Cinema De Favela O Real Da Ficção, a Estética Do Político
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA Cinema de Favela O real da ficção, a estética do político Leandro Silva de Oliveira São Carlos 2018 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA Cinema de Favela O real da ficção, a estética do político 1 Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos para obtenção do título de doutor em Sociologia. Orientadora: Cibele Saliba Rizek Leandro Silva de Oliveira São Carlos, julho de 2018 2 3 4 Fotograma dos Extras de Cidade de Deus / Perseguição à galinha. Agradecimentos Em uma entrevista que cito de memória, Ferreira Gullar recusa a ideia de que a poesia seja um ofício solitário. Alguém construiu o teto sob o qual se assenta o poeta para escrever, alguém plantou e colheu seu alimento, fez sua cama, sua mesa, suas roupas, seus sapatos; também suas inquietações, seu repertório e vocabulário, sua poesia mesma se faz de outros tantos poemas e poetas. Bem, essa tese, escrita em horas solitárias, deve muito a muita gente. Agradeço à minha família pelo suporte e carinho. Aos professores, colegas e funcionários do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, sobretudo à minha orientadora, Cibele Rizek, que me acompanhou nas experimentações de horizontes e soluções teóricas, sempre provisórias. Aos colegas do Neab/UFSCar pelo aprendizado e trabalho conjunto. Agradeço ao Gabriel Feltran pelo acolhimento no grupo NaMargem, um espaço de discussão instigante que ampliou meus horizontes sociológicos e contribuiu para os 5 rumos que tomou esta tese. Estendo o agradecimento aos amigos e amigas do grupo com os quais convivi nesses últimos anos. Sou grato também à grande trama de entusiastas do cinema e das artes, pessoas para mim anônimas que mantém redes mais ou menos clandestinas de compartilhamentos de filmes e de obras digitalizadas sem as quais essa tese seria muito mais difícil e em alguns aspectos inviável. Esse trabalho foi desenvolvido com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), por meio de uma bolsa de estudos, pela qual sou grato. 6 Real, impossivelmente real. Álvaro de Campos, Tabacaria Resumo O cinema brasileiro contemporâneo, particularmente aquele empenhado numa revisita à periferia, finda por atualizar alguns aspectos do trânsito entre o filme e o contexto social, entre estética e política, tema e forma, entre ficção e realidade. E, ao fazê-lo, sobreleva um já longo diálogo de fundo que tem na sociologia e na antropologia interlocutores privilegiados. Isto posto, três ordens de problemas servem de horizonte para a fabulação teórico-analítica que desenvolvo. O primeiro é o problema da ficção como espaço de conformação para certas ambiguidades fenomenológicas e as articulações que daí se depreendem, i. e., como certas exterioridades são internalizadas, no filme, num embaçamento entre o ficcional e o não ficcional, o discursivo e a empiria. Por outro lado, investigo de que maneira a tradição e expedientes das Ciências Sociais (em diálogo com a estética documentário) são mobilizados como modelos epistemológicos e referentes de acesso privilegiado ao real. O terceiro é o problema do próprio real como matéria prima da qual se servem 7 os discursos, do real como valor, e que se comunicam com uma vocação dissertativa do filme, da diegese como corpus e da narrativa como thésis. Parto, portanto, da forma, do nível da significação do dispositivo propriamente cinematográfico, para, daí reconstituir os vínculos, afinidades e pressupostos de engajamento do filme com o real ‘para dentro’ e ‘para fora’. Introduzo uma abordagem teórico-metodológica e histórico-conceitual nas primeiras páginas e, em seguida, proponho cinco ensaios sobre cinco filmes bastante diferentes entre si, mas que têm em comum a gravitação em torno dos temas da periferia urbana, da pobreza e da violência no Brasil: Cidade de Deus (2002), Linha de passe (2008), Tropa de Elite e Tropa de Elite 2: O inimigo agora é outro (2007 e 2010)1, O som ao redor (2013) e Branco sai, preto fica (2014). Palavras-chave: cinema, real, favela, cidade, verdade. 1Analiso Tropa de Elite como um único filme em duas partes e privilegio, na análise, a primeira parte. Abstract Contemporary Brazilian cinema, particularly the one committed to revisiting the urban periphery, ends up refreshing some aspects of relation between the film and the social context, aesthetics and politics, theme and form, between fiction and reality. And in doing so, it maintains an already long-standing background dialogue which has privileged sociology and anthropology as interlocutors. That said, three orders of problems guide the theoretical-analytical fabulation that I develop. The first is the problem of fiction as a space of conformation for certain phenomenological ambiguities and the articulations that follows; how certain exteriorities are internalized in the film in a blurring between the fictional and the nonfictional, the discursive and the empirical. Next, I investigate how the social sciences tradition and practice (in dialogue with documentary aesthetics) are mobilized as epistemological models and referent of privileged access to the real. The third is the problem of the real itself as a raw material on which the discourses are based, of the real as a value, and communicating with an argumentative vocation of the film, of diegesis as a corpus 8 and narrative as a thesis. I start, therefore, from the form, from the level of the meaning of the cinematographic device properly, so as to reconstitute the bonds, affinities and assumptions of engagement of the film with the real 'in' and 'out'. In the first part of the thesis I present a theoretical-methodological and historical-conceptual approach to these impasses. Thereafter I propose five essays about five films that are quite different from each other, but which share the gravitation around the themes of urban periphery, poverty and violence in Brazil: Cidade de Deus (2002), Linha de passe (2008), Tropa de Elite e Tropa de Elite 2: O inimigo agora é outro (2007 e 2010), O som ao redor (2013) e Branco sai, preto fica (2014). Keywords: cinema, real, favela, city, truth. Sumário Abertura - Cine Favela, um diálogo de fundo 10 Cidade de Deus - O antropólogo e o nativo 81 Linha de passe - A verdade do documentário 133 Tropa de elite - A desmesura do real 180 O som ao redor - O passado e o espelho 227 Branco sai, preto fica - De nós fabulamos nós mesmos 263 O retorno do real - Considerações finais 286 Referências bibliográficas 296 Ficha técnica dos filmes analisados 307 9 10 Abertura Cine Favela, um diálogo de fundo 11 Fotogramas dos Extras de Cidade de Deus / Buscapé em 360º. Duas pessoas estão sentadas numa sala. Estão ambas em silêncio. Então, uma delas diz “Bem”. A outra não responde. Este diálogo enigmático que se assemelha ao fragmento de um filme do qual nos chegasse apenas um esboço composicional e a transcrição do áudio - a palavra bem - aparece à certa altura de Discurso na Vida e Discurso na Arte, ensaio de Bakhtin & Voloshinov2 publicado em 1926, no âmbito das disputas teóricas de um século que se voltava para a linguagem. A imagem é fascinante. A cena, incisiva, quer nos dizer algo sobre os sentidos da matéria artística. O minimalismo do cenário, a austeridade do traçado, as personagens monolíticas, a solução lacônica do ato como que compõem uma poética da incomunicabilidade, um expediente largamente explorado pelos teóricos e retratistas da modernidade (e ao qual o cinema eventualmente conferiu glamour) de sorte que tudo nela soa-nos estranhamente familiar. Há ainda a dilatação do vazio e o estrangulamento da fala que fascinam pelo enigma, a mise-en-scène, em aridez de pedra bruta, parece completamente impenetrável. 12 Eis o paradoxo, a cena (um exemplo simplificado, diz Bakhtin) é imediatamente reconhecível, próxima, e, contudo, ou por isso mesmo, impenetrável. Debruçada impassivelmente sobre o próprio torso, tudo nela permanece estranho e inalcançável. Ocorre que o pequeno drama tanto encerra-se sobre si mesmo, hermetismo ou mistificação, como pode abrir-se em presumidos e heteroglossia. Desse caráter ambíguo e mesmerizante do segmento, Bakhtin extrai a melhor vantagem; avoluma a impenetrabilidade da cena para em seguida descortiná-la em sutilezas e sensibilidades, leva a incomunicabilidade ao limite para, ato contínuo, preenchê-la de viva conversação. Ao invés do drama psicológico ou do fetiche pelo dado, extrai, engenhosamente, consequências teóricas daquele intervalo que se opera entre a interjeição monossilábica e o silêncio. Não o silêncio como avesso da fala, mas campo alargado da enunciação, certo caráter discursivo do entre palavras. Demoremos, por um instante, sobre essa operação. Ora, é contra a autonomia da forma e de uma suposta imanência (autossuficiente) da matéria artística que Bakhtin investe sua artilharia neste ensaio. 2 Este texto é atribuído a Voloshinov e Bakhtin. Refiro-me, metonimicamente, a Bakhtin como autor daqui em diante. Ao reduzir propositalmente o espaço de manobra da análise ao perímetro de uma interjeição, a palavra bem, Bakhtin quer demonstrar que o método formal, refém da “parte puramente verbal do enunciado”, nos conduz a um beco sem saída. O “colóquio peculiar de duas pessoas, consistindo numa única palavra [...] faz pleno sentido, é completo e pleno de significação” e, no entanto, para aqueles que estão de fora da conversação, por “mais sutilmente que se definam os fatores fonéticos, morfológicos e semânticos da palavra bem, não se avançará um simples passo para o entendimento do sentido total do colóquio”.3 Vejam, o ensaio de Bakhtin carrega, ele mesmo, uma dimensão dramática que mimetiza o argumento a que se presta elucidar. O texto é estruturado em um movimento de dilema-decifração, oclusão-abertura, monologia-dialogia. Atravessado pelo contexto teórico-conceitual do período em que foi escrito, a ideia de presumido ou “não-dito” incide sobre todo um debate de fundo com as oposições binárias de Ferdinand Saussure, o formalismo russo e a teoria psicanalítica aplicada à análise da arte.