Quadrinhos Disney E Pós-Modernidade
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QUADRINHOS DISNEY E PÓS-MODERNIDADE Roberto Elísio dos Santos Observatório de Histórias em Quadrinhos, São Paulo, Brasil RESUMO A partir da década de 1980, as histórias em quadrinhos protagonizadas pelos personagens Disney passaram a utilizar recursos pós-modernos, especialmente a meta ficção. Tratam-se de narrativas sequenciais gráficas destinadas a leitores familiarizados com este universo ficcional e seus criadores. O conceito de pós-modernidade relacionado à arte e à ficção midiática implica um nível de "leitura" diferenciado, no qual o receptor possui um grau de conhecimento maior e, a par das regras definidas para a imersão nesse tipo de material, tem maior liberdade para a fruição e para a decodificação, atribuindo novos significados. Dentro dessa perspectiva, este texto analisa dois objetos de estudo: o trabalho desenvolvido pelo artista estadunidense Keno Don Rosa, que, a partir das histórias criadas por Carl Barks, principalmente nos anos 1950 e 1960, as ordena e relaciona, criando laços e preenchendo lacunas entre os diferentes enredos; e a produção do quadrinista italiano Casty, pseudônimo de Andrea Castellan, que recria o estilo gráfico e narrativo desenvolvido por Romano Scarpa, que, por sua vez, inspirou-se nos quadrinhos feitos por Carl Barks e por Floyd Gottfredson, deixando ao leitor e fã a tarefa de perceber as referências usadas. A pesquisa realizada, qualitativa e de nível exploratório, tem como corpus quadrinhos de Don Rosa e de Casty, estudados a partir da semiologia de linha francesa e da análise estrutural da narrativa concebida por Roland Barthes. PALAVRAS-CHAVE: histórias em quadrinhos; Disney; pós-modernidade. PÓS-MODERNISMO E COMUNICAÇÃO Termo controverso, pós-modernismo foi amplamente estudado na década de 1980 – especificamente nas áreas de Artes e de Comunicação –, mas também foi muito criticado por diversos intelectuais. Para efeito deste texto, a pós-modernidade deixou marcas profundas na produção cultural, seja do ponto de vista estético, seja em relação ao receptor. De acordo com Santos (2006, p. 7-8), é “o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950, quando, por convenção, se encerra o modernismo”. Já na visão de Coelho (1986, p. 58), “o termo mais usual com o qual a palavra ‘pós-moderno’ guarda grande proximidade, na forma e no conteúdo, é pós- industrial”. Connor (1989, p. 149), por sua vez, evidencia o interesse da crítica acadêmica por práticas culturais que antes eram ignoradas. Para esse autor, “isso constitui em si um fenômeno pós-moderno, por ser a marca do nivelamento de hierarquias e do apagamento de fronteiras” entre o popular (rock, moda etc.) e o erudito. Alguns teóricos apontam o marco inicial do pós-modernismo nos projetos de arquitetura elaborados a partir da década de 1950. Essa postura considera que, no pós- guerra, todas as possibilidades de subversão da arte já haviam sido implantadas, sobrando para os novos artistas apenas a mistura de estilos – designados constantemente de pastiche – e a incorporação de elementos da sociedade contemporânea em suas obras. No entanto, de acordo com Appignanesi et al. (2003), a própria noção de modernismo ampara-se na ideia de sua própria superação por algo “mais moderno”. O modernismo é, ao mesmo tempo, a negação do que veio antes e a abertura para o que vem depois. Nesse sentido, Habermas (1983, p. 90) considera que “o projeto de modernidade ainda não se cumpriu, sendo a recepção da arte apenas um de ao menos seus três aspectos”. Apesar das críticas e rejeições, algumas características da pós-modernidade podem ser apontadas e elencadas: • Alta tecnologia – novos dispositivos permitem o deslocamento mais rápido, o acesso a mais informações em um prazo menor de tempo, encurtando distâncias e propiciando o compartilhamento de informações e conhecimento; • Velocidade – a rapidez faz com que a obsolescência torne-se mais acentuada e as modas sucedem-se com mais celeridade; • Hedonismo e Consumismo – segundo Lasch (1983; 1984), o ser humano procura refugiar-se em uma sociedade hostil (susceptível a doenças e epidemias, à violência urbana, ao acirramento da Guerra Fria etc.) no individualismo exacerbado e procura uma nova identidade não nas ideologias políticas e religiosas, mas nas grifes, acentuando o consumismo de produtos e marcas; • Niilismo – como as ideias são superadas com maior presteza, instala-se com maior força o ceticismo, a descrença no futuro; • Pastiche – o artista pós-moderno expressa-se pela mistura de estilos pré-existentes; • Nostalgia – uma vez que o tempo presente é ameaçador, volta-se para um passado idílico; • Simulacro – para Jean Baudrillard (1991), este fenômeno simulacro assinala o colapso entre as distinções sobre os objetos representados e a representação em si mesma. Trata-se de um momento em que o signo ganha proeminência sobre o objeto representado, tornando-se mais real e melhor do que seu referente. Um dos aspectos relevantes desse processo diz respeito à metanarrativa, que pode ser definida como um termo literário e filosófico que significa simplificadamente a narrativa contida dentro ou além da própria narrativa. O prefixo met(a)- tem sentido de "além de; no meio de, entre; atrás, em seguida, depois". A Metaficção é, no seu significado original, um tipo de texto que revela propositadamente os mecanismos da produção de uma obra literária. Serve para designar outras formas de expressão artística. Na visão de Eco (1994), o texto não fala, o leitor é que deve ter a iniciativa de produzir sentidos. Para o teórico italiano, há dois tipos de textos: os abertos e os fechados. Os fechados levam um leitor mediano por um caminho pré-determinado, pois são textos de baixa densidade semântica. Já os abertos produzem uma pletora de caminhos interpretativos para o leitor. Embora haja múltiplas (mas não infinitas) interpretações, o leitor não pode simplesmente inserir no texto suas próprias eisegeses. As referências são hipertextuais, até mesmo, metatextuais e metalinguísticas. Essas estruturas constroem um leitor-modelo capaz de gerar textos por meio de sua cooperação interpretativa, sendo ele próprio definido pela organização lexical e sintática do texto. Dessa forma, o texto é nada mais que a produção semântico-pragmática do seu próprio leitor-modelo. No âmbito da Comunicação, em especial a massiva, já nos anos 1960, havia uma propensão para a análise desse processo cultural, interesse que antes se detinha nas obras de cunho erudito (literatura, artes em geral, música clássica etc.). Em relação ao cinema, Pucci Jr. (2008, p. 199-201) identifica os princípios de uma “poética do pós-modernismo” com os seguintes atributos: oscilação entre a narração ilusionista clássica e o distanciamento modernista; uso da paródia lúdica; estetização; hibridismo transtextual; relação com o cinema de entretenimento, videoclipes, propaganda e outros produtos da cultura midiática; não-exclusão do espectador sem repertório sofisticado; combinação entre representação clássica e denúncia de representação. Nesse sentido, alguns exemplos podem ser apontados, como os filmes Caçadores da Arca Perdida, lançado em 1981 (que flerta com os seriados cinematográficos da década de 1940 e com histórias em quadrinhos), e Blade Runner – O Caçador de Andróides, de 1982, que, embora seja uma ficção científica futurística, utiliza a estética (figurino, iluminação etc.) típica do filme noir, estilo iniciado quatro décadas antes. A análise da TV e do vídeo pós-modernos pode ser, conforme Connor (1989, p. 129-130), “transgressiva” ou “incorporativa”: “a primeira forma visa identificar elementos pós-modernos na televisão ou identificar e promover possibilidades progressistas nos textos em vídeo pós-modernos”, em contraposição à modalidade dominante de TV, pautada pela repetição e pelas transmissões ao vivo. O videoclipe (assim como a MTV) e a “neo-TV” (a TV que toma a si mesma e aos seus participantes como tópico) chamam a atenção dos teóricos do pós-moderno. As histórias em quadrinhos, por sua vez, a partir da década de 1980, exploram o experimentalismo gráfico, a mistura de estilos, a narrativa fragmentada (múltiplos focos narrativos), a intertextualidade (com o cinema, a publicidade, o videoclipe, a literatura) e a metaficção, estreitando as relações entre a indústria cultural e a arte. Assim, Scolari assevera que os quadrinhos da década de 1980 sofreram determinadas influências e compartilharam alguns elementos: A colagem, a (con)fusão textual e a citação indiscriminada de outras obras foram eixos articuladores da cultura dos anos 80. Os vestígios desta lógica produtiva são encontrados nos videoclipes e na música rap, no [livro] O nome da rosa e na mãe de todos os filmes dessa década, Blade Runner. Todas essas obras, linguagens e gêneros produziram uma complexa trama de reenvios intertextuais que constituem o esqueleto fundador de uma cultura mestiça de aspirações planetárias. A história em quadrinhos não podia ficar à margem dessas lógicas produtivas. Nos anos 80 a história em quadrinhos, tradicional companheira de rota do cinema e da literatura, abriu seu espectro de referências intertextuais e começou a incluir em seu registro novas linguagens e elementos provenientes de todos os rincões da indústria cultural. As histórias em quadrinhos estenderam seus tentáculos e fagocitaram videoclipes, arquiteturas, fotogramas, videogames, capas de discos, músicas, peças publicitárias, ilustrações de moda e figurinhas sem nenhum tipo de complexo. Nota-se nos quadrinhos dos anos 1980 a mistura de desenhos (realistas