, a gastronomia é definida como “vasto e fascinante universo que abarca ingredientes, utensílios, equipamentos e saberes humanos; é parte integrante da história e da cultura de um povo. Assim, o nosso modo de comer e de preparar o alimento é característica essencial que nos distingue e nos define como brasileiros”. 89

Em 2013, aquele texto inicial aproximava a “gastronomia brasileira” de “cultura” e de “identidade” (note a expressão “nos define”). Contudo, como exposto até aqui, a “gastronomia” encerra sentido de valor estético, artístico – fator de distinção social pelo habitus das elites, que têm maior acesso a ela, dada a educação do “gosto” (BOURDIEU, 1979). O sentido de “hábito do luxo” é, portanto, histórico na gastronomia e, no contexto brasileiro, faz muito sentido dizer que “simbólico”. Em 2015, a Comissão de Cultura, aprovou o PL com emendas, entre elas a substituição do termo “gastronomia brasileira” por “cultura alimentar, de forma a reconhecer as transmissões de tradições de modo não formal, oralidades, cosmovisões, saberes, fazeres e falares e os processos de inovação, reprodução cultural, social e econômica gerados a partir de práticas tradicionais”. Em 2017, “cultura alimentar tradicional e popular” e “gastronomia” apareceram juntos no relatório da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. E volta-se à compreensão dos deslizamentos de sentido acerca de gastronomia e de cultura no Brasil.

Dependendo-se da leitura do objeto (neste caso, o Brasil e o seu “comer”), tem-se uma interpretação possível sobre “gastronomia” e “cultura alimentar”, “cultura tradicional”, “cultura popular”, “gastronomia tradicional”, “gastronomia popular” etc. Pela proposta legislativa, em 2020, come-se cultura e gastronomia – e o PL segue em tramitação.

2.2.2 No jornalismo, gastronomia é cultura

E qual seria a função do jornalismo na tradução e/ ou à divulgação do comer enquanto ciência e cultura e promoção do que se pode valorar em relação à “cultura alimentar brasileira” e, por conseguinte, à “gastronomia brasileira”? A doutora em comunicação Renata do Amaral, em 2016, portanto à época do engendrar do movimento “Eu como Cultura”, quando já se fazia certa ágora em rede, dissertava sobre o jornalismo gastronômico apresentando-o como o “prato cheio do jornalismo cultural”, lá pelas bandas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Tratava-se de uma sondagem inicial acerca da nova editoria, derivada do jornalismo cultural, esquadrinhado academicamente, no Brasil, por Daniel Piza (2004). Que já não era mais trivial; e sobre a qual uma leva de jornalistas passara a se dedicar no Brasil em função do evidente interesse pela “pauta gastronômica”, abordada de forma hipertextual, em multiplataformas e multitelas (LÉVY, 1996). Os chefs, ali, já eram tratados como celebridades, ao menos nalguns canais de tevê fechada, como o GNT. 90

Para Piza (2004), a aba jornalística que, a partir do final do século XIX, era tratada com pompa e circunstância e teimava em enaltecer o elitismo das artes com “a” maiúsculo, embebida da literatura e atenta ao “discurso retórico” (PIZA, 2004, p.67), a partir do século XX, passava a adotar um discurso mais” superficial”. Isso tem relação com os gêneros jornalísticos em veiculação e as condições de produção noticiosa.

No Brasil, segundo Amaral (2016, p.35), “a bibliografia sobre o assunto (o jornalismo cultural) é escassa e, em geral, não faz jus a todas as suas facetas”. De qualquer forma, o “discurso jornalístico”, que abriga gêneros como o artigo, a crônica e o editorial” (Ibidem, p.36) trata dos muitos sentidos da cultura por meio de textos noticiosos (informativos) e de opinião. “Entram no jornalismo informativo a nota, a notícia, a reportagem e a entrevista; e no opinativo, o editorial, o comentário, o artigo, a resenha, a coluna, a crônica, a caricatura e a carta” (Ibidem, p.39).

Piza (2003), neste sentido, situa o leitor de que, especialmente dos anos 1950 em diante, dado o surgimento dos meios de comunicação de massa como a televisão e da chamada “indústria cultural”, que interessada no consumo em escala, a “cultura” passa a ser tratada como mero objeto do “entretenimento” numa era de “reprodutibilidade técnica”, como define o pensador Walter Benjamin, expoente da Escola de Frankfourt, da qual também pertenceu Theodor Adorno. Assim, passa a atender aos interesses da ideologia burguesa. Hábitos como o bife com batatas fritas e a leitura dos horóscopos, por exemplo, viram “pauta” de interesse da mídia, como Barthes analisa em Mitologias (1957).

Aos poucos, “a crítica passa a ser a espinha dorsal do jornalismo cultural” (Ibidem, p.28). Dos anos 1980 em diante, a internet serve como caminho alternativo ao jornalismo cultural e incontáveis sites prestam um serviço que a imprensa escrita “não pode, por falta de interatividade e espaço” (PIZA, 2004, p.31).

Deve-se adicionar uma camada de análise à noção de opinião no jornalismo – sobretudo porque os textos do gênero “crítica” sobre a gastronomia são muito comuns nos veículos brasileiros, segundo Amaral (2016). “Certos recursos utilizados no jornalismo servem para que o autor se esconda por trás do discurso de isenção” (PIZA, 2004, p.40). “Afirmar que alguém revelou, elogiou, confirmou ou condenou demonstra diferentes posições sujeito que podem ser atribuídas ao personagem simplesmente por serem desejadas pelo jornalista” (Ibidem, p.41).

Assim, Amaral (2016, p.40) demonstra que, a despeito de o jornalismo desejar ser imparcial e objetivo, termina por praticar uma objetividade possível, pois a “subjetividade do jornalista, afinal, vai desde a escolha do assunto em pauta até a redação e edição de texto”. 91

Ocorre que, no contexto do jornalismo cultural, onde a gastronomia se inscreve, porque é cultura para o jornalismo, e a despeito de haver uma lógica determinada para a assertiva produção noticiosa, que depende do preparo técnico do jornalista para sua prática37, alguns jornalistas “focas” (novatos) e alguns produtores de conteúdo mais contemporâneos depreendem haver glamour na cobertura “fácil” de assuntos como “comida”, contribuindo, assim, à superficialização dos textos, carregados de excessiva emissão de “opinião”, sobretudo os do gênero crítica.

A “doce vida” jornalística é “enganosa”, caro (IBM) “Watson”38 e a única verdade é a busca pela veracidade dos fatos (não os cotidianos, mas os acontecimentos, conforme Dela-Silva, 2008), algo que exige do jornalista precisão, sobretudo ao adotar metáforas para ilustrar ideias expressadas em enunciados alheios aos seus (escrever sobre o que “o outro disse”).

Para Amaral (2016), a intertextualidade nos textos jornalísticos literários (a exemplo das crônicas sobre gastronomia) e a metáfora são recursos comumente usados pelos jornalistas contemporâneos para traduzir o real em seus textos. Especialmente a metáfora, definida de acordo com a cultura em que é utilizada. “Ou seja, é comum que uma metáfora considerada óbvia em uma determinada cultura não faça sentido algum em outra”, situa a autora (2016, p.68) com base em Lakoff e Johnson (1980).

Vai-se além aqui ao pensar-se que a metáfora funciona no deslizamento entre formações discursivas, produzindo uma deriva. Portanto, para escolher uma metáfora, o jornalista se inscreve em dada FD e a pensa em relação a sua historicidade, e conforme Orlandi (2004, p. 22-23), tem- se o efeito metafórico, “fenômeno semântico produzido por uma substituição”.

“Esse deslizamento, a metáfora (tomada aqui como transferência), própria da ordem simbólica é o lugar da interpretação, da ideologia, da historicidade”. O discurso jornalístico, narrativo per si, medeia a experiência humana, muitas vezes, por meio do apagamento das marcas do sujeito jornalista (para obter, assim, a “objetividade”).

37 Dentro do processo social de construção da realidade, há certas condições factuais, ou seja, um fato a ser noticiado. Há ainda “regras e convenções narrativas que vão desde as regras sintáticas e semânticas Até as normas ético-pragmáticas do falar. São estas regras e convenções que funcionam como estruturas do discurso jornalístico e que constituem os pressupostos de um contrato de leitura entre o jornalista e o leitor”. Ester Marques in: Estruturas do Discurso Jornalístico, disponível em: Acessado em: 01 Out. 2020.

38 Referência à tecnologia artificial desenvolvida pela IBM. 92

Enunciar na mídia inclui uma memória da mídia pela mídia. Valendo-me de conceitos formulados pela análise de discurso, posso dizer que enunciar na mídia é enunciar segundo a interdiscursividade que determina as formulações da mídia, por mais que os jornalistas possam ainda afirmar que eles se pautam pela objetividade dos acontecimentos. (GUIMARÃES, 2001, p. 15 apud DELA-SILVA, 2008, p.17, grifos nossos).

Neste sentido, como bem define Piza, a responsabilidade do jornalista cultural é “especial porque ele pode facilmente “quebrar a cara” quando não domina um tema; é preciso ter boa memória e gostar de estudo”. Adiciona-se aqui que, no caso da crítica gastronômica como julgamento, pode- se quebrar a própria cara e do restaurateur39 ou chef ou outro profissional de cozinha entrevistado. “Há ainda um tipo de reportagem cultural, ainda mais interpretativo, que não é fácil de fazer e tem escasseado na imprensa brasileira. É a reportagem que trata de uma “tendência” ou de uma questão em debate no meio cultural”. (PIZA, 2004, p. 83).

Ao longo de seu curso, para Piza, o “filtro do jornalismo cultural”, tem “falhado em método e eficácia” desde meados dos anos 1990 ao acolher mais colocações rasas do tipo “gostei ou não gostei” em seus textos. Moda, design e gastronomia ganharam mais espaço nos cadernos culturais e, assim, aumentaram seu público e sua “relevância simbólica”, algo que Piza considera positivo, embora a setorização excessiva tenha ajudado a deixar “o jornalismo cultural numa posição tímida diante do marketing” e o hábito de levar “a” top model ou “o” top chef às capas dos suplementos termine por resumir esse tipo de publicação à seara dos assuntos frívolos. “Há requisitos a cumprir para o bem do próprio leitor” (PIZA, 2004, p.57). Pois:

Como a função jornalística é selecionar aquilo que reporta (editar, hierarquizar, comentar, analisar), influir sobre os critérios de escolha dos leitores, fornecer elementos e argumentos para a sua opinião, a imprensa cultural tem o dever e o senso crítico, da avaliação de cada obra cultural, e das tendências que o mercado valoriza por seus interesses, e o dever de olhar para as induções simbólicas e morais que o cidadão recebe (PIZA, 2004, p. 45).

Conjectura-se, assim, que escrever sobre o comer depende da leitura do comestível e da comensalidade. Do repertório e de uma posição-sujeito que dê conta de compreender muitas

39 “Restaurateurs: Os restaurateurs são pessoas habilitadas a preparar os verdadeiros consomês, chamados restaurantes ou caldos de príncipe, e que tem o direito de comercializar todos os tipos de cremes, sopas de arroz e vermicelli, ovos frescos, macarrão, capão guisado, geléias e outros pratos delicados e salutares. Esses novos estabelecimentos, que desde o princípio foram chamados Restaurantes ou Casas de Saúde, devem sua instituição em 1766, nessa capital aos Messieurs Roza e Pontaillé. O primeiro desses restaurantes, que em nada perdem para os cafés mais bonitos, foi aberto na rue des Poulies; mas, por não ser um lugar muito propício, foi transferido para a rue Saint Honoré, hotel d’Aligre, onde é dirigido com o mesmo sucesso e segundo os mesmos príncípios de higiene, decência e honestidade que sempre devem formar a base desse tipo de negócio. O preço de cada ítem é específico e fixo; qualquer um pode ser atendido a qualquer hora. Senhoras são admitidas e seu jantar pode ser preparado a um preço fixo e módico”. (MATHURIN ROZE DE CHANTOISEAU, Tablettes de Renommée ou Almanach Général D’indication, 1773 in: SPANG, 2003, p. 08, apud Lunardelli, 2012, p.53) 93 formações discursivas em simultâneo, sem tantos julgamentos, embora haja pré-construídos e memórias discursivas de sobra. Isso sem se falar nas (tristes) condições de produção noticiosa que tendencia os “textos jornalísticos”.

2.2.3 Quando “nasceram” os jornalistas gastronômicos?

A “restauração”, como se conhece hoje, “nasceu” de uma revolução dos costumes e dos hábitos alimentares, especialmente no período que vai de 1789-1799. Foi gestada na França de Maria Antonieta, em meio ao conturbado contexto do reinado de Luís XVI, casal que fugiu de Paris, comendo e com medo do exército de Napoleão Bonaparte. E reforçada, conceitualmente, pela imprensa, que exerceu e exerce um importante papel de divulgadora cultural e científica. O que e onde comer são perguntas recorrentes respondidas nos textos jornalísticos. Em que medida eles pesam na tomada de decisão de consumo? Essa é a pergunta que mobiliza a escrita deste capítulo.

Em “A Invenção do Restaurante”, de Rebecca Spang (2000), entende-se que foi preciso um acúmulo de comer em ambientes privados para que a gastronomia ganhasse sentido em ambientes públicos - como o dos restaurantes. Foi-se da “gastromania à gastronomia”, da glutonaria à gourmandisse. Pagou-se sempre um preço por isso e houve publicidade ao registro dessas transformações. Ainda em relação ao contexto do seio das transformações naquela França que assistiu à invenção do restaurante, “dependendo de quem narra a história, o significado do detalhe pode mudar de forma considerável, ressaltando tanto a ambição ou a simplicidade, quanto a gula ou a parcimônia”, escreve Spang (2000, p.155) sobre os possíveis tons da narrativa, em função das posições ideológicas de seus autores, da “Fuga para Varennes” cuja versão monarquista trata da acolhida com pão e vinho local em Sauce como “magra” (desrespeitosa), enquanto a versão republicana exalta a frugalidade como apropriada, por exemplo.

Do que se tratou a ceia do rei a altas horas da noite em Varrenes para ter se tornado um ponto relevante, e mesmo aparentemente necessário, para aqueles que descreveram um dos mais famosos episódios da Revolução? (...) Uma imagem da época chega a descrever Luís fugindo de Paris vestido de cozinheiro, com facas se projetando do avental branco em volta de seu tórax e com um pequeno porco metido embaixo do braço. (...) As temáticas gastronômico-culinárias desse momento eram tão vivas que não surpreende que tenham surgido abruptamente na forma de percepções e miragens: uma insistência em ver cozinheiros onde não havia nenhum. (SPANG, 2000, p.156).

A sensação de que gastronomia nasceu nos palácios com cozinheiros dedicados ao gosto das elites, passa a ser modificada no contexto desse lugar inventado chamado restaurante. Ela poderia, afinal, 94 se tornar acessível em seu “campo” - desde que situados os elementos de “distinção” (Bourdieu, 1979):

A França do século XIX assistiu, portanto, ao nascimento de um novo lugar público para se comer, o restaurante. Embora as tabernas existissem há séculos, elas não ofereciam pratos variados à escolha do freguês. O restaurante então seria uma experiência totalmente diferente, pois rompia o monopólio da elite no que dizia respeito à comida fina, tornando- a possível a qualquer um que pudesse pagar, como foi dito em a Fisiologia do Gosto de Brillat Savarin, qualquer um que tivesse quinze ou vinte francos no bolso e que se sentasse num restaurante de primeira classe estava certo que seria tratado pelo menos tão bem como se estivesse sentado à mesa de um príncipe. De acordo com Spang, os primeiros estabelecimentos surgiram antes de 1789, e eram lugares onde as pessoas de alta sensibilidade, respondendo à nova consciência iluminista da importância da dieta, iam tomar um caldo restaurador e bem saudável. (LUNARDELLI, 2012, p.52, grifo nosso).

Destaque-se, ainda, que dias após a Queda da Bastilha, como conta a historiadora Tatiana Lunardelli em “Estética do Gosto” (2012), “o marquês Charles de Villette propôs que o novo ideal de fraternidade talvez pudesse ser alcançado com um jantar comunitário nas ruas, onde os ricos e pobres se misturariam e todas as ordens se uniriam” (LUNARDELLI, 2012, p.48). O que ocorreria, na verdade, “seria um reforço do espetáculo opressivo de degustação visual, de demonstração de possibilidades de riqueza e poder, já praticado antes da Revolução” (Ibidem, 2012, p. 49): no aniversário de um ano da Revolução Francesa, fez-se uma “refeição patriótica” ao ar livre no Palais Royal e duas mil pessoas assistiram a uma refeição dos membros da Assembleia Nacional. Neste sentido, o comer público resultaria em doações dos restos (do que “sobra”) aos pobres. Ainda assim, o restaurante, inventado oficialmente em 176640, anos antes da Revolução Francesa:

Iria mudar a maneira que as pessoas tinham em relação a comida. Fez com que aqueles que jamais haviam pensado nela se tornassem pela primeira vez conscientes da arte de cozinhar. Ao lerem um cardápio de restaurante, não podiam se conscientizar das dúzias de diferentes maneiras de preparar um único ingrediente. Tal variedade existia no passado, mas em círculos extremamente restritos. O consumidor médio não percebia isso e provavelmente jamais havia visto um livro de receitas. Fazer uma escolha num cardápio significava saber, por exemplo, como se fazia um poulet à la marengo – ou então descobrir o que era; para o restaurante a linguagem empregada no cardápio dava a ele um ícone identificável, prometia o universo numa travessa e civilizava os clientes. Assim, comer neste local tornou-se um processo de aprendizagem, um meio de ganhar e exercitar um atributo muito valorizado pelo Iluminismo: o paladar. (LUNARDELLI, 2012, p. 54, grifos nossos).

40 “O inventor do primeiro restaurante “saudável” da França foi Mathurin Roze de Chantoiseau, em 1766, mas o primeiro grande restauranteur no sentido moderno do termo foi Antoine Beauvilliers, que abriu seu estabelecimento no Palais Royal em 1790.” (Lunardelli, 2012, p. 53) 95

Logo, numa leitura veloz dos sentidos que a gastronomia ganha a partir do século XIX, com ajuda da imprensa (ou com a “mediatização”, conforme Jacob, 2013), pode-se dizer que o paladar educado pela culinária inventou o gosto (tem-se no paladar como “experiência” o repertório sobre a linguagem dos alimentos, da comida, como preconiza Montanari). Dentro das cozinhas nobres, espaço de exercício da linguagem culinária, o gosto das elites inventou o cozinheiro profissional e o restaurante, espaço onde a gastronomia é compreendida como “a arte de comer bem” (segundo o dicionário da Académie Françaice). Este exposto será discutido a seguir.

Contudo, antes, investiga-se: quem nortearia a indicação das escolhas gastronômicas desse novo universo da restauração se não a imprensa? Se não a “crítica gastronômica” e os “críticos gastronômicos”? O pioneiro Grimod de la Reynnière, em seu Almanach des gourmands, durante os primeiros oito anos do século XIX, “evocava um mundo onde restaurateurs e chefs de pastelaria eram equivalentes aos empresários de teatro e dramaturgos, e onde um pâtissier cobrava ingresso simplesmente para exibir seus novos bombons.” (SPANG, 2003, p.184) Se Savarin foi o “pai da gastronomia”, Grimod foi o pai do “discurso gastronômico” (SPANG, 2000; 185) ao aproximá-lo da literatura.

Grimod estabeleceu a gastronomia como um reino autônomo, moderadamente peculiar, não perturbado pelas insignificantes preocupações políticas com Estados e indivíduos, mas Brillat a transformou em uma instituição cultural reconhecida, muito menos assustadora, da qual todo o povo francês era convidado a participar. […]. (SPANG, 2003, p. 246).

Tomado como autor excêntrico (recorria à literatura para rechear as descrições dos espaços e dos gostos que frequentava) e reconhecido como celebridade parisiense, Grimod, dotado de um bom “faro”, flanava, guiado por um gourmand, os contornos geográficos de Paris; e revelava, em seus escritos, uma outra cidade (a gastronômica, a do gastrônomo) à medida em que ia experimentando e aplicando suas próprias regras de avaliação sobre as preparações e, numa frase, “fazendo ou derrubando reputações” (SPANG, 2003, p.187). Grimod não revelava os segredos dos cozinheiros (as receitas) e criava uma espécie de mistério sobre esses artistas criativos capazes de enlouquecer o comensal (tanto quando enlouquecia o crítico) pela experiência do apetite.

O que fazia, na verdade, era uma crítica irônica ao novo regime francês e, em função de seu estilo de escrita, foi muito criticado pelos jornalistas. “Sua persona narrativa – como o único homem de gosto e paladar perspicaz (...) – realmente era um pouco louca” (SPANG, 2003, p.196). Foi também Grimod quem introduziu a noção de “topografia alimentar”, criando um “mapa gastronômico” da França, impresso em 1808. Nele, a Paris de Grimod era a cidade dos 96 restaurantes, não da revolução. “Enquanto os escritos do século XVIII sobre comidas e comer defenderam sua relevância demonstrando utilidade cívica, a gastronomia oitocentista lutou por sua própria autonomia” (SPANG, 2000, p.197). Para a autora, Grimod e os críticos de seu tempo construíram a noção do “comensal ideal do século XIX”.

O conceito de mediatização, muito bem trabalhado por Jacob (2013) e acolhido aqui, propicia compreender a imprensa em seu papel de tradutora das mediações que “o alimento” faz entre quem o consome e quem o produz. Isso ocorre na medida em que a mídia “fala” do que se come ou de quem prepara o que se come – fenômeno muito comum nas últimas duas décadas. Discute-se a alta cozinha e a elaboração de seus pratos a partir de um referencial técnico que a crítica gastronômica elabora desde Savarin – quando se passa a falar uma linguagem própria, gastronômica.

Há que se fazer uma distinção entre aquilo se entende por “linguagem culinária” daquilo que se entende por “linguagem gastronômica” a fim de compreender-se o porquê parecer, ainda, precipitado, dizer que se tem uma “gastronomia brasileira” bem definida no início dos anos 2010, embora seus contornos se mostrem mais definidos no final da mesma década.

“Podemos dizer, por exemplo, que uma determinada cozinha é típica no Brasil porque as receitas que hoje consideramos representativas de nosso país foram mediatizadas e comunicadas ao longo do processo de constituição da culinária brasileira” (JACOB, 2012, p. 71). Assim, tem-se no avançar da gestualidade do cozinhar e nos processos culinários desenvolvidos para a obtenção de um certo alimento uma sequência de interpretações possíveis do texto que carrega esse alimento pelo cozinheiro (quem prepara a comida). Há diferença entre fatiar, ralar ou triturar-se um insumo e, dependendo-se da técnica escolhida, o prato apresentará um “texto” diferente sobre determinada cultura.

Para exemplificar, ainda que grosseiramente, o que isso significa, pode-se lembrar, por exemplo, que a granulometria de uma certa variedade de mandioca (eg: Manihot esculenta Crantz) é capaz de situá-la, enquanto ingrediente comum, a “textos” distintos que, no “título”, teriam a palavra “farinha seca” (referência ao processo tecnológico de fabricação). Essa farinha estaria diferenciada entre farinha fina, farinha grossa e beiju, por exemplo. E, cada um desses três tipos de subprodutos da mandioca resultará numa determinada preparação culinária cuja “receita” depende muito da “cultura”.

O beiju, por exemplo, pode ser confundido com a “tapioca” por um cozinheiro que, por falta de repertório, entenda uma e outra coisas como sinônimos e que, por isso, denote não saber “ler” a cultura nordestina, em que “beiju” e “tapioca” não são o mesmo. Ao mesmo tempo, a compreensão 97 da granulometria da farinha seca dará a um cozinheiro a autonomia necessária para reler, se assim desejar, adaptar ou criar “um prato” a partir de um conjunto de gestos de interpretação sobre a cultura da mandioca (sobre a linguagem do alimento), por exemplo. Para Jacob (2012), os livros de receitas seriam os primeiros registros dos textos da linguagem culinária, um “texto-código” (LOTMAN, 1996 apud JACOB, 2012). Pode-se situar a receita como a memória da cultura. Ou, conforme Dória (2008, p.139), “considerando as diferenças tecnológicas, as receitas são sempre prescrições sobre o modo de como proceder na cozinha.”

Isso nos leva a ponderar quão distinto é o lugar do gastrônomo ao passo que, pelo seu conhecimento técnico amplificado de muitas receitas – e, portanto, da linguagem do alimento e da linguagem culinária – ele possa acessar a memória sobre a cultura (as receitas) “de cabeça”. Por dominar a linguagem gastronômica e, rapidamente, realizar conexões improváveis na rede de sentidos sobre o que é “alimento”41, ele é capaz de dispensar qualquer dispositivo (a exemplo de um celular com acesso à internet e ao Google) que o ajude a encontrar uma “receita” pronta. De qualquer maneira, como propõe Jacob (2013), a mediatização ou a transcrição ou o registro de uma receita implicará na mudança da linguagem culinária ao longo do tempo, em função das atualizações de ambas (receita e linguagem).

Essa discussão abre outra acerca da imprensa dedicada à cobertura gastronômica noutra posição- sujeito: a de educadora ou de transmissora de saberes, de conhecimentos. Aí há que se fazer a distinção entre o comedor e o escritor, entre o comensal e o crítico gastronômico, entre o glutão e o gourmet. A ampliação de seu repertório depende da extensão de seu paladar, da frequência a lugares de distinção e de lugares ordinários e da compreensão do ponto diferenciação entre “culinária” e “gastronomia”.

Segundo Jacob (2013, p.106), a transição entre a linguagem culinária para a linguagem gastronômica se dá no início da Primeira Revolução Industrial, quando se tem conhecimento do conceito de “sociedade de massa”. Para a autora, o Movimento Moderno tem peso na transição das nomeações: “a culinária deixa de pertencer massivamente ao âmbito privado e passa a partilhar como nunca o espaço público” e o “cozinheiro típico começa a ser relegado a uma invisibilidade comunicativa na sua cozinha e vai se consolidando a figura do chef de cozinha como um técnico que se aproxima continuamente do gênero artístico” (JACOB, 2013, p.106-107).

41 “Para ser um alimento, além das três primeiras características de qualidade, um produto natural deve poder ser o objeto de projeções de significados por parte do comedor. Ele deve poder tornar-se significativo, inscrever-se numa rede de comunicações, numa constelação imaginária, numa visão de mundo (Poulain, 2013, p.240). Segundo sociólogo francês Jean-Pierre Poulain, a palavra alimento surgiu por volta de 1.120, mas somente a partir do século XVI passou a substituir a palavra carne. 98

Compreender uma obra de arte significa dialogar num nível mais profundo com seu criador. Neste sentido, para compreender-se o chef de cozinha, o jornalista passa a comungar da linguagem da qual o gastrônomo e o chef de cozinha se utilizam. Assim, os textos jornalístico-gastronômicos passam a traduzir, muitas vezes, os processos criativos que permitiram o desenvolvimento de um menu. E, para que isso ocorra, é preciso que a mídia identifique, reconheça e divulgue o trabalho gastronômico executado em um certo restaurante por um certo chef. Ao fazê-lo, contribui à noção de cogito gastronômico – o leitor-comensal, se afetado pelo texto jornalístico gastronômico, desejará consumir a gastronomia e dialogar com a gastronomia sobre os aspectos culinários e do alimento.

2.2.4 Efeitos metafóricos da representação da cultura alimentar

Um prato de comida pode ser visto de ângulos tantos à beira da mesa ou à borda do smartphone. Esse dispositivo tecnológico lançado nos Estados Unidos no dia 29 de junho de 200742, pode ser apontado como acontecimento histórico (marca o avançar nas comunicações), jornalístico (a invenção como pauta) e discursivo (o comer passa a ser registrado e comentado no mundo todo).

No “virtual” - no registro do comestível, ou seja, na escrita da foto, que é a memória do comestível, conforme Lévy (1996, p.38) - ou no “real” - no plano físico, material da experiência do gosto, onde se come, conforme Perullo (2013), a disposição dos ingredientes no prato, portanto sua estética; suas camadas de cores, texturas e sabores mobilizam sentidos que nem sempre estão óbvios para o comensal, ainda mais se ele não conhece os morfemas - os alimentos, como propõe Montanari (2008).

Durante uma degustação, tem-se um comensal leitor. Por vezes, um jornalista profissional especializado em gastronomia cujo ofício é entender os sentidos que o chef pretendeu mobilizar – um exímio leitor-comensal dado que, no diálogo sobre o comestível, tem-se acesso à interdiscursividade e ao processo de criação do cozinheiro.

Esse texto sobre a criação, que corresponde à descrição do projeto gastronômico (LUNARDELLI, 2017, p. 25) do chef ao jornalista, está impregnado das referências do cozinheiro sobre a memória discursiva da prática gastronômica, do texto culinário (JACOB, 2013) e dos já-ditos de suas referências (outros cozinheiros). Ao contar de uma criação, o jornalista, em seu papel de espectador

42 Data de lançamento do IPhone, por Steve Jobs, durante a MacWorld 2007. Um vídeo sobre este acontecimento histórico está disponível no YouTube: < https://www.youtube.com/watch?v=9ou608QQRq8&feature=emb_logo > Acessado em: 01 Out. 2020 99 emancipado (RANCIÈRE, 2008, p. 9-10), participando, na produção do acontecimento jornalístico (DELA-SILVA, 2008) com seu texto, precisa identificar as rupturas no discurso e as novas significações através das novas séries de enunciados formadas na desestabilização do que é dito normalmente, conforme Pêcheux (1999, p.53). É neste sentido que o efeito metafórico funciona, o real da palavra aparece e jornalista “capta” o melhor viés de sua pauta. Lorençato, por exemplo, diz haver percebido o tino autoral de Atala, na década de 1990, por meio de enunciados do tipo “frase de efeito: “Quando eu o perfilei pela primeira vez, 23 anos atrás, ele (Atala) já usava bem frases de efeito: “Eu me senti tocado pelo dedo de Deus quando tive de limpar um salmão pela primeira vez”. (LORENÇATO, 2020).

O que Atala quis dizer, àquela época, a Lorençato, quando usou uma referência ao afresco “A Criação de Adão”, de Michelangelo? Que seria ele o “primeiro homem” da gastronomia brasileira? Eis um gesto de leitura possível pelo sentido da metáfora que Lorençato cita ao acessar os já-ditos do cozinheiro no início da carreira. Indo-se a outros gestos de leitura, entende-se que, para compreender as opacidades dos enunciados, o jornalista “lê em silêncio” na tentativa de ler o outro e com ele coexistir, como propõe Eni Orlandi (2007).

3- PARTE II - Discurso Gastronômico

3.1 Gastronomia à brasileira

Entende-se que para compreender a formação da “culinária brasileira” deve-se recorrer ao interdiscurso sobre ela, tema explorado largamente por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala (1933), Luís da Câmara Cascudo em História da Alimentação no Brasil (1967), Carlos Alberto Dória em Formação da Culinária Brasileira (2009) e Ricardo Frota de Albuquerque Maranhão (o primeiro professor da disciplina História da Alimentação, em 1999, no primeiro curso superior de gastronomia do Brasil, na Universidade Anhembi Morumbi), tomados como principais autores acerca da produção de um gesto de interpretação que produz e estabiliza a “culinária brasileira” como objeto discursivo.

Os principais livros de “história da alimentação” ocidental dão conta de um panorama restrito acerca da formação da identidade culinária brasileira: em 1.500, tem-se a culinária de cerca de 3 milhões de pessoas, número que “decresceu acentuadamente até a década de 1970”, havendo 100 muitos povos indígenas sido extintos, segundo a Funai (2010)43 – e com eles seus saberes ancestrais acerca de ingredientes nativos e biodiversos. Certamente, esses povos não comiam “igual”.

A esses nativos, que em Porto Seguro (BA) viviam da pesca de arco e flecha, do inhame (mandioca, talvez tenham se confundido na descrição, defendem vários autores), das farinhas; do que houvesse sobre o moquém; que não lavravam nem criavam alimária, segundo carta de Pero Vaz de Caminha (apud CASCUDO, 2011, p.75) além de um universo de peculiaridades étnicas, somaram-se, os europeus e os africanos, cada grupo com seu arcabouço de gostos, técnicas e saberes. Tomar essas contribuições como “equânimes” seria forçoso. Come-se deveras diferente sendo “diferente”. A tríade culinária, então, parece deveras restritiva.

Esses povos indígenas, bem como o de outras regiões do território nacional, como ver-se-ia a partir dos anos 1970, tinham noções bastante sofisticadas acerca do manejo florestal – agricultura de subsistência, sustentável e mítica (Lévi-Strauss, 1964). Representam um importante pilar da culinária brasileira. Os tupinambás de cururupeba (nome em tupi guarani para a ilha de Madre de Deus, situada a 19 quilômetros de Salvador e do líder indígena daquelas bandas, em 1500) resistiram o quanto puderam ao avanço dos colonizadores.

Pode-se ponderar que o antropólogo francês contribuiu muito à noção da culinária brasileira “original”.

Resta a examinar o aspecto semântico. Aqui também surgiu uma transformação. A oposição entre cru e cozido, que deu ao primeiro volume sem título (Mitológicas I), era uma oposição entre a ausência e a presença da culinária. No segundo volume (Mitólógicas 2), tomamos a culinária como dada, para investigar seus entornos, usos e crenças relativos ao mel, aquém da cozinha e, além dela, os que dizem respeito ao tabaco. Avançando na mesma direção, este livro (Mitológicas 3) terá versado sobre os contornos da culinária, que possuem um lado natural — a digestão — e um lado cultural, que se estende aos modos à mesa, passando pelas receitas. Estas últimas pertencem, na verdade, às duas ordens, na medida em que prescrevem a elaboração cultural de substâncias naturais, ao passo que a digestão ocupa uma posição simétrica à delas, pois consiste numa elaboração natural de substâncias já tratadas pela cultura. Os modos à mesa, por sua vez, correspondem a uma elaboração cultural de certo modo em segundo grau, em que o modo de consumir se acrescenta ao modo de preparar. De que modo e em que sentido se pode dizer que os mitos examinados neste volume articulam uma tripla teoria da digestão, das receitas e dos modos à mesa? (LÉVI-STRAUSS, 1966, p.423, grifos nossos).

43 Segundo dados do IBGE/Funai. Oficialmente, contudo, foi somente a partir de 1991 que o órgão incluiu os indígenas no censo demográfico nacional, havendo, em 2010, 896 mil pessoas que se declaravam ou se consideravam indígenas ao Censo Demográfico, das quais 572 mil ou 63,8 %, viviam na área rural e 517 mil, ou 57,5 %, moravam em Terras Indígenas oficialmente reconhecidas. 101

A temática do comer contemporâneo tem muito do tempero da própria antropologia, sobretudo a partir dos anos 1980, “abarcando o interesse por um amplo leque de práticas e sentidos que permitem explorar desde a produção do alimento até seu consumo”. (MENASCHE & COLLAÇO, 2015). Pensar à luz de muitas ciências é, também, “gastronomar” e “antropogarfar”. Ao antropogarfar, pode-se perguntar o que ocorreu com o europeu em seu processo cultural.

O antropólogo britânico Jack Goody, africanista, estudioso da culinária da África Ocidental, “amigo dos ancestrais”, publica Cooking, Cuisine and Class (1982) e nele tem-se o que se pode denominar mercado global de alimentos - graças ao surgimento da indústria alimentícia, cujo impacto sobre os países de terceiro mundo pode ser percebido até hoje. É desse antropólogo o questionamento sobre as razões pelas quais a haute cuisine44, a alta gastronomia, não nasceu, por exemplo, na África. Uma vez que o homem português que coloniza o Brasil fora africanizado, “civilizado por povos do norte da África” (LODY, 2019). E as etnias indígenas que habitavam o Brasil antes de 1.500 mantiveram quais hábitos culinários até a chegada dos portugueses?

A colonização oficial portuguesa, multicultural, permeada pelas influências dos povos afro- islâmicos (LODY, 2019), arrebatou ainda o modo de comer de outras tantas porções de mundo. Mais de 3 milhões de africanos foram aprisionados e segregados e levados (comercializados/traficados, ao menos até 1850, ano da promulgação da Lei Eusébio de Queirós) ao Brasil como escravos, entre os séculos XVI e XIX. Os primeiros chegaram na região de São Vicente, na nau de Martim Afonso de Souza em 1531 (AMARAL, 2013).

3.1.1 Um mapa a partir dos gostos do Brasil

Compreender as “manchas descontínuas” de ingredientes por terroirs45 que nem sempre correspondem às divisões sócio-políticas/ geográficas vigentes e perceber que o Brasil comestível não é monótono, mas polissêmico (dada a riqueza de matérias-primas pouco exploradas e a inventividade de chefs como Atala). “A gastronomia tem a função simbólica de reencantamento do mundo” (DÓRIA, 2014).

44 A grande cozinha francesa se estabelece pós-revolução, no século 19, sustentada por aristocratas e burgueses. Grandes cozinheiros como Carême a Escoffier e gourmands e grandes críticos gastronômicos se ancoram e ressoam em restaurantes frequentados pela elite europeia.

45 [...] “um termo mágico que os franceses utilizam para falar da associação íntima que se estabelece entre um solo, um microclima e uma ou mais cepas adaptadas a esse terreno, como chaves que dão lugar a um vinho com personalidade própria e, portanto, de caráter diferenciado entre os demais”. (PEÑÍN, 2006, p. 35) 102

Há que se destacar a proposição de Dória (2009) à recategorização dos ingredientes brasileiros identitários: deveriam ser distribuídos não geograficamente, como determinam os mapas territoriais do Brasil, mas por uso e ocorrência. Assim, ter-se-ia, por exemplo, a culinária amazônica e não a do Norte (caracterizada pelo uso da mandioca, de peixes, frutas e insumos florestais); a culinária de costa ao invés da cozinha do Nordeste (que abarcaria a extensão do Ceará ao Espírito Santo); a culinária caipira da paulistânia (DÓRIA e BASTOS, 2018), região fruto da união do que havia de hábitos do comer em Minas Gerais, São Paulo e Centro-Oeste, dedicada ao feijão, à abóbora e ao milho (o consórcio das “três irmãs”); ao porco, ao frango e às técnicas portuguesas etc.

Passa-se a conjugar a brasilidade em três línguas a partir de 1.500. Três gostos. Três caldeirões. Uma tríade de influências nem tão tripartite assim, como ventilaria Cascudo em História da Alimentação no Brasil (1964), obra patrocinada por Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, o Chatô.

Desde o início da “miscigenação culinária”, materializada “num cardápio sintético e partilhado pelos brasileiros numa visão simplista” (DÓRIA, 2009, p.11), iniciada no ano 1.500 – onde se inaugura o “discurso do descobrimento” decorrente do “discurso colonialista” (ORLANDI, 2008, p. 54-55), esse sujeito “brasileiro” é impelido a pensar sobre as contribuições culturais ao comer de indígenas, europeus e africanos que formariam a base mais trivial da alimentação brasileira. “Quem é o brasileiro? Onde termina o índio (no contato) o português (na colonização), o italiano (nos movimentos migratórios) e começa o brasileiro? (...) O europeu nos constrói como seu “outro”, mas, ao mesmo tempo, nos apaga.” (ORLANDI, 2008, p. 54).

Perguntas todas essas, supõe-se, povoam o ideário do gastrônomo brasileiro transformado pelo “devir cozinheiro autoral”: ávido por identificar-se sujeito discursivo no campo da gastronomia e disposto a desterritorializar-se (DELEUZE & GUATTARI, 1997) para ressignificar pré- construídos, encontrar e deixar ecoar sua própria “voz”. Porque vive inquieto em um tempo incerto e veloz, de “turboconsumo” (LIPOVETSKY, 2007). E se sente apto a criar, em ritornelo (DELEUZE & GUATTARI, 1997), um novo discurso acerca da “gastronomia brasileira”: um “novo conceito”, uma “gastronomia sustentável” (ONU, 2017), de fato.

Até compreender-se que “gastronomia” e “culinária” não são exatamente a mesma coisa, embora ambas sejam linguagens (JACOB, 2013) e práticas das quais fazem parte discursos, gestos corpos, territórios, etc., até depreender-se o que é o “comer” à brasileira na contemporaneidade, ao menos, será preciso recuar alguns bons anos – a contagem começa nos anos 1920. Do Movimento 103

Modernista em diante, aprender-se a etnografar “o paladar dos alimentados”, distingui-lo da fome “dos carecentes” (CASCUDO, 2004: 11-12)

Há que se considerar que Oswald de Andrade e Mário de Andrade, ícones Semana de Arte Moderna de 1922, marcaram com modernismo “desvairado” a vida e obra de Cascudo. Bem como, Gilberto Freyre, com seu regionalismo tradicional, proposto em Pernambuco e descrito, marcadamente, no “Manifesto Regionalista” (1926), texto que circulou nos jornais da época e, embora não quisesse “desenvolver a mística de que, no Brasil, só o Nordeste tenha valor”, o fez ao ressaltar as cores do Nordeste. Anos mais tarde, em Casa Grande e Senzala, Freyre faria o “retrato” dos hábitos do senhor de engenho, do patriarca e de sua família. Dos brancos e dos miscigenados, portanto. A análise precisa da contribuição de Freyre à Cascudo é feita por Dória (2009):

O livro de Câmara Cascudo é a bíblia dos que se dedicam, ainda hoje, ao estudo da culinária brasileira. Toma corpo nele a ideia miscigenista dos anos 20 e 30. Cascudo mostrou, através de uma pesquisa de grande fôlego, feita no Brasil e no exterior, o que compunha originariamente a “ementa portuguesa”, a “ementa indígena” e a “ementa africana”, que se plasmando em vários pratos e hábitos alimentares poderia ser entendida como o patrimônio culinário brasileiro. O grande problema que persistiu é que as cozinhas dos “príncipes” e do “povo”, mais uma vez, não se fundiram numa só cozinha nacional burguesa. (DÓRIA, 2009, p.25).

Ao mesmo tempo em que Cascudo se dispôs a tecer uma vasta produção folclórico-etnográfica a partir dos anos 1930, parecia disposto a encontrar a melhor definição para “identidade nacional”, pelo acolhimento dos sentidos da “inovação” entre os intelectuais da época.

Para Cascudo, a categoria “paladar” era aglutinadora de sistemas sociais e simbólicos e elemento decisivo na compreensão do respeito de herança dos mantimentos de tradição” (CASCUDO apud OLIVEIRA e CAVIGNAC, 2017, p. 231). O “alimento” virou “comida” nas mãos de Cascudo e ganhou acepção bem mais simbólica que a mera “dietética”. Ele descreveu o “bom gosto” (Bourdieu, 1979) das elites brasileiras e a origem dos hábitos, enciclopedicamente; além de traçar um panorama sobre o texto culinário brasileiro da época, setorizado nas ementas “portuguesa”, “indígena” e “africana” (CASCUDO, 1967). “O grande problema que persistiu é que as cozinhas dos “príncipes” e do “povo”, mais uma vez, não se fundiram numa só cozinha nacional burguesa”, chama à atenção Dória (2009, p.26).

O “gosto das elites” fora descrito em 1870 em “O Cozinheiro Nacional”, de autor anônimo, que falava não de uma culinária, mas de uma “cozinha em tudo brasileira”, pois havia ali um saber mítico a ser transmitido acerca dos alimentos “inteiramente diferentes dos da Europa em sabor, 104 aspecto, forma e virtude, e que por conseguinte exigem preparações peculiares”46. O texto culinário (Jacob, 2013) que aparece em “O Cozinheiro Nacional”, segundo Dória (2009, p.27) “era quase ficcional”, algo distinto do que foi apresentado por Cascudo em 1967, “receitas que, aqui e ali, eram ou foram praticadas”.

Apesar de acolher-se aqui a ideia de que uma única “identidade culinária nacional” seja contraproducente, como propõe Dória (2009), sabe-se que, no discurso gastronômico contemporâneo há lugares comuns mais confortáveis que comfort food47. Para alguns autores e, especialmente, para a mídia, alimentação e cultura, como viu-se, estão intimamente relacionadas (AMARAL, 2016), e há pratos capazes de ratificar, sim, ou construir a ideia de “identidade nacional” - caso da “feijoada”, um pré-concebido bigorna sobre a “miscigenação da culinária brasileira” que não é, sabidamente, um prato do cotidiano do brasileiro, mas cerimonial e mítico.

O que seria o comer à brasileira, afinal, no turbulento contexto contemporâneo? Para Dória (2009, p.74), a “internacionalização do gosto precisa ser levada às últimas consequências para empreender o caminho de volta”. Para que haja um “reencantamento” com os ingredientes típicos de seu terroir, ou seja, com os ingredientes brasileiros, o cozinheiro precisa estabelecer um “diálogo intenso entre ciências, técnicas, tradições e culturas que ponham em destaque aquilo que possa ser ressignificado” (DÓRIA, 2009, p.74). Noutras palavras, propor-se os “diálogos do alimento”, os “diálogos sobre o alimento” e os “diálogos comestíveis”.

A ideia de valorização dos “ingredientes locais” e de ressignificação perpassa a história da culinária brasileira construída a partir de 1979, ano em que cozinheiros franceses como Claude Troisgros e Laurent Suaudeau chegam ao Brasil e modificam a maneira como se compreende os insumos brasileiros mediante as técnicas francesas de cozinhar, sobretudo nas cozinhas dos hotéis de luxo - Suaudeau veio a convite do mestre Paul Bocuse trabalhar no extinto restaurante do Le Méridien e Troisgros deixou a cidade de Roanne para assumir a cozinha do restaurante Le Pré Catelan, a convite de Gaston Lenôtre. Isso equivaleria, metaforicamente, a trazer admirados “jogadores” de alta estirpe do excelente campo gastronômico francês para o campo gastronômico brasileiro, em formação e onde o parâmetro de “cozinha culta” era o da “cozinha internacional” – executada nos grandes hotéis de São Paulo e Rio de Janeiro.

46 Cozinheiro Nacional. São Paulo: Editora Senac/Ateliê, 2008. 47 Expressão que pode ser definida, como comida que conforta, ligada às memórias afetivas da experiência do gosto. 105

Em meados do século XX, a maior parte dos restaurantes sofisticados, nos principais centros urbanos do país, adotava um modelo conhecido como cozinha internacional, que vinha a ser uma versão padronizada de alguns estereótipos da gastronomia francesa, difundida a partir dos Estados Unidos (em cadeias de hotéis, como a do Hilton). (BUENO, 2016, p. 444)

Para os cozinheiros franceses, revolver matérias-primas “nativas” como caju e maracujá e dar a elas novos sentidos comestíveis era “balela”. Dialética pura. O exotismo dos trópicos enterneceu cozinheiros oriundos de outra “cultura”, “hábitos”, “costumes” e, não fossem eles, talvez a “gastronomia brasileira” não abrisse asas sobre outros biomas para além do identitário amazônico. Ali, em 1979, era como se cozinheiros vissem “crus” e “cozidos” juntos noutro tempo, o da delicadeza. Encantados, lado a lado, a fim de experimentar o gosto da “nova culinária brasileira”.

Paradoxalmente, em metrópoles como São Paulo, come-se “à moda” internacional ou à moda de muitas culturas a partir dos anos 1980, no Brasil: não só à francesa (caricata e revigorada), mas “à italiana, à japonesa, chinesa ou tailandesa – e mesmo à brasileira – com um sentido lúdico forte, mas livre do compromisso cultural profundo com a origem dessas dietas”. (DÓRIA, 1999, p.75).

Isso muda, para além da atuação dos cozinheiros franceses, que contribuíram à valorização dos ingredientes brasileiros, marcadamente, a partir de 1999, quando se estabelecem os primeiros cursos de graduação em gastronomia no país, como o de Bacharelado em Turismo com Habilitação em Gastronomia na Universidade do Sul de Santa Catarina, em Florianópolis; o Curso Superior de Formação Específica em Gastronomia no formato sequencial na Universidade Anhembi Morumbi em São Paulo; e o Curso de Gastronomia nas modalidades sequencial e graduação na Universidade do Vale do Itajaí em Balneário Camboriú.

A incorporação de ingredientes nativos e de fácil acesso no mercado viabilizou economicamente a gastronomia para um público mais amplo, que tem acompanhado essas transformações pelos programas ministrados por chefs na televisão, contribuindo para a sua difusão no país. Trata-se da primeira geração de chefs no Brasil, vinda da classe média e média alta, que não surgiu a partir das cozinhas dos restaurantes. Para a maior parte deles, a gastronomia apareceu como uma nova opção, numa fase de crise e transição da vida profissional. (BUENO, 2016, p.455).

Gastrônomos passam a gastrólogos que se atualizam em cursos técnicos, livres, de pesquisa e extensão. Por meio de cursos presenciais e, a partir dos anos 2010, à distância. Segundo o Censo da Educação Superior 2019, divulgado pelo Ministério da Educação (MEC) em outubro de 2020, em 2009, houve aumento de 378,9% em relação ao número de alunos matriculados em cursos de 106 graduação à distância em 2009. No Brasil, em 2019, 88,4% (2.306) das instituições de educação superior eram privadas e 302, públicas. Dessas, 43,7% (132) eram estaduais; 36,4%, federais (110); e 19,9%, municipais (60).

Apesar do acesso ampliado às IES e ao EAD, sabe-se que os cursos de gastronomia são, em maioria, ofertados por instituições privadas. A partir de 2021, a Universidade Federal do Ceará será a primeira a ter o Mestrado Acadêmico em Gastronomia do Brasil, com duas linhas de pesquisa: “Gastronomia Social e Sustentabilidade” e “Tecnologia e Inovação Gastronômica”.

Para Bueno (2016), o sucesso dos chefs brasileiros representantes da “nova gastronomia brasileira” deriva de três fatores primordiais – chama-se atenção aqui ao terceiro ponto, que diz respeito à capacidade de comunicação e discurso:

1) o interesse crescente das principais correntes globais pela biodiversidade da América Latina e seus produtos, que alçou não apenas os brasileiros, mas os peruanos, os mexicanos e os chilenos; 2) a capacidade dos chefs brasileiros de construir uma fusão bem sucedida entre cultura global e ingredientes locais, destradicionalizando as referências regionais, de forma a torná-las compreensíveis para um público consumidor de fora do país, e 3) a competência deles próprios para se inserirem no circuito global, justificando seu trabalho a partir de um discurso sintonizado com as ideologias correntes no campo gastronômico, utilizando com propriedade a mídia para o processo de divulgação do trabalho e do discurso. (BUENO, 2016, p.455-456).

Figura 9 – Representação do triângulo culinário de Lévi-Strauss (1964). Fonte: a autora

107

3.1.2 Do cru ao cozido, da natureza à cultura e à “nova gastronomia brasileira”

Estruturalista, Lévi-Strauss completou uma centena de anos em 2008 (boa parte deles dedicada à compreensão do homem) e partiu, em 2009. Dois anos depois de Atala haver lançado Escoffianas Brasileiras, espécie de “ensaio literário” em que as bases da cozinha autoral do cozinheiro no premiado restaurante D.O.M., fundado em 1999, foram calcadas.

No capítulo O Sonho de Escoffianas (2008, p.170), segunda de três partes da obra, Atala discorre sobre a maneira de ver o mundo, a culinária, a gastronomia, os métodos, a “cozinha” (técnica), as cozinhas (sentimento/ alma), a arte. “Apesar de serem uma obra de arte efêmera – já que um prato é destruído em minutos – as receitas podem ser eternas” (ATALA, 2008, p.176)

O “projeto gastronômico” (LUNARDELLI, 2008) de Atala é, desde o início da trajetória profissional, por experimentação: realiza expedições gastronômicas com frequência para sentar-se à mesa e conhecer, assim, a cultura do lugar. (ATALA, 2003, p.14-18). Ao longo da carreira, demonstrou interesse genuíno em compreender o vocabulário da comedoria nacional. Como define desde “Por Uma Gastronomia Brasileira” (2003), que conta com prefácio do chef catalão Ferran Adriá e onde o Brasil aparece dividido em três regiões gastronômicas: a Amazônia; a vasta “nação- tupi”, que engloba as terras brasileiras habitadas por índios não-amazônicos e o Brasil central; e o Sul do país.

Tal como etnógrafo, Atala assinala em diário de campo as conquistas acerca da compreensão das técnicas empregadas quer por representantes de etnias nacionais, quer por estrelados chefs que se propõe, com ele, a revisitá-las – ou a conhecer o exótico pelas mãos do maior cozinheiro nativo. Contudo, assinala que os ingredientes nativos “nunca chegam à mesa pela porta da frente” (ATALA apud LIMA, 2003, pág. 47). Se “só a Antropofagia nos une” (Andrade, 1928)48, é preciso interessar-se pelo que também é “nosso”. E o que seria “nosso”, primordialmente? Os ingredientes empregados na “culinária indígena”?

É o que nos leva a pensar Lévi-Strauss em Mitológicas 1 - O Cru e o Cozido (1964), que não trata da culinária estritamente, mas dos mitos indígenas ameríndios. E o faz de forma metafórica, de ponta a ponta. Em seu mito de referência (M1), a culinária é concebida pelo pensamento indígena como uma “mediação” (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 89). Cozinhar, seria, portanto, mediar a

48 Referência ao “O Manifesto Antropofágico”, publicado por Oswald de Andrade em 1928 na Revista de Antropofagia 108 dialética por meio do fogo e por meio da culinária, que é cultura (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 127) e “digerir”, “pensar”49. Pois o fogo é capaz de mediar a relação entre o céu e a terra e entre a natureza e a cultura. Da mesma maneira, pode-se pensar no “cozimento” do homem natural por meio das relações entre pessoas (“fogo”, figurativamente) e, assim, tem-se a “cultura”. O cozimento excessivo resulta nos “podres” “queimados, se rápido; e, se lento, nos “podres” “mofados”. Pensando-se na mediação feita pelo cozinheiro, tem-se, nele, o responsável por definir o que é “alimento bom” e o que é “alimento ruim”.

O que Atala fez em Escoffianas Brasileiras (2008, p. 470-479) foi transpor o triângulo a quatro pontos cardinais, uma cruz onde o amargor coexiste. Opôs ao cru (natural) o cozido (doce); e ao tostado (amargo) o podre (o azedo do fermentado). Isso porque os alimentos podem voltar à natureza se muito tostados (queimados) ou fermentados (vinhos são fermentados, por exemplo, mas podem fermentar a ponto de virarem vinagre). Com base nas experimentações, chegou a uma “escala hipotética” em que há, ainda, sabores estáticos e dinâmicos, sujos usos são definidos pela prática gastronômica. “Cabe ao cozinheiro conhecer intimamente os ingredientes e saber levá-los ao ponto ideal gastronomicamente prazeroso” (ATALA, 2008, p.476).

E, ao criar, um chef autoral munido de conhecimento sobre a cultura em que cozinha é capaz de saber até que ponto se vai para educar-se “o gosto” do outro? Atala, neste sentido, demonstra que sim, e no nível da experiência do gosto (PERULLO, 2013). É apresentado em Escoffianas Brasileiras (ATALA, 2008, p.478) como “inventor de uma nova cozinha nacional, que surpreende – e agrada – até os mais exigentes comensais”.

Vale lembrar que, para Bourdieu (1979, p.199-214), os princípios para classificação do consumo não são estáticos. Se movimentam nas sociedades contemporâneas, dando origem à necessidade de um conhecimento para exercer o julgamento: um capital cultural. Logo, habitus é uma forma de capital cultural que se incorporou a ela, e foi assimilado, pois não pode ser comprado como um objeto. Portanto, apesar de individual, o gosto é construído, por assim dizer, sob a influência de muitas camadas de conteúdo: pessoal, informacional, emocional, midiático. E, aqui, há que se concordar com o sociólogo francês quando se observa o perigo da “homogeneização” (BOURDIEU, 1996, p.103) provocada pela indústria da informação.

49 “Durante a digestão, o organismo retém temporariamente o alimento, antes de eliminá-lo sob uma forma elaborada. A digestão tem, portanto, uma função mediadora, comparável à da culinária, que suspende um outro processo natural, que leva da crueza à putrefação. Nesse sentido, pode-se dizer que a digestão oferece um modelo orgânico antecipado da cultura”. (LÉVI-STRAUSS, 1964, p.429) 109

Figura 10 – Atala (2008) se ampara no triângulo culinário de Lévi-Strauss (1964) para dizer da gastronomia como elo entre o homem e a natureza. Fonte: a autora.

3.1.3 Gastronomia brasileira?

Falar em “gastronomia brasileira”, portanto, é falar em um processo - em andamento. Igualmente, falar em cultura é falar de um processo. E falar em alimentação é falar em um processo intrínseco ao homem encerrado em seus parâmetros de convivência, em suas condições de produção e em sua ambiência e historicidade. Tem-se aqui um truísmo quando se propõe que se coma cultura. Para Montanari (2008),

A ideia de comida remete de bom grado à natureza, mas o nexo é ambíguo e fundamentalmente inadequado. Na experiência humana, de fato, os valores de base do sistema alimentar não se definem em termos de “naturalidade”, mas como resultado e representação de processos culturais que preveem a domesticação, a transformação, a reinterpretação da natureza. (MONTANARI 2008, p.15).

Ainda que se cruze do cru ao cozido e se transforme a natureza em cultura pela ação do “fogo”, como propôs Lévi-Strauss em seu triângulo culinário (1964); ou se inclua mais pontos cardinais à compreensão do gosto, (cru/natural, cozido/doce, tostado/ amargo e podre/ácido), como propôs 110

Alex Atala (2008), procura-se, de qualquer maneira, entender a função do que se cunham e permeiam os discursos mais recentes como “gastronomia brasileira” – esse novo “mito” que põe cozinheiros e gourmets e comensais e gastrônomos e pesquisadores para pensar.

A gastronomia pode situar o indivíduo em uma posição privilegiada e distintiva no espaço em que está inserido (BOURDIEU, 2007). Falar sobre ela pressupõe, portanto, flertar com a materialidade discursiva e transparência da linguagem (ORLANDI, 1999), que é onde reside o sentido. Pois, para significar, a língua precisa estar inscrita na história. Portanto, há que se considerar o contexto do uso da expressão "gastronomia brasileira" na contemporaneidade e verificar-se a produção de sentidos que há em determinado período desse campo gastronômico brasileiro atentando-se à perspectiva de determinados atores - no caso desta dissertação, a mídia, os leitores e atores da gastronomia envolvidos na produção de sentidos - com destaque a Ribenboim e Atala, idealizadores do Fruto.

Vale lembrar ainda que a palavra é uma operação do pensar e o texto uma extensão da voz. Num mundo povoado por vozes alheias (BAKHTIN, 1979) ouvi-las, compreender os enunciados e absorvê-las é propiciar o entendimento da comensalidade no contexto da gastronomia. Conforme Montanari (2013):

Comer junto é típico (ainda que não exclusivo) da espécie humana. [...] E uma vez que os gestos feitos junto de outros para assumir um valor comunicativo, a vocação convivial dos homens se traduz imediatamente na atribuição de um sentido para os gestos que fazem ao comer. Também desse modo a comida se define como uma realidade deliciosamente cultural. (MONTANARI, 2013, p. 157-158).

A linguagem da comida é compreendida na/ pela comensalidade – no comer junto. Assim, pode- se determinar relações que extrapolam o sentido “literal” das nomeações para designar outros significados da comida, que ganha carga simbólica ainda mais forte no cum-vivere (no convívio) entre comensais que vencem, juntos, as suas “fomes”: de paz, de nutrientes, de prazer, de gosto.

Há uma gramática da comida, uma série de convenções. “O léxico sobre o qual essa linguagem se fundamenta evidentemente consiste no repertório dos produtos disponíveis, plantas e animais, tipos de morfemas (as unidades significativas da base) sobre os quais se construirão as palavras e todo o dicionário.” (MONTANARI, 2013, p. 165).

Seguindo-se o raciocínio do historiador, as receitas criadas pelos chefs seriam os gestos e procedimentos, que terão seus respectivos significados nas palavras, ou seja, nos pratos. Ordenadas em frases muito bem pensadas (sintaxe), cada prato exercerá certa função, podendo protagonizar 111 na cena ou não. Considerando-se que os produtos podem ser alterados conforme a necessidade (cultura do comensal, território do comensal e do próprio produto, tempo disponível para a receita etc.), a comida tem o dom da retórica: adapta o discurso ao argumento. “Se o discurso é a comida, a retórica é o modo como ela é preparada, servida, consumida” (MONTANARI, 2013, p.170)

Para quantos comensais, afinal, a compreensão acerca da linguagem da gastronomia brasileira passa de discurso inteligível a compreensível no final dos anos 2010? Todo discurso, afinal, encerra textos já ditos anteriormente, mesmo que o indivíduo que o lê não se dê conta (ORLANDI, 1999). Interessa saber a quem a mídia deu voz em textos desde então e de que maneira o leitor o atualizou a fim de configurar seu código translinguístico acerca da “gastronomia brasileira” na primeira edição do Fruto (2018)?

Afinal, até meados dos anos 2010, ainda não havia uma “identidade gastronômica brasileira pronta”, como defendia o saudoso professor Ricardo Maranhão, Doutor em História pela USP e Coordenador do Centro de Pesquisas em Gastronomia Brasileira, sendo que a reunião do que se tem de melhor em cada região, em cada localidade, para ele, constituía a “gastronomia nacional”.

Para Maranhão50 (2018), de uns “20 ou 30 anos para cá” é que se tem, nos restaurantes brasileiros de alta gastronomia, um movimento de valorização da identidade gastronômica brasileira. Um orgulho nacional empunhado com garfo, faca, talento e brio. A cozinha mineira seria, para Maranhão, uma das mais bem assentadas regionalmente; bem como a amazônica, que alude aos pescados e ao modo de comer mais indígena de que se tem notícia, e à do sertão e do litoral nordestinos. A cozinha do Sul e do Centro-Oeste, idem. Contudo, há que se ressalvar que cada uma dessas regiões concentra sub-regiões com peculiaridades gastronômicas, algo que Dória (2009; 2018), como já exposto, discute.

Em “A Formação da Culinária Brasileira”, Dória (2009, p.78-82) descreve ainda cinco estilos culinários presentes naquilo que denomina “nova culinária brasileira”, maneira de categorizar, a partir de sua materialidade (os restaurantes, os trabalhos autorais dos chefs, as linguagens empregadas etc.) as similaridades entre os gestos de interpretação que fazem os cozinheiros nacionais acerca da culinária e cultura brasileiras. “A matéria significante – e/ou a sua percepção – afeta o gesto de interpretação, dá uma forma a ele” (ORLANDI, 1996, p.12).

Assim, Dória reforça o conceito de que a gastronomia brasileira, em formação e mais consolidada em São Paulo/SP, decorre de sua cultura culinária. São estes os estilos, aqui brevemente descritos

50 Em entrevista ao Mapa da Cachaça, disponível em: https://www.mapadacachaca.com.br/artigos/identidade-gastronomica- brasileira-ricardo-maranhao/ 112 a partir do autor: 1) Estilo naïf: “apresentação de uma concepção espontânea da alimentação, sob a diretriz de que “sempre foi assim” que se comeu no Brasil”, caso do restaurante Mocotó, de Rodrigo Oliveira, onde há predominância dos sabores nordestinos e alusões à cultura dos migrantes que se fixaram na Vila Medeiros, bairro da Zona Norte de São Paulo/SP, “fora do circuito in” da cidade. 2) estilo etnográfico: aquele que visa atender a “um olhar ao mesmo tempo erudito e tradicionalista sobre a culinária brasileira”, algo que a chef Mara Salles, do restaurante paulistano Tordesilhas, faz muito bem. 3) estilo alegórico: onde “busca-se apresentar, de modo exemplificativo e tropológico, uma outra realidade brasileira que não aquela normalmente vivenciada pela clientela”. O trabalho da chef Ana Luiza Trajano, em seu Brasil a Gosto, é apontado como um exemplo. 4) estilo experimental: “apresentado inicialmente como uma ruptura radical com os modos tradicionais de tratamento dos ingredientes brasileiros”, propõe, para além, “a nacionalização das modernas técnicas culinárias”. Como no D.O.M.. “A maior dificuldade enfrentada por este estilo culinário é achar a sintonia entre criatividade e gosto do público” (DÓRIA, 2009, p.80). Há ainda o 5) estilo juscelinista: “tendência recentíssima” que entrega um “cardápio brasileiro “tradicional”, já enraizado no gosto das elites nacionais”, caso do restaurante Dalva e Dito, também de Atala.

Nesse ponto, há se que considerar a compreensão acerca da cultura do comer ou da cultura brasileira do comer que só passa a valorizar os seus ingredientes e receitas após, marcadamente, a divulgação cultural promovida pelos cozinheiros nos meios de comunicação, sobretudo na televisão, como já sublinhado aqui, a partir dos anos 1960.

Com o processo de “cultura da convergência”, observado nos anos seguintes e definido por Henry Jenkins (2008, p.44), tem-se uma “vida midiatizada, que pressupõe que várias das comunicações dos textos e sistemas da cultura também o sejam” (JACOB, 2013, p.171).

Por convergência refiro-me aos fluxos de conteúdo a partir de múltiplos suportes midiáticos, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca de experiências de entretenimento que desejam. (JENKINS, 2008, p.44)

Em 2004, Atala estreava no GNT, ao lado da chef Flávia Quaresma, “Mesa pra Dois”, então um dos poucos programas brasileiros sobre gastronomia exibidos na TV paga. Na atração, a culinarista viajava o país, com o intuito de descobrir alimentos e usos culinários, enquanto o chef, em estúdio, criava pratos a partir daqueles ingredientes revelados. Tratava-se, ali, de apresentar-se a “cultura” da culinária brasileira. 113

Em 2020, o interesse e a diversificação dos programas gastronômicos e culinários brasileiros feitos para multitelas é significativo no país, havendo inúmeras atrações protagonizadas por cozinheiros brasileiros e veiculados em canais de TV paga e aberta bem como em sites, blogs em canais do no YouTube e nas redes sociais.

É o caso de “Fora da Rota”, conteúdo da marca Stella Artois (branded content/ branded marketing) do tipo “reality show” que tem Atala, novamente, como protagonista e cujo objetivo é apresentar “pequenos negócios gastronômicos paulistanos”. A atração é produzida pela Endemol Shine Brasil, maior produtora independente do mundo (Masterchef e Big Brother Brasil são produções originais) e idealizado pela agência de publicidade CP+B Brasil. Essa diversificação dos conteúdos interessa aos brasileiros.

Contudo, difícil precisar se, na era do hiperconsumo, eles se veem “representados” pois, “quando temos as linguagens da cozinha, gastronomia e culinária, exageradamente expostas em seu conteúdo, tornando-se mídias, observamos uma retórica dos meios que sobrevaloriza a forma em detrimento do conteúdo. (JACOB, 2013, p.203)

Quer-se comer à brasileira “como um chef”, como ensina, pela mídia, a “gastronomia (à) brasileira”.

3.2 O gosto da sustentabilidade

O termo “sustentabilidade”, tópico caro a esta pesquisa, parece permear a construção dos sentidos da “gastronomia”. Para compreender a sua constituição e circulação, é preciso rastrear o que se entende por “alimento” “comestível”.

Pense-se sobre a dinâmica das Grandes Navegações (séculos XV e XVI) e seus impactos: à medida em que espécies foram descobertas e promovidas à condição de ingredientes de uso intercontinental, tem-se, mundialmente, acelerados processos diversos de produção de alimentos, de desenvolvimento de técnicas de cozinha, de construção de receituários culinários, de usos (ora culinários, ora medicinais, ora ritualísticos), de modos de estar à mesa (a etiqueta da comensalidade), de estetização de divulgação midiática do comer (BUENO, 2016, p. 443).

Esse fenômeno está ligado a vários fatores relativos à globalização (Appadurai, 1996; Crane, 2012; Ortiz, 1994), entre os quais destacamos a ampliação da sociedade de consumo, com aprofundamento das práticas e estilos de vida associadas à estetização do cotidiano (Featherstone, 1995), e as revoluções parciais ocorridas no interior do campo (Bourdieu, 1996) da gastronomia. (Rao; Monin; Durand, 2003, 2005). (BUENO, 2016, p. 443, grifos nossos). 114

Ao mesmo tempo, esse consumo variado e globalizado de alimentos, sobretudo a partir dos anos 1960; e, no Brasil, nos anos 1990, quando despontou a primeira geração de chefs brasileiros (Bueno, 2016), trouxe o paradoxo das escolhas alimentares mais adequadas ao homem e ao meio ambiente: atreladas a dietas saudáveis (ou não), a alimentos livres de agrotóxicos (ou não) e colhidos em suas épocas (ou não); produzidos de forma natural ou com incremento de soluções da engenharia genética (ou não); compreendidos como “comida de verdade” (POLLAN, 2008) (ou não).

Neste sentido, o gosto da sustentabilidade parece ter relação com o gosto do terroir51 e com o consumo adequado e ético dos recursos disponíveis em certa região geográfica. Num certo sentido, com o “gosto da geografia”, como define Montanari (2013, p.41), que impele à regionalidade e, consequentemente, à escolha por sabores característicos de certo lugar – cujo ecossistema se mantém em equilíbrio em função da demanda por certos alimentos.

Salto adiante e, no início dos anos 2000, tem-se um novo fenômeno: a reafirmação e valorização da identidade “local” por meio do consumo da “comida geográfica”, como denomina o historiador italiano dedicado a pesquisas sobre a história da alimentação. Montanari (2013) traça, com mais precisão, uma análise sobre o discurso contemporâneo da valorização do que é “local”:

O território constitui um valor de referência absoluto nas escolhas alimentares. Não há restaurante da moda que não ostente, como elemento de qualidade, a proposta de uma cozinha vinculada ao território e aos alimentos frescos do mercado. Essa escolha, substancialmente inovadora, mesmo que baseada em elementos da tradição, desenvolve- se em concomitância com vários fenômenos, tanto de caráter econômico quanto cultural. O primeiro, que acabamos de lembrar, é o crescimento da uniformização, que acompanhou o desenvolvimento da indústria alimentar: por reação, ela gerou o contrário, algo que escutamos chamar de redescoberta (mas deveríamos defini-lo simplesmente como descoberta) das “raízes” – um conceito ao qual será necessário voltar. O segundo é a transformação do gosto, em parte já mudado nos últimos séculos: se as cozinhas pré-modernas amavam os sabores artificiais, ou seja, concebiam a cozinha como um laboratório fortemente invasivo em relação à naturalidade do produto e de seu sabor original, a partir dos séculos XVII e XVIII afirmou-se, em vez disso (primeiramente na França, como vimos, depois em outros países europeus) uma nova cultura da naturalidade do gosto. O terceiro fenômeno é o enfraquecimento, com a passagem da sociedade da fome à sociedade da abundância, de um valor ligado ao consumo alimentar que nem sempre tinha sido de fundamental importância: o uso da comida como instrumento de distinção social. (MONTANARI, 2013, p.142, grifos nossos).

51 A palavra terroir remonta a 1.229 e deriva de formas antigas (como tieroir, tioroer), com origem no latim popular “territorium”. Segundo o dicionário Le Nouveau Petit Robert (edição 1994), terroir designa "uma extensão limitada de terra considerada do ponto de vista de suas aptidões agrícolas".

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O paladar educado ao longo do tempo que, portanto, impele à demanda por determinados gostos, mostra-se capacitado a alterar paisagens, fronteiras, mapas, tratados comerciais e amanhãs com mais “consciência”. E, portanto, alterar culturas, haja visto que “a comida para os seres humanos é sempre cultura, nunca apenas pura natureza”, como lembrou o historiador Henrique Carneiro no prefácio da edição brasileira de “Comida como Cultura” (2013), de Montanari.

Portanto, a depender do “gosto” (do repertório cultural e, portanto, gastronômico) do comensal, pode-se ter uma ocorrência maior de escolhas orientadas à gastronomia mais sustentável. Isso depende, porém, do aprofundamento de escolhas anteriores, da descoberta dos gostos dos outros (do sentido de antropogarfar), do compartilhar de experiências. Do diálogo sobre o comestível e da procura de raízes que:

Quando é feita com método crítico, e não por trás da sugestão de impulsos emotivos, nunca chega a definir um ponto do qual partimos (talvez para nos perder, como o imaginário coletivo frequentemente fantasia), mas, ao contrário, um cruzamento de fios cada vez mais amplo e complicado à medida em que nos afastamos de nós. (...) O produto está na superfície, visível, claro, definido: somos nós. As raízes estão embaixo, amplas, numerosas, difusas: é a história que nos construiu. (MONTANARI, 2013, p.190, grifos nossos).

Este preâmbulo situa o fato de que, à medida em culturas se encontraram e cruzaram ao longo do percurso histórico, mais evidente ficou a “mistura” que veio caracterizar “o gosto” do consumo de alimentos no século XXI: globalizado (IANNI, 1990); muitas vezes mundializado (ORTIZ, 1994), e em que se observa a desterritorialização dos alimentos; pouco diversificado e mais raramente conectado às raízes – ou aos sabores e saberes que aproximam o indivíduo de uma posição-sujeito neoconsumidor capaz de contribuir a escolhas mais locais, afetivas, empáticas e sustentáveis. Escolhas de coisas para comer boas para pensar, como propôs Lévi-Strauss (1964), também, nas próximas gerações.

Pensando com Ortiz (1994), seria prudente ponderar, então, sobre os sentidos da gastronomia brasileira. Pois “nossa contemporaneidade faz do próximo o distante, separando-nos daquilo que nos cerca, ao nos avizinhar de lugares remotos. Neste caso, não seria o outro, aquilo que o ‘nós’ gostaria de excluir?” (ORTIZ, 1994, p.220) Didaticamente, seria como pensar-se que, ao mesmo tempo em que o comensal brasileiro contemporâneo quer experimentar o “padrão” de serviço da restauração europeia, não almeja provar, estando lá, o que comeria “em casa”.

Neste ponto, a valorização dos ingredientes nacionais, no Brasil, num primeiro momento, poderia soar igualmente paradoxal. Se, contudo, os ingredientes locais, frescos e abraçados pela sabedoria ancestral fazem sentido ao trabalho criativo dos chefs brasileiros mais renomados, rejeitá-los seria 116 deixar de gastronomar de forma sustentável. Pois tem-se ainda, como já exposto, que “uma cultura mundializada não implica o aniquilamento das outras manifestações culturais. Ela coabita e se alimenta delas”. (ORTIZ, 1994, p.27).

Daí a obstinação pela “volta às raízes” (ou pela recuperação da “identidade” cultural) em que tanto pese o prazer quanto a responsabilidade individual acerca do quê e do porquê se consome determinados alimentos. Daí uma ode ao que, em 2017, a ONU denominaria “gastronomia sustentável”, conceito complexo e ainda em desenvolvimento, mas que é capaz de promover a “produção consciente de alimentos, além de fortalecer a conservação da biodiversidade e a segurança alimentar das comunidades”.

Daí a noção de que, para entender-se o sentido mais profundo da gastronomia é preciso desterritorializar-se e enraizar-se em redes de criação, como fazem os chefs de cozinha profissionais no encalço de sabores inusitados desde o início do século XVIII, para que o “gosto” se distinguisse do “bom gosto” (SPANG, 2000, p.15).

É preciso respirá-la, a fim de “saborear o mundo”, como convida o filósofo italiano Coccia (2018, p.74), para quem “tudo está em tudo”. Assim, por analogia à vida das plantas, a sistêmica gastronomia, que de tão multidisciplinar encerra em si em muitas outras ciências (pode-se aprender da matemática à física e à botânica e à astronomia a partir dela), pode ser definida, por analogia, como a mistura, ou “a forma própria do mundo”.

Esse olhar mais existencial e sensível ao ambiente, capaz de observar a vida das plantas de forma “enraizada”, suscitou, no início da década de 1960, as primeiras discussões sobre a dimensão das ações antrópicas sob um planeta de recursos finitos que culminariam na constituição do termo “desenvolvimento sustentável” e nos sentidos de suas prerrogativas.

Em Primavera Silenciosa (1962), a bióloga marinha Rachel Carson demonstrou, de forma contundente, com olhar acadêmico e tom jornalístico investigativo, as consequências do uso de DDT (dicloro-difenil-tricloroetano) nas plantações estadunidentes, questionou a responsabilidade da ciência e os limites do progresso tecnológico num contexto de avançar do uso de energia nuclear e ascensão da indústria de alimentos. Carson foi uma das primeiras ativistas ambientais de que se tem notícia. Trouxe à tona, por exemplo, a relação entre o uso de pesticidas e a incidência de câncer e outras doenças; a poluição da água. Os relatos da bióloga viraram série noticiosa publicada na revista New Yorker e transformada em nada silencioso livro. 117

Esse trabalho, que questionou ainda as consequências para os genes do uso de DDT e afins e repercutiu em trabalhos de inúmeros outros cientistas. Recentemente, poder-se-ia citar, por exemplo, o trabalho da brasileira Larissa Bombardi, professora e pesquisadora do departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), no Atlas: Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia (2017), amplamente divulgado, inclusive na edição 2020 do Fruto, cuja temática macro era “água”. Nele, Bombardi evocou52, como normalmente faz em palestras sobre sua pesquisa, os sentidos da frase “a autodeterminação começa pela boca”, do escritor uruguaio Eduardo Galeano53 (1940-2015) para dizer da importância do alimento e das consequências do modelo do agronegócio vigente no Brasil à “mudança dessa sociedade e dessa condição humana, que nos desumaniza”.

Em flashback, destaca-se aqui também o trabalho da bióloga, feminista e filósofa Donna Haraway, entusiasta da tecnologia e autora de, entre outros estudos, de “Manifesto Ciborgue” (1985). Para essa cientista, expoente da contracultura dos anos 1960, o mundo é uma espécie de conexão contínua entre espécies, que se comunicam por meio de seus corpos e de suas linguagens e o sistema imunológico é uma grandiosa rede de informações.

Portanto, para além dos humanos que reinam na era do antropoceno, a “época da dominação humana” (Crutzen, 1995), há as máquinas (drones, implantes, próteses, biotecnologias etc) e os ciborgues: esses extrapolam a relação homem-máquina e o cogito cartesiano (o sujeito “pensa” com ajuda da máquina e a máquina se torna “humana” com a ajuda do sujeito). No século XXI, não é difícil pensar o quanto as máquinas pensam com e, consequentemente, pelos humanos à medida em que os humanos alimentam as redes sociais (extensões das redes de pensamento, poder- se-ia dizer, pois são como línguas nas pontas dos dedos) com seus gostos – o que inclui os gostos alimentares.

Assim, pode-se pensar com Haraway (1985) que “as novas tecnologias têm também um efeito profundo sobre a fome e a produção de alimentos para a subsistência” (Haraway, p.72). Especialmente desde a Terceira Revolução Industrial, Técnico-Científica-informacional iniciada no fim da década de 1970, quando termina a Era de Ouro54 (HOBSBAWM, 1994) do capitalismo

52 A palestra de Larissa Bombardi no Fruto – Diálogos do Alimento de 2020 pode ser assistida por meio do canal oficial do Fruto no YouTube: < https://www.youtube.com/watch?v=geC3zVeuq5s > Acessado em 01 nov. 2020.

53 Nos anos 1970, em meio à ditadura uruguaia, o escritor foi perseguido em decorrência das ideias que pôs a circular em “As Veias Abertas da América Latina” (1971), em que analisa a história da América Latina do colonialismo ao século 20.

54 Segundo Hobsbawm, a Era de Catástrofe se estendeu de 1914 até depois da Segunda Guerra Mundial, havendo trinta anos crescimento econômico e transformação social. Esse período foi como uma espécie de Era de Ouro até os anos 1970, a da crise do petróleo (1973). 118

– aquela em que a maior parcela do conteúdo que continham freezers e geladeiras dos consumidores era, então, novidade:

Comida desidratada congelada, hortigranjeiros industrializados, carne recheada de enzimas e vários produtos químicos para modificar o seu gosto, ou mesmo feita por “simulação de carne de primeira sem osso” (Considine, 1982, pp. 1164 e ss.), para não falar de produtos frescos importados por avião de países muito distantes, o que teria sido impossível então”. (HOBSBAWM, p. 343-344, Edição do Kindle, grifo nosso).

Nos anos 1960, vale pontuar, a Revolução Verde, orientou a pesquisa e o desenvolvimento dos sistemas de produção agrícola para a incorporação da biotecnologia com vistas ao atingimento de máxima produtividade dos cultivos, inicialmente nos Estados Unidos, na Europa e no Japão e, graças ao melhoramento genético de espécies, em países em desenvolvimento (graças às sementes geneticamente modificadas). Dá-se o veloz distanciamento entre produto e consumidor, incapaz, muitas vezes, de detectar a origem e a maneira como foram produzidas e preparadas suas refeições.

A finita disponibilidade de recursos naturais cede lugar à capacidade científica e industrial. O desenvolvimento da indústria química (MOWERY, 1998) com seus pesticidas, fertilizantes e espécies mais resistentes às pragas) propicia o avanço global do agronegócio e, consequentemente, da indústria de alimentos (onde se situa a restauração).

Ademais, marcadamente dos anos 1950 aos anos 1980, décadas em que a cultura de massa dinamiza as relações de felicidade e consumo pelo acesso a produtos mais tecnológicos, sinônimo de melhoria das condições de vida (LIPOVETSKY, 2007), de ter-se uma revolução alimentar capaz de, mais uma vez, modificar as relações de produção e consumo de alimentos (da cadeia de alimentos). Conforme Haraway (1985):

Rae Lessor Blumberg (1983) calcula que as mulheres produzem 50 por cento 73 da alimentação de subsistência do mundo. As mulheres são, em geral, excluídas dos benefícios da crescente mercantilização hightech dos alimentos e dos produtos agrícolas energéticos; seus dias se tornam mais árduos porque suas responsabilidades na preparação de alimento não diminuíram; e suas situações reprodutivas se tornam mais complexas. As tecnologias da Revolução Verde interagem com a produção industrial high-tech para alterar a divisão sexual do trabalho bem como para transformar os padrões de migração de acordo com o gênero. (HARAWAY, 1985, p.72-73, grifos nossos).

Neste ponto, Coccia (2018), Lévy (1996), Haraway (1985), e Carson (1962), em espaços-tempo distantes, parecem estar próximos em um nó – a da subjetividade do que é ser “humano”. E alinhados pela ideia de uma “rede comunicacional” capaz de transformar o mundo conhecido, o que, no entanto, depende de uma cadeia de relações de poder: o que se come, o que se veste, o que 119 e como se consome informação e alimento é delimitado por uma série de condições, entre elas a ideologia e a política55.

Com o ciborgue, a natureza e a cultura são reestruturadas: uma não pode mais ser o objeto de apropriação ou de incorporação pela outra. Em um mundo de ciborgues, as relações para se construir totalidades a partir das respectivas partes, incluindo as da polaridade e da dominação hierárquica, são questionadas. (HARAWAY, 1985, p.37).

As relações de fascínio e domínio pelo “outro” perduram na gastronomia, havendo um constante diálogo entre natureza e cultura. Ou um imprescindível diálogo entre “reinos”, como denominaria Petrini (2009, p.173-176), em alusão ao jogo de oposições presente na cadeia do alimento (indústria alimentícia e cozinha popular, ciência gastronômica e agroecologia etc.).

Compete ao cozinheiro profissional – ao gastrônomo56, antes -, portanto, mediar esse diálogo e estudar a fundo o potencial dos ingredientes e as técnicas mais adequadas à dinamização do “gosto” para servir ao “bom gosto” do comensal. Compete ao gastrônomo estudar e tornar-se culto a ponto de conhecer o repertório de outras culturas e disciplinas - que lhe será útil às escolhas, inovações, valorações, precificações divulgações e à própria educação do gosto.

Um exemplo? Foi preciso o domínio da cura “dos ovos do esturjão com sal para criar o que hoje conhecemos como caviar” (SAFRON, 2004, p. 69) e que, até o século XVI, era desconhecido na Europa. Ali, apesar de abundante, até a década de 1860, “os pescadores costumavam atirar aos porcos a ova do peixe” (SAFRON, 2004, p. 68). O status de “prato de luxo” (do caviar e do que quer que seja) é um fenômeno relativamente recente. De qualquer maneira, “a gastronomia é uma estetização da maneira de comer, que envolve desde a produção da comida até o ritual da refeição.” (POULAIN, 2004; RAMBOURG, 2010 apud BUENO, 2016).

A alta cozinha ou a haute cuisine ou cozinha culta “consolidou-se na sociedade de corte francesa como uma das expressões do processo civilizador” (BUENO, 2016, p.442). O que se entende por gastronomia clássica francesa, empunhada Antonin Carême (1783-1833) progrediu muito bem, dentro e fora da França.

A gastronomia poderia ser definida como um campo gastronômico autônomo, conforme Pierre Bourdieu (1996), pois assumia uma lógica peculiar, de regras e procedimentos peculiares. Segundo

55 Haraway adiciona, ainda, em Manifesto Ciborgue (1985) notas sobre o conceito de “biopolítica”, conforme proposto por Michel Foucault, entre os anos de 1974 e 1979, que ela define como “débil premonição da política-ciborgue”.

56 Para Petrini, “todos somos gastrônomos” se cientes do papel de coprodutores do alimento. Para o idealizador do Slow Food, as comunidades alimentares, que funcionam como pequenos núcleos produtivos em que a tríade “bom, justo e limpo” é respeitada, visando-se o prazer na alimentação por meio de um alimento “bom”, são parte da comunidade de destino – aquela em que os membros são tutores de um planeta sustentável. Ver mais em: Slow Food, Princípios da Nova Gastronomia (2009). 120

Lunardelli (2012), Carême foi capaz de transformar “a gastronomia numa síntese das artes” e “o último de uma linha de profissionais que transformou e transportou uma versão do estilo tradicional de culinária para os “novos ricos” (LUNARDELLI, 2012, p.57).

Depois de Carême, Georges Auguste Escoffier (1846-1935) inaugurou uma versão ainda mais “clássica” (que serve de modelo) à alta gastronomia: com praças organizadas, funções estabelecidas, padronização dos processos, fluxo de cozinha otimizado e uso respeitoso dos ingredientes (preferencialmente locais, frescos e adquiridos diretamente “das mãos do produtor”). Por estabelecerem uma nova linguagem comunicacional na cozinha, ambos são considerados os pais da alta gastronomia mundial de acordo com Chaves e Freixa (2009, p.125-131) apud Jacob (2013, p. 41).

Esse “novo gesto de leitura” à alta gastronomia do século XX, executado especialmente por Escoffier, funcionou como embrião de um movimento denominado Nouvelle Cuisine (“nova cozinha”), nos anos 1960, que modificou o discurso gastronômico dando-lhe um acento mais sustentável e influenciou sobremaneira a “gastronomia brasileira” (BUENO, 2016; DIAS, 2016). Da constituição (interdiscurso) à formulação (intradiscurso) da alta gastronomia à “nova cozinha”, tem-se a circulação de conceitos que transitam do luxuoso ao simples, do ego ao eco.

Em suma, se a disponibilidade dos insumos variados era mundial até os anos 1960 e podia-se criar pratos “a gosto” para o comensal (ou ao gosto do comensal), desde lá uma série de enunciados situa aos cozinheiros a noção de que o mar não está tão assim para peixe, como se diz ditado no popular. O discurso ambiental alavancado por Carson foi incrementado, pode-se dizer, por uma série de enunciados que davam conta, já no início dos anos 1970, de que a Terra era mais azul57 e frágil do que se poderia imaginar.

Neste ponto, há que se destacar a relação entre três teorias que se complementam e influenciam o comportamento dos chefs de cozinha/ gastrônomos em todo o mundo desde então: o triângulo culinário de Levi-Strauss (1964), tratado anteriormente; o movimento Slow Food (PETRINI, 2009), que será tratado ainda neste capítulo; e o Triple Bottom Line – a Teoria da Sustentabilidade (ELKINGTON, 1997), igualmente tratado neste capítulo, que cai como luva à mão invisível do mercado.

57 A foto Earthrise (AS08-14-2383), feita pelo astronauta Bill Anders as 75h48m39s da órbita 4 foi o “primeiro nascer da Terra colorido registrado por um ser humano, segundo dados do Laboratório de Análise e Ciência da Imagem, NASA – Centro Espacial Johnson. Fonte: Instituto Moreira Salles (2018). 121

3.2.1 Os enunciados do “desenvolvimento sustentável”

Então depois da Primavera Silenciosa de Carson, houve um rebuliço febril em torno da ideia de limites para o crescimento (ou para o avanço capitalista) dada a constatação de finitude de recursos naturais como o petróleo e de temas como o aquecimento global.

A primeira discussão sobre o “futuro do planeta”, acolhendo-se as visões econômica, política e social, ocorreu em Roma, em 1968, num evento restrito e capitaneado por um cientista e um empresário – uma espécie de protótipo do World Economic Forum (Fórum Econômico Mundial) sediado em Davos, na Suíça, desde 1971 e idealizado pelo professor de administração Klaus Martin Schwab.

Em 1972, cientistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, sigla em inglês), liderada por Dennis e Donella Meadows lançariam o relatório “Os Limites do Crescimento” (The Limits to Growth, em inglês), alicerçado em modelos informáticos, sobre as tendências ambientais do mundo em função do aumento populacional e do esgotamento dos recursos naturais. Em síntese, o relatório “ciborgue” apontava a necessidade de estabilização do crescimento ou “crescimento zero”.

A despeito de ser considerado frágil ou catastrófico por muitos cientistas, o Relatório Meadows, como ficou conhecido, suscitou e suscita debates sobre a questão ambiental no meio acadêmico- universitário, desde então, sendo repercutido na Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, em Estocolmo (Suécia), também em 1972. O evento tornou-se um marco expresso em manifesto que trazia novos axiomas, com “defender e melhorar o meio ambiente para as atuais e futuras gerações se tornou uma meta fundamental para a humanidade.” (ONU, 1972).

Esse discurso ambientalista de viés apocalíptico (sobretudo para o capitalismo) fez tanto sentido à época que, conforme Oliveira (2012, p.10):

Mesmo não existindo o termo desenvolvimento sustentável, já é perceptível preocupações com o “equilíbrio” e o “futuro”, que irão nortear os documentos ambientais propugnados pela ONU, especialmente o “Nosso Futuro Comum” (também conhecido como Relatório Brundtland) e a Agenda 21, assinada durante a Conferência do Rio de Janeiro, em 1992. Desta maneira, “Limites do Crescimento” antecipa alguns debates que somente se consolidarão no decorrer da década de 1980, na busca de uma suposta “sociedade ambientalmente sustentável. (OLIVEIRA, 2012, p.10).

O relatório Relatório Brundtland (ONU, 1987), desenharia o sentido de um “futuro comum” mais alinhado aos interesses do desenvolvimento econômico - embora conectado ao sentido de preservação do meio ambiente ou da biodiversidade. Nele, o desenvolvimento sustentável (DS) é 122 descrito como “O desenvolvimento que encontra as necessidades atuais sem comprometer a habilidade das futuras gerações de atender suas próprias necessidades.” Em essência, o DS é "um processo de mudança no qual a exploração dos recursos, o direcionamento dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional estão em harmonia e reforçam o atual e futuro potencial para satisfazer as aspirações e necessidades humanas."

Enquanto falava-se em DS para lidar-se com o “futuro”, a sociedade oitentista do século XX estava farta e fadada a lidar, naquele presente, com questões como a fome, a insegurança alimentar, a desigualdade social, a poluição, o buraco na camada de ozônio sobre a Antártida. Segundo Hobsbawm:

O problema do mundo desenvolvido era que produzia tanto alimento que não sabia o que fazer com o excedente, e na década de 1980 decidiu plantar substancialmente menos, ou então (como na Comunidade Europeia) vender suas “montanhas de manteiga” e “lagos de leite” abaixo do custo, com isso solapando os produtores nos países pobres. Ficou mais barato comprar queijo holandês nas ilhas do Caribe que na Holanda. Curiosamente, o contraste entre excedentes de alimentos de um lado e gente faminta do outro, que tanto revoltara o mundo durante a Grande Depressão da década de 1930, causou menos comentário em fins do século XX. Foi um aspecto da crescente divergência entre o mundo rico e o mundo pobre que se tornou cada vez mais evidente a partir da década de 1960. (HOBSBAWM, Edição do Kindle, p. 338).

Vale aqui um parêntese sobre o consumo de informação sobre o tema genérico “culinária”. Curioso é notar que, entre as décadas de 1960 e 1980, houve importante ascensão dos conteúdos de entretenimento dedicados à cozinha e à culinária, sobretudo na TV, parte do processo de “midiatização da gastronomia” como denomina Sinval Espírito Santo Neto (2009) ao pensar nas relações entre o consumo de culinária e de gastronomia por meio da mediação dos meios de comunicação – o fenômeno “gastronomídia”, na nomeação do autor.

Julia Child (1912-2004), primeira mulher estadunidense a ingressar na emblemática escola de culinária parisiense Le Cordon Bleu, local de disseminação dos preceitos elaborados por Escoffier, estreia na televisão americana em 1963 com “The French Chef”, por exemplo, e influencia uma leva de cozinheiros de todo o mundo, caso do crítico gastronômico estadunidense Anthony Michael Bourdain (1956-2018) e da argentina radicada em São Paulo Paola Carosella (em 2003, ela abriu o Julia Cocina em homenagem à Child e, em 2014, passou a protagonizar um reality show de sucesso feito para multitelas, o MasterChef Brasil).

À medida em que a cadeia do alimento se alongou em processos industriais e logísticos bastante eficientes e quase intermináveis, distanciando quem come daquilo que come, mais produtos 123 enlatados (o que inclui as fórmulas televisivas norte-americanas) chegavam ao alcance das mãos de um espectador abarrotado de referências da cultura do junkie food e do fast food58.

Por que justamente no momento da história em que os americanos estavam abandonando a cozinha e delegando à indústria de alimentos o preparo da maior parte das refeições começamos a passar tanto tempo pensando sobre comida e assistindo a outras pessoas cozinharem na TV? Parecia que, quanto menos cozinhávamos no nosso dia a dia, mais a comida e seu preparo por mãos alheias despertavam o nosso fascínio. (POLLAN, 2013, p.11, grifo nosso).

Neste sentido, há que se recuperar as noções de valoração que o ato de cozinhar traz a movimentos gastronômicos que provocam dobras no tempo. Como discutido na primeira parte desta dissertação, em “Que gosto tem “o gosto”? há o cozinhar “por prazer” (elemento de distinção das elites, conforme Bourdieu,); há o cozinhar por “necessidade” (característica das classes populares, cujo gosto se adequa às condições disponíveis).

A nouvelle cuisine é um desses movimentos de valorização do cozinhar com gosto de liberdade (prazer), mas muito modulado pela necessidade (as estações do ano, afinal, definem que ingredientes há disponíveis), algo compreendido por um novo tipo de leitor-comensal. Iniciada por Escoffier, como já pontuado anteriormente, ela foi difundida por chefs franceses como Paul Bocuse (expoente desse movimento e ícone da cuisine du marché ou cozinha de mercado, em tradução livre), Pierre e Jean Troisgros e Roger Vergé a partir do final dos anos 1960.

De certa maneira, inaugura-se, no ambiente gastronômico, um discurso cujos enunciados repudiam a banalização do comer e clamam por autonomia criativa (libertação das regras da alta cozinha clássica francesa datadas do século XIX).

A mídia, mais uma vez, exerce papel de divulgadora cultural desses novos preceitos que se amparam na simplicidade e na inventividade. Conforme Bueno (2016):

A nova corrente não foi impulsionada por um chefe de cozinha, mas por dois críticos, Gault e Millau, responsáveis por um dos guias gastronômicos de maior prestígio, que lançaram, em 1973, um desafio pela renovação e modernização da culinária, propondo alguns novos mandamentos que atacavam os pilares da tradição gastronômica francesa. (BUENO, 2016, p. 452)

58 Termo surgido nos Estados Unidos nos anos 1950 e conceito difundido mundialmente a partir dos anos 1980, graças à expansão da rede norte-americana Mc Donald’s (JACOB, 2013, p.40). 124

Saíam dos discursos de uma leva de chefs a ode ao uso de ingredientes caros e raros, o excesso de cozimentos, de temperos, de molhos (fala-se, por isso, em uma gastronomia mais “leve” ou em uma gastronomia “mais saudável”). Falava-se muito na valorização dos produtos de época, frescos e sazonais – produzidos e consumidos em sua totalidade.

O termo sustentabilidade ainda era estranho à época, mas tinha-se a noção de que a saúde do meio ambiente e do homem dependeria, “no futuro”, muito menos de “dietas” e muito mais da “alimentação”.

Se, na França a nouvelle cuisine causou rebuliço e repercutiu mundialmente nos anos 1960, não é de se estranhar o ecoar de outros gestos de interpretação acerca de uma gastronomia mais holística ecológica: nos Estados Unidos, a chef Alice Waters (ao lado do chef Jeremiah Tower), executa uma nouvelle cuisine à californiana no restaurante Chez Panisse, lidera o movimento From Farm to Table (do campo à mesa, em tradução literal), que valoriza a relação com a terra (nos mesmos sentidos de terra que tem o produtor de alimentos, o camponês, o agricultor) e com o terroir (no sentido da localidade, da geografia) ao trabalhar com ingredientes orgânicos e frescos dos quais se deveria extrair o máximo de sabor, cor, aroma, textura e saber.

Nos anos 1980, já considerada um dos maiores símbolos do ativismo ambiental na gastronomia, envolve-se com o movimento Slow Food. Eis outra dobra no tempo do campo gastronômico que viria influenciar o que se pode entender por uma “nova gastronomia brasileira”, agora mais sustentável, a partir da segunda metade dos anos 1990.

Enunciados como “é preciso devolver o alimento e sua produção ao lugar central que merecem entre as atividades humanas”; ser “coprodutor do alimento”, integrar “uma rede de gastrônomos” em prol de “um alimento “de qualidade”, “natural”, “bom, justo e limpo”; porque “somos o que comemos” e “enquanto come, o homem é cultura”; “gastronomia é cultura” (PETRINI, 2009, p.32; 36;44; 61;), entre outros, são comuns ao discurso ecogastronômico inaugurado por Petrini em 1986, na cidade de Bra, na Itália e institucionalizado em 1989, quando torna-se organização sem fins lucrativos que preside ainda hoje.

125

Figura 11 – O alimento “bom, justo e limpo” é preconizado pelo “discurso ecogastronômico” do Movimento Slow Food. Fonte: a autora.

Um dos objetivos do movimento, amparado sobre os pilares do alimento “bom” (prazeroso, de qualidade e carregado de sabores e saberes), “limpo” (um produto natural, que não polui e nem diminui a biodiversidade) e “justo” (respeitoso com as pessoas) é aproximar o chef (em sua posição-sujeito gastrônomo) do camponês (ou do agricultor, em sua posição-sujeito produtor do alimento):

O alimento – e um estudo cuidadoso de como é produzido, comercializado e consumido – é um elemento capaz de abrir nossos olhos para o que nos tornamos e para onde estamos indo. Permite-nos interpretar os complexos sistemas que governam o mundo e as nossas vidas – esta é a tese que quero arriscar -, possibilitando-nos ainda reconstruir as bases para um futuro sustentável.” (PETRINI, 2009, p.36, grifo nosso)

Outro, afastar-se do que se entende por fast life ou “McDonaldização” da sociedade e da relação que ela mantém com os alimentos (Flandrin; Montanari, 1998). Que, esbarra na noção de habitus proposta por Bourdieu (1979), que propõe que os lugares em ocorrem as escolhas dos alimentos, das roupas, dos cosméticos etc. se organiza da mesma maneira que se organizam os espaços sociais: de acordo com a lógica do capital. 126

Para Petrini, os princípios da “nova gastronomia” que propõe questionam o caráter folclórico e, por isso, equivocado, muitas vezes atribuído pela mídia à gastronomia, como o campo do “comer bem”, com conotações elitistas” e não como “ciência”, “cultura” e “educação” (Petrini, 2009, p.49; p.61)

Neste sentido, o Slow Food inaugura o importante debate acerca do que é “qualidade” (para além de nutrição e saudabilidade), por uma perspectiva mais “lenta” das relações de consumo, ao lembrar da relatividade e subjetividade do “bom”, que depende da compreensão de cultura e é traduzido pelo “gosto” (PETRINI, 2009, p. 107-114). Não à toa, nomes de outros chefs renomados passam a conjugar as máximas do movimento.

Na edição francesa de seu livro Bon, propre et juste. Éthique de la gastronomie et souveraineté alimentaire, publicada em 2006, o prefácio foi assinado por Alain Ducasse, o mais renomado e globalizado dos chefs franceses. Para Ducasse, nesse novo quadro, o cozinheiro se transforma num militante do produto. Ele deve estabelecer um diálogo com todos os seus produtores. (BUENO, 2016, p. 453).

Esse diálogo, que culmina na identificação dos melhores produtos dos quais se poderá extrair a essência, depende de um árduo trabalho de pesquisa. Segundo Lunardelli (2017), quando Ferran Adriá inicia o “projeto gastronômico” (o processo criativo) do restaurante El Bulli (extinto em 2011) e, com ele, dá início ao que se entenderia por cozinha de vanguarda ou tecno emocional no início em meados dos anos 1990, popularmente conhecida como “cozinha molecular”, é ladeando- se a uma rede de criação, esteada no vínculo com o pescador catalão e em gestos de interpretação acerca de saberes e sabores – boa parte deles oriundos da cozinha popular espanhola.

O mar, a praia, seus trabalhadores e ingredientes tornaram-se integrantes e participantes do espaço de criação de Ferran, esse espaço era o além da cozinha, era o local do imaginário e da realização de projetos. Também era a esfera de relação com sua matéria- prima, abrindo espaço para a introdução de novas ideias, “onde o cozinheiro é incitado a vencer os limites estabelecidos por ele mesmo, ou por fatores externos, como a matéria- prima com a qual está lidando”, as tendências desse projeto poético, mesmo que vagas e gerais, são norteadoras dessa liberdade para criar. (LUNARDELLI, 2017, p.37). Esse método mais natural de cultivar, preparar/criar e consumir o alimento parece enternecer e inspirar os projetos dos gastrônomos renomados. Tanto a liberdade que trouxe a Nouvelle Cuisine quanto a ecogastronomia que evocou o Slow Food passaram a fazer muito sentido às gerações de cozinheiros nascidas após a contracultura59.

59 “Essa forma de crítica, que surge na segunda metade do século XIX e deita raízes no dandismo e na boêmia, foi fortemente amplificada em fins dos anos 1960, com a contracultura e a contestação virulenta da sociedade de consumo, dos modos de vida burgueses, de todas as formas de alienação e de sujeição (disciplina do trabalho, familismo, moral sexual, autoridade, hierarquia). Esse momento de maré alta crítica vê crescer uma multidão de reivindicações conclamando ao prazer, à criatividade, à espontaneidade, a uma libertação que atinge todas as dimensões da vida”. Em Lipovetsky, Gilles. A estetização do mundo (p. 100). Companhia das Letras. Edição do Kindle. 127

Importa dizer, ainda, que Petrini parece haver inspirado o conceito de locavorismo, engendrado por Jessica Prentice, nos Estados Unidos (RUDY, 2012). Ele tem relação com a palavra locavore, que entrou para dicionário americano Oxford em 2007 e denomina o consumidor de alimentos produzidos localmente - bastante em alta em meio aos chefs da alta gastronomia contemporânea. Trata-se de uma corrente do ativismo alimentar que vai além da noção de que um alimento local é aquele que é produzido em propriedades vizinhas ou nas adjacências do lugar onde se come.

Não parece haver consenso, contudo, sobre a proximidade geográfica mínima de “local”, ainda hoje. Petrini (2009, p.123) se refere frequentemente ao conceito de food miles (milhas alimentares), que remonta aos anos 1990 e foi criada por Tim Lang, da Universidade de Londres para questionar os custos ambientais, econômicos e sociais do produto (qualquer item) transportado do local de produção ao local de consumo. Na Europa, por exemplo, “Ilbery, Watts e Simpson (2006) definem alimento local como aquele produzido, processado e vendido dentro de um raio compreendido entre 48 a 80 km da sua origem.” (AZEVEDO, 2015, p.82).

É pertinente a ponderação de Azevedo (2015) no que diz respeito à transição do conceito de locavorismo (ou mesmo de “alimento local”, ou de “comida geográfica”, fazendo-se aqui uma ponte entre os três conceitos de “local” abordados neste capítulo) do discurso à ação no Brasil:

Em um país com distâncias continentais e graves problemas ambientais, cuja população sofre os efeitos da precariedade das rodovias e da desqualificação da agricultura familiar que produz alimentos para 80% da população brasileira, a discussão do Locavorismo é pertinente e demanda atenção e estudos futuros. (AZEVEDO, 2015, p. 92).

O raio entre produção e consumo pode variar, mas o locavorismo parece conectado ainda a pelo menos outros dois conceitos, igualmente derivados dos debates acendidos nos anos 1960 em torno do consumo de alimentos: a rastreabilidade de alimentos, emergente na prática do agronegócio; e a diminuição da pegada ecológica (ecological footprint).

Segundo Machado (2000) e Petrini (2009), o primeiro passou a ser conhecido após o episódio da “doença vaca louca”, em 1996, na Inglaterra, e extrapola a noção de controle rigoroso de processos, rotulagem adequada, e acompanhamento do produto ao longo de seu processo produtivo por meio de dispositivos como leitores de códigos de barra ou QR’s code. Poderia ser definido, grosso modo, como um conceito que “se relaciona com a informação, segregação física e controle de alimentos” e onde entende-se que “rastrear é capturar e trocar informações sobre atributos específicos de produtos ao longo de uma cadeia produtiva (MACHADO, 2000, p.1). O alimento sustentável é, per se, rastreável. 128

Ao longo da cadeia produtiva, esses rastros de informação dão conta das escolhas de produtores e consumidores – dizem das ações antrópicas, portanto. Um avocado produzido no México e importado para o Brasil tem uma pegada ecológica distinta de um abacate produzido no Estado de São Paulo (Brasil): ambos os frutos podem ser escolhidos por um cozinheiro para uma receita de guacamole, mas o impacto que causarão ao meio ambiente, à economia e às relações sociais será distinto.

A noção científica de desenvolvimento sustentável, embora intuitiva à geração de chefs de cozinha renomados dos anos 1960-1980 (a maioria dos chefs era autodidata), acolhia um bom punhado de sentidos sobre o que se pode chamar de “gosto sustentável”. Ou, como descreveu Petrini (2009, p.115), é sobre o que o gastrônomo, no papel de coprodutor do alimento e educador, precisa “saber sobre as consequências ecológicas das ações que ocorrem na passagem do campo à mesa”.

Em função do desenvolvimento do conceito de sustentabilidade, no início dos anos 1990, os cientistas William Rees e Mathis Wackernagel, em 1996, lançaram o livro “Pegada Ecológica – reduzindo o impacto do ser humano na Terra”. Ele traria o conceito que atualizaria o domínio da “sustentabilidade”. A despeito do discurso sustentável e da indiscutível capacidade produtiva da indústria de alimentos, certos gostos, certas escolhas alimentares (como a de um simples abacate) podem culminar no déficit (ou overshoot) do planeta60.

Do “bom, limpo e justo” proposto por Petrini (discurso bastante devotado ao meio-ambiente, por isso entende-se aqui como discurso ecogastronômico), caminha-se à definição dos pilares econômico, ambiental e social” do complexo conceito de sustentabilidade.

Se aplicado no ambiente empresarial – e, não custa lembrar, antes de servirem experiência, restaurantes são empresas – a narrativa sustentável tende contribuir à constituição de um discurso ecogastronômico (ou de um discurso sustentável) ainda mais fundamentado na ciência: dietas que promovam a saúde e projetos econômicos que sejam eficientes ambientalmente e rentáveis economicamente (levando, assim, ao desenvolvimento sustentável) parecem, por isso, temas relevantes a serem trabalhados, também, no ambiente comunicacional, sobretudo no jornalismo. Pega bem pautar e falar de sustentabilidade.

O termo “desenvolvimento”, aliás, mereceria uma análise dedicada – sobretudo porque há a noção do subdesenvolvimento, que perdura, ainda, em países que foram colonizados por europeus, caso do Brasil. Por ora, pode-se pontuar que a palavra sustentável adjetiva complementa a noção de

60 Alguns estudos indicam que, por volta de 1980, a pegada total humana atingiu o ponto limítrofe da capacidade ecológica do planeta, o que significava que, até esse período, um planeta era suficiente. (Cidin e Silva, 2004, p.47) 129 desenvolvimento. No fundo, contudo, “a expressão desenvolvimento sustentável é um valor similar ao seu mais nobre antepassado, a “justiça social”” (Veiga, 2010, p.13). A despeito de a justiça social tardar e de o discurso sustentável caminhar mais na direção do “greenwash” (pintar de verde para iludir o consumidor que busca produtos não quimicalizados”, como coloca Boff (2012, p. 9).

O autor situa, ainda, que o termo sustentabilidade “nasceu” na silvicultura, no manejo das florestas, numa remota Alemanha de 1560 dada a constatação que o uso intensivo da madeira para atividades cotidianas como cozinhar estava dizimando as árvores. “Neste contexto surgiu a palavra alemã nachhaltigkeit, que significa “sustentabilidade”” (BOFF, 2012, p.28).

Figura 12 – O “tripé da sustentabilidade” decorre da noção de “desenvolvimento sustentável” (ONU, 1987): equilíbrio entre os pilares econômico, social e ambiental, conforme Elkington (1997)

Segundo John Elkington (1997), que cunhou o termo “sustentabilidade” reconhecido no ambiente empresarial (fala-se em “ambientalismo corporativo”, ávido por certificações e resultados) houve três ondas de ambientalismo expressivas entre 1969 e 1990 responsáveis pelo “esverdeamento” das empresas - e dos discursos, ainda que soassem distantes da ação. 130

Em Sustentabilidade – Canibais de Garfo e Faca (1997), obra referência para a compreensão do Triple Bottom Line, o tripé da sustentabilidade, a pergunta do poeta polonês Stanislaw Lec - “Seria progresso se um canibal utilizasse um garfo”? – procura ser respondida. Elkington mesmo reconhece a inclinação da obra ao ambientalismo ou ao pilar ambiental da sustentabilidade.

Interessante notar a eleição do garfo, objeto tão controverso em termos de design gastronômico61, criado em meados do século XI (Wilson, 2014), para simbolizar aos três pilares que o capitalismo deve considerar levar à boca, ao agir de forma “sustentável”, se desejar ser sustentável: a prosperidade econômica, a qualidade ambiental e a justiça social. O caráter humano, antropológico das relações, embora preconizado pela teoria, parece ainda distante da realidade.

Em sua obra, Elkington (1997) lembra da “destruição criativa” tão característica do capitalismo e alardeada, ainda no início do século XX, pelo economista Joseph Schumpter (1883-1950) para aventar o choque entre os interesses de um novo capitalismo e a sustentabilidade. Em certo ponto, questiona se “os canibais corporativos” podem, num curto prazo, “não somente aprender a utilizar ferramentas mais civilizadas, mas também começar a mudar suas dietas em uma direção menos nociva econômica, social e ecologicamente” (ELKINGTON, 1997, p.56-57). Interessante pensar- se nas analogias do autor para a noção do que é comestível ao capitalismo da segunda década do século XXI e aos acordos em relação à promoção de uma economia global sustentável.

Eventos como a Eco 92, que definiu a Agenda 2162, espécie de continuidade às discussões da agenda de Estocolmo, definiram uma série de caminhos para a elaboração de relatórios e cerificações de sustentabilidade, a exemplo da ISO 14001, um padrão de gerenciamento ambiental internacional – imediatamente acolhido por empresas como Monsanto e outras do sistema agropecuário. Um olhar contemporâneo acerca dessa agenda de empresas aparentemente bem intencionadas e certificadas foi apresentado no Fruto de 2018: o Sistema B. No site institucional da organização, a aba “quem somos” releva um movimento que não é guiado “por nenhuma ideologia ou pessoa em particular” e que pretende criar “uma nova “genética” econômica que permita que os valores e a ética inspirem soluções coletivas sem esquecer das necessidades particulares.”

61 Acolhe-se a discussão de Nogueira (2018), disponível em: Acesso em 09 jan. 2019

62 Nela, “os governos delinearam um programa detalhado para a ação para afastar o mundo do atual modelo insustentável de crescimento econômico, direcionando para atividades que protejam e renovem os recursos ambientais, no qual o crescimento e o desenvolvimento dependem”, segundo a ONU. Ver mais em: https://nacoesunidas.org/acao/meio-ambiente/ Acessado em: 01 NOv. 2020. 131

No cerne, para atingir-se a sustentabilidade, termo que avança do desenvolvimento sustentável (ONU, 1987) ao “ecodesenvolvimento” (SACHS, 1993) e que difere do conceito de “ecoeficiência”, conforme Elkington (1994, p. 107), os pilares econômico, social e ambiental precisam ser gerenciados e auditados constantemente a fim de estarem equilibrados, pois ocorrem em simultâneo e não são estáveis. “Estão em um fluxo constante devido às pressões sociais, políticas, econômicas e ambientais, aos ciclos e conflitos” (ELKINGTON, 1994, p.107). Na gastronomia, pondera-se, esses fluxos são ainda mais constantes, exigindo muito mais ações que relatórios, certificados ou discursos, sobretudo em função do impacto que causam à sociedade - local e globalmente. Nem Boff nem Elkington, contudo, citam diretamente a palavra “gastronomia” e suas relações com a sustentabilidade em suas obras.

Em relação ao discurso sustentável da/na gastronomia e a ações acerca de como promover-se uma gastronomia mais sustentável, pode-se destacar eventos promovidos por gastrônomos ou comunicólogos em que os termos saudabilidade, ecogastronomia, desenvolvimento sustentável e sustentabilidade circularam, destacadamente, nos últimos 10 anos:

- O Mesa Tendências63, um dos maiores eventos gastronômico da América Latina”, iniciou-se, oficialmente, em 2007, e já reuniu, em ações do Mesa-ao-Vivo (aulas show de cozinha) e no congresso, nomes internacionais como “Jancis Robinson, Quique Dacosta, Ken Oringer, Nicholas Lander, Ferran e Albert Adrià, Juan Mari Arzak, Olivier Roellinger, Michel Bras, Alain Ducasse, Virgilio Martínez e Gastón Acurio – “personagens de toda parte, mas sempre com a mesma mensagem sobre o diferente, valorizando o respeito ao alimento”. Desde 2012, especialmente, o congresso tem reunido chefs brasileiros e estrangeiros para tratar de pautas como a relação entre “o produtor familiar e a cozinha” (2012), a “Nova Gastronomia” (2015), a “Cozinha Tropicalista”

63 Aqui, vale destacar duas edições pela relação com esses diálogos comestíveis. Em 2015, sob o tema “Nova Gastronomia”, o “Mesa”, como é carinhosamente chamado pelos participantes (de alunos e professores de gastronomia a profissionais de cozinha), foi do luxo ao luxo. Trouxe, em uma das principais apresentações, a noção da “cozinha criativa” de Alex Atala, presença constante no evento. O chef brasileiro explicou detalhadamente a construção do menu do restaurante D.O.M. e justificou os custos da experiência perante uma audiência que já havia ouvido falar muito, por meio da mídia, de pratos como o “talo de agrião que flutua”. Outra apresentação de impacto foi a dos palestrantes gaúchos Daniel Castelli, Marcos Livi e Marcelo Bolinha, que tiraram a lã, desossaram apresentaram, ao-vivo, cortes todos os cortes possíveis da carne no palco – a ideia era mostrar que nada pode ser desperdiçado e houve quem abandonasse o auditório. Já em 2017, o tema do Mesa foi, em 2017, aplaudiu justamente a “Cozinha Tropicalista”: o grito da gastronomia brasileira”. Helena Rizzo, chef do restaurante Maní, levou ao palco do auditório do Memorial da América Latina a sua noção cozinha criativa brasileira, que depende da mistura. Citou ainda o artista plástico Hélio Oiticica e complexidade estética e o Tropicalismo como referências fortes em sua cozinha. Helena foi escolhida pela organização do prêmio internacional The World’s 50 Best Restaurants para receber o Prêmio Veuve Clicquot de Melhor Chef Mulher do Mundo 2014. Mais em: < https://mesasp.com.br/tendencias > Acessado em 01 Nov. 2020.

132

(2017) e “Cozinha de Transição: novos significados para um planeta em mutação” (2019), essencialmente propositivo às questões do DS.

- O chef dinamarquês René Redzepi (Noma) realizou a edição inaugural do simpósio bianual MAD Field em 2011, em Copenhagen. Objetivo: explorar temas como “Appetite” (2012); “What is cooking?” (2014) e “Tomorrow’s Kitchen” (2015) com personalidades da gastronomia – não somente chefs de cozinha renomados, mas acadêmicos e pesquisadores entusiastas da gastronomia. Curioso é que “mad”, em dinamarquês, significa comida. A plateia reúne convidados – especialmente cozinheiros, blogueiros e jornalistas e esses puderam repercutir, em 2019, o anúncio de que o centro de educação culinária Gastro-Akademi, fundado com recursos do Ministry of Environment and Food of Denmark como parte de um projeto multidisciplinar para promoção do desenvolvimento sustentável, o Gastro 2025.

- O Kitchen Dialogues, do chef criativo Andoni Aduriz (Mugaritz), teve edição inaugural em 2017) no Basque Culinary Center. Na sétima edição, Bela Gil, apresentada como ativista brasileira, Cristina Reni, “the right-hand woman of Massimo Bottura in the Food for Soul” e o fundador do movimento Slow Food Carlo Petrini, entre outros nomes, participaram do evento.

- Também em 2017, Luiz Farias, gerente nacional de serviços e atendimento ao cliente da Bunge Brasil, decide “compartilhar conhecimentos” no “Encontro Mundial de Chefs”, realizado em Guararema/SP. O encontro reuniu nomes importantes da gastronomia, como Laurent Saudeau e Tsuyoshi Murakami, além de representantes da indústria de alimentos e a academia para debater “o futuro de uma gastronomia mais sustentável e responsável” pois a “sustentabilidade está em toda a cadeia. Precisamos ter uma visão holística sobre o assunto” (Farias ao material institucional de divulgação do evento, Bunge, 2017)

Sobretudo nas últimas décadas (2000-2020), houve um avanço mundial nos debates acerca das temáticas “saudabilidade” e “sustentabilidade” recortadas à nutrição e à alimentação, sobretudo na ONU. Em 2010, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) definiu “dietas sustentáveis” como aquelas “com baixo impacto ambiental, que contribuem para a segurança alimentar e nutricional e à vida saudável para as gerações presentes e futuras. Dietas sustentáveis devem proteger e respeitar a biodiversidade e os ecossistemas, culturalmente aceitável e acessível, economicamente justa e acessível; nutricionalmente adequada, segura e saudável; além de otimizar os recursos naturais e humanos”. 133

Os termos “segurança alimentar e nutricional” e “biodiversidade” e a expressão “culturalmente aceitável e acessível” carregam uma rede de sentidos que perpassa as pontuações já discutidas até aqui e apontam aos pilares da sustentabilidade (econômico, ambiental e social). Contudo, tem-se, na expressão “nutricionalmente adequada, segura e saudável” o sentido da nutrição (e não, ao menos de imediato, da alimentação em seu sentido mais amplo, que toca a multidisciplinar gastronomia). Ao mesmo tempo, a definição de dietas sustentáveis como sendo aquelas “com baixo impacto ambiental, que contribuem para a segurança alimentar e nutricional e à vida saudável para as gerações presentes e futuras” recupera, quase integralmente, a noção de desenvolvimento sustentável de Nosso Futuro Comum (1987) atada à preocupação ambiental.

Noutra medida, pode-se destacar o aumento da frequência de debates globais acerca das mudanças climáticas e das consequentes ameaças às espécies e à produção de alimentos. A Conferência das Nações Unidas sobre Mudança no Clima (COP21, Paris, 2015) foi um evento decisivo neste sentido e, desde então, vem se notando uma preocupação de cozinheiros em todo o mundo em relação às escolhas alimentares e às relações de consumo estabelecidas em toda a cadeia do alimento. Afinal, a relação entre a produção agropecuária, o desmatamento, a emissão de gases de efeito estufa (a exemplo do gás metano e do gás carbônico), o aumento populacional, a escalada da produção de alimentos industrializados e ultraprocessados (conforme classificação do Guia Alimentar para a População Brasileira, 2014), a “midiatização da gastronomia” e as escolhas alimentares ficou evidente no Brasil e no mundo.

De outro lado, desde meados dos anos 2010, nota-se um tom discursivo (MAINGUENEAU, 2005) jornalístico mais “agudo” e espetacularizado, sensível à dinâmica das notícias relevantes e clicáveis (aqui falamos do ambiente online) sobre as catástrofes ambientais anunciadas por cientistas, políticos e, não raro, celebridades64. Não se questiona aqui a inquestionável relevância deste tipo de notícia, destaca-se o tom.

O tom textual (do que é falado ou do que é escrito) revela certa “vocalidade” e, a partir dela, o leitor tem uma noção de como é enunciador em determinada “cena” (enunciativa). Assim sendo, o discurso ambiental, que pode ser relacionado com discurso ecogastronômico (inaugurado por Petrini, como visto), também ganha tom de urgência. Se o discurso ecogastronômico de um

64 A exemplo do ator e ativista ambiental Leonardo di Caprio, que, em seu discurso pelo prêmio de melhor ator, no Oscar de 2016, pelo filme “O Regresso”: - “O Regresso conta a história da relação de um homem com o mundo natural. Um mundo que em 2015, todos nós – coletivamente – sentimos ser o mais quente registrado na história”, disse, inicialmente, em tradução livre, como pode ser conferido no site do jornal El País: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/02/29/cultura/1456729824_971862.html Segundo a Nasa, a média da temperatura global em 2015 fora a mais alta já registrada desde o início da medição das temperaturas na superfície da Terra, em 1880. 134 determinado evento representa uma certa vivência, tem-se que o ethos ecogastronômico molda certos modelos de comportamento. Assim, o discurso adere e circula, pois “#FulanoMeRepresenta” e tem-se uma comunidade que “veste” esse discurso. Esse fenômeno de circulação do discurso ecogastronômico será analisado tendo-se o Fruto de 2018 como objeto, no próximo capítulo.

Também em 2015, a ONU definiu os novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que se basearam nos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) estabelecidos em 2010 (o ODM 7 tratava das metas para a segurança ambiental, especificamente) e revisados em 2012, na Rio+20, que resultou no documento “O Futuro que Queremos”. A Agenda 2030 e os 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável tornaram-se o plano de ação e de metas (169, no total) para as pessoas, o planeta e a prosperidade de 1 de janeiro de 2016 ao final de 2030.

Os ODS 2 (“fome zero e agricultura sustentável”), 12 (“consumo e produção responsáveis”) podem ser considerados especialmente importantes ao desenvolvimento da “gastronomia sustentável” – termo que ganha conotação científica em 18 de junho de 2017. “De acordo com o site da ONU/FAO, “a data foi estabelecida pela Assembleia Geral da ONU em 2016. A decisão reconhece a gastronomia como uma “expressão cultural” relacionada à “diversidade natural e cultural” do mundo. A ONU afirma que a gastronomia “pode desempenhar um papel nesta área devido às suas ligações com as três dimensões do desenvolvimento sustentável, economia ambiente e sociedade””65. Neste ponto, pode-se retomar a teoria do triângulo culinário de Lévi- Strauss (1964) para fixar-se a relação de interdependência entre biodiversidade e gastronomia (uma vez que gastronomia é cultura), a partir da deriva.

Destaque-se o reconhecimento da ONU ao caráter cultural da gastronomia, que depende da biodiversidade. Neste sentido, e diante do exposto até aqui, pode-se conjecturar que a preservação de “saberes e sabores”, tal preconizara Petrini (2009) em uma “rede de gastrônomos” depende dos “diálogos sobre o alimento”, dos “diálogos comestíveis” por meio de uma linguagem peculiar – a gastronômica – mediada pelo gastrônomo, que se antecipa ao papel de coprodutor, ou seja, de produtor e consumidor gastronômico em simultâneo. Há, portanto, uma relação de humanização das relações, de uma evolução do antropos de uma visão egocêntrica para ecocêntrica. De uma

65 Mais sobre o Dia da Gastronomia Sustentável disponível no site da ONU: < https://news.un.org/pt/story/2019/06/1676691 > Acessado em 01. Out. 2018 135 sustentabilidade que “pretende ser sistêmica (cada parte afeta o todo e vice-versa), ecocêntrica e biocêntrica” (BOFF, 2012, p.100).

Contudo, até 2020 não se tinha, no universo de consumidores do Brasil, a dimensão exata do que é a “gastronomia brasileira”, como já foi aqui aventado, pois a identidade da gastronomia criativa e autoral brasileira ainda seguia (como segue) em construção; tampouco do que é “sustentabilidade”, termo que, por livre associação, de acordo com Barone (2018), permanecia ainda “associado principalmente com os aspectos ambientais”. Dividido em duas partes, o estudo da pesquisadora explorou a percepção de “sustentabilidade” e sua relação com os alimentos e as atitudes e as intenções da adoção de comportamentos sustentáveis por parte de consumidores brasileiros das regiões de Campinas e Jundiaí, São Paulo.

A associação das categorias com os dados sociodemográficos evidenciou que indivíduos mais jovens e com maior nível de escolaridade fizeram associações com categorias relacionadas ao conceito desenvolvimento sustentável da ONU. Já os consumidores com ensino médio associaram com categorias como, alimentação e sustento. De forma geral, o conceito de alimentação sustentável foi associado com as questões de preservação ambiental e saúde entre os consumidores brasileiros. Além disso, evidenciou que os indivíduos mais jovens e com maior nível educacional mostraram melhor conhecimento sobre aspectos relacionados à sustentabilidade, visto as associações com preservação dos recursos naturais e reutilização; e especialmente homens associaram a categoria produção sustentável. Por outro lado, consumidores mais velhos, especialmente mulheres, associaram com alimentos orgânicos, natural e alimentos de origem vegetal, relacionados à saudabilidade. É importante destacar que ideias relacionadas sobre os pilares econômico e social foram pouco expressivas tanto para o conceito de sustentabilidade quanto para alimentação sustentável. Neste sentido, verifica-se a necessidade de investir na educação dos indivíduos buscando criar uma representação social sólida da sustentabilidade e, em particular, sua relação com a produção e consumo de alimentos. Uma vez que os consumidores compreendam a importância e o impacto de suas ações diárias (para o meio ambiente, a economia, sociedade e a saúde), talvez seja possível um comportamento mais consciente em relação às escolhas alimentares. (BARONE et al, 2018, p.3, grifos nossos).

Em linhas gerais, os estudos sugerem o que se entende por educação escolar (formal) do gosto, algo que se traduz em ações dentro e fora da academia. Há, aí, a noção de capital cultural como fator de distinção social engendrada por Bourdieu, como já se discutiu, também, em “Gosto de gosto”. Para o autor,

Na realidade, cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que diretas, um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre outras coisas, as atitudes em face do capital cultural e da instituição escolar. (BOURDIEU, 1998, p. 42).

Esse sistema de gostos e de valores é também “mediado pela linguagem gastronômica “mediatizada”, ou seja, pelo que é transmitido pela mídia como “culto” e “bom”. Destaque-se, neste sentido, que, cientes de sua função de educadores, gastrônomos como Petrini, Adriá, Redzépi 136 têm inaugurado “universidades do gosto”, por assim dizer, onde a sustentabilidade é termo imperativo e componente disciplinar.

Nas palavras de Petrini, o mundo da gastronomia precisa apoiar a “educação do saber gastronômico” da infância (algo que preconiza ao lado de Alice Waters) à academia:

Se a gastronomia conseguir obter o reconhecimento acadêmico que lhe cabe, não será difícil seu ingresso nas escolas, em todos os estágios de uma educação que deve prosseguir por toda a vida. Finalmente as pessoas vão parar de considerar a única definição de “ciência alimentar” com sua dupla acepção de fisiologia da nutrição e de produção industrial. (PETRINI, 2009, p. 155-156).

Ao funcionar, portanto, como elo entre o sabor (a culinária) e o saber (a ciência), a gastronomia passa a desempenhar um papel diverso daquele normalmente atribuído a ela pela mídia que é o genésico (Savarin, 1965), ou seja, o de propiciar prazer (divertir, no sentido do entretenimento e do espetáculo).

Assim, as incursões científicas sistematizadas do cozinheiro no campo gastronômico, marcadamente divulgadas a partir dos anos 1990 com as experimentações alimentícias dos “cientistas da cozinha” Hervé This e Nicholas Kurti; e do trabalho autoral do catalão Ferran Adriá e do inglês Heston Bluementhal tornam possível a sistematização de disciplinas gastronômicas nos campos acadêmico e científico.

A mídia, neste sentido, volta a fazer sua parte ao divulgar os avanços do saber gastronômico ao tratar do novo movimento da vanguarda catalã, impulsionado por descobertas, inovações e experimentações. Tem-se a cozinha como laboratório (ideia que a indústria de alimentos destrincha desde os anos 1960). “Na sociedade de hiperconsumo, já não basta saborear pratos, a mesa deve ser ocasião de uma “viagem”, de uma espécie de experiência sinestésica que satisfaz os seis sentidos, “sendo o sexto sentido a emoção, a sensibilidade” (F. Adriá).” (LIPOVETZKY, 2007, p. 236).

Pode-se afirmar, com esteio da AD, então, que, a partir dos anos 1970, o discurso sobre a ecogastronomia e sobre o desenvolvimento sustentável passam a integrar o arquivo acerca da gastronomia, globalmente. E que, a partir dos anos 1990, o interdiscurso de “gastronomia” como “ciência” (ruptura) passa a ser ladeado e integrado ao interdiscurso de “gastronomia” como “cibercultura” - uma vez que a “cultura” faz parte do “discurso gastronômico” desde o século XVII. Para que a biodiversidade permaneça, e com ela deslanchem os trabalhos de pesquisa do chef em prol da cultura, é preciso que se haja de forma sustentável. Nas palavras de Bueno (2016), 137

A estratégia bem-sucedida da Slow Food, atribuindo uma função política à gastronomia – papel-chave no movimento de defesa da biodiversidade e da sustentabilidade das culturas camponesas no planeta –, gerou uma mudança definitiva na dinâmica de construção da identidade no interior desse universo. (BUENO, 2016, p.454)

A partir de meados dos anos 2000, como exposto anteriormente, tanto o discurso da “ecogastronomia” quanto a memória discursiva do “desenvolvimento sustentável” integram o interdiscurso no qual se inscreve o discurso sobre a “gastronomia sustentável”. Em paralelo, o tom hedonista dos epicuristas perde força e tem-se, na imprensa, abordagens mais ligadas à alimentação saudável e à dietética, assunto conectado à sociedade do hiperconsumo.

O gancho “cosmeto-food” (LIPOVETSKY, 2007, p.233) abarca o consumo de tudo que faça bem e retarde o envelhecimento e a obesidade, como “orgânicos”, “dietas tradicionais”, “regimes” e outras pautas que promovam a “felicidade individual”. “Cada vez mais, a alimentação é considerada como um meio de prevenção ou mesmo tratamento de doenças” (Ibidem). “Jamais a gastronomia, os “chefs”, os grandes restaurantes, os bons vinhos foram tão comentados, auscultados, postos em cena pelas mídias” (Ibidem, p. 135).

Nascem, da demanda dos leitores-comensais “saudáveis”, pautas sobre a relação entre chefs e produtores e sobre conceitos como “comfort food” e “cozinha de terroir” (POLLAN, 2010). No Brasil, Roberta Sudbrack, por exemplo, divulga a parceria com Fátima Anselmo (Orgânicos da Fátima) a quem ela chama de “minha agricultora” (LUNARDELLI, 2017, p.148). A temática da cozinha “artesanal” passa a circular na mídia com mais força e passa a fazer mais sentido depois do anúncio da Agenda 2030.

No Brasil, percebe-se gastronomia como arte e como ciência também dos anos 1990, graças à formalização dos cursos de graduação em gastronomia, aos efeitos da globalização e da abertura econômica (a década foi marcada por dois planos de estabilização, o Plano Collor, em março/1990, e o Plano Real, em junho/1994). Houve um expressivo crescimento da indústria de alimentos – e adequação, consequente, das empresas às certificações e demandas globais (visando-se a otimização de processos).

As necessidades e os gostos do mercado mudam em função da dinâmica do desenvolvimento econômico, social e ambiental. Contudo, e a despeito de ter informação disponível, o consumidor passa a patinar entre gostos na busca de uma verdade paradoxal: a de que a “indústria de alimentos” passou a cozinhar para “todo o mundo”. 138

Defensor da “comida de verdade”, como nomeia a comida que “não passou por mãos alheias”, o jornalista estadunidense Michael Pollan, reforça, em 2014, o discurso gastronômico movido pelo desejo de fazer seu próprio “pão” (alimento essencial e, em muitas culturas, simbólico) e, assim, ativar o verbo “cozinhar”. Ele convoca o leitor (e pares de imprensa) a pensar sobre o que é “alimento”, o que é “comer” e passarem à prática da transformação do “alimento” pela prática culinária cotidiana.

Depois de desmantelada, a cultura de se cozinhar todo dia (e da “alimentação primária”) pode ser reconstruída? Porque é difícil imaginar uma mudança no estilo de comer a menos que milhões de pessoas — tanto mulheres como homens — se disponham a fazer com que cozinhar e comer refeições façam parte da rotina. O caminho para uma dieta mais saudável, baseada em alimentos frescos e não processados (sem falar na revitalização de uma economia local que ofereça esses produtos), passa diretamente pela cozinha de nossa casa. (POLLAN, 2014, p.161, grifo nosso).

A leva de gastrônomos, restaurateurs, jornalistas como Pollan e chefs de cozinha dispostos a mudar o mundo por meio de ações que os aproximem da cadeia do alimento tem se alargado, como se viu no capítulo dedicado à gastronomia sustentável, desde os anos 1970. Localmente, contudo, ainda há que se avançar rumo ao cerne do conceito sustentabilidade, atualizado pela sigla ESG, do inglês Environment, Social and Governance, gestado em evento do Pacto Global da ONU, em 2004, e espécie de semente do conceito Governança Ambiental Global - ventilado a plenos pulmões na Rio+20, em 2012 e cujo intuito também é estimular-se sociedades sustentáveis por meio dos esforços de governos e pessoas.

Trata-se de uma estratégia de negócio que dialoga com o tripé da sustentabilidade (Triple Botton Line) proposto por John Elkington (1997) e tende a deixar os discursos mais “verdes” e conectados aos processos (e, portanto, à complexidade de conexões e tomada de decisão entre pessoas que dele participam). Busca-se, por meio de métricas sociais, ambientais e de governança demonstrar- se que determinada empresa é sustentável e tem um propósito.

Soma-se a isso o fato de o debate acerca da promoção do desenvolvimento sustentável capaz de frear ou remediar os efeitos das mudanças climáticas haver se intensificado, marcadamente, desde a 21ª Conferência das Partes (COP-21), realizada em Paris, França, em dezembro de 2015, acontecimento importante à discursividade própria da gastronomia sustentável: respeito à biodiversidade, à naturalidade e à localidade. Afinal, segundo a ONU (2017), a gastronomia promove “ligações com as três dimensões do desenvolvimento sustentável, economia ambiente e sociedade”. 139

Ali foram ratificados os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) - baseados nos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), estabelecidos pela ONU em 2000 – e a agenda para a promoção global do desenvolvimento sustentável (Agenda 2030).

Contudo, em 2020, o brasileiro ainda demonstra ignorar o sentido mais amplo e complexo do conceito “sustentabilidade”. Conforme demonstra Barone (2018) na tese de doutorado Sustentabilidade e Alimentação Sustentável: Percepção e o Comportamento dos Consumidores Brasileiros, ainda se associa, normalmente, o conceito de sustentabilidade aos aspectos ambientais (ou ao pilar ambiental da sustentabilidade), no Brasil, sendo os termos “conservação, reciclagem e meio ambiente” as imagens mentais mais comuns sobre ele.

A conclusão dessa tese vai ao encontro da percepção que se tem neste estudo acerca do discurso sobre a gastronomia brasileira: incipiente (se tomado o recorte temporal de sua constituição acadêmica, engendrada em 1999), ele ainda está mais ancorado nos preceitos da ecogastronomia (Petrini, 2009) que fundado no conceito complexo de sustentabilidade (Elkington, 1997; ONU, 1987, 1992, 2012, 2015).

3.3 As condições de produção do jornalista “produtor de conteúdo”

Falou-se aqui, indiretamente, no trecho “gastronomia é cultura no jornalismo” da lógica da produção de "conteúdos de marketing" mais conectados ao consumidor; e do conceito de “inbound marketing”que surgiu oficialmente nos Estados Unidos e começou a se popularizar a partir de 2009, após o lançamento do livro “Inbound Marketing: seja encontrado usando o Google, a mídia social e os blogs”, de Brian Halligan e Dharmesh Shah.

Na metodologia do inbound marketing, há uma sequência de etapas, que são: atrair, converter, relacionar, vender e analisar. (...) Ou seja, “são realizadas ações com o intuito de atrair o potencial cliente para seu blog ou site e, a partir dessa atração, é feito todo um trabalho de relacionamento com essa pessoa”. (Resultados Digitais, 2016).

O universo do “conteúdo de marketing” é cada vez mais comum a profissionais do campo jornalístico desde os anos 2010. Há os que se especializaram em marketing digital e/ou atuam como “produtores de conteúdo”, “novo papel na era digital (...) em que cada receptor é potencialmente um emissor, e vice-versa” (SCHMITZ, 2018, p.131). O autor, que estuda as relações de poder e de autonomia do jornalista, especialmente o brasileiro em seu campo, reforça, amparado por muitos autores e, especialmente pela sociologia de Bourdieu (2005), que: 140

A noção de campo jornalístico não tem utilidade se não em combinação aos conceitos de capital e habitus, este entendido como um conjunto de conhecimentos práticos incorporados ao longo do tempo e evidenciados pelas capacidades ativas, criadoras e inventivas de um agente. Bourdieu (2012, p. 61) explica que “habitus, como a palavra indica, é um conhecimento adquirido e também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista), o habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural -, mas sim de um agente em ação”. O habitus jornalístico, fruto de uma interiorização da aprendizagem da profissão, decorre da forma de apurar e produzir uma notícia. (SCHMITZ, 2018, p.42). Pelo habitus, ou seja, pelo conjunto de adequações culturais, econômicas, sociais e de valores pessoais feitas na prática da profissão, o jornalista é capaz de atuar com certa autonomia e objetividade, bem como imprimir seu estilo à mídia em que atua. Contudo, não se pode ignorar que, dentro das redações oficiais ou a serviço de uma determinada marca (atuando-se na esfera do marketing) há um conjunto de forças simbólicas e relações de poder capazes de silenciar o repórter. O jornalismo pode, assim, se converter em instrumento de opressão simbólica, pois, se há concorrência pela atenção do leitor, sobretudo em um contexto de velocidade da informação e:

Quando ela se exerce entre jornalistas ou jornais que estão sujeitos às mesmas pesquisas de opinião, às mesmas restrições, às mesmas pesquisas de opinião, aos mesmos anunciantes (basta ver com que facilidade os jornalistas passam de um jornal a outro), ela homogeneíza. (BOURDIEU, 1996, p.31). Dentro do habitus do jornalista profissional, o de ler os jornais frequentemente para saber o que os outros já disseram é imperativo. Contudo, em meio ao rarear de veículos oficiais dedicados à produção noticiosa e ao multiplicar de “produtores de conteúdo”, parece prevalecer mais a paráfrase (dos fatos ou dos discursos de marketing ou de marca que sejam) que a cobertura bem apurada.

Neste sentido, se na dinâmica da produção televisiva confrontada por Bourdieu em Sobre a Televisão (1996) já havia o questionamento acerca dos critérios de escolha para a cobertura noticiosa, muito determinado pelos índices de audiência, “retraduzido na pressão da urgência” (BOURDIEU, 1996, p.38), o que pressupor em relação à dinâmica da produção noticiosa para o ambiente digital e multitelado?

Se a televisão privilegia “certo número de fast-thinkers que propõe fast food cultural, alimento cultural pré-digerido, pré-pensado (...). Há também o fato de que, para ser capaz de “pensar” em condições em que ninguém pensa mais, é preciso ser pensador de um tipo particular” (BOURDIEU, 1996, p.41). No topo desta cadeia de produção noticiosa estariam os “jornalistas intelectuais”, dotados de um bom arsenal técnico e de uma boa “bagagem” - o que se pode traduzir em repertório e capital cultural. Para escrever sobre a alta gastronomia, a haute cuisine, a gastronomia culta, melhor dominar outros campos, como o gastronômico, o antropológico e o cultural. 141

Pois a gastronomia, esse “prato do dia do jornalismo cultural” (AMARAL, 2016) parece surgir como um terreno fértil à crítica gastronômica e confortável à noção de “exercício fácil da profissão” no contexto brasileiro a partir dos anos 1990, como abordado no capítulo desta dissertação dedicado à aba.

Contudo, há que se ponderar, como propõe Schmitz (2018), sobre a ética da profissão num contexto de não de autonomia de imprensa, tampouco de poder, mas de falsa independência - no caso de blogueiros e profissionais “pejotas”, ou seja, que atuam como freelancers e vendem seus conteúdos a terceiros, que se incumbirão de publicá-los - e num cenário de desconfiança na mídia. “O jornalista é alvo de uma artilharia de pressões éticas, ideológicas, culturais e imposições do mercado, sob a mira de uma impostura.” (SCHMITZ, 2018, p. 77).

Para o autor, “essa “impostura” transforma-se em ideologia relativamente autônoma para amenizar o peso da lógica econômica ou do “materialismo medonho”. O jornalista, provido de um “espírito ideológico, faz o que faz”.

Os jornalistas mais éticos, então, teimam em alimentar pautas relevantes, atuais, factuais e em mediarem a “realidade, entre o mundo e o público, afinal a sua missão de informar com neutralidade e isenção confere às práticas profissionais a construção de uma ordem simbólica e um poder de nomeação”. (SCHMITZ, 2018, p.83).

Um campo é um espaço social estruturado, um campo de forças - há dominantes e dominados, há relações constantes, permanentes de desigualdade, que se exercem no interior desse espaço - que é também um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças. Cada um, no interior desse universo, empenha em sua concorrência com os outros a força (relativa) que detém e que define sua posição no campo, e, em consequência, suas estratégias. A concorrência econômica entre as emissoras ou aos jornais (ou aos sites ou aos blogs) pelos leitores e pelos ouvintes ou, como se diz, pelas fatias de mercado realiza-se concretamente sob a forma de concorrência entre jornalistas, - concorrência que tem seus desafios próprios. (BOURDIEU, 1996, p. 57-58). A cultura jornalística corresponde ao habitus de classe, conforme Bourdieu. O jornalista trabalha para legitimar a sua prática, conforme Weber (2004, 2014). A esse poder, Bourdieu (2006) chama de divisão do trabalho de dominação simbólica, uma luta pelo princípio “legítimo de legitimidade”, de autoridade legal – o legítimo se autodenomina “jornalista profissional”.

O habitus (BOURDIEU, 1996) orienta as estratégias de trabalho e as práticas. Desse modo, ocorre uma matriz de percepções, em que o profissional se vale de certos conhecimentos e experiências para atender, também com criatividade, à produtividade.

142

4 PARTE III - O TEXTO JORNALÍSTICO GASTRONÔMICO

O que se configura “texto” em jornalismo? Retomando-se o exposto até aqui, pensando-se a partir da noção de acontecimento jornalístico de Dela-Silva (2008, p.13) tem-se que:

O acontecimento jornalístico, de forma semelhante, também é compreendido como um fato, uma ocorrência no mundo; mas um fato que gera uma notícia, que por sua relevância perante a avaliação dos jornalistas do que se constitui como interesse público, merece estar presente nas edições diárias dos noticiários impressos ou eletrônicos. Trata-se de um acontecimento enquanto referente, com uma existência material no mundo; um acontecimento enquanto um fato que se inscreve na história do dia a dia, que o jornal e os jornalistas se propõem a escrever. Os acontecimentos jornalísticos são apresentados no jornal em forma de notícias que, segundo a perspectiva enunciativo-discursiva de Guimarães (2001, p. 13), pode ser definida como uma “narrativa de acontecimentos contemporâneos à sua enunciação”. Estes acontecimentos, no entanto, são selecionados pelo jornalista dentre as inúmeras ocorrências de um dado período, a partir de critérios como o interesse do público e a atualidade. (DELA-SILVA, 2008, p.13).

Portanto, dada à relevância dos temas “alimento” e “sustentabilidade”, tão caros ao Fruto quanto a seus idealizadores e participantes, tem-se claro que o evento Fruto se tornou um acontecimento jornalístico com ampla cobertura nacional e internacional: ao menos 81 textos jornalísticos sobre esse referente circularam na mídia em 2018.

A “gastronomia sustentável”, contudo, não é um tema óbvio, posto em primeiro plano nesta cobertura jornalística. Mesmo à especializada em temas relacionados à temática ambiental ou ao universo gastronômico, embora esteja, como demonstrado, relacionada ao interesse dos gastrônomos contemporâneos, com destaque, no caso, a Atala e Ribenboim.

Para esses, especialmente, o “discurso ecogastronômico” parece estar na essência do Fruto, como ficará claro a seguir, em “O gosto do Fruto (segundo o Fruto).” A partir deste ponto da dissertação, encaminhar-se-á à análise do Fruto enquanto acontecimento discursivo a partir da expressão “diálogos do alimento”. Isso porque ela agrega sentidos de “alimento” outros – isso depende dos sujeitos que enunciam (jornalista, palestrante, idealizador etc.).

O que deve ser destacado é que, quando o Fruto se torna: “um acontecimento jornalístico em publicações de interesse geral significa de forma distinta do ser notícia em uma publicação especializada, que se ocupa exclusivamente das comunicações, seus órgãos e aspectos. (Ibidem, p.28) 143

Assim, ao caracterizar-se como um acontecimento jornalístico e obter espaço em publicações reconhecidas de interesse geral, tanto em veículos nacionais quanto internacionais, a partir de 2018, o Fruto pode ser significado como notícia de interesse da população. Essas notícias que circulam sobre o evento trazem informações sobre a diversidade dos sentidos do “alimento”, esse “tipo de morfema”, conforme Montanari (2008, p.165-170), que integra o “léxico” sobre a “gastronomia sustentável” – e, portanto, integrará sua memória discursiva.

Ao analista há ainda a noção de que a interpretação será mais assertiva quanto mais o texto (o discurso) estiver ligado a uma “instituição” – neste caso, à gastronomia contemporânea; a Alex Atala e ao Instituto Atá; e a Felipe Ribenboim - e mais o texto for legível. O texto em questão é o discurso do Fruto, analisado em dois momentos: no lançamento (release) e no evento (cobertura jornalística).

Enquanto estrutura, esse discurso revela um modo de pensar sobre “o alimento”, num dado momento histórico (2018). Enquanto acontecimento discursivo (PECHÊUX, 1983), estabelece a relação entre a memória e o esquecimento sobre o “alimento” dado que, graças ao funcionamento da memória no acontecimento discursivo, os sentidos repetem e deslocam o que já foi dito sobre “alimento” (tomado pela indústria de alimentos e pela agroindústria como commodities, pelos cozinheiros, culinarista e gastrônomos como parte da “cultura” e etc.). Assim, vai-se da projeção ao retorno dos processos discursivos sobre “alimento”. Tem-se novas interpretações no percurso entre o real da história e o real da língua. Todo fato, aliás, “já é uma interpretação” (PÊCHEUX, 1983, p.44). O jornalista não decide “de repente” o que é fato ou a ser noticiado – há critérios de reportagem, inclusive, para as pautas sobre “alimento”.

A AD, vale lembrar, não se esquiva do efeito leitor constitutivo da subjetividade e, interpretativa, investiga a opacidade do texto a fim de analisar “a presença do político, do simbólico, do ideológico, o próprio fato do funcionamento da linguagem: a inscrição da língua na história para que ela signifique” (ORLANDI, 2005, p. 21).

4.1 O gosto do Fruto (segundo o Fruto)

A fim de compreender-se os mecanismos de constituição da discursividade (PÊCHEUX, 1997) do Seminário Fru.to de 2018, e tomando-se a noção de constituição (interdiscurso)/ formulação (intradiscurso) e circulação (ORLANDI, 1998) pode-se entender, a priori, que: 144

1) na rede ou no meio digital, onde os 80 textos jornalísticos e o press release que constituem o arquivo sobre o Fruto foram veiculados (no período de 1º de dezembro de 2017 a 10 de fevereiro de 2018), os efeitos de sentido tendem a ser multiplicados na medida em que o texto sobre esse objeto “circula” e transita no eixo horizontal - ou na medida em que quem lê o arquivo, ao mesmo tempo em que ele circula, acessa a atualização dos sentidos de “alimento”. A seleção do material de análise e recortes para a compreensão do processo discursivo do Fruto foi feita com base na noção de trajeto temático (MALDIDIER; GUILHAMOU, 1997), que permite estabelecer a expressão “diálogos do alimento” como uma marca do acontecimento discursivo Fruto na gastronomia.

Segundo Dela-Silva, (2008, p.38), “de acordo com esses autores (1997, p. 165), o trajeto temático é depreendido a partir da “distinção entre ‘o horizonte de expectativas’ – o conjunto de possibilidades atestadas em uma situação histórica dada – e o acontecimento discursivo que realiza uma dessas possibilidades”.

Ao tratar dos “diálogos do alimento” não se toma por referencial estático o conjunto de textos jornalísticos selecionados, mas um acontecimento discursivo produzido em um determinado momento histórico. De acordo com Maldidier e Guilhaumou (1997), o acontecimento discursivo “é apresentado na consistência de enunciados que se entrecruzam em um momento dado”, na tematização”.

2) os efeitos de sentido tendem a ser multiplicados na medida em que “o que importa sobre o Fruto” (relevância) para o leitor-comensal, nem sempre, está situado num mesmo fragmento de “memória metálica” - conceito relacionado à circulação onde há movimentos de repetição, de reprodução, de replicação. Assim, o que está em leitura, está em leitura por filiação (uma busca leva a uma leitura que leva a outra busca e assim por diante). Conforme Cristiane Dias in: Enciclopédia Discursiva da Cidade (Endici), versão on-line, didaticamente:

Se tomarmos como exemplo do funcionamento da memória metálica, os resultados de busca fornecidos pelo Google, temos um acúmulo de ocorrências que nos são apresentadas segundo o algoritmo do Google. Todas as informações são acumuladas na memória metálica e atualizadas segundo o filtro do algoritmo. Mas a memória metálica não se restringe ao acúmulo de dados na memória do computador, ela também diz respeito ao funcionamento da própria mídia, construto técnico, que também tem seus filtros e que trabalha com a quantidade de informações e sua repercussão global, por meio da repetição, reprodução.

A partir de 2), pode-se analisar o efeito-leitor durante a realização do Fruto 2018 a partir dos textos jornalísticos que circularam na mídia sobre o evento. Isto será feito a partir de um recorte do 145

arquivo – 35 textos publicados que circularam na web após o evento – a partir da análise dos títulos das reportagens, num primeiro momento e, num segundo momento de recorte, a partir de um “conjunto de enunciados”.

3) É possível ler a narrativa da marca Fruto e o discurso do Fruto formulados em 2018 e pensar sobre a história contada sobre “o alimento” com a ajuda da web; ou ler e pensar sobre um trecho significativo dessa narrativa que, de certa forma, fala “sobre” e “com” ela e que circula. Aqui, analisar-se ia o efeito-leitor da audiência (interessados pelo Fruto após a primeira edição). Isto não será feito nesta pesquisa, apesar de ponderar-se sobre os possíveis desdobramentos do Fruto ao discurso sobre a “gastronomia sustentável”.

Figura 13 - Representação esquemática de interdiscurso (eixo A, horizontal) x intradiscurso (eixo B, vertical) no Fru.to 2018. À medida em que o evento se desenvolve em direção ao ponto mais vertical, os debates ocorrem e duram tempos distintos (x e y para os exemplos hipotéticos “a” e “b”). Fonte: a autora.

F

R debate “a” – “Sociobiodiversidade” (exemplo ilustrativo) x= duração do debate

U debate “b” – “Ecogastronomia” (exemplo ilustrativo) y= duração do debate eixo eixo A

(A) .

“Diálogos do Alimento” do “Diálogos T

O

Ademais, coexiste com a memória histórica a memória digital, conforme Cristiane Dias (2018), que é o “lugar da contradição, onde a memória escapa à estrutura totalizante da máquina (memória metálica), saindo do espaço da repetição formal e se inscreve no funcionamento do interdiscurso (memória discursiva) (DIAS, 2018, p.105).

Em outras palavras, parece claro que, enquanto o “sujeito leitor-comensal” se inscreve numa formação discursiva numa tentativa de tomar uma posição em relação a ela, a ambiência e outras formações discursivas o afetam e outros sentidos, muitos deles circulantes no meio digital e afetados pelas relações humanas mais afetivas (amigos que comentam algo por mensagens nas redes sociais, por exemplo), rompem a lógica racional dos dados, dos algoritmos. Afetado, então, pela contradição e dispersão de sentidos no interdiscurso, o leitor-comensal desliza entre sentidos possíveis, produzindo diferentes gestos de interpretação. 146

Ao mesmo tempo, enquanto se dá a formulação do discurso sobre o Fruto de 2018 e sua circulação “no” e “pelo” digital, ocorrem “desaparecimentos” e “silenciamentos” (de comentários, de reportagens, de conteúdo). Os textos sobre o evento são publicados, comentados e modificados e o sujeito que almeja se inscrever na historicidade dos “diálogos do alimento”, por vezes, “encontra” mais daquilo que lhe sempre apetece e menos do que é desgostoso, dada a “dimensão técnica do silêncio” (DIAS, 2018, p.192).

Nos sites de busca, as informações sobre o seminário revelam o que “os algoritmos deixam de nos mostrar ou não nos deixam ver” (DIAS, 2018, p.192), mostrando ao usuário “mais de si mesmo” – o que o deixa alheio aos enunciados que não são “indicados a ele”, obrigando-o, ainda que temporariamente, a se fixar numa “bolha de percepção”, numa certa posição-sujeito em função do panspectron66 (conforme PALMAS, 2011 apud DIAS, 2018, p. 192).

O que é visto/lido, contudo, pelo leitor-comensal tem relação com o que foi “dito” no seminário” – decisão ideológica em relação aos dizeres silenciados, ao que o produtor de conteúdo, o editor do conteúdo e a estabilidade da web permitiram que fosse publicado.

Ora, à medida em que o evento Fruto 2018 ocorre, e mesmo depois que ele termina, os sentidos sobre ele são atualizados/ comentados em tempo real à medida em que são lidos/ acessados via web, por meio do site, das redes sociais ou do canal do YouTube da marca em que a transmissão ao-vivo é feita do auditório da Unibes Cultural, lotado com 300 “leitores-comensais” convidados. Mesmo à medida em que um usuário realiza uma busca por algumas palavras-chave num buscador como o Google. Reforçando:

Ao citar Canguilhem sobre a questão do sentido, Pêcheux (2010, p. 58) mostra que as máquinas podem produzir conexões entre os dados, mas os dados fornecidos pela máquina ao sujeito não estão em relação com o que este se propõe a partir deles. No caso de um buscador, como o Google, por exemplo, é preciso atentar para isso e não subestimar o “fato da língua” na leitura do arquivo. Em outros termos, não tomar como uma evidência do arquivo o resultado da busca, porque ela não é mais do que dados em relação algorítmica numa memória metálica. É preciso, no entanto, atentar para as correspondências que esses “dados” engendram em nós, o que já se dá a partir de uma filiação à memória histórica, de um trabalho do arquivo. É isso considerar o digital em sua materialidade”. (DIAS, 2015, p. 974)

O que se está procurando? O acontecimento discursivo para além da memória metálica. Para Orlandi (2006), conforme Dias em Enciclopédia Discursiva da Cidade, “a memória metálica é aquela produzida por um construto técnico (televisão, computador etc.). Sua particularidade é ser

66 Modelo de vigilância adequado ao advento do Big Data, em que o interesse não está no “indivíduo”, mas nos “dados”. 147 horizontal (...), não havendo assim estratificação em seu processo, mas distribuição em série, na forma de adição, acúmulo: o que foi dito aqui e ali e mais além vai-se juntando como se formasse uma rede de filiação e não apenas uma soma. Quantidade e não historicidade. A memória metálica produz, pois, um efeito de filiação”. O que se procura é o que se repete nos textos sobre Fruto em relação à gastronomia, ainda que por filiação, até que fique diferente (pelo interdiscurso da gastronomia sustentável) e se inscreva na história (como acontecimento discursivo).

Avalia-se que o discurso “que importa” chegar à audiência sobre o Fruto, ponderado pelos idealizadores (e patrocinadores e apoiadores) do evento, ou seja, o tema macro “alimento” a ser discutido no seminário pelos palestrantes e pelos usuários/ ouvintes, por vezes, pode vir a estar distante do interdiscurso específico do Fruto (o conjunto de enunciados que tem relação com as formações ideológicas que constituem os sujeitos discursivos do Fruto, com a complexidade das formações discursivas, com os já-ditos e ressignificados sobre o “alimento”).

E próximo do debate de nicho (daquilo que o usuário, mediante seu próprio arquivo e ambiência, identificou, a partir de seus achados no/pelo digital como “importante” e, por isso, passou a fazer circular com mais recorrência em certo momento, a despeito do discurso principal o Fruto, em função dos pré-concebidos e das condições de produção). O mesmo podendo ocorrer em relação ao tema principal do evento – o subjetivo “diálogos do alimento”. De qualquer maneira, de forma verticalizada (posição-sujeito “idealizador”) ou horizontalizada (demanda do leitor-comensal) no e pelo digital,

Isso “circula”, como adquirimos o hábito de dizer, fazendo dessa circulação a imagem positiva de nossa modernidade discursiva liberada, ou ao contrário, a falsa moeda das línguas de vento: os turbilhões esfumaçados do “não importa o que” destinados a chamar a atenção, desviando-a dos “problemas reais”. Não seria tempo de destituir essa imagem duplamente satisfatória da circulação, assumindo o fato de que as circulações discursivas não são jamais “não importa o que? (PÊCHEUX, 1981, p. 18, grifos nossos).

Uma vez que o que se propõe são “diálogos do alimento”, como sugere o intertítulo do Fru.to, pode-se esperar por uma gama de pautas a serem debatidas acerca de tudo que rodeia o verbete “alimento” e seus significados – aqui isto está compreendido como tema macro que “conversa” com os demais. E, em havendo demandas do usuário (tal como se tem a acepção “usuário” no design, que considera as tomadas de decisão centradas no comportamento desse consumidor), haveria de se observar como os sentidos do evento são por ele modulados (expectativa do 148 idealizador versus realidade do usuário, buscas do usuário versus entrega do idealizador)67. Ou “de que maneira os sentidos (do “alimento”) vão se constituindo em nós com a circulação pelo digital” (DIAS, 2018, p. 194, grifo nosso) em função dos diálogos no Fruto de 2018?

Essa demanda de “consumo” informacional/ de conteúdo de marca/ de conteúdo de marketing, embora instigante, ficará para análise futura – desta pesquisadora ou de outros pesquisadores. Afinal, a análise desses dados a partir do mapeamento da relação entre grupos de palavras que podem gerar pautas específicas e “acháveis” de maneira orgânica (adequadas aos crawlers, os “robôs de leitura” dos buscadores e, portanto, adequadas em técnicas de SEO - Search Engine Optimization). Aqui mais interessa perceber como “o real da palavra” se modula à medida em que o evento “fala” e os jornalistas “o ouvem” e “o redizem”.

Há, de um lado, o discurso sobre o alimento, o discurso sobre a culinária, o discurso sobre a gastronomia, o discurso sobre a gastronomia brasileira, “o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retoma sob a forma do pré-construído, o já dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra” (ORLANDI, 1999, p. 31). De outro, o discurso em enunciação. Na imbricação, o dizível, o acontecimento discursivo em que se dá a ressignificação do que se entende por “gastronomia sustentável”.

4.2 A narrativa transmídia do Fruto

A fim de que a primeira edição do Seminário Fru.to fosse divulgada, houve um esforço comunicacional desdobrado em ações online e offline, muitas vezes transmidiáticas (cf. Henry Jenkins, 2006), dado o emprego de vários tipos de mídias de forma estratégica para tratar das narrativas da marca (do storytelling da marca Fruto) de forma complementar e não finita.

A transmídia designa um novo tipo de narrativa em que a história “se desenrola por meio de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo” (JENKINS, 2009, p. 138). Esse fluxo de conteúdo é característico desta era do hiperconsumo (LIPOVETSKY, 2007); bem como da convergência dos meios de comunicação (há cooperação entre mercados midiáticos), da cultura participativa (os consumidores não consomem, apenas, mas produzem o que consomem) e da inteligência coletiva (LÉVY, 2003, p. 28): “uma

67 Se pensar-se no conceito de “formações imaginárias”, cunhado por Pêcheux (1969), as imagens que os interlocutores de um discurso atribuem a si e ao outro são determinadas por lugares institucionais de determinada “formação social”. O jornalista, por exemplo, terá sua imagem determinada pelo lugar empírico a ele atribuído por uma “formação social”. 149 inteligência distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências”.

Pode-se demonstrar, facilmente, que a maciça circulação (das palestras e conteúdos e discurso do Fruto) fluiu pelo meio digital, marcadamente pelo site oficial da marca e suas redes sociais oficiais. Eis um ponto importante a se notar: a noção do meio em que os dizeres circulam é “também determinante de sua formulação” (DIAS, 2018, p.185).

Entre janeiro de 2018 e março de 2019, segundo balanço oficial dos organizadores, divulgado em março de 2019, até ali, 250 milhões de pessoas haviam sido possivelmente impactadas pelo Fruto, havendo 1.125.094 impressões orgânicas no Instagram, mais de 18 mil interações nas redes sociais e mais de dez países conectados durante a transmissão ao-vivo, feita do auditório da Unibes Cultural em São Paulo/SP.

Em 2018, especificamente, 31 palestrantes dividiram o palco em dois dias de atividades e, em 2019, 25 palestrantes participaram da edição ao longo de três dias de atividades, sendo o último dia aberto ao público, mediante ordem de chegada e lotação do auditório.

Em ambas as edições, e também na terceira, realizada em janeiro de 2020, as palestras e outros conteúdos foram disponibilizados na íntegra no site (as publicações originais foram feitas no canal do YouTube da marca, contendo cada uma cerca de 20 minutos, em média); e trechos de conteúdos diversos nas redes sociais do evento, de forma gratuita e ilimitada e com traduções para inglês e espanhol. Em 1º de setembro de 2020, 84 palestras ainda estavam disponíveis no site https://fru.to/palestras/, o que denota a materialidade desse suporte tão “móvel, transitório, efêmero” (ROBIN, 2016, p. 399, apud DIAS, 2018, p. 187).

Em novembro de 2020, o Fruto realiza a 9ª edição, a Jornada de Sustentabilidade de San Sebastián um evento digital, em parceria com o Basque Culinary Center (em San Sebastián) “para falar sobre sustentabilidade e conectar o setor da gastronomia com algumas das realidades ambientais, econômicas e sociais que estão no horizonte, lado a lado com especialistas internacionais e em meio a uma dinâmica estimulante voltada para a ação”. Mais uma vez, a sustentabilidade abordada pelo Fruto no e pelo digital. Isso confirma a noção de que os “diálogos do alimento” e a marca “Fruto” parecem integrar a memória discursiva sobre a “gastronomia sustentável”.

Ainda há que se ponderar que, a depender de “onde” o texto institucional sobre o Fruto circulou, ora teve-se a preocupação com uma publicação ou: 1) um tipo de texto que parte do branding 150

(AAKER, 2015), ou seja, mais ligado ao “core”/ coração da marca (signo), aos seus propósitos e valores; e está conectado à noção de branded content, ou “conteúdo abundante em significado”, “potente intersecção entre marcas, cultura e pessoas”, conforme definição da fundadora e Chairwoman da Branded Content Marketing Association Patrícia Weiss (2019), uma das principais referências brasileiras no assunto.

Significa dizer que, no processo de posicionamento, marcas tornam-se publishers, ou seja, responsáveis pela criação e editoração do conteúdo - construção de conteúdo de/pela marca. Portanto produtoras (enunciadoras) de sentido e ressignificadas a partir das relações com seus consumidores/ público/ audiência. O site do Fruto e suas redes sociais (Instagram, Facebook, Instagram e YouTube) são os locais onde o conteúdo signatário circula primeiro. E, portanto, onde circulam os “seus” enunciados.

Nesse processo de formulação dedicada ao digital, não raro, as marcas costumam valer-se de estratégias do inbound marketing (2009, Halligan & Shah) ou do Marketing de Atração/ Marketing Receptivo voltado a indivíduos que procuram conteúdos específicos); e, portanto, a um conceito que remete à construção de sentidos sobre a marca Fruto a partir de uma ampla rede discursiva que se afunila conforme o recorte de interesse por soluções/ aberturas de diálogos para certos problemas (do alimento, no caso). O que depende de quem são os leitores-consumidores ou potenciais consumidores de produtos ou serviços - leads, na definição do marketing digital ou do marketing 4.0 (KOTLER, 2017):

No passado, os consumidores ouviam com atenção a transmissão de conteúdos pela mídia tradicional, inclusive a publicidade. Eles simplesmente não tinham escolha. A mídia social mudou isso. Agora, os consumidores têm à disposição um grande volume de conteúdo gerado por outros usuários, o qual eles consideram mais confiável e bem mais atraente do que aquele oferecido pela mídia tradicional. (KOTLER, 2017, p.148).

2) Assim, ora teve-se um tipo de texto mais conectado à noção de marketing (ao content marketing68, à publicidade e à propaganda, às relações públicas). Isso ocorre, frequentemente, no ambiente das redes sociais do Fruto, que não será analisado.

E, finalmente, 3) ora teve-se um tipo de texto mais conectado à noção de produção noticiosa (traduzida em press releases e outros textos de vocação jornalística). Esse último, na

68 Segundo o Content Marketing Institute (2015), content marketing é? “a marketing technique of creating and distributing valuable, relevant and consistent content to attract and acquire a clearly defined audience – with the objective of driving profitable customer action”. 151 contemporaneidade, tem-se mostrado cada vez mais multimodal, podendo estar impregnado de conteúdo de marca e/ ou de marketing ainda que o leitor-comensal/ jornalista não se dê conta.

Por isso, no contexto do Fru.to, o discurso ligado à temática “alimento” e direcionado a certos segmentos de público (gastrônomos, cientistas, acadêmicos, empresários da indústria de alimentos, produtores de alimentos e outros segmentos da cadeia de alimentos), num primeiro momento, poderia ser descrito como conteúdo de marca (branded content) sobre “o alimento” e seus “diálogos” produzido pelos idealizadores (Atala e Ribenboim). Acolhe-se aqui ainda a noção de branded content como estratégia contemporânea ao envolvimento e atração de novos consumidores. Pois:

Desde o início deste novo milênio, os conteúdos de marca centralizados principalmente em torno de conhecimentos, informações ou entretenimento estão em pleno desenvolvimento, integrando um programa de marca (lançamento de produto, product placement/product integration, criação de show e outros eventos etc. – funded programming) em ofertas midiáticas tradicionais (ficção, reportagem, jogo, reality show...), isto é, numa trama existente (branded content) e em tramas/histórias, cases editados ou produzidos, por iniciativa própria, pela marca (brand content). (ZOZZOLI, 2010, p. 14).

E toma-se esse conteúdo de marca, publicado no site oficial do evento, por “memória de arquivo”, sendo esta a memória institucional, a que não esquece e alimenta a ilusão da “literalidade” (ORLANDI, 2015, p. 4). É a “prova” digitalizada, ainda que volátil, de que o Fruto existiu.

No momento de divulgação do evento, anterior ao acontecimento, seria então traduzido pela assessoria de imprensa em “notícia” para cumprir a função fazer-se comunicar com a rede de jornalistas que compõem o mailing de imprensa das comunicações da edição.

Esquematicamente, portanto, tem-se:

De uma rede discursiva dos idealizadores (complexidade de PS’s e FD’s no interdiscurso) –> tem- se o conteúdo de marca (rede parafrástica de sentidos) –> desdobrada em conteúdos de divulgação do evento para fins de publicidade, marketing, jornalismo, relações públicas (intradiscurso adequado para “diversos públicos” ou “segmentos”).

Considerando-se o público-alvo do evento, há que se ponderar, ainda, sobre a especificidade ou segmentação do conjunto de palestras elencadas ou “diálogos do alimento” propostos. Por isso, não se pode ignorar a modulação/ adequação discursiva do evento (incluem-se aí apagamentos, silenciamentos, equívocos, não-ditos) e, portanto, de suas divulgações para arquétipos de 152 participantes reais mais específicos – as buyer personas, termo muito comum ao jargão do marketing de conteúdo/ content marketing e afeito ao universo do design thinking, área do design estratégico norteada pela percepção do usuário ou do consumidor, de acordo com Tim Brown (2010).

Neste sentido, apreende-se, aqui, a escolha dos palestrantes e temas conforme grupos de usuários/consumidores que, por razões diversas, se identificam com o discurso de um certo grupo de palestrantes e, também por razões diversas, já concentram em si alguns pré-construídos.

Conforme Orlandi (2001, p.31), a “memória discursiva” é “o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra”. O pré-construído, exterior e anterior ao sujeito, determina o discurso no interdiscurso.

Diante de toda a fundamentação teórica, pode-se conjecturar que a pensata sobre o que “os outros” vão pensar sobre o “discurso do Fru.to” tende a aparecer no press release, cuidadosamente preparado para que não haja ruído de comunicação.

O “sujeito discursivo” é constituído pela inscrição do enunciador em uma dada formação discursiva (PECHÊUX, 2009) em dada condição de produção. A fim de nortear-se a noção produção do release (processo de produção textual do texto jornalístico, técnico) pode-se dizer que o conteúdo de marca é pensado, também num primeiro momento, para ao menos quatro grandes grupos ou segmentos de público e dada uma certa conjuntura e ideologia (que evidencia a relação entre palavra e sentido) no campo gastronômico (BOURDIEU, 1964):

PS1) gastrônomos (consumidor de uma cozinha fina e elaborada, conforme Brillat-Savarin (2005), ciente da complexidade da “cadeia do alimento”);

PS2) acadêmicos (comunidade multi e interdisciplinar, composta por cientistas e pesquisadores, que passa a ocupar o ambiente acadêmico dos estudos da gastronomia no Brasil a partir de 1999);

PS3) comunicadores (jornalistas e demais produtores de conteúdo dedicados à cobertura da editoria gastronomia ou da editoria cultura ou de outras editorias jornalísticas interessadas pela pauta “sustentabilidade”);

PS4) chefs de cozinha (líderes da cozinha criativa, da alta gastronomia, tal Atala e Ribenboim, simbolizam o saber gastronômico). 153

Assim sendo, tem-se o que se entende aqui por “texto de divulgação”, um discurso inicial sobre o Seminário Fruto 2018 aprovado pelos idealizadores, dedicado a atingir diversos leitores inscritos em posições-sujeitos (PS’s) delimitadas em diferentes formações discursivas (FD’s). Esses quatro grandes grupos ou segmentos de público podem ser considerados, então, como os “leitores ideais” configurados no texto pelo jogo das antecipações produzidas nos processos discursivos.

Apenas a título de exemplo mínimo, tem-se: se o leitor-comensal é humano, depende do alimento para sobreviver e agrega certa noção do que são “alimento” e “cadeia do alimento” (o que, como demonstrou-se, depende da “ideologia” e da “educação do gosto”), ele é interpelado pelos diversos discursos que constituem o Fruto, o que afeta o gesto de leitura e interpretação que realizará em relação ao “consumo do alimento” e à “cadeia do alimento” (ambientalista, cozinheiro, gastrônomo, consumidor consciente, empresa sócio responsável, mídia, idealizador etc).

Parece mais prudente, por isso, explorar-se a noção de efeito-leitor de gastronomia, segundo Orlandi (2005, p. 151): “ao produzir um texto, o autor faz gestos de interpretação que prendem o leitor nessa textualidade constituindo assim ao mesmo tempo uma gama de efeitos-leitor correspondente.”

Assim, para que se organize a análise dos textos jornalísticos sobre o Fruto, tem-se alguns possíveis leitores-comensais (consumidor de alimentos e de informação) em consideração, com base na fundamentação teórica proposta até aqui: “sujeito gastrônomo” (PS1->), conhecedor do campo gastronômico e do discurso gastronômico; “sujeito acadêmico” (PS2->), conhecedor dos campos jornalístico e gastronômico, “sujeito comunicador” (PS3->), conhecedor do campo jornalístico e, se especializado em gastronomia, do campo gastronômico; “sujeito chef de cozinha” (PS4->, conhecedor dos campos jornalístico e gastronômico.

Assim, pode-se dar início à análise do texto pelo press release do Fruto de 2018 a fim de detectar- se nele a materialidade do discurso sobre o evento e os indícios sobre a noção de relevância da gastronomia brasileira para a promoção de uma gastronomia mais sustentável.

Não é objetivo desta análise, porém, identificar como foram e serão compreendidos, pelos mais distintos usuários/ leitores-comensais, à exceção dos jornalistas/produtores de conteúdo, os efeitos de sentido percebidos nos mais diversos momentos de acesso aos textos sobre o Fru.to 2018 – inicialmente, em variados sites e veículos digitais de informação que cobriram ou repercutiram o evento, aqui tendo-se 80 “possibilidades iniciais de leitura”: textos produzidos sobre a edição e que foram clipados (de clipagem, de “clipping”, de recorte, em inglês) pela assessoria do evento 154 em quatro momentos distintos: pré-evento, durante evento, durante a visita à Fazenda Santa Julieta Bio e pós-evento.

Toma-se a noção de que o circuito constituição/formulação/circulação pode vir a ser alterado pelas diferentes formas de memória e, conforme Orlandi (2015), também “afetam a função-autor e o efeito-leitor”.

Assim sendo, desde a constituição do discurso sobre o Fru.to e a produção de um texto jornalístico cuja função primordial seria orientar comunicadores sobre o objetivo do evento, por meio da assessoria de imprensa – produção do press release -, tem-se uma cadeia de gestos de interpretação e, portanto, de modos de interferir no mundo por meio da interpretação. De antropogarfar para gastronomar.

Figura 14 – Felipe Ribenboim e Alex Atala na abertura do Seminário Fruto – Diálogos do Alimento de 2018, considerada a edição “zero” do evento. Foto: Érica Araium.

155

4.3 A promessa de gosto do Fruto a partir do release

Para que se possa analisar as formações discursivas que constituem o interdiscurso e o discurso do Fru.to, toma-se o texto principal do release do evento, transcrito a seguir (grifos nossos):

Título: Seminário “Fruto – Diálogos Do Alimento” reunirá personalidades nacionais e internacionais em janeiro de 2018

Intertítulo: Evento discutirá as melhores estratégias e alternativas para a produção de alimento bom, limpo e justo nos próximos anos

Parágrafo 1: Com objetivo de discutir alternativas para alimentar o planeta inteiro, o chef Alex Atala e o produtor cultural Felipe Ribenboim, com a chancela do Instituto ATÁ, produzirão um evento inédito em São Paulo, com a presença de 30 personalidades dos ramos da sustentabilidade, ciência, gastronomia e representantes da indústria para debater estratégias sobre como levar alimento de qualidade a uma população mundial que pode chegar a 8,6 bilhões de pessoas em 2030, de acordo com a ONU.

Parágrafo 2: Com data marcada para acontecer nos dias 26 e 27 de janeiro de 2018, o FRUTO receberá 300 convidados e será transmitido para o mundo inteiro pela internet pelo site http://fru.to. As discussões serão divididas em três grandes eixos: culturais, biológicos e sociais, temas que permearão as apresentações dos participantes. O seminário pretende consolidar o Brasil como principal celeiro dessa discussão, envolvendo todos os seus atores, de pequenos produtores à indústria de alimento, criadores de hortas urbanas a comunidades indígenas, antropólogos a agrônomos e engenheiros genéticos.

Parágrafo 3: A escolha da capital paulista para a realização do evento não é mero acaso. O FRUTO percebe a cidade como um dos poucos centros mundiais que reúne esses diferentes protagonistas, com uma crescente oferta orgânica, projetos de hortas urbanas, organizações não-governamentais engajadas na questão alimentar, chefs de cozinha trazendo para mesa essa discussão, além de projetos voltados para a origem do alimento.

Parágrafo 4: Conhecer um alimento é desvendar seus ingredientes, que carregam consigo uma história, um processo produtivo e tecnológico, relações culturais e interações sociais.

Parágrafo 5: A programação completa pode ser encontrada aqui: http://fru.to/

Serviço FRUTO | DIÁLOGOS DO ALIMENTO Local: Unibes Cultural – Rua Oscar Freire, 2.500, Sumaré, São Paulo Data: 26 e 27 de janeiro de 2018 Capacidade: 300 convidados Transmissão: Ao vivo pela internet

[Boilerplate]

Sobre o Instituto ATÁ

O Instituto ATÁ é a primeira entidade brasileira a se dedicar exclusivamente à relação do homem com o alimento. Iniciativa de um inédito e diverso grupo de lideranças da sociedade civil e do mundo empresarial, incluindo nomes como o chef Alex Atala, Beto Ricardo (Instituto Socioambiental), Roberto Smeraldi (Instituto ATÁ) e Georges Schnyder (SlowFood e Editora 4Capas), a missão do Instituto é “aproximar o saber do comer, o comer do cozinhar, o cozinhar do produzir, o produzir do ambiente”. Nesse quadro, procura valorizar e fortalecer a diversidade de territórios e saberes, o ato de se 156

alimentar como fator integrante da cultura, as melhores práticas de sustentabilidade na produção e no consumo, a limitação de perdas e desperdício, a qualidade e identidade das cozinhas do Brasil no mundo, a segurança alimentar e nutricional, a tecnologia e inovação na produção, transformação e distribuição do alimento e a valorização de negócios de base familiar e comunitária. Entre os projetos de destaque da entidade estão: a marca Retratos do Gosto, a pimenta baniwa (em parceria com o ISA), o projeto Gastronomia nos Presídios, os arrozes especiais do Vale do Paraíba, mel de abelhas nativas, cogumelos comestíveis brasileiros, Galinhadas beneficentes e outros. Mais informações em: www.institutoata.org.br www.facebook.com/institutoata.

Sobre Felipe Ribenboim

Formado em gastronomia, trabalhou em restaurantes de São Paulo e da Espanha - elBulli e Arzak - e tem prática como personal chef. Desde 2004 empreende investigações em gastronomia, como expedições em cultura e gastronomia, iniciadas com a região amazônica [Projeto Biomas Brasileiros]. De 2008 a 2011 foi sócio-proprietário e chef do restaurante Dois | cozinha contemporânea, em São Paulo. Em 2012 inaugura o segmento de cultura alimentar na Base7 Projetos Culturais, empresa de produção cultural com atuação no Brasil, América Latina e Europa. Foi responsável pela concepção e texto da exposição “Alimentário – arte e construção do patrimônio alimentar brasileiro”, apresentada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM RJ, em 2014; no Museu da Cidade – OCA, em São Paulo; e na Expo Milão, na Itália, ambos em 2015 e pela concepção e curadoria da exposição Sergio Coimbra – panoramas da comida no Brasil, de junho a agosto de 2016 no espaço Unibes Cultural. Responsável pela concepção e realização da exposição Satoyama | Yoshihiro Narisawa e Sergio Coimbra, na Japan House SP, em 2017, além de Coordenador no projeto Arte & Sabor 2017, do Instituto Tomie Ohtake, que utiliza o alimento, a arte, cultura e educação com agentes transformadores para 70 merendeiras conveniadas do município de São Paulo, com impacto em 10 mil crianças.

Sobre o chef Alex Atala

Chef e proprietário dos restaurantes D.O.M., Dalva e Dito, Açougue Central e Bio – Comer Saudável, Alex Atala é reconhecido internacionalmente por sua cozinha autoral brasileira e por seu trabalho de valorização dos ingredientes e produtores de todo o Brasil. Em 2013, entrou para a lista das 100 personalidades mais influentes da “Revista Time”. Em sua trajetória internacional, além de dezenas de premiações e participações em eventos, protagonizou um dos episódios da segunda temporada da prestigiada série “Chef’sTable”, da Netflix. Em abril de 2013, criou o Instituto ATÁ com uma equipe multidisciplinar que reúne fotógrafos, empresários, publicitários e um antropólogo, com o objetivo de aproximar o saber do comer, o comer do cozinhar, o cozinhar do produzir, o produzir da natureza. Entre outros projetos, o instituto é responsável pelos boxes de biomas do Brasil do Mercado Municipal de Pinheiros, em São Paulo.

Realização: Instituto Atá. Patrocínio: Consulado da Mulher, Fazenda da Toca Orgânicos, Apex Brasil. Parceria: Unibes Cultural. Apoio: Audi.

Esse texto, organizado em press release, mobiliza uma série de gestos de interpretação sobre “o que se poderia esperar” da edição inaugural do Seminário Fruto. Destacam-se dele alguns enunciados que provocam uma sequência de interpretações possíveis sobre: 1) as pautas que interessariam aos jornalistas sobre o “alimento” e 2) sobre o discurso do Fruto, que, crê-se, participará da constituição do arquivo do que se apresentará como uma memória do dizer sobre o 157

Fruto. Dessa entrada, passa-se à reflexão sobre a cobertura jornalística do Fruto e os efeitos de sentido por ela provocados para o conceito de “gastronomia sustentável” e, portanto, à interferência no processo de “consumo de alimentos”.

Procura-se, também, conjecturar se os textos inaugurais sobre o Fruto (oriundos, portanto, da cobertura de imprensa) podem vir a influenciar o consumo de uma “gastronomia” mais “brasileira” e “sustentável”. Se, enquanto acontecimento histórico e jornalístico, o Fruto mobiliza novas séries de enunciados gastronômicos sobre a “gastronomia sustentável” em função da ressignificação dos já-ditos sobre “alimento” e “sustentabilidade” na gastronomia praticada no Brasil, configurando- se “acontecimento discursivo”.

Promove-se um gesto de leitura sobre/com uma das vozes do Fruto 2018: a dos idealizadores. Uma das porque, haja visto, o evento é composto por 31 palestras e nelas também estão mobilizadas formações discursivas em que o sujeito de linguagem se inscreve a fim de que suas palavras tenham sentido (ORLANDI, 1996). Que “se complementa”, por assim dizer, nas falas dos idealizadores ao longo em entrevistas e afins.

4.3.1 A análise da constituição do discurso da marca Fruto

Parte-se à análise mais atenta da parte principal do release, constituída por título (T), intertítulo (IT) e cinco parágrafos (P1, P2, P3, P4, P5). O “serviço” e o boilerplate (o “sobre”, resumo sobre a história do assessorado, no caso os idealizadores) não serão comentados neste momento.

A partir do release do Seminário Fruto de 2018, nota-se um lead dividido em dois parágrafos: a resposta às perguntas constitutivas “o quê”, “por quê”, “quem” e “para quê” aparecem no P1.

Destaque aqui ao “quem”, que tende a levar o leitor-comensal às memórias discursivas do sujeito gastrônomo e do sujeito chef de cozinha: “o chef Alex Atala e o produtor cultural Felipe Ribenboim, com a chancela do Instituto ATÁ”.

Curioso notar a distinção, em P1, que se faz entre “os ramos” das “personalidades” participantes e suas nomeações: “sustentabilidade” aparece primeiro, dando ênfase a PS1 (ver p.152); “ciência” e “gastronomia”, embora sequenciais, denotam a diferenciação dos campos acadêmico e artístico, dando ênfase, de forma diversa, principalmente às PS2 e PS4. Os “representantes da indústria” encerram os “ramos” destacados, levando à PS1, onde se inserem os “coprodutores” ou “novos 158 consumidores” cientes de seu papel na cadeia do alimento (PETRINI, 2009), noção interessante à PS3, dadas as condições de produção do discurso sobre o seminário e às demarcadas expressões “alternativas” (palavra comum aos colóquios, aos debates e que dá a ideia de processo de escolha) e “estratégias” (palavra comum ao discurso do ambiente dos negócios e das disputas, de forma geral, próxima à noção de “resultado”).

Ainda no P1, a expressão “chancela” confere à guisa de autoridade e reconhecimento do Instituto ATÁ que, em seu manifesto inaugural (2013), publicado em seu site oficial/sua plataforma de conteúdo, deixa evidente seus intuitos (eco)sustentáveis e situa o leitor da importância da necessidade de ressignificação da relação homem-alimento:

A relação do homem com o alimento precisa ser revista. Precisamos aproximar o saber do comer, o comer do cozinhar, o cozinhar do produzir, o produzir da natureza. Agir em toda a cadeia de valor com o propósito de fortalecer os territórios a partir de sua biodiversidade, agrodiversidade e sociodiversidade, para garantir alimento bom para todos e para o ambiente”. (Site do Instituto ATÁ, disponível em: Acessado em: 01. out. 2018).

Os prefixos bio, agro e sócio remetem aos pilares “ambiental, econômico e social”, respectivamente, da sustentabilidade (ELKINGTON, 1997), podendo-se aproximar o termo “agrodiversidade” do equivalente “produção agropecuária economicamente viável”. A sequência de verbos “comer-cozinhar-produzir”, situa a natureza (no sentido de “naturalidade”, preconizada por Petrini (2009) como “meio” ao comestível; e a frase “a relação do homem com o alimento precisa ser revista” relativiza a dialética “natureza-cultura”/ “cru-cozido” (LÉVI-STRAUSS, 1964; ATALA, 2008).

Reside aí, arrisca-se dizer, o croqui/ esboço do que se entenderia por uma “alimentação sustentável” mediada pela reconexão do “homem” com a “comida” - equivalente de “cultura” (Montanari, 2015). Tem-se um esboço do que seria o que se entende, aqui, por “antropogarfar” e “gastronomar”.

Assim, tem-se na expressão “chancela do Instituto ATÁ” do P1 do release uma série de FD’s e atravessamentos de sentido, uma série de já-ditos conhecidos por cozinheiros profissionais e gastrônomos. E pela mídia especializada em gastronomia até certo ponto – ainda que a memória metálica/ institucional colabore ao refrescar de memória.

Tem-se, arrisca-se dizer, a “atualização” dos sentidos de “alimento” do manifesto de 2013 do ATÁ e, conjectura-se, a proclamação de um “novo manifesto”, agora “público”, feito em comum acordo 159 pelos participantes, por intermédio do Fruto – sentido que se verá reverberar no documento tomado como desfecho do Fruto 2018, denominado “10 sementes”, redigidas pelo jornalista ambiental Claudio Ângelo, autor do livro “Espiral da Morte”, ganhador do Prêmio Jabuti em 2017 e que traz um compêndio dos desafios a se enfrentar nas próximas décadas.

Esse perscrutar, necessário à compreensão do Instituto ATÁ, resgata a análise do conteúdo de marca/ release do Fruto de 2018. E retoma-se a pergunta sobre “o quem”: a quem seria destinado o evento? No trecho “o FRUTO receberá 300 convidados e será transmitido para o mundo inteiro pela internet pelo site http://fru.to”, explicita-se a restrição ao acesso presencial e à democratização do acesso virtual/ digital on time e on demand aos debates promovidos.

Em paráfrase, pode-se pressupor que a cobertura jornalística, neste caso, seria dada presencialmente caso o jornalista/ influencer/ veículo fosse convidado pelo Fruto ou entrasse em contato com os realizadores por meio da assessoria de comunicação. Outra opção seria a fazer- cobertura digital, ou seja, o produtor de conteúdo que desejasse acompanhar o evento poderia fazê- lo como qualquer outro usuário/ leitor “virtual”, nos dias e horários das transmissões do Fruto, com a desvantagem de não participar de entrevistas ou coletivas de imprensa.

Essa distinção norteia algumas possibilidades de apuração de pautas pelos jornalistas: 1) remota ou presencialmente, 2) integral ou parcialmente (todas as palestras dos dois dias de evento ou somente algumas), 3) prévia ou posteriormente (antes e durante o evento e/ou após o evento, com ajuda das redes sociais e do canal de transmissão oficiais – YouTube). Ainda que não se saiba o contexto exato da produção (apuração e escrita) das reportagens acolhidas para a constituição do corpus discursivo, tem-se alguns parâmetros de formulação. Não se analisará nesta pesquisa a “capivara”69 de veículos ou jornalistas de forma abrangente. Contudo, tem-se noção pré-concebida de que o mailing selecionado para a cobertura inclui profissionais aptos a compreender o jargão gastronômico.

Assim, da noção histórica da gastronomia, nota-se, já no intertítulo do release do Fruto, a expressão “produção de alimento bom, limpo e justo” (referência aos pilares do movimento Slow Food, engendrado pelo jornalista Carlo Petrini. Neste enunciado, tem-se a aproximação entre o conceito de “ecogastronomia”, comum ao discurso dos cozinheiros mais conectados às iniciativas sustentáveis e completamente colado aos preceitos do movimento Slow Food, que chama a atenção ao “somos o que comemos” (PETRINI, 2009, p. 36). Pois:

69 Jargão policial para “folha corrida”. Referências. Histórico. 160

O alimento – e um estudo cuidadoso de como é produzido, comercializado e consumido – é um elemento capaz de abrir nossos olhos para o que nos tornamos e para onde estamos indo. Permite-nos interpretar os complexos sistemas que governam o mundo e as nossas vidas – esta é a tese que quero arriscar -, possibilitando-nos ainda reconstruir as bases para um futuro sustentável. (PETRINI, 2009, p. 36-37, grifos nossos).

Não à toa, a frase “como levar alimento de qualidade a uma população mundial que pode chegar a 8,6 bilhões de pessoas em 2030, de acordo com a ONU”, tradutora do “para quê” no lead jornalístico do release do Fruto, faz referências aos arquivos de gastrônomos e acadêmicos, com vistas ao discurso ambientalista, inaugurado, contemporaneamente, nos anos 1960/1970 e que reverbera, como lá, em documentos da ONU, neste “presente” das admoestações acerca do “futuro” e do semear de amanhãs.

Neste sentido, nota-se que a expressão “alimento de qualidade” presente no release reverbera tanto à definição de gosto engendrada por Bourdieu (bom gosto em decorrência do habitus) quanto à noção de “qualidade” preconizada por Petrini, relacionada às noções de naturalidade, frescor, respeito à biodiversidade e ao conhecimento tácito do camponês/ trabalhador do campo, bem como à complexidade da gastronomia. E que, juntamente aos termos “gosto”, “típico” e “tradicional” é um dos mais maltratados da literatura culinária (PETRINI, 2005, p.93).

Já a expressão “alimento bom”, embora carregue aura de subjetividade, alude ao pilar “bom” segundo o Slow Food - que abre vistas à noção de que a categorização em bom ou ruim termina por reforçar as diferenças sociais quando o “bom” “depende de”. No release tem-se a alusão ao bom como objetivo/meta, igualmente subjetivo e relativizado pelas relações sociais (o que é bom para uma cultura e uma posição sujeito pode não ser para outra cultura e outra posição-sujeito, em função da ideologia que abraça emoldura cada uma das formações discursivas. Algo nítido na visão holística da gastronomia/ do comer que propõe o movimento Slow Food:

Assumindo essa relatividade in totum, o conceito pode, portanto, significar respeito pelas outras culturas, pela diversidade. Esse respeito deve guiar qualquer contanto que tenhamos, qualquer intervenção voltada para o sustento ou para o intercâmbio com os outros, cada vez que experimentamos um alimento em outro país. Ninguém pode julgar a alimentação de outra pessoa com base em seu próprio gosto "cultural"; se considerarmos válida a descrição da comida como linguagem, ela se torna instrumento de comunicação e, para julgá-la, é preciso aprender a reconhecer as categorias de bom que a codificaram, como uma língua. É necessário aprender outras linguagens culinárias. (PETRINI, 2005, p. 108-109). 161

Em seguida, o “leitor-comensal” se certifica da programação do evento, dividida em três eixos: cultural, biológico e social que correspondem à nomeação dada aos pilares do tripé da sustentabilidade (ELKINGTON, 1997) e, analogamente, podem ser relacionados aos pilares do Slow Food (PETRINI, 2005). Aqui, tem-se referência direta ao discurso ecogastronômico (PS1) e aproximação com discurso acadêmico (PS2), dado o teor científico do evento, explícito no trecho: “o seminário pretende consolidar o Brasil como principal celeiro dessa discussão”.

“Celeiro do mundo” é expressão memorável, apanhada à deriva e que remonta ao discurso agrícola brasileiro, desde a época do Estado Novo, de Getúlio Vargas (1937-1945), marcadamente. Há na expressão “celeiro” certa ambiguidade ou equivocidade - a língua fala do traço da posição ocupada pelo sujeito de linguagem e das formações discursivas em que seu dizer se inscreve para produzir determinados sentidos. As condições de produção, sabe-se, podem haver influenciado a escolha do termo. Segundo Lacan (1975 [1986, p. 302]), “nossas palavras que tropeçam são as palavras que confessam. Elas revelam uma verdade de detrás”. No parágrafo do release, ela intenta se referir ao equivalente “celeiro de ideias” - ou “ágora” (no sentido de local de confluência de pessoas).

O release destaca, ainda no P2, o público-alvo ao qual se destina, ao usuário que almeja integrar em seus debates: “todos os seus atores, de pequenos produtores à indústria de alimento, criadores de hortas urbanas a comunidades indígenas, antropólogos a agrônomos e engenheiros genéticos”. Pode-se conjecturar que a diversidade de discursos produzidos para que o evento seja múltiplo e transversal e atinja a diversas personas almeja ser ampla. Interessante notar que a expressão “atores”, comum aos discursos sobre “a alimentação” e sobre “o agronegócio” abre a enumeração.

Tem-se ainda, no parágrafo terceiro, P3, a menção à razão da escolha da cidade de São Paulo para sediar o evento: a presença de todos os atores dos eixos cultural, biológico e social (um gesto de interpretação permite dizer da cadeia do alimento), considerados protagonistas. “O Fruto percebe a cidade como um dos poucos centros mundiais que reúne esses diferentes protagonistas” e destaca o papel dos chefs de cozinha como educadores do gosto responsáveis pelo diálogo sobre o alimento à mesa - ou pelos diálogos comestíveis à mesa, como preferimos aqui denominar essa relação entre a gastronomia e a comunicação intermediada pelos cozinheiros. Conforme aparece no enunciado: “chefs de cozinha trazendo para mesa essa discussão”. E aí tem-se um importante devir “cozinheiro profissional”.

Uma das muitas memórias que contribui à formação dos sentidos desse enunciado conduz o leitor aos anos 1920, ao discurso modernista, ao clima da Semana de Arte Moderna, à Paulicéia 162

Desvairada, ao artista agregador “ciente de que não há arte neutra”. Ao “perfeito cozinheiro das almas deste mundo”70. À retórica de Oswald de Andrade, à antropofagia, ao Manifesto Antropófago (1928) e seus aforismos que parecem demarcar ritmo “criando uma partitura que se apresenta não como um texto corrido em prosa, não como artigo de jornal ou revista – mas como um cardápio”, conforme análise minuciosa de Ana Beatriz Sampaio Soares Azevedo em “Antropologia - Palimpsesto Selvagem”, 2012). O chef de cozinha que cita o release do Fruto seria também perscrutador, sempre no encalço da resposta para: “tupi or not tupi”? Quem é “o brasileiro”? Pois a postura, também aqui:

não é estacionar no discurso que “define” o brasileiro e parar assim na sua definição (é “x” ou é “y”), mas pensar esse discurso que define o brasileiro como um “sintoma”, como um discurso que é constitutivo dos processos de significação que constituem o imaginário pelo qual se rege a nossa sociedade, ou seja, como ela nos significa. (ORLANDI, 1990, p.54-55).

Como mesmo situa Orlandi (1990, p.56), mais importa o discurso sobre o Brasil que o discurso do Brasil para definir-se o “brasileiro”. Sendo assim o que os chefs de cozinha de São Paulo falam sobre e com a gastronomia (sendo ela a “sustentável” ou a “brasileira” ou a “autoral” etc. se partir- se às nomeações), o que contribui muito mais à compreensão dos sentidos sobre a gastronomia.

Pode-se antropogarfar acerca do que move a intelligentsia paulistana, bem como sobre o contraste entre as noções de nacionalismo e regionalismo e outras distinções de localidade (bairrismo etc.) construídos na capital paulista - febril e industrializada – desde o início do século XX. Ou, precisamente, no discurso vanguardista/ modernista de um século atrás (1920-2020), à discutida e efêmera noção de “brasilidade” na “paulistanidade” (da representatividade do brasileiro no gesto do paulistano). Na Lira Paulistana, na identidade simbólica de São Paulo.

“Trazer para a mesa a discussão” diz do “falar” do cozinheiro. Ao apresentar um “prato”, da transição entre a estética do gosto (LUNARDELLI, 2012) e a ideologia que apura, silencia e tempera as escolhas alimentares e a composição técnica de camadas de sabor, aroma, cor, textura etc.

Passa-se a pensar, neste trecho, que ao passo em que almeja encontrar uma certa linguagem estética em transitoriedade à artística, complexa e muito particular – a linguagem gastronômica

70 Título de um diário feito em coletivo na garçoniere paulistana de Oswald Andrade. 163

(LUNARDELLI, 2012, p.87), interessará ao cozinheiro a diversidade, conceito presente na rede de sentidos e na rede de criação, portanto muito afetada pelos já-ditos e pelo domínio do saber:

Pensar as relações entre percepção, memória e a criação da linguagem gastronômica demanda levar em conta a unidade entre sensação e pensamento. Aquela admiração primeira com um prato, com um restaurante, é que nos faz recordar incessantemente da inesgotável riqueza de sentido do vivido, porque, como bem coloca Merleau-Ponty (1999), o visível é o que se apreende com os olhos, o sensível o que se apreende pelos sentidos. (LUNARDELLI, 2012, p.87).

No discurso do cozinheiro profissional brasileiro está a noção de que é ele sabedor da Pindorama. Também que, aquele que almeja ser criativo (inventivo) precisa dialogar sobre/com o alimento em busca da compreensão de suas muitas camadas, de seu “léxico” e “gramática”, conforme Montanari (2008):

Enfim, a comida adquire plena capacidade expressiva graças à retórica, que é o complemento necessário de toda a linguagem. Retórica é adaptar o discurso ao argumento, aos efeitos que se deseja suscitar. Se o discurso é a comida, a retórica é o modo como ela é preparada, servida, consumida. (MONTANARI, 2008, p. 170).

Em suma, graças à compreensão de seu papel antropofágico, por assim dizer, de coprodutor do alimento ou novo consumidor (PETRINI, 2009), de alguém que pondera sobre as escolhas que faz, o Fruto apresenta os cozinheiros (brasileiros) como sujeitos artísticos-performáticos que dão forma ao objeto “gastronomia”, uma prática social, artística e discursiva, na medida em que falam à mesa sobre ela e sobre suas múltiplas formações discursivas. Falar, entre outras coisas, sobre projetos voltados para a “origem do alimento”, como cita o release, significa falar sobre a “rastreabilidade” do alimento, falar da natureza e da cultura, falar do “cru ao cozido”.

Assim, o aparente past up de falas de especialistas se converte em uma rede de significados que produzem conhecimento sobre o futuro da alimentação e da gastronomia, algo que vai muito além do formato de receituário dividido no palco, prática comum a eventos gastronômicos.

Ao final da parte principal do release, no P5, tem-se ainda uma espécie de “moral da história”, ou moral do evento, por assim dizer. O verbo “conhecer” aparece relacionado à noção de identificação não de matérias-primas ou insumos, mas de ingredientes - há uma carga de “gosto como experiência” que depende da noção da carga cultural que o alimento carrega (PERULLO, 2013); ou, como consta no release, de que o alimento carrega em si “uma história, um processo produtivo 164 e tecnológico, relações culturais e interações sociais”. Há, neste trecho, referências diretas ao Movimento Slow Food e ao conceito “sabores e saberes”, em que sabor remete ao prazer, ligado à esfera sensorial individual (e, portanto ao paladar e ao gosto cf. Savarin, 1865); e saber remete à ordem cultural, ao know-how e à “história das comunidades” (PETRINI, 2005, p.98).

Ao longo de toda esta discussão, o que se pretendeu foi descrever a materialidade significante do discurso da marca para compreender-se o processo discursivo do Fruto.

4.4 O texto jornalístico sobre o Fruto – o “gosto do Fruto”

Da análise inicial dos textos jornalísticos que compõem o arquivo sobre a primeira edição do Fruto, depreende-se que, não raro, na fase de publicações jornalísticas pré-evento (entre a coletiva de imprensa realizada em 2017 e o início do evento, em janeiro de 2018), houve cópia do release (parte ou todo) ou paráfrase da fala dos idealizadores/ da marca. Neste caso, há um retorno ao “gosto do Fruto segundo o Fruto”. Fala-se “mais do mesmo”, do que interessa ao Fruto que seja dito.

Já a polifonia, para além do ingênuo sentido da pluraridade de vozes (ou quem está “entre aspas” no texto), mas da pluraridade de pontos de vista, de vozes sociais que dialogam (Bahktin, 2006), aparece quando o texto se revela resultante de uma apuração mais analítica, da ponderação sobre os já-ditos e correlação entre as fontes de informação (formam-se então redes de sentido), com valorização ou reprodução de já-ditos, mas recheada por deslocamentos e ressignificações, por diferenças. Ele revela, ainda, o estilo de seu autor. Nalguns casos, nota-se certos juízos de gosto, o emprego de adjetivações, ironia fina, humor próprios da crônica, da crítica. Isso ocorre, no Fruto, em relação aos textos jornalísticos publicados na fase pós-evento: por isso foi-se neles à busca de enunciados sobre a temática “alimento” no sentido da “sustentabilidade”.

A análise dos textos foi feita com consciente distanciamento do objeto (Fruto) ainda que, na segunda (2019) e terceira edições (2020), esta pesquisadora também tenha participado do evento (mediadora do Diálogo do Alimento sobre Educação; convidada do evento pela pesquisa em andamento). Durante a primeira edição (2018), Érica Araium participou do evento como jornalista convidada (por Diálogos Comestíveis) e realizou duas reportagens: uma pré e uma pós-evento.

Como se procedeu na etapa inicial de leitura dos textos? 165

A partir do clipping, foi-se à verificação de quais links para as reportagens ainda se encontravam ativos, ou seja, que ainda direcionavam o leitor às páginas publicadas - como o evento ocorreu em 2018, essas poderiam ter sido deletadas, ser posteriormente atualizadas etc., o que afetaria a leitura e a análise. Fez-se a impressão das reportagens em arquivo do tipo .PDF, com a intenção de criar- se um arquivo físico, acessível e “recuperável”. “Se não imprimimos constantemente tudo (ato que seria a negação do próprio medium), as informações se perderiam no deserto” (ROBIN, 2016, p.399 apud DIAS, 018, p.187).

Do total de 64 reportagens “validadas” (em 23 de março de 2020) e constituintes do arquivo textual. Dessas, 28 (as do grupo “pós-evento”) foram inicialmente consideradas para o que se chamou de análise aprofundada e, daí, ao recorte de enunciados relacionados à temática “alimento” no sentido de “sustentabilidade”.

Definiu-se um conjunto de palavras a serem buscadas nos textos validados, conforme a figura a seguir:

Figura 15 - Expressões relacionadas ao discurso gastronômico, ao discurso sobre a ecogastronomia, ao discurso sobre a gastronomia sustentável e ao discurso do Fruto buscadas nos textos jornalísticos durante a primeira etapa de leitura. Fonte: a autora.

166

Essas palavras, relacionadas ao “discurso gastronômico”, ao discurso sobre a “ecogastronomia”, ao interdiscurso sobre a “gastronomia sustentável” e ao interdiscurso do Fruto foram subdivididas em três grupos, como ilustra a figura: “consumo” (relacionada ao eixo econômico da sustentabilidade), “ecogastronomia” (relacionada ao eixo ambiental e atrelada ao que preconiza o movimento Slow Food) e “gastronomia brasileira contemporânea” (para situar-se, inicialmente, o eixo social - antropológico-cultural).

Entendeu-se, a priori, que o uso dessas palavras no contexto de cobertura jornalística/ especializada do Fruto poderia conduzir o leitor-comensal à compreensão dos sentidos dos eixos abarcados pelo evento (cultural, ambiental e social), daí a importância de verificar-se a menção das mesmas pelos jornalistas.

As expressões “diálogo” e “diálogos do alimento” representariam a noção de “projeto gastronômico” peculiar ao “processo de criação dos chefs de cozinha” (idealizadores) e que se ampara no objetivo do evento de promoção de troca de informações entre participantes - palestrantes, audiência online, audiência offline, leitores dos textos jornalísticos dos veículos que procederam a cobertura da primeira edição do seminário, leitores futuros (utilizadores dessas expressões em mecanismos de busca da web, caso do Google).

Essa contagem de palavras foi realizada com ajuda de uma máquina (computador) e programas simples (Word e Excel) a fim de obter-se uma planilha onde esses dados iniciais, que nada significam “soltos”, pudessem estar organizados e ativar os gatilhos de análise discursiva. Também se definiu uma contagem de ocorrência dessas palavras nos textos sobre o Fruto.

As mais utilizadas nas publicações pré, durante e pós-evento foram “alimento” e “biodiversidade”; “gastronomia” e “diálogo”, respectivamente, havendo sido a palavra “diálogo” a terceira mais citada na fase de publicações pós-evento. “Sustentabilidade” foi um termo que se diluiu da primeira à última fase de publicações.

As figuras 16, 17, 18 e 19, apresentadas a seguir, demonstram o percurso dessas descobertas:

167

Figura 16: Os textos jornalísticos veiculados antes do Fruto de 2018 “repetem”/ ressoam o release e, assim, reforçam os já-ditos da marca Fruto. São do tipo “apresentação do evento” e circularam em veículos diversos, entre eles Hypeness, Folha de S. Paulo, Bom Gourmet (Gazeta do Povo), CicloVivo, Projeto Draft, Conexão Planeta, Diálogos Comestíveis, ONU.

Figura 17: Os textos jornalísticos veiculados durante a visita à Fazenda Sta. Julieta Bio “reforçam” o release do Fruto e os já-ditos da marca Fruto. São do tipo “apresentação do evento”, guardam o tom de “coluna social” e circularam em blogs.

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Figura 18: os textos jornalísticos veiculados durante o evento “reforçam” o release do Fruto e os já-ditos da marca Fruto. Uns são do tipo “apresentação do evento”, outros trazem recortes de cobertura jornalística mais precisos, como o site Organics News Brasil, onde a repórter diz haver aprendido que “sustentabilidade e mudança climática não são uma bobagem”; e Rádio CBN, que trouxe áudio de entrevista feita por telefone com o idealizador Felipe Ribenboim em que a repórter diz, em resposta ao fato de o evento ser online: - “Ah, eu tô achando que a pessoa pode ir até aí comer uma coisinha”.

Figura 19: Os textos jornalísticos desta fase de publicações são os que, segundo a “audiência” apontada no clipping, mais circularam nacional e internacionalmente. Houve interesse por materiais (foto e textos) de agências internacionais como a AFP (Agência France Press). Somente no site UOL (Universo On Line) houve 14.270.003 de views da reportagem e, no site Yahoo, houve mais de 7.926.315 de views do mesmo “texto”. A reportagem da AFP foi assinada pela correspondente Carola Solé.

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Tomando-se inicialmente o conceito da “análise automática do discurso” (PÊCHEUX, 1983), buscou-se encontrar, num espaço discursivo em que as condições de produção (a exterioridade) fossem homogêneas os primeiros rastros da discursividade do Fruto a partir da lexia. Assim, poder- se-ia, como fez a AD em sua primeira fase, "definir uma frequência que pode ser comparada com outras, o que fornece um teste de comparabilidade entre vários itens da mesma sequência, ou entre várias sequências paralelas para o mesmo item. (PÊCHEUX, [1969] 2010, p. 62).

Essa suposta objetividade inicial do “censo” de palavras, obviamente, não revelaria a materialidade histórica do objeto. Como explicitado ao longo desta dissertação, para compreender-se a discursividade do Fruto seria preciso avançar para muitos gestos de leitura que revelassem a polissemia do “alimento”. Na fase pós-evento, porém, vê-se que a recorrência das expressões “alimento”, “cultura” e “biodiversidade”, nesta ordem, suscita novos gestos de leitura sobre o interdiscurso, no Fruto, sobre os sentidos da “gastronomia sustentável”.

A rara menção direta ao termo “sustentabilidade”, porém, trouxe indícios de que a compreensão do conceito, como já demonstrado nesta dissertação e, também, defendido por Barone (2018), é ainda distante do consumidor brasileiro, mais conectado à compreensão de saudabilidade - para o meio ambiente e para os indivíduos.

Sendo assim, ao tratar de sustentabilidade no texto, o jornalista/produtor de conteúdo pode indicar um nível de especialização e um saber (científico ou gastronômico) dentro do campo jornalístico, em relação à “ecogastronomia”.

Dessa entrada inicial, pode-se ainda avaliar que a "gastronomia" figura nos textos jornalísticos a despeito de o evento não tratar de "gastronomia" como fizeram, antes, muitos outros eventos dedicados a este "prato do dia do jornalismo cultural" (Amaral, 2016) na década de 2010: por meio do compartilhar de receitas e modos de preparar o alimento, linguagem comum à "arte culinária" (Jacob, 2013). No Fruto, “não teve aquela de cozinheiro mexendo a caçarola e ensinando receita. Foi-se além”, conforme Nogueira (2018), in: “Os dez brotos de nossos Diálogos do Alimento no Fru.To”.

Sabe-se, contudo, o jornalista circula ou é afetado por diversas posições-sujeitos na sua prática de autoria. Dependendo do veículo para o qual esse sujeito escreve, pode-se notar certas marcas discursivas. Há o que “pode e não pode ser dito”, “aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito”. (PÊCHEUX, 1997, p. 160). 170

Na cobertura de reportagem realizada por jornalistas profissionais para veículos de imprensa tomados como “grande mídia” como UOL, Globo Rural, AFP, IstoÉ entre outros, há certa “adequação editorial” à política editorial do veículo e, nas redações, os editores são os responsáveis pelo “alinhamento” da pauta, ou seja, pela inscrição do texto do repórter nos limites dessa política editorial. Por outra vez, há, supostamente, maior autonomia jornalística em “blogs”, espaços onde o mesmo sujeito jornalista é responsável pela apuração, reportagem, edição e publicação de seu texto – “para quem” o jornalista blogger escreve, contudo, é algo a ser considerado. É preciso pensar no efeito-leitor. Conforme Orlandi (2001, p.64):

A leitura é assim concebida como trabalho simbólico, tendo em sua base a variança assim como o texto comporta sempre outras formulações. Sob esses aspectos podemos dizer que tanto quanto para a autoria há versões de leitura possíveis. A leitura é a aferição de uma textualidade por meio de outras possíveis. (ORLANDI, 2001, p.65)

O sujeito que produz o texto jornalístico (na “função-autor”) é, também, um sujeito-leitor (de informações) - por vezes “sujeito-leitor-comensal” (tem o “saber” técnico, o “capital cultural” sobre a gastronomia, é “especializado” em gastronomia). Ora, a prática de sua leitura se dá, na contemporaneidade, recorrentemente, no e pelo digital. É no ciberespaço, que ele encontra, muitas vezes, as informações sobre a memória histórica sobre a “gastronomia” e sobre a formulação e circulação sobre o “discurso gastronômico”. E será no e pelo digital que o sujeito jornalista porá a circular as informações do e sobre o Fruto pensando em seu “leitor”.

Assim, na prática de sua escrita, o sujeito jornalista, por efeito-leitor no virtual, assume a função- autor, alternando-se à posição-sujeito “leitor” muito afetado pelo que foi apurado no e sobre o seminário, mas também pelo “Efeito Google”71. Esse sujeito-leitor jornalista, então, em determinadas condições de produção, desconstrói o efeito-texto produzido pelo “outro” e passa a produzir sentidos – tem-se o efeito-autor. Com base no que se sabe sobre o Fruto, escreve-se sobre ele.

“O trabalho do analista é percorrer a via pela qual a ordem do discurso se materializa na estruturação do texto”. (ORLANDI, 1996, p.14). A seguir, procede-se à leitura do gosto do Fruto a partir de uma série de recortes dos textos jornalísticos que circularam na imprensa em língua portuguesa na fase pós-evento, ou seja, após o encerramento do Fruto que permite estabelecer a

71 O estudo Google Effects on Memory: Cognitive Consequences of Having Information at Our Fingertips, da pesquisadora Betsy Sparrow, publicado em 2011 na revista científica Science, demonstra que buscadores como o Google funcionam como uma espécie de “memória externa”, o que gera dependência e confere, ao mesmo tempo, certa autonomia e facilidade na busca de informações. Ele pode ser lido neste site: < https://science.sciencemag.org/content/333/6043/776.full > Acessado em: 01 Out. 2019. 171 expressão “diálogos do alimento” como uma marca do acontecimento discursivo Fruto na gastronomia.

Além do título da reportagem, fragmento textual que normalmente chama à atenção do leitor no meio digital e, por isso, é hiperlinkado a outros “nós” (internos e internos ao site principal) e incluído na meta descrição da página sobre aquele conteúdo específico, mantendo assim o leitor numa jornada de leitura editorializada/tematizada, fez-se a seleção de recorte que denota a inscrição do “sujeito jornalista” em certa “posição-sujeito” (divulgador científico, divulgador cultural, jornalista profissional, produtor de conteúdo, etc.).

Figura 20 – Carlo Petrini, fundador do Movimento Slow Food, em palestra no Seminário Fruto – Diálogos do Alimento de 2018. Foto: Érica Araium

(R1) – “O que aprendemos no Fruto, seminário de alimentação criado pelo chef Alex Atala em SP” (NUNES, 2018)

O título da reportagem de Brunella Nunes (texto e fotos), do site Razões para a Acreditar, incluído nas reportagens relacionadas a “sustentabilidade” (“ambiente”), entrega que, além de jornalista, 172 esse sujeito se inscreve na PS “divulgador da ciência” durante a cobertura do Fruto. A noção de aprendizado a partir do “Fruto” acolhe o sentido de “educação do gosto” que se apresentou aqui, em “Gosto de gosto”, em relação à temática “alimento”. Segundo esse recorte (R1), Atala, contudo, é situado não apenas como “chef”, mas “coprodutor”, no sentido de Petrini (2009), dotado de um saber a ser compartilhado acerca da alimentação.

É recorrente neste e noutros recortes a menção a Atala como “o” criador do Fruto, o que causa no “leitor-comensal” conectado ao campo gastronômico o apagamento de Felipe Ribenboim, chef e sócio idealizador do Fruto. Isso ocorre pelo fato de a mídia, de maneira geral, haver reforçado, ao longo dos anos, a midiatização da figura de Atala. A mídia parece instituir Atala como “porta-voz” do Fruto e do que entende por “gastronomia brasileira”. Outros palestrantes se tornaram “pauta” coberta no evento: Ria Hulsman, Jason Clay, Carlo Petrini, Simone Mattar, Roberto Rodrigues, Felipe Ribenboim (conteúdo do tipo entrevista).

(R2) - “Mesmo rico em recursos, o Brasil corre risco de retornar ao mapa da fome. E a fome é um retrato da desigualdade. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, há comida em excesso no mundo. Então qual seria o problema, afinal?”

Ao longo de toda a reportagem do site Razões Para Acreditar, a jornalista, que no site aparece identificada como editora chefe, destaca pontos que considerou relevantes no seminário, identificados pelos intertítulos como “Entender quem somos”, “Conhecer os nossos direitos” e “Notar que dá para mudar os processos”, que abrem para análises da cobertura feita no primeiro dos dois dias do Fruto.

Esse recurso de destaque de pontos da cobertura jornalística foi feito por outros veículos de imprensa, como o blog do projeto Diálogos Comestíveis, da jornalista Érica Araium72 e o site da revista eletrônica Fine Dining Lovers, que trouxe reportagem sobre o Fruto assinada pelo jornalista Rafael Tonon.

Cabe aqui a diferenciação entre esses três veículos: Razões Para Acreditar é um site determinado a contar “boas notícias” a seus “leitores”, fundado, em 2012, pelo publicitário e designer Vicente Carvalho e que conta com um grupo de redatores colaboradores. Diálogos Comestíveis é um

72 Tem-se aqui o exercício prático, mediante “efeito-leitor” na “função-autor”, da aplicação dos conceitos “forma-sujeito” e “posição- sujeito” da AD. Érica Araium é a maneira como o indivíduo Érica Araium Nogueira assina seus textos jornalísticos, desde o início da carreira bem como, normalmente, a maneira como é reconhecida nos campos jornalístico e gastronômico. Pelas normas acadêmicas, no entanto, Nogueira é o sobrenome que aparece na identificação do “sujeito-pesquisador” no exercício de sua “função-autor”. 173 projeto de elo entre os campos jornalístico e gastronômico idealizado pela jornalista Érica Araium em 2015, responsável pelo blog. A Fine Dining Lovers é uma revista gastronômica on-line das marcas S. Pellegrino & Acqua Panna (responsável pela premiação The World’s 50 Best) dedicada aos foodies, desde 2012, que conta com diversos “colaboradores” (jornalistas e produtores de conteúdo).

Em (R2), a interrogação “então qual seria o problema, afinal” indica a intertextualidade como recurso ao compartilhar de informações entre o veículo e o leitor em busca de boas notícias. Há uma projeção da posição-sujeito de consumidor de informações sobre a problemática da alimentação mundial, endossada pela ONU e pela palestrante Bela Gil, que aparece como resposta à pergunta do texto-jornalístico: “Não tem nenhum problema técnico em relação à fome. É um problema puramente político. Se a gente quiser colocar comida na mesa de todo brasileiro, a gente coloca”.

Nesse trecho, vê-se os preceitos da “nova gastronomia”/ “ecogastronomia” de Petrini (2009) da noção de comida como “ato político” (cf: MONTANARI, 2008; PETRINI, 2009) colocados em circulação, bem como a noção de “comida como cultura”, sendo a “fome” e a “desigualdade”, bem como a “abundância de recursos”, relacionados à identidade nacional. Na mesma reportagem, há menção à “palestra da chef e nutricionista Bela Gil” “como uma bronca de mãe”.

“É ela que acende o debate sobre alimentação saudável” na mídia, segundo a repórter, e tem conduzido a discussão sobre a inserção da “culinária em escolas públicas” – embora outros nomes como os das chefs brasileiras Paola Carosella, Janaína Rueda, Ana Bueno, externas ao contexto do Fruto, também pudessem ser lembrados na reportagem no mesmo lugar social de “educadoras do gosto” em escolas públicas no contexto da gastronomia brasileira.

A seguir:

Figura 21 - A chef e nutricionista Bela Gil em palestra no Fruto de 2018. Foto: Érica Araium 174

Neste outro trecho, a repórter se identifica com o sujeito-leitor passando a “leitora-comensal”: (R3) “Depois de tantos exemplos bonitos e aprendizados, podemos ver que a alimentação vai muito além do que se tem no prato. E é uma causa nossa, de todas as pessoas do mundo, passando por atitudes grandes e pequenas”.

A expressão “vai muito além do que se tem no prato” dá indícios da compreensão do alimento como cultura e linguagem. Situa o leitor-comensal de que o “que se tem no prato” está relacionado às escolhas alimentares, que dependeriam de “atitudes grandes e pequenas”, exemplos dados ao longo da “cadeia do alimento”. Ainda que o título tenha mencionado o chef Alex Atala, o Fruto trata das ações de “atores” da “cadeia do alimento”, expressões recorrentes ao discurso gastronômico, dando-se ênfase ao pilar social da sustentabilidade.

A reportagem da editora Vanessa Mathias (texto e fotos) com colaboração de Diogo Tomasewski para o Chicken or Pasta, site iniciado em 2016 que conta com vários colaboradores, hospedado no portal Terra, também conta com diversos pontos altos da cobertura do evento e parte de perguntas: (R4) “Os desafios do colapso dos recursos naturais do planeta não tem precedentes desde a origem do homem, e essa encruzilhada passa por um grande fator: a forma com que comemos. Como a comida molda nossa cultura? Como alimentar, de maneira sustentável e saudável, um número cada vez maior de pessoas?” 175

A segunda questão retoma o objetivo dos organizadores citado no release: “discutir alternativas para alimentar o planeta inteiro”. A noção de comida como cultura em R4 pode ser comparada aos sentidos que (R3) aponta, adicionando-se uma camada de compreensão acerca dos sentidos de “moldar”, no contexto do Fruto: o que se come, pode-se inferir, pelo texto, define os sentidos de “cultura” – por deriva, termos como “gastronomia”, “culinária” e “hábitos de consumo” poderiam figurar no lugar de “cultura”, dependendo do efeito-leitor.

Ainda em (R4), a aproximação dos termos “sustentável” e “saudável” aproxima o texto do cerne do discurso ecogastronômico, o que denota o quão cara parece estar a pauta ambiental ao campo jornalístico, bem como a saudabilidade. Ao proceder-se a leitura da reportagem, vê-se a análise acerca do sistema de produção de alimentos (a cadeia produtiva): “a agropecuária é a atividade humana com maior impacto sobre o globo”, destaca a jornalista ao citar a palestra definida como “brilhante” de Jason Clay (diretor executivo da WWF).

Na notícia novamente aparece a menção ao tom educativo do Fruto sobre a alimentação: o intertítulo “o que aprendemos” leva a uma sequência de aprendizados, entre eles o disposto no recorte (R5): “a rastreabilidade dos alimentos e elevar a consciência dos produtores com relação ao impacto será decisivo nesse processo de transição”.

O termo “rastreabilidade”, como explicado anteriormente nesta pesquisa em “Os enunciados do “desenvolvimento sustentável”, pode ser relacionado à busca de informações sobre o alimento e ao “tamanho” da cadeia da qual esse alimento faz parte – fala-se, em recuperação, do conceito da “pegada ecológica” (REES & WACKERNAGEL, 1996).

O título do texto (R5) “Fru.to: seminário sobre o presente e o futuro da comida” “dialoga” com o fecho dado à reportagem, numa demonstração de identificação e engajamento do sujeito jornalista leitor-comensal, como se cumprisse um papel “ativista”, com a pauta: (R6): “O Seminário FRUTO teve um trabalho excepcional com a curadoria, e quase a totalidade das palestras referenciavam a sociobiodiversidade brasileira como a grande riqueza do país. Com esse privilégio natural, também a responsabilidade de liderarmos a revolução definitiva para o futuro do planeta: a do alimento”.

O termo “sociobiodiversidade” pode conduzir o “leitor-comensal”, por deriva, a alguns sentidos, entre eles o da valorização das iniciativas/ projetos em prol da preservação de sabores e sabores (Petrini, 2009) nacionais e de práticas culturais, para além daquelas praticadas pela indústria de alimentos. Também poder-se-ia lembrar do Plano Nacional para a Promoção dos Produtos da 176

Sociobiodiversidade (PNBSB), articulado pelo Governo Federal desde 2008 “para promover a conservação e o uso sustentável da biodiversidade e garantir alternativas de geração de renda para as comunidades rurais”.

A fala de Clay no Fruto destacada em (R4) em relação ao aparato tecnológico disponível para melhorar a vida do homem do campo aparece em reportagem do site Globo Rural: “Agricultores devem compartilhar conhecimento, diz executivo da WWF”. (R7): “Em entrevista a Globo Rural, depois da sua palestra, Clay destacou o grande aparato tecnológico disponível. E, na era da informação, é justamente o acesso a ela a chave para os agricultores responderem ao desafio do clima. É importante ocorrer o que ele chama de um cenário pré-competitivo, que permita, por exemplo, compartilhar conhecimentos sobre culturas e processos mais eficientes”.

A expressão “culturas” neste trecho, diz respeito aos cultivares utilizados pelo produtor de alimentos, identificado como “agricultor”. O veículo reforça, neste sentido, a importância do acesso à tecnologia e à informação ao bom desempenho do ator da cadeia do alimento que sofre com as mudanças climáticas. Esse ponto de vista complementar a (R4) e aos enunciados de Clay em sua palestra situam a agropecuária, que move a economia brasileira, num dos pontos mais nevrálgicos da discussão sobre a produção mundial de alimentos.

Diálogos Comestíveis volta a destacar a fala de Clay, mas pela abordagem alarmista do palestrante em relação à “nova demanda por proteína animal”, no futuro, pois “novos territórios”, segundo o palestrante do Fruto, “serão ocupados por populações exigentes em dieta”. Como se vê em no recorte (R8), os sentidos do agronegócio estadunidense são apresentados por Clay no Fruto e, a partir do exemplo estadunidense, o palestrante discute o papel do acesso à tecnologia. “O sorgo, conta ele (Clay), já está substituindo o milho nos Estados Unidos (usado para o abastecimento da alimentação animal) e ocupando as regiões mais ao Norte e próximas ao Canadá, por causa do clima. As frutas, que eram maciçamente produzidas na Califórnia, de clima quente e seco, demandariam cerca de US$ 1 milhão de investimento por acre para serem produzidas em locais de clima mais ameno, como na Costa Leste”.

O blog Diálogos Comestíveis produziu reportagens em duas fases do evento: pré e pós, havendo participado, ainda, como convidado, de um evento de encerramento do Fruto, somente para convidados, na Fazenda da Toca.

Na reportagem pós-evento, bilingue (português e inglês) apresentada como: (R9) “Os dez brotos de nossos diálogos do alimento no Fru.to”. O pronome “nossos” denota que a jornalista Érica 177

Araium se inscreve na posição-sujeito ativista gastronômico ou ativista ambiental e assume uma espécie de compromisso com o futuro a partir das informações que consumiu no Fruto (evidência a partir de “dez brotos”). Há aparente autonomia jornalística do veículo e a jornalista, em sua posição de repórter, parece escrever para a) pares (outros jornalistas especializados), gastrônomos (estudantes de gastronomia e pesquisadores da área gastronômica) e profissionais de comunicação, como se vê nas expressões destacadas em (R10):

“As palestras, transmitidas ao-vivo pelo canal da marca que acaba de nascer, no YouTube, geraram buzz interessante ao redor dos três eixos abarcados: social, biológico e cultural - reforço aos tripés do Slow Food e do Tripple Botton Line (TBL), como contamos na reportagem de apresentação. Não teve aquela de cozinheiro mexendo a caçarola e ensinando receita. Foi-se além”.

A última frase destacada traz uma análise sintética do gosto gastronômico do evento. Termos como “cozinheiro”, “caçarola” e “receita” são próprios no discurso gastronômico, mas “foi-se além”, como sugere a reportagem. Segue-se a ela outra síntese sobreo evento, mas elaborada por uma fonte de informação, o que confere credibilidade ao texto. (R11) ““Pela primeira vez no mundo, um cozinheiro, promoveu um evento holístico. Multidisciplinar. Convidou as pessoas a pensarem em como alimentar o mundo e preservar a biodiversidade. Isso é genial”, observou o fundador do movimento Slow Food, Carlo Petrini”.

Ao dizer “um cozinheiro”, Petrini reforça, como ocorreu ao longo de todo o evento, o poder midiático de Atala, que poderia ser reconhecido, nesta menção, como o “idealizador” do evento “holístico” ao qual se refere. Aí está o real da palavra, no equívoco. A reportagem comenta a fala de Petrini e a atualiza: - “Se foi a primeira vez de uma ágora como foi esta liderada por um cozinheiro: provável. Mas, não nos esqueçamos de outras iniciativas inspiradoras [...] então. E... Na verdade, o Fru.To foi pautado por DOIS cozinheiros”. Isso denota, mais uma vez, que esse sujeito-jornalista transita no campo gastronômico com certa naturalidade, pelo saber que demonstra deter acerca dos personagens do Fruto.

Talvez esteja em (R12) uma síntese do que foi o Fruto em relação à compreensão dos sentidos da sustentabilidade, abordados no evento, pela deriva dos sentidos de “jornal” pela relação alimento- informação: “Para nós, a frase resumo desta primeira edição do Fru.To foi a da brasileira Simone Jones, da Seafood Watch, ONG pertencente ao Aquário de Monterey Bay (Califórnia, Estados Unidos): “O pescador embrulhava no jornal as escolhas de minha mãe”, disse ela, referindo- 178 se à infância vivida à beira mar (...) Com sorte, vez ou outra, ainda vemos alguém embrulhando com a informação consumida a escolha do dia, com a exata noção do que será servido à mesa em sequência.” (Diálogos Comestíveis, 2018)

Figura 22 – Simone Jones, da Seafood Watch, ONG do Aquário de Monterey Bay (Califórnia, Estados Unidos) no Fruto de 2018 (Diálogos Comestíveis, 2018): “O pescador embrulhava no jornal as escolhas de minha mãe”.

A “informação consumida” a que se refere a jornalista remete a “jornal” e a “jornalismo”. “Servido à mesa”, a “alimento” ou a “peixe”, numa associação imediata a “pescador”. A construção do enunciado cria uma cena mental com recursos literários acolhidos pelo campo gastronômico na intenção de emocionar o leitor-comensal. Assim, o gosto do Fruto parece, para Araium, estar próximo da memória afetiva de seus sentidos sobre a alimentação sustentável, atrelada a escolhas mais lentas e conscientes, como se fazia no tempo da mãe da palestrante. Neste caso, o sujeito jornalista se identifica com o sujeito palestrante na posição-sujeito “consumidor consciente”, “coprodutor” do alimento. 179

Entre os veículos de imprensa que procederam a cobertura do Fruto, a Gazeta do Povo pode ser apontada como um dentre os que destacaram uma equipe à cobertura pelo site Bom Gourmet (oito reportagens, ao todo, foram produzidas, sendo duas na fase pós-evento. Em (R13): “As 10 ideias para repensar a alimentação que surgiram no simpósio de Alex Atala”, vê-se a expressão “simpósio destacada”, e o evento atribuído a Atala, exclusivamente - Ribenboim é citado no sublead do texto, onde Atala é citado novamente, mas como “curador”.

Se relacionar-se a reportagem de Guilherme Grandi a outros recortes como a (R1) e a (R9), tem- se, novamente, a noção de que a publicação destacará, no texto, os pontos que considera mais importantes acerca da narrativa do Fruto, dada a análise da reportagem. Contudo, “ideias” se refere, no texto, a “um documento em que são apontadas dez razões para o mundo repensar a forma como produz e distribui comida para a sua crescente população” produzido pelo Fruto. O texto funciona como uma espécie de fecho de cobertura, mas o sujeito jornalista retoma os já-ditos dos idealizadores sobre o que pretendem do evento.

O recorte (R14) traz o seguinte teor: “As dez razões elencadas nesta primeira edição do FRU.TO vão dar origem a uma publicação trilíngue que será redigida pelo jornalista ambiental Claudio Angelo, e será disponibilizada no site do seminário para uso livre da sociedade. Segundo Alex Atala, a expectativa é de que o simpósio seja realizado anualmente, e que o Brasil tome a dianteira na discussão sobre as soluções para a alimentação do mundo no futuro.”

Em reportagens da fase pós-evento aqui mencionadas anteriormente, há indícios de que esse documento delimita as próximas ações do Fruto com base em sua memória discursiva e em relação ao intradiscurso acerca da sustentabilidade. Expressões como “a humanidade está numa encruzilhada alimentar” e “(é preciso) reconectar a população urbana com o campo e a floresta” dizem dos sentidos de necessidade de mudança ou transformação do sistema alimentar (“encruzilhada”) e de revisão dos papéis dos atores da cadeia do alimento (que vivem na urbe, no campo, na floresta) e da própria noção de “alimento” (oriundo do campo, da floresta ou da urbe).

Neste sentido, embora não haja qualquer menção à gastronomia literal à gastronomia no texto vê- se que há um reforço na ideia de “ruptura” com um modelo alimentar, sustentada por meio da retórica de Atala e do Fruto. Assim, o sujeito jornalista, em sua posição-sujeito repórter, neste caso, parece cumprir, com mais objetividade, a missão de noticiar o fato: o(s) desdobramento(s) do Fruto. 180

Noutro texto do site Globo Rural, tem-se no título (R15): “Quando comer é mais do que simplesmente se alimentar”. O veículo, que se dedica às pautas relacionadas ao agronegócio, situa os debates do Fruto no que, anteriormente, fundamentou-se em Lévi-Strauss (1964): a noção do (alimento) “bom para pensar”, dada o dialogismo entre os verbos “comer” e “alimentar”, sendo o segundo mais amplo que o primeiro.

Comer, neste caso, remete a muitos sentidos da fome, da dietética, do modismo, da gastronomia, da culinária. E “alimentar” parece verbo diminuto perante a “comer”, embora, nos sentidos que foram mobilizados nesta dissertação, se possa relacionar alimento à “comensalidade” (ao comer junto) e à “cultura” (à atribuição de significados sobre o comer e a comensalidade).

Por essa razão, o título parece, num primeiro momento, frágil; e denota, por efeito-leitor, a noção de uma função-autor jornalista estrita. Ao longo do texto, surgem citações com “comer é um ato político” (do empresário Raphael Coimbra) “cozinhar é uma ação cultural” (do antropólogo social Mark Emil) e “a relação do alimento com a identidade de um povo vai além dos ingredientes” (de Luis Ginocchio Balcázar, ex-ministro da Agricultura do Peru, sobre a gastronomia local de seu país) revelam as noções de “evolução” dos sentidos do “comer” que o título promete explorar. E se firma na ciência, por fim, pela fala da neurocientista Suzana Herculano-Houzel, que situa, segundo o texto do repórter, o “cozinhar” como determinante à evolução da espécie humana, “entre um milhão e meio e 200 mil anos atrás”.

Assim, tem-se uma retomada à citação de Emil sobre “cozinhar” como “ação cultural” e, portanto, às referências às linguagens culinária e gastronômica. Vê-se que o sujeito-jornalista busca uma construção textual para dar suporte à compreensão dos sentidos do “alimento” a seu leitor – a revista integra as empresas jornalísticas das Organizações Globo (hoje Grupo Globo) e traz “a palavra do campo” (slogan do periódico) e, de acordo com seus princípios editoriais, pratica jornalismo ao “conhecer, produzir conhecimento, informar”.

Na mesma reportagem, em (R16), tem-se uma informação em destaque em relação à dietética, calcada na diferenciação sobre os macronutrientes, pela citação de uma frase da neurocientista no Fruto: - “O alimento que sacia, de fato, é o que o nosso corpo não produz: gordura e proteína. Carboidratos, quase todos o que a gente precisa o nosso corpo sabe produzir. E é justamente o que é industrializado com mais abundância.” Tem-se aqui o contraponto, novamente, aos sentidos do “alimento”, havendo uma sinalização acerca do consumo de carboidratos, abundantes nos produtos industrializados. Pode-se fazer uma relação entre (R16), (R15) a partir da noção de 181

“divulgação científica”. Quando Herculano-Houzel fala, quem fala é “a ciência”, transmitida pelo sujeito-jornalista divulgador científico ao leitor-comensal por meio textualização jornalística do discurso científico (Orlandi, 1995).

Figura 23 – A neurocientista Suzana Herculano-Houzel endossa o “cozinhar” como determinante à evolução da espécie humana: exemplo de discurso científico no Fruto de 2018. Foto: Érica Araium

A renomada cientista brasileira contou os 86 bilhões de neurônios do cérebro humano em 2009, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e, em 2016, deixou o país para “fazer ciência” nos Estados Unidos porque as condições do “fazer ciência” no Brasil eram miseráveis - conforme relata reportagem da revista Época (CISCATI, 2016)73.

73 “Porque a cientista Suzana Herculano-Houzel decidiu dizer adeus ao Brasil”, reportagem da revista Época, pode ser lida neste link: Acesso em 30 out 2020. Um trecho de “A Vantagem Humana, livro da neurocientista lançado em 2017, pode ser lido na Revista Exame: Acesso em 30 out 2020. Segundo a autora, somos “a espécie primata que se beneficiou do fato de que, há 1,5 milhão de anos, nossos ancestrais inventaram um truque que permitiu a seus descendentes ter um crescimento rápido e, dentro de pouco tempo, um número enorme de neurônios corticais, até agora sem rivais em outras espécies: o truque de cozinhar.” 182

A fala da neurocientista no Fruto serve de “gatilho” à noção do cozinhar do Homo culinarius como “A Vantagem Humana” sobre outras espécies, expressão que dá o título ao livro homônimo da neurocientista, lançado em outubro de 2017 (às vésperas da primeira edição do Fruto) e que encerra o sentido de cozinhar como cultura.

“Como disse o autor Michael Pollan na revista Smithsonian: ‘Claude Lévi-Strauss e Brillat- Savarin consideraram a cozinha uma metáfora da nossa cultura, mas ela não é uma metáfora, é uma condição prévia’. Portanto, agradeçamos a nossos ancestrais Homo culinarius pelos nossos neurônios e tratemos a cozinha com o devido respeito. Eu agora faço isso, com certeza.” (Herculano-Houzel, 2017, p.242). Passa-se a ter um aprendizado acadêmico sobre o alimento e sobre o fazer científico a partir do Fruto.

Em Diálogos Comestíveis, tem-se a recuperação, com suporte da prática jornalística, e em decorrência desse “gatilho” da neurocientista, da situação da ciência no Brasil, conforme (R17):

Em 2014, a crise já havia pegado a nossa ciência em cheio. Houve dois golpes importantes: corte de 25% no orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia (ajuste fiscal) e queda de 28% nos repasses ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), fonte importante de recursos. Segundo dados disponíveis no portal do CNPq, o auxílio à pesquisa caiu de R$ 631,6 milhões em 2014 para R$ 2 milhões em 2016. Os recursos para bolsas no exterior passaram de R$ 808,1 milhões em 2014 para R$ 13,6 milhões em 2016. Não foram "cortes" até 2017. Foram extinções? O que havemos de fazer para melhorar a alimentação do futuro e salvar a espécie humana e a biodiversidade nesse caos?

Em (R17), os termos “alimentação do futuro”, “espécie humana” e “biodiversidade”, juntos em ocorrência, mobilizam os sentidos da sustentabilidade.

Noutra reportagem, produzida pelo Portal Organics News Brasil, veículo especializado em alimentação orgânica, a jornalista Luciana Almeida entrevista Atala e nela destaca a opinião do chef sobre a relação entre o preço elevado dos orgânicos e o baixo consumo desses itens. Conforme (R18):

“Apesar da busca por produtos saudáveis e naturais, o custo elevado e a dificuldade de acesso são os principais obstáculos para expandir o consumo de orgânicos no Brasil. Cerca de 84% dos entrevistados (pela Organis) afirmaram que gostariam de consumir mais produtos orgânicos que 183 consomem hoje, mas 62% não compram pela falta de preço acessível. Para Atala, isso reflete a desconexão do homem com o valor do alimento”

Neste recorte (R18) fica clara a noção de sustentabilidade relacionada à saudabilidade, que Barone (2018) destaca em sua tese de doutorado em relação aos sentidos apreendidos pelo consumidor brasileiro em relação ao conceito de sustentabilidade. Apesar de tocar no tema pelo viés da escolha dietética, a fala de Atala em relação ao “valor do alimento” parece funcionar à repórter e à reportagem para a tradução, ao leitor comensal, acerca dos sentidos da “educação do gosto”.

Assim, a palavra “desconexão” funciona com elemento de revisão dos sentidos de alimento na fala de Atala e funciona na textualidade jornalística da repórter para conduzir seu leitor à lógica do chef em relação às escolhas de consumo. Em (R19), tem-se uma citação de Atala no texto da repórter em relação ao “futuro do Fruto”:

(R19) “Ao longo da minha vida, eu conheci pessoas que não comungam dos meus valores e conheci empresas e pessoas que têm os mesmos valores que os meus, mas que acham que a solução do caminho que a gente propõe não é o certo. O nosso maior sonho é convidar essas pessoas para que todos juntos façamos um evento para encontrar uma solução”. Atala insiste no ideário do “diálogo”, por meio do Fruto, entre “pessoas” preocupadas com o “futuro da alimentação” embora, pelo texto, esteja opaco ou vago o sentido da ação, no e pelo Fruto, das práticas dessas pessoas no tempo presente. Há um sentido amplo de “alimentação” para além do campo de domínio do chef (a gastronomia) que depende da deriva dos sentidos do “valor” do “alimento” por sujeitos – “pessoas” e “empresas” que, como ele, fazem parte da cadeia do alimento (“a gente”).

Neste ponto, o leitor-comensal que acompanha a trajetória de Atala – que dependendo da condição de produção de seu discurso se inscreve numa posição sujeito distinta – reconhece, o sujeito “mediador do Fruto”. Esse sujeito que “convida” pessoas não é “o cozinheiro”, “o apresentador de programa culinário”, “o empresário”, “o chef”, “o embaixador da gastronomia brasileira” etc., mas todos esses em um, por isso “mediador” em busca de uma “solução” para “alimentar o mundo”.

Isso situa “o chef” num ponto de encruzilhada pessoal/profissional em relação ao arquivo de “Alex Atala” e à memória discursiva sobre a “gastronomia brasileira” em que se inscreve desde a inauguração do D.O.M., em 1999. A partir do Fruto, torna-se um “nó”, primeiro, de uma “rede de gastrônomos” (PETRINI, 2009) que se identificam como consumidores e produtores (PETRINI, 2009; LÉVY, 1996) preocupados com o “futuro”; e, segundo, de uma “rede comunicacional” 184

(LUNARDELLI, 2017) que pode contribuir com seu próprio trabalho criativo/ autoral de cozinheiro. Nesta rede comunicacional, Atala (e aqui deve-se fazer a menção a Ribenboim por ocupar o mesmo lugar social (FOUCAULT, 1997) de “idealizador do Fruto”, embora a materialidade desse lugar social esteja silenciada na maioria dos textos jornalísticos sobre o Fruto) funciona, simultaneamente, como pesquisador como “agente comunicativo” (SALLES, 2010: 225 apud LUNARDELI, 2017, p. 161).

Tal porta-voz da gastronomia brasileira ou porta-voz do Fruto, Atala interessa à imprensa talvez pela fama do sujeito “chef” que tornou a gastronomia brasileira conhecida, como já se destacou anteriormente nesta dissertação, na segunda parte.

Ocorre que, quando Atala fala sobre os sentidos de “alimento” no contexto brasileiro, retoma não os já-ditos sobre o Fruto, mas sobre os sentidos de “alimento” para a gastronomia autoral que executa e, assim, passa a atualizá-la, colocando em evidência o interdiscurso sobre a “cozinha autoral” que vislumbra no funcionamento da figura do porta-voz como dispositivo de enunciação.

O sujeito-jornalista, em sua função-autor, busca, então, traduzir a visão “deste” Atala sobre o “futuro” da gastronomia brasileira. Para isso, recorre a referências, à materialidade sobre Atala e atualiza o texto sobre o “chef” ao registrá-lo no digital. Ao buscar informações sobre o Fruto, este texto, possivelmente, será mostrado.

Isso pode ser ilustrado a partir de uma série de recortes de um texto-jornalístico (foto e textos) da agência internacional AFP (Agência France Press), assinado pela correspondente Carola Solé, que foi traduzido para o inglês, o francês e o espanhol e utilizada por ao menos treze veículos nacionais e internacionais.

Somente no site UOL (Universo On Line), segundo o clipping acessado, houve 14.270.003 de views (visualizações) da reportagem e, no site Yahoo, houve mais de 7.926.315 de views do mesmo “texto”. Em alguns veículos, as fotos da AFP produzidas durante a entrevista de Atala no Fruto não foram compradas e puseram a circular fotos antigas do entrevistado, caso do Food Industry Today74 e da Folha de Dourados75, onde a imagem é de Atala fumando - por deriva, tem-se que

74 Nos créditos da foto consta a seguinte legenda: “Chef Alex Atala takes pride in using native Amazonian ingredients. — AFP pic”. Disponível em: https://www.malaymail.com/news/eat-drink/2018/02/01/learn-to-value-your-food-says-brazils-top-chef/1567207 Acessado em 10 Jul. 2018

75 A imagem pode ser conferida aqui: < http://www.folhadedourados.com.br/noticias/brasil-mundo/alex-atala-a-america-latina- deve-ser-mais-que-o-celeiro-do-mundo > Acessado em Acessado em 10 Jul. 2018. 185 essa escolha editorial de imagem pode ter relação com as outras “versões” de Atala que a série documental da Netflix “Chef’s Table” revelou em 2016 e tem seu apelo junto ao leitor do veículo.

A partir deste texto-jornalístico da AFP, aqui analisado a partir da versão em língua portuguesa, tem-se uma espécie de retrato da cobertura nacional e internacional do Fruto. Dele foram extraídos outros recortes que sintetizam o que se pretende demonstrar em relação ao Fruto como “acontecimento discursivo”.

Pelo trajeto temático a partir da expressão “diálogos do alimento”, recorrente em outros textos jornalísticos da mesma cobertura do acontecimento jornalístico Fruto, tem-se que o “diálogo” é usado como metáfora à aproximação entre os atores da cadeia do alimento e isso se dá pela noção compartilhada em rede do que é “alimento”.

Em R (20), tem-se o título da reportagem: “Alex Atala: a América Latina deve ser mais que o celeiro do mundo”. Nele há duas evidências gráficas ao leitor: os dois pontos “:” indicam que o enunciado é de Alex Atala e o substantivo próprio entrega que o texto colocará em mobilização os sentidos que o entrevistado mobiliza acerca de “celeiro do mundo” e “América Latina”. O “deve ser mais” indica, pela construção da frase, que a América Latina é o celeiro do mundo. E que o sujeito enunciador almeja que seja outra coisa.

O título gera certa ambiguidade, neste sentido, pois situa Atala à frente de uma discussão cultural dicotômica “latino-americana”, que resvala em conceitos como “identidade” e “modernidade” (ambos discutidos, amplamente, pelo sociólogo Renato Ortiz em sua obra, como apontou-se nesta dissertação).

Sendo Atala um representante da alta gastronomia, pode-se, por exemplo, por antecipação do efeito-feitor e deriva, relacionar-se este enunciado a alguém que transita no “mundo do luxo” (Ortiz, 2019) e observa a América Latina, esse “celeiro do mundo”. Essa expressão, aliás, remonta à ditadura e à era Vargas (1937 a 1945), podendo gerar ruído. A expressão “celeiro” já havia aparecido no texto do press release do Fruto, como destacado anteriormente.

Se se mantiver atento ao texto da AFP, o leitor identificará, no 10º parágrafo da reportagem, o contexto do uso da expressão destacada no título e no lead. Conforme R (21):

R (21) P: A América Latina vive um 'boom' gastronômico, qual sua contribuição para o mundo? R: A América Latina fez um grande aporte, que foi levar novos ingredientes para a dieta mundial, como o milho, batatas e chocolate. Talvez a América Latina esteja pronta para fazer um 186 segundo aporte, que é fomentar o espaço para o diálogo. Somos o celeiro do mundo, e o mundo vai ter que entender que, para a gente continuar sendo celeiro, também temos que resguardar as populações tradicionais, habitats, biomas, culturas.

O sujeito entrevistado acessa o discurso sobre a “América Latina” para reforçar os já-ditos sobre “celeiro do mundo” e propor uma ruptura, pelo equívoco e pela deriva, para a expressão. A ela ele acrescenta algumas camadas de sentido que conduzem às noções sobre “socio biodiversidade”, “biodiversidade”, “cultura”.

Atala recupera o sentido de “celeiro do mundo” para dizer “outra coisa”. O contexto sócio- histórico de sua enunciação (durante o Fruto) e o lugar discursivo ocupado por ele, enquanto fala (idealização do evento) permitem dizer que Atala se esquivou da pergunta, especificamente direcionada à contribuição do sujeito chef à América Latina: - “A América Latina vive um 'boom' gastronômico, qual sua contribuição para o mundo?”

Em R (22), Atala retoma, então, os sentidos de “celeiro do mundo” para, de uma maneira diplomática, responder à pergunta anterior da repórter com outra pergunta:

“P: Peru e México carregam a batuta. O que falta ao Brasil? R: São bons exemplos, dois países que entram no sonho das pessoas principalmente pelos sabores que representam. Se falo de tomate, mozzarella e manjericão, pensamos na Itália. Coentro, limão e cebola, no Peru. O Brasil ainda não fez essa lição de casa. Isso passa pelo orgulho de nossa terra, do caipira. O Brasil é um produtor de matérias-primas e isso nos orgulha, mas ainda soterra sua própria cultura.”

Aqui, Atala é mais objetivo e diz do lado paradoxal de o Brasil ser o “celeiro do mundo”: a produção de matérias-primas “orgulha” o brasileiro, mas “soterra” sua cultura. Aqui, “cultura” pode ser uma palavra lida em dois sentidos: a dos “cultivares” (dos alimentos cultivados) e a da “cultura” (dos saberes cultivados e transmitidos).

Em R (23), o entrevistado se coloca como um chef “porta-voz”, como um sujeito enunciador ciente da responsabilidade e do alcance de suas ações:

P: O trabalho dos chefs vai além da cozinha. Qual deve ser seu papel hoje? R: Acredito que o primeiro papel de um chef tem que ser o que ele se propôs fazer um dia: fazer comida deliciosa. Depois, o chef talvez seja hoje a voz mais forte da cadeia alimentar, e ele pode usar essa voz. 187

Para a repórter, na função autor especialista/ gastrônoma, está claro que o chef não se limita à transformação culinária dos alimentos no serviço da comensalidade. Por isso, ela pergunta especificamente sobre a tomada de posição de Atala neste jogo de cena que a gastronomia possibilita. “Fazer comida” e “usar a voz” “mais forte da cadeia alimentar” são papéis que o chef porta-voz assume à reportagem. Parece ciente de que o que diz será ouvido – pelos pares (chefs), pela mídia e pela “cadeia”. A mídia, por sua vez, denota que está interessada em ouvir esta voz, a despeito de poder ouvir outras vozes. Atala, mais uma vez, é dado como protagonista da cena (gastronômica), com todos os ônus e bônus da atuação, em seu próprio Fruto.

Finalmente, tem-se, neste recorte R (24) a retomada do sentido de “diálogos do alimento” que vislumbra o sujeito idealizador do Fruto.

R (24): “Por que lançar esse diálogo aqui? R: Porque é o único lugar do mundo onde todos os atores da cadeia de alimentos estão presentes é na América do Sul, no Brasil e, de alguma forma, em São Paulo.

Fica evidente que Atala se projeta como o líder desse “diálogo” entre “todos os atores da cadeia de alimentos” na posição sujeito “chef de cozinha brasileiro”, “chef de cozinha paulistano”. Curioso, porém, é notar que, na primeira edição do Fruto, nenhum outro chef brasileiro, exceto Ribenboim, destacado na posição-sujeito “produtor cultural do Fruto” pela mídia que realizou a cobertura do Fruto de 2018, participou do evento como palestrante – tomando assento e articulando a voz do palco do evento.

Tampouco houve um diálogo com e sobre a imprensa, no papel de coprodutora do alimento, no Fruto. É ela uma atora importante, para não dizer primordial, à cadeia do alimento. Outrossim, a noção de que São Paulo “é o único lugar do mundo” onde os sentidos do alimento podem ser debatidos parece atrelada a uma posição sujeito ancorada na haute cuisine e pouco disposta a dialogar com outros representantes da “gastronomia brasileira” em formação.

Assim, embora se proponha, a partir do Fruto, estabelecer-se um diálogo sobre o alimento, faltou clareza no discurso do Fruto sobre o “diálogo sobre o alimento”, sobretudo, entre chefs de cozinha brasileiros, protagonistas da cena gastronômica.

Isso tornaria a noção de “gastronomia brasileira”, desde os primeiros diálogos, mais clara e articulada em torno de um sentido de “alimento” que colabore à constituição de uma “gastronomia” “brasileira” e “sustentável”. 188

5. FUTUROS IMAGINÁRIOS 1 (considerações finais)

Se a gastronomia, enquanto “linguagem” (JACOB, 2013) pode ser entendida como fruto de uma “criação coletiva” (pois um chef de cozinha autoral cria em colaboração com outras pessoas, sejam produtores de alimentos ou mesmo os comensais), tem-se, na “gastronomia brasileira”, ainda em formação, uma “rede comunicacional” (LUNARDELLI, 2017) em que “o alimento” está, historicamente, mais relacionado à utilidade econômica (por isso commoditie) que à cultural – daí a importância de ser “valorizado” para que o leitor-comensal compreenda o que faz um chef a partir dos morfemas (MONTANARI, 2008): alimentos “brasileiros” elevados à potência de “ingrediente” culinário/ gastronômico na estruturação de um texto gastronômico brasileiro.

A partir do Fruto, contudo, cria-se uma rede de diálogos, localizada no Brasil, entre atores da “cadeia do alimento” global sobre os sentidos do que é comestível interessados em um “objeto comum”. O evento se consolida, em 2018, como acontecimento histórico caro à gastronomia, como acontecimento jornalístico (dado o interesse da mídia nesta pauta) caro à imprensa mundial e como acontecimento discursivo ao tratar dos sentidos do “alimento”, postos em movimento pelo diálogo entre “atores da cadeia do alimento”.

A partir da AD, pode-se entender que “o alimento” é produzido como objeto discursivo nesse emaranhado de posições-sujeito a partir das quais se enuncia sobre os sentidos de “alimento”. O Fruto termina por condensar as diversas discursividades e as põe a circular a partir de uma articulação original que se dá nos textos que noticiam o evento. Entre esses textos, o leitor- comensal é capaz de estabelecer relações e novos “diálogos”, pela leitura do e pelo digital, se estiver disposto a ler mais de um dos textos noticiosos sobre o evento para “alimentar-se” de outros pontos de vista, de outras posições sujeito, de outros enunciados.

De qualquer maneira, pode-se dizer que o que se entende por “alimento” ao longo do Fruto muda porque mudam os sentidos produzidos sobre o alimento, com desigualdade de forças, podendo ser um sentido dominante sobre outros. Isso depende da relação entre posições-sujeito e formações discursivas. Há o contraditório na noção de “alimento” porque há o paradoxo alimentar: o que “alimenta” um sujeito não “alimenta” outro sujeito – ainda que, na prática da comensalidade, se divida o “pão” até onde há insegurança alimentar. O pão mesmo é “alimento simbólico” para várias culturas (algo que se lembrou nesta pesquisa pela citação de Michael Pollan sobre a importância do resgate do “cozinhar” em “casa” – rever “Os enunciados do desenvolvimento sustentável”). 189

O nome do evento tomado por objeto deste trabalho, aliás, remete a muitos outros sentidos de “alimento”. E ter-se-ia outros muitos gestos de leitura acerca do que “Fruto” quer dizer. Aqui, preferiu-se tomá-lo como simples metáfora ao que “protege a semente” – a gastronomia sustentável depende de muito para vingar e dar novos frutos, de leituras, de diálogos e de ações pelo e em coletivo de inúmeros sujeitos.

Se retomadas as perguntas iniciais deste trabalho, novos sentidos sobre “o alimento” surgirão. E esse batalhão de pessoas “diz” ter “fome” de quê? Qual o papel do chef de cozinha na promoção (melhor seria dizer divulgação cultural e científica) de uma alimentação mais sustentável? E do jornalista? Aposta-se que o papel do cozinheiro é o de selecionar e aproveitar todo o fruto e suas sementes – uma delas é a gastronomia sustentável, que carece de muito esforço para “vingar”. De dissipar sabores e saberes, lição bem aprendida nos enunciados do discurso ecogastronômico. Não haverá gastronomia sustentável, porém, se poucos cozinheiros a “cultivarem”. Para que cultivá-la, então?

Em “Ideologia – Aprisionamento ou campo paradoxal?”, Michel Pêcheux (2011) coloca em dúvida a “homogeneidade” dos objetos ideológicos: são contraditórios, paradoxais. No Fruto, tem- se a fala de um porta-voz da alta gastronomia mundial e da (mítica) gastronomia brasileira sobre o item mais básico a todo ser humano, que é o alimento. Alimentar-se é um ato político. Falar sobre o alimento no Fruto é “resistir” pela revisão dos muitos sentidos de “alimento” e do coexistir com diversas ideologias, dada sua caraterística paradoxal.

A singularidade dessas lutas de deslocamento ideológico que ocorrem nos mais diversos movimentos populares consiste na apreensão de objetos [constantemente contraditórios e ambíguos] paradoxais, que são, simultaneamente idênticos em si mesmos e se comportam antagonicamente em relação a si mesmos [...] Esses objetos paradoxais [como nome de Povo, Direito, Trabalho, Gênero, Vida, Ciência, Natureza, Paz, Liberdade, Alimento] funcionam em relações de força móveis, em transformações confusas, que levam a concordâncias e oposições extremamente instáveis” (PÊCHEUX, 1983 apud ZOPPI- FONTANA, 2005, p. 56, adição e grifo nosso).

Pode-se inferir, por outro viés, o comunicacional, que “o alimento” pode ser entendido como um “objeto mediador de inteligência coletiva” (LÉVY, 1996, p.131) que afeta as relações culturais e os processos criativos dos atores da cadeia na medida em que seus significados circulam. Dito de outra maneira, a “o alimento” pode ser tomado por “mediador” da “gastronomia sustentável” - “inteligência coletiva” que depende da inscrição dos sujeitos numa formação discursiva mais afetiva e ética. 190

Neste sentido, constante acesso à memória afetiva de que tanto falam os chefs, além de efeito nostalgia, reforça a ideia de que o prato de memória afetiva é capaz de mediar o diálogo ético entre neoconsumidores/ coprodutores. É mais humanizado, antropológico e cultural pois deriva de muitos devires “outro”. Isso porque a consciência depende do pensamento crítico, do consumir íntegro e integral (nada é “jogado fora”). Conforme Lévy (1996, p.130), tem-se que:

Esse objeto (antropológico) deve ser o mesmo para todos. Mas, ao mesmo tempo, ele é diferente para cada um, no sentido que cada um se encontra, em relação a ele, numa posição diferente. O objeto marca ou traça as relações mantidas pelos indivíduos uns frente aos outros. Ele circula, física ou metaforicamente, entre os membros do grupo. Encontra-se, simultânea ou alternadamente, nas mãos de todos. Por esse motivo, cada um pode inscrever nele sua ação, sua contribuição, seu impulso ou energia. (LÉVY, 1996, p.130).

Ao falar sobre os sentidos do “alimento” apurados no e pelo Fruto no e pelo digital, o sujeito jornalista sustenta a “virtualidade” desse objeto antropológico em um “suporte objetivo”, atualizada em “acontecimentos, em processos sociais, em atos ou afetos da inteligência coletiva (LÉVY, 1996, p.131).

O Fruto, no sentido de Lévy, pode ser compreendido como um “acontecimento raro” em que a noção desterritorializada de “alimento” circula e afeta seus participantes, seus leitores-comensais. O “alimento” “só se mantém ao ser mantido por todos e o grupo só se constitui ao fazer circular” o alimento (Ibidem). Ele “sustenta o virtual” (LÉVY, 1996).

De volta ao diálogo com a AD: entre a memória discursiva sobre a “gastronomia brasileira” e os sentidos que a atravessam, o Fruto se situa como acontecimento discursivo ao propor a revisão dos sentidos de “alimento” no país considerado um dos maiores produtores de alimento do mundo e em que temas como a fome e a insegurança alimentar são questões a lidar no presente e no futuro.

Ora, então o que revisitar-se-á, anos adiante, quando a tag, ditada ou digitada no buscador (isso se ainda houver um) for pela expressão “gastronomia brasileira sustentável”? Falamos extensivamente sobre a noção polissêmica de “gosto” na primeira parte da dissertação para, neste fecho, resgatar dois sentidos importantes e apontar as descobertas no percurso desta análise: o “gosto” deve (continuar a) ser amplamente dialogado para não ser “homogeneizado” (cf. BOURDIEU, 1979). Ao mesmo tempo, quando experimentado, o “gosto” tende a “ser expresso, compartilhado e conceitualizado para poder ser avaliado e utilizado em todas as suas potencialidades” (cf. PERULLO, 2013). 191

Se o gosto como experiência, aliás, na acepção do autor, como visto, é próprio da gastronomia e “cada afirmação sobre o valor do paladar e sobre a importância da gastronomia é um enunciado intelectual” (PERULLO, 2013), toma-se que o “gosto brasileiro” precisa ser amplamente experimentado para que seja lido e compreendido.

Ao escrever sobre o “gosto da gastronomia brasileira” com ajuda de muitas vozes, o jornalista contribui à circulação dos sentidos da “gastronomia brasileira”. Não basta ouvir porta-vozes, mas vozes. Não basta tomar os mesmos eventos gastronômicos por acontecimentos jornalísticos, mas diversos eventos gastronômicos brasileiros. Entre eles, aposta-se, haverá atualização dos sentidos de “gastronomia sustentável” por situar como novo objeto paradoxal, quiçá, a comensalidade, que impele responsabilidade conjunta pelo “alimento” – não se “come junto” se não há “alimento”.

Essa formulação dialoga a afirmação de que o acontecimento discursivo compreende “a emergência de um enunciado ou de uma posição enunciativa novos que reconfiguram o discurso, e através deste participam do processo de produção do real histórico” (ZOPPI-FONTANA apud DELA SILVA, 2008, p. 30). Como exposto na segunda parte da dissertação, “o gosto da sustentabilidade” decorrerá do apreço pela (bio)diversidade.

Assim, para recuperar-se, em rede, os sentidos de “gastronomia sustentável” no Brasil, há que se assentar, antes (ou em simultâneo), o sentido de “gastronomia brasileira”, o que depende da aproximação entre gastrônomos, chefs, mídia – de todos os “atores da gastronomia”, como define o Fruto. Esses sujeitos em ação precisam ser ouvidos por diferentes veículos de imprensa.

Por isso, numa nova edição deste tipo de acontecimento (histórico), há uma tendência a que os efeitos coletivos das ações individuais do consumidor de alimentos voltem a ser debatidos em sociedade e postos a circular por meio de “textos” de formatos diversos: enunciados, manifestos, novos projetos gastronômicos, criações culinárias, textos jornalísticos, textos publicitários, produções artísticas e culturais etc.

Esses textos, produzidos a partir de muitos sujeitos em diálogo, carregarão novas demandas e compromissos de uma dada sociedade com o “futuro”. Embora registrados no presente e disponíveis para “consulta futura” em meio ao arquivo que se denominou BIG DATA, revelador de “passados”, de habitus e valores de outrora. Neste sentido, entende-se que a responsabilidade jornalística de cobertura da temática “alimento” se acentua na mesma medida em que o cozinheiro se propõe a educar o gosto de seus comensais. Esses atores precisam, por isso, dialogar mais sobre o alimento, tecer uma rede de diálogos comestíveis. 192

Neste sentido, se a gastronomia passou, nos anos 1960, a faits divers (BARTHES, 1964) a assunto de interesse comum e crescente, seria mais pertinente tratar de assuntos “omnibus” e “fatos- ônibus” (BOURDIEU, 1996, p.23) que não chocam que não põem a pensar? Aposta-se, por todos os indícios levantados nesta pesquisa, que não. Cozinhar é pensar. Apurar é pensar.

Jornalista e cozinheiro precisam, assim, estar aptos a estabelecer relações entre o que é “cultural” e o que é “natural”, a detectar novos “alimentos” e saber empregá-los integralmente (as gradações de “podre”, neste sentido, seriam flexibilizadas, para evitar-se o desperdício) e hábil em construir narrativas e redes (a estabelecer novas relações, criativas e multidisciplinares).

Se cozinhar é uma história natural de transformação (POLLAN, 2014); e se a etnografia pode contribuir ao mapeamento do gosto (e, portanto, das escolhas), o que pode a netnografia (KOZINETS, 2014), se considerado o contexto ominichannel do comer e a folksonomia - tão própria das redes sociais, que delineia certo comer homogeneizado e hypster dos indivíduos, pela repetição do gesto de fotografar e hashtaguear, em seguida, o que se engolirá? E em que medida o que se lega ao universo WWW, tal pegada digital binária, entre bites e bytes, pode modificar o comer e o cozinhar do futuro?

A partir do exposto ao longo deste extenso trabalho de mobilização dos sentidos do “alimento”, tem-se que internet é cultura. Ela “representa um lugar, um ciberespaço, onde a cultura é constituída e reconstituída” (HINE, 2000, p. 9). “Um artefato cultural onde há dispersão da produção e do consumo do discurso” (HINE, 2000, p. 33). Um produto da cultura, num sentido mais amplo, à qual se recorre desde 1992, graças ao cientista Tim Berners-Lee, para “saber-se” das coisas. Se está na internet, é “verdade”?

Esse é um dos discursos que circula no e pelo digital e sobre o qual há que se fazer novas perguntas. Pois há aí uma noção de discurso nas e das cidades - o “alimento” que escolhemos comer hoje, sem “sair do lugar”, muitas vezes, porque a próxima garfada está a um “clique”, afeta as paisagens do futuro. Há um sentido outro, contraditório, de mobilidade na conectividade, como ensina Dias (2018):

Desse modo, penso a mobilidade como conectividade, ou seja, uma mobilidade que se produz porque há certos dispositivos conectados uns aos outros, assim como, por meio deles, sujeitos ligados uns aos outros. A cidade contemporânea formada por redes de conectividade é a conecticidade. (DIAS, 2018, p. 119). 193

Como bons nômades urbanos contemporâneos, os consumidores contam com a experiência do percurso que outros já realizaram, com a “memória das comunidades”. O que outros já comeram antes? Onde? Quem produziu esses alimentos? Por que esses alimentos? O que é alimento?

Neste sentido, o de investigação sobre seu objeto paradoxal, enquanto acontecimento discursivo e jornalístico, o Fruto traça uma rede de sentidos do “alimento” em que os nós são pessoas, são sujeitos em ação dispostos a dialogar sobre o alimento. Outros nômades urbanos contemporâneos que acessam outras tantas redes de sentidos do “alimento” onde os nós também são pessoas - conectadas a pessoas e a dispositivos... Alguns deles móveis, conectados entre si pela internet das coisas.

Contudo, “o que define a mobilidade é a conectividade. E essa conectividade tem a ver com os laços sociais e com os processos de identificação dos sujeitos”. (DIAS, 2018, p. 126). Esses dados ancorados em nós (e em rede) não farão sentido sem a historicidade e sem a movência “entre- nós”.

Arrisca-se dizer, portanto, que haverá compreensão deste evento e de outros relacionados à “gastronomia sustentável” pela mobilidade – pela identificação e conexão. Pela noção do “trabalho em-comum”, que “nada tem a ver a solidariedade assistencialista das relações produtivas próprias do mundo contemporâneo. O “em-comum” considera o político e, portanto, aquilo que é próprio das relações: a diferença”. (DIAS, 2018, p. 131). O alimento não é um problema de quem passa fome. É um problema de quem tem fome. E aqui faz-se novamente referência à polissemia de “alimento”. E à polissemia de “fome”, outro objeto paradoxal.

Pobre, então, do cozinheiro conectado (considera-se aqui tanto o profissional quanto o comum, este último influenciado pelas “lições” culinárias ministradas hipertextualmente em multitelas e multiplataformas) que não decodifica os sentidos de “alimento”? Pobre, então, do cozinheiro conectado que não lê as demandas lançadas on-line pelos convivas contemporâneos que verá à mesa posta, seja ela real ou virtual?

Pobre, sim, do jornalista/produtor de conteúdo que não recorda de que é um periodista de obras culturais, de realidades repletas de sentido, um cientista social da cultura (GROTH, 2011). Tampouco se situa sobre outras caraterísticas noticiosas, como relevância, inovação, ressonância, verossimilhança, reflexividade, práxis e mistura, coerência, ancoramento, rigor e conhecimento no momento de dar voz a quem debate na ágora (des)criptografada de agora. 194

Se todo cozido bem apurado do jornalismo gastronômico desse conta de servir à divulgação cultural e científica, e se caísse na teia de discursos distribuídos em 5G, a internet das coisas revelaria, em tempo real, que o que se come mundo afora é suficiente para que não se dizime o comestível?

Na terceira era computacional, não haverá nada de improvável em flagrar-se a comensalidade desfrutando de uma refeição sem sequer levar um objeto, como o garfo, à boca, munida, apenas, de um apetrecho de realidade virtual. Resta saber sobre que escreverão os jornalistas sobre a matéria-prima, o “alimento” de cozinheiros (no papel de divulgadores culturais) e cientistas (no papel de divulgadores científicos) e acerca da paisagem comestível ao fundo das telas.

Todo comer é você quem desenha. Duvida?

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FUTUROS IMAGINÁRIOS 2 – “Apêndice”

Este é um texto de ficção. Então, imagine-se a seguinte situação hipotética, fictícia. O que diria Lévi-Strauss sobre a descoberta do gosto e a cultura gastronômica brasileiros a Bourdieu, num encontro de pares à meia-noite, não em Paris, mas num boteco manauara. Sendo esse registro documentado por Richard Barbrook e comentários de Donna Haraway, sob as lentes atentas de 210 milhões de grandes irmãos brazucas, em 2019? Como seria a interpretação dos bambas das teorias das ciências sociais acerca do que foi feito com os discursos do comer já produzidos no “celeiro do mundo”, onde o “agro é pop” e o gourmet é “instagramável” e “Tumblr”?

No Entrudo imaginário de 2018, Bourdieu indagou a Lévi-Strauss: “Quando parte para “o laboratório”, ao cozinhar, um chef munido de saber e humildade é capaz de dosar os limites entre fronteiras do comer para agradar ao paladar de seu comensal? Até que ponto se vai para conquistar- se o gosto do outro”? Era a introdução da boemia de costumeira, que se propõe no Bar do Armando, desde 1965, para todo o último dia do ano. O Largo São Sebastião, enfarinhado e escorregadio, prenunciava o Carnaval.

Foram para lá por que o guia de melhores bares manauaras da Veja Comer e Beber de 2017 decretara que aquele era o lugar mais top da selva (de pedra) amazônica pelo sétimo ano consecutivo. Que era Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Amazonas desde 2015. De onde partiam entrudos - bonecões parecidos com os de Olinda. Que definia, diziam, aquilo que se chama de Brasil.

Quem diria a eles a verdade sobre o comer e o beber no Brasil? De Nietzsche, tal propusera Latour nas digressões de A Vida de Laboratório a Produção dos Fatos Científicos, quem falará da crueldade de um homem que não quer se enganar? Quem falará da gastronomia brasileira enquanto ciência neste tempo bicudo em que a internet prometera, em 1999: salvaria a todos da ignorância. Se o mundo anda farto de tanto too much e pobre de razão? Igualmente, os professores, os jornalistas e “o grande público”, sempre com a mediação dos cientistas, os “especialistas”.

17.02: Lévi-Strauss procura um Gilberto Freyre como o feito em Recife, em 1989, para chamar de seu. Vê uma réplica malfeita entre os bonecos encostados no ladrilho hidráulico. Sorri de canto de boca e ajeita os óculos, maculados de tanto tocá-los. Dá-se conta de que o salão tipicamente “pé- sujo” corresponde ao da descrição feita pela Veja na reportagem sobre o bar sexagenário. Antes de ordenar um trago qualquer, provoca Bourdieu a pensar sobre o que pode o cozinheiro no encalço 196 do gosto. E dispara. “Assistiu Estômago, de Marcos Jorge (2008)? Será que há um Raimundo Nonato na cozinha? Se houver, espero que ele tenha sido filmado por Glauber Rocha, que nos diga a verdade, que se meta, bem à italiana, a chefão. Tá com fome? Veja então essa porção de de pirarucu com banana”, diz, apontando para o garçom. E segue discutindo cinema com o sociólogo.

17.16: Atrasada para o encontro improvável, Donna Haraway chega e acena, da porta do bar, para um grupo de mulheres postado em frente ao Teatro Amazonas. Seguiria para o Musa (Museu da Amazônia), imediatamente. Mas decide pedir uma gelada e livrar-se da celeuma feminista para confabular com os pares. De sopetão, repete ao atendente do bar o pedido de Strauss, sem se dar conta do excesso. “Aqui não tem o pirarucu de casaca, não é? Dizem que é como o bacalhau, mas tem também os bolinhos. Prefiro o peixe com banana”, decreta, olhando para homens em volta e fitando o mesmo garçom que atendera Strauss. E prossegue, gesticulando para o alto. “Que constelações as diversas etnias indígenas amazônicas identificam no céu? Como um mosquito vê a floresta ao seu redor? Se fosse um mosquito uma planta, Coccia diria o que? Isso estava escrito ali à porta de entrada do Musa, viu Lévi-Strauss? Tem muito de seus questionamentos. Para as crianças, uma história em quadrinhos aparece desenhada nas paredes e as tintas são todas naturais. Urucum tem também no lugar do sangue, muitas vezes. As fotos do Caiá na cachoeira Caruru, médio rio Uaupés, mostram sempre os homens a pescar. E quem cozinha o peixe para a gente”, pergunta a Lévy-Strauss.

17.14: “Este é o Nonato do saudoso Armando. O de lá deve ser um homem, pois o hábito é esse nas festas da maioria das etnias. Melhor Lévy-Strauss dizer. Prove um pirarucu sem casaca, relaxe, mulher”, situa Bourdieu um tanto quanto faceiro. Ele sabe que a colega não houvera esquecido as falas de “A dominação masculina – A condição feminina e a violência simbólica” (1998), prestes a ser relançado pela Bertrand Brasil.

17h14: Atenta e irônica, Donna o situa. “Não teime em reduzir tudo a relações de dominação e poder” afirma, enchendo a boca em seguida, numa golada infame. Se arrepende, em seguida, num engasgo. “Antropoceno, antropoceno. Antropobsceno”, descortina.

17.15: “Sem estresse. Prefere falar da biopolítica de Foucault? Do que comemos? Vamos tratar da construção do gosto, então”, situa o francês. E quando se dá conta de que o ano terminara num dia útil, numa boa segunda-feira, Bourdieu gargalha, apontando para a agenda do I-Phone. “Amanhã é terça! E Richard Barbrook dirá que já sabia ou que a revolução tecnológica não causou a revolução social; por alguma razão, a utopia foi adiada, é segunda-feira. Amanhã, nos jornais, 197 haverá de novo o sangue e o sexo, o drama e o crime. Sejamos utópicos, meus caros. É quase Carnaval”.

17h25: Depois de um silêncio à toa, a conversa, agora envolta em aura de amenidades e de fatos- ônibus, é abafada pelo chorinho da banda, que toca ao-vivo, animada. Uns bonecões começam a se agitar. O menino de engenho é Freye – Lévy-Strauss finalmente compreende a intenção da “réplica”. De repente, alguém lança uma nuvem de farinha na direção do grupo, acomodado nas primeiras cadeiras do lado de dentro do salão. Ao invés de se incomodar, Lévy-Strauss dança animado, como se fizesse parte de um ritual português. “Eis um Brasil moderno! Não dançamos só para inglês ver aqui nos trópicos”!

17.26 Agora a cultura envolve memória coletiva. O como ser. E eles parecem ser um pouco brasileiros. Donna o acompanha e bota as mãos na própria cintura, remexendo os quadris num samba improvisado. O pirarucu esfria. Bourdieu acende um cigarro roto e deixa a mesa para comprar novo maço. Do balcão, analisa quantas pessoas estão a comer a porção de pastéis de pirarucu. “É o carro-chefe”, volta à mesa dizendo. “Ou o hábito está consumado, ou o estilo de vida do turista dita a condição para tal ou a revista que nos trouxe até aqui designou: “capital cultural””.

17.27 Donna pondera que informação é algo que vai além do ruído. Que os sistemas cibernéticos dão conta de solucionar quase tudo. A operação-chave consiste em calcular as probabilidades do fluxo de uma certa quantidade da chamada informação. Lembra que ruído é a informação não utilizada/ decodificada. Recorre ao Manifesto do Ciborgue e se lê: “as novas tecnologias” também têm “um efeito profundo sobre a fome e a produção de alimentos para a subsistência. Rae Lessor Blumberg (1983) calcula que as mulheres produzem 50% da alimentação de subsistência do mundo. As mulheres são, em geral, excluídas dos benefícios da crescente mercantilização hightech dos alimentos e dos produtos agrícolas energéticos; seus dias se tornam mais árduos porque suas responsabilidades na preparação de alimento não diminuíram; e suas situações reprodutivas se tornam mais complexas. As tecnologias da Revolução Verde interagem com a produção industrial high-tech para alterar a divisão sexual do trabalho bem como para transformar os padrões de migração de acordo com o gênero”, alude.

17.45 Nesta altura, já se vê sobre a mesa metade de dúzia de garradas de cerveja, agrupadas. Tentam os convivas entender o que há por traz dos rótulos da bebida.

17.46 “Estamos sendo controlados? A reportagem dizia que a cerveja era gelada e que o pirarucu era bom. Bebemos cerveja sem questionar a origem e seguimos aplaudindo o que disse o guia? 198

Ache aí a reportagem no Google”, diz Strauss a Bourdieu. À deriva, ouvem alguém dizer algo miúdo, como o fã prestes a pedir autógrafo. Não compreendem. Seguem bebendo. Donna posta algo no Instagram sobre a necessidade de as mulheres viverem a ciência. A voz se agiganta. Adiante, uma pessoa de uns 30 e poucos anos, negra, aparência de ciborgue. Não se poderia definir o gênero, nem pela vestimenta, nem pela voz. Era mesmo um ciborgue.

17.50 “Ler a cultura como um texto é tentar fazer sobre ela quase que como uma resenha que se faz sobre uma obra de arte. Pensar o que significam as ações para os sujeitos. Prefiro o funcionalismo de Geertz do que tentar entender os mitos. Mas entendo que o senhor seja mesmo uma sumidade. Veja, a mesma história pode ser contada de maneiras distintas, mas a história é a mesma. E eu posso contar uma história a partir do que interpretei sobre ela. Como aqui, em que o vi dançando, saudoso do Brasil, bebendo com os amigos. O vi aplaudir o trabalho de Atala à beira do rio Ayar, com as pimentas dos baniwa. E ralhar sobre as notícias que publicaram sobre o Instituto Sócio Ambiental. Naquela busca por bico-de-mutum (koitsi hitako, em baniwa), braço de camarão (dzaaka inapa), bico de peixe lápis (dzoodzo hitako), o vi chorar de alegria pelo cozinheiro. O vi poro aberto. Aqui, vivemos na boemia do mesmo bar por instantes, comemos as mesmas coisas. E a minha interpretação do gosto não é a sua, nem de Bourdieu, nem a de Raimundo, nem a de Armando, nem a de Donna. Nem a de Glauber. Desfrutamos da levada carnavalesca que nos unifica simbolicamente, a despeito de possuirmos certo capital intelectual que possa nos ausentar do que é considerado mundano, comum”. E cessa.

17.55 “A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem contra a outra. É como se eu tivesse palavras em vez de dedos, ou dedos nas pontas de minhas palavras. Lembra-se de Barthes? O que você quis dizer com “poro aberto”? Pergunta Donna ao ciborgue.

17.56 Que precisamos entender os estômatos antes de compreender os estômagos.

Fim dos registros do dia. Continua...

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