6 ENTREVISTA: Alfredo Bosi Poesia como resistência à ideologia dominante

Br a s i l 18 Descaso e repressão, política para ensino público em SP e PR João Peres, Moriti Neto, Thiago Domenici

Am é r i c a l a t i n a 28 Ataque midiático à Democracia e aos projetos nacionais Frederico Füllgraf 35 Um governo que sangra depois de “virar do avesso” Tatiana Merlino

USP e m x e q u e 43 As veias abertas da Faculdade de Medicina Luiza Sansão

Polític as afirmativas 64 A USP que se nega a ser preta, parda e indígena João Peres, Moriti Neto, Tadeu Breda e Thiago Domenici 70 Como a USP tem tratado a questão das ações afirmativas Adriana Alves USP 79 Desmanche tem como alvos RDIDP e caráter público da universidade Pedro Estevam da Rocha Pomar 87 EACH, sob “investigação detalhada”, convive por ora com aterro ilegal Paulo Hebmüller 94 HU e HRAC, ou como se livrar de hospitais de renome acadêmico Paulo Hebmüller

No v o s o l h a r e s 100 Paleoantropologia corre risco na USP, adverte Walter Neves Vinicius Crevilari 107 Crise do jornalismo leva ECA a adaptar o currículo do curso Luciano Victor Barros Maluly

Di t a du r a militar 111 Violência do regime intimidava docentes, lembra Emília Viotti Pedro Estevam da Rocha Pomar

Po n t o d e v i s t a 115 Revisitando as alternativas de renda básica Francisco Nóbrega DIRETORIA César Augusto Minto, Kimi Aparecida Tomizaki, Elisabetta Santoro, Rosângela Sarteschi, Heloísa Daruiz Borsari, Adriana Pedrosa Biscaia Tufaile, Ivã Gurgel, José Nivaldo Garcia, Sérgio Paulo Amaral Souto, César Antunes de Freitas, Annie Schmaltz Hsiou, Ozíride Manzoli Neto

Comissão Editorial Antonio Carlos Cassola, Elenice Mouro Varanda, Gladys Beatriz Barreyro, Hélio Mitio Morishita, Marcos Barbosa de Oliveira, Pedro Paulo Chieffi, Primavera Borelli, Sumaya Mattar

Editor: Pedro Estevam da Rocha Pomar Assistente de redação: Vinícius Crevilari Revisão desta edição: André Merli e Vinicius Crevilari Ilustração de capa: Vitor Flynn Ilustrações desta edição: Ohi e Vitor Flynn

Editor de Arte: Luís Ricardo Câmara Assistente de produção: Rogério Yamamoto Secretaria: Alexandra Moretti e Aparecida de Fátima dos R. Paiva Distribuição: Marcelo Chaves e Walter dos Anjos Tiragem: 5.500 exemplares Gráfica: Eskenazi

Adusp - S. Sind. Av. Prof. Almeida Prado, 1366 CEP 05508-070 - Cidade Universitária - São Paulo - SP Internet: http://www.adusp.org.br • E-mail: [email protected] Telefone: (011) 3724-8900

A Revista Adusp é uma publicação quadrimestral da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo, destinada aos associados. Os artigos assinados não refletem, necessariamente, o pensamento da Diretoria da entidade. Contribuições inéditas poderão ser aceitas, após avaliação pela Comissão Editorial. Me r g u l h o n a s e n t r a n h a s d a Medicina

O que nos propusemos a fazer nesta edição da Revista Adusp foi um mergulho nas entranhas da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). A ampla reportagem da jornalista Luiza Sansão iniciada na p. 43 abre grande espaço às vítimas de abusos e crimes sexuais praticados há décadas na, talvez, mais importante escola de Medi- cina do país. Praticados, é bom que se diga, com a conivência da instituição, que nunca se preocupou em coibir (e muito menos em punir) os trotes violentos e as manifestações machistas, homofóbicas, racistas que têm ca- racterizado, de modo sistemático, a atuação de duas antigas organizações mantidas por estudantes veteranos: a fraternidade Show Medicina e a Associação Atlética. Pesquisadores revelam como o trote violento se presta à criação de redes de poder que extrapolam o perí- odo de estudos na universidade e espraiam-se por círculos profissionais e sociais. Nesse contexto, não surpre- ende que crimes sexuais sejam naturalizados, na mesma medida em que as vítimas dispostas a denunciar os agressores passam a sofrer assédio moral para que se calem.

Bosi, Alfredo O leitor está convidado a usufruir a entrevista concedida ao jornalista Paulo Hebmüller pelo professor Al- fredo Bosi (FFLCH), cuja erudição dispensa comentários. Bom passeio, perdão: boa leitura!

Profissão: Professor(a) Vale a pena conferir as dificílimas condições de trabalho dos professores das redes públicas de ensino dos estados de São Paulo e Paraná, bem como as renhidas lutas travadas pela categoria. Na p. 18.

Cotas na USP, quando? Reportagem de João Peres, Moriti Neto, Tadeu Breda e Thiago Domenici na p. 64 e instigante artigo da professora Adriana Alves (IGc) na p. 70 questionam a vetusta resistência da USP à adoção de cotas étnicas e sociais. Leitura obrigatória.

Reitoria comanda retrocesso A que veio o mandarinato M.A. Zago-V. Agopyan? Dois anos depois da posse, não há dúvidas a respeito: o projeto é desmontar a USP tal como a conhecemos, tendo como alvos principais a dedicação exclusiva dos do- centes (Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa, ou RDIDP) e o caráter público, gratuito e de qualidade socialmente referenciada. Reportagens nas p. 79 e seguintes abordam a nova “supercomissão” ins- tituída pelo reitor para liderar a reforma do Estatuto (em contraposição à Estatuinte Soberana e Democrática reivindicada pelas entidades representativas), o imbroglio da EACH e a trágica situação do Hospital Universi- tário (HU) e do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais de Bauru (HRAC).

Emília e o regime militar “A violência dos governantes intimidava a maioria”, recorda a professora emérita, da FFLCH e da Universi- dade de Yale, Emília Viotti, ao falar de sua aposentadoria pelo AI-5, em 1969, quando recebeu a solidariedade de Sérgio Buarque de Hollanda e Antonio Candido. Confira na p. 114 as declarações de Emília, grande pesqui- sadora do período da escravidão e uma das maiores historiadoras brasileiras.

Ponto de vista Inauguramos nesta edição, com a publicação de um artigo do professor aposentado Francisco Nóbrega (ICB) sobre o tema da Renda Básica, a seção fixa Ponto de Vista, aberta a contribuições de livre escolha de lei- tores e leitoras, avaliadas e referendadas pela Comissão Editorial. O Editor Dezembro 2015 Revista Adusp ENTREVISTA Alfredo Bosi Po e s i a c o m o resistência à i d e o l o g i a d o m i n a n t e

Daniel Garcia

Concedida aos jornalistas Paulo Hebmüller e Daniel Garcia (fotos)

6 Revista Adusp Dezembro 2015

Não são poucas as áreas em que atua e intervém Alfredo Bosi: história, política, Igreja e militância contra usinas atômicas estão entre elas. Mas é a literatura, que lecionou na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) durante praticamente meio século — entre 1959 e 2006, quando se aposentou — que talvez mais mobilize o professor. “A literatura tem uma função muito rica, humanizadora, e dá uma grande abertura para qualquer tipo de profissional — mas a escola de alguma maneira diminuiu muito a sua dosagem, talvez até por causa dos vestibulares”, lamenta.

Nascido em São Paulo em agosto de 1936, Bosi iniciou sua trajetória na USP com o ingresso na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em 1954. Graduado em Letras Neolatinas, fez especialização em Filologia Românica e, entre 1961 e 62, especialização em Literatura Italiana, em Florença, na Itália. Seu doutorado (1964) e a livre docência (1970) também versaram sobre literatura italiana. Contudo, as letras da terra natal são um dos focos principais de sua produção acadêmica e da carreira docente.

Seu livro História concisa da literatura brasileira, publicado pela primeira vez em 1970, já alcançou 49 edições. Bosi é autor também de O conto brasileiro contemporâneo, O ser e o tempo da poesia, Dialética da colonização, Literatura e resistência, Ideologia e contraideologia e outros títulos. Muitos dos temas dos quais o professor se ocupa são abordados nos ensaios reunidos em seu livro mais recente, Entre a literatura e a história (2013), alguns dos quais citados nesta entrevista. Casado com a psicóloga social e escritora Ecléa Bosi, professora do Instituto de Psicologia da USP, e pai de José Alfredo e Viviana, Bosi é membro da Academia Brasileira de Letras desde 2003 e recebeu o título de Professor Emérito da USP em 2009. Continua ligado à Universidade principalmente pelas atividades no Instituto de Estudos Avançados (IEA), do qual já foi diretor e onde edita desde o primeiro número, em 1987, a revista Estudos Avançados. Sobre muitas das questões que o ocupam, Alfredo Bosi concedeu na sede do IEA, na Cidade Universitária, a entrevista a seguir.

7 Dezembro 2015 Revista Adusp Revista Adusp. O escritor Mia Daniel Garcia Couto, numa entrevista que me concedeu no ano passado, disse o seguinte: “Não há outra maneira de reconquistar um sentido de fe- licidade que seja pleno que não vá pelo caminho de nos restituir um olhar poético”. O senhor diz que “a poesia exprime a subjetividade mais radical do ser humano”. A poesia pode fazer a ponte entre essa felici- dade e essa subjetividade? ALFREDO BOSI. A poesia tem mais de um horizonte. Essa frase do , que eu endosso, re- almente é o caminho mais feliz da poesia, não só para quem a pro- duz — o artista que conhece aquele poesia alimentou muito a minha lentamente. Então me pareceu que momento de iluminação — como vocação de professor. Agora, além a concepção de poesia apenas co- sobretudo para os seus leitores. Um dessa visão digamos mais feliz e mo expressão da subjetividade, sem adolescente numa crise existencial mais eufórica, que conduz a uma dúvida uma visão básica que está de repente abre um livro de poemas expansão da alma, há uma forma na maioria dos autores de estética, da Cecília Meireles e sente que há de poesia que me atraiu desde ce- poderia ser pensada também como coisas belas na existência. Ou então do e sobre a qual escrevi bastante: uma forma de resistência à ideolo- abre um Carlos Drummond de An- a chamada forma de resistência. gia dominante. drade e tem contato com uma con- Essa ideia de literatura como resis- cepção mais irônica ou crítica, ou tência foi amadurecendo para mim mesmo de grande resistência moral. desde principalmente os anos da A observação do Mia Couto vale Ditadura Militar — não que eu faça Quando escrevi O ser e o principalmente para esses momen- uma relação determinista de causa tempo da poesia (1977), tos em que a poesia liberta o leitor e efeito, porque a literatura tem das suas preocupações do cotidiano uma riqueza de possibilidades que destinei um capítulo inteiro e dá um sentido à existência. felizmente transcende o momento ao conceito de poesia A minha experiência de leitor político. Mas nesse caso, como se de poesia começou muito cedo. Eu tratava do longo período de vinte e resistência e verifiquei que tinha meus 13, 14 anos, já ia à Bi- um anos de ditadura, os intelectuais há mais de uma forma de blioteca Mário de Andrade e lia tu- mais sensíveis à luta social e aque- do o que me caía sob os olhos. Nem les que tinham depositado muitas resistência. A mais evidente tudo eu entendia, como em textos esperanças no governo deposto de é a poesia de crítica social, de poetas difíceis como Jorge de Li- João Goulart, e tinham passado por ma ou Murilo Mendes, mas mesmo um momento muito construtivo no de ataque, de sátira. Mas não entendida a poesia transmite começo dos anos 1960, de repente não é a única um sentimento básico da existên- se viram confrontados com um ba- cia através das imagens, menos do que. Aqueles projetos que estavam que pelos conceitos. A leitura de amadurecendo foram cortados vio-

8 Revista Adusp Dezembro 2015 Ao lado da prosa pragmática transcendente, uma forma de supe- sabia se ela existia no Brasil. Um que predominava na época e das ci- rar a imanência. dia minha esposa e eu estávamos ências naturais e sociais, os poetas Esse viés das várias formas de comprando mudas na chácara de também vivem uma tensão entre o resistência me pareceu fecundo. floristas japoneses na Raposo Ta- seu universo subjetivo, que é múlti- Como faço basicamente histó- vares e resolvi perguntar se o dono plo, e as forças hegemônicas, sejam ria da literatura — naquela época conhecia a giesta. Estava certo de do capital ou do Estado. Essa ten- trabalhava com literatura italiana que ele não conheceria, mas quan- são seria a matriz de uma poesia de — olhando para trás vi que essa do pedi uma muda de giesta ele resistência. Quando escrevi O ser e tendência poderia ser encontrada pegou o carrinho, entrou nos seus o tempo da poesia (1977), destinei em vários poetas. Particularmen- labirintos e voltou com ela. Plantei, um capítulo inteiro ao conceito de te um, Giacomo Leopardi (1798- mudei de casa e, nesses anos todos, poesia resistência e verifiquei que 1837), que foi objeto da minha tese ela continua lá. É uma flor perene, há mais de uma forma de resis- de livre docência. Leopardi era pro- que desaparece, mas volta de novo. tência. A forma mais evidente é a fundamente pessimista, por várias Essa imagem é uma espécie de sím- poesia de crítica social, de ataque, razões, inclusive autobiográficas, bolo da poesia resistência. de sátira. Mas não é a única. Às mas no final de sua curta vida creio vezes o poeta entra muito dentro que encontrou uma imagem para a Revista Adusp. Quem represen- de si mesmo e sua forte carga sub- resistência. É uma imagem muito taria essa forma na literatura bra- jetiva involuntariamente se opõe bela e que me persegue, no sentido sileira? àquilo que é a prosa do mundo, a de que eu a persigo também: a de BOSI. Há várias formas de li- prosa ideológica. Não que ele faça uma flor que nasce nas encostas do teratura de resistência, e no Brasil uma proposta formal de ataque à Vesúvio. Leopardi não suportava grandes nomes ilustram essa ten- sociedade, mas a sua linguagem bem o frio e resolveu viver em Ná- dência. Cruz e Souza, por exemplo, é tão estranha e tão diferenciada poles, onde passou os últimos anos era um poeta negro que escreveu em relação àquilo que é a lingua- de sua vida. Pompeia [devastada um poema em prosa chamado “O gem ideologizada, ou a do senso por uma erupção do vulcão Vesúvio emparedado”, em que se rebela comum, que ela se transforma em em 79 d.C.] já havia sido descoberta contra a ciência e a antropologia do resistência. Isso foi muito bem es- pelos arqueólogos alemães, então tempo, que era uma antropologia tudado por Theodor Adorno, filó- Leopardi viu o que era o passado. racista. É um poema tipicamente sofo marxista que via essa caracte- Olhando para o Vesúvio, observou de resistência, porque ele estava rística em certos poetas surrealistas que, apesar da lava que descia pelas imerso na cultura inteiramente ra- e simbolistas acusados pelos mar- encostas, uma flor resistia. Essa flor cista do final do século 19. Morreu xistas ortodoxos de alienados, por- em italiano se chama ginestra — em cedo, de tuberculose, totalmente que aparentemente estavam volta- português, giesta. Seu último poe- marginalizado. Outro nome é Li- dos apenas para si próprios. Mas ma é “A giesta, ou a flor do deser- ma Barreto, também não por acaso Adorno fez estudos minuciosos de to”. É um poema belíssimo e difícil mulato, que até foi colocado várias poetas alemães desse período e ve- — ele é um poeta com reminiscên- vezes pela família num hospício na rificou que havia um potencial de cias clássicas muito fortes e não é Praia Vermelha, no Rio de Janei- resistência em seu trabalho. Há um fácil de ler. Quando fiz a minha ro, onde curiosamente hoje está a ensaio dele que é paradigmático tese, me debrucei sobre o poema e Universidade Federal do Rio de nessa questão, chamado “Discurso colhi dessa experiência de Leopardi Janeiro, inclusive o seu Instituto de sobre lírica e sociedade”, que sem- a ideia de poesia como resistência. Psicologia. Temos também Gracilia- pre recomendo aos meus alunos. E Nos anos em que morei na no Ramos e vários outros escritores há ainda as formas extremas, mís- Granja Viana, senti falta dessa flor, que podem ser estudados nessa li- ticas, em que o poeta vai atrás do tão bonita e tão rara. Mas eu não nha da resistência.

9 Dezembro 2015 Revista Adusp Revista Adusp. O senhor escre- paralelas é grave. Eu tenho forma- veu que a poesia seria particularmen- ção humanística, mas gostaria de te bem-vinda no mundo de hoje, no dominar a cultura científica, pela [Ler poesia] é um exercício qual ela precisa subsistir num mundo qual tenho enorme respeito. que se tornou “atravancado de obje- Creio que esse é um fenômeno de autodomínio ... como tos, atulhado de imagens, aturdido de planetário. Várias vezes estive na professor você tem que informações, submerso em palavras, França e inicialmente acreditava sinais e ruídos de toda sorte”. Qual que lá os alunos deveriam ter uma alcançar esse autodomínio seria o papel da poesia nesse mundo formação humanística muito mais e encontrar, como um ator, de tanto barulho por nada? aperfeiçoada, afinal sua literatura BOSI. Essa conferência (“A po- tem 800 anos, mas percebi que não. uma entoação e uma forma. esia é ainda necessária?”) foi pro- Certa vez, na Bretanha, conversei A entoação é a música da nunciada como aula inaugural da por acaso com duas senhoras que Cátedra de Estudos Irlandeses W.B. eram professoras de História e elas poesia: o metro, o ritmo, as Yeats da FFLCH em 2010. Come- ficaram surpresas quando eu dis- pausas, enfim: é uma arte cei até meio perplexo: como quem se que havia lido muitos textos do lê poesia desde a adolescência — maior escritor da região, Chateau- de ler, e acho que o professor portanto há muitos e muitos anos briand. No colegial, quando fiz o precisa conquistá-la — vai questionar se a poesia é ne- curso clássico, o francês era obri- cessária? Eu cresci no mundo das gatório e havia um curso de litera- Letras, fui professor durante quase tura francesa no qual líamos esse e cinquenta anos, primeiro de litera- outros autores, como Victor Hugo. Revista Adusp. E o senhor de- tura italiana e depois brasileira, e Na França, essa visão panorâmica fende que o professor leia poesia portanto essa ideia parecia não fa- na qual se estudavam autores desde em voz alta para os alunos, não é? zer sentido. É uma pergunta prova- a Idade Média até hoje não existe BOSI. Ah, sim. Essa é uma das velmente feita por alguém que vive mais. Há, sim, estudos muito espe- minhas “teclas”, das minhas obses- num tempo em que muitas pessoas cializados sobre um ou outro escri- sões. Uma vez estava conversando ignoram totalmente a poesia e a tor, mas muita coisa parece que se com um jovem professor assisten- consideram alguma coisa supérflua, perdeu. Então, a média das pessoas te de Literatura Brasileira, muito senão desnecessária. que não leram é uma média muito bom, muito culto. Ele tinha lido O questionamento pela neces- inculta. Isso não quer dizer que elas Luckács, Adorno, Benjamin, enfim, sidade da poesia é paradoxal. Será não tenham interesse, por exemplo, era uma cabeça teórica. Eu disse: que a História é necessária? Essas em filosofia, mas não têm formação “Acho muito bom que você tenha perguntas surgem porque as ciên- humanística. A literatura tem uma esses conhecimentos porque elas cias humanas, as humanidades, en- função muito rica, humanizadora, e vão irrigar a sua interpretação lite- traram numa fase de descrédito. dá uma grande abertura para qual- rária, mas você precisa transmitir Frequentemente converso com eco- quer tipo de profissional, mas a es- aos alunos, em primeiro lugar, a nomistas, engenheiros ou técnicos cola de alguma maneira diminuiu beleza e a emoção de um poema. que dominam amplamente os seus muito a sua dosagem, talvez até por Você escolhe o poema que quiser objetos, mas são pessoas incultas. causa dos vestibulares. O aluno tem para que o seu aluno, que depois Não por culpa delas, mas porque que decorar muita coisa, aquelas vai ser professor de Português, pos- todos os currículos e o universo que fórmulas todas, e não há espaço sa também ensinar a entoação e a as cercava as levaram a considerar para ler. Gostaria que as escolas maneira de ler”. Ele respondeu: a literatura, digamos, como “perfu- públicas pudessem recuperar esse “Ah, professor, acho que nunca vou maria”. A existência dessas culturas universo. Quem sabe no futuro? ler poesia em voz alta porque te-

10 Revista Adusp Dezembro 2015 nho vergonha”. Percebi depois que Também não se deve subesti- Revista Adusp. No ensaio “For- ele era uma pessoa tímida e achava mar os alunos e pressupor que eles mações ideológicas na cultura bra- que se lesse ficaria vulnerável e iria não se interessam ou não gostarão sileira” o senhor diz: “Literatura e no fundo expor os próprios senti- disso ou daquilo. Quando dei aula ideologia se tangenciam enquanto mentos. Mas esse é justamente um no Colégio Mackenzie para alu- ambas pressupõem o mesmo vasto exercício de autodomínio. Também nos de 15, 16 anos, idade difícil, campo da experiência intersubjeti- me comovo com grande facilidade, pensei em Camões. Nos Lusíadas va. Mas os seus modos de conceber mas como professor você tem que há um episódio épico sobre o gi- e de formalizar essa experiência são alcançar esse autodomínio e encon- gante Adamastor: Vasco da Gama diversos, quando não opostos”. O trar, como um ator, uma entoação e chega ao Sul da África, um lugar senhor pode falar sobre isso? uma forma. A entoação é a música denominado Cabo das Tormentas BOSI. A palavra ideologia pre- da poesia: o metro, o ritmo, as pau- — e, mais tarde, Cabo da Boa Es- cisa ser pensada antes de julgarmos sas, enfim: é uma arte de ler, e acho perança — e encontra essa figura que entendemos o que ela significa. que o professor precisa conquistá- mítica do gigante. Camões não é Há uma concepção ampla e flexível la. Ler já é uma interpretação. tão difícil quanto parece, e quando de ideologia que se confunde um Antigamente, havia Daniel Garcia pouco com a cultura da aula de leitura. O pro- época, o estilo, em que fessor começava a ler a ideologia entra como e apontava algum alu- um componente difu- no que continuava, e o so na cultura. E há um professor ensinava coi- sentido que foi desen- sas básicas como a pre- volvido principalmente paração para uma inter- por Marx e Engels no rogação — os espanhóis livro A ideologia alemã, colocam um ponto de que precede O capital, interrogação no come- em que a palavra ide- ço, o que é muito inte- ologia tem um sentido ligente. Os portugueses negativo — isto é, a quiseram fazer isso no ideologia é a raciona- século 19, mas a ideia lização que as classes não prosperou. Excla- dominantes fazem do mação e interrogação são tonalida- eu lia eles ficavam entusiasmados conhecimento da sociedade. Nos des cognitivas, ou seja, apontam pa- e queriam subir nas carteiras para termos de Marx, um burguês acha ra uma linguagem dialogal ou com declamar o Adamastor... O pro- de fato que é natural que o operá- intenções expressivas. Imagine na fessor deve acreditar que vai entu- rio trabalhe para ele e gere o seu poesia, em que cada palavra e ca- siasmar o aluno. Tem que ser uma lucro. Depois os economistas clás- da verso têm a sua própria música, pessoa meio utópica e meio ingê- sicos de certa forma naturalizam porém sem as indicações da pauta nua ao mesmo tempo. Se começar isso, e chega um momento em que musical. O professor tem que se com um espírito muito pessimista, a ideologia é a justificativa ou a jus- preparar muito e ler muito em casa, não vai entusiasmar os alunos. Mi- tificação de um dado social. Marx em voz alta. Minha hipótese é que, nha filha Viviana é professora de quis mostrar que entendia a forma- lendo em voz alta, a pessoa já está Teoria Literária e lê muito em voz ção da burguesia capitalista, mas, intuindo a compreensão do poema. alta, e seus alunos ficam entusias- diferentemente de Adam Smith e É mais do que voz alta, portanto: é mados. Que bom! Alguma semente dos economistas clássicos, ele não interpretação em voz alta. está frutificando. só conhece e estuda, mas denuncia.

11 Dezembro 2015 Revista Adusp Há um momento em que mostra dadeiro e o que não é. As discussões Quando traz, acho que é má poe- que essa é a justificativa da opres- em torno de um poema podem ser sia. Rudyard Kipling, famoso pelo são. São, portanto, dois sentidos di- infinitas, porque uma pessoa vê uma poema “Se”, falava do “fardo do ferentes para ideologia: um difuso, coisa que a outra não vê. A lingua- homem branco”, “the burden of the não crítico e descritivo como ideia gem da poesia envolve essas ambi- white man” — a colonização. Essa das mentalidades de uma época, guidades, porque está carregada de expressão é puramente ideológica. e há o sentido crítico que vem de conotação e polissemia. Para os ingleses, portanto, colonizar Marx e que em grande parte conti- era um “fardo” que eles aliás exer- nuou com seus seguidores. ceram com muita competência du- A poesia pode tangenciar o pri- rante anos e anos... Um poeta que meiro sentido, é claro. Você lê um Rudyard Kipling, famoso pelo exalta isso é um poeta ideológico. poeta romântico, com todas aquelas poema “Se”, falava do “fardo A grande poesia, se tem que di- expressões de amor à natureza, à zer alguma coisa, dirá em termos pátria, à tradição, ou um romântico do homem branco” — a de dúvida, ou de uma adesão muito revolucionário, e constata que é um colonização. Essa expressão diferenciada, muito personalizada. poeta cuja ideologia — talvez seja Estou analisando agora um poe- melhor dizer cuja cultura — é ro- é puramente ideológica. ma de Drummond do livro A rosa mântica. Agora, com relação à ideo- Para os ingleses, portanto, do povo, que aliás vai fazer setenta logia dominante, a verdadeira poesia anos neste ano. Chama-se “Visão faz a distinção claramente, porque colonizar era um “fardo” que 1944”. É um poema extraordinário, não quer naturalizar a sociedade. A aliás exerceram com muita porque fala de tudo o que é vio- poesia e a literatura estão mais preo- lento e dilacerante na guerra, e a cupadas em mostrar como os estímu- competência durante anos e partir de um certo momento procu- los sociais criam reações dentro do anos... Um poeta que exalta ra mostrar que por baixo daquelas sujeito na forma de personagens de cidades mutiladas, principalmente um romance, ou na forma de poesia isso é ideológico da Europa, estava nascendo um ou- satírica. No caso, não se tangencia: tro mundo. Ele compara esse outro há uma oposição que é matriz da- mundo, numa descrição muito bo- quela ideia de poesia resistência. Revista Adusp. O senhor também nita, a uma flor de lótus, que abre As formas são diferentíssimas, diz nesse ensaio, referindo-se à Es- e fecha. É um poema que consegue evidentemente. A poesia se produz cola de Frankfurt: “arte não mais es- passar do horror e da denúncia da de uma maneira musical, imagística pelho da sociedade, mas arte versus guerra a uma forma de esperança. e com metáforas, não conceitos. A sociedade: arte enquanto crítica”. Não é um discurso panfletário, mas ideologia, por sua vez, tudo trans- Nessa concepção, a arte exerceria um discurso sensível a um mal e ao forma em algumas ideias básicas. um papel de contraideologia? bem, tudo trabalhado pela subje- Talvez a grande diferença seja o ca- BOSI. Ah, sim, certamente. É tividade do poeta. Nesse sentido, ráter concreto da poesia e o caráter a derivação da ideia de resistência. esse poema é contraideológico. abstrato da ideologia e das ciências Um hino de guerra, por exemplo, políticas e econômicas, que querem quer convencer e arrastar pesso- Revista Adusp. Quem o senhor chegar a fórmulas de conhecimento. as. É a própria ideologia em versos recomendaria, dentro da literatura A poesia também é mais aberta no cuja finalidade é mexer com as von- brasileira, que os alunos estudas- sentido de que pode ser interpreta- tades e de alguma maneira atrair as sem e conhecessem? da de várias maneiras, enquanto a pessoas para uma certa bandeira. A BOSI. Escrevi uma história da ideologia, ao contrário, procura ser poesia não traz esses elementos e nossa literatura que vai desde o je- uniforme e identificar o que é ver- não procura essa retórica do poder. suíta José de Anchieta, no século

12 Revista Adusp Dezembro 2015 16, até os escritores ainda vivos ou que precisa ser conhecido. Depois tinha que ser, porque São Paulo que tinham sua produção comple- há três vertentes do Romantismo estava na vanguarda industrial e já ta já nos anos 1960 — a primeira que acho que precisam ser lidas e começava a ser cosmopolita. Mas edição da História concisa da lite- aprendidas: a indianista, da qual existem os escritores regionalistas ratura brasileira foi publicada em Gonçalves Dias é o grande nome; dos anos 1930, alguns muito bons, 1970. Muitos deles continuaram a a do lirismo subjetivo, com Álvares independentemente do Modernis- escrever depois disso, como Lygia de Azevedo; e a social, com Castro mo. Graciliano Ramos, por exem- Fagundes Telles, o próprio Drum- Alves. Depois se acrescentou Sou- plo, não tem nada de Modernismo. mond, , Guima- sândrade, que apareceu mais tarde. Ele lia Eça de Queiroz, os france- rães Rosa... A partir daí as edições O período do Realismo é inten- ses, os realistas, Tolstoi, Dostoie- se sucederam, às vezes com duas re- samente ocupado por Machado de vski — enfim, o seu universo era o edições no mesmo ano, e não havia Assis. Ele escreveu desde os anos do grande Realismo do século 19. tempo para uma atualização no sen- 1860 até praticamente a sua morte, Então é preciso distinguir esses dois tido de verificar o que se escrevia em 1908. É preciso conhecer pelo momentos, e no primeiro a ênfase contemporaneamente. O problema menos alguns livros da sua chamada paulista está em 1922, sobretudo na não é só de tempo: é também de fase madura: Memórias póstumas de figura de Mário de Andrade. Mais ter um critério muito seguro para Brás Cubas, Quincas Borba e Dom tarde Oswald passou a ser reivin- aferir o que vai ficar e o que não Casmurro. Mas Machado não está dicado pelos tropicalistas e pelos vai ficar entre os escritores que es- sozinho nesse universo que chama- poetas concretos. Criou-se um jogo tão começando. Mas as edições se mos de Realismo. Temos Aluísio de Mário versus Oswald — isso já sucediam e eu sentia que o livro po- Azevedo e Raul Pompéia, roman- passou, mas foi muito marcante dos deria ficar desatualizado do ponto cistas que ficam um pouco à som- anos 1970 e 80. de vista didático. Então, entre 1994 bra. Lima Barreto é o grande escri- Talvez a sua pergunta sobre o e 95 acrescentei poetas e escritores tor de transição pré-modernista, e que eu recomendaria possa ser me- da época. Daí por diante, vi que, se depois temos os modernistas. lhor respondida assim: anos depois continuasse a fazer isso, o livro iria Em São Paulo sempre se deu da primeira edição da História con- se transformar num catálogo tele- muita ênfase à Semana de Arte Mo- cisa, a Editora Cultrix — por meio fônico. No fim do século passado e derna de 1922. Em outros Estados de um grande poeta e amigo, José início deste, tem havido um movi- se afirma que houve um exagero Paulo Paes, já falecido — me pediu mento editorial enorme e a produ- aí. A grande literatura gaúcha, por que fizesse uma antologia de con- ção aumentou muito. Por isso, dei exemplo, com nomes como Simões tistas contemporâneos. Esse livro, essa atualização como ponto final. Lopes Neto, pouco deve ao Mo- O conto brasileiro contemporâneo O livro pontua a história da li- dernismo. Depois Erico Verissimo (1975), me deu uma grande alegria teratura brasileira, dando ênfase a ocupa esse espaço, mas ele não é porque havia muitos bons escritores alguns nomes. Como lecionei lite- modernista, é posterior. Alguns crí- ainda vivos que escreviam contos ratura colonial por muito tempo, ticos acham estranho que eu, como admiráveis. Debrucei-me sobre eles. insisti em Anchieta, Gregório de paulista, tenha escrito isso, porque Estão lá 18 escritores posteriores ao Matos e Padre Vieira. Avanço pelos aqui há uma devoção total sobre- Modernismo — Guimarães Rosa poetas neoclássicos — claro que tudo a Mário e Oswald de Andra- é o maior deles, e lá estão também temos que fazer um filtro, mas o de, que sem dúvida são escritores Dalton Trevisan, Lygia Fagundes aluno precisaria ler por exemplo notáveis — mas parece que todo o Telles, João Antônio e Clarice Lis- Tomás Antonio Gonzaga e Cláudio Modernismo se esgota neles. Escre- pector, entre outros. Nas sucessi- Manuel da Costa, poetas envolvi- vi na História concisa que existe um vas edições, achei que não deveria dos pela Conjuração Mineira. É um momento modernista de vanguar- acrescentar nada. É um livro no mundo, o mundo de Ouro Preto, da que realmente é paulista — e qual recolhi os contistas que me

13 Dezembro 2015 Revista Adusp pareciam os mais expressivos — e enraizada em interesses de acumu- to de resistência. Oito anos depois, ainda acho. lação muito sólidos. Sobretudo pa- quando Napoleão assumiu o Con- ra os que pensam em acumulação sulado e passou a ser a salvação da de qualquer maneira e em multi- França, houve um lobby tão forte plicação de seus lucros por meio dos fazendeiros crioulos das ilhas Sempre deixei claro nos meus dos jogos financeiros, a ideologia que Napoleão cedeu e derrogou textos que houve liberalismo liberal é um prato cheio. Ou seja, aquilo que tinha sido aprovado por cada um defende seu interesse, e aclamação na Revolução. Em 1802 escravista na Europa e nos não há lugar para o espaço público. a França retomou a escravidão nos Estados Unidos. Não se trata Isso é uma coisa mundial. Para es- mesmos termos anteriores à aboli- sa ideologia liberal, a terceirização ção. A escravidão se mantém mes- de característica apenas também é uma forma de se dispen- mo em 1830, com a Revolução e a brasileira. Agora, honra sar de uma série de obrigações tra- ascensão de Luís Felipe, num perí- balhistas. É um recurso que nas ati- odo de enorme expansão do libera- seja feita: no Brasil existem vidades culturais é muito perigoso lismo na Europa toda. Apenas com o liberalismo escravista e o e muito grave, porque elas não são a Revolução de 1848 é que se dá a atividades de lucro imediato: são abolição, com indenização aos pro- liberalismo abolicionista de atividades públicas, de resistência prietários. Isso é muito importante: , etc ao mercado. Uma universidade, por de 1802 até 1848, a França, que ao exemplo, é construída no espírito lado da Inglaterra era a matriz das de abertura, de democracia. A pa- ideias democráticas e liberais, man- lavra “público” já diz tudo. teve a escravidão. Revista Adusp. No mesmo en- As alegações dos “interesses ge- Agora, honra seja feita: no Brasil saio sobre as formações ideológicas rais” que os escravistas usavam eram existem o liberalismo escravista e na cultura brasileira, o senhor cita contrastadas, por exemplo, por Jo- o liberalismo abolicionista de Ruy trechos de falas de deputados pró- aquim Nabuco. É preciso mostrar Barbosa, Castro Alves etc. Escrevi escravidão nos debates na Câmara que há uma dialética. Nabuco queria há tempos um estudo intitulado “A no século 19, quando se intensifi- modernizar o Brasil e percebia que escravidão entre dois liberalismos”, cava a campanha pelo abolicionis- a escravidão era um entrave, além que está no livro Dialética da colo- mo. Parece inevitável associar essas de uma desumanidade. Da mesma nização (1992). Nesse estudo pole- falas às que ouvimos, por exemplo, forma, sempre deixei muito claro mizo com a ideia de que liberalismo nos recentes debates no Congresso nos meus textos que houve um libe- com escravidão seria uma farsa ide- Nacional sobre a terceirização. Por ralismo escravista na Europa, muito ológica tipicamente brasileira. Se que certas ideologias são tão resis- intenso também nos Estados Uni- é farsa ideológica, é também fran- tentes no Brasil? dos. Não se trata de uma caracte- cesa, inglesa, americana etc., cada BOSI. O historiador Fernand rística apenas brasileira. No Sul dos uma no seu nicho. Quantos milhões Braudel criou a expressão “história Estados Unidos havia universidades, morreram na Guerra da Secessão de longa duração”, ou “estruturas como na Virgínia, com professores (1861-1865) nos Estados Unidos de longa duração”. Ele foi muito de Economia que, por volta de 1850, para libertar os escravos? Há pro- feliz, porque muitas coisas mu- defendiam a escravidão. vas evidentes de que o mal não é dam..., mas continuam as mesmas. Um exemplo antológico: em só brasileiro, o que também não é A ideologia liberal ou neoliberal 1794, a Revolução Francesa, numa consolo. Não é correto achar que o reviveu nos anos 1990 na Europa, sessão célebre, aboliu a escravidão liberalismo tenha raízes sempre an- nos Estados Unidos e aqui também. nas colônias das Antilhas. Foi um tiescravistas. Ele tem uma tentação Ela é muito resistente porque está passo extraordinário e um momen- escravista, que mantém uma tensão

14 Revista Adusp Dezembro 2015 Daniel Garcia BOSI. Participei manter a política social, custe o que daqueles momen- custar. Agora, a desindustrialização, tos de formação es- apontada por exemplo nos artigos pontânea e popular do Delfim Netto, do do começo dos anos Belluzzo, do Bresser Pereira, é la- 1980 e conheci aque- mentável, e a coisa mais grave que las pessoas que eram pode haver é o desemprego crescen- de um idealismo to- te. Esse é o punctum dolens da situa- tal e estavam mara- ção econômica. John Keynes dizia: a vilhadas com a pos- economia perfeita é a que tenderia sibilidade de influir ao desemprego zero. Isso, claro, não na formação de um existe, mas é uma espécie de horizon- partido. Era a pri- te. Tudo o que se afasta disso é peri- meira vez que acon- goso. Nossa taxa de desemprego não tecia esse contato deveria subir como subiu na Espanha, direto englobando os na Grécia ou em Portugal. Creio que sindicatos, a Igreja, o Brasil tem potencialidades maiores os intelectuais de es- do que esses países. Paralelamente ao querda etc. Até en- atual ajuste fiscal, tem que haver um tão, todos os partidos esforço hercúleo para impedir o de- contínua com o trabalho. Quando o vinham de cima. De semprego. É o desejo de uma pessoa liberalismo sobe, o que acontece? O fato esse momento fundador alimen- que viu o PT nascer. trabalho treme e as leis trabalhistas tou muitas esperanças e, se ele não se são flexibilizadas, não sabemos até repropuser de alguma maneira, não que ponto. O trabalho tem que se vejo muita saída para o partido. O cuidar e terá que se defender, por- PT, ou pelo menos a direção do PT, A USP é das poucas que será atingido. Essa é uma forma aqueles que formam a sua burocracia universidades no País modernizada da grande tensão entre — e que parecem se eternizar — têm liberalismo e abolicionismo. duas dívidas: a primeira é realmente que não aceitam as cotas. afastar pública e abertamente todas Quando, há alguns anos, Revista Adusp. Num artigo re- as pessoas que foram seduzidas pela cente na Carta Capital, o senhor cita corrupção. É preciso se limpar disso. começou o debate sobre a ligação do PT, em sua origem, com A outra dívida é um fato que lamen- o tema, eu não sabia o os movimentos populares e as Co- tam todos os economistas, mesmo os que dizer. Mas o tempo munidades Eclesiais de Base (CE- de esquerda que foram favoráveis a Bs) e fala inclusive da sua experiên- Dilma e de alguma maneira ainda a foi passando e fui me cia num bairro operário de Osasco apoiam como o menor mal: a desin- convencendo de que a dívida no início dos anos 1980. O senhor dustrialização do Brasil. Ao longo do acha que o PT em particular e o go- período Lula e do primeiro mandato social enorme que temos verno de forma geral deveriam se da Dilma a ponta do consumo foi para com os descendentes de reconectar com esses movimentos e muito desenvolvida. Não vou criti- estabelecer novamente um diálogo car isso porque era muito necessário, escravos deve ser paga mais direto de forma a procurar re- e não se deve fazer o mea culpa de de algum modo cuperar um protagonismo político uma política distributivista num país que parecem ter perdido? em que nunca houve isso. É preciso

15 Dezembro 2015 Revista Adusp Revista Adusp. Fala-se muito em tes de escravos deve ser paga de sidade. Essa é uma luta que a Adusp crise na universidade e, no caso da algum modo, e o melhor modo é pode empreender, porque terá o for- USP, para além da questão finan- dar mais oportunidades. te apoio da comunidade. ceira que vem sendo apontada pela A palavra raça foi substituída por Reitoria, o senhor acha que há uma etnia e mesmo quem utiliza a pa- Revista Adusp. O senhor está há crise de representatividade e de fal- lavra raça o faz sem a conotação muitos anos envolvido no Instituto ta de diálogo entre os diferentes pejorativa. O problema do ensino de Estudos Avançados (IEA) da segmentos? primário e secundário, onde come- USP, que entre outras coisas procu- BOSI. Certamente há uma crise çam as desigualdades na educação, ra justamente propiciar um espaço de diálogo. Na questão das cotas, é um problema grave que vamos le- para encontro e debate de ideias. O por exemplo, acho que deve ha- var talvez uma geração inteira para senhor pode falar dessa trajetória? ver um diálogo mais profundo e resolver. Hoje sou adepto das cotas BOSI. Tive sorte porque fiz parte mais constante. A USP é das pou- porque os argumentos contrários dos primeiros conselhos do IEA e o cas universidades no País que não me parecem menos fortes do que os acompanhei desde o início — che- aceitam as cotas. Quando, há al- argumentos positivos. Porém, vejo guei a ser diretor. Vem sendo uma guns anos, começou o debate sobre com preocupação que não há zona trajetória muito feliz, particularmen- o tema, eu não sabia o que dizer. de diálogo. Deveria haver uma co- te no caso da revista Estudos Avan- Eu tinha dois receios: primeiro, missão permanente junto ao Co ou çados. O IEA foi fundado em 1986, que voltasse a palavra raça, tão à Reitoria para dialogar sem que vai completar trinta anos no ano que superada pela antropologia. Essa existisse o fenômeno da porta fecha- vem, e já em 1987 saiu o primeiro é uma palavra muito infeliz e que da, porque, quando há uma porta número da revista. Ela já alcançou já produziu muito mal por dividir fechada, você tenta arrombá-la. Co- mais de 27,6 milhões de acessos pela a humanidade por características mo professor egresso da FFLCH, internet — só em maio deste ano, físicas. O segundo é receio de pro- acompanho com muita esperança mais de 520 mil, o que significa que fessor: será que isso vai permitir o que está acontecendo lá, porque realmente teve ressonância. que se abandone de fato uma re- decisões recentes da congregação A minha trajetória aqui está forma profunda na escola primária são favoráveis às cotas (leia ofício muito ligada à revista. Gosto mui- e secundária, de onde devem vir da congregação da FFLCH no ende- to de elencar quem escreveu para esses alunos? Meu receio era que reço eletrônico http://bit.ly/1OrLee4). ela. Claro, são mais de 1.500 arti- nos dispensássemos de olhar para Quando se manifesta uma faculdade gos, mas quando olho para os co- o ensino secundário, que é a ma- desse tamanho, que é uma verdadei- laboradores fico muito gratificado. triz das iniquidades, uma vez que ra universidade, acho que é necessá- São nomes como Ignacy Sachs, que se abriria mais espaço na universi- rio que haja uma sensibilização da criou a ideia de ecodesenvolvimen- dade para alunos das escolas públi- parte do Co. to; o senador italiano Giovanni Ber- cas. A escola deve ser uma priori- O caso do Hospital Universitário linguer, o primeiro a alertar sobre o dade absoluta de todas as congre- (HU) também tem que ser gerido pe- mercado de órgãos para transplan- gações, sobretudo nas faculdades las pessoas realmente envolvidas. Re- tes; Jacques Chonchol, ministro da que formam professores. Dentro centemente professores da Faculda- reforma agrária de Salvador Allen- dos meus limites, sempre militei de de Ciências Farmacêuticas (FCF) de no Chile; Ivan Izquierdo, um para que os professores primários publicaram um manifesto demons- dos maiores cientistas do mundo e secundários fossem valorizados, a trando que o HU é fundamental para sobre memória; Jürgen Habermas, começar pelo salário. Mas o tempo a faculdade e que sua parceria dá que foi entrevistado e também es- foi passando e fui me convencendo muitos frutos. Fico muito preocupa- creveu para a revista; Eric Hobs- de que aquela dívida social enorme do quando vejo que há pessoas que bawm, que foi entrevistado pelo que temos para com os descenden- querem desvincular o HU da Univer- Paulo Sergio Pinheiro; Aníbal Qui-

16 Revista Adusp Dezembro 2015 jano; Michel Vovelle; Roger Char- cer. Precisávamos de uma sala e a de 2011], com todos aqueles danos, tier; Robert Kurz; Jacques Derri- Adusp nos abrigou naquele momen- mostrou os riscos que corremos. da; Noam Chomsky; Boaventura de to. Vinham pessoas do Greenpeace, Os italianos fizeram um plebiscito Sousa Santos; André Gorz, entre professores de química e física que para acabar com as usinas atômicas tantos outros. Entre os brasileiros, faziam análises das radiações, cien- e até os franceses, que dependem não vou citar nenhum vivo para não tistas japoneses que tinham todo muito dessa energia, também estão cometer involuntariamente algu- o material sobre as bombas atômi- pensando em fontes alternativas. O ma injustiça: Aziz Ab’Saber; Otto cas de Hiroshima e Nagasaki e su- mesmo ocorre na Alemanha. Maria Carpeaux, que era austríaco as consequências etc. Criamos um Já bem antes, em 1980, inclu- e se naturalizou brasileiro; Ariano grupo de trabalho para lutar contra sive Drummond tinha nos ajuda- Suassuna; Oswaldo Xidieh; Eras- a usina de Angra 3, porque Angra 1 do. Minha esposa escreveu para ele mo Garcia Mendes; Octavio Ianni; e 2 estão funcionando e fornecem dizendo que precisávamos de um Jacob Gorender; Raymundo Faoro; uma pequena parte da energia do grande nome ao nosso lado porque José Paulo Paes; ; Rio de Janeiro, embora o problema os deputados poderiam, naquele também para citar só alguns. do seu lixo atômico ainda não tenha momento, época do acordo nuclear sido resolvido. Fizemos vários atos com a Alemanha, aprovar a cons- públicos com o objetivo de reco- trução de uma usina em Iguape. lher um número de assinaturas que Fomos lá e fizemos até uma pro- Drummond escreveu no chegasse ao Congresso Nacional cissão para demover as autorida- Jornal do Brasil um e realmente paralisasse Angra 3. des da ideia. Essa luta foi vitoriosa: Esse movimento refluiu um pouco. seja por falta de dinheiro ou por artigo chamado “Se eu Um de seus inspiradores é o Chico milagre, o processo foi desativado. fosse deputado”. Ele, um Whitaker, ex-vereador em São Pau- A região entre Peruíbe e Iguape, lo, que não desiste nunca. Recente- no litoral Sul de São Paulo, seria poeta que não tinha nada mente ele enviou uma carta aberta devastada pela usina, mas se trans- que ver com o assunto, à presidente Dilma e ao ministro formou na atual Estação Ecológica das Minas e Energia demonstrando Jureia-Itatins. Drummond escre- foi estudar os males das que, com a atual crise econômica, veu no Jornal do Brasil um artigo usinas atômicas e escreveu seria o caso de não finalizar a usina, chamado “Se eu fosse deputado”. devido ao seu custo altíssimo. Eu Ele, um poeta que não tinha nada um texto muito bonito e muitas outras pessoas assinamos que ver com o assunto, foi estudar que mandamos para os a carta. Creio que é uma luta que os males das usinas atômicas e es- deve continuar e que é preciso con- creveu um texto muito bonito que deputados e foi reproduzido vencer a presidente Dilma de que o mandamos para os deputados e foi em outros jornais Brasil tem muitas alternativas, e a reproduzido em outros jornais (leia energia atômica não é uma delas. aqui o texto de Drummond: http://bit. Nem todos os físicos pensam co- ly/1MR8IXp). mo nós. Há pessoas que acham que A revista Estudos Avançados Revista Adusp. O senhor partici- essa energia é necessária, mas nós vem publicando vários dossiês so- pava de um grupo contrário à usina pensamos muito mais nos riscos. bre energia, com artigos assinados nuclear, grupo este que se reunia Conseguimos produzir alguns do- por pessoas muito competentes. Já na sede da Adusp. Como foi essa cumentos, folhetos e livretos para recebemos críticas dizendo que a experiência? distribuir às pessoas. O que acon- revista era contra Angra 3 — e eu BOSI. A Adusp foi muito ge- teceu em Fukushima [acidente nu- respondi: sim, de fato somos contra nerosa conosco, só posso agrade- clear após o terremoto e o tsunami e assumimos isso.

17 Dezembro 2015 Brasil Revista Adusp De s c a s o e r e p r e s s ã o , polític a p a r a e n s i n o p ú b l i c o e m SP e PR João Peres, Moriti Neto, Thiago Domenici Jornalistas

Joka Madruga/Terralivrepress.com

Desde as décadas de 1980 e 1990, mandatários paulistas e paranaenses pouco dialogam com a categoria dos professores — e, no limite, reagem com violência a greves. Em 2015, duas efemérides ligadas à educação pública e avaliações pessimistas quando se fala de avanços nessas redes estaduais demonstram uma situação que parece interminável: de um lado, educadores reivindicam salários dignos, plano de carreira e melhor estrutura de trabalho; de outro, governantes fazem ouvidos moucos. Os exemplos do passado descortinam o que se vivencia no presente. A imagem acima mostra o início do ataque da PM aos professores em 29 de abril, em Curitiba

18 Revista Adusp Dezembro 2015 A Praça da República, no centro Nos anos seguintes, os profes- crática que sustentavam os discur- de São Paulo, abrigava aproximada- sores sentiram as consequências. sos anteriores deram lugar às de mente 100 professores acampados Numa condição paradoxal, a ca- natureza gerencial. “Como a polí- em frente ao Colégio Caetano de tegoria passou a ser avaliada por tica era municipalizar, o governo Campos, sede da Secretaria Esta- mecanismos externos, como o Sis- desmantela a rede, com impacto dual de Educação (SEE). Pela ma- tema de Avaliação de Rendimento nos municípios menores, mais sus- nhã, uma faixa estampava a frase Escolar do Estado de São Paulo cetíveis de pressão política, criando “Professores em greve acampados (Saresp), e internos, a exemplo dos uma desestruturação. Hoje, há uma em defesa da escola pública, do em- testes de desempenho. Na esteira inversão: o Estado repassa quase prego e do salário”. A ocupação era das mudanças, a carreira do ma- R$ 4 bilhões para os municípios”, pacífica. A Polícia Militar mantinha gistério sofria com a rotatividade avalia Marcelino. uma viatura no local: “Estamos aqui, de educadores nas escolas, o alto também, para garantir a segurança número de alunos por sala de aula, dos professores”. Horas depois, o a violência no cotidiano escolar, cenário mudaria drasticamente. À o arrocho salarial que obrigava a “É complicadíssimo darmos tarde, na avenida Paulista, durante jornadas exaustivas e a criação da aula para um aluno que manifestação de servidores públicos aprovação automática de alunos. A estaduais, o movimento sofreria vio- categoria ainda assistiu ao que o go- não foi alfabetizado”, diz lenta repressão da Tropa de Choque: verno chamou de “reorganização da Guiomar Ferreira. “A aula bombas de gás, balas de borracha e rede”, fechando 8 mil salas de aula muitos feridos. Atingido por estilha- em 105 escolas, com a demissão su- é missa de corpo presente ços, o professor Ronaldo Ferreira mária de 22.629 professores, o que apenas, como se bastasse a dos Santos perdeu um dos dedos da preparou o caminho da política de mão e o repórter-fotográfico Alex municipalização da educação, con- presença física de professores Silveira (que cobria a manifestação cretizada em 1996 com a instituição e alunos”, comenta Ana para o jornal Agora SP) recebeu um do Programa de Ação e Parceria tiro de bala de borracha no olho es- Educacional Estado-Município. Lídia, que leciona para 16 querdo, que o deixaria cego. Ocor- A reforma transferiu para as salas com 45 alunos cada rido há 15 anos, durante uma greve prefeituras parte da responsabilida- que durou 43 dias, o episódio, se de pelo ensino fundamental, num comparado aos eventos violentos movimento apelidado de “Jack, mais recentes de 2015 envolvendo o estripador” pelo professor José Guiomar Ferreira, professora a categoria, demonstra que nem a Marcelino de Rezende Pinto, da de Geografia da rede pública há 22 situação do professorado nem os Faculdade de Educação da USP de anos, também fixa essa divisão entre métodos do governo evoluíram. Ribeirão Preto. “Naquele momen- prefeitura e Estado como um marco Mário Covas (PSDB), que assu- to, o Estado tinha uma rede pública fundamental para a precarização do mira o mandato em 1995, era um única que receberia um aporte de ensino. “A prefeitura está preocupa- governador alinhado aos objetivos do muitos bilhões, o suficiente para da só com a verba que vai receber e governo federal, presidido pelo cor- estruturar uma rede que já tinha as não com a educação. Há municípios religionário Fernando Henrique Car- condições básicas.” em que há comprometimento. No doso. Covas tinha como meta “novas A maioria das entidades da so- meu, não há. É complicadíssimo dar- condições para o financiamento da ciedade civil, especialmente na área mos aula para um aluno que não foi educação”, e a “reforma educacional” sindical, foi contra a proposta, mas alfabetizado”, diz a docente, que atu- teve como eixos descentralização, pri- não conseguiu barrar o processo. almente leciona para o ensino médio vatização e desregulamentação. As justificativas de natureza demo- em Itanhaém, no litoral paulista.

19 Dezembro 2015 Revista Adusp Mirophotos Ao falar sobre os problemas em que os profissionais alcancem uma sua cidade, ela toca em outro ponto série de metas, o que inclui verifica- apresentado como solução no dis- ção das taxas de aprovação, reprova- curso tucano: a chamada “progres- ção e abandono escolar de alunos. são continuada”, prevista pela Lei de Bebel, que reassumiu a presidên- Diretrizes e Bases, de 1996, adotada cia da Apeoesp em 2008 e segue à em São Paulo por Covas sob a ideia frente do sindicato, compara as mo- de que a aprovação automática redu- bilizações de 2000 e deste ano. “São ziria a taxa de evasão por evitar de- greves históricas que provam, por sestímulo dos alunos. O mecanismo um lado, a força do movimento dos pensado por educadores visa a res- professores e, por outro, demons- peitar o tempo de aprendizado de ca- tram a continuidade da má gestão da estudante, mas prevê que se passe do Estado de São Paulo.” A dirigen- por um processo contínuo de acom- te sindical avalia que Geraldo Alck- panhamento para monitorar pontos min (que foi vice de Covas) conserva Professor José Marcelino (FFCLRP) que devem ser alvo de melhoria. É uma postura truculenta em relação raro encontrar um professor que se mesmo sob vaias, o então governa- aos professores, algo que, segundo arrisque a dizer que esse projeto é dor decidiu passar duas vezes pelo ela, ficou evidente na maior greve da devidamente implementado na rede acampamento dos professores na história da categoria. “Durante 92 pública paulista. “O aluno vai pas- Praça da República. Em retaliação dias, o governo limitou-se a atacar a sando, passando, passando. Chega à às vaias recebidas, seguranças do Apeoesp e a renegar o movimento, quinta série com o mesmo problema tucano destruíram algumas barracas. mesmo diante de todas as evidências da primeira”, constata Guiomar. Policiais usaram bombas de efeito da insatisfação.” De fato, o governa- Ana Lídia Aguiar, professora de moral contra os ativistas, que res- dor declarou não existir greve: “Os sociologia no ensino médio em São ponderam com pedras, paus e laran- professores estão dando aulas e, os José dos Campos, também é críti- jas. Atingido, Covas sofreu dois leves alunos, estudando”. ca à política educacional tucana. cortes, na testa e no lábio superior. Ela se questiona como vai garantir Cinco professores foram presos. Ou- atenção às potencialidades dos alu- tros quatro ficaram feridos. nos “num cenário assim”. Respon- Presidenta da Apeoesp à época, No Paraná, o governo de sável por 16 salas, que recebem, em Maria Izabel Azevedo de Noronha, Alvaro Dias (1988) é autor média, 45 alunos, faz 32 horas de a Bebel, afirmou que a atitude do carga horária, mais 3 horas de Aula mandatário o fez sair “como vítima”. de uma agressão histórica de Trabalho Pedagógico Coletivo O desfecho não foi dos melhores. O à categoria, ao jogar sobre (ATPC), além de tarefas que leva que se viu em seguida foi a imple- para casa. “Cada aluno é um ca- mentação da “política de bônus”, ela a cavalaria da PM. so, tem diferenciais. Só que, nessa na qual gratificações de até R$ 6 mil Mas as tropas do também situação, a gente faz de conta que eram pagas aos docentes com “boa dá aula e o aluno faz de conta que assiduidade”, situação que dividiu a tucano Beto Richa (2015) aprende”. Para a educadora, “a au- categoria, dificultando a possibilida- produziram verdadeiro la é uma missa de corpo presente de de movimentos grevistas sólidos. apenas, como se só a presença física Tal bonificação jamais foi incorpo- massacre: 170 feridos, de professores e alunos bastasse”. rada aos salários e está na origem da muitos com gravidade Presença física foi o que ofereceu polêmica “política de meritocracia” Mario Covas. Em junho de 2000, no ensino público, que prevê, ainda,

20 Revista Adusp Dezembro 2015 Douglas Mansur/Apeoesp Daniel Garcia

Assembleia da Apeoesp no MASP, em São Paulo Bebel, presidente da Apeoesp Como ficou demonstrado na gre- testar em frente ao Palácio Iguaçu, Estado que não tinha sido escrita”, ve dos professores paranaenses des- mas a polícia fez um cordão de isola- avalia Hermes Silva Leão, presi- te ano, a atitude dos governos do mento. As agressões não demoraram dente da APP-Sindicato. Para ele, o PSDB não se limita a São Paulo. a ocorrer. Enquanto os professores confronto caracterizou um governo Além da violência perpetrada pela lembram a data pelas marcas da vio- com um “traço de ditadura”. Ao atual administração de Beto Richa lência estatal, Alvaro Dias nega a menos 170 pessoas ficaram feridas, em abril, outra data simboliza o his- repressão e afirma que o sindicato muitas com gravidade. Os docentes tórico de conflagrações no Estado. “usou a manifestação politicamen- mantiveram uma greve de 45 dias e Em 1988, Alvaro Dias, hoje senador te”. Em declaração ao jornal para- a repercussão das ocorrências der- peessedebista, comandava o executi- naense Gazeta do Povo, em 2013, rubou os secretários de Educação, vo, e uma greve entrava para a histó- chegou a minimizar a intensidade do Fernando Xavier, e de Segurança, ria pela agressividade do desenlace. ataque da polícia: “Se compararmos Fernando Francischini. No dia 30 de agosto, policiais mili- com tumultos recentes, aquilo vai “Hoje, temos uma democracia tares avançaram com cavalos, cães e parecer uma brincadeira.” muito mais consolidada do que tí- bombas de efeito moral contra uma Se a cavalaria deixou um rastro nhamos em 1988, o que torna esse multidão que protestava por melho- de brutalidade em 1988, o grau de rompimento de agora (pelo governo res salários e condições de trabalho violência com Beto Richa em 2015 Beto Richa) muito mais grave”, en- na Praça Nossa Senhora de Salette, foi ainda pior. Na luta por reajuste fatiza o professor Marcos Ferraz, in- em Curitiba. A repressão deixou dez salarial e contra o projeto do gover- tegrante do Núcleo de Pesquisa em pessoas feridas e resultou na prisão nador que modifica a previdência Políticas Educacionais da Univer- de cinco manifestantes. dos funcionários públicos estaduais, sidade Federal do Paraná (UFPR). A greve durava duas semanas 15 mil manifestantes — segundo a Em meio à repressão e a protestos, sem que o governo e a Associação associação dos professores — foram a Assembleia Legislativa aprovou o dos Professores do Paraná (APP) atacados por disparos de balas de projeto que transfere do governo es- chegassem a um acordo. O pico de borracha, spray de pimenta, bom- tadual para um fundo dos servidores insatisfação veio com uma passeata bas de gás e mordidas de cães da públicos a responsabilidade pelas da Praça Rui Barbosa até o Centro PM. “O ataque que a gente sofreu aposentadorias de 33.556 beneficiá- Cívico. Os docentes planejavam pro- marca uma página da história do rios com 73 anos ou mais.

21 Dezembro 2015 Revista Adusp Fotos: Joka Madruga

Hermes Leão, presidente da APP

Estudo da OCDE revela que o Brasil paga segundo pior salário para professor entre os 44 países pesquisados. A nossa média de US$ 10.375 é 3 vezes inferior à média das Flagrantes da brutalidade policial no Paraná pesquisadas. Ficamos atrás a lei 11.738, de 2008, que fixa o piso professor. A média de US$ 10.375 salarial dos professores do magisté- é três vezes menor que a auferida até de quem também adotou rio e a lei que destina ao setor parte entre as nações pesquisadas e fica receitas neoliberais: Chile (US$ considerável da arrecadação com seis vezes abaixo do que é pago em royalties do petróleo da camada pré- Luxemburgo, com US$ 66 mil ao 17.770) e México (U$ 15.556) sal são indicadores desse cenário. ano, segundo dados coletados em Se crescem os recursos disponíveis, 2012 e reunidos em pesquisa divul- a vontade de aplicação e o destino gada no ano passado. Até mesmo Em âmbito nacional, nos últimos nem sempre seguem o caminho an- quando comparado a países que anos, o financiamento e a organiza- siado por trabalhadores da área. adotaram receituários neoliberais ção da educação apresentaram avan- Estudo feito pela Organização na seara educacional, o Brasil fica ços graças a decisões do Legislativo para a Cooperação e o Desenvol- bem atrás: US$ 17.770, no Chile, e e do Executivo. Ainda que quanto vimento Econômico (OCDE) mos- US$ 15.556, no México. a todas elas possa haver poréns, o tra que, entre 44 países, o Brasil “O professor é desprestigiado Plano Nacional de Educação (PNE), paga o segundo pior salário para o de longa data, tanto socialmente

22 Revista Adusp Dezembro 2015 Daniel Garcia garantir a valorização monetária da Os relatos sobre a falta de con- carreira docente. Estudo feito pela dições de trabalho são conheci- Confederação Nacional dos Tra- dos há anos. Salas superlotadas, balhadores em Educação (CNTE) alunos carentes de conhecimentos mostra que sete Estados ignoram básicos e baixo nível de infraes- a legislação e outros 14 a descum- trutura eram, são e possivelmente prem parcialmente. São os casos de continuarão a ser problemas fre- São Paulo, que paga o valor corre- quentes (vide, por exemplo, Revis- to, mas não respeita a necessidade ta Adusp 38, de 2006: http://www. de o professor dedicar um terço da adusp.org.br/files/revistas/38/r38a01. jornada a atividades extraclasse, e pdf). Novo, ou relativamente no- do Paraná, que não paga o míni- vo, é o cenário global de transfor- mo estabelecido — atualmente R$ mações aceleradas frente ao qual Professor Rubens Camargo (FE) 1.917,78, na tabela do Ministério uma situação ruim fica pior. “A quanto economicamente e, não te- da Educação. gente não consegue dar atenção nho dúvida, reverter isso demanda O resultado está refletido em individualizada. É uma educação uma política de valorização”, diz outro relatório, que foi elaborado a toque de caixa”, avalia Bianca Rubens Barbosa de Camargo, pro- em 2014 pelo Instituto de Pesquisa Lunna, professora de sociologia no fessor da Faculdade de Educação Econômica Aplicada (IPEA). Ape- ensino médio. da USP. Entre 20 metas, o PNE de- sar da entrada de 220 mil profis- Há cinco anos na rede pública fine que o salário dos docentes do sionais da educação todos os anos estadual de São Paulo, ela se depa- magistério deve ser equiparado à no mercado de trabalho, não há ra com questionamentos comuns média garantida a outros servidores sinais de excesso de oferta de força entre colegas: até quando vale a públicos de nível superior até 2020. de trabalho entre professores dos pena continuar? “Foi o meu mais “As elites do nosso país nunca apos- ensinos básico a médio, pois muitos efetivo engajamento político, acre- taram numa educação das massas desistem da carreira. dito, para oferecer uma visão de de qualidade, nunca pensaram que mundo, uma transformação social, a educação servisse para formar ci- mas eu confesso que estou bem dadãos, para que se tivesse uma desencantada”, contou, durante melhoria da própria sociedade. En- Salas superlotadas, alunos uma das assembleias da última gre- xergam a educação pública como carentes de conhecimentos ve da categoria. “Porque a gente é provedora de mão de obra”, diz Ca- tratado como lixo e porque esse margo, ex-secretário municipal da básicos e baixo nível de modelo de escola funciona para Educação de São Carlos. infraestrutura eram, são e não funcionar”. Outro instrumento legal mostra Em termos de danos à imple- como discurso e prática se divor- possivelmente continuarão mentação de projetos pedagógicos ciam quando o assunto é educação. a ser problemas frequentes. sólidos, nada é mais nocivo do que Governadores de vários Estados a precarização da força de traba- apresentaram duas ações tentando Mas a situação tem piorado. lho, avalia o IPEA. O estudo “Sub- derrubar parte das obrigações pre- “A gente não consegue dar sídios e proposições preliminares vistas na lei 11.738, também conhe- para um debate sobre o magisté- cida como Lei Nacional do Piso do atenção individualizada. É rio da educação básica no Brasil” Magistério. Na primeira, perderam. educação a toque de caixa” constata que professores temporá- Agora, esperam que o Supremo rios ou terceirizados chegam a 1/4 Tribunal Federal os desobrigue de do total nas redes públicas esta-

23 Dezembro 2015 Revista Adusp duais e municipais, superando os não foram respondidos até o fe- público. Ou seja, um trabalhador 40% em física e química. chamento deste texto. dispensado em dezembro só pode- Lilian Barbosa lança um olhar rá voltar a assumir aulas entre ju- de resignação sempre que per- lho e agosto. “Você fica mais des- guntada sobre o futuro como pro- motivado ainda. Sem contar que, fessora. “Se não tivesse esse ou- Uma das grandes queixas se começo a trabalhar em junho, tro trabalho, não sei como estaria dos educadores temporários só vou receber daqui a três meses”, agora”, diz, durante uma conversa diz Lilian. Formada em Letras no na praça de alimentação do shop- em São Paulo diz respeito à ano de 2009, ela esperou até 2011 ping em que trabalha, na zona sul “duzentena”, prazo de 200 para buscar trabalho como profes- de São Paulo. Aos 37, a balança sora eventual, atividade que exer- de Lilian oscila entre duas pai- dias ao término do contrato ceu até 2012. xões: a beleza e a educação. Nos no qual o professor não pode Nos dois anos seguintes, foi últimos tempos, o design de so- integrante da chamada categoria estabelecer novo vínculo com brancelhas tem vencido a disputa “O”, designação oficial que se ao oferecer estabilidade e melho- o poder público. “Você fica dá aos professores temporários. res rendimentos. mais desmotivado ainda”, O contrato foi encerrado em de- Lilian fez parte dos mais de 112 zembro passado, com duzentena mil professores não concursados diz Lilian Barbosa terminada em julho de 2015. Co- (temporários ou eventuais) ante mo o vínculo começa a contar no os 139 mil efetivos, segundo dados prazo de 24 meses a partir do ano do ano passado. Em São Paulo, o em que foi estabelecido (não do índice chegou a ser de 73,9% de Uma das perguntas, no caso mês), Lilian não tem intenção de não concursados em 1999, no go- do órgão paulista, dizia respeito buscar agora um novo trabalho verno Covas. Atualmente, está em ao levantamento inédito do mes- como docente. “Vou ver o que vai 44,7%, menor patamar da histó- trando em Educação pela USP ser da minha vida para decidir se ria. A contratação de funcionários José Quibao Neto. O pesquisador fico na educação ou não. Porque temporários pelo Executivo esta- identificou que o Estado não só viver nessa instabilidade é difí- dual é sustentada na Lei Comple- não conseguiu diminuir o núme- cil”, constata. mentar 1.093, de 2009, que diz que ro de não concursados em quase Categoria “O” em São Paulo, os professores são uma categoria duas décadas, como o histórico “PSS” ou Processo Seletivo Sim- à parte, com possibilidades quase dos temporários demonstra que plificado no Paraná. As nomencla- irrestritas de abertura de contra- “a anomalia da excepcionalidade turas mudam, o quadro de preca- tos com duração de até 24 meses. é a regra”, já que a Constituição rização é parecido. No Paraná, o Sempre que houver aulas dispo- de 1988 prevê aprovação em con- sindicato da categoria calcula em níveis, salas precisando de docen- curso público. Os seis processos 25% a faixa de docentes tempo- tes ou cargos não preenchidos por de seleção realizados em São Pau- rários. No final do ano, o governo concurso, pode-se apelar aos tem- lo entre 1999 e 2014 efetivaram Richa deixou de pagar salários dos porários. A legislação deixa claro somente 83 mil professores. professores contratados pelo PSS. que esses servidores têm apenas Uma das grandes queixas dos “É horrível”, define Sonia Rosa dois direitos: décimo-terceiro salá- educadores temporários diz respei- Pires. Professora concursada em rio e pagamento de férias propor- to à chamada “duzentena”, prazo São Paulo durante 17 anos, ela se cionais. Questionamentos enviados de 200 dias ao término do contrato mudou para Alto Paraná, no no- pela reportagem às secretarias de no qual o professor não pode esta- roeste paranaense, há três anos. Educação de São Paulo e Paraná belecer novo vínculo com o poder Nos dois primeiros, antes de ser

24 Revista Adusp Dezembro 2015 Fotos: Daniel Garcia estimulado os professores a in- gressar com ações individuais con- tra a duzentena. Nos primeiros cinco meses do ano, ações movi- das em cinco cidades resultaram em concessão de liminar para que os professores cumprissem ape- nas quarenta dias de afastamento, prazo considerado normal para o serviço público. Nas decisões, juízes manifestaram que o impe- dimento ao trabalho por duzentos dias cria uma situação que fere os princípios básicos da igualdade. A Apeoesp quer concursos mais frequentes. “Os professores tem- porários deveriam ser limitados Professora Bianca Lunna José Quibao Neto a 5% ou 10% do total de efetivos aprovada em concurso, teve de se Os relatos coincidem com al- e os concursos deveriam ter uma submeter à condição de temporá- gumas análises e estudos que indi- periodicidade menor. Enquanto ria. “É lamentável porque a gente cam que a profissão tem, cada vez permanecem como temporários, tem que fazer uma inscrição on- mais, se tornado um “bico”. eles devem ter assegurada a dig- line, colocar a documentação ne- nidade no exercício da profissão”, cessária. E conforme vão surgindo diz Bebel. as necessidades no ano letivo é que Camila Lisboa é professora há eles vão chamando os professores Ações individuais contra a dois anos. Crescida e formada na por ordem de pontuação. No final “duzentena” resultaram em rede pública paulista, entendeu do ano, você é cortado do sistema que lecionar no sistema gratuito e fica sem receber.” liminares contra o governo e aberto a todos seria uma ma- Num dos anos, Sonia foi cha- estadual. A Apeoesp quer neira de retribuir à sociedade e mada para trabalhar apenas em de utilizar a educação como um abril. Mesmo agora, como con- mais concursos e limite de instrumento de transformação so- cursada, ela se depara com o de- 10% de temporários na rede. cial. “Mas, quando a gente chega sânimo trazido pelas condições de na escola, a realidade é bem difí- Enquanto forem temporários, trabalho dentro da sala de aula e cil. Você tem salas superlotadas, pela baixa remuneração. “Era um “eles devem ter assegurada crianças em situação social deli- sonho e foi o que eu segui. Gosto a dignidade no exercício da cada. Aí você começa a entender muito de escola, de estudar, de por que tantos professores adoe- ficar em constante aprendizado, profissão”, diz Bebel cem”, admite. gosto de ler, de escrever”, afir- No primeiro ano de profissão, ma. “Estou pensando em fazer integrou a lista de profissionais da um curso de modelista e estilista. categoria O. “A gente não pode Minha mãe é costureira. Se der Na falta de avanços na nego- ter falta. Você fica à margem. As certo, vou mudar de ramo, sim. A ciação com o governo de São Pau- condições de trabalho são ruins, tendência é piorar cada vez mais”. lo, representantes sindicais têm ganha-se pouco”, afirma. Ser tem-

25 Dezembro 2015 Revista Adusp

26 Revista Adusp Dezembro 2015 porário é um problema para co- mandaria que o reajuste em 2015 fos- meçar o contrato, outro para ter- se de 19,6%, no geral, e de 24,4%, no minar. “Primeiro, o pessoal efeti- Para que fosse cumprido caso específico dos professores que vo faz atribuição. O que sobra vai lecionam até a quinta série do ensino para quem é contratado. Chega de imediato o PNE, os fundamental. Em valores atualizados, a ser humilhante. Vai um monte professores da rede estadual o salário médio do segmento equiva- de gente numa escola, fica o dia leria a R$ 1.946 para uma jornada de deveriam ter direito a uma inteiro para talvez ter aula, talvez 30 horas-aula semanais, frente a uma não. Chega de manhã e sai de lá à remuneração equivalente realidade de R$ 1.565. Além disso, o noite”. à média do funcionalismo Dieese avalia que a média da remune- Outro levantamento ainda iné- ração do quadro do magistério da re- dito, realizado pelo mestrando em público estadual paulista, hoje de estadual não satisfaz as necessida- educação João Batista Silva dos em R$ 4.247, o que implicaria des básicas de uma família de quatro Santos, da Universidade Federal de pessoas (dois adultos e duas crianças). São Paulo (Unifesp), mostra que, se um reajuste de 75,33% A Apeoesp, considerando a mé- todos os docentes fossem concursa- dia geral da categoria, fala em salário dos, os investimentos do governo de R$ 2.422 para uma jornada de 40 estadual em folha de pagamento Na última edição, o programa con- horas semanais. Mas, para que fos- subiriam em torno de 10%. Num templou 10,7 mil professores, direto- se cumprido de imediato o PNE, os recorte específico, que exemplifica res e supervisores. “Passei na prova do docentes deveriam ter direito a uma a situação, Batista explica que, no mérito, mas isso não é certo. Quando remuneração equivalente à média do mês de outubro de 2013, “o Estado houve a primeira prova, deu 25% de funcionalismo público estadual, hoje poupou R$ 63 milhões ao manter o aumento só para 20% dos aprovados. em R$ 4.247, o que implicaria um percentual de professores temporá- Aí começou a divisão, inclusive com reajuste de 75,33%. rios na rede, o que representa em posturas preconceituosas dos próprios O desestímulo criado pela situação um ano o equivalente a mais de R$ colegas”, lamenta Filomena Leal, pro- aquém do esperado é verbalizado por 750 milhões”. fessora de Geografia na rede pública praticamente todos os professores. E é Obviamente, a recente contra- há quase duas décadas. ainda mais claro no caso daqueles que tação de professores na rede pau- Nos cálculos do governo estadu- atuam também nas capitais. Um pro- lista não significa que as condições al, a valorização máxima para apro- fissional da educação no estágio mais salariais sejam excelentes. Longe vados nas políticas de avaliação é de alto da carreira pode receber R$ 8.400 disso. “Quando os governos co- 45% entre 2011 e 2014. Um profes- na rede municipal, salário inalcançável meçam a acertar um pouquinho sor de ensino médio que recebia R$ para um professor da rede estadual. mais a questão do piso, fazem isso 1.655 chegou a R$ 2.415 em 2014, “Então, se invisto na minha formação, à custa de dois movimentos: ou segundo a Secretaria de Educação, vou ter um retorno. No Estado, não. do achatamento da carreira, o que quase R$ 600 a mais em compara- Tenho pós-graduação, tenho cursos de acontece em São Paulo, ou do uso ção com a média dos profissionais especialização e isso não me dá uma de professores precários”, avalia em exercício na mesma função. condição melhor de trabalho”, recla- Rubens Camargo, da USP. Criado Ao fazer os cálculos, o Departa- ma Luciana Ferreira, professora da em 2010, o Programa de Valoriza- mento Intersindical de Estatísticas e rede estadual há 22 anos. ção do Mérito garante reajustes Estudos Socioeconômicos (Dieese) Se depender de Alckmin e Richa, acima da média para uma cota de concluiu que a recuperação do poder Luciana, Bianca, Filomena, Sonia e docentes que consegue os melho- de compra de 1998 para os profes- Guiomar terão mesmo de procurar res desempenhos em uma avalia- sores como um todo, sem separação outros lugares para promover educa- ção aplicada anualmente. entre abonados e desabonados, de- ção de qualidade.

27 Dezembro 2015 América Latina (I) Revista Adusp At a q u e midiático à De m o c r a c i a e a o s p r o j e t o s n a c i o n a i s

Frederico Füllgraf Jornalista

“...Nossos adversários dizem: ‘Sim, anos atrás, nós garantimos a liberdade de opinião a vocês’. Sim vocês a nós! Mas esta não é uma prova de que nós a devemos garantir a vocês! Que vocês a deram a nós é apenas uma prova do burros que são!” Joseph Goebbels (discurso, 4/12/1935)

Hugo Chávez reassume em 2002

28 Revista Adusp Dezembro 2015 Em uma audiência para rádios de comunicação, que não consegui- Ao obter folgada maioria de e televisões católicas, ocorrida em ram conter as escaladas dos jornais 56,20% dos votos, em 6 de dezem- março de 2014, ninguém menos que Clarín (Buenos Aires) e El Universo bro de 1998, o então tenente-coro- o Papa Francisco declarou: “Hoje, (Quito). No recém-lançado livro nel da reserva Hugo Chávez, can- o clima midiático tem suas formas La internacional del terror mediático didato de uma frente ampla, na- de envenenamento. As pessoas sa- (Buenos Aires, 2015), Aharonian cionalista e progressista, elegeu-se bem, percebem, mas infelizmente fulmina: “Sem uma democratiza- presidente da Venezuela com um se acostumam a respirar do rádio ção da comunicação é muito difícil projeto de reformas centradas na e da televisão um ar sujo, que não que tenhamos novas sociedades e nacionalização do petróleo e no faz bem. É preciso fazer circular democracias mais inclusivas e mais combate à pobreza, na qual estavam um ar mais limpo. Para mim, os equitativas”. mergulhados 43,9% da população. maiores pecados são aqueles que Concertações e conspirações mi- Consciente da oposição que lhe vão na estrada da mentira, e são diáticas não são novidade no Brasil, fariam a tradicional oligarquia e as três: a desinformação, a calúnia e a cuja frágil república enfrentou duas novas forças neoliberais, Chávez difamação”. delas: a partir de 1950, o ataque vislumbrou uma reforma da Cons- O uruguaio Aram Aharonian, fun- cerrado ao governo Getúlio Vargas, tituição como ferramenta jurídica dador da TeleSur, alerta: “Vivemos e — pela mesma falange constituí- para deslanchar os programas pro- em plena batalha cultural: a guerra da por Correio da Manhã, Jornal do metidos em campanha. Para legiti- pela imposição de imaginários coleti- Brasil, O Globo, Diário de Notícias, mar a reforma, realizou-se o Refe- vos se dá através de meios cibernéti- O Estado de S. Paulo e os Diários rendo de abril de 1999, mediante o cos, audiovisuais e da imprensa... São Associados — a desestabilização do qual 87,75% dos eleitores se pro- golpes baixos permanentes, notícias governo João Goulart, entre 1961 nunciaram favoravelmente a uma que não têm contextualização, mas e 1964. Vejamos agora, resumida- Assembleia Constituinte e a uma que conseguem impactar o coletivo mente, como se deu na Venezuela nova Constituição. Promulgada em e já foram empregadas para deses- a acachapante promiscuidade e en- dezembro de 1999, ela garantiu a tabilizar os governos populares da volvimento institucional da mídia reeleição de Chávez em 30 de julho América Latina”. privada em um golpe de Estado. de 2000. Em novembro do mesmo Está em curso a insurreição im- ano, a Assembleia Nacional apro- pulsionada por um “latifúndio mi- varia a Ley Habilitante, que dotou o diático” contra os governos da Ve- Pesquisa feita por Eva presidente de poderes especiais pa- nezuela e Argentina, do Brasil e Golinger, uma advogada ra aprovar um pacote de 49 medidas Equador, assinala Ignacio Ramonet, de notável impacto social e político. ex-diretor do Le Monde Diplomati- norte-americana, revelou Da Ley Habilitante derivaram a que: “A principal batalha a ser esgri- que em 64 dias de locaute Lei Orgânica de Hidrocarburetos, mida pelos governos democráticos e que aumentou em 30% a tributa- distribuidores de renda na América na Venezuela as quatro ção das petroleiras transnacionais Latina é a da comunicação”. maiores emissoras de TV e fixou em 51% a participação acio- No Brasil, enquanto hesita em nária do Estado nas sociedades mis- aprovar a regulação do mercado de trocaram os programas tas, como a Petróleos de Venezuela comunicação, prometida em campa- habituais por nada menos (PDVSA), na qual Chávez denun- nha, o governo Dilma Rousseff vai ciara uma “caixa preta” de opera- perdendo a batalha. Na Argentina do que 17.600 anúncios ções ilícitas; a Lei de Pesca, que e no Equador, com penosa tramita- contra o governo Chávez proibiu a pesca industrial de arras- ção judicial, foram adotadas leis de to, com benefícios para os pescado- regulação de mercado e de políticas res artesanais; e a Lei de Terras e

29 Dezembro 2015 Revista Adusp Desenvolvimento Agrário, que per- mitiu a expropriação de latifúndios, beneficiando camponeses sem terra e pequenos agricultores. Mal foram aprovadas, o setor empresarial e seus partidos as acu- saram de “inconstitucionais”, e ao governo Chávez de “anti-democrá- tico”. Confrontacionista, já em 10 de dezembro de 2001 a central pa- tronal Federação Venezuelana de Câmaras de Comércio (Fedecáma- ras) conclamou a Venezuela a uma Na Venezuela, golpista Pedro Carmona assume a presidência (2002) greve geral patronal “de advertên- cia”, com palavras-de-ordem pela Partido xiita, legalmente constitu- “Insultado, comparado a Fuji- renúncia de Chávez. ído, e maior rede de assistência mé- mori, Idi Amin Dada, Mussolini e A advogada norte-americana dica e social do Líbano, o Hezbollah Hitler, tratado como fascista, dita- Eva Golinger, citada pelo jornalis- fora colocado na lista de países e or- dor e tirano, o presidente ‘boliva- ta Renato Rovai no livro Midiático ganizações “terroristas”, urdida pelo riano’ sofre ataques que, em qual- poder: o caso Venezuela e a guerri- Departamento de Estado dos EUA quer país, dariam lugar a uma ação lha informativa (São Paulo, 2007), e países europeus, aliados de Israel. legítima por ofensa ao chefe de Es- revelou os resultados de pesquisa Ridiculamente, até meados de 2015 tado”, anotava Maurice Lemoine que conduziu, segundo a qual nos Cuba também figurava nesta “lista ne- em seu emblemático ensaio “Dans 64 dias do locaute as quatro princi- gra”. Apropriando-se da difamação, a les laboratoires du mensonge au Ve- pais emissoras de TV suspenderam intenção de El Nacional foi compro- nezuela”, publicado por Le Monde sua programação habitual, banindo meter Chávez com o “eixo do mal”. Diplomatique em agosto de 2002. da grade comerciais, telenovelas e No Brasil, factoide semelhante desenhos animados, para inserir na- seria plantado anos mais tarde por da menos do que 17.600 anúncios Olavo de Carvalho, dublê de arti- contra o governo, que incitavam à No Brasil, Olavo de Carvalho culista e astrólogo, e reverberado sabotagem da economia. e Reinaldo Azevedo tentaram pelo jornalista Reinaldo Azevedo, Como trama paralela, em março blogueiro da revista Veja e sorte de 2002 a criminalização de Chávez vincular o governo Lula às de porta-voz midiático dos porões alcançava o paroxismo. No ultra- FARC e ao narcotráfico, da extrema-direita: tentava-se vin- conservador El Nacional, editoriais cular o governo Lula às Forças eram substituídos por manchetes esgrimindo uma teoria da Armadas Revolucionárias da Co- garrafais como “O terrorismo está conspiração segundo a qual lômbia (FARC) e ao narcotráfico entre nós” (15/3/2002), ou “Hu- (“Relações perigosas: as FARC, go Chávez confessou ser o che- o Foro de São Paulo seria o PT e o Governo Lula”, Veja, fe de uma rede de delinquentes” núcleo de uma intentona 16/5/2010), esgrimindo uma teoria (21/3/2002), insinuando que “fon- da conspiração repetida ad nause- tes dos serviços secretos revelaram continental para instalar uma am, segundo a qual o Foro de São acordos feitos com elementos liga- “pátria grande comunista” Paulo, coordenação de partidos dos ao Hezbollah […] controlados de esquerda e nacionalistas latino- pela Embaixada do Irã”. americanos, seria o núcleo de uma

30 Revista Adusp Dezembro 2015 intentona continental para instalar De fato, às primeiras horas de 13 uma “pátria grande comunista”. de abril, Pedro Carmona, líder da Desde a chegada de Chávez à Fedecámara, toma posse como pre- Fenômeno ainda não presidência, “os cinco principais ca- sidente de facto. Dissolve a Assem- nais de televisão privados — Ve- bleia Nacional e a Corte Suprema suficientemente estudado, nevisión, Radio Caracas Televisión com uma só canetada e declara letra durante os governos Lula (RCTV), Globovisión, Televen e morta a Constituição Bolivariana de CMT — e nove dos dez grandes 1999. Neste dia, Ibéyise Pacheco e da Silva e Dilma Rousseff jornais nacionais (El Universal, El Patricia Poleo são incensadas como o Brasil foi tomado de Nacional, Tal Cual, El Impulso, El as grandes vedetes da TV venezuela- Nuevo País, El Mundo etc.) subs- na e farão carreira não como profis- assalto por fundações e tituíram os partidos políticos tra- sionais do jornalismo, mas como mi- ongs (institutos Liberal, dicionais, relegados ao vazio pelas litantes de um fenômeno doravante vitórias eleitorais do presidente”, conhecido como mídia golpista. Millenium e outras) que resume Lemoine na sua crônica. Previsivelmente, Estados incitaram manifestações Quatro meses após sua reelei- Unidos e Espanha, incentiva- ção, na madrugada de 12 de abril dores dos golpistas, precipitam- de 2014 e 2015 de 2002, Hugo Chávez é preso por se, reconhecendo quase ime- um comando golpista do exército diatamente o espúrio governo venezuelano e abduzido à ilha de Carmona. Mas o Chile, governado Orchila, distante 160 quilômetros então pelo “socialista” Ricardo La- A escalada anti-Chávez ganhou da capital. A maioria dos meios gos, junta-se também a eles. em intensidade após o anúncio feito de comunicação anuncia sua “re- Alarmados, eleitores e simpati- por ele, no V Foro Social Mundial núncia”, mas não apresenta qual- zantes de Chávez acodem às ruas de (Porto Alegre, 2005), do “Socialis- quer declaração de próprio punho Caracas. A Polícia Metropolitana mo do século XXI” como programa de Chávez, ou gravação em vídeo. tenta, mas não consegue debelar as de governo, e a fundação, em 2008, Naquelas horas, no maior canal multidões que tomam a cidade. Em do Partido Socialista Unido de Ve- privado de TV, o Venevisón do menos de 48 horas, forças consti- nezuela (PSUV). multibilionário Gustavo Cisneros, tucionalistas do Exército libertam É oportuno recordar que na- reina clima de confraternização de Chávez. Eleito em 1998, “relegiti- queles anos ocorriam protestos na militares com jornalistas. “Tivemos mado” em 1999 e reeleito em 2002, Ucrânia, conhecidos como “Revo- uma arma de importância capital: 2006 e 2012, ele assumiu seu terceiro lução Laranja”, que culminaram a mídia. E como se apresenta a mandato como alvo de uma escalada com a anulação da vitória eleitoral ocasião, aproveito para felicitá-la midiática sem precedentes, na qual de Viktor Yanukovich à presidência por isso”, declara ao vivo o vice- todas as armas da guerra psicológi- e um segundo escrutínio ordenado almirante Victor Ramírez Pérez ca (factoides, mentiras, difamação, pela Suprema Corte (submetida a à apresentadora Ibéyise Pacheco. incitação à violência e ao golpe de uma escalada ensurdecedora na mí- Vaidosa, Pacheco admite que “há Estado) foram empregadas. dia internacional), que consagrou muito tempo” mantinha ligações Em 2013, quando Chávez faleceu Yushchenko como vitorioso sobre privilegiadas com os oficiais gol- e Nicolás Maduro assumiu o gover- Yanukovich, com 52% contra 44% pistas. Sua colega Patricia Poleo, no, Pacheco e Poleo emigraram para dos votos. surpreendentemente bem informa- Miami, onde dão continuidade ao Investigações sobre a “Revo- da, anunciava à TVE espanhola: periodismo basura, que em suas pági- lução Laranja”, entre elas do The “O próximo presidente será Pedro nas do Facebook pede “curtidas” da Guardian londrino, concluiram que Carmona”. extrema-direita continental. o principal articulador dos protes-

31 Dezembro 2015 Revista Adusp

tos era Givi Targamadze, ativista Na rubrica “Quem Somos”, o dações e ongs (como os institutos que em 2003 instalara na vizinha instituto apresenta-se como uma Liberal, Millenium e outras) que Georgia um governo aliado da Or- “organização não governamental” incitaram as manifestações de 2014 ganização do Tratado do Atlântico (ong) e resume sua missão neoli- e 2015, usadas pelo PSDB contra o Norte (OTAN), feroz inimigo da beral militante: “O Instituto Liber- governo federal e nas quais grupos Rússia, contra a qual instigaria a dade é um think tank por excelên- de extrema-direita conquistaram guerra de 2008. Targamadze tinha cia, pois firma-se no mercado lo- um protagonismo que não se via ligações com uma organização de- cal, nacional e internacional como há muitos anos. Prova disso é a de- nominada “Instituto Liberdade”. produtor de idéias e construtor de senvoltura com que circulou nessas Ora, o Instituto Liberdade está influências. […] O Instituto Liber- marchas o ex-delegado Carlos Al- presente no Brasil. Sua filial opera dade defende o Estado de Direito, berto Augusto (“Carlinhos Metra- em Porto Alegre e integra uma rede a descentralização do governo, a lha”), identificado como torturador de 40 think tanks distribuídos por economia de mercado e apóia os pela Comissão Nacional da Verda- América Latina e Caribe. Entre seus empreendedores intelectuais mul- de: ele chegou a discursar em defe- curadores internacionais constam tidisciplinares na produção de aná- sa da Ditadura Militar e do fuzila- diretores da Mont Pelerin Society lises e recomendações em políticas mento de militantes de esquerda. (MPS), com sede na Suíça, fundada públicas, seguindo os preceitos da O cientista político Gene Sharp, por luminares do pensamento neo- Escola Austríaca de Economia” da Universidade de Ohio, é aponta- liberal militante, como Ludwig von (http://goo.gl/fuSdrk). do como estrategista de operações Mises, Milton Friedman e Friedrich Fenômeno ainda não suficiente- subversivas ditas “não-violentas” Hayek — os dois últimos sempre mente estudado, durante os gover- e mentor do conceito de “golpe lembrados como consultores da po- nos de Luiz Inácio Lula da Silva e de Estado brando”. Seu livro, Da lítica econômica da ditadura de Au- Dilma Rousseff o Brasil foi tomado ditadura à democracia: uma estru- gusto Pinochet, no Chile. de assalto por uma pletora de fun- tura conceitual para a Libertação

32 Revista Adusp Dezembro 2015 (Bangkok, 1993), financiado pelo ção de preconceitos anticomunistas, foram à luta com gritos de “Fora Instituto Albert Einstein, de Bos- acusações de totalitarismo e pensa- Correa!”. ton, traduzido para vários idiomas, mento único; 3ª. Esquentamento das A campanha midiática lançada inclusive o português, e disponível ruas: reiteração de conflitos, fomen- contra a Alianza País de Correa em PDF na internet, ainda hoje é to de passeatas e marchas, expondo data de 2007, mas recrudesceu em cultuado como bíblia e manual das falhas do governo; 4ª. Combinação fevereiro de 2012, quando a Cor- organizações de extrema-direita na de diversas formas de luta: marchas te Nacional do Equador ratificou América Latina. convertidas em plataforma publici- a sentença contra El Universo por tária, operações de guerra psicoló- injúria a Correa. O motivo: segun- gica, criação de clima de ingoverna- do editorial deste jornal intitula- bilidade, boataria de golpe militar; do “NO a las mentiras” (6/2/2011), Em 2013, o Congresso do 5ª. Forçar a renúncia da/o Presidente durante o motim de 30 de setem- Equador aprovou a Lei de turno: arruaças, provocação de bro de 2010 contra a lei que previa guerra civil, contemplando a ‘desti- cortes nos salários da polícia, ape- Orgânica de Comunicação, tuição constitucional’ do Presiden- lidado “30S” (motim este unanime- que proibiu, de forma te”. Quem acompanha o desenrolar mente caracterizado por observa- da cena brasileira ao longo de 2014 dores e mídia independentes como inédita na América Latina, e 2015 certamente encontrará for- tentativa de golpe de Estado), Cor- que bancos sejam sócios ou tes coincidências com este script. rea mandara uma tropa que lhe Ao reduzir os índices de pobre- era leal abrir fogo contra um hos- controladores de veículos za de 38,3% para 25,8% em oito pital repleto de civis. El Universo de comunicação. Neste anos e resgatar da miséria 1,3 mi- decidiu, assim, definir Correa como lhão de equatorianos numa popula- “ditador sanguinário” que cometera momento a campanha do ção de 15,7 milhões de habitantes, “crime de lesa-humanidade”. jornal El Universo contra desde que assumiu seu mandato O editorial não correspondia aos presidencial, em 15 de janeiro de fatos. Seu autor, Emilio Palacio, foi Rafael Correa foi encampada 2007, Rafael Correa é uma pedra condenado a três anos de prisão e pela mídia escrita espanhola no sapato dos “mercados” e da geo- o jornal a uma reparação de danos política dos EUA. morais no valor de US$ 40 milhões. Em 2009, o equatoriano rompeu Posteriormente, editorialista e jor- o acordo que permitia aos EUA nal tentaram safar-se da sentença e Segundo Sharp, a estratégia do manter uma base militar em Manta pediram desculpas. Correa perdoou “golpe brando” pode executar-se e em 2013 a Corte Nacional de Jus- o crime de imprensa, mas antes em cinco etapas hierarquizadas, ou tiça condenou a petroleira Chevron disso Palacio preferiu pedir “asilo implementadas de modo simultâ- (ex-Exxon) a pagar US$ 9,5 bilhões político” aos EUA, onde dá conti- neo, assim resumidas por Enrique por graves danos ambientais na nuidade ao cerco midiático ao go- Alfonso Rico Cifuentes (La guerra Amazônia equatoriana. No primei- verno equatoriano. Em outubro de mediática y el “golpe suave”, Argen- ro semestre de 2015, bastou Correa 2012, Palacio foi recompensado ao press, 4/5/2014): submeter ao parlamento seu proje- receber o Prêmio “Columnista del “1ª. Criação de matrizes de opi- to de lei sobre taxação de heranças Mundo”, ruidosamente outorgado nião, centradas em déficits reais ou e vendas de bens de raiz (baseando pelo jornal conservador espanhol potenciais, cavalgamento (= rei- os tributos não no valor em escri- El Mundo, espécie de porta-voz do teração) de conflito e desconten- tura, mas segundo a valorização no Partido Popular. tamento, denúncias de corrupção, mercado: “impuesto de plusvalía”), Quando o Congresso equatoria- etc.; 2ª. Deslegitimação: manipula- elite e classe média equatorianas no aprovou a Lei Orgânica de Co-

33 Dezembro 2015 Revista Adusp Agência Estado municação, em 2013, estabelecen- do a proibição, inédita na América Latina, de bancos como sócios ou controladores de veículos de comu- nicação, a campanha do El Universo foi encampada pela totalidade da mídia escrita espanhola: os fran- quistas ABC e La Vanguardia, os jornais do grupo Prisa El Mundo y El País (envolvidos com o PSOE), e a agência noticiosa EFE, cujo prin- cipal acionista é o Estado.

Na América Latina, o grupo espanhol Prisa controla emissoras de TV e rádio na

Bolívia, Colômbia, México, Rafael Correa toma posse em 2007 Argentina. Neste último econômicos e financeiros, pode-se A excelente investigação realiza- país associou-se aos grupos às vezes compreender a razão de da pelo documentário El segundo de- tais ‘sinergias’”. Uma delas entrou sembarco. Multinacionales españolas proprietários dos jornais em ação quando o governo Cristina en America Latina não deixa dúvi- Clarín e La Nación na Kirchner decretou a expropriação das: a mídia espanhola, capitaneada da multinacional Repsol (controlada por El País e Grupo Prisa, opera co- empresa Papel Prensa por capitais espanhóis) no consórcio mo guarda pretoriana midiática do petroleiro YPF, tornando-se objeto grande capital ibérico no continente. de furiosa campanha de El País con- Atraídos pela privataria neoliberal No ensaio “Golpes Sem Fron- tra a Argentina. que antecedeu a maioria dos gover- teiras?” (Le Monde Diplomatique Na América Latina, a holding nos progressistas, os bancos Santan- Brasil, 1/8/2002), Maurice Lemoine Prisa controla um canal de TV e der, BBVA e Bankia, juntamente adverte que para entender algumas três jornais da Bolívia, bem como com Telefónica, Repsol, Iberdrola, estranhas “sinergias” é recomendá- várias das emissoras mais influentes Endesa e Gas Natural Fenosa, reali- vel observar que “a versão dos fatos do continente, como a TV Cara- zam simbolicamente o “segundo de- difundida pelos órgãos de imprensa col na Colômbia, Grupo Latino de sembarque” espanhol nas Américas, locais é encontrada freqüentemente, Radio, Radiopolis no México. Na empreendendo o truculento saque de forma idêntica, em vários meios Argentina possui a Rádio AM 590 dos mercados de serviços e de recur- de comunicação internacionais: New e é sócia dos grupos proprietários sos naturais. Não é de estranhar-se York Times, Washington Post, CNN, dos jornais Clarín e La Nación na que, eventualmente, tais interesses El Tiempo, Rádio e TV Caracol, empresa Papel Prensa: juntos tor- coincidam com os de grupos nacio- RCN... Entre eles, destaca-se par- naram-se donos de 90% do papel nais engajados na desestabilização ticularmente o diário espanhol El de impressão para jornais e revistas de regimes democráticos, e a eles se País. Sobre um fundo de interesses na Argentina. associem em tal empreitada.

34 Revista Adusp América Latina (II) Dezembro 2015

Um g o v e r n o q u e s a n g r a d e p o i s d e “v i r a r d o a v e s s o ” Tatiana Merlino Jornalista

Nem mesmo a adesão à agenda neoliberal e ao “ajuste fiscal” preconizado por seus adversários — fixação de altos juros, cortes nos gastos sociais e outras medidas recessivas — livrou a presidenta Dilma Rousseff da crise econômica e das ameaças de destituição. Depois de estimular o golpismo nas jornadas de março de 2015, o oligopólio da mídia dividiu-se em agosto, quando o Grupo Globo passou a censurar o PSDB por insistir no impeachment. A esquerda lembra: o governo Dilma precisa assumir o programa que a elegeu

35 Dezembro 2015 Revista Adusp A virada foi surpreendente. Elei- ta com um programa claramente de esquerda para os padrões brasileiros, centrado no crescimento econômico, na geração de empregos e nos gastos sociais, a presidenta Dilma Rousseff deu o dito por não dito e assumiu a agenda neoliberal. O roteiro é bas- tante conhecido, mas vale a pena re- capitular, em rápidas pinceladas. Tudo começou com a escolha de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda (lembrando-se que o pri- Genial charge de na Folha de S.Paulo critica editorial do próprio jornal meiro a ser convidado por ela para o cargo foi Luiz Trabuco, presidente apoio no parlamento contra as O anúncio presidencial, feito um do Bradesco) e o pacote, anunciado ameaças de impeachment, Dilma dia depois da publicação de um edi- já em 2014, de restrições ao seguro- realizou uma reforma ministerial torial do jornal Folha de S. Paulo desemprego, seguro-defeso, pensões que não apenas concedeu maior intitulado “Última Chance”, gerou e auxílios. Depois a ruralista Ká- número de pastas ao PMDB — os manifestações de movimentos so- tia Abreu seria convidada a assumir deputados Marcelo Castro e Celso ciais e sindicatos. O Movimento dos a pasta da Agricultura, sinalizando Pansera, ligados ao presidente da Trabalhadores Rurais Sem Terra a clara opção pelo agronegócio. O Câmara dos Deputados, Eduardo (MST), por exemplo, externou um Banco Central, a pretexto de com- Cunha, passam a comandar Saúde duro protesto: “Somos contra o bater a inflação, elevou a taxa Selic e Ciência, Tecnologia e Inovação ajuste fiscal e consideramos que o a 14% ao ano, catapultando os juros — como eliminou oito ministérios, governo Dilma está implementando de todo o sistema financeiro e im- a maioria deles ligados a temáticas medidas de ajuste neoliberal, que pondo forte retração na economia. populares, em nova agressão aos ferem direitos dos trabalhadores e Depois veio novo pacote, tendo movimentos sociais neles repre- cortam investimentos sociais”. como eixo o corte de R$ 60 bilhões no sentados. O presidente da Central Úni- Orçamento, que implica reduzir em “O atual caminho não passa de ca dos Trabalhadores (CUT), Vag- 30% os investimentos no programa uma capitulação em câmera len- ner Freitas, defensor declarado do Minha Casa, Minha Vida e congelar ta”, define Valter Pomar, professor mandato da presidente contra as os salários do funcionalismo público da Universidade Federal do ABC reiteradas ameaças de impeach- federal. Vivendo sob uma crise políti- (UFABC) e ex-secretário de Re- ment, deplorou as novas medidas ca e econômica agravada no segundo lações Internacionais do PT, sobre do governo: “É um pacote reces- semestre de 2015, com impacto nega- o novo pacote de “ajuste fiscal” sivo, que imputa a culpa da crise tivo sobre a arrecadação provocado apresentado em 14 de setembro aos trabalhadores. Se a intenção do pelo próprio ajuste fiscal recessivo, por Dilma. “A política de ajuste governo com o pacote era tentar Dilma anunciou que pretende recriar recessivo é um golpe contra a ex- aliviar a pressão da grande mídia, a CPMF pelo período de quatro anos pressão majoritária do voto popu- ela continua contrária ao pacote do e transformar o déficit de R$ 30,5 bi- lar. Golpe que agride e desorienta mesmo jeito, chamando-o de ‘inci- lhões nas contas públicas, em 2016, nossas bases sociais e alimenta o piente’. Ou seja, não dialoga nem em um superávit de R$ 60,4 bilhões. golpismo de direita”, afirma Po- com o empresariado, nem com os Por fim, no início de outubro, mar, em artigo intitulado “Capitu- trabalhadores que são aqueles para buscando recompor sua base de lação em câmera lenta”. quem o governo deveria governar”.

36 Revista Adusp Dezembro 2015 diante das classes dominantes” e que fazem o papel de feitor dos interesses de quem manda. “Como não tem es- colha? Claro que tem escolha!”, afir- ma. “A escolha passa pela presidente abandonar a mediocridade, o com- promisso com seus patrocinadores fi- duciários e voltar a se conectar com quem a elegeu. Passa por abandonar a covardia e a vergonhosa moderação que adotou”. Pomar, por sua vez, acredita que o editorial da Folha, “mais do que Venicio Lima Maria Inês Nassif chantagista”, é golpista. “O título é “Medidas extremas precisam ser muito claro: ‘última chance’. Ou seja, tomadas”, disse a Folha de S. Paulo caso Dilma não aceite destruir os di- Na opinião de Maringoni, no editorial publicado na capa do jor- reitos sociais, eles destruirão Dilma”. o editorial da Folha de nal. “Impõe-se que a presidente leve Mas a presidenta tem outra opção, o quanto antes ao Congresso — e a propõe: “Esta outra escolha é sim- 13/9 (“Última Chance”) que este abandone a provocação e a ples: cumprir o programa vencedor “vocaliza a vontade da chantagem em prol da estabilidade nas eleições de 2014. Resumidamen- econômica e social”. Defendeu, ain- te: reduzir a taxa de juros, alongar o Casa Grande”. Pomar, por da, “cortes nos gastos”, os quais “te- pagamento da dívida pública, impor sua vez, acredita que “mais rão que ser feitos como radicalidade controle de câmbio, lançar mão das sem precedentes, sob pena de que se reservas internacionais, tributar as do que chantagista”, esse tornem pesadelos ainda piores, como grandes fortunas e compreender que editorial é golpista. o fantasma da inflação descontrola- o caminho para superar a crise pas- da”. E segue: “Serão imensas, escusa- sa pelo crescimento e o crescimento “Ou seja, caso Dilma não do dizer, as resistências da sociedade exige ampliar — e não cortar — os aceite destruir os direitos a iniciativas desse tipo. O país, con- investimentos públicos e sociais”. tudo, não tem escolha. A presidente Ao iniciar governando com o pro- sociais, eles a destruirão” Dilma Rousseff tampouco: não lhe grama do adversário, avalia Pomar, restará, caso se dobre sob o peso da “Dilma perdeu parte do apoio que crise, senão abandonar suas respon- a elegeu e não ganhou um traço de Na visão de Pomar, a nova roda- sabilidades presidenciais e, eventual- apoio dos inimigos. Resultado: optou da de cortes confirma que a política mente, o cargo”. por tornar-se um governo politica- de ajuste recessivo provocou mais Na opinião de Gilberto Maringoni, mente minoritário”. O mais grave, desajuste fiscal, além de recessão também professor da UFABC e candi- acredita, é que o governo não de- e desemprego. “Precisamos imple- dato a governador de São Paulo pelo monstra aprender com seus erros. “O mentar o programa que o povo es- PSOL nas eleições de 2014, o editorial ajuste não ajustou nada, desajustou. colheu em outubro de 2014. Esse é o da Folha “vocaliza a vontade da Casa E desajustou principalmente o em- caminho, também, para defender as Grande, os desígnios de quem sempre prego e o crescimento. E os acenos à liberdades democráticas e garantir o foi chamado de ‘senhor’”. A seu ver, o direita só fortalecem a direita”. mandato da presidenta Dilma”, afir- texto se aproveita de “uma presidenta “Os grupos empresariais de mídia ma o professor da UFABC. e de um partido que se acovardaram sempre estiveram envolvidos nas prin-

37 Dezembro 2015 Revista Adusp cipais crises políticas e sempre estive- sim, as manifestações antiDilma que principia alvejando Lula por suas de- ram numa posição de articulação di- ocorreram em 16 de agosto foram clarações sobre a decisão da agência reta e de participação direta de movi- mais esvaziadas que as de março. de classificação de riscos Standard mentos contra a democracia”, afirma Dez dias antes, as federações das & Poor’s de rebaixar o Brasil e con- Venício Lima, professor titular da indústrias de São Paulo (Fiesp) e do tra cortes no Orçamento. (A “nota UnB Rio de Janeiro (Firjan) divulgaram baixa” conferida pela Standard & A movimentação pelo impeach- uma nota conjunta de apoio à pro- Poor’s tornou-se, aliás, novo motivo ment de Dilma Rousseff contou, des- posta de “união” apresentada no dia de histeria da mídia, em especial do de o início, com a cobertura sistemá- anterior pelo vice-presidente da Re- Grupo Globo, cujos comentaristas a tica por parte do monopólio midiáti- pública, Michel Temer, que fez um interpretaram como uma espécie de co brasileiro, que, por exemplo, des- apelo para que “todos se dediquem “pá de cal” no governo.) tacou intensamente as manifestações a resolver os problemas do país”. “Esta postura populista clássica ocorridas em março deste ano. A TV Na nota, assinada em nome da [de Lula] não é surpresa, mas ganha Globo chegou a deixar de transmi- “indústria brasileira”, as federações importância por ser exposta num tir duas telenovelas para priorizar a afirmaram que a situação política e momento-chave de Dilma, em que cobertura do ato nacional. A Globo econômica do país é a “mais aguda ela, diante do rebaixamento do país News passou todo o dia 15 de março dos últimos vinte anos”. “É hora de na avaliação da agência internacio- em cobertura ao vivo: os âncoras e colocar de lado as ambições pesso- nal, precisa optar entre fazer um repórteres defendiam as manifesta- ais ou partidárias e mirar o interesse correto ajuste no Orçamento, pelo ções e anunciavam a chegada de “mi- maior do Brasil”, diz o texto, que de- lado das despesas, ou enveredar pela lhares de pessoas” à avenida Paulista, fende que o governo “faça sua par- aventura da ‘fuga para frente’. Quer em São Paulo, em tom efusivo. te cortando suas próprias despesas, dizer, assumir o discurso de que o “Eu não vejo esse cenário com priorizando o investimento produti- verdadeiro problema não é cortar o surpresa. Se olharmos para a história vo; deixando de sacrificar a sociedade Orçamento, mas gerar receitas tri- política do Brasil desde que existem com aumentos de impostos”. butárias por meio da retomada do os oligopólios de mídia, salvo raras No dia 7 de setembro, o jornal O crescimento”, diz O Globo. exceções, os grupos empresariais de Globo publicou um editorial surpre- “É um jogo de ‘quase lógica’, em mídia sempre estiveram envolvidos endente, intitulado “Manipulação do que teses erradas são justificadas por nas principais crises políticas e sempre Congresso ultrapassa limites”, no qual jogo de palavras e contorcionismos de estiveram numa posição de articula- se posicionou contra o impeachment raciocínio. O grave é que, dentro do ção direta e de participação direta de de Dilma, defendeu o esforço pela governo e no PT, há quem defenda es- movimentos contra a democracia”, governabilidade da presidenta e criti- ta ‘fuga’, numa volta de 180 graus na afirma o jornalista e sociólogo Venício cou o PSDB, chamando-o de “incon- política econômica de Joaquim Levy”. Lima, professor titular de Ciência Po- sequente”. Um dia depois, o “Jornal Por fim, adverte o diário da família lítica e Comunicação da Universidade Nacional” da TV Globo, telejornal Marinho: “Como não existe mágica, a de Brasília (UnB) e autor de vários li- de maior audiência do país, também ‘virada à esquerda’ é a receita de uma vros sobre o tema, como Mídia: Teoria se colocou contra o impeachment e hecatombe. Talvez sequer o governo e Política (2001) e Cultura do Silêncio e chamou de irresponsáveis os que pre- Dilma resistisse a um Congresso pres- Democracia no Brasil (2015). tendem tirar Dilma da presidência. sionado pela disparada da inflação, Porém, a partir de agosto, os ve- Cinco dias depois, O Globo vol- fuga de capitais e aprofundamento da ículos de comunicação e setores do taria à carga, mas agora contra as recessão. Tudo ao mesmo tempo e de empresariado que estavam apos- pressões do PT para que Dilma maneira quase instantânea”. tando no impeachment de Dilma cumpra o programa para o qual foi Portanto, enquanto a Folha de S. mudaram de posição e passaram a eleita. Intitulado “A opção suicida Paulo concede ao governo a “última defender um caminho mais light. As- da ‘virada à esquerda’”, o editorial chance”, O Globo vaticina: se Dilma

38 Revista Adusp Dezembro 2015 Agência Estado nomia se realizassem”, define. Além disso, pontua, o pacote fiscal que foi anunciado depois das eleições levou a um esvaziamento das bases sociais, as mesmas que foram respon- sáveis por definir a vitória de Dilma no segundo turno. Assim, acredita, “a presidente ficou sem defesas diante de um ataque especulativo do mercado, das oposições e da mídia; e desarma- da diante da ofensiva do juiz Sérgio Moro contra a Petrobras”. Desse modo, o ataque constante e Eduardo Cunha reiterado da oposição, da mídia e da recuar e quiser cumprir o programa assumido pelo governo, o presidente Justiça enfraqueceu tanto o governo aprovado por 54 milhões de brasilei- do Senado bancaria a governabilida- quanto a economia, “inclusive por- ros, levará o país a uma “hecatombe”. de no Congresso. Porém, a agenda, que esterilizou medidas para enfren- que se supõe tenha surgido de encon- tar o impacto econômico da Opera- tros entre Renan e a família Marinho ção Lava-Jato, num momento em (Grupo Globo), previa, inicialmente, que a economia já se desaquecia, por “Por falta de avaliação cobrança dos usuários do Sistema razões externas e devido a decisões correta do governo, a crise Único de Saúde, privatizações, con- erradas do passado, como a reten- cessões, perda de direitos trabalhistas ção do preço interno do petróleo por tornou-se muito maior do e previdenciários, redução das garan- muito tempo”, avalia Maria Inês. que era. Dilma acreditou no tias territoriais dos povos indígenas. A Operação Lava-Jato, da Polícia E recebeu forte repúdio dos movi- Federal, escândalo sob forte holofote movimento especulativo do mentos sociais e partidos de esquer- da mídia brasileira, pode ser consi- mercado contra seu governo. da. Ao que parece, a recomposição derada uma das principais causas da ministerial relegou a Agenda Brasil a crise política pela qual passa o país. Superestimou o problema segundo plano. A jornalista a avalia como “assus- e deu motivos para que Na avaliação da jornalista Maria tadora”, em primeiro lugar porque Inês Nassif, a mudança de tom do um juiz federal de primeira instância profecias catastróficas se momento pode ser atribuída a uma abre mão de ritos processuais que realizassem”, diz Maria Inês pressão “de fora para dentro”. “O garantem a defesa dos acusados. fato é que, por inabilidade de Dilma, “É aplaudido por isso e não é con- falta de avaliação correta do gover- tido pelo Supremo Tribunal Federal no e uma ofensiva irresponsável da (STF), ou pelo Conselho Nacional Dias depois dos recuos das enti- oposição, a crise tornou-se muito de Justiça (CNJ)”. (Registre-se que dades da indústria e do oligopólio da maior do que era efetivamente para as declarações de Maria Inês à Revis- mídia, o presidente do Senado, Re- ser. Dilma tinha problemas a resol- ta Adusp foram anteriores à decisão nan Calheiros (PMDB-AL), apresen- ver, mas acreditou no movimento do STF de retirar da alçada do juiz tou a chamada “Agenda Brasil”, con- especulativo do mercado contra seu Moro uma parte dos processos, cau- junto de propostas para sair da crise e próprio governo. Superestimou o sando enorme irritação de certos ob- retomar o crescimento econômico. O problema e deu motivos para que as servadores midiáticos.) Em segundo documento envolveria uma troca: se profecias catastróficas sobre a eco- lugar, porque “é óbvio que as prisões

39 Dezembro 2015 Revista Adusp dos implicados foram feitas como Fotos: Agência Estado coação, para forçar a delação pre- miada”. Depois, porque é seletiva. E, por fim, por consolidar o “absurdo jurídico inventado pelo então minis- tro Joaquim Barbosa, no julgamento do mensalão: o domínio do fato”. A soma de todas as ações jurídicas que se consolidam desde o julgamen- to da ação do denominado “mensa- lão”, resume Maria Inês, “dão poder desmesurado à Justiça, relativizam o direito de defesa do cidadão e co- Augusto Nardes, do TCU Gilmar Mendes, do STF locam qualquer um em risco”, daqui para frente. “Existem outras formas, crise estrutural não resolvida que se de fazer política: “Radical, direitista mais legítimas, de fazer uma inves- arrasta desde os anos 1980. “Essa cri- e, sobretudo, golpista”. A seu ver, tigação de corrupção e de combater se tem uma dimensão macroeconô- o discurso de defesa da renúncia esse mal com eficácia, mas garantindo mica e tem uma dimensão política: a se enquadra nesse padrão, “como os direitos de defesa dos acusados”. fórmula cristalizada na Constituição antes se enquadrava o discurso do Já na opinião de Maringoni, em- de 1988 é ‘populista’ demais, do pon- impeachment, que na prática se tra- bora a Operação Lava-Jato não seja to de vista das elites; e conservadora duz numa recusa em aceitar o fato neutra, ela é extremamente positiva, demais, do ponto de vista dos setores de que perdeu as eleições”. já que é a primeira operação judicial populares. Na ausência de solução de envergadura que vai atrás dos cor- para a crise estrutural, a crise política ruptores. “Nesse sentido, ela já seria vira crônica e degenera na violência positiva, pois está indo atrás da fra- endêmica, na corrupção sistêmica, na “Quando a gente fala em ção do capital, o topo de empresários desmoralização das instituições, e, na estelionato da Dilma, não é mais ligados ao Estado, que são os ausência do fator militar, na judiciali- empreiteiros. Gente que cresceu na zação da política”, diz. uma questão moral: é uma Ditadura, nos governos Collor, Lula Maria Inês, que se notabilizou na questão política séria, ela e FHC. Mas claro que ela é parcial. crônica política, observa que a equa- Os governistas ficam perguntando: ção oposicionista, de derrubar o go- rompe com sua base. Isso ‘Por que não vão atrás do SwissLe- verno a qualquer preço, teve como é gravíssimo porque passa aks?’ Mas não podem dizer que essa efeito colateral (e paradoxal) a im- operação não pode acontecer por- posição de sérias restrições ao setor a ser um governo que não que está indo apenas em cima do PT. financeiro e produtivo, que viveram representa ninguém. Ela fica Não é verdade: está indo para cima anos de bonança nos governos do PT. do Renan, do Eduardo Cunha, do “As declarações dos empresários con- solta no ar”, avalia Maringoni Fernando Collor e do próprio Aécio. tra o impeachment foram seguidas Ela é extremamente positiva”. de um influxo na própria posição da A Lava-Jato seria uma das mui- grande mídia e no enfraquecimento A reorientação de uma parte dos tas materializações dos fenômenos da ala golpista do PSDB”. setores que pediam o impeachment da criminalização e da judicialização Ela acredita que até os dias de de Dilma para uma linha de “defesa da política, acredita o petista Pomar. hoje a oposição brasileira não con- das instituições” ocorreu quando a Ambos seriam decorrentes de uma seguiu se livrar do modelo udenista crise econômica do país se acentuou

40 Revista Adusp Dezembro 2015 a fatura do desemprego, da queda de renda, da inadimplência. ‘A culpa é do PT, deixa a conta na mão deles’”. “Nossa posição é que o PT Porém, avisa ele, essa não é uma rota tranquila, “porque Dilma não diga ao governo para que tem habilidade política nenhuma e mude, imediata, radical acha que pode fazer acordo com a elite e governar como se nada tives- e globalmente a política se acontecido”. Para chegar a 2018 econômica. E combata Cunha, no cargo, Dilma terá de fazer nego- ciações quase diariamente, acredita Renan e Levy. Se não, o PT Maringoni. O que ocorreu ao longo não recupera o apoio da velha do último ano, das eleições até agora, Senador Aécio Neves classe trabalhadora e nunca foi uma mudança na representação e tais grupos viram que o governo política do PT no governo, avalia. vai conquistar o apoio da nova Dilma “faria qualquer negócio pa- “Se em 2002 e mais acentuada- classe trabalhadora” ra se manter no poder, para chegar mente em 2006 ele representava os em 2018 nas condições que forem”, interesses do capital financeiro ao acredita Maringoni. Tais grupos garantir taxas de juros, superávit pri- mudam de posição “de acordo com mário, numa etapa de expansão con- A postura do Partido dos Traba- seus interesses de classe e avaliaram seguiu garantir também uma parte lhadores diante da crise política do que fica mais barato não acontecer o do orçamento para o aumento do país também é criticada por militan- impeachment, do ponto de vista de- salário mínimo, aumentos reais no tes e representantes do partido, que les — e digo barato não só no preço, salário, a garantia de alguns progra- veem como principal erro o distancia- mas que vai causar menos turbulên- mas sociais focados para garantir a mento de suas origens. O V Congres- cia institucional manter esse gover- expansão do crédito”. No entanto, so Nacional do PT, ocorrido em junho no. Não é necessário um golpe, não quando a crise chega e “o cobertor de 2015 na capital baiana, foi mar- é necessário um impeachment”. fica mais curto”, esse excedente or- cado por contradições. Embora uma O cálculo seria o seguinte: se ini- çamentário se encolhe e o PT tem expressiva minoria que reunia mais ciado um processo para impedir a de fazer uma escolha, mostrando-se de 40% dos delegados, composta por presidenta Dilma Rousseff, o país um partido do status quo, que não se várias correntes internas, propusesse ficaria parado por meses, com os propõe a fazer uma mudança social. uma resolução dura, que expressava negócios refluindo. “Então, melhor “A escolha é por garantir o que forte crítica à política econômica do para eles é tocar esse governo até está aí, a rentabilidade do capital. governo e propunha uma guinada onde dá”. O professor acredita que o Então a mudança que ocorre é a da à esquerda no partido, ao final do impeachment seria contraproducente representatividade do PT junto aos encontro foi vitoriosa a posição mo- para tais setores não só por conta da pobres, aos trabalhadores. Ela foi derada do grupo de Lula, fazendo da turbulência no país, mas porque “não rompida. Quando a gente fala em “Carta de Salvador” um documento interessa hoje ao PMDB, PSDB as- estelionato da Dilma, não é uma anódino. (O que não impediu Lula sumir um país que está com a econo- questão moral: é uma questão polí- de, dias depois, fazer acusações ao mia entrando no seu segundo ano de tica séria, ela rompe com sua base. partido e aos seus militantes.) recessão”, e sofrer desgaste por causa Isso é gravíssimo porque passa a ser Dentro do PT há duas posturas, disso. “Para eles, é melhor que Dil- um governo que não representa nin- explica Valter Pomar. “Um setor que ma toque o país até 2018, que fique guém. Ao romper com a base, com compartilha das mesmas ilusões de sangrando pela recessão, que pague os de baixo, ela fica solta no ar”. Dilma: que 2015 será como 2003; e

41 Dezembro 2015 Revista Adusp outro setor, do qual eu faço parte, barrar o avanço conservador é uma “enfraquece o governo democrati- que considera que essas ilusões equi- preocupação prioritária. Assim, com camente eleito e amplifica a crise valem a ‘suicidar’ o partido. Nossa a participação decisiva de dirigentes política e as ações antidemocráticas posição é que o partido diga ao go- e militantes petistas, e decididos a e golpistas que estão em curso, se- verno para que mude, imediata, radi- “lutar contra o golpismo, represen- guindo o roteiro traçado nos ante- cal e globalmente a política econômi- tado pelos setores mais conservado- cedentes da campanha eleitoral de ca. E que combata as agendas [Edu- res, e o sequestro da agenda gover- 2014 para desconstruir os méritos do ardo] Cunha, Renan e Levy. Se não namental pelos interesses do capital governo e evitar sua vitória”. O do- fizermos isto, o PT não vai recuperar financeiro”, movimentos sociais, sin- cumento representa, portanto, uma o apoio que perdeu na velha classe dicatos, partidos e personalidades enérgica tomada de posição, que trabalhadora e nunca vai conquistar lançaram no início de setembro, em desmente aqueles que vaticinavam a o apoio da nova classe trabalhadora”. Belo Horizonte, a Frente Brasil Po- derrocada do PT. A postura do partido diante da pular. CUT, MST, UNE, PT, PCdoB, Não obstante os esforços do go- situação é péssima, acredita a jorna- Consulta Popular e agrupamentos verno e das esquerdas, a máquina do lista Maria Inês: “Ela reflete o PT políticos menores, como PCO e Uni- impeachment avançava em outubro como é hoje: ao longo de onze anos dade Popular (ex-PCR), integram a e novembro, parecendo ignorar a de governo, afastou-se das bases e frente de esquerda, que pretende, recomposição do ministério. O Tri- consolidou uma burocracia que, se unitariamente, responder à ofensiva bunal de Contas da União (TCU) tem boas intenções, não consegue conservadora. aprovou por unanimidade em 7 de traduzir isso em defesa do governo, Por outro lado, a intelectualidade outubro um relatório do ministro ou dele próprio”. Seu diagnóstico: se petista também dá sinais de insatis- Augusto Nardes que rejeitou as con- o partido não se abrir a quadros no- fação. A Fundação Perseu Abramo tas de 2014 do Executivo, oferecendo vos e não dialogar mais francamente (FPA), após reunir o seu Conselho um saboroso pretexto para os articu- com os movimentos populares, não Curador, lançou em fins de setem- ladores do impedimento de Dilma. irá reconquistar seu espaço. bro, com outras entidades, o docu- Um dia antes, o cerco já se estreitara De acordo com Maringoni, o PT mento “Por um Brasil Justo e De- quando o Tribunal Superior Eleitoral ficou a reboque do governo. “Não mocrático”, segundo o qual “a lógica (TSE) formalizou decisão definida é mais um partido que dirige o go- que preside a condução do ajuste é por maioria em agosto e acatou ação verno, que tem influência sobre ele. a defesa dos interesses dos grandes do PSDB contra a chapa Dilma-Te- Claro que sabemos que poder de bancos e fundos de investimento”. mer, sob a alegação de abuso de po- Estado, de governo, é muito maior Fundação oficial do PT, a FPA é der econômico, e que teve como artí- que de partido — depende de no- presidida pelo economista Márcio fice e grande defensor naquela corte meações, de ministérios. Mas essa Pochmann, professor da Unicamp e o ministro Gilmar Mendes. subordinação está comprometendo ex-presidente do Instituto de Pesqui- Assim, caminha-se para um des- um partido que tinha vitalidade, his- sas Econômicas Aplicadas (IPEA). fecho que pode lembrar a deposi- tória junto aos movimentos sociais, e O ajuste fiscal em curso, diz o docu- ção “constitucional” dos presidentes está levando-o a perder sua legitimi- mento da FPA, provocou recessão, de Honduras, José Manuel Zelaya dade e representatividade na socie- deterioração das contas públicas e (2009) e do Paraguai, Fernando Lu- dade brasileira”. redução da capacidade de atuação do go (2012). Que os principais prota- De qualquer modo, os seto- Estado em prol do desenvolvimento. gonistas da movimentação pró-impe- res petistas mais vinculados às ba- “Mais grave é a regressão no empre- achment sejam figuras como Nardes, ses sociais do partido continuam a go, salários, no poder aquisitivo das Cunha (investigados por corrupção) mobilizar-se com vistas a enfrentar famílias, nas políticas sociais”. ou o presidenciável Aécio Neves, al- em melhores condições o desastre A deterioração do ambiente vo de processos e delações judiciais, anunciado. Unificar a esquerda para econômico e social, adverte a FPA, diz bem sobre os interesses em jogo.

42 Revista Adusp USP em xeque Dezembro 2015 As v e i a s a b e r t a s d a Fa c u l d a d e d e Medicina Luiza Sansão

Jornalista Ilustração de Vitor Flynn

Grupos de alunos veteranos da Medicina da USP, pertencentes a duas antigas organizações — a fraternidade Show Medicina e a Associação Atlética — reproduzem e perpetuam trotes humilhantes e violentos — machistas, homofóbicos, racistas — aplicados em calouras e calouros. Nesse contexto, como comprovam sindicâncias, inquéritos policiais e uma CPI realizada na Assembleia Legislativa, ocorrem até mesmo crimes sexuais, seguidos de forte assédio moral às vítimas

43 Dezembro 2015 Revista Adusp Terminou em 14 de março de Daniel Garcia 2015 o trabalho da Comissão Parla- mentar de Inquérito (CPI) que, ins- taurada pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) em dezembro de 2014, apurou viola- ções de direitos humanos ocorridas no âmbito das universidades paulis- tas, em especial trotes violentos e crimes sexuais. Antes de ganharem espaço na mídia, os diversos casos de violência praticados em ambien- tes universitários eram ainda igno- rados por grande parte da socieda- de, que se chocou ao tomar nota Alunos da FMUSP depõem à CPI dos casos denunciados na CPI por alunos de diferentes universidades são hoje médicos formados. Não antes de ser aprovado no vestibu- do Estado. Não por falta, contudo, perderam nem a liberdade, nem o lar do curso da USP. de precedentes gravíssimos. diploma. “Não será tolerado qualquer ti- Há 16 anos, em 22 de fevereiro O episódio mesclou violência fí- po de manifestação estudantil que de 1999, o calouro Edison Tsung sica, racismo e preconceitos diver- cause, a quem quer que seja, agres- Chi Hsueh, da Faculdade de Medi- sos. Frederico Carlos Jaña Neto, são física, moral ou outras formas cina da USP (FMUSP), foi encon- então aluno da FMUSP e principal de constrangimento, dentro ou fora trado morto na piscina da Associa- acusado da morte de Edison, che- do âmbito da universidade”, dizia ção Atlética Acadêmica Oswaldo gou a ser preso por alguns dias, a portaria divulgada pela USP na Cruz (AAAOC), onde foi jogado depois que a polícia descobriu que esteira do caso, em abril de 1999, durante o trote — embora não sou- ele declarara, numa festa: “Eu ma- reiterando que a punição para atos besse nadar, conforme relatou, à tei o japonês [sic] que se afogou”. como estes seria de suspensão ou época, a família do jovem de 22 Ivan Marsiglia, repórter do jor- expulsão. Pura retórica. Embora anos. Quatro alunos “veteranos” nal O Estado de S. Paulo, apurou tenha sido proibido por lei naquele do curso de Medicina foram indi- que ao longo de dez anos a família mesmo ano (lei estadual 10.454, de ciados e denunciados pela polícia, Hsueh, oriunda de Taiwan, não re- 20/12/1999), o trote universitário acusados de serem os autores do cebeu uma única visita de repre- ainda é frequentemente visto co- homicídio por afogamento, na festa sentantes da USP, ao passo que no mo um mero rito de passagem, em de “recepção” em que calouros le- seu curto período de cárcere Jaña que estudantes mais velhos, “vete- varam sucessivos “caldos”. Um caso Neto gozou da solidariedade de ranos”, recepcionam os novos alu- emblemático por suas circunstân- oito professores da faculdade (ht- nos, seus eternos “calouros”, com cias e por seu desfecho. O Superior tp://goo.gl/HKz05p). Mas isso não “brincadeiras”. Assim, apesar da Tribunal de Justiça (STJ) determi- é tudo. Quando o corpo de Edison proibição, o trote segue acontecen- nou, em 2006, o trancamento da foi retirado sem vida da piscina, do em sítios e outros locais distan- ação penal, por falta de provas. O descobriu-se que nas suas costas tes das faculdades, ou mesmo em Ministério Público Federal recor- estava pintado, em tinta colorida, dependências dessas instituições de reu, mas a decisão do STJ foi man- o nome “Santa Casa”, referência ensino, travestido de outras formas. tida pelo Supremo Tribunal Federal depreciativa à escola de medicina O tema é sazonal e, após denún- em junho de 2013. Todos os ex-réus que ele cursara por dois semestres, cias pontuais, cai no esquecimento.

44 Revista Adusp Dezembro 2015 “A imprensa, às vezes, o mantém que, vítimas de violência em trotes tembro de 2014, chegando também na agenda em fevereiro e março, e festas universitárias, romperam à Comissão de Defesa dos Direi- mas logo depois tudo volta ao que corajosamente o silêncio reinante, tos da Pessoa Humana, da Cidada- era antes. Essas coisas recrudescem levou a mídia a dedicar mais aten- nia, da Participação e das Questões depois que saem da agenda porque ção à questão. Denúncias de graves Sociais (CDH) da Alesp. Assim, a tradição é mais forte”, diz Marco violações de direitos humanos que realizaram-se duas audiências em Akerman, professor titular e vice- vêm sendo feitas desde 2013 por novembro de 2014, nas quais foram chefe do Departamento de Prática alunos da FMUSP resultaram na ouvidos depoimentos de estudan- da Faculdade de Saúde Pública da abertura de um inquérito civil pela tes sobre casos de assédio moral e USP, que desde 2010 pesquisa a Promotoria de Justiça de Direitos sexual, estupros, racismo e homo- prática do trote nos cursos médicos. Humanos e Inclusão Social do Mi- fobia, a maioria deles ocorrida na Porém, a iniciativa de estudantes nistério Público (MPE-SP) em se- FMUSP.

I Os c h o c a n t e s r e l a t o s à CPI. a g r e s s õ e s a c a l o u r a s e c a l o u r o s d a Medicina

O então deputado Adriano Dio- funcionários, vítimas e supostos ticadas por membros da Associação go (PT), que presidia a CDH, re- agressores foram convocados pela Atlética e do “Show Medicina”, que latou à Revista Adusp que houve comissão, cujo objetivo foi promo- são organizações antigas e fortes fortíssima pressão por parte da di- ver não apenas o debate sobre a da FMUSP, geridas por estudantes reção da FMUSP para que uma questão, mas a responsabilização mais velhos. das audiências não fosse realizada. civil, penal e administrativa de pes- Os relatos colhidos nas duas au- soas e entidades que tiveram en- diências da CDH revelaram uma volvimento com atos de violações, realidade de profunda discrimina- de forma ativa ou omissa. Embora As calouras sofrem as ção, especialmente contra mulheres tenha ficado conhecida como “CPI primeiras violências na e homossexuais, na FMUSP e na do Trote”, a comissão foi além, ao Faculdade de Medicina de Ribei- revelar que tais violências não se semana de recepção, quando, rão Preto (FMRP-USP), e deram restringem ao trote em si, e que levadas por veteranos da ensejo, por sua gravidade, à cria- este transcende o período de recep- ção de uma CPI, finalmente insta- ção aos novos alunos ao assumir di- Atlética a fazer um círculo lada em 17 de dezembro de 2014. versas formas que se estendem por ao redor do famoso busto A faculdade, lembra Diogo, enviou todos os anos dos cursos. advogados para embaraçar a CPI. Se há casos de trotes violentos do “Dr. Arnaldo”, são “Todos os dias eles estavam lá me em várias universidades paulistas, obrigadas a ouvir “hinos” intimidando, me coagindo, esva- como se demonstrou durante o tra- ziando a sessão para que não desse balho da CPI, estes parecem en- machistas e degradantes quórum”, conta. contrar terreno especialmente fér- A legislatura encerrar-se-ia em til entre estudantes de faculdades março de 2015, de modo que a CPI tradicionais, como as de Medicina. teve menos de quatro meses para Grande parte das denúncias apre- Para as calouras da Medicina, os trabalhar. Ao longo desse período sentadas por estudantes envolve abusos começam já na semana de diretores de unidades, professores, violações de direitos humanos pra- recepção, quando são colocadas em

45 Dezembro 2015 Revista Adusp círculo, por veteranos da Atlética, Daniel Garcia mesmo tempo, político e alienan- ao redor do famoso busto de Arnal- te. E de violência, de um ufanismo do Vieira de Carvalho, fundador e cego pela instituição. Elas se forta- primeiro diretor da faculdade (“Dr. leceram a partir de 1965 como uma Arnaldo”), e recebem a ordem de forma de contraposição política aos gritar “Bu!”, após o que os vetera- então grêmios estudantis, ou seja: nos emendam um de seus “hinos” uma anulação daquilo que é político altamente machistas e degradantes: de fato. Nesses cursos que têm uma “Buceta! Buceta!/Buceta eu como a inserção social muito forte e são al- seco!/No cu eu passo cuspe!/Medi- tamente elitizados e tradicionais, co- cina é só na USP!”. Foi assim que mo Engenharia, Direito e Medicina, Renata Mencacci, 20 anos, aluna do as atléticas passaram a ter um papel segundo ano da FMUSP, teve seu preponderante”, explica Kobayashi, primeiro e chocante contato com os cujo trabalho serviu de fator moti- “atletiqueiros”, em 2013. vador da CPI, em função dos casos “Eles fizeram a gente andar até de violência que conhecia e levou à Renata Mencacci a Atlética de ‘elefantinho’, o que é CDH da Alesp. ‘superdesagradável’, porque nessa um discurso louco de que, se você Augusto Ribeiro Silva, 24 anos, posição a mão de alguém fica ro- não treinar para a Calomed, não aluno do quarto ano da FMUSP, çando seu genital. Quando cheguei vai fazer amigos; se não tiver ami- conheceu de perto tais práticas vio- à Atlética, falei que não queria, gos, não vai ter panela no internato; lentas, o que o levou a depor contra mas eles abriram minha boca para se não tiver panela no internato, a Atlética na CPI. “O trote não é só jogar bebida — ‘tem que beber’. vai ter uma formação ruim; se tiver violência física, dar tapas e socos, Uma invasão absurda!”, indigna-se uma formação ruim, não vai passar nem só pintar a cara, raspar a ca- a estudante. O abuso não parou na residência, enfim. As pessoas beça. É um processo complexo, que por aí: um veterano do sexto ano são muito coagidas a treinar”. A es- teve que se construir na Faculdade foi beijando cada uma das calouras. tudante chegou a participar de dois de Medicina da USP desde a mor- Quando chegou a vez de Renata, treinos, mas não gostou do ambien- te do Edison”, inicia o estudante, ela se recusou a beijá-lo, mas não te e, desde então, adotou a atitude aludindo ao fato de que, em função adiantou. “Ele segurou meu ros- que a levou ao ostracismo na facul- de o episódio de 1999 ter atraído a to, roubou um beijo e continuou dade: não frequentar competições atenção da mídia, os grupos promo- andando. Minha semana de recep- nem mesmo para torcer. “Não que- tores do trote (“trotistas”) passaram ção acabou aí, e já fui meio que me ro compactuar com as violências a se esforçar para evitar a identifi- blindando”, recorda. que acontecem lá”, explica ela, hoje cação e divulgação de outros casos A pressão feita pelos veteranos ativista do Coletivo Feminista Geni. de violência na faculdade. Assim, o para que os ingressantes treinem Assessor da CPI, Ricardo Ko- trote passou por uma ressignifica- para a Calomed, competição uni- bayashi destaca que o fortalecimen- ção, assumindo outras roupagens, versitária anual entre alunos ini- to das associações atléticas nas fa- igualmente violentas. “Eles te ab- ciantes de algumas faculdades de culdades tradicionais se deu no perí- sorvem com a Calomed, te seduzem medicina, tornou-se outro grande odo da Ditadura Militar (1964-1985) com a ideia de uma autodetermina- incômodo para Renata. “Eles co- como um mecanismo de despoliti- ção de elite, com a afirmação pelo meçam a colocar essa mentalida- zação dos jovens universitários. “As esporte e pela competição esporti- de corporativista em você desde atléticas são um traço característico va”, relata, em entrevista à Revista o primeiro momento em que pisa das faculdades de Medicina. Todas Adusp. Num primeiro momento, aqui”, critica ela. “Eles vêm com elas cumprem um papel que é, ao isso veio a calhar para ele.

46 Revista Adusp Dezembro 2015 Daniel Garcia cê cria um ponto de vista próprio, então se dá o direito de fazer tudo”, explica o professor Marco Akerman “Em uma faculdade de (FSP), outro importante estudio- Medicina os professores so do tema. No artigo “‘Currículo oculto’: há que se evidenciar ainda titulares são quase todos mais a sua associação com precon- brancos. E quase todos ceitos, abusos, humilhações e vio- lências nas escolas médicas”, publi- são homens. Então vou cado em 2015, o professor define a me formando dentro de expressão como “um conjunto de tradições, valores, normas, regras, uma cultura machista, de rotinas que não estão escritas em elite branca”, sem saber nenhum documento da escola, mas que são transmitidas, consciente- “o ponto de vista do negro, mente ou inconscientemente, entre Professor Marco Akerman da mulher”, diz Marco professores e estudantes, e que po- trotistas, de acordo com o professor dem gerar tanto um ciclo virtuoso Akerman (FSP) Antonio Ribeiro de Almeida Junior, quanto um ciclo vicioso de atitudes do Departamento de Economia, e ações que podem marcar o corpo Administração e Sociologia da Es- e a alma dos estudantes durante o Inseguro ao entrar no curso, cola Superior de Agricultura Luiz de período escolar, ou para o resto do mas familiarizado com a prática Queiroz (Esalq-USP). “Nos apelidos tempo de vida fora da escola”. de esportes, viu na Atlética uma dados aos alunos, preconceitos de Augusto conta como se sentia ao chance de se integrar. Ao contrário gênero, relativos à aparência física chegar à faculdade: “Eu não tinha da maior parte dos estudantes da da pessoa, étnicos, raciais, relativos à leitura política, ainda não entendia FMUSP, Augusto não é branco nem opção religiosa ou sexual, entre ou- como me enquadrava naquele espa- provém de uma família de classe tros, manifestam-se constantemen- ço. Ainda não me declarava negro e média alta. Seus pais se esforça- te”, escreveu ele no texto “Trotes, não entendia por que alguns espa- ram para pagar-lhe boas escolas violências e hierarquias nas univer- ços lá dentro não estavam abertos em Santos, onde nasceu, e tudo o sidades”, publicado originalmente para mim”. Convencido do quão que esperavam dele era dedicação no relatório final da CPI. Sociólogo, difícil seria manter-se no curso, o aos estudos — expectativa à qual o Almeida Jr. estuda a cultura trotista estudante estabeleceu como meta a jovem correspondeu naturalmen- de longa data e é o maior especialis- construção de uma rede de pessoas te. Recém-chegado à faculdade, ta brasileiro no tema. que possibilitasse sua integração no em 2011, participou do chamado “Em uma faculdade de Medi- novo ambiente, como “uma questão “Churrasco da Invasão”, promovi- cina, os professores titulares são de permanência estudantil”. Ao ver do por veteranos da Atlética, a par- quase todos brancos, não há profes- no esporte a chance de integração, tir do qual passou a ser chamado de sores negros. E quase todos são ho- entrou para o time de handebol, “Léo Moura” (alusão ao jogador mens. Então eu vou me formando que, segundo o estudante, é uma negro do Flamengo), apelido que dentro de uma cultura machista, de das modalidades mais envolvidas herdou de “um colega maranhense uma elite branca. O ‘currículo ocul- com a gestão da Atlética. Possui que tinha traços nordestinos”. to’ vai me conformando como al- maior influência quem compõe a A atribuição de apelidos pejora- guém que não sabe o ponto de vista diretoria da entidade, mas essa as- tivos a calouros é típica de grupos do negro, da mulher, do pobre. Vo- piração de grande parte dos “atle-

47 Dezembro 2015 Revista Adusp tiqueiros” não estava nos planos de quentar algumas das pizzarias onde em algumas, ao invés de pasta de Augusto. costumava realizar tais encontros. dentes, aplica-se pimenta. Segundo Nos espaços de confraterniza- Assim, algumas “pizzadas” passa- Marco Akerman, este é o caso da ção, a hierarquia da equipe se ma- ram a acontecer na própria sede Faculdade de Medicina do ABC nifesta de forma intensa. “Apenas da Atlética, a poucas quadras da (FMABC), em Santo André, onde os mais velhos têm voz, algo que FMUSP. “Há histórias de pessoas o professor tomou nota da ocorrên- é imposto também de forma vio- que levaram pasta numa ‘pizzada’”, cia do pascu em 2010, quando era lenta”, conta. Uma das tradições diz Augusto, referindo-se a uma vice-diretor da instituição e recebeu do time de handebol é a “pizzada” prática repulsiva, empregada por denúncias anônimas de pais de alu- semanal que “é praticamente obri- veteranos, da qual ele também foi nos que haviam sido vítimas. gatória para quem é do time” e, vítima. Embora profundamente envol- às vezes, frequentada também por A “pasta” ou pascu é uma espé- vido com aquele universo, Augusto veteranos já formados. cie de ritual em que se passa pasta passou a se sentir mal com uma “O estudante que estivesse pela de dente no ânus do novato, dan- série de situações que o abalaram primeira vez na ‘pizzada’ era obri- do-lhe tapas nas nádegas. Pode ser durante o tempo em que integrou a gado, como um ritual de passagem, um ritual de iniciação, apenas por equipe, cujas práticas violentas ele a contar uma história, que deveria trote, ou significar uma punição, nunca reproduziu. Assim, manteve- ser misógina ou autodepreciativa”, por exemplo no caso de descum- se no time, mas, em meio a uma explica. E a ordem era clara: a his- primento de uma ordem dada por situação de “fragilidade social”, co- tória tinha que envolver “putaria” veteranos. Aplicam-no aqueles que mo ele denomina, buscou conhecer ou o calouro “se dando mal”. “De também já foram submetidos ao ri- outros aspectos da faculdade e, no preferência, os dois”. Em decor- to, no qual, às vezes usando-se len- seu segundo ano de curso, prestou rência de episódios que envolve- çóis e luvas roubados do Hospital “vestibular” para o Show Medicina. ram quebrar pratos e até estapear das Clínicas, simula-se um procedi- Foi quando conheceu outra face colegas sobre a mesa, o time che- mento cirúrgico. A prática ocorre perversa do universo trotista da fa- gou a ser expulso e proibido de fre- em diversas faculdades médicas — culdade.

II Sh o w Medicina — a f r a t e r n i d a d e m a s c u l i n a , h o m o f ó b i c a e misógina e s e u s t r o t e s v i o l e n t o s

Composto apenas por homens, estudantes de Medicina no grupo é “As meninas são alienadas do alguns dos quais membros também chamado de Costura: são elas que processo criativo, estão ali para ser- da Atlética, o Show Medicina é uma produzem as peças do cenário e os vir, porque a demanda vem dos me- organização constituída em torno figurinos usados pelos homens nas ninos e elas não podem propor na- de uma apresentação teatral satírica apresentações. E só. Sem partici- da”, comenta Renata Mencacci. Po- baseada no cotidiano da faculdade. pação no Show, elas desempenham rém, parte das mulheres recrutadas Uma espécie de fraternidade, à se- somente o trabalho que lhes foi pela fraternidade não é de alunas melhança das existentes no exterior. atribuído pelos homens. Como so- da FMUSP. A prostituição feminina Os ensaios para o espetáculo anual mente estes preparam e atuam nos também comparece. “O Show Me- ocorrem por cerca de dois meses, espetáculos, nos quais representam dicina dá alguns papéis claros para sempre de madrugada, no teatro da inclusive papéis femininos, eles são as mulheres, que aparecem nele em faculdade. O espaço reservado às chamados de estrelos. três momentos: na Costura; nas ‘so-

48 Revista Adusp Dezembro 2015 ciais’ [reuniões festivas da organiza- organização. no escuro, de modo que os novatos ção], quando contratam prostitutas; Para ingressar no Show, o calou- não veem, do palco, quem os assis- e na limpeza, quando pagam fun- ro passa por uma espécie de vesti- te. Só depois foi que Augusto pôde cionárias terceirizadas para fazer bular interno, que pode ser presta- ver que, na parte da frente, ficam os um trabalho esdrúxulo, porque eles do em seu primeiro ou segundo ano veteranos já formados, enquanto os deixam as coisas em um estado la- de faculdade. Como a organização que ainda estão na faculdade ficam mentável”, critica a estudante. é permeada por um grande segre- na parte de trás, sem se manifestar. Em todos esses papéis, a mulher do, não se sabia de fato o que acon- Tal distribuição não é por acaso. aparece como uma figura subser- tecia neste “vestibular”, até come- “O fato de o trote ser aplicado por viente ao homem, o que começa çarem as denúncias de estudantes pessoas já formadas é um fator de por esta delimitação de espaço den- na CPI — entre os quais Augusto, proteção, porque elas estão imunes tro do Show: “Enquanto os homens que foi submetido ao processo. “As a qualquer processo administrativo. fazem festas e todo o trabalho cria- pessoas que vão prestar o ‘vesti- Por não serem mais alunos da facul- tivo, as mulheres ficam reclusas nu- bular’ estão preparadas para uma dade, elas não estão numa posição ma salinha”, resume Renata. “Eles prova que avalia habilidade, mas de fragilidade perante a direção, podem ocupar todos os espaços, in- não sabem que a única habilidade que nem sempre é um aliado dessa clusive o da Costura, mas elas ficam que vai ser testada nesse processo fraternidade”. só no espaço que é delimitado para é a de silenciar diante de violência elas”, diz a militante, que também para pertencer a um grupo pode- depôs à CPI. Ela destaca que não roso”, relata o estudante. Ele conta se trata de desvalorizar o ato de que, ao final da prova com questões No chamado “vestibular” do costurar, desempenhado profissio- “meio impossíveis” sobre temas di- Show Medicina, os veteranos nalmente na sociedade por homens versos, veteranos sextanistas e “sa- e mulheres, mas de compreender pos” — membros do Show que já se estimulam os calouros a como o Show reforça o papel des- formaram e “estão sempre presen- trocarem tapas. “Obrigam a tinado ao gênero feminino numa tes, porque são figuras importan- tradição conservadora e misógina. tíssimas” — chegam com bebidas gente a beber mais, nos jogam Renata critica a objetificação da alcoólicas e obrigam os calouros a bebidas, mandam todos mulher no contexto da contrata- beber. Augusto foi forçado a virar ção de prostitutas pela organização: uma garrafinha de Fanta Laranja ficarem nus. Todo mundo “Eles fazem um ritual misógino e com alta dose de cachaça que, por precisa ficar nu. Quem não expositivo, porque, além de usar a sorte, vomitou em seguida, o que mulher como objeto sexual, usam o evitou que se embriagasse. ficar não passa no vestibular, sexo como forma de declarar e de- Depois, é a vez da parte práti- tem que ir embora” marcar poder. Quem pode encostar ca da prova, em que os calouros primeiro nas prostitutas são os sex- apresentam suas peças no palco do tos anos e a diretoria, e só depois teatro. “Enquanto apresentávamos isto é permitido aos outros”. Há, a peça, os ‘sapos’ jogavam coisas na Após as apresentações dos ca- ainda, o cargo de esfiha, exercido gente, xingavam, diziam que nosso louros, todos se reúnem e tem por um membro do Show cuja fun- trabalho era horrível. Meu amigo início outra etapa do processo de ção é frequentar prostíbulos para estava muito bêbado e o outro, que seleção: “Aí começam as humilha- transar com prostitutas de luxo e ia apresentar a peça comigo, estava ções, o trote mesmo”, momento no selecionar aquelas que serão leva- se debatendo no chão, bêbado tam- qual os veteranos “estimulam os das aos demais — incumbência pa- bém”, narra o estudante. Durante a primeiranistas a trocarem tapas, e ra a qual conta com uma verba da apresentação, a plateia permanece as pessoas fazem isso”, diz Augusto.

49 Dezembro 2015 Revista Adusp Daniel Garcia “Obrigam a gente a beber mais, rituais de passagem e o trote, uma nos jogam bebidas, mandam todos tradição forte, altamente masculi- ficarem nus. Todo mundo precisa na, homofóbica, misógina e focada ficar nu. Quem não ficar não pas- no estabelecimento de laços fortes, sa no vestibular, tem que ir em- de cumplicidade em torno de atos bora”. Neste momento, em que os extremos e do uso de drogas”. Tra- calouros, despidos, encontram-se ta-se de uma cadeia de poder muito completamente vulneráveis, os ve- bem estruturada. teranos simulam um telefonema A cumplicidade entre os mem- da mãe do calouro considerado “o bros da Atlética e do Show Medici- mais rebelde durante o processo”, na evidenciou-se claramente no de- como se esta o estivesse procuran- curso da CPI, quando todos aqueles do, e torturam-no psicologicamente que compareceram negaram não (“Você ‘tá fodido, mano, sua mãe apenas seu envolvimento nos fatos tá aí!”), até entrar no palco um ve- de que foram acusados como a prá- terano completamente nu, usando Professor Antonio Almeida Jr. tica de violações de direitos huma- peruca e gritando, representando nos por membros das fraternidades a mãe do calouro escolhido para a sentir, quando tudo termina, que de modo geral. Até mesmo os mais “brincadeira”, e o derruba, simulan- recebeu poder. indubitáveis elementos foram nega- do um ato sexual, com movimentos No Show Medicina, assim co- dos, ainda que diante de evidências caricatos. “A pessoa está embriaga- mo na Atlética, há regras específi- incontestes dos fatos (vide p. 61). da, sem conseguir reagir, naquela cas, práticas violentas, forte coesão Segundo Almeida Jr., a capa- situação extremamente absurda, e entre os membros e músicas que cidade de silenciar é pré-requisito todo mundo em volta, olhando, sem revelam o sentimento de orgulho básico de inserção no grupo tro- fazer nada. É uma situação que não por pertencer a uma elite. “Eu sou tista. “Nessas escolas existe uma te deixa escolha”, recorda Augusto, aluno da Faculdade de Medicina da seleção para entrar numa falange, em tom de indignação. USP/Da Faculdade de Medicina da aquela coisa militar, dos caras uni- “Nessa hora, está todo mundo USP eu sou aluno”, entoam repe- dos, indo para a guerra. Então, pa- puto. É a hora extrema, de humi- tidamente os veteranos do grupo, ra entrar, você precisa ser testado. lhação máxima, em que você pensa cujo símbolo é uma caveira vestida E o teste é se você fica quieto, se ‘se aquilo aconteceu com meu cole- de fraque, gravata, e piteira. você obedece. Por isso as coisas não ga, podia ter acontecido comigo’”, Claramente burguês, o signo dis- serão leves. Para ser efetivo, o teste prossegue. Após este último núme- pensa maiores esforços para sua tem que machucar, irritar, provo- ro do espetáculo trotista, as luzes, compreensão semiológica. Curio- car, mexer emocionalmente com a até então apagadas, são acesas. “E samente, o símbolo da Atlética é pessoa. E aí eles vão ver se a pessoa aí está todo mundo sorrindo pra igualmente uma caveira. O Show realmente aceita aquilo, obedece e você e dizendo ‘parabéns, você é existe há 71 anos: “Foi ganhando entra no grupo, ou se ela reage de do Show Medicina agora, você foi esse caráter, até o momento em que uma forma que o grupo considera aceito, você faz parte desta institui- eles adquirem uma estrutura de fra- inapropriada, e aí ela é descartada”, ção!’, e a pessoa que estava choran- ternidade sem medo de se assumir. explica o sociólogo à Revista Adusp. do cinco minutos antes de repente Alguns alunos foram para a França, “O trote é um processo seletivo pa- está feliz e se sente bem”, conclui conheceram fraternidades e trouxe- ra entrar em um grupo dessa natu- Augusto, que atribui esta aparente ram o modelo para cá”, conta Au- reza, que é uma coisa propícia para facilidade para superar o processo gusto. “Eles trouxeram uma música corrupção, para desmando, para de humilhação ao fato de o calouro francesa que é cantada no Show, todo tipo de coisa”, completa.

50 Revista Adusp Dezembro 2015 Indagado sobre como o que acon- “Ninguém que não queira arranjar alunos da FMUSP que realizaram tece no “vestibular” do Show Medici- problemas para si fala sobre esses denúncias vêm sendo assediados na na não vaza para o resto da faculda- assuntos”. Tal afirmação se confir- faculdade desde então, ou relegados de, Augusto responde prontamente: ma na maneira como ele e outros a uma espécie de ostracismo.

III De n ú n c i a : “Sh o w Medicina é u m a a p o l o g i a a o c r i m e . E t e m u m a r e g r a . Ho m o s s e x u a l t e m q u e s e r p e r s e g u i d o a t é d e s i s t i r ”

Houve outra vez, entretanto, na após apresentarem seus esquetes, história da instituição, em que es- eram forçados a ficar nus, a se abra- tudantes denunciaram práticas vio- çarem, a pegarem bananas e outros lentas da entidade. Isso se deu em objetos com as nádegas. 1993, quando textos críticos dos en- Ele também mencionou a or- tão estudantes Leon de Souza Lobo dem de sigilo absoluto dada às víti- Garcia e Luís Fernando Tófoli, ho- mas, sob ameaças de serem “preju- je psiquiatras, foram publicados no dicados em sua carreira acadêmica jornalzinho Bip, do Centro Acadê- e profissional” em caso de descum- mico (CAOC), apon- primento — como ainda acontece tando a discriminação de gênero, hoje em dia. “Em resumo, o Show humilhações e abusos patrocinados Medicina é uma apologia ao crime, pelo Show Medicina, bem como sua apologia a tudo de ruim que a so- “blindagem” na faculdade. As reta- Médico Leon Lobo Garcia ciedade imagina. Só que eles ainda liações vieram na forma de faixas estão no século passado, achando com dizeres agressivos e fezes, que histórico número do Bip trouxe que esse tipo de apologia ao crime foram depositados na sede do CA- outros textos críticos ao Show, de está no capítulo da vida privada, OC, que foi depredada. autoria de Paulo Germano Mar- que a vida privada não está en- O ataque ao CAOC é narra- morato, Luciana Gonçalves e “Fre- quadrada na vida pública, como se do, em detalhes, no artigo “Sobre dão” (vide quadro na p. 53). um homem chegasse, esbofeteasse Pontas, Portas e Bostas”, assina- No seu depoimento à CPI, em uma mulher, chamasse um cara de do por Tófoli e publicado no Bip janeiro de 2015, Leon Garcia, hoje bicha, de gay... [sem que isso seja número 14, ano 10, que precisou médico assistente do Instituto de passível de punição]. E tem uma ser reimpresso por razões alheias Psiquiatria do Hospital das Clínicas, regra: homossexual não pode se aos seus editores. Os exemplares contou que a seleção para integrar formar médico a não ser que se da reimpressão, ou “segunda edi- o grupo, embora “anunciada como esconda o tempo todo, porque é ção”, traziam na capa a seguinte apresentação de um esquete humo- como se fosse um alistamento mili- informação, em letra manuscrita: rístico, na verdade não era isso, era tar. Homossexual tem que ser per- “Primeira edição [foi] confiscada apenas um pretexto para que hou- seguido até desistir”, registrou Le- pelo presidente do Show, Rodri- vesse um trote que era realizado no on Garcia na audiência, lembrando go Reiff” (Reiff formou-se e hoje teatro da faculdade”. Trote do qual ainda que, na última apresentação trabalha como ortopedista). Esse participavam muitos novatos que, do Show, “pegaram um aluno co-

51 Dezembro 2015 Revista Adusp mo símbolo, o Felipe Scalisa, para Reprodução destruí-lo no palco”. Por ter sido cruelmente satiriza- do na edição de novembro de 2014 do Show, Scalisa, de 23 anos, hoje aluno do quarto ano da FMUSP, dispôs-se a depor contra a frater- nidade na CPI. Militante do movi- mento LGBT, o estudante tornou- se liderança no combate à violência de gênero na faculdade ao fundar, em 2013, o Núcleo de Estudo em Gênero, Saúde e Sexualidade (NE- GSS), reunindo estudantes envol- vidos no combate à homofobia. Ao final de 2013, o NEGSS tornou-se autor da primeira denúncia conhe- cida de estupro à direção da facul- dade, tirando da sombra o debate da questão e abrindo espaço para uma sequência de outras denúncias, que culminaram na CPI. O estupro ocorreu em novem- bro de 2013 no estacionamento da FMUSP, durante uma “cervejada” do sexto ano, no porão do CA- OC. “Conheci dois rapazes que eram de uma turma mais velha, A nota em que o NEGGS, ocul- e daí eles me convidaram para ir tando o nome de Phamela, tornou para o carro deles, que eles iam O parecer da comissão público o caso, foi mal recebida me dar mais bebida. Eu estava sindicante sobre o caso de pela maior parte da faculdade. Mais vulnerável porque tinha bebido, negativa ainda foi a acolhida às ma- eu resisti, e nisso foi quase meia Phamela concluiu que não nifestações contra a violência sexu- hora de insistência, até que fui até houve abuso, e sim uma al que se seguiram, que propunham o carro deles, e lá eles começaram debater o tema: “As pessoas nos a me agarrar à força, a me beijar, relação consensual. “Todo o acusaram de fazer uma acusação le- enfiaram a mão na minha calça, meu depoimento foi jogado viana e generalizante, alegando que eu fiquei acuada, comecei a gri- se o suposto caso, que ainda não tar, tentei sair do lugar e eles não no lixo. Então eu sou louca? se sabia se tinha acontecido, fosse me deixavam sair. Até que uma Foi um absurdo!”, indigna- verdadeiro, seria um caso isolado, colega surgiu com o namorado não algo que extrapola para uma no estacionamento, me chamou e se a estudante, que exigiu realidade”, relata Felipe. “É a prin- eu consegui sair”, relata a vítima, reabertura do processo cipal defesa do estado das coisas. Phamela Silva Feitosa, 22, que na Se aconteceu, é sempre um excesso, época cursava o terceiro ano. não uma essência”, critica.

52 Revista Adusp Dezembro 2015

CRÍTICAS REMONTAM A 1993

Excertos de artigos publicados no jornalzinho BIP, do CAOC

“Show Medicina: uma visão crítica” “O Show é covarde quando esquiva-se de questionar a situação da Faculdade e seu status quo. Não é difícil imaginar então que o Show através do seu corporativismo participe e beneficie-se desse status quo. Assim, o menosprezo a paramédicos e médicos que não pertençam a suas castas, o machismo e até o ra- cismo contra pacientes são lugar-comum. Tudo isto soa bonito e engraçado no Show. Sem falar nos infan- tis ataques ao Centro Acadêmico, de forma que o aluno da Faculdade que tem como diretor um possível presidenciável seja incentivado a levar dentifrício no ânus e ridicularizado ao discutir política estudantil”. Paulo Marmorato, ex-membro do Show

“Show de Machismo” “As mulheres, já que não podem participar do Show, podem, é óbvio, contentar-se em dar uma ajuda costurando todas as noites, o que corresponde ao estereótipo da mulher Amélia [...] Estas costureiras aplicadas têm a honra de serem citadas em músicas extremamente depreciativas, preconceituosas e gros- seiras realizadas pelos integrantes do Show enquanto elas trabalham. Só pra ilustrar: ‘Nada mais escroto do que a bu... da Fulana’. É triste, mas as mulheres tornaram-se diversão para os homens. [...] As pessoas abraçam calorosamente a tradição machista e a disseminam por outros setores da faculdade. Formam-se, então, diretorias da Atlética com maioria arrasadora de homens, que tiveram como berço de sua for- mação o Show Medicina seguindo seus ensinamentos. Chamam uma ou duas meninas, na maioria, com função apenas decorativa. O machismo encontra seu caminho e ruma para os mocós da cirurgia e para o hospital”. Luciana Gonçalves

“Qual é o tesão do Show?” “Há muita gente inteligente e íntegra no Show que, no entanto, mantém um silêncio, não sei se cons- trangido ou inconsciente, em relação a atitudes que deveriam ser revistas. Há algum tempo vem se tor- nando público o que acontece no vestibular do Show. Os calouros são convidados a subir no palco do tea- tro da Faculdade de Medicina onde começam a ser alvejados com bolas de papel e etc. pelos seus colegas mais velhos. Não faltam xingamentos e humilhações verbais [...] o ponto alto chega quando os calouros são instruídos a retirarem suas roupas em pleno palco iluminado [...] a estas alturas é difícil simplesmente ir embora. A coação física é clara. Os calouros continuam assim sofrendo as agressões físicas e verbais de seus colegas, nus, humilhados e iluminados para que todos os vejam melhor. São obrigados a dançar lam- bada juntos, a sentarem um no colo do outro e a segurar frutos e objetos entre as nádegas. Sequer podem defender-se das bolas de papel que são lançadas contra os seus genitais [...].” Leon Lobo Garcia

53 Dezembro 2015 Revista Adusp Daniel Garcia A partir de uma reunião do NE- pauta principal”, questiona Felipe. GSS, alunas da FMUSP sentiram a Presidida por Paulo Saldiva, pro- necessidade de criar um grupo es- fessor titular da FMUSP, a Comis- pecífico para defender a pauta das são de Direitos Humanos criada na mulheres, o que resultou na criação época discutiria, a princípio, apenas do Coletivo Feminista Geni. A co- esta temática, mas terminou por se ragem de Phamela ao denunciar a estender à questão da violência de violência sexual que tinha sofrido forma mais abrangente. “Na comis- foi “fundamental para quebrar o são a gente expôs a homofobia, o pacto de silêncio que existe na fa- racismo, o machismo, todos os casos culdade”, ressalta Renata Mencac- de violência sexual e assédios que ci, uma das fundadoras do Geni. conhecíamos. A comissão teve isso “O único apoio que eu tive foi dos relatado, então não tem como a di- coletivos. Não tem outro espaço de reção da faculdade dizer que não sa- acolhimento. Porque tem um total be das coisas”, resume o estudante. descaso da faculdade em relação a is- Acusados de difamar a faculdade Aluno Felipe Scalisa so, e não é só da faculdade como insti- ao denunciar o caso e problematizar tuição, é das pessoas. Fui ridiculariza- do a vítima, que exigiu a reabertura a questão, os militantes foram for- da, estigmatizada. Foi uma coisa hor- do processo. “Tive que me expor temente hostilizados. “Ficamos bas- rorosa”, diz Phamela, hoje no quinto diante de toda a congregação, foi tante desamparados e vulneráveis, ano. Pressionada pelo NEGSS e pelo uma fala emocionada. A partir disso, porque vários grupos que estavam Geni, a faculdade abriu uma sindicân- eles resolveram fazer as comissões articulados acabaram se desmobi- cia para apurar o caso. “A comissão foi de investigação de abusos”. lizando. As medidas proibitivas ge- formada, na maioria, por homens, que Somente quando prestou de- raram hostilidade, um certo rancor, ficaram perguntando coisas relaciona- poimento pela segunda vez, para e teve a criação de núcleos, através das à minha moral, se eu tinha bebi- abertura da nova sindicância, é que dessas diretorias, que tentavam co- do, feito uso de drogas, com quantos Phamela constatou o quanto o pro- optar a pauta, mas sem confiança caras eu tinha ficado durante a festa, cesso anterior havia sido ilegítimo: alguma das vítimas”, relata Felipe. se eu já tinha saído com os acusados. “Eu não tive acesso ao documento, Eu senti como uma tentativa de des- ao meu depoimento, não assinei na- qualificar o que aconteceu, de mudar da, e tinha várias falas adulteradas”, o foco do assunto”, critica. denuncia. A única atitude tomada “Casais homossexuais eram O parecer da comissão sindican- foi a de desconsiderar o primeiro proibidos de entrar numa te, divulgado no primeiro semestre documento, sem que ninguém fosse de 2014, concluiu que não houve responsabilizado pelas adulterações. parte da festa ‘Carecas no abuso, e sim uma relação consensu- A resposta imediata da faculdade Bosque’. A segurança dizia: al, e atribuiu incidentes do tipo ao à quebra do silêncio sobre os casos consumo de álcool. “O resultado foi de violações foi estreita, o que inten- ‘Só entram casais normais’, lido em congregação e foi um mo- sificou a hostilidade aos coletivos. “A isto é: homem e mulher, e mento de muita revolta. Todo o meu instituição abordou o tema que para muitos gays e lésbicas que depoimento foi jogado no lixo e eles ela era mais conveniente, que era o falaram que foi consensual. Então do álcool. Então, houve a proibição tentaram entrar com parceiros eu sou louca? Foi um absurdo!”, in- absoluta do álcool na faculdade, al- e parceiras foram impedidos” digna-se Phamela. As estudantes do go que nós, quando denunciamos Geni refutaram o resultado, apoian- as violências, não tínhamos como

54 Revista Adusp Dezembro 2015 A tensão aumentou após um do. “O ato foi recebido com uma do sabe o que o Show Medicina fez caso de homofobia ocorrido em hostilidade imensa. Depois disso comigo, saiu um documentário na 2014, em uma das festas promo- não consegui mais frequentar a [TV] Band, estava na CPI, está no vidas pela Atlética, nas quais, se- faculdade, fui considerado traidor, MP, nós expusemos na comissão. gundo Felipe, homossexuais não pária em relação àquela realida- Não foi aberta uma sindicância so- podem demonstrar afeto em pú- de. Rasgavam nossos cartazes, pi- bre o meu caso. Eles esperam que blico. “Casais homossexuais eram chavam coisas com nossos nomes, eu peça?”, desabafa Felipe. proibidos de entrar numa parte meu nome foi pichado pela facul- As instituições são as principais da festa ‘Carecas no Bosque’, era dade inteira”, conta o estudante, responsáveis pela manutenção de um apartheid. A segurança dizia: que também foi alvo de postagens práticas trotistas como as perpetra- ‘Só entram casais normais’, isto é: difamatórias em redes sociais. das pela Atlética e pelo Show Medi- homem e mulher, e muitos gays e O assédio dos colegas ao ati- cina, acredita o sociólogo Almeida lésbicas que tentaram entrar com vista chegou ao ápice quando, no Jr. “A universidade dá a impressão seus parceiros e parceiras foram final de 2014, um dos esquetes do de que quer esse grupo, porque é impedidos”. Ao tentar entrar na Show Medicina apresentou um como um pacto: o grupo protege a “área hetero” da festa com o par- personagem que mimetizava Feli- universidade independentemente ceiro, um aluno da Faculdade de pe, ridicularizando, diante de cer- do que a universidade faça. Nas Direito da USP foi barrado pela ca de 400 pessoas, seus trejeitos músicas das Atléticas, todas as uni- segurança, que permitiu sua en- e sua militância — e referindo-se versidades são ‘as gloriosas’, todas trada somente quando ele deu a a ele como “aquele que defen- são lindas e maravilhosas. É um mão a uma amiga. Ao vê-lo com o de a diversidade de pensamentos enaltecimento louco da universida- namorado no espaço, a segurança iguais aos dele”. O estudante foi de, não importa o que esta esteja ordenou que o casal se retirasse, estigmatizado ainda em outro es- fazendo, se está cumprindo seu pa- argumentando que estava “apenas quete, no qual o personagem, uma pel social ou não”, afirma o profes- seguindo ordens” da diretoria da espécie de censor denominado sor da Esalq. Atlética. Mais seguranças intimi- “Fiscaliza” — em clara alusão ao Foi exatamente esta a sensação daram o casal, até que um deles sobrenome de Felipe (Scalisa) — que Renata teve quando, acompa- percebeu que o estudante estava acusa um grupo de homofóbico e nhada de dois colegas, questionou gravando a cena homofóbica com machista por suas piadas. Na CPI, pessoalmente o professor José Ota- o celular e o agrediu. porém, os dirigentes do Show ne- vio Costa Auler Junior, diretor da “Ele saiu de lá e foi para a en- garam que as representações se FMUSP, sobre as práticas da fra- fermaria. O médico era ex-membro referissem a ele. ternidade, e ouviu como resposta da Atlética e se recusou a prestar Apesar da repercussão do as- que “o Show não pode morrer”. socorro, disse que ele estava exage- sédio moral de que o estudante “Os interesses são muito complica- rando, deixou-o lá plantado, com a foi vítima, a direção da FMUSP dos, a Medicina é muito corporati- boca machucada, sangrando. Ele não se manifestou, tampouco abriu vista. Pedir para o Auler contestar foi denunciar o que aconteceu e a sindicância a respeito. “Algumas o Show Medicina é pedir pra ele Atlética se recusou a falar com ele, sindicâncias que deveriam ter sido contestar muitos livres-docentes, negou o fato. Só que ele filmou tu- abertas não foram. Quem vai ale- mesma coisa com a Atlética ou do, a segurança falando, o estado gar, hoje em dia, que não sabe que qualquer outra instituição. Quando dele machucado”, narra Felipe. O houve um caso grave de homofobia a gente fala em enfrentar de fato, fato ganhou repercussão após ser na Atlética em 2014, que saiu na significa mexer com pessoas muito noticiado pela imprensa. Indigna- mídia, saiu na CPI? Por que a fa- poderosas, além da esfera estudan- dos, coletivos da USP se uniram culdade não tomou a iniciativa de til”, critica a feminista, que defende em um ato de repúdio ao ocorri- abrir uma sindicância? Todo mun- o fim da organização.

55 Dezembro 2015 Revista Adusp IV As s o c i a ç ã o At l é t i c a : “Po d e s e r q u e v o c ê t e n h a s o f r i d o u m a violência, e n t ã o v a m o s l á t o m a r a t e r a p i a antirretroviral ”

Entre os casos de estupros de minha calça”, narrou a estudante abuso”, sem maiores detalhes. que alunas da FMUSP foram víti- na audiência. “Não entendi o que estava acon- mas, um dos mais emblemáticos, Marina só sentiu coragem de tecendo, saí do atendimento sem denunciados à CPI ao final do ano denunciar o fato quando o Co- fazer exame nem nada. Nisso eu passado, foi o de Marina Souza letivo Feminista Geni foi criado. encontrei o presidente e o diretor Pikman, 24, aluna do quinto ano. “Conversei com as minhas cole- social da Atlética lá no hospital, o Em depoimento durante a primei- gas, a gente trocou várias experi- mesmo que tinha me assediado, e ra audiência na Alesp, em novem- ências, várias meninas passaram eles me levaram para a casa de um bro de 2014, Marina relatou duas por situações parecidas, inclusive outro ex-diretor que era do sexto situações em que foi vítima de vio- com esse mesmo colega: ele já ano. Ele me falou: ‘Vamos para o lência sexual durante seu primeiro agrediu outras meninas. É uma hospital, a gente não sabe direito o semestre de faculdade, em 2011, e coisa bastante comum”. que aconteceu com você, pode ser ressaltou a importância da oportu- Dois meses depois, Marina foi que você tenha sofrido uma violên- nidade de denunciar, após sentir- violentada novamente. Desta vez, cia, então vamos lá tomar a terapia se profundamente silenciada nos o estupro ocorreu na festa “Care- antirretroviral”. últimos quatro anos. cas no Bosque”, promovida anual- Marina passou então por um A primeira violência de que Ma- mente pela Atlética e na qual há atendimento na infectologia. “Já rina foi vítima ocorreu na semana várias barracas de bebidas, cada nesse atendimento o médico ques- de recepção de calouros, após um uma com o nome de uma moda- tionou muito, falou que não sabia, happy hour na Associação Atlética. lidade esportiva. “Eu estava bem, que não podia falar que tinha uma Ela ia para outra festa em seguida, estava acordada, e na barraca do violência. O ex-diretor também no Centro Acadêmico, que é um Judô eu bebi algumas doses de não quis falar muito bem o que pouco distante, e o diretor social uma suposta tequila — que na tinha acontecido, falou que tinha da Atlética na época, “pessoa res- verdade não é tequila, é uma mis- um cara em cima de mim, mas que ponsável por orientar e cuidar dos tura de destilados que eles fazem, ele não podia falar o que tinha calouros nas atividades da organi- eles manipulam as bebidas antes acontecido porque ele não estava zação”, disse que a acompanharia de servir. Algumas bebidas me fo- lá”, prosseguiu. Ao voltar para para ajudá-la, porque ela estava ram oferecidas por um menino da casa, contou à mãe que achava embriagada. “Quando a gente es- minha turma, e depois disso já não que tinha sido sexualmente vio- tava saindo da Atlética, ele me pu- tenho mais memória do que acon- lentada. A mãe de Marina decidiu xou para uma salinha escura que eu teceu”, relatou à CPI a estudante, levar a estudante à ginecologista acho que é um depósito de mate- que acordou no atendimento do para realizar um exame de corpo riais, não sei exatamente o que era, pronto-socorro de um hospital, de delito. e começou a me agarrar, começou acompanhada de uma diretora e Na segunda-feira seguinte, teve a tentar me beijar, e eu tentava re- uma ex-diretora da Atlética. início para a vítima uma verdadei- sistir, e nisso a gente caiu no chão, As duas colegas lhe disseram ra saga em busca da verdade. Ao ele veio em cima de mim, abaixou apenas que ela havia “sofrido um procurar a diretoria da Atlética,

56 Revista Adusp Dezembro 2015 o então presidente da organiza- Da mesma forma, o então presi- “Eu não sabia o que tinha acon- ção recusou-se novamente a falar, dente da Atlética dissuadiu Marina tecido comigo, fiquei quase três orientando-a a procurar um atleta de fazer a denúncia, argumentando anos sem saber exatamente. Passei do Judô, que era quem “sabia o que não era possível afirmar que por dois atendimentos hospitalares que tinha acontecido”. Após con- houve estupro porque ela estava junto com os diretores da Atlética, versar com o rapaz, ela começou a embriagada e não sabia o que havia que sabiam o que tinha acontecido, entender parte da história. Atrás ocorrido. “Eu ainda conversei com a tinham conversado com o agressor, da barraca do Judô havia, como diretoria da Atlética, falei sobre meu conversado com a testemunha, e em todas as outras barracas da interesse em fazer uma denúncia na não me falaram”, relatou. Ela re- festa, um “cafofo”, estrutura mon- justiça, e eles se mostraram bastante cordou as sucessivas tentativas de tada com colchões, “para onde os esquivos para testemunhar”, rela- membros da Atlética de abafar o meninos da barraca levam as me- tou a vítima que, ainda assim, fez a caso, a pretexto de que, se o caso ninas com quem estão ficando”, denúncia no dia seguinte, o que re- vazasse, a “imagem” da festa (e da conforme Marina. “Ele falou que sultou na abertura de um inquérito organização) seria destruída. tinha me deixado na barraca dor- policial. Nos meses que se seguiram, Tal comportamento é comum mindo, e que cerca de uma hora foi profundamente desestimulada entre membros das chamadas “fra- e meia a duas horas depois, tinha por colegas a dar continuidade ao ternidades”, como explica o pro- voltado e visto um cara em cima processo judicial de apuração. fessor Almeida Jr. “Num momento de mim com a calça abaixada. Fa- Pressionada por membros da pior, esse grupo se assemelha a uma lou que tirou o cara de cima de Atlética, que alegavam que ela era quadrilha, porque acontece um cri- mim e bateu no cara”. Chocada, culpada por ter bebido, a estudante me e, ao invés de auxiliar as autori- ela manifestou sua vontade de de- acabou deixando de lado o inquéri- dades a entender o que se passou e nunciar o fato, mas ele a desesti- to policial, retomando-o apenas em efetivamente punir os responsáveis, mulou com o argumento de que 2014, amparada pelo Coletivo Geni. ele omite informações, distorce os ela “não teria como provar” o que Foi quando teve acesso, por meio do fatos, faz pressão contra a vítima, houve — “ele, que era a testemu- inquérito, a diversas informações ne- faz pressão contra o denunciante, nha principal do que tinha aconte- gligenciadas desde 2011. Testemunha difamando-os. Então é uma quadri- cido comigo”. principal, o rapaz que a encontrou na lha que está dentro da universidade barraca só foi chamado a depor em e não é vista como quadrilha, mas 2014, e relatou que a havia encon- como uma fraternidade”, afirma o trado completamente desacordada. especialista. Só em 2014 Marina “Na época, ele não tinha falado sobre O caso de Marina repercutiu na descobriu que o autor meu estado de consciência”, contou imprensa pouco antes da primeira Marina, que descobriu também que audiência da CPI. Seu relato enco- do estupro era um um seu estuprador era um funcionário rajou outras vítimas de estupro a funcionário, que conseguiu que conseguiu entrar na barraca por- denunciarem seus casos, apoiadas que subornou os funcionários. (Ao pelo Coletivo Geni. Entretanto, a entrar na barraca da depor, o funcionário alegou que pa- estudante foi alvo de ataques, por Atlética porque subornou gou para deitar-se com uma das pros- estar expondo negativamente a fa- titutas que estariam disponíveis no culdade e porque, supostamente, os seguranças. A direção da local, mas só encontrou Marina.) A “não tinha provas”. Comentários associação sabia de tudo, estudante soube ainda que a polícia no Facebook questionaram seu re- mas queria abafar o caso havia sido chamada no momento em lato, na linha de que “menina direi- que tudo aconteceu, mas teria sido ta não bebe até ficar desacordada”. “impedida de entrar”. Ela sentiu-se, novamente, alvo do

57 Dezembro 2015 Revista Adusp machismo e corporativismo predo- tem?/Se reclamar/vou estuprar vo- Público do Estado de São Paulo minantes na FMUSP. cê também’”, relatou a estudante à para apurar os casos de violações “Depois disso ainda, na Inter- CPI, referindo-se à competição es- de direitos humanos na USP está med deste ano [2014], as outras fa- portiva entre escolas de medicina. em andamento. Procurada diversas culdades usaram muito o estupro O inquérito civil instaurado em vezes pela Revista Adusp, a promo- para ofender e zoar nossa faculda- setembro de 2014 pela Promoto- tora Beatriz Helena Budin Fonse- de, e alunos da própria faculdade ria de Justiça de Direitos Huma- ca, responsável pelo inquérito, não cantavam ‘Estupro sim/o que é que nos e Inclusão Social do Ministério quis conceder entrevista.

V De u m l a d o , m e d i d a s institucionais insatisfatórias. De o u t r o l a d o , “Nã o Ca l a USP”!

“Depois da CPI nós tivemos um viado por intermédio da assessoria de rido na própria grade curricular. “O momento de latência”, define Fe- imprensa da instituição. núcleo teria que ser mais incisivo”, lipe Scalisa. Algumas das sindicân- Entre as providências tomadas critica o militante LGBT, que se cias abertas nos últimos meses na pela FMUSP está a criação, em diz “agredido pela posição concilia- FMUSP, relativas aos casos de es- dezembro de 2014, do Núcleo de dora” do NEADH, o qual, na sua tupros, estão em processo de con- Estudos e Ações em Direitos Hu- avaliação, “é muito subordinado à clusão. Os resultados daquelas que manos (NEADH), coordenado pela diretoria e tem um caráter muito foram concluídas (e que, a pedido procuradora de justiça aposenta- mais conciliador do que nós, en- dos denunciantes, não serão divulga- da Vânia Balera desde janeiro de quanto vítimas, estamos dispostos a dos) são, no entanto, insatisfatórios, 2015. “O núcleo não é para receber conciliar”. Outros militantes, como de acordo com as vítimas. No único denúncias. Pode até vir a receber Renata Mencacci, também não con- caso em que houve algum tipo de e fazer o encaminhamento neces- fiam no núcleo criado pela diretoria punição, foi meramente simbólica: sário, mas foi instituído mais pa- da faculdade: “O NEADH não está acusado de estuprar três colegas, um ra fomentar a política institucional do nosso lado, não está lá para aco- aluno da faculdade que está prestes na defesa dos direitos humanos”, lher e ajudar a tocar as lutas que a se formar foi suspenso por seis afirma Balera. Ela aponta como precisam ser tocadas na FMUSP”, meses, período após o qual poderá “atuação concreta” do NEADH a diz a feminista. se formar normalmente e exercer a criação de uma comissão perma- Outra medida da FMUSP foi a Medicina. Em suma, o resultado do nente para estudar “o uso de álcool criação, em fevereiro de 2015, de processo sindicante foi somente o e outras substâncias pelos alunos”, uma Ouvidoria própria, para rece- adiamento de sua formatura. após promover fórum que tratou ber denúncias e queixas de alunos. Procurado pela Revista Adusp pa- do tema, em abril. O objetivo do “A Ouvidoria e o NEADH traba- ra comentar a questão e as acusações núcleo, segundo a coordenadora, é lham em conjunto. Separadamen- de omissão diante das denúncias, o “tentar implantar, de forma trans- te, porém com o mesmo propósito professor José Otavio Costa Auler versal à grade curricular”, grupos de averiguar, receber, acolher, en- Junior, diretor da FMUSP, não deu de estudo sobre os temas conside- contrar soluções, sugerir medidas, retorno aos pedidos de entrevista rados “oportunos”. cobrar”, sustenta a ouvidora, soci- nem respondeu, até a conclusão des- Na opinião de Felipe Scalisa, óloga Elisabeth Vargas, que parti- ta matéria, ao e-mail que lhe foi en- contudo, o debate precisa ser inse- cipa das reuniões promovidas pelo

58 Revista Adusp Dezembro 2015 Daniel Garcia núcleo. “A ideia é que todo o apoio com princípios e diretrizes de como seja dado à vítima no que ela preci- as professoras podem acolher as de- sar, seja apoio psicológico ou jurídi- núncias” e “mapeando os serviços co”, explica Elisabeth, que conside- dentro e fora da USP, e as nossas ra importante ter autonomia para experiências pessoais, para criar um trabalhar. “Não presto contas à di- tipo de protocolo”; o de campanhas reção da faculdade. Faço relatos de educativas e comunicação, voltado números e temas, garantindo total para o planejamento e execução de sigilo a todos os denunciantes”. campanhas educativas relaciona- Até julho de 2015 a Ouvidoria das ao tema; o de coordenação de havia recebido 19 denúncias, sendo intercâmbio e apoio às atividades a maioria de assédio moral e ne- locais; e o de Regimento, responsá- nhuma de violência sexual. Para a vel pela identificação de lacunas no ouvidora, faz-se necessário na facul- Regimento da universidade “para dade o debate sobre humanização. propor alterações que visem um “Essa sensibilização não pode ser Professora Ana Flávia D'Oliveira aprimoramento dos mecanismos de feita de cima para baixo, tem que ser apuração e punição das situações feita horizontalmente”, defende a professor Paulo Saldiva, extinta por de violência sexual e de gênero”, socióloga, para quem é preciso abrir ocasião da criação do NEADH. conforme documento elaborado sindicâncias, principalmente em ca- “A gente precisava também de um pela rede, que já conta com mais de sos de violência sexual. “Como ouvi- espaço de atuação autônomo e inde- 220 apoios manifestados. dora, não posso exigir uma punição, pendente para enfrentar a questão de mas posso sugerir à direção da facul- forma propositiva e não necessaria- dade que tome tais providências e mente apenas pelos canais adminis- mobilize pessoas”, conclui. trativos da universidade, que têm seu “As histórias da Medicina Diante da gravidade dos casos papel, mas não são suficientes”, diz a são bem específicas. Além denunciados e da ausência de uma professora. “Nosso grande incômodo política institucional concreta de foi a falta de proteção dos denun- das festas, tinha a questão amparo a vítimas de violência se- ciantes, e é nosso papel, como pro- dos trotes e o fato de os xual e de gênero na USP, um grupo fessoras e mulheres mais velhas que de professoras resolveu encarar o sabem o que estão falando, tomar a estupros lá serem bem desafio. A rede “Não Cala USP” frente da defesa das meninas. Elas criminosos, planejados. Dão foi criada a partir de uma “carta de estavam vocalizando a dificuldade de desabafo” elaborada por docentes enfrentar a estrutura administrativa remédios para as meninas, de diferentes unidades da universi- da universidade, e a dificuldade nas tem estupro coletivo. É bem dade e enviada a colegas “sensíveis a relações de poder internas da insti- esta questão”, segundo a professora tuição”. Assim, define Ana Flávia, a assustador”, diz a professora Ana Flávia D’Oliveira (FMUSP). rede configura uma “tentativa de nos Heloísa Buarque de Almeida “Menos de uma semana depois, nós articularmos para a proteção das me- tivemos surpreendentes 94 pessoas, ninas de uma forma independente, simbolicamente dentro do prédio autossustentada e propositiva”. da Faculdade de Medicina, onde co- Quatro grupos de trabalho fo- Ana Flávia questiona o regimen- meçaram as denúncias públicas”, ram organizados: o de acolhimento to atual da universidade, no qual “a orgulha-se Ana Flávia, que havia às vítimas, “que está pensando o vítima de violência não é parte do integrado a comissão presidida pelo treinamento e um certo manual, processo”, que envolve apenas “o

59 Dezembro 2015 Revista Adusp infrator disciplinar contra a univer- Daniel Garcia pecialidade “muito ligada ao pessoal sidade”. “O regimento da universi- da Atlética”, segundo a estudante, a dade é de 1972, época ainda da Di- ortopedia é eminentemente domi- tadura Militar, com pedacinhos de nada por homens, tendo sido apenas lei de 1990, e trabalha com a ideia uma vaga, de um total de 15, ocu- de infração disciplinar, então não pada por uma mulher. “Se formos há nele crimes de violações dos di- falar de urologia, é bizarro, porque reitos humanos”, diz a professora, são 10 vagas e nenhuma foi ocupa- destacando que “embora aconteça da por mulher, e não é por falta de há muito tempo, a violência sexual é capacidade. É uma discrepância: as de uma visibilidade bastante recente mulheres não podem fazer urologia, dentro das universidades”, sendo um mas os homens fazem ginecologia e “problema de grande dimensão e di- são muito valorizados”. Professora Heloísa Buarque de Almeida fícil abordagem”. Ela destaca que é Nas práticas trotistas, “também preciso combater o senso comum de cista com professor, assédio sexual há uma violência marcadamente que a educação formal é suficiente também entre professor e aluno, e com metáforas de gênero, sexuali- para prevenir esse tipo de violência. várias dessas questões estão apare- dade e raça”, segundo Heloísa. “O Professora de estudos de gênero cendo mais, não só porque agora chamado pascu, por exemplo, é uma na Faculdade de Filosofia, Letras estão achando canais para denun- coisa que feminiliza os rapazes e, se e Ciências Humanas (FFLCH), a ciar, mas também porque houve uma você pensar stricto sensu, é estupro. antropóloga Heloísa Buarque de mudança na forma de classificar al- Perante a lei, é estupro”. Para a pro- Almeida, uma das fundadoras da gumas coisas”, explica. Assim, não fessora, “a palavra violência esconde rede “Não Cala USP”, coordena, são denunciadas apenas as violências muitas coisas” e “se a brincadeira de desde março de 2014, o programa físicas, mas tudo o que é vivido co- uns é a humilhação de outros, não é USP Diversidade. Fundado em 2012 mo uma agressão. “As meninas estão mais brincadeira, é violência”. Ela para pensar a questão da homofo- chamando de violência simbólica, ressalta que, diferentemente do tro- bia, o programa foi o espaço que violência moral, violência psicológi- te, cuja ocorrência varia entre as di- a professora encontrou para deba- ca. E nós também”, defende a pro- versas unidades da USP, a violência ter a violência sexual e de gênero, fessora, enfatizando que “essa no- sexual é “uma problemática geral”. após tomar nota de casos ocorridos va forma classificatória demanda da Diante da inaptidão das comis- em festas, passando a ser procurada universidade uma postura diferente”. sões sindicantes em lidar com as de- também por alunos da FMUSP. “As Assim, enquanto muitos atribuem núncias das estudantes, a criação da histórias da Medicina são bem espe- gravidade apenas a violências físicas rede “Não Cala USP” é sinônimo cíficas. Além das festas, tinha a ques- contra mulheres, Renata Mencac- de esperança para as vítimas. “Evi- tão dos trotes e o fato de os casos de ci, do Coletivo Geni, afirma que na dentemente, no limite, um dos em- estupros lá serem bem criminosos, Medicina as violências simbólicas se bates com que a gente vai ter é com bem planejados. Dão remédios para dão até mesmo no direcionamento a própria estrutura hierárquica da as meninas, tem estupro coletivo. É profissional. “Numa prova de resi- universidade. Mas esperar o Estatuto um negócio bem assustador”, diz. dência [médica], os caminhos ficam mudar para fazer alguma coisa seria O aumento do número de denún- muito claros: tem as especialidades paralisante. Então tem que ir fazen- cias deve-se, a seu ver, a uma nova dos homens e as das mulheres. A do de outro jeito. A ideia da rede é forma de enxergar a violência. “Tem mulher vai ser ginecologista, obste- pensar como é que a gente pode ir uma série de abusos, violência se- tra, pediatra, profissões delicadas, fazendo alguma coisa paralelamente, xual, homofobia, machismo em sala relacionadas ao cuidado e à questão que não seja esperar da Reitoria ou de aula, piadinha homofóbica e ra- da maternidade”, conta Renata. Es- da institucionalidade uma solução”.

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At l é t i c a e Sh o w Medicina r e j e i t a m a c u s a ç õ e s

Em depoimento à CPI da Alesp, estudantes da Medicina que dirigem as organizações negaram a contratação de prostitutas nos seus eventos e disseram não haver recebido denúncias de crimes sexuais. Sílvio Tacla, do Show Medicina, negou a ocorrência de trotes violentos, machismo e homofobia

Daniel Garcia

O presidente da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz (AAAOC), Diego Vinicius Santinelli Pestana, comprome- teu-se, em contato telefônico com a reportagem, a responder às perguntas que lhe seriam en- caminhadas por e-mail. Contu- do, não o fez até o fechamento desta edição. Assim, a Revista Adusp reproduz aqui excertos de seu depoimento à CPI realizada na Alesp. Pestana, que assumiu a presidência da Atlética em ou- tubro de 2014, depôs em 28 de janeiro de 2015. Na mesma audi- ência, depôs Raphael Kaeriyama e Silva, que fora tesoureiro da Adriano Diogo, presidente da CPI, interpela aluno Raphael Kaeriyama, da Atlética associação em 2011. Sobre as festas “Carecas no não voltaria a promovê-las antes que nenhuma menina está em Bosque” e “Fantasias no Bos- de resolver a questão da seguran- risco, nenhum rapaz está em ris- que”, promovidas anualmente e ça. “Eu não vou fazer uma festa co, e que não tenha problema nas quais ocorreu a maioria dos sem ter uma garantia de que tem nenhum. Eu não sei quanto tem- casos de assédio e estupros de- profissionais de segurança, por- po isso vai demorar para a gente nunciados por alunas da FMUSP, que até então a gente tinha, mas ter esse know-how de saber fazer Pestana assumiu que elas respon- pelas denúncias parece que eles uma festa bem feita, bem organi- dem por grande parte da recei- não estavam funcionando direito. zada, com segurança” (p. 700-701 ta da Atlética, mas declarou que Então, eu quero ter certeza de do relatório da CPI).

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Pestana afirmou que, devido existam quartos improvisados nos de machismo, homofobia e outras ao “acidente” com o calouro Edi- fundos das barracas. violações de direitos humanos son Hsueh (1999), a organização “Posso afirmar a todos os pre- no âmbito da AAAOC”, Pesta- perdeu patrocínios e, por isso, a sentes que a Atlética não contra- na afirmou: “Eu nunca presenciei verba oriunda das festas é cada tou, nunca contratou e não con- nada desse tipo, mas eu também vez mais necessária. “A minha pre- trata nenhuma prostituta. [...] Eu não posso fechar os olhos para as ocupação agora é procurar novas posso afirmar categoricamente denúncias” (p. 720). Teria tomado fontes de renda para não voltar que, em 2011, quando fui tesou- conhecimento das denúncias so- a fazer a festa... Óbvio que tem a reiro, não foi repassado nenhum mente por meio “dos boletins da parte que nós gostamos das festas, dinheiro para a contratação de CPI e da mídia”, pois segundo ele nós somos jovens, gostamos, OK, prostitutas. De verdade. Isso não ninguém o procurou antes para mas se a gente pudesse optar, elas aconteceu. A gente não apoia, fazer denúncias, apesar de sempre não seriam feitas do jeito que são não é apoiado esse tipo de coisa. terem estado “abertos para diálo- feitas” (p. 702), dizendo preferir Não é que a Atlética foi lá e pa- go com os coletivos” (p. 721). eventos mais modestos. gou para uma prostituta estar ali. O deputado Adriano Diogo, Isso não acontece”, disse Silva presidente da CPI, censurou Pes- (p. 704-705). tana por referir-se à morte de Sobre os quartos improvisa- Sílvio Tacla, que dirigiu Edison como “acidente” e por dos, alegou que são usados para o Show em 2014, alegou acrescentar que a morte do estu- se armazenar bebidas e outros dante “atrapalhou os lucros” da itens vendidos nas barracas, o jamais ter presenciado Atlética. “Soa mal”, disse Diogo. que explica a presença de segu- coação sobre calouros: O presidente da CPI também ranças na porta. “Se [...] as pes- dirigiu ao presidente e ao ex- soas usam como quartos, eu real- “Nunca fui a favor de tesoureiro da Atlética, Raphael mente desconheço” (p. 705), dis- ninguém consumir bebida Kaeriyama e Silva, perguntas so- se o ex-tesoureiro, que afirmou bre os “relatos sistemáticos” da não saber “de onde veio o termo alcoólica em excesso ... contratação de garotas de progra- ‘cafofo’” (p.706). nunca presenciei ninguém ma para, nos referidos eventos, O presidente da Atlética, por ficarem “nas barracas das mo- sua vez, limitou-se a dizer que as ser obrigado a ficar nu em dalidades para que os frequenta- denúncias foram um alerta para nenhum espaço do Show” dores possam tomar bebidas em que o sistema de segurança das seus seios” e sobre a verba des- festas seja revisto. “O que, talvez, tinada a isto, além da existência essas denúncias demonstrem para dos chamados “cafofos, quartos a gente é que nossa segurança, Ao telefonar para o atual di- improvisados que são montados nesse aspecto, se aconteceram es- retor do Show Medicina, Erik- atrás das barracas de bebidas” sas denúncias, falhou. É um alerta son Hoff, a Revista Adusp propôs para que rapazes tenham rela- para a gente mudar” (p. 706). encaminhar-lhe perguntas por e- ções sexuais com tais prostitutas Questionado pela vice-pre- mail e obteve como resposta que ou com garotas que os estiverem sidente da CPI, deputada Sarah ele as veria e as responderia, “se acompanhando. Silva negou ca- Munhoz (PCdoB), sobre já ter for do meu interesse”. A repor- tegoricamente tanto que a Atlé- presenciado ou tomado conheci- tagem encaminhou as questões, tica contrate prostitutas e que mento de “atos de assédio sexual, conforme o combinado, mas não

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obteve resposta de Hoff até o fe- O presidente da CPI também o roteiro do Show”, mas aquele chamento desta edição. perguntou a Tacla sua opinião que “vê quais quadros vão sair, Na CPI, quem respondeu pe- sobre “alunos serem citados no- organiza a ordem” (p. 1382). lo Show Medicina foi o diretor minalmente na peça do Show”, Com relação aos calouros se- da organização em 2014, Sílvio como no caso de Felipe Scalisa rem forçados a beber nos ensaios, Tacla Alves Barbosa, que de- (satirizado em dois esquetes da Tacla alegou nunca ter presencia- pôs em 10 de fevereiro de 2015, edição de 2014 do Show Medi- do tal situação e disse desconhe- quando já havia deixado esse cina), e sobre menções depre- cer que ocorra tal coação. “Eu, cargo. Ele havia exercido outros ciativas ao Coletivo Geni. O ex- enquanto diretor, fiz questão de cargos no Show em anos ante- diretor respondeu que nunca foi fiscalizar que nenhum excesso riores: de tesoureiro (2012) e de “a favor de citações individuais de fosse cometido. Nunca fui a favor secretário (2013). alunos” e que “não houve menção de ninguém consumir bebida al- A Revista Adusp telefonou pa- direta a nenhum deles” (p. 1380); coólica em excesso”, garantiu (p. ra Tacla para obter uma entre- que não viu na peça, “de maneira 1415). Sobre os novatos serem vista sobre os fatos ocorridos ou nenhuma”, “relação com o Felipe obrigados a ficar nus, respondeu: denunciados em 2014, mas o es- Scalisa” e “relação com o Coletivo “Eu nunca presenciei ninguém tudante recusou-se: “Quem pode Geni”, e que não sabia se a músi- ser obrigado, coagido a ficar nu responder melhor pelo Show é ca “Geni”, de , “ia em nenhum ensaio, nenhum es- o diretor atual”. A reportagem fazer parte ou não” (p. 1390); que paço do Show” (p. 1481). explicou que estava aguardando “o tema não foi o [Coletivo] Geni, “Em relação a casos de estu- retorno de Hoff, mas que várias o tema foi a Ópera do Malandro” pro especificamente relacionados questões se referiam a denún- (p. 1384). Alegou que o Show não ao Show eu não recebi nenhum cias feitas ao período em que Ta- é machista nem homofóbico. relato até agora. Relacionados à cla dirigia a organização, sendo, Perguntado especificamente faculdade sim, a gente tem vá- portanto, apropriado que se ma- sobre o esquete em que o estu- rios relatos. No Centro Acadê- nifestasse. Ainda assim, ele não dante Felipe Scalisa foi mimeti- mico [Oswaldo Cruz (CAOC)], quis conceder entrevista. zado e no qual ele mesmo atuou, o que surgiu e foi bem pautado À CPI, quando questionado Tacla sustentou tratar-se de uma foi essa questão de novembro de sobre a prestação de contas da brincadeira sobre o internato da 2013, da cervejada do sexto ano, organização, e indagado sobre a Medicina (“quem iria ser exclu- o caso da menina que veio depor contratação de prostitutas, Tacla ído dos grupos mais concorridos aqui, todo mundo já sabe do que respondeu: “O Show não contrata do internato”): “Como eu era di- se trata”, disse Tacla, referindo- prostitutas” (p. 1376). “O Show retor, não tive muito tempo de se à denúncia feita por Phamela não organiza evento com prostitu- participar da produção ativa des- Silva Feitosa em novembro de ta, até existe mesmo esse dia [em] se quadro, mas como eu era da 2013, ano em que ele era vice- que os calouros vão de terno, uma turma do quarto ano, tinha que presidente do CAOC. “Certa- brincadeira que é feita, mas o en- pegar algum papel. Acabei repre- mente a gente tem relatos, a saio se encerra e, posteriormente, sentando o Pedro Bial, a gente gente conversa muito entre nós e cada um vai para onde quiser. Eu, fez um quadrinho do ‘Big Bro- ouve pessoas falando ‘tal menina pessoalmente, não tenho o hábito ther’” (p.1384). Indagado sobre me disse que sofreu’, mas eu não de frequentar eventos com prosti- sua posição no processo criativo sei, não cabe a mim especificar tutas”, disse ainda, em outro mo- do Show, afirmou que “o diretor tudo o que eu já ouvi, nomes”, mento (p. 1447). geral não é quem elabora todo completou Tacla (p. 1462).

63 Dezembro 2015 Políticas afirmativas Revista Adusp

A USP q u e s e n e g a a s e r p r e t a , p a r d a e i n d í g e n a João Peres, Moriti Neto, Tadeu Breda e Thiago Domenici Jornalistas

O ano de 2015 marca a chegada a um nó no debate sobre desigualdade étnica na USP. A Ocupação Preta, coletivo estudantil, conseguiu aglutinar insatisfações — e expor desconfortos alheios — ao entrar em salas de aula com o objetivo de discutir racismo e políticas afirmativas. Sua abordagem forte tem reaberto velhas feridas de uma universidade forjada pela oligarquia e inicialmente destinada apenas aos bem nascidos. O Conselho Universitário autorizou a adoção do ENEM como opção à Fuvest para o ingresso, a critério das unidades. Medicina, Direito e Escola Politécnica negaram-se a aderir

64 Revista Adusp Dezembro 2015 “Quantos pretos você viu ho- mais interessados em aprender mi- mínimos, a principal universidade je? Resistiremos eternamente”. As croeconomia. brasileira está longe do equilíbrio palavras martelam o muro. Ora na Nos anos 1990, a criação da Co- étnico-racial, o que para Oliveira tentativa de evitar que avance, ora missão Permanente de Políticas expõe as muitas contradições da na esperança de colocá-lo abaixo. Públicas para a População Negra instituição, nascida em 1934 de um Não estão sozinhas. “Povo forte, da USP funcionou como incentivo projeto de parte da elite paulista povo preto”, “Odeio os racistas da para que o NCN cobrasse um de- ligada ao Partido Democrático e USP”, “O racismo está aqui”: cada bate profundo nesse sentido, o que ao jornal O Estado de S. Paulo — espaço da parede metálica que bus- acabou não ocorrendo. Na mes- intelectuais orgânicos da burguesia ca isolar, na USP, o futuro prédio ma década, no âmbito mais geral agroexportadora e políticos com do Instituto de Relações Interna- da universidade, a USP tornou-se ambição de se tornarem (ou se cionais (IRI) foi estampado com di- “prosaicamente realista”, explica manterem como) a elite dirigente zeres que evocam uma trajetória de a filósofa e professora Marilena do País. Ao longo dos seus 80 anos, resistência. Do lado de fora, o Nú- Chauí em Escritos sobre a Universi- completados em 2014, esse projeto cleo de Consciência Negra (NCN), dade (Unesp, 2001). Ela opina que foi se transformando num sistema cujo espaço há anos é assediado pe- do lado das associações de docen- cada vez mais de massa, só que uma la Reitoria, parece o agricultor fa- tes, de estudantes e de funcioná- massa predominantemente branca. miliar que, cercado por latifúndios, rios, o discurso ficou “centrado na Oliveira acredita que a USP refle- defende seu território. O vizinho, ideia de interesses das categorias”, te o país ao reproduzir um tipo de que cresce a cada dia, exerce uma enquanto do lado das direções uni- racismo que chama pressão imensa sobre ele. versitárias “prevaleceu o discurso de tolerância opressiva. “Esse mito A sede de concreto do então rei- da eficiência, produtividade e com- da democracia racial está marca- tor J. G. Rodas fez com que todos petitividade”. A absorção do ideá- do por essa situação. A tolerância os barracões localizados ao lado rio neoliberal pela oligarquia que racial acontece quando os lugares da Faculdade de Economia, Admi- controla a USP deu-se, entre outros de hierarquia racial são mantidos. nistração e Contabilidade (FEA) fatores, também pela instalação de Quando começam a ser rompidos fossem abaixo na gestão anterior. fundações privadas dentro da uni- ou se começa a reivindicar seu rom- Menos um. O galpão ocupado anos versidade, levando à naturalização pimento, o preconceito vem à luz”. a fio pelo NCN e mantido a salvo da ideia de uma gestão eficiente, No bojo de acirrados conflitos, pelos militantes, a duras penas, é nos moldes de uma empresa. relacionados ao papel do negro na como o debate sobre a democrati- “Hoje a USP fica entre essa sociedade nacional, os movimen- zação do acesso à USP: isolado, po- pressão por mão-de-obra e essa tra- tos passaram a questionar o pacto rém barulhento. Ainda não se sabe dição da erudição. Uma coisa mal social, e as políticas de ações afir- quem será vencedor e quem será resolvida. É uma universidade ana- mativas ganharam fôlego. Espécie vencido, mas é certo que a convi- crônica porque não consegue fazer de cereja desse bolo, as cotas ga- vência fica a cada dia mais tensa. bem nem uma coisa, nem outra”, nharam tração a partir de 1996, so- É engano achar que o debate so- avalia Dennis de Oliveira, professor bretudo no plano federal, e depois bre cotas na universidade começou do curso de Jornalismo da Escola em 2001, quando o Brasil aderiu ao hoje, como pode sugerir o vídeo de Comunicações e Artes (ECA) Plano de Ação de Durban (África que “viralizou” nas redes sociais em e integrante do Núcleo de Estudos do Sul), ocasião em que o “uspia- março de 2015 e que colocava de Interdisciplinares sobre o Negro no” e então presidente Fernando lados opostos um grupo de ativistas Brasileiro (Neinb-USP). Henrique Cardoso admitiu que o negros da Ocupação Preta — que Atualmente, mesmo abrigando país ainda é racista e que o Estado interrompeu uma aula da FEA para 60% de alunos cuja renda familiar precisaria adotar políticas públicas discutir o tema — e alunos brancos mensal é inferior a dez salários para alterar essa realidade.

65 Dezembro 2015 Revista Adusp Fotos: Daniel Garcia

O Ministério da Educação estima que estudantes pretos, pardos e indígenas ocuparam 20% de 48.676 vagas ofertadas pelas universidades federais em 2014. “Enquanto isso a USP tem 7% de alunos negros”, diz o professor

Ricardo A. Ferreira Juliana Levra de Jesus Professor Ricardo Alexino

clusp), sempre com resultados pí- vre “Alexandre Vannucchi Leme”), fios, a universidade finalmente deci- argumenta que a USP vai na con- Somente em 2012 passou a vigo- diu, em 2015, aderir ao Exame Na- tramão do País ao não implementar rar a Lei 12.711, conhecida como cional do Ensino Médio (ENEM), as cotas raciais. “Para quem a Uni- Lei de Cotas, que determina às uni- cujos resultados passam a contar na versidade é feita? As cotas não são versidades federais distribuir 50% forma de créditos aos estudantes implementadas. Nossa avaliação é de suas vagas entre quatro subco- interessados em ingressar na USP de que a USP é um grande exemplo tas: candidatos egressos de escolas como alternativa ao vestibular da de como não ser democrática”. públicas; de escolas públicas com Fuvest, por meio do Sistema de Se- Julgada constitucional pelo Su- baixa renda; candidatos pretos, par- leção Unificado (SISU). Porém, ca- premo Tribunal Federal (STF) em dos e indígenas (PPIs) de escolas be a cada unidade de ensino decidir 2012, a Lei de Cotas tem sido exito- públicas e PPIs de escolas públicas se vai ou não adotar essa modalida- sa na sua implementação. O Minis- e baixa renda. Cada instituição fe- de, bem como a proporção de in- tério da Educação estima que 20% deral tem autonomia para decidir gressantes via Fuvest e via ENEM. das 48.676 vagas ofertadas pelas se vai ou não adotar uma política O professor Oliveira avalia que universidades federais foram ocu- de ação afirmativa. As cotas podem o movimento por cotas cresceu na padas, em 2014, por estudantes de- ser raciais (para negros, pardos e USP nos últimos anos. Primeiro, clarados pretos, pardos e indígenas. índios), sociais (para oriundos de porque a universidade foi obriga- “Enquanto isso, a USP tem só 7% escolas públicas e pessoas com de- da a dar algumas respostas, “ainda de alunos negros”, critica o jornalis- ficiência) ou uma combinação dos que insuficientes” como no caso ta e professor Ricardo Alexino Fer- dois modelos, ou seja, dentro da co- da adoção do ENEM, já que vários reira, coordenador do Neinb-USP, ta de vagas para estudantes vindos dos cursos mais concorridos deci- citando dados de 2012. “Essa situ- de escolas públicas são reservadas diram não aderir. Segundo, porque ação gerou o documentário ‘USP vagas para negros, pardos e índios. “o movimento estudantil colocava 7%’, que constata o racismo estru- A USP resiste, impávida (vide essa questão de uma maneira muito tural da universidade”, lembra o Revista Adusp edições 43, 2008; e pontual, e agora é o principal item educador. Os números mais recen- 47, 2010). Depois de adotar por da pauta de reivindicações”. Juliana tes fornecidos pela instituição indi- mais de uma década o claudicante Giaj Levra de Jesus, do Diretório cam um aumento de 1,4% no dado Programa de Inclusão Social (In- Central dos Estudantes (DCE-Li- que titulou o filme: pretos, pardos

66 Revista Adusp Dezembro 2015 Daniel Garcia trajetórias. E o cruel é o cara não tem só para demonstrar que é de- poder sonhar que ele pode”. mocrática. Isso é bobagem”, avalia Entre os que se posicionam con- o professor Borges Pereira. trariamente às cotas raciais, falar em política de reparação histórica parece não fazer sentido. “Não sou contra a cota, mas não acho que “Claro que política de ela deva beneficiar etnicamente. ação afirmativa é algo Ela deve beneficiar populações sem condições financeiras, geralmente provisório, temporário. Mas vindas de escola pública”, resume até quando? Até quando João Baptista Borges Pereira, pro- fessor emérito do Departamento existirem esses mecanismos de Antropologia da Faculdade de sistêmicos que impedem que Carine Nascimento Filosofia, Letras e Ciências Huma- nas (FFLCH). A professora Eunice determinados grupos possam e indígenas agora são 8,4% do total Durham (FFLCH) avalia que a de- concorrer em condição de de estudantes da universidade. sigualdade econômica, e não a cor A estudante negra Carine Nasci- da pele, é o fator mais importante igualdade com outros” mento, 21 anos, lembra bem do co- do desnível educacional brasilei- mentário que a patroa de sua mãe ro. “A cota é um jeito de resolver fez à época em que prestou Fuvest, o problema com pouco trabalho. em 2011: “A Carine não vai pas- Você não precisa superar as defici- Tal alegação de princípio, de que sar, porque as minhas filhas [bran- ências do ensino médio. É antide- as cotas são injustas porque violam cas] não passaram”. Atualmente mocrático, antieducativo, porque a meritocracia e a isonomia para cursando o último ano do curso de você coloca pessoas com deficiência vagas públicas, é “equivocada”, ava- Educomunicação na ECA, diz que séria de formação na universidade”. lia Ronaldo Barros, secretário de até hoje tem a sensação de que a Hoje, os negros representam Políticas de Ações Afirmativas da universidade não foi feita para ela 70% dos 10% mais pobres do país, Secretaria de Políticas de Promo- — “parece que eu sou uma coisa ao passo que os brancos somam ção da Igualdade Racial (Seppir). meio marginal” — e questiona os 85% dos 10% mais ricos. Por trás Para ele, o ponto é perceber como reais motivos de a USP recusar-se a do debate, uma outra questão con- injustiças históricas foram cometi- adotar as cotas sociais e raciais. Ela troversa, o vestibular: método que das por meio dessa ideia, ou seja, avalia que entrar na universidade valoriza o aluno capaz de estudar entender que pessoas aprovadas sem o uso dessa política afirmativa ou prova discricionária, que elimina em exames vestibulares (ou concur- foi possível por uma conjunção de possibilidades de quem não teve sos em geral) não chegam ao pódio fatores positivos, como ter viven- acesso a uma formação mais com- unicamente por causa de seu em- ciado outras políticas e programas pleta? “Na minha opinião, cotas são penho. “Claro que política de ação sociais voltados para estudantes de estratégias emergenciais. Se o aluno afirmativa é algo provisório, é algo baixa renda: “Hoje o sujeito sonha está em uma escola boa, não impor- temporário. Mas até quando? Até um pouco mais com o ensino supe- ta a cor. Vai prestar o vestibular. Se quando existirem esses mecanismos rior, mas sonhar com a USP é mais é bom, é bom. A USP tem de sele- sistêmicos que impedem que deter- difícil, porque a universidade não cionar muito bem intelectualmente minados grupos possam concorrer participou do processo de constru- seus alunos. Porque não pode jogar em condição de igualdade com ou- ção de políticas que podem mudar fora o capital intelectual que ela tros. Então, enquanto houver um

67 Dezembro 2015 Revista Adusp Daniel Garcia sistema que hierarquize, secundari- se posicionou como “uma ilha de ex- ze, impeça o acesso e crie barreiras celência no país, esforçando-se muito e mecanismos de acessibilidade, vão pouco para que essas benesses de existir cotas”, afirma Barros. formação fossem acessíveis aos dife- É importante que a USP passe rentes segmentos sociais”. a refletir e adotar medidas mais Quando questionada sobre a eficazes, provoca o secretário de adoção de cotas raciais, a univer- Ações Afirmativas da Seppir. “Ima- sidade se defende, lembrando que gine o que um indígena não provo- desde 2006 possui o Inclusp como ca de mudança na sala de aula: na política afirmativa. Voltado para forma de vestir, no saber que traz, alunos de escolas públicas, o pro- na necessidade que o professor tem grama consiste na aplicação de di- de traduzir, retransmitir e potencia- ferentes bônus sobre a nota do ves- lizar esse conhecimento. Então, a tibular: de 12% para o aluno que presença desses grupos na universi- cursou o ensino médio em escola Professor João Baptista Pereira dade muda processo, muda cultura, pública; de 15% para quem cursou muda estado civilizatório. E os da- o ensino fundamental e o ensino São Paulo (Univesp), com duração dos têm mostrado que muda para médio na rede pública; de 20% pa- de dois anos. “É muito cruel”, avalia melhor, não precisa ter medo, não”. ra os alunos do Programa de Ava- Carine. “É como se dissessem: ‘Ah, O medo a que Barros se refere liação Seriada (Pasusp) que cursa- tem de fazer isso porque ele não é diz respeito também a uma segunda ram o ensino fundamental na rede tão bom assim’”, critica. alegação meritocrática muito co- pública e ainda estejam no segundo mum (que aparece na formulação ou terceiro ano do ensino médio da professora Eunice Durham), a em escola pública. Há ainda um bô- de que os alunos cotistas, por te- nus extra de 5% concedido àqueles “A USP aderiu ao ENEM rem menor base de conhecimento, que se declararem pretos, pardos porque, ao mesmo tempo que rebaixariam a qualidade da insti- ou indígenas. Porém, ao longo de tuição. “Estudo promovido pela uma década, o Inclusp não conse- não quer implementar cotas UERJ [Universidade Estadual do guiu ampliar de modo expressivo a raciais, sabe que não dá Rio de Janeiro] demonstra que o presença de negros na USP (e indí- desempenho dos cotistas e não-co- genas menos ainda). mais não querer fazer nada. tistas é muito semelhante. Segundo Lançado em 2013, outro progra- É estratégia de amenizar um a pesquisa, as notas de cotistas che- ma gerou inconformidade do movi- garam a 8,077 contra 8,044 de não mento pró-cotas. Trata-se do Progra- pouco essas reivindicações. cotistas em cursos como o de Admi- ma de Inclusão por Mérito (Pimesp), Não pode dar um braço nistração, só para citar um exemplo. proposto às universidades públicas Outras universidades que adotaram estaduais pelo governador Geraldo inteiro, então dá um dedo” o sistema de cotas comprovam de- Alckmin. O Pimesp prevê a adoção sempenho semelhante”, explica o de cotas gradativas para alunos da professor Alexino Ferreira. rede pública, até atingir 50%, sen- “Mesmo pública, a USP tem do- do 35% para autodeclarados pretos, Há dois anos, em reação ao Pi- nos”, diz o coordenador do Neinb. pardos e indígenas. Estes estudan- mesp, a Frente Pró-Cotas Raciais Na sua avaliação, a universidade mais tes, porém, teriam de submeter-se a encaminhou um anteprojeto de lei famosa do país padece de um “com- um curso à distância oferecido pela à Assembleia Legislativa (Alesp) no plexo eurocêntrico”, por isso, sempre Universidade Virtual do Estado de qual propõe uma reserva total de

68 Revista Adusp Dezembro 2015 Daniel Garcia 13,5% das vagas que ofertará em de, narrativas como a dela, “negra de 2016: 1.489, de um total de 11.057. escola pública que entrou na USP”, E dos 143 cursos de graduação da devem servir para evidenciar o quan- USP, somente 13 farão reserva de to as cotas são necessárias. vagas para candidatos autodeclara- A estudante conta que depois de dos pretos, pardos ou indígenas. um ano de ativismo político dentro Os cursos de Medicina, Direito e do campus, resolveu militar no âm- Engenharia, a tríade da graduação bito da academia. “Comecei a es- tradicional da USP, rejeitaram ade- tudar e ler várias obras, para fazer rir ao SISU do Ministério da Edu- pesquisa de literatura, que é minha cação como método alternativo de área, sobre escritores negros, então ingresso de estudantes — e, por ex- estou comparando Lima Barreto tensão, descartaram toda e qualquer com Carolina Maria de Jesus. Hoje política de cotas. São justamente os em dia eu digo que minha militân- Fernanda Silva e Souza espaços em que ações afirmativas cia é minha pesquisa e que minha fariam mais diferença. José Rober- pesquisa é minha militância”. Nesse 55% das vagas, nas proporções de to Castilho Piqueira, diretor da Es- sentido, ela reforça o argumento 25% para negros e indígenas, 25% cola Politécnica, vê como positiva do secretário Barros, da Seppir, e para estudantes da rede pública e a autonomia para que as unidades pontua que a entrada do estudante 5% para pessoas com deficiência. decidam a respeito. “As diversas uni- negro na universidade não serve so- Também tramita na Alesp um pro- dades procuram ingressantes com mente para a diplomação. “Possibi- jeto de lei apresentado em 2012 pe- perfis diversos e podem adaptar o lita que pesquisem, como eu, assun- lo deputado estadual Luiz Cláudio ingresso aos seus objetivos”. tos que nunca foram pesquisados”. Marcolino (PT), o qual cria um sis- Segundo a Fuvest, nas carreiras O reitor M. A. Zago, ao come- tema de cotas, com vigência por dez com mais de dez candidatos por vaga morar a decisão do Conselho Uni- anos, para um total de 35% das va- no vestibular, a faixa de matrícula versitário (de junho de 2015) que gas na USP, Unesp, Unicamp e Fa- de autodeclarados pretos, pardos e optou pela adesão ao ENEM mas tecs. Essa fatia seria dividida entre indígenas é de 13,2%, enquanto o negou-se a discutir a implementa- afrodescendentes e indígenas (15%), total de alunos de escolas públicas ção de cotas raciais, cometeu um alunos da rede pública (outros 15%) é de 25%. Nas faculdades com nível ato falho ao declarar que a USP e pessoas com deficiência (5%). de concorrência intermediário, as fa- ficara “ilhada” por anos, mas que Fernanda Silva e Souza, 21, que tias sobem para 18,1% e 33,1%, res- agora começava “a quebrar essa cursa o penúltimo ano de Letras, pectivamente, e ascendem a 24,5% e parede”. Por certo, não se trata da avalia que todos esses programas 45,8% nos cursos menos procurados. mesma parede metálica que isola criados pela USP são paliativos. “A Apesar do crescimento geral nos as futuras instalações do IRI (no- USP aderiu ao ENEM porque, ao últimos anos, os percentuais ainda es- va e promissora unidade de ensino mesmo tempo que não quer imple- tão bem abaixo do considerado ideal da universidade), separando-as do mentar cotas raciais, sabe que não pelos movimentos que se batem por teimoso Núcleo de Consciência Ne- dá mais não querer fazer nada. É cotas. Pretos e pardos somam 34,6% gra. “Quantos pretos você viu ho- uma estratégia da universidade de do total da população paulista, se- je?” As palavras seguem a martelar amenizar um pouco essas reivindi- gundo o último Censo Demográfico o muro. Ora na tentativa de barrar cações. Já que ela não pode dar um do IBGE, de 2010. Para Fernanda, sua expansão, ora na expectativa braço inteiro, então dá um dedo”. que mora no extremo leste da cidade de botá-lo abaixo. Nesse caminho, De fato, a USP reservou ao SISU e demora duas horas para ir e outras a velha estrutura resiste, não sem do Ministério da Educação apenas duas horas para voltar da universida- rangidos e fraturas.

69 Dezembro 2015 Opinião Revista Adusp Co m o a USP t e m t r a t a d o a q u e s t ã o d a s a ç õ e s afirmativas Adriana Alves Professora do Instituto de Geociências da USP

“Por que os colegas das ciências exatas e biológicas creem ser a discussão de cotas pautada pelo fígado e coração? Por que não são legitimados como ciência/racionalidade os inúmeros trabalhos que tratam da questão? Por que, num ambiente científico de mentes ditas analíticas, as discussões e opiniões estão no plano dos achismos e conclusões baseadas apenas nas vivências pessoais dos tomadores de decisões da universidade?” Este artigo à moda de ensaio procura oferecer respostas a tais indagações

70 Revista Adusp Dezembro 2015 Quando o telefone tocou na- E mais importante e paradoxal: ra revela os eventos históricos que quela quinta-feira, pouco antes de “Por que, num ambiente científico marcaram a transição do regime minha saída para quinze exausti- de mentes ditas analíticas, as dis- escravocrata para o regime de tra- vos dias de trabalho de campo, não cussões e opiniões estão no plano balho livre e oferece ao leitor um esperava que fosse por parte da dos achismos e conclusões basea- panorama completo que vai desde Adusp. Tampouco esperava que o das apenas nas vivências pessoais o início dos movimentos abolicio- convite para escrever sobre como a dos tomadores de decisões da uni- nistas até a constituição da chama- universidade tem tratado a questão versidade?” da “nação brasileira”, que passa das cotas sócio-raciais fosse feito Divido o presente ensaio trazen- inevitavelmente pelas campanhas a mim, professora do Instituto de do informações que creio são des- “imigrantistas”. Geociências, área, em tese, das ci- conhecidas por boa parte de meus O século XIX foi marcado pe- ências exatas. colegas, uma perspectiva históri- las pressões internacionais sobre Não faltam elucubrações e con- ca baseada em um fim de semana nosso país para que fosse dado fim tribuições científicas a respeito do de pesquisas e leituras a respeito. ao regime escravocrata, e pressões tema vindas de autores das ciências Quem sabe dessa maneira, ao le- internas. As razões humanitárias humanas, daí a estranheza do convi- rem essas palavras, meus colegas levantadas pelos primeiros aboli- te. Entretanto, a resistência encon- empreguem parte de seu tempo in- cionistas pouco efeito surtiram so- trada no âmbito de meu instituto de formando-se sobre a questão, para bre os senhores de escravos, posto origem e o papel árduo que venho fundamentar suas discussões para que nada se sabia sobre as impli- tentando desenvolver junto a alunos além das emoções e achismos. cações econômicas da libertação e professores (iniciado ainda nas dis- dos escravos. cussões sobre o Pimesp) trouxeram Somente quando a inevitabilida- à memória algumas das passagens de da abolição da escravidão ficou e embates travados ao longo desses “Ao final da escravidão, a clara, surgiram as primeiras teorias meus curtos cinco anos de docência. proporção de negros para sobre a impulsão econômica do tra- A grande vantagem de ser das di- balho livre e “prazeroso”, que já co- tas ciências exatas é ver como por brancos era de 3:1 e havia lhia frutos na Europa e nos Estados aqui o tema é tratado como se fosse grande temor quanto ao que Unidos durante o florescimento da uma discussão emocional e, portanto, revolução industrial. no ver dos cientistas exatos, desprovi- poderia acontecer quando Já ao final do regime escravocra- da do embasamento científico/racio- da abolição. Uma política ta, a proporção de negros (libertos nal tão apreciado pelos das Exatas. ou não) para brancos no Brasil era Pois bem, uma rápida pesquisa de imigração europeia de 3:1 e havia grande temor quanto sobre o tema na mais poderosa fer- reduziria a desvantagem ao que poderia acontecer quando ramenta de busca disponível a todos da abolição. os meus colegas revela um sem fim numérica dos brancos” O imaginário da época foi to- de publicações, dentre livros, artigos mado pelas imagens dos relatos, científicos e ensaios. As primeiras funestos para os proprietários de perguntas que ficam então são: “Por escravos, da Revolução de Santo que os colegas das ciências exatas Aos iniciantes na temática das Domingo (1791-1804), ou Revo- e biológicas creem ser a discussão relações raciais brasileiras reco- lução Haitiana, que subverteu a pautada pelo fígado e coração? Por mendo a leitura do livro Onda ne- ordem colonial e escravista, dei- que não são legitimados como ciên- gra medo branco, de Celia Maria xando um rastro de senhores e cia/racionalidade os inúmeros traba- Marinho de Azevedo. Em suas famílias brancas mortas. Lidera- lhos que tratam da questão?” pouco mais de 200 páginas a auto- da pelo general negro Toussaint

71 Dezembro 2015 Revista Adusp L’Ouverture (1743-1803), a Revo- na e da biologia contribuíram para lução Haitiana derrotou os exér- a ideia do negro como irremedia- citos da França, aboliu a escra- “A ideia que a sociedade velmente atrasado. vidão, declarou a independência A política imigrantista foi o pri- nutria (negro ‘preguiçoso’ e instaurou, em 1804, a primeira meiro sistema nacional de cotas expe- República negra da história. e indisponível ao trabalho) rimentado pela sociedade brasileira. No Brasil, os últimos suspiros floresceu também nos O branqueamento gradual da nação da escravidão foram marcados por era propalado por intermédio de leis tentativas de protelar a abolição trabalhos de FHC. Ficam de incentivo à imigração, isenção ou por meio da cultura do medo, que claras as bases racistas diminuição de impostos e incentivo pregava ser inevitável a vingança a latifundiários dispostos à venda dos libertos, com consequente eli- do sistema trabalhista ou arrendamento, subsidiados pelo minação de seus antigos opresso- brasileiro, e a ciência é parte governo, de pequenos lotes de suas res — daí o nome do livro de Celia terras como incentivo à vinda e per- Azevedo. Entretanto, dada a ine- importante na consolidação manência de imigrantes, de prefe- vitabilidade iminente da abolição, da posição inferior do negro” rência brancos, para o país. uma política pública de imigração, preferencialmente europeia, visava “Não se pense que, propon- diminuir a desvantagem numéri- do a abolição da escravidão, o ca dos brancos, ao mesmo passo As justificativas para os incen- meu voto seja de conservar no em que fortaleceria o progresso da tivos imigrantistas passariam a ser país a raça libertada: nem isto economia e da cultura/moral via calcadas no próprio negro uma vez conviria de sorte alguma à raça trabalho livre. que “o isolamento econômico, so- dominante, nem tampouco à Os projetos emancipacionistas cial e cultural do ‘negro’, com su- raça dominada. Os primeiros podem ser vistos como intermedi- as indiscutíveis consequências fu- teriam de sofrer as reações, e os ários entre os dois (abolicionista nestas, foi um produto ‘natural’ de segundos teriam sempre a su- e imigrantista) e previam a pres- sua incapacidade relativa de sen- portar os resultados de antigos tação de serviços compulsórios tir, pensar e agir socialmente co- prejuízos, que nunca cessariam por parte dos libertos por um pe- mo homem livre”, como escreveu a seu respeito” ríodo que permitisse aos latifun- Florestan Fernandes. “Ao recusá-lo, Cezar Burlamaqui (1803-1866) diários proceder à adequação de a sociedade repelia, pois, o agente seu sistema produtivo, fosse pelo humano que abrigava, em seu ínti- “As duas raças, latina e saxô- “treinamento” dos escravos pa- mo, o ‘escravo’ ou o ‘liberto’”. nia, neste país, hão de produzir ra a aceitação do trabalho livre E essa ideia que a sociedade nu- alguma coisa melhor [...] quero (uma vez que o trabalho era visto tria do negro preguiçoso e indis- ir gradualmente, isto é, trazendo como castigo forçado), fosse pela ponível para o trabalho floresceu o estrangeiro precipitadamente incorporação da mão-de-obra es- também nos trabalhos de Fernando para a província de São Paulo, trangeira. Henrique Cardoso, nosso ilustrís- porque eu, primeiro que tudo, Qualquer que fosse o modelo simo ex-presidente da República. sou paulista. Venha, pois, o es- pensado e preferido à época, o ne- Ficam claras as bases racistas do trangeiro, sr. Presidente, façamos gro misteriosamente some da dis- sistema trabalhista brasileiro, sendo tudo quanto estiver ao nosso cussão após a abolição e o tema que a ciência é parte importante na alcance para chamá-lo, e mais do trabalho passa a contemplar consolidação da posição inferior do tarde teremos a restauração de preferencialmente a mão-de-obra negro, já que as medições cranianas nossos foros” estrangeira. e os estudos fisiológicos da medici- Deputado Aguiar Witaker em 1869

72 Revista Adusp Dezembro 2015 As políticas de incen- Estão apresentadas, tivo de permanência dos sucinta e grosseiramen- imigrantes deveriam, es- te, as bases das relações trategicamente, garantir raciais brasileiras. Se um ambiente pacífico e por um lado somos his- seguro. Portanto os temo- toricamente vistos como res da “onda negra” pre- preguiçosos, perigosos, cisavam ser derrubados a não-afeitos ao trabalho li- fim de passar aos novos vre e irremediavelmente cidadãos a imagem de atrasados, por outro não país tranquilo. A cultura há qualquer intervenção do medo é então parcial- do Estado na condição do mente substituída pela negro, uma vez que, co- ideia de que as relações mo dito no hino lançado escravo-senhor no Brasil apenas dois anos após o diferiam daquelas exis- fim da escravidão, somos tentes nos Estados Uni- todos iguais. dos e no Haiti, por serem Uma análise mais amistosas e integradoras. aprofundada revela que o Nasce a ideia da de- Brasil considerava o ne- mocracia/harmonia racial gro como principal res- brasileira, uma vez que os ponsável pelo atraso no senhores eram bons, os crescimento econômico escravos dóceis e repeti- do país ao mesmo tem- ções de episódios como po que o torna respon- o de Santo Domingo se- sável historicamente por riam improváveis. sua própria sorte, uma vez que as oportunidades seriam (são) as Liberdade! Liberdade! mesmas oferecidas aos brancos… Abre as asas sobre nós, “Análise mais aprofundada Essa é talvez a face mais perversa Das lutas na tempestade revela que o Brasil via o negro do racismo brasileiro. Dá que ouçamos tua voz Em todas as discussões sobre a Nós nem cremos que escravos como principal responsável adoção de políticas públicas para a outrora pelo atraso no crescimento ampliação do número de alunos po- Tenha havido em tão nobre País... bres nos quadros discentes das insti- Hoje o rubro lampejo da aurora econômico do país, tuições públicas de ensino superior, Acha irmãos, não tiranos hostis. ao mesmo tempo que o torna o jargão sempre presente é: “deve- Somos todos iguais! Ao futuro ríamos lutar pelo fortalecimento da Saberemos, unidos, levar responsável historicamente escola pública e não pela facilitação Nosso augusto estandarte que, por sua própria sorte. do acesso ao ensino superior por puro, uma parcela de estudantes despre- Brilha, ovante, da Pátria no altar! É talvez a face mais perversa parada e desprovida de mérito”. do racismo brasileiro” Com variações sutis no discurso, é Parte do Hino da Proclamação da esse o argumento mais utilizado em República (1890) relação à adoção de políticas afir-

73 Dezembro 2015 Revista Adusp

r e s e r v a r e d e s e n v o l v e r “P “Em 1920, nada menos que a s características 60% dos brasileiros eram m a i s convenientes analfabetos. Os restantes d a a s c e n d ê n c i a e u r o p e i a ” 40% haviam sido julgados Decreto-Lei 7.967, de 27 de agosto de 1945 e selecionados por meio O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o artigo 180 da Constituição e considerando que se faz necessário, de rigorosos mecanismos: cessada a guerra mundial, imprimir à política imigratória do Brasil os exames de admissão uma orientação racional e definitiva, que atenda à dupla finalidade de no ginásio só seriam proteger os interêsses do trabalhador nacional e de desenvolver a imi- gração que fôr fator de progresso para o país, formalmente extintos com a DECRETA: lei 5.692/1971” TÍTULO I Da entrada de estrangeiros no Brasil CAPÍTULO I ADMISSÃO Numa análise histórica, Beisiegel Art. 1º Todo estrangeiro poderá, entrar no Brasil desde que satisfaça (1986) conclui que nos primórdios as condições estabelecidas por esta lei. da educação brasileira o sistema era Art. 2º Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade organizado para atender aos interes- de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as ses e expectativas de uma minoria características mais convenientes da sua ascendência européia, assim privilegiada (qualquer semelhança como a defesa do trabalhador nacional. com a atualidade não é mera coin- cidência). Em 1920, 60% dos bra- sileiros eram analfabetos e os 40% mativas nas poucas universidades colonos e da realeza era de respon- restantes haviam sido julgados e mi- que ainda não adotaram o sistema sabilidade da Igreja e, salvo raras nuciosamente selecionados via rigo- federal de cotas socio-raciais. exceções, vedada aos escravos e à rosos mecanismos (os exames de ad- Os primeiros pontos a esclarecer população mais pobre. Os importa- missão no ginásio só seriam formal- são: 1) o movimento cotista jamais dos ideários educacionais que visa- mente extintos com a lei 5.692/71). levantou bandeira alguma contra a vam preparar as crianças para uma Segundo Oliveira & Araújo (2005), melhoria das condições educacio- inserção feliz e eficaz no mercado “quando nos deparamos com evo- nais no país; e 2) os procedimen- de trabalho motivaram a implanta- cações saudosas da qualidade da es- tos não são mutuamente exclusivos, ção de centros de educação voltados cola do passado, há que se levar em sendo possível e recomendado que à capacitação de mão-de-obra. conta que estamos falando de uma as cotas sejam temporárias e aliadas Contam os mais velhos que até a escola que já era diferenciada pela a um plano nacional de valorização década de 1970 os colégios públicos clientela atendida”. do ensino. eram excelentes. Instituições parti- Graças à universalização do ensi- O cenário atual da educação bra- culares de ensino eram destinadas à no e à obrigatoriedade de matrícula sileira deve ser analisado sob uma elite e aos meninos-problema conti- de crianças no ciclo básico, há um au- perspectiva histórica. Num primeiro nuamente rechaçados pelas institui- mento vertiginoso da demanda, sem momento, a educação dos filhos de ções públicas. que haja contrapartida na qualidade

74 Revista Adusp Dezembro 2015 A lógica de mercado permanece presente em nosso sistema de ensi- no e se traduz, mais claramente, na competição instigada pelos exames de acesso ao ensino superior públi- co. Não fosse a competição por si só não recomendada em ambientes educacionais, o fato de ser travada entre indivíduos com oportunida- des de estudo de qualidade muito contrastada torna-a, por conse- guinte, desleal.

“A USP falha ao não apresentar estatísticas "Batuque", ilustração de Rugendas. Acervo digital da Biblioteca Brasiliana detalhadas da composição (e quantidade) da oferta. O reduto leva a uma corrida generalizada de discente nos seus cursos. de poucos passa a ser o da maioria alunos de famílias de classe média e, com a flagrante desvalorização de aos bancos das escolas particulares. Os atuais 32% de egressos professores e do ensino, o sistema Vão-se com esses alunos as vozes da escola pública parecem educacional como um todo se revela pressionadoras de seus pais, que já um nicho econômico atraente. entenderam ser a educação o prin- satisfazer o Inclusp. Mas Se, por um lado, o primeiro in- cipal (se não único) meio de galgar as assimetrias favoráveis dicador de qualidade incorporado degraus na escala social. na cultura escolar brasileira foi con- Mesmo as mentes mais liberais, aos egressos de escolas dicionado pela oferta limitada, e defensoras do ensino público de qua- particulares continuam um dos seus principais efeitos foi lidade, têm seus filhos matriculados a política de expansão da oferta em instituições particulares. A ten- graves e acentuadas” pela ampliação da rede escolar, por dência generalizada da nossa socie- outro lado a ampliação das oportu- dade de dar mais ouvido aos clamo- nidades de escolarização da popu- res oriundos de uma parcela muito Das breves exposições sobre lação gerou obstáculos relativos ao específica da sociedade (as classes os contextos históricos de acesso prosseguimento dos estudos desses média e alta) é o que leva à aparente a bens sociais, principalmente à novos usuários da escola pública, invisibilidade dos sucessivos apelos educação, por parte de negros e visto que não tinham as mesmas ex- por melhoria da qualidade de ensino pobres, são apresentadas as ba- periências culturais dos grupos que por parte de uma classe social despri- ses que justificam as formulações tinham acesso à escola anterior- vilegiada e de representação política das políticas afirmativas de acesso mente, e esta não se reestruturou limitada. Está armado o cenário para ao ensino superior. A experiên- para receber essa nova população. a competição desleal nos vestibula- cia relatada a seguir sugere que A degradação do sistema edu- res. Está colocada, ainda, a postura é possível encaminhar um debate cacional público e a popularização de clientela cada vez mais ostentada equilibrado nas unidades de ensi- das instituições privadas de ensino pelos alunos para os quais dou aula. no da USP.

75 Dezembro 2015 Revista Adusp “No dia 4 de fevereiro nos foi encaminhada a proposta do Governo Estadual de São Paulo para implementação do sistema de cotas nas universidades esta- duais paulistas. Como informa- do no corpo do e-mail encami- nhado pela assistência técnico- acadêmica, a manifestação da Congregação do IGc deverá ser discutida na Congregação do dia 20 de março. Creio que vários dos senho- res e senhoras podem não ter atentado para a importância do documento, mas adianto que em nossas mãos está deposita- do o poder de decisão sobre o perfil do aluno ingressante nes- sa instituição e as consequên- cias (sejam elas boas ou ruins, em função da visão de quem as mada com base nos ‘achismos’ reunião vários colegas e alunos es- aprecia) para nosso instituto, e preconceitos que todos (in- tavam presentes. A discussão uti- para a universidade e para a clusive eu) carregamos e faço lizou como base os documentos sociedade à qual servimos (ou um apelo para que organize- “Avaliação do desempenho e da deveríamos servir). mos debates e discussões com situação acadêmica dos ingressan- Faço um apelo para que dei- especialistas no assunto (QUE tes pela política de cotas instituída xemos a lógica produtivista de NÃO SOMOS!), para somente na Universidade Estadual de Pon- lado e para que discutamos a então nos posicionarmos frente ta Grossa no período 2007-2011”, questão com a retidão e reflexão à questão. “Avaliação Qualitativa dos Dados merecidas, baseando-nos para Atenciosamente, sobre desempenho acadêmico – tanto nos dados disponíveis de Adriana Alves” relatório ano 2011” da Universi- instituições que já passaram pe- dade Federal do Rio de Janeiro e lo mesmo processo e na produ- A mensagem acima foi enviada o “Relatório de desempenho de ção científica abundante sobre por mim, por e-mail, a todos os alunos cotistas” apresentado pela o assunto. Lembrem-se que, professores do IGc-USP em 26 de Universidade Estadual de Londri- apesar de tudo o que nos é co- fevereiro de 2013. Se por um lado na (UEL) referente ao período de brado no que tange à ciência e à o Pimesp falhou em fornecer uma 2005 a 2010. administração, nossa obrigação alternativa viável de ampliação do A discussão foi longa e frutífe- primeira é com o ensino e este é número de alunos de escolas públi- ra, uma vez que o mito da queda certamente um tema deste foro. cas aos quadros da USP, por outro na qualidade de ensino caiu por Ademais, creio que como lado logrou abrir as discussões so- terra frente à análise dos dados cientistas que somos, seria no bre o tema nos institutos e faculda- apresentados e a Congregação do mínimo inadequado e parado- des dessa instituição. Para minha IGc acabou por sugerir que a USP xal que nossa decisão fosse to- surpresa, na data marcada para a adotasse o sistema federal de re-

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Es t í m u l o a o s e s t ud a n t e s “A composição étnica do n e g r o s g a t o c o m e u ? “O ” quadro docente da USP é esmagadoramente branca GESTÃO MARCOVITCH “II- criar condições na Universidade para divulgação, debates, en- e, arrisco dizer, socialmente sino regular e extracurricular, e pesquisas sistemáticas relacionadas à privilegiada. A resistência ampliação da inclusão social no âmbito da USP; III- estimular o ingresso e a permanência dos negros nos quadros à implementação das cotas discentes da USP, dentro dos padrões acadêmicos e de acordo com as sócio-raciais é reforçada condições financeiras da instituição; pela ausência de vozes V- alertar permanentemente docentes, alunos e funcionários técnico-administrativos da USP sobre o papel que a Universidade dissonantes. E no debate deve ter perante a sociedade brasileira, com vistas à ampla inclusão impera o amadorismo” social”. Portaria GR 3.156, de 29/4/1999, artigo 2º

GESTÃO RODAS Num primeiro momento, parece “II- criar condições na Universidade para divulgação, debates, en- irrelevante determinar que os dife- sino regular e extracurricular, e pesquisas sistemáticas relacionadas à rentes cursos sejam constituídos por ampliação da inclusão social no âmbito da USP; alunos de diferentes backgrounds so- III- alertar permanentemente docentes, alunos e funcionários ciais e étnicos, desde que os núme- técnico-administrativos da USP sobre o papel que a Universidade ros absolutos satisfaçam a opinião deve ter perante a sociedade brasileira, com vistas à ampla inclu- pública. Falhamos aí em reconhecer são social”. um dos principais objetivos dos de- Portaria GR 4.846, de 12/11/2010, artigo 2º fensores das políticas afirmativas. Dos bancos dos cursos legitima- dos pela nossa sociedade como os serva de vagas para alunos oriun- Entretanto, a USP falha ao não maiores modificadores de paradig- dos de escolas públicas, SISU (res- apresentar estatísticas detalhadas mas sociais saem, atualmente, estu- peitando-se a constituição étnica sobre a composição dos quadros dis- dantes de vivência/cor homogenei- do Estado). centes nos diferentes cursos que mi- zada e privilegiada pelo dinheiro. A Infelizmente, a decisão da nistra. Dessa forma, os atuais 32% principal e mais lógica consequên- Pró-Reitoria de Graduação foi de egressos da escola pública pa- cia é que a futura elite, nas diferen- pela ampliação do sistema de bô- recem satisfazer as metas de am- tes acepções do termo, responsável nus, que teve reflexo positivo no pliação do Inclusp. Entretanto, uma pela elaboração de novas políticas número de alunos egressos da es- análise mais detida revela que as as- públicas de saúde e desenvolvimen- cola pública, motivado também, e simetrias favorecedoras dos egressos to para as comunidades carentes principalmente, pela inauguração de escolas particulares continuam e negras será formada por nossos do campus leste e de novos cur- graves e acentuadas nos cursos de atuais alunos — que, tolhidos da sos noturnos (como o de Licen- maior procura: Engenharia, Eco- convivência com grupos étnicos e ciatura em Geociências e Meio nomia, Medicina, Ciências Sociais, sociais distintos, pecarão em reco- Ambiente). Jornalismo, Geologia e outros. nhecer as necessidades do outro.

77 Dezembro 2015 Revista Adusp Corpo docente e composição étnica Branco Preto Pardo Amarelo Indígena Categoria Mulher Homem Mulher Homem Mulher Homem Mulher Homem Mulher Homem Titular 262 744 0 2 7 12 13 28 0 0 Associado 510 967 1 3 5 13 28 34 0 0 Doutor 1242 1662 5 8 20 31 53 88 0 2 Assistente 7 50 0 0 0 1 1 4 0 0 Auxiliar de ensino 0 5 0 0 0 1 0 0 0 0 2021 3428 6 13 32 59 95 154 0 2

Fonte: Departamento de Recursos Humanos (DRH) - Universidade de São Paulo - USP. Abril de 2011.

Um exemplo clássico o aluno de escola pública é o da Universidade de como categoria distinta e São Paulo e sua estru- problemática. Assim co- tura de poder vigente. mo à época da abolição, A composição étnica do ninguém se pergunta “o quadro docente da USP que fazer com o aluno é esmagadoramente de escola particular?”. branca e, arrisco dizer, Fica então a mais im- socialmente privilegia- portante das questões: da. A resistência à im- O que fazer para educar plementação das cotas a todos, já que esta de- sócio-raciais é reforçada ve ser a missão de uma pela ausência de vozes dissonantes. aula. É preciso redimensionar a po- instituição pública? E por fim: como Assim como nos debates do Pi- larização entre as ideias de eficiência evitar retrocessos, como o verifica- mesp, a recente discussão acerca das e democracia na educação, pois não do (vide p. 77) entre as gestões J. formas alternativas de ingresso via SI- são ideias antagônicas, e sim comple- Marcovitch (1998-2001) e J.G. Ro- SU deixou claro o amadorismo com mentares (Oliveira & Araújo, 2005). das (2010-2013)? que o tema é aqui tratado. O número A formulação da pergunta dos mágico de alocação de vagas (10%) senhores de escravos na transição citado durante a reunião da Congre- do regime “o que fazer com os ne- Referências AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra medo gação no IGc não foi apresentado à gros?” carrega em si, segundo Peter branco. São Paulo: Annablume, 2004. 2a edição revista e ampliada (1a edição: 1987). comunidade de forma justificada e, Eisenberg, “um grande viés racista, BEISIEGEL, C.R. (1986). “Educação e sociedade no Brasil no âmbito da universidade como um na medida que somente um grupo após 1930”. In: FAUSTO, Boris (org.) História geral da civilização brasileira – III. O Brasil republicano. 4. todo, as discussões foram novamente subordinado, como o ‘negro’ ou o Economia e Cultura (1930-1964). 2ª ed. São Paulo: Difel, p. 381-416. realizadas de forma não integrada e ‘índio’, foi pensado como categoria BURLAMAQUI, F.L.C. Memoria Analytica á cerca do com- mercio d’escravos e á cerca dos males da escravid”ao Do- com base nas percepções pessoais dos social distinta e problemática”, uma méstica. Rio de Janeiro: Comercial Fluminense, 1837. CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão docentes dos diferentes institutos. vez que ninguém perguntava “o que no Brasil meridional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, Se por um lado a USP continua fazer com o branco?” 1977. FERNANDES, Florestan. A integração do negro na Socieda- a ser extremamente eficaz no papel Da mesma maneira, quando o de de Classes. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1978. OLIVEIRA, R.P. e ARAÚJO, G.C. “Qualidade do ensino: educativo a que se propõe, por outro quadro docente da USP se pergunta: uma nova dimensão da luta pelo direito à educação”. Revista Brasileira de Educação, 28, 5-23. está ainda longe de ser democrática, “o que fazer com o aluno de escola WITAKER, Aguiar. In ALPSP (Assembleia Legislativa na medida em que privilegia o acesso pública?”, investe-se de um manto Provincial de São Paulo), 1869, p. 168, 169; idem, p. 140, 141. de grupos específicos às suas salas de preconceituoso que pensa somente

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De s m a n c h e t e m c o m o a l v o s RDIDP e c a r á t e r p ú b l i c o d a universidade Pedro Estevam da Rocha Pomar Editor da Revista Adusp

Reprodução/FFLCH

Momento crítico: ao lado do diretor Sérgio Adorno, Ricardo Terra apresenta à FFLCH propostas do GT-AD (20/8/15)

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Reveses institucionais parecem não inibir a gestão M.A. Zago-V. Agopyan, que insiste nos planos de demolição dos pilares acadêmicos da Universidade de São Paulo: o Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP), a carreira docente e o caráter público e gratuito da instituição. Quer ainda a redução do corpo de funcionários via PIDV e terceirizações e o estrangulamento financeiro do HU. Agora, estrondosamente derrotadas as propostas do GT-Atividade Docente, a Reitoria cria uma “supercomissão” encarregada de propor nada menos que uma reforma do Estatuto...

Ao encerrar-se seu segundo ano te o significado da proposta de um oferta de cursos pagos: enveredam de mandato, o mandarinato M.A. regime de 40 horas sem dedicação por todo tipo de negócio e criam Zago-V. Agopyan (2014-2017) dei- exclusiva, acalentada pela Reitoria. ou amplificam graves distorções no xou razoavelmente claras suas in- O caráter público e gratuito da ins- ambiente acadêmico. Que o diga a tenções. Pretende desmontar a USP tituição, já deteriorado nos dias que Fundação de Apoio à USP (FUSP), tal como a conhecemos, por meio correm, é portanto outro alvo. de quem falaremos ao final. de uma reforma regressiva dos regi- Os dados da Pró-Reitoria de Querem ainda os mandarins, por mes de trabalho — o alvo principal Cultura e Extensão Universitária intermédio do Programa de Incen- é o Regime de Dedicação Integral (PRCEU) registram que a “indús- tivo à Demissão Voluntária (PIDV) à Docência e à Pesquisa (RDIDP) tria” de cursos pagos arrecada, na e de novas terceirizações, a redução — e da carreira docente. A reforma USP, quase R$ 90 milhões por ano. do corpo de funcionários, que con- pretendida está conjugada às pers- Sem que a Reitoria faça mais do sideram superdimensionado. Dese- pectivas de intensificar o controle do que exercer, via PRCEU, a fiscali- jam, igualmente, o estrangulamento corpo docente pela via das avalia- zação de rotina, que legitima e dá financeiro do Hospital Universitário ções centralizadas e, paralelamente, um verniz de legalidade a tal indús- (HU), deixando ainda ao azar o fu- conceder uma abertura ainda maior tria. Evidentemente, as atividades turo do Hospital de Reabilitação de ao engajamento nas fundações pri- das fundações privadas autoprocla- Anomalias Craniofaciais de Bauru vadas ditas “de apoio” à USP: é es- madas “de apoio” não se limitam à (HRAC), depois de capitanearem,

80 Revista Adusp Dezembro 2015 de modo irregular e totalmente irres- machismo por conselheiras do Co Se a Caeco redundou em fiasco, ponsável, sua desvinculação da USP. — algumas das quais, pasme, tor- bem pior para a estratégia de des- Na execução da estratégia de naram-se objeto de processo dis- monte da Reitoria foi o desfecho da desmanche, o mandarinato colecio- ciplinar, por terem se manifestado comissão criada, no âmbito do Co, na derrotas e vitórias, cujo balanço “em voz alta” (sic) — e que cer- com a finalidade de equacionar os se impõe, a esta altura dos acon- ceou toda tentativa de andamen- problemas do Hospital Universitá- tecimentos. Entre as vitórias con- to mais democrático e equilibrado rio (HU) e que resultou em redon- tam-se o êxito — do ponto de vista dos debates e dos trabalhos. do e unânime “não” aos planos de da Reitoria, bem entendido — do A série de reuniões extraordiná- M.A. Zago e V. Agopyan de des- PIDV, que obteve a adesão de cerca rias do Co dedicadas, com base no cartar esse equipamento público de de 1.500 servidores; a cooptação script da Caeco, à reforma fatiada excelência (vide p. 94). de ponderável parcela da comuni- do Estatuto — realizadas em 3 de Igualmente ruinosa para os dade da Escola de Artes, Ciências junho e 11 de novembro de 2014 e mandarins foi a trajetória do Gru- e Humanidades (EACH), aparen- 7 e 14 de abril de 2015 — foi inter- po de Trabalho Atividade Docente temente convencida de que a terra rompida no decorrer desta última, (GT-AD), criado pela Portaria GR contaminada depositada ilegalmen- quando manifestantes liderados pe- 6.545, de 30 de abril de 2014. A te em 2010 e 2011 não oferece ris- lo movimento por cotas ocuparam julgar por relatos de seus próprios cos à saúde dos frequentadores do o local onde o colegiado se reunia integrantes, a heterogênea compo- campus Leste (vide p. 87); a citada (nas dependências do Instituto de sição desse numeroso GT — vin- desvinculação pelo Conselho Uni- Pesquisas Energéticas e Nucleares, te e quatro nomes, saídos da pena versitário (Co), ainda que ilegal, do IPEN) e M.A. Zago, antes de bater do reitor sem consulta a qualquer HRAC. em cinematográfica retirada, decla- instância — e as divergências lo- Os reveses, é verdade, também rou, à moda imperial, que o pro- go surgidas no seu interior, aliadas são contundentes. A greve de 2014 cesso só seria retomado em 2016 à condução nada democrática dos foi o mais notável (vide Revista (Informativo Adusp 398, http://goo. trabalhos, teriam inviabilizado qual- Adusp 57), mas dentro da própria gl/6m9SoF). Posteriormente recuou quer contribuição digna de nota. estrutura de poder os planos da e deu início às votações. A ponto de um de seus membros, gestão defrontam-se com inespe- o professor José Sebastião Neto, rados obstáculos. A Reitoria culti- da Faculdade de Medicina de Ri- va o hábito de criar comissões ad beirão Preto (FMRP), proclamar hoc e grupos de trabalho, nenhum O ácido debate entre o em debate, em agosto de 2015, que dos quais consegue chegar a bom “nem [mesmo] os documentos” ofi- porto. A Comissão Assessora Es- presidente do GT-AD, que ciais falam em nome do GT-AD pecial do Conselho Universitário leciona no curso de Filosofia, (Informativo Adusp 406, http://goo. (Caeco), por exemplo, surgiu para gl/1qLIKv). e seus colegas foi gravado em formatar a reforma do Estatuto. De qualquer modo, ainda que Mas não fez avançar qualquer te- vídeo e publicado no site da sem realizar debates públicos e ma relevante e ainda teve seu pre- FFLCH. A reprodução desse transparentes, e esquivando-se dos sidente, professor Carlos Martins, insistentes convites da Adusp nes- praticamente desautorizado pelo embate levou docentes de se sentido, o GT-AD presidido pe- reitor numa das reuniões do Co. outras unidades a tomarem lo professor Ricardo Ribeiro Terra Reuniões essas, por sinal, sempre apresentou, em junho de 2015, um conduzidas com autoritarismo por posição contra Terra esquálido relatório final, “Propos- M.A. Zago, que em mais de uma tas Iniciais sobre Valorização da ocasião deu ensejo a acusações de Docência e Avaliação”, cujo teor

81 Dezembro 2015 Revista Adusp causou comoção na universidade. documento defendido por Terra. A progressão horizontal na Avaliação quinquenal de todos Causaram forte impacto a arro- carreira seria mantida, passando os docentes, vinculada à possibi- gância do presidente do GT-AD a vincular-se à avaliação quinque- lidade de mudança de regime de e a atitude de deboche frente aos nal. O docente com desem­penho trabalho; integração da Comissão sérios questionamentos que sofreu “excepcional” viria a ser agraciado Especial de Regimes de Trabalho (Informativo Adusp 406, http://goo. com a progres­são, ao passo que (CERT) à Comissão Permanente gl/HZXZAZ). o docente cujo desempenho seja de Avaliação (CPA) e à Comissão No tocante ao ingresso na car- considerado insatisfatório “poderá de Atividades Acadêmicas (CAA); reira, a finalidade da mudança é ter seu regime de trabalho alte- criação de um “Regime de Tempo permitir à Reitoria punir o do- rado”, implicando rebaixamento Integral” (RTI) com 40 horas sema- cente em RDIDP cujo desempe- salarial. “De modo absolutamen- nais, porém sem dedicação exclu- nho seja considerado insatisfató- te ilegal, a USP transfere alguém siva à universidade; criação de um rio, impondo sua transferência de do regime de experimentação do outro regime que consolide o atual regime. O mecanismo, inspirado RDIDP para RTP ou RTC. Isso Regime de Turno Completo (RTC), no modelo vigente na Unicamp, fere a estabilidade no emprego, com jornada de 32 horas; e ingresso foi assim descrito por Terra: “O fere o princípio constitucional da na carreira exclusivamente em Re- docente é aprovado e quando as- irredutibilidade nos salários, fere gime de Tempo Parcial (RTP) e não sina o contrato começa a receber o pressuposto e o princípio de que mais em RDIDP, com indicação no em RDIDP. Qual a consequência o servidor público, para ter isenção edital do concurso do regime pre- disso? O docente pode perder o na condução da sua responsabili- ferencial especificado pela unida- RDIDP a qualquer momento da dade pública, precisa ter estabili- de. Estas as principais propostas carreira. A razão é clara. É poder dade no cargo e irredutibilidade do GT-AD, quase todas rechaçadas rebaixar [de RDIDP para RTP]. de salário”, sintetizou o professor pelas congregações, instadas pela [É permitir que] Alguém que ab- Ciro Correia no debate “Carreira Reitoria a se manifestarem. solutamente não tem proficiência, Docente em xeque” (Informativo Terra apresentou o documento seja rebaixado”. Adusp 404, http://goo.gl/7cNLdb). do grupo em reunião aberta da As congregações da FFLCH, da Congregação da Faculdade de Fi- EACH, da Facul­dade de Medicina losofia, Letras e Ciências Humanas Veterinária e Zootecnia (FMVZ) e (FFLCH), em 20 de agosto, oca- “De modo ilegal a USP do Instituto de Física (IF) estiveram sião em que suas inconsistências transfere alguém do regime entre as que rejeitaram cabalmente foram postas a nu por muitos do- as propostas do GT-AD. O Institu- centes da unidade, com destaque de experimentação do to de Biociências (IB) igualmente para a inexistência de um diagnós- RDIDP para RTP ou RTC. reprovou o documento. Departa- tico e de motivações claras para as mentos da Faculdade de Educação mudanças propostas. O ácido de- Isso fere a estabilidade (FE), da Escola de Enfermagem de bate entre o presidente do GT-AD, no emprego, fere o Ribeirão Preto (EERP) e da Facul- que leciona no curso de Filosofia, dade de Filosofia, Ciências e Letras e seus colegas foi gravado em ví- princípio constitucional de Ribeirão Preto (FFCLRP) tam- deo e publicado no site da FFL- da irredutibilidade nos bém o fizeram. CH. A reprodução desse embate A Congregação da FFLCH con- foi determinante para que muitos salários”, sintetizou o siderou por unanimidade que o do- professores de outras unidades se professor Ciro Correia cumento do grupo “possui bases inteirassem das questões em jo- pouco sólidas, devido à ausência de go e tomassem posição contra o diagnóstico amplo e fundamentado

82 Revista Adusp Dezembro 2015 Fotos: Daniel Garcia a cada um deles um papel diferen- ciado na instituição”. A Congregação da EACH, por sua vez, pronunciou-se expressa- mente “contrária ao teor do docu- mento” do GT-AD, por entender, como a FFLCH, que “não apresen- ta qualquer diagnóstico sobre a si- tuação dos docentes da universida- de e seus regimes de trabalho ou a situação da avaliação docente”, mas também por “falta de transpa­rência na construção do documento”­ e por viver-se um “momento inoportuno­ de crise financeira, que esta uni- versidade enfrenta com corte de 14 de abril de 2015: reitor M.A. Zago bate em retirada do IPEN... gastos inclusive nas atividades fins da universidade”. A EACH levou em conta, ainda, “que os docentes, desta unidade em particular, so- frem de uma grande sobrecarga de atribuições”, e que o GT-AD deixou de apresentar “qualquer outro ins- trumento complementar para atin- gir os supostos objetivos”.

“Diante das imprecisões e dos riscos existentes nas propostas apresentadas pelo ... puxado por uma funcionária e apoiando-se na pró-reitora Maria Arminda GT Atividade Docente, os que explicite sua real necessidade e Quanto ao ingresso em RTP, docentes do IB rejeitam o objetivos”, e que o RDIDP “é con- mesmo com a indicação no edital dição necessária para que o tripé de de outro regime preferencial, “indi- atual documento e requerem atividades que possibilita a efetiva ca um direcionamento para um tipo que qualquer discussão sobre promoção dos fins da Universida- de universidade muito próximo ao de — ensino, pesquisa e extensão das institui­ções de ensino superior regime de trabalho e avaliação — seja exercido com qualidade”. A privadas que, para atender às exi- docente e institucional seja proposta de criação do RTI, sem a gências mínimas do MEC [Minis- obrigatoriedade de vínculo empre- tério da Educação], mantêm cotas baseada em dados e estudos gatício exclusivo com a USP, im- rígidas de professores conforme o aprofun­dados” plicaria “perigosa precarização do regime de trabalho (horistas, tempo trabalho docente”. parcial e jornada integral), cabendo

83 Dezembro 2015 Revista Adusp Fotos: Daniel Garcia O IB encampou análise elabo- rada por uma comissão constituída no âmbito da Congregação, segundo a qual o “único vínculo lógico” en- tre as premissas que supostamente orientaram o GT-AD e as propostas apresentadas é o da “contradição”. Por exemplo: “tratar o RDIDP, que é um regime de trabalho, como uma gratificação por desempenho” con- tradiz a valorização da carreira do- cente — um dos objetivos do grupo, segundo a portaria GR 6.545. Dados irrefutáveis: a USP conta hoje com 88% de seus docentes em RDIDP, sendo “notória, no Brasil, a correla- Na saída do prédio, recebe a proteção de guardas e seguranças... ção entre a qualidade da pesquisa, ensino e extensão das universidades e a propor­ção de seus quadros em dedicação exclusiva”, o que explica o fato de que, embora os docentes da USP representem 1,6% dos docen- tes universitários do país, “eles são responsáveis por 25% da produção científica nacional”. A conclusão do texto do IB é ca- tegórica: “Diante das imprecisões e dos riscos existentes nas propostas apresentadas pelo GT Atividade Docente, os docentes do IB rejeitam o atual documento [em destaque no original] e requerem que qualquer discussão sobre regime de trabalho ... e se encaminha, célere, até o carro que o espera e avaliação docente e institucional convincente. Apenas afirma-se que Mendes e Diogo R. Coutinho, o seja baseada em dados e estudos esse seria o regime daqueles que texto avalia que não há razão para aprofun­dados que embasem uma trabalham em tempo integral na ampliar o número de regimes de análise crítica de novas propostas” Universidade, com engajamento trabalho. Propõe, ao contrário, que (http://goo.gl/kLtxCg). institucional, mas com a possibili- eles sejam reduzidos a dois: tempo Outra severa crítica às propostas dade de assumir compromissos ex- parcial e dedicação exclusiva. “A do GT-AD partiu de um grupo de ternos. A justificativa, como se vê, criação do RTI em uma ativida- professores da Faculdade de Direi- não é uma justificativa, mas uma de profissional cuja carga horária to (FD). Principiam por questio- descrição do que seria o regime”. cotidiana não pode ser controla- nar as alegações oficiais a propósito Assinado pelos professores Vir- da, como é a atividade acadêmi- do pretendido RTI: “A justificativa gílio Afonso da Silva, Jean Paul ca, apenas faria com que todos os dada pelo GT é sucinta e pouco Veiga da Rocha, Conrado Hübner docentes que hoje são RTC (ou

84 Revista Adusp Dezembro 2015 Fotos: Daniel Garcia institucional sólida para tal refor- ma. “A elite acadêmica internacio- nal não é composta por professores com dois ou três empregos, mas por professores que se dedicam a uma única atividade”. Assim, de todos os quadrantes e latitudes da universidade parti- ram duríssimas críticas às propos- tas do grupo presidido por Terra. Que talvez possam ser resumidas, abstraindo-se diferenças conceitu- ais entre elas, neste singelo porém devastador trecho da manifestação do Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação Em meio a pequena confusão, o reitor prepara-se para embarcar da FE: “Após a necessária funda- mentação, explicitação dos modelos e fontes pesquisadas, explicitação da metodologia utilizada, podere- mos começar a discutir essa temáti- ca em um patamar adequado a uma universidade como a USP”.

Um restrito time, composto por docentes da absoluta confiança do reitor, portanto uma supercomissão para o Carro do reitor deixa o local, sob protestos que der e vier. Dois diretores ao menos uma parcela significati- forem os vencimentos do docente de unidades controladas va deles) migrassem para o RTI, em RTI”, muitos dos hoje contra- com impacto financeiro sem con- tados em RDIDP poderiam migrar por fortíssimas fundações sequente alteração no perfil desses para o RTI, de tal modo que a USP privadas: FMRP e FEA. docentes”, argumentam. “Afinal, “estaria fomentando uma transfor- por que receber vencimentos me- mação claramente negativa em seu A procuradora geral da nores (RTC) se é possível receber quadro docente ao incentivar que universidade, autora de vencimentos maiores (RTI) dado seus professores e pesquisadores que a jornada de trabalho não po- dividam seu tempo entre a universi- longo parecer favorável à de ser controlada?” dade e outras atividades (incluindo oferta de cursos pagos Ademais, acrescentam os auto- o envolvimento com instituições ri- res, “a depender de quão atrativos vais)”. Para eles, não há justificativa

85 Dezembro 2015 Revista Adusp Visto que os ataques ao RDI- uma supercomissão para o que mento da USP, que precisa ser DP não convenceram nem mes- der e vier. Dois diretores de uni- rechaçado!” mo alguns setores que se pau- dades controladas por fortíssi- E la nave va. A FUSP abriga tam pela meritocracia, a aven- mas fundações privadas: a FMRP licitações de fachada, servindo tura do GT-AD revelou-se um (Faepa) e a FEA (FIA, Fipe e de intermediária para a contrata- constrangimento para a gestão Fipecafi). A procuradora geral da ção de empresas pertencentes a M.A. Zago-V. Agopyan. A Co- universidade, autora de longo pa- docentes? Tudo será investigado missão Especial de Regimes de recer favorável à oferta de cursos e com transparência, promete o Trabalho (CERT), que retomou pagos, à revelia da Constituição reitor, ao designar para dirigir a seu caráter inquisitorial, tendo a Federal. E os (ex?) presidentes entidade privada um funcionário presidi-la o afável professor Luiz de dois grupos atropelados no ca- público, o professor José Dru- Nunes, mais uma vez voltou a minho, a Caeco e o GT-AD, que gowich, superintendente de As- enfrentar resistências, como a da ganham contudo nova oportuni- suntos Institucionais. M.A. Zago Adusp, que chamou os docentes dade de demonstrar fidelidade à e dois pró-reitores continuam a a se defenderem dos abusos de Reitoria. integrar o conselho curador da poder praticados pela comissão. Assim, “agora que o GT-AD se fundação privada, como se nada Que fazer, portanto? Como co- vê deslegitimado face ao volume tivesse acontecido. locar em movimento novamente e à contundência das críticas ... à Há corrupção na Prefeitura a engrenagem antiRDIDP? Sim- inconsistência das ‘propostas’ por do Campus de Ribeirão Preto, ples, resolveram os mandarins: ele rascunhadas, a Reitoria, em envolvendo cerca de R$ 2 mi- criando-se uma nova comissão, novo ato monocrático, nomeia lhões, e um dos envolvidos foi com mais poderes. outra comissão”, denuncia o edi- promovido? Bem, nada pode ser Eis que surge, no Diário Ofi- torial do Informativo Adusp 407 divulgado, porque o assunto é cial do Estado de São Paulo de (http://goo.gl/yeM6fs). “Desta vez, sigiloso. (O caso foi denunciado 5/9/15 (Poder Executivo, Seção com poderes para substituir seja em 2013!) I, p. 65), portaria do reitor M.A. o processo coordenado pela Ca- O professor Jorge Boueri Filho Zago que designa os professores eco no Co, seja o devido trâmite cometeu um grave crime ambien- Carlos Gilberto Carlotti Júnior das manifestações das unidades tal, ao promover transporte ile- (FMRP, presidente), Adalberto às ‘propostas’ do GT-AD, atri- gal de 109 mil m³ de terra para a Américo Fischmann (Faculdade buindo-lhe a tarefa de selecionar EACH, e ainda tentou convencer de Economia, Administração e ou descartar ao seu bel-prazer a comissão processante de que a Contabilidade), Carlos Alberto qualquer item, questão ou pro- terra procedia do Parque do Ibira- Ferreira Martins (Instituto de posta que derive, ou não, de todo puera? Sim, a Reitoria concorda Arquitetura e Urbanismo), Jo- esse inconcluso processo”. com as acusações. Tanto que lhe sé Rogério Cruz e Tucci (FD), Não há dúvida, adverte a aplicou a severíssima punição de... Maria Paula Dallari Bucci (FD), Adusp no editorial, que tal pro- 120 dias de suspensão. Ricardo Terra (FFLCH) e Vic- ceder “poderá levar propostas à O presente mandarinato, não tor Wünch Filho (Faculdade de deliberação do Co — como se resta dúvida, será lembrado por Saúde Pública), atribuindo-lhes a sabe, já minado por conflitos de muitas décadas. Mas é bom que “incumbência de analisar e pro- interesse e enormes distorções se cuide: caso a USP lhe sobre- por alterações estatutárias e regi- na sua composição — sem que viva, pode ser que algum futuro mentais no âmbito da USP”. tenham sido amplamente discu- reitor queira imitar o seu gesto Um restrito time, composto tidas, o que caracteriza mais um de cassar a aposentadoria de an- por docentes da mais absoluta golpe contra o corpo da universi- tecessores. Tal como se tenta fa- confiança do reitor, portanto dade e um atraso no aprimora- zer a J.G. Rodas.

86 Revista Adusp USP Dezembro 2015 EACH, s o b “investigação d e t a l h a d a ”, c o n v i v e p o r o r a c o m a t e r r o i l e g a l Paulo Hebmüller Jornalista

Arquivo

O então diretor Boueri entre J.G. Rodas e o governador Alckmin: “costas quentes”? A Reitoria da USP apoia-se nos pareceres da Companhia de Saneamento Ambiental (Cetesb) e decide que a terra contaminada depositada clandestinamente no campus da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) em 2010 e 2011, quando a unidade era dirigida por J.J. Boueri, pode permanecer no local sem oferecer riscos a quem trabalha ou estuda lá. Uma empresa de engenharia foi contrada para executar, até junho de 2016, “serviços de investigação ambiental detalhada” e “avaliação de riscos toxicológicos”

87 Dezembro 2015 Revista Adusp A Superintendência do Espaço Físico (SEF) da USP assinou um contrato com a empresa de enge- nharia ConAm-Consultoria Am- biental para “execução de serviços de investigação ambiental detalha- da” e “avaliação de riscos toxicoló- gicos” na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH). O extrato do contrato foi publi- cado no Diário Oficial no dia 20 de junho de 2015. A empresa terá um ano para executar o trabalho nas áreas AI-02 e AI-03 no campus da USP Leste. A AI-02 é a chamada área da chaminé, remanescente de uma antiga fábrica de cerâmica, e fica à esquerda de quem chega à EACH pela Estação USP Leste da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). A AI-03 é o terreno cedido em 2012 pelo Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) para expansão do campus, e se estende até a vizi- nhança do Centro de Treinamento do Corinthians. A assinatura do contrato é o mais recente capítulo das ações da USP em relação aos graves proble- utilizado em segmentos industriais serviços para os quais a ConAm foi mas ambientais na EACH. A área e está banido em muitos países – contratada nas áreas AI-02 e AI- da chaminé recebeu a maior parte inclusive no Brasil – devido aos 03 “completam a investigação já dos 109 mil m³ de terra deposi- potenciais efeitos nocivos à saúde realizada na área AI-01” – a região tados clandestinamente no cam- e ao ambiente. De acordo com a central do campus, onde estão as pus entre 2010 e 2011, caso que ação civil pública da Promotoria edificações da EACH e que tem acabou levando ao afastamento de Urbanismo e Meio Ambiente boa parte de seu espaço atualmen- do então diretor da unidade, José do Ministério Público do Estado te cercado por tapumes de alumí- Jorge Boueri Filho, e motivou a (MPE) que levou à interdição da nio. A empresa fará o diagnóstico interdição da EACH entre janei- EACH, parte do depósito clan- dos problemas e também a execu- ro e julho de 2014 por decisão destino veio do terreno em que ção das medidas consideradas ne- judicial. Análises identificaram a foi erguido o Templo de Salomão cessárias. A ordem de serviço foi presença de diversas substâncias da Igreja Universal do Reino de emitida com data de 13 de julho e contaminantes na terra, entre elas Deus, no bairro do Brás. a conclusão está prevista para ju- bifelinas policloradas (PCB, na O superintendente da SEF, pro- lho de 2016. O valor do contrato é sigla em inglês). O composto era fessor Osvaldo Nakao, diz que os de R$ 2,379 milhões.

88 Revista Adusp Dezembro 2015 Daniel Garcia certeza de que não estão correndo risco, mas muita gente está em dúvi- da. Eu tenho certeza de que há risco porque ouvi um geólogo da Cetesb [Companhia Ambiental do Estado de São Paulo] dizer que apenas colo- car grama em cima não isola a terra contaminada”, enfatiza a professora Adriana Tufaile, dos cursos de Ciên- cias da Natureza e Gestão Ambien- tal da EACH. A declaração à qual ela se refere foi feita em maio de 2014 pelo geólogo Elton Gloeden, gerente do Departamento de Áreas Contaminadas da Cetesb. Em audi- ência na CPI da Câmara dos Verea- Marcos Bernardino de Carvalho e Osvaldo Nakao dores de São Paulo sobre áreas con- O início dos serviços da Co- taminadas, Gloeden afirmou que o nAm praticamente coincidiu com plantio de grama representava uma o final de mais um semestre leti- Elton Gloeden, geólogo da medida de “caráter emergencial”, e vo, enquanto outro deve se iniciar Cetesb que em maio de 2014 não “uma solução definitiva” para o em meio à incerteza da comuni- isolamento do solo do campus. dade sobre a segurança de fre- declarou a uma CPI que “Na época da CPI, os resultados quentar o campus e a existência a grama não era “solução das investigações do solo indicavam de riscos à saúde. “Uma coisa é a presença de PCB total acima do solucionar os problemas enquanto definitiva” para aterro valor de intervenção, o que indicava o local está interditado e fecha- ilegal, diz agora que novos a necessidade de complementação do ao acesso. Outra é colocar as das investigações e intervenções, co- pessoas de volta sem haver uma testes indicam que “o uso mo o isolamento da área com grama segurança e uma certeza absoluta da área é seguro” e não e tapume. Após a obtenção dos no- quanto ao nível de problemas que vos resultados para os congêneres as coisas que estão aqui podem há mais “necessidade de de PCB, essas medidas não são mais trazer”, afirma o professor Marcos remoção do solo” necessárias”, declarou Gloeden à Bernardino de Carvalho, docente Revista Adusp. Para o geólogo, “não do curso de Gestão Ambiental e há necessidade de remoção do solo”, coordenador do Programa de Pós- e “o uso da área é seguro”. Graduação em Mudança Social e A colocação dos tapumes de alu- A existência desses “novos resul- Participação Política da EACH. mínio (que isolam também a área tados” é justamente um dos nós a “O campus está esquizofrênico, da chaminé) e a cobertura do aterro emaranhar a teia bastante complexa porque uma parte dele diz cla- com o plantio de grama foram al- de problemas da EACH. A empresa ramente o seguinte: ‘Isto não é gumas das medidas tomadas para Servmar Serviços Técnicos Ambien- seguro’. Basta olhar para todos mitigar os problemas na área central tais, contratada pela USP para inves- os espaços que estão cercados por da EACH. Porém, sobram dúvidas tigação do solo e da água subterrânea tapumes e eles dizem isso a você”, quanto à sua eficácia. “Eu não me nas áreas AI-01 e AI-02, realizou son- completa. sinto segura. Há pessoas que têm dagens e investigações em diversas

89 Dezembro 2015 Revista Adusp etapas e concluiu no início de 2014 mento de Proteção Individual (EPI), em tempos a Cetesb faz essas al- que havia 21 pontos no solo nos quais e seja feito monitoramento de gases terações e se torna mais rígida em estavam presentes substâncias acima inflamáveis no solo”. É “recomen- alguns índices e menos rígida em dos “valores de intervenção para o dável também”, segue o texto, “que outros, obedecendo a parâmetros cenário residencial”. Logo a seguir, na AI-01 seja mantido o tapete de internacionais”, rebate Neli. entretanto, a Cetesb divulgou os no- grama ou que seja realizada a colo- vos valores orientadores para solos cação de bloquetes” (tipo de peça e águas subterrâneas no Estado de de concreto para pavimentação). É São Paulo, em substituição aos que com base nessas conclusões que o “Tudo o que se está fazendo vigoravam desde 2005. A decisão e as superintendente Osvaldo Nakao de- no campus é muito lento e respectivas tabelas do órgão ambien- fende, assim como o geólogo Gloe- tal foram publicadas no Diário Oficial den, da Cetesb, que não é necessário podemos estar brincando de 21 de fevereiro de 2014. retirar o aterro clandestino na área com a saúde das pessoas. A Servmar encaminhou à USP os central do campus (vide declarações resultados analisados sob os parâme- de Nakao na p. 89). Essa é a desconfiança, é o tros revistos, reduzindo drasticamen- A Cetesb ainda não deu um pa- que qualquer ambientalista te o número de pontos considerados recer sobre o relatório da Servmar problemáticos. Questionada por re- entregue em novembro do ano passa- sabe”, diz o docente Marcos presentantes da EACH e da SEF, do, e não respondeu à Revista Adusp Bernardino de Carvalho em março do ano passado, a respeito se há alguma previsão para emiti-lo. desse e de outros itens, a empresa Caso o órgão referende as conclusões respondeu por escrito: “No relatório da empresa, os tapumes de alumínio em epígrafe foram utilizados os va- poderão ser retirados para a cons- A controvérsia sobre a necessida- lores de intervenção novos, de 2014, trução de novas edificações na área de da retirada da terra contaminada para comparação com os resultados central da EACH. A vice-diretora da não é o único problema da EACH. A analíticos obtidos. Desta forma, algu- escola, professora Neli Aparecida de concentração de gás metano no sub- mas concentrações que se encontra- Mello-Théry, defende a manutenção solo é outra realidade a preocupar a vam superiores aos valores de inter- dos tapumes até que a universidade comunidade de alunos, professores, venção de 2005 não se encontravam receba esse posicionamento oficial. funcionários e outros frequentadores mais superiores quando considerados A professora tem procurado inter- da unidade. Como salienta a ação ci- os valores de intervenção atualizados vir nas questões ambientais que en- vil pública do MPE, “a área por anos em 2014 pela Cetesb”. volvem o campus, mas ressalta que foi utilizada como bota-fora, notada- O relatório de fevereiro conclui a Cetesb não recebe a diretoria da mente de sedimentos removidos du- que “após a interpretação dos resul- EACH, pois a interlocução da Com- rante as operações de dragagem do tados analíticos e avaliação de risco panhia com a USP se dá apenas por rio Tietê”. “Não era o melhor lugar à saúde humana pode-se afirmar intermédio da SEF. para construir um campus, porque que não há necessidade de adoção A mudança dos valores de inter- não se sabe a origem dos aterros an- de medidas de intervenção para o venção é um dos fatores que cola- teriores”, reconhece a vice-diretora. solo superficial e solo subsuperficial boram na criação de um clima de Recorde-se, além do mais, que a USP da área AI-01”. Um novo estudo desconfiança em relação à Cetesb e Leste está localizada no perímetro do complementar foi entregue em no- às afirmações de que a área do cam- Parque Ecológico e Área de Preser- vembro, reforçando a conclusão e pus está segura, aponta a professora vação Ambiental (APA) da Várzea recomendando ainda que, “caso se- Adriana Tufaile. Para a vice-diretora do Rio Tietê. jam realizadas obras civis na AI-01, da EACH, no entanto, trata-se de O superintendente da SEF, Os- os trabalhadores utilizem Equipa- um processo normal. “De tempos valdo Nakao, e o geólogo Elton

90 Revista Adusp Dezembro 2015 “USP c u m p r e orientações d a Ce t e s b ”, d i z Na k a o

Leia a seguir as respostas que temas de exaustão nos edifícios de de de adoção de medidas de inter- o titular da Superintendência do acordo com o projeto de autoria do venção para o solo superficial e solo Espaço Físico (SEF) da USP, Os- IPT [Instituto de Pesquisas Tecno- subsuperficial da área AI-01”. valdo Nakao, enviou por e-mail às lógicas]. Foram construídos abrigos perguntas da Revista Adusp: para todos os sistemas de extração. Revista Adusp – Uma vez con- A evolução das obras dos abrigos e cluídas a investigação e a avaliação, Revista Adusp – Como a SEF a eficiência dos sistemas podem ser quais os próximos passos? A USP avalia a situação atual da área da acompanhadas nos relatórios men- acredita que será necessária a re- EACH? A SEF considera que ela é sais de Monitoramento de Intrusão moção de toda a terra contaminada absolutamente segura para as pes- de Gases, também disponíveis nas ilegalmente depositada no campus? soas que a frequentam? páginas da SEF e da EACH. Nakao – Os documentos técni- Osvaldo Nakao – A USP tem cos da Cetesb para gestão de áreas realizado as ações definidas pela Revista Adusp – De acordo com contaminadas definem que os pró- Companhia Ambiental do Estado o geólogo Elton Gloeden, da Cetesb, ximos passos devam ser determina- de São Paulo (Cetesb). somente o plantio de grama não ga- dos em função dos resultados dos rante o encapsulamento da contami- estudos de investigação detalhada Revista Adusp – A manutenção nação do solo. Por que a USP não e de avaliação de riscos à saúde dos tapumes restringindo o acesso tomou outras medidas em relação à humana. Caso seja identificado so- a boa parte do campus não indica presença da terra contaminada? lo contaminado nas áreas AI-02 e que há problemas que não foram Nakao – A USP cumpre as AI-03, em concentrações acima das sanados e que, portanto, as pessoas orientações da Cetesb. quais existam riscos potenciais reais da comunidade ainda estão expos- à saúde humana para os usuários, tas a diversos riscos? Revista Adusp – Qual a estima- esses solos serão objeto de medidas Nakao – O cercamento foi realiza- tiva de gastos que a USP projeta de gerenciamento ambiental de for- do atendendo orientação da Cetesb. para todo o processo de desconta- ma a permitir o uso seguro da área. minação? Revista Adusp – Quantos são Nakao – As ações e atividades Revista Adusp – Há um prazo os exaustores de metano instalados necessárias para o cumprimento de para que todo o processo de des- na área? Eles são suficientes para todas as etapas do gerenciamento contaminação seja concluído? resolver as questões ligadas ao gás ambiental da área estão sendo re- Nakao – Até o momento, a única no campus? Todos serão cobertos alizadas pela USP de acordo com necessidade apontada pela Cetesb pelos abrigos em construção para as orientações da Cetesb. De acor- é o sistema de extração de gases do reduzir o nível de ruído emitido? do com os estudos conduzidos e os subsolo, que foi instalado em toda a Nakao – O relatório “Instalação resultados obtidos até o momento, área AI-01 (área ocupada pela EA- do Sistema de Exaustão de Gases do conforme apresentado em relatório CH) que permite, por meio da ven- Solo Sob os Edifícios”, de agosto de técnico intitulado “Investigação De- tilação do subsolo, o uso seguro do 2014, da empresa Weber Consulto- talhada, Avaliação de Risco à Saúde campus e garante a ausência de risco. ria Ambiental Ltda. e disponível em Humana e Plano de Intervenção na Esse sistema será mantido enquanto www.sef.usp.br e http://each.uspnet. AI-01 e Investigação Detalhada de o monitoramento indicar a presença usp.br/site, indica a localização dos Gases”, de fevereiro de 2014, dispo- de metano, mesmo em níveis abaixo 22 exaustores de metano instalados nível em www.sef.usp.br e http://each. de inflamabilidade, e sua operação é na USP Leste. Foram instalados sis- uspnet.usp.br/site, “não há necessida- objeto de acompanhamento diário.

91 Dezembro 2015 Revista Adusp Gloeden, da Cetesb, afirmam que que qualquer ambientalista sabe”, Até agora, porém, não é possível a implantação de um sistema de diz Marcos Bernardino de Carvalho. comprovar que há efeitos”. extração de metano garante a se- “Uma coisa muito perversa é que “A USP está sofrendo o que a pe- gurança das edificações e das pes- não se consegue fazer a relação de riferia sofre, e poderia dar o exem- soas. De acordo com Nakao, foram nexo causal dos problemas de saú- plo de mostrar que a periferia tem instalados 22 exaustores do gás no de”, continua Adriana Tufaile. Antes o direito a ser um lugar em que as campus. Para minimizar o proble- do plantio da grama e da colocação pessoas vivam de forma saudável”, ma do ruído constante emitido pe- dos tapumes, os frequentadores do considera o professor Marcos Ber- las máquinas, algumas localizadas campus respiraram muita poeira vin- nardino de Carvalho. Para ele, a ar- ao lado de janelas de salas de au- da da terra contaminada. “Mesmo gumentação de que muitos lugares la, estão sendo construídos abrigos que os parâmetros para os compos- da cidade — ou praticamente a ci- nos quais os equipamentos ficarão tos isolados tenham sido reduzidos, dade toda — estejam contaminados isolados. As construções previstas o que acontece quando várias dessas não é justificativa para minimizar os para a expansão da EACH já serão substâncias estão presentes ao mes- problemas da EACH. “Ter um es- edificadas com base em projetos mo tempo e agem cumulativamen- paço livre de contaminação é muito que incluem sistemas de ventilação te? Um só organismo e um só siste- difícil. No entanto, não pode ser cas- e extração do metano, afirmam os ma imunológico têm que dar conta sado o direito de lutar para se viver representantes da USP. de tudo.” Vale lembrar que, em de- num espaço livre de contaminação, A eficácia dessas providências é zembro de 2013, três semanas antes ou no mínimo para diminuir a ex- questionada pelos professores da do início da interdição determinada posição a alguma coisa que nos faça EACH ouvidos pela Revista Adusp. pela Justiça, as atividades da EACH mal. Não somos apenas organismos “A USP demorou quase dez anos já haviam sido paralisadas por causa ou máquinas em que o ar entra de para tomar medidas sobre o metano de problemas com a água e com in- um jeito e o contaminante de outro. e tinha ciência dessa questão desde festação por piolhos de pombo em Somos todos também corpos sociais a implantação da escola. Será que salas de aula. e políticos, que não têm por que to- vai demorar dez anos ou mais para A ação civil pública movida pelo lerar um grama que seja de matéria tomar medidas efetivas em relação à MPE continua tramitando na 2ª Va- de origem criminosa”, defende. terra? Espero que não”, diz Elizabe- ra da Fazenda Pública e vem sendo A professora Elizabete Franco te Franco Cruz, docente do curso de acompanhada pela promotora Cláu- Cruz concorda. “Há uma questão Obstetrícia e do mestrado em Mu- dia Cecília Fedeli, da Promotoria de simbólica muito significativa. Esta dança Social e Participação Política. Urbanismo e Meio Ambiente. Pelo terra é um lixo e nós não somos “Com a propalada crise financeira menos mais uma ação já foi movida um depósito de lixo! Nós semea- da instituição, tenho dúvidas se vão na Justiça depois da desinterdição. mos uma flor no solo pantanoso retirar a terra. Às vezes penso que Após sofrer uma alergia que a fez que a USP nos deu. Sonhamos com vão tentar nos convencer cientifi- perder cabelos e sobrancelhas, a um projeto lindo para este espaço, camente de que não há problemas aluna Rosangela Toni, do curso de trabalhamos duro e fizemos nas- e portanto a terra poderá perma- Gestão Ambiental da EACH, está cer muita coisa. Realmente não me necer. Outras vezes penso que vão processando a USP por entender conformo”, diz. “Para mim, depois adotar medidas parciais, paliativas, que a causa do problema é a conta- de tudo que vimos e vivemos, é para poder dizer: ‘Retiramos a terra minação por elementos existentes muito difícil a convivência pacífica contaminada da EACH’.” no solo do campus. A vice-diretora com esse lixo contaminado fruto “Tudo o que se está fazendo no Neli de Mello-Théry salienta que de um crime ambiental. Nós todos, campus é muito lento e podemos es- também inalou a poeira, mas res- professores, alunos, funcionários e tar brincando com a saúde das pes- salta: “Não posso afirmar que essa comunidade, não merecemos esse soas. Essa é a desconfiança, e é o situação não vá causar problemas. estado de coisas.”

92 Revista Adusp Dezembro 2015

Re i t o r s u s p e n d e e x -d i r e t o r J. Bo u e r i p o r 120 d i a s . Co m i s s ã o Pr o c e s s a n t e q u e r i a s ó 30 d i a s

Arquivo A Comissão Processante Dis- do réu deveria ciplinar (CPD) designada em ser levada em 7/11/2013 pela Reitoria da USP pa- conta ao se fi- ra conduzir processo administrativo xar a pena. As- contra José Jorge Boueri Filho, ex- sim, apesar da diretor da EACH, emitiu parecer, gravidade das um ano e meio depois (29/5/2015), faltas aponta- recomendando a suspensão do pro- das, M.A. Zago fessor por trinta dias de suas ativi- decidiu aplicar dades na Universidade. a punição de No dia 2/7/2015, o reitor M. A. 120 dias de sus- Boueri, segundo à esquerda, e Alckmin Zago acolheu, em parte, as conclu- pensão. sões da CPD, ao entender que o ato A Diretoria da Adusp emitiu USP devem ser responsabilizados, praticado por Boueri “deve ser con- nota em que condena a decisão do além do ex-diretor. Ela lembra que siderado como de maior gravidade”, reitor: “A suspensão de 120 dias é a interdição da unidade entre ja- na medida em que o então diretor uma sanção que não condiz com neiro e julho de 2014 provocou da EACH “autorizou a utilização a gravidade do caso e das condu- muitos prejuízos que não podem de considerável volume de terra não tas do então diretor da EACH. A ser medidos: “Projetos de pesqui- certificada no campus da EACH”, e mesma Reitoria que, a pretexto de sa parados, laboratórios fechados, isso mediante a ausência de requisi- ausência de dolo, deixa de demitir alunos que desistiram de discipli- tos fundamentais, tais como: “pro- o responsável por um crime am- nas por causa dos deslocamentos cedimento licitatório ou de dispensa biental de proporções ainda não para outros lugares, falta de biblio- ou de declaração de inexigibilidade”; inteiramente conhecidas, que vio- teca e de bandejão, possíveis danos “contrato formal, escrito”; e “a falta lou diversas leis e o Estatuto do à saúde das pessoas etc.”. de comunicação aos órgãos adminis- Servidor Público (ESP), dispõe-se Há também, diz a professora, trativos e ambientais para formalizar a processar e expulsar estudantes outras perdas que podem ser conta- e obter as autorizações necessárias”. por falarem em voz alta nas reuni- bilizadas e com as quais a USP vem O reitor reconheceu, ainda, que ões do Conselho Universitário”. arcando sem cobrar dos demais en- tais condutas “desencadearam sig- “Vale lembrar, a respeito da volvidos. Um dos atores do proces- nificativa perturbação para o de- alegada primariedade de Boueri, so, por exemplo, obtém duas van- senvolvimento dos serviços admi- que o ESP relaciona a penalidade tagens: “As construtoras compram nistrativos da EACH, com a inter- à infração, sem levar em conta os terrenos contaminados porque são dição daquele campus, suspensão antecedentes”, continua a nota da mais baratos e, em vez de desconta- das aulas e posterior transferência Adusp. “Portanto, a primariedade minar, o que custa muito dinheiro, dos alunos para locais externos”. não deveria ser entendida como pegam a terra e jogam noutro lugar. Por outro lado, ele acatou o en- atenuante ou óbice à demissão”. Lucram duas vezes: comprando ter- tendimento da Comissão de que não A professora Adriana Tufaile reno mais barato e descartando a houve dolo e de que a primariedade considera que outros dirigentes da terra em vez de tratá-la”.

93 Dezembro 2015 USP Revista Adusp HU e HRAC, o u c o m o s e l i v r a r d e hospitais d e r e n o m e a c a d ê m i c o Paulo Hebmüller Jornalista Daniel Garcia

Protesto dos funcionários do HU durante reunião de 26/8/14 do Conselho Universitário da USP

O Hospital Universitário da USP (HU) e o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais de Bauru (HRAC) sempre tiveram alta reputação acadêmica e cumprem importantes funções sociais. O HU, em especial, desempenha papel de longo alcance na formação de profissionais de diferentes áreas vinculadas à Saúde. Mesmo assim a gestão M.A. Zago-V. Agopyan não hesitou em propor a desvinculação de ambos da universidade e sua subordinação à Secretaria Estadual da Saúde — ao que parece, sem consultar a pasta

94 Revista Adusp Dezembro 2015 Foi como um raio em céu azul. do próprio Co o reitor encontrou posta por funcionários de diferentes No dia 16 de agosto de 2014, pre- resistência à medida. setores do HU, um representante mida pela revelação dos seus pla- Desse modo, a decisão sobre o do Conselho Gestor de Saúde do nos, dois dias antes, pelo jornal Fo- HU foi adiada para “melhor ava- Distrito do Butantã e os presidentes lha de S.Paulo, a Reitoria da USP liação”, inicialmente marcando-se a da Adusp e do Centro Acadêmico divulgou oficialmente seu pacote decisão para trinta dias depois. Po- Oswaldo Cruz (CAOC). A eles, rei- de medidas de contenção da alega- rém, de modo totalmente irrespon- terou o que já havia manifestado à da “crise financeira” da instituição, sável, a desvinculação do HRAC imprensa: “Nunca este governo se- entre as quais encontravam-se a foi aprovada, tendo contado com a quer cogitou de assumir a responsa- desvinculação do Hospital Univer- adesão declarada de ninguém me- bilidade pelo Hospital Universitário sitário (HU), na capital, e do Hos- nos que a diretora da Faculdade de ou de incorporá-lo”, afirmou. “Está pital de Reabilitação de Anomalias Odontologia de Bauru e presidente dito: não será feito, nem o HU nem Craniofaciais de Bauru (HRAC), o do conselho deliberativo do hos- o HRAC serão assumidos pelo Es- “Centrinho”, em Bauru. pital, Maria Aparecida Monteiro tado, isso está fora de cogitação”. O Um e outro deixariam de ser Machado. A votação no Co regis- secretário estadual da Saúde, David “órgãos complementares” da Uni- trou 64 votos a favor, 27 contra e Uip, também já havia se pronun- versidade e se transformariam em 15 abstenções, resultado que a Rei- ciado numa coletiva: “Tem alguém “entidades associadas”. Na práti- toria proclamou como suficiente, que quer vender, mas o outro não ca, os dois importantes hospitais, fazendo crer que bastava maioria quer comprar. Não tem discussão. conhecidos pelos excelentes servi- simples para validar a medida. “Só A decisão nasce morta”. ços médicos prestados (e, no caso que não”. Procurada para esta reportagem do HU, também por seu papel na Por se tratar de extinção de ór- pela Revista Adusp, a Assessoria de formação de profissionais de dife- gão complementar, a desvinculação Imprensa da Secretaria da Saúde rentes áreas da Saúde), seriam des- do HRAC precisaria ter sido apro- confirmou: “Os hospitais perten- vinculados da USP e repassados à vada por maioria qualificada — dois cem à USP e a Secretaria não irá Secretaria de Estado da Saúde. terços do Co — e não por maioria assumi-los”. Apenas dez dias depois do anún- simples, segundo o próprio Estatuto cio, sem qualquer debate prévio com da USP. Assim, seriam necessários a população atendida, a comunidade pelo menos 77 votos favoráveis. Em universitária, ou sequer as unida- abril de 2015, depois de tentarem A desvinculação do HU des de ensino da USP diretamen- sem êxito fazer o próprio Co rever é desaconselhada pela te envolvidas com esses hospitais, a e anular a medida diante do evi- alteração foi submetida à reunião dente descumprimento do Estatu- comissão que a própria do Conselho Universitário (Co). to, a Associação dos Docentes da Reitoria criou, por meio Reunido, excepcionalmente, nas de- USP (Adusp), o Sindicato dos Tra- pendências do Instituto de Pesqui- balhadores da USP (Sintusp) e o da Portaria GR 965, de sas Tecnológicas (IPT), em razão da Sindicato dos Médicos de São Paulo 11/9/2014, para analisar greve de funcionários e docentes da (Simesp) submeteram ao Ministério universidade, iniciada em maio, o Público Estadual (MPE) uma repre- o caso, e que em 7/7/2015 Co realizou-se sob pressão do pesso- sentação contrária à decisão. aprovou a recomendação al médico do HU. Enquanto a reu- Em setembro de 2014, poucos nião transcorria, no portão principal dias depois da votação do Co, o go- de que “o HU permaneça do IPT centenas de manifestantes vernador Geraldo Alckmin (PSDB) vinculado à USP” realizavam ato de protesto contra a recebeu no Palácio dos Bandeiran- proposta de desvinculação, e dentro tes uma numerosa comissão com-

95 Dezembro 2015 Revista Adusp A contundente demonstração de Produção e Financeiro do HU, do Palácio dos Bandeirantes de em 2013 as verbas do SUS respon- que não tem interesse em assumir diam por apenas 6% das receitas Diversas unidades de ensino a gestão dos hospitais levou a Rei- do órgão, cerca de R$ 20,7 mi- toria a enveredar pelo “plano B”: lhões. Uma queda expressiva em da USP que formam alunos deixou o HRAC à própria sorte relação a 2011, quando equivaliam no HU, como a Faculdade e partiu para o sucateamento do a 9% (R$ 22,2 milhões). Todo o de Ciências Farmacêuticas HU. O pagamento dos plantões restante (cerca de R$ 330 milhões, dos médicos foi cortado, estrangu- em 2013) era proveniente da USP. e Escola de Enfermagem, lando imediatamente o atendimen- A Revista Adusp procurou o têm apontado o papel to. E a implantação do Programa superintendente Waldyr Jorge de Incentivo à Demissão Voluntá- para que comentasse a evolução relevante do hospital e sua ria (PIDV) resultou, em abril de dessas “tratativas”. O Centro de contribuição, vista como 2015, na saída de 213 funcionários Comunicação do HU informou do HU (cerca de 15% do quadro), que o professor estava com a “fundamental” entre os quais 18 médicos. “agenda lotada” e pediu que as É fato que o financiamento do perguntas fossem enviadas por e- HU requer mais recursos dos go- mail. As perguntas seguiram por vernos estadual e municipal, pois escrito, mas a revista não teve A comissão foi composta pelos é praticamente o único hospital retorno. Sobre o assunto, a As- professores José Otavio Costa Auler público de porte numa região da sessoria de Imprensa da Secreta- Junior, diretor da FM; Maria Amé- capital, a do Butantã, com popula- ria de Estado da Saúde informou: lia de Campos Oliveira, diretora da ção de cerca de 600 mil habitantes, “Os atendimentos no HU são re- Escola de Enfermagem (EE); Carlos e que por sua posição geográfi- munerados com recursos fede- Gilberto Carlotti Júnior, diretor da ca termina por receber pacientes rais, do Ministério da Saúde. A Faculdade de Medicina de Ribeirão de cidades do entorno, tais como tabela SUS está congelada há 10 Preto (FMRP); Floriano Peixoto de Osasco, Taboão da Serra e diversas anos e não cobre os reais custos Azevedo Marques Neto, chefe do outras. Mas, ao invés de trabalhar dos procedimentos”. Departamento de Direito do Estado nesta direção, a Reitoria preferiu A desvinculação do HU não é da Faculdade de Direito (FD); Wal- apostar no desmanche. recomendada pela comissão que dyr Jorge, superintendente do HU; Uma busca por recursos junto a própria Reitoria criou, por meio pelo médico Gerson Salvador, vice- ao governo do Estado já vem sen- da Portaria GR 965, de 11 de se- diretor clínico e representante dos do empreendida pela direção do tembro de 2014, para analisar o funcionários do HU; e pelos acadê- hospital. Em ofício encaminhado caso. No dia 7 de julho de 2015, micos Ivo Jordão Guterman e Filipe em março de 2015 ao diretor da depois de nove meses de traba- Kiyoshi de Oliveira, representantes Faculdade de Medicina (FM) da lho, a comissão aprovou suas re- dos estudantes da FM e da EE. USP, José Otavio Costa Auler Ju- comendações. A primeira delas é A comissão recomendou ainda: nior, o superintendente do HU que “o HU permaneça vinculado “que se mantenham as característi- menciona “tratativas no sentido à Universidade de São Paulo”. A cas do HU como hospital secundá- de realizar uma nova contratua- segunda defende “que sua gover- rio, inserido na rede de atenção à lização junto à Secretaria Esta- nança continue a ser exercida pe- saúde”; “que se busque a repactu- dual da Saúde, visando adequar las unidades que lá atuam, com a ação do financiamento para o HU o repasse vindo do SUS [Sistema atual composição do seu Conse- com os gestores do SUS”; “que lhe Único de Saúde] de forma factí- lho Deliberativo em igualdade de seja delegada maior autonomia na vel”. De acordo com o Relatório condições”. gestão de seus recursos, com respon-

96 Revista Adusp Dezembro 2015 Daniel Garcia te, proporcionando a integralidade da assistência e do ensino”, diz o documento, que alerta ainda para o fato de que a desvinculação “irá despatrimoniar parte da USP” e que “o hospital perderá autonomia na diretriz de ensino”. Outra manifestação partiu da EE, que em março deste ano emitiu recomendações para a manutenção da excelência do ensino no hospital, ressaltando que “o diferencial posi- tivo do HU no processo de ensino e aprendizagem de alunos de bacha- relado e residência da EE deve-se José Pinhata Otoch, diretor clínico do HU, durante debate realizado em 22/8/14 no IF à adequação quanti-qualitativa de profissionais de enfermagem”. sabilização e transparência”; “que pela Congregação da Faculdade de Essa adequação vem sendo colo- se garantam as condições para seu Ciências Farmacêuticas (FCF). No cada em risco pela perda do pessoal funcionamento, compatíveis com a texto, o colegiado reitera a “parceria de enfermagem, de médicos e ou- qualidade de assistência, a seguran- extremamente bem-sucedida” com tros funcionários que aderiram ao ça de pacientes e trabalhadores e a o HU, reconhece a “contribuição PIDV. O número de médicos que se excelência do ensino”; “que sejam fundamental do HU na formação de desligaram depois da conclusão do aprimorados os processos gerenciais profissionais competentes” e rejeita PIDV, em abril, é ainda maior, diz para garantir a eficácia, a eficiên- “qualquer medida que comprometa Gerson Salvador: pelo menos outros cia e a efetividade de suas ações”; e esta atuação”. 12 pediram demissão, somando 30. “que se mantenha o atendimento à Vale lembrar que a preocupação comunidade uspiana no HU”. com a formação já havia sido mani- O encaminhamento oficial das re- festada em documento assinado por comendações da comissão à Reitoria seis profissionais chefes de departa- Em vistoria, o Cremesp ficou a cargo do diretor da FM. O mentos, divisões e serviços do HU e constatou a desativação objetivo é que elas subsidiem a dis- divulgado antes da reunião do Co de cussão a respeito da desvinculação agosto de 2014. O texto aponta que de 45 leitos e encontrou no Co. “Se houver um mínimo de co- o HU recebe anualmente 2.430 alu- 20 pacientes atendidos erência, a Universidade deve acatar nos entre graduandos e pós-gradu- o que recomendou a comissão consi- andos de sete unidades da USP: FM, em macas. As mudanças derada pelo reitor como competente EE, FCF, Faculdade de Saúde Públi- impostas pela Reitoria para estudar o assunto”, diz o mé- ca (FSP), Faculdade de Odontologia dico Gerson Salvador, vice-diretor (FO), Instituto de Psicologia (IP) e “ocasionaram grande clínico do HU e integrante da direto- Escola de Artes, Ciências e Humani- desorganização, colocando ria do Simesp. Outras manifestações dades (EACH). “Uma característica das mais diversas fontes vão na mes- diferencial do Hospital é possibilitar em risco a qualidade do ma direção. Uma delas foi a “Carta o ensino baseado numa abordagem atendimento realizado” Aberta aos Alunos, Docentes e Fun- multidisciplinar integrando todas as cionários da USP” emitida em maio áreas da saúde num mesmo ambien-

97 Dezembro 2015 Revista Adusp Daniel Garcia Também em abril de 2015, uma vistoria do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) detectou vários problemas no HU: desativação de pelo menos 45 lei- tos, dos quais 11 de terapia intensi- va ou semi-intensiva; mais de vinte pacientes que deveriam estar na ala de internação sendo atendidos em macas no Pronto-Socorro; doze am- bulatórios desativados parcialmen- te, entre eles os de pediatria, clínica cirúrgica e obstetrícia; e fechamen- to do ambulatório de ortopedia. O Cremesp destaca a excelente in- fraestrutura do HU e seu “grande número de profissionais titulados”, Debate realizado em 25/8/14 na FMUSP mas aponta que as mudanças im- postas pela Reitoria “ocasionaram em todo o hospital e afetou todo po, os médicos precisam escolher grande desorganização, colocando mundo”, completa uma servidora quem vão salvar, porque não dá em risco a qualidade do atendimen- da área administrativa. para entrar em duas cirurgias de to realizado”. O HU cumpre na rede o papel emergência ao mesmo tempo num “A situação é grave em relação de hospital secundário. Em 2013, plantão noturno”. A formação dos ao acolhimento, ao conforto do pa- realizou 282 mil atendimentos de alunos também é prejudicada: com ciente e ao risco ao qual ele está emergência, 13 mil internações e menor número de pacientes em te- exposto”, diz Gerson Salvador. “Os mais de 3.500 partos, e teve uma rapia intensiva, por exemplo, eles pacientes não têm tido um prejuízo média mensal de 12 mil consultas conhecem menos casos e fazem um maior por conta das equipes, que ambulatoriais e 400 cirurgias. Em número menor de procedimentos. têm se desdobrado para cuidar de- razão da redução do número de Para os próprios médicos fica difícil les”. Funcionários ouvidos pela Re- profissionais, as pessoas cujos casos acompanhar, supervisionar e dis- vista Adusp confirmam a opinião do são considerados mais leves e clas- cutir intercorrências nos diferentes médico. Em todas as áreas, desde sificados como de baixo risco são setores. as envolvidas diretamente com os orientadas a procurar as Unidades “É fundamental que se recompo- pacientes e familiares até as admi- Básicas de Saúde (UBAS) e os pos- nham os recursos humanos no HU nistrativas e de apoio, os relatos são tos da Assistência Médica Ambula- para que os médicos não se colo- de servidores sobrecarregados com torial (AMAs). quem em risco no exercício da pro- tarefas que antes do PIDV eram As situações de urgência e emer- fissão e para que os usuários tam- executadas por equipes maiores. gência continuam a ser atendidas. bém não sejam colocados em risco”, “Mesmo com a diminuição do nú- Entretanto, há problemas que me- afirma Salvador. O mesmo ponto de mero de leitos, a nossa impressão é recem destaque, como aponta Ger- vista é defendido pelo promotor Ar- que a quantidade de atendimentos son Salvador: “Nossa escala original thur Pinto Filho, da Promotoria de aumentou”, diz uma enfermeira. era de três cirurgiões por plantão Saúde Pública do MPE. A contra- “O serviço que um funcionário que no Pronto Socorro, e agora temos tação de pessoal, diz, “é fundamen- saiu fazia ficou acumulado na me- dois. Isso quer dizer que, se chega- tal”, porque no momento “o HU es- sa de outro. O impacto aconteceu rem dois baleados ao mesmo tem- tá trabalhando numa situação muito

98 Revista Adusp Dezembro 2015 Daniel Garcia aventadas pela direção é a possível criação, em Bauru, de uma Faculda- de de Medicina da USP, conforme ata de reunião ordinária do Conse- lho Deliberativo do Hospital reali- zada em maio de 2015. O curso de Medicina traria “maior valorização e impacto social”, de acordo com a ata. Os membros do colegiado reco- nhecem que, se realmente trilhado, o “caminho a percorrer é longo” e demandaria, entre outros aspectos, “envolvimento de vereadores, de- putados e prefeito e governos esta- dual e federal”, além de, no âmbito Passeata de protesto da comunidade em 7/4/15 da USP, “aprovação no Co”. O documento relata que vá- precária, com enorme prejuízo para ria foi contatada para encaminhar rios problemas do HRAC — co- a comunidade”. a ele várias questões sobre a pro- nhecido em Bauru como “Centri- posta de desvinculação do HU e nho” — foram apresentados por do HRAC, mas não deu retorno à representantes do órgão numa reportagem da Revista Adusp. reunião com o reitor M.A. Zago. Vários problemas do HRAC O Ministério Público Estadual De acordo com o texto, o reitor foram apresentados por sua (MPE) solicitou no final de julho “informou que não teria como de 2015 esclarecimentos sobre os ajudar” e “pediu para o Hospi- direção numa reunião com relatórios financeiros do Hospital tal procurasse (sic) a Secretaria o reitor da USP. Ata de maio Universitário (HU) encaminhados da Saúde”. Entre os problemas pela USP. O pedido faz parte dos apresentados estão a falta de mé- do Conselho Deliberativo do procedimentos relacionados ao in- dico infectologista, a necessidade HRAC registra que o reitor quérito civil aberto pelo MPE para da contratação de neurologista, apurar a real situação do hospital. a ausência de um oftalmologista “informou que não teria “Os números não nos pareceram e um cirurgião plástico na equi- como ajudar” e “pediu para claros. Não conseguimos entender pe de craniofacial e o reduzido na discriminação da USP o que é número de anestesiologistas na o Hospital procurasse (sic) a custeio e o que é despesa com re- equipe. Outras questões aponta- Secretaria da Saúde” cursos humanos”, diz o promotor das no documento se referem ao Arthur Pinto Filho, responsável plantão de disponibilidade, “pois pelo inquérito. O superintendente somente quatro profissionais da do HU, professor Waldyr Jorge, Cirurgia Plástica participam da Até o fechamento desta edição, reuniu-se com os técnicos da insti- escala de plantão”, e à inexistên- o reitor ainda não havia se mani- tuição para tirar as dúvidas suscita- cia de uma UTI para adultos. Em festado sobre o documento da co- das pelos documentos. 2013, o “Centrinho” realizou 61 missão que recomenda que o HU No HRAC, que se tornou uma mil atendimentos médicos, 89 mil permaneça vinculado à USP. A referência internacional na sua área atendimentos odontológicos e Assessoria de Imprensa da Reito- de atuação, uma das alternativas 8.500 cirurgias.

99 Dezembro 2015 Novos olhares Revista Adusp Pa l e o a n t r o p o l o g i a c o r r e r i s c o n a USP, a d v e r t e Wa l t e r Ne v e s Vinicius Crevilari Estagiário de Jornalismo da Adusp

Daniel Garcia

“Trabalhos de décadas não podem ser ignorados simplesmente porque temos uma politica de contratação [de docentes] que é absolutamente restritiva”, diz o professor Walter Neves, do Instituto de Biociências (IB-USP), ao falar do risco de interrupção das pesquisas do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos (LEEH). Além de criticar a Reitoria por ignorar apelos, o descobridor de “Luzia”, que se aposentará em 2017, receia que o Departamento de Genética e Biologia Evolutiva venha a contratar um geneticista para substituí-lo, e não um paleoantropólogo

100 Revista Adusp Dezembro 2015 Aconteceu em junho de 2015. O existência do laboratório, consegui- em que hoje se encontra a cida- professor Walter Neves, arqueólogo, mos formar um grupo de excelência de de Belo Horizonte, em Minas antropólogo e “pai” do mais anti- nessa área”, completa o docente. Gerais. Antes de receber seu atual go fóssil humano até hoje encontra- Essa descrição inicial já eviden- nome, dado por Neves, Luzia era do nas Américas resolveu divulgar cia a importância do LEEH para as conhecida como “Esqueleto da La- o manifesto intitulado “Estudos de pesquisas concernentes à história pa Vermelha IV”, que designa o lo- evolução humana na USP estão ame- da evolução humana. Porém, Neves cal onde seu crânio foi encontrado, açados de extinção”, com o objetivo vai aposentar-se em 2017 e não há no sítio arqueológico localizado nos de chamar a atenção da comunidade quem o substitua. “Não há a menor municípios mineiros de Lagoa San- acadêmica, da mídia e da sociedade possibilidade de que seja contrata- ta e Pedro Leopoldo (as duas cida- para o risco de interrupção das ati- do um docente para assumir o labo- des distam cerca de 40 quilômetros vidades do Laboratório de Estudos ratório”, diz ele no manifesto. Em de Belo Horizonte). Evolutivos Humanos (LEEH), per- primeiro lugar, porque devido à po- O apelido dado por Neves ao es- tencente ao Departamento de Ge- lítica de contenção de despesas, “a queleto é uma alusão ao fóssil Lucy, nética e Biologia Evolutiva do Insti- Reitoria não está provendo novas fêmea da espécie Australopithecus tuto de Biociências da Universidade vagas de docente”. Em segundo lu- afarensis achada na Etiópia em 1974 de São Paulo (IB-USP). Criado em gar, porque “mesmo que ela o faça, e que tem 3,5 milhões de anos. A 1994, o LEEH realiza pesquisas re- nada garante que o Departamento descoberta de Luzia em meados da ferentes ao povoamento humano da de Genética e Biologia Evolutiva década de 1970, fruto de uma missão América do Sul, tanto nos aspectos aloque essa vaga para a área da An- franco-brasileira liderada pela arque- culturais quanto biológicos, as quais tropologia Biológica”. óloga francesa Annette Laming-Em- compreendem o período final do Depois que a Revista Adusp to- peraire, reativou as indagações acer- Pleistoceno, época geológica na his- mou conhecimento do manifesto, ca das origens do homem americano. tória da Terra que começou há cerca marcamos um encontro com o pro- de 1,75 milhão de anos e terminou há fessor, para conhecer seu laborató- aproximadamente 10 mil anos. rio e entender melhor suas preocu- O LEEH é, segundo Neves, o pações. Ao adentrar uma pequena “Nosso departamento único laboratório da América do sala, localizada no segundo andar é de excelência, mas Sul que trabalha com paleoantro- do Departamento de Genética e pologia: o estudo da evolução hu- Biologia Evolutiva, custa acreditar é departamento mana por meio dos fósseis dos nos- que aquele acanhado espaço tenha majoritariamente de sos ancestrais. “O laboratório foi sido utilizado para estudo tão gran- criado por mim em 1994 e nesse dioso como o que Neves realizou Genética, especificamente intervalo de tempo nos tornamos com o crânio de Luzia, “primeira Humana. Então, os nossos uma referência mundial, sobretudo americana”, que se tornou o “ícone quanto aos estudos da origem do da pré-história brasileira”, segundo colegas têm uma dificuldade homem no continente americano. palavras do próprio pesquisador. muito grande de entender Nós estabelecemos o primeiro pro- De fisionomia semelhante às dos jeto paleoantropológico da Amé- primeiros australianos e africanos, nossa área de pesquisa, rica Latina no Velho Mundo [na Luzia era uma jovem mulher de exatamente porque a gente Jordânia]. Na América, a gente tra- aproximadamente vinte anos que, balha com uma temporalidade de entre 11.000 e 11.500 anos atrás, percola pelas Ciências cerca de 12 mil anos. Na Jordânia, fez parte de uma população de in- Humanas e pelas Biológicas” estamos trabalhando em uma esca- divíduos caçadores-coletores que la de 2 milhões de anos. Durante a viviam numa região próxima àquela

101 Dezembro 2015 Revista Adusp Neves estudou o fóssil de Luzia, da teoria clovista, e abriu caminho que fez parte da primeira população a um debate muito mais rico no que humana que teve acesso ao conti- cerne à questão do povoamento do nente americano e, após analisar o Novo Mundo. formato do crânio, o pesquisador “Sem querer, foi minha desco- percebeu que Luzia era um negróide berta mais midiática e me orgulho que possuía traços que remetem aos muito do fato de ela (Luzia) ter se atuais negros africanos e aborígenes tornado um ícone da pré-história australianos. Ou seja, sua morfolo- brasileira”. Neves aponta que, após gia era bem diversa da dos índígenas o advento de Luzia, curiosamente brasileiros, fazendo com que a equi- tem recebido muitos telefonemas pe de Neves propusesse, ao fim da denunciando a destruição de sítios década de 1980, que a América teria arqueológicos, em comparação aos sido ocupada por duas populações que recebia antes da descoberta: distintas. A população mais antiga “Veja o poder que ela teve de levan- da América teria atravessado o Es- tar, vamos chamar assim, a autoesti- treito de Bering (canal marítimo que ma da população brasileira, com re- liga o Alasca à Sibéria), há 14.000 ferência à sua pré-história. Acho que anos e, a partir do Alasca, chegou só por isso já teria valido a pena”. É ao Brasil. Só 3.000 anos depois um a prova de que Luzia se tornou o outro grupo chegou ao país: o dos símbolo da pré-história brasileira. ancestrais dos índígenas atuais. “Em várias partes do mundo, Os resultados dos estudos de Ne- o fato de se ter um ícone da pré- ves desafiaram o modelo predomi- história local ajudou muito na co- nante de povoamento do continente municação entre os cientistas e o americano, denominado Clovis First. público em geral. Por exemplo, na O nome deriva do sítio arqueológi- Alemanha tem o Neandertal. O ho- co Clóvis, localizado no estado do mem de Neandertal ajudou muito Novo México, nos Estados Unidos. a aproximar o público alemão da Tal corrente também acredita que a ciência que é feita na Alemanha. Na população mais antiga da América Etiópia, tem a Lucy e o fato de ela tenha acessado o continente ameri- existir ajudou muito a aproximar os cara sua produção e trata seus pes- cano pelo Estreito de Bering (acre- etíopes dos cientistas que estudam quisadores. Para Neves, não basta ser ditava-se que o caminho era um cor- isso por lá”, diz Neves. “Já a França substituído por um outro docente, redor de gelo, devido ao período possui o Homem de Cro-Magnon e se o departamento onde o docente Glacial); porém, afirma que apenas todo francês sabe o que é o Homem realiza suas pesquisas não concentra um único contingente populacional de Cro-Magnon, todas as crianças profissionais interdisciplinares. Se- humano, de tipo mongolóide (e não sabem quem foi o Homem de Cro- gundo seu manifesto, o Departamen- negróide, como atestam os estudos Magnon e isso ajuda nesse diálogo to de Genética e Biologia Evolutiva de Neves), tenha penetrado a Amé- entre o cientista e o povo. A Luzia é, na sua maioria, formado por gene- rica, há aproximadamente 12 mil preencheu esse espaço no Brasil”. ticistas que são refratários ao enten- anos. A teoria de Neves desafiou um De um lado, o congelamento das dimento de que a Paleoantropologia modelo explicativo apoiado na hege- contratações de docentes na USP. envolve diversos campos do conhe- monia norte-americana na arqueo- De outro lado, a forma antidialética cimento. “A minha área de trabalho logia e no dogma “inquebrantável” e unidisciplinar com que a USP en- está inserida em diversos tipos de

102 Revista Adusp Dezembro 2015 tamento é de excelência, mas é um O professor Luis Eduardo Soa- departamento majoritariamente de res Netto, chefe do Departamento Genética, especificamente de Genéti- de Genética e Biologia Evolutiva ca Humana. Então, os nossos colegas do IB, reconhece a importância das têm uma dificuldade muito grande pesquisas do professor Neves e do de entender nossa área de pesquisa, LEEH “no cenário nacional e inter- exatamente porque a gente percola nacional”, mas aponta normas ins- pelas Ciências Humanas e pelas Ci- titucionais que limitam as decisões ências Biológicas”, explica Neves à departamentais (a íntegra de suas Revista Adusp. declarações está na p. 106). As dificuldades impostas pela falta de interdisciplinaridade não são pon- tuais e sim estruturais. Neves argu- menta que o convívio com tal obstá- “Os maiores culo é permanente, apontando que paleoantropólogos do mundo o LEEH está sempre no final da fila no Departamento: “Aqui, no LEEH, mandaram mensagens informalmente dizemos que estamos em apoio, reconhecendo a divididos em duas grandes vertentes: a dos vivos e a dos mortos. Eu trabalho excelência do laboratório especificamente com os mortos, com e das suas coleções. restos arqueológicos e paleontológi- cos. E tem um outro colega, o profes- Essas mensagens foram sor Ruy [Sérgio Sereni] Murrietta, que enviadas para o reitor e trabalha com populações vivas. Mas, mesmo quando trabalhamos com po- para o vice-reitor. Se não se pulações vivas, fazemos sob uma pers- sensibilizarem com isso, então pectiva do darwinismo, da biologia eu me pergunto o que pode evolutiva. Então, pelo fato de a maior parte do colegas daqui [Departamen- sensibilizar a Administração to de Genética e Biologia Evolutiva] para a nossa situação” departamento. Às vezes está inserida ter uma formação unidisciplinar, prin- nos departamentos de Antropologia, cipalmente na área de genética, eles às vezes nos de Arqueologia, às vezes possuem uma certa dificuldade de en- nos de Biologia Evolutiva — como é tender o que a gente faz, e com isso O embate entre concepções dis- o caso aqui — e às vezes nos depar- a gente sempre está no final da fila e tintas não é novidade para o profes- tamentos de Anatomia. Justamente nunca somos uma área prioritária”. sor. Na década de 1980, trabalhan- por causa dessa interdisciplinaridade, Contudo, o próprio Neves pondera: do como arqueólogo no Instituto não existe uma ‘caselinha’ específica, “Isso não quer dizer que esses colegas de Pré-História da USP, local onde onde a gente se encaixe. Isso acon- não façam uma pesquisa de excelên- iniciou seus estudos, Neves se vol- tece no mundo, mas é especialmente cia — eles são excelentes geneticistas. tou contra a metodologia atrasa- agudo no Brasil — que faz todo o Mas nós sempre estamos no final da da então usada na arqueologia. Ao discurso da importância da interdis- fila. Nos últimos anos, houve concurso adotar um tratamento mais moder- ciplinaridade, mas na verdade não a para diversas áreas no departamento, no para as pesquisas da área, foi aplica corretamente. O nosso depar- menos na nossa”. sumariamente demitido da univer-

103 Dezembro 2015 Revista Adusp sidade em 1985. Anos de pesquisa que estão à frente vão se aposentar brir a ineficiência administrativa, de campo foram perdidos. Hoje, e não serão repostas. Tem outra porque mesmo quando a universi- mais experiente nesse tipo de con- coisa que me preocupa muito, algo dade tinha recursos, a parte admi- flito, Neves enxerga a realidade da que chamo de política da terra arra- nistrativa nunca funcionou bem. Eu universidade com olhares ainda sada: nós gastamos milhares de dó- gastava de seis a sete meses para mais céticos e realistas. Descrente lares para montar nosso laboratório comprar um cartucho de impresso- quanto a uma possível reversão no e temos uma infraestrutura na área ra. Na verdade, a administração da modo como a USP avalia, enxerga de paleoantropologia que nada de- universidade, em todos os níveis, é e fomenta a produção científica, as- ve aos outros centros do mundo. Aí extremamente amadora”. severa: “Houve um avanço no dis- eu me aposento, o laboratório deixa Neves destaca o apoio que vem curso, mas não houve progresso de de existir, vão entrar aqui, derrubar recebendo da comunidade científi- fato. As pessoas confundem muito tudo e perder esse alto investimen- ca internacional: “Esse manifesto é multidisciplinaridade com interdis- to feito na nossa infraestrutura. Se um pedido de socorro para o mun- ciplinaridade. Multidisciplinaridade o laboratório for desmantelado, no do todo. E os maiores especialistas é quando uma questão científica outro dia entra aqui uma equipe de da nossa área mandaram mensa- é ‘atacada’ por várias disciplinas, pedreiros, derrubam tudo e vai ser gens que me emocionaram muito, como se cada campo fizesse ‘sua construído um outro tipo de labora- dizendo que o nosso laboratório é, parte’ e depois se juntasse a outros, tório. Quando se abre um concurso, em referência à questão da origem como se eles não ‘conversassem’ uma das coisas que tem de ser leva- do homem na América, o grande la- antes da sobreposição. Interdiscipli- da em consideração é o quanto já boratório de excelência no mundo. naridade envolve o que eu chamo se investiu de dinheiro naquelas in- Os maiores paleoantropólogos do de sobreposição de campos teóri- fraestruturas. Nós podemos torrar mundo mandaram mensagens em cos, que é o nosso caso aqui. Então, dinheiro da Fapesp e eu acho isso apoio, reconhecendo a excelência a universidade até melhorou um absolutamente inaceitável”. do laboratório e das suas coleções. pouco nas questões de multidisci- Quando perguntado se no co- Recebemos mensagens do todo o plinaridade, mas infelizmente não tidiano acadêmico seu laboratório mundo e essas mensagens foram avançou no acolhimento daqueles tem se deparado com falta de re- enviadas para o reitor e para o vice- profissionais que realizam seus tra- cursos para seu devido funciona- reitor. Se eles não se sensibilizarem balhos de forma interdisciplinar”. mento, Neves afirma que, apesar com isso, então eu me pergunto o A crise que levou a USP a con- de M.A. Zago ter assumido a admi- que pode sensibilizar a administra- gelar as contratações de docentes e nistração com a universidade já em ção central da universidade para a a carência de uma visão interdisci- crise de financiamento, o LEEH nossa situação”. plinar não são os únicos temores de sofre com falta de materiais básicos Ele não consegue vislumbrar na- Neves em relação ao LEEH e à se- e por vezes tem de utilizar, para seu da de concreto surgindo das instân- quência de seus estudos. Para o do- custeio, recursos destinados à pes- cias burocráticas da USP e mostra cente, a “política de terra arrasada” quisa. “Aqui está faltando o básico. que, para mudar sua situação e ob- vigente na universidade pode não Às vezes não tem papel, às vezes ter perspectivas de um outro tipo de só fadar o LEEH ao sucateamento não tem cartucho de impressora, universidade, a comunidade univer- (e ao seu fim), como também ou- às vezes não tem cola. O que você sitária só pode confiar em suas pró- tros núcleos e centros de excelência faz? Você acaba pegando dinheiro prias forças e capacidade de mobili- na universidade, afirmando que seu da pesquisa e aplicando em coisas zação: “O pró-reitor de Pesquisa es- caso pode não ser o único: “Me que deveriam ser a contraparte da teve aqui nos visitando, mas infeliz- preocupa também se outros casos universidade”, observa. “Essa su- mente não trouxe nenhuma solução similares não estão acontecendo posta falta de recursos está sendo objetiva. O chefe do departamento na universidade, porque as pessoas usada como desculpa para enco- também se manifestou, dizendo que

104 Revista Adusp Dezembro 2015 Daniel Garcia é impotente em relação à si- de pesquisa, o ensino, a produ- tuação. Agora, do reitor e do ção de pesquisa científica e tec- vice-reitor, eu não tive nenhum nológica da USP; e incentivar feedback, não obstante as mais o fortalecimento e ampliação de 200 manifestações do mun- das ações de pesquisa dos pro- do inteiro em solidariedade gramas de pós-graduação stricto ao nosso trabalho. Posso não sensu (mestrado e doutorado)”, conseguir, mas vou lutar até a segundo a Capes (http://goo.gl/ última gota do meu sangue pa- SlcaMK). No acordo entre as ra fazer com que esse labora- instituições, há o comprometi- tório sobreviva a essa situação mento da USP de abrir vagas pela qual nós estamos passan- nas respectivas áreas de atua- do na universidade. Eu digo ção dos bolsistas, nos departa- sempre: não estou defendendo mentos das unidades que vie- uma causa pessoal, estou de- rem a receber os pesquisadores fendendo a universidade brasi- visitantes, permitindo a assimi- leira e isso não pode acontecer lação destes como docentes da na USP. Trabalhos de décadas universidade. não podem ser ignorados sim- Quanto à queixa do professor plesmente porque temos uma Neves de não ter partido da Pró- politica de contratação que é Reitoria de Pesquisa nenhuma absolutamente restritiva”. solução objetiva para a situação Pró-reitor José Eduardo Krieger do LEEH, Krieger defende-se quem conversara pessoalmente no afirmando que conheceu “um poten- LEEH. Krieger afirmou ser legíti- cial candidato, que é um dos alunos O pró-reitor de Pesquisa mo que todos os chefes de labora- dele [Neves] e que está na Alema- José Eduardo Krieger diz tório e pesquisadores estejam pre- nha”. “Citei, falei da proposta, falei ocupados com a continuidade de que ele deveria inclusive se antecipar que propôs uma solução suas pesquisas, durante a conjuntu- e já pedir um ‘jovem pesquisador Fa- ao professor Neves: um ra de crise na USP, e que “há várias pesp’. Então, talvez ele não tenha formas de lidar com isso”. prestado muita atenção, talvez ele “potencial candidato” ao Para ele, por conta do atual pe- estivesse um pouco distraído”. programa de bolsas Capes- ríodo de dificuldades financeiras, Perguntado sobre se garante que a USP começou a buscar alternati- o LEEH continuará funcionando, USP. “Citei, falei que deveria vas e uma delas, já anunciada ofi- após a aposentadoria do professor antecipar-se e pedir um cialmente, é um programa conjunto Neves, responde: “Garantir, eu não com a Coordenação de Aperfeiçoa- sei se alguém vai conseguir garantir. jovem pesquisador Fapesp” mento de Pessoal de Nível Superior Eu diria que com a experiência que (Capes). Trata-se de convênio fir- tenho e sabendo quais são os instru- mado em março de 2015, que tem mentos da universidade e como a vi- O pró-reitor de Pesquisa, profes- por objetivo trazer pesquisadores da acadêmica funciona, acho que tem sor José Eduardo Krieger, declarou e professores do exterior, por meio todas as chances. Se algo está funcio- à Revista Adusp que se surpreendeu da concessão de 60 bolsas, com du- nando bem, por que é que vai parar? ao receber por e-mail o manifes- ração de até 30 meses, objetivando Frequentemente, os bons pesquisa- to do professor Walter Neves, com “estimular a execução de projetos dores têm bons financiamentos”.

105 Dezembro 2015 Revista Adusp

De p a r t a m e n t o r e c o n h e c e c o n t r i bu i ç ã o d o LEEH e p r o m e t e p r e s e r v a r investigação a n t r o p o l ó g i c a

“O Departamento está ciente des- de, tendo tido contribuições extre- a chefia do departamento não pode te risco e da grande importância des- mamente relevantes para o conhe- interferir no processo, mesmo que tal te laboratório [LEEH] no cenário na- cimento da evolução humana, no- concurso seja aberto na área de An- cional e internacional. O Dr. Neves é tadamente no campo das origens tropologia Biológica. Ou seja, não há um docente e pesquisador de enorme do homem no continente america- garantias de que seja contratado um inserção acadêmica na Universidade, no. Suas descobertas em relação à docente com perfil ideal para dar con- tendo tido contribuições extrema- “Luzia”, com ampla repercussão no tinuidade aos trabalhos do Laborató- mente relevantes para o conhecimen- meio científico e na mídia, bem ates- rio de Estudos Evolutivos Humanos; to da evolução humana, notadamente tam suas qualidades como cientista. (3) é importante salientar que no campo das origens do homem no Apesar das inegáveis qualidades além do Dr. Neves, o Departamento continente americano”, reconhece o do Dr. Neves, e do grupo de pes- conta, no momento, com dois outros chefe do Departamento de Genética quisa por ele criado, existem regras docentes que atuam na área de An- e Biologia Evolutiva, professor Luis institucionais que restringem ações tropologia Biológica, sendo que uma Eduardo Soares Netto, ao comentar, por parte da chefia do departamen- docente recentemente contratada a pedido da Revista Adusp, o manifes- to. Entre elas: também trabalha num campo de to do professor Walter Neves. (1) o Chefe de Departamento exe- pesquisa com interface com evolu- “Apesar das inegáveis qualidades cuta políticas que são definidas pelos ção humana. No entanto, não há, de do Dr. Neves, e do grupo de pes- membros Conselho do Departamen- fato, garantias de que estes docentes quisa por ele criado, existem regras to. Em alguns momentos, as áreas deem continuidade aos trabalhos institucionais que restringem ações nas quais os concursos são abertos desenvolvidos pelo Dr. Neves; e por parte da chefia do departamen- são determinadas em fóruns mais (4) como é de conhecimento de to”, argumenta o chefe do departa- amplos, que contam com a partici- todos, tem havido restrições a no- mento. Confira a seguir, na íntegra, pação de vários, se não de todos os vas contratações na USP, o que faz a manifestação. docentes do Departamento, sempre com que a abertura de novas vagas “Esta chefia tomou conhecimen- com o aval final do Conselho. Em para a contratação de docentes seja to, apenas recentemente, da inten- discussões acadêmicas recentemente bastante difícil na atual conjuntura. ção do Dr. Neves em se aposentar. realizadas em reuniões do conselho, Mais uma vez, existe pouco espaço Este fato é, realmente, bastante pre- a importância da área de Antropo- de ação para a chefia do departa- ocupante, tendo em vista a possibili- logia Biológica foi reconhecida por mento nessa direção. dade de uma eventual descontinui- seus membros, tanto que, ficou deci- De qualquer modo, apesar das dade dos trabalhos de investigação dido que, em vagas futuras para do- limitações e dificuldades que se desenvolvidos pelo Laboratório de cente, esta seria uma área prioritária, apresentam o Departamento de Estudos Evolutivos Humanos (e das juntamente com a de Licenciatura, Genética e Biologia Evolutiva do valiosas coleções que ele abriga). também detectada como importante IB-USP continuará envidando es- O Departamento está ciente deste para o departamento, e que, atual- forços no sentido de preservar suas risco e da grande importância deste mente, também carece de docentes; linhas de investigação, particular- laboratório no cenário nacional e (2) por normas regimentais, o in- mente da Antropologia Biológica, internacional. O Dr. Neves é um gresso de docentes nas universida- que tantas contribuições importan- docente e pesquisador de enorme des públicas estaduais se dá através tes têm dado para o conhecimento inserção acadêmica na Universida- de concurso público. Assim sendo, da evolução de nossa espécie.”

106 Revista Adusp Novos olhares Dezembro 2015 Cr i s e d o j o r n a l i s m o l e v a ECA a a d a p t a r o c u r r í c u l o d o c u r s o Luciano Victor Barros Maluly Professor da ECA-USP

Daniel Garcia

Debates como o realizado pela Adusp no Auditório Lupe Cotrim (ECA, 2012) indicam vitalidade do jornalismo alternativo e independente representado por profissionais como Alberto Dines e Lúcio Flávio Pinto, frente ao jornalismo mainstream praticado sob o comando das famílias Marinho, Civita e outras

Memória Globo Daniel Garcia Fábio Rossi/Agência Globo

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O professor Dennis de Oliveira, chefe do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da USP, aborda as mudanças que desafiam os jornalistas e assinala o caráter singular do jornalismo, que possui estética, ética e metodologia próprias, as quais lhe conferem caráter transversal frente às diferentes plataformas de mídia. Estudioso do jornalismo alternativo e da cultura popular, Dennis critica a cômoda superficialidade do jornalismo mainstream praticado pelas empresas monopolistas

O professor Dennis de Oliveira de discriminação como o racismo, o DENNIS. Como princípios éti- é considerado um dos principais machismo e a homofobia, bem co- cos necessários na abordagem das estudiosos em comunicação, cultu- mo a outros comportamentos que pautas, das fontes e da linguagem ra popular e jornalismo alternativo desrespeitem os direitos humanos. jornalística. Racismo, machismo e do Brasil. Como pesquisador e do- Também rejeita o emprego de este- homofobia, para citar os principais cente, defende o diálogo como ar- reótipos no tratamento dos grupos procedimentos de desrespeito a di- ma contra o autoritarismo e o pre- subalternizados, como mulheres, versidade e aos direitos humanos conceito, tanto que, na sua tese de negros e homossexuais. se expressam em todas as relações livre-docência, discute o jornalismo O Curso de Comunicação Social cotidianas e o maior problema de por meio do pensamento do edu- da ECA, com habilitação em jorna- tudo isto é quando tais práticas são cador . Recentemente, lismo, vive uma reforma curricular, “naturalizadas” ou ainda são vistas assumiu a chefia do Departamen- com a finalidade de adaptação “à em uma dimensão menor que elas to de Jornalismo e Editoração da situação da profissão de jornalista, realmente têm. Por isto, o jorna- Escola de Comunicações e Artes que passa por uma crise”, segun- lismo, como atividade intimamen- (ECA-USP), onde leciona desde do Dennis. A seu ver, o jornalismo te ligada aos valores democráticos, 2003 e estudou na graduação e na transcende as linguagens e as mídias deve ter como eixo central nos seus pós-graduação. A nova função pro- e sobreviverá à crise, por ser “uma procedimentos o combate tenaz a põe desafios e discussões em torno modalidade singular de comunica- estas formas de discriminação bem do jornalismo, como a defesa dos ção”. Além disso, é preciso superar como a outros comportamentos de direitos humanos, as contestadas a mediocrização e buscar alternati- desrespeito aos direitos humanos. experiências pedagógicas, a conver- vas: “O coração do jornalismo é a Quanto a isto, o jornalismo deve ter gência digital, a carreira docente, reportagem e o lugar do jornalista é nitidamente um lado e não só co- a reforma curricular e a crise na na rua e não no gabinete”. mo posição, mas como prática. Por Grande Imprensa. exemplo, quando falamos na lin- Na conversa a seguir, Dennis Seus estudos (bem como sua ati- guagem, é puro machismo a recusa explica que o jornalismo, “como vidade política) tocam na questão dos jornalistas em chamar a atual atividade intimamente ligada aos dos direitos humanos. Dessa forma, mandatária do país de “presiden- valores democráticos”, deve ter co- como você aborda temas como a ta” como o movimento feminista mo “eixo central nos seus procedi- igualdade e a diversidade em suas reivindica para marcar a condição mentos” o combate tenaz a formas aulas de jornalismo? de mulher. Como é racismo tratar

108 Revista Adusp Dezembro 2015 Daniel Garcia DENNIS. Aos poucos isto está acontecendo, ainda há uma certa prevalência dos meios impressos, porém existem projetos interessan- tes como a Agência Universitária de Notícias (AUN), que nasceu como veículo impresso e hoje é digital, e vem incorporando a linguagem multimidiática. Entretanto, acre- dito que ainda é preciso implantar uma reflexão mais aprofundada so- bre essa linguagem na produção da informação, que implica estudar as possibilidades várias que as plata- formas digitais geram para a produ- ção e apropriação da informação. Professor Dennis de Oliveira Entretanto, sou da opinião que jor- estes grupos subalternizados — mu- Jardim São Remo foi agregando ou- nalismo transcende as linguagens e lheres, negros, homossexuais — a tros valores importantes para o fazer os suportes, ele tem particularida- partir de estereótipos. jornalístico, como a questão ética, o des que transversalizam todas estas compromisso político com as classes possibilidades, que são a sua ética, O curso de jornalismo da Uni- subalternizadas, a necessidade de se a sua metódica e a sua estética co- versidade de São Paulo possui uma ampliar o escopo da cobertura jor- municativa. disciplina em que os alunos elabo- nalística para além dos cinturões de ram um jornal destinado à Comu- ferro das esferas do poder político e Como motivar os colegas a en- nidade São Remo, em São Paulo. econômico, e de um fazer jornalísti- frentarem novos desafios na gradua- Como surgiu essa ideia e por que co fora dos gabinetes das redações. ção e na pós-graduação? essa experiência ainda é contestada O aluno de jornalismo da ECA DENNIS. Há uma dissociação por muito estudiosos da área? inicia o seu aprendizado em jor- entre o ensino, a pesquisa e a ex- DENNIS. A disciplina surgiu há nalismo com esta rica experiência, tensão. Isto tem criado professores 21 anos, mais especificamente em que demonstra que as ações exten- que consideram mais importante setembro de 1994 por iniciativa do sionistas da universidade são uma o ensino, outros que acham que professor Manuel Carlos Chaparro. dimensão especial de construção do é a pesquisa e outros, a extensão. Na ocasião, esse professor ministra- conhecimento e de aprendizado. A USP é uma universidade que se va uma disciplina chamada “Labora- notabiliza pela pesquisa, pela pro- tório de Texto”. A iniciativa de criar O Departamento de Jornalismo dução do conhecimento. Há vários um jornal comunitário, inicialmente e Editoração possui publicações tra- docentes envolvidos nisto. Porém, o um mural, deveu-se à constatação dicionais, como o Jornal do Cam- que falta é estabelecer pontes entre do professor de que o texto jorna- pus, o Notícias do Jardim São Re- esta produção de conhecimento, lístico depende do seu público. Daí mo, o Suplemento Claro! e a Revista que é notável, e as atividades de en- então que o desafio de escrever para Babel, esta agora apenas on-line. É sino e mesmo de extensão. um público com perfil radicalmente possível dizer que o Departamento A extensão não pode ser vis- distinto do aluno da USP seria um segue o atual quadro de migração ta apenas como eventos, uma vi- aprendizado interessante. Com o dos periódicos impressos (jornais e são pobre e superficial. É uma tempo, a experiência do Notícias do revistas) para a versão digital? dimensão de produção de conhe-

109 Dezembro 2015 Revista Adusp cimentos, difere da pesquisa por modalidade singular de comunica- danças que a sociedade, em espe- ter metodologias singulares. O que ção, transcende as mídias. Foi com cial a brasileira, vem passando. Por se necessita é uma discussão mais esta preocupação que foi elaborada isto, esta crise. Nos meus tempos aprofundada do projeto político- a nova proposta de grade curricu- de estudante de jornalismo, nos pedagógico da universidade e dos lar, que inclui determinadas práti- anos 1980, todos nós chegávamos seus cursos, e como isto se rever- cas jornalísticas ausentes no atual na aula com um jornal ou revista bera nas ações de ensino, pesquisa currículo, como o jornalismo orga- debaixo do braço. Hoje, raramente e extensão. Com isto, os professo- nizacional; ampliando o prazo para isto acontece. Determinados te- res ficariam menos desorientados a produção do Trabalho de Conclu- mas, como a homossexualidade, o quanto a estas exigências e com- são de Curso, que passa a ser de um racismo, a violência contra a mu- preenderiam melhor os seus papéis ano, sendo seis meses para elabora- lher, a vida nas favelas, são muito dentro dos departamentos, núcleos ção do projeto e seis para execução; mais retratados nas telenovelas do de pesquisa, unidades etc. regulamentando os estágios que que no jornalismo e isto é muito passam a ser permitidos somente complicado, porque telenovela é O Curso de Comunicação So- após o quinto semestre; instituindo ficção e não tem compromisso com cial, com habilitação em jornalismo, as atividades complementares para o interesse público e muito menos passa por uma reforma curricular. incentivar os alunos a participarem com a veracidade das informações. A nova proposta trará benefícios à de atividades de pesquisa e exten- Vejo uma mediocrização geral formação profissional ou será apenas são na universidade; e fomentando nas redações, comentários e aná- uma mudança nos horários e nos um campo de reflexão crítica sobre lises superficiais e movidos muito nomes de disciplinas? o jornalismo e não apenas (embora mais por dogmas do que por argu- DENNIS. A nova proposta isto continue) das mídias e da socie- mentações lógicas, reportagens pa- adapta o curso à situação da pro- dade em geral. drão “Boletim de Ocorrência” que fissão de jornalista, que passa por se satisfazem apenas com decla- uma crise. Esta crise do jornalismo Existe uma crise nas grandes em- rações de fontes dos “dois lados”, decorre do fato de que o jornalista presas de jornalismo, com o retorno tudo isto como produto de uma ro- perdeu o monopólio da novida- da demissão em massa de profissio- tineirização dos procedimentos de de e da produção da informação. nais da área. Como um dos poucos produção jornalística. O que é mais A informação circula em grande professores que trabalham com o grave é a arrogância de vários cole- quantidade independentemente da jornalismo popular e/ou alternati- gas, em especial os que comandam mediação jornalística. O que fazer vo, é possível dizer que existe uma as redações, que se recusam a ver diante disto? Definir as fronteiras relação deste momento com o mo- criticamente esta situação. do que é e não é informação jor- nopólio dos meios de comunicação Por outro lado, esta crise tem nalística. E tal modalidade de in- de massa no Brasil, em especial do motivado vários profissionais a formação pode circular em vários Grupo Globo? buscarem alternativas, seja em ter- suportes, desde as mídias tradicio- DENNIS. O que existe é uma mos de plataformas e linguagens, nais até as novas plataformas. crise de credibilidade das mídias seja em projetos midiáticos, o que O curso de jornalismo tem que hegemônicas. A sociedade hoje é muito positivo. Gosto muito de deixar de ser um curso para ensinar desconfia do jornalismo pratica- uma frase do Gay Talese que diz a fazer jornal impresso, on line, de do por estes grupos, que se refu- que prefere entrevistar os perdedo- rádio e de TV para ensinar jorna- giaram no comodismo dos seus res ou anônimos, pois os famosos e lismo — isto é, quais são as carac- monopólios, acreditam que fazer vencedores tem um discurso pronto terísticas centrais desta atividade? jornalismo é simplesmente seguir e previsível. O coração do jornalis- Nem tudo que temos nas mídias é determinados procedimentos téc- mo é a reportagem e o lugar do jor- jornalismo; e jornalismo, como uma nicos e não acompanharam as mu- nalista é na rua e não no gabinete.

110 Revista Adusp Ditadura militar Dezembro 2015

Violência d o r e g i m e intimidava d o c e n t e s , l e m b r a Emília Vi o t t i Pedro Estevam da Rocha Pomar Editor da Revista Adusp

Daniel Garcia

“Afora os atos de solidariedade individual, como a dos professores Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido de Mello e Souza, que compareceram às sessões da Auditoria Militar, e as manifestações de solidariedade de parte dos alunos e de alguns colegas, não houve reação”, relembra a historiadora Emília Viotti, professora da FFLCH-USP, a propósito do Inquérito Policial Militar que investigou suas atividades e de sua aposentadoria pelo Ato Institucional número 5 em 1969. Emília lecionou na Universidade de Yale de 1973 a 1999, quando voltou ao Brasil

111 Dezembro 2015 Revista Adusp A jovem professora Emília Viotti Adusp. Em 1969, depois de pro- mal iniciara sua carreira no curso de ferir aula inaugural na USP, inti- História da Faculdade de Filosofia, tulada A crise da Universidade, e Ciências e Letras da USP — hoje debater o assunto com o ministro Faculdade de Filosofia, Letras e Ci- Tarso Dutra, da Educação, em um ências Humanas (FFLCH) — quan- programa de TV, a senhora foi pre- do foi compulsoriamente aposentada sa, segundo os Inventários da UFS- por obra do Ato Institucional número Car. A senhora pode relembrar esse 5, o AI-5. Assim, foi no exterior, mais episódio e seus desdobramentos? precisamente na Universidade de Ya- EMÍLIA VIOTTI. Lembro- le, ao longo de vinte e cinco anos, me perfeitamente. Essas coisas que Emília tornou-se uma das mais nunca se esquecem. A sequência importantes historiadoras brasileiras. dos fatos é o único detalhe sobre o Quando ainda lecionava na FFL- qual não tenho certeza. De fato em CH, publicou Da Senzala à Colônia 1969 fui convidada pelo professor (1966). Depois viriam Da Monar- Eurípedes Simões de Paula para quia à República (Grijalbo, 1977), proferir a aula inaugural dos cursos A Abolição (Global, 1992) e por da Faculdade de Filosofia, Ciências fim Crowns of glory, tears of blood: e Letras da USP (tal como se inti- the Demerara slave rebellion of 1823 tulava então), na qualidade de mais (New York Oxford University Press, jovem livre docente. Pouco tempo 1997), publicado um ano depois no depois fui aposentada pelo gover- Brasil pela Companhia das Letras. no militar. Meu nome foi incluí- Além dessas obras, que se torna- do numa lista que continha vários ram referenciais, publicou diversos outros professores da Universida- capítulos de livros e artigos. de que também foram afastados. A convite da Revista Adusp, a pro- Nessa época o professor Michael fessora respondeu a algumas pergun- Hall, que estava no Brasil fazen- tas referentes ao período ditatorial, à do pesquisas para sua tese, ofere- para minha família, pois eu tinha na sua trajetória acadêmica nos Estados ceu-me a oportunidade de assumir ocasião três filhos, sendo dois com Unidos e a questões da historiografia. temporariamente o seu lugar na menos de onze anos, resolvi seguir Suas respostas, redigidas em estilo le- Universidade de Tulane em New o conselho de meu advogado e fui ve, conciso e cristalino, dão uma boa Orleans. Meu advogado, preocupa- dar um curso nos Estados Unidos.. ideia do que se passou na USP e no do, aconselhou-me a sair do Brasil Brasil naquele momento. por uns tempos, tendo em vista que Revista Adusp. Em abril de 1969 “A violência dos governantes o clima político repressivo tendia a a senhora e outros professores de intimidava a maioria”, relembra a se agravar. Caio Prado Junior fora renome foram aposentados com- historiadora e professora emérita preso, condenado a dois anos de pulsoriamente pelo general Costa da FFLCH e de Yale. “A USP não prisão, e eu estava respondendo a e Silva com base no AI-5. Qual foi foi responsável pela violência que um processo na Auditoria Militar. a reação do corpo docente frente a sofremos eu e minha família. Algu- As arbitrariedades e a violência au- esse gesto brutal do regime? mas pessoas da USP aproveitaram- mentavam dia a dia. Era impossí- EMÍLIA. Hoje é difícil para os se da situação política para eliminar vel prever o que poderia acontecer. jovens que não viveram aquela ex- concorrentes e desafetos. Regimes Apesar das dificuldades que essa periência compreender o compor- ditatoriais propiciam esses atos”. decisão de sair do país acarretava tamento das pessoas que viveram

112 Revista Adusp Dezembro 2015 sistir à sessão que tratava do meu e outros casos. Novamente fui ab- solvida. Assim terminou o caso. Ou melhor, deveria ter terminado. A aposentadoria no entanto foi manti- da e só anos mais tarde fui chamada a voltar ao meu cargo na Universi- dade. Nessa altura já estava ocupan- do a posição que ocupei até 1999 na Universidade de Yale e a situação no Brasil me parecia incerta. Re- solvi permanecer em Yale. Em 1993 tive um pequeno acidente vascular e passei a trabalhar meio período até 1999, quando me aposentei.

Revista Adusp. Uma vez apo- sentada, o que a senhora decidiu fazer da vida? Que rumos tomou a sua carreira profissional? Yale foi a primeira opção? EMÍLIA. Naquela época (refiro- me a 1969), recebi um convite do professor Joseh Love, da Univer- sidade de Urban-Champaign, para dar cursos de História da América Latina por um semestre naquela Universidade. Desta vez resolvi le- naquele período. A violência dos isso ocorreu? var meus fihos comigo. Separei-me governantes intimidava a maioria. EMÍLIA. De fato houve um do meu marido e aceitei o convite e Afora os atos de solidariedade in- IPM. Eu fui chamada a depor e vá- fui novamente para os Estados Uni- dividual, como a dos professores rios colegas também foram chama- dos. Ao final do semestre me candi- Sérgio Buarque de Holanda e An- dos. Nunca soube quem depusera datei a um cargo no Smith College tonio Candido de Mello e Souza, contra mim. Nem procurei saber. e fui aceita para dar cursos sobre a que compareceram às sessões da O mal já estava feito. De que vale- América Latina. No ano seguinte Auditoria Militar que investigavam ria buscar o responsável, se é que Yale estava contratando um profes- o meu caso, e as manifestações de houve um? Nunca procurei saber sor para dar cursos sobre a América solidariedade de parte dos alunos e quem estava envolvido nessa trama, Latina, O professor Richard Morse, de alguns colegas, não houve reação. ou qual o procedimento seguido. que já me conhecia do Brasil, era o Na verdade o processo instaurado responsável pelo setor e amigo do Revista Adusp. Antes da cassa- contra mim continuou depois da mi- professor Sérgio Buarque de Ho- ção a senhora já havia sido objeto nha aposentadoria. Fui absolvida na landa e de Antonio Candido. Eu de um Inquérito Policial Militar, primeira instância, mas o processo me candidatei e fui contratada. por denúncia de um colega. Quem continuou até a segunda instância. Desde 1973 até 1999 lecionei na era esse docente e em que contexto Em 1971 fui ao Rio de Janeiro as- Universidade de Yale. Resumido

113 Dezembro 2015 Revista Adusp Daniel Garcia em poucas palavras esse percurso pa- revisionista”, que envolve historia- forma adequada. Isso torna-se tan- rece fácil. O que fica oculto são as dores como Daniel Aarão Reis Fi- to mais urgente quanto a herança inúmeras dificuldades de aprender lho (UFF) e Marco Antonio Villa da Ditadura se faz sentir de forma uma nova língua com todas as nuan- (UFSCar). No texto “O Sol na Pe- evidente no Brasil de hoje. ces necessárias para dar uma boa aula, neira”, publicado na Revista Histó- as dificuldades que meus filhos encon- rica da Biblioteca Nacional (edição Revista Adusp. Coroas de Gló- traram em se acostumar com a língua 83, 2012), embora reconheça que ria, Lágrimas de Sangue trata da e as escolas, a falta dos amigos e ami- o país “conheceu cinco generais- escravidão na Guiana Inglesa, um gas que ficaram no Brasil, a sensação presidentes”, Aarão Reis insiste em pequeno país que os brasileiros de viver num exílio forçado longe de que a ditadura foi “civil-militar” e costumam ignorar apesar da pro- nossas tradições e de nossa cultura. chega a afirmar: “É inútil esconder ximidade. O que levou a senhora a participação de amplos segmentos a pesquisar um objeto tão original Revista Adusp. Em 1999 a se- da população no movimento que e ao mesmo tempo tão distante de nhora se tornou professora eméri- levou à instauração da ditadura em uma certa historiografia que ignora ta da FFLCH. Ouve alguma outra 1964. É como tapar o sol com a pe- nossos vizinhos? iniciativa da USP para reparar os neira. As Marchas da Família com EMÍLIA. Uma parte significativa danos causados pela aposentadoria Deus pela Liberdade mobilizaram do meu trabalho como historiado- compulsória em 1969? dezenas de milhões [sic] de pessoas, ra tratou de múltiplos aspectos da EMÍLIA. A USP não foi res- de todas as classes sociais, contra o escravidão e da Abolição no Bra- ponsável pela violência que sofre- governo João Goulart”. sil. No início o meu interesse era mos eu e minha família. Algumas Como a senhora enxerga essas estudar como fora possível fazer, pessoas da USP aproveitaram-se da visões revisionistas, que surgem sem provocar uma convulsão social, situação política para eliminar con- coincidentemente num momento uma reforma tão importante como correntes e desafetos. Não se pode histórico em que os familiares de a Abolição. Nada mais natural do esperar desses que reconheçam o mortos e desaparecidos políticos (e que analisar esse processo no Brasil mal que fizeram. Regimes ditato- a maioria dos ex-presos políticos, e e compará-lo com outras partes do riais propiciam esses atos. dos exilados e perseguidos) tentam mundo onde a escravidão tivera um repor a verdade e a memória, e pro- papel semelhante. Quando passei a Revista Adusp. O então reitor curam fazer justiça, ao passo que os lecionar em Yale entrei em contato Jacques Marcovitch a nomeou, em generais e o governo insistem em com a documentação referente à re- 2000, para o Conselho Consultivo proteger a impunidade dos agentes volta de escravos em Demerara. A da USP. Hoje não se fala mais desse da Ditadura Militar? riqueza de informações me atraiu. Conselho, é como se nunca tivesse EMÍLIA. Acho lamentável, mas Desde logo reconheci que esta me existido. O que a senhora pode nos compreensível, que os setores res- permitiria escrever a história a par- dizer dessa experiência? ponsáveis pela repressão tentem tir de múltiplos pontos de vista: um EMÍLIA. Foi uma experiência ocultar a realidade. O mais difícil é tipo de abordagem que sempre me muito fecunda; o convívio com co- entender que liberais façam o mes- atraíra desde meus primeiros anos legas interessados no aperfeiçoa- mo. Quem como eu participou di- como aluna do curso de história, mento do ensino e da convivência retamente do sucedido e foi vítima quando eu me perguntava por que universitária. Lamento que não te- das arbitrariedades cometidas terá os romances frequentemente da- nham dado continuidade a esse em- inevitavelmente uma visão contrá- vam uma visão mais concreta do preendimento. ria. A discussão desse assunto pre- passado do que os próprios livros cisa não de um depoimento pessoal, de história. Coroas de Glória, Lá- Revista Adusp. Voltando à Di- mas de uma análise ampla que só grimas de Sangue resultou dessas tadura Militar: hoje há uma “onda um simpósio poderia examinar de reflexões.

114 Revista Adusp Ponto de vista Dezembro 2015 Revisitando a s alternativas d e r e n d a b á s i c a Francisco Nóbrega Professor titular aposentado do ICB-USP e presidente do Conselho Municipal da Renda Básica de Cidadania de Santo Antonio do Pinhal (SP)

115 Dezembro 2015 Revista Adusp

A renda básica é um direito de qualquer pessoa que não tenha renda suficiente, qualquer que seja a razão. A crescente eficiência em produção e os grandes avanços na microeletrônica, inteligência artificial e robótica estão causando uma eliminação maciça de postos de trabalho. Pesquisas revelam que o avanço contínuo em produtividade foi acompanhado, nas duas últimas décadas, por uma redução substancial nas oportunidades de trabalho e pela extinção de ocupações

O debate e as manifestações em aceitam o experimento do Alasca favor da idéia da renda básica têm como exemplo de renda básica, pois ganhado importância e alcance glo- paga um dividendo anual e variável, É dever civilizado prover bal. No Brasil nos mantemos em algo incompatível com um atendi- uma renda mensal a quem alerta devido ao sucesso de polí- mento efetivo daqueles em preca- ticas de transferência de renda (o riedade econômica. não disponha de recursos Programa Bolsa Família) e também Este texto é um resumo de mi- para atender às suas devido à Lei 10.835 de 2004, que nha visão atual sobre como fazer permanece letra morta, mas indica com que essa utopia se transforme necessidades básicas. O que a renda básica incondicional numa “protopia”, termo inventado modelo clássico de renda e universal deve ser instaurada no por Kevin Kelly e que designa um Brasil, “por etapas”. Muitos veem “avanço humanitário gradual”, ou básica é injusto, porém, ao o Bolsa Família como uma dessas seja: uma utopia viável. dar dinheiro também aos que etapas. Tenho acompanhado esta O campo da renda básica é di- ideia há mais de cinco anos, jun- verso e podemos distinguir duas estão bem economicamente tamente com outros ativistas, com correntes distintas e extremas. os quais tentamos criar um projeto Um grupo vê a renda básica piloto numa pequena cidade, San- como maneira de aumentar a in- to Antonio do Pinhal (São Paulo). fluência do governo e “eliminar” Essas visões extremas revelam O projeto foi concebido pelo ex- o trabalho, que enxergam como uma característica importante da senador Eduardo Suplicy segundo uma forma de escravidão e imagi- proposta: ela atrai pessoas ao lon- o modelo do Fundo Permanente do nam manutenção integral dos ser- go de todo o espectro político, algo Alasca (EUA). viços sociais e de decisões centra- que certamente deve ajudar sua Um recurso considerável precisa lizadas, além do pagamento men- implementação futura. No Brasil, ser acumulado para que os rendi- sal incondicional e independente diria que o grande divulgador da mentos sejam suficientes para pa- de trabalho. proposta, o ex-senador Eduardo gar aos cidadãos a renda básica. O Outro considera a renda básica Suplicy, se inclinaria mais para projeto permanece na estaca zero, uma ferramenta para reduzir forte- a primeira visão1­, mas não tanto pois os doadores imaginados en- mente a atuação do governo, substi- quanto Josué Pereira da Silva, au- tre indivíduos, empresas e governos tuindo vários programas sociais pe- tor de Por que Renda Básica?2. A não apareceram. Ademais, entre lo pagamento mensal independente visão mais chegada ao neolibera- os defensores da idéia, muitos não de trabalho. lismo encontra defensores impor-

116 Revista Adusp Dezembro 2015 tantes como Charles Murray3, um Brynjolfsson e McFee4 demons- libertário americano. traram que o avanço contínuo em Existe outra coincidência sur- produtividade foi acompanhado, nas Vale notar o sucesso da preendente em todas as modalida- duas últimas décadas, por uma re- des de renda básica divulgadas por dução substancial nas oportunidades experiência feita em Londres, 5 escrito ou em vídeo: a apresentação de trabalho. Frey e Osborne publi- quando foi dada quantia unânime do que vou denominar caram estudo muito interessante, en- “modelo clássico” — a transferên- volvendo 702 ocupações, calculando substancial a cada um de 13 cia mensal feita para todos: ricos, aquelas que estão mais ameaçadas de moradores de rua crônicos; classe média, pobres e desempre- extinção em função das tendências gados. Raramente encontro pes- mencionadas. Os autores estimam ou do experimento recente soas, entre os defensores da renda que os EUA tem cerca de 47% das em Utah providenciando básica, que contestem a justiça de ocupações estudadas em risco de ex- beneficiar aqueles que têm recursos tinção dentro de uma a duas décadas. casas para indivíduos sem e estão empregados. Essa visão, a Também devemos considerar que habitação; ou no Quênia meu ver, contrasta com o núcleo da existe uma barreira psicológica im- proposta que é eliminar a pobreza portante derivada da noção enrai- e Uganda (GiveDirectly) assim como o resultado mais malig- zada que vincula renda ao trabalho. no dos programas de ajuda social: a As pessoas terão que superar essa “armadilha da pobreza” ou arma- percepção como fizemos no passado dilha da dependência. Esta reside recente com a escravidão, a tortura O modelo clássico possivelmente no fato de punirmos o sucesso eco- e os direitos de mulheres e minorias, nasceu de nosso preconceito relati- nômico, removendo os benefícios, finalmente aceitando a solidarieda- vo à renda sem trabalho. Podemos assim que o indivíduo consegue um de no campo econômico. É dever imaginar que ele veio apaziguar os emprego ou se torna um empreen- civilizado prover uma renda mensal bem sucedidos, aqueles mais indig- dedor. A armadilha da dependência a todos sem recursos para atender nados com a idéia de dar dinheiro faz com que o beneficiário tema a às necessidades básicas. No entan- “à custa de nada”. O modelo clás- perda do benefício e o consequen- to considero o modelo clássico de sico talvez pretenda “comprar” a te enfrentamento da competição renda básica injusto ao distribuir di- adesão dessa classe fazendo-os tam- externa, não se empregando nem nheiro também aos que estão bem bém beneficiários. No entanto de- empreendendo. economicamente. Essa idéia seria vemos dar sim “dinheiro por nada”, A renda básica é um direito de aceitável se imaginarmos uma popu- porque as ricas sociedades de hoje qualquer pessoa que não tenha ren- lação que esteja iniciando sua vida devem assumir a responsabilidade da suficiente, qualquer que seja a com o mesmo nível de renda. Neste pela deficiência de oportunidades razão. A justificativa lógica repousa caso o benefício seria igual para to- de emprego. Dando dinheiro aos no fato de a sociedade ter sido inca- dos. Mas todos os países registram necessitados e deixando-os escolher paz de oferecer a todos oportunida- séculos de desigualdade econômica. o que fazer com ele foi demonstra- des de emprego no setor público ou Na Suíça um de cada treze cidadãos do ser não apenas justo, mas tam- privado assim como possibilidades precisa de ajuda do Estado. No Bra- bém economicamente eficiente. para empreender. A crescente efi- sil cerca de um quarto da população Além de experimentos como ciência em produção e os grandes é pobre e se encontra amparado pe- aquele da Índia6, vale notar o su- avanços na microeletrônica, inte- lo Bolsa Família. O custo de benefi- cesso da experiência feita em Lon- ligência artificial e robótica estão ciar a todos vai representar uma bar- dres7 quando foi dada uma quan- causando uma eliminação maciça reira formidável para a aprovação tia substancial a cada um de treze de postos de trabalho. dessa política. moradores de rua crônicos; ou do

117 Dezembro 2015 Revista Adusp experimento recente em Utah8 pro- o beneficiário progrida economica- tura também permitem a criação de videnciando casas para indivíduos mente. Caso ainda não tenha renda muitos postos de trabalho. Em ter- sem habitação. Os resultados ex- a pessoa ou família poderá solicitar mos de viabilidade econômica, esta celentes custaram menos do que a a permanência no programa por proposta busca a eliminação da ar- cidade gastava para cuidar do pro- mais um período. Portanto quem madilha da dependência ao cortar as blema em ambos casos. Também o estiver necessitado ou cair em ne- condicionalidades oficialmente por sucesso da atuação da GiveDirectly cessidade econômica será ajudado. alguns anos. O gasto será algo supe- no Quênia e Uganda ressaltam o A quantia paga deve ser suficien- rior ao atual com o programa Bolsa acerto de focar nos pobres incondi- te para as necessidades básicas da Família pois indivíduos também po- cionalmente. Muitos outros são co- família ou indivíduo. Aqueles que deriam se inscrever no programa. A nhecidos, todos demolindo receios. desejarem melhorar de vida irão despesa será muito inferior àquela A rede de proteção social exis- buscar emprego em tempo parcial exigida pelo “modelo clássico”, que tente em todos os países deve ser ou integral, ou iniciar negócio pró- seria universal. Os valores bastante usada. A primeira medida entre nós prio. A renda básica ou mínima de- modestos do Bolsa Família atual de- seria remover as condicionalidades ve ser acompanhada, idealmente, de vem ser reajustados paulatinamente. ligadas à Bolsa Família e auxílio de- instalações comunitárias de supor- Reduzir a incerteza econômica semprego. A burocracia deve anali- te e educação onde for necessário. resultará em muitos benefícios pa- sar as solicitações dos necessitados, Paralelamente, algumas sugestões ra a sociedade: haverá significativo famílias e indivíduos sem renda. apresentadas no estudo “Get Ame- impacto positivo na saúde mental Após ingressarem no programa, os rica Working!”9 poderiam ser imple- dos beneficiários ao abater a ansie- beneficiários terão bastante tempo mentadas no sentido de fazer altera- dade causada pela incerteza; a so- (alguns anos) até que a ajuda incon- ções na estrutura de impostos para ciedade estará mais segura; e, mais dicional seja encerrada. Este longo reduzir a despesa das empresas com importante, a armadilha da pobreza intervalo vai anular a “armadilha os empregados, o que aumentaria seria desativada, liberando a ener- da dependência” ao aumentar sig- a oferta de postos de trabalho. Am- gia criativa de homens e mulheres. nificativamente o tempo para que pliação e manutenção de infraestru- [email protected]

Nota do Autor. As opiniões aqui exaradas são responsabilidade exclusiva do Autor, não sendo posição oficial do Conselho acima mencionado. Um texto semelhante, em inglês, está sendo submetido à sessão de opiniões do Basic Income Earth Network (BIEN). Agradeço a Marina P. Nóbrega por suas sugestões.

Nota de rodapé 1- Renda de Cidadania, Eduardo M. Suplicy. Cortez Editora, 2013. 2- Por que Renda Básica?, Josué Pereira da Silva. Annablume, 2014. 3- In Our Hands - a plan to replace the welfare state, Charles Murray, The AEI Press, 2006. 4- Race Against the Machine - how the digital revolution is accelerating innovation, driving productivity, and irreversibly transforming employment and the economy. Erik Brynjolfsson and Andrew McFee, 2011, Digital Frontier Press, Mass, USA. 5- The future of employment: how susceptible are jobs to computerization?, Carl Benedikt Frey and Michael A. Osborne, 2013, http://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/The_Future_of_Employment.pdf 6- Basic Income: a Transformative Policy for India. Sarath Davala, Renana Jhabvala, Soumya Kapoor Mehta, and Guy Standing. New Delhi: Bloomsbury Publishing India, December 2014. 7- Sem-teto de Londres: http://www.washingtonpost.com/opinions/free-money-might-be-the-best-way-to-end- poverty/2013/12/29/679c8344-5ec8-11e3-95c2-13623eb2b0e1_story.html 8- O experimento de Utah: http://www.newyorker.com/magazine/2014/09/22/home-free 9- Get America Working!: http://www.getamericaworking.org

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