Revista Brasil. Bot., V.33, n.2, p.301-318, abr.-jun. 2010

Morfoanatomia da fl or de cinco espécies de Galipea Aubl. e seu signifi cado na evolução de fl ores tubulosas entre as neotropicais JOSÉ RUBENS PIRANI1,2, JULIANA HANNA LEITE EL OTTRA1 e NANUZA LUIZA DE MENEZES1

(recebido: 11 de março de 2009; aceito: 25 de março de 2010)

ABSTRACT – (Floral morphology and anatomy of fi ve species of Galipea Aubl. and its bearing on the evolution of tubular fl owers in Neotropical Rutaceae). Most genera of the neotropical subtribe Galipeinae (tribe Galipeeae, ) have tubular fl owers with several forms and degrees of fusion between parts. The fact that Galipea and other genera in the subtribe bear only two fertile anthers plus fi ve or more staminodes is also intriguing, since generally the Galipeeae exhibit isostemony. To elucidate the anatomic condition of these traits, and to establish an accurate coding scheme for characters state in phylogenetic studies, a morphoanatomical study of the fl ower of fi ve species of Galipea was carried out. Using cross-sections of pickled material, the patterns of vascularization, position, and union of the fl ower segments were investigated. Noteworthy results are: 1) a true fl oral tube is formed in the basal third part of the fl ower through the connation of fi laments and the adnation of this staminal tube to the petals; 2) the petals are distally coherent to each other and adherent to the fi laments by means of capillinection (close intertwining of trichomes) – a case of pseudosympetaly; 3) from the usually fi ve linear structures referred to as staminodes, only the three external ones are homologous to fully sterilized stamens, while the other ones arise as branches from the petals; 4) carpels are congenitally connate axially and laterally, except for a small area close to the top of the ovary where they are postgenitally united; 5) the vascularization of the disc suggests a receptacular origin. The implications of these data for the evolution of tubular fl owers in Galipea and related groups are discussed. Key words - fl oral anatomy, pseudosympetaly, , staminodes, tubular fl owers RESUMO – (Morfoanatomia da fl or de cinco espécies de Galipea Aubl. e seu signifi cado na evolução de fl ores tubulosas entre as Rutaceae neotropicais). A maioria dos gêneros da subtribo neotropical Galipeinae (tribo Galipeeae, Rutoideae) tem fl ores tubulosas, com várias formas e graus de conação e adnação. Galipea e outros gêneros na subtribo apresentam apenas duas anteras férteis mais cinco ou mais estaminódios, o que é intrigante porque na tribo predominam fl ores pentâmeras isostêmones. Visando elucidar a condição anatômica dessas características e estabelecer estados acurados para caracteres em análises fi logenéticas, um estudo morfoanatômico de fl ores de cinco espécies de Galipea foi realizado, buscando os padrões de vascularização, posição, e união dos segmentos da fl or. Destacam-se os resultados: 1) um tubo fl oral genuíno se forma no terço basal da fl or por conação dos fi letes e adnação desse tubo estaminal às pétalas; 2) as pétalas são distalmente coerentes umas às outras e aderentes aos fi letes por meio de entrelaçamento de tricomas densos – um caso de pseudossimpetalia; 3) dentre as cinco (às vezes seis) estruturas tratadas como estaminódios, apenas as três externas são de fato homólogas a estames esterilizados, as demais surgem como ramifi cações adaxiais das pétalas; 4) os carpelos são peltados, congenitalmente conatos axial e lateralmente da base do ovário até o nível das placentas, e no estilete e estigma; na zona mediana e superior do ovário eles são unidos apenas posgenitalmente, com a epiderme diferenciada de carpelos contíguos e suturas evidentes na região ventral de cada carpelo; 5) a vascularização do disco sugere origem receptacular. As implicações desses dados para o entendimento da evolução das fl ores tubulosas em Galipea e grupos relacionados são discutidas. Palavras-chave - anatomia fl oral, estaminódios, fl ores tubulosas, pseudossimpetalia, Sapindales

Introdução os trabalhos de Tillson & Bamford (1938) e de Ford (1942), sobre espécies do grupo das frutas cítricas Na família Rutaceae, existe uma grande diversidade (subfamília Aurantioideae); de Hartl (1957) sobre Correa de tipos fl orais, e a investigação morfológica e anatômica Andrews; de Gut (1966) sobre eixo fl oral e gineceu de em vários gêneros tem revelado aspectos importantes treze gêneros das subfamílias Rutoideae, Toddaliodeae para a biologia, taxonomia, fi logenia e evolução. e Aurantioideae; de Tilak & Nene (1976, 1978), sobre a Versando sobre anatomia fl oral, podem ser mencionados origem do disco e vascularização fl oral em dez espécies asiáticas da família; de Yamasaki (1988) sobre espécies asiáticas de Zanthoxylum L.; de Ramp (1988) sobre o 1. Universidade de São Paulo, Instituto de Biociências, Departamento gineceu de 57 espécies de 30 gêneros da família. de Botânica, Rua do Matão, 277, 05508-090 São Paulo, SP, Brasil. Com espécies brasileiras, destacam-se os trabalhos 2. Autor para correspondência: [email protected] de Gut (1966), que trata do gineceu de Pilocarpus 302 J. R. Pirani et al.: Morfoanatomia de fl ores de Galipea (Rutaceae) pennatifolius Lem., de Marquete (1981), descrevendo empregam os termos “coerentes” e “aderentes” para a a anatomia e vascularização da fl or de Pilocarpus condição de pétalas ou fi letes unidos apenas por forte organensis Occhioni & Rizzini (= P. paucifl orus entrelaçamento de tricomas, seja entre peças de um A. St.-Hil.), o de Ramp (1988), que inclui dados da mesmo ciclo (coerentes), seja entre os dois ciclos citados anatomia do gineceu de Erythrochiton brasiliensis Nees (aderentes). Também o fato de Galipea Aubl. e alguns & Mart., o de Beltrati (1991), sobre semente e plântula outros gêneros de Galipeinae apresentarem duas anteras de Esenbeckia febrifuga (A. St.-Hil.) A. Juss. ex Mart., e férteis e cinco (ou mais) estaminódios é intrigante, devido os artigos de Souza et al. (2003, 2004) sobre a anatomia à condição básica na subtribo ser a isostemonia. No fl oral de Pilocarpus pennatifolius Lem. e de Metrodorea entanto, faltam estudos morfoanatômicos detalhados que nigra A. St.-Hil., respectivamente. Porém, esses e outros demonstrem claramente a natureza ou condição desses poucos estudos morfoanatômicos existentes sobre os atributos todos, sem dúvida relevantes na evolução dos gêneros neotropicais da família ainda não permitem gêneros e espécies e em uso corrente na taxonomia da uma codifi cação adequada de caracteres para análises subtribo. Considere-se ainda a necessidade de detecção cladísticas e limitam fortemente a formulação de clara de homologias e de codifi cação adequada desses hipóteses robustas sobre a evolução no grupo. caracteres na implementação das análises cladísticas, Entre os tipos fl orais mais instigantes na família, paradigmáticas na Sistemática moderna. estão as fl ores tubulosas, conhecidas em diversos gêneros Assim, o presente trabalho tem por objetivo a da subfamília Rutoideae, como Correa (único gênero da investigação da morfologia e anatomia da fl or de subtribo Correinae, tribo Boronieae) e na maioria dos espécies de Galipea, gênero neotropical fl orestal, gêneros da subtribo Galipeinae, tribo Galipeeae – nomes com cerca de treze espécies sulamericanas e duas na propostos em Kallunki & Pirani (1998) em substituição América Central (Pirani & Kallunki 2007). Foi dada aos nomes ilegítimos Cuspariinae e Cusparieae do sistema ênfase na expressão de conação/coerência ou adnação/ de classifi cação de Engler (1931). As fl ores tubulosas aderência das peças fl orais e na elucidação da natureza nesses táxons têm formatos e simetrias variadas, que dos estaminódios. Como existem poucos estudos sobre certamente têm relação com os sistemas de polinização anatomia de órgãos reprodutivos na família (Sousa et al. e com a evolução dos diversos gêneros e espécies do 2005), objetiva-se também com esse estudo contribuir grupo. para o conhecimento sobre a estrutura anatômica das A fl or tubulosa da espécie australiana Correa fl ores em Galipeinae. Dados mais precisos sobre a speciosa Donn ex Andrews (tribo Boronieae, Rutoideae), anatomia fl oral de representantes desse grupo, junto embora aparentemente gamopétala, foi reportada por com outros caracteres já bem estabelecidos, permitirão Troll (1937) e posteriormente com maior detalhe por uma reavaliação de sua importância na sistemática de Hartl (1957) como um caso de falsa simpetalia. A mera Galipeinae, uma verifi cação de sua evolução sobre a análise morfológica dessa fl or mostra efetivamente fi logenia disponível para o grupo (Groppo et al. 2008), que as pétalas são livres na base, e cortes anatômicos e poderão auxiliar no esclarecimento de algumas das transversais através da região tubular da corola revelam relações evolutivas intra-familiares de Rutaceae. que na sutura entre pétalas adjacentes persistem duas camadas de epiderme e ainda uma camada de cutícula Material e métodos entre elas, o que não caracteriza uma conação verdadeira (Hartl 1957, Weberling 1989). Nos vários gêneros de Exemplares fl oridos de cinco espécies de Galipea foram Galipeinae, grupo exclusivamente neotropical, são obtidos de populações naturais encontradas em fl orestas da descritas diversas formas e extensões de união entre Bahia (Galipea laxifl ora Engl.), do Espírito Santo (Galipea partes das fl ores, notadamente corolas simpétalas ou carinata Pirani), de Minas Gerais (Galipea ciliata Taub. e aparentemente simpétalas (seja parcialmente ou em Galipea jasminifl ora (A. St.-Hil.) Engl.) e da Costa Rica longa extensão), fi letes mais ou menos unidos entre si (Galipea dasysperma Gómez-Laur. & Q. Jiménez). Parte do material foi usada na preparação de exsicatas e fl ores e com o tubo da corola e carpelos com variados graus de em diversos estádios de desenvolvimento foram fi xadas em união entre si (e.g. Engler 1874, 1931, Kallunki 1992, FAA em etanol 50% (Johansen 1940) para estudo anatômico. 1998, Kallunki & Pirani 1998, Pirani 1999, 2002, 2004, Lâminas permanentes foram preparadas com botões Pirani & Kallunki 2007). Estes dois últimos autores jovens e em pré-antese, previamente desidratados em série têm utilizado os termos conação e adnação na acepção butanólica terciária, emblocados em parafi na e seccionados usual, i.e. referindo-se à união entre peças de um mesmo transversalmente ao micrótomo rotativo, segundo técnica ciclo ou entre peças de ciclos diferentes. Por outro lado, descrita por Johansen (1940 apud Kraus & Arduin 1997). Revista Brasil. Bot., V.33, n.2, p.301-318, abr.-jun. 2010 303

A coloração dos cortes seriados foi feita com azul de Astra 1% creme, tem porção tubulosa longa e estreita, com cinco e safranina 1% em etanol 50% (Bukatsch 1972 apud Kraus & lobos de prefl oração coclear-descendente, expandidos no Arduin 1997). A montagem das lâminas histológicas foi feita ápice. Estes são ligeiramente desiguais e sua disposição com Bálsamo do Canadá. Diagramas da morfologia das fl ores na antese conferem simetria levemente bilabiada e como vista nos cortes anatômicos analisados, mostrando zigomorfa à fl or, visto que um (ou raro dois) deles fi ca(m) apenas os contornos das peças e sua vascularização, como os em posição vertical – o lobo mais interno –, enquanto constantes em Eames (1961), Leinfellner (1964) e Weberling (1989), foram elaborados com o auxílio de câmara clara os demais tomam posição horizontal, em ângulo reto acoplada a estereomicroscópio e fotografi as foram tomadas como o tubo corolino, formando uma plataforma em que com câmera digital Leica modelo DFC 320, acoplada a pousam os insetos visitantes da fl or. Ambas as faces da microscópico óptico Leica DMLB. corola são revestidas por espesso indumento de tricomas A terminologia de morfologia fl oral adotada segue as simples, adpressos, que são retos na metade proximal defi nições de Weberling (1989). da corola, mas retorcidos na parte distal e em grande Material estudado: Galipea carinata Pirani – BRASIL. parte entrelaçados, fato que vai conferir a manutenção ESPÍRITO SANTO: Guarapari, Rodovia do Sol, estrada que liga das pétalas em estreito contato entre si (fi guras 1, 10, a BR 101 à Praia do Sol e Praia Setiba na ES-060, a 4 km da 16) e com os fi letes (fi gura 17). Aqui temos um dos BR 101, 40°27’ W, 20°31’ S, 23-II-1988, J.R. Pirani et al. fatores responsáveis pelo aspecto tubular da fl or, que 2414 (NY, SPF). portanto não é genuinamente gamopétala, pois trata-se de coerência por entrelaçamento de tricomas. Isso será Galipea ciliata Engl. – BRASIL. MINAS GERAIS: Mato Verde, estrada para São João do Bonito, 12,5 km da Rodovia Mato melhor detalhado no tópico sobre anatomia (fi gura Verde-Monte Azul (BR-122), 15°18’21” S, 42°49’37” W, 72). 7-IV-2004, J.R. Pirani et al. 5464 (K, MBM, NY, SPF). O androceu é constituído por cinco estames (ocasionalmente seis em G. carinata) cujos fi letes são Galipea dasysperma Gómez-Laur. & Q. Jiménez – COSTA conatos em tubo na metade proximal e parcialmente RICA. GUANACASTE: S of Santa Cecília, 4 km N of La Fitilla Station, ca. 11°02’ N, 85°26’ W, 300 m, 15-VI-1989, J.A. adnatos à corola da base à porção mediana (fi guras 2, Kallunki et al. 298 (CR, MO, NY, SPF); LIMON: Talamanca, 17). A face adaxial dos fi letes é densamente revestida Suretka, 9°35’20” N, 82°53’50” W, 200 m, 19-VII-1995 (fl ), por indumento adpresso, seríceo, com longos tricomas A. Cascante et al. 554 (CR, F, K, MO). refl exos. Na sua porção distal, o tubo de fi letes sustenta duas anteras e cinco estruturas tradicionalmente Galipea jasminifl ora (A. St.-Hil.) Engl. – BRASIL. ESPÍRITO denominadas estaminódios (ocasionalmente seis em SANTO: Santa Teresa, São Sebastião, Várzea Alegre, 1,4 km de Santa Bárbara na estrada para Colatina, Fazenda do Sr. G. carinata). Estas são longas, lineares e pilosas, três Djalma Novelli, 19°50’48” S, 40°43’10” W, ca. 180 m delas alternadas às pétalas, duas opostas a elas, todas alt., 30-I-2002, J.R. Pirani et al. 4923 (K, MBM, NY, RB, exsertas do tubo da corola na antese (fi guras 8, 10, 12, SPF); MINAS GERAIS: Cristália, Fazenda Cabral, 16°34’00” S 14). As duas anteras são tetrasporangiadas, fl anqueando 42°47’26” W, margem direita do Rio Itacambiruçu, 500 m, a pétala mais interna (abaxial), extrorsas na antese, 31-III-2004, J.R. Pirani et al. 5367 (FUEL, K, MBM, NY, glabras, dotadas na base de uma expansão geralmente RB, SPF). cuculada denominada apêndice. O apêndice de uma Galipea laxifl ora Engl. – BRASIL. BAHIA: Ilhéus, 3 km antera é conato ao da outra, enquanto as tecas são apenas north of Rodoviaria, Mata da Esperança, 14°46’55” S, coerentes uma à outra, embora fi rmemente adpressas, 39°04’09” W, 50 m, 16-III-1996, W.W. Thomas et al. 11064 em toda extensão dos fl ancos ou parcialmente (fi guras (CEPEC, NY, SPF). 3, 8, 14, 15). As duas únicas exceções no gênero, quanto a esse aspecto, são G. dasysperma, em que os apêndices Resultados basais são praticamente indistintos e as anteras quase totalmente livres (fi gura 11), e G. panamensis T. S. Elias, Morfologia geral da fl or (fi guras 1-17) – As fl ores das não analisada em detalhe no presente estudo mas que, cinco espécies são pentâmeras (ocasionalmente hexâmeras também, exibe anteras livres e sem apêndices. Na antese, em G. carinata), diclamídeas, bissexuadas, reunidas em as duas anteras das fl ores de Galipea se dispõem eretas, infl orescências terminais eretas do tipo tirsóide (Weberling fl anqueando a pétala mais interna e que permanece em 1989). O cálice é gamossépalo, tubuloso ou urceolado, posição vertical (fi guras 12, 17), enquanto as demais com lobos curtos correspondentes ao ápice das sépalas, pétalas e os estaminódios assumem posição horizontal, de coloração creme-esverdeada, inteiramente glabro ou geralmente formando um ângulo reto com o tubo da com tricomas simples na face abaxial. A corola, alva a corola. As anteras caem facilmente da fl or, como peça 304 J. R. Pirani et al.: Morfoanatomia de fl ores de Galipea (Rutaceae)

3 mm Ap

2 mm 4 4 mm 2 8 1 mm 6 5 mm 1 mm

Ap 7

2 mm 9 3

4 mm 1 1 mm 5

Ap 5 mm

Ap 5 mm 2 mm 11

10 4 mm

17 2 mm 1 mm 2 mm 5 mm 12

Ap 16 15 14 13

Figuras 1-17. Morfologia externa de Galipea. 1-6. G. carinata. 1. Trecho da infl orescência. 2. Flor com a corola aberta e rebatida. 3. Parte distal de dois estames, vista adaxial. 4. Parte distal de grupo de estaminódios. 5. Parte basal do gineceu, ovário e disco em corte longitudinal. 6. Parte distal do estilete. 7-9. G. ciliata. 7. Flor. 8. Parte distal do androceu, com duas anteras e cinco estaminódios. 9. Base do gineceu envolvida pelo disco. 10-11. G. dasysperma. 10. Flor. 11. Estames, vistas adaxial e abaxial (direita). 12-15. G. jasminifl ora. 12. Flor na antese. 13. Base da fl or em corte longitudinal, expondo tubo fl oral, disco e ovário. 14. Parte distal do androceu, aberta rebatida, com duas anteras e cinco estaminódios; à frente o estilete. 15. Anteras conatas na base. 16-17. G. laxifl ora. 16. Botão fl oral. 17. Flor em corte longitudinal, expondo tubo fl oral com denso indumento, duas anteras fl anqueando a pétala mais interna, quatro estaminódios e gineceu envolvido na base pelo disco. (Ap = apêndice basal da antera). Revista Brasil. Bot., V.33, n.2, p.301-318, abr.-jun. 2010 305

única, porém os estaminódios persistem até a caducidade feixes correspondem à vascularização dos verticilos da corola, que vai ressecando no início da formação do fl orais, sendo que os traços que suprem o cálice, a fruto. corola, o androceu e o gineceu emergem do eixo O gineceu é pentacarpelar (ocasionalmente independentemente, sucessivamente. hexacarpelar em G. carinata), sincárpico, com ovário Na região correspondente à base do ovário (fi gura súpero pentalobado, estilete alongado, cilíndrico, e 22), observa-se o círculo de traços do cálice, mais estigma capitado, pentalobado (fi guras 5, 6, 17). O periférico, logo iniciando-se também a separação estilete fi ca incluso no tubo da fl or durante a fase inicial entre os tecidos desse ciclo de sépalas e os tecidos que da antese, alongando-se bastante depois que as anteras continuam constituindo o receptáculo fl oral. Os feixes caem, até fi car exserto, em consonância com a ocorrência calicinais são 15 (ou 18 nas raras fl ores hexâmeras de de protandria. Os óvulos (rudimentos seminais) são dois G. carinata), correspondendo a um feixe dorsal de sépala por lóculo, anátropos, bitegumentados, crassinucelados, e dois laterais irrigando cada sépala. Internamente ao inseridos marginalmente no carpelo, superpostos. Um círculo de feixes do cálice, observam-se: um círculo disco cupuliforme e delgado circunda o ovário, sendo de cinco (raramente seis) traços que irão vascularizar provavelmente nectarífero (fi guras 5, 9, 17). as pétalas e internamente a este um círculo de feixes Todos os verticilos da fl or são dotados de glândulas que constituem os traços do androceu; na sequência (cavidades revestidas por células epiteliais secretoras) aparece um círculo que irrigará o disco e, em seguida, de dimensões variadas, na maioria bem proeminentes inicia-se a separação dos tecidos constituintes da parte e evidentes mesmo a olho nu. Ficam associadas aos basal do ovário, onde se diferenciam os dois círculos tecidos parenquimáticos, principalmente subepidérmicos concêntricos de feixes do gineceu (fi gura 23): o mais (fi guras 19, 31, 49, 68, 74, 83), sendo maiores e mais externo correspondente aos feixes dorsais de carpelo, numerosas em certas regiões, por exemplo no ápice do que divergiram dos complexos estamino-carpelares, em ovário e face externa das pétalas e sépalas. frente aos traços de sépalas; internamente situam-se os feixes ventrais de carpelo. Vascularização, disposição e graus de união das Num nível pouco mais acima, já se observa peças fl orais (fi guras 18-86) – No pedicelo das fl ores a completa individualização estrutural do cálice, das espécies estudadas, já ao nível da emergência de separando-se de um bloco receptacular central, e tem bractéolas, o sistema vascular (estelo) apresenta-se início também a separação da base do ovário, com os formado por um cilindro central composto por vários traços das pétalas, dos estames e do disco distancian- (cerca de 14-18) feixes fundamentais, que circundam uma do-se progressivamente do centro do eixo (fi guras 23, medula parenquimática (fi guras 18, 19). No receptáculo 24). Começa em seguida a individualização estrutural fl oral há divergências de tecidos vasculares, formando do disco, como um círculo composto de numerosos os traços dos elementos do perianto, androceu, disco feixes muito aproximados entre si (fi guras 24, 25, 49, e gineceu. Inicialmente, cinco (ocasionalmente seis 81), restando um anel de corola e androceu adnatos, em G. carinata) feixes dirigem-se para a periferia do constituindo este anel o tubo fl oral (fi guras 23-25, 30-36, receptáculo e dão origem a divergências para as peças 49-54, 68). Esse tubo fl oral, defi nido aqui como resultado fl orais, de modo que se formam primeiro dois, depois da adnação da base das pétalas com os fi letes, apresenta, três e quatro círculos concêntricos de tecidos condutores, nos seus níveis inferiores, um círculo de cinco traços o mais interno com cerca de 16 a 18 feixes (fi guras petalares externos e maiores e um círculo de cinco traços 20-22). Nos cortes longitudinais ilustrados (fi guras estaminais, mais internos, menores e alternados aos 30, 31) pode-se ver que esses círculos concêntricos de das pétalas (fi gura 68). Nas raras fl ores hexâmeras de

Figures 1-17. External morphology of Galipea. 1-6. G. carinata. 1. Part of an infl orescence. 2. Flower with the corolla opened. 3. Distal portion of two stamens, adaxial view. 4. Distal portion of a group of staminodes. 5. Basal portion of gynoecium, ovary and disc, longsection. 6. Distal portion of style. 7-9. G. ciliata. 7. Flower. 8. Distal portion of androecium, with two anthers and fi ve staminodes. 9. Base of gynoecium surrounded by a disc. 10-11. G. dasysperma. 10. Flower. 11. Stamens, adaxial and abaxial views (right). 12-15. G. jasminifl ora. 12. Flower at anthesis. 13. Base of fl ower in longisection, exposing the fl oral tube, disc and ovary. 14. Distal portion of androecium, opened, with two anthers and fi ve staminodes; the style is in front. 15. Anthers connate at base. 16-17. G. laxifl ora. 16. Floral bud. 17. Flower in longisection, note dense indumentum on the fl oral tube, two anthers fl anking the innermost petal, four staminodes and gynoecium surrounded by the disc at base. (Ap = basal appendix of anther). 306 J. R. Pirani et al.: Morfoanatomia de fl ores de Galipea (Rutaceae)

Td Pt Fv

Tp Cec 22 Tes 29

Ts Pt

Te

Tp Ts

21 Cec 23 28

1 mm Fp Tet

Tet Fd Tes Te

20 24 Tes 27 Gl Fp Ca

19

Ff Tet

Tf 26 18 25 Tes Di Gi

Figuras 18-29. Diagramas de secções transversais de botão fl oral de Galipea carinata. 18. Pedicelo. 19-22. Receptáculo em níveis sucessivos. 23-26. Região da base do ovário e do disco em níveis sucessivos. 27. Região mediana do ovário. 28. Região mediana do estilete. 29. Região das anteras. (Ca = cálice; Cec = complexo estamino-carpelar; Di = disco nectarífero; Fd = feixe dorsal de carpelo; Ff = feixe fundamental; Fp = feixe de pétala; Fs = feixe dorsal de sépala; Fv = feixe ventral de carpelo; Gi = gineceu; Gl = glândula; Pt = pétala; Td = traço de disco; Te = tubo estaminal; Tes = traço de estame sepalar; Tet = traço de estaminódio; Tf = tubo fl oral; Tp = traço de pétala; Ts = traço de sépala).

Figures 18-29. Diagrams of transections through fl oral bud of Galipea carinata. 18. Pedicel. 19-22. Receptacle – successive levels. 23-26. Basal region of ovary and disc – successive levels. 27. Median region of ovary. 28. Median region of style. 29. Region of anthers. (Ca = calyx; Cec = staminal-carpelary complex; Di = nectariferous disc; Fd = dorsal bundle of carpel; Ff = fundamental bundle; Fp = petal bundle; Fs = dorsal bundle of sepal; Fv = ventral bundle of carpel; Gi = gynoecium; Gl = gland; Pt = petal; Td = disc trace; Te = staminal tube; Tes = trace of sepalar stamen; Tet = staminoidal trace; Tf = fl oral tube; Tp = petal trace; Ts = sepal trace). Revista Brasil. Bot., V.33, n.2, p.301-318, abr.-jun. 2010 307

G. carinata, observam-se nesse nível seis traços petalares da face abaxial das pétalas avança bem mais depressa e seis estaminais. Portanto, o tubo fl oral exibe adnação do que o das suas faces adaxiais, que persistem ainda dos tecidos das pétalas e estames, exceto os traços, que adnatas aos fi letes no tubo fl oral (fi guras 26, 27, 36, persistem livres, bem distintos. 53-56, 68). Após a liberação dos traços desses verticilos mais No processo de individualização gradual das pétalas, periféricos, o tecido estelar remanescente continua que culmina com sua liberação total dos fi letes, a pétala organizado num sifonostelo dissecado antes de originar interna é a que permanece adnata aos fi letes em maior os traços carpelares (fi guras 22, 23), que depois se extensão (fi guras 37, 38), exceto em G. dasysperma, onde separam em cerca de 30 a 36 feixes (fi guras 24, 25). essa é a primeira pétala a se individualizar inteiramente A vascularização do ovário será analisada em detalhe (fi guras 56, 57). Na antese, será essa pétala interna do mais à frente. padrão de prefl oração coclear dessas plantas a que fi cará Desse nível para cima, observa-se que os feixes fl anqueada pelas duas anteras (fi guras 29, 41, 42, 59-61, estaminais seguirão sem qualquer ramifi cação, dispostos 77). num círculo de cinco (ocasionalmente seis em G. À medida que as pétalas se tornam livres, percebe-se carinata). Já os traços petalares, dispostos alternadamente por curta extensão a manutenção de um tubo de fi letes em círculo mais externo ao do androceu, experimentam unidos (tubo estaminal, fi guras 27, 28, 37), que logo divisões e cada um deles se divide em três traços experimenta suas próprias fragmentações para originar alinhados paralelamente (o do meio constituirá o feixe os estaminódios e anteras (fi guras 38-42, 74-76). Porém, dorsal de pétala). Na pétala externa e na sua adjacente deve-se lembrar que esse tubo recebeu adicionalmente que será frontal à pétala interna, antes mesmo de ocorrer dois traços (ou três em G. carinata) a partir de essa formação de três feixes paralelos, já diverge um divergências de feixes petalares (fi guras 23, 24, 35, 36, traço em posição concêntrica adaxial, e como resultado 57-60). aparecem dois novos traços que fi cam alinhados ao Os sulcos limitantes das superfícies externas e círculo de traços estaminais (fi guras 24, 32-36). Em internas dos segmentos da corola e do androceu são G. dasysperma, a produção de um traço oposto a uma revestidas por denso indumento de tricomas multicelulares pétala ocorre também numa pétala adjacente à pétala unisseriados, cujo entrelaçamento confere aderência interna, de modo que existirão na fl or três feixes entre essas peças, resultando no aspecto tubuloso da fl or. adaxialmente opostos às pétalas (fi guras 55-61). A Assim, mesmo no nível em que pétalas e fi letes já estão consequência disso será explorada mais à frente. bem individualizados, observam-se as pétalas fortemente Na face externa (abaxial) do tubo fl oral delineiam-se coerentes umas às outras pelos tricomas entrelaçados, os invaginações e sulcos que vão aprofundando para o fi letes coerentes uns aos outros da mesma maneira, e as centro e levarão à individualização das pétalas (fi guras pétalas e fi letes aderentes entre si (fi gura 72). 23, 24, 33-36, 52-55, 69, 71), cada uma delas com Em quatro das espécies estudadas (G. carinata, seus três feixes libero-lenhosos: um mediano maior G. ciliata, G. laxifl ora e G. jasminifl ora), observa-se (dorsal de pétala) fl anqueado por dois laterais de menor que no mesmo nível da individualização das pétalas, calibre, dispostos muito próximos (fi guras 69, 70). Em ou pouco acima dele, diversos sulcos vão gradualmente círculo mais interno a este, dispõem-se alternadamente delineando os cinco fi letes, cada um com apenas um único os cinco (ocasionalmente seis em G. carinata) feixe vascular (fi guras 38-42, 56-62). Os dois estames traços estaminais e dois traços opostos às pétalas fl anqueando a pétala mais interna serão funcionais (ocasionalmente 3 em G. carinata e G. dasysperma), e formarão anteras. Os dois estames laterais (que correspondentes aos estaminódios epipétalos (e.g. fl anqueiam as duas anteras) e o quinto estame (frontal à fi guras 24, 25, 32-36, 68). pétala mais interna), alternipétalos, não formarão anteras Em Galipea carinata, o tubo fl oral já exibe em sua e constituirão estaminódios – homólogos a estames face externa (abaxial) o contorno das pétalas delineado inteiramente esterilizados. As duas (ou raro três em na altura em que sua parte central ainda persiste adnata G. carinata) outras estruturas lineares da fl or usualmente parcialmente ao disco, por uma curta extensão (fi guras tratadas como estaminódios dispõem-se opostas a pétalas 23, 24); nas demais espécies, as invaginações e sulcos no e são vascularizadas com traços advindos de pétalas. tubo fl oral que levam à formação das pétalas só aparecem Portanto, é difícil interpretar a natureza desses dois após a sua separação total do disco, ou até em pontos estaminódios (ou apêndices petalares) epipétalos, pois acima deste na fl or (fi guras 32, 52, 68). Em todas as surgem como expansões adaxiais das pétalas e no aspecto espécies, observa-se que o processo de delineamento externo são idênticos aos estaminódios verdadeiros 308 J. R. Pirani et al.: Morfoanatomia de fl ores de Galipea (Rutaceae)

Fp Fs Sp

Pt

Cc Tf

32 42 43 Ca Fp 33 Tes

Fv Fd

44 41

34 Fp Fs Gl Fes Fp Fs

Tes

31 45 1 mm 40 35

46 39 Tes 36 Tet Pi Pi Et 2 mm 47

Ts Cec Ff 37 Pt 38 48 Fv Fp Es 30

Figuras 30-48. Diagramas de secções de botão fl oral de Galipea jasminifl ora. 30, 31. Secção longitudinal. 32-48. Secções transversais em níveis sucessivos. 32-33. Região da base do ovário. 34. Região mediana do ovário. 35-37. Região do ápice do ovário. 38. Região da base do estilete e emergência dos estaminódios. 39-45. Região das anteras. 46-48. Região distal do botão (Ca = cálice; Cc = complexo carpelar; Cec = complexo estamino-carpelar; Es = estaminódio; Et = estilete; Fd = feixe dorsal de carpelo; Fes = feixe de estame; Ff = feixe fundamental; Fp = feixe de pétala; Fs = feixe dorsal de sépala; Fv = feixe ventral de carpelo; Gl = glândula; Pi = pétala mais interna; Pt = pétala; Sp = sépal; Tes = traço de estame sepalar; Tet = traço de estaminódio; Tf = tubo fl oral; Ts = traço de sépala).

Figures 30-48. Diagrams of sections through fl oral bud of Galipea jasminifl ora. 30, 31. Longisection. 32-48. Transections – successive levels. 32-33. Basal region of ovary. 34. Median region of ovary. 35-37. Apical region of ovary. 38. Basal region of style and rising of staminodes. 39-45. Region of the anthers. 46-48. Distal region of bud. (Ca = calyx; Cc = carpelar complex; Cec = staminal-carpelary complex; Es = staminode; Et = style; Fd = dorsal bundle of carpel; Fes = staminal bundle; Ff = fundamental bundle; Fp = petal bundle; Fs = dorsal bundle of sepal; Fv = ventral bundle of carpel; Gl = gland; Pi = innermost petal; Pt = petal; Sp = sepal; Tes = trace of sepalar stamen; Tet = staminoidal trace; Tf = fl oral tube; Ts = sepal trace). Revista Brasil. Bot., V.33, n.2, p.301-318, abr.-jun. 2010 309

Fs Tes

Fp

Fp 53 62 52 63

Fs

54 pr 61 64

51 Tes Tp Ca Di 55 Et’ 60 65 1 mm Tf

Fs 50 Fp 56 Gl 59

Tet 66

Ca

Di Tf 49 57 58 67

Figuras 49-67. Diagramas de secções transversais em níveis sucessivos de botão fl oral de Galipea dasysperma. 49. Região da base do ovário. 50-51. Região do ápice do ovário. 52. Região da base do estilete. 53-55. Região da individualização das pétalas. 56-59. Região da base das anteras. 60-62. Região da emergência dos estaminódios. 63-66. Região da parte distal das anteras. 67. Região distal do botão. (Ca = cálice; Di = disco nectarífero; Et’ = estigma; Fp = feixe de pétala; Fs = feixe dorsal de sépala; Gl = glândula; pr = protuberâncias da divergência dos estaminódios epipétalos; Tes = traço de estame sepalar; Tet = traço de estaminódio; Tf = tubo fl oral; Tp = traço de pétala).

Figures 49-67. Diagrams of transections made at successive levels of fl oral bud of Galipea dasysperma. 49. Basal region of ovary. 50-51. Apical region of ovary. 52. Basal region of style. 53-55. Region where the petals are formed. 56-59. Region of the base of anthers. 60-62. Region where the staminodes arise. 63-66. Region of the distal portion of anthers. 67. Distal region of bud. (Ca = calyx; Di = nectariferous disc; Et’ = stigma; Fp = petal bundle; Fs = dorsal bundle of sepal; Gl = gland; pr = protuberance from the divergence of epipetalous staminodes; Tes = trace of sepalar stamen; Tet = staminoidal trace; Tf = fl oral tube; Tp = petal trace). 310 J. R. Pirani et al.: Morfoanatomia de fl ores de Galipea (Rutaceae)

68 69

70 71

73A

72A

72B 73B

Figuras 68-73. Fotomicrografi as de secções transversais (68-72) e longitudinal (73) de botão fl oral de Galipea. 68. Região da base do estilete, G. dasysperma. 69. Região do ápice do ovário, G. jasminifl ora. 70. Detalhe da pétala mais interna conata ao tubo estaminal, G. jasminifl ora. 71. Região da base das anteras, G. dasysperma. 72A e B. Detalhes do entrelaçamento de tricomas entre pétalas e fi letes, G.dasysperma. 73A e B. Região da base das anteras de G. jasminifl ora, com os apêndices; no detalhe as epidermes distintas de duas anteras adjacentes. (Ap = apêndice basal da antera; Gl = glândula; Fdp = feixe dorsal de pétala; Fp = feixe de pétala; Tep = traço de estaminódio epipétalo; Tes = traço de estame sepalar; Tf = tubo fl oral; Tp = traço de pétala). Barra = 500 μm (68, 71,73A), 250 μm (73B), 200 μm (69, 72A), 100 μm (70), 50 μm (72B). Revista Brasil. Bot., V.33, n.2, p.301-318, abr.-jun. 2010 311

(alternipétalos): fi nos, alongados e geralmente pilosos maduras são bitecas, tetrasporangiadas (fi gura 29), e (fi guras 8, 38-42, 74, 76). fi cam justapostas lateralmente, apenas coerentes pelas A fl or de G. dasysperma exibe alguns aspectos epidermes adjacentes, claramente diferenciadas, até a bem diferentes das demais espécies, porém nela a região submediana (fi guras 73, 78, 80); conação foi individualização dos estaminódios opostos às pétalas é observada somente em curta extensão (fi gura 79). No bem mais fl agrante. Os dois estames férteis são isolados conectivo existe o tecido vascular na região central e, em do tubo fl oral antes mesmo que se observe qualquer torno desta, tecido parenquimático e tecido com células indício de invaginações e sulcos na face adaxial do tubo de paredes bem espessadas, lignifi cadas. Na parede da (fi guras 56-59). Estas surgirão em níveis mais distais na antera madura, logo abaixo da epiderme, encontra-se o fl or, e levarão à formação de seis estruturas lineares, onde endotécio formado de uma série de células colunares, apenas três delas correspondem a estames inteiramente seguido de camadas médias pouco a muito comprimidas esterilizados (os três alternipétalos, como nas demais (fi gura 80). espécies). Já as outras três emergem de protuberâncias No sentido da porção distal da fl or, as terminações muito conspícuas da superfície adaxial mediana de três das pétalas vão fechando o arranjo coclear num domo pétalas (a mais externa, a adjacente a ela e a consecutiva a apical (fi guras 46-48, 66, 67). esta), cada uma delas sendo irrigada por um traço advindo No tocante ao gineceu, os carpelos são antepétalos, do feixe mediano de cada uma dessas pétalas (fi guras 58, peltados e congenitalmente fechados, conatos uns aos 61, 71). Essa espécie contrasta com as demais também outros axial e lateralmente na maior extensão inclusive no fato de que a adnação e aderência dos estaminódios no estilete e estigma (gineceu sincárpico, fi guras 27, 68, às pétalas é bem tênue: cada estaminódio pode ser 81, 82). Apenas na porção mediana-superior do ovário facilmente destacado até a base na fl or, e nas fi guras (acima das placentas) observa-se evidência de união 61 e 62 percebe-se a razão pela qual os estaminódios posgenital dos carpelos, pela presença de epiderme opostos a pétalas são um pouco mais resistentes a serem bem diferenciada nas superfícies laterais de carpelos destacados manualmente: a conexão deles às pétalas é contíguos (fi guras 27, 34, 50, 82-86), e no ápice do ovário mantida por certa extensão por estreitas pontes medianas. formam-se profundos sulcos (fi guras 35, 36, 69, 83, 85) Outro aspecto contrastante dessa espécie reside nos que fazem a separação parcial de cada um dos cinco seus apêndices da base das anteras muito reduzidos e (raramente seis) carpelos em relação aos adjacentes. aplanados (não cuculados como é comum no gênero), Tais sulcos avançam profundamente no ovário, mas com reduzida área de conação de um ao outro (fi guras não chegam a alcançar a parte central que mantém a 58, 59). Excepcionalmente, um dos espécimes aqui sincarpia. Ademais, na região da inserção dos óvulos, é examinados (A. Cascante et al. 554) apresenta fl ores com possível evidenciar a sutura das margens de cada carpelo, quatro anteras bem diferenciadas, todas ligeiramente ali fechadas apenas posgenitalmente (fi guras 84, 86). conatas na base pelos curtos apêndices, e apenas um Tal conformação possibilita a deiscência septicida da estaminódio alternado a pétalas e dois estaminódios cápsula madura. Cabe lembrar aqui que a cápsula de opostos a pétalas. Galipea sofre também deiscência loculicida, com a Em todas as cinco espécies estudadas, nos dois formação de uma fenda a partir do ápice em direção à estames fl anqueando a pétala interna, o surgimento de parte ventral de cada carpelo, mas nos cortes do ovário expansões, invaginações e pregas nas faces adaxiais no botão fl oral não se visualiza ainda qualquer evidência e laterais, em níveis sucessivos, constituirão o amplo anatômica disso. apêndice basal, cuculado, não-vascularizado, das duas O ovário mostra padrão de vascularização complexo, anteras (fi guras 39-42, 58, 59, 73, 76). Cada estaminódio com muitos feixes de dimensões variáveis, maiores e e antera são supridos por um só feixe vascular. As anteras menores. Os traços carpelares separam-se em vários

Figures 68-73. Photomicrographs of transections (68-72) and longisection (63) of fl oral buds of Galipea. 68. Basal region of the base of style, G. dasysperma. 69. Apical region of ovary, G. jasminifl ora. 70. Detail of the innermost petal, connate to the staminal tube, G. jasminifl ora. 71. Basal region of the anthers, G. dasysperma. 72A and B. Details of close intertwining of trichomes between petals and fi laments, G.dasysperma. 73A and B. Basal region of anthers of G. jasminifl ora, with the appendices; in the detail the distinct epidermis of two adjacent anthers. (Ap = basal appendix of anther; Gl = gland; Fdp = dorsal bundle of petal; Fp = petal bundle; Tep = trace of epipetalous staminode; Tes = trace of sepalar stamen; Tf = fl oral tube; Tp = petal trace). Bar = 500 μm (68, 71, 73A), 250 μm (73B), 200 μm (69, 72A), 100 μm (70), 50 μm (72B). 312 J. R. Pirani et al.: Morfoanatomia de fl ores de Galipea (Rutaceae)

74 75

76 77

77 79 80

Figuras 74-80. Fotomicrografi as de secções transversais de botão fl oral de Galipea. 74-78, 80. G. jasminifl ora. 74-75. Região da individualização das pétalas e dos estaminódios (epipétalos e epissépalos). 76. Região do apêndice basal das anteras. 77, 78, 80. Região das tecas. 78. Detalhe de duas anteras adjacentes unidas. 79. G. ciliata: Detalhe de duas tecas adjacentes unidas. (Ap = apêndice basal da antera; Es = estaminódio epipétalo; Fdp = feixe dorsal de pétala; Gl = glândula). Barra = 300 μm (74-77, 80), 50 μm (78), 100 μm (79).

Figures 74-80. Photomicrographs of transections of fl oral buds of Galipea. 74-78, 80. G. jasminifl ora. 74-75. Region of the formation of petal and staminodes (epipetalous and episepalous). 76. Region of the basal appendices of anthers. 77, 78, 80. Region of thecae. 78. Detail of two joined adjacent anthers. 79. G. ciliata. Detail of two joined adjacent thecae. (Ap = basal appendix of anther; Es = epipepalous staminode; Fdp = dorsal bundle of petal; Gl = gland). Bar = 300 μm (74-77, 80), 50 μm (78), 100 μm (79). Revista Brasil. Bot., V.33, n.2, p.301-318, abr.-jun. 2010 313

81 82

83 84

85 86

Figuras 81-86. Fotomicrografi as de secções transversais de botão fl oral de Galipea. 81-84. G. dasysperma. 81. Região da base do ovário e do disco. 82. Região mediana do ovário, com feixes carpelares ventrais fundidos. 83. Região do ápice do ovário, com epidermes radiais entre carpelos distintos. 84. Detalhe de carpelo com sutura evidente das epidermes adaxiais, nas região da inserção do óvulo. 85-86. G. jasminifl ora. 85. Região do ápice do ovário, com epidermes radiais entre carpelos distintos. 86. Detalhe do carpelo com traços ventrais livres. (Di = disco; Fd = feixe dorsal do carpelo; Fv = feixe ventral do carpelo; Gl = glândula). 18-29. Barra = 500 μm (81, 83), 200 μm (82, 85), 100 μm (84, 86).

Figures 81-86. Photomicrographs of transections of fl oral buds of Galipea. 81-84. G. dasysperma. 81. Basal region of ovary and disc. 82. Median region of ovary, with fused ventral carpelar bundles. 83. Apical region of ovary, with radial epidermis fl anking each carpel. 84. Detail of a carpel with a conspicuous suture of adaxial epidermis, in the region of ovule insertion. 85-86. G. jasminifl ora. 85. Apical region of ovary, with radial epidermis between distinct carpels. 86. Detail of a carpel with free ventral traces. (Di = nectariferous disc; Fd = dorsal bundle of carpel; Fv = ventral bundle of carpel; Gl = gland). Bar = 500 μm (81, 83), 200 μm (82, 85), 100 μm (84, 86). 314 J. R. Pirani et al.: Morfoanatomia de fl ores de Galipea (Rutaceae)

(fi guras 23, 24), e em cada carpelo permanecem na região O disco hipógino que circunda o ovário é nectarífero, central do receptáculo alguns feixes que constituirão segundo observações de Piedade & Ranga (1993) em mais acima os feixes ventrais de carpelo (fi guras 26, 27). G. jasminifl ora. Essas mesmas autoras demonstraram que Na altura em que se diferencia a parte basal dos lóculos, na fl or dessa espécie a maturação dos órgãos reprodutivos um sifonostelo dissecado permanece bem evidente no é simultânea, mas que ela passa por uma fase masculina centro (fi gura 33). Em cada carpelo, os feixes mais (anteras expostas na fl or, estilete incluso), que dura cerca desenvolvidos são o dorsal e os dois ventrais; estes dois de 24 horas, seguida de uma fase feminina (estilete fi cam muito próximos um do outro (fi guras 27, 84, 86), alongando-se até fi car exserto) de mesma duração. e em G. dasysperma podem inclusive apresentar-se Essa confi guração fl oral é característica também das fundidos por certa extensão do ovário (fi gura 82). Assim, demais espécies de Galipea aqui estudadas, sugerindo embora os carpelos sejam conatos axial e lateralmente a ocorrência de mecanismos fl orais semelhantes. Além na maior extensão, a vascularização de cada carpelo disso, na disposição dos lobos da corola na antese, mantém-se independente da dos carpelos vizinhos desde quando o lobo mais interno fi ca em posição vertical e os o receptáculo fl oral até a base do estilete, que recebe demais tomam posição horizontal, em ângulo reto como cinco feixes vasculares como ramifi cações a partir dos o tubo corolino, forma-se uma “plataforma de pouso aos feixes carpelares ventrais (fi guras 68, 83). Em níveis insetos visitantes”, nas palavras de Piedade & Ranga mais acima, os feixes do estilete se dividem em feixes (1993) para Galipea jasminifl ora, na qual se observaram menores (fi guras 52-58, 71). insetos noturnos (geometrídeos e a borboleta Astraptes fulgerator) como os mais efi cientes polinizadores desta Discussão espécie. A função nectarífera dos discos e ginóforos A ocorrência esporádica de algumas fl ores hexâmeras encontrados na fl or da vasta maioria das Rutaceae tem em meio a infl orescências portadoras de fl ores pentâmeras, sido aventada por muitos autores e comprovada para aqui encontrada em G. carinata, tem sido reportada para alguns gêneros. Gut (1966) defende essa função com diversos grupos em Sapindales e outras angiospermas. base na vascularização do disco predominantemente Todavia, não havia sido encontrada quando da descrição por feixes fl oemáticos. O disco da fl or de Pilocarpus original da referida espécie (Pirani 2004). pennatifolius Lem. foi descrito por Souza et al. (2005) Os aspectos gerais da morfologia externa da fl or como nectário de epiderme papilosa, com estômatos aqui reportados são condizentes com a maioria das e tecido secretor de células diminutas. Nas fl ores de descrições existentes na literatura clássica do gênero Galipea ora estudadas não foi possível corroborar essa (e.g. Engler 1874, 1931, Eichler 1878), porém algumas observação. correções e um certo aprimoramento puderam ser agora Os numerosos feixes observados em Galipea trazidos com o estudo mais detalhado, sobretudo no que, partindo do estelo ascendem para irrigar o disco, plano anatômico, comentados à frente junto aos tópicos constituem situação semelhante à observada em Ruta adequados. O presente trabalho não realizou análise graveolens L. por Guédès (1973). Alguns trabalhos têm minuciosa da vascularização fl oral, mas pode-se afi rmar abordado a controvérsia sobre origem do disco na família, que a maioria dos padrões observados nas espécies destacando-se as seguintes hipóteses: 1. o disco das aqui estudadas de Galipea diverge apenas em certos Rutaceae seria um verticilo de carpelos estéreis (Saunders pontos do que já foi reportado para outros gêneros da 1934, Moore 1936) ou um apêndice dos carpelos família, como Choisya, Poncirus, Ruta e Citrus (Gut (Guédès 1973); 2. o disco nas fl ores obdiplostemônes 1966, Guédès 1973), ou vários gêneros de Autantioideae de Aurantioideae (grupo das frutas cítricas) representaria (Tillson & Bamford 1938), ou Pilocarpus (Souza et al. um terceiro verticilo de estames vestigiais (Tillson & 2003). Sem dúvida, os pontos divergentes mais notáveis Bamford 1938); 3. o disco seria originado de uma referem-se às peculiaridades observadas nos traços de proliferação do eixo fl oral entre o androceu e o gineceu corola e androceu em Galipea, relacionadas à existência (Tilak & Nene 1976), provavelmente com envolvimento do tubo fl oral resultante da adnação entre esses dois de tecidos carpelares também (Gut 1966). Puri (1951) verticilos, na região proximal da fl or, e à existência de menciona que todas elas podem ocorrer em diferentes alguns estaminódios claramente homólogos a estames táxons de Rutaceae. O androceu na tribo Galipeeae esterilizados (alternos a pétalas) e de outros estaminódios é haplostêmone com estames alternipétalos, o que opostos a pétalas, que podem ser na realidade apêndices inviabiliza a hipótese de transformação de um ciclo petalares. de estames em disco na fl or dessa tribo. Isso porque Revista Brasil. Bot., V.33, n.2, p.301-318, abr.-jun. 2010 315 tal redução teria que ter ocorrido a partir de ancestrais Ruta, Skimmia e Zanthoxylum e quatro desses gêneros obdiplostêmones, como são os gêneros com dois ciclos foram estudados também por Guédès (1973). O primeiro de estames na família e na maior parte das plantas da autor concluiu que a união entre carpelos é frágil nos ordem Sapindales. Nessa condição, o ciclo de estames membros da subfamília Rutoideae, em contraste com reduzido seria o mais externo e a posição do disco seria a forte conação radial posgenital observada entre os extraestaminal (como ocorre em Sapindaceae) e não carpelos das Toddalioideae e Aurantioideae. Segundo intraestaminal como acontece em Rutaceae. Os dados de esse autor, em Rutoideae, os carpelos fi cam unidos vascularização fl oral de Galipea não permitem esclarecer entre si apenas na base do gineceu, e devido a um a natureza do disco de modo defi nitivo, mas parecem alongamento do eixo central surge a zona apocárpica favorecer a terceira hipótese de origem do disco a partir do gineceu e logo acima dela os estiletes se apresentam do receptáculo (e carpelos?), uma vez que os traços que o unidos posgenitalmente. Isso também foi observado irrigam são muito numerosos e divergem diretamente do por Souza et al. (2003) em Pilocarpus pennatifolius e, estelo fl oral, logo no nível abaixo dos traços carpelares, com efeito, parece ser efetivamente verdadeiro para a e os carpelos verdadeiros são alternos e não opostos às maioria dos gêneros dessa subfamília (ver Ramp 1988). pétalas. Em Pilocarpus pennatifolius, tradicionalmente Porém, Galipea parece ser um caso excepcional em colocado na mesma tribo Galipeeae, a localização do Rutoideae, visto que seus carpelos se apresentam unidos disco, sua vascularização e continuidade histológica com por quase toda a extensão, o que possivelmente se deve a parede do ovário, caracterizam-no como de origem à fusão congênita, ao menos em alguma porção dos carpelar, segundo Souza et al. (2003). Porém Gut (1966) capelos, exceto na região mediana e superior do ovário, afi rmou para esta mesma espécie, assim como para todas onde as epidermes radiais dos carpelos adjacentes são as outras de Rutaceae estudadas por ele, que os discos individualizadas. Graças a essa conformação, os carpelos e ginóforos seriam formações do eixo central da fl or, permanecem bem unidos na antese como se o ovário aventando como possível certa participação de tecidos fosse plenamente sincárpico, formando um fruto do tipo carpelares. Já Guédès (1973) insiste no papel importante cápsula, em franco contraste com os esquizocarpos que do eixo fl oral na sincarpia, observada pelo menos na predominam em Rutoideae. base do gineceu em gêneros como Choysia e Ruta, ou Embora com esse maior grau de sincarpia, o padrão prolongada até a sua região mediana, como em Poncirus de vascularização do ovário de Galipea diverge pouco e Citrus (e poderíamos acrescentar Galipea), mas não na da situação mais comum das Rutoideae, em que a formação do disco, que ele prefere admitir como apêndice vascularização de cada carpelo mantém-se independente ovariano (baseado no fato de os traços do disco serem da dos carpelos contíguos desde o receptáculo fl oral até a semelhantes aos carpelares). Nas fl ores de Galipea, foi base do estilete, não havendo fusão de feixes nem perda observado que na altura em que se diferencia a parte de feixes. Em Galipea, observou-se padrão semelhante basal dos lóculos do ovário um sifonostelo dissecado mas com certa fusão dos feixes ventrais dos carpelos, permanece bem evidente no centro (fi gura 33), e isso em curta extensão. Assim, considerando também os poderia ser interpretado da maneira descrita acima por outros verticilos aqui analisados, de um modo geral, o Gut (1966): como provável evidência da presença do padrão vascular fl oral básico proposto por Puri (1951) eixo fl oral até ali. Contudo esse padrão não diverge do é mantido. mais geral para gineceu das angiospermas (e.g. Puri O cálice da fl or de Galipea é plenamente gamossépalo, 1951), e não encontramos aqui subsídio para a polêmica com individualização de cinco lobos (sépalas) apenas idéia daquele autor. na parte distal. Já a corola aparentemente tubular da A posição dos carpelos em Galipea, antepétalos, fl or de Galipea não é genuinamente gamopétala, é reportada para todos os gêneros com fl ores isômeras mas sim resultante de diferentes estados de adnação/ de Rutaceae já estudados (Eichler 1878, Saunders 1934, conação ou coerência/aderência entre o androceu e a Tillson & Bamford 1938, Gut 1966, Guédès 1973, Ramp corola, observados em três regiões a saber: na porção 1988). proximal, está constituído por um verdadeiro tubo fl oral, Carpelos peltados e congenitalmente fechados, resultante da conação dos fi letes e da adnação destes pelo menos na porção basal, têm sido referidos para às pétalas; na região mediana, a aparência tubulosa numerosos gêneros de Rutaceae, variando na família o decorre da coerência entre as pétalas proporcionada pelo grau de união entre eles. Gut (1966) analisou espécies entrelaçamento dos tricomas de sua superfície e pela de Choysia, Citrus, Coleonema, Correa, Dictamnus, aderência destas ao tubo estaminal; no terço distal da Evodia, Phellodendron, Pilocarpus, Poncirus, Ptelea, parte tubular da fl or, o mesmo tipo de entrelaçamento de 316 J. R. Pirani et al.: Morfoanatomia de fl ores de Galipea (Rutaceae) indumento condiciona a aderência das pétalas aos fi letes Tilia L. (Malvaceae). Na antese de fl ores desse tipo, e estaminódios livres (i.e., não conatos). Portanto, os as sépalas e pétalas geralmente se livram desse tipo diagramas fl orais de Galipea jasminifl ora representados de união mútua, porém Weberling (1989) observa que, nas obras de Engler (1874) e Baillon (1875) e no livro em alguns casos, a união é tão íntima que as partes do clássico sobre diagramas de Eichler (1878) estão errôneos perianto podem permanecer juntas por um período de ao mostrar e descrever uma corola gamopétala. Por tempo maior, ou até se desprenderem do resto da fl or outro lado, nesses três trabalhos a descrição e desenho como uma única peça. Isso é o que efetivamente se nota da união das anteras entre si e aos dois estaminódios que também na fl or das espécies de Galipea, nas quais o tubo as fl anqueiam são bem acurados, estando de acordo com formado pelas pétalas aderidas aos fi letes permanece as observações presentes. coeso e cai inteiro após o início da formação do fruto, Tendo em vista que a condição básica na subtribo mesmo que nessa fase haja alguma separação parcial Galipeinae é a isostemonia, o fato de gêneros como das pétalas, sobretudo na base, à medida que a estrutura Ertela Adans. e outros terem duas anteras e três se desidrata e resseca. estaminódios alternipétalos é facilmente interpretado. Vale ressaltar que a espécie recentemente descrita, Porém Galipea e alguns outros gêneros de Galipeinae G. ramifl ora Pirani, tem pétalas bem pouco coerentes (e.g. Rauia Nees & Mart.) apresentam cinco (ou entre si e aderentes aos fi letes, exceto na fauce, onde mais) estruturas denominadas estaminódios, cuja são fi rmemente unidas. Na maior extensão do tubo das origem sempre foi intrigante. Com o presente trabalho fl ores maduras (sobretudo nas desidratadas em herbário) pôde-se demonstrar que, em Galipea, as três estruturas as pétalas separam-se umas das outras e do tubo que fi liformes colocadas em posição alternada com pétalas suporta as anteras, que se mantém íntegro (Pirani & são efetivamente estames esterilizados (estaminódios), Kallunki 2007). enquanto as demais (geralmente duas, podendo ser três Tipo análogo de fusão pós-gênita por meio da em algumas espécies) são vascularizadas com traços união dos fi letes dos estames que se alternam às pétalas, provenientes de pétalas, podendo tratar-se de apêndices ou seja, pela adnação entre o verticilo de estames e o petalares e não de estaminódios epipétalos. Estes dois de pétalas, resultando na formação de uma corola (ou três) estaminódios especiais dispõem-se opostos à aparentemente simpétala e tubulosa, foi observado em pétala mais externa e a uma pétala adjacente a ela, ou, espécies de Lonchostoma Wikstr. e outros gêneros da em G. dasysperma, também a uma pétala adjacente à família sul-africana Bruniaceae (de posição incerta na pétala interna. Nesta última espécie, é muito evidente base do clado euasterídeas II, no sistema APG II 2003) o surgimento dessas estruturas como expansões por Leinfellner (1964). Rohweder (1969 apud Weberling adaxial-medianas de pétalas. Aventa-se diante desse fato 1989) relata que em alguns gêneros de Commelinaceae a possibilidade de situação similar nos demais gêneros de (monocotiledônea comelinóide segundo APG II) também Galipeinae com duas anteras e mais de três estaminódios ocorre fusão das pétalas indiretamente, por meio da união (onde pelo menos um ou dois são opostos a pétalas): destas a estames epissépalos (Weberling 1989). Angostura Roem. & Schult., Erythrochiton Nees & Mart., Já em Correa, outro gênero de Rutaceae com fl or Rauia Nees & Mart., Raveniopsis Gleason, Sigmatanthus tubulosa, a constituição morfoanatômica desse atributo Huber ex Emmerich, Ticorea Aubl. e Toxosiphon Baill. apresenta-se diferentemente. Na espécie australiana (Kallunki 1992, 1994, 1998, Kallunki & Pirani 1998, Correa speciosa (tribo Boronieae, Rutoideae), já Pirani 1999). mencionada, não há qualquer adnação entre corola e As fl agrantes divergências no plano morfoanatômico androceu, as pétalas são livres na base e, na região tubular observadas em G. dasysperma convergem com sua da corola, na sutura entre pétalas adjacentes persistem posição duvidosa no gênero, já aventada com base duas camadas de epiderme e ainda uma camada de em outros caracteres não tratados neste trabalho (e.g. cutícula entre elas, o que caracteriza uma falsa simpetalia semente pilosas), necessitando-se de uma reavaliação (Troll 1937, Hartl 1957, Weberling 1989). da circunscrição de Galipea, o que deve ser alcançado Assim, fi ca claro que em diferentes grupos de com análise fi logenética. Rutaceae, e mesmo dentre as angiospermas, a evolução A aderência ou coerência das margens de peças de fl ores tubulosas ocorreu por modos distintos e do perianto por entrelaçamento de tricomas observada variados, com expressivo grau de homoplasias. Pressões em Galipea constituem fenômenos denominados em seletivas diversas podem favorecer um tipo geral de fl or inglês como “capillinection” (Weberling 1989), já tubulosa, cujas prováveis vantagens adaptativas sejam referidos por exemplo para as sépalas de fl ores de uma restrição maior a visitantes pilhadores de recursos Revista Brasil. Bot., V.33, n.2, p.301-318, abr.-jun. 2010 317 como néctar (e pólen no caso de gêneros com anteras Agradecimentos – A Jacquelyn Kallunki, por fornecer inclusas no tubo corolino), ou uma conformação mais as fl ores fi xadas de Galipea dasysperma e pelas muitas efetiva na garantia de sucesso na polinização, ou ainda discussões sobre morfologia e sistemática em Galipeeae. A na proteção aos órgãos reprodutivos internos da fl or. Gisele R. Oliveira Costa, pelo preparo das lâminas com as Entretanto, os caminhos ontogenéticos que levam a esse secções anatômicas e pelo inestimável auxílio na tomada de imagens ao fotomicroscópio. Ao Klei Rodrigo Sousa, pelo modelo estrutural geral podem ser bem semelhantes bonito trabalho a nanquim sobre os desenhos originais do em gêneros sem parentesco próximo (homoplasias), primeiro autor na fi guras 1 a 17. Ao Dr. Richard Winkworth, ou podem ser bem diferentes mesmo entre gêneros de pela correção do abstract. Ao CNPq, pelo apoio fi nanceiro uma mesma família. No caso de Rutaceae constatam- ao projeto de pesquisa, por meio de bolsas de produtividade se agora as duas possibilidades. Primeiro, a fi logenia ao primeiro e terceiro autores e bolsa de Iniciação Científi ca apresentada por Groppo et al. (2008) indica forte ao segundo autor. relação de parentesco entre Galipea e Angostura, Conchocarpus, Ravenia e Sigmatanthus, que formam Referências bibliográfi cas o único clado com fl ores tubulosas dentro de um clado maior assim constituído: (Choisya, Pilocarpus, Ptelea APG II. 2003. An update of the Angiosperm Phylogeny Group (Balfourodendron, Helietta (Esenbeckia, Metrodorea)) classifi cation for the orders and families of fl owering (Agathosma, Coleonema) (Angostura, Conchocarpus, : APG II. Botanical Journal of the Linnean Society Galipea, Ravenia, Sigmatanthus) (Adiscanthus, Hortia)), 141:399-436. onde todos os demais possuem fl ores abertas (não BAILLON, H. 1875. Natural history of plants. L. Reeve & tubulosas), situação de resto predominante na família Company, London, v.4. como um todo. Isso pode sugerir que pelo menos BELTRATI, C.M. 1991. Estudo morfo-anatômico das alguns dos aspectos morfoanatômicos relacionados à sementes e plântulas de Esenbeckia febrifuga (St. Hil.) condição de fl or tubulosa, descritos no presente trabalho, A. Juss. ex Mart. (Rutaceae). Naturalia 16:161-169. sejam compartilhados por todos ou alguns daqueles EAMES, A.J. 1961. Morphology of the angiosperms. cinco gêneros, como homologias (sinapomorfi as McGraw-Hill Book Company, New York. – homologia primária sensu Pinna 1991). Porém, EICHLER, A.W. 1878. Blütendiagramme. Wilhelm Engelmann, Leipzig. Teil 2. não há dados anatômicos disponíveis para elucidar ENGLER, H.G.A. 1874. Rutaceae. In Flora brasiliensis isso por ora. Por outro lado, os clados relacionados (C.P.F. Martius & A.G. Eichler, eds.). Friedrich Fleischer, aos cinco gêneros supra-citados da tribo Galipeeae Leipzig, v.12, pars 2, p.75-196, tabs.14-39. não têm proximidade fi logenética com Correa (tribo ENGLER, H.G.A. 1931. Rutaceae. In Die natürlichen Boronieae), que emergiu internamente ao clado-irmão Pfl anzenfamilien (H.G.A. Engler & K.A.E. Prantl, eds.). daquele supra-descrito (Groppo et al. 2008), e portanto Wilhelm Engelmann, Leipzig, v.19, ed.2, p.187-359. as diferenças morfoanatômicas comentadas mostram FORD, E.S. 1942. Anatomy and histology of the Eureka que o aspecto tubuloso da fl ores constitui semelhança lemon. Botanical Gazette 104:288-305. apenas superfi cial, que nem deve ser tratado como um GROPPO, M., PIRANI, J.R., SALATINO, M.L., BLANCO, paralelismo. Torna-se óbvia assim a necessidade de mais S.R. & KALLUNKI, J.A. 2008. Phylogeny of Rutaceae estudos dessa natureza nessa família, pois só assim será based on two non-coding regions from cpDNA. possível contar com estados de caráter bem defi nidos American Journal of Botany 95:985-1005. para elaboração de análises fi logenéticas confi áveis GUÉDÈS, M. 1973. Carpel morphology and axis-sharing in e para estabelecer conjecturas bem embasadas sobre syncarpy in some Rutaceae, with further comments on evolução fl oral no grupo. “New Morphology”. Botanical Journal of the Linnean Finalmente, embora Gut (1966) tenha afi rmado Society 66:55-74. que a vascularização em Rutaceae é muito complicada GUT, B.J. 1966. Beiträge zur Morphologie des Gynoeciums und der Blütenachse einiger Rutaceen. Botanisches e que qualquer interpretação da natureza morfológica Jarhbücher Systematische 85:151-247. de suas partes fl orais seria muito problemática caso HARTL, D. 1957. Die Pseudosympetalie von Correa baseada apenas em estudo de anatomia vascular, os speciosa (Rutaceae) und Oxalis tubifl ora dados dos trabalhos anatômicos posteriores ao dele, (Oxalidaceae). Abhandlungen der Mathematisch- assim como estes reportados para Galipea, demonstram Naturwissenschaftlichen Klasse, Akademie der o incontestável papel da anatomia para o conhecimento Wissenschaften und der Literatur, Mainz, 2:1-13. acurado da estrutura fl oral no grupo e para a resolução JOHANSEN, D.A. 1940. microtechnique. McGraw- de questões acerca de homologia e fi logenia. Hill Book Company, New York. 318 J. R. Pirani et al.: Morfoanatomia de fl ores de Galipea (Rutaceae)

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