Archai nº 22: revista completa Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/43384 DOI: DOI:https://doi.org/10.14195/1984-249X_22

Accessed : 10-Oct-2021 09:12:30

A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos.

Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença.

Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s) título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do respetivo autor ou editor da obra.

Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por este aviso.

impactum.uc.pt digitalis.uc.pt

Página deixada propositadamente em branco Revista sobre as origens do pensamento ocidental Journal on the Origins of Western Thought

22 | Jan.-Apr. 2018 Infothes e Tesauro ANNABLUME EDITORA Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 554 – Pinheiros Archai: Revista sobre as Origens do Pensamento Ocidental 05415-020 – São Paulo – SP – Archai: Journal on the Origins of Western Thought, n.º Televendas: (5511) 3539 0225 – Tel.: (5511) 3539 0226 22 (Jan./Apr. 2018). [email protected] Brasília, 2018 [Impressa e eletrônica]. www.annablume.com.br

Quadrimestral. Revista Archai / Archai Journal CÁTEDRA UNESCO ARCHAI, Título português / inglês Universidade de Brasília, Instituto de Ciência Humanas, ISSN 2179­‑4960. Programa de Pós-Graduação em Metafísica e­‑ISSN 1984­‑249X. 70904­‑970, Brasília, DF DOI: https://doi.org/10.14195/1984­‑249X_22 Phone: +55 (61) 3107­‑7040 Website: periodicos.unb.br/index.php/archai 1. Filosofia. 2. História da Filosofia. 3. História Antiga. 4. Literatura. 5. Estudos Clássicos. 6. História do Pensamento Ocidental.

CDU 101 CDD 100

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA Rua da Ilha, 1 3000-214 Coimbra Tel.: (+351) 239 247 170 http://livrariadaimprensa.uc.pt http://www.uc.pt/imprensa_uc Archai: Revista de Estudos sobre as Origens do Pensa- VENDAS ONLINE: mento Ocidental é uma publicação quadrimestral da http://livrariadaimprensa.uc.pt Cátedra UNESCO Archai: As Origens do Pensamento http://www.annablume.com.br Ocidental. IMPRESSÃO: É publicada no Brasil (Universidade de Brasília/Anna- Annablume blume) e em Portugal (Imprensa da Universidade de Coimbra) em versões impressa e eletrônica. PROJETO GRÁFICO: Rodolfo Lopes

A avaliação dos artigos submetidos é feita pela modali- DIAGRAMAÇÃO: Linda Redondo dade blind-review. COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO: Maria João Padez Archai está catalogada no Web of Science de Castro (Thomson Reuters/ESCI),L’Année Philologique, Philoso- pher‘s Index, DOAJ, Phil Brasil, Philpapers, Latindex, JORNALISTA RESPONSÁVEL: Carolina Pinto Cengage Learning, Google Scholar, BASE, PKP Index no Portal de Periódicos da CAPES. Recebeu avaliação de fator de impacto 5.171 no Scientific Journal Impact Fac- tor e foi avaliada pelo recente Qualis CAPES com a nota (A2) na área de Filosofia.

EDIÇÃO: Imprensa da Universidade de Coimbra Annablume Editora

EMAIL: [email protected]

URL: http://www.uc.pt/imprensa_uc nº 22, Jan.-Apr. 2018

EDITORES PRINCIPAIS / PRINCIPAL EDITORS

Gabriele Cornelli (Universidade de Brasília, Brasil) – Editor Responsável – [email protected] Rodolfo Pais Nunes Lopes (Universidade de Brasília, Brasil) – Editor Adjunto – [email protected]

COMISSÃO EDITORIAL / EDITORIAL BOARD

Anna Marmodoro (University of Oxford, United Kingdom) - [email protected] Barbara Sattler (University of Saint Andrews, United Kingdom) - [email protected] Delfim Leão (Universidade de Coimbra, Portugal) [email protected] Dennys Garcia Xavier (Universidade Federal de Uberlândia, Brasil) – [email protected] Donald Morrison (Rice University, Houston, USA) - [email protected] Francesc Casadesus (Universitat de les Illes Balears, España) - [email protected] Francesco Fronterotta (Università La Sapienza di Roma, Italia) - [email protected] Giovanni Casertano (Università degli Studi di Napoli, Federico II, Italia) - [email protected] Graciela Marcos de Pinotti (Universidad de Buenos Aires, Argentina) - [email protected] Loraine de Fátima Oliveira (Universidade de Brasília, Brasil) – [email protected] Marcelo Carvalho (Universidade Federal de São Paulo, Brasil) - [email protected] Maria Cecília Nogueira Coelho (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil) – [email protected] Michael Erler (Universität Würzburg, Deutschland) - [email protected] Miriam Campolina Peixoto (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil) - [email protected] Oliver Renaut (Universitè Paris Ouest, Nanterre La Défense, France) - [email protected] Phillip Horky (Durham University, United Kingdom) - [email protected] Richard McKirahan (Pomona College - Los Angeles, USA) - [email protected] Sandra Rocha (Universidade de Brasília, Brasil) - [email protected]

COMISSÃO CIENTÍFICA / SCIENTIFIC COMMITTEE

Aldo Dinucci (Universidade Federal de Serjipe, Brasil) - [email protected] Ália Rosa Rodrigues (Universidade de Coimbra, Portugal) - [email protected] Anastácio Borges (Universidade Federal de Pernambuco, Brasil) - [email protected] André Leonardo Chevitarese (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil) - [email protected]. Anna Motta (Freie Universität Berlin, Alemanha) - [email protected] Edrisi Fernandes (Universidade de Brasília, Brasil) - [email protected] Fernando Muniz (Universidade Federal Fluminense, Brasil) - [email protected] Fernando Rey Puente (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil) - [email protected] Fernando Santoro (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil) - [email protected] Francisco Lisi (Universidad Carlos III de Madrid, España) - [email protected] Franco Ferrari (Università degli Studi di Salerno, Italia) - [email protected] Franco Trabattoni (Università degli Studi di Milano, Italia) - [email protected] Hector Benoit (Universidade Estadual de Campinas, Brasil) - [email protected] Henrique Cairus (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil) - [email protected] José Gabriel Trindade Santos (Universidade Federal do Ceará, Brasil) - [email protected] Katia Pozzer (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil) - [email protected] nº 22, Jan.-Apr. 2018

Livio Rossetti (Università degli Studi di Perugia, Italia) - [email protected] Luc Brisson (CNRS, Paris - France) - [email protected] Marcelo Boeri (Universidad Alberto Hurtado, Chile) - [email protected] † Marcelo Pimenta Marques † (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil) - [email protected] Marco Zingano (Universidade de São Paulo, Brasil) - [email protected] Marcus Mota (Universidade de Brasília, Brasil) - [email protected] Maria Aparecida Montenegro (Universidade Federal do Ceará, Brasil) - [email protected] Markus Figueira (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil) - [email protected] Noburu Notomi (Keio University, Japan) - [email protected] Pedro Paulo Funari (Universidade de Campinas, Brasil) - [email protected] Rodrigo Brito (Universidade Federal de Sergipe, Brasil) - [email protected] Thomas Robinson (University of Toronto, Canada) - [email protected] Zélia de Almeida Cardoso (Universidade de São Paulo, Brasil) - [email protected]

COMITÊ DE REDAÇÃO / MANUSCRIPT COMMITTEE

André da Paz (Brasília) Gustavo Laet Gomes (Brasília) Sussumo Matsui (Brasília) Página deixada propositadamente em branco nº 22, Jan.-Apr. 2018

EDITORIAL

Rodolfo Lopes...... 11

ARTIGOS / ARTICLES

Melisso critico di Parmenide: una rivalità mimetica Melissus as a critic of Parmenides: a mimetic rivalry Massimo Pulpito...... 17

“Hubiese querido morir antes o nacer después” (Hesíodo, Op. 175) “I would rather die before or be born afterwards” (Hesiod,Op . 175) Néstor Luis Cordero...... 41

A prioridade ontológica das substâncias imóveis segundo o livro Lambda da Metafísica de Aristóteles The ontological priority of the unmoved substances according to Aristotle’s Metaphysics Lambda Meline Costa Sousa...... 65

Commilito et Vir Militaris: aspectos bélicos da exaltação do Imperador Romano em Plínio, o Jovem Commilito et Vir Militaris: warlike aspects on the exaltation of Roman Emperor in Pliny the Younger Alex Aparecido da Costa e Renata Lopes Biazotto Venturini...... 99

Invisible cities: utopian spaces or imaginary places? Ana Martins...... 123

DOSSIÊ / DOSSIER Introdução: Medeia(s): entre a filosofia, a retórica e a literatura Introduction: Medeia(s): among Philosophy, Rhetoric and Literature Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho...... 157 nº 22, Jan.-Apr. 2018

Com Medeia solitária no banco dos réus On trial with lonely Medea Delfim F. Leão...... 167

The law in Euripides’Medea Stefania Giombini...... 199

O heroísmo de Medeia nas Argonáuticas de Apolônio de Rodes Medea´s heroism in Apollonius Rhodius´ Argonautica Fernando Rodrigues Junior...... 229

Cuncta quatiam: Medeia abala estruturas Cuncta quatiam: Medea shakes the elements Renata Cazarini de Freitas...... 255

Medeia escrava. Sobre Amada de Toni Morrison Medea as slave. On Toni Morrison´s Beloved Imaculada Kangussu...... 283

Tradução e (des)colonização: o caso de Medeia Translation and decolonization: Medea´s case Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa...... 299

Apollonius and the Golden Fleece: a neo-mythological screen legacy Martin M. Winkler...... 319

TRADUÇÃO / TRANSLATION

Platão. Cartas: Carta IV Plato. Letters: Letter IV Gabriele Cornelli e Rodolfo Lopes...... 365 nº 22, Jan.-Apr. 2018

RESENHAS / REVIEWS Souza Pereira, Rosalie Helena de (2016, org.). Na senda da razão: filosofia e ciência no Medievo judaico. São Paulo, Perspectiva Juvenal Savian Filho...... 375

Gómez Cardó, P.; Leão, D. F.; Oliveira, M. A. de, eds. (2014), Plutarco entre mundos. Visões de Esparta, Atenas e Roma. Humanitas Supplementum. Estudos Monográficos, Universidade de Coimbra. Coimbra; Coimbra University Press. Annablume Editora. Josep Antoni Clúa Serena...... 381

Diretrizes para autores...... 391 Submission Guidelines...... 401 Página deixada propositadamente em branco Rodolfo Lopes Editor Assistente Universidade de Brasília (Brasil) [email protected] nº 22, Jan.-Apr. 2018

Editorial Este vigésimo segundo número da revista Archai é, sem dúvida, um dos mais ricos, tanto em extensão quanto em diversidade, tendo em conta os já quase dez anos que passaram desde a sua fundação. São cerca de 400 páginas de produção científica em quatro línguas diferentes (Italiano, Português, Espanhol e Inglês), so- bre os mais variados temas e sob uma admirável diver- sidade teórico-metodológica, que marcam a traço forte o espírito de pluralidade que nos tem definido desde o início. Ao longo deste primeiro decénio que estamos prestes a cumprir, o esforço de consolidação como pu- blicação de referência nacional e internacional tem- -nos obrigado a manter um subtil e saudável equilíbrio entre estabilidade e renovação, que acreditamos ser o elemento nuclear para um projeto editorial dedicado 11 ao reexame necessariamente permanente e nunca es- gotado das origens da nossa matriz cultural. Não pode- ríamos deixar de registrar, a este propósito, o ingresso de André da Paz, Gustavo Gomes e Sussumo Matsui no renovado comitê de redação, sem os quais tal nú- mero não teria sido possível. Menos ainda poderíamos esquecer o hercúleo contributo de Ália Rodrigues, que, desde o passado recente ao momento de escrita des- te editorial, tem sido, sem qualquer exagero, a própria condição de possibilidade do nosso trabalho.

A secção de Artigos representa na perfeição a na- tureza multidisciplinar que tem definido a revista Archai. Os contributos de Massimo Pulpito (sobre nº 22, Jan.-Apr. 2018 Parménides e Melisso) e Meline Costa Sousa (sobre o Livro Λ da Metafísica de Aristóteles) enfrentam os fundamentos da ontologia e theologia ocidentais, isto é, os pressupostos mais basilares do nosso pensar, di- zer e saber. O texto de Néstor Luis Cordero aborda as Eras de Hesíodo, que, ainda hoje, constitui uma metá- fora preferencial para simular uma incessante transi- ção circular entre bons tempos e maus tempos. Outro aspecto igualmente determinante para a nossa matriz cultural, o pensamento utópico, é o tema do trabalho de Ana Martins, que relaciona o modelo de Calvino (nas Cidades Invisíveis) com Platão. Finalmente, o tex- to de Alex Aparecido da Costa e Renata Lopes Biazot- to Venturini aborda a figura do imperador romano, um arquétipo por excelência do governante ocidental, através da lente de Plínio, o Jovem.

Neste número tivemos também o prazer de contar com um Dossiê, que representa os resultados do XIII Seminário Internacional Archai, realizado em Brasí- 12 lia, de 5 a 7 de março de 2016. Reforçando a nossa inclinação multidisciplinar, dedicámos o seminário ao tema Medeia(s), entre a filosofia, a retórica e a literatura, tendo contado com contributos das mais variadas áreas do saber, como Direito, Literatura, Filosofia e Cinema. A organização do seminário, e do próprio dossiê, esteve a cargo de Maria Cecília Coelho, uma das mais queridas e antigas aliadas da nossa Cátedra.

Nas Traduções incluímos a Carta IV de Platão, traduzida e apresentada por Gabriele Cornelli e Rodolfo Lopes, no seguimento do projeto conjunto dos autores, que consiste em verter para o portu- guês todas as cartas tradicionalmente incluídas no corpus Platonicum. nº 22, Jan.-Apr. 2018

Na secção de Resenhas contámos com dois con- tributos, ambos sobre títulos publicados língua por- tuguesa. Um diz respeito a um volume organizado por Rosalie de Sousa Pereira acerca da filosofia me- dieval judaica (Na senda da razão: filosofia e ciência no medievo judaico) e o outro, em co-organização (Pilar Gómez Cardó, Delfim Leão, Maria Aparecida de Oliveira Silva), trata das descrições e análises de Plutarco a propósito das três cidades mais determi- nantes do Mundo Antigo (Plutarco entre mundos. Visões de Esparta, Atenas e Roma).

13 Página deixada propositadamente em branco artigos | articles

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Página deixada propositadamente em branco Massimo Pulpito - Universidade de Brasília (Brasil) [email protected] - ORCID: 0000-0002-1488-747X

Melisso critico di Parmenide: una rivalità mimetica1 nº 22, Jan.-Apr. 2018

Melissus as a critic of Parmenides: a mimetic rivalry

PULPITO, M. (2018). Melisso critico di Parmenide: una rivalità mimetica. Archai, n.º 22, Jan.-Apr., p. 17-40 DOI: https://doi.org/10.14195/1984­‑249X_22_1

Riassunto: Una lunga tradizione storiografica ha impostato lo studio del pensiero di Melisso sulla base del confronto con Par- menide. Parrebbe infatti impossibile parlare del primo senza fare riferimento al secondo. Per questa ragione, raramente si è giunti a mettere in dubbio che Melisso possa essere ritenuto un Eleate honoris causa. Classicamente il confronto tra i due filosofi ha assunto la forma di una analisi delle differenze nella caratterizzazione dell’ente oggetto delle loro deduzioni. Negli ultimi tempi sono state proposte analisi più sofisticate che si sono concentrate su ulteriori elementi di differenza. Restano, comunque, altri punti di confronto, solitamente trascurati, 17 che inducono a ritenere che la filosofia di Melisso non sia sta- ta né l’interpretazione distorta e banalizzante che egli avrebbe dato del pensiero di Parmenide, né un tentativo di correzione dell’eleatismo. Sulla base dei dati qui presentati è lecito rico- noscere in Melisso un pensatore in polemica con Parmenide, seppure nella condivisione di alcuni presupposti. L’operazione di Melisso appare, infatti, come un tentativo di sostituire all’in- segnamento di Parmenide un sapere nuovo e autosufficiente, che ne assume in parte gli stessi tratti formali (al punto quasi da confondersi con esso) ma possedendo al fondo una valenza teorica e avanzando una visione della realtà del tutto diverse. Un’operazione questa che, perlomeno per quanto attiene alla ricezione antica, può dirsi parzialmente riuscita. Parole-chiave: Parmenide, Melisso, Doxa, Eleatismo, Monismo

Abstract: A long historical tradition has set the survey of nº 22, Jan.-Apr. 2018 Melissus’ thought on the basis of the comparison with Par- menides. In fact, it seems impossible to talk about the first without reference to the second. Thus, it was rarely doubted that Melissus was an Eleatic, at least honoris causa. Classical- ly, the comparison between the two philosophers has taken the form of an analysis of differences between the charac- Massimo Pulpito, ‘Me- ters of the objects of their deductions. Recently, more so- lisso critico di Parme- phisticated analyses focusing on further elements of differ- nide: una rivalità mi- ence have been proposed. Nonetheless, additional points for metica’, p. 17-40 comparison still remain, usually neglected, which allow us to hold that Melissus’ philosophy was neither the distorted and trivializing interpretation of Parmenides’ poem, nor an attempt to improve the eleatism. Based on the data presented here, it is reasonable to recognize in Melissus a thinker in conflict with Parmenides, albeit sharing some assumptions. Melissus’ procedure appears, in fact, as an attempt to replace the teaching of Parmenides with a new self-sufficient doc- trine that partly takes on the same formal features (to the point of being almost confused with its model) but none- theless possesses a different theoretical value and advances a quite different vision of reality. This strategy can be regard- ed as partially successful, at least with respect to its ancient reception. 18 Keywords: Parmenides, Melissus, Doxa, Eleatism, Monism Melisso di Samo ha goduto di scarsa fortuna nella tradizionale storiografia filosofica. Due tratti in -par ticolare ne hanno caratterizzato per lungo tempo gli studi. Il primo è dato dal carattere valutativo delle in- terpretazioni del suo pensiero, più accentuato che nel caso di altri autori del passato: chi si è occupato di Me- lisso ha avvertito molto spesso l’esigenza di integrare la ricostruzione storica con un giudizio teoretico, per di più segnato da una non consueta severità. La diffi- coltà di restituire alcuni passaggi dell’argomentazione esposta nel trattato di Melisso ha indotto molti studio- si, anche tra i più autorevoli, a reputarlo un pessimo ragionatore, capace di gravi errori logici. L’iniziatore di questa linea interpretativa è stato Aristotele (ad es. in Soph. el. 5, 167 b 13), il cui duro giudizio ricorre nº 22, Jan.-Apr. 2018 frequentemente nelle trattazioni del filosofo di Samo.

Il secondo tratto caratterizzante deriva dall’ogget- tiva consonanza delle tesi melissiane con quelle so- stenute alcuni anni prima da Parmenide di Elea. La Massimo Pulpito, ‘Me- conformità tra le due dottrine ha indotto gli studiosi a lisso critico di Parme- nide: una rivalità mi- considerare Melisso un filosofo “eleatico”, e quindi di metica’, p. 17-40 fatto un epigono di Parmenide. È raro, infatti, trova- re studi su Melisso che non facciano sistematico rife- rimento a Parmenide, mentre non accade pressoché mai il contrario. Questo non solo perché Parmenide, precedendo cronologicamente Melisso, è visto come l’iniziatore di quella linea di pensiero, e quindi tra i due il filosofo più originale, ma anche per l’effettiva complessità della sua opera, anche sotto l’aspetto sti- listico: Parmenide, com’è noto, scrive infatti in versi, a differenza di Melisso, la cui prosa asciutta sembra richiedere un minore sforzo esegetico e quindi conce- dere maggiore spazio ad un studio di tipo comparati- vo. La concomitanza di questi due fattori (il giudizio 19 negativo e l’associazione con Parmenide) ha determi- nato un impietoso cliché, quello del Samio come un banale imitatore, responsabile di una vera trivializza- zione intellettuale. Il dato singolare è che ciò è avve- nuto nonostante in Parmenide si rinvenga un ricorso niente affatto marginale alle risorse espressive e im- maginative del mito, mentre in Melisso si assiste alla prima testimonianza di una prosa filosofica lineare, contraddistinta da un procedere di tipo quasi geome- trico. Nemmeno nella stagione degli studi antichi in- centrati sullo schema dell’evoluzione vom mythos zum logos questo dato ha salvaguardato la reputazione di Melisso dal giudizio severo che lo accompagna da Aristotele in poi: il suo predecessore, seppure ancora nº 22, Jan.-Apr. 2018 avvolto nelle spire del mito, appare sempre più pro- fondo e in ultima analisi più avanti di lui2.

Classicamente, quindi, lo studio di Melisso ha as- sunto la forma di una analisi dei punti di divergenza Massimo Pulpito, ‘Me- tra Parmenide e il suo epigono samio, cioè di quegli lisso critico di Parme- aspetti su cui quest’ultimo avrebbe preso le distanze nide: una rivalità mi- metica’, p. 17-40 dal suo maestro di Elea, e che quindi ne giustifichino la trattazione. Più in particolare, tale confronto si è concentrato su un esame delle differenze niente affat- to marginali nella caratterizzazione dell’ente oggetto delle loro deduzioni, la più clamorosa delle quali è quella riguardante i limiti dell’essere, affermati da Par- menide e negati da Melisso. L’alternativa tra l’essere finito parmenideo e quello infinito melissiano (sia sul piano dello spazio, sia su quello del tempo) ha costitu- ito, con qualche ragione, un tema centrale negli studi sul filosofo di Samo. Ciò anche in ragione del fatto che proprio all’interno della dimostrazione dell’infinità si annidava il principale errore logico di cui Melisso era 20 accusato già da Aristotele. Il quadro è divenuto via via più articolato: ci si è chiesti, ad esempio, se si potes- se davvero parlare di una reale alternativa tra le due concezioni, visto che l’infinità teorizzata da Melisso era quasi certamente di tipo spaziale, mentre quella dell’essere parmenideo è apparsa ad alcuni solo meta- forica – così, ad esempio, Drozdek (2001). Così anche sul piano temporale: la presunta alternativa tra le due concezioni dell’eternità, quella del presente atempora- le di Parmenide e quella della perpetua durata di Me- lisso, è stata rimessa in discussione nel momento in cui ci si è chiesti se fosse fondata la tesi secondo cui Parmenide avesse realmente negato il tempo – così, ad esempio, Tarán (1979). Come si vede, la revisione del rapporto tra i due pensatori nasce sempre come un riflesso di una reinterpretazione di Parmenide. Sono nº 22, Jan.-Apr. 2018 rari i casi che procedono nella direzione contraria3.

È almeno a partire dagli importanti lavori di Reale (1970) e Vitali (1973) degli anni Settanta, che la pro- spettiva ha cominciato a mutare. Seppure già nell’Ot- Massimo Pulpito, ‘Me- tocento e nella prima metà del Novecento vi siano lisso critico di Parme- nide: una rivalità mi- stati pregevoli lavori in controtendenza che hanno metica’, p. 17-40 dato un contributo notevole alla comprensione del pensiero del Samio, negli ultimi decenni sono apparsi alcuni studi che hanno rimarcato il valore teoretico di Melisso, o comunque lo hanno giudicato merite- vole di interesse storiografico, contribuendo in modo più incisivo a rivedere la vulgata interpretativa, che pure non può ancora dirsi del tutto superata. Negli ultimi tempi, anche a seguito di un profondo riesame dell’interpretazione classica di Parmenide, sono state proposte analisi più sofisticate del rapporto tra i due pensatori, che si sono concentrate su ulteriori punti di divergenza. Penso a contributi quali quelli di Sedley (1999), Palmer (2004), Rapp (2013) e ora Mansfeld 21 (2016). In essi, sono presi in esame nuovi elementi di confronto, come ad esempio la struttura argomenta- tiva dei ragionamenti dei due filosofi: se la deduzione di Parmenide sembra presentare una struttura a rag- giera, in cui tutti i contrassegni dell’essere derivano da un’unica premessa, in Melisso il ragionamento parreb- be assumere la forma di una catena di deduzioni, che partendo da una premessa fondamentale, si sviluppa in modo che ogni attributo derivi dall’attributo prece- dente. Ciò, naturalmente, rende gli argomenti propo- sti dai due autori molto diversi. Quanto alla premessa iniziale delle loro argomentazioni, anche qui l’accordo non parrebbe essere perfetto, giacché se Parmenide parte dalla negazione del non essere, Melisso sembra nº 22, Jan.-Apr. 2018 invece muovere da una premessa molto più ordina- ria nella prima riflessione greca, il principioex nihilo nihil. Si è poi notato come la riflessione epistemologi- ca che costituisce un momento cruciale del pensiero di Parmenide, sia quasi del tutto assente in quel che Massimo Pulpito, ‘Me- conosciamo dello scritto di Melisso. In modo ancora lisso critico di Parme- più sottile, le analisi si sono concentrate sul diverso nide: una rivalità mi- metica’, p. 17-40 stile letterario del poema dell’Eleate e del trattato del Samio, oltre che sulle difformità sul piano del lessico e delle risorse espressive: se Parmenide propone un’ope- razione culturale complessa che si muove sullo sfondo dell’epica arcaica, Melisso parrebbe avere come rife- rimento esclusivo la produzione letteraria del primo naturalismo ionico.

Un elemento concettuale su cui si è più volte insisti- to in tempi recenti è la divergenza intorno al tema del monismo: se c’è un dato che può dirsi pressoché ormai acquisito è l’attribuzione a Melisso se non della esclu- siva paternità del classico monismo associato all’elea- 22 tismo, quantomeno di una sua forma più “austera” di quello parmenideo, riconosciuto invece come un mo- nismo dai tratti più “generosi” di quanto si riteneva in passato. Ciò mi pare si accordi con un altro dato che emerge chiaramente dalle analisi più recenti. Mi rife- risco al fatto che dal raffronto tra Parmenide e Melisso si evince come nel secondo vi sia deliberatamente di meno che nel primo, in termini di vocabolario con- cettuale, armamentario retorico, immaginario mitico, e più in generale nel ventaglio di soluzioni stilistiche. Si potrebbe parlare di minimalismo melissiano, ad in- dicare l’esigenza di essenzialità e asciuttezza avvertita dal Samio. Ed è proprio un’assenza ciò che segna la principale distanza tra i due pensatori sul piano te- orico, ossia la mancanza in quel resta del trattato di Melisso di dottrine fisiche. Un’assenza che trova con- nº 22, Jan.-Apr. 2018 ferma nella tradizione dossografica, come ad esempio nei significativi silenzi di Aezio, a fronte della ricchez- za di informazioni cosmologiche e fisiologiche riferite a Parmenide (di cui vi è una piccola traccia nei fram- menti del poema che vanno da B10 a B19 DK). Massimo Pulpito, ‘Me- lisso critico di Parme- nide: una rivalità mi- Significativo, a questo proposito, è anche quanto metica’, p. 17-40 ricaviamo da Plutarco. Sappiamo, infatti, che l’epi- cureo Colote aveva contestato, tra gli altri, Parmeni- de, accusandolo di aver distrutto la fede nell’esistenza stessa delle cose presenti nel mondo, sulla base della tesi secondo cui l’essere è soltanto uno. Plutarco nel suo Adversus Colotem avrebbe poi difeso Parmenide da quest’accusa, rimarcando come nel poema parme- nideo in verità fosse presente una vera e propria co- smologia. Ora, poiché tra i filosofi contestati da Colote compare anche Melisso – come risulta dalla testimo- nianza stessa di Plutarco – si deve presumere che ciò sia avvenuto per le stesse ragioni per le quali Colote criticava Parmenide. Eppure, Plutarco non ha difeso 23 Melisso, come invece ha fatto con Parmenide. Secondo Kechagia (2011, p. 160-164) la ragione di questo silen- zio risiede nel fatto che Plutarco non potesse difenderlo, giacché in Melisso una cosmologia mancava del tutto.

Questi dati contribuiscono ad escludere la possibi- lità di un “monismo generoso” (à la Parmenide) nel- la dottrina del Samio. Va detto che su questo tema le testimonianze su Melisso sono a volte apparse meno uniformi di quel che ci si potrebbe attendere. Già Ari- stotele (Soph. el. 28, 181 a 27) aveva fatto uso di un lessico equivoco: ad essere ingenerato e infinito se- condo Melisso sarebbe ὁ οὐρανός, l’universo (invece di τὸ ἐόν). Nello stesso Aezio (= 30 A9 DK) a propo- nº 22, Jan.-Apr. 2018 sito di Melisso ricorre più volte il termine κόσμος, cui sono attribuiti i caratteri dell’ἐόν4. Più interessante è quanto sostiene Galeno (= 30 A6 DK), il quale, com- mentando il trattato ippocratico De natura hominis5, afferma (sebbene introducendo prudentemente la sua Massimo Pulpito, ‘Me- informazione con un ἔοικε) che secondo Melisso vi lisso critico di Parme- sarebbe un’essenza comune che soggiace ai quattro nide: una rivalità mi- 6 metica’, p. 17-40 elementi fondamentali , ingenerata e incorruttibi- le, corrispondente a quel che dopo di lui si sarebbe chiamato “materia” (ὕλη). Ancora: Epifanio (= 30 A12 DK) riferisce che per Melisso tutto è uno, e che in natura (φύσει) niente dura e tutto potenzialmen- te si corrompe; Olimpiodoro (= 30 A13 DK) afferma che per Melisso il divino è “principio di tutte le cose” (ἀρχή πάντων), utilizzando la stessa espressione ca- nonica adoperata dai dossografi per l’acqua di Talete e l’aria di Anassimene, implicando, dunque, che per il Samio (esattamente come per i Milesî) esistano tutte le cose. Vi è, infine, la strana testimonianza di Euse- bio (che cita gli Stromata dello Pseudo-Plutarco) su 24 Metrodoro di Chio, da cui Bicknell (1982), con una certa sagacia, ha ritenuto di poter ricavare informa- zioni sulla presunta fisica perduta di Melisso (chiama- ta da Bicknell way of seeming, nel modo dell’interpre- tazione classica di Parmenide7). Ma Palmer (2001) ha obiettato che l’autore più probabile delle teorie esposte in quella testimonianza fosse Diogene di Apollonia, per di più sostenendo, giustamente, che le ragioni che inducono a dubitare che si tratti di tesi metrodoree, a fortiori portano ad escludere che siano melissiane8.

In verità, per tutte queste testimonianze vi sono fon- date riserve: se tutte assieme possono apparire come l’indizio di una qualche apertura al discorso sulla na- tura da parte di Melisso, ognuna di esse, a ben vedere, si rivela inesatta per ragioni evidenti. In alcuni casi, si nº 22, Jan.-Apr. 2018 utilizza un termine improprio (come “universo”, “co- smo” o “principio”) perché comune alla presentazione di altri filosofi naturalisti o autori di Περὶ φύσεως, ai quali Melisso è collegato (fosse pure in senso polemi- co). Il caso di Epifanio è meno problematico di quel Massimo Pulpito, ‘Me- che appare: più che testimoniare l’opposizione tra il lisso critico di Parme- nide: una rivalità mi- piano dell’essere e quello del divenire, egli probabil- metica’, p. 17-40 mente ha in mente i passi del trattato in cui Melisso utilizza la trasformazione delle cose come argomento per negarne la realtà (cf. B8). Infine, per quanto ri- guarda Galeno, egli non solo si riferisce a Melisso in modo dubitativo (“pare che…”), ma la sua è evidente- mente un’interpretazione del tutto decontestualizzata, basata più sul passo del testo ippocratico che pretende di commentare, che sull’effettivo trattato melissiano.

La divergenza con Parmenide sul piano delle dot- trine fisiche non sembra, dunque, poter essere revo- cata in dubbio. Per di più, essa è documentata da altri dati del tutto ignorati o scarsamente esplorati dalla 25 critica, ma che si rivelano utili a far luce sulla posi- zione di Melisso circa la fisica parmenidea. L’aspetto interessante è che queste differenze si nascondono in punti in cui Melisso sembra rievocare proprio Parme- nide. Si tratta però di elementi dottrinali che o vengo- no deformati, perché inseriti in un contesto difforme a quello di origine, o addirittura richiamati in senso polemico. Non è certo un caso se questi elementi di divergenza sono ricavati principalmente dal fram- mento B8, il quale, oltre ad essere uno dei resti del trattato più importanti tra quelli a noi giunti, è anche quello dove è possibile rinvenire maggiormente mo- tivi di polemica con i pensatori contemporanei (oltre che con l’uomo comune ai cui schemi cognitivi essi, nº 22, Jan.-Apr. 2018 secondo Melisso, aderiscono acriticamente).

In B8 Melisso propone un ulteriore argomento (ri- spetto a quello già presentato, che troviamo negli at- tuali frr. B5-6) a favore dell’unicità dell’eon, fondato Massimo Pulpito, ‘Me- sul rifiuto dell’attendibilità dei sensi che ci attestano la lisso critico di Parme- molteplicità. Qui, come è stato spesso notato, compare nide: una rivalità mi- metica’, p. 17-40 una proposizione che ricalca un verso di Parmenide. Melisso, infatti, afferma che se esistessero molteplici cose come la terra, l’acqua, l’aria, il fuoco, il ferro, l’oro, ciò che è vivo, ciò che è morto, ciò che è nero, ciò che è bianco, e tutte le altre cose ritenute vere dagli umani, allora esse dovrebbero essere immutabili come l’ente unico oggetto dei suoi ragionamenti: ma così non è, avverte Melisso, visto che le cose percepite dai sen- si mutano nel tempo. Ora, nell’elencare gli esempi di cose molteplici, Melisso aggiunge l’espressione: καὶ τὰ ἄλλα ὅσα φασὶν οἱ ἄνθρωποι εἶναι ἀληθῆ (“e tutte le altre cose che gli uomini dicono esser vere”); essa ri- chiama da vicino il verso B8.39 del poema parmeni- 26 deo: ὅσσα βροτοὶ κατέθεντο πεποιθότες εἶναι ἀληθῆ (“quelle cose che i mortali hanno stabilito convinti che fossero vere”). Nel raffronto tra queste due espressio- ni ciò che le distingue si rivela ben più istruttivo di quel che le accomuna. In Parmenide, infatti, il verso in questione precede una breve lista di voci: a essere ritenuti veri dai mortali (ma che la Dea protagonista del poema avverte essere nient’altro che nomi) sono “nascere e morire, essere e non essere, cambiare luo- go e mutare colore risplendente” (B8.40-41). Il filoso- fo si ferma qui e non aggiunge altro. Al contrario, in Melisso la formula analoga segue gli esempi proposti (cioè: terra, acqua, aria...) fungendo quasi da et cete- ra. Se, quindi, la lista parmenidea sembra chiusa, la seconda, invece, si presenta come aperta, indetermi- nata. Per quale ragione? La risposta risiede nelle stes- nº 22, Jan.-Apr. 2018 se voci elencate: Parmenide enumera eventi, processi, che hanno validità generale, e quindi sono di numero limitato; Melisso, al contrario, elenca cose, entità, che essendo particolari, sono giocoforza innumerevoli. Ed è una differenza sostanziale, che offre la misura del- Massimo Pulpito, ‘Me- lo scarto tra le due dottrine: Parmenide non mira ad lisso critico di Parme- nide: una rivalità mi- escludere gli oggetti dell’esperienza, ma il non essere. metica’, p. 17-40 A essere in questione non è la loro realtà attestata dai sensi, ma il modo in cui la interpretiamo. Ecco perché vengono esclusi tutti gli eventi e i processi che impli- cano il non essere (nascere, morire, muoversi, mutare, e persino lo stesso essere, allorché è associato al non essere, cioè quando è inteso come una manifestazio- ne intermittente e non il fondamento delle cose). In Melisso, invece, a essere escluse sono proprio le cose stesse, giacché solo l’eon esiste.

Quindi, in Parmenide sembra potersi ravvisare una critica della conoscenza di secondo livello: non è og- getto di discussione quel che gli uomini percepiscono, 27 ma il modo in cui essi pensano. Ciò traspare da un’al- tra differenza notevole tra i due scritti, e cioè l’obiettivo polemico dei due autori. Che la Dea di Parmenide si distingua dai mortali è cosa ovvia. Ma se la critica ver- tesse sull’attendibilità delle sensazioni umane, perché non comprendere lo stesso Parmenide (a cui nel poema si rivolge la Dea) tra coloro che sarebbero vittime dei sensi illusori? La divinità non si rivolge mai a Parme- nide attraverso l’appellativo: “voi mortali”: i βροτοί sono sempre terze persone. Non così in Melisso il quale, pur affermando di aver colto la verità dell’es- sere unico (οἷόν περ ἐγώ φημι τὸ ἓν εἶναι, B8.2), non si esclude dalle vittime dell’inganno dei sensi (δοκεῖ δὲ ἡμῖν, B8.3). Parmenide su questo è chiaro: l’erro- nº 22, Jan.-Apr. 2018 re dei mortali discende da ciò che essi κατέθεντο (B8.39, 53), “hanno stabilito”. Se ne inferisce che l’errore deriva da un’arbitraria stipulazione, quindi da una precisa responsabilità di chi crede acritica- mente a ciò che è infondato. Ed è questa la ragione Massimo Pulpito, ‘Me- lisso critico di Parme- per cui la Dea condanna l’insipienza dei mortali con nide: una rivalità mi- una certa durezza (si veda il fr. B6): perché appunto metica’, p. 17-40 essi fanno ciò che potrebbero (e dovrebbero) non fare. Nel caso di Melisso le cose stanno diversamen- te: l’illusione non discende da un errore, non è qual- cosa a cui, in linea teorica, ci si può sottrarre se solo si ragiona in modo corretto; per il filosofo di Samo l’inganno è inevitabile, si potrebbe dire anacronisti- camente “trascendentale”9, al punto che anche chi se ne accorge (come lo stesso Melisso), nondimeno non può non cadere in questo inganno, non può non vedere e sentire ciò che vede e sente. In sostanza, l’atteggiamento di Melisso appare per certi versi più comprensivo verso gli umani (perché letteralmente 28 comprende chi erra in un “noi”). Ma nel frammento B8 di Melisso vi sono altri pas- saggi degni di nota. Nel tentativo di dimostrare che gli uomini non percepiscono in modo corretto, il fi- losofo fa leva sull’evidenza del mutamento delle cose: poiché le cose mutano, cioè percepiamo volta per volta cose diverse e niente resta ciò che era, allora se ne deduce l’inaffidabilità dei nostri sensi. La validità dell’argomento è stata più volte contestata, ma quel che interessa sono gli esempi di mutamento che, se- condo Melisso, mostrerebbero l’inganno della nostra conoscenza sensibile. Il filosofo menziona tra le altre cose le dinamiche caldo-freddo e molle-duro: ciò che è caldo si raffredda e viceversa; ciò che è molle s’indu- risce e viceversa (B8.3). Ora, si tratta di opposizioni di caratteri che le testimonianze antiche attribuiscono nº 22, Jan.-Apr. 2018 ai due principi fisici parmenidei, Fuoco-Luce e Notte: si veda in particolare lo scolio riportato da Simplicio (in Phys. 31.3) a ridosso dei versi che presentano i due elementi (B8.56-59). È soprattutto la polarità termica che, stando a numerose testimonianze, sembra aver Massimo Pulpito, ‘Me- assunto un ruolo centrale nelle spiegazioni cosmolo- lisso critico di Parme- nide: una rivalità mi- giche e fisiologiche presentate nel poema parmeni- metica’, p. 17-40 deo10. Quindi, la dualità che Parmenide pone alla base dei suoi discorsi naturalistici, è invece per Melisso il segno dell’irrealtà delle cose che percepiamo.

Naturalmente, si potrebbe pensare di rimuovere questa divergenza, ritornando all’interpretazione clas- sica di Parmenide, e ritenere che la seconda parte del poema, la cosiddetta Doxa, contenga soltanto gli errori dei mortali (si vedano ad esempio i versi B8.51-52). Si tratterebbe dunque di una divergenza apparente, che nasconderebbe, in realtà, una convergenza di fondo. Entrambi contesterebbero questo tipo di spiegazioni naturalistiche, ma mentre Parmenide le raccoglierebbe 29 in una sorta di elenco delle cattive teorie, Melisso (in ossequio alla sua asciuttezza stilistica) ne mostrerebbe l’errore fondamentale senza soffermarvisi, scelta che spiegherebbe l’assenza di una Doxa nel suo trattato. Le cose, però, non sono così semplici, come si è accorta la critica più recente, giacché non solo questo non spiega perché Parmenide avrebbe indugiato così tanto nell’e- sposizione di teorie cosmologiche e fisiologiche, di cui ci è rimasto poco, ma che credibilmente costituivano la parte più nutrita dell’opera, e che dossografi diversi non hanno esitato a giudicare genuinamente parme- nidee. Ma soprattutto in Parmenide le teorie fisiche non sono così chiaramente accomunate alle “opinioni dei mortali”, giudicate in termini negativi. Se quest’ul- nº 22, Jan.-Apr. 2018 time sono, infatti, presentate come il prodotto di una stipulazione dei mortali (ciò che essi “stabilirono”), e per di più come credenze infondate, le teorie propo- ste dalla Dea si occupano direttamente di oggetti fisi- ci (etere, stelle, Sole, Luna, cielo, maschi, femmine…) Massimo Pulpito, ‘Me- e sono volte a illustrarne la natura, l’origine e le opere lisso critico di Parme- (come annuncia il fr. B10)11, senza più usare la terza nide: una rivalità mi- metica’, p. 17-40 persona plurale. Non solo, ma che qui Parmenide non possa essere accomunato a Melisso, lo dimostra la va- lenza esplicativa delle sue teorie: ad es. nei frr. B14-15 Parmenide afferma che la luna brilla della luce riflessa dal sole. Ora, è già difficile pensare che l’Eleate potes- se attribuire questa teoria ai comuni mortali, ma a ri- gore, se Parmenide fosse un monista austero, per lui non esisterebbe alcun oggetto di nome “Luna” e quindi poco importerebbe di quale luce brilli questo oggetto inesistente, se propria o riflessa. A quel punto, avreb- be avuto più senso escludere alla radice ogni discorso fisico, proprio come ha fatto Melisso. Ma Parmenide non è Melisso. E del resto, proprio nel passaggio di 30 giuntura tra la condanna delle opinioni dei mortali (presentate come κόσμον ἐπέων ἀπατηλόν, B8.52) e le teorie fisiche, la Dea annuncia a chiare lettere di voler presentare un διάκοσμον ἐοικότα (B8.60).

Sebbene non sia possibile qui soffermarci sulle ca- ratteristiche specifiche della fisica parmenidea e sul modo in cui l’Eleate tenta di congiungere i diversi di- scorsi nel poema – me ne sono occupato in Pulpito (2011) – un elemento può essere messo in luce e cioè la rilevanza che Parmenide sembra dare a due nozioni: quelle di “forma” e “forza”. Nel passaggio strutturale in cui il discorso della Dea transita dalle opinioni alla fi- sica, infatti, il filosofo menziona da un lato le μορφαί (B8.53), dall’altro le δυνάμεις (B9.2, ma si vedano an- che le virtutes di B18.2, 4, nella traduzione latina di nº 22, Jan.-Apr. 2018 Celio Aureliano). Sembrerebbe, dunque, che nella di- sgiunzione tra le opinioni da condannare e le teorie fi- siche appropriate, Parmenide abbia dato a queste due nozioni (μορφαί e δυνάμεις) una funzione primaria, al punto da costituire una vera “morfologia dinamica”. Massimo Pulpito, ‘Me- Potrebbe essere questo, allora, il riferimento polemico lisso critico di Parme- nide: una rivalità mi- di un altro oscuro passo del fr. B8 di Melisso, la cui metica’, p. 17-40 interpretazione è sempre stata molto difficile. In esso Melisso afferma che a noi uomini sembra che le cose mutino e ci appaiano sempre diverse, anche se soste- niamo che gli esseri molteplici siano dotati di εἴδη e ἰσχύν (B8.4). Questo obliquo riferimento alle “forme” e alla “forza” acquista molto più senso se interpretato nella prospettiva di una polemica con la teoria par- menidea, che invece proprio ad esse affidava l’espli- cazione dei fenomeni fisici. I termini non sono quelli corrispondenti che troviamo nei frammenti parmeni- dei12 a noi giunti (sebbene potrebbero benissimo esser stati utilizzati nelle sezioni perse), ma le nozioni sono proprio quelle. D’altronde, Melisso utilizza il termine 31 δύναμις in B7.4, allorché nega che l’essere provi dolore, giacché ciò che avverte dolore, afferma il filosofo, non ha una δύναμιν uguale a ciò che è sano. Salta agli occhi la differenza con Parmenide, che invece utilizza lo stesso termine al plurale. Ancora alla forza fa, poi, riferimento Melisso quando, sempre in B8, afferma che se le cose fossero veramente non muterebbero, giacché nulla è più forte (κρεῖσσον, B8.5) di ciò che è veramente. Come si vede, il filosofo sembra ridurre tutto ad una unica forza, quella che esprime la permanenza assoluta dell’essere. Il bipolarismo parmenideo, che consentiva una dinamica mescolativa di forze, è rifiutato alla radice.

A tutto ciò vanno aggiunti due rimandi melissia- nº 22, Jan.-Apr. 2018 ni alla fisica parmenidea recentemente segnalati da Mansfeld. Nel fr. B7, allorché esclude l’esistenza del vuoto, Melisso nega pure la possibilità che l’essere possa essere raro e denso. Si è solitamente pensato ad un riferimento ad Anassimene o a Diogene di Apollo- Massimo Pulpito, ‘Me- nia (posto che sia stato quest’ultimo a precedere Me- lisso critico di Parme- lisso, cosa del tutto dubbia). Mansfeld (2016, p. 82) nide: una rivalità mi- metica’, p. 17-40 però, nota come i due termini qui utilizzati (πυκνόν e ἀραιόν, B7.8) riecheggino criticamente gli attributi dei due principi fisici introdotti dalla Dea (πυκινόν e ἀραιόν, B8.57, 5913). Questo spiegherebbe la conse- guenza di sapore parmenideo che Melisso ne trae, ma che, ancora una volta, da Parmenide diverge signifi- cativamente: Melisso, infatti, ne deduce che la κρίσις, la distinzione da compiere, sia quella tra pieno e non- pieno (B7.9). Parmenide aveva utilizzato lo stesso ter- mine al verso B8.15 del poema, affermando, però, che la discriminazione fosse tra “è” e “n o n è”.

Vi è poi una interessante testimonianza ricavata dal 32 trattato pseudo-aristotelico De Melisso, Xenophane et Gorgia, secondo cui Melisso avrebbe argomentato contro la possibilità che il mutamento si realizzi attra- verso la mescolanza. L’anonimo autore del trattato è la nostra unica fonte a riguardo14. Come ha osservato Mansfeld (2016, p. 102-103), se la notizia fosse genui- na, allora Melisso starebbe contestando un’altra teoria centrale nella fisica parmenidea. Effettivamente, noi abbiamo indizi circa il fatto che all’interno dell’ulti- ma parte del poema di Parmenide le nozioni di μίξις e κρᾶσις (B12.4, B16.1, ma si veda anche in B12.1 l’aggettivo derivato ἄκρητος, oltre che in B18.1, 4, 6 i termini miscent e permixto nella traduzione latina di Celio Aureliano) svolgessero un’importante funzione nella spiegazione dei fenomeni fisici15. nº 22, Jan.-Apr. 2018 Le divergenze qui segnalate, accanto a quelli che sono apparsi come veri richiami polemici16, inducono a rivedere la nostra idea del rapporto tra Melisso e Par- menide. In forza dei dati raccolti, è lecito riconoscere nel Samio un filosofo in aperta polemica con il natu- Massimo Pulpito, ‘Me- ralismo dell’Eleate. Pur senza trascurare i numerosi e lisso critico di Parme- nide: una rivalità mi- forti punti di contatto tra i due (e cioè, la teorizzazione metica’, p. 17-40 di un ente di cui vengono dedotte caratteristiche per la maggior parte comuni), non sembra più possibile interpretare Melisso solo alla luce di Parmenide o del cosiddetto “eleatismo”, come se il Samio si limitasse a ripetere in tono minore e con piccole variazioni le tesi del maestro, ma nemmeno, secondo una lettura solo apparentemente più sofisticata, come se volesse cor- reggerlo e perfezionarne la dottrina. Queste interpre- tazioni tendono a perpetuare lo stesso schema, cioè intendere Melisso nel solco di Parmenide. È, certo, evidente che Melisso si sia ispirato all’Eleate, al punto quasi da sovrapporsi a lui sotto molti aspetti. Ma li- mitarsi a questa sovrapposizione, vuol dire leggere un 33 Parmenide monco, oscurato da Melisso. In Parmeni- de c’è molto di più, ma è proprio questo di più ciò con- tro cui Melisso si è scagliato apertamente. Intendere questa contestazione da parte del Samio solo come un portato del suo tentativo di emendazione del monismo imperfetto dell’Eleate, significa partire dal presuppo- sto tacito secondo cui Parmenide è emendabile, vale a dire che il suo monismo mal tollera la presenza di una fisica (vista quasi come un elemento di disturbo). Ma questa è già una prospettiva melissiana. In Parmenide l’ontologia e la fisica non sono giustapposte, ma con- vivono. Riconoscere gli elementi di polemica di Me- lisso contro Parmenide vuol dire non solo rafforzare la lettura monistica del pensiero del Samio e quindi la nº 22, Jan.-Apr. 2018 paternità melissiana di questa forma austera di mo- nismo, ma anche, di riflesso, riconoscere nella fisica parmenidea (distinta dalla cosiddetta Doxa) non un apparato critico, che in quanto tale non richiederebbe alcuna polemica da parte di Melisso, ma appunto un Massimo Pulpito, ‘Me- momento della dottrina dell’Eleate. lisso critico di Parme- nide: una rivalità mi- metica’, p. 17-40 In questo senso Melisso ci offre certamente un contributo di prim’ordine per la comprensione di Parmenide, poiché costituisce la testimonianza di una sua prima ricezione. Ma si tratta di una ricezio- ne complessa: l’operazione di Melisso appare, infatti, come un tentativo di sostituire alla dottrina del na- turalista Parmenide un sapere nuovo e autosufficien- te, che ne assume in parte gli stessi tratti formali (al punto quasi da confondersi con essa) ma possedendo al fondo una valenza teorica e avanzando una visio- ne della realtà del tutto diverse. Un’operazione que- sta che, perlomeno per quanto attiene all’età antica, può dirsi parzialmente riuscita. La dottrina di Melis- 34 so, infatti, otterrà un immediato successo, fornendo da subito il modello standard del cosiddetto eleati- smo, superando persino Parmenide, a cui peraltro la dossografia spesso lo associa. Questa fortuna ha certamente attraversato una fase di sovrapposizione tra le due dottrine, che ha generato alcune evidenti confusioni. Non c’è solo la dottrina di Melisso che fa ombra a quella parmenidea e spinge a schiacciare la fisica sulla Doxa, e ad attribuire all’Eleate il monismo austero del Samio (il caso emblematico è proprio Colote). Avviene anche il contrario, in una sorta di processo di osmosi: si spiegano così le testimonianze incerte viste sopra, in cui anche Melisso finiva per diventare una sorta di fisico che si occupa di cosmo e materia prima. Qui, è forse Parmenide che interfe- risce sulla ricezione della dottrina melissiana. nº 22, Jan.-Apr. 2018

Ciò non toglie che sul lungo periodo a vincere sarà la versione di Melisso. Si tratta però di una vittoria cadmea. Il suo mimetismo sarà talmente riuscito, da arrivare non già a scalzare Parmenide, ma, come si è Massimo Pulpito, ‘Me- visto, a confondersi con lui (anche in forza della ogget- lisso critico di Parme- nide: una rivalità mi- tiva complessità del parmenidismo). In questo modo, metica’, p. 17-40 Parmenide verrà visto come il vero inventore del mo- nismo austero, e Melisso, ormai etichettato come “ele- atico”, cioè come esponente di una scuola che prende il nome da una città in cui forse non è mai stato, sarà declassato a banale epigono. Finendo per essere, per dir così, vittima del suo stesso successo.

Notas 1 L’articolo riproduce, con leggere modifiche, il testo da me presentato al III Congresso Internacional de Filosofia Grega (Lisboa, 20-22 Abril 2016) organizzato dalla Sociedad Ibérica de Filosofía Griega. 35 2 Per un quadro dettagliato delle interpretazioni di Melisso (con particolare riguardo agli ultimi cinquant’anni) mi permet- to di rinviare a Pulpito (2016). 3 Così Reale (1970) o Graeser (1972), i quali hanno ravvi- sato anche in Melisso una forma di atemporalità, e quindi sono giunti a una revisione della presunta divaricazione tra l’Eleate e il Samio, partendo da quest’ultimo. 4 Abbastanza singolare l’informazione che ricaviamo da Aezio 2.1.6, secondo cui Diogene (di Seleucia?) e Melisso avrebbero affermato che il “tutto” (πᾶν) è infinito, mentre il “cosmo” (κόσμος) sarebbe finito. Indizio della grande impre- cisione di queste testimonianze è, ad es., il fatto che in Aezio 1.3.14 Melisso è detto di Mileto. 5 Sui riferimenti a Melisso nel De natura hominis si veda Jouanna (1965). nº 22, Jan.-Apr. 2018 6 Cf. Aezio 1.7.28, dove una notizia che si adatta alla dottrina di Empedocle (Diels la colloca, infatti, tra le testimonianze em- pedoclee, 31 A32 DK), viene riferita a Melisso e Zenone, cosa che solitamente (e a ragione) fa pensare ad una corruzione, ma che va sorprendentemente nella direzione di ciò che leggiamo Massimo Pulpito, ‘Me- in Galeno. lisso critico di Parme- 7 Altri autori che hanno ritenuto la teoria melissiana dell’esse- nide: una rivalità mi- re compatibile con una fisica sono stati Gilbert (1909, p.197-200), metica’, p. 17-40 Reinhardt (1959, p.71-73) e Loenen (1959, p.125-149). 8 Aggiungo qui una notizia non contemplata nelle raccolte e di cui sono a conoscenza grazie a Enrico Piergiacomi. Si trat- ta di una informazione ricavata dal Codex Bambergensis (VIII sec.), secondo cui Ippocrate avrebbe appreso la filosofia naturale di Melisso. Su questa notizia è di prossima pubblicazione un ar- ticolo di E. Piergiacomi dal titolo Melisso maestro di Ippocrate? Addendum a 30 A DK. 9 Fu Zafiropulo (1950, p. 247) a giudicare il frammento B8 melissiano come una sorta di Critica della ragion pura dell’epoca. 10 Il dato è documentato da diverse testimonianze raccolte nel Diels-Kranz, e tratte da Aristotele (= 28 A24, 52 DK), Teofrasto (= 28 A46 DK), Strabone (= 28 A4 DK), Aezio (= 28 A43, 44, 46a, 53 36 DK), Tertulliano (= 28 A46b DK), Diogene Laerzio (= 28 A1 DK). 11 Su questi “aspetti” della cosmologia parmenidea (ossia la triade “origine-natura-opere”) si veda De Simone (2016). 12 In verità ἰσχύς è termine parmenideo, ma lo troviamo in B8.12, quindi nella sezione “ontologica”, cioè all’interno della deduzione dei caratteri dell’ente. Fa riferimento alla “forza della certezza” (πίστιος ἰσχύς). 13 Va detto che il verso parmenideo B8.57, per come ci è stato tramandato, è palesemente contra metrum. La presenza di ἐλαφρόν e ἀραιόν ha fatto pensare che uno dei due fosse glossa dell’altro e quindi andasse espunto. Poiché ci sono studiosi che propendono per l’una o l’altra delle due soluzioni, non tutti cre- dono, dunque, che ἀραιόν sia parmenideo. Ciò non toglie che la polarità “denso-raro” fosse certamente in Parmenide. 14 Bremond (2016) ha, però, sostenuto che seppure non si può escludere che nel trattato di Melisso vi fosse un’argomen- tazione contro la mescolanza, questa, per diverse ragioni, non nº 22, Jan.-Apr. 2018 può essere quella esposta dallo Pseudo-Aristotele, la cui atten- dibilità andrebbe in parte messa in discussione. 15 Persino nel tormentato fr. B9, che contiene la celebre nega- zione del σῶμα, secondo Mansfeld (2016, p. 101-102) si nascon- derebbe una presa di distanza da Parmenide. Il termine σῶμα Massimo Pulpito, ‘Me- farebbe riferimento non alla corporeità materiale ma alla figura lisso critico di Parme- matematica: l’eon, essendo per Melisso infinito, non può avere nide: una rivalità mi- alcuna forma, a differenza di quanto pensava Parmenide, che lo metica’, p. 17-40 assimilava ad una sfera (28 B8.43 DK). Che poi, come alcuni pen- sano, l’immagine della sfera in Parmenide fosse solo una simili- tudine, non esclude che essa fosse invece recepita come la forma reale dell’essere (così, ad esempio, Platone Soph. 244e). 16 A integrare questi dati potrebbe esserci, inoltre, una te- stimonianza tratta da Filopono (in Phys. 65.23-24). Solitamente la notizia che se ne trae, e di cui siamo informati solo qui, è che Aristotele (che però non viene menzionato e sarebbe quindi sottinteso) avrebbe scritto un libro πρὸς τὴν Παρμενίδου δόξαν (come tale la frase compare nelle testimonianze su Parmenide del Diels-Kranz, tra A21 e A22). Secondo Vitali (1973, p. 161), però, il soggetto sottinteso sarebbe proprio Melisso (citato po- che parole prima). Ciò offrirebbe una notizia importante nell’ot- tica delle conclusioni a cui questo contributo vuol giungere. 37 Bibliografia

BICKNELL, P.J. (1982). Melissus’ Way of Seeming?. Phronesis 27, p. 194-201. https://doi. org/10.1163/156852882X00122

BREMOND, M. (2015). Melissus’s so called refuta- tion of mixture. Rhizomata 3, p. 143-158. https://doi. org/10.1515/rhiz-2015-0008

DE SIMONE, G. (2016). Gli aspetti della cosmolo- gia parmenidea in 28 B10 DK. Lexicon Philosophicum 4, p. 43-64.

DROZDEK, A. (2001). Eleatic Being: Finite or In- nº 22, Jan.-Apr. 2018 finite?.Hermes nº129, p. 306-313.

GILBERT, O. (1909). Ionier und Eleaten. Rheini- sches Museum für Philologie nº64, p. 185-201.

Massimo Pulpito, ‘Me- GRAESER, A. (1972). The Argument of Melissus. lisso critico di Parme- Athens, Hellenic Society for Humanistic Studies. nide: una rivalità mi- metica’, p. 17-40 JOUANNA, J. (1965). Rapports entre Mélissos de Samos et Diogène d’Apollonie à la lumière du traité hippocratique. De Natura hominis. Revue des Études anciennes 67, p. 306-323. https://doi.org/10.3406/ rea.1965.3751

KECHAGIA, E. (2011). Plutarch against Colotes. A Lesson in the History of Philosophy. Oxford-New York, Oxford University Press. https://doi.org/10.1093/acpr of:oso/9780199597239.001.0001

LOENEN, J.H.M.M. (1959). Parmenides, Melissus, Gorgias. A Reinterpretation of Eleatic Philosophy. As- 38 sen, Royal VanGorcum Ltd. MANSFELD, J. et al. (2016). Melissus between Mi- letus and Elea. A cura di M. Pulpito. Sankt Augustin, Academia Verlag.

PALMER, J. (2001). A New Testimonium on Dio- genes of Apollonia, with Remarks on Melissus’ Cos- mology. Classical Quarterly 51, p. 7-17. https://doi. org/10.1093/cq/51.1.7

PALMER, J. (2004). Melissus and Parmenides. In: Oxford Studies in Ancient Philosophy 26, p. 19-54.

PULPITO, M. (2011). Parmenides and the Forms. In: CORDERO, N.-L. (ed.). Proceedings of the Interna- tional Symposium: ‘Parmenides, Venerable and Awe- some’ (Plato, Theaetetus 183e). Las Vegas, Parmenides nº 22, Jan.-Apr. 2018 Publishing, p. 191-212.

PULPITO, M. (2016). Lo Straniero di Samo. In: MANSFELD, J. (2016), p. 9-67. Massimo Pulpito, ‘Me- RAPP, C. (2013). Melissos von Samos. In: BRE- lisso critico di Parme- MER, D.; FLASHAR, H.; RECHENAUER, G. (eds.). nide: una rivalità mi- metica’, p. 17-40 Ueberweg - Grundriss der Geschichte der Philosophie, Philosophie der Antike, Vol. 1: Frühgriechische Philoso- phie. Basel, Schwabe, p. 573-598.

REALE, G. (1970). Melisso. Testimonianze e fram- menti. Firenze, La Nuova Italia.

REINHARDT, K. (1959). Parmenides und die Ge- schichte der griechischen Philosophie. Frankfurt am Main, Klostermann. (1 ed. Bonn 1916).

SEDLEY, D. (1999). Parmenides and Melissus. In: LONG, A.A. (ed.). The Cambridge Companion to Early Greek Philosophy. Cambridge, Cambridge 39 University Press, p. 113-133. https://doi.org/10.1017/ CCOL0521441226.006

TARÁN, L. (1979). Perpetual Duration and Atem- poral Eternity in Parmenides and Plato.The Monist 62, p. 43-53. https://doi.org/10.5840/monist19796214

VITALI, R. (1973). Melisso di Samo: sul mondo o sull’essere. Una interpretazione dell’eleatismo. Urbino, Argalìa.

ZAFIROPULO, J. (1950). L’École éléate: Parménide, Zénon, Mélissos. Paris, Les Belles Lettres.

Inviato in Aprile, approvato per la pubblicazione in Novembre, 2016 nº 22, Jan.-Apr. 2018

Massimo Pulpito, ‘Me- lisso critico di Parme- nide: una rivalità mi- metica’, p. 17-40

40 Néstor Luis Cordero - Université de Rennes 1 (France) [email protected] - ORCID: 0000-0003-3198-7744

“Hubiese querido morir antes o nacer después” (Hesíodo, Op. 175) nº 22, Jan.-Apr. 2018

“I would rather die before or be born afterwards” (Hesiod, Op. 175)

CORDERO, N. L. (2018). Hubiese querido morir antes o nacer después (Hesíodo, Op. 175). Archai, n.º 22, Jan.-Apr., p. 41-64 DOI: https://doi.org/10.14195/1984­‑249X_22_2

Resumen: Según su esquema de las cinco Edades o Razas de la humanidad, Hesíodo dice vivir en la Edad de Hierro, y se lamenta: “Hubiese querido morir antes o nacer después”. Una interpretación superficial del mito podría sostener que, dado el carácter cíclico del tiempo, la historia volverá a repetirse y en el futuro habrá una nueva Edad de Oro, en la cual Hesíodo hubiese preferido nacer. Nada más erróneo: la Tierra ya no es la madre universal, ya se inventó la mujer, los seres humanos nacen ya por unión sexual, ya existe la obligación de trabajar. Un regreso al pasado es imposible, ergo, impensable. Para explicar ese extraño deseo de “nacer después” proponemos la 41 siguiente hipótesis de trabajo: las cuatro Edades precedentes (las tres tradicionales, Oro, Plata, Bronce, más la cuarta, la de los Héroes, agregada por Hesíodo para justificar el pasado histórico) son paradigmas a seguir. Con estos cuatro para- digmas a la vista, Hesíodo encara su tiempo, la conflictiva Edad de Hierro. Según el modelo que se siga, el futuro será negativo o placentero. Todo depende de los valores que se adopten, la justicia o la injusticia, el respeto de los dioses o su desconocimiento. Todo es posible, porque la Esperanza quedó encerrada en la tinaja de Pandora. Palabras clave: Hesíodo, mito de razas, justicia, Erga, esperanza.

Abstract: According to the scheme of five ages or races of mankind, Hesiod affirms to live in the Iron Age, and com- plains: “I would rather die before or be born afterwards” (Op.175). A superficial interpretation of the myth could nº 22, Jan.-Apr. 2018 argued that, given the cyclical nature of time, history will repeat, and in the future there will be a new golden age, in which Hesiod would have preferred to be born. Nothing more wrong: the Earth is no longer the universal mother, woman was yet invented, human beings are now born by sexual union, and men must work for living. A return to the Néstor Luis Cordero, past is impossible, ergo, unthinkable. In order to explain the ‘Hubiese querido morir strange wish of “born afterwards” I propose the following antes o nacer después hypothesis: the first four Ages (three traditional: Gold, Sil- (Hesíodo, Op. 175)’, p. 41-64 ver, Bronze, and the fourth, them of Heroes, added by He- siod to justify the historical past) are paradigms to follow. With these four paradigms in view, Hesiod faces his time, the conflictive Age of Iron. According to the model that will follow, the future will be pleasant or negative. All depends on the values chosen, justice or injustice, respect for the gods or their lack of understanding. Everything is possible, because Hope stayed always hidden in the jar of Pandora. Keywords: Hesiod, mythe of mankind, justice, Erga, hope.

En este trabajo tengo la intención de ocuparme de Hesíodo, pero de ello no debe deducirse que esta elec- 42 ción supone una toma de posición respecto de una polémica interminable: ¿puede avanzarse el origen de la filosofía hasta Hesíodo, y, en ese caso, éste sería el primer filósofo, pues es anterior a Tales1, aunque no hay trazas de Hesíodo entre aquéllos que Aristóteles considera como “los primeros que filosofaron”?2. Ante esta polémica es preferible seguir el ejemplo de Herá- clito, quien no dudó en colocar en el mismo grupo a personajes que nosotros consideramos hoy filósofos, pero también a poetas y a técnicos como Pitágoras y Hecateo: “la polymathia no educa el intelecto; en caso inverso hubiese educado a Hesíodo, a Pitágoras, a Je- nófanes, y a Hecateo” (fr. 40). Heráclito se refiere a pensadores que intentaron “describir” la realidad y no es víctima de clasificaciones que surgirán más tarde en especial en los manuales de historia de la filosofía. nº 22, Jan.-Apr. 2018 Hecha esta salvedad, no puede negarse que el caso de Hesíodo es muy curioso, ya que, si bien no respon- de al portrait robot de “los primeros que filosofaron” (con lo cual sería cuestionable incluirlo en el grupo encabezado por Tales, según Aristóteles), no caben Néstor Luis Cordero, dudas de que, anacrónicamente, y adelantándose a su ‘Hubiese querido morir antes o nacer después tiempo, podemos encontrar en él una suerte de filoso- (Hesíodo, Op. 175)’, p. fía de la historia, es decir, una teoría sobre el sentido 41-64 del desarrollo de los acontecimientos, tanto de las vi- cisitudes del kosmos como de las del microcosmos que es el ser humano.

Es precisamente una frase de Hesíodo que le con- cierne a sí mismo, en tanto ser humano, que será el ob- jeto de este trabajo. Cuando Hesíodo narra la historia de la humanidad y se ocupa de su presente histórico, la Edad de Hierro, ofrece una descripción desoladora. Todo va mal. Pero, además, todo puede ir peor. Y por esa razón no duda en lamentarse: “Hubiera querido morir antes o nacer después” (Op. 175). Esta expresión 43 de deseos es extraña. Es natural preferir haber muerto antes, ya que su generación es nefasta y hubiese sido preferible no formar parte de la misma, pero, ¿cómo explicar su deseo de “nacer después”?. Una interpre- tación superficial podría sostener que, dado el carác- ter cíclico del tiempo, la historia volverá a repetirse y habrá una nueva Edad de Oro, seguida de una nueva Edad de Plata, etc. Nada más erróneo: la Tierra ya no es la madre universal, ya se inventó la mujer, los seres humanos nacen ya por unión sexual, ya existe la obli- gación de trabajar. Un regreso al pasado es imposible, ergo, impensable. Para explicar ese extraño deseo de “nacer después” proponemos la siguiente hipótesis de trabajo: las cuatro Edades precedentes (las tres tradi- nº 22, Jan.-Apr. 2018 cionales, más la cuarta, la de los Héroes, agregada por Hesíodo para justificar el pasado histórico) son para- digmas a seguir. Según el modelo que se siga, el futuro será negativo o placentero: la Esperanza puede quedar aun aprisionada dentro del ánfora, o salir al exterior. Néstor Luis Cordero, ‘Hubiese querido morir Para comenzar por el comienzo, una introduc- antes o nacer después (Hesíodo, Op. 175)’, p. ción se impone. Después de celebrar la magnificencia 41-64 de Zeus, a poco de comenzar Los trabajos y los días, Hesíodo anuncia a su hermano Perses, con el cual mantiene un litigio, que le hará conocer una serie de verdades. El objetivo aparente del poema es el de alec- cionar a Perses mediante la ejemplificación de una conducta virtuosa, por un lado, y, por otro lado, con la exhibición de actitudes injustas y desmesuradas. Nuestro trabajo pretenderá demostrar que en realidad Hesíodo se propone universalizar el mensaje personal dirigido a su hermano. Pero como este mensaje se apoya sobre una serie de elementos presentados en el llamado “mito de las Edades (o de las Razas)”, debe- 44 mos ocuparnos previamente, y de la manera lo más somera posible, de esta sección de Los Trabajos y los días, que va del verso 106 al verso 201.

En los pasajes precedentes Hesíodo había expues- to las aventuras (o desventuras) de Prometeo y la fabricación de Pandora, la primera mujer, y a con- tinuación había anunciado que tenía la intención de “recapitular”3 otro relato4. Aunque los versos si- guientes han sido objeto de un sinnúmero de aná- lisis, estoy obligado a presentar un breve resumen de los mismos, pues la conclusión a la que llegaré se basará en detalles de este relato. La nueva narración anunciada comienza de manera abrupta: “En primer lugar, los inmortales que habitan en el Olimpo, pro- 5 dujeron una generación mortal de oro...” (109-10). nº 22, Jan.-Apr. 2018 Y sigue luego la enumeración de otras cuatro gene- raciones, conocidas tradicionalmente, como dijimos, como “Razas” o “Edades”6. Los detalles del relato son los siguientes: la generación o Edad de Oro tuvo su origen en tiempos de Cronos. Sus integrantes vivían Néstor Luis Cordero, “como dioses” (112), en medio de banquetes; des- ‘Hubiese querido morir antes o nacer después conocían los males y los frutos brotaban automáti- (Hesíodo, Op. 175)’, p. camente de la tierra. Sus integrantes morían “como 41-64 si soñasen” (116) y Zeus7, después de la muerte, los convirtió en espíritus guardianes.

Esta Edad fue sucedida por otra “mucho peor” (129): la Raza de Plata. En ella el niño, que perma- necía en un estado de necedad total (131), no se separaba de su madre hasta los cien años. Cuando llegaba a la adolescencia, vivía poco tiempo, pues no tardaba en caer en la desmesura. Zeus, irritado porque los integrantes de esta raza no rendían culto a los dioses, los exterminó y los convirtió en divini- dades subterráneas. 45 Una tercera Edad se generó luego: la Raza de Bron- ce. No fue en nada semejante a la anterior (144), sino que se caracterizó por el poder y la fuerza. Se dedicó a guerrear e hizo gala de desmesura. No cultivó la tie- rra y se exterminó a sí misma. Finalmente, descen- dió al Hades en forma anónima. A continuación Zeus produjo una nueva Raza: la de los Héroes. Fueron au- ténticos semidioses (160), más justos que sus prede- cesores, y demostraron su coraje en Troya y ante las murallas de Tebas. Algunos encontraron allí la muer- te, y a otros Zeus les concedió una larga vida en los confines de la tierra, donde el suelo ofrece tres cose- chas por año.

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Finalmente, sobrevino la Edad de Hierro, que es la actual. En ella vive Hesíodo y es entonces cuando se queja por no haber muerto antes o por no haber na- cido después. En el relato de esta edad actual Hesíodo pasa continuamente — y curiosamente: volveremos so- Néstor Luis Cordero, bre este “detalle” — del presente al futuro. Los hombres ‘Hubiese querido morir sufren fatigas, días y noches, y los bienes se mezclarán antes o nacer después (Hesíodo, Op. 175)’, p. con los males. Pero cuando los niños nazcan con las 41-64 sienes encanecidas, Zeus acabará con esta Raza. Se im- pondrá la desmesura y no se respetará a los padres, a los ancianos ni a los dioses. Aidós y Némesis huirán ha- cia el Olimpo y no habrá salvación contra el mal (201). Así termina el relato sobre las Edades de la humanidad.

Todos los estudios consagrados a Los trabajos y los días concuerdan en un punto: el mito de las edades tiene una importancia decisiva para la comprensión del sentido de la obra. Pero esta unanimidad se di- luye cuando se trata de explicar en qué consiste ese sentido, pues ello supone una serie de cuestiones pre- 46 vias, cuyas respuestas divergen hasta el infinito: ¿por qué Hesíodo narra este mito? ¿Cuál es su estructura? ¿Hesíodo lo forjó él mismo o lo tomó, completa o parcialmente, de la tradición oral? Sería ilusorio pre- tender en estas líneas ofrecer un panorama completo de la cuestión, así como aspirar a ofrecer una solu- ción definitiva de la misma. Mi único objetivo es el de unir algunos elementos del relato aparentemente no relacionados entre sí, los cuales permitirán com- prender, si esto es posible, la enigmática frase que da título a este trabajo.

Si nos atenemos a la expresión “en primer lugar” (109)8 con la que Hesíodo comienza su relato, el lec- tor puede suponer que la narración sigue un orden 9 cronológico , lo cual parecería confirmarse con el tér- nº 22, Jan.-Apr. 2018 mino “ahora” (nyn) (176) que se refiere a la época de Hesíodo. Pero este relato, que parece ser cronológico, al estar ilustrado por metales que van del oro al hie- rro, parecería seguir también un orden axiológico. Si es así, lo primero habría sido entonces lo mejor, y lo Néstor Luis Cordero, último, lo peor, lo cual concuerda con la visión más ‘Hubiese querido morir antes o nacer después bien apocalíptica de la realidad que se le atribuye a (Hesíodo, Op. 175)’, p. Hesíodo. Pero hay dos elementos que cuestionan esta 41-64 interpretación un tanto simplista: (a) la cuarta edad no tiene equivalente “metálico”, y (b) si bien la segun- da edad es muy inferior (127) a la primera, la cuarta es “más justa y más valiente” (158) que la tercera.

O sea que no hay una referencia forzosa a “metales” en las cinco edades, ni una degradación progresiva10. En consecuencia, toda aproximación crítica que pre- tenda desentrañar — si ello es posible — el esquema subyacente en el mito de las edades debe rechazar la fácil tentación sugerida por el “nombre” y por el orden cronológico de las edades, y de su consiguiente — y 47 falsa — jerarquización. Se impone seguir otro camino que consiste en analizar la especificidad de cada edad en sí misma e intentar luego establecer las relaciones que se impongan.

Antes de emprender esta tarea, no se puede ignorar que, al no tener un equivalente “metálico”, la edad de los héroes enturbia un panorama que parecía ser más o menos transparente. Se dijo que su presencia se justifi- ca para dar cabida a los héroes épicos11, para apoyar “la filiación a la epopeya de su pueblo”12, para justificar el destino de los héroes después de su muerte13, o porque históricamente la época de Hesíodo estuvo precedida por hazañas guerreras. Pero basta un somero análisis nº 22, Jan.-Apr. 2018 de las cinco edades para comprender que no es la Raza de los Héroes la que rompe la simetría del esquema; es, en realidad, la Edad de Hierro la que pone en peligro el equilibrio en su sucesión de las razas. En efecto, Hesío- do señala en forma un tanto genérica que “los Olím- Néstor Luis Cordero, picos” produjeron las Edades de Oro (110) y de Plata ‘Hubiese querido morir (128), y que Zeus, concretamente, produjo la de Bronce antes o nacer después (Hesíodo, Op. 175)’, p. (143) y la de los Héroes (158). Nada se dice, en cambio 41-64 sobre el origen de la Edad de Hierro. Además, mientras que la descripción de los acontecimientos propios a cada una de las cuatro primeras edades está en tiempo pasado, para referirse a la quinta Hesíodo usa el presen- te y el futuro. Estos detalles invitan a trazar una línea di- visoria entre la Edad de Hierro y las cuatro precedentes. Esta característica fue ya observada por algunos autores que extrajeron de ella conclusiones excesivamente con- dicionadas por sus interpretaciones de las etapas pre- cedentes14.Hesíodo parte de su presente, y, así como en la Teogonía se refería, en el pasado, a la conquista del poder por parte de Zeus15, Los trabajos y los días son una 48 exaltación de las virtudes auténticamente humanas, el esfuerzo, el trabajo y la justicia, que, en tanto esenciales para el ser humano, deben caracterizarlo también en el futuro. El “ahora” (176) de la Edad de Hierro alude al momento histórico desde el cual reflexiona Hesíodo. Y es desde ese presente que observa el pasado para intentar elaborar un futuro.

El pasado es un hecho, pero sólo se accede a la comprensión de este hecho en función de nuestra perspectiva presente, que implica nuestros valores ac- tuales. Sólo en función de los valores actuales puede juzgarse y sistematizarse el pasado. El futuro será ne- cesariamente una consecuencia de la manera de asu- mir estos valores. Según cómo vivamos el presente, así será el futuro. No dudo en afirmar que la actitud nº 22, Jan.-Apr. 2018 de Hesíodo es fundamentalmente ética16, sin que ello suponga hacer de él, como ya dijimos, un filósofo pro- fesional. Otro tanto ocurre con varios pasajes de los poemas homéricos. El sentido didáctico de la obra, siempre reconocido, está dirigido a que el mensaje no Néstor Luis Cordero, caiga en el vacío17. La figura de Perses adquiere ahora ‘Hubiese querido morir antes o nacer después su verdadera dimensión: es el destinatario directo del (Hesíodo, Op. 175)’, p. discurso, pero representa a la sociedad en su conjun- 41-64 to, necesitada de parámetros que le permitan subsis- tir en un tiempo futuro, en el cual “los bienes estarán mezclados con los males” (179).

Para elegir el camino a seguir, el pasado presenta modelos estructurados didácticamente, conductas ar- quetípicas que surgen de la interrelación de determi- nados valores. Desde el momento en que estos valores no son sino una proyección de los que son tales para el observador — que está condenado a ser contempo- ráneo y a vivir en la Edad de Hierro —, son inaliena- bles y hacen a la esencia del ser humano: la justicia, el 49 esfuerzo (que puede concretarse en el trabajo o en la lucha justa18).

Si bien en la presentación de dichos valores no hay en Hesíodo una terminología conceptual elaborada — lo cual vendría a demostrar que probablemente cier- tas nociones abstractas no estaban lo suficientemen- te estructuradas en su tiempo19 — resulta innegable que Los trabajos y los días son un himno a la justicia20. “Escucha a la justicia, Perses”, exclama Hesíodo en el verso 213, pues “la justicia es, para los hombres, la ex- celencia máxima” (279). Los animales se devoran mu- tualmente porque carecen de este don de Zeus (278), mientras que los hombres que la practican ven flore- nº 22, Jan.-Apr. 2018 cer sus ciudades (227)21. Al equilibrio que está implí- cito en la justicia22 se opone el desequilibrio propio de la desmesura (hybris). La medida (metron, 694), al igual que la justicia, recibe el calificativo de “exce- lente” (aristos): la desmesura, por el contrario, es “un Néstor Luis Cordero, ‘Hubiese querido morir mal para los mortales” (214) y quienes se abandonan antes o nacer después a ella causan su propia ruina y la de la ciudad (240). (Hesíodo, Op. 175)’, p. La justicia es el elemento constitutivo de la naturaleza 41-64 humana, y, en definitiva, es un don divino (279).

Pero también el esfuerzo, bajo la forma del tra- bajo, proviene de los dioses. Su presencia entre los mortales es una consecuencia del castigo que mere- ció Prometeo por haber desafiado a Zeus. Desde en- tonces los humanos están obligados a trabajar para obtener el sustento (289). Los dioses castigan a quie- nes se enriquecen sin trabajar (236); “el hambre es la compañera de quien no trabaja” (303) y la vergüenza lo persigue (318). Quien trabaja, en cambio, es el más 50 amigo (philteros) de los dioses (309). Para ejemplificar qué es lo que ocurre cuando es- tos valores o se ponen en práctica o se desconocen, Hesíodo recurre a cuatro modelos: las cuatro primeras Edades. Ellas son esquemas conceptuales que visuali- zan didácticamente la existencia (e incluso el destino post-mortem) de quienes privilegiaron ciertos valores en detrimento de otros. ¿Significa ello que Hesíodo in- venta estos modelos, o, por el contrario, que, a la ma- nera de Vico o de Spengler, ve que la historia cumplió efectivamente ciertos derroteros o ciclos? Ni una cosa ni la otra, y por ello las cuatro Edades no están todas ubicadas en el mismo plano. Como señalara acerta- damente J. P. Vernant (1971a)23 hay, por un lado, cier- ta relación entre la primera Edad y la segunda, y, por el otro, entre la tercera y la cuarta. Como ya dijimos, nº 22, Jan.-Apr. 2018 Hesíodo afirma que la Edad de Plata es “mucho peor” que la de Oro (con lo cual establece una relación en- tre las dos), así como la de los Héroes es “más justa y mejor” que la de Bronce (o sea, una vez más, una rela- ción), mientras que ésta es “completamente diferente” Néstor Luis Cordero, (“en nada semejante”, 144) de la de Plata. ‘Hubiese querido morir antes o nacer después (Hesíodo, Op. 175)’, p. Las cuatro primeras edades se agrupan, entonces, 41-64 en dos parejas: Oro-Plata, Bronce-Héroes. Vernant (1971b) extrae como conclusión que cada uno de los pares se refiere a ámbitos diferentes (él llama “teológi- co-jurídico” al primero, y “guerrero” al segundo). Sin pretender negar la sutileza de esta distinción — que, a juicio nuestro, está excesivamente influida por el destino post-mortem de los integrantes de cada edad — creemos que el marcado “realismo” presente en la descripción de las Edades de Bronce y de los Héroes, opuesto a la notoria “irrealidad” de las dos primeras Edades, ofrece una perspectiva analítica seguramente más fértil. 51 En efecto, las dos primeras edades presentan mo- delos ideales, absolutamente a-históricos24, que res- ponden a dos esquemas conceptuales opuestos y que describen la obra de “los Olímpicos”: la armonía ple- na y total con los dioses (Edad de Oro) y la inepti- tud total con el predominio de la “loca desmesura” (124) (Edad de Plata). La Edad de Oro25 se ubica en el tiempo mítico — valga la expresión — del origen de la humanidad, bajo el reino de Cronos26. El género humano no ha “caído” todavía, pues Prometeo no se ha rebelado aún contra los dioses. Por esa razón no es necesario trabajar la tierra: ésta ofrece automática- mente sus frutos (118), gracias a lo cual los hombres de oro viven “como los dioses” (112). En esta etapa nº 22, Jan.-Apr. 2018 hay literalmente sólo “hombres”, pero no seres huma- nos, ya que la mujer no fue inventada todavía. Si se nos permite utilizar una imagen extemporánea, po- dría sostenerse que en esta Edad de Oro la humanidad Néstor Luis Cordero, no ha todavía abandonado el paraíso terrenal. Esta si- ‘Hubiese querido morir antes o nacer después tuación ideal, pero irrepetible, sería la descripta en la (Hesíodo, Op. 175)’, p. Teogonía (536), cuando hombres y dioses compartían 41-64 alegremente los festines en Mecona. No debe extrañar entonces que no haya referencia alguna al otro com- ponente (junto con el trabajo) de la esencia humana: la justicia, pues en este estado de cosas, ella está im- plícita. Hesíodo dice simplemente que los hombres de la Edad de Oro “vivían en paz” (119)27 y que al morir pasaron a ser guardianes de los actos justos e injustos de los hombres. La Edad de Oro es, entonces, inalcan- zable en todo su esplendor, pues los hombres ya no son como dioses y el trabajo y la mujer existen, pero ejemplifica el mejor modo posible, ideal, de conviven- 52 cia con la divinidad. Tampoco la Edad de Plata es alcanzable y, en este sentido, su descripción es también ideal. Así como los hombres de oro desconocían la vejez (“no los aplasta- ba la triste vejez”, 113/4), los hombres de plata desco- nocen, a la inversa, la madurez: son siempre niños y, por eso, tampoco en esta etapa cabe hablar de “seres humanos”. Sus integrantes se dejan llevar por la “loca desmesura” y no conocen el trabajo, pero no por- que no lo necesiten, como los hombres de oro, sino porque son incapaces28 de valerse por sí mismos: los deben alimentar sus madres29. Zeus, irritado porque tampoco respetaban las divinidades locales (137), los ocultó bajo la tierra, donde se convirtieron en espíri- tus subterráneos. Vale decir que la Edad de Plata es el modelo negativo ideal por excelencia: no hay en ella nº 22, Jan.-Apr. 2018 ni justicia, ni trabajo, ni respeto por los dioses.

La Edad de Bronce y la Edad de los Héroes, en cambio, son realmente humanas e históricas. La Edad de Bronce alude concretamente a la representación Néstor Luis Cordero, que tiene Hesíodo de los orígenes de la historia. Por ‘Hubiese querido morir antes o nacer después primea vez hay una correspondencia real entre el (Hesíodo, Op. 175)’, p. nombre de la edad y la temporalidad histórica que le 41-64 corresponde. Nada era de oro en la Edad de Oro, ni de plata en la Edad de Plata, pero todo es de bronce en la Edad de Bronce: “armas, viviendas, herramien- tas” (150/1). Una descripción de la cultura aquea no hubiese sido más pertinente. Pero quizá Zeus no tuvo en cuenta que, al fabricar a esta raza “a partir de los fresnos” (145), es decir, árboles que se utilizan para la fabricación de las lanzas30, estos hombres no fueron aptos para cultivar los campos (“no comieron el gra- no”, dice Hesíodo en los versos 146/7) y se dejaron do- minar por la lucha desmesurada (146) hasta que se ex- terminaron mutuamente. Yacen anónimos en el reino 53 de Hades, tal como corresponde a una condición hu- mana ordinaria.

La cuarta Edad, la de los Héroes, “más justa y me- jor” que la de bronce, parece haberse inspirado, como modelo, en la de Oro. Ya no caben dudas de que con los héroes estamos en una etapa histórica31 ni de que hay, como en el caso de la Edad de Bronce, una relación entre su nombre y sus protagonistas. Aparecen incluso ya nombres propios (Edipo, Helena, Troya, Tebas), y se acusa a “la malvada guerra” y a “la terrible discordia” (160) por la muerte de los héroes. Hesíodo parece dar a entender que esta gente se vio envuelta en litigios que no desearon, pero que supieron afrontar. Después de nº 22, Jan.-Apr. 2018 muertos, Zeus los envía a la isla de los Bienaventura- dos32 y la tierra les ofrece tres cosechas por año (173)33. Sus pechos están libres de preocupaciones (170) — también en esto se asemejan a los dioses (112) — y re- ciben el calificativo de “semidioses”. Néstor Luis Cordero, ‘Hubiese querido morir Con estos cuatro paradigmas a la vista, Hesío- antes o nacer después do encara su tiempo, la conflictiva Edad de Hierro. (Hesíodo, Op. 175)’, p. 41-64 A primera vista pareciera que esta edad estuviese con- denada de antemano — y así lo entiende la mayor par- te de los intérpretes —, pero no es así. Hesíodo confía en poder influir en el curso de los acontecimientos. Si así no fuera el contenido ético-didáctico de su poema no tendría sentido. ¿De qué vale exhortar al trabajo y a la justicia si ya se sabe que la historia va a seguir su decadencia inexorable? Sólo si se tiene confianza en una mejora de la situación en el futuro podemos explicarnos la expresión de deseos que nos llevó a escribir este trabajo: “Hubiese querido morir antes o nacer después”. No es difícil explicarnos por qué 54 hubiese preferido morir antes, en plena edad de los héroes. En cambio, para desear “nacer después” hay que tener la certeza de que el penoso estado actual de la humanidad dejará paso a un futuro mejor.

Esto no implica, como han creído algunos auto- res, que Hesíodo admita una concepción cíclica del tiempo y que, en consecuencia, después de la Edad de Hierro todo recomenzará con una nueva Edad de Oro. Tanto en esta obra como en la Teogonía la con- cepción hesiódica del tiempo es lineal. En la Teogonía, después de preguntar “¿Qué fue lo primero?”, Hesíodo comienza con “lo primerísimo (protista)” que surgió (116) y en Los trabajos y los días comienza con la edad producida “en primerísimo lugar (protista)” (109). Si bien luego la narración experimenta ascensos y des- nº 22, Jan.-Apr. 2018 censos, éstos son propios del acontecer histórico: no habrá otro Prometeo que desafiará a los dioses, ni una nueva Pandora capaz de destapar el ánfora que con- tiene todos los males. El ser humano alcanzó ya su plena naturaleza y, basándose en su propio esfuerzo Néstor Luis Cordero, y con la ayuda de los dioses, construye su presente y ‘Hubiese querido morir antes o nacer después encara su futuro. (Hesíodo, Op. 175)’, p. 41-64 La Edad de Hierro se está haciendo. Su futuro de- penderá de cómo actúen los mortales, ahora. Si eli- gen la desmesura, no rinden culto a los dioses, no respetan lo sagrado y desconocen el trabajo, como en las Edades de Plata y de Bronce, llegará un mo- mento en que incluso la esencia humana se habrá metamorfoseado: los hijos serán diferentes de sus padres (182), pues nacerán con las sienes encane- cidas (181). Recién entonces “Zeus aniquilará esta edad mortal” (180) y la vergüenza y la indignación34 se irán35 al Olimpo, a vivir entre los dioses, pues nada tendrán que hacer en este mundo. Lo que Hesíodo 55 trata de hacer es evitar que sea posible que nazcan estos monstruos, y para ello preconiza las virtudes propias de un tipo de vida (que se parece bastante al de la Edad de Oro, que es el modelo a imitar) en el cual, al rendir culto a la justicia (225), al ofrecer sacrificios a los dioses (335) y al respetar a los hués- pedes y a los progenitores (327), “las mujeres tienen hijos que son iguales a sus padres” (235) (expresión ésta opuesta a la del verso 182).

Es sumamente ilustrativo el hecho de que para referirse a los eventuales desastres que acechan a los hombres de la Edad de Hierro, Hesíodo utilice el tiempo verbal futuro, mientras que para la des- nº 22, Jan.-Apr. 2018 cripción de este idílico panorama que algunos auto- res llaman “la ciudad justa”36 haya usado el presente. Como observara T. G. Rosenmeyer (1957, p.276), cuando Hesíodo se expresa en futuro parece que la suya fuera “una visión profética antes que una des- Néstor Luis Cordero, cripción de los males contemporáneos”. Hesíodo ‘Hubiese querido morir teme que ocurra la catástrofe, ya que, en función de antes o nacer después (Hesíodo, Op. 175)’, p. las desventuras por las que pasó, la misma le pare- 37 41-64 ce inevitable . No obstante, en la afirmación de que habrá “bienes mezclados a males” hay una leve es- peranza que lo lleva a aleccionar a los injustos y a los desmesurados (Perses y los jueces corruptos, que representan a la sociedad). Y, fundamentalmente, confía en el poder divino: “No puedo creer en modo alguno que el prudente Zeus lleve a cabo todo esto” (273). Hay en Hesíodo recaídas en la desazón más profunda (“Es malo ser justo cuando el injusto es el más favorecido por la justicia”, 271-272), pero hay también una fe casi ciega en que la justicia ha de im- ponerse pues a quien, conociéndola, proclama la jus- 56 ticia, Zeus, que todo lo ve, le ofrece la prosperidad”, y entonces, “cuando se alcanza la cima, el camino pa- rece más fácil, por difícil que sea” (291-292).

Hesíodo comparte con sus contemporáneos la desgracia de haber nacido en una época que a él le parece nefasta (y en ello concordará con la gran mayoría de los filósofos de la historia, con todos los utopistas, e incluso con la mayor parte de la humani- dad: nadie cree vivir en “el mejor de los mundos po- sibles”), pero propone como paliativo la vigencia de aquellos valores que acompañaron al hombre cuan- do vivía feliz en compañía de los dioses. Un regreso puro y simple a ese pasado idílico irreal, es impo- sible: el hombre ya se ha distanciado de los dioses; pero los dioses están presentes en el trabajo y la jus- nº 22, Jan.-Apr. 2018 ticia, ambos dones divinos, capaces de hacer brillar “al negro hierro” de su época (151) con los reflejos áureos del tiempo de Cronos.

Si esto es así, Hesíodo habría sido muy feliz si Néstor Luis Cordero, hubiese podido nacer en ese momento, o sea, “des- ‘Hubiese querido morir pués”. No olvidemos que, por voluntad de Zeus, antes o nacer después (Hesíodo, Op. 175)’, p. Pandora cerró el ánfora antes de que la esperanza 41-64 pudiera escaparse (Th. 96): ella puede aparecer en cualquier momento...

Notas 1 Así lo afirma Gigon (1945, cap. I). 2 Aristot. Metaph. A.3.1983b6. No obstante, la conocida fra- se según la cual “el amigo del mito es en cierto modo un filóso- fo” (Aristot. Metaph. A.2.982b18) parece relativizar la diferencia entre filósofo y “mitófilo”. 3 El verbo enkorypho significa “exponer en sus puntos prin- cipales”, “narrar en forma sumaria”. Colonna (1977, p. 255) 57 propone “coronar mi discurso”. Ver también Kerchensteiner (1944, p. 166). 4 El término usado por Hesíodo, y que hemos traducido por “relato” es logos, que, si bien posee una extensa gama semántica, es común en ella un matiz que supone cierta argumentación, incluso cierta racionalización. Resulta ilustrativo observar has- ta qué punto en esta etapa del pensamiento carece de sentido la pretendida antinomia entre lo “mítico” y lo “racional”, entre el mythos y el logos. El relato “mítico” que ofrece Hesíodo es considerado logos por él mismo. Además, a poco de comenzar el poema, Hesíodo había anunciado ya su intención de “narrar (mythoo) cosas auténticas (etetyma)” (10). 5 El verbo griego correspondiente, poieo, significa “hacer”; “producir” y no tiene, ni en su uso corriente ni en su significa- ción filosófica, el valor de “crear”. 6 El término que hemos traducido por “generación” y por nº 22, Jan.-Apr. 2018 “edad”, y que también significa, entre otras cosas, “raza” y “gé- nero” es genos. Según Rosenmeyer (1957, p. 265), esta amplitud del término genos permite a Hesíodo referirse tanto al material que caracteriza a determinada raza como al lapso temporal en que desarrollará su actividad, es decir, “tanto al medio como Néstor Luis Cordero, al agente”. Cuando los escritores latinos tradujeron el término ‘Hubiese querido morir griego usado por Hesíodo por secula redujeron considerable- antes o nacer después mente la amplitud de genos, y así fue, según Baldry (1952, p. 88), (Hesíodo, Op. 175)’, p. como comenzó a imponerse el significado de “edad” que hoy 41-64 suele ser el más habitual. 7 Es curiosa esta intromisión de Zeus durante el reino de Cronos. 8 Hesíodo dice directamente “lo primerísimo” (protista). 9 Este punto de vista se encuentra muy exagerado en la in- terpretación de Rosenmeyer (1957, p. 265), para quien el relato de Hesíodo pretende ser auténticamente histórico. Esta inten- ción estaría reforzada por el hecho de proponer relatar sólo los aspectos “principales” (cf. nota 3) del pasado (p. 268). 10 Jaeger (1957, p. 75), en cambio, ve una “degradación siempre creciente”. Hay autores que, convencidos de que no existe una degradación progresiva, sostienen que el esquema 58 propuesto por Hesíodo es cíclico. Éste es el caso, entre otros, de Nestle (1941, p.50, n. 150), y de Verdenius (1962, p. 133). No obstante, como veremos más adelante, la irrepetibilidad de ciertas circunstancias (p.e., la “caída” del hombre después de la rebelión de Prometeo, así como el origen de la mujer), invalidan toda posible concepción circular. 11 Solmsen, 1949, p. 83 n. 27. 12 Fernández Bernardes, 1977, p. 89. 13 Rohde, 1828, p. 78. 14 Para Vernant (1971a, p. 20), por ejemplo, la quinta edad, que “introduce una dimensión nueva”, mostraría que, “en rea- lidad no hay una edad sino dos tipos de existencia humana, ri- gurosamente opuestos”, mientras que Kirk (1973, p.274) habla, directamente, de seis etapas, pues admite una Edad de Hie- rro I y de una Edad de Hierro II. Según Walcott (1961, p. 5), el mito, que obedece claramente a una composición circular (“ring composition”), debió terminar normalmente con la edad nº 22, Jan.-Apr. 2018 de los héroes. La disimetría se debe a que Hesíodo necesitaba una degradación final y se vio obligado a agregar una Edad de Hierro. 15 Fórmula de Vernant (1962, p. 112). 16 Ya Waltz (1906) había presentado su edición de Los traba- Néstor Luis Cordero, jos y los días con un título muy sugestivo: Hésiode et son Poème ‘Hubiese querido morir moral, mientras que Jaeger (1957, p. 75) se refiere al “uso nor- antes o nacer después mativo del mito” por parte de Hesíodo (Hesíodo, Op. 175)’, p. 41-64 17 Cf. Rosenmeyer, 1957, p. 263. Según Panzini (1928, p. XI), autor de una pintoresca traducción del Poema al italiano, la premeditada utilidad de la obra explicaría la tradicional pobre- za estética que algunos le atribuyen. 18 Es la “buena lucha” la que “coacciona a trabajar incluso al indolente” (20) 19 Según Péron (1976, p. 265), el análisis de Hesíodo se co- loca en un plano relativamente abstracto, pero, para expresar es- tas abstracciones, el vocabulario de que dispone es notoriamente insuficiente. Hesíodo, representante de una mentalidad que po- dría calificarse de pre-filosófica, debe luchar contra fórmulas anquilosadas por la tradición oral para expresar a través de ellas una nueva ideología. Cf. Hoekstra, (1957, p. 212). 59 20 Para esta problemática es indiferente que se entienda dike como un término moral, como propone Dickie (1978, p. 98), o, simplemente, como un concepto legal, como afirma GAGARIN (1973, p. 88). 21 Cf. Solmsen, 1949, p. 42. “Por dike los hombres son hom- bres”, dice Disandro (1939, p. 188). 22 La misma concepción de la justicia aparecerá años des- pués en Anaximandro. Acerca de la relación entre Hesíodo y Anaximandro, cf. Gigon, 1945, p. 82-83. 23 Cf. también 1971b, p. 57. 24 Kirk (1973, p. 288), prefiere hablar de “la reducción de las edades míticas de oro y de plata a un esquema seudo histórico”. 25 Baldry (1952, p. 90), dice que fue Hesíodo quien in- ventó la expresión “Edad de Oro” para referirse a “los buenos nº 22, Jan.-Apr. 2018 viejos tiempos”. 26 Con Cronos “hay siempre un vago recuerdo de una Edad de Oro”, dice Gernet (1968, p. 31), mientras que Kirk (1976 [1974], p. 132) observa que “por lo general se cree en una Edad de Oro en tiempos de Cronos”. Néstor Luis Cordero, 27 Según Péron (1976, p. 286), “paz”, al igual que dike, es el ‘Hubiese querido morir concepto opuesto al de desmesura. antes o nacer después (Hesíodo, Op. 175)’, p. 28 El adjetivo “incapaz” o “necio” (nepios) que Hesíodo 41-64 confiere a este grotesco niño de cien años, es atribuido a su hermano Perses en el verso 286: también él se ha comportado como un hombre de la edad de plata, dejándose llevar por la “loca desmesura”. 29 Esta referencia a la mujer muestra claramente que cada etapa debe analizarse en sí misma, sin relación con las demás. En efecto, Pandora, la primera mujer, no fue aun fabricada en la Edad de Oro, y en la Edad de Plata se da como un hecho que ya hay mujeres, que alimentan a sus grotescos niños. 30 Vernant (1971a, p. 26), señala la significación que tienen las ninfas Meliai (es decir, “de los fresnos”) en el ámbito de la guerra. 31 Los héroes “inauguran la historia”, dice Fernández Ber- 60 nardes (1977, p. 90). 32 Según la feliz expresión de Rohde (1928, p. 86), “salen del reino de los hombres, no de la vida”. 33 Lo cual supone que, curiosamente, como da a entender Rohde (ver nota anterior) estos héroes gozarían de una vida después de la muerte, ya que las cosechas les sirven para procu- rarse alimentos. 34 El término aidos, que hemos traducido por “vergüen- za”, alude al sentimiento del honor (cf. Péron, 1976, p. 269), mientras que nemesis, que hemos vertido por “indignación”, corresponde a la ofensa que se experimenta ante la evidencia de una injusticia; de ahí también el significado de “venganza divina”. 35 El verbo que hemos traducido por “irán” (iton) es en rea- lidad un presente con valor de futuro. 36 Entre ellos, Jaeger (1957, p. 76), y West (1971, p. 50, n.1). Observa este autor que la terminología utilizada para caracteri- nº 22, Jan.-Apr. 2018 zar a esta ciudad es muy similar a la usada en la descripción de la Edad de Oro. 37 Rosenmeyer (1957, p. 279) denomina “deterministic future” a la forma verbal utilizada por Hesíodo. Néstor Luis Cordero, ‘Hubiese querido morir Bibliografía antes o nacer después (Hesíodo, Op. 175)’, p. 41-64 COLONNA, A. (1977 [1968]). Esiodo. Le opere e le giorni. Turín, Unione tipografico-editrice.

DICKIE, M. W. (1978). Dike as a moral term in Homer and Hesiod. Classical Philology 73, p. 91-101. https://doi.org/10.1086/366411

DISANDRO, C. A. (1929). Tránsito del mito al logos. La Plata, Decus.

BALDRY, H. C. (1952). Who invented the Golden Age?. Classical Quarterly 2, p. 83-92. https://doi. org/10.1017/S0009838800007667 61 FERNÁNDEZ BERNARDES, J. A. (1977). La edad de los héroes en Hesíodo. Argos 1, p. 85-92.

GAGARIN, M. (1973). Dike in the Works and Days. Classical Philology 68, p. 81-94. https://doi. org/10.1086/365942

GERNET, L. (1968). Anthropologie de la Grèce an- tique. París, Maspéro.

GIGON, O. (1945). Der Ursprung der griechi- schen Philosophie. Von Hesiod bis Parmenides. Basel, Schwabe & Co.

HOEKSTRA, A. (1957). Hésiode et la tradi- nº 22, Jan.-Apr. 2018 tion orale. Mnemosyne 10, p. 193-225. https://doi. org/10.1163/156852557X00187

JAEGER, W. (1957) Paideia. Trad. J. Xirau y W. Ro-

Néstor Luis Cordero, ces. México, FCE. ‘Hubiese querido morir antes o nacer después KERSCHESTEINER, J. (1944). Zur Aufbau und (Hesíodo, Op. 175)’, p. Gedankenführung von Hesiods Erga. Hermes 79, p. 41-64 149-191.

KIRK, G. S. (1973) El mito. Trad. A. Pigrau Rodrí- guez, Barcelona, Paidós.

KIRK, G. S. (1976 [1974]). The Nature of Greek Myths. Middlesex, Penguin Books.

NESTLE, W. (1941 [1940]). Vom mythos zum Logos. Stuttgart, Kröner.

PANZINI, A. (1928). Esiodo. Le opere e i Giorni. 62 Milán, Fratelli Treves. PÉRON, J. (1976). L’analyse des notions abstraites dans Les travaux et les jours d’Hésiode. Revue d’Études Grecques 89, p. 265-291. https://doi.org/10.3406/ reg.1976.4108

ROHDE, E., (1928 [trad. francesa]). Psyché. Paris, Payot.

ROSENMEYER, T. G. (1957). Hesiod and histori- ography. Hermes 85, p. 257-285.

SOLMSEN, F. (1949). Hesiod and Aeschylus. Ithaca, Cornell University Press.

VERDENIUS, W. J. (1962). Aufbau und Geschichte nº 22, Jan.-Apr. 2018 des Erga. Entretiens Hardt 7, Hésiode et son influence, p. 127-130. Genève.

VERNANT, J. P. (1962). Les origines de la pensée Néstor Luis Cordero, grecque. Paris, PUF. ‘Hubiese querido morir antes o nacer después VERNANT, J. P. (1971a [1965]). Le mythe hésio- (Hesíodo, Op. 175)’, p. dique des races. Essai d’analyse structurale. In: VER- 41-64 NANT, J. P. (1971). Mythe et pensée chez les Grecs, I, p. 13-41. París, Maspéro.

VERNANT, J. P. (1971b [1965]). Le mythe hésio- dique des races. Essai d’une mise au point. In: VER- NANT, J. P. (1971). Mythe et pensée chez les Grecs, I, p. 42-79. París, Maspéro.

WALCOTT, P. (1961). The composition of the Works and Days. Revue des Études Grecques 74, p. 1-19. https://doi.org/10.3406/reg.1961.3642 63 WALTZ, P. (1906). Hésiode et son poème moral. Bordeaux, Bibliothèque des Universités du Midi (fas- cicule XII).

WEST, M.L. (1971). Early Greek Philosophy and the Orient. Oxford, Oxford University Press.

Entregado en Mayo aceptado para publicación en Junio, 2017

nº 22, Jan.-Apr. 2018

Néstor Luis Cordero, ‘Hubiese querido morir antes o nacer después (Hesíodo, Op. 175)’, p. 41-64

64 Meline Costa Sousa - Universidade Federal de Lavras (Brasil) [email protected] - ORCID: 0000-0001-9820-4738

A prioridade ontológica das substâncias imóveis se- gundo o livro Lambda da nº 22, Jan.-Apr. 2018 Metafísica de Aristóteles1

The ontological priority of the unmoved substances according to Aristotle’s Metaphysics Lambda

SOUSA, M. C. (2018). A prioridade ontológica das substâncias im- óveis segundo o livro Lambda da Metafísica de Aristóteles. Archai, n.º 22, Jan.-Apr., p. 65-97 DOI: https://doi.org/10.14195/1984­‑249X_22_3

Resumo: A partir da leitura da Metaph. de Aristóteles que toma a substância, e outros conceitos correlatos, como temas centrais do tratado, este estudo é dedicado a algumas questões vinculadas ao livro Lambda2. Deste modo, na primeira par- te do texto, discuto o que é a filosofia primeira (sua natureza e seus objetos de investigação) para, em seguida, estabelecer 65 uma relação entre Lambda e o projeto de uma filosofia primeira. A segunda parte do texto aborda os moventes imóveis a partir da classificação dos tipos de substância proposta em Lambda 1. Palavras-chave: Aristóteles, Metafísica, filosofia primeira, subs- tâncias, moventes imóveis.

Abstract: Considering Aristotle’s Metaph. from the perspective of a study on substance and other related concepts, which is as- sumed as the crossing line of some Metaphysics’ books, the fol- lowing lines are going to deal with some issues in Lambda. In the first part of this paper, I analyze the idea of a first philosophy (its nature and subjects) with a view to outlining a relation be- tween Lambda and a project on first philosophy. In the second part, I discuss the unmoved movers from the perspective of the substances’ classification found inLambda 1. Keywords: Aristotle, Metaphysics, first philosophy, substances, nº 22, Jan.-Apr. 2018 unmoved movers.

Lambda3 e a filosofia primeira

Meline Costa Sousa, ‘A Do ponto de vista terminológico, Aristóteles refere- prioridade ontológica -se, ao longo dos livros da Metaph.4, à filosofia primeira das substâncias imó‑ 5 veis segundo o livro (protes philosofias) como sabedoria (sophia), ciência/ 6 Lambda da Metafísica conhecimento (episteme) e teoria (theoria) . Con- de Aristóteles’, p. 65­‑97 tudo, como reconhecem alguns estudiosos7, o texto não é claro quanto à natureza desta filosofia primeira. A defesa da necessidade deste tipo de sabedoria pau- ta-se na apresentação da especificidade do seu objeto de investigação e dos fins que a conduzem8.

Ao longo das primeiras linhas de Gamma 1 1003a20-25, encontra-se a indicação de haver uma ciência9 que teoriza sobre o ente enquanto ente (to on hei on) e suas propriedades. O critério para distin- guir esta sabedoria das demais se baseia no fato de as 66 outras ciências teorizarem apenas sobre um aspecto do ente e sobre as características decorrentes deste aspecto10. Por exemplo, cabe ao filósofo da natureza investigar as substâncias naturais, levando em con- sideração seus princípios imanentes de movimento e repouso (forma e matéria). Deste modo, “à física compete o estudo dos entes, não enquanto entes, mas enquanto dotados de movimento” (Kappa 3 1061b6-7). Já o matemático estuda os objetos matemáticos (li- nha, superfície, número, reta, etc.), os quais existem nas substâncias naturais, abstraindo-os do substrato ao qual estão vinculados (por exemplo, a curvatura do nariz). Diferentemente tanto da física quanto da matemática, a filosofia primeira teoriza acerca dos entes, não enquanto são entes naturais ou matemá- ticos, mas em vista daquilo que lhes é mais universal nº 22, Jan.-Apr. 2018 (Epsilon 1 1026a23-32), o fato de serem entes11.

Em Gamma 2 1003a33, encontra-se a famosa afir- mação “o ente se diz de muitos modos” (to de on legetai men pollachos). Como sugere Owen (1986, p.180-9), Meline Costa Sousa, ‘A todos estes sentidos do termo to on, expressos através prioridade ontológica das substâncias imó‑ das categorias, são modos de dizer o ente que pres- veis segundo o livro 12 supõem um sentido primeiro, a dizer, a substância . Lambda da Metafísica Esta se refere, de modo mais geral, a cada ente toma- de Aristóteles’, p. 65­‑97 do na sua “unidade fundamental” (Schaffer, 2009, p.348)13. Portanto, de acordo com Schaffer ibidem( , p.351), “a noção central de substância é a de uma uni- dade básica, última e fundamental do ente” que não se aplica apenas às substâncias sensíveis14, mas também às substâncias imóveis.

Deste modo, como a filosofia primeira investiga o ente, e o seu sentido mais fundamental é substância15, a filosofia primeira deverá investigar a substância (suas causas e princípios). A autonomia e independência das 67 substâncias são importantes, pois, caso elas dependes- sem de outros entes e não fossem primeiras, a existên- cia das substâncias estaria condicionada à existência desses outros entes, os quais seriam o que é primeiro e mais fundamental16.

Dizer que a filosofia primeira estuda o “ente uni- versalmente e enquanto ente” (Bell, 1998, p.66) sig- nifica que ela trata das propriedades essenciais e aci- dentais de todas as “instâncias de entes” (idem), as quais pertencem a eles justamente pelo fato de serem entes17. Quando investigamos o ente enquanto tal, te- mos em vista os predicados pertencentes a diferentes indivíduos (homem, cachorro, triângulo isósceles)18 nº 22, Jan.-Apr. 2018 não enquanto eles são parte de um gênero (animal, triângulo), mas enquanto substâncias ontologicamen- te autônomas; cada uma a seu modo. O termo to on não pode ser pensado em sentido unívoco, tal como animal é dito, no mesmo sentido, de homem e de ca- Meline Costa Sousa, ‘A chorro, mas em sentido equívoco19. prioridade ontológica das substâncias imó‑ Assim, a sabedoria é descrita (Alpha 1 982a1; 3 veis segundo o livro 20 Lambda da Metafísica 983a25) como ciência de certos princípios e causas de Aristóteles’, p. 65­‑97 (tinas archas kai aitias) mais especificamente, das cau- sas primeiras (proten aitian) dos entes. Deste modo, seguindo Schaffer (2009, p.347-8), ela investiga o que é fundamental ou, em outros termos, primeiro. Não se trata, portanto, de investigar se causas primeiras existem ou não, mas de identificar quais são elas.

A primazia da filosofia primeira, frente às outras ciências, é apresentada (Alfa 2 982a4-b10) em ana- logia com o sábio21: sábio é aquele que busca o co- nhecimento sem ter em vista outro fim que o próprio conhecimento; este que deseja o conhecimento sem 68 ter em vista outro fim deseja o conhecimento último, daquilo que é mais cognoscível em si; maximamen- te cognoscível são os primeiros princípios e causas, a partir dos quais se conhece todas as coisas; logo, o sá- bio busca o conhecimento dos primeiros princípios e causas22. Por fim, conclui-se que “esta [ciência] inves- tiga os primeiros princípios e causas23, pois o bem e o fim das coisas é uma causa” Alpha( 2 982b9-10).

Sobre a relação entre Lambda e os outros livros24 da Metaph., Burnyeat (2001, p.130 apud Menn, 2011, p.196) apresenta a ligação entre a investigação do âmbito das substâncias sensíveis com o âmbito das substâncias não sensíveis25 a partir da noção de ato. A transição das substâncias sensíveis, compostas de nº 22, Jan.-Apr. 2018 matéria e forma, cuja substância é identificada com a forma (Zeta), para as substâncias não sensíveis e imó- veis passaria pela discussão sobre a potência e o ato em Eta-Theta. Meline Costa Sousa, ‘A Como será explicitado adiante, o discurso acerca prioridade ontológica daquilo que é ato puro, as substâncias imóveis ou “ou- das substâncias imó‑ veis segundo o livro siai divinas” (idem), é precedido pela investigação das Lambda da Metafísica substâncias detentoras de potencialidade26 e, conse- de Aristóteles’, p. 65­‑97 quentemente, pela dependência entre potência e ato. Como acrescenta Menn (2011, p.197), a discussão so- bre ato-potência em Theta contribui para a discussão presente em Lambda: 1) ao fornecer os conceitos de ato e potência (Theta 6) e, mais que isso, 2) ao esta- belecer a primazia do ato frente à potência (Theta 8). Portanto, o argumento presente em Theta 8, segundo o qual “toda potência pressupõe um ato a ela anterior, permite ao ‘filósofo primeiro’ argumentar, tal como feito em Lambda 6, em favor de uma causa primeira para o movimento, a qual é ato puro” (idem). 69 A relação entre Lambda e o projeto de uma filo- sofia primeira27 pode ser traçada a partir da noção de substância. Portanto, se a substância é tema cen- tral ao longo dos livros da Metaph., percebe-se, tam- bém em Lambda, a sua centralidade (“esta teoria28 é sobre a substância. Os princípios e causas buscados são referentes a ela”) e o cuidado aristotélico com a totalidade dos entes através da tentativa de estabe- lecer os princípios e causas dos diferentes tipos de substâncias.

O objeto de investigação de Lambda e a prioridade ontológica dos moventes imóveis

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Na tentativa de justificar a importância do obje- to de investigação de Lambda, Aristóteles apresenta alguns argumentos29, dentre eles, a explicitação da primazia da substância. Esta é afirmada tanto se o universo constitui-se como um todo contínuo, “a Meline Costa Sousa, ‘A totalidade de tudo que existe” (Berti, 2016, p.69), prioridade ontológica ou seja, uma unidade cujas partes mantêm-se re- das substâncias imó‑ lacionadas30, quanto como uma série hierárquica veis segundo o livro 31 Lambda da Metafísica e não contínua de entes (discreto) ; pelos exem- de Aristóteles’, p. 65­‑97 plos dados em 1069a21 (qualidade, quantidade), os elementos que compõem esta hierarquia parecem referir-se às categorias32, sendo, a substância o que é primeiro na medida em que todas as outras cate- gorias são atributos da substância33.

A distinção entre os tipos de substância (Lambda 1 1069a30-b3) é crucial para compreender, em detalhes, o que investiga este livro. São eles a substância sensí- vel (aisthete), englobando as substâncias corruptíveis e as que realizam um movimento circular eterno, e a substância imóvel (achinetos). 70 Alguns estudiosos consideram que a substância imóvel denota o primeiro movente imóvel. Contudo, a ocorrência dos termos no singular em referência ao terceiro tipo de substância, a substância imóvel, não indica a existência de uma única substância34. O sin- gular também é utilizado na expressão “substância sensível”, a qual se subdivide em entes corruptíveis, as plantas e os animais, e entes eternos, os corpos celes- tes. Além disso, em Lambda 8, Aristóteles menciona a existência de 55 ou 47 moventes imóveis35.

Deste modo, esta primeira classificação das subs- tâncias, ainda que não forneça muitos detalhes acerca da natureza de cada uma delas, indica os dois grandes 36 objetos de investigação de Lambda : a substância sen- nº 22, Jan.-Apr. 2018 sível37 e a substância não sensível ou imóvel38. Portanto, se o objeto de investigação são as substâncias, e as subs- tâncias são sensíveis ou imóveis, o objeto de investiga- ção de Lambda são as substâncias sensíveis e imóveis. Meline Costa Sousa, ‘A Subjaz a esta primeira exposição do objeto de in- prioridade ontológica vestigação de Lambda (a substância) e da referência ao das substâncias imó‑ 39 veis segundo o livro fato de se tratar dos princípios e causas da substância , Lambda da Metafísica o cuidado aristotélico em demarcar a cientificidade da de Aristóteles’, p. 65­‑97 sua empresa. Como todo conhecimento é conhecimen- to das causas, se o objeto de investigação de Lambda são as substâncias, o conhecimento produzido é o conheci- mento das causas e princípios da substância. Contudo, poder-se-ia questionar, esta afirmação é igualmente vá- lida para a substância sensível e para a substância imó- vel40? Já que não há uma causa para ação do movente imóvel, não haveria conhecimento dele?

Os princípios e causas são os mesmos para todas as substâncias sensíveis se tomamos princípios e causas 71 em sentido analógico41: podem ser considerados os mesmos porque matéria, forma, privação e as causas do movimento são comuns a todas as coisas42. Em ou- tras palavras, todas as substâncias sensíveis possuem forma, matéria, privação e causas eficientes para o seu movimento ou mudança. Contudo, estes princí- pios são numericamente distintos na medida em que as substâncias não compartilham dos mesmos prin- cípios; a forma do pai é numericamente diferente da forma do filho, pois os dois são “particulares numeri- camente distintos” (Code, 2000, p.161).

As dificuldades surgem quando nos voltamos para a substância imóvel. Os princípios e causas rela- nº 22, Jan.-Apr. 2018 tivos às substâncias sensíveis (forma, matéria, priva- ção) não se aplicam a este tipo de substância. Assim, como pensar as causas e princípios das substâncias imóveis?43 Ou elas devem ser entendidas como prin- cípios absolutos? Meline Costa Sousa, ‘A prioridade ontológica Aristóteles, em Theta 8, apresenta uma sequência das substâncias imó‑ de raciocínios para demonstrar a primazia do princí- veis segundo o livro Lambda da Metafísica pio ativo e a necessidade de que ele não seja corrup- de Aristóteles’, p. 65­‑97 tível. Dentre eles (Theta 8 1049b10-3), encontra-se a primazia substancial (tei ousiai protera) do ato frente às substâncias corruptíveis e às substâncias eternas44. Os exemplos de primazia substancial aplicada ao pri- meiro tipo de substância são: o adulto é anterior à criança e o homem é anterior ao esperma45.

No caso das substâncias eternas, a primazia subs- tancial está relacionada à ausência de corruptibilidade que lhes é própria, a qual é associada à ausência de po- tencialidade. Segundo a argumentação proposta em Theta 8 1050b6-34, entes corruptíveis são entes que 72 se encontram em potência, podendo, assim, existir ou não existir (já que potência é potência de contrários). Assim, se os entes eternos não são corruptíveis, eles não se encontram em potência; decorrendo disso o fato de sempre existirem. Logo, eles são entes eternos e em ato.

A primazia das substâncias eternas e em ato é apre- sentada em Lambda 646 ao serem associadas aos prin- cípios: se todos os princípios são corruptíveis, todos os entes também são corruptíveis; as substâncias são princípios; logo, se todos os princípios são corruptí- veis, todos os entes também são corruptíveis. No en- tanto, é sabido que existem dois tipos de substâncias 47 que não são corruptíveis, a eterna e a imóvel . Logo, nº 22, Jan.-Apr. 2018 nem toda substância é corruptível.

Valendo-se da conclusão exposta no raciocínio an- terior, ou seja, as substâncias eternas e imóveis não são corruptíveis, Aristóteles chega à necessidade da substân- Meline Costa Sousa, ‘A cia imóvel a partir do movimento48. Como há um mo- prioridade ontológica vimento circular contínuo (Ph. VIII.8) das substâncias das substâncias imó‑ 49 veis segundo o livro eternas , cada uma delas depende de um princípio para Lambda da Metafísica o seu movimento que esteja sempre em ato50. Se não fos- de Aristóteles’, p. 65­‑97 se assim, ou seja, se o princípio que é causa do movimen- to de cada uma das esferas celestes não estivesse em ato, mas em potência para mover e “visto que aquilo que está em potência para agir pode não agir” (Lambda 1071b13- 4), não poderia haver movimento.

Deste modo, é necessário haver um princípio51 cuja essência é puro ato e que seja princípio para o movimen- to (Lambda 1071b20-23). Segundo Berti (2000, p.182), em Lambda 6, Aristóteles menciona a necessidade de 52 provar a existência do terceiro tipo de substância, a 73 substância imóvel: “mais precisamente, o que requer prova não é apenas a existência da substância eterna (o que talvez poderia ser admitido apenas com a observa- ção dos céus), mas também a existência de uma substân- cia imóvel” (Berti, 2000, p.182). Neste primeiro momen- to, é a imobilidade desta substância que está em jogo.

Contudo, para defendê-la em Lambda 6, Aristóteles se vale das concepções de ato e potência tanto com res- peito ao tipo de movimento realizado pelas substâncias eternas, o movimento circular eterno53, quanto com respeito à natureza da substância imóvel54. A primazia ou prioridade55 dos moventes imóveis é estabelecida em vista do reconhecimento (Lambda 6) de um grupo nº 22, Jan.-Apr. 2018 de substâncias que são princípio para o movimento de outras substâncias. Em um primeiro momento do texto (Lambda 6), a prioridade se dá em vista da categoria da relação (causa-causado/ato-potência56).

Meline Costa Sousa, ‘A Por um lado, essa prioridade refere-se a to proton prioridade ontológica panton kinoun panta57 e, por outro, a cada um dos mo- das substâncias imó‑ ventes imóveis na medida em que são ato puro e prin- veis segundo o livro Lambda da Metafísica cípio para o movimento das esferas celestes. Assim, de Aristóteles’, p. 65­‑97 a anterioridade pode ser pensada a partir da relação entre aquilo que está em potência para se mover58 e o princípio em ato que atualiza esta potência59.

No entanto, dados os sentidos de prioridade onto- lógica60 (pelo ser61; pela substância62; pela natureza63) apresentados na Metaph., como pensar a prioridade do primeiro movente imóvel frente a todos os outros moventes imóveis e a ordenação deles?

Dentre os tipos de prioridade ontológica menciona- dos anteriormente, encontram-se duas formulações em 74 termos de condições de existência64. No primeiro caso, o critério para se dizer que A é anterior a B é: “A pode existir independentemente de B, ou seja, pode existir sem que B exista ao mesmo tempo; B não pode existir independentemente de A, ao contrário, se B existe, A necessariamente existe ao mesmo tempo” (Witt, 1994, p.216; Angioni, 2010, p.84-5). No segundo caso (Fine, 1984 apud Corkum, 2013, p.12-3), a prioridade ontoló- gica pode ser formulada em termos de uma indepen- dência existencial na medida em que A não depende de B para existir65 e, por isto, pode ser tomado como estando separado de B.

Assim, da associação entre prioridade ontológi- ca e “condições de existência” (Corkum, 2013, p.12) nº 22, Jan.-Apr. 2018 decorrem duas possibilidades. Tal como formulado por Angioni (2010, p.99)66, A é independente de B se A existe sem que B exista ao mesmo tempo. As- sim, a independência decorre de uma anterioridade no tempo na medida em que podemos imaginar um Meline Costa Sousa, ‘A tempo t1 no qual A exista e B não, e t2 no qual A prioridade ontológica das substâncias imó‑ e B existam. Chamarei, assim, esta possibilidade de veis segundo o livro existência cronologicamente independente. Segun- Lambda da Metafísica do a formulação de Fine (1984 apud Corkum, 2013, de Aristóteles’, p. 65­‑97 p.12-3), a ênfase encontra-se no fato de A existir separado de B. A noção de separado não envolve necessariamente a noção de tempo já que podemos imaginar um tempo t1 no qual A e B existam con- comitantemente e um tempo t2 no qual ambos con- tinuam existindo (como no caso da relação entre as substâncias eternas).

Aplicando essas duas formulações de prioridade ontológica à relação entre os moventes imóveis e os corpos celestes, 75 Possibilidade 1 - Os moventes imóveis podem exis- tir sem que as substâncias eternas (corpos celestes) existam ao mesmo tempo, mas se as substâncias eter- nas (corpos celestes) existem, os moventes imóveis existem ao mesmo tempo.

Possibilidade 2 - Os moventes imóveis são separa- dos das substâncias eternas (corpos celestes) se eles podem existir sem que as substâncias eternas (corpos celestes) existam.

Se a prioridade quanto à existência implica na prio- ridade quanto ao tempo67 (possibilidade 1), teríamos que os moventes imóveis podem ser temporalmente nº 22, Jan.-Apr. 2018 anteriores aos corpos celestes68. Contudo, dado que tanto os moventes imóveis quanto as substâncias que se movem circularmente são eternos, ou seja, não há um começo nem um fim para sua existência, a priori- dade temporal não se aplica69. Meline Costa Sousa, ‘A prioridade ontológica das substâncias imó‑ Se a prioridade quanto à existência implica em veis segundo o livro existir separadamente (possibilidade 2), pode-se assu- Lambda da Metafísica de Aristóteles’, p. 65­‑97 mir que os moventes imóveis existem separadamente das substâncias sensíveis terrestres, das quais eles são causa remota do movimento (Ph. II.2). Poderíamos dizer o mesmo em vista das substâncias sensíveis ce- lestes, das quais eles são causa próxima do movimento circular eterno?

O problema envolvido, aqui, deve-se ao fato de, em nenhum momento de Lambda, Aristóteles afir- mar que os moventes imóveis ou o primeiro moven- te imóvel existem separadamente das esferas celestes 70 76 por eles movidas . Angioni (2010, p.90-1) sugere outro sentido para o termo separado71, cujo sinônimo é “acabado”, “per- feito” e que não denota uma “independência exis- tencial”, ou seja, uma condição de existência, mas um “todo autônomo, ao qual nada falta para que ele seja o que ele é” (ibidem, p.90); o exemplo dado pelo estudioso consiste na relação entre as substâncias e as categorias72.

Aplicando esta outra compreensão de priorida- de ontológica aos moventes imóveis, estes seriam mais perfeitos na medida em que o ato é mais per- feito que a potência73. Neste caso, o critério não se põe em termos de independência ou dependência quanto à existência. A forma não é primeira que nº 22, Jan.-Apr. 2018 a matéria por existir sem esta (o que Aristóteles nega), nem o todo é primeiro por existir indepen- dentemente das partes74. Portanto, aqui, a primazia deve ser pensada em termos de perfeição (ou graus de perfeição) da substância. Meline Costa Sousa, ‘A prioridade ontológica Se tomarmos separado como perfeito/acabado, das substâncias imó‑ veis segundo o livro a prioridade ontológica dos moventes imóveis não Lambda da Metafísica estaria vinculada à existência75, mas à essência. Pe- de Aristóteles’, p. 65­‑97 ramatzis (2013, p.16) formula a noção de prioridade nos seguintes termos: A é ontologicamente anterior a B se e somente se A pode ser o que ele é indepen- dentemente de B ser o que ele é, enquanto o contrá- rio não é válido.

Assim, os moventes imóveis são o que eles são in- dependentemente de as substâncias eternas serem o que elas são, enquanto as substâncias eternas não po- dem ser o que elas são sem que os moventes imóveis sejam o que eles são. Como faz parte da natureza das 77 substâncias eternas se moverem circularmente, elas dependem dos moventes imóveis para que este movi- mento aconteça.

Conclui-se, portanto, dados os sentidos de priori- dade ontológica discutidos: 1) os moventes imóveis são numericamente distintos dos outros tipos de substância e 2) são essencialmente distintos, porque são mais perfeitos ou acabados. Este segundo senti- do nos ajuda a compreender a distinção entre o pri- meiro movente imóvel e os outros moventes imóveis. O critério de ordenação proposto por Aristóteles em Lambda 8 pauta-se no grau de perfeição próprio a cada um deles. nº 22, Jan.-Apr. 2018 Sobre eles existirem de modo independente, tal condição pode ser entendida como uma existência anterior no tempo ou como uma separação. Nenhum dos dois casos parece se aplicar aos moventes imóveis Meline Costa Sousa, ‘A já que os moventes imóveis e os corpos celestes são prioridade ontológica das substâncias imó‑ concomitantes e não há nenhuma indicação textual veis segundo o livro de que eles existam separados. Lambda da Metafísica de Aristóteles’, p. 65­‑97 Notas

1 Este texto é continuação de outro artigo, no qual discuti a natureza dos moventes imóveis, tentando explicitar as dificul- dades em torno de classificá-los. Cf. Sousa, 2016. 2 Foi utilizada, aqui, a edição do livro Lambda realizada por Fazzo (2012). 3 Tal como mostra Owens (1951, p.94-104) os estudiosos (Jaeger, Von Arnim, Nuyen, Oggioni) divergem consideravel- mente acerca do período de elaboração dos livros da Metaph., 78 dentre eles, de Lambda. Segundo Angioni (2005, p.172), algumas características de Lambda (“o caráter alusivo dos argumentos”, “certas imprecisões conceituais”, “certas dificuldades envolvidas nos exemplos”) apontam para o “estado incipiente e embrionário das teses de Aristóteles [...] Nessa perspectiva, podemos imaginar que o livro XII da Metaph., em suas passagens mais difíceis e alu- sivas, teria sido concebido por Aristóteles como uma lista progra- mática de teses e argumentos que ele ainda teria de desenvolver ou aprimorar, para alcançar sua maturidade filosófica”. 4 Alguns estudiosos (Jaeger (1923), Barnes (1985), Frede (1987)) entendem haver, na Metaph., dois projetos distintos, um chamado de ontologia que investiga o ente em geral e outro chamado de teologia que trata apenas da substância divina. Cf. Bell, 1998, p.1-2. Baseando-se em algumas passagens da Me- taph. (Gamma 1-2 e Epsilon 1), Frede (1987, p.82-5) descreve haver dois projetos diferentes ao longo da obra: uma metafísica geral e uma metafísica específica. Em Gamma (1-2), Aristóteles apresenta a filosofia primeira como a ciência do ente enquanto nº 22, Jan.-Apr. 2018 tal, distinguindo-a das outras ciências que tratam apenas de um aspecto particular do ente, tal como a matemática e a física. Em Epsilon 1, a filosofia primeira é relacionada à investigação de um tipo específico de ente, o qual é primeiro na ordem dos en- tes, chamando-a de teologia. Frede (1987, p.84) reconhece que Aristóteles não vê uma incompatibilidade entre estas duas no- Meline Costa Sousa, ‘A ções de filosofia primeira, discordando da afirmação de Jaeger prioridade ontológica de que se trataria de diferentes estágios do pensamento aristoté- das substâncias imó‑ lico. No entanto, Frede (1987, p.84-5) mantém a distinção entre veis segundo o livro Lambda da Metafísica elas na medida em que considera que a metafísica geral envolve de Aristóteles’, p. 65­‑97 uma ontologia mais ampla do que aquela realiza pela teologia ao abarcar certos princípios universais como, por exemplo, o princípio da não contradição. A tendência contemporânea, como afirma Menn (2011, p.188), é não assumir tal distinção. Não assumo, neste artigo, que haja uma distinção entre as abor- dagens ontológica e teológica da Metaph. 5 Uso a expressão filosofia primeira e não o título Metaph. em vista dos inúmeros problemas em tentar compatibilizar em um único projeto todos os seus livros. Assim, ao dizer filoso- fia primeira, tenho em vista que todos os livros fazem parte de uma mesma disciplina, a filosofia primeira. Não entrarei no debate sobre as inconsistências encontradas ao longo dos livros da Metaph. 79 6 Alpha 2 982a5; Alpha 2 982a4-5; Kappa 3 1061b15; Alpha 1 993a30; Beta 1 995b19; Beta 2 997a26; Gamma 3 1005a29; Lam- bda 1 1069a18-9, etc. Cf. Berti, 2016, p.67-8. 7 Cf. Tahko, 2013, p.50. 8 Johson (2015, p.163) utiliza estes dois critérios para discu- tir a subordinação entre as ciências. 9 Como sugere Bell (1998, p.25; 27), frente às considera- ções dos APo. 1.9, esta universalidade da sabedoria mostra-se, de certo modo, problemática. Se toda ciência é universal e ne- cessária, cuja universalidade é expressa através do gênero e da espécie, como poderia haver uma ciência do ente se ele não é um gênero? Se a filosofia primeira fosse ciência, ela deveria -se guir os critérios apontados nos APo. Contudo, como reconhece o próprio Aristóteles na Metaph. Beta 2 997a25-32, se a filoso- fia primeira é ciência da substância, ela deveria demonstrar a nº 22, Jan.-Apr. 2018 substância e seus atributos: contudo, não há demonstração da substância na medida em que não se demonstra o que é, a de- finição. Como entender, assim, que a filosofia primeira é uma ciência ou conhecimento sem ser demonstrativo? A alternativa proposta por Bell é pensar “como a metafísica pode ser univer- sal sem ser uma ciência universal do tipo que é criticado em Meline Costa Sousa, ‘A APo 1.9 e, implicitamente, em Metaph. 1.9” (ibidem, p.27). As- prioridade ontológica sim, segundo Bell, Aristóteles é contra uma ciência universal das substâncias imó‑ veis segundo o livro entendida como uma ciência que dê conta de todas as causas Lambda da Metafísica ou princípios: “ele parece deixar aberta a possibilidade de uma de Aristóteles’, p. 65­‑97 ciência ser universal não porque os princípios que ela investi- ga são suficientes para explicar todas as coisas, mas porque ela investiga princípios de um fenômeno compartilhado por todas as coisas e, por isto, princípios que são uma parte necessária da abordagem completa de qualquer coisa” (1998, p.40). O ponto, aqui, é entender que os princípios da filosofia primeira não são universais do mesmo modo que os gêneros. Em outras palavras, os princípios não são universais porque todos os entes caem sob ele, tal como o gênero animal que abarca todos os animais. O ente ou a substância são universais na medida em que tudo que existe é um ente ou uma substância, mas cada um ao seu modo. Como aponta Bell (idem), se a filosofia primeira fosse uma ciência universal de todos os princípios, ela seria capaz de 80 demonstrar, a partir de seus princípios, as conclusões de todas as outras ciências particulares. Contudo, o problema maior diz respeito a cada ciência demonstrar os atributos per se de um dado sujeito. Assim, ou os atributos demonstrados pelas outras ciências a partir dos princípios universais da filosofia primeira seriam atributos acidentais e não essenciais, dos quais não há conhecimento, ou os princípios universais seriam comuns a fi- losofia primeira e a outras ciências, o que aniquilaria a divisão aristotélica das ciências conforme os princípios próprios de cada ciência. Disto segue que Aristóteles não tem em vista que os princípios da filosofia primeira são universais neste sentido, ou seja, logicamente universais (em referência ao vocabulário lógi- co gênero-espécie). Também não resolve o problema dizer que a substância seria o princípio desta ciência, a filosofia primeira, a qual não seria demonstrada, mas intuída. Isto, pois a substância não é tratada apenas como um princípio, mas também como algo que possui princípios e causas: “a ciência do ente enquanto ente é, em grande medida, uma investigação acerca das causas da substancialidade em uma substância” (ibidem, p.64). nº 22, Jan.-Apr. 2018 10 Sobre o modo pelo qual Aristóteles distingue a filosofia primeira das outras ciências cf. Bell, 1998, p.50-61; Irwin, 1988; Leszl, 1975.

11 Cf. Kappa 4 1061b27ss. No De anima I.1 403b16, Aris- Meline Costa Sousa, ‘A tóteles diz que cabe ao filósofo primeiro investigar aquilo que prioridade ontológica existe separado. das substâncias imó‑ 12 Segundo a Metaph. Gamma 2 1003b5-10: 1) algumas coi- veis segundo o livro Lambda da Metafísica sas são entes enquanto substâncias; 2) outras enquanto afecções de Aristóteles’, p. 65­‑97 da substância; 3) outras enquanto conduzem à substância; 4) outras enquanto corrupções, privações, qualidades ou causas da geração e corrupção da substância; 5) outras enquanto nega- ções de algumas das suas propriedades ou da própria substân- cia. Frede (1987, p.87) afirma que o “focal meaning of being” da substância sensível identifica-se com a forma substancial. Pelo fato de o modo de ser dos outros entes depender do modo de ser das substâncias sensíveis, todos os modos de ser “dependem do modo de ser das formas substanciais”. 13 Como aponta Cohen (2009, p.202), ao excluir a possibilida- de de que a matéria seja a substância em Zeta 3, Aristóteles parece sugerir que são dois critérios que estão em jogo para determina o que é substância e o que não é; o primeiro é a individualidade e 81 o segundo a determinação. Após excluir que matéria e composto são substâncias, o texto parece sugerir que forma é substância. Segundo Cohen (2009, p.203): “se a substancia de x é sua essência (to ti en einai), e a essência de um composto hilemórfico é a for- ma, então, decorre que a substância do composto hilemórfico seja sua forma”. Contudo, Cohen (2009, p.204), baseando-se em Zeta, assume ser substância distinta da substância individual: “supo- nha que x seja uma substância individual e y seja a substância de x. Assim, de acordo com a tese de Zeta 6, y (e não x) identifica-se com a sua essência.” A ideia que subjaz à formulação de Cohen, na sua leitura pautada na ontologia das substâncias sensíveis, é a identificação assumida pelo estudioso entre substância e forma e que forma é universal; (sobre alguns dos estudiosos que tomam forma como particular, cf. Gill, 2005, p.231). Como já apontaram outros estudiosos e o próprio autor reconhece em seu artigo, estas duas afirmações envolvem alguns problemas, dentre eles o fato de Aristóteles negar em Zeta 13 que substâncias são universais. Se- nº 22, Jan.-Apr. 2018 gundo Irwin (1988, p.82.), se universais requerem a existência de indivíduos, os universais são dependentes destes e não o contrá- rio. O universal homem depende da existência de indivíduos tais como Sócrates, Cálias, etc. Assim, Sócrates é “independente dos universais” (idem) e, sendo os indivíduos as substâncias primei- Meline Costa Sousa, ‘A ras, pode-se concluir acerca da independência destas substâncias. prioridade ontológica Segundo Angioni (2003, p.245-7), considerou-se haver, em Zeta das substâncias imó‑ 3, a apresentação de dois critérios incompatíveis para definir ou- veis segundo o livro sia, o critério da subjacência e o critério da essência ou forma. O Lambda da Metafísica primeiro estaria em harmonia com o “realismo juvenil das Cat.” de Aristóteles’, p. 65­‑97 e o segundo critério seria uma reformulação aristotélica da sua concepção de substância. No entanto, Angioni (ibidem, p.246) afirma não haver incompatibilidade entre eles já que tal “noção de subjacente não envolve nenhum contraste relevante entre in- divíduos e formas universais que deles se predicam” (idem). As- sim, Angioni assume dois sentidos para o termo ousia: 1) um que designa as entidades ontologicamente independentes como, por exemplo, Sócrates e uma planta; 2) outro que designa a “natureza essencial pela qual algo é precisamente o que é” (ibidem, p.247), ou seja, a essência. 14 As substâncias sensíveis são uma instância dos entes que podem ser estudadas enquanto entes pela metafísica ou do pon- 82 to de vista do movimento pela física. Cf. Bell, 1998, p.76. 15 Sobre a primazia das substâncias segundo as Cat., cf. Fre- de, 1987, p.73-80; Zingano, 2016, p.139-42. 16 Cf. Irwin, 1988, p.82. 17 Ente não é um gênero e, neste sentido, não é universal. Na Metaph. Zeta 13, Aristóteles nega que ente seja um universal. Cf. Bell, 1998, p.66. 18Segundo o Int. 17a39-b1: “eu entendo por universal o que é naturalmente predicado de muitos e por particular o que não é como, por exemplo, homem e Cálias”. Os autores que defendem que substâncias são universais interpretam Metaph. Zeta 13, no qual Aristóteles nega que substâncias são universais, como se refe- rindo a apenas alguns universais, o que não envolveria as formas. 19 Esta polissemia do termo to de on, como aponta Cohen (2009, p.200), não pode ser entendida como um tipo de ho- monímia de modo que o termo apresentasse sentidos comple- tamente diferentes referindo-se à mesma palavra como, por nº 22, Jan.-Apr. 2018 exemplo, o termo manga, o qual significa tanto a fruta, quanto uma extremidade da camisa. Tratar-se-ia de um caso de equi- vocidade de modo que subjaz os diferentes usos do termo um único sentido. Segundo Tomás de Aquino (Sent. Metaphysicae lib. 4 I. 1n. 7 [82100]; trad. J. P. Rowan, 1961), “um termo é predicado de coisas diferentes em muitos modos. Às vezes, ele Meline Costa Sousa, ‘A é predicado deles em vista de um sentido que é o mesmo; en- prioridade ontológica tão, é dito ser predicado deles univocamente como, por exem- das substâncias imó‑ veis segundo o livro plo, animal é predicado de um cavalo e de um boi. Às vezes, o Lambda da Metafísica termo é predicado delas em vista de sentidos completamente de Aristóteles’, p. 65­‑97 diferentes; então, é dito ser predicado delas equivocamente como, por exemplo, cachorro é predicado de uma estrela e de um animal”. 20 Poder-se-ia perguntar: qual a relação entre o objeto de in- vestigação da filosofia primeira e o conhecimento? Esta relação é estabelecida no primeiro livro da Metaph. Como é próprio do homem conhecer, dada a diferença específica compartilhada por todos os indivíduos da espécie humana, a dizer, a racionalidade, e o conhecimento é conhecimento das causas, o conhecimento das causas primeiras também é objeto do desejo humano. Nos APo. I.2 71b9-12, Aristóteles estabelece a relação entre conhecimento e causa. Segundo Angioni (2007, p.2), são três características atri- buídas ao conhecimento: 1) envolve conhecimento da causa; 2) 83 envolve o conhecimento de alguma relação necessária; 3) opõe-se ao modo sofístico de conhecer. 21 Segundo Bell (1998, p.23), o homem sábio a) conhece todas as coisas para as quais está apto a conhecer; b) possui co- nhecimento de difícil aquisição; c) tem um conhecimento mais acurado das causas e é mais capaz de ensinar. 22 Sábio não é aquele que conhece todas as coisas, o que é im- possível, mas o indivíduo que conhece os princípios de todas as coisas, a partir dos quais ele pode derivar outros conhecimentos. Trata-se de uma distinção qualitativa e não quantitativa. 23 Os princípios são divididos em dois grandes grupos (Del- ta 1 1013a19-20), os princípios imanentes (enyparchousai), os quais são intrínsecos a um dado ente e responsáveis por seu movimento como, por exemplo, a natureza (forma e matéria), os elementos e o pensamento; e os princípios transcendentes nº 22, Jan.-Apr. 2018 (echtos), os quais são causa do movimento de outro ente como substância, fim, bem e belo. 24 Refiro-me aos livros nos quais se considera haver uma investigação ontológica. 25 Embora não se referindo a relação entre Lambda e os Meline Costa Sousa, ‘A outros livros da Metaph., Frede (1987, p.87-90) estabelece a prioridade ontológica relação entre os dois projetos metafísicos (geral e específico) a das substâncias imó‑ partir da noção de que o sentido principal de ente é a forma veis segundo o livro substancial. Devido ao fato de as substâncias não sensíveis tal Lambda da Metafísica como o movente imóvel, privadas de matéria, serem, formas de Aristóteles’, p. 65­‑97 separadas, a noção de forma substancial é central no projeto metafísico aristotélico. Contudo, como coloca Menn (2011, p.197), as substâncias imóveis não são formas separadas. Outra leitura compatibilista (Burnyeat, 2001) tenta reconhecer Lamb- da como um resumo de Zeta 7-9. Para uma análise dessa leitura, cf. Crubellier, 2016, p.119-21. 26 Para Frede (1987, p.88) a precedência do estudo da subs- tância sensível em Zeta deve-se ao fato de a substancialidade das substâncias sensíveis ser um primeiro passo na investigação da substância já que “nós apenas alcançamos um entendimen- to completo da substancialidade da substância sensível quando nós já tivermos entendido a substancialidade das substâncias 84 não sensíveis”. Frede (idem) associa a decisão aristotélica de discutir primeiro a substância sensível e não a substância não sensível ao princípio metodológico segundo o qual o conheci- mento se inicia com aquilo que nos é mais familiar em vista do que está mais distante da nossa experiência. 27 Segundo Frede (2000, p.53), Lambda é um tratado in- dependente. Um dos argumentos para defender sua indepen- dência pauta-se na repetição de conteúdos que já haviam sido discutidos em outros livros da Metaph. Uma das razões de Lam- bda ter sido integrado aos livros da Metaph. dever-se-ia ao fato de ser o único livro no qual Aristóteles leva à cabo as promes- sas explicitadas nos outros livros, tal como Zeta, de discutir as substâncias separadas. Portanto, distingo, aqui, a investigação da relação entre Lambda e a Metaph. e a investigação da relação entre Lambda e a filosofia primeira. Isto se deve à duas possi- bilidades: 1) Lambda é um texto que não faz parte do tratado Metaph., mas é um texto de filosofia primeira; 2) Lambda é um texto que faz parte da Metaph. e é um texto de filosofia primei- nº 22, Jan.-Apr. 2018 ra. Esta análise que proponho, na parte inicial do artigo, parece corroborar a segunda possibilidade. Na medida em que Lamb- da discute os princípios e causas das substâncias, ele pode ser considerado um texto de filosofia primeira. Na medida em que, como mostra Burnyeat (2001) e Menn (2011), há uma continui- dade entre a investigação de outros livros da Metaph. e Lambda, Meline Costa Sousa, ‘A o qual parece não ser um livro completamente desconectado prioridade ontológica com os livros da Metaph. das substâncias imó‑ veis segundo o livro 28 Embora o pronome demonstrativo seja utilizado nesta Lambda da Metafísica construção, no grego, encontramos o artigo definido. Segundo de Aristóteles’, p. 65­‑97 a sugestão de Frede (ibidem, p.54-5), tratar-se-ia da continua- ção de um “empreendimento” já iniciado por Aristóteles e não, como sugerem outros estudiosos, do início de uma nova inves- tigação. Para outras possibilidades de leitura dessa primeira li- nha do livro Lambda, cf. Berti, 2016, p.67-9. 29 Cf. Frede, 2000, p.57-8. 30 Haveria entre todas as substâncias um certo tipo de uni- dade, a qual não pode ser entendida materialmente, na medida em que não há uma união material entre elas, mas talvez uma união causal. 31Entes não causalmente relacionados. A comparação esta- belece a oposição entre um conjunto de entes conectados por 85 relações causais e um conjunto desconexo de entes ordenados em determinado modo. Temístio (1999, p.47) vê, aqui, três pos- sibilidades, sendo duas delas compreensões do todo: 1) o todo pode ser entendido como, por exemplo, a unidade dos órgãos do corpo humano ou vegetal; 2) como um composto de partes que se tocam como, por exemplo, uma casa ou um barco; 3) como um agregado de coisas separadas como, por exemplo, uma cidade ou um exército. De acordo com Crubellier (2000, p.140), o universo para Espeusipo seria formado a partir de “diferentes estratos de substâncias” hierarquicamente organizadas, embora não haja, en- tre elas, nenhuma relação causal. Como aponta Berti (2016, p.70), Ross e Frede compartilhariam dessa interpretação. Berti (ibidem, p.71) se posiciona afirmando que “a primazia da substância está justificada, aos olhos de Aristóteles, não apenas pela sua própria filosofia,i.e ., pela doutrina das categorias, a qual está, certamente, presente no livro Lambda, mas também pelas filosofias dos seus predecessores [seja Espeusipo, seja Platão]”. nº 22, Jan.-Apr. 2018 32 Embora em algumas traduções destes passos (ex. Reale, 2005, p.543), encontra-se o termo categoria, no texto grego, este termo não aparece. Contudo, os exemplos dados por Aristóteles sugerem que se trate das categorias.

Meline Costa Sousa, ‘A 33 Segundo Zingano (2016, p.142), trata-se da prioridade prioridade ontológica natural da substância frente às outras categorias: “se ela é des- das substâncias imó‑ truída, as outras são destruídas, mas um item das outras cate- veis segundo o livro gorias pode ser destruído sem que a substância seja destruída”. Lambda da Metafísica de Aristóteles’, p. 65­‑97 34 Cf. Berti, 2000, p.191. 35 Para uma justificativa destes números, cf. Angioni, 2005, p.192-3. 36 Os capítulos 1-6 tratam da substância sensível e os capí- tulos 7-10 tratam da substância imóvel. Deste modo, os capítu- los de Lambda mostram que a investigação levada a cabo por Aristóteles, neste livro, não é apenas uma teologia, mas também uma ontologia das substâncias sensíveis. 37 Cf. Rapp, 2016, p.87-117. 38 Sobre a relação entre elas, cf. Zingano, 2016, p.145. 39 Como sugere Frede (2000, p.62), o enfoque parece estar na 86 substância e não nos princípios e causas: “devemos nos lembrar que nós não estamos interessados apenas nos princípios da substância, mas também nas substâncias para as quais eles são princípios”. 40 Não há uma causa ou princípio para o primeiro mo- vente imóvel. 41 Cf. Zingano, 2016, p.142. 42 No caso da substância sensível, os princípios são dividi- dos em causas internas/imanentes (forma, matéria e privação) e causas externas/transcendentes ou causas relativas do movi- mento tal como o médico-saúde, o carpinteiro-casa e o pai-fi- lho. As causas internas são princípios imanentes às substâncias sensíveis enquanto as causas externas são substâncias ontologi- camente autônomas que exercem o papel de causa eficiente para outras substâncias. 43 De certo modo, esta questão fica sem resposta, pois as substâncias imóveis não possuem causas ou princípios, na me- dida em que elas são as causas e princípios do movimento das nº 22, Jan.-Apr. 2018 substâncias sensíveis eternas. 44 Aqui, Aristóteles menciona o exemplo dos astros celestes. Não há nenhuma referência, nesse capítulo, às substâncias imó- veis, as quais também são eternas. 45 Cf. Theta 8 1050a4-6. Meline Costa Sousa, ‘A prioridade ontológica 46 Para uma análise detalhada da estrutura do raciocínio cf. das substâncias imó‑ Berti, 2000, p.183-4. veis segundo o livro 47 Segundo Berti (ibidem, p.183), esta premissa está implí- Lambda da Metafísica cita no raciocínio. de Aristóteles’, p. 65­‑97 48 Crubellier (2000, p.157-8) toma como enigmática esta primeira referência ao movente imóvel no livro Lambda. Con- tudo, se levarmos em consideração que a menção ao primeiro movente imóvel está relacionada ao fato de haver, para as subs- tâncias sensíveis, um princípio que é causa do movimento, ha- vendo, dentre todos os princípios de movimento, um primeiro princípio absoluto, ou seja, o movente imóvel, o texto se mostra mais coerente. 49 Aristóteles (Lambda 6 1071b9-14) mencione a existência de um movimento circular eterno/contínuo, mas não atribui, aqui, este movimento à substância sensível eterna. Isto será feito apenas em Lambda 7. 87 50 Como os moventes imóveis movem? Que tipo de causa eles são para os movimentos circulares? Há grande divergência entre os estudiosos acerca disto. Alguns afirmam que os moven- tes imóveis são causas finais, outras causas eficientes. Cf. Berti, 2000, p.181-206; Miller, 2013, p.277-98; Ross, 2016, p.207-27. 51 Este raciocínio se aplica tanto ao primeiro movente imó- vel quanto aos outros moventes na medida em que todos eles são princípio para um movimento eterno. 52 Provar a existência não pode ser entendido no sentido de uma demonstração cuja conclusão seja ‘os moventes imóveis existem’, mas uma constatação da necessidade da existência des- ta substância imóvel. Isto pois vai contra os princípios estabele- cidos nos APo., conforme os quais uma ciência não demonstra seu objeto de investigação. 53 A noção de ato-potência decorre da noção de contínuo. nº 22, Jan.-Apr. 2018 A continuidade do movimento circular, a qual é justificada pela sua eternidade, demanda um movente que seja eterno. Para isto, é necessário que esta substância não esteja em potência, caso contrário, ela poderia não ser causa do movimento se esta potência não se atualizasse. Logo, a natureza desta substância imóvel é ser puro ato. Por não se mover, o movente imóvel não Meline Costa Sousa, ‘A depende de nada a fim de atualizar a sua potência. O estabe- prioridade ontológica lecimento da substância primeira cuja atualização não envolve das substâncias imó‑ nenhuma potência, já que ela é ato puro, pressupõe que o ato veis segundo o livro seja anterior à potência. Lambda da Metafísica de Aristóteles’, p. 65­‑97 54 Cf. Ibidem, p.186. 55 Nas Cat. 2a13-8, Aristóteles afirma que as substâncias, pri- mordialmente, não são ditas de nenhum sujeito e não se encon- tram em nenhum substrato. O discurso aristotélico versa sobre a relação entre a substância e as outras categorias, não sobre a re- lação entre substâncias. Sendo assim, não utilizarei as Cat. como fonte para pensar a prioridade dos moventes imóveis. 56 Embora haja casos nos quais não exista identidade en- tre a prioridade ontológica e a prioridade causal como, por exemplo, os “atributos não podem existir sem a existência da substância primeira individual, embora não haja nenhuma re- ferência de qualquer tipo à relação causal entre os dois”. Con- 88 tudo, no caso dos moventes imóveis, esta identidade se aplica já que eles são a causa do movimento das substâncias eternas. Cf. Witt, 1994, p.217. 57 Este primeiro movente imóvel é caracterizado como “eterno, ato puro, imaterial, metafisicamente simples, movente imóvel, inteligível e desejável em máximo grau, pura intelecção e o melhor tipo de vida” (Herzberg, 2016, p.157), cf. Ross, 2016, p.208-9. Fazzo (2016, p.181-205) discute se o primeiro movente imóvel é puro ato ou em ato. 58 Segundo Witt (1994, p.221), há uma distinção entre a relação ato-potência no que diz respeito ao movimento e no que diz respeito à substância. No caso dos moventes imóveis, as duas coisas parecem se misturar, pois Aristóteles afirma que os moventes imóveis são primeiros em referência às outras substâncias e estabelece uma hierarquia entre eles. Trata-se, portanto, de uma prioridade enquanto eles são causa de mo- vimento e outra prioridade enquanto uns são mais perfeitos que outros. nº 22, Jan.-Apr. 2018 59 Há uma sutil distinção entre os moventes imóveis e o primeiro movente imóvel que pode ser inferida de Lambda 8. Aristóteles, nas linhas 24-6, descreve o princípio “primeiro entre dos entes” como não estando sujeito ao movimento nem por si, nem por acidente. Ao descrever os outros moventes Meline Costa Sousa, ‘A imóveis, a partir da linha 31, Aristóteles afirma apenas que há prioridade ontológica uma substância imóvel em si para cada movimento eterno. Ao das substâncias imó‑ veis segundo o livro dizer que estas substâncias não se movem em si, Aristóteles Lambda da Metafísica deixa a possibilidade aberta para que elas se movam por aci- de Aristóteles’, p. 65­‑97 dente. Assim, o que distinguiria o primeiro movente imóvel dos outros moventes imóveis é o fato de aqueles serem imóveis em si, mas móveis por acidente. 60 Toma-se a prioridade ontológica como envolvendo a noção de prioridade pelo ser, pela substância e pela natureza. Assim, não discutirei a prioridade dos moventes imóveis quan- to à definição, quanto ao tempo, nem quanto ao conhecimento apresentados em Zeta 1028a32-3 (proton logoi; proton gnosei; proton chronoi). Cf. Peramatzis, 2008, p.187; Angioni, 2010. 61 Metaph. Mu 2 1077b13. Cf. Angioni, 2010, p.76, n.1. 62 Metaph. Mu 2 1077b2. Cleary (1988, p.61) reconhece que este sentido de prioridade se aplica às substâncias eternas. 89 63 Metaph. Delta 11 1019a1-4. Segundo Corkum (2013, p.8), prioridade natural pode ser definida como uma “relação assi- métrica envolvendo noções de dependência e independência ontológica”. 64 Cf. Fine, 1995, p.271; Peramatzis, 2008, p.187-8; Angioni, 2010, p.75-106. 65 Spellman (1995, p.84-5) apresenta algumas críticas à con- sideração de Fine. 66 O objeto de investigação do estudo de Angioni (2010) não são as substâncias eternas, mas as substâncias sensíveis que se geram e se corrompem. 67 Segundo Barnes (1995, p.103), causas primeiras não são consideradas como tal por serem cronologicamente anteriores. 68 A anterioridade no tempo se aplica à relação entre os mo- ventes imóveis e as substâncias sensíveis corruptíveis. nº 22, Jan.-Apr. 2018 69 Witt (1994, p.215-6) reconhece ser um problema identifi- car a prioridade do ato frente à potência como uma prioridade em termos de anterioridade no tempo. 70 Em uma passagem do livro Epsilon 1026a13-16, Aristó- Meline Costa Sousa, ‘A teles atribui à Metaph. o domínio das substâncias separadas e prioridade ontológica imóveis (chorista kai akineta). Neste caso, separado parece se das substâncias imó‑ referir a uma existência independente do substrato material. veis segundo o livro Lambda da Metafísica 71 Para Angioni (2010, p.91): “se A constitui um todo perfei- de Aristóteles’, p. 65­‑97 to e acabado, no qual B pode estar, de certo modo, incluído; se B não constitui um todo acabado, no qual se pudesse dizer que A está incluído”. 72 “Seja A uma substância, seja B uma qualidade. Por um lado, não há nenhuma qualidade que possa existir sem que exis- ta uma substância na qual ela esteja inerente. Por outro lado, não há nenhuma substância que possa existir sem que exista uma qualidade que lhe seja atribuída. Não há nenhuma assime- tria quanto às condições de existência de ambos os itens, pois ambos dependem um do outro para existir”. Ibidem, p.90. 73 Sobre a anterioridade do ato frente à potência, cf. Metaph. Theta 8 1049b4-1051a3. 90 74 Exemplos fornecidos por Cleary (1988, p.61). 75 Para Angioni (2010, p.99), a prioridade pelo ser do pri- meiro movente imóvel é acompanhada da prioridade quanto a existência e da prioridade que o autor chama de causal-expla- natória “dado que o Primeiro Motor é, em certo sentido, causa de todas as coisas”.

Bibliografia

ANGIONI, L. (2005). Comentários ao Livro XII da Metafísica de Aristóteles. Cad. Hist. Fil. Ci., Campi- nas, 3, v. 15, n. 1, p.171-200.

ANGIONI, L. (2007). O conhecimento científico no livro I dos Segundos Analíticos de Aristóteles. Jour- nal of Ancient Philosophy, vol. 1, 2007, p.1-24. https:// nº 22, Jan.-Apr. 2018 doi.org/10.11606/issn.1981-9471.v1i2p1-24

ANGIONI, L. (2010). Prioridade e substância na Metafísica de Aristóteles. Dois Pontos, vol. 7, n. 3, p.75-106. https://doi.org/10.5380/dp.v7i3.14818 Meline Costa Sousa, ‘A prioridade ontológica ANGIONI, L. (2003). Subjacente e forma na teoria das substâncias imó‑ aristotélica da ousia. Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, 3, veis segundo o livro Lambda da Metafísica v. 13, n. 2, p.245-75. de Aristóteles’, p. 65­‑97 REALE, G. (2005) (ed.). Aristóteles. Metafísica. São Paulo, Edições Loyola.

ROSS, W. D. (1975) (ed.). Aristotle. Metaphysics. Vol. 1. London, Oxford University Press.

ROSS, W. D. (1991). (ed.). Aristotle. Metaphysics. In: BARNES (ed.). The complete Works of Aristotle. The Revised Oxford Translation, vol. 2., Bollingen Se- ries LXXI. Princeton, Princeton University Press, p. 1552-1729. 91 AVERROES. (1986). Commentary on Aristotle’s Metaphysics Book Lam. Leiden, E. J. Brill.

BARNES, J. (1995). Metaphysics. In: BARNES, J. (ed.). The Cambridge Companion to Aristotle. Cam- bridge: Cambridge University Press, p.66-108.

BELL, I. H. (1998). Metaphysics as an Aristotelian Science. Dissertation (Doctor of Philosophy) - Uni- versity of Toronto, Toronto.

BERTI, E. (2000). Metaphysics L.6. In: FREDE, M.; CHARLES, D. (eds.). Aristotle’s Metaphysics Lambda. Symposium Aristotelicum. Oxford, Clar- endon Press, p.181-206. nº 22, Jan.-Apr. 2018 BERTI, E. (2016). The program of Metaphysics Lamb- da (chapter 1). In: HORN, C. (ed.) Aristotle’s Metaphysics Lambda. New Essays. Boston/Berlin, Walter de Gruyter Inc., p.67-86. https://doi.org/10.1515/9781501503443-005 Meline Costa Sousa, ‘A prioridade ontológica das substâncias imó‑ BURNYEAT, M. (2001). Map of Metaphysics Zeta. veis segundo o livro Pittsburgh, Mathesis Publications. Lambda da Metafísica de Aristóteles’, p. 65­‑97 CLEARY, J. J. (1988). Aristotle on the Many Senses of Priority. Cardondale, Southern Illinois University Press.

CODE, A. (2000). Some Remarks on Metaphysics L.5. In: FREDE, M.; CHARLES, D. (eds.). Aristotle’s Metaphysics Lambda. Symposium Aristotelicum. Ox- ford, Clarendon Press, p.161-80.

COHEN, S. M. (2009). Substance. In: ANAG- NOSTOPOULOS, G. (ed.) A Companion to Aristo- tle. Blackwell Publishig Ltd., p.197-212. https://doi. 92 org/10.1002/9781444305661.ch12 CRUBELLIER, M. (2000). Metaphysics L.4. In: FREDE, M.; CHARLES, D. (eds.). Aristotle’s Meta- physics Lambda. Symposium Aristotelicum. Oxford, Clarendon Press, p.137-60.

CRUBELLIER, M. (2016). What the Form Has to Be and What It Needs not Be (Metaphys- ics Lambda 3). In: HORN, C. (ed.). Aristotle’s Metaphysics Lambda. New Essays. Boston/Ber- lin: Walter de Gruyter Inc., p.119-37. https://doi. org/10.1515/9781501503443-007

FAZZO, S. (2012). Il libro Lambda della Metafisica di Aristotele. Naples, Bibliopolis. nº 22, Jan.-Apr. 2018 FAZZO, S. (2016). Unmoved Mover as Pure Act or Unmoved Mover in Act? The Mystery of a Subscript Iota. In: HORN, C. (ed.) Aristotle’s Metaphysics Lambda. New Essays. Boston/Berlin, Walter de Gruyter Inc., p.181-205. https://doi. Meline Costa Sousa, ‘A prioridade ontológica org/10.1515/9781501503443-010 das substâncias imó‑ veis segundo o livro FINE, G. (1984). Separation. In: Oxford Studies in Lambda da Metafísica Ancient Philosophy, p.31-87. de Aristóteles’, p. 65­‑97

CORKUM, P. (2013). Substance and Independ- ence in Aristotle. In: SCHNIEDER, B.; STEIN- BERG, A.; HOELTJE, M. (eds.). Varieties of De- pendence: Ontological Dependence, Supervenience, and Response Dependence. Munich, Philosophia Verlag, p.65-96.

FINE, K. (1995). Ontological Dependence. In: Pro- ceedings of the Aristotelian Society, 95, p.269-90. htt- ps://doi.org/10.1093/aristotelian/95.1.269 93 PERAMATZIS, M. M. (2008). Aristotle’s Notion of Priority in Nature and Substance. In: Oxford Studies in Ancient Philosophy nº35, p.187-247.

FREDE, M. (1987). Essays in Ancient Philosophy. Minneapolis: University of Minnesota Press.

FREDE, M. (2000). Metaphysics L.1. In: FREDE, M.; CHARLES, D. (eds.) Aristotle’s Metaphysics Lamb- da. Symposium Aristotelicum. Oxford, Clarendon Press, p.53-80.

GERSON, L. P. (2013). Incomposite Being. In: FESER, E. (ed.) Aristotle on Method and Metaphysics. New York: Palgrane Macmillan, p.259-276. https:// nº 22, Jan.-Apr. 2018 doi.org/10.1057/9781137367907_13

GILL, M. L. (2005). Aristotle’s Metaphysics Re- considered. Journal of the History of Philosophy, vol. 43, n.º 3, 2005, p.223-51. https://doi.org/10.1353/ Meline Costa Sousa, ‘A hph.2005.0138 prioridade ontológica das substâncias imó‑ HERZBERG, S. (2016). God as Pure Thinking. An veis segundo o livro Lambda da Metafísica Interpretation of Metaphysics Lambda 7, 1072b14-26. de Aristóteles’, p. 65­‑97 In: HORN, C. (ed.) Aristotle’s Metaphysics Lambda. New Essays. Boston/Berlin: Walter de Gruyter Inc., p.157-80. https://doi.org/10.1515/9781501503443-009

HORN, C. (ed.) (2016) Aristotle’s Metaphys- ics Lambda. New Essays. Boston/Berlin, Walter de Gruyter Inc. https://doi.org/10.1515/9781501503443

IRWIN, T. (1988). Aristotle’s First Principle. Oxford, Clarendon Press.

JOHNSON, M. R. (2015). Aristotle’s archtheton- 94 ic sciences. In: EBREY, D. (ed.) Theory and Practice in Aristotle’s Natural Science. Illinois, Cambridge University Press, p.163-87. https://doi.org/10.1017/ CBO9781107295155.009

JOHNSON, M. R. (1987). Essays in Ancient Phi- losophy. Minneapolis, University of Minnesota Press.

KOSLICKI, K. (2013). Substance, Independence, and Unity. In: FESER, E. (ed.). Aristotle on Method and Metaphysics. New York, Palgrane Macmillan, p.169-95. https://doi.org/10.1057/9781137367907_9

MENN, S. (2011). On Myles Burnyeat’s Map of Metaphysics Zeta. In: Ancient Philosophy nº31, p.161- 202. https://doi.org/10.5840/ancientphil20113119 nº 22, Jan.-Apr. 2018 MENN, S. (1995). The Editors of the Metaphys- ics. In: Phronesis, vol. 2, 1995, p.202-8. https://doi. org/10.1163/156852895321051955

MILLER, F. D. (2013). Aristotle’s Divine Cause. In: Meline Costa Sousa, ‘A prioridade ontológica FESER, E. (ed.) Aristotle on Method and Metaphysics. das substâncias imó‑ New York: Palgrane Macmillan, p.277-98. https://doi. veis segundo o livro org/10.1057/9781137367907_14 Lambda da Metafísica de Aristóteles’, p. 65­‑97 OWEN, G. E. L. (1986). Logic and Metaphysics in Some Earlier Works of Aristotle. In: OWEN, G. E. L. Logic, Science and Dialetic: Collected Papers in Greek Phi- losophy. London, Cornell University Press, p.180-220.

PERAMATZIS, M. M. (2008). Aristotle’s Notion of Priority in Nature and Substance. In: Oxford Studies in Ancient Philosophy n.º35, p.187-247.

POLITIS, V. (2004). Aristotle and the Metaphysics. London/New York, Routledge. 95 RAPP, C. (2016). The Principles of Sensible Sub- stance in Metaphysics Lambda 2-5. In: HORN, C. (ed.) Aristotle’s Metaphysics Lambda. New Essays. Bos- ton/Berlin, Walter de Gruyter Inc., p.87-117.

SCHAFFER, J. (2009). On What Grounds What. In: CHALMERS, D. J.; MANLEY, D.; WASSER- MAN, R. (2009). Metametaphysics. New Essays on the Foundation of Ontology. Oxford, Oxford Univer- sity Press, p.347-83.

SOUSA, M. C. (2016). A pluralidade dos moventes imóveis e os tipos de intelecção na Metafísica Lambda de Aristóteles. Archai: Revista de Estudos sobre a Ori-

nº 22, Jan.-Apr. 2018 gem do Pensamento Ocidental nº16, p.51-67. SPELLMAN, L. (1995). Substance and Separation in Aristotle. Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511624872 Meline Costa Sousa, ‘A prioridade ontológica TAHKO, T. E. (2013). Metaphysics as the First Phi- das substâncias imó‑ losophy. In: FESER, E. (ed.). Aristotle on Method and veis segundo o livro Metaphysics, New York, Palgrane Macmillan, p. 49-67. Lambda da Metafísica de Aristóteles’, p. 65­‑97 https://doi.org/10.1057/9781137367907_4 THEMISTIUS. (1999). Paraphase de La Metaphy- sique d’Aristote. Livre Lambda. Paris, Librairie Philos- ophique J. Vrin.

ROWAN, J. P. (1961). (ed.). Thomas Aquinas.Com - mentary on the Metaphysics. Disponível em: URL = http://dhspriory.org/thomas/Metaphysics.htm. Aces- sado em: 12 de junho de 2017.

WITT, C. (1994). The priority of Actuality in Aristo- 96 tle. In: SCALTSAS, T.; CHARLES, D.; GILL, M. L. (eds.) Unity, Identity and Explanation in Aristotle’s Metaphys- ics. Oxford: Oxford University Press, p.215-28.

ZINGANO, M. (2016). Individuals, Form, Move- ment: From Lambda to Z-H. In: HORN, C. (ed.). Aristotle’s Metaphysics Lambda. New Essays. Boston/ Berlin, Walter de Gruyter Inc., p.139-55. https://doi. org/10.1515/9781501503443-008

Submetido em Julho e aprovado para publicação em Agosto, 2017

nº 22, Jan.-Apr. 2018

Meline Costa Sousa, ‘A prioridade ontológica das substâncias imó‑ veis segundo o livro Lambda da Metafísica de Aristóteles’, p. 65­‑97

97 Página deixada propositadamente em branco Alex Aparecido da Costa - Universidade Estadual de Maringá (Brasil) [email protected] - ORCID: 0000-0003-0924-8208 Renata Lopes Biazotto Venturini - Universidade Estadual de Maringá (Brasil) [email protected] - ORCID: 0000-0002-8653-6636

Commilito et vir militaris: Aspectos bélicos da exal- tação do imperador roma- nº 22, Jan.-Apr. 2018 no em Plínio, o jovem

Commilito et vir militaris: Warlike aspects on the exaltation of roman emperor in Pliny the younger

COSTA, A. A.; VENTURINI, R. L. B. (2018). Commilito et vir milita- ris: Aspectos bélicos da exaltação do imperador romano em Plínio, o jovem. Archai, n.º 22, Jan.-Apr., p. 99-121 DOI: https://doi.org/10.14195/1984­‑249X_22_4

Resumo: Durante a época do Principado a imagem do César buscava afirmar-se por meio de modelos tradicionalmente va- lorizados pela sociedade romana. Nos primeiros anos do século II d.C., quando o império atingiu sua máxima extensão graças às recentes conquistas do então imperador Trajano, os valores militares serviram como importante fator de amparo à figura 99 desse governante. Nesse contexto, o discurso de Plínio, o Jovem, intitulado Panegírico de Trajano destaca os feitos e a postura mi- litar do governante. Com base em uma bibliografia que aponta a importância de ideias morais e políticas fundadas nos valores ancestrais, bem como o papel da filosofia estóica na construção da imagem do príncipe ideal, este artigo pretende apontar al- guns aspectos de nossa análise da narrativa de Plínio. Nela, foi fundamental o elogio das virtudes marciais de Trajano a partir do respaldado fornecido pelas noções de virtus e mos maiorum. Solidamente ligadas à tradição romana, essas ideias presentes na obra em tela visavam fornecer uma imagem de equilíbrio entre os aspectos autocráticos e militares do governante e os an- seios da ordem senatorial, que buscava manter vivas as institui- ções republicanas sob o sistema do Principado. Palavras-chave: Estoicismo; idealização; Principado; tradição; virtudes.

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Abstract: In the Early Empire, the image of the Caesars sought to assert itself through models traditionally valued by the Ro- man society. In the first years of the second century CE, when the empire reached its maximum extent due to the achievements of the Emperor Trajan, the military values served as an impor- Alex Aparecido da tant factor to support the image of this ruler. In this context, the Costa e Renata Lopes speech of Pliny the Younger, entitled Panegyric of Trajan high- Biazotto Venturini, lights the achievements and the military posture of the ruler. ‘Commilito et vir milita- Based on researches that emphasize the matter of the moral and ris: Aspectos bélicos da political ideas grounded on ancestral values as well as on the exaltação do imperador role of the stoic philosophy in the framing of the image of the romano em Plínio, o ideal prince, this article intends to debate some aspects of our jovem’, p. 99-121 analysis about Pliny’s narrative. In this speech, the compliment about Trajan’s martial virtues, supported by the notions of vir- tus and mos maiorum, was fundamental. Essentially connected to the roman traditions, the ideas which shape the narrative of Panegyric provide a picture of equilibrium between autocratic and military aspects of the ruler and the goals of the senatorial order, which sought to keep alive the republican institutions in the Principate system. Keywords: Stoicism; idealization; Principate; tradition; virtues.

100 Introdução

Durante o Principado romano, o poder do César dependia em grande medida da influência que exercia sobre as legiões, que muitas vezes estavam acampadas muito distantes da Península Itálica. Por isso, a identi- ficação do imperador, em Roma, com o elemento mi- litarera necessária como fator de estabilidade para o governante e para todo o império. A aproximação e o reconhecimento imperial para com os soldados vêm sendo atestado pelo estudo da cultural material, na qual se destacam os diplomas militares, documentos que tornavam públicos os privilégios concedidos aos legionários ativos ou veteranos1. Eck (2002) ressalta que, junto com o aspecto jurídico do documento, ha- nº 22, Jan.-Apr. 2018 via também uma função social, pois se todos sabiam que serviam aos príncipes poucos tinham uma con- firmação personalizada, ou seja, um diploma militar onde figuravam o nome do imperador e o seu. Em ou- tras palavras, esse tipo de documento pode ser com- Alex Aparecido da preendido como amostragem do reconhecimento re- Costa e Renata Lopes Biazotto Venturini, cíproco entre o César e as legiões. Todavia, a exaltação ‘Commilito et vir milita- das virtudes militares do imperador não poderia de- ris: Aspectos bélicos da pender somente de sua ligação com os soldados, pois exaltação do imperador a legitimação do poder do governante por meio desse romano em Plínio, o jovem’, p. 99-121 aspecto deveria ser difundida em outras camadas da sociedade, sobretudo àquelas que faziam o balanço de poder com o imperador, ou seja, a ordem equestre e, principalmente, a ordem senatorial.

No ano 100 d.C., Plínio, o Jovem, senador de ori- gem equestre, proferiu em Roma um discurso, o Pane- gírico de Trajano, em homenagem ao, então, impera- dor Trajano. Na ocasião Plínio assumia a magistratura consular, cargo ao qual fora indicado pelo governante. 101 Com o pretexto de agradecê-lo o autor buscou exaltar a figura do César a partir de vários aspectos que pos- suíam importante penetração na sociedade imperial romana. Neste artigo discutiremos aqueles ligados aos valores militares, os quais Plínio destacou sob a ótica das elites romanas por meio das ideias morais e polí- ticas virtus (virtude) e mos maiorum (tradição) e da filosofia estoica. A relevância desse tema deriva, prin- cipalmente, da origem e da trajetória política de Tra- jano. Tendo se tornado o primeiro imperador oriundo de uma província, era importante para sua propagan- da o respaldo dos valores e das tradições romanas, mesmo que a Hispânia, sua região de origem, gozasse de grande identificação cultural devido a sua preco- nº 22, Jan.-Apr. 2018 ce integração, ocorrida durante os primeiros anos de expansão imperial do período republicano. Ademais, Trajano, seguindo os passos paternos, trilhou uma destacada carreira militar, desempenhando impor- tante papel sob os imperadores Flávios, especialmente Alex Aparecido da Costa e Renata Lopes Domiciano. Nesse campo sua preeminência à frente Biazotto Venturini, as legiões foi determinante para a sustentação de Ner- ‘Commilito et vir milita- va2, quando este assumiu o poder após uma conspira- ris: Aspectos bélicos da exaltação do imperador ção senatorial que assassinou o último governante da romano em Plínio, o dinastia Flávia. Tal circunstância gerou descontenta- jovem’, p. 99-121 mento nos meios militares, especialmente na guarda pretoriana, já que Domiciano lhes era favorável em contraste com o desequilíbrio verificado em relação ao Senado. Nesse contexto de certa instabilidade, o Panegírico de Trajano, que foi reescrito e expandido pelo autor, circulou entre os membros de seu círculo pessoal (Ep. 3. 13; Ep. 3. 18), composto por elementos da aristocracia imperial. Nesse meio, mesmo após três anos da ascensão do césar, o texto de Plínio procurou 102 ainda ampliar o respaldo de Trajano como imperador, cujos passado e virtudes militares eram fundamenta- dos nas tradições, capaz de conciliar sua trajetória e sua posição com aquela ocupada pelos membros da aristocracia.

Valores militares do príncipe na concepção pliniana.

Para Trajano, que já desempenhara uma carreira militar de sucesso, a identificação com os soldados foi um dos fatores que pesaram em sua escolha como su- cessor de Nerva. Assim, Plínio, ao enfatizar no Panegí- rico a imagem de vir militaris de Trajano agia em sinto- nia tanto com a característica do príncipe quanto com uma necessidade ideológica do Principado. Dentro da nº 22, Jan.-Apr. 2018 dinâmica das ambiguidades do regime, a identificação do príncipe com as legiões passava por exigências no que toca à atitude do governante e à sua propaganda. Pautado na busca do equilíbrio e da moderação, o re- Alex Aparecido da gime demandava um governante cuja imagem equili- Costa e Renata Lopes brasse as virtudes cidadãs com as militares. Segundo Biazotto Venturini, Carrié (1992), na tradição romana o homem do cam- ‘Commilito et vir milita- ris: Aspectos bélicos da po, chamado a defender junto aos seus pares suas ter- exaltação do imperador ras e os interesses do Estado, adquiriu por essa prática romano em Plínio, o a consciência cívica, ou seja, do camponês-soldado jovem’, p. 99-121 surgiu o soldado-cidadão. O evidente vínculo deste bi- nômio com as reivindicadas austeridade e rusticidade ancestrais romanas nos dá o ensejo para que iniciemos a discussão da imagem militar de Trajano no Panegírico a partir da noção de mos maiorum.

Plínio procura justificar que a escolha de Trajano por Nerva, como seu sucessor à frente do império, foi uma atitude acertada do ponto de vista militar. 103 O panegirista constrói essa ideia exaltando sua virtus a partir dos valores tradicionais da sociedade romana.

É duvidoso que se um imperador que não era mais res- peitado pôde dar o império graças à autoridade daquele a quem ele era dado? Tu te tornaste ao mesmo tempo fi- lho do príncipe, e César, prontamente imperador com a partilha do poder tribunício e teve ao mesmo tempo e imediatamente todos esses títulos que recentemente um pai verdadeiro transmitiu somente a um de seus dois fi- lhos (Pan. 8. 6).

Antes de elencar as virtudes do príncipe, Plínio res- salta a autoridade de Trajano ao ser adotado e associa- nº 22, Jan.-Apr. 2018 do ao poder por Nerva numa situação de crise em 97 d. C., quando a Guarda Pretoriana, ainda insatisfeita com a morte de Domiciano3, amotinou-se sob o co- mando de Casperio Aeliano (Cizek, 1983). Rebelião Alex Aparecido da condenada por Plínio: “Eis, sem dúvida, uma grande Costa e Renata Lopes desonra imposta ao nosso século, uma grande ferida Biazotto Venturini, feita à República” (Pan. 6. 1). A atitude pliniana em ‘Commilito et vir milita- 4 ris: Aspectos bélicos da reprovar tal sublevação revela sua postura senatorial, exaltação do imperador pois a ordem fora prejudicada pelo último Flávio; além romano em Plínio, o disso, a passagem chama a atenção contra possíveis jovem’, p. 99-121 partidários remanescentes de Domiciano, cujas ati- tudes contrárias ao ordo senatorius são interpretadas por Plínio como ofensas ao próprio Estado romano.

Retomando a citação anterior, vemos que na exal- tação da auctoritas de Trajano o panegirista não dei- xa de utilizar o recurso da comparação. Uma vez que entre os Flávios o imperador Vespasiano partilhara poderes apenas com Tito, Domiciano, portanto, é o 104 filho que ao contrário de Trajano, embora legítimo, não mereceu ser distinguido por seu pai. O fato de Trajano ter sido indicado como sucessor, justamente por ocasião da revolta da Guarda Pretoriana, revela a extensão de sua influência e de sua autoridade para apaziguar os ânimos, principalmente por ter sido nomeado anteriormente, por Nerva, governador da Germânia, província que contava com as mais bem preparadas legiões do império (Cizek, 1983). Ou seja, a posição de poder e autoridade de Trajano não era somente uma construção de Plínio, estando bem fun- dada na realidade, a qual é por sua vez exaltada pelo panegirista. Ele também se admira de que mesmo es- tando Trajano investido de um poder que lhe possibi- litava alcançar o poder pela força, absteve-se: nº 22, Jan.-Apr. 2018

A posteridade acreditará que o filho de um patrício, de um con- sular, de um triunfador, quando ele estava à frente do exército mais sólido, mais importante, o mais devotado à sua pessoa, não foi feito imperador por este exército? Que este mesmo general, quando ele governava a Germânia recebeu o título de Alex Aparecido da Costa e Renata Lopes Germanicus? Que nada combinou para tornar-se imperador? Biazotto Venturini, Que ele nada fez a não ser servir e obedecer? (Pan. 9. 2). ‘Commilito et vir milita- ris: Aspectos bélicos da exaltação do imperador Nesse arrebatamento pliniano cruzam-se, para romano em Plínio, o construir a virtus do César, aspectos da Stoa e do jovem’, p. 99-121 mos maiorum. O respeito de Trajano em relação às tradições se expressa na moderação com a qual ele exerceu o poder de que dispunha. Em outras pala- vras, ele não reeditou os episódiosque ocorreram durante as guerras civis no final da República, quan- do os generais a frente de seus exércitos pessoais marchavam contra Roma e coagiam o Senado a legi- timar poderes adquiridos pela força das armas. Essa atitude adotada por Trajano, e elogiada por Plínio, 105 também estava em consonância com o estoicismo, pois a filosofia valorizava a aceitação do destino e do papel que cada uma deveria desempenhar, bem como da compreensão dos acontecimentos de acor- do com a noção de vivere naturae, como forma de adesão ao bem (Brun, 1986). Assim, ao manter-se fiel ao cargo e à posição que Nerva o havia delegado, Trajano conformou-se com seu destino e não violou a natureza, o que acarretaria conturbações que leva- riam inevitavelmente ao mal. Nessa leitura da Stoa estava a própria compreensão dos romanos de que todo o cosmo era identificado com a sociedade e o mundo governado por suas instituições. Mundo no qual os indivíduos deveriam seguir as orientações nº 22, Jan.-Apr. 2018 éticas aceitas pelo Senado. Mas se o Pórtico exigia a moderação do poder em relação aos romanos, o res- peito ao mosmaiorum exigia uma atitude impiedosa contra os inimigos de Roma:

Alex Aparecido da Costa e Renata Lopes Mas agora em todos retornou o terror, o medo e o desejo Biazotto Venturini, de executar as ordens. É que eles veem um capitão ro- ‘Commilito et vir milita- mano, um daqueles dos tempos de outrora que deviam o ris: Aspectos bélicos da nome de imperator aos campos cobertos de mortos e aos exaltação do imperador mares tintos pelas vitórias (Pan. 12.1). romano em Plínio, o jovem’, p. 99-121 Com essa passagem Plínio faz referência aos dá- cios, cujo rei Decébalo desobedecia aos tratados fir- mados com Domiciano, pelos quais deveriam respei- tar as fronteiras do império em troca de concessões romanas, inclusive o pagamento de subsídios (Cizek 1983). Tal acordo, além de vergonhoso para Roma, fora violado impunemente sob o último Flávio, por isso Trajano, já tendo sucedido Nerva, após assegu- 106 rar a estabilidade na Germânia, iniciou em 101 d.C. uma campanha contra os dácios. Trajano venceu- -os e, em 102 d.C., um novo pacto foi estabeleci- do, o qual, por sua vez, também foitransgredido, o que deu origem à Segunda Guerra Dácica, em 105 d.C., culminando em 106 d.C. com a derrota total de Decébalo e a transformação da Dácia em província romana (Fernández, 2003). Assim, a imagem cons- truída por Plínio é um ideal que se confirmara na realidade. As conquistas de Trajano legitimavam sua posição de imperador sob a ótica do mos maiorum, pois na tradição ancestral os generais, após as vitó- rias, eram aclamados imperatores pelas tropas, títu- lo que posteriormente deveria ser confirmado pelo Senado e que dava o direito ao general vitorioso de desfilar em triunfo pelas ruas de Roma. Por ter feito nº 22, Jan.-Apr. 2018 jus à tradição, Trajano é comparado com os grandes militares do passado:

Eu não julgaria digno de admiração o imperator que ti- Alex Aparecido da vesse também a bela conduta no tempo dos Fabricios, Costa e Renata Lopes Cipiões e dos Camilos: quando os inflamava uma viva Biazotto Venturini, emulação ou sempre alguma virtude superior à sua. Mas ‘Commilito et vir milita- desde que nosso amor às armas é pretexto não ao exercí- ris: Aspectos bélicos da exaltação do imperador cio, mas ao espetáculo, ao prazer e não mais ao esforço, romano em Plínio, o desde que nossas manobras não são mais dirigidas por jovem’, p. 99-121 um veterano decorado com a coroa mural ou cívica, mas por um pequeno mestre grego, como é bonito que um só entre todos ame ser fiel à moral de nossos ancestrais, ao valor de nossos ancestrais, e sem emulação, sem exem- plo combata somente consigo mesmo, rivalize somente consigo mesmo, e, assim como ele reina só, seja o único digno de reinar! (Pan. 13. 4-5).

Ou seja, o zelo ao mos maiorum, que Plínio atri- bui a Trajano, respaldava a posição do César como 107 imperador já que não haveria outro homem com as mesmas capacidades. A escolha dos nomes para a com- paração também é sugestivo pelo fato de contemplar indivíduos que viveram em épocas anteriores às Guer- ras Púnicas, nas quais eram idealizadas as mais caras virtudes romanas do camponês-cidadão-soldado. Isso porque o período após a vitória sobre Cartago trouxe, junto com as conquistas, um afrouxamento dos valores tradicionais, especialmente a adoção de hábitos menos austeros atribuídos aos gregos e outros povos orientais.

Para ilustrar a imagem do imperador soldado em Trajano, o panegirista destaca também as atitudes que o César teria adotado no convívio com seus soldados. nº 22, Jan.-Apr. 2018 O companheirismo do imperador em relação às suas tropas e a partilha das dificuldades eram maneiras de expressar os valores do vir militaris por meio de uma atitude condizente com os valores ancestrais:

Alex Aparecido da Costa e Renata Lopes Tal é a veneração que tem por ti nossos inimigos. Eu Biazotto Venturini, diria qual a admiração entre nossos soldados, como tu a ‘Commilito et vir milita- ris: Aspectos bélicos da conquistou? Eles partilhavam contigo as privações, con- exaltação do imperador tigo a sede; nos exercícios sobre o campo de manobras romano em Plínio, o tu que juntavas aos esquadrões de soldados a poeira e o jovem’, p. 99-121 suor imperiais; sem outra distinção que tua força e tua superioridade, sem nenhuma etiqueta, às vezes tua lan- çavas de longe os dardos, às vezes tua recebias aqueles que te lançavam; tu te alegravas e se felicitava da bravu- ra de teus homens cada vez que teu elmo ou teu escudo era tocado mais duramente, pois tu aplaudias aqueles que acertavam o alvo, tu os recomendavas a ousar e ou- savam prontamente; espectador e diretor, tu prepara- vas as armas dos bravos que iam se envolver no assalto, tu experimentava os dardos, e se um de teus soldados achava muito pesada a arma que ele havia recebido tua 108 mesmo a lançava (Pan. 13. 1-3). Na descrição das atividades de caserna, a militia, que o imperador dividia com seus legionários, além da postura de camaradagem e emulação de Trajano, há a menção elogiosa da transpiração do César du- rante os exercícios militares, o que nos remete a um tema habitual no universo militar romano. Segundo Carrié (1992, p.100) o “sudor, suor, ao mesmo tempo produto e prova do labor do soldado, [é] sinal de doa- ção voluntária da sua pessoa e da renúncia às comodi- dades civis”. A mesma construção em torno do sudor já havia sido explorada por Salústio para ressaltar seu valor sobre uma existência de lassidão: “o suor, a poei- ra e outras coisas tais, deixem-nas para nós que as te- mos por mais agradáveis que os festins” (Jug. 85). Ao destacar o sudor de Trajano, o panegirista aproxima o nº 22, Jan.-Apr. 2018 César do ideal de companheiro de armas, o commi- lito, fiel ao modelo, o imperador “não pode também deixar de suar, a fim de manifestar o seu sentido do dever, dar o exemplo da disciplina dos antepassados e Alex Aparecido da suscitar a devoção ilimitada dos seus homens” (Car- Costa e Renata Lopes rié, 1992, p. 101). Mas se nas atividades militares do Biazotto Venturini, príncipe são enfatizados o esforço e o exercício, seu ‘Commilito et vir milita- ris: Aspectos bélicos da lazer e descanso não eram menos agitados ou menos exaltação do imperador afirmadores das virtudes ancestrais: romano em Plínio, o jovem’, p. 99-121

Se te ocorre estar em dia com o fluxo dos afazeres, como relaxamento tu vês somente uma mudança de trabalho. Que outro relaxa como tu que esquadrinha as florestas faz levantar as bestas de suas tocas, atravessa os altos cimos das montanhas, leva teus passos sobre as rochas escarpa- das sem que o ajudem com a mão, sem que te indiquem o caminho, não sem ir ao meio destas distrações visitar devotadamente os bosques sagrados e apresentar tuas ho- menagens às divindades? Outrora eis o que fazia o entre- tenimento da juventude e sua alegria, eis os exercícios que 109 formavam os futuros chefes: combate de velocidade com as bestas mais rápidas, de força com as mais intrépidas, de localização com as mais espertas; tinha-se como uma fina honra em tempos de paz conduzir caçadas de animais selvagens e se entregar verdadeiramente aos trabalhos dos campos. Mesmo esta glória era usurpada também por es- ses príncipes que eram incapazes de merecê-la; usurpada, pois eles abatiam, com habilidade simulada, bestas domes- ticadas e enfraquecidas pelo cativeiro, que após eram sol- tas para sua distração[...] Ao mesmo tempo, penso que se estes são os jogos e divertimentos, qual deve ser a impor- tância de suas ocupações sérias e graves que ele abando- na para um repouso tão ativo, os prazeres, de fato, sim, os prazeres são o que informam melhor sobre a gravidade, a moralidade, o equilíbrio de cada um (Pan. 81. 1-3).

nº 22, Jan.-Apr. 2018 No comportamento de Trajano descrito por Plínio emergem características ligadas dos habitantes da His- pânia, pois a província “era um verdadeiro paraíso para os caçadores” (Blázquez, 2003, p. 245), com abundância Alex Aparecido da de veados, javalis e coelhos. Ao arrolar como fator da Costa e Renata Lopes Biazotto Venturini, virtus do César o desafio à natureza e o hábito da caça, ‘Commilito et vir milita- atividades apreciadas pelos hispânicos, Plínio, além de ris: Aspectos bélicos da atribuir a Trajano hábitos caros ao mos maiorum, tam- exaltação do imperador romano em Plínio, o bém aponta a presença dos valores ancestrais na provín- jovem’, p. 99-121 cia numa época em que os processos de aculturação já havia dispersado os valoresromanos, que em certa me- dida foram mais bem preservados em outras regiões do império que não Roma, como Plínio procura demons- trar com o exemplo de Trajano. Mas os hábitos rústicos e as atividades do corpo não eram um fim em si mesmo, mas uma forma de aprimoramento moral do indivíduo:

Além disso, eu não louvaria muito pela força do próprio 110 corpo e dos braços; mas se uma alma mais forte que o próprio corpo impõe sua lei, uma alma que não se amo- lece pelo favor da fortuna, que as riquezas imperiais não levam à preguiça ou ao excesso, então eu admirarei que eles exerçam na montanha ou no mar, um corpo embele- cido pelo trabalho e os membros fortificados pelos exer- cícios (Pan. 82. 6).

Em vista de todos os exemplos aqui arrolados para a construção davirtus de Trajano, como vir militaris a partir de aspectos tradicionais que o César teria exer- cido, percebe-se que Plínio deposita grande importân- cia na identificação do príncipe com suas tropas, como forma de tranquilizar o Senado. Em outras palavras, fazia parte da atitude do imperador, o que era incenti- nº 22, Jan.-Apr. 2018 vado pelo panegirista, figurar como exemplo moral de um tipo militar específico: aquele que envolvido com a militia não fosse persuadido a atuar contra o Sena- do. É por isso que as imagens recuperadas do passado remetem a períodos anteriores à república tardia, an- Alex Aparecido da Costa e Renata Lopes tes da época em que a profissionalização das legiões Biazotto Venturini, permitisse a formação de exércitos que favoreceram a ‘Commilito et vir milita- ascensão do poder pessoal. Embora na época de Plí- ris: Aspectos bélicos da exaltação do imperador nio e Trajano aqueles distúrbios estivessem já muito romano em Plínio, o distantes, a contundente, porém curta, crise de 69 d.C. jovem’, p. 99-121 era um alerta. Ela demonstrou que as conturbações rondavam o mundo romano sempre trazendo a morte aos membros da cúria, para quem a figura do soldado ideal estava localizada no tempo que o ordo senatorius dirigia a política de Roma. A esse tempo era atribuída uma mentalidade de abnegação, coragem e paciência, virtudes que no período eram também atributos do soldado-cidadão (Carrié, 1992). E esse modelo ainda era desejado para os militares das legiões imperiais. 111 Ainda sob os Flávios, o futuro príncipe já ha- via prestado importante serviço militar em favor da segurança do Estado. Em 87 d.C., durante o governo de Domiciano, Trajano, no comando da legião VII Ge- mina, marchou para a Germânia para sufocar a revol- ta de Antonio Saturnino (Fernández, 2003). Embora a postura de Plínio fosse de reprovação em relação ao último Flávio, ele não deixou de destacar os méritos de Trajano nessa campanha:

A Germânia e a Hispânia são defendidas e separadas por inumeráveis nações, pela imensidade quase sem li- mites de regiões que se estende entre as duas províncias, mas também pelo Pirineus, os Alpes e outras montanhas nº 22, Jan.-Apr. 2018 enormes se não as comparamos com aquelas. Quando, através de todo este espaço tu conduzias tuas legiões, ou mais do que isso (tão grande era a rapidez) tu os fazia voar sobre o caminho, jamais você se preocupou com carro nem com cavalo! Ao contrário, não para te ajudar no caminho, mas por decoro, teu cavalo seguia; tu o utili- Alex Aparecido da zavas somente em alguns dias de etapa, fazendo com teu Costa e Renata Lopes Biazotto Venturini, entusiasmo voar o solo, as voltas, a poeira sob o acampa- ‘Commilito et vir milita- mento (Pan. 14. 2-3). ris: Aspectos bélicos da exaltação do imperador romano em Plínio, o Nessa passagem do Panegírico se expressa de forma jovem’, p. 99-121 bem acabada, a partir de um acontecimento real, a pu- jança militar de Trajano, ilustrada com características de uma divinização estoica, percebida na capacidade de o César prevalecer sobre as barreiras naturais. E o mais notável é que todo o talento trajânico foi empre- endido em favor da estabilidade do império, o que tor- nava secundário que tal campanha ocorrera no reina- do de Domiciano. A necessidade de uma figura militar devotada ao mos maiorum para assegurar a estabili- 112 dade do governo de Nerva e sinalizar uma sucessão tranquila dá o ensejo a Plínio para ressaltar a virtus de Trajano no papel que ele desempenhou no processo:

Também estou persuadido de que este mesmo desvio e esta sedição dos soldados não foram produzidos senão para que apenas uma grande violência, um grande pe- rigo pudesse ser triunfado por tua modéstia. Da mesma forma que as tempestades e tormentas dão mais valor à calma do mar e do céu eu acredito de bom grado que é para aumentar o encanto que esses distúrbios precede- ram a paz que tu nos deste (Pan. 5. 7-8).

De fato os riscos existiam, pois a Guarda Pretoria- na em Roma e os soldados do império lamentaram a morte de Domiciano. Foi necessário que os chefes nº 22, Jan.-Apr. 2018 desses militares os chamassem à obediência (Cizek, 1983). Havia, inclusive, o risco do embate entre duas facções, pois havia a presença de outro capax imperii além de Trajano, o também hispânico M. Cornelio Ni- Alex Aparecido da grino Curiatio Materno, governador da Síria (Chami- Costa e Renata Lopes zo, 2003; Manjarrés, 2003). Dessa forma, Plínio ilustra Biazotto Venturini, ‘Commilito et vir milita- com modéstia e abnegação a virtus de Trajano mesmo ris: Aspectos bélicos da nas atitudes em que ele não defendia exclusivamente exaltação do imperador o Estado, mas também seus interesses pessoais e os romano em Plínio, o jovem’, p. 99-121 daqueles que apoiaram sua ascensão, especialmente o grupo de senadores da Hispânia, liderados por Licínio Sura, com quem o panegirista se correspondeu em Ep. 4. 30 e Ep. 7. 27.Acrescentamos que, como amicus prin- cipis destacado ao lado da factio hispana, Plínio teria omitido algumas informaçõesacerca da ascensão de Trajano, já que, segundo Canto (1999, p. 243), sua ado- ção por parte de Nerva teria sido fruto de coerção por parte dos senadores hispânicos. Ou seja, interessava a Plínio fazer uma propaganda imaculada da virtus do 113 César, na qual, sob a perspectiva estoica, este controlara as paixões que a ambição poderia suscitar, renegando as coisas preferíveis em favor do que estivesse em sinto- nia com o bem soberano (Gill, 2006).

Decisivas para manter a paz no curto reinado de Nerva e para assegurar seu próprio acesso ao poder, as virtudes militares de Trajano, na ótica pliniana, não foram produtos da ocasião. Assim como em Pan. 81, ele demonstra saudosismo pela austeridade esquecida na juventude do passado e exalta o fato dessas quali- dades perdidas estarem presentes no César desde seus primeiros passos: “tais exercícios, César, não foram eles teu berço, tua escola?” (Pan. 14. 1). E o desempe- nº 22, Jan.-Apr. 2018 nho das primeiras magistraturas de Trajano também é exaltado, pois a virtus do tribuno já prenunciaria aquela do imperador.

Alex Aparecido da Mas como um tribuno e ainda de uma idade frágil, tu Costa e Renata Lopes percorreste as terras mais distantes com vigor de um ho- Biazotto Venturini, mem; desde então a fortuna te adverte a estudar longa- ‘Commilito et vir milita- mente e a fundo este ofício no qual tu devias facilmente ris: Aspectos bélicos da passar a instrutor. Tu não te contentaste com um olhar exaltação do imperador distante sobre o acampamento, nem com um tipo de pas- romano em Plínio, o jovem’, p. 99-121 seio pelo serviço militar; tu exerceste o ofício de tribuno de maneira a poder ser, imediatamente após, general e a não ter nada a aprender quando chegasse o momento de ensinar. Dez anos de serviço te fizeram conhecer a moral dos povos, a situação dos países, as vantagens do terreno; tu te habituaste a suportar todas as variedades de águas e de climas tanto quanto as fontes de teu país, quanto a atmosfera de teu país (Pan. 15. 1-3).

Como em Roma a carreira pública desenvolvia- 114 -se exclusivamente no âmbito do cursus honorum, a exploração do desempenho das magistraturas que o compunham é significativa. Nesse sentido, Plínio opta em destacar não só um cargo militar, mas um que era exercido na primeira fase, o tribunado, o qual se opõe à pretura ou aoconsulado, que representavam uma po- sição já consolidada dentro do sistema imperial. Fer- nández (2003) informa serem escassos os dados acerca dos primórdios da carreira de Trajano, contudo situa seu tribunado militar por volta dos vinte anos, desem- penhado junto ao exército que Trajano pai comandava na Síria. A valorização pliniana das primeiras etapas da vida pública de Trajano é uma forma de destacar as formas mais humildes de expressão da virtus; ademais, a duração de dez anos de seu tribunado, que Durry (1972, p.189) considera inusitada em se tratando de um nº 22, Jan.-Apr. 2018 indivíduo da ordem senatorial, é mais um fator a ser arrolado nesse sentido, já que muitos membros dessa ordem pulavam etapas ou as encurtavam, às vezes com o beneplácito do imperador, visando à aceleração da carreira. O longo período ao lado das legiões desenvol- Alex Aparecido da veu o sentido de commilito do César: Costa e Renata Lopes Biazotto Venturini, ‘Commilito et vir milita- ris: Aspectos bélicos da O que direi eu ainda? Tu consolavas os fatigados, alivia- exaltação do imperador va os doentes. Não fazia parte dos teus hábitos penetrar romano em Plínio, o em tua tenda antes de passar em revista aquelas de teus jovem’, p. 99-121 companheiros de armas, nem de repousar se não fosse o último (Pan. 13. 3).

Respaldada no mos maiorum, a virtus militar de Trajano é ilustrada por Plínio sempre com ênfase no respeito às tradições, evidenciada, sobretudo, na com- paração com a postura dos antecessores. Nesse sen- tido, o panegirista ressalta a solidez das pacificações operadas pelo César (Pan. 16. 3), o que legitimava 115 seus triunfos em oposição àqueles de outros impe- radores (Pan. 17. 1). Contudo, em relação à Primeira Guerra Dácica, Blázquez (2003) ressalta que o triunfo celebrado em 102 d. C. estava mais em consonância com a propaganda imperial do que com a realidade, o que ficou provado pela necessidade de uma segunda campanha contra Decébalo. Após a segunda e defini- tiva vitória, anos depois da publicação do Panegírico, as Guerras Dácicas serviriam de tema nos círculos li- terários de Plínio:

É uma excelente ideia que te disponhas a escrever sobre as Guerras Dácicas. Pois, que outro acontecimento é tão recente, tão rico, tão elevado ou, enfim, tão poético e, nº 22, Jan.-Apr. 2018 ainda que se trate de coisas muito verdadeiras, tão legen- dário? (Ep. 8. 4).

O interesse de Canínio Rufo, interlocutor de Plínio Alex Aparecido da nessa missiva, pelas campanhas contra os dácios de- Costa e Renata Lopes monstra que a recepção da política exterior de Traja- Biazotto Venturini, no atingia outros indivíduos além de Plínio. Fato este ‘Commilito et vir milita- ris: Aspectos bélicos da que deve ser creditado tanto às vitórias do imperador exaltação do imperador quanto à propaganda do Panegírico que, pronunciado romano em Plínio, o em 100 d. C. e publicado o mais tardar em 103 d. C., jovem’, p. 99-121 ou seja, antes dessas guerras vantajosas para Roma, já exaltava a habilidade militar do César.

Mas o elogio do soldado-imperador não era incenti- vo para a belicosidade indiscriminada: “Tua moderação merece tanto mais ser louvada, pois, nutrido na glória guerreira, tu amas a paz” (Pan. 16. 1). A valorização desse controle, associado à moderação estoica, pode ser entendido como a necessidade de evitar o esvaziamento 116 da imagem civil do imperador, que na ótica do Senado, deveria ser compreendida por meio da concepção do primeiro cidadão. Em outras palavras, na construção do governante ideal, as características de princeps e vir mi- litaris não eram excludentes, mas sim complementares.

A afirmação dos feitos militares do César era uma importante fonte de propaganda de governo. Detalhes de uma inscrição encontrada próximo de Cádiz, em 1982, trazem algumas informações pertinentes para nossa discussão. Trata-se de um pedestal de mármore com a titulatura de Trajano, apresentado por Fernán- dez (1987), trazendo as seguintes informações:

Imp(eratori). Caes(Ari).D[iui Ner-] uae.f(ilio).Ne[ru]ae.Traiano nº 22, Jan.-Apr. 2018 [Optimo A]ug(usto).Ger(manico).Daci- co.Part(h)ico.ponti(ifici).max(imo). trib(unicia).pot(estate).XIIX.imp(eratori).X. co(n)s(uli).VI.p(atri).p(atriae) res.p(ublica).Saeponensium Alex Aparecido da statuam.triump(h)alem Costa e Renata Lopes ex.d(ecreto).d(ecurionum).dedit Biazotto Venturini, ‘Commilito et vir milita- ris: Aspectos bélicos da exaltação do imperador “Em honra do imperador César Nerva Trajano, Ótimo romano em Plínio, o jovem’, p. 99-121 Augusto, Germânico, Dácico, Pártico, filho do divino Nerva, Pontífice Máximo, investido com o poder tribuní- cio pela décima oitava vez, aclamado imperador pela dé- cima vez, investido com o poder consular pela sexta vez, pai da pátria, o município de Saepo dedicou uma estátua triunfal por decreto dos decuriões.”

Dentre essa miscelânea de informações devemos nos concentrar, nesse caso, nos três títulos vinculados aos feitos militares do César: Germanicus, em virtude 117 da organização do limes da Germânia; Dacicus, pelas vitórias sobre Decébalo e transformação de seu reino em província romana; Parthicus, em nome da con- quista, efêmera, do império dos partos, ocorrida nos anos finais de seu governo. Tais títulos não possuíam uma significação simplesmente pontual, pelo contrá- rio, representavam a extensão, operada pelo César, da civilização romana às regiões conquistadas.

De acordo com Veyne (1992), antes dos estoicos o mundo greco-romano considerava como não hu- manos os povos que não compartilhavam de sua cul- tura. O Pórtico, com seu universalismo, trouxe uma nova concepção do gênero humano, a de que todos nº 22, Jan.-Apr. 2018 os homens pertenciam a uma única comunidade. Mas esse reconhecimento não era completo, e para Roma a etapa necessária para estabelecer a humani- dade, também dos povos bárbaros, era sua integra- ção ao mundo romano. Nesse sentido, ao ampliar as Alex Aparecido da conquistas romanas, Trajano estaria operando um Costa e Renata Lopes ajustamento do cosmos, expandindo a civilização à Biazotto Venturini, ‘Commilito et vir milita- espécie humana. ris: Aspectos bélicos da exaltação do imperador Considerações finais romano em Plínio, o jovem’, p. 99-121 A partir da presente discussão podemos perceber que, do ponto de vista marcial o César foi caracteri- zado como um verdadeiro vir militaris, cujas virtudes obedeciam às tradições de devoção do poderio militar apenas aos interesses do Estado. Essa postura foi exal- tada por Plínio na moderação de Trajano quando, por exemplo, no comando das legiões germânicas, não se utilizou desses exércitos para coagir o Senado e obter o poder imperial. Dessa forma, o príncipe foi ilustrado como um indivíduo que soube, contemplando atitudes 118 estoicas, equilibrar, em uma posição de grande poder, atitudes que expressavam humildade, reunindo assim em si mesmo as virtudes do cidadão-soldado, conforme as diretrizes da virtus e do mos maiorum. A exaltação do lazer de Trajano, voltado para os exercícios guerrei- ros, e da boa convivência com as tropas construíram no Panegírico a imagem excelente do commilito que pelo apego às tradições afirmava sua auctoritas militar, com a qual triunfava sobre os inimigos de Roma e pela qual garantia a paz ao império.

Notas

1 Os diplomas militares eram documentos individuais que for- nº 22, Jan.-Apr. 2018 neciam certa distinção aos beneficiários, eram impressos em placas de bronze que reproduziam decisões imperiais concedendo privi- légios como a cidadania romana e o direito de matrimônio. 2 O reinado de Nerva foi curto, pois este faleceu em 98 d.C., no segundo ano após assumir o império. Foi sucedido por Tra- Alex Aparecido da jano, a quem adotara em 97 d.C., ato em que também o indicou Costa e Renata Lopes como seu sucessor. Biazotto Venturini, ‘Commilito et vir milita- 3 Cizek (1983) e Blázquez (2003) destacam que os grupos ris: Aspectos bélicos da militares eram favorecidos por Domiciano e, diante do assassi- exaltação do imperador nato do imperador por uma conspiração senatorial, resistiram a romano em Plínio, o reconhecer a posição de Nerva. jovem’, p. 99-121 4 Trata-se da revolta dos pretorianos sob o comando de Cas- perio Aeliano ocorrida em setembro e outubro de 97 d. C. Cizek (1983. p. 110-111) informa que a rebelião não foi dirigida tanto contra Nerva, mas sobretudo contra os assassinos de Domiciano.

Bibliografia

BLÁZQUEZ, J. M. (2003). Trajano. 1ed. Barcelona, Ariel. 119 BRUN, J. (1986). O estoicismo. 1ed. Lisboa, Edi- ções 70.

CANTO, A. M. (1999). Saeculum Aelium, saecu- lum hispanum: poder y promoción de los hispanos en Roma. El año de Trajano: Hispania, El legado de Roma. Mérida, Museo Nacional de arte romano, p. 235-251.

CARRIÉ, J. M. (1992). O soldado. In: GIARDINA, A. (ed.). O homem romano. Lisboa, Presença.

CHAMIZO, J. C. S. (2003). La imagem de Trajano en las fontes literarias. In: FERNÁNDEZ, J. G. (ed.).Trajano, Óptimo Príncipe: de Itálica a la corte de los Césares. 1ed. nº 22, Jan.-Apr. 2018 Sevilla, Fundación El Monte, p. 121-140.

CIZEK, E. (1983). L’ époque de Trajan: circons- tances politiques et problèmes idéologiques. 1ed. Paris, Les Belles Letres. Alex Aparecido da Costa e Renata Lopes Biazotto Venturini, DURRY, M. (1972). Pline le Jeune. Panégyrique de ‘Commilito et vir milita- Trajan. Paris, Les Belles Lettres. ris: Aspectos bélicos da exaltação do imperador ECK, W. (2002). L’ empereur romain chef de l’ar- romano em Plínio, o jovem’, p. 99-121 mée: le témoignage des diplômes militaires. Cahiers du Centre Gustave Glotz, nº. 13, p. 93-112. https://doi. org/10.3406/ccgg.2002.1560

FERNÁNDEZ, J. G. (2005). PLINIO EL JOVEN. Cartas. Madrid, Editorial Gredos.

FERNÁNDEZ, J. G. (2003) Trajano: datos biográ- ficos. In: FERNÁNDEZ, J. G. (ed.). Trajano, Óptimo Príncipe, de Itálica a la corte de los Césares. Sevilla, 120 Fundación el Monte, 2003, p.7-34. FERNÁNDEZ, J. G. (1987). Trajano: part(h)icus, trib, pot. XIIX, imp. X. Arquivo español de arqueologia. p. 237-250.

GILL, C. (2006). A Escola no período imperial ro- mano. In: INWOOD, B. (ed.). Os estoicos. 1ed. São Paulo, Odysseus, p. 35-63.

MANJARRÉS, J. M. (2003). Trajano y las fronte- ras del império. In: FERNÁNDEZ, J. G. (ed.).Trajano, Óptimo Príncipe: de Itálica a la corte de los césares. Sevilla, Fundación El Monte.

MENDONÇA. A. S. (1990). SALÚSTIO. A guerra de Jugurta. Petrópolis, Vozes. nº 22, Jan.-Apr. 2018 VEYNE, P. (1992). Humanitas: romanos e não ro- manos. In: GIARDINA, A. (ed.). O homem romano. Lisboa, Presença.

Submetido em Fevereiro e aprovado para publicação Alex Aparecido da em Junho, 2016 Costa e Renata Lopes Biazotto Venturini, ‘Commilito et vir milita- ris: Aspectos bélicos da exaltação do imperador romano em Plínio, o jovem’, p. 99-121

121 Página deixada propositadamente em branco Ana Isabel Correia Martins - Universidade de Coimbra (Portugal) [email protected] - ORCID: 0000-0001-8342-8763

Invisible cities: utopian spaces or imaginary places? nº 22, Jan.-Apr. 2018 MARTINS, A. I. C. (2018). Invisible cities: utopian spaces or imaginary places?. Archai, n.º 22, Jan.-Apr., p. 123-152 DOI: https://doi.org/10.14195/1984­‑249X_22_5

Abstract: Like Raphael Hythloday, Marco Polo narrated his journey to Kublai Khan, the Emperor of the Tartars, presenting a catalogue of places and a cartography of 55 cities. The magic realism of Italo Calvino, the lush and synaesthetic descriptions in Invisible Cities (1972) construct a symbolic imaginarium of utopian paradigms. The taxonomy of all these cities sheds light on their relationship to man: cities and memory, cities and de- sire, cities and signs, cities and eyes, cities and names, cities and the dead, cities and the sky, continuous cities and trading cities. Some of them have an indivisible existence whilst others con- tain contradictions, some are more ethereal and others much more tangible, but all of them are real in the imagination and only inhabit an abstract space. Could we define them as “non- places” or “good-places”? Their geometries are different and whilst some represent what is necessary but does not exist yet, others represent what is potentially imaginable and credible but not achievable: could this be a coherent definition of utopia? Are there cities that are too believable to be true? This article 123 aims to reconstruct the main lines of Utopia’s genealogy, regard- ing the socio-political desire for the ideal state, from Plato to Italo Calvino, answering these two main questions: are ideal cit- ies utopian spaces or imaginary places? Does utopia therefore fail where reality begins? Keywords: magic realism, boundaries and limits, utopian city, imagination

I Utopian aims and their scope

0.1. The magic realism of invisibility

The quantity of things that could be read in a lit- tle piece of smooth and empty wood overwhelmed nº 22, Jan.-Apr. 2018 Kublai; Polo was already talking about ebony for- ests, about rafts laden with logs that come down the rivers, of docks, of women at the windows… (CALVINO, 1974, p. 132)

Ana Martins, ‘Invisible cities: utopian spaces Italo Calvino presents a catalogue of places, a or imaginary places?’, cartography of fifty-five invisible cities, construct- p. 123-152 ing a symbolic imaginarium of utopian paradigms described by Marco Polo to Kublai Khan, the Em- peror of the Tartars and all these descriptions are in- tertwined by eighteen dialogues between both. Six specific groups of critics can be identified, distin- guished by their methodology and overall perspec- tive on Calvino’s work: the first usually assumes that philosophy is the fundamental aspect of his work; the second emphasises the relationship established with the reader and his horizon of expectations from a rhetorical and aesthetic point of view, exploring the ekphrastic nature of language; the third typically 124 analyses him as a unique literary figure, highlighting the features of magic realism from a poetic point of view; the fourth explores a nexus of values mainly concerned with morality and the ethics of social in- teractions; the fifth reflects on the semantic and prag- matic evolution of the term, with reference to the ambiguity of outopia and eutopia; finally, the sixth group discusses the political potential of the ideal state from a historical point of view, ranging from Plato and Aristotle to More’s model of justice and his influence on Montaigne, Francis Bacon, Tomasso Campanella, Guillaume Budé, Thomas Lupset, Ul- rich Von Hutten, Lorenzo Valla, Boccaccio, Rabelais and Erasmus1 during the Renaissance, but also shed- ding light on the nineteenth and twentieth centuries. In fact, a thoroughgoing analysis of Calvino’s utopia nº 22, Jan.-Apr. 2018 would involve an interdisciplinary approach, since utopia itself displays an enormous range of configu- rations and is an intriguing polysemic subject that contains both ideological and literary aspects. Ana Martins, ‘Invisible In Invisible Cities, accordingly Ernst Bloch (1988), cities: utopian spaces or imaginary places?’, the potential of utopia is determined by its anticipa- p. 123-152 tory illumination and illusion, as an image through which we gain a sense of truth in reality. Therefore, if we want to answer the question are invisible cities utopian spaces or imaginary places this must involve several key concepts and their hyponymic hierarchy: desire, myth, truth versus verisimilitude, memory, symbol, scheme, fruitfulness, power and humanism. Undoubtedly, Invisible Cities emerged from Calvino’s desire to write about ideal cities and ideal human re- lations, for this reason, the cities themselves are not simply sad or blissful, utopian or dystopian, discon- nected from human desires and their shadows, their social networks and aspirations. The author reveals 125 how the idea of the city is part of the process of de- sire’s construction, how desires are projected onto the cities, how the cities themselves affect the nature of desire and how both cities and desires change through their perpetual confrontation. Concerning this point, could the definition of utopia be endless and change- less, circumscribed within a particular time and space?

In order to answer these questions, the taxonomy of all these invisible cities sheds light on their rela- tionship with man, touching on several issues such as humankind’s relationship with the past and the con- struction of cultural identity, the idea of individual progress and social improvement, determinism and nº 22, Jan.-Apr. 2018 free will, and, above all, man’s most profound desire to understand, reconstruct and establish a dialogue with the world he lives in. In order to achieve this pur- pose, Jenny Webb (2011) explains that the function of myth draws both on the desire for knowledge and the Ana Martins, ‘Invisible creative impulse, and its symbolic power is therefore cities: utopian spaces a tool for reinterpreting and revalidating the matrixes or imaginary places?’, p. 123-152 responsible for every human intellectual activity. Desire is the engine of utopia, so before explor- ing the construction of utopia in Calvino’s work, the different types of human desire, in the specific sense of curiosity and aspiration, must be recognized: the desire for self-knowledge, reflected in Khan’s desire to know his empire, as well as Marco Polo’s desire to know himself through his travels; the desire to know others, mainly revealed during the dialogue between the emperor and Marco Polo. There is also the desire to know the world for which the cities serve as a working metaphor, wishing for a model and a paradigm that 126 do not yet exist but at the same time represent what is potentially imaginable and credible but not achievable. Utopia expresses man’s essence, his inner and main aim of opening up several possibilities of existence. Utopia hovers suspended between possibility and impossibil- ity, which is why Marco Polo says: “I cannot force my operation beyond a certain limit: I would achieve cities too probable to be real” (CALVINO, 1974, p. 69).

0.2. Could we have a memory of a future desire?

Perhaps, Kublai thought, the empire is noth- ing but a zodiac of the mind’s phantasmas. “On the day when I know all the emblems” he asked Marco, “shall I be able to possess my empire at last?” and the Venetian answered: “Sire, do not believe nº 22, Jan.-Apr. 2018 it. On that day will be an emblem among emblems (CALVINO, 1974, p. 23)

The framework of the book is structured around the Ana Martins, ‘Invisible cities: utopian spaces communication between Marco Polo and Kublai Khan or imaginary places?’, as a hermeneutical engine. If the first body of text con- p. 123-152 tains the dialogue between these two main characters the second presents Marco Polo’s fantastic descriptions of the cities. This internal articulation deep an effect of incantation and although these cities do not exist, the emperor at times accuses his messenger of lapsing into melancholy instead of reporting on the state of the different regions in his empire. In fact, Marco Polo’s memories are, at the same time, topoi of imagination, a projection of his future desires and wishes, and also an expression of his mindscape and his understanding of world. These cities are a result of how he interprets the world and how he projects his subjectivity onto it. 127 Their ancient, mythical and classical names give the cities a utopian dimension at times often associ- ated with fantastic elements and representing symbols that have no correspondence in reality:

Le XIXe siècle vivait dans une métaphysique du réel et de l’imaginaire et la littérature fantastique n’est rien d’autre que la mauvaise conscience de ce xix siècle positiviste. Mais aujourd’hui on ne peut plus croire à une réalité immuable, externe, ni à une littérature qui ne serait que la transcrip- tion de cette réalité. Les mots ont gagné une autonomie que les choses ont perdue. […] La Littérature fantastique elle-même, qui subvertit tout au long de ses pages, les caté- gorisations linguistiques en a reçu un coup fatal; mais de cette mort de ce suicide est née une littérature nouvelle. (TODOROV, 1970, p. 176) nº 22, Jan.-Apr. 2018

It is pertinent to underline that one structural mark- er of the utopian text is its verbal inventiveness, the creation by these writers of extravagant place names Ana Martins, ‘Invisible cities: utopian spaces that are not without symbolic, if at time ambiguous, or imaginary places?’, meaning. This penchant for neologism would appear p. 123-152 to emphasise the close link between the utopian text, magical-utterance and imaginative construction of reality. Language is therefore central to the utopian text, both as a linguistic negotiation game of inven- tion or a kind of lexical and semantic challenge which the reader must take up in an attempt to correctly decode the text. It is undeniable the need to create a new idiom which will be the vehicle for the new soci- ety’s construction, as a set of pure and perfect terms in which to couch the perfection of the new world space.

L’utopie est organisation de l’espace comme texte et dis- 128 cours construit comme espace; mais elle est produite par la pratique utopique que s’y révèle et s’y cache sous la forme d’un jeu de lignes à déchiffrer; jeux s’espace dans lesquels le temps se résume, s’accomplit et s’abolit, mais jeux de lettres aussi, jeux de signifiants dans le système du texte. (MARIN, 1973, p. 25)

The quality and the scope of Marco Polo’s descrip- tions is measured by their capacity to remain carved into his audience’s memory: “Memory’s images, once they are fixed in words, are erased,» Marco Polo says: «Perhaps I am afraid of losing Venice all at once, if I speak of it. Or perhaps, speaking of other cities, I have already lost it, little by little” (CALVINO, 1974, p. 87). For this reason, the richness of Calvino’s lit- erary proposal is its ekphrastic potential; the mental nº 22, Jan.-Apr. 2018 images conquer their own autonomy, since the im- age of the city will be explored in its multiple iconic forms and functions as the trigger for the fictional and creative process, as sign, as content and as form. Ana Martins, ‘Invisible When Marco Polo describes Olivia, he is conscious cities: utopian spaces that falsehood never lies in words but in things and a or imaginary places?’, lie and a falsehood are different concepts. A certain p. 123-152 degree of tension and ambiguity should be seen as inherent to the construction of utopia. The relation between art and literature is related to this concept of memory as the capacity to recall impressive im- ages, evoke well-known roots and create chains of associations that lead from one image to the other. For this reason, metonymy, metaphor, allegory and the rhetorical figure metalepsis are essential tools for symbolic construction and utopian thinking, in- trinsically related to the creative process and the im- agination, and developed extensively since Aristotle (Poetics 1457b1-1458a17). 129 La metaforicidad es un âmbito ligado a las más primor- diales realidades humanas: a partir de la metáfora se constityen para nosotros el mundo, lenguaje y pensa- miento. El pensar metafórico es el modo esencial huma- no de hacer (actio), decir (oratio) y conocer (logos); el modo desde el que originariamente se abren al mundo, desde la intimidad de uns imagen, el hecho, la palabra y la idea. (FERNÁNDEZ, 2000, p. 11)

Images are reinvented, regenerated and enriched in a process of reading and interpretation and, whilst the passage from word to image is the reader’s responsibility, the transition from image to word lies with the writer, through a permanent challenge “the city exists and it has a simple secret: it knows only departures, not returns” nº 22, Jan.-Apr. 2018 (CALVINO, 1974, p.56). Calvino’s images have a mi- metic role, representing and reinterpreting reality, whilst also reflecting the imagination of the potential future – on an invisible level: “Au niveau de l’imagination, le dis- Ana Martins, ‘Invisible cours utopique fonctionne non comme une icône, mais cities: utopian spaces comme un schème. L’utopie se spécifie comme figure. or imaginary places?’, p. 123-152 Produit dans la distance des contradictoires, il est le sim- ulacre de la synthèse tout en signifiant la contradiction qui l’a produit” (MARIN, 1973, p. 26).

The cities described are a result of dealing with de- sire, aspiration, existence, personal experience, dissatis- faction, reality and are therefore sometimes considered concrete visual images, and at other times mental and also verbal images. The reader knows that the dialectical dynamic of visible/invisible can be interpreted in two dif- ferent ways: invisibility may be an intrinsic quality of the cities – without real correspondence - and/or the eye that looks at them may not be sensitive enough to see them. 130 The dual nature of the invisibility of the cities is closely related to the traveller’s way of looking at the world, since the cities are a product of Marco Polo’s imagination, his projections, mindscape and inner world.

However, when we talk about imagination and in- visibility we are not necessarily talking about fantastic literature as the equivalent of magic realism, since the world of utopia is not inhabited by , goblins, dragons and fairies but by human beings:

L’ultima componente stilistica rilevata da Calvino è l’a- gilità, l’efficacia compositiva che deriva dalla «fantasia degli esempi». L’assioma allude a due momenti estetici distinti, il primo incentrato sulla fantasia come funzio- ne creative della immaginazione, sempre alla ricerca di nº 22, Jan.-Apr. 2018 una espressione per manifestarsi, il secondo sulla fantasia come varietà, diversità e originalità. La fantasia diviene indizio di un procedere stilistico e di un gusto lettera- rio moderni, in cui, secondo Calvino, il «pensar bene» è collegato ad una certa rapidità mentale che nell’emit- tente diviene creazione associativa lucida, scattante, com- Ana Martins, ‘Invisible pressa ma leggera, e nel ricevente si risolve nella abilità cities: utopian spaces di incamerare le immagini e moltiplicarne i significati. or imaginary places?’, (WRIGHT, 1998, p. 141). p. 123-152

The magic realist writer is searching for a probable and feasible reality, a variation of status quo, not neces- sarily a (land)scape; he is committed to the problems and engaged with social movements, and reality is just a palimpsest of rewritten, reinvented scenarios. Instead of fleeing the world, the author is immersed in reality, elevating fascination beyond entertainment.

En ningún caso deben confundirse realismo mágico y literatura fantástica. En esta última, el narrador puede 131 situar la acción, el tiempo o los personajes en una dimen- sión contraria a la lógica del mundo racional. Gracias a su libertad imaginativa, lo que resulta imposible en el orden físico se hace posible en el fantástico. El narrador fantás- tico no conoce límites para clausurar las leyes del orden natural en favor de todo tipo de prodigios, milagros y ele- mentos sobrenaturales. Por el contrario, en el realismo mágico, el prodigio, el milagro, lo extraño y anormal está dentro y sujeto a las leyes del mundo, aunque su sola exis- tencia nos causa sorpresa. En vez de presentar la magia como si fuera real, el narrador nos presenta la realidad como si fuera mágica (DELGADO, 2006, p. 20).

Travel is also self-knowledge itinerary and a discovery so all the cities are the result of how Marco Polo inter- nº 22, Jan.-Apr. 2018 prets the world and how he projects his subjectivity onto it. When Khan asks him to talk about the arch and not about the stones that support it, he probably means that he wants an overview of the construct; he would rather Marco Polo adopted a holistic approach to telling sto- Ana Martins, ‘Invisible cities: utopian spaces ries. Marco Polo explains that the arch is inconceivable or imaginary places?’, without the stones or, in other words, the whole cannot p. 123-152 be described without referring to the parts: “journeys to relive your past? Is Khan’s question at this point, a ques- tion which could also be formulated as “Journeys to re- cover your future? Marco Polo’s answer is: “Elsewhere is a negative mirror. The traveller recognizes the little that is his discovering, the much he has not had and will nev- er have” (CALVINO, 1974, p. 29).

II The genealogy of Utopia: the socio- ‑political desire for the ideal state

At this point Kublai Khan interrupted or imagined inter- 132 rupting him, or Marco Polo imagined himself interrupted with a question such as: “You advance always being you? Or rather “Does your journey take place only in the past? (CALVINO, 1974, p. 28).

The analytical study of utopia has a long tradition dating back to the Greeks and Plato is considered the founder of the genre. However, it should be empha- sised that The Republic and Laws are more projects for legislation than for constructing utopias, given that the Peloponnese War had created a great deal of dissent and social vulnerability. Thus, in this context, Plato presents an ideal of cohesion and solidarity, a strong and fair state able to protect the citizens: “un tableau descriptive, d’une société en plein fonctionnement. Dirigisme, eudémon- isme collectif, institutionnalisme, idéal communau- nº 22, Jan.-Apr. 2018 taire, système d’éducation publique sont des éléments de base que Platon léguera à bon nombre d’utopistes” (TROUSSON, 1975, p. 34). On the other hand, Timaeus and Critias reveal a matrix of changing desires: in the Ana Martins, ‘Invisible opening of the first dialogue, Socrates recalls the prin- cities: utopian spaces ciples of the ideal republic and also voices his vague or imaginary places?’, p. 123-152 dissatisfaction with mere discourse on the framework of the ideal city, as expressed in The Republic. Nineteen centuries later Thomas More, influenced by Plato, fi- nally achieved the Socratic wish in his Utopia, influenc- ing his contemporaries and successors. Ideal cities have been presented as more than simple imaginary por- traits reducible to socio-cultural, historical or psycho- logical factors. Extending beyond these – certainly not insignificant – influences, they share a common pur- pose: to express the pure relationship of man to human- ity in the form of a social order which, on its boundaries, loses the character of a political solution and reveals its meta-empirical nature. The question that arises is not 133 why cities are so often the locus of utopia but why did so many of the characteristic institutions of utopia first come to light in the ancient city.

If we want to analyse utopia through the eyes of the Greeks and in particular through Plato’s approaches, the utopian focus is developed in four of his dialogues, being the most influentialThe Republic. Although Pla- to has been accused of subordinating the individual to the state, in fact, he subordinates the state to the individual because the main focus is the search for justice in the individual practice. The roots of politics lie in economics and his formula for an ideal com- monwealth is to establish the right people in the rul- nº 22, Jan.-Apr. 2018 ing class, the right education and the right way of life for them. In addition to these material conditions, it is important to emphasise their relationship to citizens, since every society is a healthy body whose vitality is closely linked to the role of each of its members. Ana Martins, ‘Invisible Plato’s ideal community begins at the point when the cities: utopian spaces early Golden Age comes to an end, with absolute rule, or imaginary places?’, p. 123-152 totalitarian enforcement, the permanent division of labour and constant readiness, with everything ac- cepted in the name of justice and wisdom. The city that Plato portrays is a self-contained unit which, in order to ensure this self-sufficiency, must have enough land to feed its inhabitants and make it independent of any other community: it is an autarchy, a very simi- lar matrix with More’s utopia. The population of this community is divided into three main classes: hus- bandmen and craftsmen, a large mass of people who attend to the economic and general life of the com- munity; the ‘second’ class of guardians, with military and executive functions; the philosopher-rulers, to 134 whom everything is subordinate: “Plato reinforces his conclusion, that political troubles will persist until philosophers become rulers or rulers take seriously to the study of philosophy, that is until political authori- ty and the pursuit of wisdom coincide” (FERGUSON, 1975, p. 67).

Plato rationalized kingship and if one thinks of Plato’s scheme as a contribution to an ideal future, it must be wondered why justice, temperance, cour- age and wisdom had never before been addressed to such a contradictory ideal outcome. What Plato had actually accomplished was not a means of over- coming the weaknesses that threatened the Greek commonwealth of his day, but the establishment of a seemingly philosophical basis for the historic nº 22, Jan.-Apr. 2018 institutions that had, in fact, arrested human de- velopment. He proposed to create a structure that, unlike that actual city in history, would be immune to challenge from within and to destruction from without. Plato’s utopia or ideal city represented Ana Martins, ‘Invisible cities: utopian spaces the final consummation and the corollary of our or imaginary places?’, supposedly dynamic society. In order to fulfil this p. 123-152 ideal, Plato makes his republic immune to change: once formed, the pattern of order remains static, as in the insect societies to which it bears a close resemblance. With the aid of ideals, every com- munity may select from a multitude of possibilities those which are consonant with its own nature or that promise to further human development and improvement:

Ce premier modèle utopique ne pouvait manquer de sti- muler les imaginations; à l’Atlantide vinrent s’ajouter des fables populaires sur l’âge d’or, Le Champs Elysées ou les 135 Iles fortunes. Le désir spontané d’un people épris d’art et de récits, soucieux de donner une forme à ses rêves de bon- heur, ce désir rencontra, au siècle suivant, un ensemble de circonstances particulièrement favorables à l’éclo- sion définitive d’une genre qui cherchait encore sa voie. (TROUSSON, 1975, p. 38)

Aristotle in Book II of the Politics criticizes this Plato’s scheme under the conviction that certain “ideal states” demand critical examination, attacking the community of family relationships on the gener- al grounds that Plato ‘waters down’ affection (Arist. Polit. 2.1262b.16). One of these arguments lies on the ideal of static perfection because this is a dead ide- nº 22, Jan.-Apr. 2018 al, not a living one, as later discovered when he was forced to admit life and movement into the world of forms and he had also studied and criticized other ideal commonwealths. Ethics and Politics are, for Ar- istotle, separate aspects of the same subject and if at Ana Martins, ‘Invisible the beginning of his Ethics he affirms that every sci- cities: utopian spaces ence, every subject, every action and every choice or imaginary places?’, p. 123-152 appear to aim at some good so good is legitimately defined as the object to which all things aspire. The concept of utopia pervades every page of the Poli- tics and his utopian perspective extends beyond this, presenting the archetypal form and comparing one kind of city with another, not just in terms of political power but also the ideal and social values for human development. On the one hand, Aristotle considers the polis as an (arte)fact of nature, since man is a po- litical animal who cannot live alone. However, since it is equally true that the polis is a human artefact, its inherited constitution and its physical structure may be criticized and modified by reason and the polis was 136 therefore potentially a work of art. Aristotle’s concern is to find the form of political community that could be the best and the most able to achieve their ideal of life. Concerning Hellenic thought, the utopian city involves certain key concepts such as isolation, strati- fication, fixation, regimentation, standardization and militarization.

During the Renaissance, a distinctive pattern of utopian narrative emerged, promoted by Sir Thom- as More, reflecting all these political principals and forms of social organization and drawing on the classical model for the ideal state. In Thomas More’s hands the expression takes on a new and distinctive form, developing the interest in urbanism and in geo- graphic projection of human being and its relation- nº 22, Jan.-Apr. 2018 ships as a social construction: “A leurs plans grandi- oses de villes aux traces rectilignes, ils ajoutent le désir de réglementer la vie des habitants, de faire de la cite une ruche minutieuse où chacun trouve sa place et sa fonction. Déjà le De re aedificatoria de Léon Bat- Ana Martins, ‘Invisible tista Alberti, rédigé en 1452 témoigne de ce dépasse- cities: utopian spaces or imaginary places?’, ment de l’architecture vers la construction sociale” p. 123-152 (GRENDLER, 1965, p. 499).

The complex and contradictory nature of the uto- pian fictions of the Renaissance is a consequence of the ideological ferment and a multimodal dynamic of the period in which they were written, inextricably linked to the symbiotic relationship between revolu- tionary ideas and a powerful commitment to tradi- tion – imitatio ac renouatio. Utopia (1516) is neither a manifestation of nostalgia for the past nor a millen- nial dream for the future, but the influence of Plato, in particular, proved a powerful stimulus to new ways of looking at the world, reinforcing as it did the 137 sense that contemporary society had much to learn from the example of a past civilization were at least as sophisticated as those sixteenth century Europe. If Plato was inspired by the Peloponnesian War, Thomas More was motivated by the crisis in England in 1485 that was changing the entire country, in particular the economic paradigm.

Utopia is an island off the coast of Latin America connected to the land by a waterway, 300 kilometres wide at its widest point, with extremities that narrow and curve round as if to form a circle. This island is a natural harbour and the only visible rock has a tower. Only the inhabitants of Utopia know where it is safe or nº 22, Jan.-Apr. 2018 dangerous to make the crossing. Thus, isolation means voluntary autonomy and independence. Utopia has fifty-four cities and the capital, Amaurot (etymologi- cally meaning “difficult to see”), also called Castle in the Air, lies in the middle of island. Amaurot is sur- Ana Martins, ‘Invisible rounded by the River Anider (the river without water) cities: utopian spaces and also has huge defensive walls and river gravel in or imaginary places?’, p. 123-152 the city, meaning that it never faces the problem of water scarcity. Every house has a front and a back door and all citizens are proud of their gardens. The main activity is agriculture, taught in schools, together with another occupation. Work is the core of this society and its efficient economy allows for a six-hour work- ing day with no negative impact or disadvantages. Utopia is a republic in which there is no private prop- erty and all citizens have common responsibilities and social duties: no one is rich and poverty does not ex- ist. The abolition of private property and money nul- lifies ambition and greed, so that they never become the basis for crime and abuse. In terms of stratifica- 138 tion, the political system is organized around thirty families, each of which elects a syphogrant or district controller. Ten syphogrants elect one tranibore, a sen- ior controller, but the whole process is dynamic not static. In the strict sense, Utopia is not an equal so- ciety because there is a specific hierarchy: everyone respects and is subordinate to the oldest, women are subordinate to their husbands and children to their parents. Criminals are punished by being made slaves, a category comprising Utopian citizens but also for- eigners brought in to work in agriculture. Criminals from Utopia have worse conditions, based on the as- sumption than if they have enjoyed all the benefits, a good moral education and support and still become bad citizens they deserve the worst punishment. The inhabitants of Utopia enjoy religious freedom but they nº 22, Jan.-Apr. 2018 believe in the soul’s immortality, accepting control by a providence inaccessible to our understanding.

In short, the ideal state for both Thomas More and Ana Martins, ‘Invisible Plato is not a future but a hypothetical ideal, not a cities: utopian spaces normative description but an informing power, and or imaginary places?’, not a goal for action but a possible static model. For p. 123-152 both, utopia is a kind of paradigm of justice and com- mon sense which, once established in the mind, clari- fies its standards and values. However, if Plato’s ideal of city constructs a ‘good-place’ for Sir Thomas More’s term is deliberately ambiguous in its derivation be- cause its root may be taken as ou-topos (‘non place’) or eu-topos (‘good place’). Although Utopia is located on an island, More’s state is not eutopia as a good place but outopia as nowhere, separating utopia from the all-too-imperfect real world. This is the ambiguous array also developed by Calvino, a closer concept of ou-topos than eutopos. 139 In theorizing a more perfect world, the writer remains governed by the realities of his own society, extrapolat- ing from its more positive aspects, reacting against its more negative one, recasting it in the light of social and political theories generated by the imperfect reality from which utopia separates itself. [..] Although utopia’s isola- tion is clearly designed to protect it from contamination by the squalor and disorder of the real world, it can never be so isolated as to be inaccessible to the privileged indi- vidual who will eventually return to bear witness to the superiority of the utopian way (FERNS, 1999, p. 2)

Some of the most progressive ideas of the Renais- sance had their roots in dreams of magical transforma- tions of the world – dreams which have as their goal, nº 22, Jan.-Apr. 2018 not progress but the restoration of an order, harmony and innocence that had once existed but had long since been lost. This is the same motivation for the emer- gence of magic realism in Latin America countries. In

Ana Martins, ‘Invisible most utopias the state predominates over the individ- cities: utopian spaces ual: property is usually held in common and the char- or imaginary places?’, acteristic features of individual life, leisure, privacy and p. 123-152 freedom of movement are, as a rule, minimized. The utopia is designed to describe a unified society, not individual forms of existence. However, the principle of paradeigma adopted by Plato reversed the relation- ship between society and the individual. The ideal or desirable quality in the utopia has to be recognized as manifesting something that the reader can understand as a latent or potential element in his own society and his own thinking. The social aim is an essential and primary human ideal but it is not the only one, nor does it necessarily include others. Human fulfilment has a singular and a dual form, as well as a plural one. The 140 great classical utopias derived their form from city-states located in space. Modern utopias derive their form from a uniform pattern of civilization spread over the whole globe and so are thought of as world-states. Whilst the traditional utopia involved a retreat from the notion of utopia as representing a coherent possible alternative to existing society, this role has changed.

III Ideal cities: utopian spaces or imaginary places?

The catalogue of forms is endless: until every shape has found its city, new cities will continue to be born. When the forms exhaust their variety and come apart, the end of cities begins. (CALVINO, 1974, p. 139) nº 22, Jan.-Apr. 2018

Having proved intertextualities between Plato and More, a dialogue can also be established, in a diachronic perspective, between More’s Utopia and Calvino’s approach in Invisible Cities based on the Ana Martins, ‘Invisible similar number of cities referred to by both authors cities: utopian spaces or imaginary places?’, (fifty-four in Utopia and fifty-five in Calvino’s book). p. 123-152 In order to provide an overview and understand how images construct these invisibility, Calvino’s taxono- my should be examined in greater detail: cities and memory, cities and desire, cities and signs, cities and eyes, cities and names, cities and death, cities and the sky, continuous cities, trading cities, hidden cities.

Order number 1 2 3 4 5 Memory Diomira Isidora Zaira Zora Maurilia Desire Doroteia Anastásia Despina Fedora Zobaida

Signs Tamara Zirma Zoe Hipácia Olivia Thin Isaura Zenobia Armila Sofronia Octavia Trading Eufemia Cloé Eutrópia Ersilia Esmeraldina 141 Eyes Valdrada Zemerude Bauci Filias Moriana Name Aglaura Leandra Pirra Clarice Irene

Dead Melania Adelma Eusapia Árgia Laudomia Sky Eudoxia Barsabeia Tecla Perinthia Andria

Continuous Leonia Trude Procopia Cecilia Pentesileia Hidden Olinda Raissa Marozia Teodora Berenice

Some of them have an indivisible existence whilst oth- ers contain contradictions, some are more ethereal and others much more tangible, but all of them are real in the imagination and only inhabit an abstract space. Is it enough to define some of them as “non-places”/outopia? Their geometries are different and whilst some represent what is necessary but does not exist yet, others represent what is potentially imaginable but not achievable: could nº 22, Jan.-Apr. 2018 this be a coherent definition of utopia as a “good place”/ eutopia? The line between reality and imagination is the same subtle line between the visible and invisible, life and death, truth and verisimilitude. Despite the absence Ana Martins, ‘Invisible of geographic considerations, Zenobia is a representa- cities: utopian spaces tion of this subtle line and also an example of a thin city or imaginary places?’, p. 123-152 proving the impossibility of distinguishing between hap- py and unhappy cities. It makes no sense to divide cities into these two types, but rather into two different catego- ries: those that over time and through change continue to give form to desires, and those in which desires ei- ther erase the city or are erased by it. Intrinsically linked, there are cities like Fedora which represent desires: the impossibility of having what we want together in time and space, as an inescapable karma.

Signs should be a valuable instrument for under- standing reality but Zoe demonstrates that ambiguity is constant because the traveller roams everywhere and 142 has only doubts. It is not possible to define the features of the city because it is indivisible. What line separates the inside from the outside, the rumble of wheels from the howl of wolves? And what line defines the sky and the city? Perinthia’s astronomers are faced with a diffi- cult choice. If they admit that all their calculations were wrong and their figures are unable to describe the heav- ens, they also must acknowledge that the order of the gods is reflected exactly in the city of monsters. Howev- er, hidden cities reflect an important ideal: the purpose is not to define boundaries but to learn and accept the cities as a whole, with cohesion and coherence, despite these contradictions and dialectics. Raissa shows that every unhappy city contains a happy city unaware of its own existence and Marozia, consisting of two cities, the rat’s and the swallow’s, changes over time, although nº 22, Jan.-Apr. 2018 their relationship does not change; the second is always about to free itself from the first.

All these cities construct a map and a network as a mirror of social relations that are also hidden by trad- Ana Martins, ‘Invisible ing. For this reason, Chloe’s inhabitants can be close and cities: utopian spaces or imaginary places?’, distant at the same time: when a group of people happen p. 123-152 to find themselves together, taking shelter from the rain under an arcade, crowding beneath an awning of the ba- zaar, or stopping to listen to the band in the square, meet- ings, seductions, couplings and orgies take place without a word exchanged, without a finger touching anything, almost without an eye raised. A voluptuous vibration constantly stirs Chloe, the chestiest of cities.

Trading relations also mean that even the most fixed and calm lives in Esmeraldina can be lived without any repetition. We always live in a dialectical system which contains a poison and its antidote. Berenice has one intrinsic quality: an unjust city is 143 germinating secretly inside the secret just city. For this reason, Berenice is a temporal and continuous succession of different cities, alternately just and un- just, with all the future Berenices are already present in this instant, each inside the other, confined, com- pacted and inextricable.

Utopia is a combinatorial game, a play on the possi- bilities calling for a number of pieces that are subject to certain rules which, if the game is to be played well and in an orderly fashion, must be predetermined in time and space. The idea of a chessboard is present in several parts of Invisible Cities and seems essential to decipher- ing the hidden structure of this book. A chessboard has nº 22, Jan.-Apr. 2018 sixty-four squares and Invisible Cities has seventy three parts, if we add the fifty-five cities to the eighteen -dia logues between Polo and Kublai Khan present in all nine chapters. Furthermore, as in a chess board, the pieces are alternately black and white, expressed in Calvino’s Ana Martins, ‘Invisible language by combining a discourse on positive factors cities: utopian spaces with its opposite, a difference that may emerge through or imaginary places?’, p. 123-152 the contrast between the discourse in different cities or in the duplicity and ambiguity presented in each one2. Moreover, Kublai Khan plays chess and on the basis of Marco Polo’s description of each city, the Great Khan’s mind sets out on its own, dismantling the city piece by piece to reconstruct it in other ways, substituting certain elements, shifting them and inverting them.

«Kublai Kublai was a keen chess player; following Marco’s movements, he observed that certain pieces implied or ex- cluded the vicinity of other pieces and were shifted along certain lines. Ignoring the objects’ variety of form, he could grasp the system of arranging one with respect to the oth- 144 ers on the majolica floor. He thought: “If each city is like a game of chess, the day when I have learned the rules, I shall finally possess my empire, even if I shall never succeed in knowing all the cities it contains […] Now Kublai Khan no longer had to send Marco Polo on distant expeditions: he kept him playing endless games of chess. Knowledge of the empire was hidden in the pattern drawn by the angular shifts of the knight, by the diagonal passages opened by the bishop’s incursions, by the lumbering, cautious tread of the king and the humble pawn, by the inexorable ups and downs of every game» (CALVINO, 1974, p. 121).

Marco Polo clarifies the rules of this game: from the number of imaginable cities we must exclude those whose elements are assembled without any connect- ing thread or inner rule, a perspective that maintains the cohesion and coherence of the narration. Cities are nº 22, Jan.-Apr. 2018 like dreams: everything imaginable can be dreamed, but even the most unexpected dream is a desire or its reverse, a fear. Cities and dreams are made of desires and fears, even if the thread of their discourse is se- Ana Martins, ‘Invisible cret, their rules are absurd, their perspectives deceit- cities: utopian spaces ful and everything conceals something else. In this or imaginary places?’, way, the traveller presents a catalogue of imaginary p. 123-152 spaces but not necessarily utopian places: on the con- trary, if the cities reflect fears they can also represent dystopian images3: «Perhaps Adelma is the city where you arrive dying and where each finds again the peo- ple he has known. This means I, too, am dead.” And I also thought: “This means the beyond is not happy» (CALVINO, 1974, p. 95).

3.1 Representation of death as an ideal of life?

Through five distinct images of cities related to death, Calvino aims to represent the ideal of life under this inextricable stoic vision defending a inseparable 145 dimension. In order to achieve this purpose, he man- ages different aspects concerning this subject: the claim for self-knowledge, the perpetuation of life and the per- ception of an unknown world as a continuous reality, the relationship with time and with an unpredictable end, the problem of dealing with death, the problem- atic establishment of authorities in matters of faith, lit- erature’s inability to convincingly discuss the afterlife.

Melania is the first of these cities and the name means “black” because in Greek mythology Melania was a Corycian nymph who ruled over matters of the underworld and the unseen. The main paradox lies in the fact that Melania’s identity relies on the perpetual nº 22, Jan.-Apr. 2018 dialogue between the inhabitants, whereas their lifes- pan is limited. Melania needs to find a solution to the mortality of its inhabitants in order to survive, and the problem is resolved by renewing the population. Melania is similar to a living organism that needs to Ana Martins, ‘Invisible adapt and develop a specific mechanism in order to cities: utopian spaces bypass the problems that prevent it from functioning or imaginary places?’, p. 123-152 normally. Sum up, the solution does not rely on mak- ing the inhabitants immortal, but rather on finding a way to keep the dialogue going despite their mortality. The dynamic of this city develops through the replace- ment of those who die with others, the redistribu- tion and multiplication of roles in order to match the number of people in the city, or even the division of one into several different roles. Their lives are not too short to develop conflicts but without time enough to heal and to solve them and, consequently, to change the status quo.

Adelma means ‘old’, metaphorically interconnect- 146 ed with the moment when traveller arrives at dusk. It is no coincidence that the traveller should be re- minded of all the old people he had once known. It is the city where the traveller once again sees those he has known and who have died. The dilemma he confronts is whether to look at the faces he has known or not. When the realm of the dead apparently meets that of the living and all frontiers are shattered, doubt and anxiety become inevitable. He finds himself con- stantly facing death and is terrified by it, and at the same time his memories become quite blurred and he finds it difficult to interpret similarities and tell people apart. One important topic, which belongs to the long literary and mythical tradition of the underworld, is the idea of looking death in the eye. nº 22, Jan.-Apr. 2018 No city is more inclined than Eusapia to enjoy life and flee care, even being a city of the dead. Eusapia has its own particular way of dealing with the issue of the afterlife. In the beginning we are told that in order to make the passage to the afterlife somewhat less abrupt, Ana Martins, ‘Invisible the inhabitants of Eusapia have built an identical city cities: utopian spaces or imaginary places?’, to theirs below ground where the dead continue their p. 123-152 activities and sometimes find themselves in different, more pleasant circumstances than when they were still alive. Eusapia (Eusebia) means “pious” and in the city there is a specific group of people responsible for accompanying the dead to their new realm. They are first described as a brotherhood, and then referred to as a congregation. Although the words “religion” and “church” are not to be found in the text, the descrip- tion of the city of Eusapia clearly discusses the role of an established religious organization in matters of faith, especially those related to the belief in an after- life. If the inhabitants of Eusapia want to know about the city that they will go to in the afterlife, they have 147 to take their word for granted. Another level of in- terpretation consists of understanding how in general our reality and the choices that we make about our terrestrial life are very often conditioned by the image we create of an afterlife. Sometimes the hooded me- diators who lead the dead to the other Eusapia in the underground acknowledge the innovations created by dead people, since in the afterlife they are more lucid and thoughtful. For this reason, the living people in Eusapia try to imitate the “avatar”. In short, it is im- possible to distinguish who is alive and who is dead in the twin cities because the dividing line is very thin.

Argia is described as a city constructed to be covered nº 22, Jan.-Apr. 2018 by tons of soil. Its darkness and density make it motion- less and impenetrable to all the senses. The description of Argia is also the shortest of the five and this is signifi- cant since there is not much that can be told about this city which no one knows anything about even when, Ana Martins, ‘Invisible paradoxically, the name Argia means light. cities: utopian spaces or imaginary places?’, Laudomia is a city with a triple structure and dy- p. 123-152 namic: the first is for the living inhabitants, the second is reserved for the dead and the third is for those still unborn. If the three dimensions we have for time – past, present, future – do not coexist, they are at least perpetually present in our concerns. The importance that the people of Laudomia attribute both to the past and the future is reflected in the size of these sibling cities. The issues raised by Laudomia are the main philosophical questions that humankind has always pondered (Petsota, 2012).

In conclusion, the representation of death (outo- pos) is an attempt to define the ideal of life eutopos( ). 148 For this reason, utopianism is a tension, the aspira- tion to move beyond the fixity of the present, offer- ing a vision which is a radical alternative to the reality in which the writer lives and operates. The essence of utopia lies precisely in its inherent ambiguity, in its interplay between a design which is not-yet-real and the reality which the design contests. This ambiva- lence constitutes both the strength and weakness of the genre: its strength as utopia lies in its tension with elsewhere, the capacity to imagine the other; its weak- ness is the fact that its paradigm is essentially only an abstraction of the real.

There is one final question: does utopia therefore fail where reality begins? If men and women began nº 22, Jan.-Apr. 2018 to live their ephemeral dreams, every phantom would become a person with whom to begin a story of pur- suits, misunderstandings, clashes, oppressions and the carousel of fantasies would stop. Northrop Frye confirms: “the world you want to live in is not the Ana Martins, ‘Invisible world you see but the world you build out of what you cities: utopian spaces or imaginary places?’, see» (1974, p.19) So, where is utopia? Perhaps it is just p. 123-152 right here and right now.

Notas 1 It is nowadays thought that Erasmus was encouraged by Thomas More to writeEucomium Moriae (Moria, from Greek means madness). 2 «Nel percorso di conoscenza di Marco e Kublai coabi- tano due indirizzi di pensiero contrastanti: da un lato vi è la tendenza a vedere nell’oggetto il simbolo di una totalità straordinaria e trascendente, a cui tutto viene a tempo debi- to ricondotto, dall’altro la tendenza a percepire nell’oggetto un frammento di un’unità non ripristinabile. Il frammento 149 introdurrebbe insomma una dissonanza, una nota disarmo- nica nell’universo, puntando l’attenzione sulle sue discor- danze, segnalandone il disordine, metendone in dubbio il contenuto epistemico. La visione opposta trasforma invece il frammento in uno strumento di investigazione ed interpre- tazione dell’infinito. Così, mentre Marco traduce il messag- gio esperienziale nella plasticità di immagini sfuggenti e me- tamorfiche, l’imperatore oscilla tra la speranza di scorprire in questa struttura precise rette ordinatrici e la disperazione di non rinvenire ni essa che disarmonia e caos», in Simonetta Chessa Wright (1998, p. 71-72). 3 «While the traditional utopia seeks to forestall critical judgement of the alternative society, utopia constituting the standard by which our own world is judged and found want- ing, dystopian fiction positively demands that readers judge the projected society by the standards of their own», Chris Ferns (1999, p. 109). nº 22, Jan.-Apr. 2018

Bibliography

BLOCH, Ernst (1988). The utopian function of art Ana Martins, ‘Invisible and literature: selected essays, ZIPES, Jack; MECK- cities: utopian spaces or imaginary places?’, LENBURG, Frank (transl.). Cambridge/ London, p. 123-152 MIT Press.

CALVINO, Italo (1974). Invisible Cities, WEAV- ER, William (transl.). San Diego, New York, London, Harcourt Brace & Company.

CLAEYS, Gregory (2011). Searching for Utopia: the history of an Idea. London: Thames & Hudson.

DELGADO, José Manuel Camacho (2006). Co- mentarios Filológicos sobre el realismo mágico. Madrid: Arco/Libros, S.L.

FERGUSON, F. (1975). Utopias of the classical 150 world. London, Thames and Hudson. FERNS, Chris (1999). Narrating utopia: ideol- ogy, gender, form in utopian literature. Liverpool, University Press. https://doi.org/10.5949/liver- pool/9780853235941.001.0001

FRASSON-MARIN, Aurore (1986). Italo Calvino et l’imaginaire. Génève-Paris, Slatkine.

FRYE, Northrop (1985). Varieties of Literary Uto- pias. Daedalus, 94, 2, p. 323-347.

FRYE, Northrop (1990). Myth and metaphor: se- lected essays. Ed. by Robert Denham. Charlottesville: University Press of Virginia.

GRENDLER, P.F. (1965). Utopia in Renaissance It- nº 22, Jan.-Apr. 2018 aly: Doni’s New World. Journal of the History of Ideas 26, 4, p. 479-483. https://doi.org/10.2307/2708495

JACOB, Johanna (1998). Calvino’s reality: design- er’s utopia? Utopian Studies 1, p. 103-119. Ana Martins, ‘Invisible cities: utopian spaces or imaginary places?’, JONES, Clint; CAMERON, Ellis (2015). The indi- p. 123-152 vidual and Utopia: a multidisciplinary study of Hu- manity and Perfection. London/New York, Routledge.

LACROIX, Jean-Yves, (2007). L’Utopia de Thomas More et la tradition platonicienne. Paris, Vrin.

MARIN, Louis (1973). Utopiques: jeux d’espaces. Paris, Les éditions de Minuit.

MUCCHIELLI, Roger (1961). Le Mythe de la cité idéale. Paris, Presses universitaires de France.

PETSOTA, Myrto (1977). Italo Calvino: Mythical writing in an enlightened world, desire, utopia and earthly 151 transcendence in the cosmicomic stories. PhD thesis - The University of Edinburgh Oilthigh Dhun Eideann, 2012.

SEVILLA FERNÁNDEZ, José Maria; BARRIOS CASARES, Manuel (eds.) (2000). Metáfora y discurso filosófico.Madrid, Editorial Tecnos, Madrid.

TROUSSON, Raymond (1975). Voyages aux pays de nulle part : histoire littéraire de la pensée utopique. Bruxelles, Éditions Universitaires de Bruxelles.

WEBB, Jenny (2011). Fantastic, Desire. Poe, Calvi- no and the Dying Woman. The Comparatist 35, p. 211-220. https://doi.org/10.1353/com.2011.0029

nº 22, Jan.-Apr. 2018 WRIGHT, Simonetta Chessa (1998). La poetica neobarocca in Calvino. Ravenna, Longo Editore.

TODOROV, Tzvetan (1970). Introduction à la lit- térature fantastique. Paris, Éditions du Seuil. Ana Martins, ‘Invisible cities: utopian spaces Submetido em Julho e aprovado para publicação or imaginary places?’, em Agosto, 2016 p. 123-152

152 dossiê | dossier

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Página deixada propositadamente em branco Gabriela Geluda em Kseni, a estrangeira (2006), de Jocy de Oliveira. Foto: Calé Merege

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Página deixada propositadamente em branco Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil) [email protected] - ORCID: 0000-0001-7458-5759

Introdução: Medeia(s): entre a filosofia, a retórica e a literatura nº 22, Jan.-Apr. 2018

Introduction: Medea(s): among Phi- losophy, Rhetoric and Literature

COELHO, M. C. M. N. (2018). Introdução: Medeia(s): entre a filoso- fia, a retórica e a literatura.Archai , n.º 22, Jan.-Apr., p. 157-166 DOI: https://doi.org/10.14195/1984­‑249X_22_6

Esse foi o tema do XIII Seminário Internacional Archai, realizado em Brasília, de 5 a 7 de março de 2016. O encontro teve a participação de quatorze palestrantes convidados, dos quais sete têm seus ar- tigos publicados neste número da revista Archai.1 Uma das apresentações consistiu em uma perfor- mance da cantora lírica e atriz Gabriela Geluda, cuja imagem, em momento de sua atuação na ópera 157 Kseni - a estrangeira, de Jocy de Oliveira, ilustra a abertura deste dossiê.

Como organizadores2, ao propor este tema a to- dos os participantes (palestrantes e ouvintes), acre- ditávamos — e esta crença ainda persiste e justifica, em parte, este dossiê — que cabe a estudiosos de di- ferentes áreas, em trabalho colaborativo, analisar o papel de obras complexas e fundantes das origens do pensamento ocidental, como as Medeias de Eurípi- des e Sêneca, bem como sua recepção posterior, seja na adaptação e transposição de tais obras para o ci- nema, teatro ou literatura, ou no estudo de temas es- téticos, retóricos, éticos e políticos ali presentes. Dos nº 22, Jan.-Apr. 2018 dois primeiros temas, destacamos o prazer estético que nós, como espectadores/leitores, sentimos ao ter contato com essa tragédia, afetados que somos, tam- bém, pela tradição aristotélica que nos condiciona, ainda, a lidar com as emoções de terror (φόβος) e Maria Cecília de Mi- piedade (ἔλεος ) produzidas pela raiva (ὀργή) e sub- randa Nogueira Coelho, sequente vingança de Medeia, após saber que Jasão ‘Introdução: Medeia(s): entre a filosofia, a rompeu um juramento feito. Quanto aos dois últi- retórica e a literatura’, p. mos temas, lembremos a dificuldade de tratar do 157-166 problema da deliberação racional3 que leva ao infan- ticídio e o consequente problema do exílio. Tais te- mas reverberam, ainda hoje, nas páginas dos jornais e nas discussões sobre direitos humanos e liberda- de, nas esferas da vida pública e privada. Destarte, propusemos aos convidados a investigação do papel das obras ficcionais em nossos valores e experiências cotidianas, bem como a discussão da interface en- tre representações imagéticas e textuais do passado, estimulando um diálogo interdisciplinar entre áre- as afins: filosofia, direito, letras clássicas, literatura 158 comparada, cinema e teatro, entre outros. Neste dossiê apresentamos um conjunto que acreditamos seja representativo do espírito do XIII Seminário Archai, embora, claro, cada artigo possa também ser lido como texto independente, refle- tindo as discussões pontuais sobre esse antigo mito e os textos clássicos que o elaboraram e transmiti- ram, seja quanto a problemas de edição, tradução e de recepção nas artes contemporâneas, princi- palmente literatura, teatro e cinema, seja quanto a problemas morais e políticos que as releituras des- se mito acarretam. A sequência de apresentação dos artigos seguiu a ordem histórica na recepção do mito, de Eurípides ao cinema contemporâneo, embora, no primeiro artigo, intitulado Com Medeia solitária no banco dos réus, de Delfim Leão, já fique nº 22, Jan.-Apr. 2018 evidenciado aquilo que se tornou quase um jargão, mas que merece ênfase, a saber, que nosso olhar so- bre o passado é sempre um caminho de mão du- pla. Como o leitor poderá ver, ao estudar a situação jurídica de Medeia à luz do direito ático, Delfim Maria Cecília de Mi- avança, em parte para elucidar, por comparação, randa Nogueira Coelho, ‘Introdução: Medeia(s): aspectos específicos da cultura grega do século V entre a filosofia, a a.C., não apenas até a Medeia de Sêneca, mas tam- retórica e a literatura’, p. bém até Victor Hugo, levando-nos a refletir sobre o 157-166 isolamento de Esmeralda, no romance Notre-Dame de Paris, publicado em 1831. Em diálogo com o de Delfim, temos o artigo de Stefania Giombini, O direito na Medeia de Eurípides. A autora, pela sua dupla formação em filosofia e em direito, se debru- ça sobre o tema do juramento em dois momentos diferentes do direito grego — propositadamente mesclados na tragédia euripidiana — classificado em uma fase arcaica e em outra clássica, nas quais o simples juramento dá lugar a aspectos mais com- plexos de uma jurisprudência familiar. 159 O terceiro artigo, de Fernando Rodrigues, trans- porta-nos para o universo das Argonáuticas de Apolô- nio de Rodes, já no período helenístico, e muda o foco, se compararmos com os artigos anteriores. O autor destaca não apenas a questão literária sobre a cons- trução da personagem Medeia, representada por as- pectos aparentemente contraditórios — os de virgem ingênua e de feiticeira assassina —, já que são harmo- nizados no poema épico, mas também interpreta, ao discutir o conceito de heroísmo, o protagonismo de Jasão frente aos outros argonautas. A comparação en- tre Medeia e Nausícaa, que o autor faz em seu artigo, e mesmo a referência a outra princesa, Ariadne, são assaz pertinentes para destacar as estratégicas retóri- nº 22, Jan.-Apr. 2018 cas que Apolônio atribui a Jasão, no intento deste de persuadir a princesa colca a ajudar os gregos. Muito a propósito, também, no âmbito deste dossiê, é a reto- mada, por Apolônio, do problema que herda da Me- deia euripidiana, relativo a seu dilema e a defesa de Maria Cecília de Mi- sua reputação, no momento em que ela decide ajudar randa Nogueira Coelho, os gregos em detrimento de sua família. ‘Introdução: Medeia(s): entre a filosofia, a retórica e a literatura’, p. O artigo de Renata Cazarini, intitulado Cuncta 157-166 quatiam: Medeia abala estruturas, é o último a tratar do mito de Medeia no contexto da Antiguidade gre- co-romana. Sua interpretação está apoiada em sua tradução do texto de Sêneca, que foi objeto da dis- sertação de mestrado da autora (e que, esperamos, venha a ser publicada em breve). Renata propõe uma leitura que se instaura por meio de uma per- gunta relativa ao impressionante final aporético da tragédia no âmbito do estoicismo: “Como é que essa mulher repudiada e irada acaba por ser uma espécie de heroína para o dramaturgo estoico?” A tentativa 160 de resposta a tal questão se apoia, em parte, em sua leitura da Epistula 120, do De providentia, e da peça Hercules Furens, para compreender como as relações entre o divino e o humano na Medeia estão ligadas ao tema da consistência de caráter e identidade da protagonista. O artigo, é importante destacar, de- fende, ainda, que Medeia é um excelente exemplo de texto que refuta a afirmação, corrente no séculoxx , de que as peças de Sêneca visavam à “disseminação da moral estoica”.

O artigo de Imaculada Kangussu, intitulado Medeia escrava. Sobre Amada, de Toni Morrison, propõe a lei- tura do romance Amada, com base no mito de Medeia, em particular na versão da tragédia de Eurípides. Lem- brando-nos que o tema não é novo, o que não significa nº 22, Jan.-Apr. 2018 que o texto de Imaculada não traga uma nova aborda- gem, a autora mostra que a aproximação entre as duas narrativas não deixa de ser marcada, paradoxalmente, pelo distanciamento, na medida em que ambas, mes- mo sendo personagens ficcionais, se diferem, já que a Maria Cecília de Mi- história da protagonista do romance, Sethe, é baseada randa Nogueira Coelho, ‘Introdução: Medeia(s): na de Margaret Garner, filicida cuja imagem foi ligada entre a filosofia, a aos movimentos abolicionistas norte-americanos, o retórica e a literatura’, p. que, tanto quanto saibamos, não acontece com Medeia. 157-166 O fato de não termos informações dessa natureza em relação à vida cotidiana na Grécia Antiga e uma pos- sível correlação com sua ficcionalização na literatura — dramática ou épica — não impedem pensarmos que casos reais de infanticídio possam ter sido ficcionaliza- dos. Naturalmente, aqui entramos no problema meto- dológico da análise, do comentário e da interpretação de obras ficcionais de nosso tempo e de outras épocas, das quais nos restaram apenas os textos, sem seu con- texto informativo mais amplo, e isso deve ser conside- rado nos estudos de recepção. Indiretamente, esse é um 161 dos problemas que decorrem do artigo de Imaculada, ao tratar do binômio ficção-realidade. Vale destacar, ainda, que a autora se debruça sobre outra questão de- licada: a das motivações para o infanticídio, trazendo o problema filosófico da deliberação segundo motivações eróticas e as consequências de uma escolha pautada por essa motivação.

O artigo de Tereza V. R. Barbosa poderia ter aber- to este dossiê, na medida em que seu objeto é a expo- sição dos pressupostos e metodologia que nortearam a tradução da tragédia de Eurípides4, obra colocada como ponto de partida para a discussão das figuras de Medeia. No entanto, ainda que sua reflexão seja a que nº 22, Jan.-Apr. 2018 decorra do contato mais próximo e constante com o texto grego, sua abordagem nos traz um conjunto de problemas e respostas estreitamente ligados ao contex- to particular da recepção de Medeia no Brasil.5 O arti- go é fruto da experiência da professora como tradutora Maria Cecília de Mi- de peças gregas que visam, primeiramente, não à sua randa Nogueira Coelho, publicação para serem lidas – uma influência da pers- ‘Introdução: Medeia(s): entre a filosofia, a pectiva aristotélica no ambiente acadêmico, que dá me- retórica e a literatura’, p. nor peso à encenação (Poética, 1450b15-20) e maior à 157-166 leitura dos textos dramáticos –, mas à sua apresentação no palco, no contexto específico da língua portuguesa e da cultura brasileira. Enfatizando o conceito de (des) colonização, a diretora de tradução do grupo colabo- rativo de teatro Trupersa quer “motivar” (e ela conse- gue) o/a leitor/a a (re)ler/ver a tragédia ática “pelo viés da tradução comprometida com a (des)colonização do nosso país”. Como a autora informa, esta versão da Medeia foi encenada na íntegra na abertura do Segun- do Congresso da Sociedade Brasileira de Retórica (em Belo Horizonte, em 2012). Tendo sido eu a presidente 162 da comissão organizadora desse Congresso, sinto-me particularmente feliz por incluir neste dossiê o arti- go de Tereza, em parte por ele mostrar como o tema deste XIII Seminário Archai tem-nos ocupado nos encontros e colaborações acadêmicas que vêm sendo realizados há alguns anos.

O último artigo do dossiê é de Martin Winkler, e muito nos honra finalizarmos esse conjunto com o texto de um dos maiores especialistas em estudos clássicos e cinema e autor de uma vasta obra que se tornou referência para investigadores nessa área. Habitualmente é mais frequente em obras sobre a recepção da cultura clássica no cinema encontrar- mos artigos que tratam de filmes nos quais Medeia é a protagonista: por exemplo, nas obras clássicas nº 22, Jan.-Apr. 2018 dos diretores Pier Paolo Pasolini, Medea; Jules Das- sin, A Dream of Passion; Las von Trier, Medea; Arturo Ripstein, Asi es la Vida, e Tonino de Bernardi, Médée Miracle. No artigo Apollonius and the Golden Flee- ce: a neo-mythological screen legacy, Martin analisa, Maria Cecília de Mi- além de Medea de Pasolini, seis filmes produzidos randa Nogueira Coelho, ‘Introdução: Medeia(s): para o cinema e para a televisão, nos quais é indica- entre a filosofia, a do ou suposto que a causa do encontro entre Jasão e retórica e a literatura’, p. Medeia, o velocino de ouro, era, de fato, o objeto 157-166 querido do herói grego. Em alguns desses filmes, Medeia nem chega a aparecer ou ser citada. Ao tratar do que ele chama de “legado neo-mitológico na tela”, o autor faz uma análise ilustrada por uma cuidado- sa seleção de fotos dos filmes estudados. Certamen- te, a leitura do artigo de Fernando Rodrigues sobre as Argonáuticas contribuirá para uma compreensão maior de um dos itens discutidos por Martin Winkler: a descrição do velocino por Apolônio, na qual, ali- ás, o autor indica um problema importante para os que estudam a produção de imagem por meio dos 163 textos (e os efeitos retóricos de ekphrasis e enargeia), qual seja, a maneira como o cinema, ao levar tais histórias para a tela, deu visibilidade real àquilo que era apenas uma imagem mental.

Em relação ao velocino, esse objeto mágico do dese- jo de tantos, creio ser oportuno recordar, aqui, uma das releituras de Medeia no Brasil, a saber, a peça, jamais encenada, de Agostinho Olavo, Além do rio (Medea). Chama atenção a ênfase dada pela protagonista, uma Medeia negra, aos cabelos louros de seus filhos — um tesouro que ela, no entanto, tem de perder, para punir Jasão e se libertar da “imagem” (dourada) do coloniza- dor. Se é plausível ver nos cabelos dourados dos filhos nº 22, Jan.-Apr. 2018 de Jasão uma metáfora do velocino, a dor do herói pela perda dos meninos adquire um significado mais com- plexo. Por outro lado, os episódios políticos ligados a essa peça e à importância dela para a história do Teatro Experimental do Negro, que foi impedido de apresentá- Maria Cecília de Mi- -la na África6, levam os leitores a se interrogar sobre as randa Nogueira Coelho, possíveis alusões que os conceitos de ouro ou de doura- ‘Introdução: Medeia(s): entre a filosofia, a do podem adquirir, considerando que a ação trágica de retórica e a literatura’, p. Além do Rio se dá no contexto do tráfico de escravos da 157-166 África para o Brasil. Destarte, o legado das narrativas e mitos é muito profícuo e complexo: mesmo um artigo como o de Martin, dedicado à transposição dos textos antigos para a tela, tendo como fio condutor o velocino de ouro, contribui, também, para investigar outras me- tamorfoses operadas em uma cadeia de recepção cujos elos nem sempre são fáceis de estabelecer, o que não deve inibir a investigação, podendo até mesmo torná-la mais instigante.

Apresentado o contexto que deu origem a estes arti- 164 gos e algumas possibilidades de articulação entre eles, só nos resta esperar que os leitores desfrutem do que é apresentado aqui, também como estímulo para outras (re)visões dos textos e filmes que, em conjunto, for- mam o mito de Medeia.

Notas

1 Os quatorze palestrantes foram os seguintes: Frederick Ahl (Classics/Cornell University), Sérgio Alcides Amaral (Faculdade de Letras/Universidade Federal de Minas Gerais), Tereza V. R. Bar- bosa (Faculdade de Letras/Universidade Federal de Minas Gerais), Maria Regina Candido (Faculdade de Letras/Universidade do Es- tado do Rio de Janeiro), Renata Cazarini (Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas/Universidade Federal Fluminense), Carla Milani Damião (Faculdade de Filosofia/Universidade Federal de nº 22, Jan.-Apr. 2018 Goiás), Gabriela Geluda (atriz e cantora lírica), Stefania Giombini (Derecho/Universitat de Girona), Imaculada Kangussu (Instituto de Filosofia/Universidade Federal de Ouro Preto), Delfim Ferreira Leao (Letras/Universidade de Coimbra), Ália Rodrigues (Cátedra UNESCO Archai/Universidade de Brasília), Fernando Rodrigues Maria Cecília de Mi- (Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas/Universidade de randa Nogueira Coelho, São Paulo), Ana Maria Vicentini (Association Encore), Martin M. ‘Introdução: Medeia(s): entre a filosofia, a Winkler (Classics/George Mason University). retórica e a literatura’, p. 2 Foram três os organizadores, pertencentes a diferentes 157-166 instituições: Carolina Assunção e Alves (Comunicação/Cen- tro de Ensino Unificado de Brasília), Gabriele Cornelli (De- partamento de Filosofia/Universidade de Brasília) e eu, Maria Cecília de Miranda N. Coelho (Departamento de Filosofia/ Universidade Federal de Minas Gerais). 3 Chamo atenção para dois artigos importantes na discus- são desse tema, os de John Dillon e de Martha Nussbaum, Me- dea among the Philosophers e Serpents in the Soul: a reading of Seneca´s Medea, respectivamente. Cf. Clauss e Johnston (1997: 211-8; 219-249). 4 Cf. Barbosa (2013). 165 5 Sobre as Medeias brasileiras, permito-me reportar ao meu artigo, Coelho (2013: 359-380), que mostra quão frutí- fera foi a recepção da tragédia de Eurípides entre nós. 6 Sobre o assunto, veja COELHO (2013).

Bibliografia

BARBOSA, T.V.R. (2013). Medeia de Eurípides (in- trodução e tradução). São Paulo, Ateliê Editorial.

CLAUSS, J.J.; JOHNSTON, S. I. (1997). (ed.) Me- dea: Essays on Medea in Myth, Literature, Philosophy, and Art, Princeton, Princeton University Press.

COELHO, M. C. M. N. (2013). Five Brazilian Me- nº 22, Jan.-Apr. 2018 deas. In: Dialogues with the Past, vol. 2, BAKOGIANNI, A. (ed.) London BICS, p. 359-380.

Maria Cecília de Mi- randa Nogueira Coelho, ‘Introdução: Medeia(s): entre a filosofia, a retórica e a literatura’, p. 157-166

166 Delfim F. Leão - Universidade de Coimbra (Portugal) [email protected] - ORCID: 0000-0002-8107-9165

Com Medeia solitária no banco dos réus nº 22, Jan.-Apr. 2018

On trial with lonely Medea

LEÃO, D. F. (2018). Com Medeia solitária no banco dos réus. Archai, n.º 22, Jan.-Apr., p. 167-198 DOI: https://doi.org/10.14195/1984­‑249X_22_7

Resumo: Este estudo aborda a situação jurídica de Medeia à luz do direito ático, tomando por referência a caracteriza- ção desta personagem na tragédia homónima de Eurípides. A sua situação jurídica, o conflito com Creonte e Jasão e a forma como envolve os filhos numa vingança com fortes mo- tivações pessoais são analisados em paralelo com a versão do mesmo tema por Séneca. Por último, faz-se uma breve evocação da situação de isolamento pessoal da jovem Esme- ralda na parte final da obra Notre-Dame de Paris de Victor Hugo, na qual se poderá detetar uma possível influência da caracterização de Medeia. Palavras-chave: Medeia, Eurípides, Séneca, Esmeralda, Victor Hugo. 167 Abstract: This study addresses the legal status of Medea in the light of the Attic law, taking as reference her characterization in the homonymous tragedy of Euripides. Her legal situation, her conflict with Creon and Jason and the way she involves her children in a reprisal with strong personal motivations are ana- lysed in parallel with the version of the same theme by Seneca. Finally, is made a brief evocation of the personal seclusion of the young Esmeralda, at the end of Victor Hugo’s Notre-Dame de Paris, in which may be detected a possible influence of the characterization of Medea. Keywords: Medea, Euripides, Seneca, Esmeralda, Victor Hugo.

A saga dos Argonautas constitui um dos grandes temas épicos que conheceu um notável tratamento na literatura, com especial destaque para o univer- nº 22, Jan.-Apr. 2018 so da tragédia. Com efeito, a demanda do velo de ouro, empreendida por Jasão e seus companheiros, vai criar condições para o encontro com Medeia, que o irá ajudar a cumprir a sua missão, embora à cus- Delfim F. Leão, Com‘ ta de um rasto de sangue e de crimes violentos que Medeia solitária no ban- começaram por afetar o próprio oikos originário da co dos réus’, p. 167-198 princesa da Cólquida. Apesar de os isolar perante o exterior, esses crimes estimulam, no entanto, a liga- ção e a dependência mútua dos amantes. A sua vida de exilados parecia ter conhecido um termo em Co- rinto, cidade em que vão ser acolhidos por Creonte, não obstante o passado violento que traziam. Com o tempo, porém, a estabilidade do casal e dos seus fi- lhos iria enfrentar um novo e determinante embate, quando o soberano de Corinto aceita que a sua filha (Creúsa) se case com Jasão. Esta circunstância, que atingia a relação dos antigos amantes com uma pro- va inusitada, ao quebrar os laços que os uniam, vai deixar Medeia num contexto de grande exposição 168 social e de profundo aviltamento pessoal, situação que lhe vai motivar radicais propósitos de vingança, pressionando até ao limite os mais básicos referentes éticos e familiares. Por isso, na altura de formular um juízo sobre a antiga princesa caída em desgraça, não é fácil chegar a um veredicto isento, pois nem a absolvição simples nem a condenação clara se im- põem de forma imediata. É propósito deste estudo abordar a situação jurídica de Medeia à luz do direi- to ático, tomando portanto por referência a carac- terização da personagem na tragédia homónima de Eurípides, drama que constitui, por certo, a versão de certa forma cristalizada e mais influente do mito. Ainda assim, na ponderação global da situação jurí- dica desta mulher, bem como dos contornos do seu embate com Creonte e Jasão e da forma como ela en- nº 22, Jan.-Apr. 2018 volve os filhos numa vingança com fortíssimas moti- vações pessoais, será também feita uma proposta de confronto com a versão do mesmo tema por Séneca, embora sem a preocupação de ancorar este segundo tratamento nas possíveis relações que possa estabe- Delfim F. Leão, Com‘ lecer com a realidade social e legal da Roma impe- Medeia solitária no ban- co dos réus’, p. 167-198 rial. Será proposta, por último, uma breve leitura em paralelo com a situação de isolamento pessoal da personagem Esmeralda na parte final da obraNotre - -Dame de Paris de Victor Hugo, sendo argumentado que a caracterização desta figura poderá ter tido o influxo de Eurípides, ao menos neste contexto, ainda que o autor o não assuma de forma expressa.

A análise agora proposta retoma as linhas essen- ciais da argumentação apresentada em Leão (2006) e (2011), expandindo no entanto parte das reflexões e acrescentando, em particular, o confronto com a Me- deia senequiana e a Esmeralda de Hugo, que não eram abordadas nos estudos anteriores. 169 1. Enquadramento contextual

Ainda que a ação de Medeia euripidiana remeta para o passado remoto de Corinto e, por conseguinte, para um tempo heróico de personagens de exceção, o certo é que a audiência que assistiu à sua apresen- tação, nas Grandes Dionísias de 431, vivia numa pó- lis específica, que se encontrava organizada segundo uma estrutura social concreta. Por este motivo, o pú- blico ateniense não terá deixado de levar em linha de conta, na apreciação da peça de Eurípides, a situação jurídica de uma mulher exilada, com uma descendên- cia reconhecida pelo marido, que estava a ponto de ser trocada por outra mulher, de estatuto mais eleva- nº 22, Jan.-Apr. 2018 do e que oferecia uma ligação mais proveitosa para Jasão. Além disso, acrescia ainda o facto de Medeia se movimentar com uma determinação varonil numa sociedade claramente dominada por homens e res- petiva mundividência familiar, política e legal. Numa Delfim F. Leão, Com‘ primeira abordagem, a situação jurídica desta mulher Medeia solitária no ban- afigura-se bastante difícil ou mesmo até insustentável: co dos réus’, p. 167-198 a um historial altamente violento e comprometedor, motivado pelo impulso amoroso de seguir Jasão, a quem se encontrava ligada sem um vínculo matri- monial legalmente reconhecido, juntava-se ainda a contingência de ser bárbara, de praticar a feitiçaria e de recorrer ao crime hediondo de matar o irmão e os próprios filhos, quando os laços de sangue e o instinto maternal a deveriam ter levado a protegê-los. A con- jugação destes fatores parece remeter Medeia para as margens da existência em sociedade e torna-a, à parti- da, numa pessoa indesejável em qualquer comunida- de politicamente organizada. Ainda assim, importan- tes personagens do drama euripidiano – como a Ama, 170 o Coro e Egeu – reconhecem-lhe uma certa dose de razão que ajuda a sustentar a justeza dos motivos de agravo relativamente a Jasão, embora não possa jus- tificar inteiramente a sua atuação extrema (Llagüerri Pubill, 2015, p. 66, sublinha a aproximação do termo τυράννων a Medeia, feita pela Ama no v. 119, como forma de censura indireta por ela arrastar os filhos na vingança). Já na versão de Séneca e descontando o tradicional estereótipo da relação próxima entre a do- mina e a nutrix, o isolamento de Medeia acaba sendo bastante mais acentuado, embora ganhe maior relevo a sua capacidade de argumentação.

Será então privilegiada neste trabalho uma aborda- gem jurídica do desenlace trágico a que a atuação de Medeia e Jasão os conduziu, não com a preocupação nº 22, Jan.-Apr. 2018 de absolver ou condenar em definitivo a conduta de qualquer um deles (até porque isso não seria viável), mas antes para tentar reproduzir alguns dos constran- gimentos legais que, a par de fatores éticos, religiosos, culturais e estéticos, terão pesado na apreciação do Delfim F. Leão, Com‘ público que assistiu à estreia da peça. De maneira a fa- Medeia solitária no ban- co dos réus’, p. 167-198 cultar as premissas para esta abordagem comparativa, começarão por ser evocados, no início de cada secção, os traços jurídicos que poderão ter uma pertinência mais direta para analisar a situação de Medeia à luz do que poderiam ser as expectativas de um auditório familiarizado com as práticas legais da Atenas demo- crática do século V a.C.

2. Contrato matrimonial e filiação legítima

Uma das preocupações previstas na lei ateniense dizia respeito a regular a natureza das relações que um homem poderia estabelecer com outras mulheres. Há um passo do Contra Neera (59.122), um discurso 171 falsamente atribuído a Demóstenes que, sendo embora pouco extenso, é particularmente elucidativo no que a esta matéria diz respeito (neste caso, como em todos os outros, as traduções de passos citados são nossas):

τὰς μὲν γὰρ ἑταίρας ἡδονῆς ἕνεκ’ ἔχομεν, τὰς δὲ παλλακὰς τῆς καθ’ ἡμέραν θεραπείας τοῦ σώματος, τὰς δὲ γυναῖκας τοῦ παιδοποιεῖσθαι γνησίως καὶ τῶν ἔνδον φύλακα πιστὴν ἔχειν.

Ora nós temos as prostitutas (hetairai) para o prazer; as concubinas (pallakai) para as necessidades quotidianas do corpo; as esposas (gynaikes) para conceberem filhos nº 22, Jan.-Apr. 2018 legítimos (gnesioi) e para serem fiéis guardiãs do lar.

Esta tipologia de relações implica um escalona- mento de natureza cívica, ética e legal. Na base da Delfim F. Leão, Com‘ Medeia solitária no ban- consideração social estão as hetairai, vistas apenas co dos réus’, p. 167-198 como instrumentos de prazer e, por conseguinte, sem estabelecerem, à partida, outros laços mais es- táveis com os clientes para além dos que decorrem do comércio amoroso. Em seguida, encontram-se as pallakai, que estão a um meio-termo entre as hetairai e as gynaikes: convivem no oikos com a pessoa a quem estão ligadas, mas eventuais filhos que tenham desse relacionamento não seriam considerados legítimos, embora pudessem ser livres, no caso de a pallake go- zar já desse estatuto. Ainda assim, a pallake era vista como parte integrante do oikos, como se depreende do facto de o senhor da casa poder matar, sem reta- liações legais, o adúltero que fosse apanhado em fla- 172 grante com a pallake (cf. Demóstenes, 23.53; sobre este passo, vide Leão, 2001, p. 349-350; Leão & Rho- des, 2015, p. 30-32). No topo da consideração social e jurídica encontravam-se as gynaikes, que estavam formalmente casadas com um cidadão e cujos filhos eram considerados legítimos, com todos os direitos familiares e cívicos que isso implicava.

O reconhecimento oficial de uma relação de matri- mónio obedecia a determinadas diligências processu- ais, que garantiam a validade da ligação. Disso mesmo nos fala um outro texto, Contra Estéfano II (46.18), atribuído também com dúvidas a Demóstenes:

Ἣν ἂν ἐγγυήσῃ ἐπὶ δικαίοις δάμαρτα εἶναι ἢ πατὴρ ἢ nº 22, Jan.-Apr. 2018 ἀδελφὸς ὁμοπάτωρ ἢ πάππος ὁ πρὸς πατρός, ἐκ ταύτης εἶναι παῖδας γνησίους. ἐὰν δὲ μηδεὶς ᾖ τούτων, ἐὰν μὲν ἐπίκληρός τις ᾖ, τὸν κύριον ἔχειν, ἐὰν δὲ μὴ ᾖ, ὅτῳ ἂν ἐπιτρέψῃ, τοῦτον κύριον εἶναι.

Delfim F. Leão, Com‘ Medeia solitária no ban- A [mulher] que o pai ou o irmão filho do mesmo pai ou co dos réus’, p. 167-198 o avô paterno der em casamento (engyan) será esposa de acordo com a legalidade e os filhos que dela nascerem se- rão legítimos (gnesioi). Se nenhum destes existir e se ela for epikleros, que a tome por esposa o kyrios [de direito]; se este não existir, quem a sustentar tornar-se-á seu kyrios.

Este passo ajuda a definir vários aspetos impor- tantes do direito familiar e a elucidar a preocupação de preservar a integridade do oikos, mas o seu cor- reto entendimento depende de certas características do direito ático. Antes de mais, há que ter em conta o estatuto das mulheres (e crianças), que não podiam agir de forma independente. Por este motivo, para 173 os representar legalmente havia sempre a figura de referência do kyrios (‘senhor’ ou ‘responsável’). Até ao casamento, o kyrios era o pai da jovem; quando esta se casava, a função passaria a caber ao marido. Por outro lado, o próprio contrato de casamento obedecia a regras bem definidas. Em primeiro lu- gar, o kyrios estabelecia com o pretendente o acor- do de entrega formal da mulher ao futuro marido. A este ato dava-se a designação de engyesis ou engye (MacDowell, 1978, p. 84 e 87), e deveria, em princí- pio, ser formalizado pelo pai da noiva, mas, caso isso não fosse possível, seria o irmão ou o avô pelo lado do pai a desempenhar tal função. A transferência (ekdosis ‘entrega’) da mulher para o novo kyrios, jun- nº 22, Jan.-Apr. 2018 tamente com o dote que a acompanhava, consolida- va a união oficial gamos( ) do casal e desta forma ga- rantia que os filhos nascidos daquela relação viriam a ser considerados legítimos. Haveria, no entanto, que considerar a hipótese de estes familiares mas- Delfim F. Leão, Com‘ culinos já não serem vivos ou de a mulher não ter Medeia solitária no ban- irmãos, pelo que ela se tornava epikleros, isto é, her- co dos réus’, p. 167-198 deira universal dos bens (Biscardi, 1982, p. 108-112; Ruschenbusch, 1988, p. 15). Neste caso, a solução passaria pelo casamento com o familiar mais pró- ximo, usualmente o tio paterno. Quando esta saída não fosse viável, a mulher ficaria sujeita à vontade do kyrios que o pai lhe destinara para estas circunstân- cias, regra geral por testamento. Este último, que, na prática, funcionava como um tutor, tinha as funções normais do kyrios: zelar pelo património, sustentar a mulher e, em chegando a altura, entregá-la em casa- mento segundo o procedimento normal da engyesis.

Neste ponto, existem já elementos suficientes para 174 se regressar ao estatuto da relação de Medeia e Jasão. Numa aplicação direta do procedimento legal breve- mente evocado no parágrafo anterior, não se poderá dizer que os esponsais celebrados entre os dois fugi- tivos tivessem validade legal, pois Medeia partira de casa em ruptura com o oikos de origem. Disso mesmo se lamenta ela no drama euripidiano (vv. 166-167), ao compreender que foram vãos os sacrifícios que fizera em nome da entrega a Jasão (ideia que aparecia já na fala da Ama, vv. 31-35). Além da oposição do pai, a partida de Medeia arrastara também a morte inglória do irmão às suas mãos; desta forma, ela isolava-se ain- da mais e tornava impossível o regresso ao oikos pa- terno, uma vez que destruíra os laços que a ligavam ao kyrios de origem (o pai e também o irmão, que seria o natural sucessor naquela função). Por esta via, ela nº 22, Jan.-Apr. 2018 acentuava a dependência direta e exclusiva relativa- mente ao oikos de Jasão e, em consequência, reforçava também as responsabilidades deste último, pois se ele lhe retirasse o apoio Medeia não teria para onde ir (na mesma linha se pronuncia Llagüerri Pubill, 2015, p. Delfim F. Leão, Com‘ 53-54, para salientar o papel de confidente da Ama). Medeia solitária no ban- co dos réus’, p. 167-198 Nesta altura, será talvez de argumentar que, aos olhos dos Atenienses do último quartel do séc. v, Medeia não passava de uma pallake estrangeira, de que Jasão se poderia livrar, sem receio de mais obriga- ções éticas ou legais. No entanto, no mundo heroico da peça, Medeia é a esposa legítima de Jasão e, se não pode evocar em seu apoio a formalidade processual da engye, tem do seu lado uma cláusula que deveria ser ainda mais vinculativa: os juramentos celebrados tomando os deuses por testemunhas (pertinentes, a este respeito, as observações de Allan, 2002, 50-51). É a isso mesmo que Medeia se refere, ao apelar a Témis e a Ártemis (vv. 160-163), e a Ama logo confirma 175 o peso destas razões, ao identificar em Témis e Zeus os guardiães de votos e de juramentos (vv. 168-170).

A Medeia de Séneca expõe, perante Creonte (vv. 203-220), a prosperidade da sua família e o futuro promissor que tinha à frente, havendo de tudo isso ab- dicado para seguir Jasão, de quem se julga obviamente esposa. No entanto, ela própria sente que o repudium de que está a ser objeto (vv. 52-53) não é um divórcio normal, pois não lhe resta a possibilidade de voltar à casa paterna (circunstância sublinhada também por Hine, 2000, p. 22 e 120). Por conseguinte, em ambos os dramas se salienta a dedicação e o isolamento de Medeia, frutos de uma das maiores histórias de amor nº 22, Jan.-Apr. 2018 da Antiguidade.

3. Casamentos mistos e direitos de cidadania

Alguns Estados modernos defendem que a cida- Delfim F. Leão, Com‘ dania depende do ‘princípio territorial’ (ius soli), i.e. Medeia solitária no ban- que o facto de uma criança ter nascido no território co dos réus’, p. 167-198 de determinado Estado pode, ipso facto, garantir-lhe o direito de cidadania desse mesmo Estado. Outros, pelo contrário, baseiam-se no ‘princípio pessoal’, que determina que a cidadania é uma herança direta da situação estatutária dos pais da criança (ius sangui- nis). A Atenas clássica, tal como outras póleis gregas, regia-se por este segundo princípio, mas juntava-lhe um fator hereditário ainda mais forte: os cidadãos atenienses acreditavam que os seus ancestrais ti- nham vivido sempre na Ática, que eram autochtho- nes — chegando mesmo ao ponto de sustentarem (ao menos no plano do mito) que esses antepassa- dos tinham literalmente ‘brotado do solo’. Não é, po- 176 rém, objetivo deste estudo discutir em pormenor o desenvolvimento deste conceito entre os Atenienses e a forma como pode ser relacionado com a demo- cracia ateniense e os conceitos de inclusão e de ex- clusão, temas a propósito dos quais já muito se tem refletido (sobre o tema da autoctonia e da cidadania, vide Loraux, 1984, p. 35-73; Rosivach, 1987; Todd, 1995, p. 170-171; Bearzot, 2007; Blok, 2009; sobre a ideia da cidadania e do direito de propriedade res- peitante ao solo ático, vide Leão, 2010 e, para uma análise do Íon de Eurípides à luz dessa problemática, Leão, 2012). De momento, basta salientar o princípio de que a residência em território ático não garantia, por si só, a nenhum estrangeiro — mesmo sendo grego e oriundo de outra pólis — o direito de cida- dania ateniense, nem mesmo quando essa residência nº 22, Jan.-Apr. 2018 se estendia já por várias gerações. Para garantir esse privilégio, a pessoa em questão teria de ser benefici- ária de um tratamento especial e, por conseguinte, de exceção. Ainda assim, a simples autorização de residência constituía, por si só, motivação bastante, a Delfim F. Leão, Com‘ ponto de atrair muitos estrangeiros. Atenas não pro- Medeia solitária no ban- co dos réus’, p. 167-198 curou limitar essa afluência e, também nesse aspeto, se distinguia da política de isolamento praticada por outras cidades, em particular pela rival Esparta.

Por conseguinte, a maioria dos elementos do corpo cívico havia adquirido o estatuto de polites juntamente com a herança própria de um filho legítimo, portanto de alguém que havia nascido de forma regular (e como tal havia sido publicamente reconhecido), no seio de uma família de cidadãos. Até meados do séc. V, perí- odo em que o regime democrático foi cimentando a sua estabilidade, bastaria, em princípio, que o pai fos- se cidadão, para assegurar a transmissão desse direito à respetiva descendência. Desta forma, mesmo que o 177 matrimónio tivesse sido contraído com uma estrangei- ra, mantinha-se a prerrogativa atrás enunciada.

Este princípio viria precisamente a ser alterado por Péricles, numa lei proposta em 451/50, que obrigava a que ambos os progenitores fossem já cidadãos, como condição para que o mesmo estatuto transitasse para a respetiva prole. Afigura-se improvável que a disposi- ção tivesse caráter retroativo, até porque afetaria figu- ras importantes da cena política ateniense. Além disso, subsistem igualmente dúvidas de que a norma tenha sido sempre aplicada sem restrições no período poste- rior, em particular nas últimas fases da Guerra do Pe- loponeso, uma vez que a lei teria sido reativada em fi- nº 22, Jan.-Apr. 2018 nais do séc. V, aplicando-se apenas aos que houvessem nascido em 403/2 ou depois disso. Esta medida vem mencionada brevemente e de forma lacunar no tratado aristotélico Constituição dos Atenienses, em termos que será ainda assim vantajoso recordar (Ath. 26.4): Delfim F. Leão, Com‘ Medeia solitária no ban- co dos réus’, p. 167-198 καὶ τρίτῳ μετὰ τοῦτον ἐπὶ Ἀντιδότου διὰ τὸ πλῆθος τῶν πολιτῶν Περικλέους εἰπόντος ἔγνωσαν μὴ μετέχειν τῆς πόλεως, ὃς ἂν μὴ ἐξ ἀμφοῖν ἀστοῖν ᾖ γεγονώς.

E no terceiro ano a seguir a esta medida, durante o arcon- tado de Antídoto, foi decretado que, devido ao elevado número de cidadãos e sob proposta de Péricles, só teria di- reito de cidadania quem fosse filho de pai e mãe cidadãos.

O autor do tratado justifica a medida como for- ma de controlar o “elevado número de cidadãos” 178 (διὰ τὸ πλῆθος τῶν πολιτῶν), o que talvez seja um indício de que os Atenienses pretenderiam circuns- crever, a um círculo de pessoas menos abrangente, as prerrogativas cívicas facultadas pelo governo demo- crático. Têm, no entanto, sido aventadas várias outras hipóteses explicativas: o desejo de preservar a pureza racial, o receio de que, a manter-se a prática existente, as cidadãs atenienses das melhores famílias poderiam ficar sem partidos dignos da sua posição, ou ainda a preocupação de desencorajar os aristocratas de esta- belecerem alianças com cidadãos de outras póleis ou inclusive o propósito de impedir que os proventos do império fossem distribuídos por demasiadas pessoas (a título de exemplo, vide Stadter, 1989, p. 334-335; Rhodes, 1981, ad loc.; Boegehold, 1994; Papageor- giou, 1997; Blok, 2009). Ainda assim, a Constituição nº 22, Jan.-Apr. 2018 dos Atenienses parece autorizar somente a primeira interpretação. Em todo o caso, o alcance global da lei de Péricles afigura-se claro: limitar o número de ci- dadãos, através de uma aplicação mais restritiva do ius sanguinis. Em consequência, os filhos nascidos de Delfim F. Leão, Com‘ casamentos mistos não teriam acesso aos direitos cí- Medeia solitária no ban- co dos réus’, p. 167-198 vicos, ao menos na sua totalidade, se bem que o cotejo das fontes não permita alcançar, sobre esta matéria, uma posição inequívoca.

Voltando novamente ao caso de Medeia e de Ja- são, as reflexões agora feitas só poderiam tornar-se pertinentes se Jasão fosse contemplado com o direito de cidadania, cenário que não acontecia no momen- to em que chegaram a Corinto, uma vez que am- bos gozavam apenas do estatuto de refugiados. No entanto, havia, na primitiva história constitucional de Atenas, casos de grupos de exilados que haviam sido recompensados com o estatuto de cidadão. De resto, é recorrente na tragédia a imagem de Atenas 179 como cidade capaz de integrar exilados e fugitivos que demandaram, sem sucesso, acolhimento nou- tras paragens. Na Medeia euripidiana, a atuação de Egeu ilustra precisamente esse paradigma, subli- nhando assim novamente – se necessário fosse – que a ação do drama poderia decorrer em póleis como Corinto ou Argos, mas o contexto de representação era ateniense.

Em termos históricos, o primeiro e mais significati- vo exemplo de atribuição de cidadania a estrangeiros decorre da atividade legislativa de Sólon, em passo muito debatido na biografia que Plutarco dedica ao reformador ático (Sol. 24.4): nº 22, Jan.-Apr. 2018

Παρέχει δ’ ἀπορίαν καὶ ὁ τῶν δημοποιήτων νόμος, ὅτι γενέσθαι πολίτας οὐ δίδωσι πλὴν τοῖς φεύγουσιν ἀειφυγίᾳ τὴν ἑαυτῶν ἢ πανεστίοις Ἀθήναζε μετοικιζομένοις ἐπὶ τέχνῃ. τοῦτο δὲ ποιῆσαί φασιν αὐτὸν οὐχ οὕτως Delfim F. Leão, Com‘ ἀπελαύνοντα τοὺς ἄλλους, ὡς κατακαλούμενον Ἀθήναζε Medeia solitária no ban- τούτους ἐπὶ βεβαίῳ τῷ μεθέξειν τῆς πολιτείας, καὶ ἅμα co dos réus’, p. 167-198 πιστοὺς νομίζοντα τοὺς μὲν ἀποβεβληκότας τὴν ἑαυτῶν διὰ τὴν ἀνάγκην, τοὺς δ’ ἀπολελοιπότας διὰ τὴν γνώμην.

Causa perplexidade também a «lei relativa à concessão de cidadania, pois ele não permitia que se tornassem cidadãos senão os que haviam abandonado a pátria de origem em exílio perpétuo ou os que, com todos os da sua casa, se tivessem mudado para Atenas a fim de exer- cerem um mester». Tomou esta medida, segundo se crê, não tanto para afastar as outras pessoas, mas antes para atrair a Atenas estas, com a certeza de virem a partilhar a cidadania, e ainda por considerar dignos de confiança os que, por necessidade, se viram expulsos da sua terra, bem 180 como os que a deixaram de livre vontade. A forma como Plutarco introduz a lei mostra que a sua interpretação constituía motivo de dispu- ta mesmo na antiguidade. De acordo com este passo, a norma de Sólon visava dois grupos de pessoas em particular, por causas diferentes, mas ambas bastante interessantes do ponto de vista legal e político. A pri- meira diz respeito ao apoio a exilados, embora o passo não esclareça se tal situação havia sido motivada por razões políticas ou de outro tipo. A principal nota de surpresa, neste caso, é que o legislador não se tenha contentado com o simples asilo, mas que chegasse ao ponto de outorgar um bem tão precioso como a cida- dania. Talvez o objetivo consistisse em obter um sen- timento de gratidão especial da parte dos beneficia- dos, como, segundo Plutarco, já pensavam os antigos, nº 22, Jan.-Apr. 2018 ou então fosse motivado por razões simplesmente filantrópicas, embora esta hipótese seja menos prová- vel. Quanto ao segundo grupo de contemplados, nele se reconhece o mesmo pragmatismo que figura nou- Delfim F. Leão, Com‘ tras leis de Sólon: o estadista prometia a integração Medeia solitária no ban- plena na pólis ateniense a quem fosse qualificado em co dos réus’, p. 167-198 determinado ofício (techne) e mostrasse intenção de se fixar na Ática juntamente com a família, aplicando assim uma medida que parece traduzir-se num claro estímulo à economia. Em todo o caso, esta informa- ção encontra-se apenas em Plutarco e, a ser verdadei- ra, mantém o caráter de exceção ou, pelo menos, terá caído entretanto em desuso, pois os estrangeiros que, nos sécs. V e IV, vinham para Atenas não obteriam com esta facilidade o estatuto de cidadania. Com efei- to, MacDowell (1978, p. 71) chega mesmo a aventar a hipótese de que Plutarco teria citado erradamente uma lei que permitiria a esses estrangeiros tornar-se metecos e não propriamente cidadãos. De qualquer 181 das formas, isso não altera o facto de os Atenienses terem consciência de que, no seu passado e em deter- minadas circunstâncias de exceção, tinham atribuído a cidadania plena a estrangeiros e a refugiados.

Para o caso de Medeia e de Jasão, as dificuldades se- riam acrescidas, dado que carregavam ambos a culpa de crimes violentos como o homicídio, seja enquanto autor material, num caso, seja enquanto cúmplice, no outro. Se a estes fatores se juntar a natural retração que as póleis gregas tinham em conceder o direito de cidadania a estrangeiros, então somente uma situação muito excecional poderia permitir aos dois exilados subir na escala social. Para o caso de Medeia (que ain- nº 22, Jan.-Apr. 2018 da por cima era bárbara), não se vislumbram na ver- são euripidiana do drama razões para acreditar numa recompensa desse género: bem pelo contrário, o que paira sobre a protagonista é a ameaça confirmada da Delfim F. Leão, Com‘ iminente expulsão de Corinto. Jasão, porém, deixa Medeia solitária no ban- entrever claramente na argumentação que usa com co dos réus’, p. 167-198 Medeia (para disfarçar as reais intenções) que as suas expectativas são bastante diferentes. Como ele mesmo afirma, a melhor forma de dar um salto qualitativo no escalonamento social e de sair da situação de exilado seria casar com a filha de Creonte, soberano de Corin- to. Jasão insiste na ideia de que esta atitude é motiva- da pelo nobre objetivo de proteger Medeia e os filhos que haviam tido juntos (vv. 547-565; 593-597), mas é traído pelas próprias palavras, pois o seu projeto é ter filhos que possam herdar o trono (v. 597: φῦσαι τυράννους παῖδας), certamente na sequência da sua própria subida ao poder, conforme um pouco à frente 182 Medeia irá confirmar perante Egeu (vv. 700-702). Aos olhos dos espetadores atenienses, a união entre a filha do soberano local e um xenos seria certamente vista como uma ligação desigual, que se traduziria na degradação do estatuto não apenas da esposa mas so- bretudo dos filhos, que perderiam as prerrogativas de cidadão. Para obviar esta dificuldade, a solução mais simples seria conceder a cidadania a Jasão, que se tor- naria assim num poietos polites. Na Atenas clássica, cabia à assembleia propor, em decreto, a atribuição direta da cidadania a um estrangeiro. Tal deliberação, para tornar-se efetiva, precisava de ser ratificada por voto secreto, com um quorum mínimo de seis mil ele- mentos, os mesmos exigidos para a votação do ostra- cismo, facto que é bem ilustrativo do caráter defensi- vo da medida. Contudo, no universo mítico em que nº 22, Jan.-Apr. 2018 decorre a peça não seria necessária essa diligência, já que Creonte é um soberano autocrático, nem a abor- dagem dramática obriga a seguir, de forma restrita, aquele mesmo procedimento de referência. Para efei- tos de reconstituição de expectativas do público, basta Delfim F. Leão, Com‘ que o espetador ateniense sentisse que a atribuição da Medeia solitária no ban- co dos réus’, p. 167-198 cidadania a Jasão estivesse entre os naturais desígnios de Creonte.

A confirmar-se este cenário, a presença de Medeia em Corinto iria tornar-se uma fonte de problemas, pelo que a solução do exílio se revelava cómoda no quadro das alianças agora projetadas. Se Medeia permaneces- se, teria de ser na condição de pallake e os filhos que tivera com Jasão ficariam com o estatuto de nothoi rela- tivamente aos que viessem a nascer do novo casamen- to e, por conseguinte, nunca poderiam vir a beneficiar em termos igualitários da nova posição do pai. Portan- to e contrariamente à ideia de falso desprendimento e abnegação que os argumentos de Jasão queriam fazer 183 passar, o acordo que celebrara de forma unilateral com Creonte era apenas vantajoso para si mesmo, deixando os filhos e Medeia, em particular, numa situação extre- mamente exposta: por outras palavras, ele procedeu exatamente ao contrário do que seria de esperar de um kyrios consciente. Neste ponto, a promessa de asilo em Atenas, feita por Egeu, é o único arrimo sólido com que a mulher da Cólquida pode contar e que servirá de base de apoio à sua drástica retaliação, sem juízo de se reco- nhecer que Egeu estaria também a pensar no proveito próprio e que não dominaria a extensão dos propósitos vingativos de Medeia.

Quanto à versão senequiana da peça, não há dúvidas nº 22, Jan.-Apr. 2018 de que Jasão será inteiramente integrado na nova or- dem social, espelhando talvez a muito maior abertura romana do que a grega para incluir plenamente novos elementos. Isso mesmo é deixado claro por Creonte no seu diálogo com Medeia, quando procura ilustrar o seu Delfim F. Leão, Com‘ lado protetor ao escolher para genro um homem exi- Medeia solitária no ban- lado e aterrorizado pela perseguição que lhe é movi- co dos réus’, p. 167-198 da (vv. 255-256: generum exulem legendo et adflictum et graui / terrore pauidum), nomeadamente por Acas- to, rei da Tessália, que exige a sua punição e morte. O argumento de Creonte é que Jasão poderá facilmente provar a sua inocência, se for dissociado e afastado de Medeia (vv. 262-265). Em relação aos filhos de Medeia, Creonte diz estar disposto a acolhê-los como se fosse seu pai (v. 284: Vade: hos paterno ut genitor excipiam sinu), embora o passo seja ambíguo e ele possa estar somente a tentar arranjar forma de se livrar de Medeia, como sugere o termo inicial Vade (‘Vai!’). Medeia, por seu lado, ao aceitar ostensivamente esta oferta, pode es- tar simplesmente a tentar ganhar o tempo que pretende 184 para perpetrar a vingança (nesse sentido se pronuncia Hine, 2000, p. 145). Mas no caso de a oferta de Creonte ser genuína, isso faria com que os filhos dela ficassem numa posição mais cómoda do que os da sua homóni- ma na peça euripidiana. E sendo assim, a decisão de os matar contribui para acentuar o caráter de monstrum da heroína trágica.

4. Divórcio: tipologia e motivações

Na consideração da vida familiar na Grécia anti- ga, há algumas ideias que, sem estarem objetivamente erradas, acabam por falsear o entendimento da rea- lidade pela forma abusiva como vão sendo objeto de generalização. Uma delas tem que ver com a definição do espaço feminino (interior e privado) e masculino nº 22, Jan.-Apr. 2018 (exterior e público), que, levado ao extremo, pressu- põe que as mulheres viviam encerradas em casa, não se afastando sequer para dar assistência a uma amiga, participar em cerimónias fúnebres e rituais religio- sos, ou para necessidades mais simples do quotidiano Delfim F. Leão, Com‘ como trabalhar no campo, ir ao mercado ou à fonte Medeia solitária no ban- co dos réus’, p. 167-198 buscar água, que constituem tarefas também muito conotadas, no mundo mediterrânico, com a ativida- de feminina. É certo que, num oikos abundante em recursos materiais e humanos, o kyrios poderia dar- -se ao luxo de impedir que a mãe, esposa e as filhas saíssem de casa para desempenhar aquele tipo de ser- viços, que seriam relegados para as escravas. No en- tanto, afigura-se improvável que uma família modesta pudesse dispensar de igual forma o trabalho feminino das mulheres ‘sérias’ da casa.

Idêntico risco de generalização simplista se faz, com frequência, relativamente à problemática do divórcio, para assumir que bastaria ao marido tomar a decisão 185 unilateral de se divorciar da esposa, que enviaria de volta ao kyrios de origem (acompanhada do dote que trouxera), para que a dissolução do casamento se ve- rificasse. Em si, tal afirmação não está errada, na -me dida em que o marido tinha de facto esse direito, mas esta forma de considerar a questão comporta alguns riscos, a começar por sugerir que o divórcio seria mui- to frequente, hipótese que, na verdade, as fontes não permitem sustentar, como adiante se verá. Por outro lado, a Grécia não era somente Atenas e basta pen- sar na situação da mulher em Esparta ou em Gortina, para entender que os cenários legais acabavam por comportar importantes diferenças. Uma vez, porém, que é o caso ateniense que agora serve de ponto de nº 22, Jan.-Apr. 2018 referência, é sobre ele que se irão centrar as atenções, pois, como se recordava no início deste estudo, a ação da Medeia passa-se em Corinto, num tempo heroico e pretérito, mas os espetadores que assistiram à repre- sentação da peça de Eurípides viviam em Atenas, no Delfim F. Leão, Com‘ último quartel do séc. v. Medeia solitária no ban- co dos réus’, p. 167-198 Os testemunhos com pertinência direta para a aná- lise do divórcio na Atenas clássica são muito poucos e derivam, essencialmente, dos oradores áticos. Esta circunstância comporta duas importantes consequên- cias: por um lado, o facto de boa parte da informação provir de discursos apresentados perante um coletivo de dikastai reforça a sua autenticidade ou pelo menos verosimilhança, pois ainda que um réu mentisse re- lativamente a pormenores factuais, a argumentação teria de ser credível; por outro lado, não deixa de sur- preender que, se o divórcio era tão frequente como alguns estudiosos pretendem sugerir, as fontes nos facultem apenas nove exemplos, como ilustra a re- 186 colha de Cohn-Haft (1995), cuja argumentação é seguida neste ponto (vide ainda Noreña, 1998; Buis, 2003). Não contando com a obrigação legal de divór- cio, que ocorria quando o marido apanhava a esposa em flagrante adultério (nestes casos, a lei determina- va que a adúltera não poderia frequentar cerimónias de culto públicas e que o marido se teria de divorciar dela, sob pena de ser ele mesmo punido com atimia), o procedimento de divórcio traduzia-se em quatro categorias distintas:

a) Apopempsis (‘repúdio’): o divórcio era iniciado pelo marido, que devolvia a esposa ao oikos de ori- gem (juntamente com o dote), ficando o casamento dissolvido sem mais formalidades. Esta seria a manei- ra mais recorrente de divórcio e cinco dos exemplos nº 22, Jan.-Apr. 2018 referidos pelas fontes parecem inserir-se dentro deste tipo (cf. Plu. Per. 24.8; Is. 2.7-12; Lys. 14.28; D. 30.4; [D.] 59.51 e 63).

b) Apoleipsis (‘deserção’ ‘abandono’): o divórcio Delfim F. Leão, Com‘ partia da iniciativa da mulher, que tinha, no entan- Medeia solitária no ban- to, de proceder a um registo diante do arconte, pro- co dos réus’, p. 167-198 vavelmente o arconte epónimo (Harrison, 1968-1971, p. I.42). Esta obrigação visava, seguramente, dar um caráter oficial e público ao divórcio, conforme se de- preende de Iseu (3.78), dadas as conhecidas limita- ções legais da mulher. Por outro lado, também não é improvável que esta disposição facultasse ao marido a oportunidade para intervir e eventualmente impedir o andamento do processo, como aconteceu à esposa de Alcibíades, que este voltou a trazer à força para casa, depois de interromper as diligências legais por ela encetadas. Neste caso, porém, há que ter em conta que o temperamento provocador e as práticas intimi- dantes de Alcibíades podem ter feito desta tentativa 187 de divórcio um procedimento atípico (cf. [And.] 4.14; Plu. Alc. 8.4; sobre as dificuldades levantadas pela in- terpretação destas fontes, vide Noreña, 1998, p. 9-13).

c) Aphairesis (‘subtração’ ‘despojo’): divórcio inicia- do pelo pai da esposa e, portanto, seu anterior kyrios, que teria o poder de dissolver um casamento que já não aprovava. Isso mesmo se deduz de Demóstenes (41.4), onde um pai decide avançar com o divórcio da filha e casá-la com outra pessoa, depois de se ha- ver desentendido com o primeiro genro. Discute-se, porém, se esse direito do pai seria uma prerrogativa legal efetiva ou simplesmente uma forma de pressão psicológica que exerceria sobre a filha, para que ela nº 22, Jan.-Apr. 2018 mesma iniciasse o divórcio (Cohn-Haft, 1995, p. 5-8). Em todo o caso, afigura-se defensável que o pai pu- desse intervir no casamento da filha quando houves- se desentendimentos familiares graves ou notícia de maus-tratos. Delfim F. Leão, Com‘ Medeia solitária no ban- d) Aphairesis de uma epikleros: esta forma de di- co dos réus’, p. 167-198 vórcio era ativada não pelo pai da esposa, que já tinha falecido, mas pelo parente colateral masculino mais próximo na linha paterna, que estava em condições de reclamar o casamento com a herdeira única dos bens (epikleros), para evitar que a presença masculina do oikos de origem se extinguisse. Se ela fosse casada já, o casamento seria dissolvido, para que a herdeira e os respetivos bens regressassem à família do pai. É esta a situação descrita por Demóstenes (57.41), segundo o qual certo Protómaco, um homem de parcos recur- sos, decidiu aproveitar a oportunidade de subir na vida reclamando o direito a desposar uma rica epikle- ros. O casamento anterior durara já tempo suficiente 188 para terem tido descendência (57.43) e não havia, no relacionamento entre ambos, causas de agravo. Por conseguinte, o motivo que levara ao divórcio fora so- mente a expectativa de ganhos financeiros, pelo que repudiar uma esposa nestas condições poderia não ser bem visto numa perspetiva sociológica, mas era legalmente defensável. Ainda assim, Protómaco teve o cuidado de arranjar, entre os seus amigos, uma pes- soa com quem a antiga esposa se casaria depois de se divorciar dela. O acordo foi conseguido com o bene- plácito do irmão da mulher, Timócrates, que desem- penhava agora as funções de kyrios. Mantinham-se, desta forma, boas relações entre os dois oikoi e, o que era mais importante, evitava-se que a mulher divor- ciada ficasse numa posição difícil. nº 22, Jan.-Apr. 2018 Será agora tempo de voltar à Medeia de Eurípides. Curiosamente, é esta a única tragédia conservada que coloca o problema do divórcio. Noutras peças, as questões da vida familiar decorrentes do relacio- namento entre esposos e da presença de ‘outras’ mu- Delfim F. Leão, Com‘ lheres no oikos são frequentemente abordadas, mas Medeia solitária no ban- não a ponto de resultar daí algum divórcio. No drama co dos réus’, p. 167-198 euripidiano, a decisão do divórcio é tomada unilate- ralmente por Jasão (vv. 17-19) e, pese embora o seu tortuoso esforço para escudar-se por detrás de uma nobre motivação, os objetivos são claros: dar um salto qualitativo no estatuto social e financeiro, através de um matrimónio bastante mais vantajoso. Conforme atrás se referiu, esta intenção ficou desde logo clara para Medeia, que o acusa diretamente (vv. 591-592) de achar que, na velhice, um tálamo bárbaro (βάρβαρον λέχος) não lhe traria vantagem (οὐκ εὔδοξον ἐξέβαινέ σοι). Desta circunstância decorre que, das motiva- ções antes enunciadas para iniciar um processo de divórcio, esta seria a causa mais mesquinha do ponto 189 de vista ético, embora não deixasse de ser legítima. É certo que Jasão diz que se preocupa com Medeia e os filhos e até se oferece para lhes entregar dinheiro e recomendá-los aos amigos (vv. 610-613). Procura ainda responsabilizar Medeia pela inevitabilidade da separação e do exílio (vv. 446-458). Todavia, tudo isto representa um débil arrimo, mais destinado a calar a pesada consciência de Jasão do que a ajudar efetiva- mente os futuros exilados, pois ele está bem ciente de que, a partir do momento em que repudiar Medeia, ela ficará sem ter para onde ir. Por isso é que a garantia de asilo dada por Egeu se revela tão importante, mas é particularmente significativo que essa solução seja garantida por Medeia e não por intermédio do seu nº 22, Jan.-Apr. 2018 kyrios, conforme seria da praxe legal acontecer.

A situação da Medeia senequiana é semelhante no que respeita às causas do divórcio e à injustiça que esse abandono para si representa: a iniciativa parte Delfim F. Leão, Com‘ de Jasão e tem o claro apoio de Creonte, sendo evi- Medeia solitária no ban- dente que o objetivo é afastar Medeia de Corinto e, co dos réus’, p. 167-198 por extensão, das suas vidas. Há, no entanto, algumas diferenças dignas de nota: embora na versão de Eurí- pides Jasão também diga preocupar-se com Medeia e os filhos, com Séneca o amor paternal (vv. 438 e 545: pietas) aos filhos parece mais intenso e mais genuí- no. No entanto, em lugar de esse amor os proteger, acabará por estimular a expressão mais extrema da vingança de Medeia, pois vê na morte dos filhos uma oportunidade para forçar Jasão a ficar com ela — não fisicamente, mas em termos de obsessão do espírito, ao não conseguir livrar-se da lembrança da chacina da prole. Conforme salienta Liebermann (2014, p. 466), “his fondness for his children offers Medea her best 190 opportunity for revenge”. Em consequência, a opção de sacrificar a vida dos filhos acentua igualmente a natureza culposa da Medeia de Séneca, por compara- ção com a versão euripidiana.

5. Considerações finais

A ligação entre Medeia e Jasão é a vários títulos ex- cecional e anómala, mas não terá deixado de colocar, ao público ateniense que assistiu à primeira represen- tação, problemas jurídicos igualmente dignos de nota e que ajudariam a vincar de maneira mais profunda o caráter daquelas personagens. Os dois amantes não eram formalmente casados pelo procedimento usual da engyesis, mas a sua relação assentava, inicialmen- te, numa garantia mais forte, que eram os juramentos nº 22, Jan.-Apr. 2018 celebrados tomando os deuses por testemunhas. Por outro lado, eram ambos exilados em terra estrangeira e, por conseguinte, a situação mais estável que pode- riam esperar, à luz do direito ático, seria a atribuição do estatuto de meteco. No entanto, Jasão negociou Delfim F. Leão, Com‘ secretamente com o soberano de Corinto um salto Medeia solitária no ban- qualitativo na escala social, ao casar com a filha de co dos réus’, p. 167-198 Creonte. Desta forma, poderia ganhar certamente a cidadania plena (enquanto poietos polites), ficando com a porta aberta para chegar ao poder e passá-lo aos filhosgnesioi que viesse a ter da nova relação. Se Medeia permanecesse em Corinto, seria na qualida- de de pallake estrangeira, com a desconsideração que isso implicava para ela e para os filhos (que seriam vistos como nothoi e não poderiam beneficiar do novo estatuto do pai). Daí que a decisão unilateral do divórcio e o consequente exílio de Medeia e dos filhos fosse a mais vantajosa para o novo oikos que se re- organizara à volta de Creonte. No entanto, deixava Medeia numa situação extremamente desprotegida, 191 porquanto era uma xene, com um passado violento e criminoso, sem kyrios, sem oikos e sem polis que lhe servisse de pátria. Este cenário ajuda a entender o isolamento de Medeia e acentua o egoísmo de Ja- são. E se bem que não desculpe a atuação radical da princesa da Cólquida enquanto mãe, faria com que as palavras que dirigiu ao Coro, em que expunha a sua extrema solidão, fizessem todo o sentido para uma plateia ateniense. Elas sintetizam aliás, de for- ma breve e admirável, a essência jurídica do drama de Medeia (vv. 255-258):

ἐγὼ δ’ ἔρημος ἄπολις οὖσ’ ὑβρίζομαι πρὸς ἀνδρός, ἐκ γῆς βαρβάρου λεληισμένη, nº 22, Jan.-Apr. 2018 οὐ μητέρ’, οὐκ ἀδελφόν, οὐχὶ συγγενῆ μεθορμίσασθαι τῆσδ’ ἔχουσα συμφορᾶς.

Delfim F. Leão, Com‘ Mas eu, sozinha, sem pátria (apolis), vejo-me ultrajada Medeia solitária no ban- (hybrizein) co dos réus’, p. 167-198 pelo meu marido, arrancada a uma terra bárbara, sem mãe, sem irmão, sem parente (syngenes) algum que o meu ancoradouro mude para longe desta aflição.

A Medeia senequiana insiste repetidamente neste mesmo isolamento causado pela ambição de Jasão, em termos que estão de resto muito próximos dos que foram usados pela sua homónima euripidiana, como se pode ver pela evocação de um dos exemplos mais expressivos (vv. 116-120):

Occidimus: aures pepulit hymenaeus meas. 192 uix ipsa tantum, uix adhuc credo malum. hoc facere Iason potuit, erepto patre patria atque regno sedibus solam exteris deserere durus?

Estou desfeita: o cântico nupcial bateu nos meus ouvidos. A custo eu própria, a custo posso crer em tamanho mal. Como pôde Jasão fazer-me isto, depois de ser despojada do meu pai, da minha pátria e até do trono do meu reino — aban- donar-me sozinha em tenha estrangeira, homem cruel?

No entanto, ainda que a profunda injustiça do abandono a que Medeia foi votada, depois de tudo ter dado a quem amava, seja comum às duas peças, a nº 22, Jan.-Apr. 2018 personagem euripidiana consegue ser mais humana e atrair maior compreensão mesmo na decisão extrema de matar os filhos, conseguindo assim afirmar-se com a imagem de “extraordinary woman” num universo Delfim F. Leão, Com‘ dominado pela mundividência masculina. A perso- Medeia solitária no ban- nagem de Séneca, porém, mesmo que domine de ma- co dos réus’, p. 167-198 neira ainda mais intensa toda a cena e vergue Creonte e Jasão ao brilhantismo da sua argumentação, acaba apresentando-se mais com a “extraordinary appearan- ce of a monstrum” (citações retiradas de Liebermann, 2014, p. 460 e n. 6). A criação senequiana impressiona e aterroriza pelo seu poder e capacidade de afirmação, mas muito mais dificilmente esta Medeia se poderá desculpar ou redimir.

A encerrar a análise, afigura-se pertinente evocar a imagem da grácil (e intensa) Esmeralda, recriada por Victor Hugo na magistral obra Notre-Dame de Paris — personagem a um tempo tão distante e, por outro, tão 193 involuntariamente próxima da heroína trágica sobre a qual se tem estado a refletir. Hugo refere com bas- tante frequência, ao longo da sua obra, autores gregos e latinos, mas não faculta indicações diretas de que a imagem de Medeia pudesse ter inspirado alguns traços da jovem Esmeralda. No entanto, eles brotam de várias frentes, compondo, com notável consistência, um pa- ralelismo com a situação de Medeia. À jovem Esmeral- da é atribuída, pela vox populi, uma origem estrangeira indefinida (embora ela tenha na verdade ascendência francesa, como será revelado perto do final da obra), patente na forma pejorativa como é designada por “L’Égyptienne”. Sobre ela pende ainda uma grave (em- bora infundada) acusação de práticas de feitiçaria, que nº 22, Jan.-Apr. 2018 a levará a ser condenada à forca, mas da qual é salva in extremis por Quasimodo, que evoca o direito que a velha Catedral detinha de asilar condenados. E mesmo que não seja objetivo deste estudo analisar estas notá- veis criações do romantismo francês, será ainda assim Delfim F. Leão, Com‘ oportuno recordar a forma como Esmeralda descreve o Medeia solitária no ban- co dos réus’, p. 167-198 seu estado de abandono e de isolamento social, no pre- ciso momento em que tinha acabado de ser resgatada à morte pelo corcunda de Notre-Dame:

Au bord de son toit, elle apercevait le haut de mille che- minées qui faisaient monter sous ses yeux les fumées de tous les feux de Paris. Triste spectacle pour la pauvre égyptienne, enfant trouvé, condamnée à mort, malheu- reuse créature, sans patrie, sans famille, sans foyer. (itálico nosso, edição de Stein, 2009, p. 509).

A Medeia mítica valera-se da sua ascendência divina para escapar à punição humana, fugindo no carro do 194 Sol. Esmeralda experimenta uma sensação de abandono flagrantemente semelhante às personagens de Eurípi- des e de Séneca, mas o galante capitão Phoebus, que começou por salvá-la de uma anterior tentativa de rap- to, despertando nela uma intensa paixão (ainda que apenas falsamente correspondida), acabará mais tarde por tornar-se no agente da morte da jovem, no preciso instante em que ela, chamando pelo nome do ansiado salvador, involuntariamente revela o esconderijo aos seus perseguidores (ib. p. 647). E assim, para esta in- consciente ‘Medeia’, em lugar de salvação, o Sol (Phoe- bus ‘Febo’ ‘sol’) será, pelo contrário, a causa primeira da perdição final.

Bibliografia nº 22, Jan.-Apr. 2018

ALLAN, W. (2002). Euripides. Medea. London, Duckworth.

BEARZOT, C. (2007). Autoctonia, rifiuto della me- Delfim F. Leão, Com‘ scolanza, civilizzazione: da Isocrate a Megastene. In: Medeia solitária no ban- GNOLI, T.; MUCCIOLI, F. (eds.), Incontri tra culture co dos réus’, p. 167-198 nell’oriente ellenistico e romano. Milano, Mimesis, p. 7-28.

BISCARDI, A. (1982). Diritto greco antico. Varese. Giuffrè Editore.

BOEGEHOLD, A. L. (1994). Pericles’ citizenship law of 451/0 B.C. In: Boegehold, A. L.; Scafuro, A. C. (eds.). Athenian Identity and Civic Ideology. Balti- more, Johns Hopkins University Press, p. 57-66.

BLOK, J. H. (2009). Gentrifying genealogy: on the genesis of the Athenian autochthony myth. In: DILL, U.; WALDE, C. (hrsg.). Antike Mythen. Medien, Transformationen und Konstruktionen. 195 Berlin, Walter de Gruyter, p. 251-275. https://doi. org/10.1515/9783110217247.4.251

BUIS, E. J. (2003). Matrimonios en crisis y respues- tas legales: el divorcio unilateral o de común acuerdo en el derecho ateniense. Faventia 25, p. 9-29.

COHN-HAFT, L. (1995). Divorce in classical Athens. JHS 115, p.1-14. https://doi.org/10.2307/631640

HARRISON, A. R. W. (1968-1971). The Law of Athens. II vols. Oxford, University Press.

HINE, H. M. (2000), Seneca. Medea. Warminster, Aris & Phillips. nº 22, Jan.-Apr. 2018 LEÃO, D. F. (2001). Sólon. Ética e Política. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.

LEÃO, D. F. (2006). Os desencantos de Medeia: uma

Delfim F. Leão, Com‘ xene privada de kyrios, de oikos e de polis. In: SUÁREZ Medeia solitária no ban- DE LA TORRE, E.; FIALHO, M. C. (eds.). Bajo el signo co dos réus’, p. 167-198 de Medea / Sob o signo de Medeia. Coimbra e Vallado- lid, Imprensa da Universidade de Coimbra, p. 67-82. https://doi.org/10.14195/978-989-26-0472-5_3

LEÃO, D. F. (2010). Cidadania, autoctonia e posse de terra na Atenas democrática. Cadmo 20, p. 445- 464. https://doi.org/10.14195/0871-9527_20_24

LEÃO, D. F. (2011). In defense of Medea: a legal ap- proach to Euripides. Epetiris 43, p. 9-26.

LEÃO, D. F. (2012). The myth of autochthony, Athenian citizenship and the right of enktesis: a legal approach to Euripides’ Ion. In: LEGRAS, B.; THÜR, 196 G. (hrsg.). Symposion 2011. Vorträge zur griechischen und hellenistischen Rechtsgeschichte. Wien, Öster- reichische Akademie der Wissenschaften, p. 135-152.

LEÃO, D. F.: RHODES, P. J. (2015). The Laws of So- lon. A New Edition with Introduction, Translation and Commentary. London, I.B.Tauris.

LIEBERMANN, W.-L. (2014). Medea. In: DAM- SCHEN, G.; HEIL, A. (eds.). Brill’s Companion to Sen- eca. Leiden, Brill, p. 459-474.

LLAGÜERRI PUBILL, N. (2015). Nodrizas de tra- gedia. Mujeres al servicio del teatro griego. Valencia. JPM Ediciones.

LORAUX, N. (1984), Les enfants d’Athéna. Idées nº 22, Jan.-Apr. 2018 athéniennes sur la citoyenneté et la division des sexes. Paris, La Découverte.

MACDOWELL, D. M. (1978). The Law in Classical Delfim F. Leão, Com‘ Athens. London, Thames and Hudson. Medeia solitária no ban- co dos réus’, p. 167-198 NOREÑA, C. F. (1998). Divorce in classical Athe- nian society: law, practice and power. Past Imperfect 7, p. 3-34.

PAPAGEORGIOU, A. P. (1997). The Citizenship Law of Pericles, 451/0 B.C. Vancouver, Dissert.

RHODES, P. J. (1981). A Commentary on the Aris- totelian Athenaion Politeia. Oxford, University Press. reimpr. com addenda 1993.

ROSIVACH, V. J. (1987). Autochthony and the Athenians. CQ 37, p. 294-306. https://doi.org/10.1017/ S0009838800030512 197 RUSCHENBUSCH, E. (1988). Bemerkungen zum Erbtochterrecht in den solonischen Geset- zen. In: THÜR, G.; NENCI, G. (hrsg.). Symposion 1988. Vorträge zur griechischen und hellenistischen Rechtsgeschichte. Köln. Österreichische Akademie der Wissenschaften, p.15-20.

STADTER, Ph. A. (1989). A Commentary on Plu- tarch’s Pericles. Chapel Hill, North Carolina Press.

STEIN, M. (2009), Hugo. Notre-Dame de Paris. Paris, Flammarion.

TODD, S. C. (1995). The Shape of Athenian Law. Oxford, University Press. nº 22, Jan.-Apr. 2018 Submetido em Junho e aceite para publicação em Agosto, 2016

Delfim F. Leão, Com‘ Medeia solitária no ban- co dos réus’, p. 167-198

198 Stefania Giombini -Universitat de Girona (Espanha) [email protected] - ORCID: 0000-0002-7398-3023

The law in Euripides’ Medea1

GIOMBINI, S. (2018). The law in Euripides’ Medea. Archai, n.º 22, Jan.- Apr., p. 199-228 nº 22, Jan.-Apr. 2018 DOI: https://doi.org/10.14195/1984­‑249X_22_8

Abstract: This paper investigates appeals to law in Euripides’ Medea, dramatic elements which seem to point to two distinct aspects in the development of Greek Law. The text seems to ap- peal to: a) archaic law when the oath appears adequate (or suf- ficient) to establish wedlock, and b) classical law with respect to other aspects of familial jurisprudence. I argue that Euripides has intentionally contrasted these legal perspectives as part of a larger contrasting narrative. Euripides begins by introducing the essentials features of the myth of Medea in terms of its ar- chaic context. In the latter half, he then in turn contrasts this narrative with contemporary views, and thus offers a critical reflection upon his own culture and society. These contrasting narratives are further supported by highlightening an impor- tant transition in the text, which focuses on Themis and Dike and the importance of laws. Keywords: Euripides, Medea, Ancient Greek Law, Themis, Dike, Oath, Dowry, Divorce, Exile, Gorgias.

199 1.Tragedies and Law: the case of Medea

Medea is such a complex character that her heuris- tic power seems to be an inexhaustible font, inspiring ancient and modern commentators to this very day.

The aim of this paper is to investigate Euripides’ Medea. This play has already received extensive treat- ment in relation to its philological, literary, psycho- logical, cultural, political, and of course ethical as- pects. From a less treated point of view, I will discuss the elements of law that can be traced: I would like to show how Euripides’ Medea may be a significant source for the study of ancient Greek law (See Leão,

nº 22, Jan.-Apr. 2018 2011; Hall, s.d.). Tragedies are in most cases fertile grounds for analyzing the application of law, since they regularly involve all the important stages of life which the law Stefania Giombini, ‘The generally applies to, albeit in the context of rather law in Euripides’ Me- tragic scenarios: cases of murder, dispossession, theft, dea’, p. 199-228 betrayal, alterations in political power, and everything else that can relate to the range of law may be involved. There is a trend in the past two decades that suggests that it is wrong to think of the tragedy as a means used by the poets to talk about their present (see Al- len, 2005; but also Pepe, 2007): in this sense, the poets would have not written tragedies to talk about their contemporary culture; on the contrary, they would have written purely poetic works. However, tragedic authors undoubtedly wrote from their contemporary viewpoints and their works are undeniably connected with political and social elements and references. In the particular case of Medea, the play may certainly be connected with or be inspired by its present; for 200 instance when at vv. 120 ss. Euripides criticizes the power abuses with a typical 5th century B.C. lexicon.2

De facto, the tragic context bears remarkable re- semblance with the judicial one and is connected with it: in fact, both take place as a clash of unsolvable and opposite positions. As the scholar Allen points out well, Euripides adopts the style and instruments of contemporary court procedures (Allen, 2005, p. 375) and the legal discussion seems to be a premise for Euripides’ same works (Allen 2005, p. 375 n. 3). This is most readily demonstrated in Hecuba, the Trojan Women, Heracles and Heracleidae. Like tragic charac- ters, the subjects involved in a court controversy de- fend antithetical positions on the same topics. In the nº 22, Jan.-Apr. 2018 case of the Medea, an emblematic dialogue, evidently antilogic, is the one between Medea and Jason from v. 446. For all this, I would say that the Sophistry-mold- ed antilogy, made for the court, can also be found in the tragic scheme. Tragedy and judicial context share Stefania Giombini, ‘The the same antilogic form. Being both antilogies, there law in Euripides’ Me- cannot be a synthesis of the two positions: what in the dea’, p. 199-228 law stands as a structural element of judgment, in the tragedy becomes the site of the conflict and the tragic.

In addition, focusing on Medea, the lexicon leads us to ponder over the law because terminology for laws, justice, and murder is well-represented. I will just give some examples to show some variations, beginning with “killing/murder” words. The term φόνος, for ex- ample, is present in v. 852 (in the third stasimon when the chorus tries to persuade Medea not to kill the chil- dren) and the verb κτείνω appears at least fourteen times (e.g. v. 1411); ἀποκτείνω appears three times (e.g. v. 486); κατακτείνω, at least twice (e.g. v. 505). 201 The written law, νόμος, appears at least three times, and also in another forms and contexts: in effect, there is an idea of acting «against the law» – ἄνομος in v. 1000 – when in the fourth stasimon the chorus argues that the abandonment of Jason is outside the margins the law; there is the variant «παράνομος» – “against any norm,” which occurs when the Messenger declares Me- dea has killed/murdered Glauce and Creon at v. 1121.

As for the lexicon related to justice, the term δίκη appears seven times. Forms of it are used, e.g., at v. 1390, where Jason recalls the persecution of the Er- inyes for justice; also in v. 219 and in v. 1316 when Jason says to Medea that she has to pay what she de- nº 22, Jan.-Apr. 2018 serves; ἔνδικος appears twice, once at v. 1232, when the chorus deems the action of the divinity that in- flicts so much suffering to Jason to be right.

Given the pervasive usage of such terminology in Stefania Giombini, ‘The the noted contexts, the work is clearly deeply con- law in Euripides’ Me- dea’, p. 199-228 cerned with portraying the sense of injustice connect- ed to Medea's unease in relation to Jason’s deceptive betrayal, as well as the revenge motivating her own extreme actions. More broadly, this further demon- strates that Euripides is concerned with incorporated themes of law and justice in his work, and that there are grounds to investigate in this direction.

These are the general ways in which Euripidean tragedy tends to parallel legal aspects of Greek cul- ture. But, what can Medea, in particular, aid us in un- derstanding with respect to ancient law?

Medea is a mythological character rooted in the deep 202 past of Greek culture; a past in which, with respect to the juridical plane, the laws are still part of the oral dimen- sion. The transition from the oral, essentially customary law, to the written one was very investigated and some scholars attempted to produce a scan of this transition.3 Hence, the issue will be to figure out what belongs to the archaic dimension and what to the classical one, that is, if the law of which, intentionally or not, Euripides tells us is part of the archaic phase or the classical one.

On the basis of these considerations, we can al- ready identify two key points:

i. Euripides’ Medea may insert in a context of un- written law and the same way in one of written law; nº 22, Jan.-Apr. 2018 ii. the Medea, though not intended to be a work of critical reflection upon its political or juridical pre- sent, was yet nevertheless most likely inspired by its social and political contemporaneity. Stefania Giombini, ‘The 2. Themis and Dike law in Euripides’ Me- dea’, p. 199-228 At v. 160, Medea notably appeals to both Themis and Artemis, speaking of the marriage oaths which bound her to Jason 4:

ὦ μεγάλα Θέμι καὶ πότνι Ἄρτεμι, λεύσσεθ ἃ πάσχω, μεγάλοις ὅρκοις ἐνδησαμένα τὸν κατάρατον πόσιν;

O mighty Themis and my lady Artemis, do you see what I suffer, I who have bound my accursed husband with mighty oaths? (Kovacs, 1994). 203 It is fitting for Medea to appeal to Themis. Themis is the alter-ego of justice, as is clear from etymologi- cal analysis. Themis is derived from the verb τίθημι, which means “what is set” or “what is in line with the order of the world.” By extension, ‘themis’ then refers to a sort of cosmic justice found in nature itself; it is the way things should properly be. So, Themis as goddess is the personification of the natural justice that arises from the cosmic order. In addition, as emphasized by Biscardi, the name of the deity and the word θέμιστες, that identifies the magical-religious formulas used to express the gods’ will, have the same root. Here, then, the reference to Themis is the recall of a total, natural order of justice. Themis is the center of Medea's invoca- nº 22, Jan.-Apr. 2018 tion for the injustice caused by Jason's behavior. Arte- mis is then invoked as the goddess who is linked to the female. So Themis and Artemis are referred to togeth- er for the discovery of justice for a woman, that is the same Medea. Why doesn’t Medea appeal to Dike? In Stefania Giombini, ‘The mythology, Dike is the daughter of Themis and Zeus, law in Euripides’ Me- and is thus a more particular and narrow identity con- dea’, p. 199-228 cerning rightness and justice. Whereas Themis is the original sense of cosmic justice found in nature, Dike is the particular sense of justice realized in mortal court proceedings. But Medea appeals to Themis, the law of nature: this is connected to the force of nature and, in that sense, to the latter’s own magical power. This recall is in line with the nature of Medea, woman-sorceress in whom the natural balance is taken away when the man she loves leaves her. So there is an archaism in this recall to Themis that circumscribes the figure of Medea and that evokes before us a very specific area of the law, that of an archaic sense of justice that aspires to be in line with the cosmic order: evidently, this is a choice by 204 Euripides. We should note that in v. 764 Medea refers to Dike after meeting Aegeus, when she explains what her intent is. This is interesting because Dike, as the re- alization of justice is called just when Medea decided the fate of her loved ones, that is, when she sees justice becoming true: when she decides the penalty, like after a trial, even if a personal one.

3. The Oath

5 The second element recalled in v. 160 is the oath. The oath is the covenant that has made the marriage bond between Medea and Jason. The oath represented in Greek culture the means through which relationships among people became increasingly concrete or the sta- tus of a single person was consolidated. It is believed nº 22, Jan.-Apr. 2018 that the oath represented a way of governing the rela- tions, with the aim of avoiding private revenge (see Zuc- cotti, 2000, p. 9-19). Chronologically, this orally-based custom must belong to the archaic era (6th century B.C. and before), prior to the establishment of a robust writ- Stefania Giombini, ‘The ten legal system. It was not until the late VII-V centu- law in Euripides’ Me- ries that the initial legal instruments began to be settled dea’, p. 199-228 upon – i.e. from the Laws of Draco of 621 B.C. to the reform of the Aeropagus of 462/461 B.C. by Ephialtes. TheLaws of Draco seek to regulate the relations after the homicides to replace the revenge: this step will be a slow process of advancement of the judicial system with a progressive disappearance of the revenge, and therefore, of the need of the oath (Giordano, 2014, p. 464) which was, in 5th century B.C., practically no longer in force. By the 5th century B.C., in fact, the relevance and value of oath-taking, along with its practice, had largely dis- appeared. The oral agreements of oaths had been effec- tively replaced by written transcription of agreements, 6 filed in court, and effectively enforced by tribunals. 205 Based upon Medea’s appeal to her oaths with Jason, she is still operating under an archaic context. Oaths are valid, sacred, and cannot be questioned or undone. On the one hand, the oath is a covenant between hu- mans (in which the roles are not specified), and thus to break them is to break one’s Word, and damage one’s reputation. On the other hand, and perhaps more im- portantly, oaths are secured in the name of the gods: thus, the oath is elevated from being a human fact and becomes a religious fact, a covenant between mortal and divine. Any transgression goes against the will of the gods, and it follows that the transgressor is thereby 7 impious and subject to divine retribution. Given that all should fear angering the gods, all should be careful nº 22, Jan.-Apr. 2018 to follow and uphold their oaths, making sure their conduct does not violate them. So, oaths cannot be broken without harsh penalti, unless both parties that initially made an oath explicitly agree to modify or dissolve it. Given this, it is entirely understandable Stefania Giombini, ‘The what Medea expects from Jason: that he complies his law in Euripides’ Me- promise of love. dea’, p. 199-228 If the marriage between Medea and Jason is solem- nized via oaths between themselves, then their mar- riage arrangement would be highly irregular: there were not the ceremony8 and the practices that are nec- essary to sanction the marriage bond, neither in the archaic modality nor in classical one.

In ancient times the wedding took place through either abduction9 or a purchase (ἔεδνα, a practice of the Homeric era10; that will be examined more closely later) by the bridegroom. These are not the cases of Medea and Jason: in fact, the abduction is 206 actually recalled by Euripides at vv. 255-256, but this is the only passage where Medea seems willing to deresponsibilize herself and be seen as a prey. Given that Euripides only briefly mentions the abduction in these verses, and otherwise portrays Medea as a responsable agent,11 it would seem that, other than referencing the version of the Medea myth provided by Herodotus (I 2, 2; see Cerbo-Di Benedetto, 2012, p. 29 n. 65), this reference is to be understood as part of an accusation game, which will be developed further below.

Otherwise the marriage could be celebrated ac- cording to the classical period practice (see Oakley – Sinos, 1993) which replaced the previous archaic ways of marriage. A classical marriage began with nº 22, Jan.-Apr. 2018 the promise, ἐγγύη, between the κύριος of the wom- an and her future husband: this would have included a proper liturgy, along with and definite gestures. As the verb ἐγγυάω literally means to «put in the palm of the hand» (γυή), it is likely that the practice ini- Stefania Giombini, ‘The tially included the bride›s father placed the hand of law in Euripides’ Me- his daughter in the hand of his future son-in-law. The dea’, p. 199-228 fulfillment of the covenant should follow the solemn practice of this agreement. There were long feasts and, most of all, the couple was bound to go to co- habit. Again, Medea’s description differs greatly from the classical traditions. Medea makes reference to a private oath, a μεγάλος ὅρκος, in which she, on her own, tied herself to Jason. Such private oaths did not serve to sanction marriage in either archaic nor clas- sical times. Thus, from a legal perspective, it would seem correct to say that the relationship between Jason and Medea does not properly count as a mar- riage. It was a pact, archaically inviolable and sacred to Medea (and the gods), and likely remains binding 207 upon Jason: however, it would not have served as a marriage contract. We do not know the content of the oath between Medea and Jason (or if it was one-way, Me- dea's promise to Jason as vv. 162-163 might suggest) but we can imagine that if the agreement was bilateral then it would have included agreements to remain loyal, share and build a life together, as well as the possibility to have and take care of any children. At least because in vv. 340- 345 Medea, explaining to Creon the difficulties of an im- mediate exile, says that the father of her children, Jason, does not bother to provide for them: so, this must have been allegedly part of their relationship and their pact.

As the drama unfolds, Medea refers back to her oaths nº 22, Jan.-Apr. 2018 with Jason at vv. 440 and 492. The importance of oaths to Medea is empahsized with the oath of Aegeus (vv. 735-749), which Medea fervently insists upon.12 The oath of Aegeus, strongly required by Medea, goes from v. 735, and especially from v. 749. The oath of Aegeus Stefania Giombini, ‘The law in Euripides’ Me- is short and easy: no more guarantees are required than dea’, p. 199-228 the spoken words and the gods invoked directly in the same oath. Medea dictates the words of the oath, and Ae- geus repeats them: so, she is completely satisfied with the oath, that is the main guarantee for her. Jason has con- travened the oath (so that Medea says that “the magical power of an oath has gone” in v. 440 and v. 492, and tells of the “charm of an oath that vanishes”), but here Medea clearly holds Aegeus to not betray. At least because, in turn, Aegeus has had the commitment of Medea to solve his problem of not having children.

4. The Status of Women

Leaving now the issue of the oath aside, let’s go back 208 to Medea’s speech, the beautiful and long peroration that starts at v. 214, in which she wants to ponder the status of women paying a special attention to the dif- ficulties women face in their relationships with men and with society. Among other things, and this must be highlighted, Medea’s speech seems clearly addressed to the Greek women while she is barbarian. Her role as a barbarian is relevant for the whole length of the work, but it becomes very touching in vv. 536-538 when Jason highlights that he brought Medea among the Greeks who are superior and because of them she has learned about justice (δίκη) and laws (νόμοι).

Consider closely the text from v. 232-237:

nº 22, Jan.-Apr. 2018 ἃς πρῶτα μὲν δεῖ χρημάτων ὑπερβολῇ πόσιν πρίασθαι, δεσπότην τε σώματος λαβεῖν [...]

Stefania Giombini, ‘The v. 236 law in Euripides’ Me- dea’, p. 199-228 οὐ γὰρ εὐκλεεῖς ἀπαλλαγαὶ γυναιξὶν οὐδ οἷόν τ’ ἀνήνασθαι πόσιν.

First at an exorbitant price we must buy a husband and master of our bodies […]

For divorce is discreditable for women and it is not pos- sible to refuse wedlock. (Kovacs, 1994).

In the speech, Medea refers to the suffering of women: a woman must pay to get married because 209 her family is obliged to bring a dowry to her future husband, so her family must provide the dowry to the groom of the daughter. Furthermore, even after pur- chasing a husband, a woman cannot repudiate him, while the man can divorce his wife at will. In such a case, the woman ends up dishonored by a divorce, un- wanted by her husband.

I examine the elements of Medea’s claims in turn below, beginning with the practice of providing a dowry. Euripides does not use the proper term for dowry, i.e. προίξ, but he instead uses a phrase that immediately recalls it (vv. 232-233). The dowry is seen as the money needed to buy a man by a wom- nº 22, Jan.-Apr. 2018 an. Medea obviously expresses the point of view of the women, and certainly not the one of the society which sees the dowry as a quantity of goods accom- panying the woman at the time of marriage and that will then be used to establish the following rights on Stefania Giombini, ‘The the family property. The προίξ was necessary to en- law in Euripides’ Me- sure marriage realization (see e.g. Paoli, 1953) and in dea’, p. 199-228 fact here Medea characterizes it as the first necessary condition to the marriage bond: she says that «we [the women] must (buy)»; thus, she highlights its ne- cessity. The Greek word is just δεῖ that means «it is necessary», «it must.» Of course, this peculiar case cannot be decisive in determining whether the dowry was really binding for the construction of marriage, still it is a record that we can take into account. The dowry should naturally be accompanied by ἐγγύη, that is the marriage pact between the father (or who was in his stead) of the bride and the groom. The dowry had not a stable consistency, neither a precise nature. Usually it was made up of personal property 210 such as money, slaves and the trousseau (as a personal possession of the woman), that should stay substan- tially intact during the woman's growth and that were needed for her sustenance once married. The husband could directly keep his wife›s dowry as long as he guaranteed her an interest rate of the 18% of its capital (Pomeroy, 1978, p. 66). The dowry could also be real estate, though it rarely was, and in some peculiar situations, the dowry could be not paid. In the latter case the husband provided a “bogus” con- tract in which he attested a conveyance that did not take place in reality. The dowry corresponded to a total agreed value; so in the case of dissolution, the husband was supposed not to return the goods but the corresponding value as agreed. nº 22, Jan.-Apr. 2018 Yet here, in Medea’s speech, we have a very particu- lar interpretation of the dowry. Medea speaks of mar- riage in reference to dowry (paid by the woman to the man) but in archaic terms. Indeed, in the archaic era, the marriage was contracted through the purchase of Stefania Giombini, ‘The the woman. Here, Medea just uses πρίαμαι, the verb law in Euripides’ Me- “to buy”, therefore she conceptually recalls the “pur- dea’, p. 199-228 chase” in the strict sense. The “buying and selling” was the practice through which an archaic wedding was taken out (as in Arist. Pol. II 1268 b 39): the marriage was stipulated by the man who bought the woman; she, therefore, was purchased by the future husband. In this step of Medea, we find, therefore, an archaic vocabulary that refers to the act of purchase of a wom- an by a man: here, however, the sense is turned up- side down. In fact, it is the woman who acquires the right to have a husband through the dowry, according to the desperate Medea. In the arcaic time, the most important part of marriage, from the economic point of view, was covered by the original family of the 211 groom (in fact, he is buying), later it is the bride’s one to provide a dowry (with any necessary exceptions, of course). An archaic vocabulary to criticize a contem- porary practice: Euripides seems to propose this with a clever reversal of the parts.

Let’s now treat the possibility of disavowel and divorce (see Leão, 2011 and Cox, 2011). Even here Euripides seems to refer to the classical era custom. The man could disavow his wife. Repudiation, ἀπόπεμψις, took place without any justification: the man could disown his wife whenever he wanted; he only needed to pay her dowry back. The wife on the other hand could not divorce her husband but as a choice she could leave the household, nº 22, Jan.-Apr. 2018 ἀπόλειψις. And there is a clear note: in the repudiation by the husband, the wife is sent back to her family; in the case of abandonment of the household, the wife goes back to her family. This means that, in consequence of each choice, the outcome does not change. She always Stefania Giombini, ‘The takes on the shame of returning to its original οἶκος, law in Euripides’ Me- while her husband stays in their house or wherever he dea’, p. 199-228 wants, according to his own free choice.

It could be the father (or who was in his stead) of the woman to file for the divorce, through ἀφαίρεσις: so, a third element is inserted in the pro- cess of separation. This, though, only applied if the woman had not already had children by her hus- band; then, in this case, the new family could not be questioned by her father. We also know that, even if the separation was requested by the woman, the support of her family was necessary: the father or who was in his stead (a brother for example) had to follow her to court in order to file for the divorce. 212 In fact, in the practice of ἀπόλειψις she needed the intercession of her father or some other male citizen to bring the case before the Archon (Arist. Ath Pol. 59: probably one of the Thesmothétai). The Archon recorded the separation (γράμμα ἀπολέιψεος). The procedure of transcription was meant to secure the woman, who, supported by her family and for specific reasons, needed to get out of the marriage without dishonor. (see Is. 3, 78 and Dem. 30, 17). She would have surely incurred dishonor if she, on her own, tried to get a divorce: she could not access the legal transcription of the separation act, be- ing thus linked forever to her husband who would, eventually, reject her later. In the Medea, we pos- sibly have a mention of a wife-wanted divorce that could put the blame on her, but I think that it must nº 22, Jan.-Apr. 2018 be conceived in the context of the classical era: Medea’s reflection is no exception, but it falls with- in the rules of classical divorce: a woman could not divorce for her ‘only’ will (v. 236). Stefania Giombini, ‘The It is likely this interest in the details of dowry and law in Euripides’ Me- divorce does not have much to do with the mythi- dea’, p. 199-228 cal character of Medea. After all, if Medea and Jason united through an oath, they did not follow the tra- ditional practice of marriage: so why should the nor- mal practices of marriage dissolution be relevant, if there was no marriage? Rather, Euripides is offering proposes an insightful and didactic take on classi- cal legislation – a reflextion that combines with the experience of its audience as the work treats what it is happening in its time. Hence, I ascribe these ele- ments of law as a detail proposed by Euripides about the Attic classical law, on which he testifies. Euripi- des reflects on himself, he seizes the opportunity of letting the same Medea speak, but it is not about 213 herself, about her story that Medea actually talks. So that the speech of Medea follows with what we might call the reflections of a woman with an almost uni- versal character who complains that a man tired of the house life goes out and has fun, recalls the pain of giving birth, envies men’s life in the war. Here we can find the society of the classical period and con- sequently its law.

5. The Exile

At vv. 252-8, Medea explains the particular diffi- culties she will face as a foreigner, barbarian, if Jason abandons her. nº 22, Jan.-Apr. 2018

ἀλλ οὐ γὰρ αὑτὸς πρὸς σὲ κἄμ ἥκει λόγος: σοὶ μὲν πόλις θ ἥδ ἐστὶ καὶ πατρὸς δόμοι βίου τ ὄνησις καὶ φίλων συνουσία, ἐγὼ δ ἔρημος ἄπολις οὖσ ὑβρίζομαι Stefania Giombini, ‘The law in Euripides’ Me- πρὸς ἀνδρός, ἐκ γῆς βαρβάρου λελῃσμένη, dea’, p. 199-228 οὐ μητέρ, οὐκ ἀδελφόν, οὐχὶ συγγενῆ μεθορμίσασθαι τῆσδ ἔχουσα συμφορᾶς.

But your story and mine are not the same: you have a city and a father’s house, the enjoyment of life and the company of friends, while I, without relatives or city, am suffering outrage from my husband. I was carried off as booty from a foreign land and have no mother, no brother, no kinsman to shelter me from this calamity. (Kovacs, 1994).

Here Medea addresses the women’s chorus; a cho- 214 rus composed of women like her, but from Corinth, and thus Greeks who possess certain privileges and safeguards she lacks. In emphasizing her foreign background, Euripides is emphasizing Medea’s trag- ic loneliness (see Leão, 2011). These points, in addi- tion to the fact that Medea and Jason have children together, may be Euripides’ way of referencing how laws for Athenian citizenship developed, and their effects upon mixed-marriages and their progeny.

A further interesting analysis by Tarditi (1957) shows that Euripides might have thought about Me- dea’s tragedy in relation with the facts of 451/450 B.C. when in Athens, Pericles proposed a law, ap- proved by the citizens, about citizenship.13 This law established that the Athenian citizenship must nec- nº 22, Jan.-Apr. 2018 essarily be reserved for the newborns whose parents were both citizens (for the possible non-centrality of this law in Medea’s plot, see Lushnig, 2001).The law was probably not retroactive because otherwise Cimon (whose mother was a foreigner), would not Stefania Giombini, ‘The have been tasked with leading the Athenian army law in Euripides’ Me- dea’, p. 199-228 against Cyprus, at Pericles’ own prompting. More- over, we can see a subsequent wheat regulation that accounts for the number of people in the various demes, even after the law mixed births can be found: in the 445/444 B.C. the Athenians had to divide the wheat donated by the king of Libya, Psammeticus, and to this purpose lists of the inhabitants of the demes, which included mixed-provenience citizens, were compiled.

But the law was made and was later carried on even after Pericles. In fact, we know from the pseu- do-Demosthenes’ speech Against Neera that mixed marriages were even forbidden by law (Against Neera 215 16; see Bakewell, 2008-2009). It is possible that as a result of this law, many foreign women were repu- diated by Athenian men who were going to marry local women and have children with Athenian citi- zenship as well.

Perhaps, Tarditi may have fallen a bit in the game of thinking of Euripides’ work as a disapproval towards this law: and I do not think that this can be done in an all-encompassing way, of course. But what he claims is relevant, many scholars have shared his reflection, and above all, this would also account pretty well for the reflections on the classical law we met in Medea’s speech to the chorus. So, I do not think we can exclude nº 22, Jan.-Apr. 2018 that the outcome of Pericles’ law may have influenced and stimulated the drama of Medea.

In the conversation between Medea and Creon, this, the king of Corinth, compels Medea to go into Stefania Giombini, ‘The exile immediately (v. 271 et seq.). Medea cleverly per- law in Euripides’ Me- suades him to allow her to remain one more day, dur- dea’, p. 199-228 ing which she kills her children. However, here the concern is the language used with respect to exile. The vocabulary seems to be direct and occurs throughout the play: φυγή (exile), φυγάδα (from φυγάς-δος, ex- iled); ἔξω (outside, over, beyond), περᾶν (beyond, on the opposite side). So, the recall to the exile seems not only correct but also legally clear. Creon in v. 276 uses the formula ἔξω βάλω (ἔξω βάλλω - to kick out) and similar forms elsewhere. That legal exile is demanded is clear. However, why is this the case? Medea has not committed a crime punishable by exile in Corinth.

There isn't any murder before, when Creon speaks 216 with Medea. No wrongdoing has been attained yet. For sure Medea threatened; Creon makes it clear: «I hear you threaten [...] to do something against who gave his daughter in marriage (i.e. Creon himself), against who married her (Jason) and against the wife (Creon›s daughter, Glauce)» (v. 286). Priot to list- ing the threats Medea has made, Creon notes: «in no way shall we mask the words (the speeches)” (v. 282). Thus, it seems the grounds upon which Creon or- ders her exile rests solely upon Medea’s threats. Here, the idea that language is efficacious on reality re- turns (it is a performative action, bringing things to pass). Medea’s words do not remain mere promises or threats, but become facts, that which remains yet unaccomplished, but will indeed occur. It is on these facts that Creon imposes the exile, as confirmed by nº 22, Jan.-Apr. 2018 Jason’s comment to Medea that her expulsion was due to her reckless speeches in v. 450.

The ancient world has always known the practice: voluntary exile in order to escape enemies and revenge Stefania Giombini, ‘The was a stable custom. But an innovation of sense and use law in Euripides’ Me- of the exile takes place with the Draconian legislation. dea’, p. 199-228 In the Laws of Draco, the first table reads that the exile is the punishment for those who commit homicide μὴ ἐκ προνοίας i.e. without the intention to kill (involuntary homicide). Pepe thinks otherwise (2012, p. 22 et seq.), since she identifies the verb φεύγω, in the first line of the code, with going to trial, while she recognizes in the verb ἐξέρχομαι (and the alike derivations) the appro- priate missing lexicon. It must be emphasized, though, that the text of Draco also talks about exile when it says that the family that was affected by the murder can for- give the murderer, in which case he is not required to go into exile: that if the 51 ἐφέται (Ephets) would have him readmitted into his homeland. Therefore, the theme of 217 exile is present. Of course, there is no need to go deeply in Draco’s legislation: what we are hereby interested in is to fix the end of the custom of revenge; the Athenians are satisfied with getting something that is not revenge in exchange for the wrong they suffered. Thus a real re- conformation, a remodeling of the revenge takes place: revenge is now sanctioned by the qualified branches and when the exile occurs, the offender can not be prosecuted once out of the country (from line 26 of the Laws) and this remodeling just starts with and after the Draconian legislation. Here in the text of Euripides, however, in my opinion, there is just an act of kicking out of the land of the kingdom by the king (that would be the legal authority delegated). The exile therefore is nº 22, Jan.-Apr. 2018 no longer only a getaway but an adequate punishment to a fault. But Medea has not committed a murder, not even an unintended one. She has yet to accomplish it: but she declared her will in point, so there is full inten- tionality. Thus a paradoxical situation emerges. Creon, Stefania Giombini, ‘The justifying with the fear of the crime that could be ac- law in Euripides’ Me- complished, more easily chooses the most feasible op- dea’, p. 199-228 tion, and the right one from his point of view, when he prefers the exile to the death penalty. In fact, the death penalty cannot be applied, since it would look like a big injustice, but the exile could be a feasible option and a good compromise.

Several conclusions can thus be drawn from this passage. First, Creon does not seek revenge, or even punishment for Medea: he but tries to protect his kingdom and family. When there cannot be a trial for murder (i.e. no killing has occurred), yet one threat- ens violent harm to others, exile is a preferred and just solution.14 Euripides here, buries the dynamics 218 of revenge (see Terradas Saborit, 2008; for its legal status, see Giordano, 1999) and recalls the exile, a well- known practice for the audience: the public gets the le- gal aspect, the political and social value and this helps understanding the author’s poetical and even political reflection. Here, the recalled law might not be the ar- chaic one but the classical one; and must therefore be placed between the legal elements that were contem- poraneous to the author. Second, Euripides seems to be saying something important about the value and power of words and speech. As noted above, the pow- er of speech and the way it turns into reality seems to be what Creon bases Medea’s punishment upon, and this is of course a power that was heavily emphasized by the 5th century B.C. sophist, Gorgias. In the Enco- mium of Helen, at § 12, he explicates how language nº 22, Jan.-Apr. 2018 can be used to compel, in such a way that speech that becomes coercion. Whoever exercises the words this way is thereby guilty of the actions that the words led to. The responsibility lies on who has used them, be- Stefania Giombini, ‘The cause their use was voluntary, as dictated by the need law in Euripides’ Me- to compel. Those who were compeled, on the other dea’, p. 199-228 hand, are innocent, having been involuntarily moved by speech. The reflection of Gorgias on the power of speech is interesting not only because the responsibil- ity for the use of the word as a means to coercion is set up, but also because it connects to the Greek idea of speech as a function of the law. In fact, there is no law if there is no word. The law is built on the word and the word becomes action. Even in the case of Euripi- des, the word has a result, it foresees an outcome and thus forces others, in this case Creon to provide and to get the outcome, the legal result of such legal words. In the case of Medea, speech has a result; it points to an anticipated future ouctome, compelling others - in 219 this case, Creon - to respond to the speech in order to avoid the unwelcome outcome, by making a decree to counter it. Medea’s speech in-itself sullied and taint- ed the city by creating their own miasma, a “murder in words”, which Creon attemtped to wash away by the removal of the one who engendered the evil, and promised to make it actual. Miasma is thus an implicit premise to the exile, though Euripides doesn’t explic- itly refer to it.

Through these reflections, though, we are maybe going into a purely interpretive context; hence, it is perhaps more appropriate to refer to ostracism. Being Creon the very holder of legal power, he meets out nº 22, Jan.-Apr. 2018 the exile; still, such a decision can be referred to as ostracism only if the legal practices needed are over- looked. He could have thought such a decision as os- tracism, but he could only have done so on an entirely intimate and personal level. A recall to ostracism can Stefania Giombini, ‘The be useful to decode the king’s decision. However, no law in Euripides’ Me- akin procedure in the actual practice of ostracism can dea’, p. 199-228 be found: there is no assembly, no vote, no ostrakon. The option of ostracism might therefore be assumed as part of the king’s executive autonomy, to a bigger extent, but it cannot be directly connected to the ac- tual procedure, especially for what concerns the law of classical era.

6. Medea like Helen

One final point should be considered regarding how Euripides at times portrays Medea as lacking re- sponsible autonomy. In a 2014 article, Medea’s Four Reasons, Gemin shows that, according to Euripides, Medea followed Jason for at least one of four causes. 220 The first is the cause of Love, evidenced at vv. 6-8, when the nurse regrets the past events that led to the meeting of Medea and Jason and the birth of their love. The second cause is the Force (βία), as found in vv. 255-256, which claims Jason took Medea away with coercion to bring her along with him. The third cause is the divine will that in Medea mentions at vv. 526-531. The fourth and final possible cause is the persuasion of Jason’s words, noted at vv. 800-802. This structure of possible causes is remarkably similar to the one Gorgias developed in his Encomium of Helen.

TheEncomium of Helen is set up as a defense of the mythical character of Helen built by Gorgias on four main lines of argument: Helen either fled to Troy for nº 22, Jan.-Apr. 2018 the will of gods, case or necessity, or she was compelled through the use of force, or she was convinced by the words of Paris or she was beguiled by Love. For each of these reasons, Helen is innocent. Similarly, Euripi- des, though not providing a programmatic statement Stefania Giombini, ‘The of reasoning, as it instead can be found in Gorgias at § 6 law in Euripides’ Me- of the Encomium, offers the same arguments. dea’, p. 199-228

Let’s add further remarks, since there are more simi- larities between both texts. I am referring not only to what I said before about the responsibilities of the words, but also to the fact that the two women who are chosen for these works are mythical female characters who do not enjoy a good reputation: both authors ar- gue so, in the Encomium in § 2 and in Medea in v. 293.

Moreover, I suggest that there is a similarity in the argumentative form of “demonstrandum” (i.e. when the autor declares what is to be demonstrat- ed). This form is intensively used by Gorgias, but it 221 is also present in Euripide’s Medea, e.g. in v. 535 where Jason announces that he will prove what he says.15 There is also the theme of the requirement of knowl- edge, similarly to: “if we do not know everything we need to know, we fall into error”. In fact, Medea talks about the bride towards the the groom (v. 239 as the woman needs to foresee), Gorgias speaks in general of knowledge at § 11. Finally, there is the reference to φάρμακον: as real poison in v. 385 of Medea, while on 14 of the Encomium as a parallelism between this and the speech. Long story short, the two works seem to come from the same conceptual and lexical context, showing a relevant affinity.

nº 22, Jan.-Apr. 2018 If the case can be made for these texts parallel- ing each other, we must then wonder who followed who: which author wrote first? There is no doubt that Medea was shown at the Great Dionisya of 431 B. C. On the other hand, the composition of Gorgias’ Stefania Giombini, ‘The Helen lacks any precise date. I have already consid- law in Euripides’ Me- ered this question at some length: my point of view dea’, p. 199-228 is that Gorgias wrote it at the peak of his career, and thus while in Athens serving as ambassador, after his arrival in 427 B.C. (Giombini, 2012, p. 68-70). Thus, I think it was Gorgias who read Euripides’ Medea four or more years later its composition, and found inspi- ration for his Helen. There is no reason to doubt that Gorgias could read Euripides’s play, as we know that there was a fair circulation of texts at that time (see Turner, 1977, p. 21-22). However, given the wide cir- culation of texts, could not Gorgias have read Euripi- des at an earlier time, while still abroad, and before ar- riving in Athens? And, could not Euripides have read Gorgias and mimicked him (if it is thought that he 222 had written earlier, and was the more novel thinker)? Yes. However, there is no evidence of this. Efforts at more precise chronologies have not yielded any valid indications based upon similarities between Gorgias’ works with other Euripides’ tragedies, Helen and the Trojan Women. In any case, if my original proposal is correct (I have no reason to doubt it), then Gor- gias wrote his Encomium after the year 427 B.C., and thus it would seem, based upon the arguments above, Euripides becomes a source of direct inspiration for Gorgias to develop his argumentative exercises. That both authors were able to use the myth of Medea in their own unique ways is important, allowing us in- sights into aspects of logical exercises, the power of speech, and the development of laws. nº 22, Jan.-Apr. 2018 7. Conclusions

Euripides’ Medea ultimately seems an interest- ing source for reflection upon various aspects (oaths, marriage, dowry, exile) of criminal and family law in Stefania Giombini, ‘The Athenian contexts, under both archaic and classical law in Euripides’ Me- frameworks. The work is also marked by the distinct dea’, p. 199-228 references to Themis and Dike: this lexis precisely leads us in two different fields. In fact, Euripides is able to play on a double range: on the one hand he recalls elements of the archaic law as in the case of the oath, on the other he refers to the 5th century B.C. Athenian laws. The two planes interact because they get a modulation within the character of Medea. Me- dea the barbarian, the sorceress, the figure of myth adapts to the archaic law; but when she looks for a comparison with the Greek woman (in the dialogue with the chorus in the parodos) Euripides inserts the elements of his contemporaneous law. Finally, this inquiry into the Medea also offers insight into how 223 language informs and grounds the law, and how Greeks were responding to the recognition of that power, in terms of legal guilt or innocence.

Notes 1 I am grateful to Delfim Leão and Jeremy DeLong for their careful reading and their helpful comments. Any inconsistency or carelessness remains my responsibility. 2 In particular, at v. 122, he uses ἐπ’ἴσοισιν, “on terms of equality”; see Cerbo-Di Benedetto (2012, p. 15, n. 31). 3 Michael Gagarin (1989) did so, distinguishing between the proto-legal stage, the pre-legal one, and the last, fully legal one, trying to show that legal procedure developed before and the content of the law after. Not everybody agreed with Gagarin, but nº 22, Jan.-Apr. 2018 he posed the issue of the demarcation between the statement of customary practices and the presence of the written law well. 4 On the relationship Themis-Dike, the literature is wide but for our juridical approach, see Biscardi (1982), Appendice III.

Stefania Giombini, ‘The 5 For a discussion see Sommerstein-Torrance (2014); see law in Euripides’ Me- also the project “The Oath in Archaic and Classical Greece” of dea’, p. 199-228 the University of Nottingham. Available at: URL = http://www.nottingham.ac.uk/Classics/ Research/projects/oaths/intro.aspx. Available on: July 15, 2016. 6 Like, just for instance, in the practice of adoption, when the document was recorded in court in the proper register. 7 See Fletcher (2014), esp. p. 165 s.: 7.1.5.1 Unofficial oaths in Athens. 8 The myth states that the Argonauts threw a big party, but this feast and the practices that might follow could not fit as a regular marriage. 9 There is an extensive literature on this issue. See e.g. Carey (1995); Pierce – Deacy (2002). 10 There are four recalls in point in the Odissey, I 277, II 196, VIII 318, XV 18, and two more in Hesiod, fr. 199, 9 e fr. 200, 4. 224 11 In its various forms and telling, the myth of Medea regu- larly shows complete autonomy of the woman, also in the kill- ings she performs herself, or is the proximal cause of. Just a list of her actions: Medea personally kills her brother Apsyrt after Jason’s arrival at Colchis (this episode is recalled by the same Euripides, v. 167). Apsyrt’s limbs are then thrown overboard by the two lovers as they flee by ship. In his pursuit, Medea’s father Aeëtes, is forced to pick up Apsyrt’s body piece-by-piece, slow- ing him down enough to prevent his capture of the two fugitives. Medea also personally kills Talos, the bronze giant Minos placed as a guard for Crete. She indirectly kills Pelias by convincing his daughters that were they to kill him, their father would resur- rect as a younger man (in Med. v. 486, 504-505). She is the one ultimately responsable for killing the dragon guarding the fleece (in Med. v. 480), and then goes on to kill Glauce and her father, King Creon. She causes Perses’ death, giving his son Medo a sword (another version conveys that she killed him). Finally, and perhaps most notably and controversially, she kills her own two nº 22, Jan.-Apr. 2018 children (according to one version of the myth, she also kills Ja- son because he would die of grief over the loss of his children). 12 For the centrality of this episode, see Rizzatti (2016). 13 This law is handed down by Aristotle inAth. Pol. 26.4 and is also recalled in Plutarch, Per. 37.3. Stefania Giombini, ‘The law in Euripides’ Me- 14 Precautionary detention was not reckoned in the 5th cen- dea’, p. 199-228 tury B.C.: see Giombini (2012, p. 228) on this issue in Pl. Lg. IX, 871e-872b and Gorg. Pal. 35. 15 Here the verb is φράζω. It must be stressed that the lexicon is not the same because Gorgias, in fact, uses the verb ἐπιδείνυμι; see Giombini (2012, p.72 et seq).

Bibliography

ALLEN, D. (2005). Greek Tragedy and Law. In: M. Gagarin - D. Cohen (eds.). The Cambridge Companion to Ancient Greek Law. Cambridge University Press, Cambridge, p. 374-393. https://doi.org/10.1017/ CCOL0521818400.021 225 BAKEWELL, G. (2008-2009). Forbidding Mar- riage: Neaira 16 and Metic Spouses at Athens. The Classical Journal 104, p. 97-109.

BISCARDI, A. (1982). Diritto Greco Antico. Milano, Giuffrè.

CAREY, C. (1995). Rape and Adultery in Athenian Law. The Classical Quarterly 45, p. 407-417. https:// doi.org/10.1017/S0009838800043482

CERBO, E. – DI BENEDETTO, V. (2012). Eurip- ide. Medea. Milano, BUR.

COX, CH. (2011). Marriage in ancient Athens. In: nº 22, Jan.-Apr. 2018 B. Rawson (ed). A Companion to Families in the Greek and Roman Worlds. London, Wiley-Blackwell, p. 231- 44. https://doi.org/10.1002/9781444390766.ch14

FLETCHER, J. (2014). Woman and Oaths. In: Stefania Giombini, ‘The SOMMERSTEIN, A.H.-TORRANCE, I.C. (2014), law in Euripides’ Me- p.156-178. dea’, p. 199-228 GAGARIN, M. (1989). Early Greek Law. Oakland (CA), University of California Press.

GEMIN, M. (2014). Medea’s four reasons. Greek Roman Byzantine Studies 54, p. 585-598.

GIOMBINI, S. (2012). Gorgia Epidittico. Commen- to filosofico all’Encomio di Elena, all’Apologia di Pa- lamede, all’Epitaffio. Passignano sul T., Aguaplano- Officina del Libro.

GIORDANO, M. (1999). La parola efficace. Male- dizioni, giuramenti e benedizioni nella Grecia arcaica. 226 Roma, IEPI. GIORDANO, M. (2014). Perché ad Atene cessarono le vendette? Dal sistema della pena al sistema della ven- detta. In: A. Gostoli, R. Velardi, M. Colantonio. My- thologein. Pisa-Roma, Fabrizio Serra Editore.

HALL, E. (s.d.). Murder and stage history: Medea’s State of Mind and Criminal Law. Available at: URL = https://www.royalholloway.ac.uk/crgr/documents/ pdf/papers/medea.pdf. Available on July 15, 2016.

KOVACS, D. (1994) (ed.). Euripides. Medea (with an English translation). Perseus Collection Greek and Roman Materials. Harvard, Harvard Uni- versity Press-Loeb Classical Library. Available at: URL =http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text;jsessionid= F55ECEB6147C4D4542532CF34982C2E7?doc=Perse nº 22, Jan.-Apr. 2018 us%3atext%3a1999.01.0114. Available on July 15, 2016.

LEÃO, D. F. (2011). In defense of Medea: a legal ap- proach to Euripides. Epetiris 43, p. 9-26. Stefania Giombini, ‘The LUSCHNIG, C.A.E. (2001). Medea in Corinth: Po- law in Euripides’ Me- litical Aspects in Euripides’ Medea. Digressus 1, p.8-28. dea’, p. 199-228

OAKLEY, J.H.; SINOS, R.H. (1993). The Wedding in Ancient Athens. Madison, University of Wisconsin Press.

PAOLI, E.U. (1953). La donna greca nell’antichità. Firenze, Le Monnier.

PEPE, L. (2007). I Sette contro Tebe e la spartizio- ne dell’eredità di Edipo. In: E. Cantarella-L. Gagliar- di (eds.). Diritto e Teatro in Grecia e a Roma. Milano, LED, p. 31-67.

PEPE, L. (2012). Phonos. Milano, Giuffré Editore. 227 PIERCE, K.F.; DEACY, S. (2002). Rape in Antiqui- ty: Sexual Violence in the Greek and Roman Worlds. Bristol, Bristol Classical Press.

POMEROY, S.B. (1978). Donne in Atene e Roma. Torino, Einaudi [(1975). Goddesses, Whores, Wives and Slaves: Women in Classical Antiquity. New York, Schocken Book].

RIZZATTI, C. (2016). L’ episodio di Egeo nella Me- dea di Euripide. Palermo, La Zisa Edizioni.

SOMMERSTEIN, A.H. - TORRANCE, I.C. (2014). nº 22, Jan.-Apr. 2018 Oaths and Swearing in Ancient Greece. Berlin-Boston, De Gruyter. https://doi.org/10.1515/9783110227369

TARDITI, G. (1957). Euripide e il dramma di Medea. Rivista di Filosofia e di Istruzione Classica, 35, p. 354-371. Stefania Giombini, ‘The law in Euripides’ Me- dea’, p. 199-228 TERRADAS SABORIT, I. (2008). Justicia Vindica- toria. Madrid, CSIC.

TURNER, E.G. (1977). I libri nell’Atene del V e IV secolo a.C. In: CAVALLO, G.. Libri, editori e pubblico nel mondo antico. Guida storica e critica. Roma-Bari, Laterza (1975¹), p. 3-24.

ZUCCOTTI, F. (2000). Il giuramento nel mondo giuridico e religioso antico. Milano, Giuffrè Editore.

Submitted in June and accepted for publication 228 in August, 2016 Fernando Rodrigues Junior -Universidade de São Paulo (Brasil) [email protected] - ORCID: 0000-0002- 4481-2364

O heroísmo de Medeia nas Argonáuticas de Apolônio de Rodes nº 22, Jan.-Apr. 2018

Medea´s heroism in Apollonius Rhodius´ Argonautica

RODRIGUES JUNIOR, F. (2018) O heroísmo de Medeia nas Argonáuti- cas de Apolônio de Rodes. Archai, n.º 22, Jan.-Apr., p. 229-253 DOI: https://doi.org/10.14195/1984­‑249X_22_9

Resumo: Este artigo pretende discutir os elementos díspares que se combinam para a caracterização de Medeia nas Argo- náuticas de Apolônio de Rodes como uma virgem ingênua e uma feiticeira assassina. A harmonização desses elementos pos- sibilita reconhecer em Medeia a principal aliada dos argonautas a partir do livro 3. Num contexto de discussão sobre o conceito de heroísmo e a atribuição da liderança da nau Argo ao ἄριστος, caberá a Jasão, por conta de sua postura diplomática adequada a esse poema épico, distinguir as especificidades e os campos de atuação de cada herói de modo a alcançar o êxito coletivo da missão. Medeia, portanto, integrará a expedição por conta de 229 sua dupla caracterização: por ter sido seduzida por Jasão e, ao mesmo tempo, por ser a única capaz de possibilitar, através de seus φάρμακα, o cumprimento dos ἄεθλα designados por Eeta. Palavras-chave: Medeia, Apolônio de Rodes, Argonáuticas, Épica Helenística

Abstract: This paper intends to discuss the different elements that are combined in order to represent Medea in Apollonius Rhodius’ Argonautica as a naïve virgin and a murderer witch. The harmonization of these elements makes the reader recog- nize Medea as one of the main allies of the argonauts from the beginning of book 3 onwards. In a discussion of the concept of heroism and of the choice of leadership for the vessel Argo according to the idea of ἄριστος, Jason›s diplomatic behav- iour, adequate to this kind of epic poem, will enable him to distinguish the specificities of each hero in order to have suc- cess in his mission. Therefore Medea will integrate the expedi- nº 22, Jan.-Apr. 2018 tion thanks to her double characterization: because she was seduced by Jason and, at the same time, because she was the only one capable of making the accomplishment of ἄεθλα pos- sible by her φάρμακα. Keywords: Medea, Apollonius Rhodius, Argonautica, Helenistic Fernando Rodrigues Epic Junior, ‘O heroísmo de Medeia nas Argo- náuticas de Apolônio de Rodes’, p. 229-253 Alguns comentadores das Argonáuticas conside- ram que a caracterização de Medeia no poema não possuiria verossimilhança, tendo em vista a incoe- rência nas ações da personagem, ora representada como uma garota ingênua e facilmente suscetível à sedução persuasiva de Jasão, ora como uma poten- cial fratricida1, conselheira estratégica e possuidora de poderes mágicos.2 Baseando-se na discussão tra- vada na Poética de Aristóteles concernente ao ἦθος (1454a 25-35), seria possível afirmar que Medeia é dotada de um caráter inconstante (τὸ ὁμαλόν), já que suas ações não se conectariam segundo os 230 princípios de necessidade ou de probabilidade. Embora seu comportamento díspar seja perceptível no decorrer das Argonáuticas, essa variação reite- rada não indica necessariamente inverossimilhan- ça, uma vez que as imagens de virgem ingênua e de feiticeira assassina seriam indissociáveis para a unidade de caráter da personagem.

A origem dos φάρμακα destinados a imunizar Jasão durante os ἄεθλα impostos por Eeta, extra- ídos da raiz de uma planta derivada do sangue de Prometeu, demonstram que a perícia mágica de Medeia está associada a poderes ctônicos (Arg. 3. 858-66).3 Ao colher essa raiz, ela se banhou sete ve- zes e invocou sete vezes o nome de Hécate Βριμώ4, divindade associada à noite, ao solo e aos mortos nº 22, Jan.-Apr. 2018 (Arg. 3. 862). Em Argonáuticas 4. 50-53, Medeia é descrita como uma φαρμακίς habituada a buscar cadáveres e raízes maléficas para a realização de feitiços. Nos Rhizotomoi de Sófocles (fr. 534 Radt), ela recolhe ervas e raízes em ambiente noturno, en- Fernando Rodrigues quanto profere gritos rituais. Os vínculos com os Junior, ‘O heroísmo de Medeia nas Argo- φάρμακα e sua submissão a Hécate são destacados náuticas de Apolônio em Argonáuticas 3. 477-78, quando Argos faz men- de Rodes’, p. 229-253 ção a Medeia pela primeira vez a Jasão. Seus po- deres são reportados de modo hiperbólico em Ar- gonáuticas 3. 529-33, como capazes de controlar o fogo, o curso dos rios e os caminhos dos astros e da lua. Embora a perícia mágica de Medeia seja mais utilizada no livro 4, quando, por meio dela, o dra- gão vigilante adormece (Arg. 4. 110-82) e o gigante Talos é derrotado (Arg. 4. 1651-88)5, trata-se de um elemento essencial à epopeia de Apolônio desde a primeira aparição da personagem no livro 3, apre- sentada pelo narrador como sacerdotisa do templo de Hécate (Arg. 3. 250-55). 231 Há uma invocação à musa Érato no prólogo do li- vro III das Argonáuticas, dividindo o poema em duas partes e indicando a predominância de matéria eróti- ca a partir de então (Arg. III 1-5):

Εἰ δ’ ἄγε νῦν Ἐρατώ, παρ’ ἔμ’ ἵστασο καί μοι ἔνισπε ἔνθεν ὅπως ἐς Ἰωλκὸν ἀνήγαγε κῶας Ἰήσων Μηδείης ὑπ’ ἔρωτι· σὺ γὰρ καὶ Κύπριδος αἶσαν ἔμμορες, ἀδμῆτας δὲ τεοῖς μελεδήμασι θέλγεις παρθενικάς· τῶ καί τοι ἐπήρατον οὔνομ’ ἀνῆπται.

Então agora, Érato, coloca-te ao meu lado e me conta como da Cólquida para Iolco Jasão trouxe o tosão, nº 22, Jan.-Apr. 2018 graças ao amor de Medeia. Pois tu também de Cípris o lote partilhas e com teus cuidados encantas as indômitas virgens. Por isso a ti o amável nome está ligado.

Fernando Rodrigues Medeia é mencionada nessa passagem tendo em Junior, ‘O heroísmo vista o papel central que passará a desempenhar, sen- de Medeia nas Argo- do considerada por alguns comentadores a principal náuticas de Apolônio de Rodes’, p. 229-253 figura heroica da epopeia após o abandono de Héra- cles na Mísia6. Ela é inserida na categoria de virgem in- dômita (ἀδμῆτας παρθενικάς, Arg. 3. 4-5) equiparável a Nausícaa, também descrita como παρθένος ἀδμής em Odisseia 6. 109 e 228. Ambas são filhas de um rei e, por meio da intervenção divina, se encantam com um estrangeiro recém-chegado. No encontro secreto com Medeia, Jasão é comparado ao astro Sírio, que se ergue no céu belo e brilhante, mas traz infinita misé- ria aos rebanhos (Arg. 3. 956-59). Ao se aproximar de Nausícaa pela primeira vez, Odisseu é equiparado a um leão faminto que, confiando em sua força, ataca 232 os rebanhos em pleno redil (Od. 6. 130-34). Os dois símiles se aproximam quanto à imagem de aniquila- mento dos animais domésticos pelo recém-chegado, bastante pertinente ao futuro de Medeia após abando- nar a Cólquida. Nos dois casos, a disposição favorável da garota é condição sine qua non para o êxito do he- rói e consequente retorno à Hélade. Nausícaa instrui Odisseu em como proceder de modo a obter o auxílio de Alcínoo e Arete, bem como Medeia fornece uma poção capaz de imunizar Jasão e possibilitar o cum- primento das tarefas no campo de Ares.

Os preparativos antecedendo o encontro com Jasão evocam o início do livro 6 da Odisseia, no qual Nausícaa, por orientação de Atena, deixa o palácio do pai acompanhada pelas servas para lavar roupa nº 22, Jan.-Apr. 2018 no rio. Nos dois poemas, as garotas tiveram sonhos relacionados a casamento na noite anterior (Od. 6. 25-40 e Arg. 3. 616-32), de maneira que o estrangeiro encontrado se torna um possível pretendente. Assim como Nausicaa, Medeia guia a carroça segurando o Fernando Rodrigues 7 Junior, ‘O heroísmo chicote e as rédeas (Od. 6. 78, 81-4 e Arg. 3. 869-72). de Medeia nas Argo- Durante o percurso, a princesa colca é comparada a náuticas de Apolônio Ártemis rodeada pelas ninfas, ereta sobre uma car- de Rodes’, p. 229-253 ruagem guiada por corças em direção a uma heca- tombe (Arg. 3. 876-84):

οἵη δέ, λιαροῖσιν ἐν ὕδασι Παρθενίοιο ἠὲ καὶ Ἀμνισοῖο λοεσσαμένη ποταμοῖο, χρυσείοις Λητωὶς ἐφ’ ἅρμασιν ἑστηυῖα ὠκείαις κεμάδεσσι διεξελάῃσι κολώνας, τηλόθεν ἀντιόωσα πολυκνίσου ἑκατόμβης· τῇ δ’ ἅμα νύμφαι ἕπονται ἀμορβάδες, αἱ μὲν ἀπ’ αὐτῆς ἀγρόμεναι πηγῆς Ἀμνισίδες, αἱ δὲ λιποῦσαι ἄλσεα καὶ σκοπιὰς πολυπίδακας, ἀμφὶ δὲ θῆρες κνυζηθμῷ σαίνουσιν ὑποτρομέοντες ἰοῦσαν. 233 Como, sobre as mornas águas do Partênio ou após ter se banhado no rio Amniso, a filha de Leto, ereta sobre os áureos carros, com rápidas corças conduzindo-a por colinas para ir diante de uma hecatombe de muita fumaça; as ninfas companheiras seguem com ela, umas reunidas desde a própria nascente do Amniso, outras tendo deixado os bosques e os cumes de muitas fontes. Feras ao seu redor, ao se aproximar, com bramidos balançavam a cauda, tremulantes.

Apolônio se vale de semelhante equiparação para fa- zer referência a Nausícaa como modelo poético, já que, ao brincar na margem do rio com as servas, ela tam- bém fora comparada a Ártemis caçando, acompanhada nº 22, Jan.-Apr. 2018 por suas ninfas (Od. 6. 102-9):

οἵη δ’ Ἄρτεμις εἶσι κατ’ οὔρεα ἰοχέαιρα, ἢ κατὰ Τηΰγετον περιμήκετον ἢ Ἐρύμανθον, Fernando Rodrigues τερπομένη κάπροισι καὶ ὠκείῃσ’ ἐλάφοισι· Junior, ‘O heroísmo τῇ δέ θ’ ἅμα Νύμφαι, κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο, de Medeia nas Argo- ἀγρονόμοι παίζουσι· γέγηθε δέ τε φρένα Λητώ· náuticas de Apolônio πασάων δ’ ὑπὲρ ἥ γε κάρη ἔχει ἠδὲ μέτωπα, de Rodes’, p. 229-253 ῥεῖά τ’ ἀριγνώτη πέλεται, καλαὶ δέ τε πᾶσαι· ὣς ἥ γ’ ἀμφιπόλοισι μετέπρεπε παρθένος ἀδμής.

E tal como Ártemis, a archeira, se desloca pelas montanhas, pela cordilheira do Taígeto ou então pelo Erimanto, comprazendo-se com a caça ao javali ou às corças velozes, e com ela brincam as ninfas, filhas de Zeus detentor da égide, habitantes do campo, e Leto se regozija no espírito; pois por cima das outras levanta Ártemis a cabeça e a testa, sendo facilmente reconhecível, embora todas sejam belas - 234 assim entre as suas escravas se destacava Nausicaa.8 A comparação com a deusa desempenha funções distintas nas duas ocorrências, tendo em vista os di- ferentes momentos da narrativa: na Odisseia, durante o jogo com bola entre Nausícaa e as escravas; nas Ar- gonáuticas, enquanto Medeia guiava a carruagem em direção ao templo de Hécate. Esse símile possibilita ao poeta da Odisseia destacar a superioridade de Nau- sícaa ante as servas que a acompanham, ao passo que nas Argonáuticas a equiparação é motivada pelo cará- ter quase semidivino atribuído a Medeia.9 Feras bra- miam e agitavam a cauda quando a carruagem con- duzida por Ártemis se aproximava, da mesma forma que os habitantes de Ea desviavam o rosto, evitando contemplar os olhos da filha de Eeta. A reação pode nº 22, Jan.-Apr. 2018 ser interpretada como uma espécie de reverência ante a divindade que se aproxima, contudo, no caso de Medeia, há também o temor provocado pelos pode- res mágicos presentes em seu olhar (cf. Arg. 4. 145 e 1669-72).10 Fernando Rodrigues Junior, ‘O heroísmo de Medeia nas Argo- O narrador da Odisseia justifica a menção à deusa náuticas de Apolônio no símile por conta da notável beleza e da virgindade de Rodes’, p. 229-253 da princesa feácia. Nas Argonáuticas, por sua vez, a comparação não é somente motivada por uma alusão ao modelo homérico, a fim de estabelecer um paralelo com Nausícaa, mas também pela recorrente associa- ção entre Ártemis e Hécate, deusa relacionada à ma- gia e em cujo templo a filha de Eeta exercia a função de sacerdotisa.11 A conexão às duas deusas (e, conse- quentemente, a Nausícaa), portanto, justapõe os dois papeis distintos desempenhados por Medeia no de- senrolar da ação: a virgem que anseia ser desposada e a feiticeira vinculada ao culto noturno a Hécate. 235 Durante o encontro, Jasão dirige a Medeia um dis- curso persuasivo, descrito pelo narrador como adu- lador (ὑποσσαίνων).12 O mesmo particípio é usado em Argonáuticas 4. 410 para, igualmente, sugerir uma intenção manipuladora do Esonida, subordinada à profecia de Fineu (Arg. 2. 423-24) e às palavras do adi- vinho Mopso (Arg. 3. 940-43) quanto à importância de Afrodite para o sucesso da missão. Como parte da estratégia de argumentação adotada, Jasão menciona o κλέος que Medeia obterá na Hélade, caso auxilie os argonautas. De modo a incentivar a princesa colca através de uma história paradigmática, ele relata o au- xílio prestado por Ariadne a Teseu, em prejuízo de seu pai Minos (Arg. 3. 997-1004). A adequação do exem- nº 22, Jan.-Apr. 2018 plo citado é perceptível pelos vários paralelos entre as narrativas: um herói se dirige a um território inospi- taleiro regido por um descendente do Sol; o retorno só é possível mediante o confronto com inimigo(s) sobre-humano(s) e o êxito depende da assistência da Fernando Rodrigues filha do rei, insuflada pelo desejo ao estrangeiro; por Junior, ‘O heroísmo fim, ela foge secretamente, a despeito da vontade do de Medeia nas Argo- pai. Ao relatar essa história, Jasão sugere nutrir outras náuticas de Apolônio de Rodes’, p. 229-253 intenções além da concessão de poções imunizadoras. Essa hipótese é corroborada pela proposta de despo- sar Medeia como uma espécie de recompensa pelo auxílio prestado (Arg. 3. 1128-30).

A alusão ao envolvimento amoroso entre Teseu e Ariadne é adequada ao tipo de discurso desejado por Medeia, tendo em vista que o herói já havia sido ins- truído sobre a importância do apelo erótico para que a expedição alcançasse o objetivo. Todavia a narração da história paradigmática é incompleta, uma vez que o abandono de Ariadne em Dia é omitido. Mesmo 236 quando Medeia se interessa em saber o desfecho do relato (Arg. 3. 1074-76), Jasão silencia a esse respeito.13 Evidentemente o poeta estabelece um paralelo entre as duas histórias com a finalidade de prenunciar o abandono de Medeia em eventos posteriores à maté- ria abordada no poema.14 O conhecimento prévio da disposição de sua interlocutora, graças às profecias de Fineu e de Mopso, proporciona a Jasão o emprego de uma estratégia eficaz de convencimento baseada na sedução. Medeia facilmente se deixa persuadir, entre- gando-lhe os φάρμακα e, segundo o narrador, depo- sitando nas mãos do estrangeiro sua própria alma, se ele assim desejasse (Arg. 3. 1015-16).15

A mais antiga menção conhecida ao auxílio de Me- deia no cumprimento das tarefas impostas por Eeta nº 22, Jan.-Apr. 2018 é feita nas Corintíacas de Eumelo, epopeia datada do século VII a.C. cuja matéria estaria relacionada à história da cidade de Corinto.16 Segundo o escolias- ta das Argonáuticas (cf. Σ Arg. 3. 1354-56a), os versos de Apolônio que narram o surgimento das Nascidos Fernando Rodrigues da Terra armados no campo de Ares derivariam das Junior, ‘O heroísmo de Medeia nas Argo- Corintíacas, porém Eumelo teria utilizado uma des- náuticas de Apolônio crição em discurso direto feita pela própria Medeia e de Rodes’, p. 229-253 endereçada ao adivinho Idmão, numa possível instru- ção ou conselho sobre como realizar os ἄεθλα (cf. Arg. 3. 1026-62).

As Naupácticas, um epos genealógico do século vi a.C. definido por Pausânias como um “poema sobre mulheres” (10. 38. 11), também relatariam o auxí- lio de Medeia para o cumprimento dos ἄεθλα.17 Em Argonáuticas 3. 523-24, após Jasão reproduzir aos companheiros as exigências do rei para a aquisição do velocino, Argos sugere o emprego dos φάρμακα de Medeia como possibilidade viável de executá-las 237 com segurança. Referente a essa passagem, o esco- liasta das Argonáuticas comenta que nas Naupácticas Idmão se ergueria e exortaria o Esonida a suportar o que lhe fora imposto.18 É possível compreender essa parênese como resposta contrária à interven- ção de Medeia, tendo em vista a hesitação de Jasão motivada pela dificuldade no cumprimento de tare- fas sobre-humanas. Nas Argonáuticas, após ouvir as condições de Eeta, ele se cala e fixa os olhos no chão, imóvel em total estado de ἀμηχανία (Arg. 3. 422-25). A mesma ἀμηχανία demonstrada pelo líder atinge a tripulação, quando informada sobre o desafio pro- posto (Arg. 3. 502-4).

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Pelos escassos fragmentos preservados das Corintíacas e das Naupácticas, não ficam claras as razões que levaram Medeia a ajudar os argonautas em prejuízo do próprio pai, no entanto Hesíodo (Teogonia 992-1002) já mencionara a união amorosa Fernando Rodrigues entre os dois e o nascimento de um filho chamado Junior, ‘O heroísmo de Medeia nas Argo- Medeio. Ainda que sejam aludidas as gementes náuticas de Apolônio tarefas (στονόεντας ἀέθλους) cumpridas pelo de Rodes’, p. 229-253 Esonida, em nenhum momento é feita qualquer referência ao auxílio prestado pela princesa colca, apesar da temática erótica relacionada à expedição já ser atestada nesse breve relato. As Naupácticas corroboram essa hipótese, pois, segundo o escoliasta das Argonáuticas 4. 86, Afrodite interferiria na ação ao insuflar em Eeta o desejo de se unir à esposa e possibilitar a fuga dos heróis, acompanhados por Medeia.19 O erotismo tão explorado na epopeia de Apolônio já estaria presente nas Naupácticas, apesar de não ficarem claros os motivos que suscitaram a 238 colaboração da deusa. Embora seja parte integrante da narrativa desde os textos mais antigos conhecidos a mencionarem os argonautas, a sedução de Medeia no epos de Apolô- nio é inserida no contexto de definição de heroísmo adequado à expedição. No livro 1. 336-40, ao exortar a escolha do líder, Jasão aconselha os companheiros a elegerem o melhor (ἄριστος) para essa função, capaz de se ocupar de cada detalhe da missão, realizar dis- putas e travar pactos com os estrangeiros:

ἀλλὰ φίλοι, ξυνὸς γὰρ ἐς Ἑλλάδα νόστος ὀπίσσω, ξυναὶ δ’ ἄμμι πέλονται ἐς Αἰήταο κέλευθοι, τούνεκα νῦν τὸν ἄριστον ἀφειδήσαντες ἕλεσθε ὄρχαμον ἡμείων, ᾧ κεν τὰ ἕκαστα μέλοιτο, νείκεα συνθεσίας τε μετὰ ξείνοισι βαλέσθαι. nº 22, Jan.-Apr. 2018

Caros, é comum o retorno posterior à Hélade e são comuns a nós as rotas até Eeta, Fernando Rodrigues logo, sem hesitação, escolhei agora o melhor Junior, ‘O heroísmo para ser nosso chefe, o qual se ocupará de cada detalhe, de Medeia nas Argo- como realizar disputas e alianças com os estrangeiros. náuticas de Apolônio de Rodes’, p. 229-253

A tripulação é unânime em selecionar Héracles, que recusa a escolha e delega a liderança ao Esonida. A cena indica que os companheiros não o considera- riam ἄριστος e, portanto, o julgariam inadequado à posição de ὄρχαμος.20

Em seu primeiro solilóquio, quando pondera sobre a possibilidade de trair o pai em benefício dos estrangei- ros, Medeia se questiona quanto à superioridade de Ja- são (προφερέστατος) em relação aos demais heróis (Arg. 3. 464-66). Por meio dessa indagação, a personagem faz 239 referência a um tema central às Argonáuticas: a adequa- ção de Jasão ao conceito de ἄριστος entre os companhei- ros, de modo a ocupar a liderança e conseguir cumprir o objetivo da viagem.21 Ao imprecar a Hécate e fazer votos pelo retorno de Jasão a seu lar (Arg. 3. 466-68), Medeia reconhece que a alternativa viável de vitória só pode ser alcançada mediante o uso dos φάρμακα oriundos da ins- trução e do poder conferidos pela deusa. Por ser capaz de concedê-los, a princesa colca se torna a única possibi- lidade de salvação dos argonautas, que passam a depen- der dela a partir de então.

O sonho de Medeia antecedendo a decisão de for- necer os φάρμακα já indica a importância que lhe foi nº 22, Jan.-Apr. 2018 conferida para a aquisição do velocino de ouro, uma vez que ela própria surge enfrentando os bois com cascos de bronze e executando os ἄεθλα designados ao estrangeiro (Arg. 3. 619-32). Através desse relato onírico, Medeia se torna a verdadeira agente das faça- Fernando Rodrigues nhas exigidas por ser a única hábil a executá-las, usur- Junior, ‘O heroísmo pando a condição de herói devida a Jasão e se tornan- de Medeia nas Argo- do a προφερέστατος entre os argonautas. náuticas de Apolônio de Rodes’, p. 229-253 Duas observações, no entanto, devem ser feitas para uma leitura mais acurada desse sonho. Em pri- meiro lugar, Medeia pressupõe que a expedição dos argonautas tinha como objetivo unicamente levá-la à Hélade como esposa legítima de Jasão. É possível que houvesse versões do mito nas quais o Esonida fos- se seu pretendente e essa intenção tivesse motivado a viagem à Cólquida22, porém não há vestígio algum dessa interpretação no poema de Apolônio. Jasão, ao contrário, instruído por Fineu e por Mopso, sabe de antemão que a única forma de conseguir o apoio da 240 garota é manipular seu desejo e, consequentemente, age dessa maneira para mantê-la como aliada. Em se- gundo lugar, a inserção de Medeia enquanto agente no cumprimento dos ἄεθλα só ocorre em contexto onírico, visto que ela jamais cogita substituir o herói, mas somente lhe entregar poções capazes de torná-lo apto a realizá-los. De certa forma, ela desempenha um papel equivalente ao de Hermes ao conceder a Odis- seu o μόλυ, uma erva de raiz negra que o torna imune aos feitiços de Circe (Od. 10. 302-6), reafirmando seu status quase divino ante os argonautas, necessitados de um auxílio sobre-humano.

A decisão de Medeia em colaborar não é imediata, mas deriva de um longo processo de reflexão no qual ela teme que suas atitudes sejam descobertas e a puni- nº 22, Jan.-Apr. 2018 ção paterna lhe seja pesada, bem como a renome ad- vindo da escolha tomada. As opções de prestar auxílio a Jasão ou ignorá-lo são insufladas por um conflito entre ἵμερος e αἰδώς (Arg. 3. 648-55)23, numa suces- são de certezas seguidas de hesitações, indicando a Fernando Rodrigues confusão mental em que se encontra (Arg. 3. 766-69). Junior, ‘O heroísmo de Medeia nas Argo- Em Argonáuticas 3. 785, Medeia descarta o pudor e náuticas de Apolônio opta por conceder as drogas, mas logo reconhece que de Rodes’, p. 229-253 a decisão tomada será de conhecimento público e sua reputação, vilipendiada pelos colcos no futuro (Arg. 3. 791-97). Ela será censurada por ter cedido ao desejo (μαργοσύνη)24 e ter envergonhado os genitores.

A preocupação de Medeia com a reputação é largamente abordada na tragédia de Eurípides. A fama obtida por conta da colaboração com os ar- gonautas é mencionada por Jasão durante o pri- meiro confronto verbal com a esposa abandonada (Med. 534-41). Reiteradas vezes na peça é dito que a τιμή de Medeia havia sido atingida (Med. 20, 33, 241 438, 660, 696 e 1354), revelando constante interes- se pela manutenção do κλέος (Med. δύσκλειαν, 218; εὐκλεεῖς, 236; εὐκλεέστατος 810). Sua incursão em ambiente masculino repleto de valores heroicos tam- bém pode ser notada no emprego de imagens ade- quadas a contextos bélicos, como o desejo de lutar com escudo ao invés de dar à luz (Med. 250-51) ou a intenção de matar os rivais com armas (Med. 379), possibilidade logo descartada dada a vergonha de- corrente de provável fracasso.25 Ela julga estar dian- te de um duelo de coragem (ἀγῶν εὐψυχίας, Med .403)26 e se reporta ao marido, à noiva e a Creonte como ἐχθροί (Med, 376, 383, 734, 750, 765, 1050).

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Ao se apropriar de valores masculinos, Medeia, na peça de Eurípides, acaba se coadunando a uma moldu- ra heroica. A preocupação com a τιμή e a vergonha pú- blica ao ser desonrada com o abandono do marido são frequentemente evocadas (Med. 20, 33, 438, 660, 696, 27 Fernando Rodrigues 1354). A indignação e o desejo por vingança, tentan- Junior, ‘O heroísmo do evitar o riso alheio, decorrem do fato de Medeia se de Medeia nas Argo- considerar equivalente a Jasão e possuir o mesmo sta- náuticas de Apolônio de Rodes’, p. 229-253 tus ou pertencer ao mesmo grupo do qual seu cônjuge faz parte na sociedade grega. Por conta disso, ela afir- ma às mulheres do coro que a mais gloriosa forma de vida consiste em ser grave aos inimigos e benévola aos amigos (Med. 808-10), adotando a ética da retaliação aos antagonistas que atingem sua honra.28

Jasão atribui a Afrodite o papel de única salvadora de minha navegação (Med. 527-28), enquanto Medeia, por sua vez, se considera a responsável pela aquisição do velocino na Cólquida (Med. 476-87). Por depen- der de seu auxílio, Jasão é acusado de ἀνανδρία (Med. 242 466), já que lhe faltariam audácia (θράσος) e bravura (εὐτολμία). O escoliasta de Medeia 465 considera que a acusação a ele dirigida se basearia na subordinação à esposa, pois sem os φάρμακα cedidos as provas não teriam sido cumpridas.29

A suposta ἀνανδρία alegada na peça de Eurípides poderia também ser notada na narração de alguns epi- sódios pertencentes às Argonáuticas, como, por exem- plo, o rapto do velocino de ouro vigiado por uma ser- pente guardiã no bosque sagrado. Enquanto Jasão fica imóvel e completamente aterrorizado (πεφοβημένος, Arg. 4. 149) ao se deparar com a fera, Medeia a ador- mece através de um encantamento, aspergindo os φάρμακα sobre seus olhos e proferindo fórmulas má- gicas. O herói simplesmente segue suas ordens (κούρης nº 22, Jan.-Apr. 2018 κεκλομένης, Arg. 4. 163), retirando o velo do carvalho e retornando ao navio (Arg. 4. 110-82). Medeia assume o protagonismo do episódio ao coordenar toda a ação, ao passo que Jasão permanece estupefato, à espera de re- comendações para agir no momento propício em que Fernando Rodrigues não haja nenhum perigo a enfrentar.30 Junior, ‘O heroísmo de Medeia nas Argo- náuticas de Apolônio A ἀνανδρία seria um impedimento à escolha de de Rodes’, p. 229-253 Jasão como líder da expedição, no entanto, nas Argo- náuticas, ele jamais é denominado ἄνανδρος. Sua su- bordinação a Medeia no bosque sagrado não implica falta de virilidade, mas estratégia adequada diante das condições de possibilidade de êxito aos participantes da empreitada. O embate contra a serpente é tarefa sobre-humana na mesma proporção que o cumpri- mento dos ἄεθλα e, portanto, demanda auxílio para sua realização. Os φάρμακα são o único recurso dis- ponível para adormecer o animal e roubar o veloci- no. Da mesma forma que Medeia imunizou Jasão e lhe instruiu sobre como proceder no campo de Ares, 243 ela também coordenou a ação no bosque sagrado e subordinou os argonautas a seu comando. O controle de Medeia sobre os heróis é inevitável diante de peri- gos contra os quais o emprego da força seria ineficaz, desde o abandono de Héracles no livro 1.31

A liderança da expedição não está conectada neces- sariamente à ideia de força. Se assim fosse, Héracles te- ria assumido o posto. Como Jasão sugere ao exortar os companheiros na indicação do líder, o escolhido deve se preocupar com cada detalhe (τὰ ἕκαστα, Arg. 1. 339), com a salvação de cada membro da tripulação (Arg. 1. 339 e 461) e com a realização de disputas e alianças com os estrangeiros (νείκεα συνθεσίας τε, Arg. 1. 340). Após a nº 22, Jan.-Apr. 2018 passagem pelas Simplégades, o Esonida demonstra preo- cupação com a viagem apesar de terem conseguido atra- vessar pelo estreito, pois não se preocupa somente com a sua própria vida, mas com a de todos os companheiros (Arg. 2. 622-37). As disputas entre exércitos oponentes Fernando Rodrigues são raras nas Argonáuticas, tomadas sempre como úl- Junior, ‘O heroísmo tima alternativa viável e só executadas quando todas as de Medeia nas Argo- possibilidades de negociação não funcionam (Arg. 3. náuticas de Apolônio 32 de Rodes’, p. 229-253 177-90). Portanto cabe ao líder uma postura eminen- temente diplomática. O acordo travado com Medeia é chamado de συνθεσία (Arg. 3. 821), bem como o casa- mento realizado na ilha dos feácios (Arg. 4. 390 e 1042).33 A relação entre os dois, portanto, é estabelecida em ter- mos de uma aliança na qual ambas as partes envolvi- das possuem interesse, ou seja, um acordo entre iguais. A capacidade de realizar tais pactos fundamentais para o sucesso da missão proporciona a Jasão assumir a po- sição de ὄρχαμος. No curso da ação, diferentes perigos são enfrentados, cabendo ao líder reconhecer quais oponentes os combateriam de maneira mais eficaz. 244 A força excessiva de Héracles o capacita a enfrentar os Gigantes em Cízico, a perícia de Polideuces o torna o pugilista ideal contra Ámico e a agilidade dos Boréadas permite que persigam as Harpias até as ilhas Plotas. A atuação de Medeia em contextos nos quais o uso da ma- gia seria imprescindível não usurpa o heroísmo de Jasão, mas, ao contrário, colabora para o êxito coletivo e corro- bora a ideia de que ele é o ἄριστος Ἀργοναυτῶν e, por- tanto, a personagem mais adequada a ocupar a liderança da nau Argo.

Notas 1 Nas Argonáuticas, Apsirto é o protetor de Medeia (ἀοσσητήρ, Arg. 4. 407) e comandante da frota colca que perse- gue os argonautas (Arg. 4. 305-37). Ele é assassinado por Jasão nº 22, Jan.-Apr. 2018 após ter sido enganado com uma falsa proposta de trégua pla- nejada e executada com o auxílio da própria irmã. Sófocles fez menção à sua morte nas Colcas (fr. 343 Radt), no entanto ele ainda seria uma criança e teria sido degolado no palácio de Eeta. Não é possível conhecer o autor do infanticídio, dada a condi- ção fragmentária da peça. A mesma versão seria reproduzida Fernando Rodrigues em Eurípides (Med. 1334), no entanto, nessa tragédia, Medeia Junior, ‘O heroísmo de Medeia nas Argo- foi a perpetradora do crime e, portanto, se tornou portadora de náuticas de Apolônio um ἀλάστωρ (cf. também Calímaco fr. 8Pf). Ferecides (FGrH de Rodes’, p. 229-253 3F32 Jacoby), por sua vez, relata que os argonautas embarcaram com Apsirto e, ao serem perseguidos pelos navios colcos, des- membraram a criança e jogaram as partes de seu corpo no mar com o intuito de retardar os inimigos (cf. Σ Arg. 4. 223-30a). Sobre as diferentes versões do assassinato de Apsirto, ora ὑπὸ Μηδείας, ora ὑπὸ τῶν Ἀργοναυτῶν, cf. Eurípides Σ Medeia 167. 2 Cf. Dyck (1989, p. 455-70). Para uma discussão mais abrangente dessa inconsistência de Medeia, cf. Hunter (1987, p. 129-39). 3 Sobre a origem prometeica dos φάρμακα dados a Jasão, cf. As colcas de Sófocles (fr. 340 Radt). 4 Esse epíteto está conectado ao barulho provocado pela aparição da deusa (Arg. 3. 1038-40 e 1277). Cf. também Arg. 3. 245 1211. Este mesmo epíteto é também aplicado a Perséfone, Sele- ne e Hécate nos papiros mágicos (cf. Hunter 1989, p. 190-91). 5 Embora enfrente o dragão vigilante por meio de seus fei- tiços, Medeia e suas servas se assustam com o surgimento de uma serpente na Líbia (Arg. 4. 1521-24). Sua reação parece ser contraditória, no entanto reforça a ideia de justaposição de comportamentos díspares apresentados por ela. Quanto a uma reação diferente a uma situação similar, cf. Nausícaa em Odis- seia 6. 138-9. 6 Cf. Beye (1982, p. 120-32), Pavlock (1990, p. 19-68) e De Forest (1994, p. 107-124). 7 De acordo com Hunter, a passagem evoca uma cerimônia de casamento: the cosmetic preparations, the reference to bathing, a chariot-ride and attendant virgins all find some counterpart in the ritual of Greek wedding. These hints are distributed between nº 22, Jan.-Apr. 2018 the simile and the main narrative, and are suggested rather than made explicit. Medea is going to meet a man whom she has al- ready dreamed to be her husband; Nausicaa’s mind too was on marriage when she set out. (Hunter 1989, p. 192). Cf. também Campbell (1983, p. 58). Fernando Rodrigues 8 Cito a tradução de tradução de Frederico Lourenço (2010) Junior, ‘O heroísmo de Medeia nas Argo- 9 Outra semelhança entre Medeia e Ártemis é o fato de náuticas de Apolônio ambas se dirigirem a um local sagrado. A princesa colca vai de Rodes’, p. 229-253 até o templo de Hécate, no qual exerce a função de sacerdo- tisa, enquanto a deusa é guiada por suas corças para assistir a uma hecatombe. 10 Em Argonáuticas 4. 727-9, é dito que os descendentes de Hélio são reconhecíveis pelo brilho dos olhos. 11 Essa associação entre as duas deusas já é mencionada por Ésquilo em Suplicantes 676. 12 No momento em que Jasão aparece, Medeia revela, através de reações físicas, os sentimentos suscitados por Eros e nutridos pelo estrangeiro (Arg. 3. 962-65). O coração lhe salta do peito, os olhos obscurecem e o rosto fica rubro. Os mesmos sintomas já ha- viam sido descritos em Arg. 3. 724-26. Quanto à associação dessas 246 reações e o sentimento de temor, cf. Campbell (1983, p. 67). 13 Embora Jasão nada fale sobre o desfecho dessa história, o narrador faz referência ao abandono de Ariadne em Dia em Argonáuticas 4. 424-34. Cf. Jackson (1999, p. 152-57). 14 A união de Medeia e Aquiles nos Campos Elísios (Arg. 4. 811-15) também indicaria um desfecho trágico ao relaciona- mento com Jasão. 15 Cf. as semelhanças entre as despedidas de Medeia (Arg. 3. 1069-71) e de Nausícaa (Od. 8. 461-62). 16 As Corintíacas narrariam, com alguma extensão, a via- gem dos argonautas em conexão com a história da cidade de Corinto. Não sabemos qual seria o espaço dado ao evento e de que maneira precisa ele estaria ligado ao tema principal da epo- peia, todavia um número significativo de fragmentos relacio- nados a Jasão e à expedição à Cólquida sugere certo destaque. Possivelmente o vínculo entre a história de Corinto e a família dos eólidas seria estabelecido por meio de Eeta. Segundo Eu- nº 22, Jan.-Apr. 2018 melo, o filho de Hélio seria soberano de Éfira (o antigo nome de Corinto, cf. fr. 1-2 e 4 K), contudo migrou para a Cólquida (fr. 2K) tornando-se monarca local. Daí decorreria a conexão com Jasão, Medeia e o reino de Corinto, pois quando o trono da cidade se tornou vago, a princesa colca foi chamada de Iolco Fernando Rodrigues para assumir o poder real. Junior, ‘O heroísmo 17 Talvez as Naupácticas fossem um poema hexamétrico de Medeia nas Argo- náuticas de Apolônio muito próximo ao Catálogo das Mulheres. Grande parte dos de Rodes’, p. 229-253 fragmentos é extraída dos escólios das Argonáuticas de Apo- lônio de Rodes e abarca diferentes etapas da expedição. O po- ema deveria conter uma narrativa completa da história, abor- dando eventos desde a viagem de ida à Cólquida (fr. 3K), até o retorno a Iolco e os desdobramentos da missão em solo grego (fr. 10K). Cf. Huxley (1969) e Matthews (1977: 189-207). 18 ἔν δὲ τοῖς Ναυπακτικοῖς Ἴδμων ἀναστάς Ἰάσονι κελεύει ὑποστῆναι τὸν ἆθλον. (cf. fr. 6K). 19 A referência literária mais antiga conhecida conectando Afrodite à expedição dos argonautas seria a coleção de fragmentos das Naupácticas. Desde Odisseia 12. 69-72, a divindade comumente associada aos argonautas, preocupada com a segurança e o sucesso da missão, seria Hera. Cf. Píndaro Pítica 4. 184-85, Ferecides FGrH 247 3F15 Jacoby e Apolodoro 1. 9. 16. Sobre a intervenção de Afrodite para o retorno dos argonautas a Iolco, cf. Eurípides Medeia 526-28. 20 Em Argonáuticas 1. 1285, o termo ἄριστος é utilizado para designar Héracles. Certamente a condição de “melhor” nessa ocorrência está relacionada ao emprego da força excessiva e, portanto, alheia à discussão sobre quem mais adequadamente exerceria a liderança da nau Argo. 21 Cf. Vian (1978, p. 1025-41), Hunter (1988, p. 436-53), Jackson (1992, p. 155-62), Pike (1993, p. 27-37), Clauss (1993, p. 176-211) e De Forest (1994, p. 47-69). 22 De acordo com Hunter, these verses help to establish a ‘quasi-identification’ between Medea and the fleece which is to have an important role later in the poem, culminating in IV 1141-69 where the couple spend their wedding night on the fleece. (Hunter 1989, p. 165). nº 22, Jan.-Apr. 2018 23 Cf. também Argonáuticas 3. 741-43. 24 O adjetivo μάργος é usado em referência a Eros em Argo- náuticas 3. 120. 25 Buscando encorajar-se para ser capaz de matar os próprios filhos, Medeia empunha a espada ecorre para a meta triste da Fernando Rodrigues vida (Med. 1245). O termo βαλβῖδα, empregado na passagem, Junior, ‘O heroísmo designa as balizas presentes nos estádios nas quais uma corda era de Medeia nas Argo- presa para servir de ponto de partida e de chegada aos corredores náuticas de Apolônio do δίαυλος (Page 1988: 166). A imagem criada equipara a mãe, de Rodes’, p. 229-253 prestes a cometer infanticídio, a um corredor prestes a iniciar uma disputa esportiva. O vocabulário reiteradamente utilizado durante a peça associa Medeia a um combatente ou atleta em vias de realizar feitos a serem gloriados pelos pósteros. 26 Há duas ocorrências da expressão ἀγῶν εὐψυχίας em contexto bélico nas elegias marciais de Tirteu (fr. 10. 13-18W e fr. 11. 3-6W). O termo ἀγών designa os conflitos entre marido e esposa em Medeia 235 e 366. 27 Cf. Mastronarde (2002, p. 167). 28 Cf. Arquíloco fr. 23. 14-15W, Sólon fr. 1. 5-6W, Teógnis 869-72, Píndaro Píticas II 151, Ésquilo Coéforas 122, Platão República 332b, Eurípides Héracles 585-86 e Xenofonte 248 Memoráveis II 6. Segundo Bongie, Euripides gives another portrait of a woman and a wife, one whose character and principles, however, have their closest affinities, not with Al- cestis and women of her kind, but rather with the great male heroes of Greek literature such as the Homeric Achilles and the Sophoclean Ajax (Bongie 1977, p. 27). Para mais infor- mações, consultar: Knox (1977, p. 193-225), Rehm (1989, p. 97-115), Boedeker (1997, p. 127-148), Mueller (2001, p. 471- 504) e Mastronarde (2002, p. 7-36). 29 Sg. Boedeker (1997, p. 127), a peça de Eurípides foi res- ponsável por moldar a identidade atribuída a Medeia a partir de então, ao empregar vocabulário e comportamento masculinos que a distinguem da ἀνανδρία exibida por Jasão. Sua inflexibili- dade a torna equiparável a uma rocha ou ao mar (Med. 28-29), tal como Aquiles (Il. XVI 34-35), Odisseu (Od. XVII 463-64) ou Menelau (Eurípides Andrômaca 537-38). A imagem volta a aparecer em Med. 1279-80, quando o coro a acusa de ser feita de pedra ou de ferro por ter assassinado a prole, pois, segundo nº 22, Jan.-Apr. 2018 Mastronarde (2002: 169), esses elementos funcionam como em- blemas do que é duro, cruel, inflexível ou insensível. 30 Em outras versões da história, a serpente também era adormecida pelos feitiços de Medeia (cf. Antímaco fr. 63 Wyss, Apolodoro 1. 9. 23, Valério Flaco 8. 68-120). Em Argonáuticas Fernando Rodrigues Órficas, o encantamento é empreendido por Orfeu através da Junior, ‘O heroísmo lira. Contudo havia versões em que o animal era morto por Ja- de Medeia nas Argo- são em combate, como em Ferecides (FGrH 3F51Jacoby) e em náuticas de Apolônio Heródoro (FGrH 31F52). Píndaro parece mesclar as duas va- de Rodes’, p. 229-253 riantes, pois o monstro é abatido (κτεῖνε, cf. Pítica 4. 249) e não posto para dormir, no entanto a maneira como isso ocorre não é clara (Pítica 4. 249-50). As τέχναι empregadas não são explica- das, gerando dúvidas sobre quem realmente as detém e de que forma elas atuam para derrotar a serpente vigilante. Na peça de Eurípides, Medeia afirma ter sido ela própria quem abatera o dragão (Med. 480-82, cf. também Diodoro da Sicília 4. 48. 3), porém é improvável que em Píndaro ela possa ser compreendida como sujeito do verbo κτεῖνε. Segundo o escoliasta de Píndaro Pítica 4. 443, as τέχναι citadas pertenceriam a Medeia. Essas técnicas poderiam ser uma referência ao feitiço com o qual ela adormeceu a serpente, tal como Apolônio de Rodes narrou nas Argonáuticas. Se essa leitura estiver correta, Jasão teria assassi- nado a fera entorpecida. 249 31 A ausência de Héracles é lamentada em diversas ocorrên- cias nas Argonáuticas (cf. 2. 145-53 e 774-89; 3. 1232-34). Segundo Hunter (1989, p. 234), the resort to magic was thus entirely necessa- ry, once Heracles had been lost to the expedition. No entanto, para De Forest (1993, p. 107), Medea is the tragic hero of the poem and the only one to struggle with a moral choice. She steps into the spa- ce left by Heracles, and though a girl, becomes the central character. 32 No decorrer da narrativa, a via diplomática é adotada em oposição ao confronto beligerante, de modo que as Argonáuticas só apresentam cinco batalhas espalhadas pelos quatro cantos: a batalha contra os Nascidos da Terra em Cízico (1. 898-1011), em- preendida quase na sua totalidade por Héracles; o confronto no- turno com os dolíones (1. 1018-52), fruto de um equívoco dada a total ignorância sobre a identidade dos inimigos; o embate contra os bébrices após a morte de Ámico (2. 98-136); os ἄεθλα de Jasão nº 22, Jan.-Apr. 2018 (3. 1277-398), realizados por meio da imunização do herói e das instruções de Medeia; e o sucinto confronto naval com os colcos (4. 482-91), resultado de um dolo planejado pelos argonautas. 33 O termo συνθεσία também e utilizado para designar o acordo com Alcínoo (Arg. 4. 1176) e a barganha com Apsirto Fernando Rodrigues (Arg. 4. 340, 378, 404, 437 e 453). Junior, ‘O heroísmo de Medeia nas Argo- náuticas de Apolônio de Rodes’, p. 229-253 Bibliografia ALLEN, T. W. (1917). Homeri Opera (Tomus III - Odyssea Libros I-XII). Oxford, Oxford University Press.

BEYE, C. R. (1982). Epic and Romance in the Argo- nautica of Apollonius. Carbondale, Southern Illinois University Press.

BOEDEKER, D. (1997). Becoming Medea: Assimila- tion in Euripides. In: CLAUSS, J. J.; JOHNSTON, S. I. (ed.) Medea. Essays on Medea in Myth, Literature, Phi- 250 losophy and Art. New Jersey, Princeton University Press. BONGIE, E. B. (1977). Heroic Elements in the Medea of Euripides. TAPA 107, p. 27-56. https://doi. org/10.2307/284024

CAMPBELL, M. (1983). Studies in the Third Book of Apollonius Rhodius’ Argonautica. New York, Hildesheim.

CLAUSS, J. J. (1993). The Best of the Argonauts. The Redefinition of the Epic Hero in Book 1 of Apol- lonius’ Argonautica. Berkeley, University of Cali- fornia Press.

CLAUSS, J. J. (1997). Conquest of the Mephis- tophelian Nausicaa: Medea’s Role in Apollonius’ Redefinition of the Epic Hero. In: CLAUSS, J. J.; nº 22, Jan.-Apr. 2018 JOHNSTON, S. I. (eds.) Medea. Essays on Medea in Myth, Literature. New Jersey, Princeton University Press.

DE FOREST, M. M. (1994). Apollonius’ Argonau- Fernando Rodrigues tica: a Callimachean Epic. Leiden, E. J. Brill. Junior, ‘O heroísmo de Medeia nas Argo- DYCK, A. R. (1989). On the Way from Colchis to náuticas de Apolônio Corinth: Medea in Book 4 of the Argonautica. Hermes de Rodes’, p. 229-253 117, p. 455-70.

FRÄNKEL, H. (1961). Apollonii Rhodii Argonau- tica. Oxford, Oxford University Press.

HUNTER, R. L. (1987). Medea’s Flight: the Fourth Book of the Argonautica. Classical Quarterly 37, p. 129-39. https://doi.org/10.1017/S0009838800031724

HUNTER, R. L. (1988). Short on Heroics: Jason in the Argonautica. Classical Quarterly 38, p. 436-53. https://doi.org/10.1017/S0009838800037058 251 HUNTER, R. L. (1989). Apollonius of Rhodes. Argonautica Book III. Cambridge, Cambridge Uni- versity Press.

HUNTER, R. L. (1993). The Argonautica of Apollonius: Literary Studies, Cambridge, Cam- bridge University Press. https://doi.org/10.1017/ CBO9780511552502

HUXLEY, G. L. (1969). Greek Epic Poetry from Eu- melos to Panyassis. London, Faber.

JACKSON, S. (1992). Apollonius’ Jason: Human Being in an Epic Scenario. G&R 39, p. 155-62. https:// doi.org/10.1017/S001738350002413X nº 22, Jan.-Apr. 2018 JACKSON, S. (1999). Apollonius’ Argonautica: the Theseus/Ariadne Desertion.RhM 142, p. 152-57.

KNOX, B. M. W. (1977). TheMedea of Euripi- Fernando Rodrigues des. Yale Classical Studies 25, p. 193-225. https://doi. Junior, ‘O heroísmo de Medeia nas Argo- org/10.1017/CBO9780511933738.008 náuticas de Apolônio de Rodes’, p. 229-253 LOURENÇO, F. (2010). Homero. Odisseia. Lisboa, Livros Cotovia.

MASTRONARDE, D. J. (2002). Euripides. Medea. Cambridge, Cambridge University Press.

MATTHEWS, V. J. (1977). Naupaktia and Ar- gonautica. Phoenix 31, p. 189-207. https://doi. org/10.2307/1087099

MUELLER, M. (2001). The Language of Reciproc- ity in Euripides’ Medea. AJP 123, p. 471-504. https:// 252 doi.org/10.1353/ajp.2001.0054 PAGE, D. L. (1988). Euripides Medea. Oxford, Oxford University Press.

PAVLOCK, B. (1990). Eros, Imitation and the Epic Tradition. Ithaca and London, Cornell University Press.

PIKE, D. L. (1993). Jason’s Departure: Apollonius Rhodius and Heroism. AC 36, p. 27-37.

REHM, R. (1989). Medea and the λόγος of heroic. Eranos 87, p. 97-115.

VIAN, F. (1978). ΙΗΣΩΝ ΑΜΗΧΑΝΕΩΝ. In: LIVREA, E.; PRIVITERA, G. A. (eds.). Studi in On- ore di Anthos Ardizzoni .Roma, Edizioni dell’ Ateneo & Bizzarri, p. 1025-41. nº 22, Jan.-Apr. 2018

Submetido em Junho e aprovado para publicação em Agosto, 2016

Fernando Rodrigues Junior, ‘O heroísmo de Medeia nas Argo- náuticas de Apolônio de Rodes’, p. 229-253

253 Página deixada propositadamente em branco Renata Cazarini de Freitas - Universidade de São Paulo (Brasil) [email protected] - ORCID: 0000-0001-6848-066X

Cuncta quatiam: Medeia abala estruturas nº 22, Jan.-Apr. 2018

Cuncta quatiam: Medea shakes the elements

FREITAS, R. C. (2018). Cuncta quatiam: Medeia abala estruturas. Archai, n.º 22, Jan.-Apr., p. 255-281 DOI: https://doi.org/10.14195/1984­‑249X_22_10

Resumo: O fim moralmente aporético da tragédia latinaMe - deia, de Sêneca, estarrece o leitor. Depois de ter matado os dois filhos em um ato de vingança contra Jasão, a figura feminina mítica é alçada ao céu em uma carruagem alada para uma saída triunfal. Como é que essa mulher repudiada e irada acaba por ser uma espécie de heroína para o dramaturgo estoico? Acon- tece que, para Sêneca, a virtus não é medida por boas ações no campo de batalha, mas como uma disposição mental para en- frentar adversidades. Em uma série de ocasiões, Sêneca escre- ve sobre o ser humano virtuoso e sua consistência de caráter. Tratamos, neste artigo, da Epístula 120 sobre epistemologia, da obra filosófica De providentia e das peças Medea e Hercules Fu- rens na tentativa de elucidar o processo através do qual a princesa 255 bárbara recupera sua identidade, longe dos homens, mais perto dos deuses. Palavras-chave: Medeia, Sêneca, Teatro, Filosofia, Virtude.

Abstract: The morally aporetic end of Seneca’s LatinMedea puzzles the reader of the play. After having killed her two sons in an act of vengeance against Jason, the mythic female figure is raised to the heavens on a winged chariot toward a triumphal exit. How come that the repudiated and enraged woman turns out to be a kind of heroine for the Stoic playwright? It happens that for him virtus is not measured by good actions in the bat- tlefield, but as a mental disposition to face ill fortune. In a range of occasions Seneca writes about the virtuous human being and his/her consistency of character. We deal in this article with Seneca’s Letter 120 on epistemology, the philosophical piece De providentia and the plays Medea and Hercules Furens in an nº 22, Jan.-Apr. 2018 attempt to elucidate the process through which the barbarous princess regains her identity, far from men, closer to the gods. Keywords: Medea, Seneca, Theatre, Philosophy, Virtue.

Renata Cazarini de Frei- A Medeia de Sêneca abala estruturas. Na peça em tas, ‘Cuncta quatiam: latim, a personagem comete o duplo assassinato dos Medeia abala estruturas’, filhos em cena, contrariamente à prescrição da po- p. 255-281 ética de Horácio,1 e faz um ritual de magia no qual inverte os ciclos da natureza e verte o próprio sangue no palco. Motivada pela ira, uma das paixões con- denadas pelos seguidores do estoicismo, como era o caso de Sêneca, a protagonista da peça executa vin- gança terrível e, mesmo assim, no final, se revela um tipo de heroína.

O desfecho da peça senequiana é apoteótico e, quan- to à moral, pode-se dizer, aporético. A vingativa prin- cesa bárbara, filicida, fratricida, maquinadora de sór- didos delitos motivados por ira desmedida, é alçada ao 256 mais alto dos céus num carro conduzido por serpentes aladas. Nem a justiça terrena nem a divina parecem se importar com o rastro do sangue derramado.

E mais, os elementos da natureza por ela conjura- dos foram-lhe propícios: privado dos filhos, da nova mulher, do sogro e de abrigo, a declaração final de Jasão de que os deuses não existem cai no vazio diante da saída triunfal da mais recente semideusa. E uma pergunta fica ecoando: como se configura essa heroi- cização de Medeia? Pois pode o leitor ou o espectador dizer que ela não seja a heroína da trama?

Proponho uma abordagem do texto dramático a partir de conceitos do estoicismo tardio, recorrendo 2 à herança filosófico-literária senequiana, com duplo nº 22, Jan.-Apr. 2018 objetivo, o de aplainar, pouco que seja, o terreno ir- regular compartilhado pelos textos dramatúrgicos e doutrinários do escritor, e o de endossar a leitura, ainda hoje um tanto inconstante, da Medeia latina como figura triunfante na peça. Renata Cazarini de Frei- tas, ‘Cuncta quatiam: Medeia abala estruturas’, Minha argumentação apoia-se na pressuposição p. 255-281 de que o autor latino do século I d.C. tenha moldado a personagem mítica como se um proficiens estoico, visto que no poema dramático, no único dia em que decorre a história, ela se exercita no autoquestiona- mento e recorre a exempla para tomar decisões como se cumprindo o programa de instrução filosófica deli- neado nas Ad Lucilium Epistulae Morales, obra elabo- rada como suposta troca epistolar do mentor Sêneca com seu interlocutor Lucílio.

Essa proposição não é inovadora. Shadi Bartsch a desenvolve no capítulo 5 do seu livro The Mirror of the Self: Sexuality, Self-Knowledge, and the Gaze in the 257 Early Roman Empire, em que apresenta a Medeia se- nequiana como o paradigma do self-in-progress, resul- tando, porém, num monstro, imagem distorcida do sábio: “Medeia se apresenta precisamente como uma leitura do filósofo estoico – num espelho distorcido, mas ainda claramente visível, e uma imagem de fato assustadora” (Bartsch, 2006, p. 232).3 Embora minha interpretação coincida em muitos pontos com a de Bartsch, dela me afasto nessa concepção da Medeia senequiana como “a autodeterminação de um sábio- -monstro” (2006, p. 277).4

O sábio, na concepção estoica, existe apenas de forma potencial porque é, por assim dizer, a perso- nº 22, Jan.-Apr. 2018 nificação mesma davirtus ou areté, que, se encampa- da como força da alma tendente ao bem normativo ou bonum, desloca Medeia nesse eixo sábio-monstro para a extremidade monstro.

Renata Cazarini de Frei- Contudo, segundo Matthew Roller no seu livro tas, ‘Cuncta quatiam: Constructing Autocracy: Aristocrats and Emperors in Medeia abala estruturas’, Julio-Claudian Rome, Sêneca faz um reposicionamen- p. 255-281 to do termo virtus, adaptando-o ao contexto imperial opressivo de sua época. O valor moral não reside mais exclusivamente na ação viril sujeita à aprovação pú- blica, mas na disposição mental do ser humano para agir com tenacidade mesmo aparentando ser-lhe des- favorável: “A arena adequada para o exercício da vir- tus já não é o combate militar, mas a confrontação da adversidade” (Roller, 2001, p. 104).5

Ainda que o elemento resultante do processo de formação de Medeia na peça não seja explici- tamente o bonum, há indícios de que ela alcança a virtus, mas uma virtude ética, não contemplativa, 258 que exige deliberações que se manifestem em ações congruentes. Enquanto o proficiens é um “self”, uma consciência, em constante investigação dialógica con- sigo mesmo, o sapiens é um “self” já coerente consigo. Se é na calamidade que se põe a virtus à prova, é na firme disposição que avirtus se comprova.

Embora a livre escolha, a prohairesis, seja crucial para o estoicismo (mesmo que a genuína liberdade esteja na conformidade de querer o que é inevitável por natureza),6 não é demais ressaltar o abismo entre realidade e literatura. Medeia é personagem atada a certas escolhas, pois, ao menos desde Eurípides, no século v a.C., o seu reconhecimento na tradição anti- ga passa pela figura da mãe que mata os filhos numa nº 22, Jan.-Apr. 2018 vingança amorosa.7

Na tragédia latina, Medeia é um “self” ou – mais apropriadamente – um “sensus sui”, seguindo Cícero, 8 no De finibus , que se firma contra os atos opressivos Renata Cazarini de Frei- resultantes da quebra do pacto sagrado que selava sua tas, ‘Cuncta quatiam: união com Jasão. A partir desse rompimento, o prínci- Medeia abala estruturas’, p. 255-281 pe argonauta pode casar-se com a filha de Creonte, rei de Corinto, garantindo asilo para si e seus dois filhos com Medeia, que, condenada a novo exílio, demanda e conquista um dia a mais na cidade, deliberando e executando sua vingança nesse curto período.

A Medeia senequiana revela, desde as invocações que faz no monólogo de abertura, a intenção de resta- belecer as prévias relações com os deuses súperos e ín- feros, os manes, as fúrias e seu ancestral, o Sol. Ao mes- mo tempo, sinaliza a cessação dos seus vínculos atuais. Ela não está mais em conciliação com seu microcosmo em Corinto, então, vai abalar as estruturas do lugar: 259 as estruturas do palácio, com um fogo devastador que consome rei e princesa, mas também as estruturas do macrocosmo, mobilizando os elementos e invertendo os ciclos da natureza em seu favor. Acima de tudo, Me- deia abala estruturas morais intocáveis como a mater- nidade, a autoridade terrena, o poder divino.

No primeiro hemistíquio do verso 425, lê-se na fala de Medeia: et cuncta quatiam. Tanto quanto tradutores em geral têm sido convencionais no trato com o verso citado, o professor Frederick Ahl foi ousado ao vertê-lo por “I shall shake the elements” (Ahl, 1986, p. 67). Nessa linha, opto pela expressão “e (et) vou abalar (quatiam) estruturas (cuncta)”. O verbo “abalar” tem o sentido lite- nº 22, Jan.-Apr. 2018 ral de “fazer tremer ou estremecer” e o figurado de “sub- verter ou provocar mudanças”, de acordo com o Dicio- nário Houaiss. Essa polissemia adéqua-se ao texto latino.

Medeia monoikos Renata Cazarini de Frei- tas, ‘Cuncta quatiam: Na peça de Sêneca, em consonância com a tradi- Medeia abala estruturas’, ção mitológica, o laço matrimonial desfeito alimen- p. 255-281 ta a vingança amorosa, mas o expurgo de Medeia de seu núcleo familiar, o oikos, e o rejeição que sofre da comunidade grega caracterizam singularmente o isolamento da princesa bárbara. Ela já não tem alia- dos, enquanto, na peça homônima de Eurípides, ela tem a simpatia do coro. A própria Medeia sinaliza, numa sententia no verso que encerra o primeiro tre- cho do monólogo de abertura, o efeito desastroso desse expurgo:

Quae scelere parta est, scelere liquenda est domus9 (Med. 55) Lar com crime concebido, com crime há que deixá-lo. 260 E o coro, nos versos que encerram o epitalâmio em lou- vor ao novo enlace, revela sua indisposição para com ela, denunciando a inadequação de Medeia àquele meio:

Tacitis eat illa tenebris si qua peregrino nubit marito (Med. 114-5) Que vá pelas tácitas trevas mulher que foge e se casa com estrangeiro.

A fuga da Cólquida e o assassinato do irmão a ali- jaram também de seu povo, como deixam claro o pe- sar da Ama, no verso 164, e a ironia do rei Creonte, no verso 197: nº 22, Jan.-Apr. 2018

Abiere Colchi, coniugis nulla est fides. (Med. 164) Foram-se os colcos e não tens a fidelidade do esposo.

Renata Cazarini de Frei- tas, ‘Cuncta quatiam: I, querere Colchis. (Med. 197) Medeia abala estruturas’, Vai, queixa-te aos colcos! p. 255-281

Helen Fyfe (1983), numa análise da peça latina, ar- gumenta que o repúdio de Jasão provoca o colapso das balizas existenciais e morais de Medeia, porque insta- lada numa comunidade em que o louvor do coro ao luminoso matrimônio como instituição fundamental pressupõe uma ordem social civilizada da qual ela, com sua faceta bárbara e sombria, é a antítese. Bartsch endossa que “Medeia se torna Medeia ao rejeitar os valores de sua comunidade” (2006, p. 273)10, pois sua comunidade de um só elemento já lhe é o bastante. 261 O atributo “monoikos” dado a Hércules por Kath- leen Riley, no seu livro The Reception and Performan- ce of Euripides’ Herakles: Reasoning Madness (2008, p. 2), a partir da análise de Michael Silk (1985) de que esse herói reside no interstício entre o divino e o humano, parece adequado também à Medeia se- nequiana, como personagem que se encontra à mar- gem. Sêneca, que escreveu um Hercules Furens, uma vez mais pondo em cena o assassinato de filhos e es- posa, aproxima os dois textos dramáticos e as duas figuras lendárias em mais de uma oportunidade, mas basta exemplificar com dois versos de cada peça em que o tema é a apoteose desses semideuses:

nº 22, Jan.-Apr. 2018 in alta mundi spatia sublimis ferar, petatur aether: astra promittit pater. (Herc. 958-9) Levem-me às alturas do mundo sublime em busca do céu: meu pai promete os astros. Renata Cazarini de Frei- tas, ‘Cuncta quatiam: Medeia abala estruturas’, p. 255-281 per alta vade spatia sublime aetheris, testare nullos esse qua veheris deos. (Med. 1026-7) Pelas alturas do céu, vai-te, sublime. Atesta, por onde segues, não há deuses.

No Hercules Furens, Sêneca estabelece o conflito en- tre a virtus animosa exercida continuamente pelo herói e suas consequências desastrosas para o oikos e a estoica secura quies que Anfitrião, dublê humano do pai Zeus/ Júpiter, almeja e recomenda para o filho. A flagrante oposição entre as duas condutas pode ser explicitada na tradução que proponho: “virtude impetuosa” e “cal- 262 ma serena”. É a vingativa Hera/Juno que, no monólogo de abertura, aponta a disposição de Hércules em alcan- çar os céus como um deus custe o que custar: pela ruí- na, pela destruição, se necessário. Na sua alucinação, o próprio diz que a terra não o comporta. E o coro alerta que o tombo da virtude impetuosa é muito alto.

Também para Medeia a calma serena parece impossível:

Sola est quies, mecum ruina cuncta si video obruta; mecum omnia abeant. Trahere, cum pereas, libet. (Med. 426-8)

nº 22, Jan.-Apr. 2018

Só terei calma vendo estruturas feitas em ruínas comigo. Que tudo suma junto comigo. É um prazer arrastar tudo junto. Renata Cazarini de Frei- tas, ‘Cuncta quatiam: Medeia abala estruturas’, Essa não é uma ameaça vã. Tanto que Jasão faz um p. 255-281 apelo desesperado:

Quid, misera, meque teque in exitium trahis? Abscede, quaeso. (Med. 513-4)

Por que, infeliz, arrastas a mim e a ti para a destruição? Parte, eu te peço.

É fundamental no estoicismo, do qual Sêneca é um expoente no período imperial, o conceito de oikeíosis 263 ou conciliatio, entendido como a apropriação afetiva em benefício do próprio ser. Uma ideia bem próxi- ma, em português, da noção de apego ou afinidade. Giovanni Reale é muito didático sobre o assunto:

Em virtude do princípio da oikeíosis, todas as coisas ten- dem a apropriar-se do próprio ser e a amá-lo, tendem a conservá-lo e a incrementá-lo, conciliam-se com as coi- sas que favorecem e tornam-se inimigas das que prejudi- cam. (...) E dado que primeiro e original é o instinto de conservação e a tendência ao incremento do ser, eis aí o princípio da avaliação: ‘bem’ é o que conserva e incre- menta o nosso ser; ‘mal’ é, ao contrário, o que o danifica e diminui. (REALE, 2015, p. 76-7)

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Esse conceito é aplicado também ao cosmopoli- tismo romano por Daniel S. Richter no livro Cosmo- polis: Imagining Community in Late Classical Athens Renata Cazarini de Frei- and the Early Roman Empire. Ele afirma que oikeío“ - tas, ‘Cuncta quatiam: sis não é um ato de apropriação, mas uma disposição Medeia abala estruturas’, afetiva – a compreensão de que se participa de uma p. 255-281 matriz relacional que transcende as noções tradi- cionais dos vínculos sociais” (Richter, 2011, p. 75).11 Essa matriz relacional é subjugada ao interesse da comunidade de um, monoikos, pelos protagonistas das peças latinas analisadas.

Medeam agnosco

O eixo central da Medeia de Sêneca é o processo de formar uma opinião clara e distinta, tomar uma decisão e agir em consonância com ela – o que vale para o personagem principal, mas também, super- 264 ficialmente, para Jasão e Creonte. Ao longo desse processo, a protagonista resgata a mitológica iden- tidade caucasiana de Medeia e uma atitude que é coerente com ela. Essa consistência, essa autenti- cidade, é algo que os estoicos consideram fora do comum: é uma característica do sábio.

Sêneca afirma na Epístola 120, na qual delineia a epistemologia estoica, que “o maior indício de uma mente enferma é a inconstância, a oscilação frequente entre simular virtudes e amar vícios”.12 Para ser reco- nhecido, é preciso ser no fim o mesmo do início.

A importância que o reconhecimento de Medeia enquanto Medeia tem para a protagonista na peça de Sêneca é incontestável, como atestam seus mais famo- nº 22, Jan.-Apr. 2018 sos versos: Medea superest (Med. 166), Medea... fiam (Med. 171), Medea nunc sum (Med. 910), coniugem agnoscis tuam? (Med. 1021).13 No desfecho da Epís- tola 120, Sêneca insiste: “Leva em conta que é muito importante que o ser humano desempenhe um só pa- Renata Cazarini de Frei- pel. Ora, além do sábio, ninguém desempenha um só, tas, ‘Cuncta quatiam: 14 Medeia abala estruturas’, o resto de nós é multifacetado”. O sapiens estoico é p. 255-281 coerente: sua atitude racional é constante; seu com- portamento, consistente.

A esta altura, pode parecer que eu esteja muito perto de chamar a Medeia senequiana de sábia e virtuosa ape- sar de ser uma mulher na Antiguidade, apesar de ter co- metido duplo filicídio. A pergunta que se tenta respon- der é: qual seria o tamanho dessa impropriedade?

Alessandro Schiesaro afirma que não é tão fá- cil determinar o “saldo moral” de um personagem senequiano, e dá um veredito nada favorável a Jasão: “Seu desejo de mudança – de uma nova esposa – está 265 essencialmente enraizado no egoísmo, no desejo de salvar a si e, talvez, a seus filhos” (Schiesaro, 2009, p. 232).15 Medeia, por outro lado, mesmo que compa- rada a uma mênade possuída, está constantemente avaliando a própria situação, como bem nota Schie- saro: “Ela está longe de ser irracional: ‘irracionali- dade’ é uma arma que ela empunha com destreza e sofisticação, com intenção clara e estratégia” (Schie- saro, 2009, p. 228).16

Na Epístola 41, Sêneca compara a virtude própria da videira, que é a fertilidade, à virtude própria do ho- mem, que é o espírito perfeitamente racional (animus et ratio in animo perfecta). A razão, ele argumenta, nº 22, Jan.-Apr. 2018 cobra apenas uma coisa do ser humano, e uma coisa “facílima”, segundo o escritor: “viver de acordo com a própria natureza”, entenda-se, de acordo com a natu- reza racional do homem.17

Renata Cazarini de Frei- Os estoicos entendem que o conhecimento decor- tas, ‘Cuncta quatiam: re do assentimento adequado que a razão dá a uma Medeia abala estruturas’, p. 255-281 impressão, a phantasia ou species. Para Sêneca, não é possível crer que alguém possa, apenas por acaso, chegar à noção do que seja a virtude: a apreensão dessa noção exige a observação e a comparação de ações prévias até que se aprenda a dar assentimento a uma impressão corretamente.18 Na Epístola 6, em que reflete sobre o programa de instrução filosófica delineado na suposta troca epistolar com Lucílio, Sê- neca afirma que “o caminho através dos preceitos é longo; através dos exemplos, curto e eficaz”.19

Em sua obra em prosa, o autor latino é prolífico nos exemplos de conduta em situações emblemáticas. 266 Na Epístola 24, por exemplo, ele cita um homem sem qualquer formação filosófica entre os virtuosos.Gaius Mucius Cordus ou Scaevola invadiu o acampamento militar etrusco para matar Porsena, que cercava Roma com o intuito de restabelecer a monarquia dos Tar- quínios contra a nova República, mas tendo falhado na empreitada, pôs a mão direita num braseiro até que se vissem seus ossos.

Vides hominem non eruditum nec ullis praeceptis contra mortem aut dolorem subornatum, militari tantum robore instructum, poenas a se inriti conatus exigentem; (Ep. 24.5)

Aqui tens um homem que não era erudito nem equipado nº 22, Jan.-Apr. 2018 com quaisquer preceitos contra a morte ou a dor, instru- ído apenas no vigor militar, cobrando de si uma punição pelo esforço mal fadado.

Renata Cazarini de Frei- Aqui, a virtude para enfrentar os perigos decorre es- tas, ‘Cuncta quatiam: sencialmente do vigor militar (militari robore), pouco Medeia abala estruturas’, distando da coragem, que é outra tradução possível de p. 255-281 virtus. Mas Sêneca também encontra vigor (robur ani- mi) e virtude (virtus tua) em Márcia, aristocrata roma- na que perdeu o pai literato e o jovem filho, destinatária de sua carta consolatória Ad Marciam, classificada na tradição como diálogo filosófico. Na abertura, depois de reconhecer que Márcia não exibe a inconstância do espírito feminino e outros vícios (tam longe ab infirmi- tate muliebris animi quam a ceteris vitiis), o autor co- menta porque tentará convencê-la a aceitar as perdas:

Fiduciam mihi dedit exploratum iam robur animi et magno experimento adprobata virtus tua. (Dial.6.1.1.1) 267 Deu-me essa confiança teu já comprovado vigor espiritu- al e a tua virtude posta amplamente à prova.

Também Medeia apresenta vigor (robur virile), conforme a fala do rei Creonte, que vai no sentido contrário ao que se poderia chamar de elogio de Sê- neca a Márcia:

Tu, tu malorum machinatrix facinorum, Cui feminae nequitia, ad audendum omnia Robur virile est, nulla fama memoria (Med. 266-8)

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Tu, tu, machinatrix de malévolos delitos, Que tens a vilania da mulher e, para tudo ousar, O vigor viril, mas descuidas da perene fama

Renata Cazarini de Frei- Os feitos precedentes da protagonista, que Creonte tas, ‘Cuncta quatiam: Medeia abala estruturas’, condena, são relembrados por ela ao longo da peça para p. 255-281 subsidiar seu processo de tomada de decisão: Medeia é exemplum para Medeia. Ela se reconhece como alguém que sabe aproveitar ocasiões de colocar à prova sua vir- tude,20 alguém que ousa enfrentar a Fortuna,21 ficando acima das vicissitudes.22 Também o idealizado sábio es- toico se encontra nessa posição, conforme a Epístola 82:

A Filosofia deve nos circundar como um muro inexpug- nável que a Fortuna não transpõe mesmo tendo-o atacado com muita artilharia. Está numa posição inatingível o es- pírito que desistiu do que se encontra fora e defende-se em seu próprio baluarte: nenhum dardo chega até ele. A For- tuna não tem tanto alcance como imaginamos, não con- 268 trola ninguém exceto quem se apega a ela. (Sen. Ep.82.5)23 Sêneca, sem dúvida, atribui a virtude aos vigorosos. No diálogo filosófico De providentia,24 há um extenso re- trato de Catão de Útica, aliado de Pompeu e rival de Júlio César, como exemplum histórico, além de um catálogo de exempla mais breves. Mas está lá também Faetonte, que ousou conduzir o carro do seu pai Sol e que, na peça senequiana, é um símile masculino de Medeia, assim como a mênade é um símile feminino. Entre os versos 28 e 36 da peça, a protagonista queixa-se da displicência do Sol e exige as rédeas do carro de fogo para, como Fae- tonte, cruzar os céus e, depois, incendiar Corinto.

Sêneca buscou nas Metamorfoses de Ovídio o con- texto que ilustra a virtude de Faetonte no De providen- tia. O discurso do Sol é ovidiano, mas são senequianas nº 22, Jan.-Apr. 2018 as falas do seu arrojado filho – essa é uma real interlo- cução de Sêneca com seu modelo Ovídio! Ele reproduz brevemente dois excertos da longa fala do Sol sobre os desafios de conduzir seu carro na abóbada celeste e os intercala com falas de sua autoria para Faetonte: pri- Renata Cazarini de Frei- tas, ‘Cuncta quatiam: meiro, os versos 62 a 69 do livro II das Metamorfoses, Medeia abala estruturas’, depois, os versos 79 a 81. A virtude, afirma o mentor do p. 255-281 De providentia, deve arriscar-se nas alturas:

Vide quam alte escendere debeat virtus: scies illi non per secura vadendum.25 (Prov. 5.10)

Vê que altura a virtude deve alçar: saberás que ele deve ir por onde não é sem riscos.

Humilis et inertis est tuta sectari: per alta virtus it.(Prov. 5.11) 269 É do simplório e indolente perseguir o que é seguro: a virtude vai pelas alturas.

Esses breves excertos certamente fazem lem- brar os versos finais da Medeia e os equivalentes sobre a apoteose no Hercules Furens, reproduzidos anteriormente.

O Faetonte senequiano não se assusta com os riscos alardeados pelo pai: “Agrada-me o caminho, vou alçá-lo. Mesmo que eu caia, vale a pena ir por aí. (...) Dá prazer estar firme ali onde o próprio Sol estremece”.26 Segundo Ovídio, esse caminho de Faetonte, supostamente o que Medeia vai trilhar nas alturas, não tem deuses, como nº 22, Jan.-Apr. 2018 Jasão antecipa na peça. Não há bosques nem cidades ou santuários dos deuses; é um caminho de emboscadas e figuras ferozes, numa provável alusão às constelações.27

Renata Cazarini de Frei- “A calamidade”, afirma Sêneca noDe providentia, tas, ‘Cuncta quatiam: “é a ocasião da virtude”.28 E as provas a que se submete Medeia abala estruturas’, o homem virtuoso são um meio de autoconhecimen- p. 255-281 to: “Do que se é capaz, só se aprende tentando”.29 Po- rém, “a lição da virtude nunca é suave”.30 A ousadia de Faetonte custou-lhe a vida, mas é próprio do homem bom entregar-se ao destino: “É um grande consolo ser levado com o universo”,31 diz o mentor estoico do De providentia. Não para Medeia. Na peça, ela não se dei- xa levar pelo destino; toma suas rédeas.

Medeia é a mulher engenhosa. Acompanha-se a redescoberta de seu talento (ingenium) ao longo da peça, até que no verso 910 ela finalmente declara: “Agora sou Medeia. Os males nutriram meu talen- 32 270 t o”. Como observa John Fitch (2002, p.339), o nome Medeia é uma alusão etimológica à habilidade inte- lectual vinculada à raiz do verbo medomai. Numa leitura metateatral do verso, a protagonista alude à tradição literária de seus feitos cruéis e, numa inter- pretação da trama senequiana, ela conclui um ciclo de resgate da identidade.

Medeia triumphans

A saga do herói, como delineada na obra de Jo- seph Campbell com base nos arquétipos mitológi- cos, se completa com um retorno triunfante, após a transformação da personagem. O papel do herói é sistematicamente atribuído ao homem no acervo mitopoético da humanidade, mas é possível a in- nº 22, Jan.-Apr. 2018 terpretação da figura mitológica feminina como se um herói, tal como o faz Coline Covington (1989, p. 243), citando Antígone e a Medeia grega, mulhe- res imbuídas de um masculine principle que buscam preservar a velha ordem, submetendo-se a perdas. Renata Cazarini de Frei- Tomando emprestado a Jan Kott (2003, p. 103-23) tas, ‘Cuncta quatiam: Medeia abala estruturas’, comentários acerca do Othello de Shakespeare, po- p. 255-281 de-se afirmar que as heroínas gregas dão nome a tragédias em que “todos são perdedores” – como no Othello – ao mesmo tempo em que ambas triunfam “no plano intelectual da trama”.

A Medeia senequiana, distintamente da euripidia- na, não buscará asilo em Atenas. Sua partida triunfan- te é em direção às alturas. A virtude de Faetonte no De providentia, e já identificada na Medeia senequiana, ocorre também nos exempla históricos da Epístola 120, em que Sêneca tenta responder ao destinatário como se chega à noção de bem e honra, valores in- dissociáveis no estoicismo. Contudo, a carta resulta 271 numa breve especulação sobre a epistemologia estoi- ca: a natureza “plantou em nós a semente do conheci- mento, não nos deu o conhecimento”.33

Ressoam na epístola tópicos do livro III do De fini- bus de Cícero. Sêneca, no entanto, vai além e faz uma análise das falhas no procedimento adotado pelos estoicos ao atribuírem valor moral a algumas ações humanas por analogia com outras. A impressão do que seja o bem muitas vezes extraímos de atos que aparentavam ser perfeitos, porém mascaravam falhas. Mas, ele diz, é da natureza humana exagerar nos elo- gios, a glória se sobrepõe à verdade. Sêneca vai, então, argumentar que pode acontecer de um vício travestir- nº 22, Jan.-Apr. 2018 -se de virtude e vice-versa. É tênue essa fronteira. Ele diz: “De fato, como sabes, há vícios que confinam com virtudes, e pode assemelhar-se o que é reto ao que é ruinoso e vergonhoso. (...) A negligência imita a in- dulgência, a temeridade imita a coragem”.34 Renata Cazarini de Frei- tas, ‘Cuncta quatiam: Mesmo quando apresenta os exempla históri- Medeia abala estruturas’, cos de Horácio Cocles e Fabrício, este ocorrendo p. 255-281 também no De providentia, não se trata ainda de modelos do sábio estoico. Um ato virtuoso isolado não basta. A perfeita virtude implica tal constân- cia de atitude que, logo em seguida na epístola, Sê- neca descreve esse sábio sem identificar quem ele fosse porque talvez existisse apenas como um ide- al. Além de praticar as quatro virtudes cardeais do estoicismo: temperança, coragem, prudência, justiça – e esse “além” consta do texto de Sêneca –, o sábio ideal de virtude “era sempre o mesmo e autêntico em cada atitude”.35 Ou seja, era da sua natureza agir virtuosamente. E agir virtuosamente é harmonizar a 272 razão humana e a natureza, alcançando a vida feliz. Depois de ter desenvolvido uma série de outros argumentos sobre a precariedade do nosso corpo e como ele é uma morada temporária do espírito, sobre como a morte consome cada dia de nossa vida e que nada nos pertence de fato, Sêneca reserva os parágra- fos finais da epístola à importância da constância, re- veladora de “uma índole fora do comum”.36 Por outro lado, diz Sêneca: “É assim que um espírito impruden- te se expõe abertamente: mostra-se ora um, ora outro e, o que julgo mais vergonhoso, não é autêntico”.37

A identificação de uma atitude firme é, portanto, mais um critério na apreensão correta da virtude. O conceito de virtude na Epístola 120 parece ter du- nº 22, Jan.-Apr. 2018 plo significado, como avalia Matthew Roller em um ensaio no recém-lançado livro sobre filosofia em -la tim, Roman Reflections Studies in Latin Philosophy, editado pela Oxford University Press em 2015. O au- tor argumenta que, no nível do discurso romano da Renata Cazarini de Frei- tas, ‘Cuncta quatiam: exemplaridade, a virtude apontada nos exempla de Medeia abala estruturas’, Horácio Cocles e Fabrício, que ficam aquém do ideal p. 255-281 estoico do sábio, tem o sentido tradicional e restrito de “bravura militar”, isto é, virtude viril.

Já o segundo sentido Roller apresenta assim: “Da perspectiva moral mais avançada do Sêneca que escreve essa carta, virtude é efetivamente algo além da simples bravura: é a estoica ‘consistência de ca- ráter’, como a sequência deixa perfeitamente claro” (Roller, 2015, p. 146).38 Numa síntese do que foi ana- lisado nos textos de Sêneca, pode-se afirmar que a virtude é a firme disposição para agir direcionando moralmente o vigor. 273 Aplicando à peça Medeia de Sêneca essa concep- ção de virtude, facilmente se apreende que Jasão não pode ser exemplum: ele teme confrontar Creonte e Acasto, o rei dos tessálios. Sua bravura, a virilida- de no sentido restrito de virtude, é coisa do passado. Também já não é o mesmo quanto à sua relação afe- tiva com Medeia. Jasão, portanto, não é constante. Ele tampouco é um proficiens, aprendiz da filosofia estoica, porque se equivoca na apreensão das atitu- des de Medeia. Apenas tardiamente dá assentimento correto à impressão que ela causa: isso só se dá no momento de reconhecimento da autêntica Medeia, após a morte do segundo filho.

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Já a protagonista, ainda que não possa ser toma- da normativamente como exemplum estoico porque não está imbuída do bem e da honra, incorpora a virtude nos dois sentidos, amplo e restrito. Ela tem a virilidade da bravura militar, não teme Creonte nem Renata Cazarini de Frei- Acasto, se oferece mesmo a enfrentá-los. Também tas, ‘Cuncta quatiam: alcança a virtude da constância ao fim do processo Medeia abala estruturas’, p. 255-281 de resgate do sensus sui, que a conduz à coerência entre sua natureza e suas ações. Pode-se argumentar, é claro, que também Medeia deu assentimentos in- corretos a impressões, agindo, então, erroneamente. Mas a dupla dimensão da virtude que ela personifica na peça assegura à personagem a grandeza do herói.

Qual é a moral?

O corpus trágico de Sêneca chegou a ser inter- pretado, em meados do século xx, como obra de disseminação da moral estoica,39 ponto de vista difí- cil de aceitar, levando-se em conta, em particular, o desfecho das peças frente à condenação das paixões 274 advogada por essa corrente filosófica. E basta tomar como exemplo a Medeia para a debacle desse castelo de cartas, porque se a ira é condição sine qua non da peça, por outro lado, disso não decorre um papel de vítima para a protagonista. Ao contrário, tendo-se apoderado da ira, a personagem cresce, anula seus interlocutores, determina as ações e comanda o des- fecho. Portanto, talvez a primeira dedução seja que não há uma moral a extrair da peça. Como afirma Wolf-Lüder Liebermann (2014, p. 469), “a moralida- de está simplesmente suspensa”.40

Também para John Fitch, a experiência com a Medeia de Sêneca deve ser a de suspensão das re- servas morais, uma experiência de satisfação amo- nº 22, Jan.-Apr. 2018 ral pela vitória da potência de um indivíduo sobre os inimigos que a negam. Por causa das várias rea- ções possíveis a esse triunfo, Fitch diz que não pa- rece convincente uma leitura de caráter didático: “Não se desestimula a ira no público exibindo o seu Renata Cazarini de Frei- sucesso, nem sugerindo que as forças da natureza tas, ‘Cuncta quatiam: 41 Medeia abala estruturas’, contribuíram para isso” (Fitch, 2002, p. 339). Ele p. 255-281 traça ainda um paralelo entre Medeia e o herói soli- tário Ájax, da peça sofocliana, que pretendeu mas- sacrar os generais gregos que lhe negaram as armas de Aquiles: “Essa intransigência pode ter tamanha força que se torna um tipo de grandeza” (Fitch, 2002, p. 339-40).42

É tal a grandiosidade de Medeia que Sêneca a co- loca na esfera dos deuses, com sua saída triunfal num carro puxado por duas serpentes aladas. Noutro extremo, é tal o rebaixamento do antigo argonauta e herói Jasão que ele se apresenta como cético no ver- so final: “Atesta, por onde segues, não há deuses” – 275 em que Liebermann, por exemplo, enxerga sarcasmo (2014, p. 469). Com uma dose de ironia, pode-se con- trapor essa fala à de Orestes nos versos 583-4 da Elec- tra de Eurípides, quando sua identidade é revelada à irmã e a vingança de ambos pela morte do pai poderá, afinal, ser executada: “Mantenho a fé! Se o injusto pre- valecesse sobre o justo, não haveria deuses!”43

Notas

1 Hor. Ars P.185: “ne pueros coram populo Medea trucidet” (Que Medeia não mate os filhos frente ao público). 2 Hoje é amplamente aceita a autoria comum tanto das tra- nº 22, Jan.-Apr. 2018 gédias latinas que compõem o corpus dramatúrgico senequiano como dos tratados filosóficos, ainda que tenham sido preserva- dos em manuscritos com histórias totalmente apartadas. 3 “Medea offers herself precisely as a reading of the Stoic philosopher – in a perverted mirror, but still clearly visible, and Renata Cazarini de Frei- a fearsome sight indeed”. As traduções a partir do inglês e do tas, ‘Cuncta quatiam: latim são minhas. Medeia abala estruturas’, 4 “[t]he self-production of a monster-sage”. p. 255-281 5 “The proper arena for exercising virtus is now not warfare, but the endurance of ill fortune”. 6 Sobre a prohairesis no estoicismo tardio, ver Sattler (2014). 7 A recepção contemporânea do mito admite a Medeia que poupa os filhos, como na versão de Rachel Cusk, ence- nada no Almeida Theatre, em Londres, em 2015, embora eles cometam suicídio. 8 Fin. III.16: “fieri autem non posset ut appeterent aliquid, nisi sensum haberent sui eoque se diligerent” (Contudo, não poderia acontecer que desejassem algo se não tivessem percep- ção de si e, por isso, amassem a si mesmos). 9 Citações do texto latino de Medea estabelecido por Hine 276 (2000). 10 “Medea becomes Medea by rejecting the values of her community.” 11 “[O]ikeiosis is not an appropriative act but rather an af- fective disposition – the understanding of one’s participation in a relational matrix that transcends traditional notions of social allegiances.” 12 Ep.120.20: “Maximum indicium est malae mentis fluctuatio et inter simulationem virtutum amoremque vitiorum adsidua iac- tatio”. Citações do texto latino estabelecido por Reynolds (1965). 13 “Resta-me Medeia” (166), “Medeia... é o que serei” (171), “Agora sou Medeia” (910), “Reconheces tua esposa?” (1021). 14 Ep.120.22: “Magnam rem puta unum hominem agere. Pra- eter sapientem autem nemo unum agit, ceteri multiformes sumus”. 15 “His desire for change – for a new bride – is essentially rooted in selfishness, his desire to save himself and, perhaps, his children.” nº 22, Jan.-Apr. 2018 16 “She is far from irrational: ‘irrationality’ is a weapon she wields with poise and sophistication, clear intent and strategy.” 17 Ep.41.8: “quid est autem quod ab illo ratio haec exigat? Rem facillimam, secundum naturam suam vivere”. 18 Ep.120.4: “Quidam aiunt nos in notitiam incidisse, quod est Renata Cazarini de Frei- incredibile, virtutis alicui speciem casu occucurrisse. Nobis videtur tas, ‘Cuncta quatiam: Medeia abala estruturas’, observatio collegisse et rerum saepe factarum inter se conlatio”. p. 255-281 19 Ep.6.5: “longum iter est per praecepta, breve et efficax per exempla”. 20 Sen. Med.160: “Numquam non potest non esse virtuti locus”. (Não pode faltar ocasião para a virtude.) 21 Sen. Med.159: “Fortuna fortes metuit, ignavos premit”. (A Fortuna teme os fortes, oprime os fracos.) 22 Sen. Med.520: “Fortuna semper omnis infra me stetit”. (A Fortuna sempre se submeteu a mim.) 23 Ep.82.5: “Philosophia circumdanda est, inexpugnabilis murus, quem fortuna multis machinis lacessitum non transit. In insuperabili loco stat animus qui externa deseruit et arce se sua vindicat; infra illum omne telum cadit. Non habet, ut putamus, fortuna longas manus: neminem occupat nisi haerentem sibi”. 277 24 Endereçado a Lucílio, tal como as epístolas, o que supõe proximidade temporal na confecção das obras, no final da vida do autor, que morreu em 65 d.C. 25 Texto latino de De providentia estabelecido por L. D. Rey- nolds (1977). 26 Prov. 5.11: “Placet via, escendo; est tanti per ista ire casuro. (...) libet illic stare ubi ipse Sol trepidat”. 27 Ov. Met. II.76-8: “Forsitan et lucos illic urbesque deorum / concipias animo delubraque ditia donis / esse: per insidias iter est formasque ferarum”. Texto latino por F.J. Miller e G.P. Goold (1977-84). 28 Prov. 4.6: “Calamitas uirtutis occasio est”. 29 Prov. 4.3: “quid quisque posset nisi temptando non didicit”. 30 Prov. 4.12: “Numquam virtutis molle documentum est”. nº 22, Jan.-Apr. 2018 31 Prov. 5.8: “Grande solacium est cum universo rapi”. 32 “Medea nunc sum; creuit ingenium malis”. 33 Ep.120.4: “semina nobis scientiae dedit, scientiam non dedit”. 34 Ep.120.8: “Sunt enim, ut scis, virtutibus vitia confinia, et Renata Cazarini de Frei- tas, ‘Cuncta quatiam: perditis quoque ac turpibus recti similitudo est: ... Imitatur negle- Medeia abala estruturas’, gentia facilitatem, temeritas fortitudinem”. p. 255-281 35 Ep.120.10: “Praeterea idem erat semper et in omni actu par sibi, iam non consilio bonus, sed more eo perductus ut non tantum recte facere posset, sed nisi recte facere non posset”. 36 Ep.120.19: “Cum aliquem huius videremus constantiae, quidni subiret nos species non usitatae indolis?” 37 Ep.120.22: “Sic maxime coarguitur animus inprudens: alius prodit atque alius et, quo turpius nihil iudico, inpar sibi est”. 38 “From the more advanced moral perspective of the Sen- eca who writes this letter, virtus is indeed something beyond mere valor: it is Stoic ‘consistency of character’, as the sequel makes abundantly clear.” 39 Por exemplo, por Marti (1945). 278 40 “Morality is simply suspended.” 41 “Responses to this triumph will be as varied as its audi- ences. A didactic reading seems unpersuasive: one does not dis- courage an audience from anger by showing its success, nor by suggesting that the forces of nature contribute to it.” 42 “Medea is like other intransigent heroes of myth such as Ajax, who, when denied the arms of Achilles which he considered his right, planned to slaughter the whole Greek leadership. This intran- sigence can have such strength that it becomes a kind of greatness.” 43 Tradução de Trajano Vieira (2009, p. 103).

Bibliografia

AHL, Frederick (1986). Seneca. Medea. (translated with an introduction). Ithaca, Cornell University Press. nº 22, Jan.-Apr. 2018 BARTSCH, Shadi (2006). The Mirror of the Self: Sexuality, Self-Knowledge, and the Gaze in the Early Roman Empire. Chicago, University of Chicago Press. Renata Cazarini de Frei- COVINGTON, Coline (1989). In search of the Her- tas, ‘Cuncta quatiam: oine. Journal of Analytical Psychology nº34, p.243-254. Medeia abala estruturas’, p. 255-281 https://doi.org/10.1111/j.1465-5922.1989.00243.x

FITCH, John G. (2002) (ed.). Seneca. Tragedies. Londres, Harvard University Press.

FYFE, Helen (1983). An analysis of Seneca’s Medea. In: BOYLE, A. J. (ed.). Seneca Tragicus: Ramus Essays on Senecan Drama. Berwick, Vitoria, p. 77-93. https:// doi.org/10.1017/S0048671X00003647

HINE, H. M. (2000). Seneca. Medea. (Introduc- tion, translation and commentary). Warminster, Aris & Phillips. 279 KOTT, Jan (2003). Shakespeare nosso contemporâ- neo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo, Cosac & Naify.

LIEBERMAN, Wolf-Lüder (2014). Medea. In: DAMSCHEN, G.; HEIL, A. (eds.) Brill’s Companion to Seneca: Philosopher and Dramatist. Leiden, Brill, p. 459-474.

MARTI, B. (1945). Seneca’s tragedies: A new inter- pretation. TAPA n.º 76, p. 216-45.

REALE, Giovani. (2015) Estoicismo, ceticismo e ecletismo. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo, nº 22, Jan.-Apr. 2018 Edições Loyola.

RICHTER, Daniel S. (2011). Cosmopolis: Imagin- ing Community in Late Classical Athens and the Early Roman Empire. Oxford, Oxford University Press. Renata Cazarini de Frei- tas, ‘Cuncta quatiam: Medeia abala estruturas’, RILEY, Kathleen (2008). The Reception and Per- p. 255-281 formance of Euripides’ Herakles: Reasoning Madness. Oxford, Oxford University Press. https://doi. org/10.1093/acprof:oso/9780199534487.001.0001

ROLLER, Matthew B. (2001). Constructing Au- tocracy: Aristocrats and Emperors in Julio-Claudian Rome. Princeton, Princeton University Press.

ROLLER, Matthew B. (2015). Precept(or) and Example in Seneca. In: WILLIAMS, G.; VOLK, K. (eds.) Roman Reflections: Studies in Latin Philosophy. Oxford, Oxford University Press, p.129-156. https:// 280 doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199999767.003.0007 SLATTER, J. (2014). Pequeno esboço sobre a pro- hairesis e a dignidade humana em Epiteto. Archai, n.º12, jan-jun, p. 113-119.

SCHIESARO, A. (2009). Seneca and the denial of the self. In: BARTSCH, S.; WRAY, D. (eds). Seneca and the Self. Cambridge, Cambridge University Press, p. 221-235.

SILK, M. S. (1985). Heracles and Greek Tragedy. Greece & Rome 32, p.1-22. https://doi.org/10.1017/ S0017383500030096

VIEIRA, Trajano (2009). Sófocles. Eurípides. Electra(s) (tradução). São Paulo, Ateliê. nº 22, Jan.-Apr. 2018 Submetido em Junho e aprovado para publicação em Agosto, 2016

Renata Cazarini de Frei- tas, ‘Cuncta quatiam: Medeia abala estruturas’, p. 255-281

281 Página deixada propositadamente em branco Imaculada Kangussu - Universidade Federal de Ouro Preto (Brasil) [email protected] - ORCID: l0000-0002-9714-614X

Medeia escrava. Sobre Amada de Toni Morrison nº 22, Jan.-Apr. 2018

Medea as slave. On Toni Morrison´s Beloved

KANGUSSU, I. (2018). Medeia escrava. Sobre Amada de Toni Morrison. Archai, n.º 22, Jan.-Apr., p. 283-297 DOI: https://doi.org/10.14195/1984­‑249X_22_11

Resumo: O ensaio traz uma leitura do romance Amada, de Toni Morrison, tendo como foco a evidente semelhança exis- tente entre a história escrita pela autora contemporânea e o mito clássico de Medeia, e ressaltando as distinções de uma em relação à outra. A comparação entre as duas protagonistas já foi realizada mais de uma vez, e essa também não é a primeira obra que, por ter como protagonista uma mulher que assas- sina os próprios filhos, foi comparada à mítica personagem grega. O recurso das mulheres ao horrível infanticídio, como reação a uma situação trágica, tem sido recorrente ao longo da história: tanto da que realmente acontece, quanto da criada por ficções. E na dialética entre realidade e ficção pode ser per- cebida a primeira grande diferença entre as duas narrativas. 283 Enquanto Medeia é uma personagem mítica, a personagem de Toni Morrison, Sethe, é uma ficção, mas uma ficção baseada em uma pessoa real, Margaret Garner, que de fato assassinou a filha e tornou-se, com esse gesto, personagem importante, quase mítica, na luta dos abolicionistas norte-americanos. A segunda diferença a ser destacada reside na motivação do ato em torno do qual a história gira: amor próprio, em um caso; amor materno, em outro. E a terceira e última grande distinção ressaltada está diretamente ligada à primeira, isto é, à dialética entre ficção e realidade. Por partir de uma histó- ria que realmente aconteceu, a personagem de Toni Morrison tem de encarar a reação a seu ato assassino no assim chamado mundo real, cumprir pena na cadeia e, depois, na vida. A so- lução deus ex-machina fica reservada às heroínas míticas. Se há um deus capaz de salvar Sethe, é um bastante fenomênico e atende pelo nome de Eros. Palavras chaves: infanticídio, trágico, escravidão, fantasma, Eros. nº 22, Jan.-Apr. 2018 Abstract: The essay proposes a lecture of Toni Morrison’s novel Beloved, keeping the focus on the evident resemblance that ex- ists between the story written by the contemporary author and the classical myth of Medea, and highlighting the distinctions Imaculada Kangussu, of each one. The comparison between the two protagonists has ‘Medeia escrava. So- already been drawn, more than once, and it is not the first time bre Amada de Toni that a novel, whose protagonist is a woman who has killed her Morrison’, p. 283-297 own offspring is compared to the mythical Greek personage. Women’s appeal to the horrible infanticide as a reaction to a tragic situation has been recurrent throughout history and throughout stories. And it is in the dialectic between reality and fiction that it is possible to notice the first big different among the two narratives. While Medea is a mythical character, Sethe – the character created by Toni Morrison – is a fiction based on a real person, on Margaret Garner, who has really killed her daughter, and because of this gesture became an important and almost mythical personage in the struggle of North American abolitionists. The second difference to be highlighted lies in the motivation of the act around which the story revolves: Self-love, in one case; maternal love in another. The third and last ma- jor outstanding distinction is directly linked to the first, that is, to the dialectic between fiction and reality. For coming from a 284 story that really happened, the character of Toni Morrison has to face the reaction to her murderous act in the so-called real world, serve sentence in jail and suffer for it in her life. Thedeus ex-machina solution is reserved for mythical heroines. If there is a god able to save Sethe, it is a quite phenomenal one and goes by the name of Eros. Keywords: infanticide, tragic, slavery, ghost, Eros.

Vingar-se é uma ação reconhecida entre os mitos trágicos, resgatar a honra ultrajada é mesmo um de- ver. Conforme a história bastante conhecida, Medeia, filha de Eetes, rei da Cólquida, neta do Sol e sobri- nha de Circe, conhece Jasão quando este vai ao reino dela em busca do velocino de ouro. Agindo contra o próprio pai e seu reinado, a jovem princesa versada em feitiçarias possibilita, com suas mágicas e encanta- nº 22, Jan.-Apr. 2018 mentos, o sucesso de Jasão em todas as provas. Depois da vitória, Medeia segue aquele a quem transformara em herói e passa a viver como estrangeira exilada em Corinto. Ao ver-se ultrajada por Jasão, que a repudia Imaculada Kangussu, para casar-se com a filha de Creonte, rei de Corinto, ‘Medeia escrava. So- Medeia trama a terrível vingança: mata a noiva, o pai bre Amada de Toni Morrison’, p. 283-297 desta, incendeia o palácio e, ferindo a si mesma para atingir Jasão, assassina os próprios filhos.

Numa estranha simetria, o bem desejado e obtido por Jasão com ajuda de Medeia, o velocino de ouro, fora presenteado à rainha Nefele, quando esta, repudia- da pelo marido Atamas, rei de Tessália, temendo pela vida de seus dois filhos, recorreu a Hermes e ganhou dele o carneiro voador com pelo de ouro, cuja função era levar as crianças para um lugar seguro. Duas histó- rias de mulheres ultrajadas cruzam-se: na primeira, há o desejo de salvar os filhos; na outra, estes são sacrifica- dos como parte da vingança pela afronta sofrida. 285 Como se sabe, o mito retomado primeiramente por Eurípides em sua mais conhecida tragédia teve e tem numerosas atualizações, cuja função que desejamos destacar é a de denunciar o poder arbitrário de so- ciedades patriarcais, capaz de levar ao assassinato dos próprios filhos, como prerrogativa última das mulhe- res ultrajadas. A volta ao pavoroso mito de Medeia, a que estrangula os filhos para restaurar sua honra, remete sempre a situações nas quais se configura a im- possibilidade de outra forma de vingança – ou justiça – contra o despotismo das regras de organização so- cial elaboradas por homens. O infanticídio pode sina- lizar tanto a ausência de escolhas quanto o desespero de personagens que se recusam a deixar sua descen- nº 22, Jan.-Apr. 2018 dência em um mundo injusto.

No Brasil, vale lembrar, o mito reapresentado por Chico Buarque e Paulo Pontes em Gota d’água, uma tragédia brasileira (1975), um musical cujo contexto Imaculada Kangussu, nada nobre é o das favelas cariocas, também já resso- ‘Medeia escrava. So- ara em Lucíola (1862), de José de Alencar, e em Maíra bre Amada de Toni Morrison’, p. 283-297 (1981), de Darcy Ribeiro.

Em 1987, a escritora norte-americana, Toni Mor- rison, primeira mulher negra a ganhar o prêmio No- bel de literatura (1993), publicou Beloved (traduzido como Amada). O romance ganhou o prêmio Pulit- zer de literatura e virou filme, com o mesmo nome, dirigido por Jonathan Demme, com Oprah Winfrey no papel da mãe que sacrifica a filha. O personagem central da obra é um fantasma: o fantasma da filha as- sassinada pela ex-escrava Sethe, que não hesitou em matá-la, para evitar que ela fosse capturada e vivesse sob o regime de escravidão do qual Sethe conseguira 286 fugir levando seus filhos consigo. Ainda que motivado por amor aos filhos – e não apenas pelo amor próprio – e pela recusa a deixar sua prole submetida à escra- vidão, o infanticídio levou a muitas comparações da obra com a história de Medeia. Comparações que Toni Morisson rejeita ressaltando que Beloved tem como origem um fato real, cujo relato foi encontrado pela autora, conforme ela conta no prefácio da obra:

Um recorte de jornal em The Black Book [O livro negro] resumia a história de Margaret Garner, uma jovem que, depois de escapar da escravidão, foi presa por matar um de seus filhos (e de tentar matar os outros) para impe- dir que fossem devolvidos à plantação do senhor. Ela se transformou numa cause célèbre da luta contra a lei dos Escravos Fugitivos, que determinava que os que escapa- nº 22, Jan.-Apr. 2018 vam fossem devolvidos a seus donos. O equilíbrio e a au- sência de arrependimento dela chamaram a atenção dos abolicionistas, assim como a dos jornais. Ela era, sem dú- vida, determinada e, a julgar por seus comentários, tinha a inteligência, a ferocidade e a vontade de arriscar tudo por aquilo que, para ela, era a necessidade de liberdade. Imaculada Kangussu, (MORRISON. 2004, p. XVII) ‘Medeia escrava. So- bre Amada de Toni Morrison’, p. 283-297 O mencionado The Black Book é uma obra com- posta com documentos, notícias de jornais, depoi- mentos e fotos sobre trezentos anos (do século xvii ao século xx) da vida da população afro descendente nos Estados Unidos. O livro traz um artigo de jornal denominado “A visit to a slave mother who killed her child” (“Uma visita à escrava que assassinou sua fi- lha”), origem do romance Beloved, sobre a história “real” de Margaret Garner, uma escrava que buscou a liberdade fugindo para Cincinnati, Ohio, com suas quatro crianças e tentou matá-las quando ameaçada de ser capturada e voltar à condição de escrava. Pega 287 depois de assassinar a filha mais velha serrando-lhe o pescoço, a fugitiva foi condenada à prisão, mas es- capou do horror de ser devolvida ao antigo dono e de ser rebaixada novamente à escravidão, tendo sido libertada depois de cumprir pena por assassinato.

Por volta de 1855-56, aos vinte anos, Margaret Gar- ner tornou-se uma causa famosa dos abolicionistas. Segundo relato de Toni Morrison, em entrevista ao New York Times,

muitas pessoas a entrevistaram, sobretudo pregadores e jornalistas, e ela era muito calma, muito serena. Eles fi- caram insistindo no fato de que seus lábios não tremiam, nº 22, Jan.-Apr. 2018 ela não era louca, e permanecia dizendo: “Não, elas não vão viver assim. Elas não viverão como vivi”. (MORRI- SON, 1987, p.17).

Imaculada Kangussu, A história de Margaret Garner (que de fato existiu) ‘Medeia escrava. So- fascinou a romancista: Toni Morrison confessa não ter bre Amada de Toni feito nenhuma outra pesquisa sobre a história, cujo Morrison’, p. 283-297 ponto de partida foi o relato jornalístico publicado em The Black Book. A história verídica do aconteci- mento foi escrita mais tarde, por Steven Weisenberb, e publicada com o título de Medeia Moderna (Modern Medea), em 1999. Em 2005, foi adaptada para a ópera Margaret Garner, pelo compositor Richard Daniel- pour, com libreto da própria Morrison.

A partir da notícia encontrada no jornal, Toni Mor- rison desejou escrever um romance levando em conta os dados considerados “importantes”, diz ela, “o sexo das crianças, quantas elas eram, e o fato de que ela 288 conseguira cortar a garganta de uma e já ia esmagar a cabeça de outra na parede quando alguém a deteve” (MORRISSON, 1987, p. 17). Se por um lado, a autora absteve-se de buscar qualquer informação a mais sobre Margaret Garner, além daquelas trazidas pela notícia, por outro lado revela ter feito extensa pesquisa sobre tudo o mais em torno: sobre Cincinnati, os abolicionis- tas e a estrada de ferro. Partindo então da história re- latada no jornal e do mergulho no mundo “real” onde esta se desenrolou, Toni Morrison imaginou pensa- mentos, ações e falas da personagem, sempre fictícias, claro, mas essencialmente ligadas a um contexto histó- rico verdadeiro, com o intuito de, em suas palavras,

relacionar sua história com questões contemporâneas sobre a liberdade, a responsabilidade e o “lugar” da mulher. A he- nº 22, Jan.-Apr. 2018 roína representaria a aceitação indesculpada da vergonha e do terror; assumiria as consequências de escolher o infanti- cídio; reclamaria a própria liberdade. O terreno, a escravi- dão, era formidável e sem trilhas. Convidar as leitoras (e eu própria) a percorrer a paisagem repelente (oculta, mas não Imaculada Kangussu, completamente; deliberadamente enterrada, mas não es- ‘Medeia escrava. So- quecida) era armar uma tenda num cemitério habitado por bre Amada de Toni fantasmas muito eloquentes. (MORRISON. 2004, p. XVII) Morrison’, p. 283-297

“Amada” (“Beloved”), a filha assassinada, a figura central da trama, é um fantasma que entra na casa das sobreviventes e participa da vida da família das que se libertaram. Para criar uma experiência co- mum entre as leitoras e a população da obra com- posta por antigas escravas e antigos escravos, pes- soas arrancadas de um lugar para outro, sem aviso, sem preparação, sem possibilidade de escolha nem de defesa, Toni Morrison joga suas leitoras em um ambiente estranho, fantasmagórico, assombrado. Em suas palavras: 289 Na tentativa de tornar a experiência do escravo íntima, eu esperava que a sensação de as coisas estarem ao mesmo tempo controladas e fora de controle fosse convincente do início ao fim; que a ordem e a quietude da vida cotidiana fossem violentamente dilaceradas pelo caos dos mortos ca- rentes, que o esforço hercúleo de esquecer fosse ameaçado pela lembrança desesperada para continuar viva. Para tra- duzir escravização como uma experiência pessoal, a lingua- gem precisa sair do caminho. (MORRISON. 2004, p. XVIII)

As leitoras precisam render-se a uma desconcer- tante e imprevista forma narrativa, como os escra- vos cuja autoria dos roteiros da vida fora roubada por seus proprietários. Morrison escraviza as leito- ras com o recurso literário ao elemento fantástico nº 22, Jan.-Apr. 2018 (criado pelo convívio entre as personagens vivas e a morta), através do qual apresenta o retorno do repri- mido – para usar a expressão de Freud que, segun- do ele, pode resumir a força motriz, a dynamis, da Imaculada Kangussu, história do ser humano. A assassinada Beloved, que ‘Medeia escrava. So- insiste em permanecer presente na casa, presentifi- bre Amada de Toni ca o crime do passado que se deseja esquecer e que Morrison’, p. 283-297 insiste em ser lembrado. Beloved presentifica a me- mória do que só pode ser esquecido se for atravessa- do. Ela volta como zumbi, como símbolo dos mortos pelo sistema escravagista que se quer deixar no es- quecimento; como obscenidade, como o que preci- sa ficar de fora e deseja ocupar cena. A aparição do fantasma aparece como possibilidade de se refazer o passado, como uma segunda chance. Em um pri- meiro momento, a amada filha morta apresenta-se apenas através de indícios, para depois apresentar-se em carne e osso. E a volta da morta encarnada colo- ca a questão sobre o que se fazer com os fantasmas, 290 encarnados ou não. Sethe, a personagem da mãe assassina, em momen- to algum se arrepende ou considera-se culpada por seu ato, e parece pouco incomodar-se em morar na casa assombrada pelo fantasma da filha. Ao contrário, depois que o fantasma encarna-se, mãe e filha morta vivem exclusivamente uma para a outra, ignorando tudo ao redor, em uma relação que seria mortífera se não fosse interrompida a tempo. Quando tem de ex- plicar seu crime, ao ser confrontada pelo companhei- ro, Paul D, com um recorte de jornal sobre o assassi- nato da criança, e a pergunta “você desmente?”

Sethe sabia que o círculo que estava fazendo em volta da sala, dele, do assunto, continuaria assim. Que ela podia nunca chegar perto, nunca definir para ninguém que ti- nº 22, Jan.-Apr. 2018 vesse de perguntar. Se não entendessem de imediato – ela jamais conseguiria explicar. Porque a verdade era simples, não um longo relato de mudanças floreadas, gaiolas nas árvores, egoísmo, cordas na perna e no pescoço. Simples: ela estava de cócoras no jardim e quando viu eles che- Imaculada Kangussu, gando, e reconheceu o chapéu do professor, ouviu asas. ‘Medeia escrava. So- Pequenos beija-flores espetaram os bicos de agulha em bre Amada de Toni seu pano de cabeça até o cabelo e bateram as asas. E se ela Morrison’, p. 283-297 pensou alguma coisa foi: não. Não. Nãonão. Nãonãonão. Simples. Ela simplesmente correu. Recolheu cada peda- ço de vida que tinha feito, todas as partes dela que eram preciosas, boas, bonitas, e carregou, empurrou, arrastou através do véu, para fora, para longe, lá onde ninguém podia machucá-los. Lá longe. Fora deste lugar, onde eles estariam seguros. (MORRISON. 2004, p.192)

Depois de ouvir esse relato, Paul D comenta: “Seu amor é grosso demais”. “Grosso demais?”, ela retruca, “amor é ou não é. Amor ralo não é amor” (Ibidem, p. 193-4). Ela julgava que o que fizera era o certo, por- que seu ato fora impulsionado por amor verdadeiro. 291 Sabia também que Paul D iria abandoná-la diante dessa confissão. Ela matara a filha porque sabia

que qualquer branco podia pegar todo o seu ser para fa- zer qualquer coisa que lhe viesse à mente. Não apenas matar ou aleijar, mas sujar também. Sujar a tal ponto que não era mais possível gostar de si mesma. Sujar a tal pon- to que a pessoa esquecia quem era e não conseguia pen- sar nisso. E, embora ela e os outros tivessem sobrevivido e superado, nunca poderia permitir que aquilo aconte- cesse com os seus. O melhor dela eram suas crianças. Os brancos podiam sujar a ela, sim, mas não ao melhor dela, aquela coisa bela, mágica – a parte dela que era limpa. (MORRISON. 2004, p. 295-6)

nº 22, Jan.-Apr. 2018 O recorte de jornal que foi a inspiração do romance apresenta uma ação bárbara – como era Medeia – e também recorrente no período escravagista, quando algumas mães recusavam a vida aos filhos, motivadas Imaculada Kangussu, pelo impulso de libertá-los dos terríveis sofrimentos ‘Medeia escrava. So- impostos pela escravidão. Externos e interiores. Den- bre Amada de Toni Morrison’, p. 283-297 tre os quais a necessidade de diluir os sentimentos, so- bretudo aqueles próprios da maternidade. Fazia parte da estratégia de sobrevivência das pessoas escraviza- das travar o próprio coração e evitar os sentimentos. Paul D, o companheiro de Sethe, revela ter consegui- do colocar todas as lembranças que lhe doíam “dentro da lata de fumo alojada em seu peito [...] nada neste mundo conseguiria vê-la aberta” (Ibidem, p. 133), de tão enferrujada que estava sua tampa...

Seres humanos escravizados eram considerados mercadorias e, como estas, não possuíam relações de parentesco: família e elos de sangue não eram levados 292 em conta. E para evitar a formação de novos laços, o casamento era ilegal ou desencorajado. Esperava-se que as escravas ficassem grávidas e tivessem as crian- ças, ressalta a autora, no prefácio da obra,

mas tê-las, ser responsável por elas – ser, em outras pa- lavras, a mãe delas – era tão fora de questão quanto a liberdade. Afirmações de maternidade e de paternidade, sob as condições peculiares da lógica da escravidão ins- titucionalizada, era crime. (MORRISON. 2004, p.XVII)

Diante desta situação, cortar a garganta da filha bebê “era absolutamente a coisa certa a fazer”, consi- dera Toni Morrison, na entrevista citada, “mas ela não tinha o direito de fazê-la. Penso que se tivesse visto o nº 22, Jan.-Apr. 2018 que ela viu, e soubesse o que estava para acontecer, e sentisse que havia vida após a morte – ou mesmo que sentisse que não houvesse – penso que eu teria feito a mesma coisa” (MORRISSON, 1987, p.17). Imaculada Kangussu, Na mesma entrevista, Morrison afirma ainda que ‘Medeia escrava. So- o amor materno, ao qual as mulheres estão genetica- bre Amada de Toni Morrison’, p. 283-297 mente predispostas e para o qual, além disso, foram ensinadas e educadas, é também mortal (“mother love is also a killer”). Conforme a autora, o amor materno desloca, e às vezes suprime, a preciosa e amada inte- rioridade da mãe e a externaliza nos filhos, algo outro que se torna mais valioso, mais belo, mais maravilhoso do que ela mesma. E isso não é nada bom. Morrison observa que as mães podem realmente controlar a vida dos filhos, dizer-lhes como agir, o que fazer, entretanto, se por um lado, isso faz parte do educativo papel materno, por outro lado, pode tornar-se algo exces- sivo. “Algumas vezes as pessoas dizem ‘bem, seus fil- hos tornam-se você. Mas não é isso. Eles tornam-se 293 justamente o que ela [Sethe] diz no livro, a melhor parte de você. Isso é a maternidade” (MORRISSON, 1987, p.17). O que sua heroína Sethe faz, ao fugir com seus filhos, é tentar tornar-se mãe deles “em um sis- tema de escravidão que dizia aos negros ‘você não é um pai, você não é uma mãe, você não tem nada a ver com seus filhos’”. Idem,( ibidem).

Ao contrário de autoras e autores que, por conside- rar o rótulo como um limite, não gostam de ser rotu- lados como, por exemplo, “escritor sérvio”, “escritora judia”, Morrison não se importa em ser chamada de “escritora negra”:

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Eu decidi definir o rótulo, em vez de deixá-lo ser uma de- finição de mim. No início as pessoas perguntavam: “você se vê como uma escritora negra ou como uma escritora?” Antes, eu ficava lisonjeada e dizia ser uma escritora ne- gra, porque entendia que eles estavam tentando sugerir Imaculada Kangussu, que eu era “maior”, ou melhor, que isso. Depois, simples- ‘Medeia escrava. So- mente recusei aceitar essa visão de maior e melhor. Eu bre Amada de Toni realmente penso que a extensão de emoções e percepções Morrison’, p. 283-297 à qual tive acesso como negra e como mulher é superior àquela das pessoas que não o são. Então me parece que meu mundo não encolhe porque sou negra e mulher. Ele fica maior. (MORRISSON, 1987, p.17).

A evidente simpatia de Morrison por aquela que transformou em personagem de romance é curiosa- mente semelhante à da escritora antilhana Maryse Condé que conta uma história parecida. Seu livro Eu, Tituba, feiticeira negra de Salem (Moi, Tituba, sorcière noire de Salem, 1986) reconta ficcionalmente a histó- ria, até então esquecida de Tituba, negra, escrava, fei- ticeira, e ativista na luta pela libertação dos escravos 294 em Barbados, que também matou a própria filha. No romance, temos a mesma volta da filha morta e, de- pois de condenada à morte por insurreição e feitiça- ria, o retorno da própria Tituba, sob formas distintas e inspiradoras nas lutas pela liberdade.

Medeia, Sethe e Tituba colocam-nos diante do trá- gico. Realizam um ato monstruoso e, ao mesmo tem- po, uma expressão de recusa à monstruosidade à qual estão submetidas, provocando com isso uma cisão nos sentimentos de quem se depara com suas histó- rias. Ao lê-las, a sensação de horror ao ato é acompa- nhada pela de algum alívio (talvez essa não seja a pa- lavra adequada) diante da expressão vital que não se submete e feroz, animalescamente, reage ao inaceitá- nº 22, Jan.-Apr. 2018 vel. A passagem da personagem da passividade a ati- vidade cria, por sinestesia, uma espécie de pacto com as leitoras. A saída monstruosa ainda é uma saída, o monstro mostra. Trágica é a situação para a qual não há saída “decente”. A insuportável divisão da psique Imaculada Kangussu, causada por essas heroínas mantém-se enfeitiçadora ‘Medeia escrava. So- bre Amada de Toni – como Medeia. O que impede o alívio é que a conta Morrison’, p. 283-297 não fecha! Nessas histórias há um resto que não quer sair de cena: a vida das crianças assassinadas...

Se, no caso de Medeia, a catarse justifica a exis- tência do que é experimentado através de mimeses – conforme fica claro no filmeNunca aos domin- gos (Never on Sundays, de Jules Dassin), quando a personagem de Melina Mercouri reitera seu ponto de vista de que Medeia “de fato” não assassinou os filhos, ao ver a atriz que desempenhou Medeia de volta à cena (no final da representação da peça para agradecer os aplausos) acompanhada das crianças atrizes, que representaram sua prole, obviamente 295 vivas – o mesmo argumento não pode ser aplicado à Beloved. Nesse caso, a única possibilidade parece ser o procedimento de Toni Morrison de trazer os mor- tos de volta à cena, até sabermos o que fazer com esse passado e, enquanto isso, diante do mal-estar provocado pela narrativa, impedir que a situação se repita. Apesar de não podermos redimir os erros do passado, a recusa e a não identificação com a situa- ção que os provocou rompe a corrente que poderia provocá-los novamente.

No livro de Toni Morrison, a heroína não sai de cena em um magnífico carro alado, mas escapa da condenação que se configurava em seu apego des- nº 22, Jan.-Apr. 2018 medido à filha morta – que a fazia esquecer de todo cuidado de si, inclusive de alimentar-se – quan- do seu companheiro volta. Paul D abandona Sethe quando esta não só assume seu ato como o considera o melhor a ser realizado no momento em que o foi. Imaculada Kangussu, Entretanto, ao vê-la depois inteiramente dedicada ao ‘Medeia escrava. So- fantasma de Beloved, convencido do amor de Sethe bre Amada de Toni Morrison’, p. 283-297 pela filha assassinada e percebendo que esse amor pode levá-la também à morte, Paul D retorna à casa, expulsa o fantasma, interrompe a relação mortífera e volta a ser o companheiro da antiga amante. Para finalizar, correndo o risco de transbordar na inter- pretação, pode-se talvez perceber no desfecho da história reescrita por Morrison a possibilidade de libertar-se dos fantasmas das faltas trágicas através do perdão – trazido por Eros.

Bibliografia

296 ALENCAR, J. (2004). Lucíola. 27 ed. São Paulo, Ática. BERND, Z. (2007). “Verbete Medeia” em Dicionário de figuras e mitos literários das Américas. Porto Alegre: Editora da UFRGS.

BUARQUE, C.; PONTES, P. (1975). Gota d’água. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

CONDÉ, M. (1993). Moi Tituba, sorcière noire de Salem. Paris, Folio.

HARRIS, M.; FURMAN, R.; LEVITT, M.; SMITH, E. (ed.); MORRISON, T. (Foreword) (1974). The Black Book. New York, Random.

MORRISON, T. (2011) Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo, Cia das Letras. nº 22, Jan.-Apr. 2018 MORRISON, T. (2004) Beloved. New York, Vin- tage Books.

MORRISON, T. (1987) The New York Times on web. Imaculada Kangussu, August 26, 1987, Wednesday. Section C, Page 17, Column ‘Medeia escrava. So- 1, cultural desk. Disponível em 02 de novembro de 2016. bre Amada de Toni Morrison’, p. 283-297 RIBEIRO, D. (2001). Maíra. 14 ed. Rio de Janeiro, Record.

WEISENBERG, S. (1999). Modern Medea. A Family Story of Slavery and Child-murder from the Old South. New York, Farrar, Straus and Giroux.

Submetido em Junho e aprovado para publicação em Julho, 2016

297 Página deixada propositadamente em branco Tereza V. R. Barbosa - Univ. Fed. Minas Gerais (Brasil) - FAPEMIG - CNPq [email protected] - ORCID: 0000-0001-8449-0411

Tradução e (des)coloni- zação: o caso de Medeia1 nº 22, Jan.-Apr. 2018

Translation and decolonization: Medea´s case

BARBOSA, T. V. R. (2018). Tradução e (des)colonização: o caso de Medeia. Archai, n.º 22, Jan.-Apr., p. 299-318 DOI: https://doi.org/10.14195/1984­‑249X_22_12

RESUMO: Este será o relato de um percurso curto de um pro- jeto longo. Vou apenas motivar o leitor para algumas questões sobre a tragédia ática pelo viés da tradução comprometida com a (des)colonização do nosso país. O longo projeto se define a partir do conceito de resiliência escolhido como referência para a 13ª edição do Festival Internacional de Teatro de Belo Hori- zonte do ano de 2016 (Fit-BH-2016). A proposta que aqui se apresenta foi iniciada e vem sendo desenvolvida desde 2012 quando foi submetida à apreciação acadêmica no IIº Congresso da Sociedade Brasileira de Retórica, na ocasião, a peça ateniense traduzida, Medeia, foi encenada na íntegra no Parque das Man- gabeiras (BH, 2012) para um público heterogêneo que abrangia desde crianças a adultos já avançados na idade. 299 Palavras-chave: tradução, descolonização, teatro ático

Abstract: This paper works as a metonymy of a wider project about possibilities that Attic tragedy translations offer for over- coming colonization and subalternity. The broader research’s basic concept, which was also the main idea of the 13th Inter- national Festival of Theater of Belo Horizonte in 2016, was re- silience. The results here presented started back then when a group formed by students, musicians, professional actors, and a professor of Greek language and literature staged a collective translation of Medea as part of the activities of the II Congress of the Brazilian Society of Rhetoric (2012). The play was en- acted outdoors, in the Mangabeiras Park, for a heterogeneous audience ranging from children to elderly adults. Keywords: translation, subalternity, attic drama.

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Tomando como ponto de partida o conceito de resiliência, mas sem qualquer pretensão de nele nos aprofundar, vamos discorrer sobre o principal objeti- vo das traduções de textos de tragédias áticas produzi- Tereza Virgínia Ribeiro das pela Truπersa. Pretendemos ponderar a urgência Barbosa, ‘Tradução e de traduções de teatro antigo comprometidas com a (des)colonização: o caso de Medeia’, p. 299-318 função cênica, com a cultura brasileira e com a meta de ultrapassar o dito estado de subalternidade, apon- tado por Gayatri Chakravorty Spivak, ainda presente em nossa cultura como um todo.2 Antes, porém, su- marizamos, o que entendemos por resiliência, citando o Dicionário Digital Caldas Aulete:3

(re.si.li:ên.ci:a) sf. 1. Fís. Propriedade de um material retornar à forma ou posição original depois de cessar a tensão incidente sobre o mesmo, determinada pela quantidade de energia devol- vida após a deformação elástica, ger. medida em percentu- 300 al da energia recuperada que fornece informações sobre a elasticidade do material. 2. P. ext. Ecol. Capacidade de um ecossistema retornar à condição original de equilíbrio após suportar alterações ou perturbações ambientais. 3. Fig. Habilidade que uma pessoa desenvolve para resistir, lidar e reagir de modo positivo em situações adversas. [F.: Do lat. resilientia, part. pres. de resilire.]

Inserimo-nos no sentido figurado oferecido pelo dicionário no item 3. Como se pode constatar e de acordo com o Dicionário Aulete, o conceito teve ori- gem no contexto da física, estendido à ecologia e abrangeu outras esferas. No presente artigo, ele será uma ferramenta para pensarmos a tradução, processo que pode ser entendido como um transporte de uma nº 22, Jan.-Apr. 2018 cultura a outra, uma mudança de forma de expressão, uma (de)formação criativa e criadora, uma resposta a uma impressão de forças estranhas – nos sentidos de “externas” e “diversas no tempo e no espaço” – de e so- bre um dado texto-corpo-objeto, que deve permane- Tereza Virgínia Ribeiro cer ele mesmo apesar da mudança imposta pela tarefa Barbosa, ‘Tradução e (des)colonização: o caso de um tradutor. de Medeia’, p. 299-318

Desenvolvimento:

Inaugurada na Antiguidade, a tragédia foi um fazer da pólis ateniense, um instrumento eficaz de inserção da população urbana na realidade da convivência po- lítico-religiosa e na projeção de enfrentamentos dos problemas humanos na Grécia no aqui ali e no agora de então. O teatro se moldou, ali, como um ensaio ge- ral para a ação em tempo real e na vida prática.

Contudo, a tradição interpretativa que se estabele- ceu 26 séculos depois, distanciou essa forma artística, 301 de sua função mais orgânica. A produção dramática dos gregos atenienses passou a ser vista como “arte pela arte”, um fim em si mesmo, um requinte de pou- cos, uma formação privilegiada de eruditos. O gênero acabou por se fixar nos estudos acadêmicos vincula- dos à filosofia e às letras e, dificilmente, se arroja para os ambientes acadêmicos menos assépticos vincula- dos aos trabalhos do corpo, da voz, do movimento, do absolutamente efêmero, do espetáculo em praças e locais acessíveis ao povo. Preservada e imune às ad- versidades, a tragédia permanece preservada, como privilégio de poucos, e raramente é vista em cartaz pela cidade. Alguns hão de lê-la, em português casti- ço cotejado com o grego; outros preferirão adaptações nº 22, Jan.-Apr. 2018 para o teatro e se contentarão – apesar de saberem da perda de elementos preciosos do texto – em buscá-la transformada em espetáculos distantes de sua forma texto-corpo-objeto inicial.

Tereza Virgínia Ribeiro Como haveria ela, a tragédia escrita em grego, de Barbosa, ‘Tradução e resistir em idioma brasileiro sem se destruir e sem (des)colonização: o caso de Medeia’, p. 299-318 aniquilar o áulico e limado tradutor inadvertido das forças cênicas que subjazem ao texto? Como poderia ela se manter trasladada de uma língua e cultura para outra, tendo suas propriedades submetidas a uma de- formação? Como ela poderia recobrar sua força ini- cial de séculos de fundação? Ou será que ela deveria se adaptar à má sorte ou às necessárias mudanças que lhe são impostas pela nova língua?

Não há dúvidas de que a tradução existe para tentar reverter minimamente a situação de baixo acesso aos textos e de que em matéria de tradução do grego para o português muitos caminhos há 302 e, ao que parece, todos estamos preocupados em percorrê-los da forma mais cuidada, ética e zelosa possível. Todavia, se não adotarmos um procedi- mento mais dinâmico para a tradução da tragédia corremos o risco de vê-la aposentar-se. De nossa parte, vamos comentar a via percorrida na tradu- ção da Medeia de Eurípides (2013) da Truπersa, Trupe de Tradução de Teatro Antigo, que traduziu a peça na íntegra sob nossa direção e encenou-a sob a direção de Andreia Garavello

A produção da tradução foi inspirada pela pesquisa de Ariane Mnouchkine e pelo processo colaborativo de criação. Durante o desenvolvimento da tradução, erigimos uma versão brasileira do texto grego que re- sultou na encenação de uma tragédia ática “feita no nº 22, Jan.-Apr. 2018 Brasil”. Para tanto, perseguimos a horizontalidade e a flexibilidade (elasticidade, se quisermos remeter para o conceito de resiliência) nas relações entre texto e es- petáculo. Ao ver o texto traduzido encenado, perce- Tereza Virgínia Ribeiro bemos que estivemos comprometidos, ainda que in- Barbosa, ‘Tradução e conscientemente, com a pesquisa e a prática do Teatro (des)colonização: o caso de Medeia’, p. 299-318 do Oprimido de Augusto Boal (que, por sua vez, nos remete, quase imediatamente, ao trabalho de Paulo Freire na Pedagogia do Oprimido). Nunca é demais, porém, realçar que

Augusto Boal foi um homem de coletivos, um semea- dor de multiplicadores. Ensinava aprendendo e aprendia ensinando, num constante processo de criação. Além de sua fundamental contribuição para a criação de uma dra- maturgia genuinamente brasileira no Teatro de Arena de São Paulo, criou o Teatro do Oprimido, que é um dos métodos teatrais mais praticados no mundo, presente em todos os continentes, através do trabalho de milhares de 303 praticantes. (Equipe do Centro de Teatro do Oprimido in BOAL, 2009, p. 11).

Dispensamo-nos de descrever as conhecidas teorias de Boal e Freire; indicamos apenas pontos em comum entre esses autores e nosso processo tradutório caracte- rizado pelo pacto com o conceito de resiliência. Fomos influenciados por leituras esquecidas. Em análise pos- terior, percebemos que, no traduzir, nosso esforço se voltava para minimizar a distância entre texto e leitor (focando um possível espectador), exigindo do públi- co um papel ativo, construtor de seu próprio conheci- mento, capaz de levá-lo a compreender seu tempo e de

nº 22, Jan.-Apr. 2018 relacioná-lo com a peça encenada. Víamos nisso a pos- sibilidade de o receptor se tornar um cidadão conscien- te, crítico e atuante o suficiente para modificar sua pró- pria história e, para isso, o texto trágico encenado devia soar estranhamente feito no Brasil. Estávamos portanto Tereza Virgínia Ribeiro seguindo as ideias libertadoras do diretor, dramaturgo Barbosa, ‘Tradução e e pesquisador carioca, embora desprezássemos seus (des)colonização: o caso de Medeia’, p. 299-318 equívocos de teorização sobre o teatro na Grécia e suas implicâncias para com Aristóteles e Platão.

Assim, por exemplo, dedicamos especial atenção ao que Boal propõe para a noção de “estética”, leitura algo diversa do habitualmente suposto. Para ele,

... a estética não é a ciência do Belo, como se costuma dizer, mas sim a ciência da comunicação sensorial e da sensibilidade. É a organização sensível do caos em que vivemos, solitários e gregários, tentando construir uma sociedade menos antropofágica. (...) Fosse a Estética somente a ciência do Belo e do Sublime, teríamos que 304 inventar uma outra palavra genérica, parceira e antônima da Estética, que englobasse o não-Belo e a Fealdade. (...) O Belo está na coisa e no olhar. (BOAL, 2009, p. 31)

Safo já havia dito algo parecido antes quando afirmou que “belo é o que se ama”.4 É por isso que nos colocamos a pensar na revivificação-flexibilização da tragédia ática e na exumação de Medeia através da tradução. Esta prá- tica, para nós, é, antes de mais nada, um procedimento dramatúrgico, político e cultural. Desse modo, atentos e em busca de signos não linguísticos, indicados no texto (gestos, tons de voz, movimentos etc) rastreamos os que se mostraram mais resilientes e puderam ser adaptados à mudança do tempo e do espaço imperativo da tradução.

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Nisso tudo – lendo o mundo que nos abriga e cons- cientes de nossa identidade e contingências – entendía- mos que a produção intelectual de nosso país ainda sofre entraves e se mostra marcada por uma forte e duradoura colonização; de início, portuguesa, mais tarde, francesa e, Tereza Virgínia Ribeiro atualmente, norte-americana. Segundo Gayatri Chakra- Barbosa, ‘Tradução e vorty Spivak, em Pode o subalterno falar? (2010) países (des)colonização: o caso de Medeia’, p. 299-318 subalternos permanecem subservientes a outras cultu- ras e não falam por si plenamente, estão sempre com os olhos voltados para as grandes potências. Encarando o problema, resolvemos assumir a sugestão indicada na obra de Spivak e expressa nas palavras de sua tradutora Sandra Regina Almeida Goulart (2010, p. 15): “[a nós] caberá a tarefa de criar espaços e condições de autorre- presentação e de questionar [nossos] limites representa- cionais, bem como [nosso] próprio lugar de enunciação e sua cumplicidade no trabalho intelectual.”

A figura mítica grega de Medeia, neste contexto, é emblemática. Ela como um oprimido que dá a volta 305 por cima e vira a mesa nos servirá de exemplo; ela se contrapõe claramente à suicida Joana de Chico Bu- arque e Paulo Pontes porque é capaz de dizer (e de cumprir o seu dito) para seu opressor: “Que ninguém me considere tola e fraca, nem resignada, mas, de ou- tro modo, pesada para os inimigos e leve para os ami- gos.” (v. 807-809).5 Sendo muito mais remota tempo- ralmente, a princesa colca revela-se mais subversiva e determinada que a nossa recriação contemporânea.

Dessa forma, é preciso traduzir a Medeia grega; ela tem muito a nos dizer! Por esse motivo busca- mos abordar o texto euripidiano tentando, através dele, resgatar o exercício helênico de capacitação nº 22, Jan.-Apr. 2018 para a reflexão e a crítica. Além disso, não negamos: abordamo-lo porque creditamos que todo e qual- quer brasileiro tem o direito de acessar esse texto em toda a sua inteireza para a compreensão do processo de formação do sistema político ocidental e para a Tereza Virgínia Ribeiro conscientização da linha divisória entre o público e o Barbosa, ‘Tradução e privado, entre o dominador e o subjugado. Conhecer (des)colonização: o caso de Medeia’, p. 299-318 e entender para dominar. Trata-se, na realidade, de uma dominação sensorial que ocorre por meio da escuta e que provoca uma nova fala ou gesto social de resiliência. No instante em que se compreende os mecanismos de libertação, de coerção e opressão, podemos utilizá-los. É nesse espaço, sem dúvida, que entra em cena Medeia, a colca.

Todavia, concretamente, em que medida o texto de Medeia – tal como ele se propõe no grego, com seus 1419 versos, coro, longas rhéseis e monólogos, requintadas fi- guras retóricas e sofisticadas manobras políticas discur- sivas – em que medida poderia ele contribuir para des- 306 pertar, num homem comum, o desejo de participação na vida pública do seu país ou o desejo de entender os argumentos e as razões justas e injustas nos discursos proferidos e nas manobras de argumentação de perso- nagens litigantes?

Medeia tem particularidades poderosas. Como ve- nho registrando alhures, na peça homônima, a pala- vra υἰός, filho, raríssima em textos teatrais áticos, não ocorre. Isso não é fortuito.6 O dado nos permite afir- mar que a personagem, no texto em questão, não mata os seus filhos queridos, mas, sim, os herdeiros, os ci- dadãos, os descendentes, a prole, as crias, os frutos da terra ateniense.7 Conclusão: em Medeia, de Eurípides a cidadania, o bem do coletivo, é mais potente que o lugar privado e afetivo de filhos e de mães furiosas e nº 22, Jan.-Apr. 2018 revanchistas em contenda com os maridos.

Sem choro nem vela, sem drama nem traição: o texto euripidiano, rigorosamente lido e traduzido cul- turalmente, é um instrumento para vivenciar nossa Tereza Virgínia Ribeiro vocação ontológica, ou seja, Medeia de Eurípides nos Barbosa, ‘Tradução e (des)colonização: o caso possibilita experimentar a força e a limitação, nossos de Medeia’, p. 299-318 direitos e deveres, nossa autonomia responsável. É o que sói acontecer com qualquer texto de qualidade. O que, então, demarca a diferença?

É que os textos do teatro ático, desaprendidos e pouco difundidos entre nós, trazem a possibilida- de – com seus requintes línguísticos – de ensinar a resistir, a (re)conhecer o próprio e o outro e a res- gatar riquezas esquecidas, a outra realidade, o outro repertório do conhecimento que um dia foi poder. Com isso, consequentemente, vamos alargar fron- teiras, para aprender a reconhecermo-nos como su- jeitos de nossa realidade histórica e social, contra 307 qualquer alienação ou opressão imposta pela igno- rância de nós próprios.

Assim, é urgente retomar o texto antigo pela her- menêutica de nossa cultura; pela urgência do con- temporâneo, é preciso retirá-los do confinamento do passado e das mãos dos que dominam bem a lingua- gem do poder e moldá-lo – sem deformá-lo – para o acesso de todos. Então, que fazer?

Em relação à tradução, enfrentamos o peso civili- zacional que carregam tais textos, escalando o saber de gigantes da cultura clássica: alemães, franceses, italianos, portugueses, anglo-saxões... Montados em nº 22, Jan.-Apr. 2018 seus ombros, vamos visualizar esse novo mundo, esta terra brasílica em toda a sua potência linguística, le- xical e cultural. Isso significa ingerir o aparato filoló- gico construído e sorver a erudição de tantos, desde que seja para tentar encontrar, digerir e produzir, no Tereza Virgínia Ribeiro nosso corpo-repertório-cultural, atos e falas teatrais Barbosa, ‘Tradução e similares ao contexto de produção antigo. Admitimos (des)colonização: o caso de Medeia’, p. 299-318 a estrangeiridade de Medeia; que ela seja acolhida en- tre nós, mas que aprenda o falar de nosso povo, ainda que numa dicção exótica e antiga. Medeia, a ξένη, é alguém que precisa achar seu lugar na “cidade Brasil”. A nós cabe contemplar as forças que ela põe em movi- mento, como vítima ou algoz, e ponderar. E isso vale primeiramente para o tradutor, oprimido pela tradi- ção e pelo peso de um possível original e, ainda, pela tendência a se submeter a uma dada ordem de coisas. Pleiteamos para ele a conquista crítica dos meios de produção teatral, para equilibrar tradução, dramatur- gia e invenção. Queremos, entre deslizamentos, elas- ticidades e ambiguidades, fazer o público compreen- 308 der a sofística grega para lidar, por exemplo, com o discurso político atual. Queremos, entre figuras de linguagem e de pensamento, fazer nossa plateia en- tender a literatura dramática de qualquer época, para lidar com o discurso artístico atemporal.

Como desmecanizar intelectualmente a tradução? Na prática, quebrando o automatismo de traduzir. Por isso perguntamos: é preciso que, em textos poéticos, φύσις seja sempre traduzido por “natureza”? Por que não “fi- bra”? E ψυχή será, no teatro, sempre “alma” – por que não “respiro”, “sopro”, “alento”? E δαίμων, “divindade”, não poderia nunca ser vertido por “índole”?8 E σοφία? Seria blasfêmia traduzi-la por sensatez no verso 827? E ὀργή por sanha no verso 870? O sentido das palavras é criado por elas mesmas junto de suas vizinhas e no con- nº 22, Jan.-Apr. 2018 texto de enunciação. Não optar pelo majoritário, cristali- zado ou predominante é uma defesa da diferença poéti- ca que devolve ao texto sua força libertária e libertadora.

Deixando o léxico e pensando na transmissão e ma- Tereza Virgínia Ribeiro nutenção de um objeto-corpo-texto de vinte e sete sécu- Barbosa, ‘Tradução e (des)colonização: o caso los, como afirmar para a plateia a temporalidade ances- de Medeia’, p. 299-318 tral do texto que ela vai ver? Dou um exemplo simples: quando nos deparamos com um arcaísmo épico para traduzir ou quando queremos simplesmente afirmar as origens remotas e o percurso temporal e geográfico de Medeia no texto de chegada, sem dificultar o entendi- mento daquele que só ouve o texto (e não lê), nós, tradu- tores colonizados pelas “belas artes”, temos por hábito re- correr a latinismos ou neologismos de base greco-latina.

Ora, o povo brasileiro – que se constituiu com a lín- gua portuguesa somente a partir de 1500 com o senhor Cabral e que dificilmente tem acesso aos monumentos da antiguidade – conta com seus próprios arcaísmos, 309 retiráveis de outros reservatórios. São formas arcaicas situadas nos tão remotos idos dos setecentos, dos oi- tocentos ou mesmo dos novecentos (séculos que para nós são o “início”). Portanto, mutatis mutandis, se, para o Brasil, antiga é a década de 1920, é razoável traduzir o arcaico para que ele seja imediatamente identificado como tal, ou seja, como termo, forma ou texto recupe- rado do passado pelo léxico, pela dicção e pelas estru- turas sintáticas dos séculos de “nosso início”. A nosso ver, deveríamos, para traduzir Medeia no Brasil, buscar expressões do reservatório brasileiro de antiguidade. Descolonizando Medeia traduzimos um trecho da fala da ama da seguinte maneira:

nº 22, Jan.-Apr. 2018 <φίλων τε τῶν πρὶν ἀμπλα tinha ali pejosa vida>

A escolha de “pejosa” para traduzir “μεμπτὸν” não Tereza Virgínia Ribeiro foi tranquila para a Truπersa. Como se sabe, traduzi- Barbosa, ‘Tradução e (des)colonização: o caso mos de forma coletiva e alguns classicistas neófitos, de Medeia’, p. 299-318 domesticados pela tradição tradutória e carregados de preconceito, afirmavam ser a palavra “pejosa” um re- gionalismo que ninguém entende ou usa. A disputa foi acirrada; poderíamos elevar o discurso ou vulgarizá-lo com nossa escolha. Optamos pela sua manutenção de “pejosa”, pela reinauguração do uso de um vocábulo que parece ter entrado na língua portuguesa por volta de 1450-1516 a partir de ‘peia’.9 A controvérsia se encer- rou quando um dos nossos helenistas tradutores, por acaso, ouviu, na telenovela, uma personagem referir-se a outra com os termos: “Que pejosa ela é!”

Outra passagem que suscitou polêmica e resistência 310 dos jovens classicistas: a tradução do v. 1114. Como sequer o conheciam, muitos se recusavam a utilizar o vocábulo ‘merencória’, empregado na velha Aquarela brasileira composta por Ary Barroso em 1939. O tre- cho traduzido ficou assim:10

ἆρ᾽, ὦ τέκν᾽, οὕτω καὶ Ara! ôÔ crianças, que assim πολὺν ζῶντες χρόνον seja por muito tempo. τάλαιν᾽, ὡς ἄρ᾽ ἦσθα Infeliz! Como?! Arre! Foste πέτρος ἢ σίδαρος pedra ou ferro? ἴτω: περισσοὶ πάντες οὑν Deixa pra lá! Todo permeio μέσῳ λόγοι.. agora é inútil! πῶς οὖν λύει πρὸς τοῖς Como, então, se livrar, entre ἄλλοις outras, de mais esta tão τήνδ᾽ ἔτι λύπην merencória dor ἀνιαροτάτην

A mesma passagem, pode-se notar, introduz a inter- nº 22, Jan.-Apr. 2018 jeição ‘ara’/’arre’ (datada por Houaiss como sendo de 1502), utilizada, por exemplo, por Guimarães Rosa.11 Ela serviu para recuperar o ἄρα, partícula interrogati- va de impaciência. Outros termos empregados, como Tereza Virgínia Ribeiro ‘permeio’, garantiram para a tradução um efeito de an- Barbosa, ‘Tradução e tiguidade efetiva. Acreditamos ter alcançado um texto (des)colonização: o caso de Medeia’, p. 299-318 em que todos e todas falam como estrangeiros arcaicos de um mundo remoto, mas vivo e próximo ainda hoje (porque mítico e eterno). A referência primeira no pro- cesso tradutório foi Aristóteles (Retórica, 3, 1404), que afirmou que, na tragédia, Eurípides utiliza a linguagem de todos os dias;12 por isso, buscamos uma expressão linguística arcaica, porém reconhecível. Dizer o subli- me e arcaico, ora de modo excelso, ora banal, para estar no ponto máximo de tensão entre o oral e o escrito, o poético e o prosaico. Os arcaísmos próprios da lingua- gem trágica, se não foram recuperados no momento exato de sua ocorrência, foram compensados em tre- chos adequados, contudo nunca foram substituídos 311 por latinismos; eles foram retirados da música popular, das interjeições e dos ditos populares.

Além disso, estivemos atentos à repetição da fala gre- ga, à imprecisão lexical da sofística – nunca comprome- tida com um único significado para um termo. Esses são lugares de conforto, pois o ouvinte sabe que a repetição é ferramenta útil para aqueles que perderam o fio da mea- da, que a imprecisão alarga as possibilidades de leitura e interpretação. Do mesmo modo, em segmentos os mais diversos, evitamos a rigidez da conexão gramatical à base da hipotaxe e optamos pela parataxe. Tudo isso são ferramentas que auxiliam na materialização da essência das coisas, não só no que diz respeito ao ontológico, mas, nº 22, Jan.-Apr. 2018 da mesma maneira, no que diz respeito à composição poético-linguística praticada no teatro ateniense.

Abordamos, assim, o texto (antes somente literá- rio) como um corpo cultural para o qual é possível, Tereza Virgínia Ribeiro através de pesquisa e experimentação, explicar fenô- Barbosa, ‘Tradução e menos e fatos poéticos, e transportá-los de uma cul- (des)colonização: o caso de Medeia’, p. 299-318 tura e de uma época para outra de forma funcional e eficiente. O espetáculo funcionou. Acreditamos, por isso que o texto resistiu em seu todo coeso, funcional e cênico – tradução de texto, sim, tradução de poe- sia, claro, por certo, mas também tradução de teatro. Ao ler o texto traduzido – necessariamente em voz alta visto tratar-se de dicção oral privilegiando a topi- calização, a inversão e a parataxe – vê-se primordial- mente a cena que se erige das palavras.

Cientes de que existem – no campo da tradução teatral – grosso modo, dois tipos distintos de pesqui- sadores: os provenientes da filologia, literatura com- 312 parada ou linguística e os profissionais do campo dramático (atores, diretores, técnicos, dramaturgos, tradutores dramáticos, etc.), resilientemente busca- mos manter unidos texto e cena e trouxemos, com isso, para o português as palavras de Eurípides em potência teatral elevada, prontas para receberem um corpo em ação no território Brasil. Deste modo, o tex- to que se firmou resiste à fratura de texto e cena e fica esperando um corpo brasileiro para se manifestar e afirmar que entre o Brasil e a Grécia há uma base só- lida de comunicação, o humano comum de cada um.

Notas

1 Versão ampliada desse artigo foi publicada na obra Teatro nº 22, Jan.-Apr. 2018 e tradução de teatro: estudos, 2017, p. 15-31. 2 Ao mencionar o termo “subalternidade” refiro-me à obra de Gayatri Chakravorty Spivak, Pode o subalterno fa- lar?, 2010.

3 Disponível em: http://www.aulete.com.brresili%C3%AAncia Tereza Virgínia Ribeiro 4 Frag.16, Voigt, apud Antonio Aloni. Firenze, 1997. Barbosa, ‘Tradução e ο]ἰ μὲν ἰππήων στρότον, οἰ δὲ πέσδων, (des)colonização: o caso de Medeia’, p. 299-318 οἰ δὲ νάων φαῖς ἐπ[ὶ] γᾶν μέλαι[ν]αν ἔ]μμεναι κάλλιστον, ἔγω δὲ κῆν᾿ ὄτ-τω τις ἔραται... 5 μηδείς με φαύλην κἀσθενῆ νομιζέτω μηδ᾽ ἡσυχαίαν, ἀλλὰ θατέρου τρόπου, βαρεῖαν ἐχθροῖς καὶ φίλοισιν εὐμενῆ... 6 Prefácio a Medeia de Eurípides, p.37-38. 7 Refiro-me evidentemente ao mito da autoctonia tão caro aos textos trágicos. Sobre o tema cf. Rader, 2009, p. 1-44; cf. ainda: BARBOSA, 2016, p.13-32. Vale observar que, em Medeia, o canto coral que se inicia no verso 824 e vai até o 865 exalta “os filhos felizes de Erecteu”, aqueles que prescindem do corpo feminino para nascer. 8 Em Medeia, v. 966-67: κείνης ὁ δαίμων [κεῖνα νῦν αὔξει θεός, νέα τυραννεῖ]; em tradução da Truπersa: “A índole é dela, o deus só aumenta. Ela tem reinado novo.”. 313 9 peia: HOUAISS; VILLAR. 2009. 10 Vale lembrar que esse vocabulário também está presente nos nossos poetas barrocos, parnasianos, simbolistas, românticos. 11 ROSA. 1976, p. 70 e 144 respectivamente: “Aí Zé Bebelo reparou em mim: – “Professor, ara viva! Sempre a gente tem de se avistar...”; E “Arre que ele não desconfiava, não percebia!”. Igualmente, na p. 134: “Permeio com quantos, removido no estatuto deles, com uns poucos me acompanheirei, daqueles ja- gunços, conforme que os anjos-da-guarda.”.

12 “De fato, o iambo é mais coloquial dos metros. Prova disso é usarmos mais iambos na conversa uns com os outros e rara- mente – apenas quando fugimos do tom coloquial – os hexâme- tros (1449a 23-28).” In: VALENTE. 2007.

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Bibliografia

AGAMBEN, G. (2009). O que é contemporâneo? e

Tereza Virgínia Ribeiro outros ensaios. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko. Barbosa, ‘Tradução e Chapecó, Argos. (des)colonização: o caso de Medeia’, p. 299-318 BANDEIRA, M. (1984). Itinerário de Parságada. Brasília, Nova Fronteira.

BASSNETT, S. (2003). Estudos de Tradução: funda- mentos de uma disciplina. Tradução de Vivina de Cam- pos Figueiredo. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.

BARBOSA, T. V. R. (2011). Tradução e ideologia: tradição e ruptura na tragédia Electra, de Eurípides. Uniletras, Ponta Grossa, v. 33, n. 1, jan./jun., p.127- 140. https://doi.org/10.5212/Uniletras.v.33i1.0009

BARBOSA, T. V. R . (2016). Íon, de Eurípides, um 314 ‘broto’ legal. In: BELO, Fábio. (ed.). Íon, de Eurípides: interpretações psicanalíticas. Petrópolis, KBR Editora Digital Ltda, p.13-32

BARBOSA, T. V. R . (2017). Tradução e (des)colo- nização: o caso de Medeia, Electra e Orestes. In: BAR- BOSA, T. V. R.; CHIARINI, A.; PALMA, A. Teatro de tradução de teatro: estudos. Vol. 1. Belo Horizonte, Relicário Edições, p.15-31.

BOAL, A. (1991). Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro, Editora Civiliza- ção Brasileira.

BOAL, A. (2009). Estética do Oprimido: reflexões errantes sobre o pensamento do ponto de vista estético nº 22, Jan.-Apr. 2018 e não científico. Rio de Janeiro, Garamond.

BERMAN, A. (1999). La traduction et la lettre ou l’auberge du lointain. Paris, Éditions du Seuil.

CAMPOS, H. (1992). Da tradução como criação e Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, ‘Tradução e como crítica. In: CAMPOS, H. (org.). (1992) Meta- (des)colonização: o caso linguagem & outras metas. Ensaios de teoria e crítica de Medeia’, p. 299-318 literária. São Paulo, Perspectiva, p. 31-48.

CAPONE, G. (1935). L’ Arte scenica degli attori tra- gici greci. Padova, Casa Editrice Dott.

CENTER ON THE DEVELOPING CHILD – Har- vard University. Key Concepts. Disponível em URL = http://developingchild.harvard.edu/science/key-con- cepts/resilience. Disponível em 19 de junho de 2016.

DAMEN, M. (1989). Actor and character in Greek Tragedy. Theatre Journal, vol. 41, no. 3, p. 316-340. https://doi.org/10.2307/3208183 315 DIGGLE, J. (1994) (ed.). Euripides. Fabulae. Tomo III. Oxford, Oxford University Press.

ESCOSTEGUY, A. D. (2006). Os estudos culturais em debate. UNIrevista - Vol. 1, n° 3, p. 1-8, 2006.

EVEN-ZOHAR, I. (1979). Polysystem Theory. Po- etics Today, Vol. 1, No. 1/2, Special Issue: Literature, Interpretation, Communication. p. 287-310.

HALLIWELL, S. (1987). Aristotle. Poetics of Aris- totle. Chapel Hill, University of North Carolina Press.

HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. (2009) Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva. nº 22, Jan.-Apr. 2018 JONES, J. (1967). On Aristotle and Greek Tragedy. London, Chatto & Windus.

LATEINER, D. (1998). Sardonic Smile. Nonverbal

Tereza Virgínia Ribeiro Behavior in Homeric Epic. Ann Arbor, Universiy of Barbosa, ‘Tradução e Michigan. (des)colonização: o caso de Medeia’, p. 299-318 LEFEVERE, A. (1997). Traducción reescritura y la manipulación del canon literario. Tradução de Maria Carmen África e Román Alvarez. Salamanca, Colegio de Espana, p. 59-78.

LIBÓRIO, R.; M.C.; CASTRO, B.M. de; FERRO, E.G.; SOUZA, M.T.S. (2015). “Resiliência e Processos Protetivos de Adolescentes com Deficiência Física e Sur- dez Incluídos em Escolas Regulares”. Revista Brasileira de Educação Especial. vol. 21, no.2, Marília, Apr./ June, p. 185- 198. https://doi.org/10.1590/S1413-65382115000200002

MNOUCHKINE, A. (2011). Sabatina Fo- 316 lha SESC. In: SESC Belenzinho, 21 de Outubro. Acesso em 12/02/2012. Disponível em: URL = http:// www.youtube.com/watch?feature=endscreen&NR= 1&v=7geJ5BqFgqQ.

NIKOLAREA, E. (2002). Performability versus Read- ability: A Historical Overview of a Theoretical Polariza- tion in Theater Translation. Translation Journal and the Authors. Acesso em: 31/07/2013. Disponível em: http:// www.bokorlang.com/journal/22theater.htm

OUSTINOFF, M. (2011). Tradução: história, teo- rias e métodos. Trad. de Marcus Marciolino. São Paulo, Editorial Parábola, 2011.

PAVIS, P. (2005). Aux frontières de la mise en scène. In: Littérature, N°138, 2005. Théâtre: le re- nº 22, Jan.-Apr. 2018 tour du texte? p. 73-80. https://doi.org/10.3406/ litt.2005.1894

PEGHINELLI, A. (2012). Theatre Translation as Collaboration: a case in point in British Contem- Tereza Virgínia Ribeiro porary Drama. Journal for Communication and Cul- Barbosa, ‘Tradução e (des)colonização: o caso ture 2, nº1, p. 20-30. de Medeia’, p. 299-318 PERDICOYIANNI-PALÉOLOGUE, H. (2002). The interjections in Greek Tragedy. Quaderni Urbinati di Cultura Classica. Vol. 70, nº 1, p. 49-88. https://doi. org/10.2307/20546714

RADER, R. (2009). And Whatever It Is, It Is You’: The Autochthonous Self in Aeschylus’s Seven Against Thebes. Arethusa, Volume 42, nº 1, p. 1-44. https://doi. org/10.1353/are.0.0014

RESILIÊNCIA. Dicionário Digital Caldas Au- lete. Disponível em http://www.aulete.com.br/ resili%C3%AAncia. Editora Lexikon, 2007. 317 RIBEIRO, T. V. (2013) (ed.). Eurípides. Medeia de Eurípides. São Paulo, Ateliê Editorial.

ROSA, J. G. (1976). Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro, Editora José Olympio.

SANCHEZ, M. B. (1971). El vocativo y la interjec- ción ὦ. Habis 2, Sevilla, p. 35-48.

SOMMERSTEIN, A. H. (2003). Greek Drama and Dramatists. London, Routledge.

SPIVAK, G. C. (2010). Pode o subalterno falar? Tra- dução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pe- reira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte, nº 22, Jan.-Apr. 2018 Editora UFMG. VALENTE, A. M. (2007). Aristóteles. Poética. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.

VENUTI, L. (2002). Escândalos da Tradução. Tra- Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, ‘Tradução e dução de Laureano Pelegrin; Lucinéia M. Villela; Ma- (des)colonização: o caso rileide D. Esquerda e Valéria Biondo. Bauru, EDUSC. de Medeia’, p. 299-318 WISE, J. (2008). Tragedy as ‘An Augury of a Happy Life’. Arethusa, 41, p. 381-410. https://doi. org/10.1353/are.0.0012

YÚDICE, G. (2004). A conveniência da cultura – usos da cultura na era global. Tradução Marie-Anne Kramer. Belo Horizonte, UFMG Editora.

Submetido em Junho e aprovado para publicação em Julho, 2016

318 Martin M. Winkler - George Mason University (United States of America) [email protected] - ORCID: 0000-0002-8048-3553

Apollonius and the Golden Fleece: A neo-mythological screen legacy nº 22, Jan.-Apr. 2018

WINKLER, M. M. (2018). Apollonius and the Golden Fleece: A neo-mythological screen legacy. Archai, n.º 22, Jan.-Apr., p. 319-362 DOI: https://doi.org/10.14195/1984­‑249X_22_13

Abstract: A number of ancient poets and painters described or showed the Golden Fleece, one of the most intriguing su- pernatural objects in classical myth. But the poets were not as specific as their modern readers may wish. By contrast, cin- ema and television show the Fleece in all its specific aspects. Moving-image adaptations of classical myths always change their sources, a phenomenon usefully termed “neo-mythol- ogism,” but they display the Fleece to good effect, if often in a variety of recreations. The seven European and American films examined here show us why the Fleece deserves the Homeric epithet thauma idesthai. Keywords: Golden Fleece, Apollonius, Jason, Medea, films.

319 Among all the supernatural objects found in clas- sical mythology, the Golden Fleece may be the most famous and influential in inspiring poets, dramatists, and painters since antiquity. The Fleece is the reason for an arduous journey to Colchis, a kingdom at the ends of the earth. A golden-fleeced ram had once saved Phrixus and his twin sister Helle from the machina- tions of their evil stepmother by carrying them east. The ram’s father was Poseidon in animal shape; its mother, a nymph temporarily in animal shape as well, was a granddaughter of the sun god Helius. In the best-known version of the myth, the ram had wings and could talk. Either its fleece was naturally golden, or Hermes had made it so. (On this Fränkel, 1968, p. nº 22, Jan.-Apr. 2018 293-294.) Helle fell off the ram’s back and drowned in the Hellespont, the sea named after her. The ram then gave verbal encouragement to Phrixus and took him to Colchis, where it was sacrificed. Its fleece became a symbol of power, royalty, and authority. It was kept Martin M. Winkler, in a tree inside a grove sacred to Ares. Colchian King ‘Apollonius and the Aeëtes kept the Fleece in his possession. In the best- Golden Fleece: A neo- mythological screen known versions it was guarded by a dragon. (A con- legacy’, p. 319-362 cise recent summary of the myth and its variants is in Boyle, 2014, p. lxi-lxxviii, with references.) Accord- ing to Diodorus Siculus 4. 48. 3, the never-sleeping dragon was coiled around the Fleece. Such a version would look particularly arresting on screen but has never been filmed. Diodorus tells the whole myth at 4. 40-55.

In Greece, evil Pelias had killed his brother Aeson, the legitimate ruler of the Thessalian kingdom of Iol- cus, and usurped his throne. When Aeson’s son Jason came to reclaim the kingdom that was rightfully his, 320 Pelias sent his nephew to obtain the Golden Fleece for him. To undertake his dangerous task, Jason gathered about fifty heroes and sailed to Colchis. Jason’s com- panions were called Argonauts after their ship, the Argo. But King Aeëtes would not willingly relinquish his greatest possession and imposed deadly tests upon Jason. The Argonauts’ quest was thus meant to be a mission impossible: Pelias intended to get rid of Jason and keep the throne; Jason and the Argonauts were never to return. But with the help of Aeëtes’ daugh- ter Medea, who possessed magic powers and was in love with Jason, the best of the Argonauts succeeded. He got the Fleece—in some versions Medea got it for him—he got the girl, and he got back home. But Jason and Medea did not get to live happily ever after. nº 22, Jan.-Apr. 2018 1. The Golden Fleece in Apollonius’ Argonautica

What did the Golden Fleece look like? We may be able to imagine the golden look of a ram’s fleece, but Martin M. Winkler, is that enough to impress on us, or on ancient Greeks ‘Apollonius and the and Romans, a sense of its inherent or symbolic value? Golden Fleece: A neo- mythological screen The Fleece has to be supernaturally beautiful to func- legacy’, p. 319-362 tion in a credible manner as the object of a quest as dangerous as the Argonauts’ and remarkable enough to deserve being called a thauma idesthai: “a wonder to behold.” This expression is Homer’s and occurs sev- eral times in the Iliad and Odyssey. Hom. Il. 5. 725 is its first occurrence. Ancient visual artists depicted the Fleece on several occasions, but they could not do justice to its golden sheen.1 Nor, apparently, could po- ets. Classical descriptions of the Fleece are too brief adequately to convey a sense of its beauty; they consist mainly of summary statements or assertions. A case in point is Apollonius of Rhodes, whose Argonautica 321 is the most detailed retelling of the myth about Jason and the Fleece in classical epic. Apollonius was not only a poet but also a literary scholar; he may also have been the head of the famous Library of Alexan- dria in Egypt, one of the greatest centers of learning in the Hellenistic Age.

Apollonius does not have all that much to say about the appearance of the Fleece, as if its extraordinary quality defied him. The ram was “that wondrous crea- ture, all gold.” In the Ram’s Rest, a meadow in Ares’ grove, stood “that vast oak on which the Fleece / was spread out, just like some cloud that blushes ruddy gold, / caught by the fiery rays of the sun at its rising.”2 nº 22, Jan.-Apr. 2018 Once Medea has put the dragon to sleep, Jason takes down the Fleece, which is as large as an ox hide. And “the bright glint of its texture / cast a ruddy blush like a flame.” Its thick wool is “golden throughout.” And: “Brightly the earth / gleamed ever in front of his feet Martin M. Winkler, as he strode on forward.”3 Jason’s men “were amazed” ‘Apollonius and the at “the great Fleece gleaming / like Zeus’s lightning.”4 Golden Fleece: A neo- mythological screen Later, Jason and Medea spread “the bright Golden legacy’, p. 319-362 Fleece” on their marriage bed: “A glow like firelight shone round them, / so bright the light that glittered from the Fleece’s golden tufts.”5 Apollonius echoes the archaic poet Pindar, who centuries earlier had Pelias speak of “the deep-fleeced hide of the ram” and had Aeëtes call it “the imperishable coverlet, / the fleece fringed with gleaming gold.” Pindar then speaks of “the shimmering fleece.”6

What do we learn from all this? The Fleece, Peter Green states, looked “a deep metallic red-gold” so strong that it illuminated its environs (Green, 2007, 322 p. 40). The imperial Roman poet Valerius Flaccus, in his epic retelling of the myth, spoke of “the sheepskin’s golden cloud that shines with the dazzle of Iris’ / glow- ing robe.”7 All this leaves us wanting to know more specifically what this magical object was like. We may be reminded of Virgil’s expression non enarrabile tex- tum about the shield of Aeneas: the “texture” which Hephaestus, the divine craftsman, imparts to the im- ages decorating the shield “cannot be told” (Virg. Aen. 8. 625 [clipei non enarrabile textum] and 626-728). Green comments on the Fleece: “Perhaps most re- markably, the Fleece…remains a complete (and high- ly numinous) mystery….We are not even told what generates its unearthly magical glow” (Green, 2007, p. 40). He draws this inevitable conclusion: nº 22, Jan.-Apr. 2018

Ap. betrays a certain confusion in these lines regarding the exact nature of the Fleece: not altogether surpris- ingly, since several conflicting versions were known. The scholiast ([on lines] 176-177) reports it variously Martin M. Winkler, described as golden, white, or purple. Cf. schol. 1146- ‘Apollonius and the 48, where again the two main versions have it gold (the Golden Fleece: A neo- majority opinion, seemingly) or dyed sea-purple….Even mythological screen if we treat it as a purely imaginary literary artifact, there legacy’, p. 319-362 is an elusive aspect to Ap.’s presentation: his Fleece is sin- gularly hard to visualize.8

A dissenting opinion, however, has recently been advanced. Richard Hunter remarks on Apollonius’ two lines devoted to the Fleece’s extraordinary size:

the very precision of the specification of size, combined with a focus, not just on the Fleece as a whole, but on the individual clumps of wool (175), creates a powerful ecphrastic effect. Even readers who are puzzled by the 323 glosses of 174-5 are pushed towards a very precise im- age of this extraordinary (mythical) artefact. (HUNTER, 2015, p. 105, on Argon. 4. 174-175)

Whether readers of Apollonius remain puzzled or are capable of a precise image, one thing becomes evi- dent: all are called upon to use their powers of imagi- nation to visualize the Fleece. To adduce Virgil’s ex- pression again: whether something is enarrabile in a poetic textum or not, it certainly is imaginabile. Read- ers themselves create the wondrous object in their mind’s eye, thus making it thauma idesthai.

Today, a modern medium takes things even further. nº 22, Jan.-Apr. 2018 A supernatural object becomes literally visibile when placed before our actual eyes. That medium is the cinema (and its offspring, television). On the screen, each and every object, whether realistic or imaginary, Martin M. Winkler, must become visible in all its specificities. ‘Apollonius and the Golden Fleece: A neo- 2. Classical Mythology and Cinematic mythological screen legacy’, p. 319-362 Neo-Mythologism

To date, seven films, all in color, have shown the Fleece to good effect. On the following pages, the dif- ferent imaginative approaches to the visibile textum of the Fleece taken by the filmmakers will be examined through a critical and descriptive explication des tex- tes filmiques, as it were. Five of these filmic texts are examples of mainstream commercial cinema; two of them come from the age of computer technology. The remaining two are examples of art cinema. All are re- vealing about the ways in which filmmakers present 324 us with modern versions of a classic tale. One specific aspect deserves our attention first. It pertains directly to our films’ storylines and their vis- ual recreations of the Golden Fleece. Adaptations of narrative literature in other media are rarely faithful to their sources. This is practically always the case with the cinema. Italian writer-director Vittorio Cottafavi, who made two noteworthy films about Hercules, re- ferred to this phenomenon as “neo-mythologism.”9 This is not a modern phenomenon. Given the great flexibility inherent in the oral and literary traditions of ancient myth, Greeks and Romans could themselves be highly neo-mythological. Numerous different and often contradictory versions of myths attest to this.

A distinguished filmmaker provides us with a use- nº 22, Jan.-Apr. 2018 ful perspective. Animator Ray Harryhausen once ob- served about his approach to, and experience with, Greek myth:

Martin M. Winkler, There are few other sources where you could find so ‘Apollonius and the many adventures, bizarre creatures and larger-than-life Golden Fleece: A neo- heroes….However, we soon realized that the storylines mythological screen needed some modification if we were to translate them legacy’, p. 319-362 to the cinema screen….Sometimes we may have played a bit fast and loose with the plots, or introduced creatures from one story into another, but that is the great thing about those tales: you can keep to the spirit of the original without slavishly following it….I suspect that the ancient Greeks would have been pleased with what we did—even if the academics have not always been quite so impressed. (HARRYHAUSEN and DALTON, 2005/2006, p. 99)

Harryhausen is unlikely ever to have heard the term neo-mythologism, but his statement in defense of what Cottafavi had in mind is as eloquent as it is 325 sensible. Harryhausen’s words apply to all the films examined here.

3. Hercules (1958)

Italian writer-director Pietro Francisci chose Amer- ican bodybuilder Steve Reeves to play the titular hero in Le fatiche di Ercole (“The Labors of Hercules,” 1958). The film became an international success, especial- ly when savvy American producer and distributor Joseph E. Levine launched it in the United States under the simplified titleHercules . The original title might lead us to expect that the film illustrates Heracles’ fa- mous twelve labors. But these labors are only a loose

nº 22, Jan.-Apr. 2018 string of adventures, so Francisci and his co-writers introduced a clever change. Although they incorpo- rated some, although not all, of the labors, their sto- ryline includes Jason and the Argonauts. Heracles had been one of the Argonauts in the myth but left their Martin M. Winkler, expedition before they reached Colchis. In this way, ‘Apollonius and the the greatest of all Greek heroes did not overshadow Golden Fleece: A neo- Jason, the Argonauts’ leader and a lesser hero. A title mythological screen legacy’, p. 319-362 card in the film’s opening credits explicitly acknowl- edges Apollonius’ epic as main source. This is the only time Apollonius has received such a screen credit. The card is honest enough to admit that everything has, of course, been treated freely (Fig. 1).10 There is, for instance, no Medea.

The sequence in which the Fleece is found is a bit of a disappointment although by no means a failure. For one thing, Jason and not the hero whose film this is kills the dragon and gets the Fleece. And the sequence is not conceived or filmed and edited very imagina- tively. Having just landed in Colchis, the Argonauts 326 Fig. 1 are being attacked by non-mythical savages who look like humanoid apes from prehistory. When these monsters flee, Jason is suddenly missing. A cut shows us a deserted rocky landscape; another cut reveals nº 22, Jan.-Apr. 2018 the tree with the Golden Fleece in extreme long shot. Dead leaves cover a mound of earth below the tree. Jason now sees the Fleece, and Francisci gives us a closer look (Fig. 2). The Fleece is not overly large, and Martin M. Winkler, its golden color appears subdued except for the ram’s ‘Apollonius and the bright golden horns. Head and horns move a little in Golden Fleece: A neo- the breeze; this makes for an eerie effect. The music mythological screen legacy’, p. 319-362 heightens the mystery and suspense. Jason walks up the mound and stretches out his arms to take down the Fleece. Suddenly the ground he stands on begins to move, and he tumbles down. The mound rises — it is the dragon! And it is huge. In close-up or medium shot it looks impressively menacing, although in long shots it appears rather silly because of its dispropor- tionately tiny head. Francisci stages Jason’s fight with the dragon as if this were a medieval epic. Jason, for instance, is caught and cast aside by the dragon’s whipping tail more than once. But he manages to dis- patch the beast with a single spear throw into its eye. 327 Fig. 2

He looks up at the Fleece again, which receives an- other close-up. Jason climbs onto the dead dragon’s back. (So he does in Val. Flacc. Argon. 8. 109-114, nº 22, Jan.-Apr. 2018 following Medea’s advice.) He pulls down the Fleece and runs off to join the Argonauts. But first he takes a closer look at the Fleece and discovers that there are large bloodstains on the inside. There is also a message written in blood. In voice-over we are told Martin M. Winkler, what it says: ‘Apollonius and the Golden Fleece: A neo- mythological screen legacy’, p. 319-362 My brother killed me. Pelias’ are the hands that struck me as I slept. May the gods forgive him for what he did, but may they persecute and curse him if he harms my son. I commit Jason into your hands, o gods, and I ask of you to free his thoughts from revenge, for no more blood must be shed because of my death.

This is a noble speech, accompanied on the soundtrack by a female choir delivering a kind of wordless warbling hymn. But it is improbably long to have been composed by a dying man. And it is un- mythical. Still, viewers are by no means perplexed by 328 Aeson’s final words because they already know what Fig. 3 no ancient Greek or Roman knew: that the Fleece had originally belonged to Aeson. In an expository flashback early in the film, Francisci had shown the Fleece prominently displayed behind Aeson’s throne, nº 22, Jan.-Apr. 2018 stretched out on a frame formed by spears (Fig. 3). The Fleece, Hercules is informed, was considered “a royal symbol,” which “seemed to give off a mysterious presence; it seemed to vibrate.” “You know,” Hercules Martin M. Winkler, is further told, “reigning without the Golden Fleece is ‘Apollonius and the almost impossible.” So the Fleece had been in Iolcus Golden Fleece: A neo- all along, and the story of Phrixus and Helle is quietly mythological screen legacy’, p. 319-362 erased. The Fleece vanishes during the night of Ae- son’s assassination, which made Pelias king. The killer is Eurystheus, an evil schemer and assassin who later will be one of the Argonauts. Although the name is taken from the Heracles myth, everything else about this Eurystheus is invented. He finally gets what he de- serves from Hercules. The Fleece had vanished from Iolcus when Jason’s teacher Chiron, who here is not a centaur but fully human, had secretly taken it to pre- vent it from falling into Pelias’ hands. Justice is even- tually restored, and Pelias commits suicide. But first he burns the Fleece. This is entirely neo-mythological. 329 Pindar, for instance, had called the Fleece “imperish- able” (Pyth. 4. 230).

4. The Giants of Thessaly (1960)

A sequel to Francisci’s film appeared a year later. Francisci and Reeves started a whole cycle of pseudo- mythical muscleman epics. Jason and the Argonauts returned in 1960, if without Hercules.

Director Riccardo Freda’s film has two titles. It is commonly known as I giganti della Tessaglia (The Giants of Thessaly) but was also called Gli Argonau- ti (“The Argonauts”). Apollonius is never acknowl- edged. The story is only loosely based on ancient nº 22, Jan.-Apr. 2018 sources. Freda, too, once broke a lance for neo-my- thologism although he did not employ the term:

The chief difficulty…is to tell something exceptional in Martin M. Winkler, a believable and acceptable manner….So for this reason ‘Apollonius and the it’s much more difficult to make a costume film than a Golden Fleece: A neo- mythological screen modern film—more difficult and more interesting…. legacy’, p. 319-362 The difficulty is to render plausible and close to ourselves characters who proceed in very different costumes, in an altogether strange décor. So it is necessary to reach the point to give them a way of saying and doing things that would at the same time be suitable to our own sensibili- ties and to these decorative elements.11

Freda’s version of the Argonauts’ story is compara- ble in its inventiveness to what Francisci and his writ- ers had concocted although it is somewhat simpler. Jason is king of Iolcus and has a family. The narrator informs us that the Fleece is a sacred gift from Zeus 330 and a sign of his favor. But it vanishes, and the people are faced with imminent destruction from volcanic eruptions. These are Zeus’ punishment for the loss of the Fleece. Jason and the Argonauts set out for Col- chis to appease the god and prevent the worst. Dur- ing his absence, an evil schemer plots to take over as king. He also has designs on Jason’s wife.

The setting in which Jason finds the Fleece is bold in its visual presentation and surprising to anyone familiar with the myth. While the Argonauts wait on their ship, Jason climbs up a rocky cliff and a steep stone wall. He then opens a large gate and looks up. Freda cuts to a long shot of a huge stone statue of a kind of kouros standing in front of a wall and inside a large pool of water. The statue’s right nº 22, Jan.-Apr. 2018 hand, palm up, is at its shoulder and holding the Golden Fleece. Columns topped by flames indi- cate that this is a temple or sanctuary. The grove of Ares thus becomes a man-made space. There is no dragon. But there are also no priests, attendants, Martin M. Winkler, or guardians, just as there are no Colchians and no ‘Apollonius and the Golden Fleece: A neo- Aeëtes. That there is no Medea does not surprise mythological screen us, for we know that Jason is already married. legacy’, p. 319-362

In a cleverly designed composition, Freda frames Jason’s and our first view of this place with mighty pil- lars screen left and right, thus lending a greater sense of three-dimensional depth to his image (Fig. 4). Dra- matic music underscores the uncanny setting. So, very soon, will some small reddish clouds wafting before the back wall and across the statue’s top. They look fake but enhance the supernatural atmosphere of the scene.

Jason, amazed, looks at the statue’s hand, which ap- pears in an extreme close-up. A close-up on its palm 331 Fig. 4

reveals the Fleece screen left, balanced screen right by part of the statue’s face. The Fleece is rather large, and its locks are gently wafting in the air. Jason approach- nº 22, Jan.-Apr. 2018 es, his footsteps dramatically resounding through the empty space. He swims across the pool — more echo- ing sound effects — and climbs onto one of the statue’s feet. Suddenly he seems to be outdoors. The mismatch Martin M. Winkler, shows experienced viewers that what had come before ‘Apollonius and the was filmed separately and that the statue, when we get Golden Fleece: A neo- mythological screen a full view of it, is a miniature. Hacking footholds into legacy’, p. 319-362 the stone, Jason climbs to the top and reaches the stat- ue’s left shoulder and left ear. Music and a male choir’s wordless sounds enhance the drama. Jason carefully works his way across the forehead to the other side. Standing on the right eyebrow, he looks down and over at the hand with the Fleece. Then he jumps. He lands on the palm next to the Fleece, which he lifts into the air in triumph (Fig. 5).

Freda now cuts to Iolcus, to the Argo, and again to Iolcus, where the villain’s machinations develop apace. 332 Freda skips Jason’s return to the Argo. In his defense we Fig. 5 could say that ending the kouros-and-Fleece sequence as he does provides a memorable climax, although a jump by Jason into the pool below would have been thrilling. But it might have been technically difficult or impos- sible, and a wet Fleece would not have looked good. So nº 22, Jan.-Apr. 2018 Freda hastens the conclusion of his film. The Argo is suddenly back home, the bad guy is killed in a fight, and we hear that “a new era of happiness” can begin. A priest announces that Thessaly is again “under the protection Martin M. Winkler, of the sacred Golden Fleece, a prodigious sign of the ‘Apollonius and the omnipotence of great Zeus.” The final shot is of the god’s Golden Fleece: A neo- mythological screen statue. This is appropriate but a bit of a letdown after the legacy’, p. 319-362 much more impressive kouros we saw before.

A credit for animation at the film’s beginning lists, by last name only, Carlo Rambaldi, the future special- effects and creature wizard. Rambaldi was to receive numerous awards, including three Oscars, during his career. The alien in E.T. the Extra-Terrestrial (1982) is probably his best-known creation. Rambaldi had be- gun by creating, without screen credit, the dragon in Sigfrido (The Dragon’s Blood, 1957). There followed a Minotaur in Teseo contro il minotauro (The Minotaur, 1960), make-up effects for Cottafavi’s La vendetta 333 di Ercole (Goliath and the Dragon, 1960), a strange Medusa for Perseo l’invincibile (Perseus Against the Monsters or even Medusa Against the Son of Hercules, 1963), and special effects in the Polyphemus episode of the six-hour Odissea (1968). We will encounter Rambaldi again below.

5. Jason and the Argonauts (1963)

The best-known film of the Argonaut myth came in 1963. Don Chaffey directed a British-American pro- duction from a screenplay co-written by playwright and librettist Beverley Cross. It was filmed on attrac- tive Mediterranean locations and had a remarkable nº 22, Jan.-Apr. 2018 score by Bernard Herrmann. But its greatest asset are its fantasy creatures designed and animated by Ray Harryhausen: the Harpies, the bronze giant Talos, the dragon guarding the Golden Fleece, and the skeleton warriors sown from the dragon’s teeth. This dragon, Martin M. Winkler, modeled on the Hydra of Greek myth, is the most ‘Apollonius and the magnificent monster ever to grace a screen version of Golden Fleece: A neo- mythological screen the Argonauts’ tale. Harryhausen perfected a process legacy’, p. 319-362 of stop-motion animation (“Dynamation”), in which minute movements of miniature creatures are pho- tographed with a still camera and then projected se- quentially to create the illusion of movement.12

The film emphasizes the importance of the Fleece from the beginning. In the first scene Pelias, about to make war on Thessaly and take the throne, receives a prophecy from a priest who is really Hermes in disguise. “I see a great tree at the end of the world,” Hermes tells Pelias. “And in its branches hang the skull and skin of a ram. They gleam and shine, for it 334 is a prize of the gods. A golden fleece.” Twenty years after this, Jason encounters Pelias without realizing who he is; he tells him that he will take his rightful throne from the usurper and return Thessaly to its former state of glory and happiness. “But people need more than a leader,” Jason continues. “They feel de- serted by the gods. They need a miracle.” Jason al- ready knows about the Fleece. Pelias tells him: “They say it’s a gift of the gods.” Jason on his own proposes to get the Fleece for the good of his kingdom:

It has the power to heal, bring peace, and rid the land of famine. If I could bring it to Thessaly, it would inspire the people and wipe out the years of misrule. My land will be as rich as it was before Pelias murdered my father. nº 22, Jan.-Apr. 2018

This is an appropriate, if neo-mythological, intro- duction to viewers of a sacred object with which many may not have been familiar. Jason’s words inform them about the Fleece’s supernatural qualities, not least its Martin M. Winkler, closeness to the gods, and raises their expectations to ‘Apollonius and the Golden Fleece: A neo- see it with their own eyes. mythological screen legacy’, p. 319-362 It is, however, not Jason but Pelias’ son Acastus, one of the Argonauts, who first finds the Fleece. It is hanging from its tree in a dark and sinister-looking grove. Acastus is Jason’s enemy and a saboteur; he at- tempts to pre-empt Jason and get the Fleece himself. Chaffey first shows the Fleece from Acastus’ point of view in a long shot that turns into a medium close-up. The Fleece is large but not huge and has a magnificent golden sheen (Fig. 6). Its horns are elaborately curved (Fig. 7). This appearance justifies the verbal build-up the Fleece has received. As Acastus moves toward it, Chaffey cuts to the Argo. No dragon has ever been 335 Fig. 6

mentioned, so Acastus does not expect any danger. nº 22, Jan.-Apr. 2018 Neither do viewers unfamiliar with the myth. The Fleece is there simply for the taking, it seems.

When Jason appears in the same spot a while later, everything is tranquil. The Fleece is hanging in the tree Martin M. Winkler, ‘Apollonius and the exactly as before. Jason, sword drawn, cautiously ap- Golden Fleece: A neo- proaches; mysterious music on the soundtrack makes mythological screen for a suspenseful atmosphere. Jason looks around, legacy’, p. 319-362 sticks his sword into the ground, and reaches up to the Fleece. A hissing sound from off-screen makes him turn around in close-up. Several Hydra heads are writh- ing before his face, also in close-up. Viewers are just as shocked as Jason is. When the Hydra approaches, we learn about Acastus’ fate. The Hydra is holding him suspended in the coils of its tail and deposits him on the ground. Then it attacks. Jason’s fight with the monster takes almost three minutes of screen time. He kills it by stabbing it in the neck and chest without help from Medea, who has come upon the scene a little 336 earlier. The Hydra collapses below the tree. During the Fig. 7 fight the Fleece receives a short close-up, in which we see its fur gleaming and glittering. This is a clever nº 22, Jan.-Apr. 2018 reminder of the great prize for which Jason has un- dertaken this deadly fight and his entire voyage.

Acastus, dying, confesses his treachery; then some Martin M. Winkler, of the Argonauts and the Colchian warriors, led by ‘Apollonius and the Aeëtes, arrive. Jason commands Argus, his helmsman: Golden Fleece: A neo- “Get the Fleece!” Now comes a memorable visual twist mythological screen legacy’, p. 319-362 on the myth. As soon as Argus touches the Fleece, its luster vanishes. The golden beauty turns into a drab grey (Fig. 8). Now the Fleece is just an old pelt. The di- vine object seems to have been defiled when touched by human hands. This contradicts what we have heard and seen so far. Jason’s journey had been sanctioned and protected by the gods, especially by Hera, who had told him to get the Fleece. But perhaps we should not think about such an inconsistency too deeply. The emotional impact on us of the Fleece’s unexpected transformation is worth any loss in logic. It is a magic moment, which exists for its visual sake alone. It also 337 Fig. 8

echoes, no doubt unintentionally, one aspect of the nº 22, Jan.-Apr. 2018 version of the myth given by Valerius Flaccus. There it was not the Fleece but the tree, which it had illu- minated, that went dark: “the tree at that moment… /…groans in pain and chagrin / as a gloom, deep 13 Martin M. Winkler, and uncanny, descends to settle around it.” This is ‘Apollonius and the both realistic about the darkness that results when a Golden Fleece: A neo- light source is being removed, and it is highly myth- mythological screen legacy’, p. 319-362 ic: the animistic tree has emotions and utters them. The dark is also a foreshadowing of later events.

6. Jason and the Argonauts (2000) and Percy Jackson: Sea of Monsters (2014)

The American television film Jason and the Ar- gonauts, directed by Nick Willing, takes us to a new phase in the adaptations of our myth, that of com- puter-generated images (CGI). Willing’s version premiered within two days of the release of Ridley Scott’s Gladiator, which gave a new lease on life to 338 the ancient world on the big screen. Gladiator for the first time presented what could never have been shown before: a cyber-Rome. Special effects now began to predominate in historical and mythical ep- ics. The time of painstaking handiwork like Harry- hausen’s was largely over. Exceptions were only to prove the rule.

Willing’s film, partially indebted to Chaffey’s, re- flects its era in various ways, through feminism (an Amazon-type called Atalanta), multiculturalism (Orpheus is played by a black actor), and graphic on-screen violence. (A minor glitch is the mispro- nunciation of Iolcus as “Eye-óclus.”) Pelias is a sadist, played by Dennis Hopper, an actor famous for his portrayals of psychopaths. Willing and his screen- nº 22, Jan.-Apr. 2018 writers incorporated material from Apollodorus, as may be seen by Jason’s mother’s name: Polymede rather than Apollonius’ Alcimede.14 More impor- tantly for us, the film demonstrates the two-sided nature of CGI filmmaking, its advantages and dis- Martin M. Winkler, advantages. The Argonauts’ discovery of the Golden ‘Apollonius and the Golden Fleece: A neo- Fleece is a case in point. But why have they traveled mythological screen to Colchis? legacy’, p. 319-362

Jason’s tutor is the centaur Chiron, created with the help of CGI. He informs Jason about Pelias’ murder of Aeson and the fate of his mother, who was forced to marry Pelias. An old lady whom Jason helps across a river tells him more about Pelias. His villainy goes so far as to squeeze his country dry for taxes because “searching for the Golden Fleece is an expensive business.” The Fleece is “the greatest gift from gods to man,” the woman, who is really Hera, continues, “craved by Pelias beyond all reason. He believes it will grant him his heart’s desire.” 339 Pelias has already sent at least one expedition after the Fleece. His people, he tells his son who is eager to lead the next trip, are not clear about “the great ben- efits the Fleece will bestow upon them.” Confront- ing Pelias, Jason offers to find the Fleece for him: “I can find it because I have protection of the gods.” This suits Pelias just fine. He offers Jason the throne after his own death and a ship. But he threatens Jason with his mother’s death if he does not return in time: “Your mother for the Fleece.” Polymede warns Jason that Pelias will kill him even if he de- livers the Fleece to him, which is “his obsession.” She, too, calls it “his heart’s desire.” Then she re- veals what that desire is: “Immortality. Eternal re- nº 22, Jan.-Apr. 2018 lease from his doom so he may reign forever.” This is quite a twist on the common versions of the tale. To Pindar, who called it imperishable, the Fleece is an “object of immortal life.”15 But it does not bestow eternal life on others. Martin M. Winkler, ‘Apollonius and the In Colchis, a few of the Argonauts and Medea has- Golden Fleece: A neo- mythological screen ten to the Fleece across a desert plain surrounded by legacy’, p. 319-362 high mountains. The Fleece’s first appearance is im- pressive, although it is not quite clear from whose point of view Willing is showing it. In an extreme long shot that moves closer and closer although not into a close-up, we see the broken-off trunk and roots of a large dead tree. A deep canyon is visible immediately behind it. The Fleece is hanging high in the air, draped over a branch that is disproportionately thin for its position on the trunk. The Fleece appears small from a distance, but its color is strong enough to draw the viewer’s eyes (Fig. 9). The Fleece is again swaying gently. Willing cuts back to the Argonauts, who observe it with 340 wonder, and back to the Fleece. Suddenly the ground Fig. 9 nº 22, Jan.-Apr. 2018 begins to shake, and the gigantic head of a horned drag- on rises from an abyss behind the tree, climbs up on the plateau, and menaces the Argonauts. In long shot it Martin M. Winkler, ‘Apollonius and the looks much less ferocious than it should. It appears to Golden Fleece: A neo- have been designed on the model of some prehistoric mythological screen dinosaur and looks disappointingly artificial. We know legacy’, p. 319-362 immediately that it comes straight from a computer. Seen closer, of course, it is terrifying. Its tail strikes one of the Argonauts, who is climbing up the tree to reach the dragon’s back. At this moment Willing inserts an at- tractive view of the Fleece (Fig. 10). Orpheus’ lyre dis- tracts and calms the beast, which has just snapped up one of the men. Jason ties one end of a rope to the tree. A string on Orpheus’ lyre breaks and ends the spell of his music. In the ensuing melee Jason lures the dragon toward the abyss. It loses its balance and falls to its death; Jason saves himself with the rope. He climbs up the 341 nº 22, Jan.-Apr. 2018 Fig. 10

tree for the Fleece, which he raises into the air as Fre- da’s Jason had done. The Argonauts and Medea cheer. Martin M. Winkler, ‘Apollonius and the Golden Fleece: A neo- On the return journey, Pelias’ son steals the Fleece mythological screen and wears it the way Heracles wears his lion’s skin. legacy’, p. 319-362 “I’ve sailed with Jason and gained the Fleece,” Acas- tus tells his father, who is next seen clutching it to his chest as if he were a child holding a favorite toy. Pe- lias commands his men to kill Jason and all the Ar- gonauts. Soon he is wearing the Fleece as if he were Heracles (Fig. 11). Then he becomes interested in Me- dea’s healing powers. She tricks him into bathing in a pool into which she pours her magic blood-red liq- uid. “You must bathe in these waters,” she explains to Pelias. “The waters will release the power of the Fleece. Then once more you will be young. You will rule for- 342 ever.” That may not sound convincing to us, least of all Fig. 11 nº 22, Jan.-Apr. 2018 if we know the myth, but it does to Pelias, who is obsessed with the Fleece and with his immortality. But it does not come to that. When Jason and his men fight their way into the palace, Pelias holds a Martin M. Winkler, sword to Medea’s throat. “I see you wear the Fleece, ‘Apollonius and the Golden Fleece: A neo- uncle,” says Jason. “Has it brought you your heart’s mythological screen desire? Has its power revived you? Made you im- legacy’, p. 319-362 mortal?” The villain unexpectedly falters. “Do I look like an immortal?” he almost whines. “The Fleece has no power,” Jason tells him, “except that imagined by those who seek it. We make our own destiny, by our own actions.” After a little more of this life les- son, Pelias relinquishes Medea and hands the Fleece over to Jason: “do with it what you will.” Jason simply drops it to the ground. Pelias treacherously attempts to knife his nephew but dies on his own blade. “My destiny is to rule,” Jason says before Pelias falls into the pool. Jason and Medea marry. They inspire even Zeus and Hera, the bickering couple on Olympus, 343 to be reconciled to each other with a kiss. A happy ending on earth as it is in heaven. And all thanks to the Fleece.

The next version to be discussed may be the most neo-mythological of all, for it transports ancient myth in time, to the twenty-first century, and place, to the United States. Percy Jackson, a boy-next-door type of teenager, is the hero of a series of bestselling young-adult novels by Rick Riordan. Percy turns out to be the son of Po- seidon and encounters gods, demigods, creatures, and monsters while saving the Olympians from doom and destruction. In the second novel, Sea of Monsters, he and his small group of intrepid friends go on a quest for the nº 22, Jan.-Apr. 2018 Golden Fleece. The novel was filmed in 2013. German special-effects expert Thor Freudenthal directed.

Percy receives a prophecy that the Fleece is crucial to preserve Mt. Olympus and the gods. The Fleece is Martin M. Winkler, being kept in the Sea of Monsters, commonly known ‘Apollonius and the as the Bermuda Triangle. Its current owner is the gi- Golden Fleece: A neo- mythological screen ant Cyclops Polyphemus, who lives in a cave on Circe’s legacy’, p. 319-362 island deep in that sea. There is a specific reference to Odysseus, although this Polyphemus is not blind. He contrasts with the human-sized Cyclops in Percy’s company, a nice teenage boy. The Fleece’s touch, we are informed, “can heal every person and every thing.” The film’s villain needs it to resurrect the Titan Kronos, who then will destroy the Olympians and reinstate himself as ruler of the world. Percy and Co. succeed in thwarting this dastardly scheme in the nick of time. At the end the Fleece is draped over the roots of a tree that used to be a teenage girl, a daughter of Zeus. She had been killed at the beginning, but Zeus pre-empted her death by changing 344 her into a tree, an echo of the Philemon and Baucis myth. Fig. 12

The girl is now resurrected. All credit goes to the Fleece: “It was even more powerful than we thought.” The Fleece is first shown in a painting that has been called up on a hand-held device—via Google, presumably. Its actual nº 22, Jan.-Apr. 2018 appearances are disappointing because we barely get to see it. Only at the end does it receive a full close-up. This Fleece is white and has non-figurative golden decora- tions (Fig. 12). It compares unfavorably with those in Martin M. Winkler, earlier films, especially the 1963Jason and the Argonauts. ‘Apollonius and the Golden Fleece: A neo- mythological screen 7. Film Technology and the Supernatural legacy’, p. 319-362

Harryhausen’s intriguing miniatures, animated by hand, strongly contrast with the computer-gen- erated creatures in Percy Jackson: Sea of Monsters. Freudenthal’s digital monsters are more dangerous- looking than Harryhausen’s; they are also louder and faster. They look hyper-realistic but move real- istically. This realism diminishes, perhaps even un- dermines, our sense of wonder and awe. Since we know that even with all their sound and fury they could never kill off the heroes of the tales in which they appear, their menace is significantly lessened. 345 Harryhausen was fully aware of this phenome- non and its implications. About myth and cinema he observed:

Fantasy in art and literature is as old as mythology itself. Film fantasy, being a more recent form of expression, has the added excitement of utilizing a flowing image and being in a state of constant motion; of combining sight, sound and imagination. No other medium of expression can project the complications of the imaginative, the wondrous or the bizarre as well as the motion picture. (HARRYHAUSEN, 1981, p. 127)

This fully applies to the myth of the Argonauts, nº 22, Jan.-Apr. 2018 which is chock-full of the wondrous and the bizarre. Concerning the two opposed ways of creating bizarre wonders on screen, Harryhausen concluded:

Martin M. Winkler, ‘Apollonius and the for all the wonderful achievements of the computer, Golden Fleece: A neo- the process creates creatures that are too realistic and mythological screen for me that makes them unreal because they have lost legacy’, p. 319-362 one vital element—a dream quality. Fantasy, for me, is realizing strange beings…removed from the 21st cen- tury…[and] creatures from the mind….Stop-motion supplies the perfect breath of life for them, offering a look of pure fantasy because their movements are beyond anything we know….The way the creatures moved [back then] encouraged a sense that one was watching a miracle, but when the miraculous be- comes commonplace, the concept of miracles ceases to be miraculous. (HARRYHAUSEN and DALTON, 2003/2004, p. 8 and 282)

346 Carlo Rambaldi would make the same case later: Any kid with a computer can reproduce the special ef- fects seen in today’s movies. The mystery’s gone. The cu- riosity that viewers once felt when they saw special effects has disappeared. It’s as if a magician had revealed all of his tricks….There’s no question that these computer films are well packaged but the charm has disappeared...The secret of creating what technology is unable to express lies in the work of the artisan, who is able to develop characteristics that touch our deepest emotions.16

A comparison of the old and the new Jason and the Argonauts fully bears out Harryhausen and Rambaldi. It may be telling that in Willing’s film there is no bronze giant Talos, whose heroic death in Chaffey’s film has become a mini-epic in its own right and surpasses nº 22, Jan.-Apr. 2018 Apollonius’ version.17 We may reasonably suspect that Willing and his CGI technicians were smart enough to realize that they could not match the intensity of Talos’ agony, despite the fact that he is a monster and a deadly threat to the Argonauts. That Talos is made Martin M. Winkler, of bronze and cannot alter his facial expression but, in ‘Apollonius and the Harryhausen’s art, does express his suffering in such a Golden Fleece: A neo- mythological screen way that viewers even feel sorry for him is extraordi- legacy’, p. 319-362 nary. Willing instead has Jason subdue a giant bronze bull—not two, as in the myth—with which to plow the field. This bull looks impressive at first but soon be- comes monotonous. Freudenthal gives his teen heroes an even bigger and more ferocious bovine monstrosity to fight, one that has a second jaw inside its toothy big maw. Film buffs may think of the monster in Ridley Scott’s Alien (1984). Here the smaller maw has three rotating drills that make us think of oil-well explora- tions.18 Willing’s and Freudenthal’s bull monsters are huge, noisy, fast, and ferocious. Like Willing’s dragon, they are not very smart. Harryhausen’s Talos was huge, 347 too. But he was silent except for the eerie creaking of his bronze joints, calm, slow but deliberate in his movements, which thus became more menacing, and resourceful. He was humanized because human sym- pathy and understanding created him, not a machine. (Harryhausen’s detailed account, with illustrations, in Harryhausen and Dalton, 2003/2004, p. 156-159, is re- vealing in this regard.)

My quotations from Harryhausen and Rambaldi may not pertain directly to the different film presenta- tions of the Golden Fleece, but they are worth consid- ering in our context because they relate, centrally, to everything that surrounds the Fleece and permeates nº 22, Jan.-Apr. 2018 the aura in which it functions, both visually and in the manner in which we are, or are not, gripped by that aura. Riccardo Freda was very clear about this aspect. In the context quoted above he went on to say: “The secret of cinema is the gradual discovery of décor, of Martin M. Winkler, the world that surrounds the characters” (Lourcelles ‘Apollonius and the and Mizrahi, 1963, p. 20). Vittorio Cottafavi was Golden Fleece: A neo- mythological screen equally emphatic: “Décor is a fundamental part of a legacy’, p. 319-362 film’s dramatic structure. It contributes no less to a film than the actors” (Mourlet and Agde, 1961, p. 14). These statements apply to our subject. Harryhausen’s creatures provide the perfect context for a Fleece that is more beautiful, more magical, and more mysterious than all those examined so far.

There remain, however, two memorable presenta- tions of the Fleece that were created by significantly different cinematic minds. Art films are often highly idiosyncratic. The personalities of our final films’ -cre ators determined their works’ style and content. Art 348 cinema is auteur cinema. (Literature on this aspect of cinema is immense. A short overview in connec- tion with classical literature and culture is in Winkler, 2009, p. 34-50.)

8. Medea (1969)

One of the greatest auteurs in film history is Pier Paolo Pasolini. He was not only a screenwriter, direc- tor, and occasional actor but also a poet, dramatist, novelist, essayist, translator, and painter. His work in cinema is another expression of his work as a poet. Pasolini developed the concept of the “cinema of po- etry” (cinema di poesia; summarized at Winkler, 2009, p. 50-57). His Medea (1969), an adaptation of Euripi- des’ tragedy, is a good illustration. nº 22, Jan.-Apr. 2018 The Argonauts’ voyage is the backstory to Eurip- ides’ play, but Pasolini made it an integral part of his film. As he had done withOedipus Rex (1967) based on Sophocles, Pasolini retold the entire myth. Martin M. Winkler, Medea begins with a five-year-old Jason in the care ‘Apollonius and the of his tutor, the centaur Chiron. He teaches Jason Golden Fleece: A neo- mythological screen about life, the nature of myth, and the origins of legacy’, p. 319-362 human culture. As part of his lessons Jason learns about Phrixus, Helle, and the Golden Fleece. It brought fortune to kings and guaranteed that their rule would not end. (Willing later made even more of this.) Chiron then tells Jason about Aeson and Pelias: “It’s a complicated story.”

Francisci and Chaffey had filmed their Colchian loca- tions in Italy, while Freda stayed entirely in the studio. Willing shot his exteriors near Antalya on Turkey’s Tur- quoise Coast. Pasolini outdid all of them. His Colchis was located at Göreme in Cappadocia, Turkey, now a 349 Fig. 13

World Heritage Site. It is striking for its rock formations, nº 22, Jan.-Apr. 2018 caves, and archaic Byzantine churches. This setting con- trasts with the Italian locations that represent the city of Corinth, in which the tragedy of Medea unfolds. The op- position of nature and culture—the primeval rocks and Martin M. Winkler, caves of Colchis, Greece as seen in High Renaissance ‘Apollonius and the Italian architecture—could hardly be stronger. For Paso- Golden Fleece: A neo- lini, the supposedly barbaric Colchians have a genuine mythological screen legacy’, p. 319-362 civilization, whereas the Argonauts are a gang of ruffians mainly interested in loot. The exploitation of the Third World by First-World capitalism and colonialism under- lies Pasolini’s retelling of the myth.

Colchian religion is personified in Medea, prin- cess and priestess. She visits the temple, cut deep into a rocky hill, in which the Golden Fleece is be- ing worshipped. It is spread out on wooden beams (Fig. 13). Medea sees Jason entering but immediately withdrawing and collapses. Is this a vision? Then Me- dea looks at the Fleece pensively and, for a moment, 350 smiles mysteriously. Expressive close-ups on her face Fig. 14 tell us that she knows what is going to happen. Me- dea then shakes the Fleece as if to make sure that it is nº 22, Jan.-Apr. 2018 safely fastened. Or is she testing her strength to take it down? She leaves the temple after a long vigil. At home she rouses her brother Apsyrtus; both return to the temple. Apsyrtus removes the Fleece, and Medea Martin M. Winkler, delivers it to Jason. The great quester of myth is re- ‘Apollonius and the lieved of his task and of all danger; in the process he Golden Fleece: A neo- mythological screen is stripped of all heroism. Dux femina facti. There is legacy’, p. 319-362 no guardian dragon, no Aeëtes to set up impossible tasks. When Jason’s hand touches the Fleece in close- up, Pasolini makes it look much less beautiful than it appeared before, although its color remains the same. Its empty eye sockets, previously barely noticeable but now prominent, are clearly a bad omen (Fig. 14). They contrast with Medea’s and Jason’s eyes as they look at each other in close-ups across the Fleece. It unites them now but will eventually become the precondi- tion for their ruin. Not one word has been exchanged between them. Back in Iolcus, the Fleece has lost all its sheen. Pelias matter-of-factly informs Jason that kings 351 Fig. 15

are not obliged to keep their promises and that he has nº 22, Jan.-Apr. 2018 no intention to hand over his kingdom. Jason stays calm. Almost contemptuously, he drops the Fleece on the floor. A final close-up on it reinforces Pasolini’s cultural criticism: still golden but no more than an old Martin M. Winkler, animal skin (Fig. 15). Jason tells Pelias: “Look there. ‘Apollonius and the Take your fleece, the sign of the perpetuity of power Golden Fleece: A neo- and of order! My undertaking has at least served me to mythological screen legacy’, p. 319-362 realize that the world is greater than your kingdom.” Going well beyond Chiron’s earlier words, Jason adds what his own experiences have taught him: “that ram’s pelt, far away from your country, has no meaning at all any more.” He leaves with Medea.

Shortly after, Jason sees Chiron again, who is now both a centaur and a human. Chiron tells Jason about Medea’s “spiritual catastrophe,” her disorienta- tion: that of “an ancient woman [donna antica] in a world that does not know the one in which she has always believed.” Medea had helped Jason in Colchis; 352 in Greece she is forced to abandon her origins and beliefs. After coming from Pelias’ palace, Medea is stripped of her elaborate native garment and dressed in Greek clothes. Symbolically, Medea’s fate is compa- rable to what happens with the Fleece: far away from where either belongs, existence has no meaning any more. In Iolcus Medea’s appearance, like that of the Fleece, loses its luster.

Soon Jason and Medea are in Corinth. It is now years later, and Medea’s life has acquired new mean- ing when she becomes a wife and mother. But this does not last. Medea finds a new connection to her Colchian identity, and tragedy ensues. In retrospect it becomes clear why Pasolini chose to include the back- story to Euripides’ play in his adaptation. The impor- nº 22, Jan.-Apr. 2018 tance of the Fleece for his version of Medea’s story is profound. The Fleece is granted a deeper meaning in this than in any other film.

9. The Golden Thing (1971) Martin M. Winkler, ‘Apollonius and the A notably different art film is this German ver- Golden Fleece: A neo- mythological screen sion by four directors. Edgar Reitz, best known legacy’, p. 319-362 today for his epic three-part series Heimat (1984, 1992, 2004), collaborated with Alf Brustellin, Ula Stöckl, a pioneer of feminist filmmaking, and Greek Nicos Perakis. Stöckl and Reitz wrote the script; Reitz also handled the cinematography. The English title of their film does not quite capture the tone of irony that the original implies: Das goldene Ding is better rendered “That Golden Thing” or “That Thing of Gold.” Since this is the least known of all versions, I translate some of the relevant statements about it that Stöckl has published on her Internet site. She observes: 353 The film takes place at a time when humans were still children (and the children humans) and eve- rybody wanted only one thing: the golden thing. Eleven-year-old Jason, and with him Heracles, Cas- tor and Pollux, Orpheus and other sons of Greek kings go on a treasure hunt on the Argo, their ship…. In contrast to the myth as transmitted, here the Argo- nauts do not overcome dangers through their heroic courage or help from the gods but through reason. The divine powers can be explained logically, and the Argo- nauts reach their goal because they put their scientifically trained minds to use and leave nothing to the gods.19

This is quite astonishing, not only as a rationalizing approach to myth and its supernatural elements but also nº 22, Jan.-Apr. 2018 as a practical application of an ancient concept: that in the age of myth mankind was in its infancy, which it eventually outgrew through greater understanding of the world. This knowledge came with the development from mythos to logos, as the title of a classic study on Martin M. Winkler, 20 ‘Apollonius and the the subject put it. So the Argonauts and Medea are all Golden Fleece: A neo- played by children. Stöckl reports that the four direc- mythological screen tors carried out prodigious amounts of research: legacy’, p. 319-362

We pored over whole libraries, chiefly relying on sources in J. J. Bachofen’s Mother Right, Hermann Fränkel’s Noten zu den Argonautika des Apollonios, and Apollonios himself. They confirmed our assumption that most of the ancient heroes must, in fact, have been children. The majority of them had put their chief heroic deeds behind them at age 15, 16; Theseus, for example, who does not appear in our film, killed the Minotaur when he was 15.

The filmmakers’ research is certainly admirable, 354 but their conclusion about the Greek heroes’ age is not supported by either Fränkel or Apollonius. To ancient Greeks and Romans, the Argonauts were not children but adults. Pindar, for example, specifically gives Jason’s age as twenty (Pyth. 4. 104). Is then The Golden Thing a misbegotten undertaking, a labor of love doomed to failure from the start? Not at all. Once our initial sur- prise or disbelief has worn off, we can, and do, take the young actors as seriously as we would adults. This is by no means a kiddie movie. As Stöckl has put it:

the team of filmmakers…were concerned in presenting to television viewers and filmgoers the ancient Greek Argonaut myth in such a way that they can readily un- derstand it and also feel entertained….This intention is already expressed in the title, which popularizes the leg- nº 22, Jan.-Apr. 2018 endary Golden Fleece in the land of Colchis as a “thing.” Still, the filmmakers did not want to lower the myth to the level of pop culture or a cartoon, nor did they want to flatten it out; rather, and after intensive study of sources, they wanted to make it readily understandable, suspense- Martin M. Winkler, ful, and demystified according to recently gained insights. ‘Apollonius and the Golden Fleece: A neo- mythological screen legacy’, p. 319-362 What then do the directors do with Apollonius and the myth? Their Aeson has previously failed at bring- ing the Golden Thing from Colchis and now wants to get another expedition under way. The reason is that the gold of Colchis will make everybody in Iolcus rich and happy. The key to all this gold, we will learn later, is the Fleece. But Aeson realizes that a conventional ship cannot get through the Clashing Rocks. So he proposes to Argos to build “the fastest and most beau- tiful ship in the world.” Science-minded Jason shows them what kind of ship to build. Then Pelias launches a coup d’état. Jason decides to sail and calls for all young 355 princes to join him. The voyage of the Argo, filmed on locations on the Traunsee in Austria, takes up most of the film’s running time.

In Colchis Jason boasts to Aeëtes that a large num- ber of Greek kings have arrived to get the Golden Thing. Aeëtes is unfazed and tells Jason that, if only he has the courage, he could get it on his own. Aeëtes also summons Medea and announces that Jason will fight against his Invincibles, the film’s substitute for the sown warriors in the myth. The Invincibles are monstrous fighting machines worked by slaves from a large subterranean cave. In keeping with the film- makers’ rationalistic approach, there is no dragon. nº 22, Jan.-Apr. 2018 Medea, who has been warned against helping Jason, nevertheless gives him some necessary informa- tion about the Invincibles. Jason asks her what the Golden Thing is. “An animal skin,” Medea says. “It is as valuable as all the treasures in the world.” While Martin M. Winkler, Jason defeats the Invincibles, Medea fetches the ‘Apollonius and the Golden Fleece from its subterranean hiding place Golden Fleece: A neo- mythological screen in the temple of Hecate and joins the Argonauts on legacy’, p. 319-362 their flight from Colchis. She does not, of course, kill her brother Apsyrtus; instead, the two have a tender farewell scene.

Together with the Argonauts, we get a first good look at the Fleece when it is on board the Argo. Its outside is of pure white color, and it looks just like what it is: a real fleece. “Is that it?” asks one of the Argonauts. Medea turns the Fleece over and holds it up for all to see. Its underside is of a realistic brown color. A large map of the ancient world is drawn on it, with its bodies of water painted in gleaming gold and 356 its rivers in black (Fig. 16). The Argonauts gaze at it, Fig. 16 nº 22, Jan.-Apr. 2018 and their point of view becomes ours when the camera, in a slowly traveling close-up, moves across the map. Its gold is now partly in the sunlight and partly in shadow. Martin M. Winkler, ‘Apollonius and the The sight is extremely beautiful. Red dots on the map, Golden Fleece: A neo- Medea explains, represent treasures. We see these in a mythological screen tighter close-up. “Good luck, kings!” says Medea and legacy’, p. 319-362 holds the Fleece higher. The image freezes, the end credits roll, and the screen slowly fades to black.

The ending could not be more moving. It is highly poetic, not least because Medea’s innocent wish has a deeper resonance for viewers who know what is in store for Jason and herself than it has for either of them at this moment. The Golden Thing thus turns out to be more than just a thing. The Golden Thing is not entirely in the spirit of Apollonius or other classical authors, but it fully delivers what the directors wanted to achieve. Spectators may be entertained as much as they were 357 intended to be and may even understand the myth better, but more than all that they are moved, perhaps much more than they were intended to be.

10. Coda

The different films’ approaches to representations of the Argonaut myth in general and of the Golden Fleece in particular provide us with a pleasing range of mean- ings that are expressed or implied in their stories and in their images. As director Freda once put the matter: “The image must be a continual surprise to the eye” (Lourcelles and Mizrahi, 1963, p. 20). A film, we under-

nº 22, Jan.-Apr. 2018 stand, should be a thauma idesthai. Freda was probably unaware of how close he was to the first and greatest epic poet of ancient Greece. In a few our films the Fleece itself is a golden wonder: khryseion thauma idesthai.

Martin M. Winkler, ‘Apollonius and the Golden Fleece: A neo- Notes mythological screen legacy’, p. 319-362 1 On ancient images of the Fleece see Neils, 1990, espe- cially p. 632-634 (sections H-K and N on Jason, the dragon, and the Fleece), and the illustrations at 5. 2, p. 424-433, espe- cially plates 32, 36-38, and 42 (in black and white). See further Schefold and Jung, 1989, p. 15-18 on Phrixus and the ram and 30-33 on Jason and the Fleece. 2 Apollon. Argon. 4. 120 and 124-126. Quoted from Green, 2007, p. 154. 3 Apollon. Argon. 4. 170-178; the quotations from 172-173, 176, and 177-178 are at Green, 2007, p. 155. 4 Apollon. Argon. 4. 184-185; Green, 2007, p. 156. 358 5 Apollon. Argon. 4. 1142 and 1145-1146; Green, 2007, p. 181. 6 Pind. Pyth. 4. 161, 230-231, and 241. The quotations are from Nisetich, 1980, p. 182 and 185-186. At Pyth. 4. 68 Pindar calls the Fleece “wholly golden.” So does Eur. Med. 5. 7 Val. Flacc. Argon. 8. 114-116, with rutila pellis at 114. The quotation is from Slavitt, 1999, p. 155. 8 Green, 2007, p. 299 (on Argon. 4. 173-177). Braswell, 1988, p. 317-318 (on Pind. Pyth. 4. 231), provides further details about the Fleece, with source references. 9 Mourlet and Agde, 1961, p. 24. Leprohon, 1972, p. 174- 179, discusses Cottafavi and his term. See further Elley, 1984, p. 13-24 (chapter titled “Epic into Film”). 10 Images here and throughout are screenshots and ap- pear in compliance with fair-use rules of international copy- right regulations.

11 Quoted, in my translation, from Lourcelles and Mizrahi, nº 22, Jan.-Apr. 2018 1963, 20. 12 Detailed information about the art of Harryhausen’s animation appears in Harryhausen and Dalton, 2003/2004, 2005/2006, and 2008. I have examined Jason and the Argonauts in Winkler, 2007, p. 458-463. Harryhausen had made the ani- Martin M. Winkler, mation short The Story of King Midas in 1953, but with a medi- ‘Apollonius and the eval setting. He returned to Greek myth with the 1981 version Golden Fleece: A neo- of Clash of the Titans, written by Cross. mythological screen legacy’, p. 319-362 13 Val. Flacc. Argon. 8. 119-120; Slavitt, 1999, p. 155. At Ov. Met. 7. 151, the dragon is “guardian of the golden tree” (custos… arboris aureae). This striking expression draws attention to the Fleece’s shining splendor but should not be understood as im- plying that the tree had turned golden. Rather, the adjective is a transferred epithet: from what the tree holds to the tree itself. 14 Apollod., Library of Mythology 1. 9.16; Apollon. Argon. 1. 233. Apollodorus summarizes the myths of Jason, Medea, and the Argonauts at 1. 9. 16-28. 15 The quotation is from Segal, 1986, p. 112. Segal then speaks about “the immortality-conferring quality of the fleece” in regard to the fame of Battus, ancestor of the ode’s recipient. 359 16 Quoted from Rambaldi’s 2012 obituary notice in The Tel- egraph; http://www.telegraph.co.uk/news/obituaries/9590601/ Carlo-Rambaldi.html. 17 I give a brief appreciation of this sequence in Winkler, 2007, p. 462-463. 18 The three drills are probablynot an echo, albeit vague, of the dragon with triple tongue and hooked teeth that guards the Golden Fleece in Ov. Met. 7. 149-151. 19 Source: http://www.ula-stoeckl.com/Film-Seiten/06_ Das_Goldene_Ding.html. The next two quotations are taken from this page as well. 20 Nestle, 1940. For recent contributions to the subject see, e.g., Buxton, 1999; Hawes, 2014.

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Bibliography

BOYLE, A. J. (2014) (ed. tr. comm.). Seneca: Me- dea. Oxford, Oxford University Press. Martin M. Winkler, ‘Apollonius and the BRASWELL, B. K. (1988). A Commentary on the Golden Fleece: A neo- Fourth Pythian Ode of Pindar. Berlin, De Gruyter. mythological screen legacy’, p. 319-362 BUXTON, R. (1999) (ed.). From Myth to Reason? Studies in the Development of Greek Thought. Oxford, Oxford University Press, rpt. 2001.

ELLEY, D. (1984). The Epic Film: Myth and History. London, Routledge & Kegan Paul.

FRÄNKEL, H. (1968). Noten zu den Argonautika des Apollonios. Munich, Beck.

GREEN, P. (2007) (tr. and comm.). Argonautika by Apollonios Rhodios. Expanded ed. Berkeley, Univer- 360 sity of California Press. HARRYHAUSEN, R. (1981). Film Fantasy Scrap- book. 3rd ed. London, Tantivy Press/San Diego: Barnes.

HARRYHAUSEN, R.; T. DALTON (2003/2004). Ray Harryhausen: An Animated Life. London: Aurum Press/New York, Billboard Books.

HARRYHAUSEN, R.; T. DALTON (2005/2006). The Art of Ray Harryhausen. London, Aurum Press/ New York, Billboard Books.

HARRYHAUSEN, R.; T. DALTON (2008). A Cen- tury of Stop Motion Animation: From Méliès to Aard- man. London, Aurum Press/New York: Billboard Books. nº 22, Jan.-Apr. 2018

HAWES, G. (2014). Rationalizing Myth in Antiq- uity. Oxford, Oxford University Press, 2014. https:// doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199672776.001.0001 Martin M. Winkler, HUNTER, R. (2015) (ed. and comm.). Apollonius ‘Apollonius and the Golden Fleece: A neo- of Rhodes: Argonautica Book IV. Cambridge, Cam- mythological screen bridge University Press. legacy’, p. 319-362

LEPROHON, P. (1972). The Italian Cinema. Tr. R. Greaves and O. Stallybrass. New York, Praeger.

LOURCELLES, J.; S. MIZRAHI (1963). Entretien avec Riccardo Freda. Présence du cinéma 17, p. 11-30.

MOURLET, M.; P. AG D E (1961). Entretien avec Vittorio Cottafavi. Présence du cinéma 9, p. 5-28.

NEILS, J. (1990). Iason. Lexicon Iconographicum Mythologiae Classicae, 5.1, p. 629-638. 361 NESTLE, W. (1940). Vom Mythos zum Logos: Die Selbstentfaltung des griechischen Denkens von Homer bis auf die Sophistik und Sokrates. Stuttgart, Kröner. 2nd ed. 1942; several rpts.

NISETICH, F. (1980) (tr.). Pindar’s Victory Songs. Baltimore, Johns Hopkins University Press.

SCHEFOLD, K.; F. JUNG (1989). Die Sagen von den Argonauten, von Theben und Troia in der klas- sischen und hellenistischen Kunst. Munich, Hirmer.

SEGAL, C. (1986). Pindar’s Mythmaking: The Fourth Pythian Ode. Princeton, Princeton University Press.

nº 22, Jan.-Apr. 2018 SLAVITT, D. R. (1999) (tr.). The Voyage of the Argo. Baltimore, Johns Hopkins University Press.

WINKLER, M. M. (2007). Greek Myth on the Screen. In WOODARD, R. D. (ed.). The Cambridge Martin M. Winkler, Companion to Greek Mythology. Cambridge: Cam- ‘Apollonius and the bridge University Press, p. 453-479. https://doi. Golden Fleece: A neo- org/10.1017/CCOL9780521845205.018 mythological screen legacy’, p. 319-362 WINKLER, M. M. (2009). Cinema and Classi- cal Texts: Apollo’s New Light. Cambridge, Cambridge University Press; rpt. 2012. https://doi.org/10.1017/ CBO9780511575723

Submitted in June and accepted for publication in August, 2016

362 tradução | translation

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Página deixada propositadamente em branco Gabriele Cornelli - Universidade de Brasília (Brasil) [email protected] - ORCID:0000-0002-5588-7898 Rodolfo Lopes - Universidade de Brasília (Brasil) [email protected] - ORCID: 0000-0001-9675-4023

Platão. Cartas: Carta IV

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Plato. Letters: Letter IV

CORNELLI, G.; LOPES, R. (2018). Platão. Cartas: Carta IV. Archai, n.º 22, Jan-Apr., p. 365-372 DOI: https://doi.org/10.14195/1984­‑249X_22_14

Palavras-chave: Platão, Cartas, Carta IV, Dionísio II de Siracusa. Keywords: Plato, Letters, Letter IV, Dionysus II of Siracuse.

A presente tradução é parte de um projeto con- junto dos autores, que consiste em verter para o Português todas as cartas tradicionalmente inclu- ídas no corpus Platonicum. A ideia foi germinada na pesquisa que temos desenvolvido na Cátedra UNESCO Archai e, por isso mesmo, é materializa- da na revista que lhe pertence. Nesta primeira fase do projeto, estão sendo publicadas traduções pre- liminares de cada carta, acompanhadas de breves parágrafos introdutórios sobre o seu contexto. 365 Como decerto será do conhecimento comum, esta secção epistolar do corpus tem sérios problemas quanto à sua autoria. Na verdade, no total de 13 car- tas, apenas duas delas podem ser atribuídas a Pla- tão; ainda que essa pretensão de autenticidade esteja longe de alcançar um consenso entre os autores. São elas (1) a famosa Carta VII, que ainda hoje divide a comunidade de platonistas entre aqueles que a acei- tam como autêntica e os que não1; e (2) a Carta VIII, que tem menos condições de ser atribuída a Platão, dado o elevado número de anacronismos que apre- senta (cf. BRISSON, 2008, p. 623). Todas as outras são inquestionavelmente espúrias.

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Em todo o caso, o problema da autenticidade é mi- nimizado pelo interesse que tal repositório epistolar tem suscitado ao longo de tantos séculos de exegese platonista. O conjunto das 13 cartas está incluído no corpus já desde as suas antiquíssimas divisões: nas Gabriele Cornelli, trilogias de Aristófanes de Bizâncio e também nas Rodolfo Lopes, ‘Platão. clássicas tetralogias tradicionalmente atribuídas a Cartas: Carta IV’, p . 365-372 Trasilo (vide LOPES, 2013). Em ambos os modelos as cartas ocupam a última posição (depois de Críton e Fédon em Aristófanes; depois de Minos, Leis e Epí- nomis em Trasilo). Isso não implica, todavia, que os antigos considerassem as cartas espúrias; pelo con- trário, aliás, visto que generalidade dos autores (pa- gãos e cristãos) as toma por autênticas (vide ZARA- GOZA & GÓMEZ CARDÓ, 1992, p. 429-433). São de notar as possíveis exceções de Proclo e Aristóteles. O primeiro, segundo um testimonium de Olimpiodo- ro, teria rejeitado a totalidade das cartas; mas tal re- lato acabou por ser desconsiderado, pois na rejeição estavam também incluídas as Leis e a República (vide 366 MADDALENA, 1948, p. V). Quanto ao segundo, não se pode falar de rejeição, mas apenas de silêncio: Aris- tóteles nunca refere as cartas de Platão, nem mesmo quando, no Livro V da Política, fala da querela entre Díon e Dionísio de Siracusa. Alguns dos autores que defendem a inautenticidade da Carta VII usam este silêncio de Aristóteles como argumento.

Nos manuscritos medievais as cartas aparecem lis- tadas no final, logo antes dos diálogos considerados espúrios. Esta posição não deve indiciar suspeitas de autenticidade, visto em apenas alguns deles apenas a Carta XII surge notada como espúria.

Assim, a tendência de rejeitar a autoria platónica das cartas é bastante recente, tendo em conta a longa nº 22, Jan.-Apr. 2018 tradição de comentário e interpretação; mais precisa- mente a partir de inícios do século xix, depois dos trabalhos de MEINERS (1782), AST (1816) e KARS- TEN (1864), que as reconhecem todas como espúrias. Gabriele Cornelli, Sobre a Carta IV Rodolfo Lopes, ‘Platão. Cartas: Carta IV’, p . 365-372 O contexto desta carta é o regresso triunfal de Díon a Siracusa após a expulsão de Dionísio II. Platão de- mostra seu afeto por Díon, celebra sua vitória e acres- centa alguns conselhos ao final. Plutarco noticia tam- bém uma carta semelhante por modos e conteúdos que Espeusipo teria endereçado a Díon na mesma ocasião (Plu. De adulatore et amico 69-70). Que as duas car- tas são distintas e não a mesma (pace Ritter 1910) foi amplamente demonstrado já desde Novotny’ (1930). A marca acadêmica da carta é todavia bastante evi- dente, por revelar a intenção de uma aproximação entre Platão e Díon em um momentos central para a história a deles, da mesma forma em que tende a 367 sublinhar o envolvimento da Academia como um todo com os sucessos políticos do siracusano. Uma série de predições ex eventu sugerem que a carta te- nha sido escrita pela tradição acadêmica mais antiga: é certamente o caso da predição ex eventu da inimiza- de que iria intercorrer entre Díon e Heráclides, algo dificilmente previsível na hora em que a carta teria sido escrita (320e). Delicada a menção final aos peri- gos que podem deriva da soberba de Díon neste mo- mento de vitória. Plutarco considera o adágio final (“a presunção acaba por habitar com a solidão” – 321b) como uma expressão tipicamente platônica (Plu. De adulatore et amico 69f).

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Platão a Díon de Siracusa,

Que esteja tudo bem.

(320a) Vejo que minha simpatia para tua empresa Gabriele Cornelli, foi evidente ao longo de todo o tempo e que trabalhei Rodolfo Lopes, ‘Platão. para que tivesse sucesso, e isso por uma única razão: Cartas: Carta IV’, p . pela minha paixão por belas ações. De fato, considero 365-372 que homens justos, que possuem verdadeiramente a virtude e o demonstram em suas ações, (320b) rece- bam a glória que merecem. Tudo está bem por hora, graças a deus, mas a luta maior ainda está por vir. Ou- tros podem se distinguir por coragem, velocidade ou força física, mas somente quem se propõe honrar a verdade, a justiça, a generosidade, e a dignidade que as acompanha, (320c) somente este pode realmente se sobressair com relação aos outros.

Digo algo óbvio, mas devemos lembrar que aque- les homens (você sabe quais) devem distinguir-se de tal modo dos outros homens ao ponto de estes 368 parecerem crianças em comparação. Devemos de- monstrar sermos aquele tipo de homens que dizemos ser: com a ajuda de deus, será algo fácil. Os outros homens precisam perambular por muitos lugares, se desejam ser conhecidos. Não é este seu caso: (320d) o mundo todo – ainda que a expressão possa pare- cer infantil – olha para um único lugar, e, neste lugar, de maneira especial para você. E como todos olham para você, esteja preparado para superar em fama o velho Licurgo, e Ciro, e todos aqueles que fizeram al- guma diferença por seus costumes ou nas instituições políticas. Muitos aqui (quase a maioria, pela verdade) afirmam que – uma vez livres de Dionísio – 320e( ) com toda probabilidade você, Heráclides, Teódoto e os outros irão arruinar tudo com vossa ambição. nº 22, Jan.-Apr. 2018 É melhor que nada disso aconteça, mas se for este o caso, você demonstre ser capaz de remediar essa situ- ação, e tudo ficará bem.

(321a) São coisas que você sabe muito bem e Gabriele Cornelli, pode te parecer ridículo que eu te diga isso. Mas, Rodolfo Lopes, ‘Platão. Cartas: Carta IV’, p . sabe, eu vejo os atletas nos estádios sendo incitados 365-372 pelas crianças, sem mencionar os amigos, quando se considera que a torcida destes seja inspirada pela própria amizade.

Vocês também, portanto, compitam, e se precisa- rem de nós, escrevam.

As coisas aqui seguem mais ou menos como quando vocês estavam aqui. (321b) Escrevam sobre o que fizeram e o que estão por fazer. Pois ouvimos muitas conversas, mas não sabemos nada ao certo. Chegaram há pouco cartas em Esparta e em Egina, de Teódoto e Heráclides. Mas nós, como te falava, 369 ouvimos muitas notícias, mas não sabemos nada ao certo. Preocupe-se com o fato de algumas pessoas acharem que você tem se tornado pouco disponível. Pensa sobre isso e considera que sem o favor dos homens não se pode fazer nada, (321b) e que a pre- sunção acaba por habitar com a solidão.

Boa sorte!

Notas

1 Veja-se neste sentido a recente publicação de BURNYEAT, M. & FREDE, M. (2015). nº 22, Jan.-Apr. 2018

Referências bibliográficas

Gabriele Cornelli, AST, F. (1816). Platon’s Leben und Schriften: Ein Ver- Rodolfo Lopes, ‘Platão. such, im Leben wie in den Schriften des Platon das Wah- Cartas: Carta IV’, p . re und Aechte vom Erdichteten und Untergeschobenen 365-372 zu Scheiden, und die Zeitfolge der ächten Gespräche zu Bestimmen. Leipzig, Weidmann.

BLUCK, R. S. (1960) The Second Platonic Epis- tle. Phronesis, Vol. 5, No. 2, pp. 140-. https://doi. org/10.1163/156852860X00063

BRISSON, L. (2008) (org.). Platon. Oeuvres Com- plètes. Paris, Flammarion.

BURNYEAT, M.; FREDE, M. (2015) The Pseudo- Platonic Seventh Letter. Dominic Scott (ed.), Oxford 370 University Press, Oxford. CORNELLI, G. (2011) O pitagorismo como ca- tegoria historiográfica. Col. ‘Classica Digitalia Bra- sil’. Coimbra: CECH - Universidade de Coimbra; São Paulo:Annablume. https://doi.org/10.14195/978-989- 8281-96-8

ISNARDI-PARENTE, M. (2002). Platone. Lettere. Milano, Mondadori.

KARSTEN, H. T. (1864). Commentatio critica de Pla- tonis quae feruntur Epistolis. Utrecht, Kemink et Filius.

LOPES, R. (2013). A organização tetralógica do corpus Platonicum (3.56-62): uma revisão do pro- blema. In: LEÃO, D.; CORNELLI, G.; PEIXOTO, M. (coords.). Dos homens e suas ideias. Estudos so- nº 22, Jan.-Apr. 2018 bre as Vidas de Diógenes Laércio. Coimbra, IUC, p. 125-138. https://doi.org/10.14195/978-989-721- 042-6_9

MADDALENA, A. (1948). Platone. Lettere. Bari, Gabriele Cornelli, Rodolfo Lopes, ‘Platão. Laterza. Cartas: Carta IV’, p . 365-372 NOVOTNY’, F. (1930) Platonis Epistulae commen- tariis illustratae. Brno. Filos. Fakulta.

RITTER, C. (1910). Neue Untersuchungen über Plato. München.

SOUILHÉ, J. (1926) Platon. Lettres. Paris, Les Belles Lettres.

THESLEFF, H. (1965) The Pythagorean Texts of the Hellenistic Period. Åbo, Acta Academiae Aboensis.

THUCYDIDES. Historiae. Rec. brevique adn. crit instr. H. Stuart Jones. Oxford UP 1948-49 (OCT). 371 ZARAGOZA, J.; GÓMEZ CARDÓ, P. (1992). Pla- tón. Diálogos VII (Dudosos, Apócrifos, Cartas). Madrid, Editorial Gredos.

A pesquisa que permitiu a publicação deste artigo foi financiada pela Fundação de Pesquisa do Distrito Federal, Edital Demanda Espontânea 03/2015.

Submetido em Agosto de 2017 e aprovado para publicação em Outubro de 2017

nº 22, Jan.-Apr. 2018

Gabriele Cornelli, Rodolfo Lopes, ‘Platão. Cartas: Carta IV’, p . 365-372

372 resenhas | reviews

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Página deixada propositadamente em branco Juvenal Savian Filho - Universidade Federal de São Paulo (Brasil) [email protected] - ORCID:0000-0001-8104-8900

Souza Pereira, Rosalie Helena de (2016, org.). Na senda da razão: filosofia e nº 22, Jan.-Apr. 2018 ciência no Medievo judaico. São Paulo, Perspectiva

SAVIAN FILHO, J. (2018). Resenha: Souza Pereira, Rosalie Helena de (2016, org.). Na senda da razão: filosofia e ciência no Medi- evo judaico. São Paulo, Perspectiva. Archai, n.º 22, Jan.-Abr., p. 375-380 DOI: https://doi.org/10.14195/1984­‑249X_22_15

Um acontecimento! Um acontecimento notável!

Dizer isso foi a melhor maneira encontrada para iniciar a resenha do livro organizado por Rosalie Helena de Souza Pereira, ainda que não seja uma for- ma propriamente adequada para um texto acadêmico.

A exceção se justifica, no entanto, pelo fato de que o significado dessa publicação transcende em muito a 375 sua importância para o mundo universitário e inscre- ve-se, sem sombra de dúvida, no campo de tudo o que contribui não apenas para o enriquecimento cultural, mas também e, sobretudo, humanizador. Aliás, huma- nizador é um termo cujo significado também trans- cende o de outro que lhe é próximo, o termo huma- nista, pois não se trata aqui de simplesmente evocar o reconhecimento que merecem os outros seres hu- manos, o ser humano em geral e os indivíduos, mas, acima de tudo, a atividade de tornar-se humano. Essa atividade pressupõe a convivência com o outro; e tan- to mais será intensa e capaz de desenvolver o que de mais humano há em nós quanto mais envolver a rela- ção com o estrangeiro; afinal, como diz Julia Kristeva nº 22, Jan.-Apr. 2018 em Estrangeiros para nós mesmos, viver com o estran- geiro põe-nos em contato com a possibilidade de “ser outro”, possibilidade esta que se entende não apenas no sentido humanista da nossa aptidão para aceitar o outro, mas de estar ou colocar-se no lugar do outro, Juvenal Savian Filho, o que equivale a pensar sobre si mesmo e a fazer-se ‘Souza Pereira, Rosalie “outro ou estrangeiro para si mesmo”. Numa palavra, Helena de (2016, org.). Na senda da razão: trata-se de ver a si mesmo na condição de estrangei- filosofia e ciência no Me- ro ou na condição de “o outro daquele que vê”. Tarefa dievo judaico. São Paulo, exigente, árdua e certamente interminável, mas abso- Perspectiva’, p. 375-380 lutamente necessária em meio às obscuridades que se instalaram nos dias atuais, marcados pela rejeição do diferente e do contraditório por todos os cantos do planeta. Um pouco do iluminismo filosófico medieval faria bem à vida contemporânea.

Seguir, então, Na senda da razão: filosofia e ciên- cia no Medievo judaico é colocar-se em um caminho no qual vários estrangeiros se apresentam e auxiliam o leitor pretensamente “não oriental” ou “não judeu” 376 a entender um pouco melhor, pela identificação de semelhanças e pelo contraste de diferenças, quem ele mesmo é. É por isso que o livro objeto desta resenha é um acontecimento memorável, pois seu interesse não se restringe ao trabalho de pesquisa especializada sobre formas medievais judaicas de pensamento filo- sófico e científico, mas se amplia para o trabalho de humanização. Assim, mais do que apenas contribuir com o trabalho especializado, este livro enriquece so- bremaneira a cultura lusófona por registrar, em Lín- gua Portuguesa literária e filosófica, estudos rigorosos sobre pensadores judeus medievais (sem deixar, ob- viamente, de também interessar aos especialistas, uma vez que vários artigos são inéditos). Se se tem em vista a quase total inexistência no Brasil de obras sobre a filosofia judaica medieval, compreende-se definitiva- nº 22, jan.-apr. 2018 mente a importância do livro organizado por Rosalie Helena de Souza Pereira, ela que, em 2007, publicou dois livros homólogos e dedicados à filosofia medie- val islâmica (Busca do conhecimento: ensaios de filoso- fia medieval no Islã, São Paulo: Paulus; O Islã Clássico: Juvenal Savian Filho, itinerários de uma cultura, São Paulo: Perspectiva). ‘Souza Pereira, Rosalie Helena de (2016, org.). Na senda da razão: fi- O arco de tempo coberto por Na senda da razão losofia e ciência no Me- compreende os seis séculos da Idade Média em que dievo judaico. São Paulo, tradicionalmente se identifica alguma forma de pensa- Perspectiva’, p. 375-380 mento medieval judaico. Parte-se, portanto, de Sa‘adia Gaon, que viveu na passagem do séc. ix ao séc. x, e chega-se a Hasdai Crescas, que viveu na passagem do séc. xiv ao séc. xv. Os textos são estudos de grandes es- pecialistas de universidades estrangeiras, com exceção do Prof. Nachman Falbel e do Prof. Alexandre Leone, ambos da Universidade de São Paulo. Seria inapropria- do pretender apresentar resumidamente todos os capí- tulos do livro em uma resenha, mas também seria uma falta grave não dar ao leitor uma ideia do conteúdo da 377 obra. Por isso, aqui seguem os títulos dos capítulos e os nomes dos autores na ordem em que aparecem no livro: (1) A obra exegética e filosófica de Sa‘adia Gaon: a realização de um líder, de Haggai Ben-Shammai; (2) Criação e emanação em Isaac Israeli: uma reconside- ração, de Alexander Altmann; (3) Filosofia e poética no pensamento de Salomão Ibn Gabirol, de Nachman Falbel; (4) A matéria última como manifestação oculta de Deus: Ibn Gabirol e a expressão pseudoempedocle- ana al-‘unṣur al-awwal (o elemento fundamental), de Sarah Pessin; (5) Ibn Paquda, figura-chave do pen- samento judaico e universal, de Joaquín Lomba; (6) A interpretação de Abraão Bar Hiyya do relato da cria- ção do homem e do relato do jardim do Éden, de Sara nº 22, Jan.-Apr. 2018 Klein-Braslavy; (7) O corpus científico de Abraão ibn Ezra, de Shlomo Sela; (8) Yehudá Halevi e a filosofia, de Rafael Ramón Guerrero; (9) Abraão Ibn Daud e sua obra A fé sublime, de Amira Eran; (10) Maimônides e o Deus dos filósofos, de Samuel Scolnicov; (11) Ten- Juvenal Savian Filho, sões e encontros no pensamento de Maimônides entre ‘Souza Pereira, Rosalie o aristotelismo medieval e a tradição rabínica, de Ale- Helena de (2016, org.). Na senda da razão: xandre Leone; (12) A ética na obra de Maimônides, de filosofia e ciência no Me- Nachman Falbel; (13) A declaração de Maimônides so- dievo judaico. São Paulo, bre a ciência política, de Leo Strauss; (14) Comentário Perspectiva’, p. 375-380 de Maimônides à Bíblia, de Sara Klein-Braslavy; (15) A psicologia de Maimônides e de Yehudá Halevi, de Lenn E. Goodman; (16) A legislação da verdade: Maimôni- des, os almôadas e o iluminismo judaico do século xiii, de Carlos Fraenkel; (17) A alquimia na cultura judaica medieval: uma ausência notada, de Gad Freudenthal; (18) A ciência na cultura medieval judaica do sul da França, de Gad Freudenthal; (19) De Maimônides a Sa- muel ibn Tibbon: interpretando o judaísmo como re- ligião filosófica, de Carlos Fraenkel; (20) O Al-Farabi 378 de Falaqera: um exemplo da judaização dos falāsifa muçulmanos, de Steven Harvey; (21) A transmissão da filosofia e da ciência árabe: reconstrução da “Bibliote- ca Árabe” de Shem Tov ibn Falaqera, de Mauro Zonta; (22) Uma solução averroísta para uma perplexidade maimonídea, de Seymour Feldman; (23) Um selo den- tro de um selo: a marca do sufismo nos ensinamentos de Abraão Abuláfia, de Harvey J. Hames; (24) Narbo- ni (1300-1362) e a simbiose filosófica judeo-árabe, de Maurice-Ruben Hayoun; (25) Salvar sua alma ou salvar os fenômenos: soteriologia, epistemologia e astronomia em Gersônides, de Gad Freudenthal; (26) Tensões nas e entre as teorias de Maimônides e Gersônides sobre a profecia, de Idit Dobbs-Weinstein; (27) Elementos ca- balísticos no livro Luz do nome (’Or há-Shem) de Rabi Hasdai Crescas, de Zev Harvey. nº 22, jan.-apr. 2018

Pensando da perspectiva de interesses propria- mente acadêmicos e especializados, vários aspectos desse conjunto de textos poderiam ser destacados aqui. Dois merecem atenção: em primeiro lugar, Juvenal Savian Filho, cabe ressaltar não apenas a frequentação mútua de ‘Souza Pereira, Rosalie Helena de (2016, org.). pensadores judeus, cristãos e muçulmanos no Me- Na senda da razão: fi- dievo, mas sobretudo a influência recíproca que au- losofia e ciência no Me- tores dessas três orientações exerceram entre si; e o dievo judaico. São Paulo, livro organizado por Rosalie Helena de Souza Perei- Perspectiva’, p. 375-380 ra permite ver tal influência. Além disso, o livro tem outro mérito, o de participar de maneira esclarece- dora no debate instalado entre medievalistas, há al- guns anos, a respeito de uma possível identidade do pensamento “medieval”: dada a implosão da imagem de uma Idade Média homogênea e filosoficamente cristã, haveria alguma forma de unir as formas filo- sóficas cultivadas no período a que tradicionalmente se costuma chamar de Medievo? A característica que tem sido identificada e defendida por importantes 379 medievalistas como critério para unir as formas filo- sóficas medievais é o fato de os diferentes pensado- res, sem exceção (até onde se sabe), considerarem a revelação bíblica como fonte de conhecimento e de investigação filosófica. Não se trata de retomar o cli- chê superado da “filosofia serva da teologia”, mas de perceber que os filósofos, no Medievo, partilhavam principalmente a tradição bíblica da fé na criação e dela extraíam consequências filosóficas em termos propriamente filosóficos. Desse ponto de vista, po- rém, a “Idade Média” ou o “Medievo” poderia ser estendida, no mínimo, até Fílon de Alexandria, por um lado, e talvez, por outro lado, como tem defen- dido o medievalista italiano Giulio d’Onofrio, até nº 22, Jan.-Apr. 2018 os séculos xv-xvi, com os Concílios de Constança (1492), Basileia (1431-1449) e Trento (1545), cujos cânones assumem abertamente as fraturas político- -religiosas e a cisão entre a busca filosófica moderna e o horizonte bíblico do pensamento. Obviamen- Juvenal Savian Filho, te continuará vigoroso nos séculos seguintes, em ‘Souza Pereira, Rosalie maior ou menor grau, o modelo de pensamento que Helena de (2016, org.). Na senda da razão: considera o horizonte da revelação bíblica. Mais ain- filosofia e ciência no Me- da, continuará vigorosa a inspiração que se nutre dievo judaico. São Paulo, das três orientações monoteístas (haja vista autores Perspectiva’, p. 375-380 como Edith Stein, Martin Buber, Emmanuel Lévi- nas, Simone Weil, Michel Henry, para não falar de Walter Benjamin, Max Horkheimer, Heschel, entre tantos outros). Entender as raízes e as motivações profundas dessa inspiração é algo com que contri- bui inequivocamente o livro organizado por Rosalie Helena de Souza Pereira.

Submetido em Novembro e aceite para publicação em Dezembro, 2016 380 Josep Antoni Clúa Serena - Universidad de Lleida (España) [email protected] - ORCID: C-6405-2014

Gómez Cardó, P.; Leão, D. F.; Oliveira, M. A. de, eds. (2014). Plutarco entre mundos. nº 22, Jan.-Apr. 2018 Visões de Esparta, Atenas e Roma, Humanitas Supple- mentum, Estudos Monográ- ficos, Coimbra, Universi- dade de Coimbra, Coimbra University Press, Annablume Editora

CLÚA SERENA, J. A. (2018). Resenha: Gómez Cardó, P.; Leão, D. F.; Oliveira, M. A. de, eds. (2014). Plutarco entre mundos. Visões de Esparta, Atenas e Roma, Humanitas Supplementum, Estudos Mo- nográficos, Universidade de Coimbra, Coimbra, Coimbra Univer- sity Press, Annablume Editora. Archai, n.º 22, Jan.-Apr., p. 381-389 DOI: https://doi.org/10.14195/1984­‑249X_22_16 381 Las contribuciones de este volumen tienen como característica común el nombre de tres ciudades, a saber, Esparta, Atenas y Roma, como modelos de organización social y espacios políticos e institucio- nales diversos, no solo en el espacio sino también en el tiempo. Para Plutarco estas ciudades “en contraste” representan lugares paradigmáticos en donde viven y conviven los ciudadanos. De ahí que los estudiosos de Plutarco que colaboran en este volumen procuran analizar en cada una de estas ciudades, ya sea por asi- milación o por contraste. Y como afirma P. Gómez al inicio de la obra que reseñamos, “Plutarco es uno de los principales agentes de lo que Lamberton1 ha deno- minado una segunda romanización, si se atribuye al nº 22, Jan.-Apr. 2018 escritor de Queronea un papel ante todo político en una nueva vía en la relación entre griegos y romanos, junto a su tarea como educador y moralista, aspecto este último en el que se ha focalizado, quizá en exceso, la misión de Plutarco, él mismo ciudadano romano”. Josep Antoni Clua Se- rena, ‘Gómez Cardó, Las primeras páginas de esta obra, de hermosa P.; Leão, D. F.; Oliveira, M. A. de, eds. (2014). factura, las ocupa el artículo “O joven Teseu: do re- Plutarco entre mun- conhecimento paterno ao reconhecimento político” dos. Visões de Esparta, de Loraine Oliveira, en donde se evidencia como el Atenas e Roma, Huma- devenir de la figura de Teseo está ya marcado desde su nitas Supplementum, Estudos Monográficos, nacimiento por el oráculo. Su padre Egeo, ignorando Coimbra, Universida- el significado de aquello que había querido expresar la de de Coimbra, Coim- pitia, pide consejo a Piteo. Este, haciendo caso omiso bra University Press, Annablume Editora’, del oráculo – no sabemos si buscando un bien para p. 381-389 sí mismo o para demostrar su poder en contra de los designios divinos – le ofrece a su hija Etra para que se case con ella. De esta unión nacerá Teseo, el cual se quedará en Trecén. Todo lo que intenta su abuelo para evitar la desgracia es en vano, ya que Teseo inicia 382 un viaje hacia su autoconocimiento y llega a Atenas, patria de Egeo, donde decide formar parte del tribu- to que enviaban cada año a Minos, rey de Creta. Allí, con la ayuda de Ariadna, consigue matar al Minotau- ro. Con esta hazaña no solo logra afianzar su poder político, dejando a Minos sin descendencia masculi- na, sino que también obtiene el reconocimiento de sí mismo en el laberinto e incluso el paterno, acabando con la monarquía y dando paso a la democracia.

María Teresa Fau Ramos presenta un trabajo titu- lado “Legislar tenía un precio”, que trata de la figura del fundador/legislador mediante tres parejas: a) Teseo y Rómulo; b) Licurgo y Numa y, c) Solón y Publíco- la, para así intentar buscar puntos comunes en cuanto a origen, vida o condición mítica. Empezando por la nº 22, Jan.-Apr. 2018 figura de Licurgo, digamos que este, antes de ejercer como legislador, viajó por Creta, Asia y Egipto para ob- tener una excelente formación. A su regreso, empezó a instaurar las primeras leyes muy bien vistas por sus conciudadanos, excepto una de ellas, por la cual llegó Josep Antoni Clua Se- a perder uno de sus ojos. Y la situación no remonta, rena, ‘Gómez Cardó, P.; Leão, D. F.; Oliveira, ya que, al final de su vida, decide renunciar a volver a M. A. de, eds. (2014). su patria y morir exiliado, para conseguir que sus leyes Plutarco entre mun- sigan siendo cumplidas. En cuanto a Solón, al igual que dos. Visões de Esparta, Atenas e Roma, Huma- Licurgo, obtendrá un desafortunado destino, ya que es nitas Supplementum, acusado de obtener beneficios fraudulentos y él mismo Estudos Monográficos, decide exiliarse durante diez años. Numa, quién podía Coimbra, Universida- haber vivir tranquilo alejado de la vida pública, deci- de de Coimbra, Coim- bra University Press, de conducir a Roma, emprendiendo la difícil tarea de Annablume Editora’, pacificar la ciudad, consiguiendo su propósito, lo que p. 381-389 será un hecho después de su muerte, cuando el pueblo termine con el cese y vuelva a tomar las armas.

Por lo que se refiere a Publícola, la autora señala que fue conocido por su carácter déspota y por las críticas 383 manifestadas por los poderosos hacia su persona por ha- cer ostentación de una casa demasiado lujosa. Además, tuvo que renunciar a su casa destruyéndola y vio trunca- do su intento de llevar a cabo un ritual de alta relevan- cia. Teseo seguirá por la senda de la desgracia, pues verá como Menesteo pone a toda la población en su contra, y acabará abandonando la ciudad de Atenas y murien- do despeñado. Y, por último, Rómulo, caracterizado por vivir en la desmesura y por acabar desapareciendo mis- teriosamente.

Delfim F. Leão, con un trabajo titulado “O legisla- dor e suas estratégias discursivas: teatralidade e lin- guagem metafórica na Vida de Sólon”, desarrolla la nº 22, Jan.-Apr. 2018 idea de cómo un personaje como Solón, a través del filtro de Plutarco, es capaz de adoptar una conducta teatralizada para acabar llevando a cabo su estrate- gia política. El autor del artículo destaca tres hechos importantes del poeta-político, a saber, la Batalla de Josep Antoni Clua Se- Salamina, la seisactheia y el encuentro con Pisístrato. rena, ‘Gómez Cardó, P.; Leão, D. F.; Oliveira, Se cierra el primer bloque con la aportación de Ália M. A. de, eds. (2014). Plutarco entre mun- Rodrigues y su trabajo titulado “A figura do legisla- dos. Visões de Esparta, dor em Plutarco: recepção de um mito político”, don- Atenas e Roma, Huma- de hace una síntesis de la evolución y cambios que ha nitas Supplementum, Estudos Monográficos, sufrido el término legislador a lo largo de la historia, Coimbra, Universida- empezando por los primeros vestigios que encontra- de de Coimbra, Coim- mos en algunas inscripciones de tema político y jurí- bra University Press, Annablume Editora’, dico. Se añade una explicación exhaustiva del voca- p. 381-389 blo, basándose en la contribución del filósofo Platón. Finalmente, se ofrece la visión del legislador desde el punto de vista de Plutarco, quién, marcado por la in- fluencia platónica peitho– y bia–, desarrolla un elenco de situaciones que ejemplificaran el carácter político 384 de los νομοθέται más representativos para concluir que, como aspectos esenciales de la acción política en la figura del legislador, no son solo importantes la per- suasión y la fuerza, sino también el perfil de educador.

En el segundo bloque se reúnen términos como φιλοσοφία, παιδεία, ἔθος, βίος, entre otros, agentes muy importantes para el desarrollo individual de un buen ciudadano y, por ende, que contribuyen a crear una sociedad cabal.

Así, José M. Candau relaciona la figura del filósofo con la política en De genio Socratis. La imagen de Epami- nondas, como modelo de virtud (ἀρετή), cumple tanto con el deber de la hegemonía tebana como con la for- mación filosófica necesaria. Y, mediante esta caracteriza- nº 22, Jan.-Apr. 2018 ción, se mostrará como el perfil ideal. Pero este tema será cuestionado más adelante por Plutarco, ya que el buen filósofo siempre intentará rehuir los temas relacionados con la vida política y lo justificará a partir de cuestiones concernientes al propio general tebano, diciendo que su Josep Antoni Clua Se- carrera política no fue tan brillante, pero destacando el rena, ‘Gómez Cardó, papel que tuvo como consejero a través de la filosofía, P.; Leão, D. F.; Oliveira, M. A. de, eds. (2014). para así, al mismo tiempo, elevar la posición del filósofo Plutarco entre mun- y justificar su alejamiento de la acción política. dos. Visões de Esparta, Atenas e Roma, Huma- nitas Supplementum, Joaquim Pinheiro introduce el tema de la relación Estudos Monográficos, entre la paideia y la filosofía, aspectos claves para lle- Coimbra, Universida- gar a ser un buen líder político. El autor muestra va- de de Coimbra, Coim- rios ejemplos de personajes retratados en la obra de bra University Press, Annablume Editora’, Plutarco, para después centrarse en dos de sus obras y p. 381-389 extraer los aprendizajes expuestos a continuación. En primer lugar, en Sobre la necesidad de que el filósofo converse especialmente con los gobernantes, el filósofo siempre debe mantener el contacto con el gobernante para trasladarle los valores que serán necesarios para 385 encontrar el bien común para todos los ciudadanos. En segundo lugar, en el tratado A un gobernante falto de instrucción, para obtener justicia, orden y paz entre los ciudadanos es importante que la razón domine los principios del líder político.

Ivana S. Chialva, con “De Roma a Alejandría y viceversa. Mimesis del motivo del viaje en la Vida de Antonio de Plutarco” focaliza su aportación en la caracterización de Marco Antonio, influenciada por Cicerón. A pesar de su alternancia en el plano público-político y privado-doméstico, donde apare- ce como un hombre destacado por sus aptitudes y victorias militares, se entrega a los vicios, a las pa- nº 22, Jan.-Apr. 2018 siones y a las malas compañías –Curión y Clodio–, pero sobretodo, por su conducta influenciable ante la gran Cleopatra. Esta debilidad por parte de Anto- nio es remarcada en la obra de Plutarco, quién niega sus cualidades de hombre por prestarse, por encima Josep Antoni Clua Se- de todo, a la pasión erótica. De ahí, la asociación de rena, ‘Gómez Cardó, fuga a la ciudad de Alejandría con la cobardía y la P.; Leão, D. F.; Oliveira, M. A. de, eds. (2014). entrega a los placeres. Plutarco entre mun- dos. Visões de Esparta, Roosevelt Rocha, con su trabajo titulado “A Es- Atenas e Roma, Huma- parta de Plutarco entre a guerra e as artes”, intenta nitas Supplementum, Estudos Monográficos, demostrar que Esparta no fue solo una ciudad co- Coimbra, Universida- nocida por su fuerza militar, sino por ser un punto de de Coimbra, Coim- de auge artístico con distinguidas personalidades. bra University Press, Annablume Editora’, Por ello, basándose en la obra de Plutarco, hace un p. 381-389 análisis de algunas de las características que mar- caron la vida de algunos de los líderes espartanos – Licurgo, Lisandro, Agesilao, Agis y Cleómenes –, para acabar destacando aspectos como la arquitec- tura, el arte, la poesía, actividades muy prolíficas en 386 la sociedad espartana. Y, por último, un tercer bloque, en donde se ahonda en aspectos tales como la formación de la familia y la religión, factores que determinan el desarrollo del in- dividuo como tal. Así, en lo que se refiere a la música y la educación en Atenas, Fabio Vergara Cerqueira pone de manifiesto el hecho que un líder de la esfera polí- tica adquiriera una preciada educación musical. Para ello, se centra en tres puntos principales: el desarrollo de la educación musical, los educadores musicales y la disputa del aulos en el programa educativo. En cuanto al primer punto, repasa cómo la presencia o ausencia de este conocimiento marca la vida de algunos de los dirigentes políticos, como, por ejemplo, Solón, Temís- tocles o Pericles. Y en cuanto que se refiere a los educa- dores musicales, pone de manifiesto que fue una pro- nº 22, Jan.-Apr. 2018 fesión que adquirió mucha relevancia, no solo por ser motivo de representación en los vasos de la época, sino también porqué eran personas notables por su gran re- putación. Concluye el autor aludiendo a una primera imagen negativa del aulos, a través de aspectos como el Josep Antoni Clua Se- testimonio de Alcibíades, la xenofobia hacia los auletai rena, ‘Gómez Cardó, P.; Leão, D. F.; Oliveira, tebanos, entre otros, para llegar a la conclusión de que M. A. de, eds. (2014). el aulos se usó tanto o más que la lyra. Plutarco entre mun- dos. Visões de Esparta, De gran interés es también el trabajo de Ana Fe- Atenas e Roma, Huma- nitas Supplementum, rreira sobre el papel de las mujeres como elemento Estudos Monográficos, de influencia ante el género masculino. Aunque Plu- Coimbra, Universida- tarco no dedica exclusivamente ninguna de sus bio- de de Coimbra, Coim- bra University Press, grafías a las mujeres, en sus Vitae hace mención de Annablume Editora’, las cualidades del género opuesto: prudencia, sim- p. 381-389 plicidad, modestia en su aspecto y su modo de vida, moderación, dignidad y recato. Asimismo, defiende que las mujeres son seres dotados de capacidades in- telectuales y lo corrobora con ejemplos de mujeres que han pasado a la historia, como Aspasia, oradora 387 conocida por haber intervenido en los asuntos polí- ticos de Pericles.

Destacable es también el trabajo de Guillermina González Almenara. Se trata de un agudo análisis de la figura de las heteras y de las concubinas en las vi- das de Solón, Pericles y Alcibíades. Las heteras son mujeres con una vida similar a la de los hombres, excepto por carecer de la ciudadanía. Accedían a la cultura y eso les permitía compartir opiniones polí- ticas. De ahí, que lleguen a convertirse en confiden- tes de hombres influyentes. Solón no tuvo contacto con ellas y simplemente las menciona para hablar de algunos aspectos que las relacionan con la legisla- nº 22, Jan.-Apr. 2018 ción. Por su parte, Pericles y Alcibíades las frecuen- taban. Y en cuanto a las concubinas, se señala que tenían una condición inferior, ya que no tenían los mismos derechos que la esposa principal. Por Plu- tarco sabemos que Solón sufrió mucho por la muerte Josep Antoni Clua Se- del hijo de su concubina. Todo lo contrario se dice rena, ‘Gómez Cardó, de Pericles, quién tenía unos impulsos desmedidos P.; Leão, D. F.; Oliveira, M. A. de, eds. (2014). hacia Aspasia. A su vez, Alcibíades solo se preocu- Plutarco entre mun- paba del disfrute sexual, sin necesidad de ninguna dos. Visões de Esparta, concubina. A modo de conclusión, Plutarco apoya Atenas e Roma, Huma- nitas Supplementum, a estas mujeres y destaca la degeneración de la clase Estudos Monográficos, política cuanto “más uso” hacen de ellas. Coimbra, Universida- de de Coimbra, Coim- Maria Aparecida de Oliveira Silva aborda el tema bra University Press, Annablume Editora’, de los oráculos desde época arcaica a época hele- p. 381-389 nística, y de cómo los líderes políticos espartanos han visto limitada su manera de proceder. A través de la obra de Plutarco, defensor de la importancia del oráculo, se nos ofrece una síntesis sobre el res- peto hacia las predicciones oraculares por parte de 388 los dirigentes y, como, a partir de la desatención de los dictámenes, la sociedad degenera y empieza a derrumbarse.

Y para concluir, en este mismo contexto, aludiremos al importante trabajo de Jesús Mª Nieto Ibáñez, que se ocupa de la crisis de la actividad profética a finales del s. I y principios del s. II d.C. con la aparición del cris- tianismo. Con sus tratados, Plutarco pretende contri- buir a la restauración y retorno a la religión oracular, aunque los cristianos los utilizaran como instrumento propagandístico para el triunfo de su propia doctrina.

En suma, digamos sucintamente que esta rese- ña solo quiere dejar planteada una invitación a ojear con esmero un volumen sobre Plutarco, en tres blo- nº 22, Jan.-Apr. 2018 ques bien definidos, que constituye una aportación ciertamente muy rigurosa y seria. Por lo demás, los editores han cumplido con meticulosidad su traba- jo, sin apenas erratas de importancia. No descubro nada nuevo si afirmo que la bibliografía de Plutarco Josep Antoni Clua Se- rena, ‘Gómez Cardó, más reciente está aumentando a buena velocidad. P.; Leão, D. F.; Oliveira, A esta nómina cabe añadir una obra como la presente M. A. de, eds. (2014). que no dejará indiferente al lector avezado ni al que se Plutarco entre mun- dos. Visões de Esparta, adentra por primera vez en el polígrafo de Queronea, Atenas e Roma, Huma- no solo por los postulados que desarrolla, sino tam- nitas Supplementum, bién por el alcance de los mismos. Estudos Monográficos, Coimbra, Universida- de de Coimbra, Coim- bra University Press, Notes Annablume Editora’, p. 381-389 1 (1997), “Plutarch and the Romanization of Athens”. In: HOFF, M. D.; ROTROFF, S. I. (eds.). The Romanization of Ath- ens. Oxford, : Oxbow Books, p. 153.

Entregado en Septiembre aceptado para publicación en Octubre, 2017 389 Página deixada propositadamente em branco Diretrizes para autores

1. Diretrizes gerais nº 22, Jan.-Apr. 2018 1.1. Artigos podem ter até 50 mil caracteres com espaço e resenhas podem ter até 15 mil. Os artigos têm de vir com resumo de no mínimo 100 e no má- ximo 250 palavras, escrito no idioma original e em inglês, além de uma relação de até cinco palavras­ ‑chave no idioma original (i.e. a língua em que o artigo está escrito) e em inglês e, por fim, o texto submetido a avaliação. O mesmo se aplica ao títu- lo do artigo: no cabeçalho do artigo, deve constar o título na língua original sendo seguido da respetiva versão inglesa.

1.2. O autor deverá encaminhar o artigo ou rese- nha exclusivamente por meio eletrônico através da página web da revista, no formato A4, fonte Arial 11, em formato Word (.doc, .docx), Rich Text (.rtf) ou compatível.

1.3. Artigos com citações em língua grega deverão utilizar fonte unicode, ou transliterar as palavras citadas 391 em grego, conforme as Novas Normas de Transliteração publicadas na revista Archai n.12, p.193­‑194 e disponí- veis no link: http://periodicos.unb.br/index.php/archai/ article/view/10149/7457.

1.4. Todas as submissões são contribuições origi- nais e inéditas.

1.5. O livro resenhado deverá ter sido publicado, no máximo, há dois anos.

1.6. No caso de trabalho com imagens, estas têm de estar em formato .jpg ou .tiff, com resolução de 300 dpis, enviadas sempre em preto e branco, con- nº 22, Jan.-Apr. 2018 tendo a legenda de cada ilustração, bem como os créditos da fonte de que foi colhida.

1.7. A publicação de originais implicará, automati- camente, a cessão dos direitos autorais.

2. Arbitragem

2.1. A revisão e a aprovação das contribuições são realizadas por pares. O processo de avaliação do artigo é documentado nos arquivos da Revista Archai. Os textos submetidos são encaminhados pelo Conselho Editorial para a Comissão Científica ou para avaliadores ad hoc. Os textos são avaliados pela adequação à linha editorial da revista e normas editoriais, qualidade da redação, tanto em relação à originalidade e à relevância dos temas propostos como ao impacto crítico e/ou informativo que poderão vir a ter para o avanço dos estudos sobre as origens do 392 pensamento ocidental. 3. Exemplos de citações (conforme a norma NBR 10520 com adaptações)

As citações da Revista Archai seguem o sistema autor­‑data, no corpo do texto (nunca em notas de rodapé), conforme exemplos seguintes. No caso de obras clássicas, seguir os exemplos do item 3.5. Cita- ção de obras clássicas.

3.1. Citação indireta – é elemento essencial o ano da publicação a que a citação se refere.

Exemplo: A ironia seria assim uma forma implícita de heterogeneidade mostrada, conforme a classifica-

ção proposta por Authier­‑Reiriz (1982). nº 22, Jan.-Apr. 2018 3.2. Citação direta com menos de três linhas – de- vem vir no corpo do texto entre aspas, e sempre de- vem incluir o(s) numero(s) de página(s).

Exemplo: “Democracy depends on citizens’ avai- ling themselves of the freedom to participate in rule (...)” (Schofield, 2006, p. 111).

3.3. Citação direta com mais de três linhas – deve vir em parágrafo destacado com 4cm de recuo da margem esquerda, espaçamento simples, fonte arial corpo 10, e sempre devem incluir o(s) numero(s) de página(s).

Exemplo:

That the soul is more similar to the Forms than it is to bodies does not establish how it is similar. And so it falls short of showing that it is similar in that both the soul and the Forms are indestructible or indissoluble (...). If 393 the conclusion leaves open the possibility that the soul is nearly indestructible, then it is destructible after all, in which case the argument falls short of establishing what it was supposed to. (APOLLONI, 1996, p. 5­‑6)

3.4. Citação de citação (a expressão apud – citado por, conforme, segundo – deve, também, ser usada no texto.

Exemplo:

According to Vatter (2001 apud Pérez Jiménez, 2011, p. 23), the concept of history [...]

nº 22, Jan.-Apr. 2018 3.5. Citação de obras clássicas

3.5.1. Abreviaturas

3.5.1.1. Revistas – L’Année Philologique, disponível em: http://www.annee­‑philologique.com/files/sigles_ fr.pdf ou http://www.lib.berkeley.edu/ARTH/lannee. html

3.5.1.2. Autores gregos – usar abreviaturas do Greek­‑English Lexicon (LSJ) disponíveis em: http:// www.stoa.org/abbreviations.html

3.5.1.3. Autores latinos – usar abreviaturas do Oxford Latin Dictionary disponíveis em: http://clas- sics.oxfordre.com/staticfiles/images/ORECLA/OCD. ABBREVIATIONS.pdf

3.5.1.3.1. Colocar espaços entre os números e não 394 incluir vírgula: Hom. Od. 1. 1 (não Hom., Od. 1.1) 3.6. Notas de rodapé – devem ser usadas somente com propósitos explanatórios, reduzidas a um número mínimo, e nunca para citação de fontes.

Para mais detalhes, consultar a norma NBR 10520 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

4. Exemplos de referências bibliográficas fi- nais mais comuns (NBR 6023 com adaptações)

4.1. Livro

4.1.1. Os elementos essenciais são: autor(es), data de publicação, título, edição, local e editora nº 22, Jan.-Apr. 2018

PELLING, C. B. R. (2011). Plutarch and History: ei- ghteen studies. 2ed. Swansea, Classical Press of Wales.

4.1.2. Obras de autores antigos: edições e traduções

TRABATTONI, F. (2011) (ed.). Platone. Fedone. Milano, Einaudi.

DIXSAUT, M. (1991). Platon. Phédon (traduction, introduction et notes). Paris, GF­‑Flammarion.

4.2. Capítulo de Livro

JIMÉNEZ SAN CRISTÓBAL, A. I. (2009). The Meaning of βάκχος y βακχεύειν in Orphism. In: JOHNSTON, P. A.; CASADIO, G. (eds.). Mystic Cults in Magna Graecia. Austin. University of Texas Press, p. 46­‑60. 395 4.3. Artigo

Os elementos essenciais são: autor(es), título da parte, artigo ou matéria, título da publicação, nume- ração correspondente ao volume e/ou ano, fascículo ou número, paginação inicial e final.

PAKALUK, M. (2003). Degrees of Separation in the Phaedo. Phronesis 48, nº 2, p. 89­‑115.

4.4. Trabalho apresentado em evento

Os elementos essenciais são: autor(es), título do tra- balho apresentado, seguido da expressão “In:”, nome do evento, numeração do evento (se houver), ano e lo- nº 22, Jan.-Apr. 2018 cal (cidade) de realização, título do documento (anais, atas, tópico temático etc.), local, editora, data de pu- blicação e página inicial e final da parte referenciada.

Exemplo:

HARRIS, E. (2005). Solon and the spirit of the laws in archaic and classical Greece. In: BLOK, J.; LARDI- NOIS, A. (eds.), The Statesman in Plutarch’s Works, Pro- ceedings of the Sixth International Conference of the In- ternational Plutarch society (2 vols). Leiden & Boston, Brill, p. 291­‑318.

4.5. Livro ou Artigo em meio electrónico

NOTA: Não se recomenda a referência a material electrónico de curta duração nas redes. Quando se tratar de obras consultadas online, tam- bém são essenciais as informações sobre o endereço 396 eletrônico, apresentado entre os sinais < >, precedido da expressão “Disponível em:” e a data de acesso ao documento.

KRAUT, R. (2015), “Plato”, The Stanford Encyclo- pedia of Philosophy (Spring Edition), Edward N. Zalta (ed.), Disponível em: URL =

http://plato.stanford.edu/archives/spr2015/en- tries/plato/ Disponível em: 20 de Dezembro de 2014.

4.6. Teses e dissertações e outros trabalhos acadêmicos

Nas teses, dissertações ou outros trabalhos acadê- micos devem ser indicados em nota o tipo de docu- nº 22, Jan.-Apr. 2018 mento (tese, dissertação, trabalho de conclusão de curso etc.), o grau, a vinculação acadêmica, o local e a data da defesa, mencionada na folha de aprovação (se houver).

SMITH, U. A. M. (1986). The Metaphysics of Plato and Aristotle: An analysis. 132 p. Dissertation (Master of Arts in Philosophy) – McGill University, Montreal.

4.7. Documento de acesso exclusivo em meio eletrônico

Inclui bases de dados, listas de discussão, BBS (site), arquivos em disco rígido, programas, conjuntos de programas e mensagens eletrônicas entre outros. Os elementos essenciais são: autor(es), título do ser- viço ou produto, versão (se houver) e descrição física do meio eletrônico. Quando se tratar de obras consul- tadas online, proceder­‑se­‑á conforme Livro ou Artigo em meio electrónico (4.5). 397 NOTA – No caso de arquivos eletrônicos, acres- centar a respectiva extensão à denominação atribuída ao arquivo.

Exemplo:

ALLIE’S play house (1993). Palo Alto, CA.: MPC/ Opcode Interactive. 1 CD­‑ROM.

4.8. Documento iconográfico

Inclui pintura, gravura, ilustração, fotografia, dese- nho técnico, diapositivo, diafilme, material estereográ- fico, transparência, cartaz entre outros. Os elementos essenciais são: autor, título (quando não existir, deve­‑se nº 22, Jan.-Apr. 2018 atribuir uma denominação ou a indicação Sem título, entre colchetes), data e especificação do suporte.

Exemplo:

KOBAYASHI, K. (1980). Doença dos xavantes. fotografia.

4.9. Documento iconográfico em meio eletrônico

As referências devem obedecer aos padrões indica- dos para documento iconográfico, de acordo com 4.10 acrescidas das informações relativas à descrição física do meio eletrônico (disquetes, CD­‑ROM, online etc.). Quando se tratar de obras consultadas online, proceder­ ‑se­‑á conforme 4.5.

Exemplos:

VASO.TIFF. 1999. Altura: 1083 pixels. Largura: 827 398 pixels. 300 dpi. 32 BIT CMYK. 3.5 Mb. Formato TIFF bitmap. Disponível em: . Acesso em: 28 Outubro, 1999.

ESTAÇÃO da Cia. Paulista com locomotiva elétrica e linhas de bitola larga. 1 fotografia, p&b. In: LOPES, E. L. V. (1999). Memória fotográfica de Araraquara. Araraquara, Prefeitura do Município de Araraquara. 1 CD­‑ROM.

Para mais informações, consultar a norma NBR 6023 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

Endereço para correspondência

nº 22, Jan.-Apr. 2018 Revista Archai CÁTEDRA UNESCO ARCHAI, Universidade de Brasília, Instituto de Ciência Humanas, Programa de Pós-Graduação em Metafísica 70904­‑970, Brasília, DF Fone: +55 (61) 3107­‑7040 Website: periodicos.unb.br/index.php/archai

399 Página deixada propositadamente em branco Guidelines

1. General Guidelines nº 22, Jan.-Apr. 2018 1.1. Articles may contain up to 50 thousand char- acters including spaces and reviews may contain up to 15 thousand characters. Articles must be accompa- nied by an abstract with at least 100 words and up to 250 words, in the original language (i.e. the language in which the article is written) and in English, as well as up to 5 keywords in the original language and in English. The title must be in the original language, fol- lowed by its English title.

1.2. The author must send the article or review by electronic means only, through the journal´s webpage, in A4 format, font Arial 11, in Word (doc., docx.), Rich Text (rtf.) or compatible format.

1.3. Articles with quotations in the Greek lan- guage must either use Unicode or transliterations of the words in Greek, according to the New Norms of Transliteration published in Archai Journal n.12, 401 p.193­‑194 and available at: http://periodicos.unb.br/ index.php/archai/article/view/10149/7457.

1.4. All submissions must be original and not pre- viously accepted for publication in a journal.

1.5. Books in review must have been published up to two years before.

1.6. If images are used, they must be in .jpg or .tiff format, with resolution of 300 dpi, in black and white, accompanied by caption as well as by its source.

1.7. The publication of originals will automatically nº 22, Jan.-Apr. 2018 imply forfeit of author´s rights.

2. Review

2.1. The review and selection of submissions are conducted by peers. The process of evaluation of the article is documented in the archives of the Archai journal. Texts submitted are forwarded by the Edito- rial Board to the Scientific Committee or to ad hoc readers. Texts are judged by their conformity to the journal´s editorial line, to the editorial norms and by the quality of the writing, both in terms of originality and relevance of the proposed themes and in terms of the critical and/or informative impact that they may have to the advance of the studies about the origins of Western thought.

3. Examples of citations

(in accordance with the norm NBR 10520 with ad- 402 aptations) Citations in the Archai Journal follow the author­ ‑date system in the body of the text (never in the foot- notes), as shown in the following examples. In the case of classical works, follow the examples of item 3.5. Quotation of classic works.

3.1. Indirect citation – the essential element is the year of publication to which the citation refers.

Example: Irony would thus be an implicit form of shown heterogeneity, according to the classifica- tion proposed by Authier­‑Reiriz (1982).

3.2. Direct citation with less than three lines – should come in the text in parentheses, and should nº 22, Jan.-Apr. 2018 always include page numbers.

Example: “Democracy depends on citizens’ avail- ing themselves of the freedom to participate in rule (...)” (Schofield, 2006, p. 111).

3.3. Direct quotation with more than three lines – should come in a paragraph highlighted with the left margin indented by 4cm, single­‑spaced, Arial font size 10, and should always include page numbers.

Example:

That the soul is more similar to the Forms than it is to bodies does not establish how it is similar. And so it falls short of showing that it is similar in that both the soul and the Forms are indestructible or indissoluble (...). If the conclusion leaves open the possibility that the soul is nearly indestructible, then it is destructible after all, in which case the argument 403 falls short of establishing what it was supposed to. (APOLLONI, 1996, p. 5­‑6)

3.4. Citation of a Citation (the expressions apud should be used in the text).

Example:

According to Vatter (2001 apud Pérez Jiménez, 2011, p. 23), the concept of history […]

3.5. Citation of classical works

nº 22, Jan.-Apr. 2018 3.5.1. Abbreviations

3.5.1.1. Journals – L'Année Philologique, available at: http://www.annee philologique.com/files/sigles_fr.pdf or http://www.lib.berkeley.edu/ARTH/lannee.html

3.5.1.2. Greek authors – use the abbreviations found in the Greek­‑English Lexicon (LSJ) available at: http://www.stoa.org/abbreviations.html

3.5.1.3. Latin authors – use abbreviations of the Oxford Latin Dictionary available at: http://classics. oxfordre.com/staticfiles/images/ORECLA/OCD.AB- BREVIATIONS.pdf

3.5.1.4. Put spaces between the numbers and do not use commas – Hom. Od. 1. 1 (not Hom., Od. 1.1)

3.6. Footnotes – should be used only with explana- tory purposes, reduced to a minimum, and never to 404 cite sources. 4. Examples of most common types of end references (NBR 6023 with adaptations)

4.1. Book

4.1.1. The essential elements are: author(s), date of publication, title, edition, place and publisher

PELLING, C. B. R. (2011). Plutarch and History: eighteen studies. 2ed. Swansea, Classical Press of Wales.

4.1.2. Ancient Authors works: editions and translations nº 22, Jan.-Apr. 2018 TRABATTONI, F. (2011) (ed.). Platone. Fedone. Milano, Einaudi.

DIXSAUT, M. (1991). Platon. Phédon (traduction, introduction et notes). Paris, GF­‑Flammarion.

4.2. Book chapter

JIMÉNEZ SAN CRISTÓBAL, A. I. (2009). The Meaning of βάκχος y βακχεύειν in Orphism. In: JOHNSTON, P. A.; CASADIO, G. (eds.). Mystic Cults in Magna Graecia. Austin, University of Texas Press, p. 46­‑60.

4.3. Article

The essential elements are: author(s), title of article or report, title of the publication, place of publication, number of the volume, year or issue, number of the first and last page. 405 Example:

PAKALUK, M. (2003). Degrees of Separation in the Phaedo. Phronesis 48, nº 2, p. 89­‑115.

4.4. Paper presented at an event

The essential elements are: author(s), title of the work presented, followed by the expression ‘In:’, event name, event number (if any), year and place (city) of occurrence, title (annals, minutes, thematic topic etc.), place, publisher, publication date, and first and last page of the referenced part.

Example: nº 22, Jan.-Apr. 2018 HARRIS, E. (2005). Solon and the spirit of the laws in archaic and classical Greece. In: BLOK, J.; LARDI- NOIS, A. (eds.), The Statesman in Plutarch’s Works, Proceedings of the Sixth International Conference of the International Plutarch society (2 vols). Leiden & Bos- ton, Brill, p. 291­‑318.

4.5. Online works

NOTE ­‑ It is not recommended to reference elec- tronic material of short duration in the networks.

When dealing with works consulted online, it is essential to provide information about the elec- tronic address, presented between the signs <>, pre- ceded by the expression ‘Available at’, and the date of access to the document, preceded by the expression ‘Accessed on’.

406 KRAUT, R. (2015), “Plato”, The Stanford Encyclo- pedia of Philosophy (Spring Edition), Edward N. Zalta (ed.), Available in:

http://plato.stanford.edu/archives/spr2015/en- tries/plato/>

Accessed on: 20th, December, 2014.

4.6. Theses, dissertations and other academic work

When citing theses, dissertations and other aca- demic work, it is necessary to indicate in footnote the type of document (thesis, dissertation, etc.), the de- gree for which it was submitted, the institution, the nº 22, Jan.-Apr. 2018 place and date of the defense as stated on the approval page (if applicable)

Example:

SMITH, U. A. M. (1986). The Metaphysics of Plato and Aristotle: An analysis. 132 p. Dissertation (Master of Arts in Philosophy) – McGill University, Montreal, 1986.

4.7. Documents accessible only electronically

Includes databases, mailing lists, BBS (site), files on hard disk, programs, software packages and elec- tronic messages among others. The essential elements are: author(s), title of the service or product, version (if any) and physical description of the electronic me- dia. Regarding online works, proceed according to the example for Online Works (4.5).

407 NOTE ­‑ In the case of electronic files, add their ex- tension to the name assigned to the file.

Example:

ALLIE’S play house (1993). Palo Alto, CA.: MPC/ Opcode Interactive. 1 CD­‑ROM.

4.8. Iconographic document

Includes painting, printmaking, illustration, photog- raphy, technical drawing, slide, filmstrip, stereographic material, transparency, poster and more. The essential elements are: author, title (if none exists, you must as- sign a name or indicate ‘Untitled’ in brackets), date and nº 22, Jan.-Apr. 2018 specification of support.

Example:

KOBAYASHI, K. (1980). Doença dos xavantes. fotografia.

4.9. Electronic iconographic document

References must comply with the standards speci- fied for iconographic document, according to 4.8, plus the information on the physical description of the electronic media (floppy disk, CD­‑ROM, online etc.). Regarding online works, proceed according to the example for Online works (4.5.).

Examples:

VASO.TIFF. 1999. High: 1083 pixels. Width: 827 pixels. 300 dpi. 32 BIT 408 CMYK. 3.5 Mb. Format TIFF bitmap. Available in: .

Accessed on: 28th, October, 1999.

ESTAÇÃO da Cia. Paulista com locomotiva elétrica e linhas de bitola larga. 1 fotografia, p&b. In: LOPES, E. L. V. (1999). Memória fotográfica de Araraquara. Araraquara, Prefeitura do Município de Araraquara. 1 CD­‑ROM.

For more information, see norms NBR 6023 and NBR 10520 of the Brazilian Association of Technical Norms (Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT).

nº 22, Jan.-Apr. 2018

Mailing Address:

Revista Archai CÁTEDRA UNESCO ARCHAI, Universidade de Brasília, Instituto de Ciência Humanas, Programa de Pós-Graduação em Metafísica 70904­‑970, Brasília, DF Phone: +55 (61) 3107­‑7040 Website: periodicos.unb.br/index.php/archai

409