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REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA

volumejulho/dezembro - 2013 28

ISSN Per Musi impressa: 1517-7599 ISSN Per Musi online: 2317-6377 Editorial

A repercussão entre autores e leitores dos números anteriores 22 e 23 de Per Musi (revista qualificada com o QUALIS A1 na CAPES e indexada na base SciELO), dedicados aos estudos em música popular, motivou mais uma chamada sobre este tema, que parece ser o que mais tem atraído a atenção de pesquisadores na história recente da pesquisa em música no Brasil. Devido ao grande número de submissões, os artigos aprovados foram divididos em três volumes – 28, 29 e 30 – que trazem um total de 46 artigos, 11 partituras e 6 resenhas. Este volume 28 de Per Musi traz 14 artigos, 4 partituras e 2 resenhas.

Faz-se necessária uma errata em relação às minhas traduções dos dois artigos de Phillip Tagg publicados em Per Musi 22 (2010, p.7-21) e 23 (2011, p.7-18), pois ignorei que três termos da metodologia analítica desse autor [(1) Interobjective comparison; (2) Interobjective Comparison Material (IOCM) e (3) Paramusical Field of Connotation (PMFC)] já haviam sido introduzidos anteriormente no Brasil por Martha Ulhôa no seu artigo A Análise da música brasileira popular (Cadernos do Colóquio, 1999, p.61-68) e na tradução do artigo Analisando a música popular: teoria método e prática de Tagg (Em Pauta, v.14, n.3, 2003, p.5-42). Assim, ao invés de Comparação interobjetiva, Material de Comparação Interobjetiva e Campo Paramusical de Conotação, devemos utilizar os termos Comparação entre Objetos, Material de Comparação entre Objetos (MCeO) e Campo de associações Paramusicais (CAPm).

A norte-americana Deborah Mawer, em tradução de Fausto Borém, aprofunda a discussão sobre o estilo improvisatório do jazzista norte-americano Bill Evans e suas conexões com a música francesa, especialmente Ravel, Messiaen e, mesmo, o francês de adoção Chopin, apresentando as transformações de gênero, cultura, identidade nacional e linha do tempo em duas obras emblemáticas: Kind of blue de e Peace Piece do próprio Evans. Em seguida a própria Peace Piece de Bill Evans é apresentada em partitura transcrita por Jim Aikin.

O norte-americano J. William (Bill) Murray, em tradução de Fausto Borém, apresenta um estudo sobre o estilo com- posicional de Bill Evans em 19 obras selecionadas, abordando elementos como andamento, métrica, tonalidade, forma, duração, ritmo harmônico, linguagem harmônica e outros detalhes relevantes.

Fabiano Araújo e Fausto Borém propõe uma aplicação da teoria tonal de Schoenberg como ferramenta de análise, realização e composição no contexto da música popular, ilustrando com exemplos retirados da música de Hermeto Pas- coal. Em um segundo artigo, Fabiano Araújo e Fausto Borém aplicam esta proposta na realização de duas lead sheets do monumental Calendário do som de . Finalmente, são apresentados os manuscritos e as lead sheets realizadas dessas duas músicas de Hermeto Pascoal - 23 de junho de 1996 e 9 de Junho de 1997 - , realizadas e editadas por Fabiano Araújo.

As práticas composicionais e improvisatórias de ao piano são o foco de Marcelo G. M. Magalhães Pinto e Fausto Borém, que apontam, na música Frevo, o hibridismo de gêneros e estilos característico do compositor multi-instrumentista, com ecos de J. S. Bach, F. Chopin, H. Villa-Lobos, da Primeira e Segunda Escolas de Viena e do período pós-1950. Em seguida, a partitura de Frevo de Egberto Gismonti, em transcrição e edição de Marcelo G. M. Magalhães e Fausto Borém, é apresentada.

Rafael Tomazoni Gomes e Guilherme A. Sauerbronn de Barros revelam, na música Cristal, como Cesar Camargo Maria- no transpõe elementos afro-brasileiros do samba e a ambiência de sua formação instrumental para o piano.

Por meio de uma análise estilística da música Pé no chão, Guilherme Araújo Freire e Rafael dos Santos abordam o hi- bridismo de gêneros brasileiros e norte-americanos na linguagem instrumental de vanguarda do grupo paulista Medusa na década de 1980.

Alvaro Neder discute a utilização da canção Mesmo que seja eu como forma de contestação feminina a papeis de gênero estabelecidos. A música é compreendida como um discurso social, interferindo ativamente na produção de novas subje- tividades e na reestruturação da sociedade. Rodrigo Cantos Savelli Gomes investiga o papel das mulheres negras no berço do samba carioca, conhecido como Pequena África, buscando restaurar suas histórias no do início do século XX, hoje esquecidas, como com- positoras, instrumentistas, cantoras e formadoras de opinião.

Renata Schmidt de Arruda Gomes aborda a estigmatização da umbanda, religião afro-brasileira essencialmente musical e, a partir de um estudo de caso sobre o terreiro Reino de Luz, mostra os pontos de conflito e preconceitos entre suas práticas de performance e a aceitação social.

Adelcio Camilo Machado aborda o início da trajetória do sambista , focando sua análise no arranjo, letra, melodia, harmonia e contexto histórico das canções Boa noite, Carnaval de ilusões e Caramba, que integram a pri- meira faixa de seu LP de estreia de 1969 e marcam a sua passagem do cenário mais restrito das escolas de samba para o grande mercado da música popular brasileira.

Renan Paiva Chaves e Eduardo de Lima Visconti esmiúçam cada faixa do disco México 70, revelando o mosaico musical de Wilson Simonal em meio às relações entre futebol, imprensa, música popular e política, ao mesmo tempo em que apre- sentam os conflitos simbólicos da internacionalização da cultura e da consolidação da indústria fonográfica no Brasil.

Com base em práticas deliberadas e práticas informais de aprendizagem musical, Ana Carolina Nunes do Couto propõe uma abordagem no ensino de teclado em grupo para o repertório instrumental popular, exemplificando com arranjos de Asa Branca ( e ), O Trem Azul (Lô Borges e Ronaldo Bastos), Viagem (João de Aquino e Paulo César Pinheiro) e Eleanor Rigby (John Lennon e Paul McCartney).

Procurando ampliar a percepção estereotipada e simplista da música popular na vida cotidiana recebida via mídia de massa, Heloísa de A. Duarte Valente discute a rede de signos da paisagem sonora da música popular entre os governos de FHC e Lula, com seus modelos e formas de comportamento.

Na Seção de Resenhas – Pega na Chaleira, dois livros Liliana Harb Bollos são apresentados: e crítica: polifonia de vozes na imprensa por Carlos Ernest Dias e Clara na Música Popular, por Kátia Milene Lima da Conceição.

Finalmente, Informamos que Per Musi está disponível gratuitamente nos sites www.scielo.com.br e www.musica.ufmg. br/permusi. As versões impressas de quase todos os números da revista ainda podem ser adquiridas através do e-mail [email protected].

Fausto Borém Fundador e Editor Científico de Per Musi PER MUSI - Revista Acadêmica de Música (ISSN 1517-7599 para a versão impressa e ISSN 2317-6377 para a versão online) é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde a diversidade e o debate são bem-vindos. As ideias aqui expressas não refletem a opinião da Comissão Editorial ou do Conselho Consultivo. PER MUSI está indexada nas bases SciELO, RILM Abstracts of Music Literature The Music Index e Bibliografia da Música Brasileira da ABM (Academia Brasileira de Música).

Fundador e Editor Científico Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte)

Corpo Editorial Internacional Aaron Williamon (Royal College of Music, Londres, Inglaterra) Anthony Seeger (University of California, Los Angeles, EUA) Universidade Federal de Minas Gerais Eric Clarke (Oxford University, Oxford, Inglaterra) Reitor Clélio Campolina Diniz Denise Pelusch (University of Colorado, Boulder, EUA) Vice-Reitora Rocksane de Carvalho Norton Florian Pertzborn (Instituto Politécnico do Porto, Porto, Portugal) Pró-Reitor de Pós-Graduação Ricardo Santiago Gomez Jean-Jacques Nattiez (Université de Montreal, Montreal, Canadá) Pró-Reitora Adj. de Pós-Graduação Andréa Gazzinelli Correa de Oliveira João Pardal Barreiros (Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal) Pró-Reitor de Pesquisa Renato Lima dos Santos Jose Bowen (Southern Methodist University, Dallas, EUA) Lewis Nielson (Oberlin Conservatory, Oberlin, EUA) Escola de Música da UFMG Lucy Green (University of London, Institute of Education, Londres, Prof. Dr. Maurício Freire Garcia, Diretor Inglaterra) Marc Leman (Ghent University, Ghent, Bélgica) Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG Melanie Plesch (University of Melbourne, Austrália) Coord. Prof. Dr. Sérgio Freire Nicholas Cook (Royal Holloway, Eghan, Inglaterra) Sub-Coord. Prof. Dr. Fernando Rocha Silvina Mansilla (Universidad Católica, Buenos Aires, Argentina) Sec. Geralda Martins Moreira Xosé Crisanto Gándara (Universidade da Coruña, Corunha, Espanha) Sec. Alan Antunes Gomes Thomas Garcia (Miami University, Miami, EUA) Planejamento e Produção Corpo Editorial no Brasil Melissa soares- Cedecom/UFMG Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC, Florianópolis) Ingred Souza (estagiária) – Cedecom/UFMG Adriana Giarola Kayama (UNICAMP, Campinas) André Cavazotti (UFMG, Belo Horizonte) Projeto Gráfico André Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro) Capa e miolo: Sérgio Lemos - Cedecom/UFMG Ângelo Dias (UFG, Goiânia) Diagramação: Romero Morais - Cedecom/UFMG Arnon Sávio (UEMG, Belo Horizonte) Beatriz Magalhães Castro (UNB, Brasília) Tiragem Cíntia Macedo Albrecht (UNICAMP, Campinas) 150 exemplares Diana Santiago (UFBA, Salvador) Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP, Campinas) Acesso gratuito na internet Fabiano Araújo (UFES, Vitória) www.musica.ufmg.br/permusi Fernando Iazetta (USP, São Paulo) Flávio Apro (UNESP, São Paulo) Endereço para correspondência Guilherme Menezes Lage (FUMEC, Belo Horizonte) UFMG - Escola de Música - Revista Per Musi José Augusto Mannis (UNICAMP, Campinas) Av. Antônio Carlos 6627 - Campus Pampulha José Vianey dos Santos (UFPB, João Pessoa) Belo Horizonte, MG, Brasil - 31.270 - 090 Lea Ligia Soares (EMBAP, ) Fone: (31) 3409-4717 ou 3409-4747 Lincoln Andrade (UFMG, Belo Horizonte) Fax: (31) 3409-4720 Lucia Barrenechea (UNIRIO, Rio de Janeiro) e-mail: [email protected] Manoel Câmara Rasslan (UFMS, Campo Grande) [email protected] Maurício Alves Loureiro (UFMG, Belo Horizonte) Maurílio Nunes Vieira (UFMG, Belo Horizonte) Norton Dudeque (UFPR, Curitiba) Pablo Sotuyo (UFBA, Salvador) Patrícia Furst Santiago (UFMG, Belo Horizonte) Rafael dos Santos (UNICAMP, Campinas) Rosane Cardoso de Araújo (UFPR, Curitiba) Salomea Gandelman (UNIRIO, Rio de Janeiro) Sônia Ray (UFG, Goiânia) Vanda Freire (UFRJ, Rio de Janeiro) Vladimir Silva (UFPI, Teresina)

O Corpo de Pareceristas de Per Musi e seus pareceres são sigilosos

Revisão Geral Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte) ABM Maria Inêz Lucas Machado (UFMG, Belo Horizonte)

PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - n. 28, julho / dezembro, 2013 - Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2013 –

n.: il.; 29,7x21,5 cm. Semestral ISSN Per Musi impressa: 1517-7599 ISSN Per Musi online: 2317-6377

1. Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos. I. Escola de Música da UFMG Sumário

ARTIGOS CIENTÍFICOS A música francesa reconfigurada no jazz modal de Bill Evans ...... 7 French Music Reconfigured in the Modal Jazz of Bill Evans Deborah Mawer (Tradução de Fausto Borém) Partitura de Peace piece, para piano solo de Bill Evans ...... 15 Score of Peace piece, for solo piano by Bill Evans Bill Evans (Transcrição de Jim Aikin) O Jazz de Bill Evans: formação, influências, obras e estilo composicional ...... 21 Bill Evans’s jazz: background, influences, works and compositional style J. William (Bill) Murray (Tradução de Fausto Borém) A teoria tonal de Schoenberg como recurso de análise, realização e composição no contexto da música popular ...... 35 Schoenberg’s tonal theory as a resource for analysis, realization and composition in the context of popular music Fabiano Araújo Fausto Borém Análise e realização de quatro lead sheets do Calendário do som de Hermeto Pascoal, a partir da teoria tonal de Schoenberg ...... 70 Analysis and realization of four lead sheets from Calendário do som by Hermeto Pascoal, departing from Schoenberg’s tonal theory Fabiano Araújo Fausto Borém 23 de junho de 1996 (Calendário do som) de Hermeto Pascoal: manuscrito e lead sheet de realização ...... 96 The song June, 23, 1996 (from Calendário do som) by Hermeto Pascoal: manuscript and realized score Hermeto Pascoal (Realização e edição de Fabiano Araújo) 9 de Junho de 1997 (Calendário do som) de Hermeto Pascoal: manuscrito e lead sheet de realização ...... 99 The song June, 9, 1997 (from Calendário do som) by Hermeto Pascoal: manuscript and realized score Hermeto Pascoal (Realização e edição de Fabiano Araújo) O caos organizado de Egberto Gismonti em Frevo: improvisação e desenvolvimento temático ...... 102 The organized chaos of Egberto Gismonti in Frevo: improvisation and thematic development Marcelo G. M. Magalhães Pinto Fausto Borém Partitura de Frevo de Egberto Gismonti ...... 125 Score of Frevo by Egberto Gismonti Egberto Gismonti (Transc. e Ed. Marcelo G. M. Magalhães Pinto e Fausto Borém) Cristal: aspectos do tratamento pianístico no samba de ...... 145 Cristal: aspects of the pianistic treatment in Cesar Camargo Mariano’s samba Rafael Tomazoni Gomes Guilherme A. Sauerbronn de Barros Hibridismo na música instrumental do Grupo Medusa: associação de gêneros musicais distintos em Pé no chão ...... 162 Hybridism in the instrumental music of the Medusa Group: association of different musical genres in Pé no chão Guilherme Araújo Freire Rafael dos Santos “Um homem pra chamar de seu”: discurso musical e construção de gênero ...... 170 “A man to call yours”: musical discourse and gendering Alvaro Neder “Pelo telefone mandaram avisar que se questione essa tal história onde mulher não tá”: a atuação de mulheres musicistas na constituição do samba da Pequena África do Rio de Janeiro no início do século XX ...... 176 “They said over the phone to question this story where women are not present”: the role of women musicians in Rio de Janeiro’s samba in early twentieth century Rodrigo Cantos Savelli Gomes “A língua desse povo não tem osso, deix’esse povo falá.”: campo sonoro da linha de Quimbanda do Terreiro de Umbanda Reino de Luz – som e preconceito ...... 192 Sound field “linha de Quimbanda” of “Terreiro de Umbanda Reino de Luz”: sound and prejudice Renata Schmidt de Arruda Gomes Martinho da Vila: uma nova linhagem do samba nos anos de 1970 ...... 208 Martinho da Vila: a new lineage of Brazilian samba in the 1970s Adelcio Camilo Machado Wilson Simonal em campo: reflexões sobre o álbum México 70 ...... 222 Wilson Simonal in field: reflections on the album México 70. Renan Paiva Chaves Eduardo de Lima Visconti O ensino de teclado em grupo na universidade e o uso do repertório popular: aprendizagem através de práticas híbridas ...... 231 Keyboard group teaching at the university and the popular repertoire: learning through hybrid practices Ana Carolina Nunes do Couto

Paisagens sonoras, trilhas musicais: retratos sonoros do Brasil ...... 239 Soundscapes, soundtracks: Brazilian sound portraits Heloísa de A. Duarte Valente

SEÇÃO DE RESENHAS – “Pega na Chaleira” Resenha: Bossa Nova e Crítica de Liliana Harb Bollos ...... 250 Review: Bossa Nova e crítica [Bossa Nova and criticism] by Liliana Harb Bollos Carlos Ernest Dias Resenha: a relação intergeracional no livro Clara na Música Popular ...... 254 Review: the intergeneration relationship in the book Clara na Música Popular Kátia Milene Lima da Conceição

6 MAWER, D. A música francesa reconfigurada no jazz modal de Bill Evans. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.7-14.

A música francesa reconfigurada no jazz modal de Bill Evans

Deborah Mawer (Lancaster University, Inglaterra) [email protected]

Tradução de Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Resumo: Embora seja senso comum que a música francesa, especialmente a do século XX, tenha exercido influência no estilo improvisatório do pianista de jazz norte-americano Bill Evans (1929-1980), a importância deste papel é raramente abordada em estudos bem fundamentados. Estes dois pontos – música francesa e Evans – oferecem uma oportunidade para investigar suas diversas relações musicais, desde paralelos e interseções a ecletismos específicos, os quais podem assimilar, adaptar e individualizar uma dada fonte. Implícitos aí estão os “cruzamentos” e transformações de gênero, cultura, identidade nacional e linha do tempo, assim como as questões de influência; discute-se aqui a natureza e mutabilidade dos materiais musicais. Busco mostrar a riqueza e significado destas interações em dois estudos de caso: aspectos de Kind of blue (DAVIS, 1959) e Peace Piece (EVANS, 1958), em conexão com Chopin (enquanto francês adotado), Ravel e Messiaen. Por meio dos textos de RAVEL (1928) e outros, argumento que, particularmente com o repertório francês, Evans descobriu uma afinidade e catalisador para suas prioridades de improvisação: lirismo, linhas polifônicas, uma rica paleta de 7as e 9as, texturas requintadas, voicings e timbres – um veículo para sua expressividade e imaginação. Da mesma forma, é intrigante observar como uma música francesa relativamente velha tenha sobrevivido e se reconfigurado - como um camaleão - dentro de um novo contexto do pós-guerra. Palavras chave: ecletismo de Bill Evans; hibridismo em música; música francesa e jazz modal jazz; transformação e improvisação musical; influência entre música erudita e popular.

French Music Reconfigured in the Modal Jazz of Bill Evans

Abstract: Although French classical music, especially that of the twentieth-century, is commonly understood to have played a role in the improvisational thinking of the American modal jazz pianist Bill Evans (1929-1980), its relevance has rarely been probed in scholarly depth. These loci - French music and Evans - appear to offer an ideal opportunity for investigating relations between musical types: from parallels, potential intersections, through to specific eclecticisms, which could assimilate, adapt and individualize a given source. Implicit are ‘crossings’ and transformations of genre, culture, national identity and timeframe, as well as questions of influence; at issue are the nature and mutability of music materials. I aim to show the richness and significance of these interactions in two case studies: aspects of Kind of Blue (DAVIS, 1959) and Peace Piece (EVANS, 1958), in connection with Chopin (as an adoptive Frenchman), Ravel and Messiaen. Using critical ideas of RAVEL (1928) and others, I argue that in French repertory particularly, Evans discovered an affinity with, and catalyst for, his improvisational priorities: lyricism, polyphonic lines, a rich harmonic palette of sevenths and ninths, subtle textures, voicings and exquisite tone - a vehicle for expressivity and imagination. Conversely, it is intriguing that relatively old French music has lived on, reconfigured - chameleon-like - within a new postwar context. Keywords: eclecticism of Bill Evans; hybridism in music; French music and modal jazz; music transformation and improvisation; influence between classical and popular music.

Agradecimento: Este artigo foi gentilmente cedido pelos editors de The Jazz Chameleon: The Refereed Proceedings of the 9th Nordic Jazz Conference August 19-20, 2010, Helsinki, Finland. Edited by Janne Mäkelä (The Finnish Jazz & Pop Archive). Helsinki: The Finnish Jazz & Pop Archive & Turku: International Institute for Popular Culture, 2011. (Disponível como e-Book em http://iipc.utu. fi/publications.html).

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 10/04/2012 - Aprovado em: 04/01/2013 7 MAWER, D. A música francesa reconfigurada no jazz modal de Bill Evans. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.7-14.

1 – Introdução 2 – Relacionando Bill Evans e a música É senso comum que a música francesa erudita, francesa especialmente aquela do século XX, influenciou o Na família de Evans, a presença musical de sua mãe pensamento improvisatório de Bill Evans (1929-1980) no ucraniana, e sua educação, que incluiu aulas de violino final da década de 1950, relação que faz parte de uma e piano, certamente significaram que ele foi exposto a tradição mais ampla que remonta a Duke Ellington, Bix uma música variada. Como observa o principal biógrafo Beiderbecke e outros. Mas, ao mesmo tempo, a relevância de Evans, Peter PETTINGER (1998, p.16), isto permitiu deste repertório para Evans, músico de formação erudita, seu acesso a “sonatas de Mozart e Beethoven e obras tem sido levianamente descartada e geralmente dada de Schumann, Rachmaninoff, Debussy, Ravel, Gershwin como “certa” e, por isso, raramente sondada em trabalhos … Villa-Lobos, Khachaturian, Milhaud e outros.” acadêmicos de maior profundidade. Esta complacência Imediatamente, nossa atenção se volta para uma ampla levanta algumas questões. Por exemplo, houve influência paleta de compositores ocidentais, do Classicismo às da música russa? Que papeis a música francesa teria figuras românticas austro-germânicas, chegando a uma exercido sobre a arte de Evans? Mais particularmente, de equilibrada seleção de compositores russos e franceses que maneiras a música francesa poderia ser reconfigurada do século XX. A dimensão russo-ucraniana é claramente dentro do jazz modal? relevante e, por isso, a conexão Evans-França não é, de forma alguma, exclusiva. Sem pretender consenso, Estes loci – música francesa e Bill Evans – oferecem penso que os domínios russo e francês podem ser uma oportunidade ideal para uma investigação considerados, grosso modo, como de significado detalhada sobre as relações entre tipologias musicais. semelhante. Esses “cruzamentos” se desenvolveram no Estas relações podem incluir desde paralelos e estudo formal de música de Evans, que incluiu técnicas interseções em potencial até ecletismos específicos de harmonia e composição no Southeastern Louisiana (nos quais uma causalidade pode, plausivelmente, ser College, onde se graduou em 1950. estabelecida). Relações que poderiam assimilar, adaptar e individualizar fontes do tipo “camaleão”. E darei No seu artigo The Poet: Bill Evans, Gene LEES (1997, nome a esse terceiro tipo de conexão, cujo potencial p.421), respeitada autoridade em jazz, observou que será discutido neste artigo: a “relação fonte-produto”. Evans “praticava procedimentos colorísticos, voicings Devo enfatizar que a identificação de qualquer dessas e nuanças de compositores pós-românticos como práticas ecléticas não tem uma conotação depreciativa: Debussy, Ravel, Poulenc, Scriabin e, talvez, Alban significa simplesmente o que um artista revela dentro Berg”. Assim, Lee enfatiza os impressionistas franceses de um contexto cultural, no qual estão implícitos os Debussy e Ravel, ao mesmo tempo em que expande a “cruzamentos” e transformações de gênero, cultura, representação neoclássica, com Poulenc e Milhaud. identidade nacional e época. Também implícita está Também expande o domínio russo com a inclusão de a questão inerente da influência musical. Uma breve um compositor influenciado pela música francesa: alusão pode ser feita às ideias de intelectuais referenciais Scriabin. Apesar da generalização, há um consenso entre da literatura como Harold BLOOM (1973) e T. S. ELIOT a maioria dos autores referenciais sobre Evans de que (1951), que anteriormente sustentaram pontos de os compositores franceses eruditos, de fato, constituem vista teóricos opostos sobre a questão da influência – uma força importante. Podemos também fundamentar basicamente “ansiedade” versus “generosidade” – e que essa questão recorrendo às diversas entrevistas que o foram trazidas subsequentemente para a musicologia próprio Evans concedeu. Em uma delas (GINIBRE, 1965), por Joseph STRAUS (1990). Mas não cabe aqui, em ele declarou: “Adoro os impressionistas. Adoro Debussy. um artigo de pequeno escopo, uma discussão sobre É um dos meus compositores preferidos”. Da mesma este assunto (no meu livro no prelo French Music forma, no que diz respeito aos neoclássicos, como Les in Conversation with Jazz há um capítulo sobre Bill Six, Evans conta: “Lembro minha primeira audição da Evans e a música francesa). Atenho-me à natureza e politonalidade de Milhaud e, na verdade, com uma peça mutabilidade dos materiais musicais; ou, às vezes, à que ele provavelmente não considerava grande coisa – constância de materiais dentro de um contexto alterado. era uma peça antiga chamada Suite provençale – que Por ser especialista na música francesa, me interesso em abriu minha percepção para algumas coisas” (ENSTICE e explorar o impacto da música francesa em ambientes RUBIN, 1992, p.136). Então, o que lhe era atraente nesta posteriores, especialmente no jazz. Quero apresentar um música francesa? Argumento que, particularmente no pouco da relação musical Evans-música francesa que repertório francês do início do século XX, Evans encontrou ainda não foi explorada. Primeiro, quero checar o senso uma afinidade deste mundo sonoro com suas próprias comum da associação entre Evans e a música francesa prioridades de improvisação: lirismo, linhas polifônicas, (e em qual extensão isso acontece). Segundo, quero uma rica paleta de 7as e 9as , texturas sutis e voicings; estudar aspectos específicos em dois estudos de caso: resumindo: um veículo para sua expressividade (cabe aqui o disco Kind of Blue (DAVIS, 1959) e a peça Peace piece comentar que, ao privilegiar lirismo e melodia, não estou (EVANS, 1958). Quero investigar estas possíveis relações defendendo uma exclusividade nesta relação: claramente, musicais, embora me contendo a um espaço reduzido. as melodias intricadas na mão direita de Evans também se Desta forma, quero trazer à tona a arte de Bill Evans. desenvolveram, em parte e diretamente, das tradições do

8 MAWER, D. A música francesa reconfigurada no jazz modal de Bill Evans. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.7-14.

piano no jazz, especialmente de “Bud” Powell, Nat “King” Para fundamentar os dois estudos de caso que apresento a Cole e Lennie Tristano). Embora melodicamente diverso e seguir, aconselho o leitor a consultar as fontes relevantes modalmente livre (traço em comum com parte da música de áudio e escritas (por razões de copyright, citações russa), este repertório francês ainda estava baseado em musicais não estão incluídas neste artigo). As fontes para o tônicas. Da mesma forma pensava Evans: “Penso que toda primeiro estudo de caso incluem uma gravação relançada a harmonia é como uma expansão e retorno à tônica” em CD (DAVIS, 1959), sua transcrição (DAVIS, sem data) e (LEES, 1997, p.434). diversas partituras de música francesa (MILHAUD, 1923; RAVEL, 1911; RAVEL, 1927; RAVEL, 1931; RAVEL, 1932). Além disso, esta contínua miscigenação aparentemente Em relação ao segundo estudo de caso, as fontes que o contribuiu para a sonoridade distinta de Evans ao piano. fundamentam incluem a gravação de áudio lançada em LEES (1997, p.441) reconhece que “Bill trouxe ao jazz o CD (EVANS, 1958), sua transcrição por Jim AIKIN (1980, tipo de som familiar a Debussy e Ravel. . . som que é óbvio p.46-49) [reproduzida após o presente artigo, às p.????? no mundo erudito de performers como Walter Gieseking desse volume de Per Musi] e diversas partituras de música e Emil Gilels”. Mais ainda, parece que isto estimulou sua francesa (CHOPIN, sem data; JOLIVET, 2002; MESSIAEN, imaginação. Afinal de contas, improvisadores precisam 1964). Quando me refiro às partituras e transcrições de uma marca estilística ou fórmulas próprias, uma que utilizam letras ou números de ensaio, emprego as vez eu qualquer noção de improvisação espontânea seguintes abreviaturas: tomemos três exemplos: Ex.1 -1 sem estruturas predeterminadas ou um conhecimento [exemplo um menos um] se refere ao compasso anterior harmônico inerente é um mito (BERLINER, 1994, p.1). à letra ou número de ensaio 1; Ex.1 [exemplo um] denota E sabemos que Evans foi “um dos improvisadores mais o compasso inteiro deste número ou letra de ensaio; e imaginativos, inventivos e aventureiros que esta arte já Ex.1 +1 [exemplo um mais um] se refere ao compasso conheceu” (LEES, 1997, p.441-442). posterior à letra ou número de ensaio 1. Comparações entre Evans e Frédéric Chopin (este um antecessor do século XIX e francês por adoção) são 3 - Estudo de caso N.1: Kind of Blue costumeiras e úteis, como veremos abaixo, mas e entre Meu primeiro estudo de caso enfatiza uma relação híbrida Evans e Ravel? Em cada uma dessas comparações, o piano fonte-produto entre o Concerto para a mão esquerda de está no foco do ser artístico. Ravel compunha ao piano. Ravel, composto em 1920-1930, que foi apresentado a Para Evans, “o piano, que ele podia atacar e sustentar com Miles Davis por Evans (DAVIS & TROUPE, 1989, p.216) grande clareza, permaneceu como seu amor verdadeiro” e fez parte de um álbum icônico, Kind of blue (DAVIS, (PETTINGER, 1998, p.11). Ambos privilegiavam a forma de 1959). No seu estilo direto, Miles Davis afirmou “porque miniaturas e preferiam nuanças sutis ao invés das grandes estávamos com a cabeça em Ravel (especialmente seu intensidades, das dinâmicas fortes. O foco na melodia Concerto para a mão esquerda. . .) e Rachmaninoff. . . era também ponto pacífico. Ambos eram experts nas tudo aquilo estava no ar, em algum lugar” e “Estávamos heranças musicais que escolheram: Ravel em Couperin, com aquela tendência – como Ravel, tocando uns sons Mozart e Mendelssohn; Evans em Chopin e Ravel. Ambos somente com as teclas brancas” (DAVIS & TROUPE, 1989, eram indivíduos sensíveis para quem a música oferecia p.224-225). De fato, no riff de abertura de All blues, a uma saída emocional não verbal. figura inicial no contrafagote do Concerto para a mão esquerda (RAVEL, 1931) é adotada e adaptada: temos Reciprocamente, como ávidos leitores que eram, ambos aqui a natureza camaleônica do jazz em ação. Entretanto, valorizavam a palavra escrita: Ravel preferindo Marcel esta obra de Ravel não é, estritamente, um produto do Proust, Stéphane Mallarmé e Edgar Allan Poe; Evans impressionismo, como percebia Evans, mas um produto preferindo Thomas Hardy e William Blake. E a própria neoclássico do entre guerras, estilo que foi influenciado palestra Contemporary Music de Ravel, proferida por pelo jazz mais antigo e pela música de George Gershwin. ocasião de sua turnê norte-americana na primavera de 1928, fornece um conjunto de princípios que relacionam No modo de Mi menor, RAVEL (1931, c.2-3) apresenta as música erudita e jazz e que pode funcionar na direção notas Mi – Fá # – Mi – Sol em ritmo pontuado, iniciando oposta (jazz e música erudita) para testar a prática de com uma anacruse de semicolcheia. Então, expande a Evans, como pretendo mostrar nos estudos de caso. figura ascendentemente. Por seu lado, depois do Sol Cada obra de arte, atrás da qual há uma fonte confiável, inicial, o riff de Evans e Davis explora as notas Ré – Mi inicialmente “adota” parte deste material e o submete a – Ré - Fá, o que é uma transposição do fragmento de uma “estilização imediata” – ou mesmo “manipulação”, Ravel uma 2a menor abaixo, o que é equilibrado por uma transformando-o em um novo ambiente que abarca linha descendente até o Sol grave (Ré – Mi – Ré –Sol). “características nacionais” e “individualidades”(RAVEL, De fato, este último padrão também corresponde a um 1928, p.140) gerando, assim, originalidade. O próprio trecho da Sonata pra violino e piano (RAVEL, 1927) – Ravel disse em outra ocasião: “Se você tem algo a dizer, c.8-9 – do movimento “blues”: Mib – Fá – Mib – Láb. esse algo nunca surgirá com mais distinção do que na Além disso, o material de Evans na introdução de quatro infidelidade não intencional a um modelo” (MAWER, compassos compreende um tremolo oscilante entre as 2000, p.56). O que não significa, de forma alguma, uma notas Sol e Lá, no qual outra conexão raveliana (desta criatividade de segunda categoria. vez, impressionista) está implícita: “Um bom número de

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suas canções começava com breves introduções etéreas, com 7ª (Dó, Mi, Sol, Si) e Sol com 11ª (Sol, Si, [Ré], coloridas por ondulações delicadas e pontilhistas. Era Fá, Lá, Dó) constituem um duplo empréstimo. Primeiro, uma marca de Evans, talvez pensando no pianíssimo Evans revisitando sua própria obra. Segundo, esta de flautas, clarinetas e harpas do Daphnis and Chloe de progressão em Peace piece foi, por sua vez, tomada por Ravel” (PETTINGER, 1998, p.144). empréstimo de Some other time de Leonard Bernstein. Peri Cousins Harper, namorada de longa data de Evans, É discutível se a similaridade do motivo do contrabaixo que lembra como ele cruzava ou “derivava” de uma música inicia o sujeito da fuga em A Criação do mundo (MILHAUD, para outra (PETTINGER, 1998, p.68), o que justifica 1923) nessa relação seria ainda maior. Depois de um Ré esta fluidez e interpolação. A improvisação de Evans inicial, Milhaud utiliza o mesmo fragmento melódico: Ré – em Flamenco sketches, com seus arpejos sincopados Mi – Ré – Fá [Ré] e, expande a ideia por meio da 3a blues: ondulantes em Sol levando a trechos mais intricados, Ré – Mi – Ré – Fá # / Fá natural – Ré (MILHAUD, 1923, também faz referências a Peace piece, na qual este Ex.11 -1). Por sua vez, cada uma destas figuras se relaciona mesmo procedimento sinaliza arrefecimento. com The Man I love de Gershwin. Todos compartilham este motivo de quatro notas – um tipo de paradigma - 4 - Estudo de caso N.2: Peace piece identificado pelo crítico veterano André HODEIR (1958, No segundo estudo de caso: Chopin, Messiaen e Peace p.254) como “favorito dos compositores ‘inspirados’ pelo piece de Evans, demonstro uma relação fonte-produto jazz”. E, assim, o ciclo continua. . . quando DAVIS (1989, mais aguda em relação a CHOPIN (s.d.) e um paralelo p.225) comenta que o modalismo das teclas brancas é com potencial de interseção em relação a MESSIAEN a resposta para muitas coisas, enquanto que os ritmos (1964). PETTINGER (1998, p.69) identifica a Berceuse pontuados ou swingados são traços comuns. Op. 57 em Ré b maior de Chopin, composta por volta de 1844, tanto como “a peça para piano que Evans conhecia A dívida de Evans com Ravel é também evidente no bem” quanto uma “clara precursora” de Peace piece, seu longo solo em All blues, novamente recorrendo ao faixa do disco Everybody digs Bill Evans (EVANS, 1958). modalismo das teclas brancas – por volta de 8’26’’ da Ele também questiona: “sabemos que [Evans] era um gravação (DAVIS, 1959). Sua melodia melancólica no entusiasta de Scriabin, mas será que sabia que o Catálogo modo Dórico em Sol (DAVIS, s.d.; veja letra D, c.1-10) dos pássaros [1956-1958] de Olivier Messiaen acabava de guarda semelhança com o solo no primeiro movimento do aparecer?” (PETTINGER , 1998, p.69). Embora o biógrafo Concerto para piano e orquestra em Sol de RAVEL (1932, de Evans simplesmente responda que isso “não interessa”, Ex.4 +2), no qual sua 3ª menor expressiva, mais a 7ª quero considerar essa pergunta e examinar os materiais e abaixada, que é um gesto reminiscente da bela cantilena suas relações para chegar a algumas conclusões. do Concerto para a mão esquerda (RAVEL, 1931, Ex.9 -3). O andamento mais rápido e a sensação de urgência em All A Berceuse de Chopin é baseada em “um ostinato de blues são sinais de como a resposta eclética de Evans se dois acordes na mão esquerda o qual, assim com em torna “individualizada”. Os blocos harmônicos de Evans na Peace piece, não varia até chegar a uma cadência final” segunda inversão, com as notas Ré – Mi – Fá na linha do (PETTINGER , 1998, p.69). Embora Pettinger esteja tenor, combinados com os ritmos longos-curtos swingados correto, há alterações sutis na segunda metade de (DAVIS, s.d.; veja letra D +1), podem ser ouvidos como cada compasso dignas de nota. E Evans também cria uma adaptação da entrada do piano no Concerto para pequenas mudanças. O efeito da melodia sobre o baixo a mão esquerda (RAVEL, 1931, Ex.4 +3), que apresenta é criar novas inflexões harmônicas, como a superposição tríades em segunda inversão combinadas com acordes de expressiva das notas Lá b – Lá natural sobre a nota Sol: sétima em ritmos pontuados como uma variação da figura Evans enfatiza a função dominante com 9ª (Sol – Si – do contrafagote inicial (estes blocos de acorde de tríades Ré – Fá – Lá b /Lá natural). Outra similaridade: ambos em segunda inversão também ocorrem na segunda valsa Chopin e Evans introduzem suas melodias depois de das Valses nobles et sentimentales (RAVEL, 1911) a partir várias ocorrências do ostinato (podemos até ir além e do c.25, no qual o andamento lento, as baixas dinâmicas propor uma referência, uma triangulação: enquanto que e a expressividade são congruentes tanto com a própria a peça de Evans é definitivamente em 4/4, o efeito do prática de Evans quanto de sua atitude de privilegiar o padrão de mão esquerda seguido pela cantilena lenta e impressionismo francês). Este padrão rítmico-harmônico expressiva inevitavelmente nos leva a uma associação de semelhança surpreende mais ainda, mais à frente, com o início do movimento ternário e lento do Concerto no solo de Evans (Davis, s.d.; veja letra D +16), no qual para piano em Sol de Ravel. efetivamente “amplifica” Ravel em uma série de acordes de 9ª, repetidos em figuras pontuadas: Fá – Lá – Mi – Sol, Para (PETTINGER , 1998, p.69), na Berceuse, “a linha da depois Sol – Si –Fá – Lá e, depois, Lá – Dó – Sol – Si. mão esquerda começa com simplicidade e, a cada dois ou quatro compassos, introduz uma ideia ornamental Provendo uma ligação com o segundo estudo de nova.” Mas ele não menciona que a peça de Chopin é caso, é sabido que uma característica fundamental de um tema com variações. Evans também lança mão de Flamenco sketches foi iniciativa do próprio Evans, e variações com frequência, geralmente trabalhando com remonta a Peace piece. Os acordes alternantes de Dó “respirações” de dois compassos, agrupadas como seções

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de oito compassos. De fato, o ostinato à parte, Evans Podemos encontrar, em Evans, traduções equivalentes alegava que sua peça tinha “uma forma completamente das notas repetidas ornamentadas do Catálogo dos livre” (PETTINGER, 1998, p.69). Um gesto melódico pássaros (MESSIAEN, 1964). Na primeira peça, chamada realmente semelhante diz respeito aos vários Lás bemóis Le chocard des alpes [Gralha alpina], por exemplo, o c.1 precedidos de ornamentos superiores de oitava nos c.15- na p.4 diz respeito às sextinas de fusas reiteradas ao redor 18 da Berceuse de Chopin e os vários Sóis precedidos de Lá b – Ré – Lá natural. Mais ainda, podemos traçar um pelos ornamentos superiores de sétima maior (Fá # – Sol), paralelo entre o andamento relaxado da segunda peça a 11 compassos do final da Peace piece de Evans (AIKIN, de Messiaen – Le loriot [Papa-figos] – e Peace piece, e 1980, p.49). A versão da sétima maior de Evans – Fá #, Sol o mesmo com as alternâncias entre explosões melódicas – poderia ser percebida como um erro de leitura gritante e notas sustentadas, os contrastes de dinâmicas (a ou, no sentido bloominiano (BLOOM, 1973), reescrevendo alternância de andamentos e as caracterizações [dos a história (podemos ouvir uma correspondência ainda pássaros] que estão presentes também na oitava peça de com o Mov. II das Valses nobles, mencionada acima: a Messiaen L’alouette calandrelle [Cotovia de dedos curtos]. linha superior de Ravel a partir do c.25 apresenta notas Assim como Evans, Messiaen gostava do registro agudo Dó reiteradas, precedidas por apojaturas de mesma nota). extremo: na evocação ornamentada de Le Loriot ele utiliza trinados (c.1 na p.2). Por outro lado, o melro da canção Apesar de pequenas diferenças, a dimensão da paridade canta, para o ouvinte, sétimas maiores e nonas menores, se aplica aqui: (1) o andamento; (2) a sensação de calma; como Si b – Lá; e Mi b – Mi natural (p.3, c.4-10), ambos (3) o ostinato harmônico básico I – V; (4) o emprego os intervalos comparáveis aos intervalos da improvisação de variações; (5) o registro agudo do piano; (6) as de Evans, como Mi b – Mi natural; Ré # – Ré natural; e Fá escalas; (7) os arpejos; (8) os trinados; (9) a aumentação # – Sol (AIKIN, 1980, p.49). Messiaen emprega 5as sem as rítmica na coda; e (10) o diminuendo no final. Tudo isso terças no baixo do começo ao fim em Le loriot, ao passo significa que, ao invés da canção de ninar de Chopin ser que a peça de Evans termina exatamente desta maneira apenas um “precursor”, poderíamos considerá-la como (veja descrição abaixo). Além disso, a terceira peça Le um modelo conceitual e formal para Evans. Em outras merle bleu [Melro azul], apresenta um Très lent com a palavras, há mais constância do que transformação, seguinte designação “souvenir du merle bleu” (p. 24, c.11), embora em um contexto inteiramente novo. Da mesma que compartilha da mesma atmosfera de amplidão da forma, a observação pertinente de que “em performance. coda e das harmonias quartais de Peace Piece. . . [a Berceuse] deveria soar como uma improvisação escrita” (PETTINGER, 1998, p.69), nos autoriza a dar Claro que há diferenças bastante salientes, em relação um outro passo: enquanto que Evans tem um ganho a às quais não cabe um julgamento de valor. Ao contrário, partir de Chopin, podemos observar que, na direção cada criador tem sua individualidade. As próprias obras oposta, além do seu status convencional de compositor, existem em escalas bastante diferentes: se uma é uma Chopin também era um improvisador. Suas variações grande coleção de muitos volumes, a outra é um exemplar virtuosísticas habitam o reino entre a composição e a único de uma miniatura improvisada (ou talvez duas do performance quase espontânea. tipo), que dura apenas 6’43”. As texturas de Messiaen são mais movimentadas e mais complexas do que as de Em uma segunda camada, relacionando Peace piece ao Evans. Evans preserva um sentido mais forte de melodia Catálogo dos pássaros de Messiaen, PETTINGER (1998, acompanhada, uma prática que é, ironicamente, mais p.69), percebe “muitos cantos de pássaros incorporados ao típica do Classicismo. Finalmente, há uma literalidade no ápice do arco de Evans, no qual a textura bitonal cintila à Catálogo dos pássaros que é específico – quase científico maneira do mestre francês”. Esta é uma avaliação honesta, – do pássaro que está sendo evocado. Por contraste, a mas seria muita ingenuidade forçar o argumento de uma concepção de Evans é muito mais livre e, nesse sentido, influência direta. Estritamente falando, a improvisação de mais imaginativa. Evans é bimodal e, ocasionalmente, polimodal: enquanto o baixo está em Dó (obedecendo, assim, aos próprios De fato, na sua dimensão espiritual interna e mais princípios tonais de Evans, mencionados anteriormente), ampla, há uma afinidade de Evans com a abordagem a melodia invoca um modalismo muito mais ampliado de um compatriota de Messiaen: André Jolivet, cuja e fluido. Podemos identificar os modos Jônico, Lídio, de modernidade de sua La princesse de Bali, (JOLIVET, 2002; tons inteiros, cromático, além de um modalismo com uma das cinco peças para piano de Mana, de 1935), inflexão do blues, a exemplo das inflexões Mi/Ré # e Lá # conclui com um gesto de ampliação harmônico-espacial /Si que ocorrem nos c.14-17 antes do final (AIKIN, 1980, (c.34-35) notavelmente similar àquele dos últimos quatro p.49, c.60-65). Do meio da peça para frente, a paleta de compassos de Peace piece (AIKIN, 1980, p.49). Os trechos dissonâncias de Evans torna-se mais picante do que é de ambas as peças equilibram o gesto arpejado que normal ao seu estilo. Entretanto, as texturas cristalinas desce do registro do soprano ao registro do baixo com em meio aos sons de sinos em forma de cascata (que um gesto ascendente que traz sonoridades de sinos, que alguém poderia chamar informalmente de efeitos reverberam até terminar em uma pausa. No compasso “impressionistas”), os trinados e as notas ornamentais em final da partitura, Jolivet marcou “comme un gong très destaque à maneira de Chopin são muito relevantes. grave”, cuja sequência de notas muito graves Si b, Sol,

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Dó #, Sol # e Ré # vão desaparecendo. Os dois últimos exemplo, embora a composição do Catálogo de pássaros compassos de Evans cria um efeito semelhante, mas com seja absolutamente contemporânea à criação de Peace ênfase em de intervalos de 4as: Sol – Dó – Fá; depois Lá – piece, o som do canto de pássaro já estava aparente em Dó – Mi; depois Lá – Ré – Sol, antes do fragmento final algumas das músicas anteriores de Messiaen, às quais baseado em 5 as : Dó – Sol – [Ré]. Evans pode ter sido exposto (embora seja improvável que encontremos uma evidência concreta para fundamentar 5 - Conclusão ou refutar esta possibilidade). Não há dúvidas sobre a relevância da música francesa para Evans, cuja força é comparável também à música Metodologicamente, a abordagem flexível advogada por russa para ele. Isto fica evidente não apenas em dados RAVEL (1928, p.140) em Contemporary Music se mostrou da literatura biográfica, confirmados pelos pontos de aplicável ao ecletismo de Evans. Os pontos que realmente vista do próprio Evans, mas que também se somam às tem uma fonte identificável fazem parte da “adoção” e observações de sua prática, as quais procurei mostrar “estilização”, refletindo graus diversos da transformação na breve análise deste texto. Ao investigar o papel colorística de Ravel dentro de novos contextos artísticos. 1 desta música francesa na arte do improviso de Bill Mas, como lembra Chuck ISRAELS (1985, p.110-111), o Evans, procurei enfaticamente não me adentrar em estilo de Evans nunca soa artificial ou construído: “as nenhum tipo de competição; as palavras de Gene LEES ideias eram filtradas por ele e emergiam com profunda (1997, p.441) são de uma advertência salutar: “Em jazz. convicção. . . tudo era sintetizado em um estilo integrado”. . . você escuta a expressão do indivíduo”. Mas, embora Enquanto que o raciocínio de BLOOM (1973), que está respeitemos a individualidade, nenhum de nós existe centrado na ideia de uma leitura errônea da história, tem em um vácuo cultural, pois o indivíduo é parcialmente sido considerado de pouca e limitada (hermeneuticamente definido como referência ao “outro”. Concluo que a falando) aplicabilidade, defendo que a abordagem geral investigação de cruzamentos culturais e de gênero entre de Evans é, notoriamente, como um “abraço de inclusão” a música francesa e a música de Evans nos revela uma da história cultural, mais generoso, como advogado por rica rede de influências que, nesses estudos de caso, ELIOT (1951) em Tradition and the individual talent. destaco Ravel, Chopin, Messiaen e Jolivet. É interessante notar, nesses pelo menos, que há menos evidências do Assim, o repertório musical francês se revelou como um impressionismo que o próprio Evans aludiu, embora importante catalisador modal e textural, especialmente efeitos de um impressionismo, no sentido mais informal, nos momentos mais introvertidos de Evans, como em Peace sejam evidentes. Alguns exemplos de paralelismo, com piece. Além do que mostram os estudos de caso de 1958- pontos de interseção hermenêuticos, foram apresentados. 1959, pode-se dizer que o interesse duradouro de Evans pela Não obstante a problemática de estabelecer causalidade, música francesa é comprovado por suas últimas gravações outros exemplos específicos nos quais há fundamentação embora, enquanto atividade comercial, seus arranjos da documentária suficiente podem ser considerados como música de Fauré e Chopin para trio de jazz e orquestra respostas ecléticas do tipo fonte-produto, envolvendo a (EVANS, 1965) caminhem em outra direção. Essa associação transformação de materiais musicais. com os eruditos franceses melhorou o status de Evans na Europa – para não dizer também nos Estados Unidos, onde Passível de discussão, a conexão entre o Concerto para ele tinha de lutar tanto com o fato de ser branco e, não raro, a mão esquerda de Ravel e o All blues de Miles Davis/ de ser considerado afeminado – expandindo potencialmente Bill Evans (Estudo de caso N.1) envolve um efeito sua penetração no velho continente. Nesse sentido, fonte-produto duplo uma vez que, em primeiro lugar, testemunham, por exemplo, as belas e curiosamente literais a figura inicial do primeiro provavelmente emergiu dos performances de suas improvisações, incluindo Peace primórdios do jazz. Peace piece (Estudo de caso N.2) piece, gravada pelo renomado pianista francês Jean-Yves avança esta ideia com uma engenhosa triangulação: THIBAUDET (1997). Finalmente, é intrigante que uma antiga Evans, Chopin e Bernstein – à qual acrescentamos música francesa tenha sobrevivido e se reconfigurado – à Messiaen e Jolivet – com algumas relações bem claras, maneira do camaleão – dentro de um novo contexto do jazz ou fechadas; outras mais ambíguas, ou abertas. Por modal do pós-guerra.

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Bibliografia adicional BRUBECK, D. 1959: The beginning of beyond. In: The Cambridge companion to jazz (Eds. M. Cooke e D. Horn). Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p.177-201. GRIDLEY, M. Jazz styles: history and analysis. 4a ed. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1994. KAHN, A. Kind of Blue: the making of the Miles Davis masterpiece. Londres: Granta Books, 2000. KERNFELD, B. Improvisation. In: What to Listen for in Jazz. New Haven: Yale University Press, 1995, p.119-158. ______. Miles (Dewey, III), Davis. In: The New Grove dictionary of jazz. 2a ed. (Ed. B. Kernfeld). Nova Iorque: Oxford University Press, 2002, v.1, p.573-577. LEES, G. Meet me at Jim and Andy’s: jazz musicians and their world. Oxford: Oxford University Press, 1988. MURRAY, E.; KERNFELD, B. Bill Evans (ii). In: The New Grove dictionary of jazz. 2a ed. (Ed. B. Kernfeld). Nova Iorque: Oxford University Press, 2002, v.1, p.723- 726. SHADWICK, K. Jazz: legends of style. Londres: Quintet Publishing, 1998. SHIPTON, A. A New history of jazz. Londres: Continuum, 2002.

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Transcrições adicionais MEHEGAN, J. Contemporary piano styles: Jazz Improvisation IV. New York: Watson- Guptill Publications/Simon and Schuster, 1965. OLSEN, D. C.; ROED, T. (Eds.). The Artistry of Bill Evans. Transcrições de P. Wetzel, apresentação de C. Blancq. Miami: CPP/ Belwin/Warner Bros. Publications, 1989.

Gravações adicionais EVANS, B. New jazz conceptions (CD Riverside 223). Riverside, 1956. ______. Peri’s Scope. In: Portrait in Jazz (CD Riverside 1162). Riverside, 1959. RUSSELL, G. The Jazz workshop (CD LPM 2534). RCA Victor, 1956.

Website EVANS, B. www.billevanswebpages.com

Nota 1 Charles H. “Chuck” Israels (nascido em 1936) foi o contrabaixista de Bill Evans no período de 1961 a 1966. Também compositor e arranjador, é também conhecido por seu trabalho pioneiro como Diretor do National Jazz Ensemble de 1973 a 1981.

Deborah Mawer, Professora Senior da Universidade de Lancaster, Inglaterra, e há muito tempo interessada nas interações entre a música francesa e os primórdios do jazz e blues, publicou quatro livros sobre a música francesa do século XX. Seu livro Darius Milhaud: Modality and Structure in Music of the 1920s (1997) apresenta um estudo de caso sobre o balé inspirado no jazz, La Création du monde. Já o livro Ravel Studies (2010) inclui o capítulo Crossing Borders: Ravel’s Theory and Practice of Jazz. O artigo “Parisomania? Jack Hylton and the French Connection” foi publicado no Journal of the Royal Musical Association (2008), enquanto que “Jazzing a Classic: Hylton and Stravinsky’s Mavra at the Paris Opéra” foi publicado no periódico Twentieth-Century Music (2009). No seu projeto atual, French Music in Conversation with Jazz, discute duas interações entre a música erudita e o jazz: primeiro, a música francesa do entre-guerras e os primórdios do jazz; segundo, o impacto da música francesa no jazz modal da década de 1950. O presente artigo, publicado em Per Musi é um texto em processo sobre o segundo tema. Publicou também os livros The Cambridge Companion to Ravel (2000) e The Ballets of Maurice Ravel: Creation and Interpretation (2006). Entre os periódicos que publicaram seus artigos estão o Journal of the Royal Musical Association, Twentieth-Century Music, Music and Letters, Journal of Music Theory, Music Theory Online, Opera Quarterly, French History e o British Journal of Music Education.

Fausto Borém é Professor Titular da UFMG, onde criou o Mestrado e a Revista Per Musi. Pesquisador do CNPq desde 1994, publicou dois livros, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia da música popular e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e recitais nos principais eventos nacionais e internacionais de contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor.

14 EVANS, B. Partitura de Peace piece, para piano solo de Bill Evans. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.15-20.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 10/04/2012 - Aprovado em: 04/01/2013 15 EVANS, B. Partitura de Peace piece, para piano solo de Bill Evans. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.15-20.

16 EVANS, B. Partitura de Peace piece, para piano solo de Bill Evans. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.15-20.

17 EVANS, B. Partitura de Peace piece, para piano solo de Bill Evans. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.15-20.

18 EVANS, B. Partitura de Peace piece, para piano solo de Bill Evans. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.15-20.

19 EVANS, B. Partitura de Peace piece, para piano solo de Bill Evans. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.15-20.

20 MURRAY, J. W. (Bill). O Jazz de Bill Evans: formação, influências, obras e estilo composicional. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.21-34.

O Jazz de Bill Evans: formação, influências, obras e estilo composicional

J. William Murray (Towson University, Towson, EUA) [email protected]

Tradução de Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Resumo: Estudo estilístico sobre a música do compositor e pianista norte-americano Bill Evans. Inclui um contexto sobre os pianistas, compositores (eruditos e populares) e o teórico do jazz George Russell, que marcaram sua formação musical. A análise de 19 obras selecionadas de Bill Evans revela características estilísticas relacionadas ao estilo/andamento, métrica, tonalidade, forma, duração, ritmo harmônico, linguagem harmônica e outros detalhes relevantes.

Palavras chave: ecletismo de Bill Evans; hibridismo em música; música francesa e jazz modal jazz; transformação e improvisação musical; influência entre música erudita e popular.

Bill Evans’s jazz: background, influences, works and compositional style

Abstract: Style study on the music of American composer and pianist Billy Evans. It includes a historical context on pianists, composers (both popular and classical) and the jazz theorist George Russell who influenced his music. The analysis of 19 selected works of Bill Evans. reveals traits related to style/tempo, time signature, tonality, form, length, harmonic chord pace and harmonic language and some other relevant details.

Keywords: eclecticism of Bill Evans; hybridism in music; French music and modal jazz; music transformation and improvisation; influence between classical and popular music.

1 – Introdução Compositores de diversos estilos musicais são sobre a música de Bill Strayhorn no número 29 de influenciados pelo sons que ouvem. Entre esses que de Per Musi). Mas porque sou atraído por esses compositores? fato ressoam dentro deles, alguns elementos musicais Porque aprecio ouvi-los? Porque gosto de tocá-los ao aparecerão em sua música. Além desta influência por piano? Essas têm sido questões que procuro responder meio do processo de escuta, elementos musicais de (MURRAY, 2011). outros compositores são absorvidos ao se estudar uma obra, analisá-la ou transcrevê-la. Mais do que isso, a Nesse estudo, proponho levantar as características consciência sobre os procedimentos composicionais e composicionais de Bill Evans. Para isso, considero fundamentos teóricos aí envolvidos pode se refletir na apenas as composições de que apareceram legalmente música que o compositor influenciado escreve ou arranja. publicadas, especialmente no Bill Evans Fake Book de Pascal WETZEL (2003), que traz 55 obras. Parte integral Devido à junção de todos esses fatores, e de outros do repertório do jazz, essas são músicas que os amantes que não são pertinentes no escopo desse estudo, não e estudiosos do gênero, como eu, ouviram ao longo dos é muito fácil determinar com precisão a presença de anos. Fake books são também as fontes primárias para um compositor na música de outro. Entretanto, quase se tocar essas composições ao piano que ressoam em sempre os compositores são capazes de nomear alguns milhões de pessoas. nomes mais importantes dentre os que os influenciaram. No meu caso, há dois compositores: Bill Evans (1929- Evans não foi prolífico e deixou cerca de 60 obras. 1980) e Billy Strayhorn (1915-1967), cujas composições Uma das lendas da história do jazz, ele se tornou mais particularmente ressoam em mim (veja estudo estilístico conhecido por suas performances ao piano do que por

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 10/04/2012 - Aprovado em: 04/01/2013 21 MURRAY, J. W. (Bill). O Jazz de Bill Evans: formação, influências, obras e estilo composicional. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.21-34.

suas composições. Seu estilo pianístico influenciou e EVANS, 2004). O performer, compositor e educador de muitos pianistas e certamente teve um impacto no jazz Harold Danko diz que modelo de som que valorizo e admiro. Entretanto, muito embora Evans tenha influenciado minha maneira “Em nenhum lugar podemos aprender mais sobre a linguagem de tocar, não incluirei suas práticas de performance musical de Bill Evans do que nas suas próprias composições. . . podemos aprender como ele chegou ao conteúdo musical por na minha análise no presente artigo, me restringindo meio do processo de composição. . . ao longo dos anos, ele utilizou apenas aos seus aspectos composicionais, verificados suas próprias composições como veículos para improvisação; em 19 obras selecionadas (veja Exs.1 e 2 abaixo). e a presente geração pode seguir seus passos investigando sua importante produção como compositor” (WETZEL, 2003). 2 – A formação de Bill Evans Considerado um dos pianistas de jazz mais importantes 3 – Influências sobre Bill Evans de todos os tempos, Bill Evans mudou a maneira de O estilo composicional é influenciado diretamente pela tocar piano no jazz, influenciando pianistas como Herbie formação da pessoa e a música com que tem contato, o Hancok, Chick Corea, Keith Jarret, Hapton Hawes, Steve que foi o caso de Bill Evans. Nascido em Plainfield, New Khun, Alan Broadbent, Denny Zeitlin, Paul Bley, Michel Jersey em 1929, Bill Evans começou a estudar o piano Petrucciani e muitos outros. Gene Lees (FEATHER e aos seis anos. Mais tarde, estudou também o violino GILTER, 1999, p.214) o considerou a maior influência e a flauta, mas sempre foi mais interessado no piano pianística de sua geração, especialmente pela sua nova (BIOGRAPHY RESOURCE CENTER, 2008). Por volta dos abordagem da sonoridade e da harmonia. Para James cinco anos, Evans costumava ouvir as aulas de piano Lincoln COLLIER (1978, p.393), Evans representa a maior de seu irmão Harry e podia repetir a música que ouvia. influência entre os pianistas desde a década de 1960: Com isso, conseguiu ter suas próprias aulas e passou “[Evans mudou] a linguagem do piano no jazz moderno, a praticar o piano por até três horas por dia, como incorporando procedimentos harmônios derivados dos observa Peter PETTINGER, seu biógrafo em How a heart impressionistas franceses, forjando um estilo coletivo sings (1998, p.11). conhecido pelo contraponto ao mesmo tempo rítmico e fluido” (TEACHOUT, 1998, p.46). Por volta dos sete anos, Evans começou a tocar o violino. Embora não fosse seu instrumento favorito, Quando o pianismo de Evans aparece em uma esta experiência pode tê-lo ajudado a desenvolver o discussão sobre jazz, duas questões que geralmente estilo cantabile no piano pelo qual se tornou conhecido vem à tona são seu estilo lírico e sua abordagem (PETTINGER, 1998, p.11). Nas notas da capa de seu harmônica. Sua sonoridade única tornou-se diferente disco Bill Evans: the complete Riverside Recordings, ele do que predominava em um período no qual o bebop diz: “Acima de tudo, quero que minha música cante. . reinava. Mesmo hoje, Evans é citado como um modelo . deve passar aquela sensação maravilhosa do cantar” pelos críticos de gravações de piano do jazz atual. É (WILLIAMS, 1984). muito comum o comentário no qual o pianista que está sendo avaliado mostre influências de Bill Evans. Dos 6 aos 13 anos, Bill Evans estudou o repertório Alguns dos trios de Bill Evans estão entre os melhores do piano erudito, mas sem consciência de como a trios de jazz de todos os tempos. Ele e seus colegas música era construída. Ganhou medalhas de ouro em de trio mudaram a natureza desta formação para algo competições tocando Mozart e Schubert. Desenvolveu de fato coletivo, ao contrário de uma formação em o gosto por Delius, Debussy, Satie, Ravel, Grieg, que se ouviam papéis bem delimitados para o piano, Rachmaninoff e Chopin (SHADWICK, 2002, p.50). Nessa o contrabaixo e a bateria. O que hoje se tornou algo época, continuou a desenvolver sua habilidade de mais comum foi algo inteiramente novo na época em leitura à primeira vista tocando rigorosamente as notas que Evans começou a fazê-lo. escritas na partitura. Por volta dos 12 anos, começou a tocar, com seu irmão, numa banda para ensaios de Além de grande pianista, Evans também foi um grande aulas de dança na escola. Ali começou a descobrir o compositor, embora muitos desconheçam esse fato, o idioma do jazz, substituindo acordes para mudar a que contribui para que não seja devidamente estudado harmonia. Sua habilidade de leitura à primeira vista ainda. Os livros, teses, dissertações e artigos sobre lhe abriu muitas portas na região de Plainfield. Nessa Evans tem tratado mais de seu estilo de performance e época também começou a se interessar pelas formas improvisação, mas não de seu estilo composicional. musicais e procedimentos composicionais. Sozinho, passou a reduzir harmonicamente as composições que O objetivo de uma composição de jazz é preparar o palco lhe interessava (PETTINGER, 1998, p.12-13). para a improvisação que se segue ao tema e, por isso, é sinônimo de improvisação e não de realização de notas Ao terminar a high school, Evans recebeu uma bolsa escritas. Evans escreveu canções como precursoras para estudar música no Southeastern Lousiana College, de improvisações, mas ao mesmo tempo, acreditava localizado a 80 Km de New Orleans, passo que foi crucial firmemente que a improvisação era altamente na formação do seu estilo. No início da década de 1940, dependente do que o tema original tinha a dizer (EVANS o estilo bebop estava surgindo em Nova Iorque, estilo

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ao qual Evans não se expôs, devido à sua idade. Ao se e performances. Em 1966, Evans e seu irmão Harry mudar para longe de casa para estudar música, Evans prepararam um documentário sobre a natureza da ficou reservado o suficiente para desenvolver um estilo música, jazz e improvisação (EVANS e EVANS, 2004). único, sem se deixar influenciar em demasia pelo bebop, Para ele, o renascimento da música dos séculos XVIII estilo que estava predominando nos grandes centros do e XIX seria o jazz, pois a improvisação havia sido um país (PETTINGER, 1998, p.13). procedimento comum para mestres como Bach, Mozart e Chopin. Ele lamentava que a improvisação tivesse Na faculdade Southeastern Lousiana College, Evans se desaparecido à medida que mais importância foi concentrou no repertório erudito de piano, como mostra dada à música escrita. Evans sentia que esses grandes o programa de seu recital senior (Ex.1). Nessa época compositores gostavam da liberdade da improvisação e conviveu com incluiu sonatas de Mozart e Beethoven, a sensação de liberdade foi uma das razões pelas quais bem como obras de Schumann, Rachmaninoff, Debussy, ele se inclinou para o lado do jazz, ao invés de se tornar Ravel, Gershwin, Villa-Lobos, Khachaturian, Milhaud um pianista de concertos eruditos. Entretanto, nunca (PETTINGER, 1998, p.16), J. S. Bach, Chopin, Stravinsky e abandonou suas raízes eruditas. Scriabin (BIOGRAPHY RESOURCE CENTER, 2008). Na mesma época em que Evans estudava a música dos grandes compositores no Southeastern Lousiana College, também tocava regularmente em New Orleans e vizinhanças com seu trio chamado Casuals (SHADWICK, 2002, p.51). Tocava e escutava uma música bastante diferente da que aprendia na faculdade. Depois de servir ao exército por três anos e ficar um ano em casa estudando, decidiu, em 1955, entrar para a Mannes School of Music em Nova Iorque para estudar composição, pois sentia que não havia aprendido ainda o suficiente. Nessa época, procurava também tocar jazz em todas as gigs possíveis. Assim, todo o tempo, Evans se expôs e realizava música de um variado leque de tradições musicais que está intimamente ligado ao desenvolvimento de seu estilo pessoal.

Não foram apenas os compositores eruditos que influenciaram sua performance e estilo composicional. Como ouvinte inveterado, absorveu na sua música muito daquilo que estava exposto no próprio mundo do jazz. Em uma entrevista para a revista francesa Jazz Times, ele disse:

Ex.1 – Programa do recital senior de Bill Evans no “De Nat ‘King’ Cole pego o ritmo e a economia; de Dave Brubeck, Southeastern Lousiana College (NETHERCUTT, 1989, p.5). um voicing particular; de George Shearing também um voicing, mas de outro tipo; de Oscar Peterson, o swing poderoso; de Earl Hines, o sentido estrutural. Bud Powell é completo, mas mesmo Seu estudo de música erudita foi amplo e diverso, o qual dele eu não pegaria tudo” (DOERSCHUK, 2001, p.146). lhe permitiu desenvolver uma excelente técnica, o que ficou aparente em toda a sua carreira com jazzista. Mas A maior influência pianística de jazz sobre Evans foi Nat sempre colocava essa bagagem a favor do conteúdo “King” Cole, por cujo pianismo, abordagem melódica, musical e nunca como mero virtuosismo. Tocar a música clareza, frescor de ideias e sonoridade se apaixonou de Bach, ele afirmava, lhe permitia ter mais contato com (PETTINGER, 1998, p.15). Outro pianista que teve grande o teclado e controle sobre a sonoridade que o tornaria impacto sobre Evans foi Lennie Tristano. Embora fossem famoso (LYONS, 1983, p.226). Evans sempre foi adepto à diferentes sob muitos aspectos, Evans se identificou com ideia de trazer as técnicas da música ocidental europeia a abordagem lógica e construção sonora de Tristano. para o jazz. Elementos de Bach, Chopin, Debussy e Ravel Como ele, Evans precisava de uma base organizada são perceptíveis na sua escrita (La VERNE, 1990, p.8). para estruturar sua música, pois queria compreender No jazz, tornou-se hábil na reutilização de sutilezas teoricamente a estrutura de sua música (Mc PARTLAND, harmônicas de um leque variado de compositores: das 1978). Entre outros pianistas de jazz que influenciaram ambiguidades tonais de Debussy e Ravel até a sutileza Evans estão Horace Silver e Sonny Clark. Todos esses de Satie, das estranhezas de Scriabin até os acordes pianistas representam a ampla fonte na qual bebeu espacializados de Bartók, passando pela bitonalidade de Evans. Mas ele aprendeu também com jazzistas não- Milhaud (SHADWICK, 1960, p.64). pianistas com os quase tocava ou escutava, como Miles Davis, Dizzy Gillespie, Charlie Perker e Stan Getz As características e técnicas que aprendeu na música (PETTINGER, 1998, p.15). Evans gostava de dizer que erudita se tornaram aparentes nas suas composições uma pessoa é “influenciada por centenas de pessoas e

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coisas, que aparecem no seu trabalho. Se prender a um horas no piano trabalhando-as, ele disse que ambos apenas é ridículo” (SHADWICK, 1960, p. 52). De fato, os pressupostos estavam corretos. Por exemplo, Peri’s aprendeu com todos. scope e My Bells surgiram de repente na sua cabeça e ele as esboçou diretamente em uma folha pautada. Outra grande influência sobre Evans foi George Russell. Outras vezes ele escrevia primeiro a harmonia e, depois, Após se graduar no Southeastern Lousiana College e se a melodia, como foi o caso de Time remembered. Às mudar para Nova Iorque, ele estudou e gravou com Russell, vezes, se assentava ao piano e trabalhava seguidamente, que havia desenvolvido um trabaho teórico chamado The fazendo mudanças até ficar satisfeito, como ocorreu com Chromatic concept of tonal organization for improvisation Turn out the stars e Waltz for Debby. (for all instruments). O conceito é baseado na convicção de Russell de que a escala Lídia com seu quarto grau Evans desenvolveu um estilo particular, próprio, e optou por aumentado, como meio de improvisação, é mais compatível não modificá-lo apenas pela obrigação de uma mudança com a tonalidade da escala maior do que a própria escala estilística. Miles Davis reinventou a si mesmo várias vezes, maior. O mundo melódico e harmônico de Russell foi mas Evans não era assim. Gostava de continuar viajando rapidamente absorvido por Bill Evans (PETTINGER, 1998, nos caminhos que abriu. Uma vez descoberta uma trilha, p.32). Esses conceitos começam a aparecer regularmente não buscava descobrir outros horizontes, mas compreender, nas composições e improvisações de Evans. Um exemplo refinar e explorar seu trabalho dentro daquele estilo é Time remembered, na qual todos os acordes maiores (SHADWICK, 2002, p.79). Evans gostava de tocar e compor contem uma #11 (décima primeira aumentada), indicando aquilo que lhe desse prazer de ouvir. Em uma entrevista a presença da escala Lídia. Outro exemplo é Twelve tone para Marian Mc PARTLAND (1978) na Piano Jazz Series, tune two, na qual todos os acordes são maiores, com ele disse que fazia música para se agradar e aperfeiçoar instruções para o improvisador utilizar o modo Lídio em sua arte. Não se preocupava particularmente em se tornar todos os acordes. Evans disse que Russell compunha peças popular. Se isso fosse acontecer, seria uma decorrência que soavam como improvisações e que, para compreendê- de suas convicções. Esta postura se refere tanto às suas las, era necessário compreender todos os elementos de sua composições quanto às suas performances. McPartland teoria musical (PETTINGER, 1998, p.32). Um dos objetivos resume sua maneira de ser no mundo do jazz dizendo que de Evans era fazer com que sua música soasse espontânea ele “nadava contra a corrente”. (EVANS e EVANS, 2004). Assim, o trabalho teórico de Russell foi um dos pontos de partida para que Evans desenvolvesse Vários fatores são centrais para compreender as sua ideias sobre fraseado, redução harmônica e o papel do composições de Evans. Em primeiro lugar, elas são muito voice leading harmônico que se tornou uma das marcas lógicas (PETTINGER, 1998, p.129). Embora muitos eventos registradas de sua performance e estilo composicional ocorram simultaneamente em suas obras e elas possam (SHADWICK, 2002, p.15). transitar por muitos ou todos os 12 centros tonais, sempre retornam ao ponto de partida. O ouvinte as percebe como 4- A abordagem composicional de Bill Evans obras tonais e certamente não avant-garde, embora as estruturas harmônicas dos acordes sejam quase Embora tenha composto muitas peças e estudado sempre inesperadas. Isso ocorre principalmente devido composição, Bill Evans não se considerava um compositor à uma abordagem planejada das estruturas musicais. profissional, mas um instrumentista que compunha. Em Evans buscava uma compreensão clara e completa do uma entrevista ao locutor de jazz canadense Ted O’Reilley arcabouço teórico do processo harmônico de qualquer em agosto de 1980, disse que em certo momento de sua peça em que estivesse trabalhando (Mc PARTLAND, carreira de músico precisou resolver o conflito entre 1978). Tornou-se famoso por estudar horas e horas as seguir a o caminho da composição ou da performance. estruturas harmônicas dos do jazz que queria Embora gostasse de se dedicar seriamente à composição, standards incluir no seu repertório. Esta mesma atenção à harmonia se sentia mais um instrumentista do que um compositor, ele também revela nas suas composições. Evans precisava porque não escrevia todos os dias (O’REILLY, 1991, p.11). ser analítico para construir suas próprias obras (EVANS e EVANS, 2004). Uma prática muito comum no jazz é A maior parte de suas composições pertence ao universo criar uma nova melodia sobre uma progressão harmônica do jazz, especialmente para a formação do típico trio de de outro compositor. Embora compreendesse bem este jazz (piano, contrabaixo e bateria). Assim, utilizava suas conceito primordial enquanto pianista, Evans nunca composições como ponto de partida para improvisações. utilizou esse recurso como compositor (REILLY, 1993, p.v). Na entrevista mencionada acima, Evans diz que as peças Tudo em suas composições é original e único. em estilos diversos que escreveu enquanto aluno em Mannes não funcionariam no contexto de seu estilo de performance porque não guardavam elementos 5 - O estilo composicional de Bill Evans necessários à espontaneidade de improvisação. A tabela no Ex.2 traz os títulos e os seguintes elementos das 19 obras instrumentais selecionadas de Bill Evans e Como Evans compunha? Em uma entrevista em setembro analisadas no presente estudo: (1) título, (2) gravação de 1975, quando Don BACON (1994) lhe perguntou se mais antiga da peça ou copyright, (3) estilo/andamento, suas composições eram espontâneas ou se ele gastava (4) métrica, (5) tonalidade, (6) forma, e (7) duração. Já

24 MURRAY, J. W. (Bill). O Jazz de Bill Evans: formação, influências, obras e estilo composicional. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.21-34. 52 15 32 12 38 38 24 48 40 48 26 40 80 78 52 40 Nº de compassos Forma Forma livre Forma livre Forma livre A(16) A’(22) A(20) (16) Coda (3) (12) forma livre A(16) B(8) C(16) A(16) B(16) C(20) A(16) B(16) C(16) A(24) B(28) Coda (4) A(24) Coda (8) A(16) B(8) A(8) Coda(8) A(16) A’(16) B(16) C(36) A(16) A’(16) A(32) B(32) C(8) Coda(10) A(16) B(16) Coda(6) (Seções e nº de compassos) a+a+b+b (16) A(16) B(8) C(16) C(4) D(4) A(4) D(24 Valsa) Fá Maior Fá Maior Fá Maior Dó Maior Dó Maior Dó Maior Dó Maior Dó Maior A(12) B(12 valsa) C(12) D(12 Improv (12) 64 Dó Maior Dó Maior Dó Maior Fá Menor Fá Menor Dó Menor Dó Menor Si b Maior Dó Maior / Ré b Maior Tonalidade Mi b Maior 4/4 4/4 4/4 4/4 4/4 4/4 Sol Menor / Dó 4/4 4/4 4/4 4/4 4/4 4/4 4/4 4/4 e 3/4 Livre Swing rápido Blues moderado Swing moderado Swing moderado Swing moderado Straight 8th livre Lento- moderado Balada moderada Balada moderada Balada moderada Balada moderada 4/4 e 3/4 Balada moderada Up Swing moderado Up Swing moderado Estilo ou andamento Métrica Swing rápido moderado 4/4 Ex.2 - Tabela com os títulos e elementos básicos das 19 peças selecionadas de Bill Evans. Ex.2 - Tabela 1971 de jazz moderada Valsa 3/4 1958 1979 1956 1962 1979 1966 1959 1966 1962 1962 1974 1962 1962 1978 1966 1962 de jazz moderada Valsa 3/4 1962 1956 de jazz moderada Valsa 3/4 a 1 1ª gravação ou copyright Peça Epilogue Bill’s hit tune Bill’s Funkallero Interplay Laurie (The Dream) you) Orbit (Unless it’s Peri’s cope Peri’s Story line Re: Person I knew Re: Person tune Show-type Since we met Time remembered 34 Skidoo Song for Helen Turn out the stars Turn The two lonely people early Very Wlakin’ up Waltz for Debby Waltz

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a tabela no Ex.3 traz (1) o ritmo harmônico de cada as lead sheets originais ou publicadas, mas recorreu às peça, (2) linguagem harmônica e (3) um resumo de suas gravações quando necessário, especialmente as gravações características principais. mais recentes para mostrar a evolução de Bill Evans no tempo. Devido ao grande interesse de Bill Evans pelos A coleção mais completa de partituras das composições detalhes harmônicos, Wetzel foi bem mais preciso e de Bill Evans é o Bill Evans fake book (Ludlow Music), detalhado do que normalmente se vê nas lead sheets, transcrito e editado por Pascal WETZEL (2003) a partir adicionando linhas de contraponto, codas e extensões das gravações de Bill Evans. Este livro, que é utilizado de acordes, incluindo acordes de passagem e acordes aqui como fonte primária, contem 55 canções originais alternativos. As tonalidades originais forma mantidas, juntamente com versões com letra de 16 delas. Durante embora o leitor deva saber que era prática de Evans tocar sua carreira, apenas 52 dessas 55 canções foram gravadas. a mesma peça em outros tons, pois a transposição era uma Ao editar as lead sheets, Wetzel utilizou principalmente de seus procedimentos musicais favoritos (WETZEL, 2003).

Ritmo harmônico Peça Linguagem harmônica Características principais (acordes por c.)

Bill’s hit tune 1 por c. ii - V - I Seção C repete 13 c. da Seção A

Epilogue 1 por c. Forma livre ii - V – I Funkallero 1 por c. Sub-seções a-a-b-a Dó Menor (nas frases “a”) e Lá b Maior (nas frases “b”) Interplay 1 por c. Progressão de blues em Fá Menor Sem frases repetidas Círculo das 5as Laurie (The Dream) Moderato Forma livre ii - V - I Orbit (Unless it’s you) 2 por c. Círculo das 5as Contorno melódico destacado ii - V – I Peri’s cope 2 por c. Forma livre Dominantes secundárias Predomínio de acordes menores ou acordes menores Re: Person Forma livre Lento com 7ª M I knew Interpretação melódica livre Sem padrão harmônico ii – V e ii – v Forma livre Mudanças de Show-type tune 2 por c. Harmonia complexa andamento Forma livre Seção C repete 11 c. Since we met 1 ou 2 por c. Círculo das 5as da Seção A Centros tonais de Dó Maior, Sol Menor, Fá Menor e Story line 1 por c. Forma livre Dó Menor Círculo das 5as Song for Helen 1 por nota Forma livre Dominantes secundárias Harmonia complexa Forma livre 34 Skidoo 1 ou 2 por c. Notas pedal Improvisação solo Somente acordes maiores e menores Time remembered 1 por c. Harmonia complexa Forma livre Uso parcial do círculo das 5as Círculo das 5as Turn out the stars 2 por c. ii - V – I Forma livre Dominantes secundárias V-I The two lonely people 1 por c. ii - V Forma livre Trítonos Harmonia complexa Very early 1 ou 2 por c. ------Uso parcial do círculo das 5as Acordes de A7 Maj e modo Lídio Wlakin’ up 2 por c. Padrão rítmico repetitivo Acordes de B m e modo Dórico Harmonia complexa Forma livre Waltz for Debby 1 por c. Baixo cromático descendente Seção A’ repete 11 c. da Seção A Harmonia relevante nas vozes internas Seção C repete 10 c. da Seção A Ex.3 - Tabela com o ritmo harmônico, harmonia e resumo das principais características das 19 peças selecionadas de Bill Evans.

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Embora tivesse uma técnica exemplar, Bill Evans não outras formas comumente encontradas no Great American a utilizava para impressionar o público ou dar vazão a songbook of standards: AABA e ABAB, sendo que as seções mero virtuosismo. Seu foco estava no conteúdo musical A e B tem 8 compassos cada. Em muitos standards, a e na expressão que pretendia comunicar (LEES, 1988, melodia e a harmonia das Seções A permanecem as p.148). Boa parte da música que compunha era para suas mesmas ou são muito semelhantes entre si no esquema próprias performances e não para os outros tocarem. AABA. A mesma redundância ocorre com as Seções A e B Era considerado um mestre das valsas de jazz. As na forma ABAB. No caso de Bill Evans, a maioria de suas interpretações de suas baladas eram lendárias. Embora canções não segue melodica ou harmonicamente essas tocasse blues, não era conhecido como pianista de blues formas tradicionais. Somente These things called changes, ou compositor influenciado por este gênero. Isto pode ser a qual toma emprestado como base os chord changes de comprovado na análise de gênero de suas obras, como What is this thing called love e, mesmo assim, não segue a mostra a tabela no Ex.4. forma AABA ao pé da letra.

A forma de 32 compassos é também pouco provável de Gênero Nº de obras (55) ser encontrada entre as canções de Bill Evans. Apenas Valsa de Jazz 10 4 delas tem exatamente 32 compassos, mas nenhuma Balada 16 delas se conforma com os modelos tradicionais quanto à duração de cada seção interna da forma. Não há uma Medium swing 8 duração comum em suas composições; elas variam de 12 Medium up swing 9 a 80 compassos. Quanto às seções internas, muitas têm Fast swing 3 16 compassos, mas esta extensão não deve ser tomada como padrão, pois apenas 18 das peças analisadas Blues 2 apresentam esta característica. De uma maneira geral, Outros gêneros 7 em relação à forma, não se observa um traço comum Ex.4 – Tabela com incidência de gêneros nas nas suas composições, como atesta, de maneira mais composições instrumentais de Bill Evans. detalhada, a tabela do Ex.2 acima.

Seu foco entre os andamentos lentos e moderados abriu Do ponto de vista da melodia, 48 das 55 canções do espaço para desenvolver características que prezava fake book de Evans podem ser consideradas de forma muito, como lirismo, sonoridade e variedade harmônica. livre, uma vez que as melodias não se repetem ao longo Duas de suas peças mais conhecidas são valsas: Very da composição. Naquelas em que parte da melodia é early e Waltz for Debby. Duas outras das mais conhecidas repetida, é muito improvável que a melodia seja repetida são baladas: Time remembered e Turn out the stars, cuja com exatidão na seção seguinte. Por exemplo, em Bill’s popularidade atesta a preferência de seu público por esse hit tune, a forma é A (16c.) B (16c.) C (20c.) na qual gênero. Já as duas peças na forma do blues são do início os 13 primeiros compassos de C são os 13 primeiros de sua carreira (WETZEL, 2003, Discography, p.110.) e compassos de A. Se checarmos a existência de repetição apenas uma foi gravada, o que revela seu distanciamento melódica nas seções dentro das peças, se observa pouca deste gênero. Apenas três peças – Displacement, One ou nenhuma repetição de frases dentro das próprias for Helen e Fun ride – tem a notação de fast swing, o seções. Melodicamente, cada nota está presa ou é que mostra um movimento contrário a uma tendência dependente da harmonia, o que varia muito no caso de observada em muitos de seus contemporâneos. Bill Evans(PETTINGER , 1998, p.180).

Ao compor, Evans gostava de usar a métrica 3/4 Na maioria das lead sheets que os músicos de jazz “para articular o lado mais delicado e reflexivo de sua utilizam, frases de 4 ou 8 compassos são as mais personalidade artística” (SHADWICK, 2002, p.174). É comuns e suas improvisações refletem estes padrões. interessante notar que a maioria das valsas foi dedicada Na sua performance, Evans pensa em frases maiores, às mulheres que fizeram parte de sua vida. Evans também de 32 compassos ou mais (LEES, 1998, p.151). A forma gostava de mudar a métrica no meio da música, como livre de suas composições reflete esta característica. em Comrade Conrad, Five, Since we met e 34 Skidoo. A Muitas vezes, é difícil identificar onde começam e onde mudança na métrica o permitia mudar a atmosfera da terminam suas frases. Chuck ISRAELS (1985, p.112), um música subitamente. Waltz for Debby é uma valsa de jazz, de seus contrabaixistas, diz que “suas frases começam e mas ele também a tocava e a gravou em 4/4. terminam cada hora em um lugar, geralmente cruzam os limites entre uma seção e outra”. A forma musical é um elemento crucial na improvisação do jazz, especialmente para manter o grupo tocando Em composições de jazz e, por conseguinte, improvisações junto e coeso. Quando um grupo está improvisando sem de jazz, a armadura de clave é uma boa indicação do centro precisar ler a partitura, a consciência da forma musical tonal ou modal de uma peça. A natureza melancólica ajuda os músicos a se orientarem e interagirem. As formas observada em boa parte de sua música sugere, em mais comuns em jazz são o blues de 12 compassos e duas princípio, uma grande utilização de tonalidades menores.

27 MURRAY, J. W. (Bill). O Jazz de Bill Evans: formação, influências, obras e estilo composicional. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.21-34.

Centro tonal Tom menor Tom maior Dó 6 19 Ré bemol - 3 Ré 1 - Mi bemol 3 4 Mi - - Fá 6 1 Sol bemol - - Sol 1 4 Lá bemol - 2 Lá - 1 Si bemol 2 3 Si - 1 Ex.5 – Tabela com tonalidades das composições de Bill Evans.

Mas são apenas 14 em um total de mais de 50. Na sua dos acordes) desejados. As vozes internas e a condução entrevista a Marian Mc PARTLAND (1978), ele fala sobre de vozes eram fundamentais, caso quisesse imprimir um duas de suas tonalidades preferidas: Lá Maior e Mi Maior, fluxo harmônico mais rápido. A complexidade harmônica ressaltando a ressonância de seus harmônicos que lhes é de uma peça pode ser determinada observando-se a característica. Mas ele parece se contradizer, uma vez que frequência de mudança de seus acordes. A tabela do Ex.6 apenas uma peça, Remembering the Rain, é em Lá Maior mostra os padrões de mudança de acordes nas músicas e nenhuma é em Mi Maior! (Ex.5) selecionadas de Evans em que isso ocorre claramente. Isto revela padrões comuns à maioria do repertório de Observando o Ex.5 acima, poderíamos pensar que Dó jazz no Great American standard songbook. Maior é sua tonalidade favorita, ou que a maioria de suas músicas é em Dó Maior ou, ainda, que Dó Maior Número de é a tonalidade predominante em suas improvisações. Acordes por compasso composições Entretanto, ao examinarmos de perto suas composições, vemos que suas harmonias raramente permanecem em um 1 14 centro tonal ou, mesmo, em tonalidades vizinhas. Utilizar 1 ou 2 14 o termo centro tonal aqui é mais apropriado porque é 2 20 difícil perceber uma clara mudança de tonalidade na música de Evans. É mais fácil perceber uma mudança 3 ou 4 2 de centro tonal. A armadura indica apenas um ponto Ex.6 – Tabela com padrões de mudança de acordes nas de partida e, às vezes, o ponto final, pois é comum para músicas de Bill Evans ele acabar em outra tonalidade. Por exemplo, o primeiro acorde e a tonalidade de Very early é Dó Maior, mas o A principal diferença entre a música de Bill Evans e a de último acorde da música é Si Maior. Já Time remembered outros jazzistas reside na qualidade dos acordes e para também começa em Dó Maior, mas termina em Dó menor. onde ele se dirigem. Dois padrões bastante comuns na Assim, os centros tonais primários nas composições de literatura do jazz são o ii - V - I (ou i) ou o I – vi – ii – V Bill Evans são difíceis de serem determinados. Assim, a – I (que são progressões também chamadas de rhythm armadura de clave pode ser um elemento enganoso. changes no meio jazzístico). Se o padrão ii - V – I aparece muito no repertório de jazz, não é um padrão que Bill Quando as pessoas se perguntam sobre a música de Evans, Evans utiliza com frequência, se restringindo, no nosso uma questão central é a existência de uma característica caso, às músicas Bill’s hit tune, Turn out the stars e The harmônica recorrente no seu estilo. Dois aspectos são Two lonely people, o que revela uma utilização menos importantes nessa busca: o ritmo harmônico dos acordes frequente ainda na sua fase mais madura. (ou o número de mudanças de acordes por compasso) e a existência de padrões harmônicos, como a progressão Dois procedimentos harmônicos são frequentes no seu ii - V – I ou o círculo das quintas. estilo: a utilização do círculo das 5as e as dominantes secundárias, que aparecem extensivamente em 25 de Bill Evans era conhecido por gastar horas trabalhando suas composições. Um bom exemplo são os seis primeiros as progressões harmônicas para ter certeza de obter os compassos de Turn out the stars, cuja progressão harmônica voicings (condução de linhas melódicas dentro das vozes a seguir1 quase conclui um ciclo completo (Ex.7).

28 MURRAY, J. W. (Bill). O Jazz de Bill Evans: formação, influências, obras e estilo composicional. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.21-34.

Ex.7 – Círculo das 5as quase completo em Turn out the stars de Bill Evans (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.80).

Seu emprego frequentemente difere do padrão de círculo que ele acrescente diversas alterações ou extensões [ou das 5as do padrão ii – V – I. Não é sempre que a qualidade “tensões”, como se diz no Brasil], a função Dominante → dos acordes segue o padrão tradicional (acorde menor / Tônica com acordes em estado fundamental faz com que dominante / acorde maior), como acima. Outro exemplo a música soe claramente tonal e não o que um ambiente aparece em Time remembered, no qual cada acorde dura harmônico cheio de alterações poderia sugerir. A presença um compasso: das fundamentais dos acordes nos baixos sempre traz, em algum ponto, a sensação de retorno ao centro tonal. / Am9 / Dm9 / Gm7 / Cm7 / Fm9 / Outro exemplo pode ser extraído dos c.13-20 de Waltz for Time remembered é exemplar na maneira de Evans Debby, que tem a seguinte progressão: utilizar harmonias não tradicionais. A peça utiliza apenas acordes menores e maiores, sem alterações e / Am7 / Dm7 / Gm7 / C7 / Am7 / Dm7 / Gm7 / C7 / sem exercer a função de dominante. Em jazz, a função Essas progressões, retiradas de suas peças mais dominante é uma função básica, uma vez que é o acorde conhecidas representam bem os padrões do círculo que pode mais facilmente ser alterado e o mais fácil das quintas não tradicionais de Evans. A utilização de ser substituído, comum em procedimentos típicos de dominantes secundárias é outro procedimento do estilo que permitem colorir, tensionar e relaxar. Time composicional característico, essencial para que ele remembered é praticamente uma aula de como utilizar, transite por diferentes centros tonais (Mc PARTLAND, na improvisação, o modo Dórico em acordes menores e 1978). Very early, sua primeira composição revela a o modo Lídio em acordes maiores. Mesmo recorrendo importância deste conceito na sua música. Na sequencia a somente estes dois modos, Evans ainda consegue a de 16 acordes (um por compasso) da Seção A desta peça tensão e relaxamento desejados. (na qual as dominantes secundárias estão grifadas), há cinco encadeamentos V→ I (ou i), procedimento que Chuck Israels afirma que as harmonias de Evans eram aparece também em muitas outras músicas de Evans: menos dependentes de acordes do que da “sobreposição de linhas contrapontísticas nas quais a fase de tensão e / Cmaj7 / Bb9 / Ebmaj7 / Ab7(#9) / Dbmaj7 / G7 / relaxamento entre a melodia e as vozes secundárias era Cmaj7 / Bb9(b5) / Dmaj7 / Am7 / F#m7 / B7(b9) / Em7 sutilmente atenuada pelo seu controle do toque pianístico” / Ab7 / Dbmaj7 / G+7 / (ISRAELS, 1985, p.110). Este comentário se relaciona diretamente com os procedimentos de Evans na condução Outro procedimento, a estruturação harmônica pelo de vozes, especialmente na distribuição das vozes internas. círculo das 5as também lhe permite explorar rapidamente A progressão de acordes geralmente é bastante cromática, muitos centros tonais, não raro, passar pelos 12 centros mas a tonalidade da música está sempre presente. O tonais. Dois exemplos de composições em que Evans faz educador e pianista de jazz Tim MURPHY (2008), diz que a todo este percurso são Comrade Conrad e Fun ride. Mesmo harmonia de Evans é sinônimo do baixo cifrado no mundo que a função dos acordes possa ser modificada ou, ainda, do jazz e que sempre traz surpresas.

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A construção rítmica era tão importante quanto a O conceito de alternar métricas pode ser observado em construção harmônica para Evans. O deslocamento Five (que transita entre 4/4, 5/4 e 3/4) e que também rítmico e a sobreposição de ritmos binários ou ternários traz polirritmias diversas como 5 contra 2 e 5 contra 3, sobre a disposição dos acordes são particularmente mostradas no Ex.9. relevantes na sua música (Mc PARTLAND, 1978). O educador e saxofonista de jazz Jeff ANTONIUK (2008) Já em G waltz, ele utiliza 4 contra 3 e 3 contra 2. Em relata uma conversa que teve com o reconhecido muitas outras peças ele emprega rítmicas de 3 contra 2 saxofonista de jazz Joe Lovano. Em certa ocasião, conjugadas com antecipações do tempo forte. Lovano teve a sensação de estar tocando atrasado em uma gig com Bill Evans, o que seria incomum para um Evans foi um dos primeiros músicos de jazz a compor se músico tão experiente como ele. Só depois compreendeu baseando em séries dodecafôncias. Conhecedor da obra que Evans estava, na verdade, antecipando as mudanças de Schoenberg, ele escreveu duas peças utilizando este de acordes antes mesmo das antecipações típicas do “e” conceito: Twelve tone tune, conhecida como T.T.T. e Twelve [como em: um, dois, três, quatro “e”...], ou seja, antes tone tune two, conhecida como T.T.T.T. Ele afirmou que mesmo da colcheia antes dos tempos fortes. Lovana o a inspiração para essas peças foi apenas o desafio da não estava de fato atrasado. Evans, na verdade, estava escrita, pois não utilizaria este conceito tendo o público antecipando as mudanças de acordes para impactar em mente. Queria apenas ampliar suas habilidades de os ritmos e a improvisação. Displacement, uma das compositor (SHADWICK, 2002, p.151). T.T.T. tem apenas composições de Evans, mostra claramente este conceito 12 compassos e 36 notas. Cada apresentação da série tem no qual a mudanças de acordes ocorrem no tempo 4 ao a duração de apenas 4 compassos (Ex.10). invés do tempo 1. Ao harmonizar a série, ele utilizou uma harmonia Outros tipos de deslocamentos rítmicos que ele utilizava diatônica devido à dificuldade de improvisar sobre ocorriam nas polirritmias e sugestão de métricas a série (La VERNE, 1990, p.8). Como diversos outros complexas. Esses procedimentos começam a aparecer em compositores pós-schoenberguianos, ele optou por Peri’s scope (PETTINGER, 1998, p.93), cuja escrita é em 4 / flexibilizar a técnica serial, não seguindo a regra segundo 4 mas tem a sensação métrica de um ternário 3 /4 (Ex.8). a qual nenhuma nota poderia se repetida antes que

Ex.8 – Escrita ternária (3/4) dentro de métrica quaternária (4/4) em Peri’s scope de Bill Evans (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.53).

Ex.9 – Mudança de métrica e utilização de polirritmias em Five de Bill Evans (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.18).

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Ex.10 – Tema serial harmonizado de T.T.T. (Twelve tone tune) de Bill Evans (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.81).

todas as notas da série fossem apresentadas. Também vez mais refinados e frequentes: as progressões observadas não tentou evitar o conceito de tonalidade convencional nas vozes internas e uma abordagem mais sofisticada da para harmonizar a série. Ainda assim, improvisar sobre construção rítmica e seus deslocamentos. as séries nessas peças se mostrou uma tarefa bastante difícil (SHADWICK, 2002, p.151). Todas as composições de Evans mostram sua habilidade de percorrer bem o caminho planejado e, ao mesmo Em T.T.T.T. Evans expandiu o conceito de emprego da tempo, obter grande variedade de técnicas composicionais. série dodecafônica para 60 notas, que ocorrem ao longo Em geral, suas obras exibem grande unidade, pois são de 12 compassos e que, depois, se repete. Desta vez, construídas a partir de elementos básicos, como um pedal, a harmonização foi diferente de T.T.T. no sentido de se um acorde estrutural, um padrão rítmico, um motivo de 3 utilizar todos os acordes maiores, o que resultou em um ou 4 notas, uma mudança de andamento, uma relação entre encadeamento de 24 compassos para a improvisação: tonalidades aparentemente distantes, séries dodecafôncias, entre outros. E resultam sempre desafiadoras, interessantes / G / F / Eb / Db / C / Bb / Ab / Gb / B / Bb / A / Ab / e complexas. Ao longo de toda sua vida, seu conceito / G / A / B / C# / C / D / E / F# / B / C / C# / D / de harmonia foi sendo gradualmente construído. Cada desenvolvimento preparava o terreno para um novo passo, como afirma seu biógrafo Peter PETTINGER (1998, p.174): o que também resultou em um desafio para os melhores improvisadores, mesmo em um andamento moderado (Ex.11). Este mundo essencialmente harmônico foi enriquecido por partes que se movem interna e externamente, comentários e coloridos: uma nota que começa como uma nota de passagem cromática se Outra peça de Evans que revela a diversidade de seu estilo transfere para dentro do acorde, o qual emerge como parte de um composicional é Fudgesicle built for four, escrita no início novo voicing. A evolução o acompanhou até a sua morte. de sua carreira. O tema tem o procedimento inicial de uma fuga a quatro vozes, com entradas do sujeito para violão Ao dizer que: “. . . toda música é romântica. . . o romantismo (Ex.12), piano (Ex.13), contrabaixo (Ex.14) e sax tenor com disciplina é o mais bonito tipo de beleza” (TEACHOUT, (Ex.15). Embora o tema seja complexo, a improvisação é 1998, p.47), Evans sintetizou seu estilo composicional. feita normalmente sobre o encadeamento harmônico. Essa disciplina, que intimamente ligava suas composições à sua maneira de improvisar talvez tenha contribuído Uma questão sobre o estilo composicional de Evans é para o fato de que muito poucas delas se tornaram perceber como se desenvolveu ao longo de sua carreira. composições que são tocadas por outros artistas de jazz Muitos aspectos das técnicas que aparecem em Very early, (BIOGRAPHY RESOURCE CENTER, 2008). Embora a grande escrita enquanto ele ainda era aluno da Southeastern maioria de suas obras tenha melodias interessantes, é sua Louisiana College, aparecem em diversas composições de harmonia o que realmente a distingue, e que se reverte sua fase madura. Entretanto, dois aspectos se tornam cada em desafios para os que se propõe a tocá-la. Parece haver

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Ex.11 - T.T.T.T. (Twelve tone tune two) de Bill Evans, com 4 ocorrências da série em duas frases ascendentes (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.82).

Ex.12 – Entrada do violão com o tema em fugato de Fudgesicle built for four de Bill Evans (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.23).

outra razão ainda mais forte do que a complexidade Eddie Gomez, que foi contrabaixista de Bill Evans para o fato de ouvirmos tão pouco a música de Evans: a por onze anos, fala sobre seu colega: “Bill Evans era maioria dos músicos de jazz não gosta de tocar as notas articulado, decidido, gentil, majestoso, engraçado como estão escritas. E esta prática não combina com a e sempre nos apoiava. Seu objetivo era fazer uma natureza dos temas de suas composições, que têm um música que equilibrasse paixão e intelecto, que falasse grande sentido de completude melódica, harmônica e ao coração” (PETTINGER , 1998, p.246). Bill Evans é rítmica, o que levou Sean PETRAHN (1991, p.11) a dizer: considerado um dos pianistas mais influentes na história do jazz, mas seu papel como compositor ainda não foi Ninguém precisa mudar uma única nota ou acorde nas canções de Bill bem avaliado. Espera-se que outros estudos sobre sua Evans; você destruiria suas composições. Você mudaria um acorde em uma sonata de Beethoven ou nas “improvisações” de Bartok? Duvido. obra contribuam para que ocupe seu verdadeiro lugar. É preciso uma grande humildade para tocar a música de Bill Evans O lugar de um pianista extraordinário que foi também porque você precisa deixá-la soar sozinha; você deve deixar seu ego um compositor extraordinário. longe do instrumento e tocá-la como está escrito.

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Ex.13 - Entrada do piano com o tema em fugato de Fudgesicle built for four de Bill Evans (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.23).

Ex.14 - Entrada do contrabaixo com o tema em fugato de Fudgesicle built for four de Bill Evans (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.23).

Ex.15 - Entrada do sax tenor com o tema em fugato de Fudgesicle built for four de Bill Evans (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.24).

33 MURRAY, J. W. (Bill). O Jazz de Bill Evans: formação, influências, obras e estilo composicional. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.21-34.

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Nota 1 O sinal / indica barras de compasso. Assim, dois acordes entre dois destes sinais indicam que os mesmos são tocados o 1º e 3º tempos do compasso.

O pianista, compositor e arranjador J. William (Bill) Murray graduou-se com o Bacharelado em Música e o Mestrado em Música (Composição e Jazz) pela Towson University in Towson, Maryland, EUA. Além disso, obteve o MBA em Economia com honra pela Kellogg Graduate School of Management e o Bacherelado em Economia com honra especial pela University of Colorado. Como performer, atua na região de Baltimore como solista e arranjador para grupos de jazz. Gravou suas obras em dois CDs Billy’s touch e Moving On Atualmente, é Presidente da Baltimore Chamber Jazz Society e membro diretor da Towson University Foundation, University System of Maryland Foundation e Center Stage Theater.

Fausto Borém é Professor Titular da UFMG, onde criou o Mestrado e a Revista Per Musi. Pesquisador do CNPq desde 1994, publicou dois livros, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia da música popular e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e recitais nos principais eventos nacionais e internacionais de contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor.

34 ARAÚJO, F.; BORÉM, F. A teoria tonal de Schoenberg: uma proposta para a análise... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.35-69.

A Harmonia tonal de Schoenberg: uma proposta para a análise, realização e composição de lead sheets

Fabiano Araújo (UFES, Vitória, ES) [email protected]

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Resumo: As metodologias tradicionais do ensino de harmonia no jazz e outras músicas populares geralmente visam fornecer recursos para uma prática de improvisação, cuja abordagem é apenas homofônica. Propomos uma revisão e adaptação da teoria de harmonia tonal de SCHOENBERG (1999, 2004) como ferramenta de análise, realização e composição, a partir da lead sheet. Neste artigo de amplo escopo, (1) Conceitos Tonais (Monotonalidade, Movimento das Fundamentais, Notas Substitutas/Substituição, Transformação dos Acordes, Regiões e suas relações), (2) Funções Tonais (Geral, Específica e de Acordes Vagantes1/de Função Múltipla) e (3) Contextos Tonais (Permutabilidade Maior-Menor, Enriquecimento da Cadência, Tonalidade Expandida, Tonalidade Flutuante, Tonalidade Suspensa) da análise harmônica tonal schoenberguiana são adaptados e explorados utilizando simbologias, teorias e práticas da música popular, e ilustrados com exemplos de duas canções instrumentais do Calendário do Som de Hermeto Pascoal: 9 de agosto de 1996 (PASCOAL, 2000a) e 14 de novembro de 1996 (PASCOAL, 2000b).

Palavras-chave: teoria tonal de Arnold Schoenberg; harmonia de Hermeto Pascoal; música popular brasileira, realização de lead sheet.

Schoenberg’s tonal harmony: a proposal for analysis, realization and composition of lead sheets

Abstract: Traditional teaching methodologies of jazz and other popular music usually focus on homophonic improvisation. We propose a revision and adaptation of the tonal harmony theory by SCHOENBERG (1999, 2004) to create a basis for analysis, realization and composition of lead sheets. In this comprehensive paper, (1) Tonal Concepts (Monotonality, Root Progressions, Substitution, Transformation of Chords, Regions and their relations), (2) Tonal Functions (Tonal, General and Vagrant Chords/ Multiple Function) and (3) Tonal Contexts (Interchangeability of Major and Minor, Enriched Cadence, Expanded Tonality, Fluctuating Tonality, Suspended Tonality) from the analysis based on schoenberguian tonal harmony are adapted and used through symbols, theories and practices of popular music, illustrated with examples from two songs from Calendário do Som by Hermeto Pascoal: 9 de agosto de 1996 (PASCOAL, 2000a) and 14 de novembro de 1996 (PASCOAL, 2000b).

Keywords: tonal theory of Arnold Schoenberg; harmony of Hermeto Pascoal; Brazilian popular music; lead sheet realization.

1 – Introdução Em todo o mundo, boa parte da teoria harmônica 1997), entre outros. Ao tratar da questão da história da da música popular está calcada principalmente na teoria do jazz em seu livro Analyser le Jazz, Laurent CUGNY sistematização das relações entre escalas e acordes, (2009, p.154-155) aponta as abordagens intuitivas dos largamente difundida nos Estados Unidos na literatura primórdios deste discurso teórico que só gradualmente voltada para o jazz, que tem em George RUSSEL (2001/ se revestiu de maior rigor metodológico, mas enfatiza [1953]), John MEHEGAN (1978/[1959]) e David BAKER que seria um equívoco considerar esta situação como (1969) importantes precursores, seguidos por expoentes uma fragilidade inicial, pois representa um “sintoma do como DOBBINS (1984), LEVINE (1995) e MILLER (1996, ambiente necessário para a improvisação”. Ao mesmo

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 09/03/2012 - Aprovado em: 04/01/2013 35 ARAÚJO, F.; BORÉM, F. A teoria tonal de Schoenberg: uma proposta para a análise... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.35-69.

tempo, o autor apresenta um panorama sobre as principais das quintas, processos que caracterizam os Contextos “teorias importadas” da música erudita que vêm sendo Tonais de 1) Tonalidade expandida; 2) Modulação; 3) utilizadas desde a década de 1970 para a análise de Tonalidade Flutuante; 4) Tonalidade Suspensa. Mas em solos de jazz: análise schenkeriana, análise semiológica e FEH, Schoenberg condensa o método de ensinar harmonia análise de conjuntos de notas (CUGNY, 2009, p.448-471). apresentado em Harmonia, destacando as progressões do Entretanto, até onde nos foi possível rever a literatura, baixo fundamental com harmonias diatônicas, depois quase não há referências sobre utilização da teoria tonal com acordes construídos com notas substitutas, com de Schoenberg. Uma exceção deve ser mencionada, transformações e, finalmente, em harmonias vagantes. embora não configure, de fato, uma sistematização FEH também apresenta os Conceitos de Regiões e de aplicável à música popular, que é o nosso propósito aqui: Permutabilidade Maior-Menor, absorvendo a Modulação em The Harmony of Bill Evans, J. REILLY (1993) dentro do conceito de Monotonalidade. Assim, ao utiliza alguns conceitos da teoria tonal schoenberguiana invés de se medir as distâncias entre tonalidades, uma para desenvolver análises sobre a música e improvisação única tônica é aceita como centro de todo movimento do jazzista que revolucionou o piano no jazz da década harmônico através de suas várias Regiões. Essa perspectiva de 1960. REILLY (1993, p.3) sugere que os livros de Arnold permite um dos pressupostos da análise harmônica de Schoenberg não eram totalmente desconhecidos no seu modo a perceber os movimentos harmônicos em um nível meio: “. . . se você ler o Harmonia de Arnold Schoenberg, mais local (ou micro) – condução de vozes cromática verá onde Bill [Evans] aprendeu esses princípios e, então, e quase-diatônica – e em nível mais geral (ou macro), poderá seguir minhas explicações com mais clareza”. de progressões ou sucessões de Regiões. Tal perspectiva nos parece especialmente útil para uma interpretação No Brasil, até o início da década de 1990, a literatura sobre de lead sheets complexas como as do Calendário do música popular em português praticamente se limitava som de Hermeto Pascoal, abordado na parte final do àquelas publicadas pela editora Lumiar (CHEDIAK,1986; presente artigo e no artigo seguinte a este (p.70-95 FARIA, 1991), que refletiam o modelo norte-americano de desse número de Per Musi). David Baker. Da mesma forma, traduções de obras teóricas de Schoenberg no Brasil começaram apenas em 1999, com As relações tonais na teoria schoenberguiana são o Harmonia (traduzido por Marden Maluf, Editora Unesp) determinadas por dois princípios básicos: 1) o movimento e, depois em 2004, com Funções Estruturais da Hamonia das fundamentais diatônicas e 2) o princípio das (traduzido por Eduardo Seincman, Via Lettera, que daqui notas comuns. O primeiro estabelece que as relações em diante chamaremos simplificadamente de FEH). são determinadas qualitativamente por passos de Destacamos as contribuições de Norton DUDEQUE (1997), fundamentais diatônicas que promovam efeito discursivo. cujo artigo em português trata da questão da função O princípio das notas comuns, por sua vez, identifica tonal na teoria de Schoenberg e, ainda, DUDEQUE (2005), quantitativamente as afinidades tonais, isto é, de acordo cujo livro em inglês aprofunda uma sistematização da com o número de notas comuns entre acordes e entre teoria tonal de Schoenberg, propondo uma revisão de seus Regiões. Em Harmonia (1999), Schoenberg identifica as escritos, especialmente o manuscrito Gedanke, publicado notas comuns a dois acordes, como “nexo harmônico”. Em como “The Musical idea and the logic, technique, the art of FEH (2004), Schoenberg utiliza este mesmo princípio para its presentation” (SCHOENBERG, 2006). classificar as relações entre as Regiões:

A teoria de harmonia tonal de Schoenberg fazia parte, A Categoria 1 é denominada DIRETA E PRÓXIMA, porque todas como aponta DUDEQUE (2005, p.1), de um projeto estas Regiões possuem cinco (ou seis) notas em comum com a T. teórico (inacabado) que envolve o estudo da forma, da (...) A Categoria 2 é denominada INDIRETA, MAS PRÓXIMA, porque todas estas Regiões estão fortemente relacionadas às Regiões da harmonia e do contraponto e foi sistematizada de modo Categoria 1 ou à Tônica menor, e possuem três ou quatro notas em que demonstrasse a evolução do tonalismo em direção comum com a T (SCHOENBERG, 2004, p.91). às suas fronteiras. Sua teoria da forma (discutida em ARAÚJO e BORÉM, 2013, às p.70-95 desse número de Na análise schoenberguiana, as relações tonais são Per Musi) teria suas principais influências a partir do observadas em três níveis: 1) Relações entre acordes; tratado de A. B. Marx (DUDEQUE, 2005, p.15-20) e da 2) Relações entre notas diatônicas e não diatônicas; teoria do contraponto de Heinrich Bellerman (DUDEQUE, e 3) Relações entre Regiões. A compreensão dessas 2005, p.30-31); enquanto que sua teoria da harmonia relações, nesses três níveis, obedece ao princípio da seria derivada das ideias de Simon Sechter (DUDEQUE, monotonalidade para o qual “qualquer desvio da tônica 2005, 20-28) e de Hugo Riemann (DUDEQUE, 2005, p.58- permanece na tonalidade, não importando se sua 67). O arcabouço principal da teoria harmônica tonal relação com ela é: direta, indireta, próxima ou remota” schoenberguiana se encontra em seus livros Harmonia (SCHOENBERG, 2004, p.37). (do original Harmonielehre, publicado em 1911 em Viena) e FEH (cujo original Structural Functions of Harmony Buscando uma conexão com o universo do jazz e da foi escrito em Los Angeles e publicado em Londres em música popular, são relevantes os trabalhos de TINÉ (2002), 1954). Em Harmonia, no qual residem os principais ALMADA (2006) [veja também os artigos desses autores ensinamentos, o sistema tonal é abordado através dos dedicados à música popular, publicados no número 29 processos modulatórios entre as tonalidades do círculo de Per Musi] e FREITAS (1995, 2010) [veja também outro

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artigo desse autor dedicado à música popular, publicado Nesta direção, propomos que a teoria harmônica no número 29 de Per Musi] que revêem, sob o prisma da schoenberguiana possa prover uma aproximação flexível música popular, as principais referências da teoria tonal do contraponto com a harmonia (melódico-harmônico- desde os seus primórdios até hoje, incluindo Schoenberg. homofônica) na música popular, facilitando e ampliando Buscando ampliar e sistematizar esta perspectiva, o a competência não só para a improvisação, mas também presente artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla para a composição e arranjo. que propõe a adaptação dos elementos teóricos tonais de Schoenberg para uma melhor compreensão e realização da O presente artigo constitui a segunda parte de um estudo música harmonicamente complexa de Hermeto Pascoal e a dos presentes co-autores articulando a música de Hermeto simbologia única de suas lead sheets. Pascoal e a teoria musical tonal de Arnold Schoenberg. Primeiro, relacionamos a história de vida de Hermeto Pascoal De uma maneira geral, as abordagens ou as sistematizações com a formação de suas diversas e ecléticas linguagens do estudo da harmonia nas correntes da música erudita harmônicas, tonais e não-tonais (BORÉM e ARAÚJO, (especialmente no séc. XIX) estão direcionadas sobretudo 2010). No presente artigo, ainda com este seminal músico para a composição musical escrita. Ao contrário, as correntes brasileiro em vista, buscamos adaptar e aplicar à musica de música popular (especialmente o jazz) se direcionam popular os Conceitos Tonais (Monotonalidade, Movimento para a improvisação (que poderia ser compreendida como das Fundamentais, Notas Substitutas/Substituição, uma composição em tempo real na performance). TINÉ Transformação dos Acordes, Regiões e suas relações), as (2002, p.12) acredita que uma das razões desta diferença Funções Tonais (Geral, Específica e Acordes Vagantes/de está na perspectiva de condução de vozes: “... Uma das Função Múltipla) e os Contextos Tonais (Permutabilidade diferenças reside no fato de o improvisador não ver um Maior-Menor, Enriquecimento da Cadência, Tonalidade acorde como um passo momentâneo do entrecruzamento Expandida, Tonalidade Flutuante, Tonalidade Suspensa) do de vozes, mas como uma cristalização duradoura, que é pensamento tonal de Schoenberg (esses termos aparecem concebida em função de um modo ou escala que gera em maiúsculas esporadicamente para facilitar a leitura do tal disposição (TINÉ, 2002, p.12), acrescentando que, em artigo). No próximo artigo (ARAÚJO e BORÉM, 2013, às música popular, a condução de vozes é mais priorizada p.70-95 desse número de Per Musi), adaptamos e propomos nos estudos de arranjo. FREITAS (1995), reforça essa a aplicação dos conceitos de Forma e Variação Progressiva concepção, afirmando que as relações de combinações de Schoenberg em duas canções instrumentais do livro entre acordes não se dão pelas conexões resultantes da de partituras Calendário do som de Hermeto PASCOAL Condução de Vozes2. Assim, o estudo da harmonia voltada (2000c, 2000d). Finalmente, ilustramos toda a pesquisa para o improvisador prioriza o conhecimento e habilidades apresentando a realização de duas lead sheets de Hermeto com o maior número de escalas e clichês harmônicos para PASCOAL (2013) às p.97-98 e às p.100-101 desse número de introduzir acordes (com suas funções e tensões específicas) Per Musi). Ressaltamos que, ao contrário da relação de Bill e re-harmonização. Essa prática vem de encontro à Evans (músico letrado musicalmente; veja outros artigos e afirmação de FREITAS (1995): partitura relativos à música de Bill Evans às p.7-14, p.15-20 e p.21-34 nesse volume de Per Musi) com o pensamento de No corpus da música popular, a pergunta “Qual acorde pode ser Schoenberg, Hermeto Pascoal (músico autodidata) nunca se colocado aqui?” é da rotina, é necessária e tem sentido claramente aplicativo. É uma questão que, pode ser respondida com esse orientou pelas ideias ou escritos de Schoenberg. caráter eminentemente prático da escolha (FREITAS, 1995, p.1). 2 - Conceitos Tonais Dentro da perspectiva erudita, SALZER (1962, p.51) chama atenção para as restrições de um estudo musical 2.1– Os Conceitos de Monotonalidade e Regiões centrado mais na aprendizagem das relações harmônicas A Monotonalidade se refere ao princípio segundo o qual e menos na familiaridade com a condução de vozes e o uma obra tonal tradicional começa e termina na mesma contraponto: tônica. Leibowitz (citado por DUDEQUE, 2005, p.116), apresenta a monotonalidade como a ideia sob a qual a O estudo do contraponto desenvolve sensibilidade para compreensão das relações tonais implica na inclusão de direcionamento do discurso musical, condução das vozes todos os tons sob o comando de uma única tonalidade. individuais e para criação de acordes através do movimento das vozes. Por outro lado, uma primeira concentração na harmonia, Assim, o conceito de Modulação é substituído pelo especialmente se baseada no método atual, com seu perpétuo Conceito de Regiões, como um movimento (desvio) em exercício de cadências e sua indiscriminada categorização de direção a outros modos (Regiões), subordinados ao poder todos acordes como individualizados, pode impedir o ouvido, central de uma tônica, o que permite uma compreensão com a cadência em mente, da capacidade instintiva de perceber movimento e direção (SALZER, 1962, p.51).. de uma obra musical com maior senso de unidade. Uma real mudança de centro tonal será considerada DUDEQUE (2005, p.28-32) lembra que Schoenberg apenas quando uma tonalidade tiver sido abandonada procurou, em suas elaborações teóricas, lançar mão do por um tempo considerável e outra tonalidade tenha se estudo do contraponto como ferramenta pedagógica estabelecido harmônica e tematicamente de fato. de criação, de modo que o estudante utilizasse seu conhecimento quando estivesse compondo. A possibilidade de inclusão de todos os tons ou notas do sistema no conceito de Monotonalidade deve-se à

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visão do acorde como um composto formado por uma de Dominantes Secundárias; e das não diatônicas fundamental situada em um grau diatônico, e pelas notas descendentes (Ex.4b), enarmônicas das anteriores, erguidas sobre esta fundamental. Quando são erguidas dentro do contexto da Permutabilidade Maior-Menor. sobre as fundamentais apenas as notas diatônicas, temos Posteriormente, elas são explicadas no contexto da o Campo Harmônico Diatônico. Nos Ex.1, Ex.2 e Ex.3a e Tonalidade Expandida e Acordes Vagantes. 3b mostramos estas estruturas nos Modos Maior e Menor. 2.2- Conceito de Movimento (e Passos) das A escala menor apresenta-se de três formas: a) Menor Fundamentais Natural: com os graus III, VI e VII abaixados, (Ex.2); b) Menor Harmônica: com os graus III e VI abaixados e o O principio do Movimento das Fundamentais de VII elevado (Ex.3a); c) Menor Melódica ascendente: com Schoenberg, derivado do baixo fundamental de Rameau o III grau abaixado e os graus VI e VII elevados (Ex.3b). (via Kimberger e Sechter), determina qualitativamente Os graus abaixados (naturais) são identificados aqui as relações tonais entre os acordes, em função do efeito com o símbolo “b”. Os graus elevados são identificados discursivo promovido pelos 6 passos diatônicos possíveis na tonalidade: 2ª asc/desc, 3ª asc/desc, 4ª asc e 5ª asc. aqui com o símbolo de bequadro: “ ”. Essa classificação é feita a partir do equilíbrio entre o A inclusão de notas não diatônicas no sistema é explicada número de notas comuns entre as duas tríades que se primeiramente no âmbito das notas erguidas sobre as sucedem e a comparação entre a posição hierárquica em fundamentais, introduzidas através da Transformação relação à série harmônica (tônica, quinta e terça) que as dos acordes pelos procedimentos de Substituição, que notas comuns assumem após o passo. Por exemplo, após serão tratados nos tópicos seguintes. Através destes um passo de 4ª ascendente a partir da tríade do I grau de conceitos básicos, Schoenberg relaciona a introdução das Dó maior, chega-se à tríade de Fá maior, sobre o IV grau. notas não diatônicas ascendentes (Ex.4a) com o contexto O nexo entre essas duas tríades, ou seja, as notas comuns

Ex.1 – Campo Harmônico Diatônico do modo de Dó Maior.

Ex.2– Campo Harmônico Diatônico do modo de Dó Menor Natural.

Ex.3a e b – Campo Harmônico Diatônico do modo de Dó Menor com o VI e VII graus elevados.

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entre essas duas tríades, é apenas a nota Dó. Embora exista passos de 2ª asc/desc são considerados fortíssimos porque apenas uma nota em comum, esta nota possui um peso, não produzem notas comuns entre tríades, mas porque ou função (qualitativa) de tônica na formação triádica podem ser vistos como a abreviação de dois passos fortes. precedente, assumindo na nova tríade (Fá maior) a “melhor” Por exemplo, o passo de 2ª asc “C – Dm”, considerado posição possível de acordo com a série harmônica, ou seja, como “C (4ªasc) [F] (3ªdesc) Dm“. 5ª justa. Este equilíbrio entre quantidade de notas comuns e o peso relativo da função das notas classifica os possíveis Schoenberg identifica duas funções produzidas pelos passos diatônicos da seguinte forma (Ex.5): passos de fundamentais : 1) Progressão: que tem a função de estabelecer ou contradizer a tonalidade; e 2) Sucessão: Mais uma vez, o que está em jogo é o quanto o novo passo que não tem uma função e não determina uma tonalidade é capaz de fazer referência à tônica. Os passos crescentes específica (SCHOENBERG, 2004, p.17). A distinção entre são aqueles que produzem a melhor relação entre uma Sucessão não funcional e uma Progressão funcional quantidade e qualidade, valorizando a função das notas é determinada de acordo com os tipos normalizados de e preservando as notas hierarquicamente mais capazes progressões das fundamentais. Os movimentos crescentes de referenciar a tônica. Os passos decrescentes, por sua e fortíssimos caracterizam progressões que se apresentam vez, enfraquecem a função das notas. Por exemplo, a 5ª como modelos cadenciais. Os modelos mais usuais são do acorde precedente passa a ser 3ª no novo acorde. Os cadenciais (Ex.6) e de cadência deceptiva (Ex.7):

Ex.4a e b – Notas diatônicas e notas substitutas e seus direcionamentos em Dó maior.

Ex.5 - Classificação dos Passos de Fundamentais e seus efeitos no discurso harmônico.

Ex.6 – Modelos cadenciais

Ex.7 – Modelos de cadência deceptiva

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2.3 - Conceito de Notas Substitutas/ Pode-se afirmar que, para Schoenberg, o acorde Substituição é um momento vertical de melodias simultâneas, percebidas com um composto de fundamental com Estabelecida a distinção entre a fundamental de um outras notas, podendo a fundamental estar omitida. acorde e as notas erigidas sobre ela, temos que a Neste momento, as notas possuem uma função vertical fundamental de um acorde sempre será diatônica e relativa ao acorde (função de 3ª maior, ou 7ª menor, sua função relacionada ao grau diatônico onde ela ou 9ª aumentada etc.) e uma função horizontal relativa está estabelecida. No entanto, as notas erigidas sobre a à Região em que sua fundamental está ancorada fundamental podem ser diatônicas e não diatônicas. (2ˆgrau, ou 6ˆgrau abaixado, ou 7ˆgrau elevado, etc.). As notas não diatônicas são acrescentadas ao sistema Em ambos os casos, a fundamental e as notas devem devido à “tendência” dos graus secundários do Campo ser identificadas, caso a caso, como vozes, conduzidas Harmônico Diatônico de solicitarem da tonalidade um diatônica ou cromaticamente no encadeamento dos mínimo de movimento em torno de si, semelhante ao que acordes segundo os padrões melódicos do contraponto, que ALMADA (2006) denomina de e classifica ocorre com o I grau, isto é, suas Dominantes secundárias. inflexões Este movimento, portanto, permite que a tonalidade tenha como 1) nota de passagem; 2) bordadura; 3) apojatura; uma sensível para cada grau, fazendo com que estes se 4) escapada; 5) escapada por salto; 5) antecipação; 6) comportem como os modos eclesiásticos. Para isso, os suspensão; 7) cromática; 8) múltiplo cromática e 9) graus menores (II – dórico, III – frígio, e VI - eólio) devem resolução indireta ou cambiata. imitar o modelo Menor que já havia conquistado o status de Tom (Tonart) por meio da escala menor melódica. Com Na Introdução Quase-Diatônica das notas substitutas, isso, são adicionados ao sistema os 6º e 7º sons elevados se produz o efeito de negação da Tônica central. Esse no sentido ascendente, e naturais no sentido descendente processo é utilizado quando se pretende provocar uma da escala relativa a cada grau. Por outro lado, os graus mudança de Região (Modulação), de forma que, em uma maiores (I - jônico, IV - lídio e V – mixolídio) devem imitar voz, não existam pontos cromáticos, mas sim sempre o modelo da escala maior. Consequentemente, surgirão as diatônicos à Região pretendida. Em passagens que notas não diatônicas preservando seus respectivos sentidos envolvem Regiões Menores deve-se observar a aplicação (ascendentes ou descendentes), como mostra o Ex.4a e das regras das Notas Pivô, ou Neutralização. O Processo 4b acima. Posteriormente, esta relação com os modos de Neutralização é um tratamento melódico utilizado eclesiásticos é levada ao âmbito das Regiões. Devido a para o 6^ e 7^ graus da escala menor, denominados esta derivação, Schoenberg usa o termo Stellvertreter Pontos Decisivos. Segundo esta regra, existem quatro para designar as notas não diatônicas. Esse termo significa Pontos Decisivos de trajeto obrigatório, em uma mesma substituto, representante. Quando uma nota não diatônica voz (Ex.8, em Lá menor). surge na tonalidade, ela deve ser vista como uma Substituta, ou seja, representante de um modo eclesiástico/região. No Procedimento Cromático, a função de uma nota substituta aparece como “substituta cromática”, A permissão de movimento em torno dos graus gera atuando principalmente como um Enriquecimento da consequências sobre a centricidade da Tônica, o que harmonia, sendo incapaz de produzir uma mudança depende do processo de introdução das notas substitutas de Região tonal. O procedimento cromático implica (Substituição) e pode ocorrer de duas formas, que podem na identificação desta nota como cromática, devendo ser vistas como aprimoramentos melódicos da condução “declarar”, na condução de vozes, sua origem diatônica de vozes: Cromatismo e Diatonicismo. e seu destino, segundo os padrões de Inflexões.

Ex.8 – Regra das Notas Pivô para Neutralização (Exemplos em Lá menor).

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2.4- Conceito de Transformação dos Acordes nona etc., “serve somente para dar maior variedade à A Transformação é originada através dos procedimentos segunda melodia” (SCHOENBERG, 2004, p.23). de substituição. Quando um acorde é transformado, ele recebe uma ou mais notas representantes de uma ou mais Os casos mais típicos de acordes com fundamental Regiões. Nas Transformações, as notas substitutas podem omitida são os acordes de sétima diminuta, e os acordes tomar o lugar da 3ª e da 5ª do acorde, mas não podem de sexta aumentada (veja sete casos no Ex. 9 abaixo). O tomar o lugar da fundamental. Ex.9d mostra o acorde de sétima diminuta “F#º”, como um acorde de sétima e nona abaixada sobre o II grau de A transformação não altera a função da fundamental expressa Dó maior, ou seja, D7(b9) com a fundamental omitida3 como um grau da escala. Um acorde transformado através da (Ex.9d). Já o Ex.9e e o Ex.9f mostram o acorde de sexta substituição pode mudar, por exemplo, de uma tríade maior para uma menor, diminuta ou aumentada, mas o acorde manterá sua aumentada (cifrados entre colchetes como Ab7/F# fundamental, isto é, sua função como grau da escala, relacionado e Ab7) como o II grau transformado em um acorde de a uma Tônica (DUDEQUE,1997, p.6). sétima menor e quinta e nona abaixadas e fundamental omitidas. Por outro lado, ocorrerão casos excepcionais, DUDEQUE (2005, nota de rodapé da p.72) atenta para onde a fundamental será relacionada ao grau cromático a distinção, nos escritos de Schoenberg, dos termos como é o caso do acorde Napolitano “(b)II”, mostrado “alteração” e “substituição”. “O primeiro [alteração], no Ex.9g, e outras transformações, que são justificadas significa que o mesmo elemento foi modificado[...]”,ou via empréstimo de outras Regiões, mostrado no Ex.9g. seja, implica mudança de alguns aspectos sem a perda da Schoenberg utiliza o caso do acorde Napolitano para própria identidade; “[...] enquanto o último [substituição] reforçar o princípio da imutabilidade das fundamentais: presume que um elemento é usado no lugar de outro”. O acorde Napolitano representa uma exceção em relação a As Transformações mais simples dos acordes ocorrem no alteração das fundamentais. Sua fundamental seria alterada de Ré âmbito das notas erguidas sobre a fundamental. Os Exs. para Réb em Dó maior acarretando em uma contradição junto ao 9a, 9b e 9c demonstram transformações do acorde Dm sistema de fundamentais não alteradas. Isso, entretanto, implicaria em duas fundamentais distintas no segundo grau. Para evitar esse (II grau de Dó maior) através da introdução das notas problema, Schoenberg não deriva o acorde de Sexta Napolitana substitutas Fá# e Láb, gerando os acordes D, Dm(b5), através da transformação, mas sim, como acorde emprestado in D7, Dø e D7(b5). As notas substitutas representam, toto da Região da Subdominante menor (DUDEQUE, 2005, p.78). respectivamente, a Região da Dominante, e a Região da Subdominante menor (ou da Região da Tônica menor). Da mesma forma, vários acordes cujas fundamentais A substituta Fá# foi introduzida através da alteração não são diatônicas, podem conviver com a tonalidade da terça (Fá). No Ex.9b, a substituta Láb foi introduzida nos contextos da Mistura Modal e da Permutabilidade através da alteração da quinta (Lá). O Ex.9c apresenta as Maior/ Menor. Quando introduzidos nesses contextos, duas substitutas combinadas produzindo um acorde com esses acordes não são analisados como transformação terça maior e quinta abaixada (b5). da fundamental, mas como inteiramente emprestados de Regiões próximas. Os casos mais complexos de transformações envolvem as noções de 1) Imutabilidade da Fundamental, em que Sobre a notação dos Acordes Transformados, fizemos não é possível alterar a fundamental; e 2) Omissão da algumas modificações para promover convergências com Fundamental, que admite a possibilidade de se omitir a as notações da música popular. Os Acordes Transformados fundamental. Esta concepção reforça a consciência das através das substitutas são assinalados por Schoenberg funções estruturais das progressões das fundamentais e com algarismos romanos riscados. Por exemplo, II, significa assume que a função estrutural de um acorde depende “Segundo grau transformado”. O algarismo romano apenas do grau da escala sobre o qual a fundamental do refere-se à fundamental do acorde, seja ela omitida acorde está ancorada. Qualquer nota que esteja sobre esta ou não, sendo que as notas substitutas introduzidas fundamental e que constitua uma terça, quinta, sétima, não são indicadas na cifragem. DUDEQUE (1997, p.7)

Exs. 9a, b, c, d, e, f, e g – Transformações do II grau – adaptação do Ex.50 de FEH (Schoenberg, 2004, p.55).

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afirma que a não indicação das notas substitutas é “... será riscado (IV) e em seguida será indicada sua justificável uma vez que Schoenberg analisa a harmonia estrutura resultante (IVø). Se esse grau for emprestado sempre relacionando as fundamentais ao centro tonal” de uma Região vizinha – através de Mistura Modal e que as referências às notas substitutas encontram- ou Permutabilidade Maior/Menor – e surgir como se se nos textos das análises. Além disso, Schoenberg se tivesse a fundamental alterada, o símbolo (#) ou (b) ou o preocupa mais em analisar Regiões Tonais que acordes. bequadro (se for o caso) será colocado entre parênteses A seguir, apresentamos nossa proposta de notação, que antes do grau. Por exemplo, se sobre o IV grau (Fá) de justificamos pelo fato de ela evidenciar dados relevantes Dó Maior surgir o acorde “F#ø”, este será analisado das práticas da música popular na elaboração de arranjos, como (#)IVø para demonstrar a nova configuração do na improvisação e na interpretação de lead sheets. Mas IV grau, sendo que o símbolo “(#)” antes do grau indica essa notação se justifica principalmente em relação à sua situação em relação à Tônica da Região em que se performance, pois evidencia para o intérprete não só os encontra. Portanto, “(#)IVø” representa e analisa, ao acordes, mas também as Regiões Tonais. mesmo tempo, a situação desse grau. O Ex.10 (em Dó maior) e o Ex.11 (em Dó menor) ilustram como acordes Quando o grau não se apresentar em sua forma original diatônicos, acordes emprestados e substitutas cromáticas do Campo Harmônico Diatônico, o algarismo romano podem ser distinguidos através desta simbologia.

Ex.10 – Interpretação da simbologia proposta no Campo Harmônico Diatônico Maior (exemplo em Dó-maior).

Ex.11– Interpretação da simbologia proposta no Campo Harmônico Diatônico Menor (exemplo em Dó-menor).

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Ex.12a e b – “Quadro de Regiões em Maior” e exemplificação em Dó maior (Extraído de FEH, Schoenberg, 2004, p.38-39).

2.5 - Conceito de Regiões Tonais e suas relações relações relativas. Ele ainda explica que (3) a distância das 2.5.1 – Regiões Tonais relações entre as Regiões é determinada pela distância entre as Regiões e a cruz central; e que (4) as Regiões As Regiões Tonais são segmentos da tonalidade tratados relacionadas e/ou derivadas da Região Subdominante como se fossem tonalidades independentes. Como ficam do lado direito, enquanto que as Regiões derivadas consequência lógica do princípio da monotonalidade, da Região da Dominante ficam do lado esquerdo. o conceito de Regiões fornece a compreensão da unidade harmônica de uma música através de suas As relações das Regiões com a tônica, no modo Menor, relações com a Tônica. Em FEH, SCHOENBERG (2004, são estruturadas conforme o “Quadro de Regiões em p.37) esclarece o conceito de Regiões: “(...) segmentos Menor” (Ex.13). Deve-se notar que no modo menor, que antigamente seriam considerados como outra a região M está uma terça menor acima, assim como tonalidade, são apenas Regiões, um contraste a SM está uma terça menor abaixo. As mediantes harmônico interno à tonalidade original”. situadas uma terça maior acima ou abaixo são identificadas, respectivamente, por M#, e SM#. Em As relações das Regiões com a Tônica diferem de acordo Menor, o número de Regiões diretamente relacionadas com o modo da Tônica da música, Maior ou Menor. à Tônica é pequeno, pois esta não detém um controle Schoenberg criou o “Quadro de Regiões” (Ex.12a e 12b), tão direto sobre suas Regiões como no Maior. Isso se onde estas são apresentadas por meio de símbolos que deve ao fato de que, devido à sua derivação do modo indicam suas respectivas relações com a Tônica. Os Eólio4, seu estabelecimento enquanto tonalidade se dá símbolos são abreviações que descrevem as funções das via utilização das sete notas da escala diatônica (Jônio). Regiões. No Ex.12a, o “Quadro de Regiões em Maior” é Assim, esses traços característicos do Jônio são gerados, apresentado com as abreviações das relações das Regiões na tonalidade Menor, por meio de alterações dos sexto com a Tônica. Já o Ex.12b exemplifica as tônicas de um e sétimo graus. Desta forma, a t (Lá menor) estaria mais Quadro de Regiões em Dó maior. suscetível a promover modulação ou mudar de Região, principalmente para sua relativa maior, a Mediante maior DUDEQUE (2005, p.102) esclarece a estrutura e disposição (Dó maior), através da Sub/T (Sol maior). Por outro lado, lógica do Quadro de Regiões, indicando que as relações como observa DUDEQUE (2005, p.102-3), as relações com a tônica, mostradas através das abreviações de suas da t com as Regiões cujas modulações são obtidas funções, são estruturadas de duas maneiras: (1) Relações indiretamente, como a relativa maior M (Dó maior), são verticais, obtidas pelo círculo das quintas; (2) Relações ofuscadas, pelo potencial de função de Dominante e horizontais, com as relações paralelas (homônimas) e as polarizador dessas Regiões Intermediárias Maiores.

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Ex.13 – “Quadro de Regiões em Menor”, (Extraído de FEH, Schoenberg, 2004, p.49).

Ex.14 – Progressões com Regiões Intermediárias apoiadas na Permutabilidade Maior/ Menor.

2.5.2 – Regiões Tonais Intermediárias como: 1) seu estabelecimento, ou não: 2) sua duração. A Regiões Tonais Intermediárias podem ser entendidas principal característica de uma Região Intermediária é seu como Regiões momentâneas, definição encontrada nos caráter passageiro e conector. Assim, para uma Região Exercícios Preliminares em Contraponto (SCHOENBERG, Intermediária, mais vale a utilização funcional de suas 2001). Também podem ser compreendidas como características do que seu estabelecimento como Região Regiões com função de conectar Regiões indiretamente contrastante dentro da peça. relacionadas. Em FEH (2004), Schoenberg demonstra que a conexão entre a T (Dó maior) e a M (Mi maior), A Região Intermediária desempenha o papel de criar se dá através da Região Intermediária m (Mi menor). uma área neutra capaz de proporcionar o giro em As Regiões Intermediárias são utilizadas para promover direção à Região que se queira alcançar. Por isso, transições suaves e graduais entre Regiões indiretamente de certa forma, devemos observar o movimento de relacionadas ou remotas. Regiões sob o mesmo ponto de vista dos movimentos dos acordes. As Regiões Intermediárias fazem parte de Em Harmonia (SCHOENBERG, 1999), ainda sem utilizar um pensamento de prolongamento tonal que surge da o conceito de Regiões, Schoenberg fala sobre modulação ideia de Sucessão e Progressão Harmônica. A primeira através da intervenção de tonalidades intermediárias. A não produz movimento tonal e, portanto, prolonga identificação de uma Região como intermediária dependerá uma tônica ou harmonia qualquer. Já a segunda produz de dois fatores, identificados por DUDEQUE (2005, p.103) movimento e tem um objetivo tonal. É nesse sentido que

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as Regiões Intermediárias devem ser percebidas, podendo Regiões Intermediárias não se estabelecem e, portanto, ser uma Região que produz uma Sucessão Harmônica, não definem uma nova área tonal, apenas utilizando suas portanto, prolongando uma Região qualquer, ou podem características para promover uma conexão, como uma promover movimento tonal, produzindo uma Progressão Progressão, ou uma prolongamento, como uma Sucessão. Harmônica, se dirigindo para outra Região tonal. A utilização de Regiões Intermediárias apoia-se no conceito 2.5.3 – Classificação das Relações entre de Permutabilidade Maior/Menor (Ex.14). Regiões Tonais Conforme dito anteriormente, o movimento entre Regiões As Regiões são classificadas de acordo com a pode obedecer ao padrão das Sucessões Harmônicas, maneira que se relacionam com a Tônica, analisadas produzindo prolongamento de uma Região. O Ex.15 separadamente no modo Maior e no Menor pois, ilustra algumas possibilidades: em cada caso, obedecem a critérios diferentes. As classificações aparecem de maneiras diferentes em três Em FEH, SCHOENBERG (2004) sugere como algumas fontes primárias (Models for Beginners in Composition, Regiões indiretamente relacionadas em Menor podem FEH e Exercícios Preliminares em Contraponto). ser alcançadas por meio de Regiões Intermediárias. Acrescentamos, no Ex.16, uma quarta coluna Em Models for Beguinners in Composition (SCHOENBERG, explicitando as relações aproveitadas para efetuar a 1943), as Regiões no Modo Maior aparecem em quatro conexão entre as Regiões. grupos (Ex.17): (1) Regiões derivadas dos seis modos; (2) Regiões baseadas na relação da Tônica com sua DUDEQUE (2005, p.104) estabelece uma distinção entre Subdominante menor; (3) Regiões derivadas da Tônica dois tipos de Regiões: 1) aquelas que definem uma menor; (4) Regiões baseadas na Permutabilidade entre nova área tonal: 2) aquelas que não definem, em qeu as os modos Maior e o Menor.

Ex.15 – Prolongamento de Regiões por Sucessões Harmônicas.

Ex.16 – Regiões Intermediárias que podem funcionar para conectar Regiões Indiretamente Relacionadas, segundo indicação em FEH (SCHOENBERG, 2004, p.97).

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Ex.17 – Classificação das Regiões do modo Maior, como aparece no Models for Beginners in Composition: Syllabus and Glossary (SCHOENBER G, 1943, p.14-15).

Ex.18 – Classificação das Regiões do modo Menor, como aparece no Models for Beginners in Composition: Syllabus and Glossary (SCHOENBERG, 1943, p.14-15). OBS: As Regiões assinaladas com (*) são mais remotas e utilizadas mais frequentemente na música erudita.

Ainda em Models for Beguinners in Composition Finalmente, o Ex.21 mostra as Regiões classificadas como (SCHOENBERG, 1943), as relações são classificadas Próximas em Exercícios Preliminares em Contraponto através de três derivações no Modo Menor (Ex.18): (SCHOENBERG, 2001). (1) Relações derivadas da Relativa maior; (2) Relações derivadas da Tônica maior; e (3) Relações derivadas da DUDEQUE (2005) busca compatibilizar as três perspectivas Subdominante menor. do próprio Schoenberg e propõe uma alternativa coerente com as três classificações apresentadas acima: Em FEH (SCHOENBERG, 2004), aparece uma A classificação das áreas tonais parece atuar de modo que a classificação segundo o Modo Maior (Ex.19) e o categoria de relações próximas seja aplicada àquelas Regiões que Modo Menor (Ex.20), caracterizando as relações atuem conforme a sintaxe da D, SD, sm e m; depois, às Regiões pelas sua proximidade (Próxima, Remota, Distante) da Np, S/T e dor, que são compreendidas como áreas tonais de e necessidade de intermediação (Direta, Indireta). aplicação por uso comum. Através da Permutabilidade Maior/ Menor, as Regiões da t, sd, v menor, SM, e M, também são Schoenberg estabelece cinco categorias: 1) Direta consideradas proximamente relacionadas à Tônica. O próximo e Próxima; 2) Indireta, mas Próxima; 3) Indireta; 4) nível de relação (Indireta, mas Próxima), aplica-se às Regiões Indireta e Remota; 5) Distante. derivadas da Tônica menor, Quinto-menor, e Subdominante menor, e àquelas Regiões que apresentam alterações na fundamental da Região. Finalmente, todas outras Regiões resultam, em relações Norton Dudeque aponta aqui uma aparente distantes. (DUDEQUE, 2005, p.112). inconsistência na classificação da Categoria 4 do modo Maior (Ex.20) em relação ao princípio das notas A inclusão das Regiões Np, S/T, e dor na categoria de comuns, observando que, ao classificar a Região dor relações próximas e de aplicação por uso comum, coincide como remota, Schoenberg estaria desconsiderando com a classificação apresentada em Models for Beginners o princípio das notas comuns, pois esta Região in Composition (SCHOENBERG, 1943; Ex.17 e 18 acima). contém cinco notas em comum com a T em sua DUDEQUE (2005, p.112) observa ainda que a situação especial forma harmônica, e seis notas em sua forma melódica da Região Np no Quadro de Regiões em Maior (Ex.12a) ascendente ou descendente: “A Região Dórica é denotaria que esta relação ambígua seja derivada da prática classificada como indireta e remota, provavelmente comum. Assim, as relações da Dominante e Subdominante, porque esta é considerada em relação à SD, e este fato as Relativas, as provenientes da Permutabilidade Maior/ determina sua relação e distância da Região tônica” Menor e as da “Prática comum” seriam consideradas de (DUDEQUE, 2005, p.112. nota de rodapé). grande afinidade com a Tônica, como mostra o Ex.22.5

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Ex.19 – Classificação das Regiões do modo Maior, como aparece em FEH (SCHOENBERG, 2004, p.91).

Ex.20 – Classificação das Regiões no modo Menor, como aparece em FEH (Schoenberg, 2004, p.98).

Ex.21 – Classificação das Regiões no modo Maior e Menor, como aparece em Exercício Preliminares em Contraponto (SCHOENBERG, 2001, p.99).

Ex.22 – Classificação das Regiões do modo Maior, como aparece em Music Theory and Analysis in the Writings of Arnold Schoenberg (1874-1951) (DUDEQUE, 2005, p.112).

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3 – Funções Tonais (Geral, Específica e de consegue-se isso com a nota Si natural. O Si pertence a três acordes: aqueles dispostos sobre o III, o V e o VII. Dispomos, Acordes Vagantes/Função Múltipla) portanto, desses acordes para expressão harmônica desta Aqui abordamos o aspecto funcional geral e específico intenção (SCHOENBERG, 1999, p.199). das relações tonais das notas, acordes e Regiões, na produção de progressões ou sucessões. DUDEQUE (1997) Da mesma forma Schoenberg justifica o uso da nota Fá identifica dois tipos de funções tonais no pensamento natural para impedir a tendência rumo a Região da Dominante schoenberguiano: (1) a Função Tonal Específica e (2) (Sol maior). Com isso, enfatiza-se a função de demarcação a Função Tonal Geral. A primeira refere-se às notas dessas notas. Mesmo considerando, pelo desdobramento e acordes, e a segunda refere-se à utilização das do mesmo raciocínio citado, o movimento II-V-I como funções específicas das notas e acordes para afirmar ou o mais adequado para estabelecer, inequivocamente, contradizer uma tonalidade. A estas se junta a Função a tonalidade, Schoenberg acrescenta: “Não obstante, Tonal dos Acordes Vagantes (ou de Função Múltipla). também outras cadências, mais débeis, podem ser atrativas sob determinadas condições, e por isso discutiremos aqui Antes de abordar as Funções Tonais, entretanto, as aptidões dos outros graus” (SCHOENBERG, 1999, p.204). sugerimos uma notação que traduza os Princípios da Ainda assim, Schoenberg caracteriza não só o efeito do III Transformação de Acordes e da Transferência de Função grau como inabitual (e por isso débil), como também exclui Tonal (discutidos mais abaixo). Como a Transferência de o VII pelo desuso. E recomenda, como disponível, apenas o Função Tonal ocorre quase sempre a partir da imitação VI grau no lugar do II. de modelos cadenciais, propomos aqui o sistema adotado por CHEDIAK (1986), mostrado no Ex.23, cuja O direcionamento da sensível também caracteriza notação explicita analiticamente os passos cadenciais. sua função dentro do modelo cadencial. Quando fala sobre notas estranhas ao tom, no capítulo sobre as Na utilização dessa notação, algumas considerações dominantes secundárias no Harmonia (SCHOENBERG, sobre o modelo cadencial são importantes: 1999), e no Capítulo 3 de FEH (SCHOENBERG, 2004), ele caracteriza quatro alterações ascendentes e 1. cada tom contém uma sensível tonal – representada uma descendente. Observamos que as alterações pelo sétimo grau da escala – que resolve ou se dirige ascendentes produzem tendências rumo a Regiões do para o tom; lado do círculo das quintas da Dominante, e a alteração 2. cada tom contém uma sensível modal – representada descendente tende a Regiões do lado do círculo das pelo quarto grau da escala – que resolve ou se dirige quintas da Subdominante6. para a terça definidora do modo maior ou menor; 3. a sensível tonal é uma representante em potencial Concluindo, propomos a seta contínua para indicar da Região da Dominante; o passo cadencial produzido pela sensível tonal, 4. a sensível modal é uma representante em potencial preferencialmente onde o movimento de fundamentais da Região da Subdominante; seja o de quarta ascendente. Para indicar a cadência deceptiva usaremos a seta contínua cortada. Para Além dessas características, lembramos a visão de indicar o passo cadencial que antecede o movimento Schoenberg em que, num contexto onde a Tônica seja, da sensível tonal, e caracteriza a influência da por exemplo, Dó maior, uma das funções da nota Si Subdominante, usaremos o colchete. Assim, o conjunto (sensível tonal) é evitar a possibilidade da nota Sib formado pelo colchete e pela seta contínua indica o (definidora da Região da Subdominante, Fá maior) ser movimento cadencial geral, mesmo onde não exista a percebida como pertencente ao tom, impedindo uma imitação exata do modelo cadencial II – V ou IV – V. espécie de impulso da percepção rumo a Região da Já a representação da função do acorde cifrado se dará Subdominante. por um conjunto de sinais e suas diferentes associações O nosso empenho, portanto, deverá concentrar-se em primeiro para representar as funções específicas implícitas nas lugar, em não permitir que se estabeleça o impulso rumo cifras. O Ex.24 enumera esses sinais, seus símbolos à Subdominante: a sensação de Fá-maior. Melodicamente e seus significados. Os símbolos assinalados com (*) indicam tonalidade expandida, e serão explicados em detalhe no tópico 4.3.

Ex.23 – Notação com sinais analíticos cadenciais em passos de 4ª ascendente (CHEDIAK, 1986).

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específica da sua fundamental permanece inalterada, Em relação aos Princípios da Transformação de Acordes indicando sua relação com a tônica. Por outro lado, e da Transferência de Função Tonal , as relações tonais ao seguir suas tendências rumo a outra Região, sua e funcionais, dentro do pensamento schoenberguiano, fundamental adquire nova função e deve ser analisada são influenciadas por dois fenômenos harmônicos: na Região à qual está naquele momento. (a) Transformação de Acordes, que “... não admite substituição da fundamental e é baseada nas sete A Transformação de Acordes, produzida pelo processo funções fixas dos sete graus da escala” (DUDEQUE, 1997, da Substituição, acarreta uma nova configuração de um p.9); e (b) Transferência de Função, que “... sugere uma dado acorde sobre um grau diatônico. Depois de assumir função móvel...” (DUDEQUE, 1997, p.9). Por exemplo, um sua nova configuração, esse acorde tende a imitar os acorde pode surgir sobre um determinado grau da escala modelos convencionais de movimento de fundamentais. de uma Região, ser transformado e seguir sua tendência Essa tendência pressupõe a transferência da função rumo a outras Regiões. Mesmo que a configuração de outro grau escalar ao grau transformado. No Ex.25, do acorde contenha notas transformadas, a função o acorde sobre o I grau foi transformado através da

Ex.24 – Adaptação e explicação da notação analítica de análise harmônica.

Ex.25 – Transformação de Acorde e Transferência de Função com o modelo V7 – I .

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introdução cromática da substituta Sib (segundo tempo e, consequentemente, da transferência de função, é do c.3). Essa nova configuração (acorde de sétima da responsável por um grande enriquecimento das relações Dominante) tende ao movimento típico da função do dentro do sistema tonal. V7 grau diatônico, função Dominante, função que foi transferida para o I grau transformado. 3.1 - Função Tonal Geral A conceituação de Função Tonal Geral está diretamente No Ex.26, o V7 grau foi transformado através da ligada à expressão da relação dos elementos específicos a introdução cromática da substituta Sib (segundo tempo uma determinada tonalidade. Assim, os elementos sempre do c.3), adquirindo a configuração Gm7. Essa nova estarão atuando no sentido de afirmar ou estabelecer configuração tende a imitar os modelos IIm7 – V7, ou uma tonalidade – função centrípeta –, ou, no sentido de IVm – V7. Nesse caso, o acorde Gm7 imitou a função de contradizer uma tonalidade – função centrífuga. Uma IIm grau cadencial, em direção ao I grau transformado tríade tem, em potencial, uma tendência centrífuga, em I7. Houve a transferência da Função do IIm e V7 graus e por isso, necessita da cadência (função centrípeta), para os graus Vm7 e I7 transformados. para anular esse efeito, e proporcionar a centricidade. DUDEQUE (1997) ressalta a importância da função Outras possibilidades poderiam surgir a partir desse tonal na teoria schoenberguiana quando relacionada ao mesmo acorde menor. O Ex.27 demonstra a imitação do princípio da monotonalidade: modelo IVm – V – I, fazendo com que o Gm7 siga para o A7 (primeiro e segundo tempos do c.3), preparando Este conceito é muito mais amplo e complexo do que normalmente o Dm. Segundo Schoenberg, “transformações que os teóricos afirmam e parte do princípio de que uma obra tonal alteram a quinta justa em diminuta tendem a ser tem suas funções tonais específicas e gerais relacionadas a uma tonalidade única que domina a obra por inteiro, representada pelo seguidas por uma tríade maior, de acordo com o padrão princípio da monotonalidade (DUDEQUE, 1997, p.3). II V em menor” (SCHOENBERG, 2004, p.62). No c.6 do Ex.27 mostramos essa tendência, com o III grau Patricia Carpenter e Severine Neef (SCHOENBERG, 2006), transformado. O procedimento de imitação dos modelos citados por DUDEQUE (1997), sugerem que, da mesma

Ex.26 – Transformação de Acorde e Transferência de função com o modelo IIm7 – V7 – I .

Ex.27 – Transformação de Acorde e Transferência de função com o modelo IVm7 – V7 – I .

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forma como a conceito de monotonalidade engloba todas as tonalidades em um sistema inclusivo, este “envolve uma Uma nota individual possui a capacidade de expressar rede de funções definidas pelos graus da escala, em que uma tonalidade se assumir a função de determinados todas as notas, acordes e Regiões tonais, cada qual com sua graus característicos, que são responsáveis por estabelecer função específica, são relacionados a uma tônica central”. e diferenciar as tonalidades: o 4^ e o 7^ graus no Modo Maior; e o 6^ e o 7^ graus elevados no Modo Menor (Ex.28). Recordando que, para Schoenberg, o acorde deve ser compreendido a partir de dois elementos - sua fundamental Essas notas possuem sua Função Específica e as notas erigidas sobre essa fundamental - estes elementos independentemente do acorde ao qual estão ligadas, específicos assumem funções gerais independentemente função que está diretamente relacionada aos processos de um do outro. A fundamental, através da Transferência de substituição cromática e quase-diatônica (especialmente Função assume função centrífuga, de negação à tônica quando executada pelo processo da Neutralização). central, pois faz referência a outras tônicas. Por outro A neutralização ou sua falta determina a função de lado, as notas erigidas sobre o grau, quando percebidas uma nota como substituta cromática (centrípeta), ou como transformadas, isto é, produto da substituição e substituta quase-diatônica (centrífuga). com um novo direcionamento, possuem relação com a tônica central. É nesse sentido que DUDEQUE (1997, p.9) Na teoria schoenberguiana, a Função Tonal Específica afirma que os princípios da Transformação de Acorde e da de um acorde é dada por sua fundamental, que define Transferência de Função devem ser interpretados como sua relação com um centro tonal. As fundamentais estão funções gerais complementares. fixadas sobre os graus da escala de referência – Maior ou Menor – e são identificadas com os nomes tradicionais 3.2 – Função Tonal Específica das funções tonais (Ex.29). A Função Tonal Específica das notas consiste em relacionar O lugar que a fundamental do acorde ocupa, dentro da as notas aos graus de uma escala relacionada à tônica escala, determina sua relação funcional com a tônica. de uma tonalidade ou Região tonal. Por exemplo: A nota Esta relação independe da configuração do acorde. Por (Sol#), em Dó maior, poderia assumir a função específica outro lado, deve-se estar atento a outros fatores que de VII grau (sensível) da Região da sm (Lá menor). Outro determinam o estabelecimento de uma função em um exemplo: A nota (Fá#), em Dó maior, poderia assumir a acorde: (a) seu Contexto Tonal; e (b) a noção de Região. função de VI grau da Região sm (Lá menor) ou, em outro O Contexto Tonal está ligado à relação do acorde com os contexto, a função de VII grau (sensível) da Região D acordes que o antecedem ou que o sucedem. Esta relação (Sol maior). Já a Função Tonal Específica dos acordes pode promover uma Sucessão ou uma Progressão e, com é expressa pela relação de sua fundamental com um isso, determinar o significado harmônico desse acorde. Já determinado centro tonal, ou Região. Da mesma forma, a Região implica no conhecimento do campo harmônico um determinado segmento de uma Região é relacionado e das notas características das Regiões, que podem estar a um centro tonal como se fosse um grau de uma escala, atuando em contexto, quer no sentido de se estabelecerem incluindo a função dos acordes e notas.

Ex.28 – Graus característicos nos modos Maior e Menor.

Ex.29 – Funções Tonais das Fundamentais dos acordes nos modos maior e menor.

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(como contraste), quer no sentido de passagem (como 4 - Contextos Tonais Regiões Intermediárias), conectando ou prolongando Finalmente, na análise schoenberguiana, podemos Regiões. Finalmente, a determinação da Função Específica reconhecer as relações tonais em Contextos Tonais por de um acorde deve observar os princípios da Transformação meio (1) Enriquecimento da Cadência, (2) Permutabilidade de Acordes e da Transferência de Função. entre Maior e Menor e Mistura Modal, (3) Tonalidade Expandida, (4) Tonalidade Flutuante e (5) Tonalidade 3.3 - Função de Acordes Vagantes (ou de Suspensa. A identificação dos contextos tonais está Função Múltipla) diretamente ligada à percepção do direcionamento do Os Acordes Vagantes formam uma categoria especial de movimento do discurso harmônico. Esse direcionamento acordes que podem assumir a função de vagar ou transitar é observado a partir da leitura dos elementos estruturais e 7 livremente sobre diferentes Regiões harmônicas, graças de Prolongamento nos três níveis da análise: (1) Regiões, à flexibilidade de transformação dos graus. Segundo (2) fundamentais dos acordes, (3) notas dos acordes. Schoenberg, tais acordes: 4.1- Contexto de Permutabilidade Maior-Menor Não pertencem exclusivamente a nenhuma tonalidade, senão que, Na tendência de enriquecimento da tonalidade, sem alterar sua configuração (nem sequer é necessária a inversão bastando uma relação imaginária com a fundamental), podem Schoenberg destaca a Permutabilidade entre Maior pertencer a muitas tonalidades, muitas vezes a quase todas” e Menor, procedimento também identificado como (SCHOENBERG,1999,p.286). Mistura Modal (Mode Mixture). Em Harmonia (SCHOENBERG, 1999), este procedimento é apresentado Estes acordes são derivados das Transformações e podem no capítulo “Relações com a Subdominante menor”, ter funções múltiplas devido às suas constituições com a introdução de acordes desta Região ao Campo específicas. Os casos mais evidentes são os acordes de Harmônico Diatônico. Em FEH (SCHOENBERG, 2004), o sétima diminuta, a tríade aumentada e o acorde de sexta procedimento é apresentado de forma mais sistemática aumentada e suas inversões. com a introdução de acordes de Regiões consideradas próximas à Tônica, como a t (Tônica menor), o v menor Na teoria da música popular, os acordes vagantes (Quinto menor), além da sd (Subdominante menor). Na correspondem aos acordes de Substituição de maioria das vezes os acordes derivados dessas relações Dominantes. Por exemplo, o II7 grau de Dó maior (D7) (Ex.30) são obtidos por transformação das notas sobre pode ser transformado com a alteração da quinta e da a fundamental, porém, em alguns casos, Schoenberg nona, assumindo uma configuração semelhante a Ab7. parece admitir a alteração da fundamental. A esse Na música popular, dizemos que esses acordes são respeito DUDEQUE (2005) afirma: substitutos, ou, Ab7 é o subV7 (Dominante substituta) de D7. Outra maneira de observar essa relação seria No exemplo que ilustra os acordes substitutos, Schoenberg reconhecer a presença do mesmo trítono na estrutura endereça todos os acordes em relação à tônica maior. Obviamente, ele considerou, nessa ilustração específica, a possibilidade de desses acordes. Acordes Dominantes que possuem o alteração da fundamental, e consequentemente a escala cromática mesmo trítono são substitutos entre si, ou seja, são como referencial. Entretanto, essa não é a prática adotada em FEH. Acordes Vagantes correspondentes. As correspondências Schoenberg analisa um vasto repertório de excertos da literatura entre os acordes vagantes são demonstradas no tópico musical de acordo com o sistema de fundamentais diatônicas. (DUDEQUE, 2005, p.79). seguinte, dos Contextos Tonais.

Ex.30 – Acordes emprestados por Permutabilidade entre Maior e Menor (Extraído de FEH, SCHOENBERG, 2004, p.73) 8.

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Assim, esses acordes são percebidos como emprestados próximas (t, sd, v-menor) tanto da maior homônima (Dó das Regiões próximas, com as substitutas introduzidas maior) e da maior relativa. cromaticamente, assumindo, desta forma a característica de notas guias. A substituição cromática desempenha importante papel nesse contexto de Mistura Modal. 4.2- Contexto de Enriquecimento da Cadência A expressão da tonalidade ocorre em dois níveis: (1) Nível A Permutabilidade entre Maior e Menor traz a possibilidade das Fundamentais: que é representado pela função dos do acorde Napolitano, emprestado do sexto grau da graus, e por isso, mantém-se essencialmente diatônico; Região da Subdominante menor, acorde que passou a (2) Nível da Substituição: que ocorre sobre as notas ser utilizado como clichê harmônico. Em Dó maior temos erigidas sobre a fundamental (mesmo que esta esteja Db7M. Na discussão sobre a compreensão desse acorde no omitida). Reforçando a importância das fundamentais contexto tonal, SCHOENBERG (1999, p.338) afirma que diatônicas, Schoenberg afirma: “A alteração das notas “Seu aparecimento típico é como imitação do II grau da naturais em notas estranhas, geralmente, não mudará a cadência. Por isso têm-se admitido que ele seja uma nova qualidade funcional do grau sobre o qual o acorde está transformação cromática do II grau”. Mas, logo em seguida, erigido” (SCHOENBERG, 1942, glossário p.13). Schoenberg levanta a hipótese de que seja possível a existência de duas fundamentais sobre o segundo grau da Desta forma, percebemos que, na expressão da escala, assim como acontece com o sexto e sétimo graus tonalidade, ocorre o convívio de um elemento definidor da escala menor, projetando “uma espécie de princípio das relações tonais (as fundamentais diatônicas), e de um fundamental à consideração dos eventos harmônicos: a elemento que funciona como ampliador e enriquecedor escala cromática” (SCHOENBERG, 1999, p.338). dessas relações (a substituição).

Assim, Schoenberg considera o acorde de Sexta Napolitana Leonard Stein, citado por DUDEQUE (2005, p.78-79), como representante do segundo grau na cadência, de identifica três formas de extensão das relações, através onde vem seu uso típico. Embora possa ser alcançado da substituição: por transformação, não é considerado como derivado do processo de transformação, mas sim como acorde 1. Enriquecimento das progressões através de sensíveis totalmemte emprestado da Região da Subdominante ascendentes ou descendentes; menor. Ao uso típíco do acorde napolitano denominamos 2. Enriquecimento dos recursos da cadência com o Cadência Napolitana, que segue dois modelos: (b)II7M – prolongamento da função da fundamental, e com as V7 – I e (b)II7M – I. É possível, portanto, a imitação dos possibilidades da Permutabilidade Maior/Menor; modelos da cadência Napolitana, descendo por semitom 3. Produção de Regiões conduzidas como uma tonalidade. em direção aos graus diatônicos. As duas primeiras possibilidades podem ser identificadas Se a tonalidade de referência estiver no modo Menor, a como Cadência Enriquecida, pois implicam na ocorrência Permutabilidade dá-se da seguinte forma: da substituição cromática, enquanto a última depende da substituição quase-diatônica, através do processo Partindo do modo menor, recomendo a princípio, aproveitar meramente a relação obtida através da tonalidade maior de Neutralização. Portanto, a identificação da Cadência homônima. Assim por exemplo em Dó-menor, seriam os acordes Enriquecida depende da produção de progressões no relacionados à Subdominante menor de Dó-maior. Mais tarde, o movimento das fundamentais; e dos procedimentos aluno poderá também aproveitar o alargamento dessa relação cromáticos no nível da substituição. Porém, há ainda a (através da tonalidade maior paralela, isto é: em Dó-menor, a de Mib-maior) (SCHOENBERG, 1999, p.335). possibilidade de, no nível das fundamentais, identificar “elaborações da função das fundamentais principalmente Em um exemplo em Dó menor (Ex.31), mostramos como sob a forma de prolongamento da fundamental” seria este alargamento de relações para as 3 regiões (DUDEQUE, 2005, p.93)9.

Ex.31 – Regiões para Permutabilidade entre Maior e Menor à partir do alargamento das relações para a Maior Homônima e a Maior Paralela (exemplo em Dó menor).

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No Ex.32 ilustramos um prolongamento da função da que “... acontece quando, numa cadência, o V7 torna-se fundamental sobre o II grau. Primeiramente, consideramos IIm7, onde acorde interpolado está situado entre duas as fundamentais omitidas: o segundo acorde do c.5 Dominantes” (BUETTNER, 2004, p.31), como no Ex. 33a. normalmente seria cifrado como Ab7, supondo um movimento cadencial para o Db7M. Porém, esse acorde Em outro exemplo, o autor demonstra o que chama de pode ser visto como Transformação do segundo grau Interpolação da Interpolação Harmônica: “Existem casos com baixo na quinta diminuta e fundamental omitida e, em que o IIm7 ou V7 sub, podem estar entre o IIm7 e V7 assim, o Db7M pode ser visto como um acorde de Sexta originais, não afetando a realização da cadência, porque Napolitana. Essa análise se fundamenta na percepção o último acorde antes da resolução sempre será o V7 do trecho produzindo a Progressão II - V - I, de forma original” (BUETTNER. 2004, p.36), mostrado no Ex. 33b. que a fundamental Réb atue como emprestada por Permutabilidade Maior/Menor. Entende-se que todos os 4.3- Contexto de Tonalidade Expandida acordes transformados do trecho em questão possuem A Tonalidade Expandida é, em certo sentido, o início a função de II grau. Assim, esse exemplo é analisado do abandono da Monotonalidade, mas um contexto no como Cadência Enriquecida, pois o objetivo tonal da qual transformações remotas e sucessões harmônicas cadência é alcançado após a prolongamento da função ainda são compreendidas dentro de uma tonalidade. do II grau dirigindo-se ao V7. Observamos que esse Segundo SCHOENBERG (2004, p.99), nesse contexto caso de prolongamento da fundamental contou com a “tais progressões podem, ou não, produzir modulações utilização de: (1) cromatismos no nível da substituição; ou estabelecer as diversas Regiões”, funcionando (2) consideração das fundamentais omitidas e; (3) como enriquecimento da harmonia. DUDEQUE (2005, consideração de cromatismo no nível das fundamentais p.123) afirma que a monotonalidade, vista já como com acordes emprestados por Permutabilidade Maior/ Tonalidade Expandida, “encontrou um limite em seu Menor, como o acorde de Sexta Napolitana. desenvolvimento, resultando em seu abandono como princípio geral organizador das relações tonais”. O contexto da Cadência Enriquecida consiste, Desta forma, os dois conceitos Tonalidade Flutuante e basicamente, na utilização de recursos de expansão, Tonalidade Suspensa, dentro da Tonalidade Expandida, tais como: Prolongamento de uma fundamental e “reforçam a desestabilização do centro tonal, e Transformações remotas adicionadas às possibilidades consequentemente, o abandono da monotonalidade”. da Permutabilidade entre Maior e Menor, dentro da Concluindo, poderíamos admitir que a Tonalidade cadência. Arno Roberto Von Buettner apresenta uma série Expandida é uma prática que tem seu início a partir de procedimentos de ampliação harmônica, no contexto da Monotonalidade, e encontra seu fim na Tonalidade da música popular, dentre eles, a Interpolação Harmônica, Flutuante ou na Tonalidade Suspensa.

Ex.32 – Trecho com Prolongamento da função da fundamental sobre o II grau.

Ex.33a, b – Interpolação harmônica

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Nos vários exemplos utilizados em FEH, Schoenberg acorde deve conter suas notas estruturais, chamadas de caracteriza a Tonalidade Expandida com a ocorrência Notas do Acorde (fundamental, terça, quinta e sétima), e de transformações que levam a desvios de Regiões a extensão (nona, décima primeira e décima terceira) do muito remotas. Ele encontra exemplos na música de acorde que serão as Notas de Tensão. Algumas escalas compositores desde o Barroco, como Bach (SCHOENBERG, oferecem alterações específicas de notas de tensão e notas 2004, p.102) ou na música clássica descritiva, como a estruturais, ao que chamamos aqui de Gama de Alterações. de Schubert (SCHOENBERG, 2004, p.103), que contem A cifra é um elemento determinante na visualização modulações “extravagantes”, como da tônica menor [t] dessa relação entre escala e acorde. Normalmente, a (Dó menor), para a mediante menor da Dominante [mD] indicação das Gamas de Alterações encontra-se entre (Si menor). Schoenberg cita exemplos de Tonalidade parênteses ao lado da cifra, como por exemplo: Ab7(b9, Expandida, como a inclusão da Sexta Napolitana e uso #11,13). TINÉ (2002) propõe a associação do acorde de de Regiões no interior dos temas estruturais de uma Sexta Germânica à Escala Octatônica. obra. Na sua análise das Variações Diabelli de Beethoven (SCHOENBERG, 2004, p.114-121), ele demonstra algumas A possibilidade de outras dissonâncias pode derivar de duas escalas dificuldades na interpretação de alguns trechos para simétricas usadas pelos improvisadores para estes acordes: pode utilizar-se a escala octatônica para o acorde de 6a Ger.: Ré, Mib,Fá, se estabelecer Regiões. Em passagens da música de Fá#, Sol#, Lá, Si, Dó, tendo como possibilidade a 9a aumentada, e a Dvorák, Grieg e Bruckner (SCHOENBERG, 2004, p.122), escala hexafônica para o acorde de 6a Fr: Ré, Mi, Fá#, Sol#, Sib, Dó, ele demonstra a ocorrência de acordes de passagem, tendo como possibilidade a 9a maior (TINÉ, 2002, p.10). suspensões e notas de passagem (inclusive sem resolução), explicando como trechos de análise problemática pode Esse sistema de correspondência de acordes que propomos ser compreendidos sempre na Região da Tônica. Em indica as múltiplas tendências possíveis a estes acordes um trecho de Reger (SCHOENBERG,2004, p.125), ele em formar progressões ou sucessões. Indica também demonstra a ocorrência de acordes incompletos. No padrões de transformações para o acorde de Sétima da exemplo 113 que criou (SCHOENBERG, 2004, p.126), ele Dominante e para o acorde Meio Diminuto. mostra como classificar as Regiões distantes. Já no seu exemplo 114 (SCHOENBERG, 2004, p.127), analisa trechos O Acorde de Sétima Diminuta e os Acordes de Sexta nas tonalidades homônimas simultaneamente [t/T]. Aumentada e Dominantes Alteradas: O acorde de Sétima Diminuta é o primeiro tipo de Acorde Acordes Vagantes e Escalas Alteradas e Simétricas (ou Vagante demonstrado em Harmonia. É apresentado como Sistema de Correspondências entre Acordes Vagantes): possibilidade de imitação do modelo cadencial VIIº - I da Finalmente, dentro do contexto da Tonalidade Expandida, Escala Menor Harmônica. buscamos uma adaptação do conceito de Acordes Vagantes com o conceito de Escala de Acorde (GUEST, A introdução sistemática, de acordes estranhos à escala pode continuar, (...), tentando-se transplantar também para o acorde 1996, p.49), utilizado por improvisadores e arranjadores na de sétima diminuta para onde ele não ocorre naturalmente. Para Música Popular10. Através das Escalas de Acorde Simétricas isso interessa, em primeiro lugar, apresentá-lo sobre os mesmos Octatônica e Hexafônica; e dos Modos da Escala Menor graus que façam lembrar um VII grau do modo menor, pelo fato Melódica, procuramos “gerenciar” as correspondências de apresentar um passo de segunda menor ascendente em direção ao próximo grau fundamental próprio da escala (SCHOENBERG, entre acordes vagantes. Aventamos a possibilidade de 1999, p.282). ampliação desta rede a partir dos “Modos de Transposição Limitada” de Messiaen (dos quais a octatônica e a Assim, para cada grau diatônico, existirá um acorde de hexafônica fazem parte), e de modos e acordes de escalas sétima diminuta situado uma segunda menor abaixo. “Diatônicas Alteradas” (MILLER, 1996, p.115-124) como a Maior Harmônica e Menor Melódica #5. | VIIº I7M | #Iº IIm7 | #IIº IIIm7 | IIIº IV7M | #IVº V7 | #Vº VIm7 | Devido ao caráter múltiplo das estruturas vagantes, ou seja, a possibilidade de serem representados por vários É aqui que Schoenberg afasta a possibilidade de acordes, a identificação da verdadeira função (isto é, da transformação dos sons fundamentais, em favor da fundamental) de tais acordes nem sempre é explicitada possibilidade de uma fundamental omitida. Por isso pela cifra. Analisaremos primeiramente os acordes analisa os acordes diminutos como acordes com sétima diminutos e, depois, os acordes de sexta aumentada, menor e nona abaixada, e fundamental omitida. A com o objetivo de estabelecer suas correspondências, verdadeira fundamental desse acorde encontra-se buscando quais outros acordes seriam também sobre o grau diatônico situado uma quarta abaixo representados pela estrutura analisada. Demonstraremos do grau de resolução. No Ex.34, o acorde de sétima como essas correspondências podem ser organizadas diminuta “C#º”, estranho à tonalidade de Dó maior, por uma espécie de sistema derivado das Escalas de situado uma segunda menor abaixo do IIm7 (Dm7), Acordes11. Com a associação de um acorde à uma Escalas corresponde ao acorde de Dominante secundária com de Acorde obtêm-se a possibilidade de uma gama maior nona abaixada situado uma quarta abaixo do IIm, ou de alterações. A escala correspondente a um determinado seja VI7(b9) (A7(b9)). Portanto, o acorde diminuto,

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corresponde a um acorde de sétima da Dominante com análise, o acorde Ab7/Gb permite a adição da nota Ré nona abaixada, com fundamental omitida. (omitida), e uma vez que já contém a quinta justa, o Ré surge como nota de tensão “#11”. Assim, esse acorde seria potencialmente um Ab7 (#11)/Gb. Seguindo o raciocínio apresentado mais acima sobre a relação escala/acorde, relacionamos esta estrutura à Escala Octatônica, que oferece a seguinte Gama de Alterações.

a) X7 (b9, #9, #11, ou b5,13) A Escala Octatônica é uma escala simétrica que promove a correspondência de vários acordes em intervalos de um tom e meio (terça menor ou segunda aumentada). Na música erudita normalmente diz-se que há apenas dois tipos de escala octatônica: Tipo A: que começa Ex.34 – Acorde diminuto visto como dominante com com tom-semiton (Dó-Ré-Mib...... ) e Tipo B que começa fundamental omitida. com semiton-tom (Dó- Réb – Mib.....) e suas diversas transposições (12 + 12 = 24 sem contar os enarmônicos). A estrutura do acorde de sétima diminuta é simétrica, Essas escalas Tipo a e Tipo B poderiam têm equivalência ou seja, compõe-se de intervalos idênticos. Por isso, na música popular com as escalas dom-dim (dominante- suas inversões também geram estruturas idênticas, de diminuta; cuja segunda nota é a nona maior [por exemplo modo que um acorde de sétima diminuta corresponda a Ré se estivermos em Dó Maior]) e dim-dom (diminuta- um total de quatro acordes distantes entre si por uma dominante, cuja segunda nota é a nona menor [por terça menor. Assim, compreende-se que o sistema possui exemplo Ré b se estivermos em Dó Maior]). No entanto, apenas três acordes diminutos e, consequentemente, se levarmos em consideração correspondência entre os suas correspondências (incluindo-se as enarmonias12). acordes diminutos e os acordes dominantes demonstrada Por exemplo: mais acima, teremos três escalas (Ex.35) para cobrir a) C#º, Eº, Gº, Bbº e seus correspondentes A7(b9), todas as possibilidades do cromático de 12 sons. O C7(b9), Eb7(b9), Gb7(b9). Ex.36 mostra os Acordes Diminutos correspondentes aos Acordes de Sétima da Dominante com a nona abaixada b) Dº, Fº, Abº, Bº e seus correspondentes Bb(b9), e fundamental omitida. Db7(b9), E7(b9), G7(b9). c) Ebº, Gbº, Aº, Cº e seus correspondentes B(b9), Assim, o acorde vagante diminuto e o acorde de D7(b9), F7(b9), Ab7(b9). Sexta Germânica são correspondentes se relacionados à escala octatônica. Tomemos como exemplo um Os acordes de sexta aumentada são casos típicos de acorde vagante cifrado como um Dº. Relacionando-o acordes vagantes. São obtidos como resultado da à 3ª coleção octatônica, ele torna-se equivalente aos transformação dos graus diatônicos em Dominantes acordes dominantes C#7, ou E7, ou qualquer outro Secundárias com a quinta e nona abaixadas. Podem desta coleção, podendo assumir suas propriedades assumir três configurações: Acorde aumentado de funcionais. Além disso, com tal associação, o Dº passa quinta e sexta, chamado de Acorde de Sexta Germânica a ter como notas de tensão disponíveis, todas as notas (ou Sexta Alemã); Acorde aumentado de terça e quarta da gama, podendo ser utilizado como Dº 7M (9, 11, b13). (acorde de Sexta Francesa), e Acorde aumentado de Da mesma forma, um acorde dominante associado a sexta (acorde de Sexta Italiana). Na teoria da harmonia esta coleção terá como configuração disponível, por na música popular, esses acordes são analisados exemplo, E7 (b9, #9, #11, 13). como substitutos da Dominante. Abaixo fazemos uma discussão mais detalhada sobre essas configurações O Acorde de Sexta Francesa e Escala Tons Inteiros (ou no contexto da música popular, e seu potencial de Escala Hexafônica): tratamento como Tonalidade Expandida. O Acorde de Sexta Francesa pode ser demonstrado através da transformação do acorde de terça e quarta O Acorde de Sexta Germânica e a Escala Octatônica: sobre o II grau do modo maior ou menor, elevando-se É a primeira derivação do acorde de sexta aumentada a terça e rebaixando-se a quinta (SCHOENBERG, 1999, apresentada por Schoenberg em Harmonia, demonstrado p.365). Em Dó maior, o acorde Dm7/A é transformado e através da transformação do “acorde de quinta e assume a configuração de D7(b5)/Ab. Continuando com sexta sobre o II grau do modo maior, elevando-se a associação de escalas às configurações dos acordes de a terça e a fundamental, e rebaixando-se a quinta” Sexta Aumentada, notamos que, no caso do acorde de (SCHOENBERG,1999, p.352). Em outras palavras, o acorde Sexta Francesa, não existe uma determinação quanto à Dm7/F é transformado e assume a configuração de D7(b9, nona. TINÉ (2002) sugere a associação desse acorde à b5)/F# com a fundamental Ré omitida. Essa configuração Escala Hexafônica, também conhecida como Escala de enarmonizada corresponde ao Ab7/Gb. Numa primeira Tons Inteiros. A escala simétrica Hexafônica é formada

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por sucessão de intervalos de um tom, e por isso se reduz o Acorde Vagante pode assumir a seguinte gama de a duas formas e suas transposições (Ex.37). A Escala alterações: X7 (9, #11, 13). Hexafônica promove a seguinte gama de alterações a um acorde vagante: O modo sobre o VII grau da Escala Menor Melódica é o modo Superlócrio e corresponde a um acorde meio • X7 (9,#11 ou b5, #5 ou b13) diminuto. Porém, na prática da música popular esse modo é denominado Escala Alterada e é associado a um acorde O Acorde de Sexta Italiana, a Escala Lídia (b7) e a de Sétima Dominante conhecido na teoria da música Escala Alterada: popular como Acorde Alterado. TINÉ (2002) explica que, para a consideração dessa escala,: Exemplificado por Schoenberg através do II grau do modo maior com a quinta abaixada e fundamental omitida. (...) não se considera uma sobreposição de 3as, mas de 4as Em outras palavras: Dm7/A transformado em D7(b5)/ (Sol#, Dó, Fá#, Si, Mi, Lá, Ré), gerando um acorde Dominante a Ab com a fundamental omitida. Essa configuração (enarmonizando do em Si#) com 9 aumentada (enarmonizando Si em Lá##), 13a menor, 9a menor e 11a aumentada, com função confunde-se com Ab7 sem a quinta. Pelo fato de não de V (Dominante), não de Lá (neste exemplo), mas de Dó# (maior apresentar nenhuma exigência sobre a alteração da ou menor) (TINÉ, 2002, p.5). nona e da quinta, ele permite ser associado a dois modos da escala menor melódica: (1) aquele sobre o O Ex.39a mostra: (1) o modo Superlócrio e seu Acorde Meio IV grau, conhecido como modo Lídio b7, ou Mixolídio Diminuto correspondente dentro do sistema de referência #11; e (2) aquele sobre o VII grau, conhecido como modo tercial; (2) a Escala Alterada e seu Acorde de Sétima da Superlócrio. No modo Lídio b7, ou Mixolídio #11 (Ex.38), Dominante Alterado, no sistema de referência quartal.

Ex.35 – Coleções Octatônicas e notas disponíveis em um acorde dominante C7.

Ex.36 – Acordes Diminutos correspondentes aos Acordes de Sétima da Dominante com a nona abaixada e fundamental omitida.

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Ex.37 – Acordes vagantes correspondentes, segundo as duas Coleções Hexafônicas (Tons inteiros).

Ex.38 – Modo Lídio b7 ou Mixolídio #11.

Com a inclusão do VII grau pelo sistema quartal, obtemos de Alterações) que serão automaticamente relacionadas à uma correspondência importante para o acorde de Sexta coleção Octatônica; ou à coleção Hexafônica; ou aos modos Italiana. O acorde de Sexta Italiana pode ser prolongado da Escala Menor Melódica. com nona, décima primeira aumentada e décima terceira, e assim assumir correspondência direta com um acorde 4.3.1 – Procedimentos de Expansão cuja fundamental esteja à distância de um trítono. Este Harmônica novo acorde pode ser prolongado com as notas da escala Dentre os Procedimentos de Expansão Harmônica mais alterada, isto é, a nona abaixada e aumentada, a décima comuns estão a Imitação dos Modelos Cadenciais e a primeira aumentada e a décima terceira abaixada: (a) IV7 Omissão do Caminho. A primeira possibilidade sugere (9,#11,13) ou IV7 (9,b5,13); (b) VII7 (alt) ou VII7 (b9,#9,#11 que qualquer um desses acordes possa ser precedido pelo ou b5, b13 ou #5). O Ex.40 ilustra a correspondência IIm7 ou IIø e (b)II7M dos seus correspondentes, segundo os entre o modo Lídio b7 e a Escala Alterada advindos de modelos cadenciais II – V.13 uma mesma escala Menor Melódica.

O Ex.41 mostra as correspondências dos Acordes Dominantes O Acorde de Sexta Germânica e as Coleções Octatônicas: relacionados ao modo Lídio b7 e à Escala Alterada. Com O Ex.42 mostra os acordes correspondentes de F7 essas observações podemos propor que os Acordes Vagantes na primeira coluna, e os respectivos segundos graus possam ser regidos por um sistema de relações que atua cadenciais na segunda coluna. paralela e simultaneamente à tonalidade. Esse sistema, que aqui chamamos de Sistema de Correspondências dos Acordes No Ex.43 (a, b e c), mostramos como a progressão | F7 | Vagantes, faz com que os acordes de Sexta Aumentada Bbm | pode sofrer duas Expansões Harmônicas: primeiro assumam determinados padrões de configuração (Gama para | Cm7 F7 | Bbm | e, depois, para | Cø F7 | Bbm |.

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Ex.39 a e b – Modo Superlócrio e a Escala Alterada, com respectivos acordes Meio Diminuto G#m7(b5) e Sétima da Dominante Alterado G#7(alt).

Ex.40 – Correspondência entre o modo Lídio b7 e Escala Alterada advindos de uma mesma escala Menor Melódica, com respectivos Acorde Lídio b7 F7(9, #11, 13) e Acorde Alterado B7(alt).

Ex.41 – Acordes Vagantes correspondentes segundo os graus IV7 e ( )VII7 da escala Menor Melódica. 

Ex.42 – Possibilidades de expansão de um Acorde Dominante de Sétima (F7) relacionado à uma Coleção Octatônica.

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O Ex.44 (a, b e c) mostra seis possibilidades de Expansão O Acorde de Sexta Italiana e os Modos da Escala Harmônica, nas quais o Acorde Vagante F7 com Menor Melódica: configuração relacionada à Coleção Octatônica pode Existem duas possibilidades de expansão nesse caso. ser precedido pelo II grau dos seus correspondentes. Primeiro, o acorde pode ser precedido pelo seu II grau, Esta expansão caracteriza-se por acrescentar o passo seguindo o modelo cadencial IIm7 -V7 ou IIø - V7. Como, cadencial que representa a força da Subdominante. por exemplo | F7 | Bbm | com expansão para | Cm7 F7 | Por isso, a relação (dentro da cadência) do acorde Bbm | ou para | Cø F7 | Bbm | . Segundo, o acorde pode ser expandido com o Dominante Vagante, pode ser bem precedido pelo II grau do seu correspondente (neste caso, representada pelo colchete tracejado. O acorde pode B7). Como, por exemplo, | F7 | Bbm | com expansão para ser analisado como grau transformado com auxílio do | F#m7 F7 | Bbm | ou para | F#ø F7 | Bbm | . algarismo cortado (por exemplo: VIIm7) e da alteração em parênteses, se for o caso (por exemplo: (#)VIø), Diferente das escalas octatônica e hexafônica, que produzem seguido pelo colchete tracejado. Observamos que o um mesmo tipo de acorde em seus graus, a escala menor colchete tracejado é utilizado na sinalização analítica melódica produz diferentes tipos de acordes (Ver Ex.3b). Uma de CHEDIAK (1986, p.101), apenas para indicar II expansão possível e mais radical é considerar todos esses cadencial do subV7. Observamos ainda que o acorde acordes como correspondentes para a expansão. LEVINE vagante F7 assumiu diferentes “roupagens”, ou padrões (1989, p.73-75) explica que as notas da escala menor melódica dentro das possibilidades oferecidas pela Coleção são intercambiáveis para todos os acordes de seu campo Octatônica, que seriam as combinações das notas harmônico por que ela não possui “notas evitadas”, como é nona abaixada, nona aumentada, décima primeira o caso da escala maior. Com isso, temos que os acordes da aumentada ou quinta diminuta e décima terceira maior menor mélodica, a saber: Xm7M; Xm7(b9); X7M(#5); X7(#11); (b9, #9, #11 ou b5, 13), além da fundamental, terça X7(b13); Xø(9); X7(alt); são correspondentes pois podem maior e sétima menor (1,3,7). No Ex.44a, o padrão é ser associados a uma mesma escala menor melódica. Por F7(b9,#11,13) e F7(#9,#11). Já no Ex.44b, o padrão é exemplo, Eb7M(#5) é bIII grau de Dó menor melódica, assim F7(#9, #11) e F7(b9, 13) com F7(#11) é o IV grau e B7(alt) é o VII grau. Estas relações permitem a expansão do exemplo do parágrafo anterior, O Acorde de Sexta Francesa e a Coleção Hexafônica (ou Escala de Tons Inteiros): | F7 | Bbm |, em: a) | Eb7M(#5) | Bbm |; b)| Cm7 Eb7M(#5) Seguindo o mesmo procedimento, temos que todos os | Bm |; c) |Cø Eb7M(#5)| Bbm |; d) | F#m7 Eb7M(#5) | acordes aumentados de Sexta Francesa relacionados Bbm |; e) | F#ø Eb7M(#5) | Bbm |. a uma coleção hexafônica podem ser precedidos pelos segundos graus cadenciais m7 ou ø de seus A Omissão do caminho correspondentes. O Ex.45 mostra o acorde F7(#5) e seus A Omissão do Caminho é um procedimento de expansão correspondentes associados à Coleção Hexafônica ( G7, que deriva do princípio da Abreviação dos Passos das 14 A7, B7, C#7 ou D#7). Fundamentais. Schoenberg apresenta essa concepção

Ex.43 (a, b e c) – Duas possibilidade de Expansão Harmônica por adição do II grau cadencial.

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Ex.44 (a,b e c) – Seis possibilidades de Expansão Harmônica de F7 - Bbm por adição do II grau cadencial dos Acordes Vagantes correspondentes.

Ex.45 – Possibilidades de expansão de um Acorde Dominante relacionado a uma Coleção Hexafônica. Nota: Para todos os acordes acima valem suas enarmonias.

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em Harmonia, no tópico “Abreviação de viragens através B7(b5) – , acorde de Sexta Italiana da Intermediária [sm]. da omissão do caminho” (SCHOENBERG, 1999, p.500). Como comentado anteriormente, a Tonalidade Flutuante Ao longo de seu raciocínio, Schoenberg conclui que, seria um caso particular de Tonalidade Expandida. Esse dentro da cadência, o passo cadencial desempenhado contexto pode fazer parte da estrutura da peça, ou ser pela Dominante pode ser abreviado, ficando a intenção encontrado apenas em trechos da música. cadencial subentendida apenas com o acorde com tendência à função de Subdominante. 4.5- Contexto de Tonalidade Suspensa Em Harmonia (1999), Schoenberg destaca duas (..) é uma semelhante abreviação aquele tratamento da Sexta características da Tonalidade Suspensa. Primeiro, seu Napolitana que traz diretamente o V grau. (..) As conclusões aspecto melódico: plagais talvez sejam também algo semelhante. Talvez por isso soem imperfeitas, porque alguma coisa foi eliminada. A saber: em vez de IV-V-I ou II-V-I coloca-se IV-I e II-I. (...) No geral, Pelo que diz respeito à Tonalidade Suspensa, depende totalmente do abreviações desse gênero somente podem ser efetuadas em tema. Este deve, através de suas viragens, fornecer o motivo para encadeamentos que possuam uma função determinada; logo, semelhante liberdade harmônica (SCHOENBERG, 1999, p.529). sobretudo nas cadências (SCHOENBERG, 1999, p.500-501). Depois, a predominância de Acordes Vagantes: Usemos com exemplo, a progressão | F7 | Bbm |. O acorde dominante F7, se associado à Coleção Sob o aspecto harmônico tratar-se-á aqui, quase que de forma Octatônica, terá como configuração possível F7(b9, exclusiva, de acordes nitidamente errantes. Qualquer tríade maior #9,#11,13) e como acordes correspondentes. (neste ou menor poderia, ainda que de passagem, ser interpretadas, como se fosse em si uma tonalidade (SCHOENBERG, 1999, p.529). caso: Ab7; B7; D7). Aplicando-se o procedimento de Omissão do Caminho, a progressão pode ser expandida Portanto, suspender a sensação de centro tonal através com o II grau cadencial de B7: | F#m7 | Bbm | ou | F#ø de Acordes Vagantes em relação ao aspecto melódico e | Bbm | ; expandida com o II grau cadencial de Ab7: | temático é um procedimento que coloca o centro tonal Ebm7 | Bbm | ou | Ebø l de B7: | Bbm | ; expandida dentro da possibilidade teórica das fundamentais omitidas. com o II grau cadencial de D7: | Am7 | Bbm | ou | Além disso, esta aparente suspensão seria suavizada, ou Aø | Bbm | . Os Acordes Meio Diminutos podem ser unificada, com uma condução de vozes elaborada através mais apropriados para desempenhar essa função, se de Variação Progressiva (conceito que será abordado no associados ao modo Lócrio 9, isto é, ao VI grau da escala próximo artigo, às p.70-95 desse número de Per Musi). menor melódica, com a configuração Xø(9,11,b13). Essa Essas considerações apontam sempre no sentido de que expansão leva a uma relação bastante remota, pois faz os conceitos harmônicos de Schoenberg permitiriam com que o Acorde Meio Diminuto seja considerado um extrapolar os efeitos clichês de re-harmonização. Acorde Vagante, organizado por uma coleção diferente As relações estabelecidas sempre apontam para um da Octatônica (no caso a menor melódica). Porém, sua centro que, com a engenhosidade das possibilidades de relação com os acordes dentro da cadência provém das Expansão e consequentemente, Flutuação e Suspensão, correspondências da Octatônica. permitem que a tônica não apareça na peça (!) e, ainda assim, apresentar uma influência incontestável sobre 4.4 - Contexto de Tonalidade Flutuante suas relações harmônicas. Segundo DUDEQUE (2005, p.124), a Tonalidade Flutuante ocorre quando se considera a existência de duas tônicas A prática da improvisação na música popular poderia se em um contexto tonal ambíguo. Assim, sua principal beneficiar da comparação que Schoenberg estabelece característica seria a incerteza, ou seja, a existência entre a utilização da Tonalidade Suspensa e as de trechos que podem ser analisados em duas Regiões. seções formais dos desenvolvimentos [Durchfuhrung] Schoenberg demonstra o papel dos acordes vagantes clássicos: dentro da Tonalidade Flutuante: Uma semelhança, não demasiado distante, já se tem nos Se a tonalidade deve flutuar, terá, em algum ponto, de estar desenvolvimentos clássicos, onde por certo o momento isolado firme. Porém, não tão firme que não possa movimentar-se com exprime necessariamente uma tonalidade, mas tão desprendida que soltura. Para isso são adequadas duas tonalidades que possuam pode perder-se a qualquer instante (SCHOENBERG, 1999, p.529). alguns acordes em comum, por exemplo, a Sexta Napolitana ou o aumentado de quinta e sexta (SCHOENBERG, 1999, p.528). Os conceitos de Tonalidade Suspensa e Tonalidade Flutuante poderiam facilmente levar a generalizações ou Em seguida, Schoenberg fornece dois exemplos de relações interpretações enganosas, como por exemplo, na análise entre Regiões que seriam adequadas para caracterizar a de uma peça que sugira modulações em sequência. Mas Tonalidade Flutuante: (a) T (Dó maior) e Np (Réb maior); sm devemos ter em mente que esses conceitos são casos (Lá menor) e DMb (Sib maior); (b) Deixando-se a T oscilar especiais de Tonalidade Expandida. Por outro lado, estes contra a relativa sm, e consequentemente, a Np contra conceitos poderiam desempenhar um papel importante sua relativa, o que gera novas relações: sm (Lá menor) e na elaboração de arranjos, como ferramentas práticas Np (Réb maior); e T (Dó maior) e vmb (Sib menor). Nesta para o desenvolvimento de variações do tema e estrutura última, o V7 da vmb – “F7” –, corresponde ao II7(b5) – harmônica expostos nas lead sheets.

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5 – Exemplos de articulação dos conceitos maior). Este acorde é utilizado como Acorde Vagante em lead sheets. para conectar as Regiões da Np e da sm. Nos c.15 e 16 (Ex.49), a Região D (Lá maior) antecede o retorno Nos exemplos abaixo, ilustramos a articulação dos da Região da t (Ré menor). No c.17, ocorre o acorde conceitos revisados ao longo desse artigo a partir de de Sexta Napolitana sobre o II grau transformado. A situações encontradas na lead sheet de 9 de Agosto de música se conclui sugerindo uma Região mais distante, 1996 de Hermeto PASCOAL (2000a) e 14 de Novembro a da S/T (Mi maior), e este distanciamento continua de 1996 de Hermeto PASCOAL (2000b) para uma até a mS/T (Dó# menor). possível realização dessas músicas. Uma das vantagens desta abordagem é facilitar a criação de linhas Nos c.5-6 do Ex.46, ocorre a utilização do 6^ grau contrapontísticas na sua realização. Essas linhas dão uma alternativa à realização tradicional estritamente elevado seguido pelo 6^ natural. Para Schoenberg, o homofônica dos acordes, e mostram o direcionamento sexto grau elevado é utilizado para fins cadenciais. do discurso musical e o trânsito entre as Regiões. Assim, Segundo o procedimento da Neutralização, o 6^ grau pode-se criar mais facilmente movimentos quase- elevado deve seguir ao sétimo grau elevado e este à diatônicos ou cromáticos com vistas a uma realização tônica. Isso pode ser aproveitado no c.5 para criar uma com função centrípeta ou centrífuga do trecho. linha contrapontística quase-diatônica (Qd) ascendente, ligando a nota Lá à nota Ré. Enquanto isso, outra linha, cromática (Cr) e descendente, é criada no baixo com as 5.1 – Criação de linhas contrapontísticas notas fundamentais Si, Sib e Lá. para a realização da música 9 de Agosto de 1996 de Hermeto Pascoal O Ex.47 mostra como aproveitar a concepção de Esta canção instrumental começa na t (Ré menor) Transformação para obter direcionamentos das vozes com um prolongamento e uma cadência deceptiva até transformadas. O acorde do c.7 é interpretado como o c.7 (Ex.46). No c.9 o acorde cifrado como Bb458/ sus (b9), o que permite sua leitura como IIø e V7. Com G5+7 (cifra especial de voicings criada por Hermeto) é isso, a nota do baixo Lá desce para Sol de modo a analisado como Eb(add2)/G, acorde de Sexta Napolitana configurar o acorde Eø/G. O acorde do c.8 foi analisado sobre o II grau (Ex.47). Desta forma, os c.7-9 parecem como transformação do II grau anterior da t através da caracterizar uma Sucessão gerada pelo prolongamento elevação da terça Sol para Sol#, isto é um E7(b5). Uma do II grau da Região da t. Porém, embora todo esse vez configurado como Acorde Vagante e que, com isso, trecho possa ser analisado como prolongamento do passa a ser utilizado como Bb7(#11). Assim, a nota Sol# é II grau através de transformações, a continuidade enarmonizada como Láb e naturalmente segue sua nova do discurso nos mostra que, no lugar de um possível tendência de resolução descendente para o Sol. prolongamento, pode estar ocorrendo, na verdade, uma Progressão cujo destino parece ser a Região da Observar que o movimento dessa linha foi obtido apenas Np. O primeiro fator que sugere isso é a sequência com dados extraídos da análise. Assim, podemos tratar Bb7/Ab – Eb e C7/Bb – F/A nos c.8-10 (Ex.48). Este a primeira sequência de notas Lá – Sol –Sol# como uma trecho parece delinear duas Regiões Intermediárias resolução indireta. No c.9, o acorde foi analisado como que se dirigem para a Região da Np, no c.12 (Ex.48). II grau transformado, por alteração da terça. Assim, a Essas Regiões estão sempre representadas pelo seu nota Mib é transformada em Mi natural. Mais uma vez, a IV grau, e preparadas pelo I grau transformado com configuração do acorde resultante é Vagante, que passa a quinta abaixada, com baixo na sétima [I7(b5)/7ª], funcionar como Dominante secundário do IV grau da Região respectivamente, a SM (Sib maior) e a SubT (Dó subT, por transferência de função. Esse exemplo mostra

Ex.46 – criação de duas linhas contrapontísticas em 9 de Agosto de 1996 de Hermeto Pascoal.

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como os conceitos harmônicos schoenberguianos 5.2 - Substituição cromática e quase- podem esclarecer as direções inerentes ou implícitas em diatônica em 14 de Novembro de 1996 determinadas vozes. No Ex.49, o acorde cifrado como B7(#9,b13) foi analisado como acorde vagante e considerado como Para se obter um direcionamento da(s) voz(es) Prolongamento do IV grau, correspondendo ao acorde transformada(s) por meio da própria cifra, observamos F7(9,#11,13). Porém, pelo fato de ele surgir com a dois passos. Primeiro, a direção ascendente ou cifragem de seu correspondente B7, através do modelo descendente é determinada pela transformação indicada cadencial IIø – V7, isto sugere que a nota substituta Ré# na cifra da Região de origem. Segundo, com base na (terça maior de B7) tenha surgido quase-diatônicamente configuração resultante dessa transformação, deve- (função centrífuga), produzindo a função específica de se identificar e verificar, através de sua continuação, sensível ascendente com potencial de resolução na nota se houve transferência de função e assim identificar Mi. Com a caracterização do Acorde Vagante, a nota as possíveis direções das vozes. Os Acordes Vagantes Ré# é enarmonizada como Mib (sétima menor de F7), costumam alterar o direcionamento da voz. sugerindo que a mesma tenha surgido como substituta cromática (função centrípeta), com movimento em No Ex.48, o acorde G7/B é utilizado como Acorde Vagante direção à nota Ré do próximo acorde. para conectar as Regiões da Np e sm como Db7(b5). A nota Ré foi trocada de oitava e assume a posição do No Ex.50, os acordes de sétima da Dominante, na baixo já transformada em Réb. Esse movimento, Ré – sequência dos c. 5-6 podem ser realizados como Réb, suaviza a passagem entre essas Regiões remotas, estruturas de acordes vagantes. Neste caso, procurou- pois anuncia a Região da sm. No c.15, a Permutabilidade se criar duas linhas de contraponto à melodia de modo Maior/Menor é aproveitada para desenhar uma linha que, no encontro dessas linhas fosse gerado uma melódica em forma de resolução indireta ou cambiata. estrutura Vagante. Sobre os dois primeiros acordes, Dm7 O acorde Bm7 sofre transformação da quinta, mas e G7, interpretamos o G7 como uma estrutura Vagante mantém sua fundamental baseada no II grau. Desta semelhante àquela do modo Lídio b7. Desta forma, a voz forma é criada uma linha cromática descendente com melódica deveria delinear o modo Sol Lídio b7. Por outro o Fá#, que é transformado em Fá natural e dirige-se lado, esse mesmo modo é encontrado sobre o IV grau para a nota Mi, quinta do acorde A7M. A continuação de Ré menor melódica, e essa compreensão possibilita da linha é feita na direção contrária através da sensível utilizar o procedimento de Neutralização para promover (Sol#) da região analisada D. A sensível conduz à sétima o surgimento da décima primeira aumentada (#11) no maior do acorde Napolitano, seguida pelo Sib, terça acorde G7. Após essa nota ser introduzida de maneira menor do acorde cifrado Gm7, que é analisado como quase-diatônica, sua continuação para o próximo acorde prolongamento do acorde Napolitano. Cm7 se dá por via cromática, de modo que a nota Dó# ,

Ex.47 – Utilização dos direcionamentos das vozes transformadas em 9 de Agosto de 1996 de Hermeto Pascoal.

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Ex.48 – Transformação preparando nova Região e Cromatismo gerado por Permutabilidade Maior/Menor em 9 de Agosto de 1996 de Hermeto Pascoal.

Ex.49 – Substituição cromática e quase-diatônica em um excerto de 14 de Novembro de 1996 de Hermeto Pascoal.

Ex.50 – Acordes vagantes na sequência dos c. 5-6 em 14 de Novembro de 1996 de Hermeto Pascoal.

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décima primeira aumentada, muda seu direcionamento, de movimento de bordadura, pois logo depois retorna movendo-se em direção a nota Dó. Esse motivo melódico para a SM (Lá maior). A partir deste ponto, a Região é utilizado em sequência sobre os próximos modelos II- da SM (Lá maior) flutua para a M (Mi maior), e retorna V7. Entretanto, na terceira e quarta sequências, este é para a T (Dó maior), através da Np (Réb maior). Mais executado pela terceira voz. uma vez, todas as modulações são feitas através da cadência Napolitana (Ex.51 e 52). O Ex.51 ilustra um trecho da música que sofre uma sequência de modulações muito breves, no espaço 6 - Considerações finais de apenas um compasso, sempre realizadas por uma Ao rever a literatura sobre o ensino da harmonia tonal na cadência Napolitana (modelo bII7M – I). No c.8, o acorde música popular, observamos que, até a década de 1990, Fm7 funciona como Ab7M, dando início à sequência de quase não havia materiais didáticos no Brasil (CHEDIAK, cadências Napolitanas. Assim, este acorde é analisado 1986, FARIA, 1991), situação que começou a mudar como (b)II7M na Região da D (Sol maior). Logo depois da somente no século XXI com a publicação de trabalhos cadência, o I grau da D (Sol maior), é reinterpretado como mais bem fundamentados (TINÉ, 2002; ALMADA, 2006; IV da S/T (Ré maior). Essa Transferência de Função (ver FREITAS, 2010). Da mesma forma, somente a partir da tópico 3 acima)de I para IV, logo depois que a cadência década de 1990 é que os trabalhos teóricos de Arnold Napolitana sofre repetições até o c.11, promove as SCHOENBERG (1993, 1999, 2001, 2004) ou sobre sua obra modulações para T (Dó maior) – D (Sol maior) – S/T (Ré didática (DUDEQUE, 1997, 2004a, 2004b, 2005) começam maior) – SM (Lá maior) – DM (Si maior). a ser publicados no Brasil. Mas ainda são escassas as iniciativas no ensino da harmonia tonal, com seus No trecho compreendido nos c.8-11 foi analisado procedimentos de afastamento da tonalidade em uma como progredindo da T para SM, através das Regiões linguagem que busque a integração entre as linguagens Intermediárias [D], [S/T]. A Região da DM (Si maior) das músicas popular e erudita. No presente artigo, determina o clímax desse percurso, como uma espécie buscamos rever, adaptar, propor sua utilização e aplicar na

Ex.51 – Tonalidade Expandida com uso de cadências napolitanas nos c.8-11 em 14 de Novembro de 1996 de Hermeto Pascoal.

Ex.52 – Tonalidade Expandida com uso de cadência Napolitana nos c.12-17 em14 de Novembro de 1996 de Hermeto Pascoal.

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música popular (aqui em duas canções instrumentais de de Monotonalidade, o músico popular consegue conviver Hermeto Pascoal), os diversos Conceitos Tonais, Funções bem e explicar grandes divagações harmônicas sem Tonais e Contextos Tonais (e seus princípios) contidos no recorrer à modulação. pensamento harmônico tonal de Schoenberg. Finalmente, esperamos que o presente artigo (assim como Consideramos que as contradições extremas entre o o seguinte, publicado às p.70-95 desse número de Per Musi) cromatismo e o diatonicismo expostas por Schoenberg, possa contribuir para que os músicos – popular e erudito que eventualmente levam a questões como a omissão - possam melhorar suas ferramentas para compreender, da tônica ou a existência de duas tônicas simultâneas, arranjar, compor e improvisar musicalmente. Se o representam um ponto fundamental de conexão com músico erudito, recorrendo à visão schoenberguiana de a música popular. Trata-se de uma perspectiva que harmonia tonal, pode explicar melhor os trechos tonais nos permite compreender e facilitar procedimentos harmonicamente mais obnubilados e perceber estruturas de performance, composição e arranjo na música formais mais amplas sem recorrer à modulação, o músico popular - especialmente no seu aspectos instrumental popular pode, por outro lado, ampliar seu vocabulário e improvisatório – que se consolidaram no meio não de acordes e suas progressões e – o que ainda é raro letrado, mas sim a partir da experiência prática – não - incluir, com mais liberdade e consciência – tanto ao teórica -, vivida nos palcos e construída com base na nível da improvisação, do arranjo ou da composição – o tradição aural e oral. Como Schoenberg no seu conceito pensamento contrapontístico.

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Notas 1 A tradução deste conceito, do alemão para o português, feita por Marden Maluf para na edição brasileira de Harmonia, é Acorde Errante. Optamos pela tradução de Eduardo Seincman, (do inglês para o português) de Funções Estruturais da Harmonia, Acordes Vagantes (em inglês Vagrant Chords). 2 A respeito desta concepção de Condução de Vozes, FREITAS (1995, nota de rodapé, p.4) a define como: “O domínio da harmonia que trata das técnicas de encadeamento dos acordes no que tange os movimentos melódicos (lineares) que as notas constitutivas desses acordes executam quando se combinam” 3 De outra forma poderíamos entender o acorde F#º como o IV grau de Dó maior com a fundamental alterada, possibilidade que é rejeitada por Schoenberg. 4 Derivação sugerida pelo teórico vienense Simon Sechter. 5 Essa conclusão de DUDEQUE (2005, p.112) corrobora a afirmação de SALZER (1982, p.26) sobre os movimentos estruturais. Progressões baseadas na Progressão de Fundamentais I – V – I não são as únicas estruturas sobre as quais os movimentos encontram expressão. Isso se aplica especialmente à música de hoje que tende a evitar a obviedade inerente à relação harmônica tônica – dominante. 6 Essa observação corrobora o pensamento schoenberguiano de que a Tônica está o tempo todo sobre a influência de seus satélites, a D e a SD. As condições de equilíbrio tonal dependem da tensão entre essas duas forças sobre a Tônica. Com a interpretação de DUDEQUE (2005, p.102) sobre a

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disposição do Quadro de Regiões, onde afirma: “No lado direito estão as Regiões relacionadas e/ou derivadas da Região Subdominante, enquanto no lado esquerdo, estão as Regiões derivadas da Região da Dominante”, podemos acrescentar que as condições de equilíbrio tonal dependem da tensão entre as forças da SD – e suas Regiões derivadas ou relacionadas – e da D – e suas Regiões derivadas ou relacionadas – conforme disposição do Quadro de Regiões. 7 Esse pensamento de prolongamento tonal surge da ideia de Sucessão e Progressão Harmônica. Apesar de ser obviamente schenkeriano, o conceito de prolongamento em SALZER (1962), aproxima-se de algumas ideias de Schoenberg. Para SALZER (1982, p.16), o termo Prolongamento, pode ser aplicado à expansão de uma Progressão de um acorde para outro, ou à expansão de um único acorde. 8 Nesse exemplo extraído de Funções Estruturais da Harmonia, SCHOENBERG (2004) não utiliza a alteração da fundamental em parênteses (b), ou (#), conforme adotamos nesse trabalho. 9 DUDEQUE (2005, p.93, nota de rodapé) alerta que a compreensão do termo “prolongamento da fundamental” deve ser compreendido como “extensão da função específica da fundamental de um acorde”, e que não deveria ser associado ao significado schenkeriano do termo “prolongamento”. 10 Escala de Acorde é a escala formada pelo conjunto das notas que caracterizam o acorde, chamadas Notas de Acorde, e as notas que o enriquecem, chamadas Notas de Tensão. 11 CHEDIAK (1986, p.337), define Escala de Acorde como “o conjunto das notas disponíveis que uma cifra apresenta para formar harmonia ou linha de improviso”. 12 Sons enarmônicos são sons iguais que recebem nomes diferentes. 13 A imitação do modelo cadencial IVm – V levaria à produção dos mesmos acordes, devido à característica simétrica dessas relações. 14 Os passos superfortes de 2ª ascendente e descendente são considerados abreviações de dois passos crescentes (SCHOENBERG, 1999, p.181-185).

Fabiano Araújo, pianista e compositor, desenvolve tese de doutorado sobre o jazz contemporâneo, desde 2012, na Universidade Paris-Sorbonne (Paris-IV), com bolsa CAPES, junto ao grupo JCMP-OMF (Jazz, chanson et musiques populaires – Observatoire Musical Français). É Mestre em Música pela Escola de Música da UFMG e Bacharel em Música Popular pelo Centro de Artes da UNICAMP. É Professor Assistente do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde contribuiu para a criação o curso de Bacharelado em Música, habilitação em Composição com ênfase em Trilha Musical. Possui 4 CD’s lançados: O Aleph (2007); Calendário do Som - 9 dias (2009) de Hermeto Pascoal, gravado e publicado em Portugal, com a participação do contrabaixista norueguês Arild Andersen do baterista Alexandre Frazão (Brasil/Portugal) e do saxofonista Guto Lucena (Brasil/Portugal); Rheomusi (2011) em trio com Arild Andersen e , e Baobab trio (2012), com peças de Radamés Gnattali, Baden Powell além de música improvisada em trio.

Fausto Borém é Professor Titular da UFMG, onde criou o Mestrado e a Revista Per Musi. Pesquisador do CNPq desde 1994, publicou dois livros, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia da música popular e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e recitais nos principais eventos nacionais e internacionais de contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Arnaldo Cohen, Luis Otávio Santos e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, , Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa e Túlio Mourão. Participou do CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa.

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Variação Progressiva de Schoenberg em Hermeto Pascoal: análise e realização de duas lead sheets do Calendário do som

Fabiano Araújo (UFES, Vitória, ES) [email protected]

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Resumo: Terceira parte de estudo relacionando Arnold Schoenberg e Hermeto Pascoal em relação à harmonia tonal. Aqui adaptamos e aplicamos os conceitos de Forma e Variação Progressiva de SCHOENBERG (1994, 2006), juntamente com outros conceitos (SCHOENBERG,1984, 1993, 1999, 2001, 2004) abordados em artigo anterior (ARAÚJO e BORÉM, 2013, às p.35-69 desse número de Per Musi) na realização de duas canções instrumentais do livro de partituras Calendário do som de Hermeto Pascoal: 23 de junho de 1996 (PASCOAL, 2000a, p.23), e 9 de Junho de 1997 (PASCOAL, 2000a, p.374), cujas partituras (PASCOAL, 2013a e 2013b) são apresentadas às p.96-98 e p.99-101 desse desse número de Per Musi.

Palavras-chave: Calendário do som de Hermeto Pascoal; teoria tonal de Arnold Schoenberg; análise da música popular brasileira e realização de cifras; variação progressiva na música popular.

Schoenberg’s Developing Variation on Hermeto Pascoal: analysis and realization of two lead sheets from Calendário do som

Abstract: Third part of a study relating Arnold Schoenberg and Hermeto Pascoal with tonal harmony, this paper adapts and applies the concepts of Form and Progressive Variation by SCHOENBERG (1994, 2006), together with some other concepts (SCHOENBERG,1984, 1993, 1999, 2001, 2004) approached in a previous article (ARAÚJO e BORÉM, 2013, pp.35-69 of Per Musi this issue) in the realization of two instrumental songs from the scorebook Calendário do som by Brazilian multiinstrumentalist Hermeto Pascoal: 23 de junho de 1996 (PASCOAL, 2000a, p.23), and 9 de Junho de 1997 (PASCOAL, 2000a, p.374), which realized scores (PASCOAL, 2013a e 2013b) are also presented on pp.96-98 and p.99-101 of this Per Musi issue.

Keywords: Calendário do som by Hermeto Pascoal; tonal theory of Arnold Schoenberg; analysis of Brazilian popular music; lead sheet realization; developing variation in popular music.

1 – Introdução Esse artigo é a terceira parte de um amplo estudo dos linguagens harmonicamente sofisticadas, como a de presentes co-autores, que articula a música de Hermeto Hermeto Pascoal nas partituras do seu Calendário do Pascoal e a teoria musical tonal de Arnold Schoenberg. No Som (PASCOAL, 2000), duas das quais estão realizadas primeiro trabalho, demonstramos como a história de vida e editadas às p.96-98 e p.99-101 desse desse número de de Hermeto Pascoal influiu diretamente na formação de Per Musi (PASCOAL, 2013a e 2013b). suas diversas e ecléticas linguagens harmônicas (BORÉM e ARAÚJO, 2010, p.22-43; BORÉM e FREIRE, 2010, p.63- No presente artigo fazemos uma adaptação dos 79). Em seguida, revisamos e propomos uma adaptação conceitos de Forma e Variação Progressiva de Schoenberg dos Conceitos Tonais, Funções Tonais e Contextos Tonais e propomos a aplicação deste referencial teórico na de SCHOENBERG (1993, 1999, 2001, 2004, 2006) à compreensão dos procedimentos composicionais de música popular (ARAÚJO e BORÉM, 2013, às p.35-69 Hermeto Pascoal e sua performance, especialmente em do presente volume de Per Musi), especialmente em relação à obtenção de linhas contrapontísticas seja na

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 09/03/2012 - Aprovado em: 04/01/2013 70 ARAÚJO, F.; BORÉM, F. Variação Progressiva de Schoenberg em Hermeto Pascoal: análise e realização ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.70-95.

improvisação ou no arranjo. Para isso, selecionamos duas parecem mais satisfatórios, do ponto de vista musical, em canções instrumentais do livro de partituras Calendário forma de uma lead sheet realizada. do som de Hermeto Pascoal para ilustrar essa abordagem: 23 de junho de 1996 (PASCOAL, 2000a, p.23) e 9 de Junho A realização que apresentamos consiste em reescrever de 1997 (PASCOAL, 2000a, p.374). a lead sheet a partir de dados da análise, como em um arranjo, mas ainda apresentado na forma de lead sheet. O conjunto de 366 peças do Calendário do som, bem O objetivo é buscar elementos unificadores dentro como a maioria da vasta produção de Hermeto Pascoal, se da própria obra escrita para propor elementos de associa à música tonal. Entretanto, seus procedimentos performance, criando introduções, grooves, pontes, linhas de afastamento e aproximação dos centros tonais, muito contrapontísticas, modificações na fórmula de certos peculiares em relação à maioria dos músicos populares, compassos e até alargamento ou diminuição de certos assim como sua grafia única de cifras, revelam um trechos. Apresentaremos aqui os passos para elaboração da pensamento estruturado que, se nasceram de sua lead sheet de realização que foi usada para a gravação das intuição e autodidatismo enquanto músico brasileiro canções instrumentais 23 de junho de 1996 e 9 de junho não letrado, encontram eco e explicação nos princípios de 1997 no álbum Calendário do som – 9 dias (PASCOAL, sistematizados por outro importante compositor do 2009). Do processo de realização da lead sheet destacamos século XX, o europeu Arnold Schoenberg, músico de a produção de linhas cromáticas ou quase-diatônicas e formação acadêmica, racional. as intervenções na forma. Se a teoria de harmonia tonal de Schoenberg é apresentada como meio pedagógico, A notação de Hermeto no Calendário do som é mais partindo do contraponto para entender suas partes, os completa e criativa que a maioria dos outros compositores instrumentistas fizeram o caminho inverso, partindo em suas lead sheets. Inclui, além das cifras, outros da cifra para se chegar ao contraponto. Na realização símbolos de interpretação como sinais de articulação, das linhas contrapontísticas, os músicos recorreram a arpejos, efeitos como portamenti ou, ainda, anotações ao notas de passagem, bordaduras, apojaturas, escapadas, pé da página como “...tocar até cair no chão” (PASCOAL, antecipações, suspensões, cromatismos e cambiatas. Essas 2000, p.66) cuja realização ele, com seu senso de humor, linhas servem como esboço para a performance (e, no caso adverte: “. . . não escrevo andamento nem o estilo para de gravação, para cada take), observando-se os contornos não atrapalhar o digníssimo intérprete. Se vire” (PASCOAL, melódicos e figuras rítmicas, as variações de expressão e 2000, p.121). O intérprete da música de Hermeto Pascoal técnica: dinâmicas, articulações, intenções. poderá também se fazer algumas perguntas ao buscar uma realização mais fundamentada no próprio estilo do Antes de prosseguir, discutimos mais alguns problemas em compositor (o que inclui a realização de contrapontos e torno da partitura em formato lead sheet, característica desenvolvimento motívico). Quando Hermeto não sugere marcante da escrita da musica popular, onde apenas arpejos nas cifras, deveríamos tocá-la em bloco? A informações básicas como linha melódica, cifras e ritmo análise da melodia poderia sugerir a utilização de notas, harmônico e, esporadicamente algumas convenções, Motivos e Frases já existentes para gerar mais unidade na estão contidas. Vejamos a definição de LEVINE: realização? As articulações originais da canção deveriam servir de material temático recorrente na realização? “Lead sheet é um pedaço de papel que contém uma linha melódica, acordes representados em símbolos e as vezes letra da música. Usualmente, a lead sheet traz o mínimo de informação, a maior Propomos aqui, que a realização da música de Hermeto parte em código, e essa informação, principalmente quanto aos Pascoal seja precedida por uma análise minuciosa e acordes; não deve ser encarada do mesmo modo que as tábuas exaustiva. Entretanto, o leitor deve considerar análises que Moisés trouxe da montanha.” (LEVINE, 1995) mais simples, focada nos elementos mais relevantes e, por isso, talvez mais palatáveis e adequadas à rotina dos Vemos que, na prática de musica popular, estes performers. Primeiro, recorremos a conceitos analíticos elementos são como instruções para a performance, da teoria tonal de Schoenberg como Regiões, Acordes diferentemente da tradição de musica erudita, na qual o Vagantes, Permutabilidade Maior-Menor, Tonalidade papel do intérprete é mais limitado e, geralmente, não se Expandida, Tonalidade Flutuante e Tonalidade Suspensa. integra aos processos de compor, arranjar e, raramente, Esses conceitos, amplamente discutidos em nosso artigo improvisar. Em sua revisão sobre a história da teoria do anterior (ARAÚJO e BORÉM, às p.35-69 desse número jazz, o musicólogo francês Laurent CUGNY (2009, p.155) de Per Musi), permitem uma visão mais aprofundada e relaciona este aspecto informal, sem rigor intelectual prática sobre os afastamentos e aproximações tonais do discurso teórico que se formou ao redor da música a serem aventados. Depois, visando ir além de uma popular, principalmente nos primeiros tempos deste realização dentro do senso comum da música popular, discurso, como um “sintoma de um clima necessário baseada nos clichês de improvisação (como os arpejos para a improvisação” (CUGNY, 2009, p.154-155). É neste ou “sequência[s] de acordes do mesmo tipo” citados por sentido que ele diz que, em relação à interpretação de ZAGO, 2007), recorremos também à noção de “rapsódia” de lead sheets, “cada improvisador, no fundo, utiliza seu Schoenberg, o que nos permite aproximar a improvisação próprio sistema, sua maneira de apreender os sons – de um processo composicional mais estruturado. especialmente a harmonia – o que mantém abertas suas Finalmente, nos permitimos anotar os resultados que nos chances de encontrar uma expressão própria”.

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Em algumas anotações de pé de página das lead sheets Na nossa visão, Hermeto, ao escrever suas composições do Calendário do som, podemos antever o processo improvisadas no formato lead sheet, cria uma obra que, amplamente integrado de composição-improvisação- num primeiro momento é ao mesmo tempo “fechada”, notação-arranjo-realização de Hermeto Pascoal. Ele “definitiva” e “independente” (por ser escrita), mas “aberta” comenta: “Componho todas essas músicas na hora. De em seu processo de criação (por conter traços de técnicas repente, cada dia é uma história. Viva o som!” (PASCOAL, de improvisação). Em um segundo momento, nas mãos do 2000, p.88), ou “Como sempre, as minhas músicas intérprete que a realiza, este pode escolher de não seguir o começam com um estilo e terminam com vários. É processo de leitura/interpretação voltado para a imitação conforme o dia e a cuca” (PASCOAL, 2000, p.84). Isso dos padrões estilísticos presentes nas obras gravadas de revela sua maleabilidade ao utilizar ferramentas comuns Hermeto, ou dos padrões tradicionais do jazz (tema-solos- da improvisação como arpejos e sequência de acordes do tema; solista/seção rítmica; etc...). Pode, ao contrário, mesmo tipo (ZAGO, 2007, p.3). Algumas vezes, Hermeto partir para um mergulho no “texto musical” deixado na sugere uma instrumentação, como na música 19 de lead sheet como fonte única para a interpretação do que setembro de 1996: “Escrevi esta música brejeira com chamamos de “ideia musical”, no sentido shoenberguiano. um instrumento bem diferente, que foi o flugelhorn. É Com os conceitos desenvolvidos por Schoenberg, propomos parecido com o trompete, só que o som é mais aveludado” um modelo de compreensão do texto musical deixado por (PASCOAL, 2000, p.111). Para o cavaquinho, ele dedica pelo Hermeto para estruturar “improvisações-composições” menos quatro músicas: (1) para a música 15 de setembro na sua realização de modo a incluir procedimentos mais de 1996 ele diz “...compus esta música com o cavaquinho, utilizados na música erudita (como a Variação Progressiva) estava com muita vontade de tocar com ele” (PASCOAL, mas cumprindo formalmente o percurso da forma (intro, 2000, p.107), (2) para a música 4 de outubro de 1996 seções, pontes, solos, coda), se aproximando muito das diz “...ficou bem no estilo dele” (PASCOAL, 2000, p.126), características do Arranjo. (3) para a música 12 de dezembro de 1996 também se inspirou nesse instrumento (PASCOAL, 2000, p.195); (4) Com a publicação dessas duas lead sheets realizadas e em 29 de dezembro de 1996 junta o cavaquinho com o (PASCOAL, 2013a e 2013b, às p.96-98 e p.99-101 desse piano: “Esta deu um trabalho danado, porque eu compus número de Per Musi), propomos ao músico popular com o cavaquinho pensando em uma harmonia. Quando experimentar um nível mais estruturado e sofisticado cheguei ao piano me veio uma harmonia completamente nas suas improvisações (nos três sentidos evocados estranha, claro no bom sentido!” (PASCOAL, 2000, p.212). acima). Por outro lado, convidamos também o músico erudito a se aproximar destas práticas que na maioria Esse caráter intuitivo, improvisatório e livre destas das vezes, lhe parece fascinante e tão distante, como composições (escritas em formato lead sheet) de Hermeto explicitado pelo pianista Nelson Freire: “Olha, eu tenho Pascoal nos remete às mesmas características da forma inveja de quem saber tocar jazz, incrível. . . sabe uma musical rapsódica, apontadas por SCHOENBERG (2004, coisa que eu adoraria? Chega assim e, de repente. . . p.198) no seu Funções Estruturais da Harmonia: improvisar...eu tenho fascinação por Errol Garner. . . nunca vi ninguém com tanto prazer. . .” (FREIRE e O nome “rapsódia” sugere uma improvisação. [...] A excelência de SALLES, 2003, em [01:06:46]). uma improvisação assenta-se mais em seu inspirado imediatismo e vivacidade do que em sua elaboração. É claro, a diferença entre uma composição escrita e uma improvisada é a velocidade de 2 – Schoenberg e a apresentação da ideia musical produção, assunto este, relativo. Assim, sob condições apropriadas, Os conceitos de Schoenberg sobre elementos da Forma uma improvisação pode ter a profundidade de elaboração de podem ser melhor compreendidos a partir de seus uma composição cuidadosamente trabalhada. Geralmente, uma improvisação irá apegar-se ao seu tema mais pelo exercício da manuscritos inacabados, editados após sua morte em imaginação e emoção do que, propriamente, das faculdades obras como Coherence, counterpoint, instrumentation, estritamente intelectuais. Haverá uma abundancia de temas instruction in form (SCHOENBERG, 1994) e The e ideias contrastantes cujo efeito total se adquire por meio de Musical idea, the logic and the art of its presentation rica modulação a regiões remotas. A conexão entre temas de naturezas tão diferenciadas e o controle da tendência centrífuga (SCHOENBERG, 2006). Neles, Schoenberg quiz evidenciar da harmonia são, em geral, obtidos de maneira apenas casual, por a unidade e compreensibilidade musical de uma peça a meio de “pontes”, e inclusive, justaposições abruptas. partir da articulação de repetições e variações de uma ideia musical enquanto organismo vivo, em outras Estas considerações nos conduzem à três noções de palavras, a Darstellung ou “...a apresentação de um objeto improvisação na música popular. Primero, a “improvisação a um espectador de modo que ele perceba as partes escrita”, categoria na qual consideramos a escrita de compostas como se fosse um movimento funcional” Hermeto no Calendário do som. Segundo, o ato de (SCHOENBERG, 2006, p.2). “improvisar uma composição em performance”, que é a tendência contemporânea (a chamada música improvisada) O conceito de Grundgestalt (Motivo Básico ou e da qual nasce a polêmica sobre seu pertencimento ou não Configuração básica) evoluiu ao longo da obra de ao nome jazz. Terceiro, a noção tradicional de improvisação: Schoenberg, sendo fundamental no seu sistema de um instrumentista solista improvisando sobre a harmonia composição dodecafônico. DUDEQUE (2005, p.135, 141) de um standard em um ou mais chorus. fala da preocupação de Schoenberg em formular um

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princípio de unificação e articulação musical mesmo após a indicação das casas I e II. Nos c.9, 11,15-19, Hermeto o abandono da tonalidade: indica o ritmo harmônico dos acordes, cujas cifras serão comentadas mais abaixo. Seu esquema analítico completo A retórica de Schoenberg sobre a ideia musical, forma básica, e é apresentado no Ex.53 ao final do artigo. variação progressiva depende da interpretação. O formato que uma ideia musical concreta, uma Grundgestalt, pode tomar depende consequentemente da sua aplicabilidade. Ela pode 3.1 - Variação Progressiva em 23 de Junho tomar o formato de uma estrutura de intervalo, um tema, uma linha melódica, ou um contorno rítmico-harmônico. De fato, a de 1996 identificação analítica de uma Grundgestalt repousa no estilo e na Frase Inicial: forma, e possivelmente na aplicação analítica. A Frase 1 é estruturada na região da t, em sete compassos, como modelo-sequência e cadência (Ex.1). Os Já o conceito de Variação Progressiva, por sua vez, é usado dois primeiros compassos da peça nos dão uma pista da por Schoenberg como técnica composicional desde suas Ideia Básica do tema com os Motivos a e b. Estruturado primeiras composições tonais e consiste basicamente sobre o I grau da t (Lá-menor), o Motivo a é formado por do desenvolvimento progressivo de uma ideia ou forma uma figura de 3 semínimas (Figura K), e apresenta um básica que produz relações de unificação, em vários intervalo de 3ªM desc. (Mi-Dó) retornando para Mi por níveis, entre os demais elementos de uma peça musical. graus conjuntos. (Mi-Dó-Ré-[Mi]). O Motivo b também em semínimas, se inicia com um intervalo de 6ªm asc., Para compreender a forma segundo o pensamento de retornado no sentido oposto por grau conjunto até a nota Schoenberg, são importantes – além de Grundgestalt e Lá. Estes dois motivos formam uma estrutura coerente, Variação Progressiva - outros conceitos descritos por ele cujas características são repetidas e variadas ao longo como Motivo, Frase, Tema, Sentença, Período, Formações da peça e, por isso, os dois formam a Gestalt A. Além Estáveis e instáveis, Ideias Principais e Subordinadas. de manterem a mesma figura rítmica de 3 semínimas (Figura K), os intervalos a1 e b1 podem ter sua origem 3 – A canção instrumental 23 de Junho de no espelhamento das notas Dó-Ré no c.1 no Dó-Si do c.2. 1996 A valsa-canção 23 de Junho de 1996 é a primeira das 366 Percebe-se na estrutura da Frase 1, conexões e composições do Calendário do Som. No alto da página o organizações que geram uma continuidade do discurso, autor indica o local (Rio de Janeiro, bairro Jabour) e o título desde as menores estruturas (Motivos) até as maiores da música como em um calendário “Música escrita no dia (Gestaltes). O Intervalo a1 (3ªM desc.) do Motivo a 23 de Junho de 1996 – Hermeto Pascoal. Domingo”. Na é variado progressivamente e alternadamente (3ªM parte de baixo da partitura, ele escreve: “Terminei à 0 hora desc; 6ªm asc; 5ªJ desc.; 7ªM asc). Do ponto de vista 47 m. Viva o som, tudo de bom. sempre. Hermeto Pascoal. das características motivicas rítmicas, encontramos as A vida é linda porque estamos todos sempre juntos.” Não figuras X, Y e Z progressivamente variadas a partir de K há indicação de andamento, mas vemos alguns sinais de (Ex.2), sendo X, variada por condensação de K, enquanto articulação, como portamenti nos c.8, 9, 15 e 17; e acentos Y e Z são variadas por substituição: na primeira, as três e ligaduras de expressão, no c.13. Quanto à forma, temos primeiras colcheias de X por uma semínima pontuada; e um ritornelo curiosamente desenhado em forma de ave, e na segunda, 4 colcheias por uma mínima.

Ex.1– Estrutura, Motivos e Gestaltes da Frase 1, c.1-7 em 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

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Ex.2 – Variação Progressiva das figuras rítmicas em 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

Ex.3– Estrutura, motivos e Gestalts da Frase 2, c.8-13 em 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

Percebe-se nesta frase um procedimento de extensão Gestalt B resultante. No c.6 percebe-se a Figura Y como da Gestalt A, usada como modelo para a elaboração da derivada de X com a modificação da duração da primeira sequência (c.3-4) e um procedimento de conclusão com nota para uma semínima pontuada. A força desta nova a cadencia (c.5-7), nitidamente elaborada como produto forma-motivo (Gestalt C) é comprovada pela repetição da condensação da Gestalt A. de sua característica rítmica, representada pela Figura Y no c.7. Este compasso é um ponto chave da continuidade A sequência identificada como Gestalt A1, resulta do discurso devido ao uso da harmonia Am7 como ponto inicialmente da repetição da Gestalt A uma 4ª justa de chegada da t e como IV grau da sd. A sensação de acima. O Intervalo a2 (5ª justa) seria uma ampliação de ponto de chegada é dada claramente pela cadência, a1 (3ª maior) e o Intervalo b2 (7º maior) uma ampliação e a continuidade se dá pelo aproveitamento da função de b1 (6ª maior). Esta variação da Gestalt A é importante subdominante menor do IV grau com repetição da Figura porque duas de suas características, os intervalos a2 e Y e a variação do contorno melódico da Gestalt B através b2, serão aproveitadas na estruturação de novas formas- dos Motivos a1 e b1 da Gestalt A. motivo (Gestalts) nas próximas frases. Repetição e variação da Frase Inicial: Na cadência (c.5-6) tem início o processo de dissolução No Ex.3 mostramos a Frase 2 como uma repetição e das características da Gestalt A. Incialmente ela é variação (REP/VAR) da Frase Inicial. O inicio da Frase 2 é condensada, dissolvendo a Figura K, e trazendo à luz a tomado como modelo/sequência que reapresenta eventos Figura X (semicolcheias) e o Motivo c1 (2ª menor) na motívicos da Frase 1, como a Figura K, e os intervalos c1 e

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b2. Ressalta-se aqui a repetição e combinação de elementos 3.2 – Harmonia em 23 de Junho de 1996 variados progressivamente a partir da forma básica Gestalt Essa valsa-canção em Lá menor tem apenas cinco tipos A, que vai se consolidando assim como a Ideia Básica 4 (#11) (b5) de acordes: a) Xm7( 9); b) X7M; c) X7M ; d) Xm7 ; e) (Grundgestalt) . Nos c.10-11, define-se a Gestalt D, que #9 X7( b13); e 2 tipos de estruturas de vozes: a) X458/Y6; e pode ser vista como a soma da Figura Z e da Figura X (a b) X257+/Y. O tema é construído (e repetido) ao longo primeira entendida como Variação Progressiva da Figura K de 19 compassos, partindo da Região da t (Lá menor), e através de Y). A primeira parte (c.10) da Gestalt D apresenta finalizado com Coda de dois compassos em uma Região como elementos recorrentes da Frase 1, os intervalos b1 e remota que pode ser interpretada como a Np (Sib maior) b2, além do fato da passagem (Lá-Fá#-Sol) delinear uma ou, talvez, a SDNp (Mib maior). escapada por salto. A segunda parte (c.11) tem como base um arpejo da tríade de Sol maior, cujas notas são conectadas Na organização das partes desta Forma-Sentença, a por escapadas (Sol-Fá#-Si), (Si-Lá-Ré) e finalmente uma Frase 1 é estruturada na Região da t; a Frase 2, na Região escapada por salto para alcançar a nota Fá do c.12 (Ré- da D passando pela intermediária [v] até a sd/SD. No fim Fá#-Fá). A sequência da Gestalt D (c.13) possui mais da Frase 2, a tonalidade se mostra flutuante entre a sd/ afinidade rítmica do que melódica. SD e Np e no início da Frase 3, entre a T e a sd/SD e entre a t e a M. A Frase 4 faz o retorno à t através de acordes A estrutura do tema (Ex.4) pode ser compreendida, transformados com influência da M e sd/SD e Np (no portanto, segundo o modelo de Forma-Sentença (forma c.18), ou de expansão de Acordes Vagantes por Omissão aberta) (Ex.5), com uma Frase Inicial, Frase 1 (c.1-7); do Caminho. A Coda reforça a possível influência da Np uma repetição variada da Frase inicial, Frase 2 (c.8-13); quando analisada com SDNp, onde o último acorde do uma terceira parte, Frase 3, constituída de uma repetição c.18 (Abm7) é analisado não por Omissão do Caminho, e variação de excertos das duas primeiras frases (c.14- mas como IVm resolvendo plagalmente em Eb7M após 16); e uma cadência, Frase 4 (c.14 em diante). ser prolongado pelo acorde napolitano E7M.

Ex.4 – Estrutura, Motivos e Gestalts da Frase 3 e Frase 4, c.14-19 em 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

Ex.5 – Estrutura do Tema em em 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

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A passagem entre a Região do v e da sd/SD nos c.11- Prolongamento é o principal fator sobre o qual a coerência 12, é produzida pelo acorde G257M/Eb, interpretado com tonal é baseada. Essa ideia sugere que um organismo B7(alt)/D# no v e como F7(b5)/Eb na sd. Nesta região, o musical fundamenta-se sobre uma estrutura que delineia acorde Gm7 seria um Prolongamento de Bb7M, mas na um movimento com direcionamento específico para Np é possível compreender F7 – Gm7 como uma cadência um centro. Essa base estrutural representa a opção de deceptiva. Buettner prevê essa relação como clichê de caminho mais direto percorrido pela ideia musical. Porém, resolução, onde um acorde Dominante resolve um tom o interesse e tensão de uma peça musical, consistem na acima. O autor baseia essa resolução sob o prisma da expansão, modificação, distorção e elaboração dessa direção básica. Esses efeitos são obtidos através dos (...) possibilidade de respostas cadenciais em relação às tônicas diferentes tipos de Prolongamentos. relativa e anti-relativa, que possuem notas em comum com a tônica, o que possibilita a Dominante original resolver nesses outros dois acordes, além da própria tônica (BUETTNER, 2005, p,18) Por exemplo, no c.8 (Ex.7), pode-se prolongar o acorde F#m7 (IIm grau), envolvendo-o com Acordes Vagantes. Com isso, o acorde Gm7 pode ser preparado pela Através dessa análise, o músico poderá enxergar possíveis Dominante do seu relativo Bb7M, que seria exatamente direções para as vozes de acordo com a transformação o acorde F7. analisada, e assim, recorrer simultaneamente a uma suavização e sofisticação harmônicas nas mudanças No c.13, a relação entre os acordes Bbm7 e A7 apresenta de Região. Além disso, o Prolongamento com Acordes outro caso típico de Tonalidade Expandida. O V7 (A7) Vagantes produz o efeito de suspensão da tonalidade, apresenta-se como Acorde Vagante de sexta italiana. “realçando”, ou “turvando” as passagens, como se Esse acorde possui função múltipla, pois pode assumir a estivéssemos trabalhando com atmosferas, num jogo 3 configuração de Eb7(9,13). O acorde Bbm7 provém dos de luzes e sombras em uma cena. No Ex.7, a conexão procedimentos de expansão 1, onde um Acorde Vagante é entre o IVm7 (Am7) e o IIm (F#m7) foi prolongada com precedido pelo II grau cadencial de seus correspondentes. a transformação do IVm7 em Acorde Vagante. Esse Prolongamento pode ser obtido rapidamente através A relação entre os acordes do c.18 provém do procedimento dos clichês de resolução propostos por BUETTNER (2005, 4 de expansão chamado Omissão do Caminho 2. Aqui, a p.17-30) . Os acordes Dominantes da tônica relativa progressão Fm7 Abm7│Am7 G#7 | deve ser interpretada (D7M) e da anti-relativa (A7M) de F#m podem lhe como derivação da progressão │Fm7 G7(alt)│Am7 G#7|. oferecer respostas cadenciais. Assim, obtemos os acordes Nessa cadência deceptiva, o acorde G7(alt) é um Acorde A7 e seu correspondente Eb7, que resolveriam na relativa, Vagante (Acorde de sexta italiana), de função múltipla, e os acordes E7 e B7, que resolveriam na anti-relativa. correspondente de Db7. Conforme os procedimentos de A partir desses acordes, escolhemos aquele que, com a expansão, o Acorde Vagante é precedido pelo II grau nota da melodia na voz principal, assegure um Acorde cadencial de seu correspondente, e depois ocorre a Vagante correspondente às coleções do Sistema de 5 Omissão do Caminho expandida (Ex.6). Correspondência dos Acordes Vagantes . Com essa rápida “estratégia”, obtém-se o acorde Eb7(9, #11), que na análise schoenberguiana é uma transformação do IV grau 3.3 – Realização de 23 de Junho de 1996 Am7 no acorde A7(b5)/Eb. Com isso, tiramos proveito Criação de linhas cromáticas ou quase-diatônicas: de suas possibilidades de múltiplo direcionamento das A conceituação estabelecida por SALZER (1982) sobre vozes6. Depois do F#m, introduzimos o I grau transformado Estrutura e Prolongamento, se aplicada sobre os E7(b9,#11,13) para chegar ao A7M (c.9), que havia sido elementos levantados pela análise schoenberguiana, prolongado pelo A#ø. Aqui, propomos uma linha que faz poderá nos auxiliar na utilização prática dos elementos a antecipação do baixo A#, e que acaba por diferir da retirados da análise. Para ele, o conceito de estrutura e convenção rítmica da partitura original.

Ex.6 – Detalhamento do procedimento de expansão por Omissão do Caminho no c.18 de 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

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Ex.7 – Inserção das Harmonias Vagantes A7(b5, b13) e E7 (b5, b9)/D em 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

Ex.8– Linhas contrapontísticas nos c.10-12 de 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

O Ex.8 mostra como uma mudança de função leva à de suas funções múltiplas, o direcionamento da nota mudança de direcionamento de uma voz. No terceiro Ré# passa a ser descendente, uma vez que esta é tempo do c.11, a terça do acorde B7 foi alcançada enarmonizada com Mib, e funcionando como sétima quase-diatônicamente caracterizando-se como sensível menor de F7, bVII7, grau expandido do acorde Gm7. Na (Ré#) da Região v (Mi menor) admitindo, assim, seu elaboração das linhas contrapontísticas, o baixo define direcionamento ascendente. Com a constituição vagante as fundamentais dos Acordes Vagantes B7 e F7. O Mib deste acorde e, consequentemente, com a utilização enarmônico de Ré# foi usado no tenor, sendo alcançado

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por uma escapada (Ré-Dó-Mi) que desenha também (D7M) é justificável uma vez que essa Região não quer se uma cambiata (Ré- [Dó]-Mi-Mib). Na linha cromática estabelecer, mas funciona como Região Intermediária. A de passagem (Sol-Sol#-Lá), na voz contralto, o Sol# é a linha continua seu curso descendente alcançando a sétima nona de um F#ø/A que cadencia (Prolongamento) o B7. do Acorde Vagante C#7(alt), analisado como IV7 na SD e V7 na M, repousando na terça do C7M. Assim, a textura Nos c.13-17 (Ex.9), a Região Intermediária SD direciona- homofônica com os blocos de acordes é substituída por se para o I grau da M. A harmonia desse trecho é um uma voz que se direciona no sentido do discurso e promove, Prolongamento do IV grau de Lá-menor. Além disso, juntamente com a melodia, um contraponto a duas vozes. esses acordes foram individualmente prolongados. Com No c.17, a transformação do II grau foi aproveitada para isso, gerou-se uma linha contrapontística cromática, que criar uma linha cromática com as notas do baixo. alcança a terça maior do acorde de Dó-maior, no c.16. A linha cromática foi alcançada através do direcionamento Intervenções na forma de 23 de Junho de 1996: das sensíveis dos acordes. O acorde Bbm7 do c.13 pode Para a Introdução (Ex.10), elaboramos um groove com os ser visto como um Prolongamento do Acorde Vagante A7. três primeiros acordes da peça: Am9, Am7/G e F7M. Esse Prolongamento foi obtido através do procedimento de expansão que implica na colocação de um acorde de A principal intervenção na forma para a lead sheet de Subdominante de um dos correspondentes do A7. Em realização se deu em função do recurso mostrado no seu contexto original, a sétima do Bbm7 direciona-se Ex.7, a inserção de Acordes Vagantes em torno do F#m no descendentemente para a terça do Eb7. Com isso, obtemos início da Frase 2. Na primeira exposição da Tema, vamos o movimento descendente da nota Láb para Sol (sétima apenas insinuar a mudança da t para a D com a progressão do A7), que naturalmente descende para a terça do D7M. de acordes Eb7(#11) – F#m7(9) e as duas primeiras notas O direcionamento descendente da terça do I grau da SD na Frase 2 (Lá – Sol#) em semínimas pontuadas (Ex.11).

Ex.9 – Linhas contrapontísticas nos c.13-17 de 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

Ex.10 – Introdução com groove elaborado a partir dos primeiros acordes da música 23 de Junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

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Ex.11 – Intervenção na forma da primeira exposição da Parte A de 23 de Junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

Ex.12 – Intervenção na forma com a chegada do acorde Gm7 em 23 de Junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

Com isto, quebra-se a Forma-Sentença, mas por outro Por isso, na lead sheet de realização, propomos alongar lado, coloca-se em evidência a Frase 1 e cria-se uma este acorde por mais um compasso (Ex.12), criando uma referência da Região D. O retorno à t é feito com o mesmo sensação de estabelecimento da Região sd/SD ou Np. acorde usado na lead sheet original, o Ab7. Com essas intervenções, a lead sheet foi dividida em Com o estabelecimento da Região da D, retorna-se à t duas partes. A ponte é um groove baseado na Intro, com a Intro. Na segunda exposição do Tema, a Frase acrescentada de uma linha interna com a nota Fá# sobre 2 é realizada com a harmonia elaborada no Ex.7 (veja o acorde F7M. Sobre esse groove é realizado o solo de sax, acima). Porém, uma vez que a Região da D foi anunciada que adquire assim um caráter modal. Após o solo de sax, como referência na exposição anterior, o movimento segue o solo de piano estruturado sobre a harmonia do quase-diatônico ilustrado no segundo compasso do tema que transita principalmente entre as Regiões da t e Ex.8 (veja acima) e sua continuação cromática a partir da D. O ritmo usado é 6/4. Após o solo de piano, retorna- da intepretação de G257M/Eb como Acorde Vagante, se à harmonia pedal da ponte, para o solo de contrabaixo, permite que a chegada ao acorde Gm7 ganhe novo relevo. para então chegarmos à exposição final do tema.

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4 – A canção instrumental 9 de Junho de 1997 No Ex.14a, b, c, d, e, f, identificamos os perfis melódicos. Esta peça apresenta uma estrutura mais complexa, em Os motivos A, B, E e F são movimentos de ligação que predominam quatro acordes por compasso e uma melódica, como notas de passagem, escapadas, escapada melodia pouco convencional. O próprio Hermeto diz : por salto e resoluções indiretas (cambiatas). Os motivos C “Essa música é bem linda e sofisticada, mas porém, muito e D são compostos de dois saltos de intervalos diferentes cheia de energia. Viva ele [o som]” (PASCOAL, 2000a, em direções opostas. p.374), o que já nos fornece uma pista sobre o caráter da música, embora não haja uma indicação de andamento. O Ex.15a, b, c, d, e, mostra as Gestaltes, que são estruturas Vemos alguns sinais de articulação, como portamenti motívicas mais complexas formadas pelo encadeamento nos c.8, 9, 15 e 17; e acentos e ligaduras de expressão, dos motivos menores. As Gestaltes A, A1 e A2 são no c.13, indicações de arpejo e ritmo harmônico dos caracterizadas principalmente pela combinação de perfis acordes, cujas cifras apresentam normalmente a sétima melódicos. A Gestalt B é fortemente marcada pela Figura e a inclusão de duas tensões. Seu esquema analítico rítmica X, sendo seu perfil melódico predominantemente completo é apresentado no Ex.54 ao final do artigo. uma variação do Motivo D. A Gestalt C, por sua vez, se caracteriza apenas pela Figura rítmica Y.

4.1 – Variação Progressiva em 9 de Junho Exposição: de 1997 O material temático principal da peça é exposto na Parte Motivos e Gestaltes: A, Frase 1 (c.1-4, Ex.16), e se constitui de duas partes Um Motivo pode ser um Intervalo, uma célula rítmica, contrastantes: a Frase 1A e Frase 1B. No c.1 encontram- um perfil melódico. O encadeamento destes motivos se dois importantes motivos de intervalos: o Motivo a1 pode formar novas estruturas motívicas denominadas (6ªM asc) e o Motivo b1 (2ªm asc). Três perfis melódicos Gestaltes. No Ex.13a, b identificamos intervalos e células são definidos neste compasso: Motivo A (célula de 3 ritmicas como motivos. notas em grau conjunto com uma nota de passagem),

Ex.13 a, b – Motivos (intervalos e ritmos) em 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.14a,b,c,d,e,f – Perfis melódicos dos Motivos em 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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Ex.15a,b,c,d,e – Gestaltes com perfis melódicos dos Motivos em 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.16 – Parte A, c.1-4 de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

o Motivo B (célula de 3 notas com uma escapada) e função consequente na Frase 1. A Gestalt B é usada com o Motivo E (célula de 3 notas formando uma resolução modelo e repetida em sequência no c.4. Do ponto de vista indireta). O encadeamento destes motivos gera a forma- da harmonia, a Frase 1 é estruturada na T (Lá maior) Motivo Gestalt A, e logo após sua apresentação, vemos passando pela região intermediária D/v, em direção a o início de seu processo de liquidação que se estende até DMb/vmb (Sol maior/menor). A liquidação da Gestalt A o c.2, delimitando assim a Frase 1A. A segunda parte, é estruturada sobre três transformações do III grau da T Frase 1B, consiste do alargamento do Motivo b1, e da ou, como mostra a análise, sobre o VI da D/v, produzindo inserção do Motivo A, formando com este encadeamento uma Harmonia Vagante. a forma-motivo Gestalt B. Nesta nova formação consolida-se a Figura rítmica X, que diminui o ritmo Os c.5-7 parecem uma variação da Frase 1. O inicio do c.5 da evolução do discurso, tornando ambígua sua possível apresenta uma variação da Gestalt B seguida de uma nova

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cadeia (Gestalt A1) formada por variações dos motivos 9 de junho de 1997. Por isso demarcamos a Parte B como um A e B, presentes na Gestalt A (Ex.17). O novo Motivo desenvolvimento e a Parte C como uma conclusão e Coda. D (3ªM asc. + 5ªJ desc.) é produto da conexão A-B-A. O c.6 é ritmicamente idêntico ao compasso precedente, Desenvolvimento das Gestaltes: mas produz uma nova combinação do Motivo A com No início da Parte B (c.8-10) desenvolve-se a Gestalt Motivo D’ (uma variação do Motivo D) que se estabelece A2, apresentada anteriormente, no c.6, como o como a Gestalt A2. Finalmente, a frase se conclui com encadeamento em semicolcheias dos motivos D’ e A. uma variação da Gestalt B com um retorno a região da t Aqui ela é variada com o alargamento do Intervalo através de cadencia napolitana. Nesta variação mantém- de 7ª para 8ª Justa e com o aumento da duração das se o componente rítmico da Figura X (elemento mais notas (de semicolcheias para colcheias). O Ex.19 marcantes desta Gestalt), enquanto o perfil melódico se mostra o mecanismo de variação do perfil melódico forma com um “degrau” intercalado entre a primeira e a da Gestalt A2, do Motivo D ( 3ª + 5J) para o Motivo segunda parte do Motivo D’, formando o Motivo E, que C (8ª + 5ª/4ªJ). Este trecho (c.8-10) forma um padrão funciona como uma escapada por salto. “modelo-sequência-liquidação”. A harmonia ocorre na remota região (categoria 5) da SMvmb/smvmb (Mib É notável a forma ambígua desta exposição do material maior/menor). A liquidação ocorre gradativamente temático. Por um lado, a estrutura sugere um período, a partir da sequência da Gestalt A2 passando pela sendo a Frase 1 o antecedente e a variação da Frase 1, o região intermediária D/v, com diminuição das notas, e consequente. Por outro lado, a variação da Frase 1 poderia intensificando-se no c.10 em uma Harmonia Vagante ser mais um produto da variação de excertos, neste caso as com acordes expandidos da coleção de Lá octatônica, Gestalts, da Frase 1 (forma aberta) do que uma repetição mas que conduzem de volta claramente à região da T. do antecedente do período (forma fechada). Esta estrutura aberta, que Schoenberg reconhece na Forma Sentença Na cadência que se estende nos c.11-12 surge um (Ex.18), é mantida progressivamente nas próximas partes de material secundário que mescla as Gestaltes B, A2 e A1.

Ex.17 – Parte A, c.5-7 de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.18 – Estrutura das partes na Forma Sentença em 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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Ex.19 – Parte B, c.8-10 de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.20 – Identificação da coleção octatônica no c.10 em 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.21 – Parte B, c.11-12 de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

O Acorde Vagante A7 relacionado à escala octatônica uma derivação da menor melódica; e finalmente com o passa a corresponder aos acordes C7 – Eb7 e F#7. O acorde Prolongamento do V7, também por duas transformações. Gø no primeiro tempo do compasso é o II grau cadencial do correspondente C7, enquanto Eø, no terceiro tempo, é o II Conclusão da canção e Coda: grau cadencial do A7. O Ex.20 associa as notas da melodia A estrutura da Parte C (Ex.23) segue o mesmo padrão (pentagrama superior) com as notas da coleção octatônica “modelo-sequência-liquidação”, desenvolvendo desta (pentagrama inferior) numeradas de 1 a 8. vez a Gestalt B nos c.13-15. O modelo é estruturado na região da T , mas é possível também compreender a Essa harmonia coopera com o retorno à região da T na harmonia da sequência tanto (1) como um desvio à Mb Parte B (Ex.21) iniciando uma longa cadência que passa (Dó maior) quanto (2) uma influência da última remota pelo IV7M, que depois prolonga do II grau através de região (Eb maior/menor) em estruturas enarmonizadas, uma transformação da função napolitana seguida de invertidas e disfarçadas por permutabilidade maior/

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menor. No primeiro caso, o acorde A#m7(9), c.13, de SMSM/smsm (Ré# maior/menor) para SMvmb/smvmb é enarmonizado como Bbm7(9), e considerado um (Eb maior/menor). O Ex.23 sumariza a análise da Parte C. Prolongamento do Db7M, acorde napolitano na Mb (Dó maior). O próximo acorde, um B7M Lídio, pode funcionar A Coda (c.16-18,) apresenta uma sucessão de acordes como G7(#9,#5)/B (Ex.22), isto é, V7/3ª, como analisado que representa as quatro regiões harmônicas da estrutura no Ex.23, caracterizando uma cadencia napolitana, da peça (Ex.24). em direção ao C7M com o acorde Ab7M interpolado. Finalmente, no c.14 (Ex.23) através da Região Mb, inicia- O acorde F#7M (#11) enarmonizado para Gb7M (#11) , se uma cadência retornando à Região da T. representa o bIII grau da smvmb (Mib menor). A mesma consideração deve ser feita para o acorde G7M (#11) . Este Por outro lado, pode-se notar uma influência da remota caráter formal de resumo do conteúdo apresentado na SMvmb/smvmb (Eb maior/menor) que surgiria pela peça (Ex.25) e reforçado com linha melódica que apresenta segunda vez no tema, mas desta vez vestida de SMSM/ em ordem inversa os motivos B, b1 e a1 da Gestalt A. smsm (Ré# maior/menor). O terceiro acorde do c.13 C#m7(9) introduz a região da D (Mi maior), e por uma permutabilidade maior menor é possível visualizar a SM/ 4.2 – Harmonia em 9 de Junho de 1997: sm (Fa# maior/menor) na sucessão C#m7 – A#m7. Com a Regiões e Regiões Intermediárias reinterpretação das cifras dos acordes do c.14 (Db7M em O primeiro movimento de regiões na Parte A (Ex.26), é o D#7/C# e B7M em G#m/B) chega-se finalmente à SMSM/ deslocamento de ida e volta da T (Lá) para a DMb/vmb smsm (Ré# maior/menor). Este seria o caminho lógico, mas (Sol) passando pela região intermediária D/v. Trata-se de Hermeto escreve todo o c.14 em bemóis cifrado os acordes um movimento para região de categoria 2a, Indireta mas Db7M e Ab7M intercalados pelo B7M, que neste contexto próxima. A relação entre essas regiões é derivada do v seria enarmonizado por Cb7M sugerindo a enarmonização (Mi). A Região D/v (Mi) foi utilizada como intermediária

Ex.22 – Reinterpretação da cifra B7M em 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.23 – Parte C, c.13-15 de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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Ex.24– Regiões representadas pelos acordes na Coda de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.25 – Coda, c.16-18 de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.26 – Percurso de Regiões na Parte A de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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com a utilização da relação direta da D com a T ,e da função cromática desta região em relação D/v que segue Permutabilidade Maior/Menor, que permite a conversão e auxilia, novamente, o retorno à T. da D em v , relativa da DMb (Sol). T (Lá) – [SMvmb] (Mib) – [D/v] (Mi) – T (Lá) T(Lá) – [D/v] (Mi) – DMb/vmb (Sol) – [D/v] (Mi) – T (Lá) A Parte C (Ex.28) esclarece as relações das duas outras Na Parte B (Ex.27) os tempos fortes da linha melódica partes, se os c.14-15 forem analisados na Região da Mb. sugerem um arpejo de Ebm. A presença do acorde Gm7 Essa relação direta e próxima justificaria teoricamente a pode acusar uma possível Região Maior/Menor sobre ocorrência das suas derivadas DMb/vmb, na Parte A, e Mib: SMvmb/smvmb. Seria uma referência à importante SMDMb, na Parte B. Região da DMb/vmb (Sol) da Parte A, isto é, Mib maior como relativa de Sol menor. O salto da T à SMvmb/ T (Lá) – [D/v] (Mi) – [SMSM](Ré#)//[SMvmb](Mib) – Mb smvmb é justificado pela continuação que mostra a (Dó) – T (Lá)

Ex.27 – Percurso de Regiões na Parte B de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.28 – Percurso de Regiões na Parte C e Coda de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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Na Coda, o movimento resume as regiões de destino e o caráter transitório da D/v em direção à próxima região, intermediárias percorridas: DMb (Sol maior). Por isso, no c.3, assim que chegamos à nota Lá, pode-se iniciar uma nova imitação do Motivo b1 T (Lá) – [DMb/vmb] (Sol) – [SMvmb] (Mib) – [D/v] (Mi) e assim produzir uma linha contrapontística partindo do – T (Lá) Fá# para alcançar o Sib (c.4), sétima do acorde Cm7, IVm7 da DMb/vmb (Sol maior/menor). 4.3 – Realização de 9 de Junho de 1997 Criação de linhas cromáticas ou quase-diatônicas: Ao executar esta linha interna com Motivo cromático A análise do c.1 nos permite criar uma linha cromática b1, anuncia-se o movimento da voz principal Dó# - Ré, caracterizada pela transformação da sétima maior do ilustrado na linha A do Ex.30. O movimento completo acorde A7M em sétima menor, no segundo tempo, onde a se dirige para o Sib, conforme o traçado da linha B. O cifragem G7M de Hermeto é analisada como I7sus/7ª, isto movimento de notas vizinhas sobre o Sib, ilustrado na é A7sus/G (Ex.29). A continuação da linha leva ao Fá#. linha C confirma o Sib como alvo e demonstra como as alterações do Acorde Vagante F7(b5), IV grau da DMb - que No c.2, a nota Ré#, sensível da região D/v, é introduzida foi cifrado por Hermeto como B7(#9,b13) - podem ser quase-diatônicamente através do Motivo E (resolução aproveitadas para gerar esse tipo de contorno melódico e indireta quasi-diatônica) para seguir para a nota tônica executar a função harmônica. (Mi), formando o Motivo b1 (2ªm asc.). As transformações dos acordes deste compasso permitem um movimento Intervenções na forma: de notas vizinhas em torno da terça maior (Sol#) da Criadas as linhas para contraponto, vamos utilizar os região D/v. A linha criada faz o movimento de resolução dados da análise para interferir na forma do tema. O indireta (Motivo E) cromática para o Sol#. Em seguida, primeiro passo será determinar um groove para introduzir esta nota é aproveitada para funcionar como sensível a música. Para isso vamos buscar elementos unificadores da T, ao seguir para a nota Lá, sétima do acorde Bm7, e sintéticos da peça. Destacamos a relação T – Mb, acorde neutro às duas regiões. A linha cromática reforça sobretudo pela presença de duas regiões indiretamente

Ex.29 – Realização dos c.1-4 de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.30 - Ilustração de linhas cromáticas A, B e C no c.3 de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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relacionadas com a Mb: a [DMb/vmb] (Sol) – [SMDMb] mantendo o resultado que alcançamos na introdução (Mib). Como se a tonalidade flutuasse em torno destas com a fórmula de compasso em ¾. Por isso, esta será duas regiões ao longo da peça (Ex.31). a primeira intervenção na apresentação da lead sheet de realização. Todos os exemplos daqui em diante serão De fato, as regiões analisadas possuem relação com a Mb apresentados nesta perspectiva e devem ser equiparados (Ex.32), mas esta região ocorre claramente em apenas nos aos exemplos na versão original. c.14-15. Os acordes que sintetizam as regiões “satélites” desta peça são, portanto, A7M e C7M. Vamos usar esses No. c.6, a melodia é executada em uma quartina sobre dois acordes em uma Figura rítmica derivada do Motivo Y. o ¾. O primeiro Intervalo de 6ªM asc. fica em segundo Na montagem do groove daremos preferência a semínima plano porque a nota Mi foi antecipada no último acorde pontuada. Isso nos levou a adotar o fell de duas semínimas A(addb2) da introdução, ficando a ênfase do tema pontuadas sobre um compasso de ¾, alternando os acordes inicial sobre o Motivo A (Dó-Ré-Mi). O segundo acorde com um voicing A(add2) e um C(add2) a cada compasso. No é definitivamente cifrado como uma transformação fim do ciclo de quatro compassos introduzimos uma díade do I grau da T, A7sus/G. Sobrepomos, portanto a linha de sétima maior, na região média-aguda com as notas Mi de substituição cromática (Lá-Láb-Sol), e na nota Sol e Ré#. Esse Intervalo anuncia com sonoridade distante a montamos o “acorde de apoio” (Sol-Si-Ré-Fá#). A linha nota Ré# do c.2 da lead sheet original, cuja função é de 6^ da clave de Fá do c.2 do Ex.29 (veja acima), mais acima, da Região da D/v. será incorporada aos voicings especiais invertidos, como demonstra o c.8-9 do Ex.33. A linha Sol#-Lá (Motivo b1) Ao final das peças do Calendário do Som, Hermeto sempre fica no baixo dos primeiros dois acordes, e a continuação escreve uma pequena mensagem, como uma anotação de Lá-Sol-Sol# (Motivo E), vai para a voz superior dos um diário. Nesta peça ele diz: “Essa música é bem linda e dois últimos acordes. Com esta interpretação valoriza- sofisticada, mas porem, muito meiga e cheia de energia. se o Motivo b1 alargando progressivamente o valor viva ele (sic)” (PASCOAL, 2000, p.374). Conseguimos esse da segunda Figura do par de semínimas pontuadas da contraste entre uma sonoridade leve e uma enérgica introdução (veja Ex.35 a,b abaixo).

Ex.31 – Esquema de Flutuação da tonalidade em torno de Regiões polarizadas pela T e pela Mb em 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.32 – Introdução com acordes representantes da T (Lá maior ) e Mb (Dó maior) em 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

88 ARAÚJO, F.; BORÉM, F. Variação Progressiva de Schoenberg em Hermeto Pascoal: análise e realização ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.70-95.

Ex.33 – Parte A, c.6-11 da lead sheet de realização 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.34 – Parte A, c.12-17 da lead sheet de realização 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.35 a,b,c – Variações do Motivo rítmico da introdução da lead sheet de realização de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Nos c.12-14 (Ex.34), a linha cromática B desenvolvida Chamamos atenção para os elementos de unidade no Ex.30 (veja acima), é executada em uma voz interna e contraste desta primeira parte da realização. A sob um baixo pedal em Si até o acorde Cm7. Esta linha variação da Figura rítmica da introdução (Ex.35a) nos cromática enfraquece a sensação centrípeta sobre a T c.8-11 faz com que a segunda semínima pontuada de mesmo que seja possível analisar uma cadência II-V-I. cada bloco seja alargada progressivamente (Ex.35b) Por outro lado, ela sugere a Permutabilidade maior/ enquanto a textura do trecho é homofônica com menor da região intermediária D/v (Mi) que permitirá a acordes de sonoridade densa até se dissolver em um transição para a DMb (Sol) no c.14. O resultado é uma cluster (Sol# em oitava com e Fá#) com duração textura com a voz superior (Dó#-Ré) - identificada na de uma mínima duplamente pontuada para antes letra A do Ex.30 (veja acima), movendo-se junto com o da pausa de semínima no último tempo do c.11 pra baixo pedal enquanto a linha ascendente B se contrapõe fechar o compasso de ¾. O Ex.35a, b, c mostra que em movimento contrário com a melodia. Todo o trecho é a Figura rítmica dos c.8-11 funciona como modelo um desenvolvimento do Motivo b1. No c.15 tem início a em sequência variada nos c.12-15. Embora o Motivo Permutabilidade maior/menor da região DMb para vmb e b1 unifique toda a parte A, neste trecho (c.12-15) a o Motivo E (linha C do Ex.30 acima) para realizar o Acorde textura é polifônica e Motivo rítmico é intensificado Vagante F7/Cb cifrado originalmente como B7(#9,b13). até retornar ao padrão da introdução.

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A Parte B (Ex.36), que irá desenvolver a Gestalt A2, arpejo nota contra nota com a melodia. Logo na entrada do será escrita em 4/8 nos c.18-22. Esta mudança reforça o trecho de Acordes Vagantes da diminuta (c.30), a fórmula aspecto contrastante citado no comentário de Hermeto. de compasso retorna para ¾ por apenas um compasso para Neste trecho, a mera contraposição da melodia com um voltar a 4/8 do c.31 ao 37 (Ex.38). arpejo dos acordes cifrados proporciona uma sucessão de intervalos dissonantes, sobretudo, de 7as resultando num Na realização da Parte C (Ex.39) a condução das vozes um jogo de timbres nos pontos de encontro entre as duas indica que a harmonia transitou sobre as funções vozes: 7ªm; 7ªM; 6ªaum; 7ªm; 5ªJ ; 7ªM; 7ªm; 6ªM; 5ªJ; 7ªM; indicadas com a linha tracejada. 7ªm; 4ªJ; 7ªM. Na cadência napolitana para a T (c.23-24), o compasso em ¾ pontua o fim da variação da Gestalt A1 e A seção de solos é aberta para o contrabaixo improvisar funciona como ligação para a próxima variação. sobre os acordes do primeiro compasso da parte A (Ex.40), porém com pedal em Lá. Poucas harmonia em uma seção Nos c.25-27 (Ex.37), em 4/8, utilizamos “acordes de apoio” para improvisação é típico do que se conhece como para uma textura homofônica, e nos c. 28-39 retomamos o improvisação modal no jargão jazzístico. O improvisador não

Ex.36 – Parte B, c.18-24 da lead sheet de realização 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.37 – Parte B, c.25-30 da lead sheet de realização 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.38 – Parte B, c.31-37 da lead sheet de realização 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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Ex.39 – Parte C e Coda, c.38-48 da lead sheet de realização 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.40 – Harmonia para o solo de contrabaixo na lead sheet de realização 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.41 – Harmonia para o solo de piano na lead sheet de realização de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

improvisa sobre os encadeamentos mas sobre a escala ou primeiro acorde C#m7(9)). Esta parte, que pode ser bem modo predominante nos poucos acordes envolvidos. Neste livre na improvisação, sugere um pico de tensão no segundo caso, A(add9) e G(add9)/A, usa-se escalas pentatônicas de bloco, inclusive em diálogo com a bateria. Lá e Sol, ou o modo Mi Dórico (Mi-Fá#-Sol-Lá-Si-Dó#- Ré). Porém, essas escolhas são muito particulares de cada Na parte de solo de piano (Ex.41), a harmonia retoma improvisador, que pode fazer um solo mais ou menos o frescor da sucessão A(add9) e G(add9)/A, mas após 4 outside. No segundo ciclo, sugere-se o acorde A(add#4) ciclos ela percorre o trajeto do tema: T - D/v - DMb/ para anunciar a nota Ré# (presente no tema sobre o vmb - D/v - T. A primeira parte na T se dá com a

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transformação do I grau sus com baixo na sétima. Recorrendo ao legado de Schoenberg sobre música tonal, A segunda parte mostra o trecho na D/v com as vimos que a aparente aleatoriedade harmônica e formal transformações por Permutabilidade maior-menor. Já na da música de Hermeto pode ser explicada dentro dos terceira parte, na DMb/vmb, prevalecem os acordes na diversos conceitos que gravitam em torno dos conceitos vmb mas a conclusão é o I7M da DMb, que possibilita a de Monotonalidade, Tonalidade Expandida e Variação transição de volta para a D/v que, por sua vez, limita-se a Progressiva, os quais tratam, respectivamente, do apresentar suas duas configurações de tônica, Em e E7M. afastamento e aproximação da tonalidade; suspensão e O último trecho, na T, apresenta o IV7M em um par de flutuação de regiões tonais; e da composição rapsódica a acordes do mesmo tipo com o da última região e segue partir de unidades formais hierárquicas. com o contraste provido por uma cadência napolitana se dirigindo para a t. O retorno ao tema ocorre depois Nas formas livres de Hermeto Pascoal observamos uma de um groove na T com a mesma harmonia utilizada no abundância de Temas e Ideias contrastantes ou conectados, solo de contrabaixo. A seguir apresentamos os esquemas a utilização de Regiões remotas em curtos espaços de analíticos completos das duas canções instrumentais de tempo, a utilização de “pontes” e justaposições abruptas” Hermeto Pascoal analisadas sesse artigo: 26 de Junho de para gerar e controlar as tendências centrífugas da 1996 (Ex.42) e 9 de Junho de 1997 (Ex.43). harmonia. Observamos também a recorrência de Gestaltes organizadas segundo o padrão da Forma Sentença (forma 6 – Considerações finais aberta), o que sugere um estilo composicional que é fruto Admirada no Brasil e no exterior pela sua criatividade de um processo gradual de variação de ideias básicas. libertária e ecletismo, a música de Hermeto Pascoal ainda causa receio ou distanciamento em muitos que gostariam Após a análise formal e harmônica minuciosa das duas de entender a lógica de suas harmonias e estruturas canções instrumentais de Hermeto, seguiu-se o processo formais, ou simplesmente, tocá-la. Para outros, não poucos, de realização, no qual foram criadas linhas cromáticas e as conhecidas “loucuras” de sua figura mística, ideias e quase-diatônica para a realização dos afastamentos tonais natureza indomável de sua personalidade se reflete no para Regiões remotas ou manutenção da suspensão ou “caos” de sua música. Mas trata-se de um caos aparente. flutuação tonal. Depois, foram feitas intervenções na forma Mostramos aqui que, apesar de ser um autodidata (genial!) a partir da interpretação e manipulação dos elementos em todos os níveis (composição, arranjo, performance), analisados e criados elementos de arranjo como choruses Hermeto cria sua música organizadamente, pelo menos no com convenções para os solos de piano e contrabaixo e, seu monumental Calendário do som. finalmente, se chegar às lead sheets de realização.

Ex.42 – Esquema analítico completo de 26 de Junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

92 ARAÚJO, F.; BORÉM, F. Variação Progressiva de Schoenberg em Hermeto Pascoal: análise e realização ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.70-95.

Ex.43 – Esquema analítico completo de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Esperamos que o presente artigo, juntamente com Talvez esteja na simplicidade da sabedoria do os anteriores, sirva de material didático no ensino da músico brasileiro a chave para compreender como a composição, arranjo e performance da música popular, racionalidade alemã de Schoenberg se encaixa como não apenas de Hermeto Pascoal, mas de muito outros cuja uma luva para explicar o turbilhão tropical da música música inspire empreitadas semelhantes. Registramos aqui de Hermeto Pascoal, que ele apregoa no primeiro a condução de um projeto de pesquisa desenvolvido pelo dos seus dezessete Princípios da Música Universal: primeiro co-autor no Programa de Iniciação Científica “A Harmonia é a mãe da música, o ritmo é o pai e a da Universidade Federal do Espirito Santo (UFES), que melodia ou o tema é o filho” (PASCOAL, Princípios da levantou, até o momento, dados analíticos das 36 primeiras Música Universal, 2012). peças do Calendário do Som de Hermeto Pascoal a partir dos conceitos da Teoria Tonal de Schoenberg.

93 ARAÚJO, F.; BORÉM, F. Variação Progressiva de Schoenberg em Hermeto Pascoal: análise e realização ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.70-95.

Referências: ARAÚJO, Fabiano; BORÉM, Fausto. A Harmonia tonal de Schoenberg: uma proposta para a análise, realização e composição de lead sheets. Per Musi. n.28. Belo Horizonte: UFMG, 2013. p.35-69. BORÉM, Fausto; ARAÚJO, Fabiano. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação de sua linguagem harmônica. Per Musi, n.22. Belo Horizonte: UFMG, 2010. p.22-43. BORÉM, Fausto; FREIRE, Maurício. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos em uma obra-prima para flauta. Per Musi, n.22. Belo Horizonte: UFMG, 2010. p.63-79. BUETTNER, Arno Roberto von. Expansão Harmônica: uma questão de timbre. São Paulo: Irmãos Vitale, 2004. CUGNY, Laurent, Analyser le jazz. Paris: Outre Mesure, 2009. DUDEQUE, Norton, E. Music Theory and Analysis in the Writings of Arnold Schoenberg (1874-1951). England: Ashgate, 2005. ______. Schoenberg e a Função Tonal. Revista Eletrônica de Musicologia. Dep. Artes da UFPR. v.2, n.1.1997.______. Variação progressiva como um processo gradual no primeiro movimento do Quarteto A Dissonância, K 465, de Mozart. Per Musi. v.8, jul-dez. Belo Horizonte: UFMG, 2003. p.41-56. FREIRE, Nelson; SALLES, João Moreira. Uma frustração. In: Nelson Freire: um filme sobre um homem e sua música (2003). Filme de João Moreira Salles, 2003. Vídeo de 01 hora, 36 minutos e 51 segundos, postado no Youtube por “Docspt Arte” em 16 de outubro de 2012. (2003. Acesso em 25 de janeiro 2013). LEVINE, Marc, The jazz piano book. Berkeley: Sher Music,CO., 1989. PASCOAL, Hermeto. 9 de Junho de 1997. In: Calendário do som. São Paulo: Editora Senac, 2000a. p.374. (Partitura musical em forma de lead sheet). _____. 9 de Junho de 1997 (Calendário do som): manuscrito e lead sheet de realização. Realização e edição de Fabiano Araújo. Per Musi. n.28. Belo Horizonte: UFMG, 2013b. p.99-101. _____. 23 de junho de 1996. In: Calendário do som. São Paulo: Editora Senac, 2000b. p.23. (Partitura musical em forma de lead sheet). _____. 23 de junho de 1996 (Calendário do som): manuscrito e lead sheet de realização. Realização e edição de Fabiano Araújo. Per Musi. n.28. Belo Horizonte: UFMG, 2013a. p.96-99. _____. Princípios da Música Universal criada por Hermeto Pascoal. Ed. de Aline Morena. Partituras. Curitiba: 30 de setembro de 2008. In: www.hermetopascoal.com.br (Manuscrito escaneado, acesso em 24 de dezembro, 2012). SALZER, Felix. Structural Hearing, Tonal Coherence in Music. New York: Dover Publications. 1982 [1952]. SCHOENBERG, Arnold. Style and Idea. Trans. Leo Black. Ed. Leonard Stein. University of California Press, 1984 [1975]. _____. Fundamentos da Composição Musical. Trad. Eduardo Seincman, 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993 [1967]. ______. Coherence, counterpoint, instrumentation, instruction in form. Trad. Charlotte M. Cross e Severine Neff. Publicado anteriormente em 1917. Ed.Severine Neff. Lincoln: University of Nebraska Press:Lincoln, 1994. ______. Harmonia. Trad. Marden Maluf . São Paulo: Editora UNESP, 1999 [1911]. ______. Exercícios Preliminares em Contraponto. Trad. Eduardo Seincman, Ed. Leonard Stein. São Paulo: Via Lettera, 2001 [1963]. ______. Funções estruturais da harmonia. Trad. de Eduardo Seincman, Ed. Leonard Stein. São Paulo: Via Lettera, 2004 [1969]. ______. The Musical Idea and the logic, technique and art of its presentation. Publicado anteriormente em 1995. Ed. de Patricia Carpenter e Severine Neff. Bloomington: Indiana University Press, 2006. ZAGO, Luis Gustavo. Composição e improvisação no Calendário do Som. em Repom no 4, Julho de 2007. Disponível na internet: http://www.repom.ufsc.br/repom4/ (acessado em 15/05/2010)

Referências de gravações PASCOAL, Hermeto. Calendário do som: 9 dias. Fabiano Araújo, piano; Arild Andersen, contrabaixo; Alexandre Frazão, bateria; Guto Lucena, saxofone. Numérica: NUM 1185, 2009. Disponível em: .

94 ARAÚJO, F.; BORÉM, F. Variação Progressiva de Schoenberg em Hermeto Pascoal: análise e realização ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.70-95.

Notas 1 Veja item 4.3.1 – Procedimentos de Expansão Harmônica em ARAUJO e BORÉM (2013) às p.58-62. desse número de Per Musi). 2 Idem (Veja item 4.3.1). 3 Essa analogia é usada por Schoenberg ao explicar o uso de acordes provenientes das relações com a subdominante menor, quando a narrativa requer enlaces mais fluidos entre as partes: “Luzes mais penetrantes, sombras mais obscuras: a isso também servem esses acordes mais distantes (SCHOENBERG 1999, p.325).” 4 Veja também item 2.5.2 – Regiões Tonais Intermediárias em ARAUJO e BORÉM (2013) às p.44-45. desse número de Per Musi). 5 Veja item 3.3 - Função de Acordes Vagantes (ou de Função Múltipla) em ARAUJO e BORÉM (2013) à p.52. desse número de Per Musi). 6 Veja item 2.3 - Conceito de Notas Substitutas/Substituição em ARAUJO e BORÉM (2013) à p.40. desse número de Per Musi).

Fabiano Araújo, pianista e compositor, desenvolve tese de doutorado sobre o jazz contemporâneo, desde 2012, na Universidade Paris-Sorbonne (Paris-IV), com bolsa CAPES, junto ao grupo JCMP-OMF (Jazz, chanson et musiques populaires – Observatoire Musical Français). É Mestre em Música pela Escola de Música da UFMG e Bacharel em Música Popular pelo Centro de Artes da UNICAMP. É Professor Assistente do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde contribuiu para a criação o curso de Bacharelado em Música, habilitação em Composição com ênfase em Trilha Musical. Possui 4 CD’s lançados: O Aleph (2007); Calendário do Som - 9 dias (2009) de Hermeto Pascoal, gravado e publicado em Portugal, com a participação do contrabaixista norueguês Arild Andersen do baterista Alexandre Frazão (Brasil/Portugal) e do saxofonista Guto Lucena (Brasil/Portugal); Rheomusi (2011) em trio com Arild Andersen e Naná Vasconcelos, e Baobab trio (2012), com peças de Radamés Gnattali, Baden Powell além de música improvisada em trio.

Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e recitais nos principais eventos nacionais e internacionais de contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Arnaldo Cohen e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa e Túlio Mourão. Participou do CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa.

95 PASCOAL, H. 23 de junho de 1996 (Calendário do som): manuscrito e lead sheet de realização. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.96-98.

Manuscrito da lead sheet da música 23 de Junho de 1996, do Calendário do Som (Hermeto PASCOAL, 2000, p.23).

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 09/03/2012 - Aprovado em: 04/01/2013 96 PASCOAL, H. 23 de junho de 1996 (Calendário do som): manuscrito e lead sheet de realização. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.96-98.

97 PASCOAL, H. 23 de junho de 1996 (Calendário do som): manuscrito e lead sheet de realização. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.96-98.

98 PASCOAL, H. 9 de junho de 1997 (Calendário do som): manuscrito e lead sheet de realização. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.99-101.

Manuscrito da lead sheet da música 9 de Junho de 1997, do Calendário do Som (Hermeto PASCOAL, 2000, p.374).

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 09/03/2012 - Aprovado em: 04/01/2013 99 PASCOAL, H. 9 de junho de 1997 (Calendário do som): manuscrito e lead sheet de realização. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.99-101.

100 PASCOAL, H. 9 de junho de 1997 (Calendário do som): manuscrito e lead sheet de realização. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.99-101.

101 MAGALHÃES PINTO, M. G. M.; BORÉM, F. O caos organizado de Egberto Gismonti em Frevo ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.102-124.

O caos organizado de Egberto Gismonti em Frevo: improvisação e desenvolvimento temático

Marcelo G. M. Magalhães Pinto (UFMG, BH, MG; Eastman School of Music, Rochester, EUA) [email protected]

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Resumo: Estudo analítico sobre as práticas composicionais e improvisatórias de Egberto Gismonti na sua música Frevo para piano, especialmente na interseção entre os procedimentos de desenvolvimento temático e improvisação. A partir da versão gravada no disco Alma (GISMONTI,1987a), cuja transcrição foi realizada pelos autores do presente artigo e publicada no presente volume de Per Musi (GISMONTI, 2013, p.125-144), observa-se como Gismonti obtém grande unidade na realização de Frevo a partir da recorrência e diversas transformações de apenas cinco motivos ao longo da obra. A análise também revela uma hibridação de elementos da música popular (frevo, jazz, improvisação) e erudita (com reflexos de métodos da técnica para piano, J. S. Bach, F. Chopin, H. Villa-Lobos, da Primeira e Segunda Escolas de Viena e do período pós-1950).

Palavras-chave: música para piano de Egberto Gismonti; práticas composicionais e improvisatórias; hibridismo entre música popular em música erudita; frevo na música brasileira.

The organized chaos of Egberto Gismonti in Frevo: improvisation and thematic development

Abstract: Analytical study about the compositional and improvisational practices of Egberto Gismonti in his music Frevo for piano, especially in the intersection between the procedures of thematic development and improvisation. Departing from the audio track included in the Alma album (GISMONTI, 1987a), which transcription was realized by the authors of the present article and published in the present volume of Per Musi (GISMONTI, 2013, pp.125-144), it reveals how Gismonti achieves great coherence in the realization of Frevo by resorting to the recurrence and varied transformation of only five motives throughout the work. The analysis also reveals a hybridization of elements from popular music (the Brazilian frevo, jazz, improvisation) and classical music (reflecting piano technique methods, J. S. Bach, F. Chopin, H. Villa-Lobos, the First and Second Vienna Schools and the post-1950 period).

Keywords: piano music by Egberto Gismonti; compositional and improvisational practices; hybridism between popular and classical music; frevo in Brazilian music.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 02/02/2012 - Aprovado em: 04/01/2013 102 MAGALHÃES PINTO, M. G. M.; BORÉM, F. O caos organizado de Egberto Gismonti em Frevo ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.102-124.

“...se o samba diverte, o frevo fere; e isto está expresso nos símbolos, na expressão visual, na música e na dança do frevo.” (Depoimento de Paula Valadares a MÜLLER, 2006)

“...surgiu das camadas menos favorecidas, que ‘resistiam’ ao poder das elites, e que hoje resiste aos poderes do mercado, que não o privilegiam...” (MÜLLER, 2006)

1 – O gênero frevo e a canção instrumental gravação de 1905 do frevo instrumental A Província, Frevo de Juvenal Brasil (SALDANHA, 2008, p.89). Isto reforça a ideia do frevo instrumental ter surgido antes do frevo Do ponto de vista etimológico, o frevo tem origem no cantado. O frevo, cujo apogeu como música radiofônica verbo ferver, que era pronunciado erroneamente “frever” se deu entre a segunda metade da década de 1950 e o pelas camadas sociais com menos instrução escolar (LIMA, final da década de 1960, está indelevelmente associado 2005). Do ponto de vista musical, a origem da palavra à cultura musical de Pernambuco e foi reconhecido como sugere a agitação, efervescência e euforia características Patrimônio Imaterial Nacional pelo IPHAN (Patrimônio da dança frevo, remetendo, nas palavras de SALDANHA Histórico e Artístico Nacional) em 28 de fevereiro de 2007 (2008, p.2) a “um êxtase do movimento corpóreo em (SANT’ANNA, 2007). coreografia que leva à insanidade ou delírio de animação”. Do ponto de vista social, o frevo reflete os polos opostos e ainda conflitantes da colonização escravagista do Diversos autores (VILA NOVA, 2012, p.36; LIMA, 2005; nordeste brasileiro no final do século XIX. De um lado, o SALDANHA, 2008; RIBEIRO, 2008) identificam, já na frenesi dos passos acelerados (os tradicionais “chutando década de 1930 e a partir do registro em discos e de frente”, “pernada”, “abre-alas”, “rojão” e “tramela”, ou partituras, uma tipologia tripartite do gênero: (1) o frevo- os mais modernos, como “malandro”, “martelo rodado” e de-rua, tocando ao ar livre com grupos instrumentais, “meia-lua”), derivados da capoeira, ainda hoje sugerem a especialmente com sopros e percussão em andamento atmosfera de agressividade e defesa dos negros libertos rápido; (2) o frevo-de-bloco (ou marcha-de-bloco) no ambiente de agitação em que se encontrava o Recife baseado nos grupos tradicionais com instrumentos do início do século XX (LÉLIS, 2007, p.27, 76). Do outro, de corda das antigas marchas carnavalescas; e (3) o a repressão militar, que se reflete como influência frevo-canção que surgiu inicialmente com a aposição direta do dobrado das bandas militares no seu estilo e de letra ao frevo-de-rua, rápido e acompanhado por instrumentação. O próprio GISMONTI (2009) admite instrumentos de sopro e que foi objeto de polêmica sobre que o seu Frevo é muito próximo do gênero dobrado. No sua legitimidade dentro do gênero.1 A partir de 1980, programa Ensaio da TV cultura, em 1992, ele narra: o frevo-de-rua e o frevo-canção passaram a contar com as freviocas, carros ambulantes que permitem seu [01:01] Ah...essa história de frevo... aliás, o pessoal de Olinda e acompanhamento pelas multidões nas ruas. 2 O frevo- Recife que me perdoe... eu acabei fazendo um frevo porque eu ouvi de-rua apresenta pelo menos três variações: (a) o frevo- muito dobrado... [01:16] Tio Edgar tocava o dobrado dele [cantando uma linha do baixo, imitando um bombardino... ‘pó, pó, pó, pó-ró- do-abafo (ou frevo-do-encontro, como Fogão de Alfredo ró-pó-pó”]... [01:26] e eu vim pensando nisso e fiz um dobrado que Lisboa), no qual fanfarras rivais tentam abafar o som se chama Frevo [começa a tocar Frevo, cantarolado junto]... que uma das outra por meio de melodias com notas agudas parece que não é dobrado mas é [enquanto fala, toca acelerando o e de longa duração em fortissimo; (b) o frevo coqueiro andamento]... é um frevo mas é dobrado... [05:20, após terminar de tocar] É um frevo, mas é um dobrado...aliás o [percussionista] Naná (como Duda no frevo de Senival “Senô” Bezerra do [Vasconcelos], sempre me dizia... esse teu Frevo mais parece um Nascimento), no qual predominam trechos virtuosísticos dobrado... mas que é um frevo! ... Naná de Olinda!... agudos e contraponto, e, alusão ao nome, com muitas semicolcheias escritas acima do pentagrama; (c) o frevo Um grande impulso foi dado ao gênero com a criação ventania (como Tempestade de Joaquim Wanderley), no da Fábrica de Discos Rozenblit no Recife em 1954, que qual também predomina o virtuosismo, especialmente dava preferência aos ritmos regionais e que, na década nos instrumentos de palheta, com predomínio da melodia de 1960, respondeu por 22% da produção de discos no acompanhada no registro médio e menos contraponto, Brasil (VALADARES 2007, p.85-86). Embora as primeiras tipicamente o saxofone com linhas “em ventania”, (LIMA, referências ao gênero estejam se encontrem em letras 2005; SALDANHA, 2008; RIBEIRO, 2008; C. S. ANDRADE, de canções (como em Sá Zeferina tá de vorta, de 1930, 2008; LÉLIS, 2007, p.69). Edson Rodrigues, citado por de Valdemar de Oliveira, na voz de Mário Pessoa) ou SILVA e SOUTO MAIOR (1991, p.66), ainda menciona, em títulos de canções (como Frevo Pernambucano, de entre os novos compositores de frevo, o frevo-de-salão, Luperce Miranda e Oswaldo Santiago, de 1930, na voz que apresenta influências do jazz na harmonia e melodia. Francisco Alves) (VILA NOVA, 2012, p.99-100), há uma Em um relato da década de 1920, outra alusão ao jazz é

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feita em relação à sensação de “caos” contrapontístico percussão, combinadas em complexas polirritmias que pode causar no ouvinte: resultantes dessa interação.

“O ensaio geral do Clube Vassourinhas veio varrer os últimos Embora existam duas partituras do Frevo publicadas pelo resquícios de tristeza da alma romântica da cidade... Ontem, próprio Egberto Gismonti - uma incluída no encarte do quem esteve na Rua Nova, na Praça da Independência e na Rua Imperador, ali por volta das 24 horas, viu claramente o que quer disco Alma (GISMONTI, 1987b) e outra publicada pela dizer: frevo pernambucano...Um delírio, um frenesi, um arranca Éditions Gismonti Suisse (GISMONTI, s.d.) -, preferimos rabo de todos os diabos... A música, numa apoteose jazz bandesca, outra fonte primária para esse trabalho: a gravação desequilibrando todas as acústicas num verdadeiro pandemônio em áudio incluída no disco (GISMONTI, 1987a), de tons”. (trecho do Diário de Pernambuco de 29 de fevereiro de Alma 1924, citado por RABELLO, 2004, p.127). que, além das seções da forma canção AABA, contem ainda uma Ponte, uma Coda e uma importante seção Outras características estilísticas importantes do frevo de improvisação com seis choruses de recapitulação são: predomínio da forma canção da Seção A. Nessa gravação, Gismonti também inclui [A :║ B :║ A] (muitas vezes com pontes ligando as Seções discretas intervenções dele e de Nando Carneiro no A e B), andamentos rápidos, com pulsação binária em teclado eletrônico como ambiências e reforço tímbrico- 2/4 (às vezes escrita em 4/4), introdução melódica com harmônico em [01:10 da gravação] (ou c.73 da partitura anacruse, longos fraseados em movimento ascendente ou transcrita), [01:32] (ou c.94), [01:59] (ou c.122), [03:40] descendente, trechos em cromatismo, escrita virtuosística (ou c.226), [03:54] (ou c.242) e [05:53] (ou c.347) . A e finais apoteóticos (SALDANHA, 2008; RIBEIRO, 2008). partir dessa gravação, os autores do presente artigo Já em relação ao andamento, o dossiê do frevo no IPHAN realizaram a transcrição da partitura de Frevo (processo (LÉLIS, 2007, p.66) faz referências aos andamentos típicos no qual foram utilizados os softwares Finale e Amazing de frevo: semínima entre 100-120 para o frevo-de-bloco; Slow Downer), sem a parte de teclado eletrônico da 130-150 para o frevo-de-rua, e até 140-160 para o gravação. Em relação às dinâmicas nessa transcrição frevo-canção. foram anotadas apenas algumas sugestões a partir da gravação, mesmo porque o próprio Gismonti questiona Estilisticamente, Frevo de Egberto Gismonti faz alusão a colocação desses sinais nas partituras de suas músicas: ao frevo coqueiro, com suas passagens no registro agudo, virtuosismo e instrumentação contrapontística. ...não posso jamais escrever e entregar porque se acabaram os dias em que as salas de concerto eram o local de se tocar música. Hoje Já sua utilização de harmonia modal, acordes alterados se toca em botequim, em clube...Todas as salas de concerto tinham e improvisação na forma remete ao frevo de salão. Na condições acústicas de se tocar aquilo que estava escrito. Hoje performance de Frevo no disco Alma, Egberto Gismonti, não existe... Não adianta estar escrito...depende da qualidade do refletindo sua formação erudita no piano, utiliza um instrumento. Você não vai conseguir [realizar em] piano e você vai tocar mal a música... (Depoimento de Gismonti a SILVA, 2005, p.29). andamento ainda mais virtuosístico, com semínima variando entre 224 e 232, o que torna esta versão, com A partitura da transcrição de Frevo utilizada na análise toda a complexidade de suas polirritmias, difícil mesmo está publicada integralmente no presente volume de Per para pianistas experientes. Musi (GISMONTI, 2013, p.125-144). Como muitas outras expressões musicais populares, o frevo foi se adaptando ao longo de sua história a demandas como 2 - Egberto Gismonti no Frevo: compositor- inclusão de letras, forma de apresentação, participação do instrumentista, erudito-popular público e acústica dos ambientes, o que gerou mudanças e Egberto Gismonti nasceu em uma família musical na cidade variações na instrumentação de suas bandas: do Carmo, Rio de Janeiro, em 1947. Começou a estudar o piano erudito por influência do pai libanês e o violão popular “A instrumentação do frevo-de-rua é, pois, a instrumentação por influência da mãe italiana. Com naturalidade, aplicava emblemática do gênero. É a orquestra de instrumentos de sopro e percussão, com predomínio de instrumentos de bocal (trompetes, a técnica de instrumento erudito ao popular. Sua formação trombones, tuba) e participação de instrumentos do naipe dito erudita ao piano o inspirou a transcrever trechos do Cravo “das madeiras” (embora alguns destes instrumentos sejam bem temperado de J. S. Bach para o violão (BERNOTAS, hoje feitos de metal): saxofones, clarinetes, requinta, flauta e 2008). Egberto comenta sobre sua naturalidade nesse flautim; a percussão composta de surdo, caixa e pandeiro. Esta seria a formação mais clássica, diretamente inspirada das bandas trânsito na linguagem dos dois instrumentos: marciais. Na prática mais recente, porém, os instrumentos de ... se você pega uma criança de 6, 7 anos de idade e começa a sopro têm-se resumido a saxofones, trompetes e trombones, e se falar 3 línguas como ela, quando tiver 10, fala as 3 línguas e não têm adicionado alguns instrumentos eletrônicos, como teclados, sabe que tem diferença de uma para a outra. Música para mim foi guitarra e baixo elétrico (este último bastante comum como assim. Comecei a estudar e a tocar dois instrumentos ao mesmo substituto da tuba)”. (LÉLIS, Org., 2007, p.63). tempo. [Somente] Hoje em dia eu tenho consciência de que violão não tem nada a ver com piano e vice-versa (Depoimento de Na sua visão do frevo, Egberto Gismonti buscou refletir Gismonti a WANDER, 2007). a instrumentação típica do gênero, explorando registros e timbres no piano, de modo a sugerir a interferência De fato, a grande extensão do piano acabou levando marcante dos metais, as linhas melódicas rápidas e Egberto a encomendar violões personalizados com 8, sincopadas das madeiras, a articulação explosiva da 10, 12 e 14 cordas, os quais ele utiliza com diversos

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Ex.1a,b, c – Trechos virtuosísticos com escalas (2a), arpejos (2b) e trinados (2c) em transformações do Motivo b e Motivo e de Frevo (para lista e descrição dos motivos, veja Exs. 7 e 8, à frente): herança dos estudos de técnica pianística de Gismonti em conservatório. tipos de afinação, reforçando a ideia de ampliação da da técnica básica do piano realizados em andamentos escrita idiomática e das práticas de performance com rápidos, como trechos de escalas (em que as mudanças de base no piano: posição com forma de mão direita completa foi utilizada idiomaticamente) iniciados com um ornamento (c.231; Basicamente, eu sou um pianista que toca violão. Ex.1a), arpejos (c.92, 94; Ex.1b) e trinados (c.81; Ex.1c). Devido à extensão do piano eu afinei meus ouvidos Mas não se trata de uma utilização gratuita da técnica, para intervalos maiores que os intervalos do violão. mas de transformações de motivos básicos da peça com Esta é a principal razão de usar mais cordas. As o objetivo de desenvolvimento temático (veja lista de afinações são diferentes para cada violão, mas todos motivos básicos no Ex.8 e Ex.9 abaixo). eles têm cordas mais altas nas 7ª e nas 9ª (Depoimento de Gismonti a GILMAN, 2009, tradução nossa). Podem-se observar também reminiscências de dedilhados próprios do repertório romântico, como a alternância Com relação às influências dos nove anos de estudo em entre 1-4 e 2-5 na mão direita para realizar longas conservatório (SILVA, 2005, p.10), é evidente a herança do sequências de intervalos de sextas e quintas paralelas. repertório tradicional do piano sobre seu estilo crossover. Típicos do pianismo do século XIX, essa técnica aparece, No Frevo, ouvem-se diversos ecos de exercícios de métodos por exemplo, no Étude Op. 25 Nº 8 de Frédéric Chopin (c.1;

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Ex.2a) e recorre em toda a Subseção D (para saber das Mas o nível de complexidade rítmica que Gismonti propõe características de cada subseção, veja Exs.8 e 9, à frente) trazer para a seara da música popular instrumental vai de Frevo (c.148; Ex.2b), que podemos considerar “a seção além da polifonia de Bach ou o pontilhismo de Webern. romântica” dessa peça. Gismonti afirma que Ravel o atraiu por suas orquestrações inovadoras e o contraponto presente nos seus chord Reflexos do pensamento contrapontístico e da complexidade voicings (BERNOTAS, 2008). Depois de tocar Frevo no rítmica da tradição musical alemã, epitomados nos modelos Teatro Colón, em Buenos Aires, no dia 21 de abril de 2003, deixados por J. S. Bach, podem ser ouvidos na música em um concerto que considera uma de suas performances crossover de Gismonti. A condução de vozes no estilo de mais inspiradas e tecnicamente perfeitas (SILVA, 2005, melodia polifônica (ou falsa polifonia, em que uma voz p.17), ele mencionou a complexidade desta obra: permanece estática e a outra se move, como ocorre no de BACH (c.2; Ex.3a), pode ser percebida Esse concerto do Colón é um bom parâmetro. Eu não me lembro Prelúdio BWV 848 nesses 30 anos, tocando profissionalmente, de eu ter tocado 90 e também no trecho do Frevo (c.226; Ex.3b). tal minutos com uma concentração e uma precisão

A mesma complementaridade entre vozes simultâneas muito raras... O “Frevo” do Colón é uma das coisas mais complexas que se observa no do que eu já ouvi como resultado do piano que eu toco. É complexo Prelúdio BWV 867 Cravo bem no sentido da polifonia. Quando eu ouço esse troço, eu digo ‘mas temperado de J. S. Bach (c.13; Ex.4a) é também sugerida caçamba, eu nunca tinha tocado esse troço assim!’ por Gismonti no tratamento improvisatório da Subseção A11 que leva à Coda do Frevo (c.333; Ex.4b). Essa utilização De fato, no trecho da Subseção B mostrado no Ex.5, de uma mão esquerda autônoma dialogando com a da esperada pulsação binária (ainda que sua escrita mão direita na apresentação de materiais temáticos é original tenha sido em 4/4), ele se lança a uma intrincada incomum no piano popular. Ainda no Ex.4b, o Motivo polirritmia cuja inspiração lembra a rítmica dos bateristas c é tratado com um pontilhismo espacializado pós- outside, em que a mão direita faz um desenho ascendente weberiano, outra abordagem arrojada entre os pianistas firmemente ancorado na métrica 3/8, enquanto que a populares, que a encaixariam dentro da linguagem que mão esquerda, realizando padrões de síncopes inusitadas chamam de outside. na métrica 2/4, não fornece um apoio sólido.

Ex.2a, b – Dedilhado com sequência de sextas e quintas na mão direita do piano: Étude Op. 25 Nº 8 de Frédéric Chopin (2a) e Subseção D de Frevo de Egberto Gismonti (2b).

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Ex.3a, b – Melodia polifônica no Prelúdio BWV 848 do Cravo bem temperado de J. S. Bach e no Frevo de Egberto Gismonti.

Ex.4a, b – Complementaridade de vozes no Prelúdio BWV 867 do Cravo bem temperado de J. S. Bach e no Frevo de Egberto Gismonti, que também mostra pontilhismo no tratamento do Motivo c.

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Ex.5 – Complexidade rítmica na Subseção B do Frevo de Egberto Gismonti, comuns em polirritmias jazzísticas.

Ex.6a, b – Ocorrência de clusters no Frevo de Egberto Gismonti: traços da música erudita pós-1950.

Ex.7a,b – Linha melódica descendente entrecortada após síncope no Martelo das Bachianas Brasilerias N.5 de H. Villa-Lobos e no Motivo c do Frevo de Gismonti.

Além da forte influência da música francesa e da música Mas essa forte influência europeia não impediu que a da 2ª Escola de Viena, os estudos de Gismonti com Nadia música de Gismonti soasse irremediavelmente brasileira, Boulanger e Jean Barraqué em Paris (BERNOTAS, 2008) com sugere uma comparação de trecho descendente podem ter colocado Gismonti com elementos típicos da entrecortado após síncope do Frevo (c.10; Ex.7b) com trecho música pós-1950, como a utilização do colorismo não- semelhante do Martelo, que constitui o segundo movimento funcional dos clusters (c.84, 105; Ex.6a, b), das Bachianas Brasileiras N.5 de H. Villa-Lobos (c.30; Ex.7a).

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Gismonti fala não só sobre a importância de Villa-Lobos (CRYSÓSTOMO, 1976, p.119). Mas foi após sua experiência no seu desenvolvimento como músico, mas também de de várias semanas, em 1977, entre os Yawalapiti da outro ícone do nacionalismo brasileiro: Amazônia, a tribo do índio Sapain, que a música de Gismonti se tornou “... mais espontânea e ele passou a se preocupar O Villa-Lobos foi o sujeito que teve a parabólica mais bem instalada com a busca de uma integração entre o músico, a música no Brasil. E o mentor da parabólica do Villa-Lobos – parabólica é coisa positiva; quer dizer “antenado” com o Brasil – foi o Mário de e o instrumento.” (McGOWAN e PESSANHA, 1991, p.158). Andrade (Depoimento de Gismonti a AMARAL, 2007). Embora se refira ao sentido mais geral da trajetória de Essa admiração pela cultura brasileira e sua excelência Gismonti, a reflexão de GODOY (2000, p.60-61) sobre a instrumental tanto no piano (de tradição erudita) quanto postura do músico experiente se organizando frente ao violão (de tradição popular) reflete bem a síntese que inusitado ou novo pode também ser estendida ao universo Gismonti sempre buscou e que passou a ser também um mais localizado de suas performances. Quando Gismonti modelo para as gerações seguintes. OLIVEIRA (2009, relata, a partir de sua experiência de ser convidado a p.17) comenta esta trajetória de Gismonti, na qual foi um entrar na oca sagrada dos índios do Xingu, que “... ‘Embora dos responsáveis pela inclusão do repertório crossover no não existissem portas, paredes ou grades... o primeiro meio erudito, facilitando passo era ver o limite... cujo espaço interior muito reduzido... vivências intensas... componentes direcionais, ... a adoção de várias obras que anteriormente eram somente dimensionais, componentes de passagem ou de fugas... se aceitas no ambiente da música popular em recitais de violão erudito. Vários concertistas ativos [como Sérgio Assad] naquele faziam simultâneos ou se misturavam...” (Depoimento de período se aventuraram em projetos de gravações e concertos com Gismonti a Carlos FREGTMAN, 1989, p.32). Recorrendo à obras de caráter popular..., sua fala, fazemos uma analogia para preparar nossa análise da realização de Frevo, em que Gismonti parece “ver o e também por influenciar estilisticamente compositores limite” de sua expressão musical a partir do “espaço interior reconhecidos internacionalmente como Sérgio Assad muito reduzido” do material temático sucinto que escolhe, (OLIVEIRA, 2009, p.145-147, 193, 213). MELO (2007) mas que lhe permite “vivências intensas” pela forma com comenta sobre a presença e a transfiguração dos traços que organiza, em tempo real, seus “componentes”, que “se folclóricos na obra de Gismonti, o que observaremos na fazem simultâneos ou se misturam”. análise de Frevo: Egberto Gismonti é um músico com vasta produção. Egberto é um artista brasileiro cujos rótulos dizem muito pouco Nos 17 anos que separam seu primeiro disco - Egberto sobre sua música. É difícil negar seus traços “populares”, ainda que bem mais complexos que as manifestações folclóricas ou Gismonti de 1969 e o disco Alma de 1987 (GISMONTI, da música popular de massa que tomou a forma das canções. 1987a), ele lançou uma media de mais de dois discos por O estatuto do “popular” em sua obra é sempre refletido e ano. Em relação ao disco Alma, seu conteúdo enfatiza mediatizado nos procedimentos composicionais. O regional nunca o piano (mas com intervenções de instrumentos vai sem uma pitada de novidade ou sem um sentimento de traição com o passado e com a herança cultural. de teclado eletrônicos em diversas faixas) em uma atmosfera bastante intimista, dentro da linguagem Mas no círculo de músicas que o influencia, Gismonti não tonal. Entretanto, pode-se observar que o recurso excluiu a dita música de massa. Em entrevista publicada da fragmentação melódica - uma clara herança do no site Clube do Jazz (PIRES, 2004), Gismonti vê com pontilhismo erudito do século XX (de Webern ou Varèse) bons olhos a oportunidade de receber influências as mais – é recorrente no disco, e fundamental no discurso de diversas e, por isso, parece não se impor preconceitos Frevo. Oito anos depois de lançar Frevo, Egberto revisita com relação a quaisquer formas de expressão musical: o gênero pernambucano e compõe Sonhos do Recife em 1995, obra analisada por SILVA (2005). Passados uns tempos, a Bianca, minha filha que toca piano, me disse: “Eu só queria um disco da Madonna.” “Mas da Madonna?”; 3 - Análise formal, motívica e harmônica de “É. Da Madonna”. Eu não gostava nada da Madonna; comprei o disco. Ela pediu mais um, e depois outro. Até que um belo dia está Frevo minha filha sentada, feliz como o diabo. E eu feliz como o diabo Embora frevos geralmente sejam escritos no típico pela felicidade dela. E o disco da Madonna tocando. Aí entendi compasso binário 2/4 das marchas militares, podem que não tem música nem músicos que eu possa julgar. Tem música, ou músicos de que eu preciso para viver. A partir desse ocasionalmente aparecem em compasso 4/4, como é o dia, qualquer discriminação que eu tinha acabou (Depoimento de caso de Frevo. Entretanto, embora Egberto Gismonti tenha Gismonti a AMARAL, 2007). anotado Frevo em compasso quaternário (talvez para facilitar a escrita), percebe-se, pelas suas acentuações, A improvisação entrou na carreira de um dos nossos que sua realização é binária. maiores multi-instrumentistas de maneira inusitada quando, durante uma excursão no EUA, o percussionista Devido à sua natureza improvisatória, a versão de Frevo , repentinamente, deixou Gismonti sozinho no tocada por Gismonti no disco Alma (cuja partitura é palco, que diz: “...sem partitura, sem ensaios, sem saber o que apresentada às p.125-144, desse número de Per Musi) fazer. Era tocar de improviso ou sair correndo. Toquei e deu parece se encaixar no conceito da forma rapsódica de [um] estalo, numa emoção pura que nunca tinha sentido.” SCHOENBERG (2004, p.198), pois

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... sugere uma improvisação... [com seu ] seu inspirado imediatismo fora do universo temático de poucos motivos com que e vivacidade [mais do que ]... elaboração...mais pelo exercício constrói a obra. da imaginação e emoção do que, propriamente, das faculdades estritamente intelectuais... abundância de temas e ideias contrastantes ... “pontes”...justaposições abruptas... Gismonti constrói essa versão de Frevo (inclusive os trechos improvisados, o que a deixa com um total de 352 Em que pese apropriações mais recentes do jazz no compassos) com base em apenas cinco motivos temáticos choro, SÁ (2000, p.66-70) fala de características que (Motivos a, b, c, d, e; veja Ex.8) e nas recorrências de diferenciam o improviso na linguagem tradicional desse suas transformações (Ex.8). Quatro desses cinco motivos gênero popular brasileiro do improviso no gênero norte- ocorrem já nos primeiros 14 compassos, cinco deles são americano: apresentados na Seção I e o último aparece no início da Ponte (c.66). O Motivo a (c.1), em arco, é caracterizado Pegando seu Bandolim Joel [Nascimento] tocou cerca de cinco por um arpejo descendente em semínimas finalizado com vezes o ‘Ingênuo’ praticamente sem alterar uma nota sequer, síncope de colcheia em grau conjunto ascendente. O mas modificando todas as divisões rítmicas... [ao contrário do jazzista] O chorão, por sua vez, manifesta sua capacidade Motivo b (c.9), também em arco, sobem com um arpejo improvisadora fundamentada muito mais na melodia do choro e depois desce em graus conjuntos. O Motivo c (c.11) que está interpretando, sendo a harmonia mais um decurso do que tem um contorno melódico entrecortado de colcheias, propriamente a ideia central ao redor da qual seria realizado um cuja direção final é descendente. O Motivo d (c.14) é o improviso... dar a ele próprio o direito de contribuir simplesmente com alguns ornamentos... [há também] O ‘molho’... através de ritmo de quiálteras de três notas, representa a sugestão uma mudança de métrica melódica... antecipa ou adianta uma de métrica ternária no ambiente binário do frevo. O nota ou um grupo de notas... não existe um improviso nascido Motivo e, o único que não aparece no início da peça, é de divagações... mordentes, glissandos, apojaturas, grupetos, entre um ostinato de colcheias seguidas (c.66 da Ponte). outros, se dá de forma imprevisível... numa espécie de interstício entre improviso e variação melódica... Trata-se, por conseguinte, de uma variação melódica. Recorrendo ao desenvolvimento desses materiais temáticos, Gismonti faz com que a forma final de Podemos observar que se Gismonti recorreu à prática Frevo corresponda a uma forma expandida da canção do jazz de realizar diversos choruses nessa versão de tradicional (Ex.8 e Ex.9), própria do gênero frevo, com Frevo, por outro lado preferiu valorizar as características uma Ponte entre a Seção I e a Seção II e uma Coda. improvisatórias mais afins como aquelas descritas A Seção I, por si só, é estruturada como uma pequena acima para o choro tradicional: alterações rítmicas forma canção dentro da forma canção maior, sendo (por antecipação, retardo, diminuição, aumentação, composta da Subseção A (repetida com variações fragmentação), variações melódicas, espacialização como Subseção A1), Subseção B seguida da Subseção de alturas, o “molho” pela adição e exclusão de notas, A2. A Ponte não apresenta subseções. A Seção II é ornamentos, sem “divagações” que o levassem para formada pela Subseção C, Subseção D e Subseção B1

Ex.8- Esquema formal de Frevo (composição e performance de Egberto GISMONTI, 1987a no disco Alma) com seções, subseções e motivos temáticos geradores da obra (Motivos a, b, c, d, e) com a indicação de suas primeiras ocorrências na obra (veja o Ex.9 para ocorrência dos Motivos temáticos em toda a obra).

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Nº de Localização da subseção Localização da subseção compassos na partitura na gravação Subseção Motivo temático (total de (compasso) (minutos e segundos) 352c.) A a, b, c, d 16 c.1 [00:00] A1 a, b, c, d 16 c.17 [00:16]

SEÇÃO I B d, c 16 c.33 [00:31] A2 a, b, c, d 16 c.49 [00:46]

PONTE Ponte a, e 8 c.65 [01:02]

║C:║ a, e, b, c 43 (23+20) c.73 [01:10] SEÇÃO II D a, c, e 46 c.116 [01:52] B1 d, c 16 c.162 [02:38]

A3 a, b, c, d 16 c.178 [02:53] A4 a, c, d+e 16 c.194 [03:08] B2 d+(a, b, c, e) 16 c.210 [03:24] A5 a+e, b, c, d 16 c.226 [03:40] A6 a, b, d, c, e 16 c.242 [03:54] A7 a, b, c, d 16 c.258 [04:10] A8 a, b, c, d 16 c.274 [04:26] A9 d, a, b, c 16 c.290 [04:42] SEÇÃO I’ A10 d+e, b+c, a 16 c.306 [04:59] A11 a, d+b, d+c, b+a 16 c.322 [05:18]

CODA Coda a+c, b+e 15 c.338 [05:41] Ex.9 – Quadro com ocorrências dos motivos temáticos (Motivos a, b, c, d, e) e suas combinações nas seções e subseções de Frevo de Egberto Gismonti, com sua localização de compassos na partitura transcrita (veja às p.125-144) e de timing na gravação no disco Alma (GISMONTI, 1987a).

(que é uma variação da Subseção B, trazendo de volta Das 19 subseções de Frevo (veja Ex.9 acima), o Motivo c materiais da Seção I). A Seção I´, que fecha a grande participa de 17 subseções, o Motivo a de 16 subseções, o forma ternária, é uma grande expansão da Seção I, Motivo d de 15 subseções, o Motivo b de 14 subseções, cujas subseções são variações de subseções anteriores, e o Motivo e de 9 subseções. Esse grande número de em um processo improvisatório que gerou as seguintes recorrências de cada motivo mostra um alto grau de subseções formais: as Subseções A3 e A4 seguidas pela unificação temática da obra. A predominância do Motivo c Subseção B2 que é seguida por uma longa justaposição com seu contorno melódico entrecortado (também sugerido de variações formada pelas Subseções A5, A6, A7, A8, na gradual espacialização dos motivos para os registros A9, A10 e A11. A obra é finalizada com uma Coda, na extremos), permeando toda a peça, confere o caráter de qual Gismonti volta a reutilizar motivos temáticos agitação típica do gênero. Contribui para essa atmosfera apresentados anteriormente nas várias seções de de aparente caos o fato da recorrência e combinação dos Frevo. Assim, ao mesmo tempo em que ainda se atém motivos dentro das subseções ser aleatória: nem sempre a um padrão formal estruturado e planejado, Gismonti recorrem e nem sempre aparecem na mesma ordem. também reserva ao Frevo uma atmosfera de liberdade, Entretanto, o fato de todas as subseções serem iniciadas ao estender as seções formais por justaposição de seções pelo Motivo a (A, A1, A2, Ponte, C, D, A3, A4, A5, A6, A7, A8, improvisadas, ao combinar e recombinar sem uma ordem A11, Coda) ou Motivo d (B, B1, B2, A9, A10) traz ao ouvinte lógica os motivos temáticos, o que acrescenta ao frenesi a familiaridade de retornar formalmente a algo ouvido frevístico, a sensação de caos. antes, redundância é muito comum – talvez essencial – à

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compreensão musical, especialmente na música popular. apenas dois recursos: (1) as diferenças entre tonalidade e Assim, o contraste principal entre as subseções ocorre modalidade, ou seja, Ré Menor (com a presença do Dó # quando a textura eminentemente contrapontística a duas como sensível), Ré Dórico (com a presença dos graus Si vozes da obra dá lugar à homofonia dos blocos de acordes natural-Dó natural) e Ré Eólio (com a presença dos graus pesados da Ponte, ou aos pedais repetitivos da Subseção Si bemol-Dó natural); (2) as substituições harmônicas C, ou à melodia de bicordes acompanhada por acordes observadas nos c.131-133 e c.151-153 da Subseção D da cantabile da Subseção D. Seção II. Gismonti estrutura o Frevo principalmente com a perspectiva polifônica, o que gera certa ambiguidade em Harmonicamente, em relação às macro estruturas, relação às progressões harmônicas. O Ex.10 mostra uma Egberto organiza Frevo em torno de um único centro explicação da possível harmonia da Subseção A (c.1-16) tonal, Ré menor (com algumas implicações modais), que que abre a obra. Polifonicamente, uma redução das mãos permeia todas as Seções, respectivas Subseções, Ponte e direita e esquerda do piano nesse trecho inicial mostra a Coda. Para gerar algum contraste harmônico, ele utiliza simplicidade de fundamentais no baixo descendente.

Ex.10 - Progressão harmônica da Subseção A (c.1-16), com simplificação da mão esquerda e possíveis acordes (completos, mas com análise simplificada das funções).

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Ex.11 - Redução harmônica (com análise simplificada das funções) da Subseção B de Frevo, na qual Gismonti utiliza notas comuns entre os acordes para gerar, gradualmente, tensão e relaxamento.

A redução harmônica da Subseção B (c.33-48) mostra Ainda nesta subseção ocorrem dois raros trechos de como Gismonti utiliza o recurso de notas comuns para substituição harmônica de Egberto em todo o Frevo. estabelecer uma progressão sem grandes contrastes Nos c.132-133 (e depois repetido nos c. 152-153), ele dentro do mesmo centro de Ré menor criando tensão substitui os esperados acordes de Dm7- G7 de C7sus4 gradualmente e retardando sua resolução (Ex.11). A (ou seja, ii7 – V7 da subtônica Dó) pelo equivalente um presença das notas Fá e Fá # não acena para a mistura trítono acima, gerando a seguinte progressão: G#m7(b5) modal maior-menor, mas sim para a utilização de - Db7(b9) - C7sus4, como mostra o Ex.12. dominantes secundárias. Ao mesmo tempo, essas notas parecem sugerir uma característica da escala do blues. Outro procedimento que permite a Gismonti se afastar um pouco do idioma predominantemente diatônico de Na Ponte, Gismonti sugere a alternância entre as escalas Frevo é uma utilização criativa e mais livre de notas não de Ré Frígio e Ré Dórico nos blocos de acordes paralelos harmônicas (antecipações, notas de passagem, bordaduras dos c.65-72. Se na Subseção A Gismonti havia empregado etc.) que soam como aproximações harmônicas utilizadas o centro modal de Ré Eólio, ele utiliza Ré Dórico em toda na improvisação jazzística. O Ex.13 mostra como os a extensão da Subseção C (c.73-115). Ali, a harmonia materiais da Subseção B (c.33; Ex.13a) gradualmente de base é definida pela linha melódica de caráter se tornam mais dissonantes nas Subseções B1 (c.162; improvisatório da mão direita, preparada por um riff na Ex.13b) e B2 (c.210; Ex.13c) sem que ele recorra a um mão direita e por um pedal com a síncope do Motivo a na afastamento do centro harmônico. mão esquerda, que enfatiza a tônica Ré e percorre toda essa subseção. Assim, fica evidente que o compositor escolheu o modo D dórico como forma de unificar o início 4 – O Desenvolvimento temático de Egberto da obra com as seções seguintes. Gismonti em Frevo Do ponto de vista do fraseado, Gismonti tende a seguir A Subseção D (c.116-163) segue um esquema muito a quadratura que se estabeleceu no período clássico, e parecido com o da Subseção A, com uma linha de baixo que se tornou típica na maioria dos gêneros populares: descendente, mas centrada em Ré Dórico e com as quase todas as subseções de Frevo (15 do total de 19) harmonias apresentadas com antecipações de colcheias. são construídas com frases 16 compassos cada uma

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Ex.12 - Um dos raros trechos de Frevo (parte da Subseção D) em que Gismonti recorre a uma substituição de acordes mais jazzística (com análise simplificada das funções).

(veja Ex.9 acima). Entretanto, a previsibilidade que esta O Motivo a, por exemplo, o mais memorável porque fraseologia supõe é evitada – e daí a sugestão proposital marca o início de 14 das 19 subseções de Frevo, sofre do caos festivo-agressivo e contrapontístico do gênero manipulações sutis entre sua primeira aparição, na frevo em ambas as música e dança - pela maneira como Subseção A (c.1; Ex.14a), e sua recapitulação. Primeiro na Gismonti varia as recorrências dos motivos, frases, seções Subseção A1 (c.17; Ex.14b), com modificações rítmicas, e subseções. A repetição, transformação e reorganização omissão de notas, mudança de registros. Depois, o Motivo dos motivos, também uma herança da Primeira Escola de a é novamente recapitulado na Subseção A2 (c.49; Ex.14c), Viena (que teve em J. Haydn e Beethoven expoentes desse que volta a ficar mais densa com a adição de notas e procedimento) é feita com a liberdade improvisatória de novos ritmos (como a semicolcheia e a quiáltera de 3 com que SCHOENBERG (1994, 2006) caracteriza seu colcheias). Como se pode perceber, o estilo improvisatório conceito de variação progressiva (developing variation). de Gismonti no Frevo é muito mais próximo do padrão Assim, podem ser observadas manipulações envolvendo de improvisação brasileiro do choro – mais focado nas reharmonização, apresentação a capella, fragmentação, variações rítmicas e ornamentais (SÁ, 2000) - do que das diminuição, aumentação, inversão, espacialização, práticas de performance do jazz, que é mais orientada superposição, justaposição, combinação e recombinação pela harmonia, com uma invenção melódica mais dos materiais temáticos. distante dos materiais temáticos.

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Ex.13a, b, c – Utilização crescente de dissonâncias não funcionais por Egberto Gismonti nas Subseções B, B1 e B2 de Frevo.

Os motivos de Frevo também podem sofrer fragmentação Essas partes do Motivo a podem ainda estar diminuídas seguida de transformações desses fragmentos. A parte e comprimidas (c.283; Ex.17a) ou imbricadas entre si descendente do Motivo a, por exemplo, é manipulada (c.298; Ex.17b) ou com parte do Motivo b (inversão do de diversas formas: por alteração rítmica (c.65; Ex.15a), trecho escalar) em processo de expansão (c.344-350; por diminuição por colcheias repetidas (c.119; Ex.15b), veja Ex.23, mais abaixo). por sincopação (c.168; Ex.15c), por deslocamento das semínimas (c.338; veja Ex.23, mais abaixo). Como o Motivo a, o Motivo b é também fragmentado por Gismonti para ser desenvolvido tematicamente. Já a parte ascendente e final do Motivo a – sua Sua primeira parte, o arpejo ascendente, reaparece com síncope – é manipulada com deslocamento (c.15; diminuição por semicolcheias no sentido original (c.87; Ex.16a), espacialização de registro (c.117; Ex.16b), uso Ex.18a) ou invertido (c.94; Ex.18b), imbricado com a de pedal que usa a estaticidade do Motivo e (c.73-115; quiáltera do Motivo d (c.221; veja Ex.20d, mais abaixo), Ex.16c) sequenciamento (c.200; Ex.16d), diminuição e e com acordes quebrados (c.264; Ex.18c). sequenciamento (c.278; Ex.16e).

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Ex.14a, b, c – pequenas variações do Motivo a de Frevo de Egberto Gismonti (Subseções A, A1 e A2) por acréscimo e diminuição de notas e ritmos, rarefação da textura e inclusão de registro contrastante.

Ex.15a, b, c – Manipulações da primeira parte do Motivo a de Frevo de Egberto Gismonti.

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Ex.16a, b, c, d, e – Manipulações da segunda parte do Motivo a de Frevo de Egberto Gismonti.

Ex.17a, b– Compressão e imbricação das partes do Motivo a do Frevo de Egberto Gismonti entre si.

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Ex.18a, b, c – Desenvolvimento temático do arpejo do Motivo b em Frevo de Egberto Gismonti.

Ex.19a, b, c – Desenvolvimento temático do trecho escalar do Motivo b em Frevo de Egberto Gismonti.

Já a segunda parte do Motivo b - o trecho escalar Uma das sofisticações de Gismonti no Frevo é o descendente -, é desenvolvido tematicamente com desenvolvimento temático do ritmo, especialmente na diminuição em semicolcheias (c.93; Ex.19a), na sugestão de uma métrica complexa em que superpõe aumentação em semínimas e semibreves antes da Coda sugestões de ternário com binário (c.34; veja Ex.5, mais (c.335; Ex.19b), imbricado nas síncopes do Motivo a acima). A sugestão de métrica ternária, originada na (c.302; Ex.19c; veja também o c.298 no Ex.17b, acima), quiáltera do Motivo d é desenvolvida de outras maneiras: imbricado com a redundância do Motivo e em notas tratada homofonicamente nas mãos direita e esquerda do repetidas (c.224; veja Ex.21c, mais abaixo), na diminuição piano (c.30; Ex.20a), com diminuição rítmica (c.193; Ex.20b), de semicolcheias em longa sequência que lembra imbricada na estaticidade do Motivo e (c.205; Ex.20c), métodos de piano (c.231; veja Ex.1a, acima), e combinado imbricada no arpejo ascendente do Motivo b e na linha aos Motivo a e Motivo e para finalizar o Frevo (c.344; entrecortada descendente do Motivo c (c.221; Ex.20d), veja Ex.23, mais abaixo). espacializada do grave ao agudo do piano (c.329; Ex.20e).

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Ex.20a, b, c, d, e – Desenvolvimento temático das quiálteras do Motivo d em Frevo de Egberto Gismonti.

A estaticidade do ostinato do Motivo e é explorada por acordes repetidos (c.224; Ex.21c), na voz estacionária tematicamente de diversas maneiras: na oscilação de melodias polifônicas (c.226; veja Ex.3b, mais acima), contínua (c.120; Ex.21a) ou fragmentada (c.117; Ex.21b) na imbricação com os Motivos a e b que termina a peça de bicordes na m.d. do piano, como pedal junto com a (c.344 em diante; veja Ex.23, mais abaixo). síncope do Motivo a que percorre toda a Subseção C (c.73; veja Ex.16c, mais acima), transformado em trinado Na Ponte que liga as Seções I e II, blocos de acordes (c.81; veja Ex.1c, mais acima), na repetição do Motivo em notas longas do Motivo a simplificado e tratado d (c.205; veja Ex.20c, logo acima), nos dobramentos de homofonicamente (c.65, 67, 69, 71; Ex.22) se alternam notas da escala descendente do Motivo b acompanhados com recorrências do Motivo e (c.66, 68, 70; Ex.22). Já

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Ex.21a, b, c – Desenvolvimento temático da estaticidade do Motivo e em Frevo de Egberto Gismonti.

Ex.22 – Ponte de Frevo, na qual Gismonti utiliza os Motivo a e Motivo e com diminuição rítmica para preparar o início da Seção II.

o Motivo e, apesar de manter sua característica básica Vasconcelos), Gismonti alterna a estaticidade do Motivo – a estaticidade e redundância -, entra em um processo e com a aumentação de mínimas e semínimas, com de rarefação rítmica (de 6 colcheias para 4, para 2 e fragmentos do Motivo a (as semínimas descendentes para nenhuma), como um pedal que vai se esvaindo. e a síncope com aumentação de mínima (síncope aqui Como veremos adiante, Gismonti lança mão desse sugerida pelo tenuto no Ré do c.343). Depois, como procedimento na Coda, para finalizar o Frevo, e evitar os um último aceno de foliões atrasados, remanescentes finais apoteóticos típicos do gênero. atrás do bloco, mas sem perder a verve (c.344 ao fim), Gismonti cria uma última inflexão musical antes do Uma das surpresas que Egberto apresenta no Frevo é não final, construída com um cresc. seguido de decres., sobre finalizá-lo com o esperado clímax dos frevos. A agitação o qual fragmentos do Motivo a (a síncope - de fato do contraponto sincopado e um longo diminuendo ou novamente sugerida pelas ênfases nas notas-alvo, gradualmente dão lugar à fragmentação e dispersão dos anotadas na partitura transcrita como tenuto), do Motivo materiais temáticos que marcam o início em ppp da Coda b (inversão dos trechos escalares descendentes, cada vez

(c.338; Ex.23). Como se fizesse alusão a um bloco de mais longos) e do Motivo e (a repetição do Dó3 como frevo que desaparece na distância (c.338-343), nas ruas um pedal ou ponto de partida) interagem antes do arpejo de Olinda (terra de seu grande parceiro musical Naná final que desce para o grave (c.351-352).

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Ex.23 - Coda de Frevo, na qual Gismonti obtém um anticlímax por meio de fragmentação e expansão temática dos Motivos a, b, c, e, rarefação rítmica e baixas dinâmicas.

5 – Conclusão A canção instrumental Frevo pode ser tomada como um início da peça. Ele utilizou diversos procedimentos para mostruário das influências estilísticas europeias que ampliar e inovar a forma canção simples (Seção I – Seção formaram o compositor e multi-instrumentista Egberto II – Seção I) típica do frevo: (1) a repetição de Subseções Gismonti: os exercício técnicos dos métodos de piano, com pequenas ou grandes variações melódicas, rítmicas o contraponto de J. S. Bach, o pianismo romântico de e harmônicas; (2) a inclusão de uma Ponte autônoma, F. Chopin, o desenvolvimento temático da Primeira e em que um novo motivo é apresentado; (3) uma Segunda Escolas de Viena, a utilização colorística e grande ampliação da recapitulação da Seção I por meio espacializada do som – inclusive o som sintetizado -, muita de improvisação sobre os choruses das Subseção A evidenciada na música pós-1950. Por outro lado, Frevo (principalmente de A3 a A11) e Subseção B (4) a inclusão também ilustra seu apego ao nacionalismo brasileiro, de uma Coda construída com materiais temáticos que que valoriza seus gêneros musicais a partir do modelo vão se dispersando, contrariando os finais apoteóticos e deixado por H. Villa-Lobos. No seu hibridismo, Gismonti carnavalescos típicos dos frevos. sugere a simplicidade da música pernambucana ao lado de sofisticados procedimentos composicionais (evidentes Uma das características mais marcantes de Frevo é o na forma, harmonia e desenvolvimento temático) e grau de virtuosismo empregado na complementaridade de performance (evidentes nos seus procedimentos de entre as mãos direita e esquerda no piano, cujo improvisação e técnica instrumental). contraponto, ao mesmo tempo em que eleva o discurso musical a um alto grau de complexidade, mas que não Gismonti se atém à simplicidade harmônica geralmente quer se afastar da música popular, também permite encontrada no gênero frevo, evitando modulações e manipulações envolvendo reharmonização, apresentação mantendo o centro tonal em torno de Ré Menor durante a capella, fragmentação, diminuição, aumentação, toda a peça. Entretanto, cria um espaço mínimo de inversão, espacialização, justaposição e combinação dos divagação ao flutuar para modos de tônicas correlatas, materiais temáticos. Por outro lado, o contraste – e alívio como Ré Eólio, Ré Dórico e Ré Frígio. Ele obtém grande – à agitação gerada pelo contraponto da maioria das unidade composicional em Frevo ao derivar todas as Subseções A e B e suas variações é provida por esporádicas relações formais e estilísticas de cinco motivos temáticos texturas de natureza homofônica que ocorrem na Ponte e apenas, quatro dos quais são apresentados logo no nas Subseções C e D.

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Para finalizar, recorremos às duas epígrafes que populares. Se o caos do Frevo de Egberto Gismonti “fere” escolhemos para iniciar esse artigo. Como o próprio gênero os ouvidos – como é próprio do gênero frevo “ferir” frevo – que resistiu ao “poder das elites” e ainda “resiste (MÜLLER, 2006) - , especialmente nas primeiras audições, aos poderes do mercado” (MÜLLER, 2006) - a música de esta pequena obra-prima se revela como um universo Gismonti resistiu e ainda resiste aos estereótipos que o altamente organizado em torno de poucos elementos rica mercado da música de consumo busca impor aos gêneros e criativamente organizados.

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123 MAGALHÃES PINTO, M. G. M.; BORÉM, F. O caos organizado de Egberto Gismonti em Frevo ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.102-124.

Notas 1 A polêmica sobre a aceitação do frevo cantado teve em importante defensor na década de 1950 e em Ruy Duarte seu principal detrator no final da década de 1960 (VILA NOVA, 2012, p.35-42). 2 A utilização da frevioca, o trio elétrico pernambucano, cuja origem parece estar ligada à imagem de uma carroça com uma orquestra, é creditada ao jornalista e escritor pernambucano Leonardo Dantas. Em 1979, enquanto era Diretor da Fundação de Cultura da Cidade do Recife e devido a restrições orçamentárias da prefeitura, ele experimentou colocar bandas de frevo e solistas (notadamente o cantor Claudionor Germano e a Orquestra popular do Maestro Ademir Araújo) em caminhões ambulantes para as multidões no centro de Recife. A partir de 1983, a frevioca passou a ser utilizada pelo Galo da Madrugada, considerado o maior bloco de carnaval do mundo (M. C. ANDRADE, 2013; DANTAS, 2013; C. S. ANDRADE, 2008, p.95-96).

Marcelo G. M. Magalhães Pinto é Doutorando em Jazz Performance na Eastman School of Music em Rochester, NY e Mestre em Música pela UFMG. Participou de diversos festivais nacionais e internacionais como o Savassi Jazz Festival e Xerox International Rochester Jazz Festival. Participou da Orquestra Sinfônica da Unesco sob a regência de Francis Hime por ocasião do encerramento do Ano Brasil-França. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como performer e arranjador. Lançou o Cd Paisagens de Minas em 2009 pelo selo Karmim.

Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem dois livros, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e recitais nos principais eventos nacionais e internacionais de contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Arnaldo Cohen e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa e Túlio Mourão. Participou do CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa.

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PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 09/03/2012 - Aprovado em: 20/02/2013 125 GISMONTI, E. Partitura de Frevo de Egberto Gismonti. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.125-144.

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Cristal: aspectos do tratamento pianístico no samba de Cesar Camargo Mariano

Rafael Tomazoni Gomes (UDESC, Florianópolis, SC) [email protected]

Guilherme A. Sauerbronn de Barros (UDESC, Florianópolis, SC) [email protected]

Resumo: Estudo sobre aspectos do tratamento pianístico do pianista e compositor Cesar Camargo Mariano em Cristal, registrada no álbum Solo Brasileiro, de 1994. Uma análise da conjunção entre “estruturas musicais afro-brasileiras” (OLIVEIRA PINTO, 2001) e a abordagem textural da escrita pianística revela uma síntese ou estilização da formação instrumental dos grupos populares. A prática do samba para piano remete à tradição dos chamados pianeiros, na qual Cesar Camargo Mariano se insere. Palavras-chave: Cesar Camargo Mariano; o piano no samba; pianeiros da música popular brasileira.

Cristal: aspects of the pianistic treatment in Cesar Camargo Mariano’s samba

Abstract: Study about the pianistic treatment by Brazilian composer and pianist Cesar Camargo Mariano in Cristal, recorded on the album Solo Brasileiro (1994). Pairing “Afro-Brazilian musical structures” (OLIVEIRA PINTO, 2001) with a textural approach of pianistic writing, we observe a synthesis and stylization in the musical formation of popular groups. The practice of the piano samba refers to the tradition of the so-called pianeiros, a tradition Cesar Camargo Mariano belongs to.

Keywords: Cesar Camargo Mariano; the piano in samba; pianeiros in Brazilian popular music.

1 - O piano e o samba O samba para piano é uma prática musical que remete Um outro exemplo também é dado pela autora: ao final do século XIX e início do século XX através da atuação dos chamados 1, cujo repertório O ´pianeiro` ou tocava por camaradagem ou por contrato até pianeiros onze, uma hora, ou mesmo até de manhã. Ernesto Nazaré contemplava gêneros musicais característicos do “estilo foi o maior ´pianeiro` antes de se tornar famoso. E Aurélio antigo do samba” (SANDRONI, 2001, p.131), como o Cavalcanti ficou célebre na história da cidade [do Rio de maxixe, a polca-lundu, o tango brasileiro e outros. Dentre Janeiro]. Memória estupenda, ninguém como ele para compor o diversificado contexto de atuação profissional dos ou tocar para dançar. Tinha um ritmo invejável (Marisa Lira, citado por TINHORÃO, 2005, p.199). pianeiros, que incluía as salas de espera de cinema, lojas de partituras, teatro de revista, recitais e outros locais, De acordo com a citação acima, a atividade de “compor sendo que o presente estudo destaca o contexto de baile, ou tocar para dançar” exigia certas qualidades rítmicas de música para dançar. da música do pianeiro: “um ritmo invejável”, além de resistência física para conduzir um baile “até de manhã”. José Ramos Tinhorão nos relata um exemplo da atuação Aurélio Cavalcante e Ernesto Nazareth (1863-1934) são dos pianeiros no ambiente de baile, através de uma citação citados como pianeiros que tinham tais habilidades em da pesquisadora Marisa Lira: “A animação dos bailecos [...] alto grau2. dependia da música. Se havia [...] dinheiro contratava-se um choro e, se o dono da casa estava [...] sem dinheiro, Segundo Cacá Machado, “Nazareth escrevia sob o signo um pianeiro de ouvido” (Marisa Lira, citado por TINHORÃO dos gêneros sincopados, o que satisfazia o gosto popular 2005, p.198). Contratar um pianeiro era uma alternativa dos dançarinos de sua época” (MACHADO, 2007, p.61). financeira em relação ao grupo instrumental de choro Sendo uma música que se presta à dança, considera-se (geralmente violão, flauta e cavaquinho). o aspecto rítmico um elemento de central importância.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 18/02/2012 - Aprovado em: 04/01/2013 145 GOMES, R. T.; BARROS, G. A. S. de. Cristal: aspectos do tratamento pianístico no samba... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.145-161.

Ao consultar um conjunto de polcas e tangos de Ernesto do grupo chorão, podendo realizar – à sua maneira – a Nazareth, a ênfase no ritmo é facilmente percebida pela melodiosidade da flauta, as harmonias, os baixos dos ocorrência de padrões rítmicos no acompanhamento violões e a rítmica do cavaquinho” (ALMEIDA, 1999, p.105) relativamente constantes, mantidos do início ao final das e também por Rafael dos Santos: “a parte de piano solo peças. A polca-maxixe Atrevidinha do mesmo compositor, de um choro funciona como uma redução orquestral, do ano de 1889, é um exemplo típico (Ex.1): apresentando vários desafios para o compositor que deseja preservar tais elementos, resultando em obras de O padrão rítmico da “síncope característica”, termo dificuldade técnica considerável [...]” (SANTOS, 2002, cunhado por Mário de Andrade (SANDRONI, 2001, p.29), p.6). Para o pianista Leandro Braga, “nenhum ritmo, seja é mantido de maneira estável ao longo peça3 e pode ser qual for, nasceu do piano. Estamos sempre imitando os observado na figuração rítmica da mão esquerda (Ex.1). instrumentos de percussão, tomando emprestado seus Trata-se de um padrão típico do “paradigma do tresillo” toques para criarmos os nossos” (BRAGA, 2003, p.8). (SANDRONI, 2001, p.28), que corresponde a uma série de variações rítmicas predominantes no estilo antigo do Como será visto em Cristal, este procedimento de redução, samba (maxixe, polca, tango brasileiro e outros). síntese ou estilização dos instrumentos característicos dos grupos populares ao piano, bem como a manutenção Como observa José Ramos Tinhorão, Ernesto Nazareth de padrões rítmicos característicos do samba ao longo “estilizou o ritmo do maxixe, sintetizado pelos conjuntos do discurso musical são fatores em comum entre a de choro a partir da polca e do lundu [...], [transportando] música dos chamados pianeiros e o tratamento pianístico para o piano o novo estilo de interpretação que os praticado por Cesar Camargo Mariano. chorões populares lhe entregavam pronto” (TINHORÃO, 1974, p.65). Nesta perspectiva de redução ou estilização 2 - Cesar Camargo Mariano pianística da formação instrumental popular, a linha Nascido no dia 19 de setembro de 1943, Cesar Camargo melódica de Atrevidinha (Ex.1) pode ser considerada Mariano teve em sua infância um intenso contexto análoga à linha melódica realizada pela flauta, e as musical familiar promovido por seus pais. Como relata estruturas realizadas na mão esquerda são análogas o próprio artista em seu livro de memórias (MARIANO, ao acompanhamento rítmico-harmônico realizado 2011), Wlademiro Camargo, o pai, tinha formação pelo violão ou cavaquinho. Cacá Machado reforça este pianística tradicional e costumava ouvir a música de argumento: Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga (1847-1935). A solução formal que Nazareth encontrou para Sua mãe, Maria Elisabeth de Camargo Rangel, costumava a estilização desses instrumentos tornou-se um escutar emissoras de rádio locais e tinha preferência pela paradigma para a escrita pianística, porque traz a música norte-americana como, por exemplo, os cantores sonoridade dos instrumentos estilizados (tanto na Tony Bennett, Bing Crosby e Frank Sinatra. montagem dos acordes como em sua função rítmica e intenção fraseológica) sem perder a especificidade Wlademiro e Maria Elizabeth foram responsáveis por da sonoridade do piano (MACHADO, 2007L, p.162). transformar sua casa num ambiente propício para o encontro de músicos que vinham se apresentar na cidade A redução orquestral do grupo instrumental popular pelo de São Paulo a partir do início de 1950. A postura Cesar piano também foi notada por Almeida: “como instrumento Camargo Mariano, como espectador atento desses intérprete de choros4, o piano atuou como uma redução encontros, foi de central importância para sua formação

Ex.1 – Atrevidinha, Ernesto Nazareth

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musical ainda quando criança: Neste período Cesar Camargo Mariano estava com aproximadamente dezessete ou dezoito anos de idade, [...] eu, com seis anos na época, comecei assim a ser iniciado na em plena fase de “jazzista radical”, e gostava de tocar melhor tradição da música brasileira. Cada dia, o regional [do músico Maurício Moura] aparecia com algum artista que estava “imitando” o pianista norte americano Erroll Garner se apresentando na cidade: num dia, foi a Inezita Baroso [n.1925]; (1923-1977). Em relação a este pianista, Mark C. GRIDLEY no outro, Jacob do Bandolim [1918-1969], aquela enciclopédia da (2005, p.112) e pianista Dick Hyman6, descrevem aspectos música popular brasileira que retornaria sempre a nossa casa, toda gerais de seu estilo pianístico. O exemplo abaixo traz um vez que vinha a São Paulo fazer shows. Como os demais, vinha sem avisar. A casa do careca estava 24 horas aberta para a música trecho de Teach me tonight, interpretada por Erroll Garner (MARIANO, 2011, p.39). na formação de trio, no ano de 1954, representativo do estilo que influenciou Cesar Camargo Mariano: No dia 19 de setembro de 1956, Cesar Camargo Mariano ganhou um piano de seus pais como presente pelo seu O tratamento melódico ocorre através de blocos de acordes, aniversário de 13 anos de idade. A partir de então, em seu onde as notas da linha melódica são dobradas pelo intervalo contato diário com o instrumento, seguiu seus estudos como de oitava e “preenchidas” por outras notas, comparadas autodidata, compondo, criando exercícios para desenvolver por Dick Hyman ao naipe de metais da formação de big o dedilhado, interpretando o repertório jazzístico e tendo band; e a mão esquerda, associada ao acompanhamento a audição de discos como principal referência. Segundo guitarrístico, é caracterizada por acordes em semínimas o próprio pianista, “[uma das referências musicais eram na região médio grave, e correspondem às acentuações os] trios na época do Oscar Peterson, Bill Evans, George jazzísticas no compasso quaternário, ao qual se refere Shearing, os trios todos, desde moleque que eu ouço. Então Cesar Camargo Mariano na citação anterior. isso era a base [referência], e é até hoje [...]”5. Ao ser intimado a tocar um “sambinha”, Cesar Camargo O início da vida profissional foi como pianista de jazz na Mariano lançou mão do que lhe era familiar, o estilo noite paulistana, atuando principalmente na formação Erroll Garner, um procedimento que fazia parte do seu em trio de piano, baixo e bateria, em estabelecimentos cotidiano de músico jazzista. Portanto, o resultado foi um como as boates Lancaster, Baiúca e Juão Sebastião Bar. “sambinha” ao estilo Erroll Garner:

Ficou jazz demais. Eu não estava gostando, ninguém estava 2.1 - Do jazz ao samba gostando – para eles, aquilo não era samba, nem bossa nova, nem Cesar Camargo Mariano relata um episódio ocorrido na jazz. Sabá [contrabaixista] olhava torto pra mim. Resolvi então boate Baiúca, um momento representativo do processo mudar a acentuação da mão esquerda, passando a acentuar de inclusão do samba no seu repertório, até então o tempo fraco – 1-pam, 2-pam, 3-pam, 4-pam, e saiu um jeito meio up-beat que me agradou. Sabá piscou para mim, sorrindo; estritamente jazzístico: Heraldo, encostado no bar, fez um sinal de positivo com o polegar; e o moço que pediu ‘um sambinha’, lá da mesa, discretamente De uma das mesas, me pediram que tocasse um ‘sambinha’. Eu me agradeceu. Passei a tocar samba assim (MARIANO, 2011, p.97). nunca havia tocado samba como os que tocavam nas rádios. Tocava choros e chorinhos, mas não era isso que aquela pessoa A solução encontrada pelo pianista, no “calor do estava querendo ouvir. Alguns dos poucos temas brasileiros que eu tocava tinham acentuações em 4x4, quer dizer, uma ‘pronúncia’ momento”, foi passar as semínimas da mão esquerda jazzística. Na quarta vez que me pediram a mesma coisa, já com para o contratempo, o que corresponde à segunda e a o Heraldo [proprietário da Baiúca] me olhando feio, começamos a quarta semicolcheias de cada tempo, uma técnica que tocar o tal do samba, que não lembro qual era, comigo marcando se tornou recorrente na obra de Cesar Camargo Mariano, o ritmo, com a mão esquerda, no tempo forte – pam, pam, pam, pam - como fazia Errol Garner (sic), um dos meus grandes ídolos principalmente na década de 1960 com os trios. Um do jazz” (MARIANO, 2001, p.97). exemplo desta aplicação (Ex.3) é a faixa Berimbau

Ex.2 - Teach me Tonight, de Erroll Garner, cujo estilo influenciou Cesar Camargo Mariano7.

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Ex.3 - Berimbau – acompanhamento na mão esquerda que valoriza a segunda e a quarta semicolcheia de cada tempo.

(Baden Powel & Vinícius de Moraes) gravada em 1964 no Trio, enfatiza o gênero samba influenciado por sua disco Sambalanço Trio Vol I, cujo grupo era formado pelo formação jazzística. O episódio vivido na Baiúca pianista Cesar Camargo Mariano, pelo contrabaixista marca o início do desenvolvimento do estilo pianístico Humberto Clayber e pelo baterista Airto Moreira. do músico nesta nova forma de apresentação do samba, também referida como “bossa-nova tocada Como pode ser observado no Ex.3, o padrão rítmico como instrumental” (FAOUR, 2006) ou “Samba-Jazz” adotado pelo acompanhamento na mão esquerda - (GOMES, 2010; SARAIVA, 2007). diferentemente do exemplo de Erroll Garner (Ex.2) - é totalmente contramétrico, pois os acordes são localizados Marcelo Silva Gomes sintetiza algumas características no contratempo, “um jeito meio up-beat”, como Mariano deste estilo de samba: se refere na citação anterior. Tal padrão relaciona-se de forma complementar com as semínimas no baixo, que [...] a utilização de acordes acrescidos de tensões, substituições harmônicas, uso e sistematização da improvisação, instrumentação, marcam o primeiro e segundo tempo. Somando-se esses técnicas de performance, manutenção de um dado ciclo harmônico dois padrões, tem-se a figuração semicolcheia - colcheia e métrico (chorus) como sustentáculo à realização de frases - semicolcheia, presente na música de Ernesto Nazareth, melódicas e ainda [...] a possibilidade de rompimento com padrões representante do estilo do samba antigo. celulares constantes (GOMES, 2010, p.45). A partir de uma audição atenta dos discos gravados No exemplo Berimbau pelo Sambalanço Trio (Ex.3), o acompanhamento realizado por Cesar Camargo Mariano por Cesar Camargo Mariano junto ao Sambalanço Trio, na mão esquerda segue um padrão rítmico relativamente podemos verificar a ocorrência dos aspectos listados por estável, mantido ao longo desta seção formal da peça. Marcelo Silva Gomes, com exceção do último aspecto, A repetição de um determinado padrão rítmico no pois o pianista realiza padrões rítmicos constantes no acompanhamento é um fator em comum entre Cesar acompanhamento da mão esquerda. Podemos atribuir Camargo Mariano e Erroll Garner. A estabilidade do tal traço estilístico (além da influência de Erroll Garner) padrão rítmico, repetido ao longo de frases ou seções à sua formação musical no contexto familiar, junto estruturais de uma determinada peça, é fator que aos músicos de choro e ao contato com a música dos identificamos anteriormente como característica da pianeiros. Segundo Cesar Camargo Mariano, música dos chamados pianeiros, associada neste estudo à [...] por minha própria formação básica, desenvolvida entre dança, mais especificamente ao contexto de baile. Como chorões, até hoje sou alucinado pelo gênero. Sabá, Toninho e será visto em Cristal, esse também é um traço estilístico eu, em todos os ensaios, quando tinha uma brecha, tocávamos do tratamento pianístico praticado por Cesar Camargo choros, chorinhos, antigos ou novos, e eu brincava de modificar Mariano em seu repertório de sambas para piano solo. as harmonias originais, os andamentos... Vivia pesquisando e tocando choros de Ernesto Nazareth, (que minha mãe adorava!), ouvindo direto Chiquinha Gonzaga (predileta do meu A produção artística de Cesar Camargo Mariano na pai), de quem recebi grande influência como pianista, tocando década de 1960, principalmente com o Sambalanço samba (MARIANO, 2011, p.191).

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2.2 - Música popular instrumental brasileira ponto, “o Brasil está muito mais perto da África do que Parte da produção artística de Cesar Camargo Mariano da Europa” (SANDRONI, 2001, p.25). publicada a partir da segunda metade da década de 1960, incluindo o disco Solo Brasileiro, também pode ser Um exemplo desta aproximação é a pesquisa de Kazadi- 9 entendida como uma manifestação do gênero “música wa Mukuna sobre elementos bantu na música popular popular instrumental brasileira” (MPIB), termo adotado brasileira, onde o autor identifica no samba padrões por PIEDADE (2005) e corroborado por CIRINO (2009). rítmicos encontrados na música de algumas regiões do Dentre as características da prática da MPIB descritas por Zaire. Ao constatar no campo da musicologia africana esses autores, o presente estudo destaca a manipulação uma série de aspectos musicais em comum com o samba, de uma variedade de gêneros, ritmos ou estilos, que são Carlos Sandroni conclui que “parece pois legítimo dispostos lado a lado no discurso musical. supor que elas fazem parte de uma herança musical trazida do Continente Negro, mesmo se o contexto e o A partir do final da década de 1960, a música de sentido de tal herança se transfiguraram enormemente” Cesar Camargo Mariano assume uma pluralidade de (SANDRONI, 2001, p.25). tendências e gêneros musicais, que atravessam a década Considerando o ambiente de formação musical e de 1970 (quando atuou basicamente como arranjador atuação profissional de Cesar Camargo Mariano, é e pianista da cantora ), e que na década de evidente que o sentido e o contexto de tal herança 1980 manifesta-se através de uma produção expressiva são outros. Porém, sendo o samba considerado uma de MPIB. Intensificada pela pesquisa com teclados manifestação musical afro-brasileira, podemos nos eletrônicos, esta produção foi registrada em álbuns valer de alguns conceitos desenvolvidos por autores como Samambaia (1981), Todas as Teclas (Ariola, 1984), cujos trabalhos remetem à rítmica da música africana. Prisma (Pointer, 1985), Mitos (Sony, 1988), Ponte das O etnomusicólogo Tiago de Oliveira Pinto, em seu artigo estrelas (1988), Cesar Camargo Mariano (Chorus-Som “As cores do som: estruturas sonoras e concepção Livre, 1989) e outros. estética na música afro-brasileira”, propõe uma sistematização de estruturas musicais afro-brasileiras As músicas reunidas no disco Solo Brasileiro (Polygram, com base em estudos feitos no campo da musicologia 1994), que contém a faixa Cristal, foram compostas africana e brasileira (OLIVERIA PINTO, 2001). por Cesar Camargo Mariano em um período posterior à sua produção de MPIB citada e também podem ser Procurando entender a música como configuração sonora caracterizadas como tal. Seu samba para piano solo no tempo (aspecto rítmico), Oliveira Pinto desprende- apresenta uma variedade de linhas, musicalidades e se do pensamento ocidental que prevê a organização gêneros que emergem no seu discurso musical, e dialogam rítmica pela lógica da métrica do compasso, com seus com o samba. Tal aspecto será observado mais adiante no tempos fortes e fracos (OLIVEIRA PINTO, 2001). Segundo presente estudo na seção de introdução de Cristal. Carlos Sandroni, essa perspectiva de ruptura também é adotada por outros estudiosos da música africana, 3 - Ritmo e Textura como Simha Arom e Gehrard Kubik, que aboliram a A noção de síncope é considerada um elemento palavra síncope de seu vocabulário, pois consideram rítmico “emblemático” da música brasileira. Carlos o conceito de síncope uma abstração decorrente da Sandroni chama atenção para o “caráter culturalmente escrita musical ocidental (SANDRONI, 2001, p.27). A condicionado do conceito de síncope” (SANDRONI, 2001, noção de síncope seria, portanto, estranha ao fazer p.21), tido pela musicologia tradicional como um desvio musical afro-brasileiro. No sistema de notação rítmica em relação à métrica “padrão”. Tal ruptura em relação à adotado por Oliveira Pinto, uma vez abolida a métrica regularidade da acentuação ocorre pela valorização dos e as barras de compasso, os conceitos de contratempo, contratempos (ALMEIDA, 1999), o que no samba é uma contrametricidade e síncope são desconsiderados. característica de central importância. Apresentaremos a seguir alguns conceitos introduzidos Como observa o autor, muitos pesquisadores atribuem por OLIVEIRA PINTO (2001), elaborados pelo autor a a origem da síncope ao continente africano, fato partir dos instrumentos de percussão utilizados pelas observado por Mário de Andrade como um “lugar- escolas de samba, bem como considerações sobre a comum que não se funda sobre evidência documental adaptação destes conceitos ao tratamento pianístico. sólida” (SANDRONI, 2001, p.23). Independentemente de sua origem (músicas primitivas de portugueses, 3.1 - Pulsação elementar espanhóis, africanos ou ameríndios, como observa Mário Segundo Oliveira Pinto, a pulsação elementar de Andrade8), a ocorrência da síncope – que sob a ótica corresponde à menor unidade de tempo que preenche da música de tradição escrita ocidental caracteriza a a sequência musical (OLIVEIRA PINTO, 2001, p.92). De contrametricidade – possibilita o estabelecimento de acordo com o autor, 16 pulsos elementares apoiam a paralelos entre formas rítmicas do samba e da música linha rítmica do samba, cujas articulações sonoras caem africana, o que leva Sandroni a constatar que, neste necessariamente sobre esses pulsos (Ex.4).

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3.2 - Marcação que geralmente a linha-guia é sonorizada com tom alto Outro elemento musical trazido à tona por Oliveira ou agudo e penetrante, de modo que seja ouvida pelo Pinto é a marcação, a “batida fundamental e regular, grupo como uma espécie de metrônomo, uma orientação que caracteriza o sobe e desce rítmico do samba” sonora que possibilita a coordenação geral em meio a (OLIVEIRA PINTO, 2001, p.93). Com função de referência uma variedade de eventos rítmicos concorrentes. Na para o tempo, é executada por dois surdos de tamanhos escola de samba, é sobretudo o tamborim o instrumento diferentes, o surdo (surdo 1) e o contra-surdo (surdo de percussão responsável por realizar esta fórmula. O 2), sendo que o segundo tem sonoridade mais grave. exemplo seguinte traz o padrão do tamborim, também Em relação à pulsação elementar, o autor representa a apresentado por Oliveira Pinto, e pode ser observado marcação da seguinte forma (Ex.4): numa combinação de ambos sistemas de escrita (Ex.7):

Ex.4 - Pulsação elementar e marcação de Ex.7 - Padrão do tamborim em ambos sistemas de dois surdos no samba. escrita rítmica.

Uma característica importante na marcação do ritmo do Trata-se de uma fórmula cujas articulações sonoras samba realizada pelo surdo é o apoio no segundo tempo (x) e complementares (.) são organizadas de forma e uma nota com curta duração no primeiro tempo que, assimétrica, uma vez que as 16 pulsações organizam-se numa combinação da escrita rítmica convencional com em 7 + 9 (como indicam os colchetes no Ex.7) e ainda a notação rítmica utilizada pelos africanistas, pode ser podem ser subdividas em [2+2+ (1+2)] + [2+2+2+(1+2)]. representado da seguinte maneira (Ex.5): Simha Arom chama esse fenômeno de “imparidade rítmica” (citado por SANDRONI, ibid. p.25), pois as 16 pulsações elementares não são organizadas em pares de 8+8, ou 4+4+4+4 (equivalente às semínimas do compasso binário). Sob a lógica das divisões pares da escrita ocidental (semibreves em mínimas, mínimas em semínimas e assim por diante), a imparidade rítmica caracteriza uma escrita contramétrica. Variações rítmicas Ex.5 - Marcação básica do surdo. nesses moldes são denominadas “paradigma do Estácio” (SANDRONI, 2001, p.32), e são característicos do estilo novo do samba, posteriores à década de 1920. De acordo com BOLÃO (2003, p.28), nos bailes de carnaval é comum a utilização de dois surdos por um 3.4 - Relação de complementaridade ou único músico percussionista, sendo que o mais agudo interlocking marca o primeiro tempo e o mais grave o segundo tempo. A relação de complementaridade ou interlocking sonoro O autor apresenta diversos exemplos de variações de (Kubik, citado por OLIVEIRA PINTO, 2001, p.101) é outro frases rítmicas realizadas por esses instrumentos, sendo aspecto do fazer musical das escolas de samba descrito que dois exemplos são expostos abaixo (Ex.6): por Oliveira Pinto. Segundo o autor,

[...] quando dois ou três músicos intercalam os pulsos de seus padrões rítmicos de forma regular, levando assim a uma complementaridade das diferentes partes tocadas. Este intercalar dos impulsos é aspecto tão constitutivo da música africana e afro- brasileira, que acontece inclusive na forma como a mão direita e a esquerda se complementam ao percutirem um tambor, ao tocarem uma marimba (OLIVEIRA PINTO, 2001, p.101).

O exemplo da forma como mão direita e mão esquerda Ex.6 - Variações de frases rítmicas realizadas por dois surdos. se complementam ao percutirem um tambor, é ilustrativo da relação de complementaridade entre as mãos do 3.3 - Linha rítmica ou linha-guia (time-line) pianista, aspecto notado por Cacá Machado em relação Introduzido por Joseph K. Nketia em 1970, o termo time- a uma determinada passagem musical da obra de line refere-se a padrões rítmicos que servem como “linha Ernesto Nazareth, onde o autor afirma que o “suingue do guia” (SANDRONI, 2001, p.25). Oliveira Pinto observa maxixe realiza-se nessa complementaridade das mãos”

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Ex.8 - Diferentes padrões de interlocking sonoro.

(MACHADO, 2007, p.126). Nestes casos, os impactos resultante rítmica é dado a partir da representação de uma linha sonora se encaixam nos momentos rítmica do c.17 de Cristal (Ex.9): vagos deixados pela outra e vice versa. O Ex.8 é uma representação de Kubik para o interlocking sonoro (citado por OLIVEIRA PINTO, 2001, p.101):

A relação de complementaridade ou interlocking entre as diferentes partes tocadas por dois ou três músicos é análoga à relação entre as diversas camadas texturais na escrita pianística. Tal aspecto será verificado no presente estudo, na seção B de Cristal (Ex.15 e 16).

A descrição do fenômeno musical realizada pelos estudiosos que tratam da música africana e afro-brasileira, cujas referências encontramos nos textos de Carlos Ex.9 - Cristal, resultante rítmica do c.17. SANDRONI (2001) e OLIVEIRA PINTO (2001), oferecem, portanto, um corpo de terminologias e processos musicais O preenchimento das 8 pulsações elementares é relevantes para se pensar o tratamento pianístico no 2 representado no compasso /4 por um continuum de samba, como as noções de pulsação elementar, marcação, semicolcheias cujas acentuações podem ser pensadas imparidade rítmica, linha guia (time-line), e relação de hierarquicamente em três níveis: 1) As notas grafadas complementaridade ou interlocking. com o sinal de acento representam a linha-guia (time-line), no grau mais elevado da hierarquia. 2) A 3.5 - Resultante rítmica primeira nota de cada tempo, grafada em tamanho O padrão rítmico que resulta da soma dos padrões natural sem o sinal de acento, representa a marcação individuais de cada instrumento – no caso do piano, do baixo, análoga ao tambor-surdo. Não raro, a linha- de cada camada textural – será denominado resultante guia ocupa a mesma posição específica da marcação rítmica. Trata-se de um sistema de notação em que (mesma pulsação elementar), como no Ex.9 acima, onde os padrões rítmicos de cada camada textural, que na a segunda marcação do baixo (quinta semicolcheia textura pianística ocorrem em planos diferentes, são do compasso) é localizada na mesma posição de dispostos simultaneamente num único plano horizontal. uma nota da linha-guia. Neste caso, a notação desta Através da resultante rítmica, é realizada a redução de posição corresponde à linha-guia. 3) As notas menores uma determinada trama de eventos rítmicos a uma única correspondem às pulsações complementares, pensadas linha, que tem como objetivo a representação de uma como “notas fantasmas” ou “ghost notes”10 que, síntese rítmica de um determinado trecho musical, a fim apesar de apresentarem o menor grau de relevância de observar um ou mais padrões rítmicos que sustentam nesses níveis hierárquicos, são importantes para o o samba ao longo de uma frase ou seção da composição. preenchimento sonoro das pulsações elementares.

Na resultante rítmica, as acentuações das pulsações A notação da resultante rítmica leva em conta apenas elementares são dispostas em três níveis hierárquicos: o ataque dos sons segundo sua posição nas 8 ou 16 linha-guia, marcação e padrão complementar. Um pulsações elementares, desconsiderando as durações exemplo da caracterização e reconhecimento da das notas, uma vez que o objetivo deste sistema não é

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compreender aspectos da sonoridade pianística de Cesar O critério de escolha da faixa Cristal é a hipótese de Camargo Mariano, como detalhes de sua articulação, mas que nesta obra Cesar Camargo Mariano sintetiza os prover uma representação rítmica da textura pianística. pilares de sua formação musical: o repertório clássico- romântico para piano (influência dos discos ouvidos em Sendo a partitura uma representação limitada do casa por seu pai), a música dos chamados pianeiros, o fenômeno musical, faz-se necessário o suporte do jazz e sua produção de MPIB. exemplo em áudio, trazendo o elemento sonoro como um parâmetro a ser considerado na análise. Sendo assim, Cristal apresenta forma ternária: Introdução; A; B; o reconhecimento das acentuações que caracterizam a introdução; A; B; introdução. Cada seção formal resultante rítmica são fundamentados em dados sensíveis, apresenta características distintas em sua estrutura. oriundos da escuta musical. O texto segue com a análise descritiva da obra, organizada de acordo com as seções formais, tendo 4 - Cristal a partitura transcrita por esta pesquisa como suporte para a análise. Como objetivo principal da análise de Cristal, destaca-se a verificação de como Cesar Camargo Mariano se insere na tradição dos pianeiros através da síntese ou estilização 4.1 - Seção de introdução pianística dos instrumentos característicos de grupos A linha-guia indicada pela resultante rítmica (Ex.10) é populares. Ao mesmo tempo, serão apontados aspectos recorrente ao longo da seção de introdução e reforça de seu tratamento pianístico no samba para piano solo. o apoio na nota Dó 1, formando o padrão do tresillo - O disco Solo Brasileiro (1994) se apresenta como um 3+3+2- (SANDRONI, 2001, p.28), através do ciclo que dos mais representativos desta produção no conjunto de se apresenta deslocado um quarto de tempo em relação sua obra. O álbum, gravado em março de 1993 em Los às barras de compasso, pois as primeiras semicolcheias Angeles, Estados Unidos, traz a seguinte declaração de dos compassos não são preenchidas (representadas por Cesar Camargo Mariano: “Com este projeto, considero pausas na resultante rítmica). No ciclo de 8 pulsações comemorados os meus 35 anos de carreira. Aliás, foi assim elementares, a representação da linha-guia é dada por que tudo começou: - Tocando piano” (MARIANO, 1994). “(8) . x . . x . . x”.

Ex.10 – Seção de introdução e representação da resultante rítmica.

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Apesar da indicação do gênero samba-choro na Esse ambiente de pouca movimentação harmônica, cujas edição publicada por Samambaia Music11, esta linha características rítmicas não remetem diretamente ao de baixo está longe de ser associada à marcação do samba, pode ser associado aqui à musicalidade fusion, ou tambor-surdo característico do samba de acordo com seja, uma fusão ou diálogo com outros gêneros musicais a descrição dos aspectos musicais do samba realizada como o funk e o pop, traço característico da chamada anteriormente. Portanto, percebe-se ainda nos quatro Música Popular Instrumental Brasileira (MPIB), que primeiros compassos que não é a intenção do compositor podemos associar à produção artística de Cesar Camargo restringir-se aos traços considerados mais tradicionais Mariano posterior à década de 1970, marcada pelas do gênero. Essa hipótese é confirmada com a presença experiências com teclados eletrônicos. das tríades na região média a partir do quarto compasso. 4.2 - Seção A Formadas por empréstimo modal, as tríades de Mi bemol, Na passagem para a seção A, ocorre uma ruptura textural Ré menor e Lá bemol são conduzidas em forma de chord acentuada, onde a densidade de eventos é reduzida a loop12 sobre o baixo pedal Dó, resultando em duas camadas uma única linha melódica no c.14, ampliada para três texturais distintas que apresentam relativo grau de camadas texturais a partir do c.15 (Ex.11). No entanto, interdependência, por estarem no contexto da mesma linha- tais mudanças texturais abruptas não interferem na guia, valorizando a última semicolcheia dos compassos. linha-guia, que assume a função de “fio condutor” entre

Ex.11 - Cristal, c.14-17: estabilidade da linha-guia.

Ex.12 - Cristal, c.34-41: semelhança rítmica e textural com o repertório clássico-romântico.

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2 múltiplos tecidos musicais. A linha-guia é, portanto, um /4. Portanto, esta passagem apresenta uma escrita fator de estabilidade rítmica em meio a uma intensa ritmicamente cométrica, onde predomina a acentuação instabilidade textural. Neste ponto, estabelecemos uma dos “tempos fortes” do compasso, elemento que torna o relação entre ritmo e textura. trecho mais “europeu”, do ponto de vista da semelhança com o repertório do classicismo, do romantismo e de toda Em sua interpretação musical, Cesar Camargo Mariano uma tradição anterior da música europeia. imprime a articulação non legato, onde as acentuações rítmicas aplicadas à linha melódica sugerem ou reforçam Tanto o continuum de semicolcheias quanto a relação a própria linha-guia, caracterizando uma abordagem de complementaridade entre as camadas texturais e a “rítmica” à interpretação melódica nesta seção, em marcação do baixo estão presentes aqui, porém em outro oposição à primeira frase da seção B. contexto. Considerando a semelhança rítmica e textural com o repertório clássico-romântico, as semicolcheias da região intermediária podem ser pensadas como um artifício 4.3 - Seção B pianístico para simular o acompanhamento orquestral, A seção B abrange os c.34-58, organizados em três frases onde as vozes são prolongadas ao longo do compasso. Esta de oito compassos, divididas por arpejos que ocorrem nos hipótese é reforçada pela utilização do pedal direito do dois últimos compassos de cada frase. piano, toque legato e pela interpretação cantabile da linha melódica, fatores que encobrem o aspecto percussivo. Primeira frase – c.34-41 Trata-se de uma passagem contrastante na peça como um Outro aspecto contrastante desta passagem é o tratamento todo, onde as características rítmicas associadas à música harmônico, que na primeira frase da seção B inicia um afro-brasileira – como a lógica da imparidade rítmica na processo progressivo de afastamento da tonalidade principal divisão das acentuações das pulsações elementares - são (Dó maior) que, como veremos nas próximas páginas, temporariamente abandonadas. alcança o máximo de afastamento na terceira frase, região de Dó bemol maior. Nos c.34-39 (Ex.12) predomina a região Ao contrário do restante da peça, nestes oito compassos de Sol menor, e a partir do segundo tempo do c.39 com a não é possível verificar o aspecto rítmico característico nota Si natural, é sugerida a mudança para o modo maior, do samba (Ex.12). Na notação da resultante rítmica, que é atingido no c.40-41 com os acordes Bm7 e Em7, observa-se que as notas consideradas de maior grau de respectivamente terceiro e sexto graus da tonalidade de relevância na hierarquia das acentuações são as notas Sol maior, região da dominante. Esta relação intervalar de da melodia, cujo ritmo se encaixa perfeitamente na quarta justa entre as fundamentais dos acordes será mantida lógica da divisão par prevista pelo pensamento da escrita nos compassos seguintes. A transição para a segunda frase ocidental convencional, representada pelo compasso ocorre com arpejos na mão direita, nos c.40-41.

Ex.13 - Cristal, c.42-49 e representação da resultante rítmica.

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Segunda frase – c.42-49 elementares. Sob o ponto de vista da escrita ocidental, A segunda frase da seção B, que abrange os c.42-49, este último é menos contramétrico que o anterior; um marca o retorno dos elementos rítmicos do samba, como exemplo disso é o baixo (as notas mais graves), cujo a linha-guia formada por acentuações das 16 pulsações padrão “(8) x . . . x . . .” equivale a uma escrita totalmente elementares segundo o princípio da imparidade rítmica. 2 cométrica segundo a lógica do compasso /4, como pode A audição do trecho nos revela quatro planos sonoros ser observado do c.42-47 (Ex.13). distintos. Por esta razão, no exemplo abaixo optou-se por uma escrita que destaca a distribuição em quatro camadas A audição do exemplo nos revela que Cesar Camargo texturais, conforme é apresentado a seguir (Ex.13): Mariano imprime diferentes durações às notas do baixo ao longo do trecho. Isso se deve ao fato de que as duas A relação de complementaridade entre as quatro camadas camadas texturais escritas na clave de fá mantêm o texturais, no exemplo acima, ocupa as 16 pulsações padrão intervalar de sétima (c.42), décima primeira e elementares, cujas acentuações formam na linha-guia décima (c.43) a cada ciclo de dois compassos (Ex.13, um padrão rítmico característico do paradigma do 14 e 16). A mão esquerda, por alcançar a abertura de Estácio: “(16) x . x .. x .. x .. x . x .. ”. Este pode sétima com facilidade, permite que a nota do baixo tenha ser pensado como um desenvolvimento da linha-guia maior duração. O mesmo não ocorre com as aberturas anterior “ (8) . x .. x .. x ” (3+3+2), pela adição de dos intervalos de décima ou décima primeira que, para dois grupos ternários e um binário (2+3+3+3+2+3). serem alcançadas pela mão esquerda, exigem que o pianista realize um movimento de “salto”, o que por sua O tratamento pianístico manipula quatro camadas vez impede que a nota do baixo continue pressionada, texturais distintas onde cada uma assume conteúdos resultando na curta duração destas notas. Este é um caso rítmicos e harmônicos específicos. Os baixos (Ex.13), em que a escolha da disposição das notas dos acordes que pontuam a primeira nota de cada tempo com as tem implicações diretas no ritmo, ou seja, a especificidade fundamentais dos acordes, ao se fundirem à voz superior, do conteúdo rítmico está relacionado com o conteúdo formam uma variação do padrão rítmico característico harmônico (montagem dos acordes) e, em torno desta do maxixe, predominante no acompanhamento da relação, estão os limites impostos pela escrita pianística, mão esquerda dos pianeiros das primeiras décadas do isto é, do que é possível realizar pianisticamente. século XX, como Ernesto Nazareth. Almeida se refere a essas estruturas como “baixo condutor harmônico”, Ainda em relação ao conteúdo rítmico das camadas que acumulam em si a realização da linha do baixo, da texturais, é importante pensarmos em sua organização harmonia e do ritmo (ALMEIDA, 1999, p.115). ao longo das 16 pulsações elementares. A noção de interlocking ou relação de complementaridade, é Sendo assim, podemos verificar a sobreposição dos pertinente para tal avaliação. Considerando que na dois estilos de samba. Na mão direita, o samba novo é segunda frase da seção B ocorre uma repetição de um observado nas acentuações ímpares das 16 pulsações ciclo de dois compassos através de uma “transposição”, a elementares que caracterizam o paradigma do Estácio ou abordagem de um dos ciclos é suficiente. Tomemos como ciclo do tamborim que, sob o ponto de vista da escrita exemplo os c.42-43 (ex.14). ocidental, resulta em algum grau de contrametricidade. Na mão esquerda observa-se a manifestação do samba Na notação da resultante rítmica observa-se o nível de antigo através de estruturas características do maxixe, hierarquia das acentuações nas 16 pulsações elementares, cujas variações rítmicas remetem ao paradigma do tresillo, cujas notas são indicadas pela linha pontilhada no Ex.14. que prevê acentuações ímpares no ciclo de 8 pulsações Esta linha percorre o “caminho” das pulsações elementares

Ex.14 - Cristal, relação de complementaridade nos c.42-43.

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Ex.15 - Cristal, representação de interlocking na segunda frase da seção B.

Ex.16 - Cristal, redução harmônica do c.42-49.

através da mão direita (clave de sol) e esquerda (clave de e engrenagens obedecem aos princípios e limitações fá) do pianista; como são quatro planos sonoros, cada impostos pela condução de vozes, ritmo do samba e mão realiza duas camadas texturais. escrita pianística.

Como mostra o Ex.14, as camadas texturais “cruzam” seus Nestes oito compassos da segunda frase da seção B, ritmos, e intercalam seus pulsos elementares, fenômeno observa-se o aumento da densidade harmônica através este citado anteriormente por Oliveira Pinto, que se referia à um trecho modulante típico de uma harmonia de “ponte”, “forma como a mão direita e a esquerda se complementam onde a relação cromática entre os acordes afasta o ao percutirem um tambor”, onde os impactos de uma linha vínculo com a tonalidade principal de Dó maior e segue sonora se encaixam nos momentos vagos deixados pela em direção a uma nova região. Como pode ser observado outra. Fazendo uma apropriação do modelo gráfico proposto no Ex.16, a relação cromática ocorre a cada ciclo de dois por Kubik para visualizar o interlocking ou relação de compassos, através de progressões [Sub IIm7–Sub V7]13 complementaridade entre diversos músicos, representados que alcançam o primeiro grau (mesmo que na forma de na escrita pianística por quatro camadas texturais, dominante) no acorde C7 no c.48. poderíamos representar o trecho da seguinte forma (Ex.15): A segunda frase da seção B é, portanto, caracterizada Diferentemente do exemplo de Kubik (Ex.8), a pelo aumento da densidade harmônica e textural, organização interna desse interlocking apresenta relativa acompanhados de uma variedade de padrões rítmicos que irregularidade. Contudo, as três repetições deste ciclo manipulam na mesma textura, de forma complementar durante a segunda frase da seção B caracterizam uma os paradigmas rítmicos do tresillo e do Estácio. regularidade de ocorrência deste padrão. Terceira frase - seção rítmica, c.50-57 Os arpejos dos c.48-49 (Ex.13) são uma manifestação do O arpejo ascendente dos c.48-49 (Ex.13) marca a “motivo contramétrico”, cujas notas são agrupadas por passagem para terceira frase da seção, que envolve os repetição, como mostram as ligaduras pontilhadas no c.50-57 (Ex.17). Nesta frase, a organização textural é Ex.14. Ao longo de toda a peça, Cesar Camargo Mariano semelhante à verificada na seção de introdução, com utiliza arpejos para demarcar as seções. tríades na região média, baixo pedal na região super- grave que enfatiza a nota Dó bemol e “ataques” de tríades Portanto, cada camada textural apresenta configurações na região aguda. Porém, diferentemente da seção de rítmicas e harmônicas que, atuando em conjunto, introdução, temos aqui a afirmação do ritmo do samba podem ser comparadas a um mecanismo cujas peças através do tratamento pianístico que enfatiza o aspecto

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Ex.17 - Cristal, c.50-57, seção rítmica.

percussivo, cuja sonoridade (organização textural e toque rítmico, onde o que está em jogo é o aspecto “corporal” da stacatto) é análoga à sobreposição do tamborim na mão “batucada”, dada pelo tamborim e pelo tambor-surdo, em direita e ao tambor surdo na mão esquerda (Ex.17): detrimento do aspecto “racional” da construção melódica e da condução de vozes através das progressões harmônicas. Assim como a segunda frase da seção B, a terceira frase é constituída por três repetições do ciclo do tamborim O segundo aspecto diz respeito à região tonal onde ocorre a seguido de arpejos nos dois últimos compassos que seção: Dó bemol. Enquanto a mão direita se alterna entre as preparam a chegada da nova seção. As acentuações das tríades de Ré bemol maior e Dó bemol, os baixos realizam a 16 pulsações elementares formam a linha-guia “(16) . x . . fundamental e a quinta do acorde, numa relação intervalar x . x . x . . x . x . x” (3+2+2+3+2+2+2), que é sobreposta à de quarta justa que enfatiza o acorde de Dó bemol. O Ex.18 marcação do tambor-surdo, cujo padrão rítmico é “(16) . . abaixo representa a redução harmônica da passagem: . . x . x . x . . . x . x x” (5+2+2+4+2+1). O ciclo do tambor- surdo, que nos exemplos anteriores apresentava divisões A coleção de notas reunidas pelas tríades da mão direita pares, nesta passagem apresenta o princípio da imparidade sugerem o modo de Dó bemol lídio, - Dób, Réb, Mib, Fá, rítmica, representada pela última semicolcheia do ciclo Solb, Láb - que caracteriza-se pela presença da quarta de dois compassos (Ex.17). Sendo assim, a marcação aumentada - nota fá natural (c.50-56, Ex.18). Portanto, “antecipa” a articulação sonora do primeiro tempo para a esse trecho “essencialmente rítmico” ocorre em uma região semicolcheia anterior à barra de compasso. harmônica muito específica, se comparado às outras seções.

A frase termina com arpejos que culminam em acordes Como vimos anteriormente, na seção de introdução é nos c.56-57 (Ex.17). A linha-guia “(8) . x . . x . . x” surge explorado o modo de Dó menor; a seção A é apresentada das acentuações que consideram a repetição das notas em Dó maior (tonalidade principal); na seção B, é alcançada e a ênfase dada aos arpejos, como mostram as linhas a região de Sol maior (dominante), onde inicia-se uma pontilhadas no Ex.18. Sendo o mesmo padrão rítmico progressão cromática que, passando pelo acorde de Dó que predomina na seção de introdução e na seção A, esta com sétima – entendido como um substituto da dominante linha-guia já sugere o retorno a estas seções. do sétimo grau (SubV/VII,) –, realiza seu último passo cromático em direção ao modo de Dó bemol lídio (Ex.18). Nesta seção é possível estabelecer relações que abrangem os níveis textural, harmônico e rítmico. Dentre os aspectos Esta “seção rítmica” é apresentada, portanto, meio tom em que a dimensão harmônica relaciona-se com a dimensão abaixo da tonalidade principal, região mediante da dominante rítmica, destacam-se dois. Primeiro, devido à ausência de (terceiro grau a partir da dominante Sol maior), num âmbito uma linha melódica e por apresentar baixa movimentação tonal de seis bemóis (considerando a nota si bemol como harmônica, o aspecto rítmico sobressai em relação a implícita), apresentando uma distância considerável em esses parâmetros. Trata-se de um trecho essencialmente relação à tonalidade principal Dó maior, o que afasta o trecho

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das relações harmônicas mais próximas de Dó maior. Este representados pelas diversas regiões tonais. Saindo isolamento numa região tonal distinta, somado à condição da escrita “europeia” em Sol maior, percorre o trecho estática da harmonia modal – contrastante com as seções “tortuoso” da segunda frase, um caminho harmônico A e B – , são aspectos harmônicos que ajudam a enfatizar acidentado e irregular, onde atenuam-se as referências de o aspecto essencialmente rítmico do trecho, colocando a tonalidade, até chegar à terceira frase e fixar-se em um “pura batucada” num lugar de destaque na forma musical. novo e inesperado local: o modo lídio de Dó bemol. Neste ponto, interrompe-se a movimentação das progressões Os arpejos dos c.56-57 (Ex.18) marcam o final da seção B harmônicas para se contemplar uma redução da bateria e a repetição da seção de introdução, através do acorde de escola de samba durante oito compassos. de Ré bemol com sétima no baixo (Sub V), que apresenta notas em comum com o acorde anterior, Dó bemol 4.4 - Variação da seção A lídio, cujo intervalo de trítono que caracteriza o acorde Nesta reexposição da seção A, ocorre uma variação que dominante está presente nas notas Dó bemol e Fá. No consiste na substituição da linha melódica principal por c.57 temos o arpejo do acorde dominante da tonalidade uma levada característica dos gêneros precursores do principal, Sol com sétima, que se encontra incompleto samba como polca-lundu, maxixe, tango brasileiro e (apenas com a fundamental, terça e décima terceira outros, característicos do estilo antigo do samba. bemol) e prepara a volta para o modo de Dó menor. Sendo Ernesto Nazareth uma influência declarada de Em suma, e metaforicamente, a seção B pode ser pensada Cesar Camargo Mariano, procurou-se em uma série de como uma movimentação que parte de contexto musical peças do músico carioca um trecho cuja escrita pianística clássico-romântico da primeira frase (c.34-42, Ex.12), em apresentasse a mesma construção rítmica e textural direção ao contexto musical atribuído à escola de samba verificada em Cristal (Ex.20). Foram encontrados diversos através da “pura batucada” produzida pela sobreposição exemplos, dentre os quais foi selecionado o trecho que do tamborim ao tambor-surdo (c.50-57, Ex.17). A segunda abrange os c.68-72 do Tango Nenê (1895). Nos exemplos frase representa a transição, o caminho a ser percorrido, abaixo, pode-se observar o material referido: onde já se pode ouvir o padrão do tamborim na mão direita, enquanto a mão esquerda trabalha com elementos A mão esquerda do c.68-72 de Nenê (Ex.19) e c.73- próximos do maxixe, portanto ainda não realiza a marcação 74 de Cristal (Ex.20), apresentam um padrão rítmico explícita do tambor-surdo (c.42-49, Ex.13). (8) x . . x x . x .” (com pequena variação no c.72),semelhante à síncope característica que predomina na escrita para piano As progressões harmônicas são fatores de movimentação, dos maxixes: “(8) x x . x x . x .”. Este padrão é complementar que conduzem a narrativa por diferentes “caminhos”, à linha-guia observada na mão direita: “(8) . x . x . x . x”,

Ex.18 - Cristal, redução harmônica dos c.47-58.

Ex.19 - Nenê, Ernesto Nazareth, c.68-71.

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Ex.20 - Cristal, c.71-74.

2 padrão binário, que na escrita do compasso /4 representa a música de Ernesto Nazareth e o convívio como um alto grau de contrametricidade. As figurações rítmicas espectador atento nas rodas de choro, influências que nos trechos abordados apresentam ciclos de 8 pulsações podem ser observadas na seção A. Sua fase de “jazzista elementares e são variações do paradigma do tresillo. radical”, que segundo o próprio artista, foi influenciada pelos trios de pianistas de jazz, verificada no tratamento Em relação ao aspecto harmônico, podemos verificar harmônico, que avança sobre regiões tonais distantes da diferenças tanto na montagem dos acordes quanto no tonalidade principal e enfatiza as tensões dos acordes. tratamento das tensões harmônicas. Como pode ser Influência da música erudita, que pode ser observada observado no Ex.16, Cesar Camargo Mariano distribui na primeira frase da seção B, com a escrita “clássico- as notas dos acordes de forma complementar entre as romântica”. Seu contato com o samba, na terceira frase camadas texturais, de modo que para obter o acorde da seção B e, por último, a influência da música pop, funk completo (tétrade básica mais tensões), é necessário ou fusion em sua “fase eletrônica” dos sintetizadores, na considerar todas as camadas verticalmente, pois os seção de introdução. conteúdos harmônicos não são sobrepostos através de dobramentos14. Já na escrita de Ernesto Nazareth (Ex.19) o Considerando a alta ocorrência de progressões de mesmo procedimento não é observado. Tendo o c.68 como substitutos da dominante verificados no Ex.17, pode- exemplo, o baixo realiza a fundamental, terça e sétima do se considerar a “linguagem harmônica” ou “contexto acorde D7 (respectivamente Ré, Fá# e Dó). harmônico” praticado por Cesar Camargo Mariano como, segundo Sérgio Freitas, pertencente aos Sendo assim, numa relação de complementaridade, sobrariam para as outras camadas texturais a quinta [...] setores da música popular que, ora mais, ora menos, são (nota lá) e as possíveis tensões do acorde. No entanto, reconhecidos como ´modernos` e ´dissonantes` (ou seja, setores do fundamental e terça (notas Ré e Fá#) são dobradas ou jazz, da bossa nova, da MPB, do samba‐jazz, etc.) que, abraçando sonoridades mais tortuosas, elegeram o “SubV7” como uma sobrepostas nos blocos de acordes da mão direita. constante estilística favorita” (FREITAS, 2010, p.196).

Outro aspecto relevante são as diferenças no tratamento Pode-se incluir nesse contexto a chamada Música das tensões. Em Ernesto Nazareth, as apojaturas produzem Popular Brasileira Instrumental (MPBI) que dialoga tensões nos acordes e são imediatamente resolvidas. A com uma série de influências e musicalidades através duração dessas tensões equivale a duas semicolcheias (como da manipulação de uma variedade de gêneros, ritmos indicam os círculos no Ex.19). Cesar Camargo Mariano, por e estilos que são dispostos lado a lado ou mesmo sua vez, conduz os acordes de modo a valorizar as tensões, sobrepostos no discurso musical. Tal fenômeno se que como indicam os círculos no Ex.20, tem duração de verifica em Cristal. até um compasso. Esta valorização das tensões também está relacionada com a montagem dos acordes em posição A semelhança com a música dos chamados pianeiros pode fundamental, e como observa Santos, “diferentemente do ser observada no tratamento rítmico e textural da obra, choro tradicional, os acordes utilizados no jazz aparecem em que mantém o fluxo sonoro das pulsações elementares, sua maioria na posição fundamental, para que as tensões cujas acentuações constituem as linhas-guia. Esta se existentes soem como tal.” (SANTOS, 2002, p.11) mantém relativamente estável ao longo de toda a peça e manifesta-se em diversas camadas texturais, mesmo 5 – Conclusão apesar de mudanças na textura. A manutenção da A partir do presente estudo, é possível considerar que estabilidade da linha-guia, com seus padrões rítmicos Cristal sintetiza alguns pilares da formação musical de cíclicos e constantes, é fator que vincula o samba para Cesar Camargo Mariano: sua infância, cujo ambiente piano de Cesar Camargo Mariano ao samba para piano musical familiar lhe proporcionou o contato com dos chamados pianeiros.

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Notas 1 Para maiores esclarecimentos sobre a utilização do termo pianeiro pela presente pesquisa, ver GOMES (2012, p.13-26). 2 Para mais exemplos da presença do piano no contexto de baile, bem como um estudo de aspectos que relacionam o piano e o samba, ver GOMES (2012). 3 A partitura integral está disponível em http://www.ernestonazareth.com.br/pdfs/atrevidinha.pdf, acessado em 28/06/2012. 4 No presente estudo, considera-se que as noções de choro e samba são imbricadas. Por uma questão metodológica, o emprego da palavra samba ganha um significado abrangente. Entende-se samba como uma variedade de gêneros, que vão desde os gêneros precursores do samba como a polca-lundu, o maxixe, o tango brasileiro, o choro, até as manifestações “modernas” do gênero, como a bossa-nova e o samba-jazz. 5 Entrevista concedida à rádio UOL, disponível em http://www.radio.uol.com.br/#/programa/uol-that-jazz/edicao/9055862, acessado em 10/02/2012. 6 O pianista Dick Hyman descreve aspectos do estilo pianístico de Erroll Garner no vídeo intitulado “Errol Garner Lesson 1 – Dick Hyman” , disponível em http://www.youtube.com/watch?v=lM-77RvpJf0 (acessado em 10/02/2012), parte integrante do CD-Rom “Century Of Jazz Piano Encyclopedy” (1999). 7 Transcrição disponível em http://www.youtube.com/watch?v=i1RokAJ0qAc, acessado em 10/05/2012. 8 ANDRADE, Mario de. As melodias do boi e outras peças, São Paulo, Martins, 1987, p.397, 409, 416 (citado por SANDRONI, 2001, p.23). 9 MUKUNA, Kazadi Wa. Contribuição bantu na música popular brasileira, São Paulo, Global, s/d. (citado por SANDRONI, 2001, p.25) 10 Segundo Dourado (2004, p.147), a nota fantasma (ghost note) refere-se a um som abafado e pouco distinto, de caráter percussivo. 11 Disponível em http://www.cesarcamargomariano.com/pgcatalogport.html, acessado em 10/05/2012.

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12 “Pequena sequência repetida de (quase sempre), três ou quatro acordes” (TAGG, 2009, p.280). 13 Para mais detalhes sobre a análise harmônica do trecho referido, ver GOMES (2012, p.91). 14 Cada camada textural assume um conteúdo harmônico específico. Por exemplo, se o baixo realiza fundamental e terça do acorde, o acompanhamento não incluirá estas notas, evitando assim o dobramento.

Rafael Tomazoni Gomes é bacharel em piano pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e mestre em musicologia/etnomusicologia pela mesma universidade, onde defendeu a dissertação “O samba para piano solo de Cesar Camargo Mariano”. Tem ministrado workshops em cursos de graduação em música no estado de Santa Catarina com intuito de divulgar seu trabalho teórico. Como instrumentista, atua como solista, interpretando peças que foram objeto de seu estudo teórico e outras, e em grupos de música popular na cidade de Florianópolis.

Guilherme Antonio Sauerbronn de Barros é bacharel em piano pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), mestre em música - piano pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor em musicologia pela UNIRIO. Foi premiado em concursos nacionais de piano e participou como executante de inúmeros master-classes. Tem artigos publicados em revistas especializadas e anais de eventos da área de musicologia. Desenvolve pesquisa nas áreas de estética, análise e educação musical e tem priorizado em seus estudos a relação da música com a filosofia e a literatura, em particular no idealismo e no romantismo alemão dos séculos XVIII e XIX. Atualmente, dedica-se ao estudo dos fundamentos teóricos de técnicas avançadas de análise musical. Como instrumentista, tem atuado como solista e, principalmente, como camerista. Sua atividade docente inclui, além de piano, análise musical e musicalização infantil.

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Hibridismo na música instrumental do Grupo Medusa: Associação de gêneros musicais distintos em Pé no chão

Guilherme Araújo Freire (UNICAMP, Campinas, SP) [email protected]

Rafael dos Santos (UNICAMP, Campinas, SP) [email protected]

Resumo: Na década de 1980, o jazz fusion tinha grande repercussão internacional. Baseando-se na mistura das linguagens musicais do jazz com outros gêneros, o estilo incorporava construções harmônicas modais associadas ao uso da tecnologia a favor de uma busca a novos timbres. No Brasil, era visto como símbolo de modernidade e considerado como vanguarda musical pela crítica especializada, influenciando sensivelmente grupos de música instrumental. Este estudo tem como foco a produção musical do Grupo Medusa, formado na cidade São Paulo por músicos instrumentistas renomados do cenário da música popular brasileira. Através da análise dos aspectos rítmicos, melódicos, harmônicos e estruturais da música Pé no Chão, pretende-se compreender o modo pelo qual o Grupo Medusa articula elementos da linguagem musical de gêneros populares brasileiros e norte-americanos, obtendo uma sonoridade híbrida e, buscando também identificar apropriações de procedimentos musicais do fusion realizadas. Palavras-chave: hibridismo; música popular; música instrumental; Grupo Medusa. Hybridism in the Instrumental Music of the Medusa Group: Association of Different Musical Genres in Pé no chão

Abstract: In the 1980s, jazz fusion had great international repercussion. Based on the mix of musical languages of jazz with other genres, this style incorporated modal harmonic constructions associated with the use of technology in order to search for new timbres. In Brazil, it was seen as a symbol of modernity and considered by critics as being a musical forefront, influencing significantly instrumental music groups. This study focuses on the musical production of the Medusa Group, formed in São Paulo by renowned Brazilian popular musicians. The purpose of this article is to understand, through a rhythmic, melodic, harmonic and structural analysis of the song Pé no Chão (Feet on the Ground), the way in which the Group Medusa blends musical elements of Brazilian and American popular styles, obtaining an hybrid sound. It also tries to identify appropriations of musical procedures from fusion, performed in the song. Keywords: hybridism; popular music; instrumental music; Brazilian Medusa Group.

1 – Introdução Ana Maria Bahiana escreveu em 1979, um dos poucos uma fase musical de “depuração da síntese jazz/samba”, artigos da época analisando a trajetória do segmento caracterizando-a como uma “fase de refinamento de música instrumental no período. Ela afirma que para harmônico e improviso” que consagrou uma grande compreender em perspectiva a produção da música quantidade de instrumentistas e que, com o advento instrumental, é preciso considerar que o termo genérico da canção de protesto – em que supostamente havia ‘música instrumental’ não se referia à toda forma musical “absoluta predominância da fala e do texto” –, passaram executada apenas por instrumentos, mas sim “às formas a acompanhar cantores ou buscar espaço no exterior. musicais cunhadas na informação do jazz e à geração de seus praticantes, instrumentistas dispersos no mercado Após o período dos festivais, Bahiana afirma que se iniciou após a fase da bossa nova com o desinteresse do mercado uma gradual modificação do mercado, especificamente e da indústria fonográfica” (BAHIANA, 1979, p.61). partir de 1976/77, vitalizado em geral, com o crescimento do interesse do público pelo segmento de música Assim, notamos que para a jornalista, nas práticas do instrumental. Contando com uma maior receptividade, que era conhecido como música instrumental nos anos uma nova produção e legitimação de alguns artistas, a 70, já se subtendia certo conhecimento do jazz pelos música instrumental toma uma retomada expressiva com músicos. Em seguida, a autora define a bossa nova como uma nova forma, distinta do período de jazz/bossa.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 13/11/2012 - Aprovado em: 04/01/2013 162 FREIRE, G. A.; SANTOS, R. dos. Hibridismo na música instrumental do Grupo Medusa... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.162-169.

Segundo a autora, essa revitalização da música instrumental Fusion é um termo usado para referir-se à modalidade aconteceu com a formação de um público constituída de híbrida de jazz surgido na virada da década de 60 para 70. jovens que tinham seu gosto em grande parte formado pela Foi desenvolvido a partir da associação da rítmica do funk liberdade de improviso do rock progressivo, mais aproximado e rythm and blues, com a amplificação e processadores do jazz, ou seja, um público com certa sensibilidade para de efeitos (distorção, reverb, etc) do rock e métricas de apreciar seções instrumentais e solos de longa duração. Ana compasso oriundas de músicas não ocidentais. O repertório Maria Bahiana ainda sustenta: “não seria exagero afirmar apresenta músicas predominantemente instrumentais que grande parte do público que tornou possível a existência e exigem geralmente um alto nível de proficiência no de uma atividade constante da música improvisada, no instrumento para execução. A autoria da invenção do Brasil, seja constituída por roqueiros desiludidos com os novo estilo é indeterminada, pois surgiram paralelamente sucedâneos nacionais de sua música” (BAHIANA, 1979, vários albuns com características híbridas de jazz e rock, p.63). Corroborando a afirmação de Ana Maria Bahiana, como o do grupo Free Spirits de Larry Coryell ou o Charles o jornalista Souza escreve, em 1976, que “[o rock] pode Lloyd Quartet. Entretanto, o álbum que foi consagrado levar um tipo de público jovem condicionado – e careta, no pela ‘inauguração’ do estilo é Bitches Brew de Miles Davis. sentido inverso – a interessar-se por música instrumental, Neste disco, participaram John McLaughlin, Chick Corea, valorizar os músicos, procurar ouvir com maior atenção o Joe Zawinul e Wayne Shorter, artistas que, posteriormente, que dizem os sons, independentes da mensagem direta das em carreira solo ou em atividade com seus grupos, estariam letras” (SOUZA, 1979, p.205). entre os protagonistas principais do estilo.

Uma pontuação do interesse do público nesse segmento O novo estilo manteve grande popularidade em seu país no período foi a realização do 1º Festival de Jazz de São de origem durante a década de 70 e início da década de Paulo - Montreaux em 1978, que reuniu mais de setenta 80. No Brasil, teve um impacto bastante significativo: mil pessoas e tiveram várias apresentações de artistas os festivais de jazz de 1978 e 1980 trouxeram grandes brasileiros como Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, nomes para apresentações no país. Segundo Muller Nivaldo Ornellas, Djalma Corrêa, Luiz Eça, Hélio Delmiro, (2005, p.88), muitos grupos instrumentais brasileiros que , Wagner Tiso, Vitor Assis Brasil, emergem neste período incorporam elementos do estilo Zimbo Trio, e de músicos jazzistas consagrados como fusion, tanto o uso dos instrumentos e efeitos eletrônicos, John McLaughlin, Chick Corea, Larry Coryell e George como na abordagem e composição harmônica de suas Duke. Sobre o festival, Muller (2005) aponta uma matéria músicas. Além do Grupo Medusa, podemos citar também na qual a mídia comenta sobre a repercussão do evento: artistas como o próprio Egberto Gismonti, Airto Moreira, “foi um grande sucesso sob qualquer ângulo de análise a Banda Metalurgia e o grupo Cama de Gato, que também e acabou se transformando num evento musical sem incorporaram elementos do fusion. paralelo na história não apenas da cidade de São Paulo, mas de todo o país” (NEVES, 1978). 2 – Grupo Medusa O grupo de música instrumental Medusa foi formado Para Ana Maria Bahiana, um índice claro da força que em São Paulo, reunindo alguns dos músicos mais a música instrumental adquire naquele momento é o requisitados do cenário de música popular brasileira. surgimento e consolidação de alguns nomes de grande O grupo durou aproximadamente três anos e teve dois importância no segmento: Egberto Gismonti e Hermeto álbuns lançados em sua trajetória. Pascoal, os mais destacados. A razão do destaque argumentada pela autora está na qualidade e persistência O primeiro álbum, intitulado Grupo Medusa, foi lançado em de sua produção junto ao público. Para a autora, o diferencial 1981 como o primeiro lançamento do selo Som da Gente, nos trabalhos desses músicos estava no “rompimento com pequena gravadora independente que direcionou a maior a cadeia jazz/bossa” - de onde tiveram grande parte de sua parte de sua produção ao segmento da música instrumental. formação musical e aperfeiçoamento técnico -, passando A formação do grupo nesse álbum era: Amilson Godoy (piano, a incorporar elementos da música considerada “de raiz”. clavinet), Cláudio Bertrami (baixo elétrico, contrabaixo acústico), Heraldo do Monte (guitarra, violão e bandolim) Havia na época também outra forma de romper com e Chico Medori (bateria e percussão), com participações a ‘cadeia jazz/bossa’, identificada por Bahiana nos de Theo da Cuíca e Jorginho Cebion na percussão. Grupo trabalhos de Wagner Tiso. Segundo a autora, o artista Medusa é composto por músicas autorais, com bastante vivenciou uma transformação de sua música, passando espaço para improvisos, harmonias sofisticadas, presença de uma estética ligada fortemente ao jazz e à bossa- marcante de ritmos brasileiros e percussão. nova (ainda na década de 60), em direção a “uma língua musical híbrida de clássico, música regional e uma pitada Após o lançamento do álbum, realizaram uma turnê pelo de rock” (BAHIANA, 1979, p.65). Não apenas Wagner Tiso, Brasil e se apresentaram no 3º Festival de Jazz em Paris, mas a partir de certo momento de sua carreira, Egberto em 1982. No ano de 1983, lançaram seu segundo disco Gismonti também passa a incorporar à música brasileira, Ferrovias, também pelo selo Som da Gente e com algumas procedimentos da música erudita e da fusão jazzística mudanças na formação: o guitarrista Olmir Stocker, também com o rock, estilo conhecido como . fusion conhecido como “Alemão”, entrou no lugar de Heraldo do

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Monte e o percussionista Theo da Cuíca foi integrado à diversos períodos. Em seguida, quando o grupo define formação. O disco segue a mesma linha estética do primeiro sua proposta como “sem preconceitos ou barreiras”, álbum, apresentando uma composição de Olmir Stocker, fica evidente a questão: até que ponto é legítimo para uma releitura do choro Lamento de Pixinguinha, maior o grupo, o diálogo da cultura brasileira com as formas volume de instrumentos de percussão e maior destaque culturais estrangeiras? para a cuíca, que além de ter função rítmica exerce também singela função melódica nos arranjos do disco. A solução seria então, promover uma fusão musical mantendo o vínculo com as raízes brasileiras, ou Apesar da trajetória do grupo apontar para um relativo seja, incorporar elementos da música estrangeira e, sucesso e conquista do seu espaço no mercado, inclusive ao mesmo tempo, preservar características da música com apresentações internacionais, sua trajetória teve brasileira considerada de ‘raiz’. Ao utilizar o termo curta duração. O grupo se desfez após um aneurisma “fusão”, faz-se referência ao estilo jazz fusion, que sofrido por Bertrami em meados da década de 80 que para o grupo parece ser fonte de inspiração de ideias paralisou seu lado esquerdo integralmente. propriamente musicais.

3 – Entre a fusão musical e a preservação das Como tentaremos demonstrar nas análises da música Pé no chão a seguir, o grupo incorpora sonoridades fusion, “raízes” assumindo a mistura de gêneros distintos na construção de Partindo da suposição de que o artista, ainda que tenha uma nova sonoridade. A referência às “raízes brasileiras” absoluta autonomia nas escolhas estéticas e na concepção e à oposição colonizado/colonizador no discurso podem do trabalho, direciona sua produção para se consolidar e ser resquícios, em plena década de 80, do ideário político legitimar dentro do mercado; compreender as escolhas e nacional-popular, iniciado em parte através do projeto o sentido da ação pelo qual os músicos podem ter seguido nacionalista do governo de Getúlio Vargas e amplamente ainda que inconscientemente, constitui uma maneira de difundido na sociedade brasileira da década de 60. compreender como o grupo chegou à sonoridade presente nos discos. Diante da grande repercussão do fusion na 4 – Aspectos Estruturais de Pé no chão década de 70 no mercado internacional, apropriar-se de A música Pé no chão, presente no álbum Grupo Medusa, seus procedimentos musicais constituía uma maneira de tem quatro minutos e quarenta e um segundos de duração, distinguir-se no mercado, pois o novo estilo era considerado foi composta pelo baterista do grupo Chico Medori e pela crítica musical como “vanguarda do jazz”. apresenta a mesma instrumentação que é predominante no LP e se constitui de piano Fender, baixo Fender No Grupo Medusa essas apropriações eram realizadas, fretless, bateria, guitarra e percussão. Os instrumentos de mas aparentemente de maneira limitada. Foi publicado percussão utilizados na faixa são: tamborins e cuíca. um texto no encarte do primeiro disco do Grupo Medusa, que tem autoria de Amilson Godoy e que traz questões A música apresenta uma apropriação feita pelo grupo importantes para compreender as escolhas estéticas do uso do Fender Rhodes1, um instrumento norte- realizadas. Segue sua transcrição: americano, utilizado no disco refencial Bitches Brew de Miles Davis e adotado também em outros discos “Existe um conflito básico em quem nasce em um país colonizado culturalmente; a gente não se ouve mais, a memória se apaga, do estilo. A escolha desse instrumento pelo pianista as coisas de fora nos são impostas e acabam sendo consumidas Amilson Godoy no disco já denota uma certa influência como autênticas. O Grupo Medusa é resultado desse conflito. O da estética do estilo jazz fusion. colonizado pode até aprender com o colonizador, mas não pode jamais deixar de pensar com a própria cabeça. Nosso trabalho tem uma proposta musical sem preconceitos ou barreiras, cujo objetivo O uso de um instrumento com origem cultural estrangeira, maior é conseguir uma fusão musical sem perder o vínculo com quando associado à execução da rítmica sincopada do nossas raízes. As diferentes origens, o universo de informações, a samba, tradicional da música brasileira se mostra como vivência, as experiências anteriores, os espaços conquistados por uma mistura de tradições culturais realizada pelo grupo. cada um dos componentes do grupo, fez com que acontecesse uma integração tamanha, que nós quatro viramos um. Um grupo Ela não se aproxima nem das tradições brasileiras, nem de música instrumental brasileira”. das tradições norte-americanas.

Logo no início do discurso, já se faz referência à A mistura estética dos diferentes estilos ganha maior oposição colônia/colonizador levantando a questão evidência ainda com o uso dos instrumentos de percussão do imperialismo cultural (“as coisas de fora nos são nos temas A e improviso de guitarra, que além de terem impostas”) e a questão de se evitar a suposta dependência seus timbres consagrados na estética do samba, ressaltam (“O colonizado pode até aprender com o colonizador, mas a acentuação rítmica característica da sonoridade do não pode jamais deixar de pensar com a própria cabeça”) gênero (a questão da acentuação rítmica será mais relativa aos países imperialistas. Nota-se que existe um detalhada em análise posterior). envolvimento nacionalista claro na música do grupo, questão constante não apenas no universo musical, como Provavelmente o exemplo mais convincente da mistura também, amplamente, nos debates culturais nos mais feita pelo grupo nesta música estaria no Tema A, quando

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Amilson Godoy executa a melodia da seção no Fender músicos de acentuar os contratempos das sincopas nas Rhodes. Ao mesmo tempo em que obtém destaque seções com percussão para caracterizar bem a rítmica no primeiro plano na música (de certa maneira, com do samba. Além disso, nas seções sem percussão tanto timbre associado ao fusion), é acompanhado pelo o acompanhamento rítmico como a melodia têm notas ritmo sincopado e acentuado dos tamborins e cuíca, mais longas e menor subdivisão rítmica, o que confere tradicionais da cultura brasileira. assim um caráter mais estático à seção e acentua o contraste nas mudanças temáticas. No arranjo da música, as seções se organizam como mostra o Ex.1. A forma de Pé no chão baseia-se em Desta maneira, ao realizar uma escuta do disco Grupo uma estrutura quaternária simples A-B-A-B com 36 Medusa observamos que esse traço da alternância de compassos, que é precedida de uma introdução com oito seção com ênfase na rítmica de um gênero tradicional compassos. Entre os dois grupos de exposições temáticas, brasileiro seguida de uma seção com incorporação de ocorre o solo de guitarra com 32 compassos seguido de procedimentos da música estrangeira não acontece uma ponte com quatro compassos e por fim chegando apenas na música Pé no chão, mas também na maioria ao desfecho da música no Tema B’, que é uma versão de suas faixas. Constitui assim, uma característica da modificada do Tema B, adaptada para conduzir ao fim sonoridade do grupo mesclar elementos da estética de da música. linguagens musicais com origens culturais distintas utilizando a forma da música como meio de organizar os Constata-se em sua forma um planejamento no uso elementos e criar contrastes nas músicas. das percussões dentre as seções, de modo que fossem alternadas as partes da música com percussão e as Ainda atentando ao uso da percussão na música, partes da música apenas com o quarteto tocando. observamos que após a segunda exposição do Tema Observando os quadros acima, percebe-se que mesmo B, Amilson Godoy executa uma frase blues no piano quando duas seções têm percussão em sequência, uma Fender (Ex.2), que combinada ao acompanhamento delas possui breve duração. dos instrumentos de percussão característicos da tradição musical brasileira, efetua uma mistura Essa alternância causa efeito de contraste para o ouvinte cultural ao sobrepor um elemento melódico-harmônico quando há mudança temática, pois além da presença dos tradicionalmente utilizado no jazz e no blues com a tamborins e da cuíca, existe a intenção por parte dos percussão da seção rítmica brasileira.

Chamada ‘bluesy’2 Tema A Tema A Introdução Tema B Tema B (casa II) do piano 8 compassos 8 compassos 8 compassos 8 compassos 12 compassos 4 compassos (com percussão) (com percussão) (com percussão)

Improviso de Tema A Tema A guitarra Ponte Tema B Tema B’ final 8 compassos 8 compassos 32 compassos 4 compassos 8 compassos 4 compassos (com percussão) (com percussão) (com percussão) Ex.1 – Tabela ilustrando disposição das seções na forma de Pé no chão (ler em sentido horizontal, da esquerda para a direita).

Ex.2 – Frase blues executada por Amilson Godoy

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Apesar de não haver uma alternância que distinga o 6 – Aspectos Harmônicos e Melódicos caráter cultural dentre as seções e que aborde todos os A apropriação de procedimentos musicais oriundos do planos da música, existe uma aparente predominância jazz fica mais evidente quando atentamos aos planos do plano rítmico no contraste gerado na alternância harmônico e melódico de Pé no chão. Na primeira seção das seções, que torna-se evidente pela percussão e se temática da música, apenas se utiliza um acorde - Gm7, constitui numa característica da sonoridade do grupo. o que constitui uma característica modal da harmonia da seção, pois a ausência da polaridade tensão/resolução 5 – Aspectos Rítmicos esvazia a necessidade do retorno ou estabelecimento de A música inicia com o chimbau da bateria e o um centro tonal (Ex.3). piano Fender executando uma frase baseada em semicolcheias apresentando já em sua execução, a Segundo Gridley (1988, p.71), no estilo de jazz acentuação característica do gênero, que ganha maior conhecido como bebop, a harmonia era objetivamente expressividade quando a cuíca começa sua execução no determinada, com acordes e durações bem delimitadas quinto compasso da seção. Encerrada a introdução, a antes da improvisação, quase sempre cercando um entrada dos tamborins reforça o caráter suingado das centro tonal, com tempo constante e fórmula de linhas da percussão no Tema A e remete à sonoridade de compasso predominantemente quaternária. Para escola de samba. escapar dessas convenções tradicionais referidas, Miles adotou quatro possibilidades como alternativas A segunda seção temática (Tema B) inicia com de escape que foram: 1) inventar uma progressão uma alteração contrastante na execução do harmônica, que não precisaria ser simétrica ou tonal; 2) acompanhamento. Uma vez que no Tema A, a condução Seguir uma sequência pré-determinada de modos, com rítmica aparece bem delineada com linhas do gênero duração livre; 3) Seguir uma sequência pré-determinada samba, os acordes do Tema B são executados e de modos, com duração pré-determinada; 4) Basear-se sustentados com notas longas, modificando o caráter de uma improvisação inteira em um único modo. subdivisão rítmica (suingado), para uma textura rítmica menos dinâmica. Além dessa mudança de caráter, o Foram utilizadas todas as quatro possibilidades na Tema B tem, em sua estrutura, mudanças frequentes e gravação do álbum Kind Of Blue, que fez bastante rápidas de fórmula de compasso, alterando de compasso sucesso, situando-o entre os mais importantes da história simples para compasso composto. do jazz. Esse fato acabou transformando essa inovação estética em tendência nas gravações dos discos de jazz Assim, podemos afirmar que a seção rítmica do grupo pós-1959, consolidando o caráter modal na harmonia, constrói dois tipos de acompanhamento dentre as seções nos improvisos e composições do jazz em sua linguagem. com caracteres distintos. Um deles mais pautado na linguagem do gênero samba, com maior dinamicidade, Em um trabalho que trata dos diferentes tipos de modalismos baseado em linhas-guia características e presença marcante na história da música, o pesquisador Sérgio Freitas destaca da sincopa, ressaltada pela execução da percussão. O que após o surgimento do modalismo jazzístico, este também outro, mais pautado na estética do jazz, baseando-se em passa a se mesclar com outras tendências das músicas acentuações rítmicas da melodia, com maior uso de notas populares do mundo e aponta o fenômeno de hibridação longas e ataques de pouca intensidade sonora. entre os modos e suas respectivas culturas: “relacionadas ou não com o jazz, outras práticas modais (...) com maior Uma característica marcante no plano rítmico entre as ou menor acento étnico, são perceptíveis agora quando os seções é a presença marcante da execução de convenções. músicos populares se acham no direito de desterritorializar e O uso das convenções não se limita aos Temas B e B’, reterritorializar todo tipo de escalas (chinesas, vietnamitas, pois também são executadas nas exposições do Tema húngaras, árabes, libanesas, eslavas, romenas, turcas, A. Mesmo em seções caracterizadas por notas longas, a ciganas, hispânicas, ameríndias, nordestinas, modos bateria preenche os espaços entre as notas da melodia orientais, etc.), que junto das incontáveis escalas sintéticas com frases próprias da linguagem do instrumento, o que se mesclam aos modos diatônicos da catequese cristã confere um caráter percussivo à sonoridade do grupo. ocidental” (FREITAS, 2008, p.271).

Tema A

Ex.3 – Melodia e harmonia cifrada do Tema A de Pé no chão

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O fato de que todo o tema se constrói em apenas um acorde Na segunda seção temática da música encontramos e esse mesmo acorde é utilizado durante todo o improviso também outras características modais em sua concepção de guitarra, nos permite comparar com a música So What harmônica. Segue abaixo sua transcrição: do disco acima citado. Ambas as músicas têm no Tema A e improvisos, harmonia baseada em um acorde só, evidência Nessa seção (Ex.5), observamos que são utilizadas que denota uma apropriação feita pelo grupo da estética predominante­mente notas da extensão de acordes do jazz modal no processo composicional da música. suspensos na melodia, o que ressalta a sonoridade modal da seção, ao mesmo tempo em que são executadas com Além desse aspecto, notamos outra apropriação da mesma a figura rítmica da sincopa, característica das tradições música presente na condução executada pela guitarra musicais brasileiras. Deste modo, ao mesmo tempo em quando utiliza o mesmo voicing tocado pelo piano no que o grupo se apropria da estética jazzística, ainda disco de Miles Davis, só que transposto e adaptado à mantém-se o caráter rítmico marcante das ‘tradições’ linguagem do samba (Ex.4). de sua origem.

O primeiro acorde da seção (Am7) é o único com terça menor que é utilizado e o fato de sua presença vir logo após o acorde de Gm7 acentua mais a sonoridade modal da harmonia por utilizar um acorde do mesmo tipo uma 2ªM acima, procedimento comum em músicas de jazz modal.

Todos os outros acordes são dominantes suspensos, ou Ex.4 – Estrutura de acorde similar à de So What, contudo seja, com nona, sétima menor e quarta justa no lugar da adaptado ritmicamente para o contexto de samba. terça, sendo utilizados de maneira predominantemente cromática. Nota-se outro tipo de padrão harmônico As apropriações da linguagem musical jazzística, ao nos compassos 6 e 11, onde é utilizada uma mesma mesmo tempo em que aproximam e criam diálogo com frase rítmica para uma similar sequência de acordes, a cultura estrangeira, buscam se afastar da musicalidade onde o caminho das fundamentais decai um tom e norte-americana através da articulação de uma depois um semitom. A ausência de intervalos de musicalidade brasileira. O exemplo 4 é um caso exemplar quarta e quinta justa nos baixos dos acordes também de uma apropriação que é idêntica em termos estrutura é um fator que contribui para a construção de uma harmônica, mas articulada com a rítmica brasileira. sonoridade modal na seção.

Tema B

Ex.5 - Melodia e harmonia da seção B de Pé no chão

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7 – Conclusão popular presente no primeiro disco. Ainda que o grupo Pudemos demonstrar através das análises algumas tenha permitido a hibridação, pode-se dizer que seus maneiras pelas quais o grupo se apropria de elementos ideais simbólicos limitaram esses processos, fazendo com musicais de gêneros norte-americanos (como o jazz e rock), que se mantivessem características musicais do território ao mesmo tempo preservando características oriundas de de origem. Assim, o vínculo com a tradição seria então, um gêneros da música brasileira (como a rítmica do samba) elo para sustentar a construção da noção de identidade na música Pé no chão. Assimilando elementos musicais da brasileira e um filtro pelo qual fosse selecionado o que estética de um estilo de grande repercussão no mercado, não deveria ser hibridado. o grupo passa a se alinhar dentro dos padrões de venda internacionais, contando com maior competitividade e Essa contradição poderia ser fruto do direcionamento da distinguindo sua produção dentro do âmbito nacional, produção do grupo para ambos os segmentos nacionais através dos elementos “modernos” e considerados de e internacionais. Segundo Canclini (1997, p.159), “não vanguarda incorporados às “raízes brasileiras”. apenas pelo interesse em expandir o mercado, mas também para legitimar sua hegemonia, os modernizadores Canclini define em contexto sociológico, o conceito de precisam persuadir seus destinatários de que – ao hibridismo como “processos socioculturais nos quais mesmo tempo em que renovam a sociedade – prolongam estruturas ou práticas discretas, que existiam de formas tradições compartilhadas. Posto que pretendem abarcar separadas, se combinam para gerar novas estruturas, todos os setores, os projetos modernos se apropriam dos objetos e práticas” (CANCLINI, 1997, p.XIX). A maneira bens históricos e das tradições populares”. pela qual as práticas se combinam, “ocorre de modo não planejado, ou é resultado imprevisto de processos A ideia de prolongamento das tradições presente no migratórios, turísticos e de intercâmbio econômico ou discurso do grupo se tornaria uma vantagem, pois “o comunicacional”. Deste modo, a partir dos influxos da patrimônio cultural se apresenta alheio aos debates globalização, com a chegada de produtos da indústria sobre a modernidade ele constitui em um recurso menos cultural norte-americana no Brasil, duas práticas culturais suspeito para garantir a cumplicidade social” (CANCLINI, que determinavam estruturas distintas, existiam em 1997, p. 160). Deste modo, a presença de vários formas separadas e em territórios distintos, se combinam elementos da tradição da música brasileira junto do na produção do Grupo Medusa e passam a formar novas discurso nacional-popular do grupo permite que sejam estruturas, um novo objeto e prática, que caracteriza a incorporadas formas culturais estrangeiras símbolos de sonoridade híbrida do grupo. modernidade, de modo que não fossem contestados por isso. Em vez de reafirmar objetivamente as tradições, Contudo, foi demonstrado no tópico três deste artigo, caracterizando o território de origem, o Grupo Medusa que existem contradições entre as apropriações de estabelece um diálogo com formas culturais estrangeiras, procedimentos musicais estrangeiros realizadas pelo enriquece o conhecimento envolvido e ativa uma forma grupo frente ao discurso embasado no ideário nacional- de mediação social entre práticas culturais distintas.

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Discografia Recomendada MEDUSA, Grupo. Grupo Medusa. São Paulo: Som da Gente: 1981. MEDUSA, Grupo. Ferrovias. São Paulo: Som da Gente: 1983.

Notas 1 Instrumento inventado pelo americano Harold Rhodes com primeiro protótipo produzido em 1945 após os avanços tecnológicos dos anos 30, que foram significativos para a indústria musical, inovando pelo emprego de válvulas e pela produção em série. No ano de 1959, Harold faz parceria com Leo Fender para produzir a série Fender Rhodes, com sistema parecido com o de uma guitarra elétrica (LATORRE, 2004). O instrumento fez bastante sucesso nas décadas de 60 e 70, sendo amplamente utilizado por pianistas de jazz fusion por conta de sua sonoridade distorcida. Atualmente ainda é bastante utilizado em discos recentes de artistas de jazz. 2 Bluesy é um termo usado para designar uma sonoridade que carrega a utilização da blue note em interpretação de uma frase musical. Segundo o dicionário de jazz GROVE, blue note seria uma terça, sétima ou quinta (menos comum) que tem afinação abaixada em microtons e é utilizada comumente em blues, jazz e músicas relacionadas. Existe muita discussão acerca da origem da blue note, mas acredita-se que ela pode ter sido “descoberta” a partir da dificuldade dos escravos norte-americanos em adaptar a escala pentatônica africana ao diatonismo europeu.

Guilherme Araújo Freire é graduado no curso de Bacharelado em Música Popular pela Universidade Estadual de Campinas e mestrando em Música na mesma instituição desde 2013. Participa do grupo de pesquisa “Música Popular: História, Produção e Linguagem” (CNPq) desde 2010. Atua como músico instrumentista, se apresentando em rodas de choro mensais pelo projeto MusiSAE da Unicamp e em eventos universitários como o “Unicamp de Portas Abertas” (UPA) e o “Festival do Instituto de Artes” (FEIA).

Rafael dos Santos é Doutor em Música/Piano pela Universidade de Iowa - EUA, sob a orientação do Prof. Daniel Shapiro. É Professor do Departamento de Música, Instituto de Artes da UNICAMP, onde participou da criação do curso de Música Popular. Coordena o Grupo de Pesquisa “Musica Popular: História, Produção e Linguagem” (CNPq). Atua regularmente como solista, arranjador, maestro, compositor e professor. Foi Coordenador do projeto de criação e implantação do Conservatório de Música Popular Cidade de Itajaí, através de Convênio firmado com a Unicamp. É editor da Música Popular em Revista, publicação eletrônica semestral vinculada aos Programas de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da UNICAMP e do Centro de Letras e artes da UNIRIO

169 NEDER, A. “Um homem pra chamar de seu”: discurso musical e construção de gênero. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.170-175.

“Um homem pra chamar de seu”: discurso musical e construção de gênero

Alvaro Neder (IFRJ, Rio de Janeiro, RJ) [email protected]

Resumo: Este artigo examina o gênero musical como discurso do coletivo anônimo. Por esta via, a música participa poderosamente das construções de gênero e também das contestações a estas construções, por parte de grupos sociais anti-hegemônicos. Considerando-se as conotações socialmente atribuídas a certos subgêneros do rock, são analisadas as estratégias de contestação feminina às posições atribuídas às mulheres por meio da apropriação de papeis de dominação exercidos tradicionalmente por homens. Tais estratégias são iluminadas pelo confronto entre as interpretações de Marina Lima e para Mesmo que seja eu, canção de Roberto Carlos e Erasmo Carlos. Relativizando a noção de autonomia autoral, o artigo subscreve a perspectiva pós-estruturalista de que os artistas são, eles próprios, discursos de um coletivo, e conclui considerando o papel da música, enquanto discurso social, na produção de novas subjetividades e na reestruturação da ordem social. Palavras-chave: discurso musical e gênero; subjetividade e crítica cultural; pós-estruturalismo na música.

“A man to call yours”: musical discourse and gendering

Abstract: This article examines musical genre as an anonymous collectivity’s discourse. According to this understanding, music powerfully participates in gendering and its contestations by non-hegemonic social groups. Considering socially attached connotations to certain rock subgenres, feminine challenge strategies to the positions assigned to women are implemented through women’s appropriation of roles traditionally performed by men. Such procedures are illuminated by the confrontation of Brazilian singers Marina Lima and Erasmo Carlos’ renderings for Mesmo que seja eu [Even if it’s me], a song by Roberto Carlos and Erasmo Carlos. Relativizing the notion of authorial autonomy, the article subscribes to the poststructuralist perspective that the artists themselves are discourses of a collectivity, and concludes with a consideration of the role of music as a social discourse in the production of new subjectivities, and in the restructuring of social order. Keywords: musical discourse and gendering; subjectivity and cultural criticism; poststructuralism in music.

1 - Introdução O campo midiático, entendido como o conjunto de No terreno específico da canção popular brasileira, o diferentes mediações estabelecidas entre as produções estruturalismo subsidiou análises específicas das letras das culturais e seus fruidores pelos meios de comunicação canções desde os anos 1970 (ver, por exemplo, SILVA, 1974). de massa, vem sendo objeto de um diferente olhar, nas No entanto, este tipo de abordagem cedo encontrou suas últimas décadas. Sob o impacto dos chamados estudos limitações. As letras não são textos verbais, mas sequências culturais, começou-se a perceber que os sujeitos sonoras vocais linguisticamente marcadas, e que são mediadas expostos à ação destes meios – tanto na ponta da por convenções musicais, como diz o musicólogo Richard produção como da recepção – produzem estratégias MIDDLETON (2000, p.7). Isto é, diferentes gêneros musicais de oposição e resistência que complexificam e e estilos de performance musical modificam os sentidos problematizam os significados das produções veiculadas veiculados pelo mesmo texto linguístico, como veremos pelos mass media. Vistos por este ângulo, os meios de no decorrer deste artigo. Portanto, a análise dos sentidos comunicação de massa passam a representar um outro veiculados pela canção coloca o problema metodológico de espaço que se oferece para a atividade de contestação, esses sentidos constituírem-se em um composto indissociável e para a produção de sujeitos críticos. de letra, música, performance e contexto cultural mais amplo.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 12/08/2012 - Aprovado em: 04/01/2013 170 NEDER, A. “Um homem pra chamar de seu”: discurso musical e construção de gênero. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.170-175.

Se estamos falando da participação da canção na No entanto, uma vez estabelecidos significados para construção identitária de sujeitos críticos, é inevitável os elementos estilísticos, surge também a possibilidade voltarmos nossa atenção para a desafiadora questão de apropriação diferencial, “anômala” ou crítica, destes do sentido dos sons musicais. Se, como foi dito, as mesmos detalhes musicais, por parte de outros grupos, convenções musicais modificam até mesmo o sentido levando à sua ressignificação, notadamente, através do dos textos verbais, de que maneira isto se dá? Há muitas jogo e da ironia. Evidentemente, estes novos significados possibilidades de responder a esta pergunta. Aqui, vamos adicionados aos gêneros participam, por sua vez, do nos ater à ideia de discurso musical. complexo processo de produção de subjetividades por meio da música, ao tornarem-se objeto de identificações 2 - Gênero musical e discurso por parte dos fruidores. O nível codal (nível de um código em uma estrutura A este ponto, coloca-se a necessidade de problematizar de códigos) pertinente aos nossos propósitos, neste a habitual tendência de negligenciar a participação do artigo, será o do gênero musical. Segundo concepções coletivo anônimo na criação das produções culturais. Ou musicológicas contemporâneas, o gênero deixou de ser seja, o fato de que certos elementos estilístico-musicais definido exclusivamente por suas características formais, adquirem conotações que os fazem ser incorporados e seu entendimento passou a orientar-se a gêneros musicais com fortes associações existenciais em direção a uma concepção mais fluida e flexível, preocupada, parece dever-se a escolhas, negociações, conflitos e acima de tudo, com a função, com a retórica ou “discurso” do disputas coletivos, mais do que a decisões autônomas gênero no interior da comunicação e recepção da arte. As emanadas de cantores, compositores e instrumentistas unidades de repetição que definem um gênero musical [...] podem estender-se para o domínio social, de tal forma que a definição profissionais. Pelo contrário, parece legítimo acreditar de um gênero dependerá do contexto, função e validação pela que estes artistas devem seu sucesso eventual à felicidade comunidade, e não, simplesmente, em regulação formal e técnica. com que captam, com sua intuição privilegiada, tais Assim, as repetições estariam localizadas em domínios sociais, conflitos e opções coletivas. comportamentais e mesmo ideológicos, bem como em materiais musicais. (SAMSON, 2005) Esta abordagem se insere na linhagem pós-estruturalista Ainda, conforme lembra Samson, o gênero possui uma que interpreta a cultura como um texto, inaugurada pelo função de estabilização de significados – uma função crítico literário Silviano Santiago no Brasil em 1972, no socialmente conservadora, que deve ser mantida em mente. artigo “ enquanto Superastro” (SANTIAGO, 2000, p.148). Neste artigo, inicialmente, Santiago chama Por sua vez, o etnomusicólogo Robert Walser desenvolveu a atenção para a cobertura jornalística dos astros de estudos sobre o gênero musical baseando-se nos cinema pela imprensa estadunidense da década de 50 para trabalhos em teoria literária de Tzvetan Todorov. Para discutir o fato de que essas revistas buscavam construir WALSER (1993, p.xiv), o gênero musical deixa de uma imagem dos artistas que fosse condizente com o ser compreendido como um conjunto autônomo de “critério estabelecido pela verdade da comunidade, isto características estilístico-formais, e passa a constituir- é, [com o] código de comportamento e de valores ditado se em um sistema social de produção e comunicação de pela middle class americana e que as revistas reafirmavam, sentidos. Os detalhes musicais dos gêneros tornam-se um ou pelo elogio ou pela crítica, ao homem ou ao ator” discurso – “unidades gestuais e sintáticas significantes, (SANTIAGO, 2000, p.147). Em outras palavras, a ideologia organizadas por narrativas e outras convenções formais, social, da qual as revistas eram representantes, construía [que] constituem um sistema para a produção social de os artistas. Através das revistas, a ideologia estabelecia que sentido” (WALSER, 1993, p.xiv). era necessário “[t]irar a maquiagem do rosto do homem para poder lhe entregar a responsabilidade do cidadão Se os gêneros musicais são sistemas de significação atuante dentro da comunidade” (SANTIAGO, 2000, p.147). social – discursos, como afirma Walser – então os Confundir a ambas poderia ser perigoso, sugere Silviano. O indivíduos podem identificar-se com tais discursos, e isto astro é, então, não um valor positivo, mas um significado é de fácil verificação. Muito frequentemente, a profunda construído relacionalmente a partir de categorias apreciação por um gênero – o rap, o punk rock, o samba, simbólicas sociais: um discurso. Portanto, da mesma forma o pagode – é acompanhada pela adoção, pelo sujeito, que o discurso musical do gênero, o artista é um discurso: de códigos sartoriais, comportamentais e linguísticos a sociedade fala por intermédio de seus artistas. associados a estes gêneros. Isto quer dizer que, sendo um discurso, o gênero musical conecta a subjetividade Sendo assim, metodologicamente, este artigo acompanhará aos processos sócio-históricos. Desta maneira, gêneros o pensamento de autores que advogam que uma canção musicais conferem identidades. Detalhes musicais (música, letra, performance) é uma representação da passam a associar-se a atitudes e crenças – ideologias comunidade e do nativo. Tão confiável quanto qualquer – que tanto congregam comunidades de sujeitos outra, não invalida, mas não é substituível pelo caderno identificados com os valores do grupo, como também de campo e outras formas de registro etnográfico mais mantêm afastados aqueles que adotam uma atitude de estabelecidas. O etnomusicólogo Steven Feld (FELD, rejeição em relação a estes valores. 1990), por exemplo, busca entender através dos textos

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(ou seja, músicas) como os nativos reais escutam e a montagem de seu estilo. O timbre característico da pensam sobre suas atividades, e musicólogos como Susan voz cantada de Janis Joplin, por exemplo, foi tomado McClary (MCCLARY, 1991) e Christopher Small (cf. seu do gênero conhecido nos países anglo-saxões como conceito de musicar, SMALL, 1987 e 1999) compreendem “cock” rock. Conforme os críticos Simon Frith e Angela estruturas musicais como textos fabricados socialmente McRobbie, o “cock” rock é “uma expressão explícita, crua cujo cerne são construções históricas e políticas. Mais e frequentemente agressiva da sexualidade masculina” ainda, de maneira geral, este foco na música “em si” como (FRITH e McROBBIE, 1990, p.374). A voz neste estilo elemento iluminador da integralidade de uma cultura é consiste em um som áspero, que é frequentemente utilizado a própria razão de ser de campos de estudo como um por cantores como Bruce Springsteen, Rod Stewart e Mick todo, como a etnomusicologia (que possui um foco Jagger. O som é produzido essencialmente pela garganta decididamente antropológico) e os popular music studies. e pela boca, com uma utilização mínima das câmaras de Já há algumas décadas, parte da musicologia também se ressonância do peito e da cabeça, e através de uma forte rege pelos mesmos princípios. E, finalmente, para retornar tensão das cordas vocais (SHEPHERD, 1991, p.167). à perspectiva pós-estruturalista, o “texto” em si não se distingue do “contexto”, pois é formado de fragmentos Para Frith e McRobbie, “cock” rockers têm a propensão da ideologia (que perpassa a realidade cotidiana, e não de serem “agressivos, dominadores, fanfarrões, e buscam, se distingue da cultura, em seu sentido antropológico). constantemente, lembrar suas plateias de seus poderes A experiência se constrói nesse texto mais amplo escrito e seu controle” (FRITH e McROBBIE, 1990, p.374). Ao pela cultura (ou ideologia), sendo impossível “sair” do apropriar-se destas convenções músico-culturais, Janis texto (isto é, das estruturas simbólicas que perpassam/ assumiu a posição simbólica de um homem sendo uma constroem a cultura, as instituições, os modos de produção mulher, estabelecendo um olhar irônico em relação aos e os textos musicais discretos). Por esta razão, a ilusão papéis definidos estereotipicamente para os gêneros. de que os textos musicais (supostamente fantasiosos Ao mesmo tempo em que desconstruía definições e irreais) são separados de uma “realidade” palpável essencialistas de homem e mulher, Janis reclamava e concreta constitui-se em uma oposição metafísica. também para o gênero feminino prerrogativas reservadas Pelo mesmo movimento, compreende-se que o papel da ao gênero masculino, abrindo a possibilidade de avanços música na construção de subjetividades não deriva de sociais e políticos concretos e significativos. Possibilidade uma consciência supostamente transcendental (o Autor), retomada, entre outras cantoras famosas e mulheres mas de uma atividade produtiva – embora, desde sempre, comuns (cantarolando em suas tarefas cotidianas), por contraditória – do coletivo anônimo. Marina Lima, explicitando o caráter social e coletivo deste poderoso mecanismo de subjetivação proporcionado pela 3 - Discursos musicais conservadores e música em sua especificidade. transgressões femininas O objetivo deste ensaio é, então, estudar de que maneira O soft rock é um gênero complementar ao “cock” rock. a cantora e compositora Marina Lima – enquanto Trata-se de um gênero baseado na sentimentalidade da discurso de um coletivo – se apropriou das convenções forma balada, tradicional no repertório anglo-saxão, (socialmente criadas) de gênero do rock, com o fim de e que se coloca – estereotipicamente – no plano do problematizar e ironizar construções de gênero na canção “feminino”. A complementaridade entre “cock” rock e soft Mesmo que seja eu (Roberto Carlos/Erasmo Carlos). rock na fabricação dos gêneros masculino e feminino Este processo é consequente da atividade produtiva se dá entre dois momentos de um mesmo homem do coletivo anônimo, como descrito anteriormente, e (agressivo/vulnerável) e de uma mesma mulher (objeto da retroage sobre os processos de subjetivação de seus agressividade masculina, e entidade maternal provedora ouvintes, realimentando o processo. de afeto e compreensão). Mas não se deve esquecer a complementaridade entre homens e mulheres a ocupar O estilo de Marina – longe de ser uma criação inteiramente posições simbióticas concretas ao longo deste eixo individual – já evidencia, por si, este mecanismo coletivo simbólico imposto pela ordem social e reproduzido pela de subjetivação descrito acima, uma vez que a cantora música. Isto é, a uma masculinidade agressiva corresponde insere-se em uma linhagem de mulheres que desafiaram uma feminilidade submissa, e assim por diante. a hegemonia masculina ao apropriarem-se de atributos simbólicos reservados aos homens. No caso em questão, Como veremos, Mesmo que seja eu, na interpretação de estilos de emissão vocal, escolha de repertório, códigos Marina, desestabiliza e torna ambíguas as convenções sartoriais e gestuais, e outras decisões socialmente dos gêneros musicais empregados. Para TODOROV (1990, marcadas em relação aos gêneros feminino e masculino. p.10), os gêneros literários encarnam as ideologias de uma Esta linhagem de mulheres transgressoras inclui, de forma sociedade, e o mesmo pode ser dito dos gêneros musicais, mais radical, Bessie Smith e Janis Joplin, entre outras. como vimos. Portanto, a sobrevivência das ideologias apóia-se em sua presença definida e entendida sem A música popular anglo-saxônica é especialmente ambiguidades no interior das produções simbólicas desta pertinente aqui, pelo fato de constituir-se no depositório sociedade. Logo, pode-se supor o que poderia acontecer musical e cultural privilegiado por Marina Lima para caso estas definições tornassem-se consistentemente

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confusas e indefinidas – em outras palavras, caso o que Na versão de Marina Lima, percebemos uma deliberada acontece, no plano particular, com Mesmo que seja eu, se ambiguidade entre os variados campos semânticos tornasse generalizado. atualizados pelas retóricas dos gêneros “cock” rock e soft rock, que é potencializada pelos significados veiculados Segundo FRITH E McROBBIE (1990, p.375-381), o soft pelo texto linguístico. Neste momento da introdução, a rock oferece três posições discursivas definidas para cantora faz sua primeira intervenção adotando o papel identificação por parte de ouvintes e performers: 1) da mulher que se oferece ao olhar de desejo masculino, a jovem solteira ou esposa que usa seus encantos e ao sussurrar com voz rouca palavras que sugerem o empatia para atrair e apoiar emocionalmente o homem encontro erótico (0:08-0:15min). No entanto, a frase vulnerável; 2) o jovem rapaz vulnerável, envolvido em dita, “é... cada um de nós precisa... precisa de um homem... seus problemas de afirmação na adolescência; e 3) a pra chamar de seu...” já provoca um certo estranhamento mulher como objeto sexual. A estes eixos temáticos no ouvinte, por perturbar a lógica convencional que rege correspondem timbres definidos, que estabelecem a a flexão de gênero do artigo indefinido em relação ao identidade musical do soft rock, assim como vimos no sujeito da enunciação. Será que a cantora está a dizer caso do “cock” rock. Para Shepherd, o som típico de uma (ao ouvinte, identificado com a posição de parceiro/ cantora identificada com a primeira posição (“woman as parceira) que todos precisamos de um homem, inclusive nurturer”, ou figura maternal) é suave e cálido, produzido os homens? Mas que definição de homem seria válida com as pregas vocais mais relaxadas; utilizando em neste caso, já que o sujeito da enunciação é uma mulher particular a câmara peitoral, produz um som rico e que se anunciará como um homem no refrão da canção, ressonante. No segundo caso, do qual um bom exemplo é ainda que através de locução conjuntiva concessiva “Yesterday”, cantada por Paul McCartney, a voz do cantor (“mesmo que seja eu...”)? é também quente e suave, em comparação com o som áspero e rígido do “cock” rock, mas aquelas qualidades Nos momentos iniciais de sua intervenção cantada são atingidas menos com a ressonância peitoral do que (0:22-0:54) Marina continua adotando a posição de com as câmaras da cabeça. O som é, portanto, leve e fino, objeto do desejo do observador, ainda que a emissão comparado com aquele obtido pela mulher enquanto vocal, em certos pontos, seja colorida pelo sarcasmo figura maternal. Analogamente, os sons da mulher-objeto (“desilusão, meu bem...”; “xi...”). Em um dado momento, a são sensivelmente mais tensos e brilhantes, e tendem a cantora adota momentaneamente as convenções vocais ressoar na cabeça (SHEPHERD, 1991, p.167-168). do “cock” rock, fazendo a transposição mulher-objeto/ macho desejante (“xi, sem ninguém!”, 0:56), retornando 4 - Mesmo que seja eu: intertextualidade em seguida à posição inicial. Seguirá nesta postura e contradição em duas interpretações sexualmente provocante até bem próximo do final da canção (3:38), quando, então, adota definitivamente o conflitantes timbre tomado ao “cock” rock, utilizando o qual repetirá Com base nestas considerações sobre detalhes várias vezes “um homem pra chamar de seu/ mesmo que musicais e suas significações convencionais em nossa seja eu”. A ironia é evidente ao nível linguístico, por tratar- cultura, passemos à análise de Mesmo que seja eu, se ela de um sujeito do gênero feminino; mas é ainda inicialmente na interpretação de Marina Lima e, em potencializada pelo timbre marcado pela agressividade seguida, comparando-a à versão de Erasmo Carlos. sexual masculina. Esta ambiguidade definida pela A intertextualidade resultante deste procedimento, voz feminina em contraste com a posição simbólica inclusive, parece ter sido proposta deliberadamente masculina é ainda complexificada pela decisão de manter pela cantora, uma vez que suas intenções críticas e o acompanhamento instrumental no gênero soft rock. irônicas se tornam mais evidentes a partir do exame Desestabilizando as convenções de gênero através de um comparativo das duas versões. Sendo largamente jogo irônico levado a efeito por meio do discurso musical, conhecida, a gravação de Erasmo Carlos para esta Marina define seu intuito crítico. Propósito que se torna canção não coloca problemas para seu reconhecimento ainda mais visível se compararmos sua interpretação e confronto para os ouvintes que entraram em contato para esta canção com a de Erasmo Carlos, o letrista de com a interpretação de Marina. Mesmo que seja eu. Aqui temos oportunidade de perceber como a performance e a execução musical – enunciação Musicalmente, uma textura extremamente leve é produzida – são suficientes para transformar os sentidos do texto na introdução por um acompanhamento monofônico em verbal (enunciado). pizzicato utilizando a fundamental e a quinta, com uma figura em ostinato que comunica um pulso energético Ouvindo agora esta outra versão, que na verdade antecedeu sutil. A esta linha melódica vem juntar-se uma outra linha cronologicamente a de Marina, podemos perceber ainda contrapontística, que utiliza um timbre de piano elétrico. mais claramente a intenção irônica da cantora, visto que O todo transmite a ideia de indefinição e expectativa, e ela interpela explicitamente a versão de Erasmo. Nesta, se adapta bem à ideia de uma atmosfera sexualizada que o cantor epitomiza o gênero soft rock. Sua voz, tímida se confirmará com as primeiras palavras emitidas pela e insegura, situa-se no extremo oposto à autoconfiança cantora, ocupando a posição de mulher-objeto. arrogante do “cock” rock, e explicita sua vulnerabilidade

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ao dirigir-se à mulher desejada. Não ouvimos aqui ironia se desculpa antecipadamente por sua insuficiência como ou sarcasmo, mas uma busca de “autenticidade”. O cantor homem, a criação de Marina impõe-se, com humor, de tem consciência de sua inadequação ao papel masculino forma inteiramente afirmativa. Em sua versão, Marina socialmente validado, e sua narrativa assume o tom praticamente exclui a cadência interrompida, que surge desencantado de quem faz uma oferta sexual que se sabe apenas duas vezes, e mesmo assim apenas no início da insatisfatória, mas que ao menos é real (uma concepção canção. Na primeira ocorrência (0:44), é resignificada por de real amparada no plano biológico, na falta de uma meio do sarcasmo (“xi...”). Na segunda (1:23), pelo uso de efetiva capacidade de empatizar com o outro, partilhar um forte tensionamento rítmico, que dominará o restante da problemas e proporcionar apoio emocional e afetivo). música. A partir daí, a cadência interrompida é substituída pela cadência perfeita. Na versão de Marina, a voz que Esta confissão de fracasso é salientada pela cadência ouvimos não é condescendente, não se condói de sua interrompida, que coincide exatamente com o eu no interlocutora e nem de si mesma, e portanto pode prescindir refrão (“mesmo que seja eu...”, 2:43). Com suas conotações dos recursos da cadência interrompida. Seu sarcasmo é de incompletude, carência, desapontamento enfim, a como um puxão de orelhas afetuoso, que subentende a cadência interrompida, coincidindo com o eu, equivale a convicção de que a interpelada tem plenas reservas para uma confissão de impotência, neste contexto. É importante reagir à desilusão e retornar à vida por si mesma. ressaltar também que a cadência interrompida ocorre em três outras situações que se referem à situação de Na boca de Marina, “mesmo que seja eu” não é confissão desamparo da mulher a quem o cantor se dirige: “sozinha de inadequação, mas constatação brincalhona de um (no silêncio do seu quarto”), “(jamais vai poder livrar você desmoronamento das categorias de “homem” e “mulher” da fera da) solidão” e “(aumen)ta o rádio”. Através deste tal como estão instituídas. Na intertextualidade construída recurso semiótico musical, estabelece-se uma relação de pelas duas versões, o homem “real” significado por Erasmo identidade entre o homem e a mulher, que é fundada na é fraco e impotente, enquanto o homem construído fraqueza, na penúria (de amor e de recursos para superar ironicamente por Marina é seguro e autoconfiante, e vê as adversidades). Este instante musical é coerente com a em sua parceira estas mesmas características. ideia geral que o cantor comunica a respeito da mulher decantada. Quando se refere às fantasias fracassadas E que homem seria este? Retornando ao início, que da interlocutora, a seus castelos, dragões e desilusões, definição de homem seria válida neste caso? Frente ao percebemos um tom claramente condoído. O sujeito fracasso e impotência do homem “real”, e à autoconfiança da enunciação se identifica com a mulher, colocada do homem incorporado pelo sujeito da enunciação também em posição de fragilidade pela frustração do interpretado por Marina, as definições convencionais próprio desejo dela. Assim, a figura feminina deixa de perdem a consistência – o que parece real deixa de sê-lo, e ter interesse como objeto sexual. Seu sofrimento – na o resultado é a instabilidade (das identidades e categorias imaginação do rapaz que canta – a tira da posição de “masculino” e “feminino”). A partir de então, é impossível objeto de desejo, e ela passa a ocupar na psique dele o para nós deixarmos de associar estas ideias transgressoras lugar de uma entidade maternal, capaz de proporcionar ao discurso musical instituído, o que introduz uma fissura compreensão e aceitação de suas fraquezas, de sua na rigidez semiótica do gênero musical. Participando da inadequação. Deve-se notar que, em ambas as posições, produção de novas subjetividades, este discurso encontra a mulher não é sentida ou experienciada como parceira. sua expressão mais ampla na reestruturação da ordem social. Contribuindo para desestabilizar o discurso Entendemos, agora, com mais sutileza a interpretação identitário desde sua fundação – a ordem simbólica de Marina. Com sua ironia e sarcasmo, a cantora coloca – através da subversão do discurso musical, o discurso o “real” em questão. Enquanto a persona construída por social de muitas mulheres que antecederam Marina Lima Erasmo se apresenta como um candidato ao amor que, e é retomado por ela faz a crônica de tempos diferentes e mesmo usufruindo de uma condição biológica masculina, inscreve sua fala no diálogo com o Mesmo.

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Álvaro Simões Corrêa Neder é etno/musicólogo e professor da graduação e pós-graduação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ). Possui Doutorado em Música, pela UNIRIO (2012), e Doutorado Multidisciplinar em Letras (Literatura Brasileira, Linguagem e Teoria da Literatura) pela PUC-Rio (2007). Foi Teacher Assistant na Universidade Brown durante parte de seu estágio de doutoramento nesta universidade, ministrando o curso Introduction to Ethnomusicology. Publicou o livro Creativity in Education: Can Schools Learn with the Jazz Experience? (WCP, EUA, 2002). Sua tese de doutorado sobre a MPB dos anos 60 foi selecionada pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio para representar o programa no Grande Prêmio Nacional Capes de Teses de Doutorado 2008. Como crítico musical, publicou textos para vários livros de referência lançados nos EUA e acima de 2.300 artigos na imprensa norte-americana. Desde 1980 atua como professor de música, músico e produtor musical, tendo sido membro da Old Time String Band, coordenada pelo etnomusicólogo Jeff Titon.

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“Pelo telefone mandaram avisar que se questione essa tal história onde mulher não tá”: a atuação de mulheres musicistas na constituição do samba da Pequena África do Rio de Janeiro no início do século XX

Rodrigo Cantos Savelli Gomes (UDESC, Florianópolis-SC) [email protected]

Resumo: Esta investigação lança-se sobre o samba da Pequena África do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX de modo a analisar a atuação das mulheres na região que ficou conhecida como o berço do samba. A partir disso, identifiquei que as Tias Baianas da Pequena África foram mulheres atuantes e influentes no meio musical de sua época, compositoras, instrumentistas, cantoras, agentes transformadoras em um território tido como essencialmente masculino, como é o caso de Ciata, Perciliana, Carmem do Ximbuca, Maria Adamastor, Amélia Aragão, Mariquita, entre outras. Trata-se de um mundo musical feminino desvalorizado, obscurecido por uma construção histórica criada pelas classes superiores, focada nos grandes personagens, nos grandes eventos supostamente mais importantes, no domínio da vida pública, na tradição escrita, com escassos ou mesmo nenhum interesse na face doméstica, na tradição oral, no conhecimento das mulheres.

Palavras-chave: mulheres negras no samba; história do samba; Tias Baianas; relações de gênero na música.

“They said over the phone to question this story where women are not present”: the role of women musicians in Rio de Janeiro’s samba in early twentieth century

Abstract: This research investigates the samba in Pequena África do Rio de Janeiro during the first decades of the 20th century in order to analyze the role of women in the process its formation. From this, I identified that the Tias Baianas from Pequena África were active and influential women in the music of their time, composers, instrument players, singers, people who shaped a territory considered essentially masculine, such as Ciata, Perciliana, Carmem do Ximbuca, Maria Adamastor, Amélia Aragão, Mariquita, etc. This is a musical world where women were devalued, obscured by a historical construct created by the upper classes, focused on the big men, on the major events in the supposedly more important field of public life and the written tradition, with no interest in the domestic face, in the oral tradition, and in the knowledge of women.

Keywords: black women in samba; history of samba; Tias Baianas; gender relations in Brazilian music..

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 19/08/2012 - Aprovado em: 04/01/2013 176 GOMES, R. C. S. “Pelo telefone mandaram avisar que se questione. . .” Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.176-191.

1 – Introdução termos como forte, normal e objetivo, enquanto que o A partir da perspectiva dos Estudos de Gênero e da fraco, anormal, subjetivo, irregular, fora do comum, o desvio da regra, o instável, aparece frequentemente Musicologia, este estudo1 tem como objetivo investigar associado ao feminino. Essas propriedades aparecem em como se estabeleceram as relações de gênero no samba estruturas como cadências, temas, terminações, seções da cidade do Rio de Janeiro nas três primeiras décadas musicais, conforme revela MCCLARY(1991) em seu livro do século XX, período inicial de sua consolidação como Feminine Endings. símbolo nacional. Com o propósito de questionar a visão ocidental sobre a natureza das construções de gênero que identificam a sexualidade masculina como lócus de A partir dos pressupostos teórico-metodológicos poder, apresento uma revisão sobre a importância da levantados por McClary para o estudo das mulheres na 4 atuação das mulheres, bem como a produção de símbolos música , apresentarei a seguir uma revisão da bibliografia e marcas da face feminina que constituíram o complexo especializada do samba, buscando notas de rodapé, anexos mundo do samba carioca deste período. Sustento que, e temas paralelos a história marginal das mulheres e as apesar do imenso interesse no samba enquanto expressão representações do feminino no samba carioca das primeiras cultural brasileira, grande parte dos estudos subestimou décadas século XX. O fato de haver um limitado conjunto a importância da produção musical das mulheres e dos de informações na bibliografia a respeito das mulheres elementos femininos constituintes desta manifestação. e sua participação no samba, implicou que eu buscasse complementá-lo com a realização pequenas imersões na Assim como os cânones da música europeia foram cidade do Rio de Janeiro entre 2009 e 2010, onde pude buscar consolidados a partir do ponto de vista da masculinidade, informações em instituições como Museu da Imagem e do privilegiando a figura do homem e do universo masculino Som, Biblioteca Nacional, Centro Cultural , Cidade em detrimento da mulher e do feminino (McClary, do Samba, Centro Cultural da Escola de Samba Estação 1991; Mello, 2007; Williams, 2007), o imaginário que Primeira da Mangueira. Além disso, neste período tive a vem sendo construído a respeito da história do samba oportunidade de realizar entrevistas não-estruturadas com e, consequentente, de grande parte da música popular algumas mulheres influentes do mundo do samba carioca 5 6 7 8 brasileira, vem seguindo um processo semelhante. Trata-se como Vó Maria , Tia Surica , Áurea , Dona Neném , Maria 9 10 de uma narrativa cujo protagonismo está hierarquizado na Moura além de conversas informais com Lygia Santos , 11 12 figura dos compositores – em sua imensa maioria homens – e Jurema Werneck , Nilcemar Nogueira . Tal imersão se suas obras musicais registradas em partituras ou gravações, aplicou no sentido de buscar uma complementação e cuja estrutura seletiva está edificada pelos padrões estéticos não de realizar uma etnografia, de modo que o trabalho estabelecidos pela alta cultura através da categorização mantém a característica de se apresentar como um estudo ‘arte’2. Nesta narrativa, assume segundo plano a produção de revisão histórico-bibliográfica. dos cantores-intérpretes, e terceiro ou nenhum plano a produção dos arranjadores, regentes, instrumentistas, a Apresento a seguir um exame das relações de gênero no audiência, a música de tradição oral, a música fora dos samba carioca tendo como recorte a região que ficou padrões consagrados, fora dos grandes centros urbanos e, conhecida como “Pequena África do Rio de Janeiro”14. conforme apresento aqui, a produção musical feminina. Na Com este recorte, mostrarei que as relações de gênero narrativa dos compositores e suas obras primas, as mulheres neste contexto – assim como em outros territórios só começam a ganhar algum destaque no samba a partir hegemonicamente afro-brasileiros – se configuravam de da década de 70, quando são apresentadas Clementina uma forma diferente daquela estabelecida pela tradição de Jesus e Ivone Lara, mais de 50 anos após a gravação e centro-europeia (incorporada pela alta sociedade ampla divulgação da música Pelo Telefone3, considerada brasileira) e que tal especificidade pode ter exercido o marco inicial desta resignificação simbólica ao exigir a uma influência significativa na produção musical deste incorporação da função-autor no universo do samba. contexto. Para isso, tomarei como referência alguns estudos que se aprofundaram nos fundamentos religiosos No tocante aos estudos musicológicos, durante muito e culturais das tradições afro-brasileiras como THEODORO tempo a musicologia trabalhou no sentido de reforçar o (1996 e 2008), LANDES (2002), SANTOS (2006), AMARAL paradigma da masculinidade, edificando-se, para isso, em (2007), MATOS (2007) que apontam para a possibilidade determinados personagens mitológicos masculinos (Bach, de tais territórios serem regidos por uma espécie de Mozart, Beethoven, Brahms, Stravinsky, Chopin, etc.) e matriarcado. Neste sentido, argumentarei que tal produção um determinado conceito de obra arte, de obra musical, musical era constituída por uma expressiva participação de estética, de beleza, cuja ênfase está na dimensão feminina, e que este samba era menos fragmentado em racional, na objetividade, na seriedade, propriedades relação aos papéis de gênero. A ideia do samba como um frequentemente associadas ao gênero masculino. Neste território masculino e de produção de masculinidades, contexto da música clássica e da musicologia, alguns como a literatura a cerca da música popular brasileira estudos no campo das relações de gênero e da musicologia sugere, seria, portanto, uma construção posterior que tem feminista (McClary, 1991; Mello, 2007; Williams, mais haver com a invenção do samba como produto de 2007) têm demonstrado, por exemplo, elementos da teoria uma identidade nacional/brasileiro do que com o samba musical tradicional onde o masculino está adjetivado em enquanto expressão cultural afro-brasileira.

177 GOMES, R. C. S. “Pelo telefone mandaram avisar que se questione. . .” Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.176-191.

Ex.1 – Fotos de algumas das mulheres contatadas para esta pesquisa. Da esquerda para a direita, linha de cima: Dona Neném, Áurea, Maria Moura, Jurema Werneck. Linha de baixo: Nilcemar Nogueira, Vó Maria, Tia Surica.

2 – Uma Pequena África que dá samba contexto o meio principal onde o samba teria encontrado A maioria dos estudos culturais sobre o Rio de Janeiro um terreno propício para seu desenvolvimento enquanto das primeiras décadas do século XX aponta a região que gênero musical e prática sócio-cultural, culminando na ficou conhecida como “Pequena África” como a principal sua posterior projeção como gênero musical característico matriz na formação de uma cultura popular urbana no da cultura brasileira, símbolo da identidade nacional, Rio de Janeiro entre o fim do século XIX e início XX. conforme aponto nos trechos abaixo: Trata-se de um território que, no período em questão, foi ocupado majoritariamente por afro-brasileiros, entre O samba desenvolveu-se no Rio de Janeiro a partir de redutos negros (os baianos do bairro da Saúde e da Praça Onze), como eles, migrantes de diversas partes do Brasil. Habitaram já foi acentuado. Nas festas familiares, tocava-se e dançava-se o principalmente as regiões da Pedra do Sal e Saúde, samba em seus diversos estilos, para o divertimento dos presentes localidade situada perto do cais do porto. Em seguida, (SODRÉ, 1998, p. 35). este território se estendeu para as ruas da Cidade Nova Foi nessa região “reterritorializada” do Rio de Janeiro, área periférica e Campo de Santana, como as ruas Visconde de Itaúna habitada por excluídos, ex-escravos, judeus de várias partes do e Senador Eusébio, Santana e Marquês do Pombal, mundo, enfim toda sorte de pessoas que não participava da vida convergindo na Praça Onze de Junho e, mais tarde um social da nossa capital, que o samba emergiu. [...] Nesta periferia pouco, indo para os morros em torno do Centro. Neste se reuniam os futuros bambas: Ciata, Hilário Jovino [...], João da Baiana, Sinhô, Heitor dos Prazeres e , nomes que ecoam até contexto, um determinado grupo de migrantes baianos se hoje nos redutos do samba. Foram eles que fizeram de uma atividade tornou um dos principais protagonistas desta narrativa. quase marginal uma expressão de arte (M. MOURA, 2004, p. 58).

A concentração em torno destes baianos tomou uma O cenário dessa epopeia foi a cidade do Rio de Janeiro, e os atores principais deixaram seus nomes gravados: Donga, Sinhô, dimensão ainda maior a partir da publicação, em 1983, Pixinguinha, [baianos ou filhos das Tias Baianas]. Foram do livro de Roberto Moura, Tia Ciata e a Pequena África do eles os responsáveis pela construção do samba (CALDEIRA, 2007). Rio de Janeiro. O trabalho de MOURA foi um dos primeiros a situar a trajetória do grupo baiano em seu processo [...] fase pioneira da criação do gênero no Rio de Janeiro, no início do século XX, com o grupo de imigrados baianos cuja representante histórico e social, tornando-se um clássico e referência mais ilustre foi a famosa Tia Ciata. Essa fase pioneira se consolida obrigatória nos estudos sobre cultura popular brasileira. no ano de 1917, que foi o ano do lançamento de Pelo telefone, Seguindo esta tendência, a maioria dos pesquisadores considerado por todos como o marco inicial do gênero. É a partir que contribuíram para a construção histórica do samba de então que a palavra “samba” entra no vocabulário da música popular (SANDRONI, 2001, p. 15). (SODRÉ, 1998; SANDRONI, 2001; PEREIRA, 2003; M. MOURA, 2004; CUNHA, 2004; DINIZ, 2006; CALDEIRA, Os compositores pioneiros do samba [...] vivenciaram e 2007; VIANNA, 2007) passou também a atribuir a este construíram todo um legado cultural que a Cidade Nova

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simbolizou no universo carioca. Frequentaram, sem exceções, a mulher as partilhava com os homens. Era assim nas complexas as casas das famosas baianas festeiras, espaço de acolhida sociedades da África Ocidental de onde veio, ou descendia, grande material, espiritual e cultural importantíssimos para a história parte da população escrava (LANDES, 2002, p. 349). cultural negra e do samba (DINIZ, 2006, p. 27). Entretanto, tem prevalecido na academia (VELOSO, 1990; Atualmente, essa centralidade em torno dos baianos AMARAL, 2007; LANDES, 2002; HITA, 2004, WOORTMANN, vem sendo revista por alguns estudiosos que passaram 1987) a ideia que, sob a escravidão, o homem negro a sugerir outras visões e experiências na formação deste experimentou a segregação familiar, a violência, o repertório cultural tão importante para a constituição da excesso de trabalho e humilhações mais profundamente identidade nacional. Para citar alguns: MUKUNA (2006) do que as mulheres negras. A desvalorização da posição que apresenta um estudo sobre a influência dos escravos e oportunidades para o homem negro teria sido de etnia banto para música popular brasileira; CUNHA compensada pela intimidade que a mulher tinha com (2001), que destaca as diferentes práticas carnavalescas a casa grande, principalmente em função do trabalho das populações pobres e das camadas altas do Rio de doméstico desempenhado por elas, sempre essencial para Janeiro, revelando suas contribuições na formação subsistência da família dos senhores. do carnaval brasileiro; GOMES (2003), que revela a importância de outros territórios culturais no processo de Mesmo décadas após a abolição, essa relação desigual formação do samba, como as regiões situadas em torno permaneceu no mundo afro-brasileiro. A mulher negra da , Mangueira e Império Serrano. rapidamente conseguiu se armar “em torno da infra- estrutura das casas ‘de família’, senhoriais e burguesas, Ciente desta lacuna, o presente estudo manterá o foco como cozinheiras, lavadeiras, copeiras ou em qualquer no núcleo baiano da Pequena África do Rio de Janeiro, outro serviço eventual requisitado” (MOURA, 1995, p. procurando, quando possível, contrapor com dados de 72-73), tornando-se a principal provedora de sustento outros contextos culturais e geográficos. Se a contribuição financeiro e referência familiar conforme argumentam feminina nas práticas musicais desta região é pouco VELOSO (1990), AMARAL (2007) e LANDES (2002).De fato, valorizada, apesar da literatura ter sido amplamente direcionada para esta realidade, que dirá em contextos [...] a mulher negra exercia, inclusive, uma importante influência ainda pouco explorados. Este estudo não pretende dar modernizadora na cultura brasileira, já que por tradição herdada conta desta problemática, por isso, a partir de agora dos costumes africanos e por contingências da escravidão vou me concentrar em alguns aspectos das relações de e do período pós Abolição, eram economicamente ativas e independentes. Eram mulheres que tomavam suas próprias gênero no contexto da Pequena África do Rio de Janeiro, decisões, o que lhes era possível porque para viverem contavam em especial, as conexões entre o sagrado e o profano em com seu próprio trabalho, geralmente como cozinheiras, torno das práticas musicais ali estabelecidas. lavadeiras, costureiras, amas-de-leite, amas-secas, vendedoras de acarajé, quindins, canjica e outros quitutes, criadas, padeiras, quitandeiras etc. Esta liberdade e independência ecoavam em 3 – Tias Baianas que lavam, cozinham, sua autoridade no candomblé (e vice-versa), oferecendo o contraponto matriarcal ao desabrido domínio dos homens em batucam, dançam, cantam, tocam e compõem toda a vida nacional e latina da época (AMARAL, 2007). Estudos sobre religiosidade têm demonstrado que em diversos territórios majoritariamente por afro- Desse modo, revela-se em muitas camadas populares brasileiros a mulher negra costuma possuir um elevado afro-brasileiras uma espécie de matriarcado que status social, (THEODORO, 1996; LANDES, 2002; não reproduz nem o modelo africano nem, muito SANTOS, 2006; MATOS, 2007). Nestes contextos – como menos, o modelo patriarcal de família importado dos é o caso também da Pequena África do Rio de Janeiro colonizadores europeus. – não se sustenta o modelo burguês de família que delega à mulher o espaço do lar, a criação dos filhos e A ideia de matriarcalidade15 que aplico ao contexto a submissão, e ao homem o trabalho, a subsistência da da “Pequena África do Rio de Janeiro” refere-se a um família e o controle sob a terra e os bens. Inúmeras razões conjunto de relações, amizade, parentesco sanguíneo, costumam ser apontadas no processo de consolidação parentesco religioso (pai, mãe e irmãos de santo) que deste diferencial da mulher negra. está centralizado na figura de uma matriarca Tia- mãe-avó, que é o centro das interações de uma rede a Alguns autores, especialmente não acadêmicos, referem- partir da qual se multiplicam as relações entre todos se a uma herança cultural que teria sido trazida das terras os outros membros. Nesta configuração, o papel das africanas e preservada em solo brasileiro pelos escravos e Tias Baianas foi imprescindível para a sobrevivência seus descendentes. Embora na maioria das etnias da África do grupo, tendo se tornado a figura central para Negra a posição da mulher seja inferior à dos homens, a permanência das tradições afro-brasileiras. Sua condição lhe concedeu situação econômica Por toda a África à mulher se deram tradicionalmente grandes privilegiada, a posição central na casa, na comunidade oportunidades (como propriedade e controle de hortas e pomares, mercados, negócios domésticos, sociedades secretas) e e nas práticas religiosas, de modo que nos terreiros reconhecimento oficial (de sacerdotisa e médium, os paços de rainha ou eram mães-de-santo (principal chefe espiritual) ou e outras entidades que tratam de interesses femininos); por vezes ocupavam os principais cargos subsequentes.

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Estudos sobre o samba do início do século XX costumam fazer inúmeras referências às Tias Baianas, especialmente mulheres como Tia Ciata, Tia Carmem, Tia Amélia, Tia Perciliana. Essas baianas estão entre personalidades consideradas mais importantes das camadas populares na virada do século XX na cidade do Rio de Janeiro, frequentemente proclamadas como ‘matriarcas do samba’, tidas como influentes e poderosas. No entanto, apesar da influência destas mulheres no campo político e religioso, raras indicações são encontradas referentes à presença delas no cenário musical. Apesar do explicito reconhecimento da importância das Tias Baianas na literatura e do alto status que a mulher negra exercia no meio afro-brasileiro, quando o assunto é a prática musical as mulheres deixam a cena. Há certo consenso, um imaginário construído do samba carioca no início do século XX que coloca as Tias Baianas como as responsáveis por gerar a estrutura propícia para o rito, protegendo, abrigando, mantendo a comida e a bebida, enquanto que o fazer musical é assumido pelos homens. Quando a roda se forma, as mulheres são mencionadas na dança e, quando muito, constituindo o coro e as palmas. Revelam-se, então, inúmeras personalidades masculinas, como Donga, Sinhô, João da Baiana, Pixinguinha, Hilário Jovino, Heitor dos Prazeres, Germano, Caninha, Almirante, Ex.2 – Imagem das Tias Baianas Baiano. Alguns destes inclusive proclamados ‘Rei do 16 Samba’ como Sinhô, ‘Imperador do Samba’ como Caninha do início do século XX ou ‘criador do samba’ no caso do Donga.

Do Grêmio Fala Gente recebemos a seguinte nota: Será cantado Apesar de muitos pesquisadores do samba e do carnaval domingo, na Avenida Rio Branco, o verdadeiro tango Pelo Telefone, brasileiro citarem a influência das Tias Baianas, essa dos inspirados carnavalescos, o imortal João da Mata, o maestro menção é feita de um modo genérico. Não há um Germano, a nossa velha amiguinha Ciata e o inesquecível e bom aprofundamento sobre quem eram essas mulheres. Hilário; arranjado exclusivamente pelo bom e querido pianista J. Silva (Sinhô), dedicado ao bom e lembrado amigo Mauro, repórter Geralmente seus nomes aparecem nas páginas de Rua, (falecido) em 6 de agosto de 1916, dando ele o nome de introdutórias ou em associação aos grandes homens Roceiro (JORNAL DO BRASIL citado por MOURA, 1995, p.124). sambistas (mães ou esposas). Apenas uma delas, a Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida), foi posta realmente em Além da nota de jornal, a própria letra desta versão destaque, fato que a tornou o modelo central ou a figura parodiada da música Pelo Telefone sugere a participação mais representativa das baianas desta época (GOMES, efetiva de Ciata nesta composição. 2003). Por essas razões e, por falta de acurada investigação sobre as demais baianas, há uma significativa quantidade Pelo telefone / A minha boa gente / Mandou avisar / de informações a respeito das práticas afro-brasileiras na Que o meu bom arranjo / Era oferecido / Pra se cantar. Ai, ai, ai, / Leve a mão na consciência, / Meu bem, / casa de Tia Ciata, sobre sua vida social e política, sobre Ai, ai, ai, / Mas porque tanta presença, / Meu bem? sua família, suas origens e seus costumes. Portanto, é Ó que caradura / De dizer nas rodas / Que esse arranjo é teu! / sobre ela que primeiro investirei a fim de trazer algumas É do bom Hilário / E da velha Ciata / Que o Sinhô escreveu. evidências a respeito de sua imersão no cenário musical. Tomara que tu apanhes / Para não tornar afazer isso, / Escrever o que é dos outros / Sem olhar o compromisso.

4 – Pelo telefone uma mulher mandou avisar A polêmica em relação à autoria deste samba e se é mesmo A famosa polêmica gerada por causa da gravação da o primeiro samba ou não a ter sido gravado, são temas música Pelo Telefone – proclamada como primeiro samba que despertaram grande interesse nos estudos que tratam a ser gravado no país, registrado com a autoria de Donga da música popular brasileira deste período. No entanto, e Mauro de Almeida – sugere que Tia Ciata teria sido uma a presença de uma Tia Baiana reclamando a autoria da baiana que se dedicava também à composição, apesar música junto a sambistas consagrados foi pouco valorizada. de nunca ter sido assim nomeada em suas biografias e escritos sobre a história do samba. Assim que lançada, Notas de Mário de Andrade – que, segundo relatos, no ano de 1917, Ciata, João da Mata, Germano e Hilário, frequentou a Casa de Tia Ciata – podem reforçar essa reclamaram a autoria deste samba, fato divulgado aproximação de Ciata com a música. Embora o foco de discretamente num canto de página do Jornal do Brasil seu relato fosse descrever os rituais de Macumba no Rio em 4 de fevereiro de 1917, por meio da seguinte nota: de Janeiro, Andrade refere-se casualmente à Tia Ciata

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como uma exímia compositora. Inclusive, introduz outra Assim com muitos elementos do samba se originaram façanha da velha baiana: a intimidade com violão. das práticas religiosas afro-brasileiras – sobre isso aprofundarei mais adiante ao comentar o sobre o papel Uma das mais recentes mães-de-santo (pois que podem também da mulher na percussão – é possível que seja a partir do ser mulheres) famosas foi tia Ciatha, mulher também turuna na música dizem. Passava os dias de violão no colo inventando terreiro que o coro feminino se propagou para o samba. melodias maxixadas e falam mesmo as más línguas que muito Embora nas práticas religiosas do terreiro o canto não maxixe que correu Brasil com nome de outros compositores seja privilégio de nenhum dos sexos (AMARAL e SILVA, negros era dela apropriações mais ou menos descaradas 2008), a voz feminina, por ser em maior número e entoada (ANDRADE, 2006, p. 150). em um registro mais agudo, se sobrepõe facilmente à No seu principal romance, Macunaíma, o herói sem dos homens, de modo que o que se ouve durante todo o caráter, Mario de Andrade retrata uma visita que sua ritual é praticamente um coral de mulheres. personagem-título faz a casa de Tia Ciata para participar de uma cerimônia de macumba. Na descrição, reforça Eram as Tias Baianas, mães e filhas-de-santo, que a façanha de Ciata ao violão e, novamente, acrescenta constituíam a base vocal nos ranchos cariocas das outro feito: sua cantoria. primeiras décadas do século XX. Entre as mais conhecidas, Maria Adamastor17, rainha dos diretores de rancho, Era junho e o tempo estava inteiramente frio. A macumba se assumiu a responsabilidade de pastora do Reinado de rezava lá no Mangue do zungu da Tia Ciata, feiticeira como não Siva e, além de pastora, neste mesmo rancho se destacou havia outra, mãe-de-santo famanada e cantadeira ao violão. como mestre-sala. Amélia do Aragão18, conhecida como Às vinte horas Macunaíma chegou [...] foi de quatro saudar a candomblezeira imóvel sentada na tripeça, não falando um isto. uma das mais importantes figuras do mundo do samba Tia Ciata era uma negra velha com um século no sofrimento, já que atuavam na Cidade Nova, cantadeira de modinhas. vovó e galguincha com a cabeleira branca esparramada feito luz Tia Carmem19,mulher que viveu toda sua vida engajada no em torno da cabeça pequetita (ANDRADE, 2004, p. 07). carnaval carioca, segundo contam, “não cantou no rádio porque não quis,convites não faltaram” (COSTA citado Carmem do Ximbuca, contemporânea e irmã-de-santo por SILVA, 2009, p. 18). de Ciata, em depoimento a Roberto Moura reafirma o imponente canto da baiana, versando e improvisando nas Nos desfiles dos ranchos carnavalescos e até o período rodas de samba de sua casa. Segundo ela, Tia Ciata inicial de formação das primeiras escolas de samba, as [...] levava meia hora fazendo miudinho na roda. Partideira, pastoras cantavam a primeira parte e a segunda ficava cantava com autoridade, respondendo os refrões nas festas que se a cargo dos chamados versadores ou mestre do canto desdobravam por dias, alguns participantes saindo para o trabalho que, na maioria das vezes, lançavam mão de versos e voltando, Ciata cuidando para que as panelas fossem sempre requentadas, para que o samba nunca morresse (CARMEM citado improvisados, uma prática comum no samba deste por MOURA,1995, p. 100). período. Duas partes, portanto, eram perfeitamente distinguíveis “a primeira de caráter coral, destinadas As evidências apontam que Tia Ciata além de cozinheira, às pastoras, e a segunda de caráter solista, destinada a dançarina e uma boa festeira, foi uma mulher atuante e um cantor de sexo masculino” (DOSSIÊ DAS MATRIZES influente no meio musical de sua época. Mais adiante, vou DO SAMBA NO RIO DE JANEIRO, 2006, p. 40). Não se mostrar indícios que sugerem que Ciata não era um caso tinha por costume cantar uma única música como hoje isolado entre as mulheres. Contudo, é preciso ressaltar que, fazem as escolas de samba, várias melodias podiam se sobre Ciata – a baiana mais famosa – as informações ser puxadas, por vezes, uma verdadeira miscelânea de foram encontradas com certa dificuldade, sobre as demais sambas. Na medida em que os ranchos foram crescendo, Tias Baianas, vão ficando cada vez mais escassas. as vozes das pastoras e dos versadores não podiam mais ser ouvidas por todos os integrantes durante todo o 5 – Pastoras que sustentam o samba percurso do desfile, o que fazia com que, por vezes, parte do grupo mais próxima ao palanque estivesse cantando Antes de continuar apresentando as mulheres musicistas uma parte, enquanto que a turma da frente ou de trás da ‘Pequena África’, quero abrir um parêntese para estivesse cantando outro verso. Com isso, a possibilidade comentar a respeito de um dos papéis desempenhados de cruzamentos (ou sobreposições) rítmicos, melódicos pelas mulheres no samba do final do século XIX e início do e de outras espécies era constante nestes desfiles. XX, uma ocupação fundamentalmente feminina. Trata-se Assim que a tecnologia permitiu, as escolas passaram a de um coro feminino, chamado no contexto do samba por trazer um carro de som para amplificar as vozes. Porém, ‘pastoras’, responsável por cantar a melodia em diversas neste processo, as pastoras perderam o destaque como práticas musicais afro-brasileiras. As pastoras ganharam condutoras principais. Desde 1946 destaque principalmente no samba de quadra e nos desfiles dos ranchos carnavalescos. A partir da década de a presença de versos improvisados foi oficialmente proibida nos 1960, este coro passou a integrar as Escolas de Samba, desfiles. Mas é provável que o processo tenha sido paulatino, e que algumas escolas já tivessem, antes desta data, introduzido onde manteve a designação ‘pastoras’, porém com uma o hábito de desfilar com as segundas partes previamente mudança significativa em relação à função e hierarquia, compostas (DOSSIÊ DAS MATRIZES DO SAMBA NO RIO DE conforme argumento logo a seguir. JANEIRO, 2006, p. 37).

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A responsabilidade de manter, sustentar o samba na Mocidade Independente. Também merece lembrar que avenida passou a se concentrar na figura de um homem, Ivone Lara cantou pela Escola Império Serrano em 1961, o solista, chamado de intérprete oficial, ou popularmente conforme ela mesma relata em seu depoimento ao MIS em por “puxador”, embora sempre acompanhado de um 1978.21Entretanto, estas participações foram esporádicas grupo de apoio com mais quatro a seis homens. As e o que se percebe é que mesmo as participações casuais pastoras passaram então para um plano secundário. de mulheres têm sido menos frequentes deste então nesta Um grupo bem mais reduzido de mulheres, de três a posição. Se há alguma razão biológica para esta inversão seis (não mais 30 ou 40 como antes) passou a fazer um de papéis, ela precisa de uma fundamentação mais contracanto ou dobrar a voz do solista em alguns trechos consistente, pois parece contraditório o fato das mulheres selecionados, com a finalidade de dar um apoio ao cantor terem sido designadas a conduzir o canto principal antes principal ou abrilhantar algumas passagens do samba- dos avanços tecnológicos, justamente quando a potência enredo. O termo “pastoras” se manteve, mas a função e o e resistência da voz eram fundamentais. A amplificação status da mulher cantora nas Escolas de Samba sofreram elétrica promoveu justamente o contrário, ou seja, notável transformação. De fundamentais passaram a que vozes antes consideradas inadequadas por serem figuras dispensáveis e opcionais. A partir de então foram potencialmente fracas para a prática musical tornassem raros os casos de mulheres como “puxadoras” de samba, viáveis, como foi o caso da bossa-nova, onde os artistas fazendo com que esta posição se tornasse essencialmente podem cantar sussurrando. É possível que a voz feminina masculina.Algumas razões costumam ser levantadas para fosse considerada a ideal antes da amplificação elétrica justificar essa inversão dos papéis de gênero. devido a esta soar uma oitava acima. Por ser mais aguda é mais facilmente perceptível ao ouvido humano, que tem Em primeiro lugar, as mulheres teriam menor resistência mais facilidade em reconhecer as frequências agudas do vocal para aguentar os quase 90 minutos de desfile, enquanto que as graves quando próximo à fonte sonora, embora o que a voz masculina teria maior peso e força. Pude verificar som grave se propague a distâncias maiores. a atribuição de força e potência à voz masculina – portanto, ideal para conduzir o canto nos desfiles da avenida – em um É mais provável que decisões estético-ideológicas estudo anterior sobre o samba na cidade de Florianópolis tenham pesado mais nesta configuração. Conforme dito (ver: GOMES e PIDEDADE, 2010). As pastoras da escola de anteriormente, o samba do início do século XX estava samba entrevistadas para aquele trabalho afirmaram que os muito próximo às práticas do terreiro, uma aproximação homens subestimavam as vozes femininas para, com isso, indesejável na construção de um samba que se pretendia garantir sua posição de destaque. Segundo elas: símbolo nacional para os ideais da época. Nos terreiros, as vozes femininas tomavam (e tomam) maior destaque que eles acham que a gente não é capaz de cantar um samba inteiro as masculinas de modo que ao entrar num destes centros na avenida pra ajudar. Eles dizem que nossa voz não tem peso praticamente o que se ouve é um coro feminino. Tal igual à de um homem (GOMES E PIEDADE, 2010, p. 09); Falam que a mulher tem voz aguda, não pode puxar samba-enredo, que característica se manteve no samba por um bom período. é homem que tem que puxar. A gente não canta todas as partes Monarco da Portela, conta que em sua época de auge do samba-enredo. Eles acham que a gente não tem voz pra isso (GOMES E PIEDADE, 2010, p. 09). As pastoras é que mandavam. Se elas não cantassem não acontecia nada, não adianta. A gente cantava um samba lá, se Na mesma direção, Tia Surica, pastora da Escola de elas não quisessem cantar, não adiantava porque a voz feminina é Samba Portela do Rio de Janeiro, em depoimento para que é o grupo, né?! Ficava uma porção de homem cantando, não tinha graça. [...] Se elas gostassem, elas se animavam e cantavam, esta pesquisa, apontou o processo de aceleração do e aquilo ia, depois tornava-se um sucesso no terreiro por causa samba-enredo como fator principal para a hegemonia delas (MONARCO DA PORTELA citado por VELHA GUARDA DA masculina na posição de puxadores. Ela conta que PORTELA EM “O MISTÉRIO DO SAMBA”, 2008).22 puxou o único samba-enredo feito por para a Portela, intitulado Memórias de um sargento de Áurea, pastora da velha-guarda da Portela, em entrevista milícias,ano que a escola foi campeã do carnaval. Ao para esta pesquisa, confirma essa versão: comentar sobre mulheres cantoras de samba-enredo, ela declarou que Antigamente, quando os ensaios eram mais voltados para ensaiar o samba de quadra, então tinha que ter as pastoras. Até a formação era diferente, era um círculo. As mulheres ficavam no círculo ali naquela época havia mais porque o samba era cadenciado, não rodando, cantando o samba, evoluindo, mas sempre no círculo. era essa correria que é agora. Então você tinha aquele potencial Quando lançavam o samba na quadra, tinha que ter as mulheres para cantar um samba-enredo na avenida. Hoje em dia não. E não pra fortalecer o samba, até pra influenciar na escolha, porque tinha cronometragem. Agora não, são 80 minutos, e mulher não samba que elas não gostavam, elas não cantavam. O samba não tem mais fôlego pra puxar um samba na avenida. O samba agora ia pra frente, elas boicotavam mesmo. [...] Papai tinha um fã clube é corrido. Eu sou uma que não tenho mais condições, já deu o que [...] aí elas passavam: ‘só canto samba de Manacéa’. [...] Agora não eu tinha que dar (TIA SURICA).20 tem mais, é impossível uma escola que recebe 2.000 pessoas fazer isso. [...] Hoje acabou isso, nos ensaios não tem mais pastoras, Em seguida, Surica menciona algumas mulheres que porque o ensaio agora é voltado para a multidão (ÁUREA).23 cantaram samba-enredo pelas escolas de samba mais ou menos no mesmo período que ela, como Tacira pela O que se percebe nestes depoimentos é que, à medida que Portela, Silvana pela Império Serrano, Elza Soares pela o samba vai se afastando do terreiro e se encaminha para o

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Ex.3 – Foto das Pastoras da Velha-Guarda da Portela em 06 de Setembro de 2008, Madureira, Rio de Janeiro. Da esquerda para direita: Tia Surica, Áurea Maria, Tia Doca, Neide. Fotografia: Priscilla Guerra. Copyright © Todos os direitos reservados.24

palco ou avenidas, o coro feminino vai perdendo seu lugar possível notar que a justificativa da incompatibilidade da enquanto elemento fundamental para o samba acontecer. voz feminina com a tecnologia disponível da época vem ganhando seu lugar nos estudos sobre a música popular Em segundo lugar, uma crença – que iniciou com a era brasileira, em especial aqueles que tratam das mulheres mecânica de gravação e que se estendeu por parte da fase na música como, por exemplo, em WERNECK (2007) e elétrica – que a voz feminina, por ser mais aguda, não era SOUZA (2006), conforme os trechos abaixo: bem captada pelos microfones e equipamentos de som, o que a tornava estridente e desagradável aos ouvintes. Segundo O número reduzido de mulheres que produziram gravações a esta CARDOSO FILHO (2007), muitos trabalhos sobre a produção época poderia estar vinculado às limitações da tecnologia aplicada para o caso da gravação de vozes. Enquanto esteve limitada ao de músicas populares em estúdio “afirmam que a ausência registro de músicas instrumentais, foi possível para Chiquinha feminina ocorria, entre fatores de cunho sociocultural, Gonzaga ter acesso a esta tecnologia e manter sua participação devido às condições técnicas das gravações mecânicas”. destacada. Já quando se passou ao registro de canções, as Entretanto, o autor afirma que “as frequências agudas limitações dos equipamentos, que requisitavam uma forte projeção de vozes, um modo grave e operístico de cantar, gritado, não eram um problema para a gravação e a reprodução por tenores e barítonos, para que o equipamento pudesse ser mecânica. Muito pelo contrário, o problema consistia na alcançado e o registro feito, as mulheres não tiveram participação captação dos sons graves”. Após realizar diversas as análises correspondente (WERNECK, 2007, p. 154). espectrográficas do repertório brasileiro do início do século XX o autor não encontra razões explícitas que permitam O destaque para os cantores de grande potência vocal e de voz grave foi evidenciado por questões tecnológicas. Neste sentido, além da questão social que ditava um padrão representativo da [...] reduzir a participação feminina exclusivamente a questões mulher dita “honesta” como aquela que estivesse circunscrita tecnológicas, uma vez que estas não eram um problema ao espaço doméstico, havia ainda uma questão tecnológica que generalizado. Muitas das gravações femininas no período limitaria o acesso da mulher à possibilidade de realizar gravações mecânico são tão qualitativamente boas quanto às masculinas. mecânicas (SOUZA, 2006). [...] Os resultados das comparações com gravações de cantores não foram suficientes para colocá-los esteticamente em superioridade em relação às mulheres (CARDOSO FILHO, 2007). Estes conflitos afirmam a música como um campo das disputas políticas, onde o campo político se consolida Com isso, CARDOSO FILHO (2007) argumenta que como aquele que permeia e penetra todos os outros questões de cunho sócio-cultural devem ter sido mais campos, do artístico ao ritualístico. Como campo de relevantes para a reduzida participação feminina nas disputa, a música pode ser usada como uma forma gravações deste período do que as tecnológicas. É particular de poder, usada para limitar ou ampliar o acesso

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e o conhecimento social, ritual e político de mulheres e um exímio pandeirista e compositor de sambas. Algumas homens (ROBERTSON, 1989). No caso do samba, pode-se biografias de João da Baiana mencionam que teria sido dizer que houve um empoderamento dos homens a uma com sua mãe que João aprendeu a batida característica função que antes era designada às mulheres. Curiosamente, do pandeiro. Em depoimento ao MIS, ele declara ter sido em uma pesquisa que realizei recentemente numa escola o responsável pela introdução do pandeiro no samba, de samba de Florianópolis (GOMES e PIEDADE, 2010), o informação que foi reproduzida em muitos documentos naipe das vozes (puxadores e pastoras) se revelou como sobre a história do samba. um dos campos mais conflituosos no que se refere às disputas de poder entre os gêneros. As pastoras desta Na época, o pandeiro era só usado em orquestras. No samba quem escola de samba demonstraram imensa insatisfação em introduziu fui eu mesmo. Isto mais ou menos em 1897, quando eu tinha 8 anos de idade e era Porta-Machado no ‘Dois de Ouro’ relação a sua posição e a pouca valorização de seu papel e no ‘Pedra de Sal’. Até então as agremiações só tinham tamborim dentro da escola. Já na bateria, ou seja, nos instrumentos e ainda assim era um tamborim grande e de cabo. O pandeiro não de percussão, houve maior consenso entre as partes. As era igual ao atual. O dessa época era bem maior (JOÃO DA BAIANA ritmistas – quase todas concentradas em torno do naipe citado por VOZES DESASSOMBRADAS DO MUSEU, 1970, p, 59-60). dos chocalhos –, estavam de acordo que o chocalho é o lugar feminino, enquanto que os tambores em geral (caixa, As informações trazidas por João da Baiana não repenique, surdo), eram mais adequados aos homens. encontram paralelo na pesquisa de SANDRONI. Segundo o autor,

Enquanto que o papel de conduzir o canto nas escolas o acompanhamento rítmico mais comum do samba folclórico de samba foi apoderado num momento de reordenação até o início do século XX parece ter sido pandeiro, prato-e-faca interna – pela competitividade estimulada pelas premiações e palmas. [...] em todas as referências a instrumentos no samba, (concursos); pelos ideais nacionalistas que o samba precisou anteriores a fins da década de 1920, não apenas a cuíca como também o surdo (ou barrica) e o tamborim brilham pela sua integrar; pelas inovações tecnológicas –, vou mostrar mais ausência (SANDRONI, 2001, p. 179). adiante que a hegemonia masculina na percussão pode encontrar sua razão, ao menos em parte, na mitologia Ao parecer, o pandeiro era instrumento de um samba africana e nas convenções instituídas nos terreiros. doméstico, aquele praticado no fundo de quintal e na sala de jantar da casa das Tias. O que João da Baiana fez foi 6 – As donas dos tambores, os donos dos toques introduzi-lo nas rodas públicas, na sala de estar da casa Intrigado pelas poucas referências às mulheres sambistas das Tias Baianas (frequentada pelos intelectuais e elite), na no contexto da casa das Tias Baianas, em uma festa da Penha, nos desfiles dos Ranchos carnavalescos e nas entrevista publicada nos anexos de seu livro questiona gravadoras. João da Baiana fez com o pandeiro o que Donga Marinho da Costa Jumbeba (neto de Ciata) sobre a fez com o samba Pelo Telefone, ou seja, teve a coragem de presença de mulheres nas rodas de samba da época de expô-los publicamente, ampliando seu domínio. sua avó, fazendo-lhe a seguinte pergunta: “E as mulheres faziam partido-alto?”. Ele responde: De todos os modos, o que interessa aqui não é discutir se Perciliana e João da Baiana tiveram o mérito ou não Fazia! Ah! Era a Mariquita, Sinhá Velha... Maria Adamastor era de introduzir estes instrumentos no samba, mas sim, por uma grande sambista, que fazia grandes sambas, compreendeu? meio desta relação mãe-filho, apontar uma dimensão A minha tia, por exemplo, a Mariquita, tocava muito pandeiro, mitológica da cultura afro-brasileira que pode, junto compreendeu? Ela às vezes em casa, só brincando, fazia um grande partido-alto. Só com um pandeiro e os cantos. Mas tinha muita com outros elementos (como a ressignificação do senhora que naquele tempo..., por exemplo, a minha tia Pequena, lugar das pastoras nos desfiles e a acomodação do por exemplo, era grande. Sinhá Velha, que era minha tia também. samba aos padrões sociais da cultura dominante), E tinha as moças, em casa, inclusive a minha irmã Lili. Tinha a ajudar compreender a configuração atual dos papéis afilhada da minha tia, a Cicinha; tinha a Ziza, que era filha da... era minha prima; e era essa gente toda, minha família era muito masculinos e femininos no complexo mundo do samba. grande (JUMBEBA citado por LOPES, 1992, p. 105). Além da construção histórica ocidental que contribuiu para invisibilizar as mulheres, alguns mitos e crenças das Marinho Jumbeba não hesita em citar inúmeras mulheres tradições africanas presentes na cultura afro-brasileira interagindo nas rodas de samba e se destacando como podem contribuir para elucidar algumas questões. partideiras. Além de ressaltar a destreza de algumas mulheres como cantoras, entre em cena um lugar até De acordo com THEODORO (2008), nas tradições afro- agora não explorado, a percussão, onde Jumbeba cita brasileiras a relação das mulheres com a música e com os Mariquita como pandeirista25. instrumentos de percussão está vinculada à concepção de ‘ritmo vital’ do princípio feminino. A autora aponta Outra mulher do pandeiro parece ter sido Tia Perciliana que na maioria das etnias da África Negra o papel da do Santo Amaro26. Segundo o Dicionário Cravo Albin mulher se delineia a partir da ideia de criação da vida, da Música Popular Brasileira (2010), Perciliana teve 12 que se revela desde suas próprias rotinas diárias, que filhos, todos ativos no meio musical como, por exemplo, envolvem o nutrir, o organizar a comunidade, até o uma de suas filhas que tocava violino; Mané, palhaço de administrar a vida. A mulher negra é, segundo os mitos, o circo e violonista; e João da Baiana, famoso por ter sido elemento básico do ritmo, da dança e da criatividade. No

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Brasil, este princípio está muito presente principalmente Diversos mitos indígenas, africanos, gregos, cristãos, etc., no domínio religioso das tradições afro-brasileiras. exercem influência sobre o inconsciente coletivo que Diversos mitos das tradições africanas, bem como gera a música popular brasileira onde, o samba, discutido gregas e indígenas, contam que determinadas funções aqui, é um dos elementos mais representativos. De fato, relegadas aos homens se originaram das mulheres. a música popular brasileira é constituída por tamanho Elas teriam sido as criadoras e passaram aos homens sincretismo que torna difícil qualquer mapeamento o conhecimento e a responsabilidade de mantê-lo. relacionado à procedência e influência destes mitos. Não Em alguns mitos, este conhecimento não foi passado, pretendo dar conta desta questão, por isso, agora vou me mas roubado ou tomado, por vezes, de forma violenta. concentrar apenas em alguns pontos deste mito africano Esta luta pela supremacia entre os sexos aparece com a fim de sugerir possíveis traspassações entre o sagrado constância nos mitos de diversas culturas, e podemos e o profano nas manifestações musicais afro-brasileiras, encontrá-los em abundância nas mitologias africanas tendo o samba como recorte principal. e ameríndias27. Segundo ROBERTSON (1989), em muitas culturas onde a performance musical é usada 7 – O domínio da percussão: do terreiro ao como um modo de controle social, acredita-se que o samba conhecimento e o poder ritual tenham pertencido em um passado remoto às mulheres. Especialmente por conta do Mito do Tambor Batá, na maioria dos terreiros afro-brasileiros o cargo Nas religiões afro-brasileiras, o Mito Iorubá do Tambor de ogã, tocador dos atabaques durante os cultos, é Batá é referência importante na determinação dos exclusivamente masculino. Ainda hoje poucas mulheres papéis de gênero desempenhados por homens e ocupam esta função, embora em proporções cada vez mulheres nas práticas musicais dos terreiros. Transcrevo maiores, uma vez que esta tradição está passando 31 abaixo o mito extraído integralmente do livro Corpo e por constantes resignificações. Quando há outros Ancestralidade de Inaicyra F. dos SANTOS (2006, p. 64), instrumentos, a maior parte deles também é tocada 32 segundo a autora, contado por Ayánkunle Ayánlade e por homens, cabendo às mulheres o adjá – que não é Duroladipo Solaboni, em junho de 1988, na cidade de usado como instrumento musical – e, eventualmente, o Oyo, Nigéria. agogô (AMARAL e SILVA, 2008).

Nos primórdios da civilização, não existia em Oyo-Oro, cidade Os ogãs não são simplesmente tocadores de atabaques, desaparecida, nada conhecido com tambor; ali morava uma mas também homens que detêm segredos, rituais e mulher chamada Ayántoke, mas as pessoas a chamavam de conhecimento só a eles revelados. Têm voz ativa dentro da Ayán28. Esta senhora era estéril, andava sozinha pelo mato, sempre com um pedaço de madeira oco. Um dia ela viu uma pele de bode casa podendo, em certas situações, designar obrigações e resolveu cobrir as extremidades do pedaço de madeira, mas a e ordenar funções. Eles são os detentores dos toques e pele ora não se adaptava muito bem, ora rasgava quando ela batia cantigas específicas para cada situação característica, com um pedaço de pau. Ela insistiu várias vezes no seu intento; de modo que sem os ogãs as cerimônias públicas de usou também um pedaço de couro em forma de tira para bater nas extremidades do tronco, mas nada dava certo. Finalmente, um incorporação e devoção aos orixás raramente acontecem. dia, Exu apareceu e lhe deu tiras de couro de veado a fim de que Por conta disso, possuem um status extremamente amarrasse com firmeza o couro no tronco. E foi nesse momento prestigiado nas comunidades-terreiros. Segundo SANTOS que o tambor deu um som melodioso. Ayán começou a tocar o (2006, p. 69), entre os iorubás na Nigéria o cargo de ogã tambor por toda cidade, as pessoas corriam para escutá-la (todos surpresos!), porque nunca tinham ouvido alguma coisa semelhante é transmitido aos homens hereditariamente, enquanto antes... Ela ganhava, ao mesmo tempo, muitos presentes. Xangô – que nos terreiros brasileiros são escolhidos pela Iyalorixá orixá do trovão – na qualidade de rei da cidade, quando a ouviu ou pelo Babolorixá33, sempre levando em conta sua convidou-a para morar no palácio. Ela tornou-se a tocadora oficial habilidade prévia com o instrumento. do palácio de Xangô. Todos sabiam que ela era estéril; no entanto, mais cedo ou mais tarde ela teria um filho, uma vez que qualquer mulher estéril que entrasse no palácio de Xangô tornava-se fértil. O terreiro representa uma via de acesso privilegiada à E foi o que aconteceu: Ayán casou-se com Xangô e logo teve um cosmologia e à sociabilidade afro-brasileira visto que é filho que foi chamado de Aseorogi29. Ela passou toda a arte de através dele que os mitos se transformam em rito e o tocar e construir o tambor para o seu filho. Ayántambém é, até hoje, o nome dado a todos os membros de uma família cultuadora tempo cosmológico é recriado e projetado no presente. do tambor, entre os povos Yorubá. Ayán, portanto, é o símbolo do Os mitos transmitem os valores, princípios, crenças que, tambor, orixá dos tocadores e que é cultuado somente por eles. através dos ritos, reforçam e moldam o pensamento, a natureza, a forma e a vida da comunidade. O mito é Segundo o Mito do Tambor Batá, as mulheres delegaram compreendido na atividade ritual como uma forma de a seus filhos homens a arte de tocar e construir o tambor, reconstruir a vida no terreiro, sendo o terreiro entendido ficando elas proibidas de exercer esta função. Este tipo de não apenas como o espaço religioso, mas como um mito, onde a posse original de determinados instrumentos núcleo e pólo de irradiação para todo o sistema cultural musicais pertencia às mulheres, sendo posteriormente onde seus elementos básicos são incorporados (SANTOS, apoderados pelos homens é bastante comum também 2006). Assim, a possibilidade de identificação do sagrado na região da Amazônia, como é o caso da tribo Wauja no cotidiano e do cotidiano no sagrado constitui a pedra pesquisada por MELLO (2005)30. fundamental das manifestações afro-brasileiras, em

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outras palavras, os limites entre sagrado e profano são O que pretendo destacar com isso é que boa parte das frequentemente transponíveis e, por vezes, indistinguíveis. relações, costumes e convenções que caracterizavam os ritos nos terreiros exerceram influência significativa Em muitos contextos afro-brasileiros o terreiro é o sobre o samba, e vice-versa. Há um intercâmbio, por elemento centralizador dos vários eventos e atividades. vezes pouco explorado, entre os ritos dos terreiros e as Em função dele que se articulam as festas, encontros convenções instituídas no samba e na música popular e reuniões de confraternização. O samba da virada do brasileira. A seguir, vou sugerir possíveis conexões e suas século XIX para o XX adquiriu sua forma em constante implicâncias no tocante às relações de gênero. intercambio com as religiões que se praticavam nos terreiros. Uma festa de samba neste período estava muito Conforme dito anteriormente, nos terreiros a execução próxima a uma festa de umbanda ou candomblé. Uma instrumental dos tambores (atabaques) era designada coisa estava intimamente relacionada à outra de tal modo exclusivamente aos homens, por conta do Mito do Tambor que havia praticamente uma relação de interdependência. Batá. Na casa das Tias Baianas, onde samba e religião se Isto está amplamente indicado na literatura base da fundia em praticamente um único ritual, os mesmos homens música popular brasileira, como em MOURA (1995), que estavam tocando tambores no terreiro, puxavam os M. MOURA (2004), LOPES (1992), PEREIRA (2003), ritmos das rodas de samba na sala de jantar e na sala de FENERICK, (2005), DOSSIÊ DAS MATRIZES DO SAMBA visitas. A concepção mitológica de que a execução dos NO RIO DE JANEIRO (2006), para citar alguns. Lúdico tambores era algo reservada aos homens se transpunha para e o litúrgico aconteciam em situações muito próximas, a realidade do samba praticado naquele contexto, fazendo não só física e temporalmente, como também ritual e com que as mulheres integrassem o coro (formando o espiritualmente. Nas casas das Tias Baianas, por exemplo, conjunto feminino que ficou conhecido como pastoras), às era lugar onde praticamente tudo acontecia. Os vários palmas, aos improvisos versados, ou aos instrumentos mais depoimentos sobre a disposição geográfica da casa das leves de percussão, como agogô, prato-e-faca, reco-reco e, Tias e organização dos ritos nos diversos espaços da casa mais raramente, ao pandeiro. Essas convenções estabelecidas são reveladores desta questão. Para citar alguns: na casa das Tias se projetaram também no samba praticado nas ruas, nos ranchos e, posteriormente, escolas de samba. As nossas festas duravam dias, com comida e bebida, samba e batucada. A festa era feita em dias especiais, para comemorar Em entrevista concedida em dezembro de 2005, o jornalista e algum acontecimento, mas também para reunir os moços e o povo pesquisador José Carlos Rego, autor de um clássico, A dança do “de origem”. Tia Ciata, por exemplo, fazia festa para os sobrinhos samba, explicou que, nos anos 20, nos primórdios do samba no dela se divertirem. A festa era assim: baile na sala de visitas, Rio, os moradores do gueto das favelas ou das vilas operárias, samba de partido alto nos fundos da casa e batucada no terreiro sem recursos para o patrocínio de mínimos conjuntos regionais – (JOÃO DA BAIANA citado por MOURA, 1995, p. 83). violão, cavaquinho, pandeiro, flauta – para animar seus encontros Uma época em que não havia clubes dançantes. Os bailes eram musicais, lançavam mão de instrumental próprio ao culto da feitos em casa de família. Em casa de preto, a festa era na base umbanda, do candomblé ou do jongo, para sua recreação. Isso do choro e do samba. Numa festa de preto havia o baile mais se dava, em geral, ao final das sessões religiosas que avançavam civilizado na sala de visitas, o samba nas salas do fundo e a pela madrugada. No encerramento deles, para relaxar, servia-se batucada no terreiro. Era lá que se formavam e se ensaiavam os comida e sobrevinha a cantoria e o batuque – daí ter sido tão ranchos (PIXINGUINHA citado por MOURA, 1995, p. 83). comum a presença de pais-de-santo na liderança dos primeiros grupamentos de samba. [...] Foi dessas primeiras batucadas, rodas Roberto Moura descreve com riqueza de detalhes o e festas que saíram instrumentos que alegrariam partidos-altos, ambiente da casa da Tia Ciata – casa que entrou para a sambas de terreiro e desfiles das escolas (DOSSIÊ DAS MATRIZES história por meio de seu livro – e, ao mesmo tempo, revela DO SAMBA NO RIO DE JANEIRO, 2006, p. 73). o samba transitando pelos vários ambientes. Segundo THEODORO, [...] uma sala de visitas ampla, onde nos dias de festa ficava o baile, a casa se encompridava para o fundo, num corredor escuro onde se No Rio e Janeiro, as baterias das escolas de samba foram enfileiravam três quartos grandes intervalados por uma pequena inicialmente formadas pelos alabês [ogãs] das comunidades- área por onde entrava luz, através de uma claraboia. No final, uma terreiros dos bairros a que pertenciam. Assim, cada escola de sala de refeições, a cozinha grande, e a despensa. Atrás da casa, samba tinha o seu toque característico, por conta de seus ritmistas um quintal com um centro de terra batida para se dançar e depois tocarem para Ogum, Xangô ou Oxossi, já que sendo o tambor a um barracão de madeira onde ficavam ritualmente dispostas fala dos orixás, cada um tem as suas cantigas e toques próprios. as coisas do culto. Na sala, o baile onde se tocavam os sambas Com a gravação dos sambas em disco e o aperfeiçoamento dos de partido entre os mais velhos, e mesmo música instrumental desfiles, as baterias já não se distinguem como antes, sendo que quando apareciam os músicos profissionais, muitos da primeira a maneira de tocar e o som de cada escola ficou muito parecido geração dos filhos dos baianos, que frequentavam a casa. No (THEODORO, 2008, p. 166). terreiro, o samba raiado e, às vezes, as rodas de batuque entre os mais moços. No samba se batia pandeiro, tamborim, agogô, surdo, De acordo com o documento DOSSIÊ DAS MATRIZES DO instrumentos tradicionais que vão se renovando a partir da nova SAMBA NO RIO DE JANEIRO, a identidade de cada bateria música, confeccionados pelos músicos, ou com o que estivesse disponível, pratos de louça, panelas, raladores, latas, caixas, de escola de samba está relacionada à sua origem – e, valorizados pelas mãos rítmicas do negro. As grandes figuras portanto, aos terreiros de santo. do mundo musical carioca, Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Heitor dos Prazeres, surgem ainda crianças naquelas rodas onde Nesses terreiros o culto aos símbolos da africanidade estabeleceu aprendem as tradições musicais baianas a que depois dariam uma diferenciados toques de atabaques, votivos às nações jêje, angola forma nova, carioca (MOURA, 1995, p. 102-3). ou keto, de acordo com os orixás que neles baixavam. Como se sabe,

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as vestes, alimentos, cantos de invocação, estilos de dança, guias fundamentos presentes nos terreiros, conferindo alguns (colares) e saudações de cada orixá têm identidades próprias. E, da de seus mistérios, fundamentados, em grande parte, na mesma forma, suas batidas de tambores, denominados toques, têm sua propriedade individual. Isto é, há toques de Oxum, de Oxalá, relação com o sagrado. Aqui foram destacados apenas de Ogum, etc. Por extensão, os ogãs – responsáveis pelo setor de alguns elementos relativos ao campo de poder que ritmo nos terreiros de santo – foram impregnando as baterias do envolve as relações de gênero, mas muitos outros aspectos samba da sua habitual frequência, com as características de suas podem ser aprofundados a partir desta perspectiva. A casas de santo. Dessa forma surgiram as famílias de ritmo das diversas comunidades de sambistas e de suas escolas de samba, compreensão do que seja “samba” não pode estar limitada o que acabou resultando, também, no pensamento dominante de à sua classificação como gênero musical; ao contrário, que cada bateria bate para determinado orixá. Isso igualmente se é preciso abranger o conjunto de ações que o definem, confirma na existência de fundamentos (essências, pedras, guias, considerando que se trata de um movimento nascido no imagens) religiosos implantados ou exibidos em cada terreiro de samba. Dessa forma é que diferenciações ancestrais permaneceram interior das formas religiosas, numa dinâmica própria dos na bateria das escolas ou blocos carnavalescos, retidas na memória rituais de fé exercitados pelos negros africanos e seus coletiva dos grupos responsáveis pelo ritmo (DOSSIÊ DAS MATRIZES descendentes no Brasil (MATOS, 2007, p. 166). DO SAMBA NO RIO DE JANEIRO, 2006, p. 73). 8 – Considerações Finais Sobre isso, Marília Barboza da SILVA e Arthur de OLIVEIRA Os cânones literários que consagraram o samba FILHO afirmam: da “Pequena África do Rio de Janeiro” como uma No fim dos anos 20, novamente a palavra samba teve a sua manifestação musical essencialmente masculina e significação alterada, outra vez em virtude de ser empregada produzida por homens revelaram uma versão limitada dos por uma classe social diferente. Agora eram os descendentes acontecimentos. Trata-se de uma narrativa construída de escravos, reunidos nas chamadas escolas de samba, para os quais a palavra ainda continuava designando a dança de roda sob uma perspectiva patriarcal cujas referências são de umbigada, de ritmo muito semelhante ao das cerimônias as histórias dos grandes homens, das grandes obras, religiosas das macumbas. Samba para eles constituía um ritmo, dos acontecimentos públicos, das grandes batalhas e uma coreografia, um gênero, enfim, muito próximo ao dos pontos disputas políticas, com pouco ou nenhum interesse pelo de invocação dos orixás afro-brasileiros. Os sambistas primeiros, na esmagadora maioria, eram também pais ou mães-de-santo conhecimento místico, mítico, religioso e espiritual, famosos e temidos: Elói Antero Dias, José Espinguela, Alfredo pela vida privada, e pela história das mulheres. Tais Costa, Tia Fé, seu Júlio, Juvenal Lopes, dona Ester de Osvaldo cânones ignoraram a produção de diversas mulheres Cruz. Os terreiros de samba eram também terreiros de macumba. e minimizaram a importância dos aspectos femininos Cartola, que foi cambono de rua do terreiro de seu Júlio, dizia: “Naquela época samba e macumba era tudo a mesma coisa” presentes nos ritos, nos mitos, na religião, no matriarcado (SILVA e OLIVEIRA FILHO citados no DOSSIÊ DAS MATRIZES DO que permeia a cultura afro-brasileira. SAMBA NO RIO DE JANEIRO, 2006, p. 65). Examinar o contexto político-social e a relação entre De acordo com THEODORO (2008), o Mito do Tambor Batá sagrado e profano foram fundamentais para compreender se faz presente de tal modo no contexto das escolas de a construção dos papéis de gênero no samba do início samba que a Estação Primeira da Mangueira até bem do século XX na Pequena África do Rio de Janeiro. Pude pouco tempo proibia em seu estatuto que as mulheres verificar que o elevado status social da mulher negra no tocassem na bateria. Hoje, apesar da maioria das escolas campo religioso e político exerceu influência significativa contarem com mulheres ritmistas, elas constituem uma na configuração do samba da época. Nas entrelinhas parcela bastante pequena, e menor ainda quando se trata entre o dito e o não dito na construção histórica do de tambores (surdos, caixa, repique). Segundo THEODORO samba enquanto manifestação cultural afro-brasileira e (2008), as escolas do grupo A do Rio de Janeiro, contam como gênero musical brasileiro por excelência, emergiu a com aproximadamente 2% de mulheres apenas. Em uma centralidade e liderança das Tias Baianas, mulheres negras, pesquisa que realizei recentemente em uma escola de mantenedoras das festas realizadas em homenagem aos samba de Florianópolis (GOMES e PIEDADE, 2010), pude santos, em encontros com muita comida, música, conversa verificar que a presença de mulheres ritmistas foi bem e trocas culturais. Estas mulheres, ao mesmo tempo em pequena. A maioria das mulheres se concentrava no que participaram da história da mulher brasileira, possuem naipe dos chocalhos, que se tornou praticamente o naipe aspectos exclusivamente seus, construindo sua história de feminino desta escola, situação que tem se reproduzido mulher negra (THEODORO, 1996, p. 57), com características em diversas outras escolas de samba, conforme também próprias marcadas por sua ancestralidade africana e outras observaram PRASS(2004) e OLIVEIRA NETO (2004). Tais que adquiriu em função das condições que a realidade fatos revelam que a característica de incluir as mulheres local lhe impôs. Verifiquei, portanto, que a centralidade na percussão, e, ao mesmo tempo, concentrar em destas mulheres traspassou o limite da cozinha, da guarda determinados setores (via dupla de inclusão e exclusão), e da orientação espiritual/religiosa – atribuições muito está se tornando uma tendência nas práticas musicais bem documentada na literatura – e adentrou no terreno das escolas de samba de diversas partes o país.34 musical, não apenas como observadoras, apreciadoras, anfitriãs – lugar comumente atribuído a elas –, mas As convenções do samba, ao se inserirem no carnaval também como cantoras, instrumentistas, compositoras, do Rio de Janeiro e em diversos outros contextos da agentes transformadoras e atuantes num território tido sociedade brasileira, levaram consigo grande parte dos como essencialmente masculino.

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O coro feminino, elemento sobressalente na condução cuja narrativa se fundamenta na canonização de grandes dos cantos no campo religioso, encontrou sua relação homens compositores. Mulheres negras compositoras no samba por meio da figura das pastoras, seja nos começam a ser apresentadas no samba a partir da década desfiles dos ranchos e escolas, no samba de terreiro, de 70, com as pioneiras , Ivone Lara e samba-de-roda, e em muitas outras variantes. No plano Jovelina Pérola Negra. Ao surgirem, foram expostas com instrumental, apontei que a hegemonia masculina nos naturalidade, como se 50 anos de inexistência pouco instrumentos de percussão encontrou conexão, ao menos representasse. Entretanto, tal ausência de compositoras em parte, com a mitologia africana e convenções dos pode ser traduzida pela palavra invisibilidade, ou seja, a terreiros. Mas, assim como aconteceu com as pastoras, construção histórica e cultural desta ausência. esta delimitação vem sendo ressignificada de tal modo que a presença de mulheres tem sido cada vez mais Ao trazer o complexo mundo do samba carioca para o frequente entre os ritmistas, tanto no samba como nos campo das relações de gênero, as indagações não passaram terreiros, embora neste último, a resistência seja maior. apenas pela questão das mulheres em cena. Ao analisar No campo da composição – por muito tempo mistificado este universo, os questionamentos se consolidaram a como o lugar masculino por excelência, especialmente na partir da constatação de que muitos autores veem em tradição europeia – procurei valorizar fatos que indicam tudo que diz respeito ao universo do samba tão somente uma possível relação de Tia Ciata com este exercício. Fi- formas de expressão do masculino. Por isso, ao longo do lo como forma de suspeitar de uma suposta hegemonia trabalho emergiu a necessidade de aprofundar a dicotomia masculina neste campo que, a meu ver, reflete mais uma homens/mulheres para além de seus corpos e examinar visão condicionada da história – uma história construída esta complexa relação nos mitos, ritos, crenças, valores, à imagem e semelhança da história da música europeia, espaços de circulação e meios de produção.

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Notas 1 Uma versão parcial deste artigo foi publicada nos anais do I Simpósio Brasileiro de Pós-Graduandos em Música, em 2010, quando a pesquisa ainda estava em andamento (ver: GOMES, 2010). 2 A categoria ‘arte’ está sendo empregada de acordo a teoria do gosto e julgamento proposta por BOURDIEU (2007). O autor parte de uma hierarquia socialmente reconhecida das artes, a qual determina a hierarquia social de seus consumidores que, portanto, funciona como um marcador de classes, um dos principais legitimadores das diferenças sociais. 3 Pelo Telefone: Música gravada e registrada na Biblioteca Nacional em 1916, mas alcançou sucesso durante o carnaval de 1917, quando passou a integrar o repertório de diversos blocos carnavalesco da cidade do Rio de Janeiro. Foi registrada em nome de Donga (Ernesto Joaquim Maria) e Mauro de Almeida. A atitude de tentar definir os autores da música gerou grande discordância no mundo do samba. Retornarei a este tema ao comentar sobre a reivindicação de Tia Ciata na autoria desta música. 4 Segundo MCCLARY (1991), há uma vasta produção sobre crítica feminina em diversas áreas do conhecimento, muitas das quais anteriores à musicologia feminista. Contudo, não é possível transferir as questões metodológicas dessas áreas diretamente para a música, pois a música tem especificidades que precisam ser consideradas e respeitadas. Por isso, a autora desenvolveu uma série de pautas, reflexões, métodos e experimentos que podem ser adequados à musicologia, as quais serviram de referência para o presente estudo. 5 Maria das Dores Santos nasceu interior do Rio de Janeiro em 1911. Na década de 1960 tornou-se a segunda esposa de Donga, autor da música Pelo Telefone. Em janeiro e fevereiro de 2003, aos 92 anos, gravou o seu primeiro CD, lançado no dia 22 de setembro de 2003, na Sala Cecília Meireles. 6 Iranette Ferreira Barcellos, conhecida como Tia Surica, nasceu em 1940. Começou a frequentar a Portela aos 4 anos de idade e hoje é uma das referências da escola. Desde 1980 passou a integrar a Velha-Guarda desta agremiação, onde gravou diversos CDs. No quintal de sua casa – conhecida como o ‘Cafofo da Surica’ – ela costuma reunir centenas de pessoas para rodas de samba, lembrando as Tias Baianas do início do século XX. 7 Áurea Maria de Almeida Andrade é filha de Manacéa e Dona Neném. Fez sua estreia Portela em 1970 e atualmente é pastora da Velha-Guarda da escola, ao lado de Tia Surica e Neide. É também compositora e, agora que está aposentada, pretende dedicar-se mais a carreira musical. 8 Yolanda de Almeida Andrade, chamada por Dona Neném, nasceu em 1925 e mora em Madureira desde os seis anos de idade. Viúva de Manacéa, com quem esteve casada por 44 anos. Faz parte da história viva da Portela, atuando desde as festas dos fundos de quintais até nas Escolas de Samba, é uma das referências obrigatórias quando se trata relembrar o passado. 9 Maria Moura foi casada por 30 anos com o saxofonista . É pesquisadora e no terreiro ocupa o posto de Equede (equivante feminino de ogã). Desde 1994 tem feito palestras e conferências sobre a cultura afro-religiosa em diversas regiões do país. 10 Lygia Santos é advogada, pesquisadora, museóloga e professora. Filha de dois ícones da música popular brasileira o compositor Donga e a cantora Zaíra de Oliveira. Publicou em 1980 com Marília T. Barbosa da Silva, o livro Paulo da Portela - Traço de União entre duas Culturas, pela Editora MEC/ FUNART e foi autora da tese Villa-Lobos e os Choros. 11 Jurema Werneck é formada em Medicina pela Universidade Federal Fluminense. Promoveu a criação da ‘Criola’, organização voltada para o fortalecimento – ou empoderamento de mulheres, adolescentes e meninas negras. Escreveu a dissertação Samba Segundo as Ialodês: mulheres negras e a cultura midiática. 12 Nilcemar Nogueira é neta de Cartola e Dona Zica. Foi uma das responsáveis pela reedição de A Voz do Morro, primeiro jornal comunitário do Rio. Foi a primeira mulher a ocupar o cargo de diretora de harmonia desta escola. É atualmente presidente do Centro Cultural Cartola e foi autora do livro Dona Zica, Tempero, Amor e Arte. 13 Imagens selecionadas em sites diversos da internet. 14 Pequena África foi o nome dado por Heitor dos Prazeres à região do Rio de Janeiro compreendida pela zona portuária, Gamboa, Saúde, Pedra do Sal, locais habitados majoritariamente por negros cariocas e migrantes. O termo ficou consagrado na literatura após a publicação do livro de Roberto MOURA (1995), Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro. 15 Há uma grande liberdade no emprego dos termos matriarcal e patriarcal, por este motivo, muitos estudiosos recusam-se a empregá-los. Limitarei sua utilização a partir da definição de RADCLIFFE-BROWN. Segundo o autor, “Uma sociedade pode ser chamada patriarcal, quando a descendência é patrilineal (isto é, os filhos pertencem ao grupo do pai) o casamento é patrilocal (isto é, a mulher muda-se para o grupo local do marido); a herança (ou propriedade) e a sucessão (hierárquica) são em linha masculina, e a família é patripotestal (isto é, a autoridade sobre os membros da família está nas mãos do pai ou seus parentes). Por outro lado, uma sociedade pode ser chamada matriarcal, quando a descendência, herança e sucessão estão na linha feminina, quando o casamento é matrilocal (o marido muda-se para a casa de sua mulher), e quando a autoridade sobre os filhos é exercida pelos parentes da mãe” (Radcliffe-Brown citado por HITA, 2004, p. 13). 16 Ao parecer, não há nenhuma imagem documentada de Tia Ciata, embora diversos sítios da internet especulem que uma das baianas retratadas acima seja ela. De acordo com JACOB (2006) “A maioria dos estudiosos acredita que nenhuma imagem de Hilária tenha sido registrada. Na Bahia, muitos pesquisadores condenam a falta de reverência à mulher que conseguiu assumir, em meio aos senhores do samba, o posto de rainha. O nome de Hilária Batista de Almeida não figura na Enciclopédia da Música Brasileira Popular, Erudita e Folclórica, que agrupa mais de 3.500 verbetes”. 17 Tia Maria do Adamastor, ou Maria da Conceição César. Carioca de nascimento, recebeu o apelido de ‘baiana’ devido à sua profunda convivência com os negros vindos do estado nordestino. Participou da fundação de vários ranchos, como o Sempre-Vivas, Flor da Romã e Rei de Ouros, onde frequentemente fazia o papel de mestre-sala (A força feminina do samba, 2007, p. 19; Efegê, 2007, p. 15-16).

190 GOMES, R. C. S. “Pelo telefone mandaram avisar que se questione. . .” Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.176-191.

18 Tia Amélia do Aragão morou na Rua Teodoro da Silva, 44 – onde nasceu seu filho Donga em 1889 – depois na Rua do Aragão, que lhe deu o apelido de Amélia do Aragão. Foi uma das famosas Tias Baianas da virada do século XX (SILVA, 2009, p. 64; DONGA citado por SODRÉ, 1998, p. 70; A força feminina do samba, 2007, p. 18). 19 Tia Carmem, conhecida como Carmem do Ximbuca, ou Tia Carmem da Praça Onze. Nasceu em 29 de julho de 1878, foi para o Rio de Janeiro em 1893, onde faleceu em maio 1988, aos 109 anos. Casou-se com Manoel Teixeira, com quem teve 22 filhos, e ficou conhecida como Carmem do Ximbuca, que era o apelido dele. Foi uma das famosas Tias Baianas da virada do século XX (EFEGÊ, 2007, p. 174-6; COSTA citado por SILVA, 2009, p. 18; MOURA, 1995, p. 158). 20 IRANETTE FERREIRA BARCELLOS (Tia Surica). Entrevista concedida ao autor na residência da entrevistada, Rua Júlio Fragoso, Bairro Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro – RJ, dia 26 de setembro de 2010 às 10h30min. Duração: 30 minutos. 21 IVONE LARA. Série Depoimento para Posteridade. Museu da Imagem do Som. 30 de junho de 1978. 22 Trecho transcrito por mim do DVD intitulado VELHA GUARDA DA PORTELA EM “O MISTÉRIO DO SAMBA” (2008). 23 ÁUREA MARIA DE ALMEIDA ANDRADE. Entrevista concedida ao autor na residência da entrevistada, Rua Compositor Manacéa, Bairro Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro – RJ, dia 23 de setembro de 2010 às 10h30min. Duração: 58 minutos. 24 Imagem disponível em: , acessado em: 07/01/2011. 25 A informação sobre Mariquita como pandeirista também é revelada em no livro de Roberto MOURA (1995, p. 97) e no documento A FORÇA FEMININA DO SAMBA (2007, p. 16). 26 Também encontrei como Perciliana Maria Costança. O primeiro nome aparece às vezes como Prisciliana ou Preseiliana. 27 A título de ilustração: na mitologia iorubá encontramos, por exemplo, o mito do guerreiro que toma o poder das mulheres. Segundo o mito, no começo quem mandava no mundo eram as mulheres e os homens eram a elas totalmente submissos. Mas os homens aprenderam a fabricar ferramentas e descobriram que com elas, além de plantar, caçar, etc., podiam matar pessoas. Assim, teriam inventado a guerra, tornaram-se guerreiros, e decidiram tomar para si o domínio que as mulheres controlavam (PRANDI, 2001, p. 55-62). ROBERTSON (1989), por exemplo, descreve a disputa pela supremacia entre os selk’nam, antiga tribo indígena que habitava a ilha da Terra do Fogo. Esta etnia possuía uma intensa espiritualidade, manifestada através de cerimônias mitológicas, como, por exemplo, o hain– ritual de iniciação sexual – onde se revelava, apenas aos adolescentes homens, certos segredos com o objetivo de se preservar a ordem social, ou seja, o poder masculino. Segundo o mito, antigamente, os homens estavam subordinados ao poder que exerciam as mulheres. Elas tomavam as decisões importantes para o melhor desenvolvimento de seu grupo. 28 A ortografia da palavra Ayán, no idioma Iorubá, segundo o dicionário R.C Abraham (Inglaterra, London Press, 1958) é Ayòn, que significa tipo de árvore e Deus dos tambores (SANTOS, 2006, p. 155). 29 Aseorogi – o axé (a força, a essência) da árvore e que faz cerimônia e que cuida do tambor (SANTOS, 2006, p. 156). 30 Segundo MELLO (1999 e 2005), entre os índios Wauja do Alto Xingu as mulheres seriam as primeiras “donas” e conhecedoras do repertório das flautas sagradas, só que, neste caso, o privilégio de tocar o instrumento não foi simplesmente transmitido, mas roubado pelos homens, ficando as mulheres proibidas de tocar ou ver estes instrumentos sob pena de sofrer severas sanções. 31 A informação a respeito da hegemonia masculina no cargo de ogã e a tendência atual em estender também para as mulheres, obtive em pesquisa anterior, quando em trabalho de conclusão de curso investiguei sobre as relações de gênero nos terreiros do Morro da Caixa d’Água de Florianópolis, ver: GOMES (2008). Para tal, tomei como referência as entrevistas com os frequentadores dos terreiros, observações em campo e os estudos de AMARAL (2007) e TRAMONTE (2008). 32 Adja é um sino constituído de uma a sete campânulas cuja principal atribuição é provocar o transe quando agitado sobre a cabeça do iniciado, de uso reservado aos pais ou mães-de-santo e as ekedes, não sendo necessário o domínio de qualquer técnica específica. 33 Yalorixá e Babolorixásão os responsáveis pelo ritual, são os “zeladores” dos orixás (SANTOS, 2006, p. 156). 34 À parte dos chocalhos, a presença de mulheres em outras funções nas baterias das escolas é rara. Por vezes, é possível encontrá-las no tamborim, cuíca, agogô, enquanto que no repique, caixa e, principalmente, no surdo, é ainda mais raro. O próprio DOSSIÊ DAS MATRIZES DO SAMBA NO RIO DE JANEIRO, ao descrever cada um dos instrumentos de uma escola de samba, faz uma descrição graciosa, relacionando o chocalho às mulheres. Segue a seguir: “Pratinelas: Placas de metal, redondas e furadas, interligadas por arame ou madeira pontiagudos. Construídas na vertical ou horizontal, quando sacudidas produzem agradáveis sons metálicos. Deve-se a elas o aparecimento da mulher na bateria do samba. Emite sons agudos” (op.cit., p. 75). O Dossiê chama este instrumento de pratinelas como forma de diferenciar do chocalho usado nas rodas de samba, feito de madeira e sementes dentro.

Rodrigo Cantos Savelli Gomes é Mestre em Música (Musicologia-Etnomusicologia) pela Universidade do Estado de Santa Catarina e graduado pelo Curso de Licenciatura em Música na mesma instituição. Trabalha como Professor Efetivo da Prefeitura Municipal de Florianópolis, onde leciona a disciplina Artes/Música para o Ensino Fundamental; e como Tutor do Curso de Graduação em Educação Musical da Universidade Federal de São Carlos. Atua como pianista e diretor musical de grupos religiosos, corais e bandas. As últimas pesquisas enfocaram as relações de gênero na música popular brasileira, em especial no samba. Em 2008 recebeu o 3º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero e foi condecorado com Menção Honrosa no ano consecutivo pelo mesmo concurso.

191 GOMES, R. S. de A. “A língua desse povo não tem osso, deix’esse povo falá”: ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.192-207.

“A língua desse povo não tem osso, deix’esse povo falá”: campo sonoro da linha de Quimbanda do Terreiro de Umbanda Reino de Luz – som e preconceito

Renata Schmidt de Arruda Gomes (Pelota-RS) [email protected]

Resumo:A Umbanda é uma religião afro-brasileira e, tal como é praticada no Reino de Luz, é essencialmente sonora. A religião umbandista é muito estigmatizada por ser relacionada, por alguns não adeptos a Umbanda, às práticas do “mal”, magia negra e culto ao diabo. Muitas são as diferenças entre as concepções religiosas e de mundo entre adeptos da Umbanda e de outras religiões, estas diferenças provocam choques de crenças e, muitas vezes, geram preconceitos. Neste trabalho, proponho analisar a cosmo visão umbandista através dos Pontos cantados e práticas sonoras em geral, dos discursos dos participantes do Terreiro de Umbanda Reino de Luz e seus principais pontos de atrito com visões do senso comum. Acredito que através da análise dos sons presentes nesse ambiente, aliados aos discursos dos membros da terreira, possamos melhor entender os preconceitos existentes em relação a esta religião e suas tentativas de adaptação para melhor aceitação social.

Palavras-chave: Música, Umbanda, Etnomusicologia.

Sound field “linha de Quimbanda” of “Terreiro de Umbanda Reino de Luz”: sound and prejudice

Abstract: The Umbanda is an afro-Brazilian religion and, as it is practiced in the Reino de Luz, is essentially sonorous. This religion suffers much prejudice for being related, for some not adepts, to the practical of the “evil”, cultured black magic and to the devil. Many are the differences between the religious and world conceptions between adepts of the Umbanda and of other religions; these differences provoke shocks of beliefs and, many times, generate preconceptions. In this work, I consider to analyze the umbandistaCosmo vision through the practical of “Pontos Cantados” (typical religious songs), through sonorous practices, through the speeches of the participants of aspecific religious group, called “Terreiro de UmbandaReino de Luz”, working with its main points of attrition in opposite of the visions of the common sense. I believe that through the analysis of the sounds of this environment, allied to the speeches of the members of the “terreira” (the religious group”, let us better understand the existing preconceptions in relation to this religion and its attempts of adaptation for better social acceptance.

Keywords: Music, Umbanda, Ethnomusicology.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 05/04/2012 - Aprovado em: 04/01/2013 192 GOMES, R. S. de A. “A língua desse povo não tem osso, deix’esse povo falá”: ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.192-207.

1- Abrindo os trabalhos - introdução 2 – Sobre as crenças e práticas do Reino de Luz Este trabalho tem origem em uma pesquisa de mestrado A prática religiosa umbandista se dá através de linhas, realizada na linha de etnografia das práticas musicais do – grupos de espíritos como: preto-velho, caboclo, Exu – Programa de Pós-Graduação da UFRJ. Esta se propunha a dentro das linhas de Umbanda a mais estigmatizada é a estudar o campo sonoro – no decorrer do texto explico o de Quimbanda – linha de Exu, Pomba-Gira e Zé Pelintra porquê da utilização deste termo para designar as práticas – exatamente pela ligação que se faz da figura do Exu à sonoras do ambiente em questão – do Terreiro de Umbanda do diabo e, por consequência, a tudo que está relacionado Reino de Luz.Importante ressaltar que sou uma pesquisadora ao diabo (já que este é visto como o grande mal). nativa, já que faço parte da terreira1 estudada. Esta linha é festejada dentro da casa uma vez por mês, em rituais que se chamam , o uso Essa religião, tal como é feita na terreira acima citada, Festa de Quimbanda do termo não se dá por acaso, já que o Povo de é essencialmente sonora. Cada parte do ritual religioso festa Quimbanda é quem cuida de seus cavalos diariamente, possui Pontos (cânticos) – tocados por atabaque, canto e por ser o Povo mais próximo de nós seres humano. São palmas – específicos e, é através destes que as entidades eles que fazem o trabalho sujo, isto é, limpam as energias (espíritos da Umbanda) descem à terra.Esses Pontos negativas, afastam estas dos umbandistas e os protegem cantados poderiam ser chamados de “a música da terreira”. de qualquer tipo de “mal”. Por este motivo, uma vez por mês se faz uma para essas entidades, a fim De acordo com o adiantar da pesquisa, pude notar que Festa de homenageá-las e fortificá-las, através do ritual, que para um melhor entendimento do ambiente estudado seria inclui, além do 5do tambor, canto e palmas, bebidas, necessário considerar outros aspectos além destes que toque comidas e presentes. Existe um ponto cantado desta linha normalmente são chamados de “música”. Para tal utilizei o que acredito ilustrar a relação que os umbandistas têm termo campo sonoro. Essa escolha se deu, também, a fim com essas entidades (Ex.1). de tentar seguir as novas tendências da etnomusicologia atual. Hoje, dentro dos estudos etnomusicológicos, busca- se compreender não só a música – como uma categoria a As Quimbandas – como são também chamados esses parte –, suas funções e importância em algum ambiente rituais – são fechadas, só podem participar dos trabalhos específico, mas, além disso, todos os sons que formam os membros da corrente e convidados previamente esse ambiente. Deste modo, além dos sons das palmas, autorizados pelo Cacique. Isto ocorre, poisse acredita que, atabaques e canto que fazem parte das práticas do Reino sendo os Exus, Pomba-Giras e Zé Pelintras, os protetores de Luz, outras características foram importantes para da terreira, não é aconselhável que muitas pessoas de a formação do campo sonoro deste ambiente, como: o fora estejam presentes. som dos sinos, falas e emissões das entidades durante os rituais,alémdos discursos dos membros da corrente2– Chegarmos numa Festa de Quimbanda é diferente de expostos durante conversas e entrevistas – e o presente chegar a um trabalho de Umbanda, primeiramente, nas letras dos pontos cantados, enfim, todos os sons que pois as primeiras acontecem da meia-noite às quatro formam a terreira. horas da manhã. Outra grande diferença diz respeito às roupas dos médiuns, na Umbanda todos se vestem de Desde o início das pesquisas, o fato de grande parte branco, os homens de calça e camiseta e as mulheres dos integrantes da casa3terem sofrido algum de tipo de de saia rodada e camiseta; na Quimbanda todos estão preconceito chamou minha atenção e despertou em mim vestidos de preto, preto e vermelho, preto e branco, roxo a vontade de saber o motivo pelo qual isso ocorria. Assim, e combinações destas cores. após alguns membros do Reino de Luz terem sinalizado a vontade de mudar as letras dos Pontos cantados da linha de Antes dos trabalhos iniciarem-se as lâmpadas são Quimbanda4devido ao conteúdo dessas não os agradarem trocadas por lâmpadas vermelhas e a penumbra se e, segundo eles, não corresponderem às práticas da casa, instala no ambiente, bebidas, comidas, charutos, cigarros, decidi estudar a relação som-preconceito. cigarrilhas, capas, cartolas, chapéus e presentes são preparados para que assim que as entidades cheguem à O estudo de uma prática sonora dentro de seu contexto já terra estes sejam entregues a elas. Sente-se uma pequena é um ponto pacífico dentro da etnomusicologia,mas neste euforia no ar, os trabalhos acontecem somente uma vez contexto específico do Reino de Luz, vi que para melhor por mês e muitos médiuns aguardam ansiosamente o entender essas práticas seria importante compreender momento de homenagear aqueles que tantos os ajudam. também o ambiente ao redor da terreira. Neste trabalho, proponho analisar a cosmo visão umbandista através dos A corrente se forma, homens à esquerda e mulheres a Pontos cantados e práticas sonoras em geral, dos discursos direita do Congá. Neste momento podemos ver sorrisos e dos participantes do Terreiro de Umbanda Reino de Luz olhos apreensivos, tanto entre os médiuns quanto entre e seus principais pontos de atrito com visões do senso as poucas pessoas que compõem a assistência. Assim que comum. Acredito que através desta análise possamos todos estão prontos e dentro da corrente, começa o ponto melhor entender os preconceitos relativos a esta religião de cruzar a linha – este é o único ponto de abertura da e aos seus adeptos. Quimbanda (Ex.2).

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Ex.1 - Ponto de Exu recolhido no Terreiro de Umbanda Reino de Luz.

Ex.2 - Ponto de Cruzamento da Casa, ponto utilizado para a abertura dos trabalhos de Quimbanda.

Juntamente com o início deste ponto, além do toque da assistência. Neste momento podemos ver um bailar dotambor, podemos ouvir as palmas e os sinos, de longas capas negras ou vermelhas (em sua maioria), confirmando assim o início dos trabalhos. Após este rostos sérios, pois os Exus são assim, além de abundante ponto canta-se, geralmente, um ponto de Lúcifer, Dono da marafa – cachaça – bebida de quase todos os Exus. Quimbanda, que é quando esta entidade chega à terreira, caso seu cavalo (médium) esteja presente, e, após este, o Passadas as duas primeiras horas da Quimbanda, as ponto do Exu Caveira, chefe da casa, que é quando este mulheres vão se trocar, colocar seus vestidos, maquiagens, chega à Quimbanda. brincos, pulseiras e perfumes para receberem suas Pomba-Giras. Os homens que têm Zé Pelintra deixam de Logo após iniciam outros pontos, à medida que os trabalhar com seus Exus e passam a trabalhar com os médiuns vão recebendo suas entidades; os cambonos6os Zé’s. Alguns homens também recebem Pomba-Gira assim vestem com suas capas, cartolas e demais objetos rituais. como algumas mulheres recebem Zé Pelintra. A partir de Podemos ouvir além dos tambores e cantos, risadas então podemos ouvir grandes gargalhadas, sabe-se então roucas, sons guturais que nos avisam que os Exus estão que as mulheres – Pomba-Giras – estão chegando. Vemos chegando. As primeiras duas horas da Festa são dedicadas vestidos, cigarrilhas, champanhe ou cidra – que são as aos Exus, homens e mulheres recebem estas entidades bebidas mais comuns para as Pomba-Giras. Algumas que dançam, bebem e conversam com os membros da dançando, outras encostadas nas paredes conversando corrente que não estão incorporados e com as pessoas com algum Zé Pelintra. Estas são ameaçadoras, um olhar

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atravessado de uma delas estremece qualquer um, não acredita Lom – Cacique9do Reino de Luz –,o preconceito que elas vão fazer alguma coisa, mas simplesmente o está em tudo: fato de nos olharem significa que sabem nossos maiores segredos e, a qualquer momento, podem vir nos falar, em Lom – “Sem dúvida nenhuma. O preconceito está enraizado em tudo, no homossexualismo, no... na mulher que se veste um pouco meio a risadas, coisas que não queremos ouvir. mais ousado, na mulher que se veste mal, no homem que é gordo, na mulher que é gorda, na mulher que é anoréxica, preconceito Os Zé’s, como são carinhosamente chamados, são uma tem Em tudo.” (Em entrevista a autora, 27/04/2008) “festa”, chegam gingando, com toda a sua malandragem, ternos brancos, bengala, chapéu de palha, fumando, Apesar de concordar com isso, acredito ser importante tomando cerveja ou batidas de coco. Eles exaltam o discuti-lo e contextualizá-lo, a fim de tentar ver as mundo do ócio, mas estão sempre prontos para trabalhar possíveis causas de este ocorrer, no sentido de melhor em prol dos seus filhos. entendermos os contextos nos quais ocorrem. No caso da Umbanda, uma religião que desde seu surgimento é A música não para, o tambor nunca pode parar de tocar, muito estigmatizada, talvez seja possível entender as pois é este o responsável por manter a energia elevada. mudanças ocorridas nas práticas religiosas levando em As Quimbandas são trabalhos mais pesados dos que os conta este estigma. de Umbanda, pois lidam com energias mais pesadas, transformando energias negativas em positivas, por Durante minhas idas a campo, conversas e entrevistas este motivo o toque do tambor e canto torna-se tão busquei saber como os participantes da casa veem a importante e indispensável. Estas energias (do cavalo questão acima exposta. e ambiente) são consideradas mais pesadas, pois são aquelas mais humanizadas, já que as entidades de Acredito que diversas práticas umbandistas levam esta Quimbanda são consideradas as mais próximas dos seres religião a ser estigmatizada, inclusive por esta estar humanos, estas são capaz de transformar as energias constantemente relacionada às práticas do “mal” – ligadas mais pesadas em energia positiva. as práticas de matança – e suas oferendas e entregas serem constantemente chamadas de macumbas, de modo O toque de Quimbanda é bastante diferente do toque de pejorativo. Em dois momentos de sua entrevista Lauren Umbanda e pode ser facilmente reconhecido ao escutá- conta como via a Umbanda antes de entrar para esta religião lo. Deste modo, a audição deste toque passa a ser um modo de caracterizar, por parte de outros umbandistas e Lauren – “Ah, eu tinha nove anos. A maior parte foi Kardecista, só que. daí a gente começou a conhecer pessoas, tipo vizinhas, até de não adeptos, as terreiras Quimbandeiras. entende? Que eram médiuns, mas eram médiuns de Umbanda. E aí a gente começou a... a.. a ir, pra vê como é que era, né. Pra.. a gente não tinha noção assim da.. da diferença, começô a ir. Acho 3 – Abrindo um parêntese – discutindo o que a minha mãe, assim como eu gosta da.. da vibração e tal, sei preconceito lá, da sensação de ta lá.. e aí a gente começô a ir. E.. Mas só que eu tinha muito medo de.. de Umbanda porque, Como Todo mundo, Acredito que parte do preconceito existente em relação à eu ligava, eu achava que Umbanda só tinha coisas ruins, que as Umbanda, aconteça pela ligação que se faz da figura do pessoas trabalhavam é.. faziam coisas erradas e que aquilo tudo Exu ao diabo. Por outro lado, com o passar do trabalho de tinha um significado diferente do que tem. Não sei se tu entendeu campo, fui “descobrindo” outras características presentes o que eu quis dizê?” Eu – “Entendi.. negativo, tu tinha uma..” Lauren – “É, eu tinha uma ideia.. aquilo m’interessava, me chamada na linha de Quimbanda que se diferenciam bastante da atenção, mas ao mesmo tempo era tipo assim, interessante e tal, visão de mundo, como senso-comum, dos não adeptos à mas não é legal de fazê.” Umbanda7, o que me levou a refletir sobre as diferenças existentes na nossa sociedade8e a constante disputa por Eu – “E tu acha que esse tipo de ligação, da.. do Exu com o diabo, essa imagem causa algum tipo de efeito pras pessoas que espaço dentro desta. cultuam a Quimbanda, pra gente que cultua a Quimbanda?”

Ataques feitos por pessoas provenientes de religiões Lauren – “Ai.... Tipo.. pra mim no início, quando eu entrei, causava Neopentecostais contra a Umbanda, preconceitos e porque pra mim... eu achei que.. que fossem.. como é que eu vou dizê? Eu achei que só trabalhava com essas linhas quem quisesse discriminações sofridos pelos umbandistas, preconceitos e fazê alguma coisa pro.. pro mal entende? Eu não sabia que tinha discriminações realizados por nós umbandistas, diferentes Exu e Pomba-Gira que.. que faziam.. que trabalhavam pro bem e visões de mundo, diversidade de crenças e fé, tudo isso que tem muitos que só.. que trabalham só pro bem, não tem? É que configura o grupo de pessoas que formam um grupo social eu não sei muito bem da religião então.. eu tenho a minha “visão romântica”, como diz o Diego, então..” (Em entrevista a autora, e as disputas por espaço e legitimações são frequentes 28/04/08) neste contexto. Deste modo, acredito não poder tratar de preconceito e discriminação, sem levar em conta que uma Assim como Lauren, muitas pessoas possuem visões das maneiras de legitimar práticas e crenças é atacando e parecidas sobre a Umbanda e Exu, o próprio Cacique do destituindo de crédito as outras práticas e crenças. Reino de Luz, Lom, possuía visão semelhante antes de conhecer a religião. Segundo Ricardo Mariano Coloco a questão em discussão não para diminuir as experiências sofridas pelos membros do Reino de Luz, Na segunda metade do século XIX, a escravidão e o racismo – mas no sentido de não supervalorizá-las, pois como incluindo o racismo científico – resultaram em franca perseguição

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religiosa ao candomblé e punição a seus seguidores. Em seguida, ser “pura”, isto é, por ‘não ser negra o suficiente’ e, hoje, com o fim da escravidão e a queda em descrédito do racismo sofre preconceito e discriminações por ser ‘negra demais’. científico e seu corolário, o “baixo espiritismo”, designação por meio da qual candomblé e umbanda foram sistematicamente desqualificados e rebaixados nos planos moral e religioso, foi A linha de Quimbanda atenua esta “negritude” e, talvez mantido sob forte repressão institucional até a década de 1940. também por isso seja a linha mais estigmatizada, além de MARIANO (2007,p. 126-7) ser um dos temas mais controversos da Umbanda, inclusive entre os próprios umbandistas de casas diferentes. As O autor salienta que terreiras que se dizem Brancas12, são aquelas que não cultuam a linha de Exu, por acreditarem que estes são Ao lado disso, uma série de racionalizações religiosas de cunho 13 cristão, de interesse institucional da Igreja Católica e há muito espíritos “atrasados e de pouca luz” . Podemos ver sedimentadas no imaginário social e na cultura brasileira, então que as diversas visões em relação a esta linha fundamentava concepções e juízos de valor para alicerçar e estão presentes não somente entre umbandistas e não justificar as acusações de curandeirismo e de magia negra umbandistas, mas entre os umbandistas de diferentes contra um sem-número de adeptos e líderes desses cultos. 14 MARIANO (2007,p. 127) casas e doutrinas .

Hoje, como o próprio Mariano chama atenção, a situação Esta também é a linha que, geralmente, é representada mudou, as religiões afro-brasileiras não são mais negativamente e vinculada ao conceito de “mal”: Exus, perseguidas pela polícia e nem são proibidas pelo estado10, Pomba-Giras, são as entidades que mais comumente mas mesmo assim “umbanda e candomblé prosseguiram são ligadas à figura do diabo, logo esta é a linha mais sendo alvo de discriminação e, com menor frequência, até “atacada” por não adeptos ou pessoas de outras religiões de atos de intolerância” MARIANO (2007,P. 128). quando querem depreciar a Umbanda e suas práticas.

Rita Segato em “Racismo, discriminación y acciones Creio que as visões negativas relacionadas à linha de afirmativas: herramientas conceptuales”, trata do racismo, Quimbanda sejam um dos (dentre os tantos) motivos em suas diversas formas, expondo as diferentes esferas pelos quais existem preconceitos em relação aos adeptos deste ato, diferenciando a discriminação do preconceito. desta. Quando questionei aos membros da corrente da A autora fala de “[...] três tipos de destinatários do terreira se haviam sofrido algum tipo de preconceito ou preconceito e da discriminação racista”: os que possuem discriminação, a maioria dos entrevistados respondeu-me etnicidade e raça, “[...] aqueles que conjugam uma que sim. Taize respondeu assim: diferença racial, um signo fenótipo, com um patrimônio cultural idiossincrático”; os que possuem raça sem Taize – “Já, já..tranquilo assim, tinha uma.. eu trabalhava com uma.. uma menina, e aí ela... a gente conversava muito, assim, etnicidade, “[...] aquelas pessoas que exibem traços raciais ela era minha colega de trabalho e ela.. enfim a gente vivia como cor de pele, tipo de cabelo, formato dos lábios e do conversando sobre várias coisas e um dia entrou a religião. E ela nariz, etc., mas sem necessariamente serem portadoras de era evangélica e ela... e ela foi e disse assim, ah, porque chegou um patrimônio cultural diferenciado” e os que possuem um cara lá que ela conheceu e o cara era tri gente boa, mas ela ficou.. surpreendida porque ele era.. ele era de terrera, ela disse etnicidade sem raça, assim. E eu disse, “ué, mas não por isso, eu também sou”. E ela ficou impressionada, porque ela disse assim: “ai, que estranho [...] pessoas pertencentes a povos marcados pelo cultivo e né? Tu é uma guria tão inteligente, uma guria que trabalha, transmissão de um patrimônio cultural idiossincrático e condutores estuda e é de terrera”. E eu, “tá, mas o que tem a vê?” E ela, “ai, de uma trama histórica que reconhecem como própria, mas que, não, porque é estranho, né?”. Tipo assim, coitada né? Deu pra vê devido a um antigo processo de mestiçagem, não necessariamente que.. no mundo dela quem é de terrera é Burro e não pode fazê exibem traços raciais que as distinguem da população de sua mais nada porque é de terrera. (risos) Mas foi, mas várias vezes, região ou nação.SEGATTO (2007, P. 66-7)11 assim.. nos lugares, tu diz que é de terrera e as pessoas ficam te olhando atravessado... mas é isso aí!” Acredito que o caso da Umbanda, e mais intensamente Eu – “É assim mesmo, né?” da Quimbanda, seja o que Segato chama de etnicidade sem raça, pois, como já dito anteriormente, creio que Taize – “É, pior é que é.” (Em entrevista a autora, 29/04/08) as práticas umbandistas, mesmo possuindo elementos Kardecistas, Católicos, entre outros, são principalmente Além de Taize, vários outros entrevistados já sofreram negras (me remeto às raízes africanas). Prandi possui algum tipo de discriminação ou preconceito por serem visão semelhante: umbandistas. Este tipo de situaçãoé relativamente Fragmentada em pequenos grupos, fragilizada pela ausência de comum. Podemos ver que, para algumas pessoas o fato de algum tipo de organização ampla, tendo que carregar o peso do ser umbandista e “trabalhador” são coisas contraditórias. preconceito racial que se transfere do negro para a cultura negra, Lom perdeu parte de seus clientes por ser adepto a religião a religião dos orixás [Candomblé, Umbanda, etc.] tem poucas e Débora não pode se declarar pertencente à terreira para chances de se sair melhor na competição – desigual – com outras religiões.PRANDI (2004,p. 231) não perder parte de seus alunos de canto.

Ao mesmo tempo é interessante ressaltar que em certo Segundo Lenny Alvarenga, “Ao contrário do que período dos estudos sobre religiões afro-brasileiras, a comumente se pensa a identificação exu-diabo não Umbanda não era considerada digna de estudos por não nasceu no Brasil, mas sim em terras africanas com

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os primeiros contatos dos missionários católicos e figuras (Exu e diabo), os umbandistas se colocam no lugar protestantes com as tradições religiosas locais”. Segue o do outro, destas pessoas que fazem tal ligação e, com isso, autor (citando Bouwen), acabaram apontando diversos signos que, para o senso comum, isto é, para as “racionalizações religiosas de Grosso modo, o culto a qualquer divindade apresentado cunho cristão [...] há muito sedimentadas no imaginário pelos africanos, independentemente de quais fossem as suas social e na cultura brasileira” MARIANO (2007, p. 127), características para os fiéis locais, foram tomados como o culto a divindades do mal (demônios, diabos, satã, etc.) pelos europeus de dizem respeito ao demônio e na Quimbanda faz parte da modo geral.ALVARENGA (2006, p.64) representação de Exu. Ao mesmo tempo, podemos notar que, algumas vezes, os signos religiosos que fornecem tal Pode-se notar então que esta associação é mais antiga do que conexão, fazem sentido até para os próprios umbandistas, pensamos. Ao mesmo tempo, perguntei aos participantes da como, por exemplo, no depoimento de Zinho terreira o que eles pensavam sobre essa associação, porque motivo eles acreditavam que isto acontecia. As respostas Eu – “E aquilo que eu tava falando, das pessoas ligarem os Exus foram reveladoras e levavam em conta muitos aspectos ao diabo, porque tu acha que isso acontece? Porque as pessoas relativos às próprias práticas da Quimbanda. Taize me fazem essa ligação?” explicou a relação da figura do Exu ao diabo desta maneira, Zinho – “Eu acho que é porque.. pelas pessoas terem uma visão.. até porque se tu olha.. porque as pessoas tem uma visão do diabo Taize – “... eu vou falá por mim, assim.. quando eu entrei, eu que é vermelha e.. vamô supor, que o diabo é vermelho, olha um me lembro que nessa primeira casa que eu te falei que eu ia, monte de gente de Exu, todo mundo de vermelho e preto, que que a.. eu achava esquisito quando eles chegavam, né, as luzes já... tu vai pensá? Numa encruzilhada, tomando sangue, que que tu vai se apagavam e eles vestiam umas capas, aí tinha uns tridentes pensá? É coisa do diabo! Não tem outra... até eu já pensei isso. Vi desenhados. E eu acho que, na verdade, a igreja Católica sempre um monte de gente ali, na encruzilhada, o que eu vô fazê? É troço pintô o demônio, o diabo, bem com esses trajes, capa, tridente, do inferno, né? Não tem mais o que pensá, acho que é por causa chapéu, colinha [rabinho] e tudo mais. E, acaba que até as disso.” (Em entrevista a autora, 01/05/08) imagens hoje que nós vamos comprá, dos nossos Exus, tem colinha [rabinho] e tem garfo, eu acho que um pouco é uma Vemos então que, muitas vezes, estas citadas ligação, é um sincretismo que há com isso. De repente é por representações, são tão fortes e presentes no meio em que isso mesmo que as pessoas se confundem e eu não acho que seja uma..... uma confusão tão errada assim, porque, na verdade, vivemos que marcam os próprios umbandistas dentro de infelizmente a.. a própria religião prega isso, tanto que as nossas suas interpretações, formando um discurso dicotômico. imagens são moldadas dessa forma. Embora eu saiba que não é, até porque eu não acredito em diabo, demônio. Acho que existe Além deste tipo de dicotomia presente no depoimento de energia ruim, mas.. não acredito que exista um.. uma figura que represente tudo isso. E... mas infelizmente a própria religião pinta Zinho, onde o próprio umbandista identifica elementos os Exus dessa forma, então, na verdade, essa confusão que há.. que remetem às noções de inferno e diabo presentes nas principalmente pros negros, infelizmente não é tão errada assim, representações inicialmente Católicas destes e hoje já do mas não que eu acredite que exista, até porque eu realmente não senso comum, ainda existem visões relativas ao modo acredito.” (Em entrevista a autora, 29/04/08) de ser das entidades de Quimbanda, como Guias que Taize aponta para o fato de as representações simbólicas precisam de cuidado e ensinamentos. Podemos ver tal do Exu na Umbanda serem próximas às representações opinião no depoimento de Lucas, quando lhes perguntei: ao diabo15feitas pela igreja católica e lamenta isso. Importante ressaltar que este modo de representar Eu – “Tu.. eu queria sabê como que tu vê, o povo, assim, de Quimbanda, de Exu, porque é o povo que eu vejo que, Pomba- esta entidade não está presente somente nas imagens, Gira, Exus, são os.. o povo mais controverso da religião. Eu roupas e adereços utilizados pelos médiuns quando os queria saber como que tu vê esse povo?” recebem, mas também nos pontos cantados desta linha de entidades.Estes pontos, em suas letras, descrevem Lucas – “Ah, eu vejo assim, que é um povo assim óh, que além de sê difícil de lidá, também é um dos povos assim, mais, mais.. 16 Exu como quem “traz o seu garfo na mão” , quem usa como é que eu posso dizê? Mais.. que a gente acaba se entregando capa, vive na Calunga (cemitério), falam de catatumbas17, também mais, um pouco mais e se apegando um pouco mais a sangue, galo preto. Exu de duas cabeças, “uma é satanás eles, por eles serem mais próximos da gente. E a gente acaba se.. 18. As Pomba-Giras acaba se unindo mais a eles, entendeu? Eu vejo como um povo no inferno e a outra Jesus de Nazaré” bem legal de trabalhá, só que é aquele detalhe, tu tens que sabê aparecem como belas mulheres, Pomba-Gira Maria lidá com ele, tu tem... tu tem que tê tipo uma balança, tu tem que Quitéria “não mata porque não qué”, Maria Padilha “é impor regras, se não fica bem difícil.” Eu – “Porque?” Lucas – “Por o que? Ela é o diabo!”, elas “trabalha[m] com magia”. causa que é um povo que.. é tipo.. é que nem uma criança, tu em Podemos ver então como essas descrições presentes nos que impor regras porque se não acaba tomando conta, sabe? Tu tem que falá o que é certo e o que é errado porque se não acaba pontos cantados acabam corroborando com as críticas te trazendo problemas.. é o meu modo de pensá.” (Em entrevista sofridas pela Umbanda/Quimbanda, deste modo os a autora, 01/05/08) pontos acabam reforçando essas imagens de ligação ao diabo, magia e morte. Este relacionamento com a morte, É interessante este tipo de colocação como as de Lucas o cantar a morte, também é um ponto muito importante (além de Lucas, outros participantes da casa esboçaram da cosmovisão umbandista, adiante me aterei a este. visão semelhante), onde os Exus são vistos como crianças que devem aprender e, diferentemente das outras linhas, Tornou-se interessante que, ao questionar aos onde os médiuns aprendem com os Guias, nesta linha, participantes da terreira sobre a ligação destas duas entidade e cavalo trocam ensinamentos. Destaco ainda

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estas visões acima citadas, já que dentro do Reino de religião não explicava, passou a frequentar o Kardecismo Luz acredita-se que todas as entidades estão debaixo da e depois a Umbanda. Quando mudamos de religião, não capa19do Seu Caveira – Exu chefe da casa – e que este não nos descolamos de nossa bagagem anterior e, de certa permite que se faça nada que prejudique alguém. Sendo forma, de nossas crenças. Deste modo, nosso modo de assim, porque os Exus necessitam de tantos cuidados? ver esta nova religião está impregnado pelas experiências Porque eles precisam ser tratados de forma diferente?20 vividas na religião anterior.

Essas dicotomias estão presentes nos depoimentos de 4 – Voltando ao campo sonoro diversos participantes do Reino de Luz e elas demonstram Poucos são os umbandistas do Reino de Luz que como, mesmo nós umbandistas, que lutamos para nossa “nasceram” na Umbanda, deste modo essas dicotomias religião não ser alvo de preconceitos, estamos imbuídos entre as práticas umbandistas e as vivências em outras das mesmas ideias que servem para fundamentar as religiões se cruzam e fazem com que as interpretações criticas relativas à Umbanda. Isto se mostra presente acerca das práticas do Reino de Luz sejam vistas de formas também quando vemos, em algumas entrevistas, alguns diferentes entre os participantes. Neste contexto, alguns membros da dizerem que gostariam de mudar os corrente participantes não gostam dos pontos de Quimbanda, pontos de Quimbanda, ou que não cantam certos pontos porque eles remetem a coisas que não estariam dentro do de Quimbanda devido às letras destes. que estas pessoas acham que seriam práticas religiosas – como as festas, por exemplo, (ver depoimento da Carmen, Outra importante colocação de Lucas diz respeito ao Povo acima citado, onde esta explica a situação). Podemos ver, de Quimbanda “por eles serem mais próximos da gente. E na foto abaixo, uma cena comum nestas Festas (Ex.3). a gente acaba se.. acaba se unindo mais a eles, entendeu? Eu vejo como um povo bem legal de trabalhá”, essa é uma visão corrente dentro da terreira e faz com que as festas de Quimbanda sempre sejam aguardadas com ansiedade, alguns médiuns adoram estas festas enquanto outros sentem-se desconfortáveis. Carmen pensa desta forma

Carmen – “[...]. O povo de Exu, que é um povo que eu tenho muita [...] e uma confiança hoje [...] mas não foi sempre assim, porque? Porque todo esse ritual que se faz pro povo de Quimbanda, eu.. me agride! Me agride. [...] alguns irmão da corrente ainda dizem que foi esse o... um fator assim ó, principal de nós termos caído, do nosso grupo ta desintegrado, de nós não termos mais casa, que.. que foi essa mudança no ritual21de Exu. [...] [mas] Não foi isso...”

Eu – “Porque assim, tem muitas pessoas que até.. de fora da religião, que ligam a figura do Exu com a figura do diabo, Exu e diabo..”

Carmen – “Eu não ligo... eu não ligaria ao diabo, eu ligo a figura do Exu as nossas coisas terrenas, as nossas fragilidades, a todos os, entre aspas, pecados, as coisas da carne. [...] e também ao Ex.3 – Foto de dois Zé Pelintra em uma ritual do... da homenagem aos Exus. Por exemplo aquela coisa festa de Quimbanda. assim ó, dos vestidos decotados, das.. atitudes sensuais, da bebida, daquela... daquela festa assim.. eu não quero sê exagerada, mas daquelas orgias22.Eu acho que não tem nada a vê com religião Roberto da Matta em “Carnavais, malandros e heróis” se aquilo ali. Aí vão dizê assim: “Ah, mas tu não gosta de te enfeitá utiliza de duas categorias em sua análise, a rua e a casa. e de ir num baile?” Gostava, na época que ia com meu marido O autor argumenta, “[...] realmente, a oposição entre rua e adorava e sinto fala até hoje. Gosto de me vestir, Gosto duma roupa decotada, Gosto dum copo cheio de cerveja, mas na festa, casa é básica, podendo servir como instrumento poderoso não na hora que eu to me propondo a fazê um ritual religioso pra na análise do mundo social brasileiro, sobretudo quando evolução espiritual.” se deseja estudar sua ritualização” DA MATTA (1981,p. 70). A casa seria vista como um lugar de harmonia, calma, Eu – “E tu acha que são esses rituais, por exemplo, que levam as pessoas de fora da Umbanda a fazêesse tipo de ligação?” remetendo “[...] a um universo controlado, onde as coisas estão nos seus devidos lugares” DA MATTA (1981, p. 70). Carmen – “Com certeza.” (Em entrevista a autora, 01/05/08) A rua, ao contrário, seria “[...] basicamente o mundo, com seus imprevistos, acidentes e paixões...”, Outros membros da corrente do Reino de Luz também possuem este tipo de posicionamento, como o de Carmen. [...] na rua é preciso estar atento para não violar hierarquias não- O ritual da Quimbanda os incomoda, pois “não tem nada sabidas ou não-percebidas. E ainda para escapar do cerco daqueles , em contraposição com o ritual de que nos querem iludir e submeter, pois a regra básica do universo da a ver com religião” rua é o engano, a decepção e a malandragem, essa arte brasileira de Umbanda, que seria visto como religião. Acredito que usar o ambíguo como instrumento de vida...DA MATTA (1981, p. 70) estas visões estão ligadas as histórias de cada participante. Carmen, como se pode ver nas entrevistas em anexo, teve A coincidência é que as entidades de Quimbanda são uma criação católica e, devido a experiências as quais esta chamadas também de Povo da Rua e uma das linhas desse

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povo é a de Zé Pelintra, os malandros23descritos por Da Além de o universo visual dos rituais de Quimbanda Matta. Inclusive esta descrição do autor de que é preciso nos remeterem à rua – como vimos nas fotos acima – o estar atento para não ser enganado na rua, corresponde campo sonoro desta linha remete a este mesmo universo, à colocação, já citada, que alguns participantes da casa alguns Exus e Pomba-Giras dão gargalhadas quando fazem do relacionamento entre médiuns e as entidades chegam à terra, o toque do atabaque é mais acelerado e da Quimbanda, a respeito do cuidado que é necessário ter cheio de variações, as luzes são apagadas e acesas luzes com tais espíritos. Exatamente por essa ligação com a rua, vermelhas, as festas ocorrem da meia-noite às quatro da segundo a categoria de Da Matta e também a categoria manhã (como já dito). Os sons da Quimbanda são sons prevista dentro do universo do Reino de Luz, é que o Povo da rua. As Festas de Quimbanda – como o próprio nome deQuimbanda é visto como próximo de nós. Segundo já diz – lembram festas “comuns”, isto é, não religiosas, Vânia Zikán Cardoso, “o próprio nome dos espíritos [Povo com bebidas, risadas, música e conversas. Utilizando a da Rua] nos remete para fora dos espaços delimitados metáfora “pontos de escuta”24 TRAVASSOS(2005, p. 94), da performance do ritual em direção ao espaço mundano quando muitas pessoas ouvem as Festas de Quimbanda, das ruas e do dia-a-dia” CARDOSO (2007, p. 322), como seus “pontos de escuta” as remetem para a rua e não para podemos observar nos exemplos abaixo (Ex.4 e Ex.5). uma festa religiosa. A Quimbanda homenageia o Povo da Rua, o senso comum o reprova, alguns umbandistas reprovam as Festas de Quimbanda por “isso não ser religião”, neste sentido, o que remete a rua é visto como não próprio para religião.

Gostaria de ressaltar que posicionamentos semelhantes aos de Carmen – citada acima – não se restringem somente às práticas rituais, mas se estendem também às práticas sonoras da linha de Quimbanda.

Eu – “Tem alguns pontos de Quimbanda que são proibidos no Reino de Luz, tu.. que explicação tu dá para isso? Por que que isso acontece? Como tu vê essa proibição?”

Lauren – “Porque ali tu ta fazendo religião, entende? Tem pontos que são assim.. tem muitos pontos mesmo aquele que fala que Pomba-Gira é... que Pomba-Gira é mulher..” Eu – “Do diabo?” Lauren – “É... é uma coisa assim, tipo, vamos supor, esse é um Ex.4 – Zé’s Pelintra e Pomba-Gira Sete “Catatumba”, foto deles, entende? Eu... eu, por exemplo, não canto. Se eu ouvir esse ponto, eu, por exemplo, não canto porque, tipo, eu não acredito. retirada em uma festa de Quimbanda da casa. Então.. e se tu.. por exemplo, vamos supor, aquela hora mesmo que tu me perguntou da questão de porque que as pessoas ligavam a imagem do Exu ao diabo. A pessoa.. aí, tu vai lá e faz toda uma explicação de como é que funciona e tal, aí a pessoa chega na terrera, “não, então vamo lá vê como é que é esse negócio”, aí a pessoa chega numa Quimbanda e escuta um ponto desses: “ué mas eles tão cantando...”. Porque na igreja tu canta o que é, tu canta o que tu exalta. Aí tu chega lá na Quimbanda e escuta um ponto desses, tu ta exaltando isso, então realmente, é uma religião do diabo! (risos)” (Em entrevista a autora, 28/04/08)

Lauren chama atenção para o fato de que quando cantamos uma canção ritual, estamos exaltando as entidades às quais os pontos se referem e que, quando cantamos um ponto como este disposta abaixo, estaríamos exaltando isto (Ex.6).

Para esta entrevistada, além dos pontos proibidos25, outros não deveriam ser cantados. Além disto, podemos notar no relato de Lauren uma preocupação comum a outros umbandistas: se a religião não cultua o diabo e nem faz o “mal”, e os adeptos a esta tentam sempre demonstrar isto, como cantaremos pontos que falam de diabo, sangue, etc.? Estaremos então demonstrando às pessoas que chegarem à casa, e não forem adeptas a esta, Ex.5 – Foto de uma cena da mesma festa de Quimbanda, que cultuamos tais figuras e práticas, como exemplificou Exu Tiriri e Exu Caveira. Lauren em seu depoimento citado acima.

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Ex.6 – Ponto de Pomba-gira Maria Padilha, recolhido no Terreiro de Umbanda Reino de Luz.

Ex.7 – Ponto de Exu da Encruzilhada cantado no Reino de Luz.

Carmen pensa de forma semelhante, diz que acha que / Onde mora Exu Cavera”. Exu Cavera é algo transcendental, ele é “a música é fundamental, ela eleva o espírito da pessoa do universo, como é que ele mora no cemitério? Dai aos mortos seus mortos..o que é morto é morto. Cemitério é um campo pra aquilo que ela ta vivendo naquele momento. E aí é que santo para as pessoas que morreram não pra nós vivos. É um entra a questão, os pontos na... na linha de Exu, não gosto dos campos de atuação do Exu Cavera? Sim, mas não é só lá. dos pontos de Exu”(Em entrevista a autora, 01/05/08). O... outro ponto de Exu Cavera que diz... é... “Não brinque com Carmen ainda ressalta o porquê de não gostar de tais Cavera / Ele não é brincadera / Quem... mexe com.. com ele / Vira defunto... Eu – “vira pó” Lom – “ou vira cavera”. É, são pontos “Não gosto. Não gosto, acho eles assim ó... aquelas coisas que... que conhecendo a grandeza desse espírito, sabe que coisas de.. cavera, de.. sete-palmos, de.. no lixo, do “te não é assim, mas faz parte da história da nossa religião, que mato”, do “é terrível”, eu acho que isso aí não em nada a não é nem sincretismo, é uma maquiagem que foi feita, uma vê com religião, não gosto”. Além de Lauren e Carmen, associação que foi feita, só que, tudo que é criado, embora seja criado em cima de uma mentira, com o passar do tempo se torna Lom – Cacique da casa – possui visão parecida em relação uma mentira verdadeira. Então essa associação, ela é natural aos pontos de Exu executados na terreira hoje.” (Em entrevista a autora, 27/04/08)

Lom – “Eu sinto... a música.. de.. várias formas. Vejo como.. um poema, como.. uma homenagem, como uma oração. Todas as Mesmo que Lom não goste de alguns pontos, estes composições e todas as vibrações que são feitas pras mães, pros ainda fazem parte do repertório cantado na casa, mas é pais, pros Orixás maiores, assim como dos Pretos-Velhos, são... importante ressaltar que ele, como Cacique da terreira, bálsamo pros meus ouvidos, embora eu tenha restrições aos pontos possui o poder de proibir a execução de alguns pontos, que são feito e cantados para os Exus.. porque eles ainda vem carregados da história do Exu comparado a figuras demoníacas, caso assim o desejasse. Devido ao fato de, assim como figuras da noite, figuras permissivas. Mas não é a batida, não é o Lom, alguns participantes não gostarem das letras dos som que m’incomoda, o que m’incomoda são as letras.” pontos de Quimbanda é que estou dando tanta atenção a estas, já que são o principal motivo de restrições por parte Eu – “Então, tu tás falando dos pontos que não podem ser tocados na Quimbanda do Reino de Luz?” de alguns umbandistas.

Lom – “Não. Inclusive os pontos que são tocados no Reino de Luz, Estes participantes citados acima não gostam dos pontos se fosse.. se eu tivesse poder pra tanto, eu mudaria todos eles.” de Quimbanda devido às suas letras, por acreditarem que Eu – “Como... como, por exemplo?” estas não correspondem à realidade dos cultos da casa. Lom – “Portão de ferro / Cadeado de madeira / É lá no cemitério Como a letra do ponto abaixo (Ex.7).

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O ponto acima citado fala de colocar feitiço na encruza nós trabalhamos na porta dos hospitais também, não só na frente para derrubar alguém e este tipo de prática não é permitida da porta do cemitério. Quantas oferendas um, quantas coisas um filho de Nação, que ele tem que percorrer vários lugares, ele no Reino de Luz. Por este motivo alguns participantes da passa no cemitério, ele passa no hospital, ele passa no banco, ele casa não gostam das letras dos pontos de Quimbanda, passa na praça, são todos ambientes de culto, mas nenhum desses pois se alguém ouvir este ponto poderá achar que esta ambientes são tão ameaçadores quanto o cemitério. [pausa] (fazer feitiço) é uma prática da terreira em questão e isto Porque o cemitério, como é ligado à morte, e as pessoas vêem a morte como uma coisa má, que separa elas dos seus bens, “tás não corresponde à realidade. fazendo mal pra alguém”, pois se tu vais fazer uma coisa boa, não vais fazê na porta do cemitério, né? A ideia é essa! (risos)” (Em 5 – Sobre a visão de morte na Umbanda, entrevista a autora, 25/07/08) mudanças rituais e suas relações com o Em seu relato, a entrevistada fala de questões muito campo sonoro importantes para a religião. Débora chama atenção para o Gostaria de destacar também duas coisas, a primeira é modo como a morte faz parte da cosmovisão umbandista que apesar de Lom, em seu relato acima citado, dizer que e, exatamente por este motivo, o cemitério é um lugar o cemitério é um lugar santo para os mortos não para os santo, além de relatar um conflito entre crenças através vivos, alguns umbandistas do Reino de Luz consideram de uma das tentativas utilizadas por fiéis de outra religião este local santo. A segunda é a visão que os seguidores de converter os umbandistas, “salvando-os do demônio”, desta religião têm da morte. Débora explica estas duas como dizia nos cartazes. questões por mim destacadas. Por serem, como explica à entrevistada, os adeptos da Eu – “Tu achas que esse tipo de ligação é.. a imagem, que.. as pessoas de fora da religião fazem do Exu ao diabo e até dessas Umbanda reencarnacionistas, estes enxergam a morte pessoas da religião que fazem questão de fazê essa ligação, como mais uma etapa do passar do espírito na terra, isto causam algum tipo de efeito na gente que cultua a Quimbanda? é, o espírito encarna, nasce, vive e passa pelas experiências Na gente como médium?” necessárias para seu aprendizado e morre/desencarna. Débora – “É, na realidade dá conta disso não é uma coisa muito É um processo cíclico. E, sendo assim, faz parte das fácil. [...] Nós somos ligados a pessoas que fazem matanças de crenças e práticas desta religião. A linha de Quimbanda, animais e nós não fazemos isso. Nós somos ligados as pessoas que e principalmente a linha de Exu, é a mais ligada à morte. vagam pelos cemitérios, “fazendo o que dentro dos cemitério?” “O que essa gente faz dentro dos cemitérios?” Só que... as pessoas não entendem que o umbandista, ele lida com a morte da mesma forma Na Umbanda, assim como a morte é vista como parte da como ele lida com a vida. Como nós somos re-encarnacionistas, vida e da religião, os locais comumente relacionados à como nós somos espiritualistas, nós acreditamos no espírito, morte são considerados locais de culto e sagrados, como falá da morte e entrá em ambientes em que a morte circunda destaca Débora. Deste modo, fazer rituais nesses locais é é muito natural pra nós. [...] “Ah, as pessoas cantam pontos de cemitério, fazem rezas de cemitério”. Tem pessoas que vivem na... parte dos ofícios religiosos e não estão relacionados ao pessoas que viviam no campo compunham canções de pastoreio, “mal”. Diego explica tem pessoas que vivem em meios urbanos e fazem músicas que refletem o meio urbano. Nós fazemos religião, nós repetimos a Diego M. – “Eu acho que esse... tipo [de modernização da religião], nossa espiritualidade, a nossa espiritualidade, ela é embasada na tu não vê um.. jovens querendo trabalhá com Caboclo, com Preto- vida de na morte. Nós cultuamos.. espíritos que lidam com a saúde, Velho, que são a alma da Umbanda, entende? Tu vê, hoje, jovem que com a vida e com a morte[...] Então pra nós, ir fazê um trabalho quéentrá e quétrabalhá com Tranca-Rua, porque ele [o jovem] qué... uma vez por ano, duas vezes por ano de gira [...] nós pisamos porque ele julga, na cabeça dele, que ele qué sê no dono da rua. Tu em cemitério sim porque é um lugar sagrado. Importantíssimo vê jovem querendo trabalhá com o Cavera porque é o Exu da morte. pra nós. Como é o nosso Congá. Nós temos um Congá dentro do Quando eu digo Exu da morte, que pra quem conhece sabe que é ele terreiro, nós homenageamos Iemanjá na água, nós homenageamos que faz o desligamento da pessoa e encaminha essa pessoa pra Luz, Oxóssi na mata, nós homenageamos Omulú dentro do cemitério. então... ou querem trabalhá com Omulú por sê dono do cemitério, [...]E isso não quédizê que isso esteja fazendo mal pra alguém. entende? [...]” (Em entrevista a autora, 01/05/08 – grifos meus) [...] tu vê como nós, mesmo escondidos interferimos na vida das pessoas, mesmo resguardando nossos mistérios, nós estamos SIM Exu Caveira, como apontado por Diego, é o Exu influindo na vida das pessoas, porque as pessoas às vezes vêem as.. os médiuns entrarem de vermelho e preto, cemitério a dentro, responsável por fazer o desligamento do espírito de seu elas se sentem apavoradas, agredidas. Uma vez nós fomos fazê corpo material, sendo considerado o “Exu da morte”. O que (riso) uma entrega na frente do, do portão, nós não entramos, considero difícil de entender para quem não é umbandista no portão do cemitério (riso meu), tu estava junto? Te lembra? é que o fato de Exu Caveira ser o “Exu da morte” não quer Eu – “Tava”. Débora – “Uma igreja evangélica na frente, veio a igreja inteira, inteira.. e a gente viu o desespero no rosto daquela dizer que ele “mate” as pessoas e sim que conduz elas gente, porque Pra Eles nós estávamos fazendo mal pra alguém. na morte. “Portão de ferro, cadeado de madeira (2x) / Lá Eu – “E os cartazes colados na porta do cemitério, convidando no cemitério, onde mora Exu Caveira (2x)26” O cemitério, para í pra igreja?” Débora – “E os cartazes! Convidando pra ir neste ponto, é a representação da morte, logo, os Exus pra Igreja! E na realidade, nós estávamos fazendo um ritual de agradecimento! Então vê que NUNCA, eu posso dizê Com Certeza, são do cemitério e os umbandistas cantam isso. Cantam não é uma vez, nem outra, NUNCA, quando um leigo vê um a morte. Mas não porque venerem a morte e sim porque umbandista, um batuqueiro, ou... um crente da Nação, ou.. quando acreditam que esta faz parte da vida. vêem uma entrega, um presente ou uma oferenda, eles já acham que é um despacho, NUNCA a primeira ideia é de que pode ser um presente pro “bem” pra alguém, a ideia é sempre que “aquela Débora, em seu depoimento acima citado, também destaca gente que veste preto e vermelho, preto e branco, aquela gente tá como a maioria das pessoas que não faz parte da Umbanda, indo fazê mal pra alguém”, “ora, eles tão na porta do cemitério!” E ligam ao “mal” tudo que está relacionado ao cemitério

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e a morte. Deste modo, para estas pessoas, a Linha de Outra questão importante a se destacar, é que para Quimbanda é vista como o “mal” em si. Segundo Bosi muitas pessoas a morte é vista como algo ruim, sempre relacionada à tristeza, como a separação imposta entre A civilização burguesa expulsou de si a morte; não se visitam as pessoas que estas têm afeto (como fala Débora em moribundos, a pessoa que vai morrer é apartada, os defuntos já seu depoimento acima citado)27. Acredito que por isso não são contemplados. O leito de morte se transformava em um muitas pessoas neguem tudo o que diz respeito a morte, trono de onde o moribundo ditava seus últimos desejos ante os familiares e vizinhos que entravam pelas portas escancaradas tirando-a de suas vidas. Para os umbandistas não é que a para assistir ao ato solene... A morte vem sendo progressivamente morte não seja triste, eles também sofrem a falta de seus expulsa da percepção dos vivos. BOSI (1983, p. 46-7) entes queridos, mas esta é vista como mais um passar (o que temos que passar enquanto estamos encarnados), Enquanto a “civilização burguesa” expulsa a morte de como algo inerente da condição de estarmos vivos. suas práticas, os umbandistas a celebram através de seus cantos e práticas rituais da linha de Quimbanda. Como Carlo Ginzburg em seu artigo intitulado “Matar um neste ponto de Exu Tranca Ruas das Almas (Ex.8). Mandarim Chinês – as implicações morais da distância”,

Ex. 8 – Ponto de Exu Tranca Ruas das Almas.

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presente em sua obra “Olhos de Madeira – nove reflexões sobre a distância”, reflete sobre distância e proximidade, lembrando-nos que tudo que se encontra mais perto de nós, nos atinge mais. Sendo assim, a proximidade com a morte nos traz o incômodo de refletirmos sobre ela e, talvez por isto a sociedade burguesa, da qual fala Bosi, exclua-a de suas práticas.

Além disso, a morte não é só cantada, ela está presente nas representações visuais e, até mesmo, nos nomes das entidades dessa linha. Muitas estátuas de Exu são esqueletos ou levam na mão uma caveira, ou estão ao lado de um túmulo e geralmente remetem ao cemitério e representam a morte. Podemos ver isto nas fotos Congás montados especialmente para as festas (Ex.9, Ex. 10 e Ex.11). Ex.9 – Congá da Festa em homenagem ao Exu Caveira, Pomba-gira Maria Padilha das Almas e Alguns nomes de Exu e Pomba-Gira: Exu Caveira, Exu Zé Pelintra do morro. “Sete-Catatumbas”28, Exu do Cemitério, Exu Porteira, Pomba-Gira Rainha das Sete Encruzilhadas, Pomba- Gira “Sete Catatumbas”, Pomba-Gira Maria Padilha das Almas, Pomba-Gira Rosa Caveira, etc.

A morte também estava presente, inicialmente, nas práticas de assentamento da casa. Uma das práticas rituais da Quimbanda é o assentamento de Exus, esta serve para fortificar estas entidades para que tenham mais força na hora de trabalhar e defender a casa e seus cavalos, além de outros preceitos religiosos. Acredita-se que é através dos assentamentos que os Exus aumentam suas forças, por este motivo eles são realizados de tempos em tempos.

No ano de 2005 foi realizado o último assentamento do Reino de Luz antes da casa fechar, mas desta vez houve uma mudança no ritual, o sangue dos animais foi substituído por sumo de frutas. A explicação dada pelo Cacique era de que o Exu chefe da casa não achava que fosse necessário Ex.10 – Congá da Festa em homenagem ao continuar com a matança de animais, que os Exus da casa Exu Destranca Ruas. deveriam se desenvolver e que a força advinda do sangue poderia vir do sumo das frutas, isto é, se substituiria o sangue dos animais pelo “sangue das frutas”.

Esta medida provocou muitos conflitos dentro da casa e há quem pense que esta mudança é um dos motivos pela casa estar fechada hoje já que os Exus são responsáveis pela parte material e – segundo os adeptos desta teoria – havendo mudança em seus rituais, estas entidades não estariam satisfeitas e por isso não estariam cumprindo com suas responsabilidades.

Para os adeptos da Umbanda, a vida espiritual influencia na vida material, deste modo as mudanças rituais acabam refletindo nas vidas dos médiuns da casa. Alguns destes que possuem Exus assentos pela feitura (ritual) antiga, dizem que o modo de incorporação da entidade em questão mudou depois que eles realizaram o assentamento com matança, sendo a incorporação Ex.11 – Congá da Festa em homenagem ao Exu Maioral. mais densa. Quando perguntei a Diego P. sobre o toque

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de Umbanda e o de Quimbanda ele acabou falando de que isto era necessário. Estas passaram a ser as suas como estes mudaram com o passar do tempo e conduziu verdades. Um dia isto não era mais necessário, o sangue a entrevista para a questão das mudanças rituais. foi substituído por sumo de frutas e, alguns membros da casa, questionaram muito esta substituição. Este processo Eu – “E em relação ao toque da Umbanda e ao toque de desencadeou muitos desentendimentos e, há quem diga Quimbanda, como.. tu acha que eles são iguais, diferentes, como que algumas pessoas se “perderam no caminho”, o que tu sente essa..” resultou na saída de alguns membros da casa. Diego Peres – “É.. na verdade, quando eu entrei eles eram bem diferentes um do outro, mas hoje, por certas mudanças que O Povo de Quimbanda foi utilizado, no início da religião, ocorreram na casa, já.. eles já são muito parecidos.” como modo de proteção desta – como cita Lom em Eu – “E porque que tu acha que essa mudança aconteceu?” seu depoimento e Renato Ortiz em “A morte branca do feiticeiro negro”. Assim a associação do Exu ao diabo foi Diego Peres – “Eu acho que essa mudança aconteceu, [...] e acho que utilizada como um modo de defesa através do medo que isso aí não é tanto pelo lado da música, eu acho que é mais é por as pessoas tinham do demônio. Débora destaca – em parte de rituais que a Umbanda tem e que não deveriam sê tirados. Ou, que se fossem tirados, fossem tirados desde o primeiro dia, trecho de entrevista já citado – que porque aí médium não se acostumariam com certas coisas, porque mal ou bem certos rituais influenciam naquela energia que sai...” “Nós somos ligados a pessoas que fazem matanças de animais e nós não fazemos isso... Então pra nós, ir fazê um trabalho uma Eu – “E quais.. alguns rituais foram tirados?” vez por ano, duas vezes por ano de gira, não é de matá bicho, de fazê Baladê. Nós não fazemos isso. Existem casas que fazem? Diego Peres – “Foram.” Existem, cultura deles. Eu respeito a cultura de cada um e o nível intelectual dos médiuns que ainda precisam disso.” (Em entrevista Eu – “Quais, assim...” a autora, 25/07/08)

Diego Peres – “[...] vô te dá o exemplo [...] o que eu mais sinto O trecho de entrevista citado acima ressalta um dos falta é... é o sangue, mesmo eu não tendo [...] tu nota que na argumentos utilizados para a mudança do ritual de volta daquelas pessoas que já tinham aquele ritual.. [...] porque.. mal ou bem a Umbanda tem tudo que a Quimbanda tem, porém matança, que os médiuns do Reino de Luz não precisavam a Quimbanda tinha algo a mais, ela tinha uma força mais densa, mais deste tipo de ritual. Interessante ressaltar que mais pesada, por causa de certos rituais, que hoje não existe Débora foi uma das pessoas que brigou para que o ritual mais..” (Em entrevista a autora, 28/04/08) não fosse modificado, pois havia aprendido a religião desta forma, mas acabou aceitando a mudança e hoje, Outro ponto importante de ser ressaltado é que, sendo a assim como outros participantes da casa, utilizam isto Umbanda – do modo como é praticada no Reino de Luz – como modo de diferenciação de outros umbandistas. O uma religião muito ritualística, as mudanças rituais acabam interessante desta religião, é que, por não ter nenhuma abalando a fé dos médiuns, ainda mais em se tratando desta codificação de práticas rituais, cada casa possui práticas mudança. Sobre as mudanças, Vanessa coloca o seguinte: independentes, mas, aos olhos dos não adeptos, todas possivelmente parecem iguais. “Eu não sei por que assim, pra mim não. Eu sou a favor de quem faça, eu acho que é uma lei da religião, eu acho que deve ser cumprida, não tem porque purificar nem nada, porque eu acho 6 – Fechando os trabalhos - conclusões que a gente vai acabá se perdendo nisso [...] eu acho que assim, a minha fé nunca foi depositada em coisas que eu dei a entidades, Creio que, muitas vezes, a linha de Quimbanda é, e foi, em oferendas, em bebidas e coisas e tal. Mas tem fé de pessoas, utilizada para causar medo nas pessoas. Assim, por mais por exemplo “x”, depositou a fé dela numa... oferenda, ou naquele que os participantes do Reino de Luz afirmem que não gesto ali de dá bebida, de servir todo dia o seu Exu, ou de dá o praticam estes tipos de rituais, para quem “vê de fora” isto sangue pra ele. Então eu acho que isso acaba abalando e afetando um pouco cada um.” (Em entrevista a autora, 01/05/08) não é assim, ainda mais quando estes chegarem à terreira e escutarem um ponto como os abaixo. (Ex.12, Ex.13 e Ex.14) Pessoalmente eu penso como a Vanessa, e, confesso que, na época, me senti muito aliviada pela mudança Como disse Lauren (em trecho já citado) ritual. Eu realmente não era capaz de entender o que “... aí, tu vai lá e faz toda uma explicação de como é que funciona de “tão importante” meus irmãos de corrente estavam e tal, aí a pessoa chega na terrera, “não, então vamo lá vê como é perdendo com aquilo. Para mim era um alívio fazer parte que é esse negócio”, aí a pessoa chega numa Quimbanda e escuta de uma terreira que não mais praticava estes ritos tão um ponto desses: “ué mas eles tão cantando...”. Porque na igreja tu 29 canta o que é, tu canta o que tu exalta. Aí tu chega lá na Quimbanda ultrapassados e desnecessários . Hoje, provavelmente, eu e escuta um ponto desses, tu ta exaltando isso, então realmente, é não veria as coisas deste modo. uma religião do diabo!” (Em entrevista a autora, 28/04/08)

Alguns dos médiuns mais antigos da casa, quando foi Olhando a questão por todos esses prismas, acredito que feito o primeiro assentamento, não queriam participar da as mudanças rituais e as citadas recusas de cantar certos matança, mas como esta era parte dos ritos religiosos, pontos de Quimbanda ou de não gostar deles, podem estes médiuns aceitaram e acabaram incorporando este ser interpretadas como uma tentativa de adaptação como seu modo de fazer religião, eles aprenderam assim, das práticas da terreira para uma melhor aceitação confiaram no Cacique e em suas entidades que disseram por parte dos não-adeptos à religião e também pelos

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Ex.12 – Ponto de Pomba-gira Maria Quitéria recolhido no Terreiro de Umbanda Reino de Luz.

Ex.13 – Ponto de Exu Caveira cantando na casa em questão.

Ex.14 – Ponto de Pomba-Gira Maria Padilha.

próprios adeptos que não concordam que este tipo de cantam estas. Eles não fazem trabalhos para o “mal”, mas imagem esteja ligada à religião que praticam. Está tudo cantam estes, e assim por diante. interligado, a música feita na casa acaba por refletir uma imagem desta e uma das principais preocupações Diante dessa pesquisa e pensando em todos os fatores dos membros da terreira é tentar quebrar o estigma que se apresentaram neste trabalho, surgem muitos que sofrem por serem umbandistas. Ao cantarem os questionamentos: que preço os umbandistas estão dispostos pontos de Quimbanda, de certa forma estão ajudando a a pagarem para mais bem aceitos? É isto mesmo que perpetuar este estigma, pois estão passando a imagem de querem? Adaptar os rituais e a música, para serem mais que praticam o “mal”, ou “não mata[m] porque não qué bem aceitos? Desta forma não estariam negociando as suas [querem]” ou cultuam ao diabo, já que cantam “É Maria identidades e crenças? Esta é, realmente, uma situação Padilha mulher do diabo”. difícil. Como umbandista também gostaria que houvesse menos preconceitos sobre a nossa religião. E infelizmente, Desta forma os umbandistas do Reino de Luz ficam após analisar todos os fatores acima, entendo todos os numa encruzilhada entre as práticas e pontos cantados posicionamentos e não me sinto capaz de julgá-los e dizer da tradição religiosa e suas tentativas de legitimação quais estão certos e quais são errados. Obviamente as destas. Como se as duas coisas fossem contraditórias, pessoas querem viver em paz e seguir suas crenças religiosas pois estariam tentando uma legitimação através de sem ter que sofrer preconceitos ou ter que ficar explicando, diferenciação entre as práticas dos outros umbandistas toda vez que alguém descobre que são umbandistas, que não e ao mesmo tempo cantando pontos que são contrários creem no diabo, que não fazem trabalhos para o mal e todas a esta diferenciação. Eles não fazem matanças, mas as situações que podemos ver descritas nas entrevistas.

205 GOMES, R. S. de A. “A língua desse povo não tem osso, deix’esse povo falá”: ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.192-207.

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Notas 1 Utilizo a palavra terreira no feminino e não terreiro, pois é assim que os membros do Reino de Luz se referem ao local onde são efetuados os cultos. Optei pela utilização dos termos nativos. 2 O termo corrente é utilizado para designar a totalidade dos membros da terreira, é uma metáfora onde cada participante é um elo desta corrente, de igual importância, e a união de todos estes elos forma a corrente da casa. 3 O termo casa é utilizado pelos umbandistas como sinônimo de terreira. 4 A seguir explico o uso do termo linha. 5 A palavra toque é utilizada para designar diferentes coisas, além dos ritmos tocados ao tambor (exemplo, toque de Umbanda e toque de Quimbanda), utiliza-se também para designar o ritual (exemplo, “hoje tem toque”, isto é, “hoje tem trabalho na terreira”) e usa-se também esta palavra para designar algum trabalho feito com más intenções para outra pessoa, fala-se “fulano me tocou”. 6 Membros da corrente que não incorporam e são responsáveis por servir os Guias. 7 Neste momento, estou fazendo uma generalização deliberada, pois tenho consciência que as pessoas têm diferentes visões, crenças e práticas sociais e religiosas. 8 Utilizo este termo assim como Guy Massart explica a “sociedade a qual se vive”, explicando utilizar o termo ““sociedade” no sentido lato de realidade social existente para o agente, e não a uma unidade circunscrita do tipo Estado-Nação” (Massart, 2002: 306). 9 Chefe do Terreiro, mais conhecido como Pai de Santo, dentro das tradições de Candomblé e Batuque. 10 Apesar de, ultimamente, existirem ações de processos judiciais (como o sofrido pela mãe-de-santo Gisele Maria Monteiro da Silva, de Rio Grande/ RS – com base no Código Estadual de Proteção aos Animais) e o Projeto de Lei, articulado por políticos evangélicos e apoiado pelas sociedades de proteção aos animais, que buscava coibir a matança de animais nos cultos afro-brasileiros (Silva, 2007: 17). Para maiores informações sobre o tema ver: “Intolerância Religiosa – Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro”, organizado por Vagner Gonçalves da Silva. 11 As traduções do trabalho de Rita Segato são de minha responsabilidade. 12 Podemos aqui chamar atenção também para o fato de o que é branco ser considerado bom, enquanto o que é negro ser considerado ruim. 13 Agradeço a Mário Maia por me chamar atenção às diferentes visões deste tema dentro dos próprios praticantes da Umbanda. 14 Assim são chamados os valores e ensinamentos religiosos próprios de cada terreira de Umbanda. 15 Sobre este assunto, o depoimento do Lom, já citado, explica tais aproximações devido às constantes perseguições, por parte da polícia, aos cultos afro-brasileiros. Renato Ortiz utiliza esta mesma explicação em seu trabalho “A morte branca do feiticeiro negro”. 16 Letra completa do ponto: “Seu Belzebú é um Exu tão formoso / Ele traz o seu garfo na mão / Se ele é filho de Quimbanda / Eu quero ver a incorporação”.

206 GOMES, R. S. de A. “A língua desse povo não tem osso, deix’esse povo falá”: ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.192-207.

17 Palavra utilizada, no universo umbandista, para se referir aos túmulos. Letra completa do ponto: “Exu, Exu é de duas cabeças / Uma é satanás no inferno a outra é Jesus de Nazaré”. 18 Este ponto de Quimbanda também é citado por Vagner Gonçalves da Silva em seu artigo: Entre a Gira de Fé e Jesus de Nazaré: Relações Socioestruturais entre Neopentecostalismo e Religiões Afro-Brasileiras. In: Intolerância Religiosa – Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. Edusp. São Paulo: 2007. 19 Termo utilizado para dizer que estão protegidas e recebem ordens de alguma entidade. 20 Esses questionamentos que trago aqui, já foram realizados muitas vezes por mim ao Cacique e alguns membros da corrente, mesmo antes do início desta pesquisa. 21 Carmen se refere ao fato de não se fazer mais assentamentos com matança de animais. 22 Com este termo Carmen quer se referir às grandes Festas feitas para o Povo de Quimbanda, onde todos comem, fumam, bebem, dançam, cantam e se divertem. Além do uso de roupas decotadas e da grande energia sexual presente neste tipo de trabalho ritual devido ao fato de estas entidades serem próximas da gente e se utilizarem de todos os tipos de energias. 23 Este ponto de Zé Pelintra descreve bem como estas entidades são vistas pelos umbandistas, os “donos da malandragem”: “De manhãzinha quando eu vô descendo o morro / a nêga pensa / qu’eu vô é trabalhá (repete o trecho) / mas é qu’eu levo meu baralho no bolso / meu cachecol no pescoço / e vô prá Barão de Mauá / trabalhá, trabalhá, trabalhá pra que? / malandro se eu trabalhá, eu vô morrê.” 24 O “ponto de escuta” é a metáfora do “ponto de vista”, isto é, “a metaforização do conhecimento pelo olho e pela visão –, quero indicar que a posição do ouvinte (num campo profissional, no eixo geracional etc.) condiciona sua audição” (Travassos, 2005: 94). 25 Existem pontos da linha de Quimbanda que são proibidos de ser cantados no Reino de Luz, estes são vetados por fazerem referências a Zé Pelintra como traficante ou assassino. 26 Ponto cantado de Exu Caveira. 27 Dei-me conta disso quando fui visitar um cemitério com um amigo e este me disse que se sentia incomodado de estar lá dentro por lembrar que pode perder seus pais, pois estes possuem idade avançada. 28 Mesmo sendo Catacumbas, no Reino de Luz estas entidades são chamadas desta forma: Sete Catatumbas. 29 Hoje vejo como a minha criação em escola católica, apesar de minha família não praticar nenhuma religião, influenciou minhas ideias religiosas.

Renata Gomes, cantora e pesquisadora, é Bacharel em canto pela Universidade Federal de Pelotas e Mestre em Música pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisa religiões afro-brasileiras, possui diversos trabalhos apresentados e publicados em congressos nacionais e internacionais e atualmente é funcionária do CAPS-Encruzilhada do Sul (Centro de atenção psicossocial), onde ministra oficina de música.

207 MACHADO, A. C. Martinho da Vila: uma nova linhagem do samba nos anos de 1970... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.208-221.

Martinho da Vila: uma nova linhagem do samba nos anos de 19701

Adelcio Camilo Machado (UNICAMP, Campinas, SP) [email protected]

Resumo: Após uma trajetória inicial como compositor ligado às escolas de samba, Martinho da Vila fez sua estreia na indústria fonográfica com o lançamento de seu primeiro LP Martinho da Vila , no ano de 1969. O presente texto trata da primeira faixa desse disco, que reúne três sambas de sua autoria: Boa noite, Carnaval de ilusões (em parceria com Gemeu) e Caramba. Através de apontamentos analíticos sobre seu arranjo, sua letra, sua melodia e sua harmonia, articulado a um panorama do contexto histórico em que foi produzido, busca-se desvendar alguns significados presentes nesse fonograma, percebendo-o como uma expressão de ideias e valores que se apresentavam para os artistas da música popular na passagem da década de 1960 para a de 1970.

Palavras-chave: música popular; samba; partido-alto; tradição.

Martinho da Vila: a new lineage of Brazilian samba in the 1970s

Abstract: After an initial career as a composer on samba schools, Martinho da Vila made ​his debut in music industry with the release of his first LP in 1969. This article discusses the first track of Martinho’s album, which combines three sambas of his own: Boa noite [Good evening], Carnaval de ilusões [Illusions carnival] (in partnership with Gemeu) and Caramba [Wow]. Through analytical notes on their arrangement, their lyrics, its melody and its harmony along with the observation of the historical context in which it was produced, we seek to reveal some meanings of that phonogram, perceiving it as an expression of ideas and values presented for popular music artists in the transition of the 1960’s to the 1970’s.

Keywords: popular music; samba; partido-alto; tradition.

1 – “Tradição” e “modernização” no samba O reconhecimento do samba como um gênero musical cultural brasileira se deu em meio a um campo de forças data das primeiras décadas do século XX. Inicialmente balizado por construções ideológicas diversas que identificado como prática circunscrita a redutos onde se podem ser agrupadas em duas grandes perspectivas: a concentrava a população de ex-escravos no Rio de Janeiro da valorização da “tradição” e a da sua “modernização”. e associado ao mundo da malandragem, ele foi promovido, Em determinados momentos, tais perspectivas oscilaram especialmente durante o período getulista, à condição entre movimentos de confluência e oposição. de símbolo da brasilidade. A expansão do mercado de música popular, impulsionada pelo desenvolvimento da Ainda nos anos de 1930, a construção da ideia de “tradição” indústria fonográfica e pela consolidação da radiofonia do samba implicou na identificação dos morros cariocas, comercial, se constituiu na base a partir da qual atuaram espaços ocupados por segmentos sociais populares, como inúmeros agentes individuais e coletivos na conversão berço2 desse repertório, uma espécie de lugar mítico de do samba no segmento musical representativo da onde emanavam os mais “autênticos” elementos da nossa nacionalidade. Como observa VIANNA (1995), não foram cultura popular. Conforme explicitado por Natpolitano, apenas os afro-descendentes que protagonizaram esse nesse momento verificava-se o movimento de subida ao processo, mas outros segmentos sociais como ciganos, morro como maneira de entrar em contato direto com baianos, cariocas, intelectuais, políticos, folcloristas, essa “tradição”: compositores eruditos, milionários etc., cada um ao seu modo e movidos por objetivos diversos, promoveram A partir de 1935, incrementou-se a prática das visitas organizadas aos morros e às escolas de samba, por parte de personalidades a um só tempo sua fixação e nacionalização. Mas a nacionais e estrangeiras, ciceroneadas pelos mediadores de promoção do samba à condição de símbolo da identidade plantão: artistas cultos, intelectuais boêmios e sambistas das

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 03/07/2012 - Aprovado em: 04/01/2013 208 MACHADO, A. C. Martinho da Vila: uma nova linhagem do samba nos anos de 1970... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.208-221.

comunidades envolvidas. Esse movimento simbólico buscava valor / Eu sou o rei do terreiro / Eu sou o samba / Sou reafirmar a nacionalidade ancorada nas tradições populares, para natural daqui do Rio de Janeiro”. reinventar as bases da brasilidade e redirecionar os caminhos da arte brasileira, culta e popular (NAPOLITANO, 2007, p.33) Ao longo da década de 1960 o embate entre a “tradição” Ao mesmo tempo em que a “autenticidade” aparecia e a “modernização” ganhou novos contornos. Orientados como um sinal de legitimidade do samba, ganhava pelo ideário nacional-popular redefinido por organizações força o movimento orientado por uma perspectiva e intelectuais de esquerda, juntamente com o Centro mais conservadora que postulava a necessidade de Popular de Cultura (CPC da UNE), artistas da música “higienizá-lo” e “discipliná-lo” (NAPOLITANO, 2007, popular buscaram conhecer melhor a música do “povo” p.44). Tal empreitada mobilizava ações diversas como a com o objetivo de se integrar a ele, promovendo a sua “melhoria da qualidade poética” das letras, o abandono autoconsciência enquanto sujeito revolucionário. Nesse das temáticas ligadas à malandragem como a apologia à sentido, houve tanto uma nova ênfase nos morros e nas vadiagem e o refinamento musical das composições. Ary escolas de samba como detentores da “autenticidade” do Barroso parece ter traduzido plenamente essas metas em samba quanto uma ampla politização da canção popular. Aquarela do Brasil, música que se converteu no exemplo Assim, a “tradição” aparecia intimamente vinculada ao emblemático da safra de composições identificada engajamento político. Sambas como Zelão de Sérgio como “samba-exaltação”. Para Marcos Napolitano, esse Ricardo, interpretado pelo autor em gravação de 1960 cancionista se mostrava partidário (RICARDO, 1960, LP), e Influência do jazz, de , lançado pela Philips em 1963 (LYRA, 1963, LP), são bons da fusão dos temas urbanos do samba com as letras de motes exemplos dessa nova tendência. O primeiro empregava folclóricos e passadistas, ao mesmo tempo em que apoiava a modernização musical do samba, por meio de novas harmonias mais um estilo vocal semelhante ao de , mas sincronizados com a música popular internacional, cujo paradigma com arranjo bossanovista, e se referia ao sofrimento era a música norte-americana. Portanto, o samba deveria “abrir a da população pobre dos morros cariocas: “Todo morro cortina do passado” nacional e realizar a fusão com a tradição, sem entendeu quando Zelão chorou / ninguém riu, ninguém negligenciar a modernidade (NAPOLITANO, 2007, p.44-5). brincou e era carnaval”. O segundo é um samba-jazz cuja Se Aquarela do Brasil representou, nos anos de 1940, uma letra aborda o problema da descaracterização do samba em maneira de conciliar “tradição” e “modernização”, na década decorrência da incorporação de traços estilísticos do jazz. seguinte, a polarização entre essas duas perspectivas se Para se livrar das influências estrangeiras e renascer em acentuou. O debate entre os que valorizavam a adoção de toda sua “autenticidade”, o compositor propõe ao “pobre procedimentos jazzísticos como estratégia de refinamento samba”: “Volta lá pro morro / E pede socorro / Onde nasceu”. da música popular e os adeptos da preservação da “pureza” das nossas tradições culturais aparece nas páginas da No entanto, essas composições mostram que alguns dos Revista da Música Brasileira, editada por Lúcio Rangel, artistas mais comprometidos com o projeto da canção que circulou durante os anos de 1954 e 1955. Conforme engajada e nacionalista, ao mesmo tempo em que nos mostra a pesquisadora Joana SARAIVA (2007), essa buscavam assimilar modos de expressão característicos revista foi porta-voz de um amplo debate sobre o jazz, da cultura popular, não deixavam de lado elementos que era visto por alguns como fonte de procedimentos que musicais considerados inovadores. Eles buscavam descaracterizavam a música brasileira, mas por outros, conciliar o vínculo com a “tradição” e com “modernidade” como um símbolo de “modernização”. estética. “Sou a favor das influências estrangeiras, desde que não destruam as raízes culturais nacionais”, dizia Em 1955, dois lançamentos fonográficos traduziram esse Carlos Lyra, fundador e diretor do Departamento de confronto. O primeiro foi a composição Rapaz de bem Música do CPC (ABRIL CULTURAL, 1971). Essa tendência de Johnny ALF (1955, 78 rpm), lançada pela gravadora se consolidou principalmente após o golpe militar de Copacabana. Trata-se de um samba que contém 1964, quando a música popular politizada passou a elementos característicos do jazz norte-americano, que ocupar maiores espaços nos meios de comunicação de aparecem em determinados aspectos da composição massa, especialmente na televisão. Exemplos disso foram como a progressão harmônica e a organização da seção o programa O Fino da Bossa da TV Record e os Festivais rítmica. A letra faz referência à boa vida dos jovens da de Música Popular Brasileira e da Canção, promovidos zona sul do Rio de Janeiro, região da cidade habitada pelas emissoras TV Excelsior, TV Record e TV Globo. pela classe média carioca. Essa música, sintonizada Nesse período, no qual se verifica a configuração de um com a perspectiva da “modernização” do samba, foi novo contexto de produção, divulgação e consumo de considerada como uma das precursoras da bossa nova3. bens culturais apoiado no desenvolvimento da indústria A segunda foi a composição de Zé Kéti, intitulada A voz cultural, emerge um amplo segmento fonográfico do morro, interpretada por Jorge Goulart e lançada pela identificado pela sigla MMPB (Moderna Música Popular Continental (GOULART, 1955, 78 rpm). Trata-se de um Brasileira), posteriormente simplificada para MPB. samba “tradicional” cuja letra enfatiza os espaços míticos Buscando articular “tradição” e “modernização”, essa da “tradição” como o morro, o terreiro e a cidade do Rio sigla expressava o que Ridenti nomeou de “romantismo de Janeiro: “Eu sou o samba / A voz do morro sou eu revolucionário”, ou seja, uma construção ideológica que mesmo, sim senhor / Quero mostrar ao mundo que tenho buscava “no passado (as raízes populares nacionais) as

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bases para construir o futuro de uma revolução nacional político-ideológicos de exclusão de parte significativa da modernizante que, no limite, poderia romper as fronteiras produção musical da época, possibilitando que a canção do capitalismo” (RIDENTI, 2000, p.51). Esse segmento brasileira passasse a incorporar novas dicções. De certo se consolidou na segunda metade da década de 1960, modo, o rompimento dessas comportas representou um abrigando um leque de tendências da canção nacionalista primeiro sinal do enfraquecimento da legitimidade da como o samba “autêntico”, as composições concebidas ideia de identidade nacional. Aos poucos, verificou-se a partir da estilização de material “folclórico” ou de em determinadas frentes a desarticulação entre popular “gêneros convencionais de raiz”, e as canções parodísticas e nacional. A configuração brasileira da contracultura, da Tropicália (NAPOLITANO, 2007, p.110). as atenções voltadas para questões ligadas à sexualidade, às drogas, à marginalidade do artista, à Durante os anos 1970, a tensão entre o “tradicional” negritude, juntamente à tendência da idilização do e o “moderno” parece ganhar novos sentidos. A passado comunitário, resultaram na valorização de um reconfiguração desses parâmetros se deu num contexto popular que, ao invés de se identificar com a nação, complexo que se delineou principalmente a partir de final expressava a busca por outras identidades de recortes do decênio anterior. A repressão política, acompanhada regionais ou locais. Tais representações se refletiram de pelo recrudescimento da prática da censura, que se alguma forma em vários campos artísticos dos anos 70, impôs à sociedade após a decretação do AI-5 em em especial na música popular. Foi nesse ambiente que dezembro de 1968, o desenvolvimento indústria cultural, Martinho da Vila iniciou sua carreira como compositor e impulsionando a consolidação do mercado de bens intérprete profissional. simbólicos no país, e o crescimento econômico acelerado, resultante da política de modernização conservadora, 2 – Martinho da Vila, partido-alto e a MPB produziram fortes impactos sobre a arte e a cultura. O General Médici, que personificou o período mais sombrio Martinho José Ferreira nasceu no ano de 1938 em uma do regime ditatorial militar, tentou fomentar um clima de fazenda na cidade de Duas Barras – RJ. Ainda menino, euforia, especialmente entre setores de classe média que sua família se mudou para o Rio de Janeiro, passando se beneficiaram da expansão econômica, denominado a residir na Serra dos Pretos Forros, morro situado no “milagre brasileiro”, com discursos pautados por um Bairro de Lins de Vasconcelos. Após a morte do pai, nacionalismo ufanista. A conquista do tri-campeonato a família, muito pobre, se dispersou e Martinho foi de futebol pela seleção brasileira em 1970, por exemplo, viver na casa de duas professoras solteironas onde se foi claramente instrumentalizada pelo governo. Ao dedicou a atividades domésticas e teve a oportunidade mesmo tempo, a indústria cultural incorporou aspectos de estudar. Ele mesmo dizia que tivera dois tipos de da brasilidade nacional-popular que se traduziram formação: no morro, convivendo com crianças da especialmente nos conteúdos de programas televisivos sua classe, jogando “peladas” e vivenciando práticas nos anos 70. De certo modo, esse ideário aos poucos e rituais da religiosidade afro-brasileira, e na casa foi perdendo o sentido utópico e se integrando à ordem da cidade, onde além de estudar, recebeu formação autoritária. Como afirma Ridenti, católica. Preocupado com a sobrevivência, ao concluir o curso primário, procurou pelo SENAI onde acabou se após as derrotas de 1964 e 1968, a busca romântica da especializando em química industrial e farmácia. Após identidade nacional do homem brasileiro permaneceria, porém ingressar no serviço militar, seguiu carreira e chegou mudavam as características desse romantismo, que foi deixando de ser revolucionário para encontrar um lugar na nova ordem ao posto de sargento. (RIDENTI, 2010, p.106). Martinho se inseriu no meio musical através das escolas No âmbito da música popular, se a censura muitas vezes de samba. Na época em que morou na Serra dos Pretos cerceou a produção de muitos compositores, em outros Forros, participou da Acadêmicos da Boca do Mato, momentos exigiu desses artistas habilidades para adotar, primeiramente tocando frigideira e tarol, depois como como diz Tatit, “manobras criativas” visando enganar os compositor (CABRAL, 1996, p.358). Mais tarde, transferiu- censores e fazer com que seus recados chegassem até se para a , onde se tornou Martinho os ouvintes. Ao mesmo tempo, os processos criativos da Vila. Em 1967, compôs o enredo Carnaval de ilusões, deixaram de ser norteados por parâmetros subjetivos, obtendo boa repercussão no desfile. Isso lhe motivou a como acontecia nos anos anteriores, e se tornaram cada inscrever a canção Menina moça no III Festival de Música vez mais pautados pelas “leis frias do mercado” (TATIT, Popular Brasileira da TV Record, composição que ficou 2004, p.228). Nesse cenário, os marcos que orientavam entre as 30 selecionadas para as etapas finais do certame. a tomada de posição no campo da produção musical No ano seguinte, concorreu no IV Festival da mesma começaram a se confundir. A intervenção tropicalista emissora com Casa de bamba, composição que lhe abriu produziu abalos profundos nas polarizações tradicional/ espaços no mundo do disco. Essa canção foi incluída no moderno, nacional/internacional, bom gosto/mau LP Philips IV Festival da Música Popular Brasileira – TV gosto, as quais se manifestavam, por exemplo, nos Record (Vol.1), de 1968, e no ano seguinte foi gravada confrontos entre música engajada e música alienada, por no LP Jair de Todos os Sambas (Vol. 1), MPB e Jovem Guarda (TATIT, 2004, p.209). Mais do que lançado pela mesma gravadora, onde ainda consta outra isso, a vanguarda tropicalista pôs em xeque os critérios canção de sua autoria, intitulada Pra que dinheiro.

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Em 1969, Martinho foi convidado pela RCA Victor para Alguns dos primeiros registros fonográficos rotulados gravar seu primeiro LP contendo 12 canções de sua autoria. como samba apresentam características que permitem A partir desse ano sua carreira deslanchou e Martinho associá-los ao partido-alto. Esse é o caso do famoso da Vila se projetou como um cancionista de grande Pelo telefone, de 1917, considerado durante muito popularidade, lançando um LP por ano, todos pela RCA tempo como o primeiro samba gravado6, mas que se Victor, acompanhados por compactos simples e duplos, os trata, de fato, de uma criação coletiva, improvisada, quais apresentaram um considerável sucesso no mercado dos frequentadores da casa da Tia Ciata, que foi fixada musical. Apenas para se ter uma amostra, de acordo com por Donga e Mauro de Almeida, sendo posteriormente dados sobre vendagem de discos publicados mensalmente registrada em disco pelo cantor Baiano. Nessa pelo IBOPE do Rio de Janeiro, durante os anos de 1974 composição se observa uma simplicidade harmônica e e 1976, o nome de Martinho apareceu entre os mais melódica, juntamente com versos curtos, especialmente vendidos em todos os meses, alcançando ainda, nesse em trechos como “Ai, se a rolinha / Sinhô, sinhô / Se mesmo período, a primeira colocação por quatorze vezes4. embaraçou / Sinhô, sinhô / É que a avezinha / Sinhô, sinhô / Nunca sambou / Sinhô, sinhô”. Olhando para o conjunto da discografia de Martinho nota-se a presença de elementos visuais, performáticos, Segundo o professor, baterista e percussionista Oscar discursivos e musicais que revelam a preocupação de se BOLÃO (2010), o partido-alto apresenta ainda um criar uma aura de “tradição” e “autenticidade” sobre essa padrão rítmico característico, geralmente executado pelo produção. Operando com aspectos da própria biografia do pandeiro, que o diferencia do samba urbano. Enquanto o compositor, agentes da indústria e críticos construíram acompanhamento do pandeiro no samba se caracteriza a imagem de um sambista genuíno, que fala a partir de apenas pela subdivisão da pulsação, no partido-alto esse dentro da cultura popular. Vale destacar que Martinho instrumento costuma executar uma figuração rítmica não foi passivo nessa empreitada; de certo modo, soube peculiar, como se vê no Ex.1: se posicionar como protagonista de todo o processo. Em boa parte dos fonogramas de Martinho, ouve-se Uma característica marcante do estilo de Martinho, uma levada rítmica bastante próxima a esta apresentada enfatizada por ele e por alguns de seus críticos, é o por Bolão e considerada típica do partido-alto. Por emprego de aspectos do partido-alto. De acordo com sua vez, o próprio Martinho entende que é esse tipo o compositor e antropólogo Nei LOPES (1992), o termo de acompanhamento que caracteriza a “cadência” do partido-alto comporta uma série de significados, tanto partido-alto7. Sobre essa base rítmica, versos curtos8 entre os “partideiros” quanto entre os estudiosos. O são entoados a partir de melodias e harmonias simples, autor informa que, para Zinho, sobrinho da Tia Ciata5, geralmente contendo sequências de três ou quatro o “verdadeiro” partido-alto não era cantado, mas acordes que se repetem ao longo de toda a canção9 e instrumental. Já para João da Baiana, o partido-alto com melodias consistindo basicamente em arpejos era cantado em dupla, trio ou quarteto, com os solistas desses mesmos acordes, lembrando cantigas folclóricas. improvisando versos para que os demais presentes O canto falado de Martinho, com ênfase nos cortes nas sambassem, e exemplifica com a canção Patrão, prenda consoantes, reforça a pulsação rítmica, bem como o seu gado (LOPES, 1992, p.47-48). Escutando-se esse caráter despojado e bem humorado do partido-alto10. partido-alto na gravação de ALMIRANTE (1968, LP), nota- se uma considerável simplicidade harmônica, uma vez Ao longo da trajetória de Martinho nota-se ainda a que na estrofe são ouvidos somente os acordes de Tônica preocupação do compositor e dos produtores em (re)criar e Dominante e no refrão estes são acrescidos pelo acorde o clima de simplicidade e a espontaneidade das rodas de Subdominante. Percebe-se também o uso de versos de samba. Ao descrever o processo de gravação de seu curtos e, sempre que possível, rimados: “Ô, patrão, prenda primeiro LP, por exemplo, Martinho destaca seu caráter seu gado / Na lavra tem um ditado / Quem mata gado é espontâneo, veiculando a ideia de que eles teriam feito jurado / Missa de padre é latim / Rapaz solteiro é letrado uma roda de samba dentro do estúdio e que todas as / Em vim preso da Bahia / Porque era namorado”. intervenções teriam acontecido posteriormente.

Ex.1 – Padrões rítmicos do pandeiro no samba e no partido-alto segundo BOLÃO, 2010, p.24 e 93.

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Aí fui para o estúdio, levei um cara do cavaquinho, outro com Outra forma de estreitar seu vínculo com a “tradição” pandeiro, eu mesmo toquei o tantã e fui gravando. Eu e o técnico se deu através das regravações que Martinho fez de só lá, nunca tinha entrado em um estúdio. Aí, logo depois me chamaram lá. Quando eu cheguei, estava todo mundo numa composições dos “pioneiros” do samba. Em seu LP de euforia danada [...]. “Olha, nós já temos o disco!” [...] Eu falei: “Mas 1972, ele gravou o partido-alto Batuque na cozinha, de vocês já escolheram as músicas?” “Já escolhemos! Olha, aquele João da Baiana (VILA, 1972, lado B, faixa 1), canção que monte de música que tem lá dá pra fazer dois discos! Já vamos ainda deu o título ao disco. No ano seguinte, o sambista fazer um disco com aquelas tuas músicas lá. Aquele é o disco, já temos, vamos só melhorar um pouquinho umas coisas, fazer registrou Pelo telefone, de Donga e Mauro de Almeida uma mixagem, botar mais um trombonezinho, botar um coro, um (VILA, 1973, lado B, faixa 1) e, por fim, em 1974, lançou vocal...” (VILA, 2008, DVD, 16min49s a 17min57s). sua versão do partido-alto Patrão, prenda seu gado, composto por Donga, Pixinguinha e João da Baiana De fato, ao se escutar o primeiro disco de Martinho, (VILA, 1974, lado B, faixa 1). Ao regravar esses sambistas, não se percebe nele a existência de grandes introduções já plenamente legitimados àquela época, Martinho instrumentais ou de arranjos complexos. Ao contrário, da Vila acabava firmando em bases mais sólidas a sua existe uma considerável simplicidade no que se refere à proximidade com a “tradição” do samba, como expressou parte musical. Das doze faixas que compõem o LP, em duas o crítico musical Tárik de Souza: “Martinho construiu uma delas (Quem é do mar não enjoa e Pra que dinheiro) não há obra de sólidos alicerces edificados sobre as formas dos introduções instrumentais, mas é o próprio Martinho que pioneiros (Donga, João da Bahiana, Monsueto) a quem entra cantando sozinho, sem acompanhamento; somente gravou meticulosamente” (SOUZA, 1983, p.168). após a entrada do vocal é que os instrumentos da seção rítmica tocam. Em outros quatro fonogramas (Quatro A despeito de todo esse vínculo que Martinho buscava séculos de modas e costumes, Casa de bamba, Brasil estabelecer com a “tradição”, cabe lembrar que até então mulato e Parei na sua / Nhêm, nhêm, nhêm), somente o o samba se encontrava circunscrito aos limites da MPB, o acorde de tônica é tocado pelos instrumentos harmônicos, que significa dizer que os mesmos ideais de “modernização” juntamente com a percussão, fornecendo ao cantor a que norteavam a produção deste segmento também tonalidade e o andamento da canção. Os três fonogramas deveriam balizar a produção dos sambistas. Isso fez com com introduções mais extensas e com maior grau de que parte do repertório de Martinho da Vila enfrentasse elaboração (O pequeno burguês, Tom maior e Grande amor) resistência de alguns de seus pares, uma vez que o não vão além da execução de trechos das melodias pelo cancionista retomava um tipo de samba mais primitivo, trombone com o acompanhamento da seção rítmica. que não tinha vínculos com o processo de “modernização” e refinamento que essa produção havia experimentado Por sua vez, no segundo LP do sambista, Meu laiaraiá ao longo dos anos. Nesse sentido, as declarações de (VILA, 1970, LP), percebe-se um cuidado maior na Pixinguinha sobre Martinho são emblemáticas, pois, elaboração dos arranjos, com a criação de introduções para o maestro, o samba de Martinho era “a coisa mais mais extensas e a incorporação de outros instrumentos medíocre que existe” (citado em SOUZA e ANDREATO, como cordas, madeiras, contrabaixo, bateria e piano. 1979, p.235). Isso porque, por mais que Pixinguinha Contudo, ao mesmo tempo, verifica-se uma preocupação também tivesse apresentado vínculos com o partido-alto em não deturpar a “pureza” de Martinho da Vila. Isso mais “tradicional”, o compositor foi formando seu habitus se encontra expresso de modo bastante claro em um em meio ao processo de “modernização” do samba. Isso pequeno texto na contracapa do LP, escrito pelo produtor se percebe ainda pelo fato de que no mesmo festival em Romeo Nunes: que Jamelão defendeu o primitivo partido-alto Menina moça de Martinho, Elza Soares apresentava o moderno Tivemos o cuidado de cercar a voz selvagem de MARTINHO de samba Isso não se faz, composto por Pixinguinha e arranjos leves, simples e funcionais (de Severino Filho e Ivan Paulo) mantendo intacta a base de autenticidade de suas composições Hermínio Bello de Carvalho, com progressões harmônicas (NUNES, 1970). mais ousadas e melodias menos diatônicas.

Ao longo da discografia produzida por Martinho durante Nota-se, assim, que a música de Martinho era produzida os anos 1970 podem ser encontrados novos exemplos em meio a uma tensão entre, de um lado, a busca pela dessa preocupação com a “autenticidade”. Isso se “tradição” e “autenticidade” e, de outro, o refinamento manifesta, por exemplo, na gravação de faixas que do samba no contexto da MPB. A seguir, procuraremos reúnem vários sambas numa espécie de pout pourri, apontar de que modo esses ideais já apareceram no conectados por intermédio de comentários falados do primeiro fonograma de seu LP de estreia, ou seja, na próprio intérprete, simulando o ambiente de uma roda de faixa que simbolicamente o introduziu no mercado samba. Tal procedimento foi empregado já na primeira de discos. Nela se encontram reunidos três sambas de faixa de seu LP de estreia (VILA, 1969, lado A, faixa 1) e Martinho, Boa noite, Carnaval de ilusões e Caramba, depois em Seleção de partido-alto (VILA, 1971, lado B, todos precedidos por um comentário do próprio autor. faixa 1), em Sambas de roda e partido alto (VILA, 1972, A descrição e a análise desses sambas revelam tanto as lado B, faixa 1) em Tributo a Monsueto (VILA, 1973, lado ações estratégicas implementadas por Martinho para se A, faixa 1) e em duas faixas de seu LP Tendinha (VILA, integrar ao mercado musical como os novos sentidos que 1978, lado A, faixa 2 / lado B, faixa 2). o samba irá adquirir ao longo da década de 1970.

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3 – Boa noite: o pregão de um sambista compositores, presidentes, diretores, diretor de harmonia “autêntico” e pastoras – e mostrava seu entusiasmo para trabalhar pela escola (“Pra Vila eu trago / Toda a minha inspiração”). A primeira canção desse fonograma, Boa noite, consiste em um samba de quadra composto por Martinho para Atentando-se para a construção harmônica e melódica saudar os integrantes da Escola de Samba Unidos de Vila desse samba, pode-se constatar a mesma simplicidade Isabel. Contudo, antes de interpretá-lo, Martinho inicia comentada anteriormente. Harmonicamente, percebe- um diálogo com seu ouvinte, num tom coloquial e com se o uso de apenas quatro acordes diatônicos, os uma entonação alegre, bem-humorada: quais, por sinal, são os únicos acordes ouvidos durante Todo mundo pensa que eu sou baiano os quase seis minutos do fonograma em questão. Mas eu nasci no carnaval de 38, em Duas Barras, Estado do Rio Do ponto de vista melódico, destaca-se a pouca Fui criado na Serra dos Pretos Forros, ocorrência de graus conjuntos, em virtude da melodia Um morro [...] que a Eliana de Lima cantou num lindo samba do João Laurindo, apresentar muitas notas de acordes. As frases “Boa Não é, Romeu? noite, Vila Isabel” e “Quero brincar o carnaval” (c.1- A Serra fica lá na Boca do Mato, meu primeiro reduto de samba 7), por exemplo, apresentam somente as notas do Num bairro que ficou famoso por causa do velho casarão da Tia acorde de Bb; do mesmo modo, a frase “Boa noite, Zulmira Muito falado pelo Ponte Preta diretor de bateria” também contém exclusivamente Pra ser o Martinho da Vila, eu tive que fazer um samba notas do acorde de Cm. Com isso, tem-se uma melodia (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 4s a 33s) majoritariamente construída com consonâncias. Tal aspecto pode ser compreendido pelo fato de que não Um início como esse confere certo caráter de há nenhuma menção de que Martinho domine um espontaneidade ao fonograma. De certo modo, ele simula instrumento harmônico; isso significa que, para que os o ambiente informal de uma roda de samba no qual instrumentistas que o acompanhavam conseguissem Martinho se apresenta ao público, numa espécie de pregão deduzir a harmonia, era preciso que esta já estivesse no qual o sambista fala das suas origens e da sua trajetória. desenhada na própria melodia. Contudo, conforme já O conteúdo do texto revela a tentativa de atribuir a marca exposto, isso entrava em conflito com os ideais da de sambista “autêntico”, não se limitando a contar que MPB, segmento hegemônico que também se pautava nascera no ano de 1938, mas sim no carnaval de 1938. pela busca de refinamento estético12. E, ao que parece, essa não é uma menção gratuita: ao destacar o fato de que havia nascido no carnaval, é Além de enfatizar sua ligação com a escola de samba, como se Martinho insinuasse que nascera predestinado polo de “autenticidade”, Martinho também lembra, já no a ser sambista. Tal relação se encontra implicitamente segundo verso de Boa noite, que a Vila Isabel é a terra desenvolvida em sua composição Linha do Ão, gravada de Noel Rosa, personagem reconhecido não só como no LP Meu laiaraiá, de 1970, quando Martinho sugere um dos mais importantes compositores da nossa música que sua ligação com a música popular teria um caráter popular, mas como representante legítimo da “tradição” do hereditário, uma vez que seu pai era um bom improvisador samba13. Curioso seria perceber, porém, que Noel Rosa se ao som do calango: “O meu pai era colono / E meeiro muito relaciona justamente a um tipo de samba diverso daquele bom / Calangueava a noite inteira / Não perdia verso, não” que estava sendo produzido por Martinho: enquanto (VILA, 1970, lado B, faixa 4). Cabe lembrar que, segundo este se apropriava de um samba mais primitivo, no caso, LOPES (1992, p.29-30), o calango foi objeto de interesse o partido-alto, Noel é um dos personagens centrais na por parte de pesquisadores do folclore brasileiro. Trata-se “modernização” do samba, sobretudo no sentido de seu de uma manifestação afro-brasileira inicialmente ligada refinamento poético, de seu afastamento do universo afro- ao universo rural, sobretudo ao estado de Minas Gerais, e religioso e de sua nacionalização.Enquanto que em Feitiço depois também a São Paulo, ao Rio de Janeiro e ao Espírito da Vila, de Noel Rosa, ouve-se que “A Vila tem / Um feitiço Santo, que, dentre outros elementos, caracteriza-se pelo sem farofa / sem vela e sem vintém / Que nos faz bem”, 11 desafio , em geral entre dois cantores, de se criar versos num movimento de afastar o samba dos rituais religiosos improvisados no momento da performance. Portanto, essa da comunidade negra em sua época, o partido-alto Casa de alusão ao pai de Martinho como hábil na improvisação bamba de Martinho da Vila canta: “Macumba lá na minha de versos servia para indicar uma espécie de virtude casa / tem galinha preta, azeite de dendê”. Divergências à hereditária que o sambista supostamente teria. parte, ao ingressar na Vila Isabel, Martinho não perde a oportunidade de se apoiar nos ombros desse “gigante” do O texto desse comentário também faz referência à samba. primeira escola de samba frequentada por Martinho, a Acadêmicos da Boca do Mato, e contextualiza o samba 4 – Carnaval de ilusões: renovação do samba- Boa noite (Ex.2), que é apresentado em sequência: trata- se de uma composição que marca a saída do sambista enredo através do partido-alto da Boca do Mato e seu ingresso na Vila Isabel. Como Após cantar Boa noite, Martinho da Vila aparece uma espécie de cartão de visita para a sua nova escola, novamente conversando com seus ouvintes. Em um o sambista compôs uma canção em que saudava os comentário muito rápido, o sambista anuncia o próximo integrantes da Vila Isabel – diretor de bateria, sambistas, samba a ser interpretado: “Em 67, a Vila chegou na (sic)

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Ex.2 – Boa noite (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 34s a 1min9s)

Ex.3 – início de Carnaval de ilusões (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 1min35s a 1min43s)

cidade com um enredo genial! Gabriel e Dario bolaram várias figuras do mundo infantil – os folguedos infantis, um carnaval de ilusões, sonhado por uma criança” a bola, a bonequinha e o carrossel – embalados por um (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 1min24s a 1min34s). clima de sonho e imaginação (“Fantasia, deusa dos sonhos Imediatamente começa a cantar o refrão de Carnaval esteja presente”, “seres do teu reino encantado”). de ilusões, samba-enredo composto para o desfile da Vila Isabel em 1967. Sua letra, escrita por Gemeu, fazia Fantasia, deusa dos sonhos esteja presente Nos devaneios de um inocente referências ao universo infantil, criando um clima de Ó soberana das fascinações sonho e de imaginação. A canção (Ex.3) se inicia citando Põe os seres do teu reino encantado a cantiga de roda Ciranda, cirandinha: Desfilando para o povo deslumbrado Num carnaval de ilusões Na doce pausa dos folguedos infantis Enquanto o coro feminino repete esse refrão, Martinho Repousam a bola e a bonequinha querida declama o texto original de Gemeu, onde se percebem No turbilhão do carrossel da alegre vida

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Morfeu embala a criança tão feliz imortais”, “contos triunfais” e “personagens fascinantes”. Como num sonho encantador Mesmo abordando algo que se liga ao universo infantil, Viaja ao mundo da fabulação (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 1min46s a 2min21s) a canção não priorizou a descrição desse universo, tal qual acontece no samba-enredo de Martinho, mas se Depois disso, Martinho volta a cantar (Ex.4): preocupou em exaltar (monumentalizar) a figura de Monteiro Lobato. Do ponto de vista harmônico, não se Enfim, à semelhança do que havia acontecido observa um diatonismo estrito, mas aparecem algumas anteriormente, o coro feminino repete esse trecho da Dominantes individuais e o acorde de Subdominante canção, enquanto Martinho declama outra parte do texto menor, que ampliam um pouco a tonalidade15. original de Gemeu, trazendo novos elementos ligados à infância (fada, figuras lendárias, personagens de leituras): Por sua vez, no Carnaval de ilusões de Martinho da Vila observa-se um tratamento muito mais simples, tanto poética Guiadas pela fada Ilusão quanto musicalmente. Em termos narrativos, o sambista se Se juntam lendárias figuras afasta de um tratamento monumental ao abordar um tema Personagens de leituras ligado ao universo infantil, ao cotidiano. Musicalmente, Revividos na memória Que ajusta ao imperfeito como anteriormente exposto, Martinho se mantém naquele A perfeição dos conceitos loop de acordes estritamente diatônico. Tais características, De deleitosas histórias cabe lembrar, foram repetidas pelo cancionista em outros (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 2min38s a 2min55s) sambas-enredo que compôs para a Vila Isabel.

O fato de Martinho declamar trechos dessa canção ao Esse pode ser um indício da aproximação que Martinho invés de cantá-la por inteiro sugere que ele pretende promoveu entre o samba-enredo e o partido-alto. Ou, na destacar o texto de Gemeu. Isso se deve ao fato de que verdade, de uma reaproximação. Isso porque o partido-alto, a temática desenvolvida por Gemeu e transformada por conforme Nei Lopes, é composto por um refrão, cantado em Martinho em samba-enredo era algo diferenciado em coro, e uma parte solada, com versos improvisados (LOPES, relação ao que usualmente acontecia nesse segmento 1992, p.51) e que o samba composto para o carnaval até do samba. Isso porque até então os sambas-enredo o início dos anos 1930 também apresentava uma segunda costumavam abordar “grandes” personagens ou parte aberta à improvisação de versos (FENERICK, 2005, “grandes” eventos da história brasileira, repertório que p.119). Contudo, a partir das intervenções da política ficou conhecido como “samba-lençol”14. Para se ter um varguista no repertório carnavalesco, que objetivavam tirar exemplo disso, no mesmo ano em que a Vila desfilou com a imprevisibilidade do samba e fazer com que ele passasse Carnaval de ilusões, a Mangueira sagrou-se a campeã do a veicular temas nacionais, o samba-enredo trilhou um carnaval com o samba-enredo O mundo encantado de caminho independente do partido-alto. É nesse sentido Monteiro Lobato. Essa referência ao “mundo encantado”, que se pode pensar que Martinho tenha reaproximado presente no título desse samba-enredo, sugere que a esses dois segmentos e, com isso, substituiu o caráter canção vá homenagear o escritor em questão por sua monumental que o samba-enredo havia assumido pela produção infanto-juvenil. Contudo, ao longo de seu texto, simplicidade do partido-alto. são muito breves as alusões a esse universo da fantasia, que ficam restritas ao trecho “Relembro / Aquele mundo Em decorrência disso, Martinho foi saudado por alguns encantado / Fantasiado de dourado / Oh, doce ilusão / críticos musicais e jornalistas do período como um Sublime relicário de criança”. De resto, a composição importante renovador do samba-enredo. É o que se consiste em uma série de elogios ao “escritor genial”, percebe, por exemplo, com Tárik de Souza, que afirma “grande sonhador”, possuidor de “uma luz divinal”, que “as modificações que [Martinho] introduziu com de uma “escritura emocionante” e criador de “obras a trilogia Carnaval de Ilusões (67), Quatro Séculos de

Ex.4 – segunda parte cantada de Carnaval de ilusões (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 2min21s a 2min37s)

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Modas (68) e Iaiá do Cais Dourado (69) foram cruciais” isso, o sambista reclama do pouco reconhecimento (SOUZA, 1983, p.166)16. O autor destaca ainda que não que recebeu por parte da comissão julgadora – da qual eram apenas nas letras que Martinho teria realizado também participava Chico Buarque – ao realizar essa transformações: empreitada. Esse aspecto se encontra desenvolvido no texto de sua canção Caramba, que se segue ao comentário O samba enredo iniciava, desde Martinho, um processo de já apresentado. Vejamos sua primeira parte (Ex.5): confluências e modificações que acelerariam seu ritmo, aproximando-o da velocidade da marchinha e dos chamados sambas-de-embalo ou empolgação, que transformariam esse Nas duas primeiras frases desse samba (“Fala, fala, falador / gênero no dominante do carnaval. (SOUZA, 1983, p.166-7) Não lhe dou bola porque eu sou bamba”), Martinho diz não estar incomodado diante das más avaliações que recebeu, Contudo, Tárik observa que Martinho não foi renovador uma vez que ele é um detentor da “tradição” do samba, somente no samba-enredo, mas que introduziu inovações visto que se afirma como um bamba. Por sua vez, as frases no próprio partido-alto: seguintes (“Malha, malha, malhador / Que não aceita a evolução do samba”) completam o discurso do cancionista: Numa posição paralela com que fundiu o samba ao como um “autêntico” sambista, ele pode dar um passo à cadenciado maracatu, com uma pitada de América Central e rhythm & blues americano, Martinho apanhou o aleatório partido alto, frente no samba, algo que acaba não sendo compreendido sempre complementado no ato por versos improvisados (o que é ou aceito pelos ouvintes. Isso se encontra reforçado no juízo obviamente impossível numa reprodução gravada) e cristalizou-o, que Martinho faz sobre a comissão julgadora do desfile, tal dando-lhe estrutura definida e formato identificável, tal como Luiz como se apresenta na segunda parte de Caramba (Ex.6): Gonzaga fez com o difuso baião nordestino. Martinho, portanto, na célebre classificação de Ezra Pound é um inventor, que deu origem a forma conceitualmente nova, que já não guarda senão Nesse posicionamento de Martinho, pode-se perceber semelhança com o original. (SOUZA, 1983, p.167-8) alguma ressonância daquela figura romântica do gênio: criador, inovador, à frente de seu tempo, e que acaba sendo De volta ao fonograma analisado, verificamos que ele incompreendido por seus contemporâneos17. Em uma apresenta certa unidade entre suas duas partes, uma vez matéria de jornal, localizamos uma citação de Martinho que, antes de apresentar o lado renovador de Martinho na qual o sambista toma para si essa figura de maneira presente em Carnaval de ilusões, foi enfatizado o caráter ainda mais clara. Na verdade, o texto dessa matéria trazia “autêntico” de sua produção musical, mostrando sua críticas ao show do disco Rosa do povo, de Martinho (VILA, ligação com o carnaval e as escolas de samba. Percebe-se, 1977, LP). Ainda assim, o jornalista apresentou a fala do assim, que, para ser visto como alguém capaz de renovar, próprio sambista, que se defendeu das críticas apoiando- foi preciso que Martinho se integrasse ao circuito “tradição” se nessa figura do artista incompreendido: para se legitimar. Nesse sentido, ganha destaque o conjunto de ações que acompanhou a trajetória do sambista ao O espectador paga 60 cruzeiros, senta-se em poltronas longo da década de 1970 no sentido de aproximá-lo cada desconfortáveis e tem início o show: durante três minutos um vez mais do pólo da “autenticidade” do samba. gravador reproduz a fita em que Martinho declama o poema Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade. Mais tarde, a dose seria repetida: do gravador, no ambiente todo escuro, ouvem-se, por 5 – Caramba: uma nova e incompreendida cinco minutos, as vozes de Martinho e João Nogueira cantando um samba da dupla, João e José. Por que não a apresentação do “modernização” para o samba poema e da música ao vivo? Afinal, ninguém ali entrou para ouvir Após destacar o seu pertencimento à “tradição” do samba discos. “O artista é assim mesmo”, responde Martinho da Vila, “tem umas ideias diferentes e não pode ficar preocupado se as com Boa noite e apresentar seu caráter renovador com pessoas vão entender ou não” (SANTOS, 1977, p.92). Carnaval de ilusões, Martinho faz seu terceiro e último comentário no fonograma antes de iniciar a também Interessante perceber que, se o jornalista em questão não última canção. Tal comentário ainda se remetia ao assumia o partido de Martinho, Tárik de Souza, por outro samba-enredo Carnaval de ilusões, aludindo à recepção lado, reproduz uma visão muito próxima à do próprio que o mesmo obteve no desfile em que foi apresentado: sambista. Após falar sobre as inovações de Martinho no Botar música nessa poesia do Gemeu não foi mole, não samba-enredo e no partido-alto, o crítico comenta: E os críticos meteram o pau no samba-enredo E a Vila perdeu o carnaval Todas essas mudanças mal percebidas ou pouco analisadas dão O meu amigo Chico Buarque de Hollanda dormiu medida do grau de marginalização cultural a que o samba ainda O resto da comissão não entendeu nada continua relegado. Apesar de ter sido projetado através da via No dia do resultado, eu fiz o meu primeiro samba de protesto comum dos festivais, [...] o partido alto de Martinho não pegou (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 3min57s a 4min17s) carona, sequer como pingente, na chamada linha evolutiva da música popular brasileira. [...] As modificações introduzidas de Se o fato de ter anteriormente declamado trechos de dentro pelos próprios sambistas com a incorporação de outras influências brasileiras – como são os casos de Paulinho da Viola e Carnaval de ilusões dava destaque à poesia de Gemeu, Martinho da Vila – permanecem à parte dessa evolução, na verdade agora, com o início desse comentário, Martinho chama paralela e integrada (SOUZA, 1983, p.167, grifo no original) a atenção de seu ouvinte para sua própria habilidade enquanto compositor ao destacar a dificuldade de Como um “autêntico” artista do universo do samba, transformar aquele texto em um samba-enredo. Por que consegue inovar em virtude de seu conhecimento

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Ex.5 – primeira parte de Caramba (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 4min20s a 4min50s)

Ex.6 – início da segunda parte de Caramba (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 5min8s a 5min24s)

Ex.7 – final de Caramba (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 5min24s a 5min32s)

e domínio da “tradição”, mas que não é compreendido Os versos “Nem o Chico entendeu / o enredo do meu por seus pares, Martinho finaliza essa canção com um samba” trazem uma mensagem bastante forte: nem pequeno refrão que retoma a crítica, presente já no mesmo um cancionista tão reconhecido como Chico comentário que a antecede, a um “monstro sagrado”18 da Buarque teria sido capaz de perceber as inovações que MPB, Chico Buarque. Martinho estava fazendo. Nesse sentido, Martinho

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estaria se colocando à frente de Chico, visto que ele dando o seu recado” (citado em ZAN, 2010, p.62). Por fim, representaria a renovação desse repertório, enquanto que segundo o depoimento do produtor de Martinho, Rildo este último estaria ainda preso a algum cânone. Hora, os shows do sambista eram frequentados por artistas e intelectuais da esquerda, dentre os quais destacou o já Mais do que isso, cabe perceber o novo significado que citado e o dramaturgo Dias Gomes (ver Martinho atribui ao protesto. É sabido que, para a MPB, MACHADO, 2011, p.247). a expressão “canção de protesto” era empregada para rotular um repertório engajado, que denunciava injustiças Assim, o caso de Martinho aponta para a emergência sociais e políticas, convidando para a revolução. Por de novos sentidos para o samba naquele período. Até sua vez, Martinho da Vila, ao caracterizar sua canção os anos 1960, o samba considerado legítimo era aquele “Caramba” como um “samba de protesto”, o faz com que conscientizava politicamente o “povo” brasileiro, e um novo sentido, uma vez que ele não está reclamando a “tradição” era valorizada na medida em que favorecia sobre os problemas do “povo”, mas está, de certo modo, o contato entre o artista-intelectual e o público para contestando a legitimidade e a avaliação do júri, inclusive quem este deveria se dirigir. Com Martinho, percebe-se de Chico Buarque. De modo mais amplo, pode-se dizer que seu processo de legitimação através do vínculo com a que o “inimigo” de Martinho nessa canção não é o “tradição” aconteceu sem que o sambista precisasse fazer latifúndio, o imperialismo ou o governo militar, tal qual a opção pelo engajamento político em suas composições. acontecia na canção de protesto, mas é a própria MPB, que, conforme Napolitano, funcionava como um “totem- Isso não significa que tenha ocorrido uma ruptura radical tabu” da música popular: nos parâmetros de legitimidade na música popular brasileira Como “totem”, sugere cânones, modelos, percepções estéticas e tampouco que o engajamento político tivesse deixado e informa valores ideológicos. Como “tabu”, delimita, veta e de ser um critério de consagração no campo da produção discrimina hierarquias culturais, prescrevendo possibilidades e musical do período. Pelo contrário, ao menos até o final da interdições de escuta (NAPOLITANO, 2005, p.129). década de 1970, o posicionamento político e a habilidade em driblar a censura e veicular críticas ao regime ditatorial 6 – Considerações finais eram vistos como elementos de prestígio para os artistas Feitos esses apontamentos sobre o primeiro fonograma da MPB, como se percebe no livro do sociólogo Gilberto do LP de estreia de Martinho, espera-se que seja possível VASCONCELLOS (1977), que exaltava os cancionistas visualizar de modo mais claro alguns valores e ideias que que se utilizavam dessa “linguagem da fresta”. O caso de estão implícitos nele19. Percebemos como essa faixa do Martinho aponta, na verdade, para o surgimento de uma disco apontava para seu próprio compositor e intérprete, nova linhagem do samba que, de certo modo, se desvincula apresentando-o como um sambista “tradicional” e da MPB20. Se até os anos 1960 o samba era um segmento “autêntico”, que conseguia manter a espontaneidade musical valorizado dentro das perspectivas ideológicas da e a simplicidade de sua produção, mesmo atuando no MPB, há indícios de que, a partir dos anos 1970, uma parte interior da indústria do disco. Além disso, justamente desse segmento encontrava os seus próprios critérios de por se apoiar nesse solo firme da “tradição”, Martinho legitimidade, que consistiam, no caso, em disputas pelo ainda se apresentava como um renovador – por vezes, reconhecimento da “autenticidade” das produções. incompreendido – do samba. E, nesse aspecto, Martinho da Vila não está sozinho. Na Tais características, por sua vez, remetem ao conflituoso verdade, ele aparece como um primeiro caso (ou um caso cenário da música popular brasileira no período em que de maior destaque) de um grupo maior de sambistas que Martinho tentava sua inserção. Num contexto em que a MPB despontaram no cenário da música popular na década de definia os cânones e discriminava produções destoantes, o 1970 e que possuem uma trajetória semelhante à sua. sambista foi buscar na “tradição” uma maneira de obter Respeitadas as particularidades estilísticas e biográficas legitimidade nesse campo, e parece ter conseguido certa de cada um, podem ser lembrados os nomes de Candeia, eficácia nesse processo. Ainda que o sambista não seja Mano Décio da Viola, Aniceto, Silas de Oliveira, Monsueto, reconhecido como um dos grandes cancionistas da música Paulinho da Viola, Anescarzinho do Salgueiro, Cartola, popular do Brasil, sua produção recebeu a admiração de e Nelson Sargento21. Tais sambistas importantes agentes ligados à produção musical e cultural se assemelham pelo fato de terem se projetado na década daquela época. Esse foi o caso do já citado jornalista e de 1970 com um tipo de samba que não se pautava pelo crítico musical Tárik de Souza, que escreveu matérias engajamento político, mas se assentava na “tradição”, elogiosas sobre o repertório de Martinho da Vila (SOUZA, sobretudo, por seu vínculo com as escolas de samba. 1978 e 1983). Outro jornalista que apreciava sua produção era Sérgio Cabral, que chegou a dedicar um de seus livros Essa linhagem provavelmente está nas bases do rótulo sobre as escolas de samba a “Martinho da Vila e Paulinho “samba de raiz”, que foi abordado por TROTTA (2011) da Viola, legítimos herdeiros dos sambistas do Estácio de em sua pesquisa sobre o “pagode romântico” dos anos Sá” (CABRAL, 1974, p.9). Também o poeta Ferreira Gullar 1990. O autor salienta que não é possível determinar a não deixou de sinalizar, em 1970, que “Martinho da Vila, partir de quando o termo passou a rotular a produção com o velho partido alto, repelido pelo festival, continua de sambas, mas se nota que ele foi ganhando força ao

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longo da década de 1990 (TROTTA, 2011, p.209). Segundo “tradição” e a “autenticidade”. O curioso é perceber o pesquisador, a expressão “samba de raiz” que tais critérios aparentemente não conflitavam com a inserção no interior da indústria do disco, procura estabelecer um vínculo com o passado, que seria formador onde a questão da “autenticidade” fica sensivelmente de uma base musical, ideológica, estética e afetiva para o desenvolvimento do samba. O “samba de raiz” seria um samba que abalada. Desde as reflexões de Walter Benjamin sobre procura se referir a esse passado, estabelecendo sua legitimidade a obra de arte no contexto da reprodução técnica, por esta “tradição” (TROTTA, 2011, p.210). sabe-se que “a esfera da autenticidade, como um todo, escapa à reprodutibilidade técnica” (BENJAMIN, 1994, Mesmo no caso do pagode dos anos 1980, parece haver uma p.167, grifos no original). Isso porque a “autenticidade” orientação em torno da ideia de “tradição”. Isso porque toda de algo está ligada a “tudo o que foi transmitido pela aquela geração de pagodeiros surgidos no período –Beth tradição, a partir de sua origem, desde sua duração Carvalho, Almir Guineto, , Jorge Aragão, o material até o seu testemunho histórico” (BENJAMIN, grupo Fundo de Quintal e outros – se reuniram em torno 1994, p.168). Esse percurso histórico de uma obra do bloco carnavalesco do Cacique de Ramos (ver PEREIRA, de arte já não pode mais acontecer no contexto da 2003). Certamente, não se pode desconsiderar o fato de reprodução técnica, quando um objeto (como o filme e que o Cacique não era propriamente uma escola de samba, o disco) já é criado para ser reproduzido, fazendo com e também que o próprio rótulo “pagodeiro” expressa algo que se perca a ideia da existência de um “original”22. até pejorativo, indicando uma espécie de sambista “menor” Portanto, na época das técnicas de reprodução, toda a (TROTTA, 2011, p.213). Contudo, esse mesmo status de bloco ideia de “autenticidade” ou de “pureza” é resultado de carnavalesco, ligado a certa “ancestralidade” do carnaval procedimentos técnicos: (lembrando que, historicamente, os blocos antecedem as escolas de samba), associado ao caráter de samba de No estúdio o aparelho impregna tão profundamente o real que “fundo de quintal” (uma referência ao local onde o samba o que aparece como realidade “pura”, sem o corpo estranho da era praticado em casarões como os da Tia Ciata), tudo máquina, é de fato o resultado de um procedimento puramente técnico (...). A realidade, aparentemente depurada de qualquer isso conferia certa chancela de “autenticidade” aos seus intervenção humana, acaba se revelando artificial. (BENJAMIN, membros. É justamente a partir do caráter mais “autêntico” 1994, p.186, grifos no original). dessa produção que a década de 1990 vai criar uma distinção entre o pagode do decênio anterior (que acabou Nesse sentido, aquela busca por estreitar os laços sendo lido como uma espécie de “pagode de raiz”) e aquele com a “tradição”, empreendida por Martinho e outros “pagode romântico” que começava a ser produzido. sambistas dessa linhagem no contexto da indústria fonográfica, aparece também como uma procura por Assim, a trajetória de Martinho traz indícios de que ele diferencial de mercado. E nisso o sambista de Vila Isabel tenha inaugurado ou, ao menos, protagonizado o início é exemplar, pois soube desempenhar um papel no qual de uma nova linhagem no samba, que se desvinculava aparecia como um grande vendedor de discos, sem que da MPB, rompendo com seus parâmetros estéticos e isso supostamente abalasse a “pureza” e “autenticidade” ideológicos, passando a se pautar pelo vínculo com a de seus sambas.

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220 MACHADO, A. C. Martinho da Vila: uma nova linhagem do samba nos anos de 1970... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.208-221.

______. O pequeno burguês. MZA Music / Canal Brasil, 2008. DVD. Notas 1 Agradeço a leitura atenta e as preciosas sugestões de meu orientador, Prof. Dr. José Roberto Zan. 2 A questão da “origem” do samba consiste em um amplo debate travado ao longo da história da música popular brasileira. O samba é carioca ou baiano? “Nasceu” nos morros ou nas casas das tias baianas? Tais são alguns dos questionamentos em que esse debate se pauta. Para um melhor mapeamento e discussão desse assunto, ver NAPOLITANO e WASSERMAN, 2000. 3 Sobre essa canção, vale conferir a análise de SANTOS (2006, p.44-53), que atenta para os elementos jazzísticos nela presentes. 4 Durante minha pesquisa de mestrado, tive acesso às listagens do IBOPE, disponíveis no Arquivo Edgar Leuenroth, na UNICAMP. Ao final da dissertação, encontra-se uma tabela ilustrando as aparições de Martinho da Vila nessas listas (ver MACHADO, 2011, p.278-281). 5 A baiana Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, era uma das lideranças espirituais da comunidade negra do Rio de Janeiro. Casada com o funcionário público João Batista, sua casa oferecia a proteção necessária para que se realizassem práticas culturais e religiosas dos negros, duramente reprimidas naquele início do século XX (cf. MOURA, 1983, p.64-66). 6 SANDRONI (p.118) nos lembra que, antes de Pelo telefone, outras canções com a indicação de samba já haviam sido gravadas. Contudo, elas acabaram passando despercebidas, o que não aconteceu com a canção de Donga e Mauro de Almeida, que obteve grande sucesso no carnaval de 1917 e se tornou um “marco” na historiografia do samba. 7 Em seu show O pequeno burguês, gravado em DVD em 2008, Martinho dá um depoimento no qual afirma ter colocado a “cadência” do partido- alto no samba-enredo. Para demonstrá-lo, Martinho executa no pandeiro um padrão rítmico que pode ser entendido como uma variação daquele apresentado por Bolão: (VILA, 2008, DVD, 23min20s a 24min15s). 8 Vide, por exemplo, a letra de seu partido-alto Quem é do mar não enjoa: “Quem é do mar não enjoa / Não enjoa / Chuva fininha é garoa / É garoa / Homem que é homem não chora / Não, não chora / Quando a mulher vai embora / Vai embora” (VILA, 1969, lado B, faixa 01). 9 A essa característica harmônica, Philip TAGG (2009, p.199 e seguintes) chamou de loops de acordes. 10 Interessante comparar as definições de partido-alto apresentadas em duas publicações de Nei Lopes. Na introdução de seu livro mais recente (LOPES, 2008, p.26-7), o autor repete, palavra por palavra, a definição de partido-alto que havia apresentado anteriormente (LOPES, 1992, p.51). Contudo, no livro de 2008, o autor conclui a definição com um parágrafo que destaca o humor e a espontaneidade do partido-alto, e ainda o coloca como vinculado à elite dos sambistas: “Transcendendo qualquer aspecto formal, partido-alto é, sobretudo, o samba da elite dos sambistas, bem- humorado, encantador e espontâneo” (LOPES, 2008, p.27). 11 Em sua investigação sobre o repertório do calango, Lopes destaca a existência de desafios “na linha do á, do é, do i, do ó, do u, do ão, e por aí afora” (LOPES, 1992, p.30). Interessante destacar isso, pois nos faz recordar do próprio samba Linha do Ão, de Martinho da Vila. 12 A questão da dissonância foi cuidadosamente tratada em um artigo de Freitas, que mostrou como a competência para lidar com ela foi sendo historicamente constituída como um sinal de “habilidade, beleza, esmero, maestria, [...] agudeza e engenho” (FREITAS, 2010, p.138). 13 Nesse sentido, Napolitano lembra a atuação de Almirante como radialista, sobretudo a partir de seu programa No tempo de Noel Rosa, de 1951, no sentido de consolidar a memória de Noel como um dos “grandes mestres” do samba: “Suas palestras sobre Noel consagravam os elementos criativos e biográficos que apontavam para a heroicização do poeta da Vila, digno inventor do samba moderno, ao lado de Ismael Silva, Pixinguinha, Cartola e outros” (NAPOLITANO, 2007, p.62). 14 A pesquisadora Carla Vizeu nos mostra que, na segunda metade dos anos 1930, houve um decreto que obrigava as escolas de samba a empregarem temas nacionais em seus enredos (VIZEU, 2004, p.47-50). Nos anos 1950, isso acabou se consolidando nos chamados sambas-lençol, que discorrem “sobre um tema histórico com riqueza de detalhes”, prática que teve em Silas de Oliveira um de seus expoentes (VIZEU, 2004, p.50). 15 Tais observações se baseiam na gravação desse samba-enredo presente no primeiro volume da coletânea de LPs História das Escolas de Samba (HISTÓRIA, 1975, LP). 16 Cabe lembrar que esses outros dois sambas-enredo, Quatro séculos de modas e costumes e Iaiá do Cais Dourado, também foram gravados no LP de estreia de Martinho. 17 Uma abordagem sobre a figura do gênio romântico na música pode ser encontrada em MEYER (2000). O autor entende que é provável que toda a cultura ocidental tenha sido marcada por uma tensão entre o classicismo apolíneo (valorização das convenções, coerência das formas) e o romantismo dionisíaco (valorização das particularidades e da inovação individual). Mas Meyer entende que o último romantismo, que se iniciou no final do século XVIII, consistiu numa transformação profunda na perspectiva social, política e ideológica (e, poderíamos acrescentar, estética) cujos efeitos ainda são perceptíveis contemporaneamente. 18 A expressão é de NAPOLITANO (2002). 19 Mesmo que o pensamento de Theodor Adorno seja especialmente crítico em relação à produção em música popular, o que se busca nesse trabalho é, conforme proposto por este autor, estar atento ao modo “como momentos da estrutura social, posições, ideologias e seja lá o que for conseguem se impor nas próprias obras de arte” (ADORNO, 1986, p.114). 20 Acredito que não seria correto dizer que tenha ocorrido uma separação entre o samba e a MPB. Ao contrário, um caso como o de João Bosco mostra que o samba continuava a fazer parte do repertório desse segmento hegemônico da música popular brasileira. É nesse sentido que parece preferível pensar em uma nova linhagem do samba, que não substitui a anterior, mas se apresenta como uma nova possibilidade. 21 Caberia lembrar que Silas de Oliveira e Monsueto faleceram respectivamente em 1972 e 1973, mas que tiveram regravações de sambas de sua autoria durante a década de 1970, inclusive pelo próprio Martinho. Também há sambistas que haviam aparecido já no contexto da canção engajada, mas que não assumem essa postura, buscando se pautar pelo vínculo com a “tradição” e as escolas de samba, como são os casos de Paulinho da Viola (da Portela), de Anescarzinho do Salgueiro, e de Cartola, Nelson Cavaquinho e (da Mangueira). 22 BENJAMIN (1994, p.167-8) esclarece que, no contexto anterior à reprodutibilidade técnica, o objeto original “conserva toda a sua autoridade com relação à reprodução manual, em geral considerada uma falsificação”. É essa autoridade de um objeto original que desaparece com a reprodução técnica, pois já não se pode identificar qual é o original de um jornal, de um filme, de uma fotografia ou de um disco.

Adelcio Camilo Machado é aluno do Doutorado em Música pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), onde desenvolve pesquisa sobre a música popular brasileira das décadas de 1940 e 1950 sob a orientação do Prof. Dr. José Roberto Zan e com financiamento da FAPESP. Desde 2009 é integrante do Grupo de Pesquisa Música popular: história, produção e linguagem, que é coordenado por seu orientador e pelo Prof. Dr. Antonio Rafael Carvalho dos Santos.

221 CHAVES, R. P.; VISCONTI, E. de L. Wilson Simonal em campo: reflexões sobre o álbum México 70. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.222-230.

Wilson Simonal em campo: reflexões sobre o álbum México 70

Renan Paiva Chaves (UNICAMP, Campinas, SP) [email protected]

Eduardo de Lima Visconti (UNICAMP, Campinas, SP) [email protected]

Resumo: Análise do álbum México 70 de Wilson Simonal, lançado pela gravadora Odeon mexicana em 1970. Buscamos compreender como as dimensões internas do disco, especialmente no que tange às orientações estético-musicais, condensaram alguns conflitos simbólicos presentes no processo de internacionalização da cultura e da consolidação da indústria fonográfica no Brasil. Após articular as relações entre futebol, imprensa, música popular e Estado com uma apreciação musical de cada faixa do álbum, confrontamos nossas conclusões com alguns conceitos recorrentes na literatura que trata da cultura e da música popular brasileira na década de 1970, a fim de sugerir um possível enfoque analítico para pensar a relação entre música popular brasileira e o contexto político-cultural desse período.

Palavras-chave: Wilson Simonal; México 70; Música Popular Brasileira.

Wilson Simonal in field: reflections on the album México 70

Abstract: Analysis of Wilson Simonal’s Mexico 70 album released in 1970 by the Mexican record label Odeon. We aim at understanding how the internal dimensions of the album, especially regarding the musical-aesthetic guidelines, condensed some symbolic conflicts present in the internationalization culture process and the phonographic industry consolidation in Brazil. After articulating the relations between soccer, media, popular music and the Brazilian State with a musical appreciation of each track on the album, we confronted our partial conclusions with some recurring concepts in the literature that deals with Brazilian culture and Brazilian popular music in the 1970s, in order to suggest a possible analytical approach to think the relation between Brazilian popular music and the political and cultural context of this period.

Keywords: Wilson Simonal; Mexico 70; Brazilian popular music.

1 – Introdução Recentemente, a trajetória artística de Wilson Simonal descrição biográfica relacionada ao contexto político em tem sido objeto de alguns estudos. Dentre as pesquisas que o músico desenvolveu sua carreira. Além disso, o que científicas de pós-graduação sobre o assunto podemos se nota nas representações historiográficas construídas citar: “Quem não tem swing morre com a boa cheia sobre a MPB das décadas de 1960 e 1970 realizadas de formiga: Wilson Simonal e os limites da memória no calor do momento e também posteriores a ela, é a tropical” (FERREIRA, 2007) e “A pérola negra regressa ao ausência de Wilson Simonal como participante dessas ventre da ostra: Wilson Simonal em suas relações com a narrativas históricas. indústria cultural (1963 a 1971) (HARTWIG, 2008)”. Junto a estes trabalhos, o que se encontra são livros e textos Essa situação tem se modificado progressivamente jornalísticos que citam Simonal como um coadjuvante da nos últimos anos devido às produções supracitadas e à história, além de relatos de pessoas que conviveram com reedição de discos de Simonal que ocorreram nos anos ele, como ilustra o documentário Simonal – ninguém sabe posteriores a sua morte, em 2000. Um conjunto relevante o duro que dei, dirigido por Calvito LEAL, Cláudio MANOEL de sua produção discográfica, referente ao período de e Micael LANGER (2009). De um modo geral, se verifica 1961 a 1971, foi relançado em um Box com nove CDs que o foco analítico dessas pesquisas se pauta por uma pela gravadora Odeon/EMI no ano de 2004.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 22/03/2012 - Aprovado em: 04/01/2013 222 CHAVES, R. P.; VISCONTI, E. de L. Wilson Simonal em campo: reflexões sobre o álbum México 70. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.222-230.

Todavia, muitas lacunas e equívocos sobre sua carreira e internacionais pelo Santos Futebol Clube. Até 1960, artística ainda estão em aberto. A partir dessa perspectiva, mais de vinte canções o tiveram como tema e inúmeras observamos a ausência de um estudo ou mesmo uma biografias foram publicadas, além de ser alvo constante descrição mais aprofundada sobre o álbum México 70, da grande imprensa: Pelé virou produto de consumo e lançado após a Copa do Mundo de 1970 no México1. símbolo nacional. Seu sucesso foi crescente até princípios Devido a este fato e tendo em vista as poucas pesquisas dos anos 1970, quando se sagrou tricampeão pela seleção sobre Wilson Simonal, este artigo tenciona desenvolver brasileira de futebol na Copa do Mundo do México. um enfoque mais musicológico de sua produção artística, procurando perceber de que modo a forma e o conteúdo Paralelamente, no campo musical, aparece Wilson Simonal, do repertório de seus álbuns – no caso, do disco México que iniciou sua carreira como cantor de bailes e como 70 – condensaram alguns conflitos simbólicos presentes apresentador do programa “Os Brotos Comandam” em na conjuntura sócio-política da época. 1961. Em 1963, lançou seu primeiro disco autoral intitulado Wilson Simonal Tem Algo Mais, recheado de arranjos ao O que vislumbramos nesse artigo está ligado à importância estilo bossanovista. Com uma sonoridade parecida com este desse álbum, que remonta diretamente a um período no trabalho, seguiu seu segundo álbum – A Nova Dimensão qual Wilson Simonal estava no topo de sua carreira em do Samba (1964). Em 1965, lançou seu terceiro disco, termos de vendagem de discos, com grande quantidade transitando entre diversos estilos de samba: interpretando de shows, fama e dinheiro, e a um momento que ainda , Dorival Caymmi, Zé Ketti e Tom Jobim. Após é pouco explorado em pesquisas sobre música popular. outros trabalhos nessa mesma tendência, Simonal lançou, Como analisa Marcos Napolitano, a MPB foi o centro de em 1967, uma canção, em estilo samba soul2, denominada mais um paradoxo presente na década de 1970, formado Tributo a Martin Luther King (1967)3, trazendo à tona a pela relação entre a afirmação de valores ideológicos temática da luta do negro frente às barreiras do preconceito: através da canção e o consumo musical orientado por de certa forma Simonal representou essa luta no contexto sofisticados mecanismos de mercado. Na argumentação brasileiro (HARTWIG, 2008). do historiador, esse período sugere inúmeros problemas que ainda precisam ser decifrados pela investigação Essa influência da soul music na obra de Simonal foi, acadêmica (NAPOLITANO, 2002, p.11). possivelmente, orientada pelas carreiras de James Brown e Ray Charles nos Estados Unidos, pois esse gênero serviu Pretendemos, portanto, analisar o repertório do álbum de fundo musical para o engajamento desses artistas pela México 70 de Wilson Simonal relançado pela gravadora luta dos direitos civis dos negros na sociedade norte- EMI no ano de 2010. Considerando-se a relação entre americana (GONÇALVES, 2011)4. futebol, imprensa, música popular e Estado no Brasil, principalmente entre os anos das conquistas das Copas do A partir de então, Simonal entra na fase denominada Mundo de 1958, 1962 e 1970, articulada a uma análise pilantragem, que, segundo Carlos Imperial5, arranjador das músicas que compõem o disco, procuramos refletir de muitas das gravações do cantor, era uma maneira como esse disco condensou possíveis conflitos simbólicos mais “solta”, dançante e swingada de se fazer arranjos e presentes no universo sociocultural do final dos anos de músicas. Algumas canções de sucesso nessa época foram: 1960 e início da década de 1970 dentro de um processo Meu Limão, Meu Limoeiro (1966), Nem Vem Que Não Tem de internacionalização da cultura e consolidação da (1967) e Sá Marina (1968). indústria fonográfica no país. Em 1968, Simonal já era uma das pessoas mais famosas do 2 - Simonal e Pelé: música, futebol, imprensa Brasil, disputando espaço com Roberto Carlos e Pelé, além e Estado de ter reconhecimento internacional (BOSCO, 2009). Nesse No pós Segunda Grande Guerra, o futebol brasileiro já momento, podemos dizer que o artista se torna um dos era um esporte fortemente regulado pelo governo, que símbolos nacionais: cantor sofisticado, afinado, cativante articulava e garantia sua popularidade pelos jornais e eclético; assim como Pelé jogava, Simonal cantava. Com e rádios. Frente ao forte abalo que recebeu o futebol tremenda facilidade e autêntica habilidade, providos de europeu devido às destruições físicas e organizacionais “dom” e envoltos à noção de mito6, os dois representavam decorrentes da guerra, o futebol brasileiro ganhou força aquilo que de “melhor” havia no Brasil: o futebol e a música. no plano nacional e reconhecimento internacional e começou a se tornar orgulho nacional (BRANCO, 2006). Em A partir da imposição do AI-5 em 1968, o ditador Médici, concordância com um contexto histórico de conturbação que assumiu a presidência do Brasil em 1969, frente à queda política e de mudança da percepção da questão social, de popularidade do regime ditatorial, passou a utilizar o no qual a identidade nacional é reformulada pela futebol para reconquistar algum prestígio com a população: emergência de novos heróis e mitos (anos 1960) – ou começou a frequentar as tribunas do Flamengo, a participar seja, novos símbolos e ídolos nacionais, divulgadores e da escalação e dos treinos da seleção brasileira, assim como representantes legítimos de uma identidade reconstruída a caracterizar e enfatizar o futebol como orgulho nacional, –, surge Pelé, consagrado, depois da conquista da Copa do símbolo da identidade nacional brasileira, uma das belezas Mundo de 1958 realizada na Suécia e dos títulos nacionais “naturais” do Brasil (BRANCO, 2006).

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Nesse período, anterior à Copa de 1970 do México, é Kiki, composta por Simonal e que possui influência permeava na sociedade um clima ufanista. Wilson Simonal da pilantragem. A quarta e a quinta faixas, Ave Maria emplacou nesta fase um de seus maiores sucessos: País no Morro e I’ll Never Fall In Love Again (produzida para Tropical (1969), composta por Jorge Ben em homenagem o musical Promises, Promises de 1968 e que ganhou o ao Flamengo, após a conquista do campeonato nacional Grammy de melhor música de 1969) são versões no estilo brasileiro (mesclando, na letra, o futebol a outros samba soul. A sexta faixa, Crioula, é estruturada sobre elementos de uma “brasilidade” que emergia, como o ritmos afro-brasileiros, que se misturam com outras fusca e o carnaval). Simonal, com sua carreira ascendente, referências nacionais. A sétima, Que Pena, consiste em virou garoto-propaganda da poderosa Shell, que com mais uma versão de um samba “eletrificado”. A faixa oito perspicácia, o associou ao carro e ao futebol, lançando-o é o medley The Age of Aquarius, feita para o musical rock em revistas, jornais, televisão e rádio. Não demorou muito Hair (1968): a primeira parte, Aquarius, é um arranjo para o poder público e a imprensa associarem a imagem “abrasileirado” com uma tradução da letra original para de Pelé e a de Simonal. Segundo Adriane Hartwig: o espanhol; a segunda, The Flesh Failures, é cantada em português e mescla marcha, elementos da música pop, A Shell estava buscando em Simonal uma imagem para vincular gospel e da salsa. A música nove é uma versão sambajazz à sua empresa, que agora, de capital nacional, quer reforçar sua de . presença no território nacional. Simonal, como um cantor popular, Garota de Ipanema que transitava por diversos públicos, seria o que eles denominaram de “representante da classe trabalhadora”, legitimando suas A faixa dez é a canção italiana Ecco Il Tipo (Che Io ações no país, vinculando a imagem da empresa a um símbolo Cercavo), num arranjo que se aproxima da pilantragem. de brasilidade. A escolha por Simonal se dá muito em função As (uma sátira à de sua popularidade e de seu fácil trânsito pelos mais variados Menininhas do Leblon Garota de grupos, o que interessa à empresa que necessita de uma imagem, Ipanema) é a faixa onze, num arranjo funk/soul próximo de um símbolo que a identifique positivamente no país. De 1969 ao estilo consolidado por James Brown. A última música até 1971, Simonal será o símbolo de uma empresa estrangeira, do disco consiste em uma versão em jazz-waltz de uma recém nacionalizada, buscando sua permanência no mercado composição de Lamartine Babo e Francisco Mattoso nacional de combustíveis. Para tanto, a mesma patrocinou shows e apresentações de Simonal, que a partir de então, divulgou o denominada Eu Sonhei que Tu Estavas tão Linda. nome da empresa em eventos por ela criados. Uma das primeiras tarefas de Simonal seria a de ajudar a buscar fundos para financiar As canções Que Pena e The Age of Aquarius, segundo a seleção brasileira de futebol, que participou da Copa do Mundo Max de Castro8, foram gravadas no segundo semestre de Futebol, no México (HARTWIG, 2008, p.112). de 1969, em meio às gravações do quarto volume do Não se pode perder de vista que o futebol não é apenas álbum Alegria! Alegria! (1969). Não se sabe ao certo um esporte, consiste também em um jogo a serviço de qual era o destino concebido para essas faixas, se foram um complexo de valores e relações sociais, no qual a excluídas do disco ou se havia a intenção de incluí-las população exercita o que é ser brasileiro. Nesse sentido, em lançamento de compactos. A canção intitulada Ecco a construção sociocultural brasileira é permeada e Il Tipo (Che Io Cercavo) foi lançada no primeiro semestre coadjuvada pelo futebol: pensar suas relações com as de 1970, na Itália, durante uma turnê de Simonal pela outras manifestações consiste numa reflexão de essencial Europa, num compacto que foi dividido com uma versão importância (DAMATTA, 1982). em italiano de País Tropical. As outras faixas teriam sido gravadas nos estúdios da Odeon no Rio de Janeiro, conforme indicam os registros, no primeiro semestre de 3- Dimensões internas e externas da produção 1970, após a chegada de Simonal da Europa. De acordo do álbum México 70 com depoimento de Wilson Simoninha9 e os comentários Em 1970, após uma turnê pela Europa, Simonal acompanhou da contracapa original do LP, os arranjos que entraram a delegação da seleção brasileira na Copa do México, para o álbum México 70 compunham, provavelmente, sendo lá quase um representante oficial. Com a vitória da os shows de enorme sucesso que o cantor emplacou ao seleção brasileira e com o sucesso das apresentações do longo de três meses, os quais antecederam e se firmaram cantor, a Odeon mexicana lançou o disco México 70 (1970), durante a Copa do México. encabeçado pela música que então se tornaria sucesso: o samba “eletrificado” Aqui é o País do Futebol, composto por No Brasil, durante o entusiasmo da imprensa com a Copa, Fernando Brant e para o documentário um compacto duplo contendo quatro das músicas do Tostão – A fera de Ouro de 1970, que, na voz de Simonal, álbum México 70 (Kiki, As menininhas de Leblon, Aqui é o exalta o país e o futebol como paixões nacionais e os País do Futebol e Eu Sonhei que Tu Estavas tão Linda) foi associam ao samba (emblemática frase da canção: “Olha produzido, segundo Max de Castro, com a intenção de: o sambão, aqui é o país do futebol”). “[segurar], talvez, o lançamento de um álbum para a volta do artista ao Brasil. Com o êxito da seleção e de Simonal, a Odeon A segunda faixa é um arranjo em ritmo de shuffle de mexicana se adiantou e editou por lá um álbum inédito chamado Raindrops Keep Falling On My Head, canção feita para México 70, logo após a Copa”10. o filme Butch Cassidy and the Sundance Kid (1969), e que, em 1970, ficou durante quatro semanas no primeiro Simonal, nesses anos que compreendem 1968 a 1970, lugar da lista “Hot 100”, da revista Billboard7. A terceira manteve uma média de trinta apresentações mensais.

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Seu sucesso comercial no Brasil ultrapassava os limites Configurou-se a ideia de que a canção brasileira se alimenta do mercado musical, associando-se também ao consumo de todas as dicções musicais circulantes no país, sejam elas provenientes de outras culturas, de outros tempos, do mercado de de outros bens materiais e simbólicos. E em contato com consumo, das correntes de vanguarda, do mundo “brega”, dos mais Herb Alpert, sócio da A&M Records, empresa responsável diferentes gêneros rítmicos, e de que, em princípio, nada deveria pela projeção internacional de Sérgio Mendes, a carreira ser excluído (TATIT, 2005, p.121). internacional de Simonal se mostrava num caminho promissor (ALEXANDRE, 2009). Dentro dessa noção ainda “vingou na música popular dos anos 70 a música sem fronteiras rítmicas, históricas, Podemos afirmar que o repertório e os arranjos desse geográficas e ideológicas”11 (TATIT, 2005, p.121). álbum refletem com bastante sintonia os argumentos de Eduardo VICENTE (2008) sobre produção, consumo Restringindo-se ao que considera MPB e trabalhando e segmentação do mercado fonográfico no Brasil. O sob conceitos dicotômicos, Marcos NAPOLITANO (2005, repertório internacional que, entre 1965 e 1967 centrava- p.126) afirma que dentro das várias conotações que se nas produções em espanhol, italiano e francês, e abarcam o que é MPB, há uma noção de que seu conceito que, a partir 1970, tendeu ao inglês, está presente é “inseparável de uma cultura política marcada pelo numa representativa configuração em México 70: uma chamado ‘nacional-popular’ de esquerda”, que esteve música em espanhol, uma em italiano e três em inglês. dentro de um campo de tensão ao longo da década Dentro dessa segmentação, nota-se ainda a crescente de 1960, e que tentou equilibrar uma MPB moderna importância de músicas de trilhas sonoras de filmes dentro daquilo que fosse ao mesmo tempo nacional e musicais no mercado, que no álbum de Simonal são e cosmopolita, lidando com dilemas da modernização quatro. A bossa nova, segmento especialmente forte até capitalista dos anos de 1960 e 1970, tais como: tradição 1965, começa a dividir espaço no mercado fonográfico e ruptura, engajamento e vanguarda, populismo e com arranjos que remetem a outros estilos de samba, revolução, folclore e erudição, cultura popular e apesar da presença marcante no disco de um arranjo indústria cultural. O historiador afirma também que, sambajazz de Garota de Ipanema. especificamente no que tange à MPB dos anos de 1960 e 1970, esses dilemas se faziam “presentes no próprio Os gêneros norte-americanos de sucesso como o soul material estético das canções e não apenas no contexto e o funk, que se tornariam um importante segmento a sociológico que elas, como se diz corriqueiramente, partir de 1971, já estão incorporados em várias faixas ‘refletiriam’”. E conclui: “Na minha opinião, mais do que (o que na expressão de Simonal seria o “samba soul”). ‘espelho’ que reflete algo, a música (e a cultura como Concomitantemente às tendências que emergiam um todo) é o caleidoscópio pelo qual o objeto visado através da segmentação do mercado fonográfico, (a ‘realidade social’) se dinamiza e se reconfigura” podemos notar um ecletismo presente nos arranjos (NAPOLITANO, 2005, p.127). de cada faixa do disco. Diante disso, pretendemos investigar detalhadamente, mais adiante, como fatores Com interesse nesse chamado “material estético das externos da produção do disco se articulam ao conteúdo canções” a que se refere Napolitano quando discorre estético-musical do álbum. sobre MPB, que não apenas reflete, mas que revela e interage com aspectos das configurações sociais e 4 - Conflitos simbólicos presentes na música culturais, analisamos alguns elementos dos arranjos das popular brasileira dos anos de 1970 canções que compõem o álbum México 70 que, como afirmado, estão em grande sintonia com a segmentação Quatro línguas cantadas num mesmo disco, misturas da indústria fonográfica nos entornos de 1970, a fim de gêneros, arranjos de temas internacionais e a de compreendermos como esses conflitos simbólicos incorporação de elementos estrangeiros podem estar sinalizados pelos autores acima citados podem se relacionados àquilo que Renato ORTIZ (2001) apontou, mostrar num âmbito mais estrutural das músicas. mesmo não se referindo especificamente à música (mas à cultura, de maneira ampla), como substituição do caráter nacional-popular pelo internacional-popular 5 – Apontamentos analíticos do repertório no campo cultural na década de 1970. Mas não Abaixo sistematizamos uma análise musical sintética deixamos de notar, como Rita MORELLI (2008) o fez, tendo em vista a problemática exposta acima, para mais que a aplicabilidade dos conceitos de Ortiz à música adiante retomarmos a discussão. As faixas seguem a popular brasileira referente a essa substituição não ordem do disco. se concretiza na década de 1970, já que se percebe ainda, majoritariamente, pelo menos até a década de 1) Aqui é o País do Futebol – composta por Milton 1990, uma expressiva produção musical orientada e Nascimento e Fernando Brant como parte da trilha estruturada por referências nacionais. sonora de um documentário lançado em 1970, antes da Copa, sobre o jogador da seleção brasileira Tostão. No Sobre o contexto que marca a passagem dos anos de arranjo do álbum, a música é um samba de “segunda 1960 para os anos de 1970, Luiz Tatit afirma, além da geração”, de acordo com critérios de classificação de polarização entre nacional e internacional, que: Eduardo VICENTE (2008). Esse estilo de samba se pauta

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por uma vocação mais pop e urbana, à qual os nomes sonoridade pop influenciada por gêneros internacionais. de Wilson Simonal e Jorge Ben se atrelam fortemente. Como afirma Carlos Imperial, os arranjos da pilantragem Tais produções se mantiveram associadas à nomenclatura são mais “soltos”, dançantes e swingados. Na análise de “samba-rock”, que, dentro da segmentação da indústria Gonçalves, uma das características principais desse estilo fonográfica, ganhou importância a partir de meados da “estava na maneira de tocar o samba – em compasso década de 1960, principalmente a partir de 1967. Segundo quaternário em vez de binário – inspirado no rock e no Vicente, Wilson Simonal e a Turma da Pilantragem foram soul norte-americanos” (GONÇALVES, 2011, p.37). O soul13 importantes artistas desse segmento, no que diz respeito teve enorme projeção internacional na década de 1960 ao consumo fonográfico entre 1965 e 1970. e penetrou com maior intensidade no mercado musical brasileiro na década de 1970 (incluindo-se aqui também o Apesar de ser encarada como um “sambão”, como certos funk), mais especificamente a partir de 1971, influenciando trechos da letra da própria canção enfatizam (“Olha o carreiras brasileiras de sucesso como a do cantor Tim Maia. sambão, aqui é o país do futebol”), pode-se notar no arranjo a presença de elementos de gêneros internacionais, Interessante notar como Vicente observa a assimilação como a levada funky da guitarra elétrica e a condução desses gêneros importados no Brasil: das convenções ritmo-melódicas dos sopros num modelo próximo aos arranjos de canções soul e funk da década de Tentei reunir nessa categoria [soul/ funk/ rap] 1960 e 1970. Ou seja, em linhas gerais o samba, tomado aqueles cujas obras se ligam à música negra norte- como autêntica manifestação da cultura brasileira estava, americana. Trata-se de um grupo de artistas que, tal nesse caso, permeado de elementos recorrentes da qual os do rock, encontram no que é mundializado música internacional. Contudo, o imperativo samba é o seu primeiro referencial e, se chegam a dialogar com que se mostra mais vigorante e estruturante, e pode ser a tradição musical nacional, fazem-no a partir dessa identificado no desenho rítmico do contrabaixo, realizado base, e não o contrário. (VICENTE, 2008, p.119) em padrões regulares de colcheia pontuada e semicolcheia e apoiado pela condução rítmica da bateria, como também, Tanto Gonçalves como Vicente, apesar de tomarem nas intervenções do coro vocal e naipe de sopros. como ponto de partida referenciais distintos em relação à incorporação desses gêneros estrangeiros no Brasil, 2) Raindrops Keep Falling On My Head – canção produzida mostram como se fazia presente a articulação entre o para a trilha sonora do filme Butch Cassidy and the nacional e o internacional nas estruturas internas de Sundance Kid (1969). Estourou nas paradas de sucesso de expressiva produção musical da época, independentemente vários países entre 1969 e 1970, como nos indicam alguns de qual desses elementos se mostrava mais imperativo. rankings deste período, entre eles: Canadian RPM adult contemporany, French Singles Chart, Italian Singles Chart, Percebe-se também na gravação dessa faixa um ritmo UK singles chart, U.S. Billboard hot 100 e U.S. Billboard “abolerado” e a presença de sopros com intervenções em adult contemporany. Para VICENTE (2008), o repertório frases melódicas comuns ao jazz. Há instrumentos de internacional teve, nos anos 1970, um dos melhores percussão da música popular afro-cubana num primeiro períodos de vendagem no mercado brasileiro. Dentro plano que, acrescidos de levadas ao piano, acentuam desse segmento estão incluídos, além das coletâneas de um balanço latino-americano. No arranjo dessa música artistas nacionais e internacionais que cantavam inglês, transparece um caldeirão de elementos nacionais e as trilhas sonoras de filmes e de musicais importados. internacionais que resulta numa mistura de ritmos e sonoridades de difícil classificação. O arranjo presente na gravação é o que se convenciona chamar de estilo shuffle, que remete diretamente ao jazz e 4) Ave Maria no Morro – uma regravação no estilo ao blues cantado e a uma condução rítmica que enfatiza os samba soul da composição de de segundo e o quarto tempo, considerando-se um compasso 1942. Apesar dos arranjos da pilantragem, como quaternário. Em contraste com a primeira faixa do disco, mencionamos anteriormente, já lidarem com o soul, na qual o samba, apesar de se mostrar vigoroso, aparece em Ave Maria no Morro notamos uma maior presença permeado de detalhamentos estilísticos advindos de outros e maior similaridade da música com esse gênero norte- gêneros, Raindrops Keep Falling On My Head, mesmo americano que começaria a ganhar importância no Brasil mantendo firme sua estética shuffle, sofre uma inserção na década de 1970: os elementos que se ligam ao soul e abrupta de um interlúdio instrumental em samba-rock12. funk no arranjo estão mais evidentes, principalmente na Há aí uma certa inversão entre os guias estruturais da levada de bateria e baixo. primeira e da segunda música do álbum. Se na primeira o samba (nacional) cedia espaço ao internacional, na Outros recursos podem ser observados como a utilização segunda, o internacional cede espaço ao samba. dos sopros em staccato, a forma de acompanhamento dos coros e os riffs de piano, que remetem ao gospel norte- 3) Kiki – canção composta por Nunato Buzar e Wilson americano e revitalizam o significado religioso da letra – “E Simonal. O arranjo dessa música se assemelha a muitos o morro inteiro/ no fim do dia/ reza uma prece/ Ave Maria”; outros da época da pilantragem, que possuíam uma “E quando o morro escurece/ elevo a Deus uma prece”.

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5) I’ll Never Fall In Love Again – canção que faz parte da de samba-rock. Na primeira parte, a letra, original em trilha sonora produzida para o musical Promises, Promises inglês, é cantada em espanhol. De certa forma, aí, se (1968), e que ganhou o Grammy de melhor música de juntam dois elementos de universos distintos: o samba, 1969. Na versão de Simonal se torna um samba soul. brasileiro, e a língua espanhola, que remete ao universo Distintamente da faixa anterior, na qual o viés soul se latino-americano. A segunda parte The Flesh Failures encontra no horizonte do gospel, em I’ll Never Fall In é, por outro lado, cantada em português. Entretanto, o Love Again se nota um toque mais voltado para o funk que se nota agora é presença de uma grande mescla de e o blues, especialmente na interação entre os sopros diferentes elementos musicais, que circundam entre o com a levada da bateria e do contrabaixo nos interlúdios ritmo da marcha, vocalização gospel, piano “salseado” e instrumentais. Entretanto, é interessante observar as bateria com levada de rock. diferentes conduções e mudanças de instrumentação nas partes cantadas, que não seguem uma levada funk 9) Garota de Ipanema – canção emblemática da bossa nova necessariamente, mas de certa forma se localizam de autoria de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, gravada dentro de gêneros internacionais originários da black em 1962. Nesta releitura, o arranjo se aproxima de uma music. A base harmônica também segue cadências de estética mais estridente oriunda do sambajazz, revelada acordes dominantes comum ao blues, e o canto por na introdução formada por naipes de metais e madeiras vezes enfatiza, através de uma inflexão bluesy, a palavra em bloco tocados com grande intensidade. Apesar de a “again”, acentuando o significado principal da letra, bossa nova se constituir como símbolos de “bom gosto” baseado na desilusão amorosa. e refinamento musical, Vicente aponta que sua presença diminuiu no mercado de consumo a partir de meados da É importante apontar como existe uma distinção clara década de 1960, cedendo lugar ao samba e a gêneros no arranjo entre as seções que antecedem e sucedem a internacionalizados. Diante desse panorama, nota-se como parte cantada, no que diz respeito à mudança de estilos as configurações e escolhas dos arranjos do álbum estavam baseados em ritmos do blues, do rock e do funk. sintonizadas com tendências musicais decorrentes da segmentação do mercado e consumo fonográfico. 6) Crioula – canção de autoria de Jorge Ben. Na versão do álbum, logo na introdução, são misturados ritmos de Observa-se no arranjo, a forte presença do samba e do jazz. origem afro-brasileira, como o toque de candomblé, com Ao longo da música, a separação auditiva desses dois gêneros riffs, aparentemente improvisados, de piano e flauta, se faz perceptível, apesar de, em certos trechos, o samba e que remetem à soul music. Outro procedimento de incorporar traços estilísticos do jazz como a improvisação procedência africana é a polirritmia criada entre o ritmo de novas melodias instrumentais sobre o pano de fundo da melodia, que sustenta uma das frases principais da harmônico realizado pelo naipe de sopros. Em outras música (“Uma linda dama negra”) com a base. palavras, é como se os dois domínios se relacionassem na música paralelamente, o que permite o reconhecimento de A condução rítmica que apóia a melodia principal musicalidades presentes em cada estética. persiste com elementos afro-brasileiros e se misturam, em determinado trecho da gravação, com uma levada de 10) Ecco Il Tipo (Che Io Cercavo) – música italiana baião executada pelo contrabaixo. O desfecho da música composta por Tristano, Simoni e Pontiack em 1970. Esse incorpora uma expressão blues tanto nas inflexões da fonograma é outro exemplo no qual ocorre intercâmbios voz, como no toque do piano. de estilos e estéticas. Possui uma sonoridade próxima à da pilantragem, recheada com intervenções do naipe de 7) Que Pena – música de autoria de Jorge Ben, datada sopros e uma base rítmica abrasileirada na primeira parte, de 1969. Na versão de Simonal compartilha muitas que se reconfigura numa levada pop com influência do semelhanças com o arranjo de Aqui é o País do Futebol. shuffle em alguns trechos. Todavia sua estrutura é mais voltada para o samba, ou seja, os acentos no segundo tempo (considerando um 11) As menininhas do Leblon – música de autoria de Silvio compasso de dois tempos) são mais nítidos na elaboração Cesar, feita em 1970, uma possível sátira com Garota do arranjo, principalmente se observarmos a levada da de Ipanema, que ilustra, através da letra, como gêneros bateria e do contrabaixo. A sustentação harmônica internacionais estão mais em voga que a bossa nova é reforçada pelo naipe de sopros sincopados que (“Ipanema não dá mais pé/ o Leblon agora é que é/ que acrescentam balanço ao ritmo do samba e participam das me desculpe o amigo Tom/ Garota de Ipanema já era hein/ diversas convenções rítmicas. agora é Menininhas do Leblon”; “sua discoteca é demais/ lá não entra disco pra trás/ muito swing muito som/ olha 8) O medley Aquarius / The Flesh Failures, tal como I’ll aí bonequinha/ no gogó/ Menininhas do Leblon”). Never Fall In Love Again, foi composto para um musical (no caso o musical rock Hair de 1968). A primeira parte A sonoridade da base e do arranjo se baseia no funk e da música foi “abrasileirada”14 e a concepção do arranjo no soul norte-americano, possuindo grande similaridade é muito parecida com a da faixa anterior, mas com a com algumas gravações de James Brown. Entre esses distinção de uma levada, nas introduções, em ritmo recursos, temos a modulação brusca da parte cantada

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para interlúdios instrumentais estruturados por naipes ligadas ao paradigma culturalista anterior, desenvolvido de sopros estridentes e a levada da seção rítmica bem principalmente por (1970). O enfoque passa, da mudança cultural, para a interação continuada entre duas característica do gênero do funk. sociedades, que formam um sistema intersocietário que exibe, em seu cerne, uma desigualdade (PIEDADE, 2011, p.199). 12) Eu Sonhei que Tu Estavas tão Linda – canção composta por Lamartine Babo e Francisco Mattoso em 1941. Na Piedade cria, então, a expressão fricção de musicalidades versão de Simonal a canção é adaptada para um arranjo a partir da observação de que há situações nas quais em jazz-waltz, com destaque para o acompanhamento de as musicalidades dialogam, mas não se misturam, naipes de sopros e um contraponto de violino. permanecendo fronteiras musical-simbólicas que insistem em afirmar as diferenças em vez de uma síntese 6 - Algumas considerações entre as musicalidades.

Após uma análise abrangente sobre as estruturas musicais O discurso dos músicos, críticos e apreciadores fala de fusão, dos arranjos de cada faixa do disco, confrontamos nossas sincretismo, mistura, influência. Estas noções somente fazem conclusões parciais com os estudos de Ortiz, Morelli, sentido através da distinção que lhes é implícita: o “novo” gênero Napolitano e Tatit sobre a década de 1970. “absorve” uma musicalidade outra que, no entanto, mantêm-se distinta justamente porque é percebida (PIEDADE, 2011, p.201). Como detalhado, a grande mistura de estilos e sonoridades Apesar de tais noções haverem sido empregadas por de gêneros nacionais e internacionais presentes no álbum Piedade em relação a uma música instrumental brasileira, aponta para a presença de elementos que podem México 70 parece-nos, mesmo tratando-se dos arranjos da canção, ser associados a uma cultura nacional-popular imbricados que elas se mostram mais interessantes para esclarecer com outros internacionalizados, o que permite inferir e ampliar o horizonte das configurações musicais que a impossibilidade de uma substituição abrupta dessas as concepções dicotômicas, como nacional-popular e referências nas estruturas constitutivas de nosso objeto internacional-popular ou nacional e cosmopolita. Esses de estudo. Por outro lado, é notável a compatibilidade modelos são comumente utilizados para entender, de de concepções musicais do álbum com tendências que maneira ampla, a música popular brasileira dos anos se constituíam dentro da segmentação do mercado 1960 e 1970, mas que de certa forma acabam ficando fonográfico. Entre elas, alguns elementos vinculados a aquém da estrutura musical propriamente dita. uma noção de exterioridade ou internacionalidade, ou seja, identificados como pertencentes à cultura de outros países Com as análises musicais que fizemos, tais dicotomias, ou a uma música de padrão internacional (estandardizada). apesar de serem importantes parâmetros num horizonte O que está completamente vinculado ao momento de amplo, não parecem dar conta das especificidades das consolidação do mercado de consumo no Brasil e ao elaborações dos arranjos musicais, nos quais não se processo de internacionalização do capital, que foi guiado nega a presença do internacional, mas que tampouco por diretrizes político-econômicas do governo brasileiro – se configuram como um padrão internacional. Revelam num dos períodos mais severos da ditadura –, e que abriram assim, um campo de disputas no qual o nacional e o e aumentaram as relações com outros países, pelo menos internacional, entre outros embates, se relacionam no que diz respeito à circulação de mercadorias. para além dos conceitos de fusão e mistura, e o material estético de cada canção, em vez de “refletir” Entretanto, vale clarificar alguns pontos que nos parecem mecanicamente o contexto sócio-político, traduz essenciais, no que diz respeito ao âmbito da estrutura ambiguamente esses dilemas através do diálogo musical, à diferença de uma música de padrão internacional conflituoso entre as diversas musicalidades. daquela permeada por elementos internacionais. Nesse sentido, recorremos à noção de fricção de musicalidades Para além do nosso objeto de estudo, cabe-nos lançar, desenvolvida por Acácio PIEDADE (2011). Para o como hipótese, que tais ideias, principalmente a que pesquisador, musicalidade é aquilo que se conforma aponta uma diferença marcante entre música de como um conjunto de elementos musicais e simbólicos padrão internacional e música permeada por elementos compartilhados por uma comunidade de pessoas. Sobre internacionais, podem oferecer uma contribuição para as origens do conceito de fricção, Piedade se baseia em se pensar a música popular brasileira no período de fins estudos de antropologia que utilizam o termo: da década de 1960 e princípios da década de 1970, que Cardoso de Oliveira desenvolveu este conceito a partir dos anos se constituiu dentro do processo de internacionalização 60, para dar conta da relação entre sociedades indígena e a da cultura. Contudo, nossa investigação ainda carece de sociedade brasileira, que ele via como conflituosa. O conflito, aprofundamento e extensão para tentar compreender inerente à situação de fricção interétnica, se explica pelos até que ponto os arranjos e a sonoridade dos discos interesses diversos das sociedades em contato, sua vinculação irreversível e interdependência, e pela situação de domínio e da década de 1970 condensaram em suas dimensões submissão ali engendrada. Neste conceito, Cardoso de Oliveira internas questões pertinentes ao andamento histórico no se afasta da ideia de transmissão, aculturação ou assimilação, qual estavam inseridos.

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Discografia Wilson Simonal – México 70. Odeon, 1970.

Filmografia SIMONAL - ninguém sabe o duro que dei. Direção de Calvito LEAL, Cláudio MANOEL e Micael LANGER. Rio de Janeiro: Biscoito Fino Brasil, 2009. DVD

Notas 1 Tal falta pode se justificar pelo fato do álbum ter sido somente relançado no ano de 2010. À época do lançamento do Box da Odeon, os produtores do projeto, Max de Castro e Wilson Simoninha podem não ter se dado conta da existência do disco México 70 2 Discutiremos posteriormente essa vertente do samba. 3 Essa música, além de integrar o repertório dos shows de Simonal no ano de 1967, fez parte, no mesmo ano, de um compacto simples, um duplo e do álbum Show em Simonal, todos produzidos pela Odeon. 4 Essa consideração de Eloá Gonçalves é baseada em: SHUKER, Roy. Vocabulário de música pop. São Paulo: Ed. Hedra, 1999. p.35. 5 Conferir o texto “Nascimento, Mudanças e Apogeu da Pilantragem de Carlos Imperial”, contido no encarte do LP Pilantrália – Carlos Imperial e a Turma da Pilantragem, de 1968. 6 A relação entre Simonal, Pelé, dom e mito foi trabalhada noartigo: CHAVES, R. P. País Tropical e seu mimetismo: o discurso ufanista associado a Wilson Simonal e a desinvenção tropicalista. In: Revista de Ciências Humanas, v. 44, n. 2, Florianópolis: UFSC, 2010. 7 Conferir em: . Acesso em fev. 2012 8 Conferir em: . Acesso em fev. 2012. 9 Idem. 10 Idem. 11 Embora as fronteiras entre gêneros, estilos e ideologias não sejam rígidas no disco México 70, vale frisar que essa afirmação de Tatit parece desconsiderar uma parcela da produção musical dos anos 1970 que se voltou para regionalismos (como o samba “das comunidades” de Martinho da Vila e Candeia), e outra que persistiu com uma posição ideológica crítica (como Chico Buarque). 12 Interessante notar que na versão original, veiculada no formato audiovisual no filme Butch Cassidy and the Sundance Kid (1969), há também uma quebra abrupta da canção, com fins narrativos na sequência de “amor” de Butch (Paul Newman) e Etta Place (Katharine Ross). Fora do contexto

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narrativo do filme, é evidente que essa quebra foi tomada como parte constituinte da canção, sendo transformada num interlúdio. 13 Cabe aqui delimitar alguns sentidos do termo soul: acreditamos que o uso do termo soul remonta a uma música que compartilha estruturas provindas do gospel, do blues e do jazz, e que começou a se consolidar como gênero musical a partir da década de 1950 e 1960. Também influenciou os gêneros do funk e da disco music dos anos de 1970 e 1980. Sua origem é norte-americana e teve uma vinculação com movimentos de afirmação de minorias, em especial, da emancipação do negro e sua luta por direitos civis. 14 Originalmente o arranjo se caracteriza como rock.

Renan Paiva Chaves é Graduando em Música Popular pela Universidade Estadual de Campinas. Em 2010, participou como bolsista do convênio entre a UNICAMP e a Universidad Nacional del Litoral, onde desenvolveu pesquisas sobre a música popular e folclórica argentina. Foi bolsista de iniciação científica pela FAPESP na área de trilhas sonoras para cinema e possui artigo publicado na Revista de Ciências Humanas da UFSC e na Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia da UERJ.

Eduardo de Lima Visconti é Bacharel em Música Popular pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Mestre e Doutor em Música (UNICAMP). Desenvolve pesquisas nos seguintes temas: etnomusicologia, música popular, musicologia, ideologia, identidade cultural, análise musical, arranjo, improvisação, harmonia, guitarra e violão. Foi professor temporário durante 5 anos (2007-2012) de Guitarra elétrica (I-VIII) e Prática de Conjunto (I-VIII) na graduação em música popular da UNICAMP. Participou, em julho de 2012, como professor de guitarra/violão e improvisação na música popular no IX Festival de Música em Ibiapaba no Ceará. Atualmente, iniciou pesquisa de pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB -USP) sobre arranjo e sonoridade no samba da década de 1970, com supervisão do prof. Dr. Walter Garcia e bolsa de pós-doutorado júnior do CNPq.Tem se apresentado regularmente com seu trio e quarteto no Brasil e no exterior.

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O ensino de teclado em grupo na universidade e o uso do repertório popular: aprendizagem através de práticas híbridas

Ana Carolina Nunes do Couto (UFPE, Recife, PE) [email protected]

Resumo: Este artigo apresenta algumas atividades realizadas em aulas de teclado em grupo na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) de acordo com uma abordagem que integra práticas deliberadas (SANTIAGO, 2006) e práticas informais de aprendizagem musical (GREEN, 2001; 2008). As práticas informais de aprendizagem musical são típicas do processo de aquisição de habilidades e conhecimentos por músicos populares, enquanto que a prática deliberada originalmente advém do contexto da aprendizagem do repertório da chamada música de concerto. Nesse estudo, a prática deliberada é utilizada como parte integral da aprendizagem do repertório instrumental popular. São apresentadas quatro músicas de níveis específicos dentro da disciplina ministrada, seguido da descrição de como o trabalho se desenvolve.

Palavras-chave: ensino de teclado na música popular; aprendizagem em grupo; abordagem híbrida no ensino da música.

Keyboard group teaching at the university and the popular repertoire: learning through hybrid practices

Abstract: This article presents examples of activities conducted in keyboard group classes in Brazil at Federal University of Pernambuco (UFPE), according to a hybrid approach that integrates deliberated practice (SANTIAGO, 2006) and informal learning practices (GREEN, 2001; 2008). The informal learning practice is a typical process of acquiring skills and knowledge by popular musicians, while deliberate practice generally comes from learning music in the classical context. In this study deliberate practice is used as an integral part of popular instrumental music learning. Four songs of specific teaching levels are presented, followed by a description of its working process.

Keywords: keyboard teaching in popular music; group learning; hybrid approach in music teaching.

1. Introdução A disciplina “Instrumento Auxiliar – Teclado” faz parte apresentar algumas dessas linhas escolhidas para o da grade curricular do curso de licenciatura em Música desenvolvimento do atual trabalho desta disciplina da UFPE, local onde atuo como docente, e possui junto aos alunos, bem como os critérios para tal escolha. duração de quatro semestres. Tendo como ementa “o Em seguida, apresentaremos exemplos da aplicação desenvolvimento de habilidades funcionais pela prática de tais conceitos através de práticas pedagógicas ao teclado de estudos e peças adequadas”, esta disciplina realizadas com o repertório que integra as aulas. Apesar objetiva capacitar o futuro professor de Música a de este repertório incluir peças oriundas de variados desenvolver suas habilidades técnicas nesse instrumento, gêneros e estilos musicais, recortamos o trabalho visando sua utilização pedagógica de forma expressiva desenvolvido a partir da utilização do repertório que faz e criativa em sala de aula, principalmente no contexto parte da música popular. Esta opção de recorte se faz da escola regular. Nesse sentido se insere o conceito de pela necessidade de focalizar determinados princípios “instrumento auxiliar”, expresso em seu título. pedagógicos presentes na fundamentação teórica que orienta tais procedimentos, no intuito de apresentar No entanto, o conteúdo e a forma de trabalhá-lo uma possibilidade de abordagem que integre práticas podem variar de acordo com as linhas pedagógicas originárias de contextos distintos, mas que no presente adotadas por cada docente. Este artigo pretende trabalho são utilizadas como complementares.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 24/08/2012 - Aprovado em: 04/01/2013 231 COUTO, A. C. N. do. O ensino de teclado em grupo na universidade... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.231-238.

2. Embasamento teórico as posições das mãos, braços, etc.; a auditiva, que se Existem duas práticas distintas que integram a pedagogia baseia naquilo que se ouve; a memória cinestésica, utilizada nas aulas de “Instrumento Auxiliar – Teclado”: as que é a memória dos movimentos, adquirida através chamadas prática deliberada e prática informal. Distintas, de repetições de movimentos, e estreitamente ligada à a princípio, por advirem de contextos também distintos – sensações motoras; e a memória lógica ou racional, que a primeira oriunda da prática com o repertório erudito, ajuda a firmar o significado e a estrutura da composição e a segunda do repertório dito popular – elas aparecem (KAPLAN, 1987, p.69-70; LILLIESTAM, 1995, p.201-202; no atual contexto como práticas que se complementam. PRIEST, 1993, p.109-110). Além disso, cada uma destas práticas proporciona o desenvolvimento de habilidades musicais e técnicas 2.2 A prática informal específicas, mas que são de fundamental importância O termo “práticas informais de aprendizagem musical”1 para o instrumentista que necessita adquirir um perfil foi trazido por GREEN (2001, p.5), que investigou a mais versátil para a atuação em diferentes contextos. maneira como os músicos populares aprendem em Um último, contudo igualmente importante elemento contextos considerados informais. Segundo essa autora, integrante do embasamento teórico deste trabalho, se essas práticas englobam aspectos como: a forma de refere aos aspectos do ensino coletivo de instrumentos. escolha do repertório, que é diretamente ligada a músicas Serão apresentados alguns conceitos de educadores que sejam muito conhecidas e em relação às quais se sobre as características da aprendizagem nesse tipo de tenha grande afetividade, e as práticas aurais, como o aula, bem como as habilidades que ela pode desenvolver. tirar de ouvido músicas de gravações. Também há o fato de a aprendizagem acontecer em grupos, de maneira 2.1 A prática deliberada consciente ou inconsciente, através da interação com Segundo SANTIAGO (2006, p.53), “a prática deliberada parentes, colegas e outros músicos que atuam sem a constitui-se de um conjunto de atividades e estratégias função formal de um professor. Também, como aspecto de estudo, cuidadosamente planejadas, que têm como diretamente ligado ao aprendizado de músicos populares, objetivo ajudar o indivíduo a superar suas fragilidades existe a integração entre as ações de compor, tocar e e melhorar sua performance”. Esta prática vem sendo ouvir, com grande ênfase na criatividade. estudada por pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, que buscam verificar sua eficácia para a As habilidades adquiridas através do uso destas práticas aquisição de alto nível de performance em áreas como se mostram distintas daquelas adquiridas pela prática a musical, o xadrez, diferentes tipos de esportes, etc. deliberada, descrita anteriormente, mas que são de (SANTIAGO, 2006, p.53). igual importância para o músico instrumentista. As mais evidentes parecem ser as habilidades para tocar de ouvido, Na música, mais especificamente na aprendizagem para improvisar e para a execução em grupo. Segundo instrumental, podemos listar as seguintes estratégias GREEN (2008, p.4), tais habilidades foram negligenciadas que caracterizam a prática deliberada, a partir do que dentro do ensino musical formal durante muito tempo. encontramos em SANTIAGO (2006, p.54): A autora compreende que o uso das práticas informais a) o uso do metrônomo dentro da aprendizagem musical em sala de aula pode ser b) o estudo rítmico da peça (tanto o estudo para a uma atitude inclusiva, por possibilitar que as habilidades compreensão dos elementos rítmicos e da maneira em daqueles alunos que possuem vivência com a música que foram combinados na peça, quanto da aplicação popular estejam presentes no desenvolvimento dos de diferentes variações rítmicas de determinados conteúdos abordados, permitindo desta maneira que eles trechos visando melhorar acentuações, adquirir também se expressem musicalmente. velocidade, precisão, etc.) c) a análise prévia da obra a ser estudada Mais específicamente para o estudo instrumental, d) o estudo repetido de pequenos trechos da peça SANTIAGO (2006) afirma que o uso das práticas informais e) o estudo silencioso e o estudo mental da peça ... pode ser relevante para o pleno desenvolvimento de outros f) o estudo lento, com aumento gradual do andamento processos essenciais ao aprendizado musical, tais como a g) a identificação e correção de erros familiarização com diferentes linguagens e estilos musicais e o h) a verbalização de ordens durante o estudo desenvolvimento da memória. Ela também pode servir como elemento catalisador do processo de compreensão e maturação i) a marcação do dedilhado na partitura. musical. A composição e improvisação são ainda consideradas como relevantes para a aquisição de conhecimento musical A aplicação de tais estratégias permite um estudo mais e de habilidades especificamente instrumentais, tais como o consciente das peças musicais. Isto pode favorecer a desenvolvimento de habilidades técnicas (SANTIAGO, 2006, p.57). aquisição de habilidades como a agilidade, a precisão rítmica, melhora no controle de dinâmicas e fraseados, 2.3 A aprendizagem instrumental em grupo e da memória. No caso desta última, especificamente, O ensino coletivo de instrumentos é uma atividade que alguns autores chamam a atenção para o cuidado de transcende o treino para a aquisição de elementos e se trabalhar por igual as diferentes memórias: a visual, habilidades musicais. Diversas habilidades extra musicais que é baseada naquilo que se vê, tal como a partitura, emergem a partir das aulas coletivas e, quando bem

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orientadas, podem favorecer um ambiente satisfatório verbal, habilidade para perceber o momento ideal de não só à aprendizagem instrumental, mas também permanecer ou não no mesmo exercício, organização do ao desenvolvimento de outras habilidades adquiridas tempo da aula, etc. (CRUVINEL, 2005, p.74-77). unicamente através da interação em grupo. 3. Exemplos de atividades desenvolvidas nas Para GREEN (2008, p.120), na aprendizagem informal aulas de “Instrumento Auxiliar – Teclado” costumam ocorrer dois aspectos da aprendizagem em grupo. Primeiro, existe o que esta autora denomina de da UFPE, através da utilização do repertório “aprendizagem no grupo”. Essa aprendizagem acontece composto por músicas populares de maneira mais inconsciente ou mesmo acidentalmente, Como mencionado no início deste artigo, o repertório “sem querer”, pelo simples fato de se estar fazendo parte utilizado nas aulas integra peças oriundas tanto da literatura de um grupo. Isso se dá não só durante o próprio fazer tradicional de piano, quanto de peças do folclore brasileiro, musical, mas também pela observação do que os colegas e também de músicas pertencentes ao cancioneiro estão fazendo, ouvindo e imitando. Também se aprende popular estrangeiro e brasileiro. Neste último caso antes e depois do fazer musical, quando se discute e se específico, pesquisas realizadas no próprio Departamento decide o que irá ser feito, ou se avalia o que já foi feito. de Música da UFPE fornecem material pedagógico que Esse tipo de experiência tende a conduzir a uma gradual possibilita a constante atualização do repertório utilizado melhora do produto musical. (LIMA; COUTO, 2010). Vale ainda ressaltar que, embora o repertório utilizado transite entre o popular e o erudito, Segundo, existe o aspecto da aprendizagem em grupo as abordagens utilizadas em sala de aula não se limitam a conhecido como “aprendizagem dirigida por um colega”. direcionar a prática deliberada para o estudo do repertório Isso ocorre quando um colega ensina diretamente, erudito, e a prática informal para o repertório popular. falando ou demonstrando. A autora diz que costuma Mais do que isso, elas se integram e se complementam de surgir naturalmente um líder nessas situações. Também maneira híbrida em ambos os repertórios, buscando uma costuma ocorrer o desenvolvimento de um espírito de aprendizagem mais integral do instrumento. A seguir serão cooperação entre os participantes (GREEN, 2008, p.127), apresentadas algumas atividades desenvolvidas em sala de assim como também o desenvolvimento da capacidade aula, através de exemplos em que se utiliza o repertório de integrar os interesses individuais aos do coletivo composto por músicas populares, que buscam integrar as (FONSECA; SANTIAGO, 1993). A linguagem que os colegas práticas descritas acima. costumam usar é mais comum entre eles, e assim eles encontram diferentes formas de ensinar. 3.1 Atividades desenvolvidas em Teclado 1 A música Asa Branca (Ex.1), pertencente ao cancioneiro SWANWICK (1994, p.9-10) também lista uma série de popular brasileiro, é geralmente muito conhecida, o que benefícios proporcionados pela aprendizagem em aulas proporciona a possibilidade de ser trabalhada também de coletivas: julgamento crítico da execução dos outros; ouvido, tanto a melodia quanto a harmonia. Sua extensão sensação de se apresentar em público; aprendizagem é de um Pentacorde Maior, delimitando o posicionamento através da imitação e comparação; a escuta cuidadosa; da mão direita numa região fixa, eliminando assim a observação perceptiva; estímulo pelos triunfos dos colegas necessidade de deslocamento ou saltos, ação que no caso e o reconhecimento de suas dificuldades; aprendizagem do instrumentista iniciante pode se tornar um obstáculo. por observação indireta. Pelo fato de cada dedo da mão direita se posicionar sobre uma nota correspondente ao Pentacorde Maior, essa peça As aulas em grupo também são vistas como vantajosas favorece a prática de exercícios de transposição, bastando, por serem mais econômicas, dinâmicas, estimulantes para isso, mudar de tonalidade, porém conservando o e divertidas (GONÇALVES; MERHY, 1986, p.242; mesmo dedilhado. MONTANDON, 1995, p.75). Em sala de aula, costumam-se realizar as seguintes Vale ressaltar que todos os aspectos acima mencionados práticas: poderão ser contemplados numa aula coletiva de 1) Complete a melodia na pauta. Caso você não conheça esta instrumentos, desde que ocorram em atividades música, pesquise e aprenda de ouvido a melodia e a harmonia. devidamente orientadas. De acordo com CRUVINEL (2005, 2) Escolha uma harmonia, que pode ser a que você conhece, ou p.75), nesse tipo de aula a melhor técnica de trabalho é uma original, e escreva as cifras. o estudo dirigido2, em oposição ao ensino explanatório 3) Crie um padrão rítmico de acompanhamento3. 4) Toque a quatro mãos: um aluno toca melodia em uníssono e dissertativo. No formato dirigido, o professor assume usando as duas mãos, e outro aluno toca o padrão rítmico de uma postura semelhante a de um regente, dando acompanhamento. ênfase à prática, distribuindo atividades entre todos os 5) Improvise sobre a estrutura harmônica. (COUTO, 2011a, p.16). alunos simultaneamente, de maneira que todos estejam envolvidos nas atividades propostas. Além disso, a autora Nesta última atividade há a oportunidade de se trabalhar afirma que o professor de aulas coletivas de instrumento musicalmente a partir das condições técnico-motoras necessita possuir qualidades tais como carisma, habilidade de cada um. De acordo com FRANÇA (2000), geralmente

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Ex.1: Trechos da peça Asa Branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (c.1-17). Transcrição da autora (in: COUTO, 2011a, p.16)

os alunos tendem a se expressar melhor musicalmente do mesmo modo, para adquirir automatismo nos através de suas próprias criações, pois: movimentos motores. 4. Crie um padrão rítmico de acompanhamento, e toque Ao executar suas próprias composições, eles estão tocando algo em dupla com um colega, alternando as funções entre tecnicamente apropriado para seus dedos e expressando seu próprio pensamento musical, com suas formas, expressividade e quem faz a melodia e quem faz o acompanhamento significado: eles têm a oportunidade de ‘falar’ por eles mesmos’ 5. Procure realizar as intervenções rítmicas sugeridas (FRANÇA, 2000, p.58). pela gravação ouvida 6. Escreva a melodia na clave de Sol. Os conteúdos trabalhados com esta peça são: Pentacorde Maior, tríades na posição fundamental, padrões rítmicos Os conteúdos trabalhados com esta peça são: apreciação de acompanhamento, leitura e escrita musicais, prática musical, história da música popular brasileira, Sétimas de tocar de ouvido, improvisação e criação musical, maiores e menores, cifragem, prática de tocar de ouvido, harmonização livre, automatismo do dedilhado. prática de tocar em conjunto, escrita musical.

3.2 Atividades desenvolvidas em Teclado 2 3.3 Atividades desenvolvidas em Teclado 3 A música O Trem Azul (Ex.2) pertence ao movimento A peça escolhida para ilustrar algumas atividades musical Mineiro que ocorreu na década de 1970, desenvolvidas nesta etapa da disciplina é utilizada conhecido como Clube da Esquina. A melodia desta como aplicação prática de estudos de inversão de canção é, em sua maioria, constituída pelas Sétimas de acordes que são praticados durante as aulas, e como cada acorde. A exceção para essa construção é apenas sintetizadora de elementos técnicos e teóricos praticados o refrão. Por isso, ela é utilizada como ferramenta para em sala (Ex.3). Ela possibilita a visualização dos arpejos memorização dos dois tipos de Sétimas abordados nesta dos acordes correspondentes às cifras, em diferentes fase da disciplina, as Sétimas menores e maiores, e suas inversões, permitindo, a partir de sua análise prévia, formas de cifragem. uma performance mais consciente. Acredita-se também que tais aspectos favoreçam a memorização, permitindo Esse tipo de partitura trazido para a aula contém que se transponha para diferentes tonalidades, aliando poucas informações sobre melodia, andamento, divisões o raciocínio lógico adquirido pelo entendimento da rítmicas, acentuações, dinâmicas, fraseados, a forma de construção da peça à habilidade de tocar de ouvido. realizar os encadeamentos dos acordes, dedilhado, etc. Atividades sugeridas: Segundo DUNBAR-HALL ; WEMYSS (2000, p.25), este tipo de partitura demanda diferentes formas de pensar 1. Estude as inversões de cada acorde pertencente a sobre música. De acordo com esses autores, os estudantes harmonia desta peça. necessitam conhecer as possibilidades técnicas de seus 2. Leia a partitura, analise a construção melódica, e instrumentos e compreender as diferentes funções que anote as inversões utilizadas para sua construção. cada instrumento desempenha num grupo musical, 3. Estude cada frase separadamente. Observe quais para serem capazes de tomar as decisões musicais mais são as dificuldades de cada frase, sempre atento às adequadas ao tipo de performance desejada. ações motoras necessárias para vencer cada uma delas. Repita seus gestos musicais sempre de forma As seguintes atividades costumam ser realizadas em sala: consciente, buscando memorizar cada movimento. Estude primeiramente com um andamento lento. 1. Ouça a gravação original desta peça 4. Depois de tocar a peça até que ela se torne familiar, 2. Toque de ouvido a melodia procure transpor para outros tons, de ouvido. 3. A partir das cifras da partitura, estude e pesquise o melhor encadeamento dos acordes. Após definido Os conteúdos abordados nesta peça são: arpejos e inversões, qual encadeamento será utilizado, estude sempre encadeamento de acordes, baixo pedal, transposição.

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Ex.2: Peça O Trem Azul, de Lô Borges e Ronaldo Bastos, em versão cifrada transcrita pela autora (in: COUTO 2011b, p.7)

Ex.3: Viagem, de João de Aquino e Paulo César Pinheiro (c.1-16). (in: CHEDIAK, 2004, p.166)

235 COUTO, A. C. N. do. O ensino de teclado em grupo na universidade... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.231-238.

Ex.4: Eleanor Rigby, de John Lennon e Paul McCartney (c.1-12) Transcrição e arranjo da autora. (in: COUTO, 2011c, p.19).

236 COUTO, A. C. N. do. O ensino de teclado em grupo na universidade... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.231-238.

3.4 Atividades desenvolvidas em Teclado 4 4. Conclusão A música ilustrada acima (Ex.4) foi arranjada para Alunos dos cursos de licenciatura em Música, futuros ser executada por quatro alunos. Contudo, é possível professores de Música, necessitam dominar ao menos um trabalhá-la com mais do que esta quantidade, e para instrumento de maneira criativa e expressiva para que dêem isto basta dobrar as partes. Sugere-se a audição prévia conta de atuar em sala de aula. O uso integrado das práticas da gravação original, orientando a percepção para as deliberada e informal permite desenvolver, no contexto partes que foram transcritas na partitura utilizada universitário, uma prática pedagógica híbrida, acolhendo em sala. Nesta etapa da disciplina vários elementos de forma mais democrática as diferentes habilidades que musicais, técnicos e teóricos já puderam ser estudados os alunos trazem consigo para a sala de aula a partir de de uma maneira aplicada, visando proporcionar o suas vivências musicais prévias, que são, quase sempre, pensamento autônomo dos estudantes em relação diversificadas. O avanço em pesquisas nas áreas que às atitudes necessárias para o desenvolvimento de envolvem a pedagogia do instrumento permite verificar que suas performances. Por isso, o trabalho com peças é possível utilizar distintas abordagens de maneira integrada arranjadas desta maneira também oportuniza a prática e complementar, inclusive com o uso do repertório composto da regência, permitindo que os alunos se revezem na por músicas populares. A literatura específica sobre este função de regente, demonstrando durante a organização tema já é bem vasta e de relativa facilidade de acesso. O dos “ensaios”, como eles compreendem a peça, qual professor que está à frente de uma turma de aula coletiva estratégica de estudo é a melhor, quais partes do arranjo de instrumento precisa estar atento a isso. Assim, espera- devem ser ressaltadas e de que maneira, etc. se, através do que foi exposto neste artigo, ter demonstrado que o uso de abordagens híbridas na aprendizagem do Conteúdos: leitura musical das claves de Sol e de Teclado durante a graduação pode favorecer a aquisição de Fá, apreciação musical, análise, prática de conjunto, habilidades e competências técnico-musicais capazes de prática de regência. auxiliar o futuro professor de Música neste sentido.

Referências COUTO, Ana C. N. Apostila de piano em grupo I. Recife: Departamento de Música da UFPE, 2011a. 27 f. Não publicado. ______. Apostila de Piano em grupo II. Recife: Departamento de Música da UFPE, 2011b. 21 f. Não publicado. ______. Apostila de Piano em Grupo IV. Recife: Departamento de Música da UFPE, 2011c. 25 f. Não publicado. CHEDIAK, Almir. Songbook as 101 Melhores Canções do Século XX, vol. 2. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 2004. CRUVINEL, Flavia Maria. Educação musical e transformação social – uma experiência com ensino coletivo de cordas. Goiânia: Instituto Centro-Brasileiro de Cultura, 2005. DUNBAR-HALL, P.; WEMYSS, Kathryn. The effects of the study of popular music on music education. International Journal of Music Education, n. 36, 2000. p.23-34. FONSECA, Maria B. P.; SANTIAGO, Patrícia F. Pianobrincando – atividades de apoio ao professor. 1ª ed, vol.1. Belo Horizonte, 1993. FRANÇA, Maria Cecília Cavalieri. Performance instrumental e educação musical: a relação entre a compreensão musical e a técnica. Revista Per Musi, v. 1, p.52-62, 2000. GONÇALVES, Maria de Lourdes Junqueira; MERHY, Sílvio Augusto. Música através do piano – prática das Habilidades Funcionais no uso do teclado como alternativa didática. In: II Encontro Nacional de Pesquisa em Música, Minas Gerais, 1985. Anais… Minas Gerais: Imprensa da UFMG, p.223–245, 1986. GREEN, Lucy. How popular musicians learn. London: Ashgate, 2001. ______. Music, informal learning and the school: a new classroom pedagogy. London: Ashgate, 2008. KAPLAN, José Alberto. Teoria da aprendizagem pianística. Porto Alegre: Movimento, 1987. LILLIESTAM, Lars. On playing by ear. Popular Music. Cambridge University Press, v.15, n.2, May 1995. p.195-216. LIMA, Sergio R. de G.; COUTO, Ana C. N. A música brasileira popular e a pedagogia instrumental: pesquisa de repertório e confecção de guia ilustrativo. In: Anais do IX Encontro Regional da ABEM Nordeste, Natal, 2010. Disponível em: http:// www.musica.ufrn.br/revistas/index.php/abemnordeste2010/issue/current MONTANDON, Maria Isabel. Aula de piano ou aula de música? O que podemos entender por “ensino de música através do piano”. Revista EM PAUTA da UFRGS, ano VII, n.11, p.67–79, nov. 1995.

237 COUTO, A. C. N. do. O ensino de teclado em grupo na universidade... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.231-238.

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Notas 1 Tradução livre da autora 2 De acordo com esta autora, esse conceito é utilizado por Alberto Jaffé, educador musical especializado no ensino coletivo de cordas, para denominar a estrutura didática das aulas coletivas. 3 Padrão rítmico de acompanhamento (P.R.) é um padrão utilizado para a realização de acompanhamentos ao teclado, sendo que a mão direita executa os acordes, e a esquerda geralmente o baixo – quase sempre a fundamental, a não ser nos casos de baixos invertidos. A escrita do P.R. é feita na forma de ação rítmica a duas vozes, e sintetiza o perfil rítmico de algum estilo musical. Por exemplo, no caso do Baião, o P.R. será:

Vale ressaltar que o P.R. é apenas um modelo esquemático. De acordo com a prática, a criatividade e a desenvoltura de cada um, o P.R. pode ser variado de diversas maneiras, tornando a execução do acompanhamento mais interessante.

Ana Carolina Nunes do Couto é Doutoranda em Sociologia pela UFPE, Mestre em Música (2008) e especialista em Educação Musical (2004) pela UFMG, graduada em Licenciatura em Música pela UEL (2002). Atuou como professora na Escola de Música da UEMG de 2005 a 2009. Atualmente é professora assistente no Departamento de Música UFPE, lecionando na cadeira “Instrumento auxiliar – Teclado”. Neste local também desenvolve o projeto de extensão “Eu faço Música!”, que busca conhecer os processos de criação musical de grupos de música popular do Departamento de Música da UFPE, e é integrante do Grupo de Pesquisa em Formação e Atuação Profissional de Professores de Música. Tem artigos publicados em anais de congressos da ABEM (Associação Brasileira de Educação Musical), da Saccom (Sociedad Argentina para las Ciencias Cognitivas de La Música), e em revistas especializadas.

238 VALENTE, H. de A. D. Paisagens sonoras, trilhas musicais: retratos sonoros do Brasil. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.239-249.

Paisagens sonoras, trilhas musicais: retratos sonoros do Brasil

Heloísa de A. Duarte Valente (UMC; PPGMUS-ECA-USP, São Paulo) [email protected]; [email protected]

Resumo: O presente texto parte dos pressupostos de que: 1) a música é componente de relevo da paisagem sonora (SCHAFER, 2001); da mesma maneira, a paisagem sonora interfere nos processos perceptivos e na formação do gosto estético; 2) a música veiculada pela mídia é construto da vida cotidiana, pois a própria música engendra modelos e formas de comportamento. Tendo como referência essas premissas, este texto analisa peças de repertório musical que, de certa maneira, representam o Brasil, ao longo de seus governos e governantes. Tomo, para este ensaio, a paisagem sonora do período relativo ao final do século XX, em que governaram os presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Acredito que traços particulares presentes na canção midiática formam uma rede de signos (às vezes discretos) que acabam por imprimir, indelevelmente, à cultura de origem, uma feição muito particular. Ocorre que, até o momento presente, estes signos não demonstram terem sido objeto de análises mais detalhadas. Um estudo desses elementos poderá contribuir para compreender melhor a dinâmica social das culturas, pela figura de seus governantes e governos, para além do que nos vem sendo oferecido, de forma estereotipada e simplista.

Palavras-chave: paisagem sonora no Brasil; música popular e memória musical; canção e semiótica musical.

Soundscapes, soundtracks: Brazilian sound portraits

Abstract: This paper departs from the following assumptions 1) music is a prominent part of the soundscape (SCHAFER, 2001) and likewise, the soundscape interferes with compositional processes and the development of the aesthetical taste, 2) pieces of music broadcasted in the media are constituents of everyday life, since music itself produces habits and models of behavior. Referring to these suppositions, this text intends to analyze some pieces of musical repertoire which in a certain extent represents Brazil as a country, through their governments and presidents. For this purpose, I will analyze the soundscape of the period concerning the late twentieth century, when Fernando Henrique Cardoso and Luiz Inácio Lula da Silva were presidents. I believe that particular features in media songs might engender a network of signs (sometimes discreet ones) which could stamp its marks in culture in a very special way. It should be stressed that such approach seems not to have been subject of careful study. An analysis of these discrete elements could contribute to understand how social dynamics of cultures occurs, beyond the stereotyped and naive approaches.

Keywords: soundscape in Brazil; popular songs and musical memory; song and musical semiotics.

1. Um Brasil que se conhece pelos ouvidos Antes de iniciar esta exposição, cabe mencionar a origem sociopolítico. Seguindo tal raciocínio, Fernando Collor, de tal preocupação investigativa. Este texto é parte presidente de então, coadunava-se com os sertanejos; do de um ensaio longo cujo tema envolve as paisagens mesmo modo que José Sarney corresponderia à lambada sonoras no Brasil, tendo como base as “trilhas sonoras” e, Juscelino Kubitschek, à Bossa Nova. Seguiram-se implantadas pelos governos e respectivos governantes. A outros exemplos. Memorizei as considerações do crítico motivação que me levou a escrevê-lo deu-se de modo e passei a refletir sobre o assunto. (infelizmente, as quase acidental há vários anos, quando assisti a uma referências à entrevista se perderam...) A curiosidade me entrevista ao crítico musical Nelson Motta, pela televisão. atiçou, levando-me a estabelecer uma série de paralelos Ao comentar sobre o panorama das músicas no Brasil, e a tomar notas esparsas. Devo, pois, a Nelson Motta, Motta aventou uma hipótese muito instigante: governos “mote” inicial para este exercício de “clariaudiência”1 e governantes têm uma trilha musical que os identifica e que aqui segue. Acredito que o tema mereça especial caracteriza; mais que isso, os gêneros musicais imprimem atenção e, de pronto, ressalto a sua importância: as uma marca indelével, inconfundível. Sugeria que modas mídias pontuam praticamente todas as atividades da e modismos musicais surgiam ao sabor do ambiente vida cotidiana, em quantidade e extensão cada vez mais

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 16/06/2012 - Aprovado em: 04/01/2013 239 VALENTE, H. de A. D. Paisagens sonoras, trilhas musicais: retratos sonoros do Brasil. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.239-249.

abrangente. Dentre todas elas, a música - sobretudo sob a 2. Retratos sonoros: à procura de uma modalidade “canção”- parece onipresente nas linguagens conceituação própria audiovisuais, quer como trilha sonora, quer como música Antes de proceder a uma análise das obras que identificam, de fundo (jingles publicitários, tema de abertura de rotulam, salientam,maculam, exaltam - ou até mesmo peças de teledramaturgia,noticiários, leitmotiven de depõem- governantes e respectivos governos, cabe fazer personagens nas telenovelas etc.); na vida comezinha,a duas observações iniciais. A primeira delas refere-se ao música “infiltra-se” no território da vida íntima e pessoal conceito de “paisagem sonora” (adaptação do neologismo (ou, mesmo o “invade”) através dos toques de telefone, soundscape), criado pelo compositor e R. Murray SCHAFER games, além da já conhecida e polêmica música-ambiente (2001). Para o compositor canadense, os estudos da (Muzak). Essa existência se verifica tanto no ambiente paisagem sonora envolvem um campo interdisciplinar doméstico, quanto nos espaços públicos e institucionais. de pesquisas referentes ao ambiente acústico, não Posto isso, não parece exagerado afirmar que os signos importando sua natureza. São paisagens sonoras as musicais representam e testemunham o seu tempo e o situações e circunstâncias em que os eventos sonoros se tempo ao qual fazem referência. desenrolam no tempo e no espaço, incluindo-se próprias transfigurações de um mesmo ambiente: a paisagem Raciocinando dessa maneira, a analogia proposta por sonora de um mesmo espaço físico se transfigura ao longo Nelson Motta está longe de constituir uma prática das horas do dia, das estações do ano; o transcorrer dos retórica, de exibicionismo do seu conhecimento sobre séculos também imprime variações. A rigor, a paisagem repertórios musicais; ao contrário, trata-se, antes de sonora tende a ser mais barulhenta nas grandes cidades, tudo, de um convite (e uma provocação) ao leitor curioso devido a uma maior ocorrência de eventos sonoros para deixar-se enveredar por um campo ainda pouco simultâneos, sejam eles motivados por pessoas ou outras explorado nos estudos acadêmicos – o mundo que se fontes. Acrescente-se que a evolução tecnológica vem faz conhecer pelos ouvidos (VALENTE, 2002). O conjunto trazendo um aumento progressivo na quantidade de de obras (e as variações da paisagem sonora, em suas objetos produtores de ruídos, congestionando a paisagem várias circunstâncias) não apenas constroem a imagem sonora. Os sons naturais -sobretudo animais- tornaram- do governante, desde a sua candidatura, até a tomada se raros ou menos frequentes. de poder, mas também, em certa medida, identificam programas de governo, ao longo do seu mandato. A Outro marco conceitual a destacar é a música que composição da imagem (sonora), por intermédio de peças aqui será analisada. Posto que a grande maioria das musicais, estabelece formas ativas de comunicação obras musicais que fazem referência mais ou menos entre sistemas, orientação ideológica de governo, direta a governantes, governos e população se dão governantes e governados. Tal como a “trilha sonora” de por variantes da forma canção, é necessário, antes uma extensa peça de dramaturgia, a trilha sonora dos de prosseguir, estabelecer uma distinção entre as governos põe em cena as tramas da vida em sociedade, denominações “canção popular” e “canção das mídias”. em momentos de júbilo e conflito; aceitação e recusa; Parto do pressuposto de que o conceito de canção concordância e repúdio; guerra e paz, amor e ódio... popular é impreciso, podendo-se estender a uma gama Ocorre que esta comunicação se faz, em larga medida, de diversa de obras (NEDER, 2010)3. Muito embora pareça maneira intuitiva: os códigos existem, sendo geralmente um conceito autorreferente, talvez até pelo seu uso decifrados de maneira espontânea. Em outras palavras, trivial pelo senso comum, não há um consenso, uma parece existir uma forma correspondente nas diversas definição clara sobre o que se denomina canção popular configurações das paisagens sonoras à máxima popular “o (GONZÁLEZ, 2001). De maneira precária, conceitua-se hábito faz o monge”. O que não se verifica é a formulação como uma peça musical, composta sobre texto verbal, sistemática a ser aplicada convencionalmente. Este difundida pelos diversos meios de comunicação. Tal ensaio tem a pretensão de dar início a essa empreitada. definição, levada ao extremo pode encampar desde Para tanto, levará em conta, alguns pressupostos: 1) a a canção tradicional, de origem antiga, até a ária de música é componente de incontestável importância na ópera, adequada à transmissão por alto-falantes. Dada paisagem sonora2 (SCHAFER, 2001); esta, por sua vez, essa fragilidade conceitual, opto pela denominação interfere nos processos comunicacionais, na recepção canção das mídias (VALENTE, 2003): a canção concebida (uma vez que modifica a sensibilidade da escuta); 2) a para ser veiculada pelas mídias (inicialmente, sonoras, paisagem sonora é capaz de engendrar modelos e formas sucedida pelas audiovisuais), acolhendo as normas e de ouvir, pensar e compor música; 3) em decorrência do possibilidades tecnológicas disponíveis; ou, ainda, a item 2), infere-se que a música veiculada pelas mídias canção que, mesmo oriunda de outro contexto (árias é construto não apenas do mercado fonográfico e seus de ópera romântica, cantigas folclóricas, tradicionais mandatários, mas também resulta de uma incorporação e outras compostas para se executar ao vivo e sem de hábitos de escuta desenvolvidos e cristalizados aparatos) tenha-se adaptado aos padrões da canção na vida cotidiana, pela própria repetição contínua na concebida para o disco, tendo seus parâmetros (duração, escuta de determinado repertório (voluntariamente, ou variação de intensidade e andamento, instrumentação não). Tendo apresentado estas premissas iniciais, passo a etc.) controláveis segundo outros referenciais alheios ao alguns conceitos de base. projeto do compositor e, não raro, o próprio intérprete.

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Ainda que a maioria das canções midiáticas não resulte musical do período relativo aos últimos vinte anos, da leitura de uma partitura pré-existente (convencional, quando a abordagem se faz a partir da linguagem em pentagrama ou mesmo por cifras), não se excluem musical6. Enumerar gêneros e tendências musicais pela dessa categoria aquelas que tiverem, em sua base, o sua importância é, igualmente, problemático face à suporte escrito. A canção midiática deve ser composta, multiplicidade de critérios possíveis7. executada, difundida e desfrutada tendo em conta os recursos oferecidos pelo conjunto de técnicas e estéticas Sobretudo, o que se aponta aqui como mais frágil do som (e/ou do audiovisual) vigente. Este compósito consiste na comparação quase direta de elementos técnica-estética estará, por sua vez, submetido a outros aparentemente incomparáveis e distantes entre si: condicionantes, como a esfera político-econômica repertórios musicais, presidentes e as respectivas (das gravadoras e, por extensão, de todas as empresas paisagens sonoras de governo. As vinculações parecem da comunicação), orientações ideológicas diversas, de muito abruptas e a empreitada corre o risco de não maneira mais ou menos significativa (instituições de passar de uma sequência de metáforas... Ocorre que poder como estado, religião). Na maioria das vezes, a as metáforas são abstrações de elementos sensíveis canção midiática é, em sua essência, pensada como capturados da realidade. (Todavia, não costumam mercadoria ou, pelo menos, tende a converter-se numa4. ser adotadas para embasar teses acadêmicas....). Essa orientação não impede que a composição resulte Esse terreno pantanoso não me intimidou de levar numa obra de razoável complexidade formal. Ocorre, adiante esse exercício de clariaudiência: a abordagem ainda que algumas canções se consagrem no gosto semiótica permite estabelecer interfaces entre popular, a ponto de se transformarem em “monumentos linguagens diversas, de maneira pertinente. Para tanto, sonoros históricos”, quer um sob o aspecto musical existem as teorias que orientam a análise. Se elas não ou de outra natureza. Aqui se agrupam as obras que dão conta do objeto em estudo, conforme o esperado, ganharam destaque em razão de suas qualidades criam-se outros instrumentos subsidiários, que venham formais (vide os clássicos Aquarela do Brasil, Carinhoso, a atender às necessidades da pesquisa. Meu histórico Desafinado... quanto aquelas que se tornaram memória como semioticista me levou a dar muita importância em virtude justamente da imagem negativa que fincaram ao detalhe, ao “pequeno”, ao “desimportante”, nos (Florentina de Jesus, Uma vida só). A canção das mídias diversos temas que estudo. Acredito que discernir terá na performance5 (ZUMTHOR, 1997) o seu modelo o código musical, em seus elementos mais sutis, é principal, que englobará um amplo leque de elementos habilidade essencial para decifrar informações sonoras característicos e diferenciais. não perceptíveis em uma primeira escuta. O estudo, a partir de elementos discretos (pequenas variações de Uma terceira observação toca ao termo performance. andamento, de pronúncia ou sotaque, modos de ataque Para além das acepções mais conhecidas (“execução”, etc.), verificáveis na obra musical, poderá contribuir, “interpretação”, “desempenho” etc.) o vocábulo deve ainda que modestamente, para compreender melhor aqui ser compreendido como um conceito estabelecido a dinâmica social das culturas, para além do que é pelo erudito Paul ZUMTHOR (1997), que o define fornecido, de forma estereotipada e simplória por como uma ação complexa, que envolve múltiplos alguns manuais e obras de divulgação. No caso deste fatores: emissor, receptor, circunstâncias que envolvem ensaio, proponho uma tentativa de estudar a vida o processo comunicativo. No caso da música, a sociopolítica através dos governantes e orientações performance não se restringe à ação do (execução) do ideológicas, através da sua música. instrumentista, à interpretação (do ator, poeta, cantor). Por fim, cabe frisar que o vocábulo “mídia” não se Tendo dito isso, proponho-me esboçar uma rápida limita ao sentido conferido pelo senso comum (grande analogia entre governantes e as respectivas “trilhas imprensa, publicidade etc.), mas o próprio aparato capaz sonoras”, no Brasil, na passagem dos séculos XX para de, ele próprio, engendrar processos comunicativos o XXI. Mais precisamente, tomarei como referência o (SANTAELLA, 1996). período dos governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Os critérios que embasam esta 3. Referências teórico-metodológicas seleção encontram-se nas seguintes particularidades: Antes de descrever os procedimentos teórico- metodológicos que orientaram esta pesquisa, algumas 1)Trata-se de um período que oferece material empírico observações iniciais precisam ser feitas. De início, é que pode ser captado através das histórias de vida e fato que tratar da produção musical da última década experiências pessoais, de faixas etárias diversas); do segundo milênio é incumbência espinhosa, por várias razões: dentre elas, a própria proximidade temporal 2) em termos sociopolíticos, trata-se de um período em impede o distanciamento adequado do observador, que os presidentes eleitos, granjeiam uma expressiva impossibilitando-o de efetuar uma análise precisa dos representatividade, graças ao expressivo montante de signos que de fato hajam-se fixado como memória votos diretos obtidos – o que, de algum modo, leva a crer musical, ou cultural. De outra parte, há uma notável que as manifestações populares possam ser entendidas escassez de fontes de cunho crítico, sobre a produção como espontâneas8;

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3) tanto Fernando Henrique Cardoso, como Luís Inácio 4. Canção, mídia e memória: A “trilha sonora” Lula da Silva têm poder carismático, sendo admirados do final dos 1900, de FHC a Lula por uma ampla parcela da população do país. Sendo O gigantesco espaço territorial brasileiro - também sonoro dessa maneira, os atributos que inevitavelmente se - é coberto por um amplo repertório de canções que, em agregam à sua imagem acarretam, inevitavelmente, grande monta, habitam a paisagem sonora como memória em repercussões junto à opinião pública. Nesse ponto, social, seja ela implantada pela própria comunidade, seja é importante recordar que, as diferenças ideológicas e através de iniciativas pessoais. Mas também as gravadoras, de programa de governo não isola um do outro: num através de seus mecanismos de repetição à exaustão passado de luta pela democracia, ambos compartilhavam acabam por fixar um gosto estético. A despeito de sua ideias e ações conjuntas; existência efêmera, o hit parade engendrado pode vir a desempenhar papel importante, à medida que, de algum 4) o período de governo de ambos os presidentes, modo, a canção de sucesso estabelece paradigmas que em dois mandatos, coincide com o vertiginoso permitem identificar (sonoramente) o tempo-espaço de desenvolvimento das mídias digitais que, muito referência de seus consumidores: Isso se explica à medida rapidamente desdobraram-se em outras tecnologias, que os traços particulares presentes na canção midiática pleiteando novas formas de uso e, em consequência formam uma rede de signos (às vezes discretos) que, ao fim disso, criando de novos hábitos perceptivos; e ao cabo, imprimem indelevelmente, à cultura de origem, uma feição muito particular do espírito do seu tempo11. 5) os tempos do pós-modernismo acentuaram as fissuras dos pilares que antes sustentavam categorias O hábito de estabelecer paralelos entre modas, modismos definidas, tais como “local”, “global”, “identidade”, e acontecimentos memoráveis é bastante comum, “nacional” (etc.); em contrapartida, passaram a mesclar- especialmente quando as relações se dão por intermédio se elementos pertencentes a repertórios diferentes, de um vínculo afetivo, em alguma instância. Assim, oriundos de tempos e espaços, a princípio díspares: o são facilmente recordadas as canções que marcam passado é revisitado, agregando-lhe qualificativos como experiências individuais marcantes, bem como aquelas vintage, retrô, dentre outros qualificativos (na verdade, que se relacionam a acontecimentos coletivos: são os uma fetichização da história). hinos compostos para os diversos certames esportivos (olimpíadas, copas do mundo de futebol), vitórias eleitorais Posto este quadro de referência, esclareço que, além das e políticas, rituais e festejos religiosos, cerimônias diversas fontes bibliográficas, apoio-me em outros documentos, (coroações, funerais etc.) A associação entre governos de tais como anotações diversas sobre eventos, notícias na estado e gêneros musicais ocorre de maneira pontual. imprensa, folhetos de divulgação publicitária, filmes e Neste território a correspondência mostra-se ainda pouco jingles das campanhas políticas etc.. Para a análise dos frequente, muito embora o senso comum a faça, de materiais, adoto a metodologia proposta por Christian maneira empírica e lúdica. Nas considerações que seguem, MARCADET, estudioso das canções (2007). Importantes procurarei esboçar as linhas iniciais para um estudo de são, ainda, os depoimentos e memórias sobre fatos tais relações, através da análise de elementos da paisagem presenciados por testemunhas auditivas, de várias sonora e musical. Limitar-me-ei a apresentar uma lista faixas etárias. Neste ponto, a prática de exercícios de inicial de obras, autores e intérpretes que marcaram “clariaudiência” (SCHAFER, 2001) estimula o depoente presença na paisagem sonora, fixando as “trilhas sonoras” a recuperar importantes memórias de acontecimentos (quase sempre, representadas por canções) que se tornaram ocorridos em caráter individual ou coletivamente, em ícones dos governos Fernando Henrique Cardoso (1994- que a música figure como elemento-chave. A maioria 2002) e Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010). desse repertório musical é composta por canções das mídias (VALENTE, 2003). Examinando a paisagem sonora –e, particularmente, musical- do Brasil do período que sucedeu as “diretas- Por fim, enfatizo: Ainda que as considerações finais já”, verificamos a continuidade de algumas modas e permaneçam carregadas de elementos de subjetividade, tendências musicais já iniciadas durante o governo não deixam de ser resultado de reflexões próprias, fruto José Sarney e que mantiveram sua presença no período de debates de que tenho participado, ao longo dos últimos Fernando Collor e Itamar Franco: é o caso da lambada, anos9; outras ideias foram compartilhadas, debatidas, com da axé music, da música sertaneja. O repertório musical meus alunos de pós-graduação, no curso que ministro, da última década dos 1900 seria alimentado de outras desde 2006, Música e Cultura das Mídias10. Em assim músicas, tais como o pagode, o forró universitário, o sendo, aquilo que ora que apresento é, inevitavelmente, rap, o funk carioca, além do denominado “sertanejo uma reelaboração dessas formulações. E um ensaio – no romântico”. O solo sobre o qual este repertório se sentido literal: impossibilitada de decantar todos os dados assentaria: o governo Fernando Henrique Cardoso, logo subjetivos, adoto uma metodologia pouco convencional, alcunhado imediatamente FHC, pela mídia impressa. no âmbito dos usuais protocolos acadêmicos – o que não Se, a princípio possa parecer estranha a associação significa num descuido na verificação da autenticidade e entre uma produção inicialmente voltada às camadas confiabilidade das fontes consultadas. menos favorecidas economicamente e um intelectual

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oriundo da elite intelectual burguesa – é importante Jovelina Pérola Negra e Nei Lopes. Em 1990, conheceria ressaltar, logo de início, o panorama que pautou o seu a versão criada pelas gravadoras, que vendeu milhares governo. Antes mesmo da tomada de posse, o prestigiado de discos16. A lista de “pagodeiros” é grande: Da Melhor presidente já gozava de prestígio internacional, devido Qualidade, Dudu Nobre, Exaltassamba, Grupo Molejo, Os a sua carreira acadêmica bem-sucedida. Por essa época, Travessos, Só pra Contrariar, Negritude Júnior. Aqui se já se estabeleciam, pouco a pouco, redes de televisão introduzem os instrumentos eletrônicos não pelos timbres por assinatura, como a MTV, destinada à música jovem novos, pelos ruídos de linguagem, mas tão simplesmente (pop, entenda-se). Também se ampliava a comunicação como versão de baixo orçamento que substitui o naipe cibernética, o que propiciou a oferta crescente de de cordas. Desenvolve-se uma sonoridade sem respiração, serviços e produtos culturais à la carte12, no geral, peças tônus e articulação precisa dos modos de ataque de entretenimento: longas-metragens “enlatados”, séries, do instrumentista, que se esvaem nas notas do som variedades e noticiários. Nesse cenário o Brasil passa infinito do sintetizador- que somente se extingue com a a consumir o pop internacional pela televisão (grunge, interrupção da energia elétrica... britpop... Nirvana e seu líder Kurt Cobain, Pixies, Red Hot Chili Peppers, REM, Metallica, Guns ‘n Roses) ao mesmo 5. Uma playlist da virada do segundo milênio tempo em que exporta o heavy metal supranacional que canta em inglês – do grupo Sepultura. O panorama musical dos últimos anos do século XX é amplo e conta com nomes de destaque nos mais No terreno da produção local, algumas tendências foram diferentes gêneros e formas de expressão, alguns deles surgindo e ganharam força, pelo menos até o final do século de carreira longeva. Encabeçam essa lista inicial os XX. Dentre eles, destacam-se o pagode (especialmente, o nomes já consagrados na canção brasileira (comumente “pagode romântico”), o forró universitário, o rap, o funk denominada MPB), oriundos desde a Bossa Nova (tal é o – para citar alguns. Trata-se, nos dois primeiros casos, de caso do epígono João Gilberto) e aqueles que, ingressados mutações de gêneros originários de décadas passadas, na mídia, quando da participação em festivais de música que foram devidamente desbastados de elementos acabaram acariciados pela intelligentsia . Aqui se característicos formais e acrescidos de outros, típicos da encontram Chico Buarque, , Geraldo Vandré, em estética midiática em vigor. Tais procedimentos visavam grande medida compondo canções críticas ( de protesto), atender ao protocolo mercadológico, acrescidos do os militantes de movimentos culturais (sobretudo a inevitável e imprescindível idioleto pop-eletrônico. Isto Tropicália): Caetano Veloso, , . quer dizer que, via de regra, modalidades regionais, de Mais voltados ao gosto popular, o rock deu audibilidade grande popularidade, como o forró, deixaram de ser ouvidos a artistas que teriam carreira longa e prolífica, como a na sua versão original (sanfona, zabumba e triângulo) e no sempre enfant terrible e ao comedido Roberto seu espaço singular: ao ar livre, sem o apoio de tecnologias Carlos (em sua fase inicial de carreira). de amplificação ou de reprodução. Para ser aceito como “moderno” – consumível, entenda-se...- teve de se adaptar Os sertanejos teriam longos dias de estrada e alto-falantes aos moldes da música pop e sua estética: “eletrificado”, – sobretudo porque insistentemente rememorados com a adoção do “teclado”, bateria (eletrônica) tornou- em novela de grande audiência17 e representam uma se a receita básica para o sucesso da versão “forró volumosa parcela da população. Não será por acaso universitário”. Muito distante do Trio Nordestino, ou o que vários dos jingles políticos elegerão as baladas antológico Luiz Gonzaga, esta versão equivocadamente sertanejas para veicular suas mensagens. Chitãozinho afiliada à música de raiz (autêntica), para ser tocada em e Xororó, Zezé de Camargo e Luciano, Rio Negro e espaços abertos, não escapa do padrão estético ditado Solimões, Leonardo, Daniel (estes mais voltados a um pelas majors: são sequências de um mesmo repertório sertanejo romântico, sobretudo após a morte dos seus feito para animar festinhas de pessoas cujos ouvidos pares de dupla Leandro e João Paulo, respectivamente), ficam satisfeitos com altos decibéis de excitação, Roberta Miranda, Sula Miranda são alguns dos nomes para se “curtir” num salão fechado e climatizado. A que permanecerão, ininterruptamente, durante o período. semelhança entre as canções e os vários grupos que Outras gerações surgiriam e algumas preexistentes o executam é tal que se faz necessário, no transcorrer passariam por mudanças contundentes. É o caso dos da música, seja anunciado o nome do intérprete13: ex-mirins Sandy e Júnior, que dariam adeus à infância, Falamansa, Mastruz com Leite, Limão com Mel e outros mudando radicalmente o seu repertório. Sandy se casa nomes atrelados a combinações culinárias geralmente e tentará passar a imagem de cantora madura, voltada a sinalizam os protagonistas desse tipo de repertório. Tal um repertório mais refinado e escolarizado18. versão “movente” (VALENTE, 2003)14 do forró atesta como a alteração de poucos elementos da performance A despeito de um congestionamento, na paisagem implicam em diferentes formas de recepção e fruição15. sonora, da entoação “choramingosa”, dos monótonos violinos “de plástico”, dos apelos pouco sutis à O pagode de raiz, na sua origem, deriva-se do samba, anatomia do corpo humano (particularmente às partes na década de 1940. Tem sua continuidade com nomes pudendas femininas), os gêneros de origem regional como Almir Guinéto, Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal, ainda conseguiriam seguir seu caminho. Para além

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dos já consagrados , Renato Borghetti católicos, gospel, na verdade, não se deixam furtar ao (Borghettinho) e outros músicos que há décadas se inevitável modelo pop convencional, servindo-se de todos dedicam à preservação e renovação da música regional, os gêneros em voga no momento. Somente o conteúdo das outros nomes, tais como o gaúcho Vitor Ramil, Mestre letras se mantém, com menções religiosas, especialmente Ambrósio, Cascabulho, Chico Science e Nação Zumbi passagens ou ensinamentos da Bíblia. Padre Marcelo Rossi, constam entre os músicos que desenvolvem trabalho a da Renovação Carismática (católica) vendeu milhões de partir de elementos extraídos da cultura popular e do discos no final do século XX e serviu de protótipo a outros folclore. Antônio Nóbrega vai mais longe: inicialmente, padres-cantores-dançarinos, ensinando o caminho das violinista erudito, integrante do movimento Armorial pedras para locupletar os cofres da Igreja. Mantém-se de Ariano Suassuna, parte em busca de sua linguagem como nome importante no casting das gravadoras, não própria. Além de criador, desenvolve importante trabalho obstante a derrocada da indústria fonográfica20. educativo no Brincante, na capital paulista. Por fim, mantêm seus postos os consagrados nichos A paisagem sonora do período abrigaria, também o de consumo: os românticos de há vários anos (Daniel, universo kitsch e o humor; o escárnio e a paródia. Aqui Leonardo, Roberto Carlos, Fábio Jr.) e décadas (Angela se reúnem casos particulares, tal como o veterano Maria, Cauby Peixoto); os roqueiros: Jota Quest, Skank, da Jovem-Guarda Reginaldo Rossi19, migrado para o Charlie Brown Jr., Ana Carolina, Pitty, além dos veteranos “cafona”, faz companhia ao cearense Falcão. Ocorre que Nando Reis e Rita Lee21 .E teremos também os rappers Falcão que faz do “brega” sua bandeira estética, pelo DJ Dolores (Hélder Aragão), que já acompanhou os viés paródico, com bastante competência: a persona internacionais Bjork, Mobby, Cold Play, Pavilhão 9, Gabriel que criou pratica um contraste justapondo palavras o Pensador, Marcelo D2, Rappin Hood, Facção Central, DJ de baixo calão, a desafinação proposital a um arranjo Patife. Em número crescente surgirá o funk, em diversas instrumental muito bem elaborado, com recursos de ramificações (“batidão”, “proibidão”). estúdio de alto padrão. Tangos e tragédias, do extremo sul do país, já crê na existência de um país fictício, 6. Só para contrariar... Deixa a vida me levar... a SbØrnia – com algumas semelhanças “casuais” Exposto esse sintético panorama de tendências estéticas com o Brasil... Os Kraunus e Pletskaia – na verdade, musicais, passo para uma aproximação entre os personagens criados pelos gaúchos Hique Gómez e Nico governos e governantes. Comecemos pela mais singela e, Nicolaiewsky - se valem de uma atmosfera “kitsch- geralmente, de curta duração: o jingle publicitário. Esta é trágica”, desenvolvida a partir de repertórios como os de uma das maneiras segundo as quais se cria e desenvolve Vicente Celestino, Alvarenga e Ranchinho, passando por a imagem de um político, através da música. Escolhem- Jimmy Hendrix e outros mais. se canções estróficas, tonais,em gêneros populares, tais como marcha, samba, sem serem desprezados os No campo da música voltada ao experimentalismo, derivados do pop e do rock. Nas últimas campanhas, Maurício Pereira e André Abujamra desenvolvem trabalhos especialmente os ritmos nordestinos, como o xote e o individuais, após a dissolução do grupo Os Mulheres Negras forró, além das toadas sertanejas foram os preferidos a “menor big band do mundo”, no dizer de seus fundadores. pelos idealizadores das campanhas. Na maioria dos Tom Zé, estão entre os nomes que vêm casos, os cantores lançam mão de uma impostação vocal contribuindo num campo mais experimental da música. tensa, estridente e/ou nasalada – sobretudo quando se Zeca Baleiro, Chico César, Otto são outros músicos fora opta pelos gêneros de tradição nordestina. A locução, do sudeste que têm oferecido um repertório diferenciado, em contrapartida, convida speakers de alta nomeada, com um grau de originalidade a se considerar. Também como Ferreira Martins (no caso do PSDB) ou Reinaldo cabe ressaltar que, da vertente por onde a linguagem Gonzaga (PT) para as narrações em off, adotando o musical busca novas direções, sobressaem nomes como protocolo de projeção vocal, pronúncia e entonação. os “cantautores” Zélia Duncan, Adriana Calcanhoto, Leila Ultimamente, entretanto, os marqueteiros vêm se dando Pinheiro, Zizi Possi, Vânia Bastos, Na Ozzetti, , conta da importância de incluir vozes de pessoas mais José Miguel Wisnik, Luiz Tatit. comuns, ou sotaques regionais.

Igualmente as religiões descobririam que a música tem o O jingle da primeira campanha de Fernando Henrique poder de angariar fiéis... e mais fundos que os dízimos dos Cardoso, Levanta a Mão, foi composto por Sérgio cultos. Muitos sacerdotes e sacerdotisas converteram-se Mineiro, Sérgio Campanelli, César Brunetti e Maurício em pop stars, comparáveis aos ídolos de rock, tanto na Novaes. Baseado no slogan, que anunciava cinco itens sua performance, quanto nas suas estratégias de ação. como propostas fundamentais do seu governo, conseguiu Detentores de concessões de estação de rádio e televisão alta popularidade, sobretudo com a adesão do cantor gravam seus discos, logo transmitidos pelos satélites, e acordeonista Dominguinhos, com a peça “Levanta a retroalimentando, assim, a indústria da fé com fartura mão”. Posteriormente, o jingle foi reaproveitado em de anunciantes e altos índices de audiência. Em termos outras campanhas do PSDB nas eleições seguintes (José musicais, contudo, não importam as diferenças de credo; Serra, 2002 e Geraldo Alckmin, 2006), com algumas tampouco as formas de persuasão dos fieis: evangélicos, variações no arranjo e na letra22.

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No caso de Lula, escolheu-se o hit acidental, composto O governo capitaneado pelo ex-torneiro mecânico e líder para a eleição de 1989. O músico Hilton Acioli relata, em sindical Luís Inácio Lula da Silva foi a grande novidade do entrevista concedida ao repórter Haroldo Sereza, com fim do segundo milênio, não apenas pela sua origem – um imagens e edição de Derek Sismotto como surgiu a peça homem do povo-, como também pelas expectativas diversas publicitária; como a sua composição se tornou um grande que suscitou: pela primeira vez, na história recente do país, hit e como foi reapropriada, em 1994 e 2003. Em outra segmentos marginalizados e minorias acreditavam que versão, o jingle acabou acoplando trechos do Gilberto Gil, poderiam ter voz, e que seus brados seriam imediatamente do Chico Buarque e Djavan, com acompanhamento de atendidos. Esta parcela, a princípio, entusiasmada - o Wagner Tiso (1989) “Sem medo de ser/ sem medo de ser mundo acadêmico de corrente filosófica de esquerda, os feliz”; “olê, olê-olê-olá / Lula, Lula”; ”Lula lá/ brilha uma ambientalistas, a igreja católica progressista, os cidadãos estrela”. Dentre outras qualidades, destaca a importância sem-terra (MST), os homossexuais, transexuais e afins do andamento, compatível com a passeata23. (GLBT) – todos aguardavam ansiosamente o momento das grandes mudanças na lei e no status social; na colocação Isto posto, insisto que o vínculo entre o candidato e em prática dos seus direitos de cidadania. Enquanto todos sua imagem criada através da publicidade, não marca esses grupos se manifestavam, parece ter falado mais definitivamente o mandante, assim como caracterizou alto o nicho do capital financeiro internacional, em seu o candidato: após as eleições, muitas situações mudam discreto silêncio inquietante... e, não raro, todos os signos engendrados, no sentido de conduzir o candidato ao cargo acabam esquecidos. Qual terá sido a trilha sonora que tenha caracterizado É bem verdade que a canção composta por Acioli tem o governo Lula? Ou, melhor dizendo: Houve, de fato, características especiais e agrega outros liames simbólicos uma trilha sonora dominante do governo Lula? Se os que lhe garantem uma permanência por longa data, na dois mandatos não foram suficientes para iconizar memória coletiva – sobretudo se tomarmos as lembranças um protótipo, uma coisa parece certa: tomando como de pessoas que viveram momentos como as “diretas-já” e referência a representatividade25 pelo mundo artístico, o a primeira candidatura de Lula, para presidente. “arranjador” deva ter sido o cantautor-ministro Gilberto Gil – não apenas por ter sido membro do primeiro escalão Ainda persistindo nesse exercício de risco, ousaria sugerir do governo, mas, sobretudo, porque demonstrou ter que, no caso do governo Fernando Henrique Cardoso acolhido todos os naipes possíveis dentro daquilo que talvez seja pagode o gênero musical que mais esteja se convencionou chamar “música popular brasileira”, ou, mais afinado com o governo– em que pese o estereótipo simplesmente, MPB. Pelo menos no que diz respeito à criado em torno da figura do presidente, tido como imagem do país no exterior, algo que parece ter ficado representante da burguesia, de hábitos aristocratas e de evidente no dia em que se pôs a tocar com Koffi Anan em gosto refinado. Se observarmos o conjunto da equipe do cerimônia no salão nobre da ONU, quando da homenagem governo e seus aliados, parece ter havido um desafino póstuma às vítimas do atentado no Iraque e, em especial, conflituoso entre a tentativa de implantar o high tech ao embaixador Sérgio Vieira de Melo26. Esta seria apenas e as ações efetivamente viabilizadas por uma equipe uma, dentre as várias aparições de Gilberto Gil no cenário extremamente conservadora (vide o partido do vice, internacional, enquanto ministro de estado da cultura. o presidente da Câmara...): os mesmos violinos “de plástico” (VALENTE, 1999), em alta-fidelidade acústica, O governo Lula foi entremeado de algumas efemérides parecem apontar para o contraste entre requinte e internacionais que, por razões simbólicas, veio a chamar “jequice”24, manifestada pelo alto comando do governo ao palco muitos músicos: No ano de 2005, comemorou- de então. Latifundiários – coronéis – com muitos se o Ano do Brasil na França – Brasil, Brasis27. Dentre as fundos (financeiros) e pouca profundidade intelectual atrações, a “funkeira” Tati Quebra Barraco, ao lado de (escolaridade insuficiente), novos-ricos, “emergentes” veteranos como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Daniela na sociedade graças à habilidade com operações Mercury e Carlinhos Brown, Marcelo D2, Dudu Nobre, bancárias de alta monta acabariam por compor a , trios elétricos da Bahia e de Pernambuco, audiência que lota as salas de espetáculo dos novos mangue beat e forró. A festa nacional do dia 14 de julho ídolos e celebridades midiáticos. Elevados às cumeadas foi comemorada com shows de músicos brasileiros e da visibilidade graças a estratégias promocionais das acompanhada pelo presidente Lula e o prefeito de Paris, gravadoras, tais intérpretes não demonstrariam ter, Bertrand Delanöe, na Bastilha28, tendo como participantes contudo, o lastro que assegure sua sobrevida por longo nomes como Gal Costa, Lenine, Jorge Mautner, Seu Jorge, tempo – tal qual a volatilidade do capital que o criou. Dig Bill (Ilê Aiyê). A torre Eiffel vibrou ao som de clássicos como A garota de Ipanema e às luzes verde-amarelas. De outra parte, existe, igualmente, uma parcela de público cuja formação intelectual é precária e que procura se O segundo mandato não apresentou mudanças muito conferir um status quo de requinte estético, bom gosto e substantivas, incluindo novos protagonistas que tenham sabedoria. Para tanto, adquire assinaturas de concertos se tornado paradigmas na política. Em contrapartida, de orquestras sinfônicas de renome, frequentadas pela debates sobre direitos intelectuais, programas de incentivo alta burguesia e noticiadas pelas colunas sociais da mídia e promoção de eventos teve grande efervescência. impressa e audiovisual. Gilberto Gil alegando ter de retomar a vida artística e

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empresarial cedeu seu posto ao sociólogo Juca Ferreira exacerbam o que já havia sucedido nos mais de 15 anos (João Luiz Silva Ferreira), então secretário executivo da que antecederam o seu mandato: O fim do walkman, em pasta, em 31 de julho de 2008. Ferreira permaneceu no outubro de 2010; a “velhice” precoce do I-Pod, aos dez cargo até o final do governo Lula (2011). Exposto isto, anos de existência, em 2011, ao mesmo em que o antigo talvez seja possível arriscar dizer, a respeito da trilha LP volta triunfante (e com custo alto). sonora do governo Lula, que ela mais se assemelhe a um grande potpourrit musical, composto de vários Em contrapartida às extinções, o desenvolvimento fragmentos assimétricos e multifacetados, costurados de tecnológico possibilitou a criação das redes sociais, acordo com as possibilidades, tal como a dessemelhança com consequências importantes na formação de novas entre os supostos aliados políticos (que entraram e saíram sensibilidades, hábitos de escuta e fruição dos repertórios de circulação)29, seus detratores e “companheiros”. musicais: a televisão em live streaming, a música para telefone celular, a “nuvem” para armazenar música Enfim, nesse caldeirão de diversidades, em várias e outros arquivos digitais... Sem deixar de mencionar instâncias, as pessoas parecem ter aprendido a o crescimento do repertório armazenado no sítio dançar todas as modas: acertam o passo e a fórmula Youtube.com, que vem possibilitando ressuscitar do de compasso, mudando a coreografia ao sabor das passado maciçamente um vasto arsenal sígnico para o novidades e dos noticiosos (escândalos, trocas de momento presente, ao mesmo tempo em que viabiliza o executivos, tragédias naturais, matanças...). Modas lançamento de novos astros, a partir de uma “fabricação” entram e saem, retornando, às vezes transfiguradas, com equipamentos domésticos, em produções caseiras. mas preservando elementos formais. Ao garantirem São acontecimentos impactantes e de repercussão que, sua vaga na paisagem sonora, pelo menos por algum muito possivelmente, farão do universo midiático ainda tempo, fixam-se como memória cultural. De certo mais visual do que auditivo... e também mais imiscuído de modo, essa situação se percebe nas matinês dançantes novas misturas. (Mas isto já é assunto para outro ensaio...) frequentadas pelos idosos, não mais interessados nas mudanças de governo. Tendo vivido “muitos carnavais”, Tratar de temas no âmbito das linguagens da música é, de querem, antes de tudo, deliciar-se com os hits de todos fato, tarefa difícil, dada a sua natureza autorreferente. os tempos e lugares: do samba ao bolero, passando Mas ao mesmo tempo, o obstáculo se converte em tarefa pelas baladas românticas, nacionais e internacionais, os altamente convidativa, pois não será a ambiguidade, a covers do rock, da música latina e quantas mais forem multiplicidade semântica uma das riquezas maiores da as peças de repertório que venham a animar os salões, comunicação, pelas linguagens da música? Pretendi, ao criando momentos de descontração em solo firme ou longo destas páginas, apresentar algumas preocupações “emoções em alto mar”30. Deixa a vida me levar! que percutem e repercutem a minha área de atuação acadêmica: a música e sua interface com as mídias. Se algumas afirmações possam carecer de uma abordagem 7. Ai, se eu te pego... científica tradicional, não será por isso que terei Muitos são os elementos e funções que estabelecem falhado na sustentação das afirmativas: houve rigor vínculos entre paisagens sonoras e as trilhas musicais. na obtenção de fontes. Longe de haver concluído esta Tentar tomá-los todos, a uma só vez, é tarefa fadada à quase-viagem a um universo edificado por paisagens frustração. Nesse sentido, o papel das mídias, analisadas sonoras, espero haver instigado o leitor a colocar em em sua especificidade, poderia trazer novos insumos para prática a sua “audição clara” e exercitar, por sua própria este estudo empírico como, por exemplo, todas as razões conta e risco, novas formulações teóricas. Se a pesquisa que determinam o longo sucesso da canção “Ai, se eu te mostrou-se insuficiente e superficial, ao menos foi pego”, do paranaense Michel Teló, em escala planetária. possível evidenciar que, por intermédio desses estudos, é possível obter informações valiosas, que poderão Dirigindo a atenção para o tempo presente, percebe-se contribuir para um conhecimento mais aprofundado que o atual governo, de Dilma Rousseff, já testemunha a respeito do Brasil. “Um país de todos”, que também algumas mortes tecnológicas e transformações que necessita se conhecer pelos ouvidos...

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Notas: 1 O conceito, criado por Murray SCHAFER (2001) traça um paralelo à experiência da clarividência e aponta para a necessidade de dirigir a atenção para os fenômenos sonoros que, por certo, podem ser portadores de informações relevantes. 2 Entenda-se o conceito de paisagem sonora (adaptação do neologismo soundscape), como o meio ambiente acústico, de qualquer natureza, assimilado no eixo espaço-tempo. SCHAFER adverte que a paisagem sonora tende a ser progressivamente mais barulhenta, com o passar do tempo (SCHAFER, 2001). 3 Não podendo me alongar em considerações a respeito, remeto o leitor à leitura do texto de Álvaro Neder: O estudo cultural da música popular brasileira: dois problemas e uma contribuição (NEDER, 2010). 4 É, por exemplo, o caso de árias de ópera que se transformam em trilha sonora de peças publicitárias. 5 Uma análise detalhada, acerca das implicações tocantes à canção, pode ser consultada em VALENTE (2003). 6 Some-se que além do número reduzido, uma grande massa dos escritos é fruto da lavra de autores não isentos – os fãs – ou visando a outros interesses e preocupações longe do campo artístico. Parte expressiva dos trabalhos universitários é de cunho histórico, antropológico e linguístico-literário, sociológico. Nestes casos, a preocupação com a qualidade artística da obra musical não é a prioridade. Desse modo, gêneros como o funk, hip hop e outros, normalmente relacionados prioritariamente como a música das camadas desfavorecidas economicamente são recebidos com entusiasmo, pelos autores, à medida que garantem a “sociabilidade” grupal, promovendo “consciência identitária”, ou a redução da violência na comunidade; no caso da relação letra e música, valoriza-se a “eficácia” comunicativa entre ambas. Mais recentemente, os programas de pós-graduação vêm manifestando interesse nos estudos dirigidos à canção, sobretudo àquela denominada “canção popular urbana”, com resultados interessantes. Na maioria dos casos, trata-se de análises de composicionais, relacionando a evolução da linguagem de compositores através de suas obras. 7 Um exemplo típico é o funk: acolhido, por uma comunidade de pesquisadores de prestígio como de extrema relevância, a mesma manifestação musical é, para outros estudiosos, com o mesmo prestígio intelectual, algo sem maior interesse – quando não desprezível... 8 Não se trata, absolutamente, de minimizar instâncias como o poder de persuasão da mídia sobre a opinião pública, mas de considerar que, especialmente a liberdade de expressão permite avaliar as manifestações populares como sinceras. 9 Dentre eles, destaco o texto Opala preto e outras pérolas performance de um veículo numa paisagem sonora globalizada, originado de um debate de uma lista de discussão e apresentado no XI Encontro Nacional da ANPPOM (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música), realizado no Instituto de Artes da Unicamp (24 a 28 de agosto de 1998). O texto encontra-se publicado na íntegra em um periódico (VALENTE, 1999). 10 Em 2006, no Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da UNESP e, desde 2008, no Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da ECA-USP. Parte dos trabalhos desenvolvidos pelos alunos foi publicado em hipertexto (VALENTE (org).(2010; 2011) 11 Um exemplo interessante se encontra na canção Menina veneno. O hit do então desconhecido Ritchie tomou conta de todas as estações de rádio em período integral, no ano de 1983. Tendo-se em conta que a época não comportava a reprodução digital em série, bem como outras mídias (Youtube, redes sociais) a força da canção (e do jabá) tiveram peso significativo na caracterização da paisagem sonora daquele ano. 12 No caso da música verificar-se-á, mais tarde, essa mesma possibilidade de escolha. Aliada à possibilidade de efetuar cópias a baixo custo financeiro, gratuitas ou pirateadas - propiciaria a escuta, e reprodução em série de músicas, sob a forma de arquivos sonoros. 13 Em certa medida, corresponde a uma recuperação do procedimento das primeiras gravações, quando os dados da gravação eram anunciados, antes do início da faixa gravada. 14 Desenvolvi várias reflexões sobre o conceito de “movência”, cunhado por Paul Zumthor (1997). A movência é um processo tradutório do próprio signo (no caso, musical), que faz com que a obra se reconfigure. Não se limita a mudanças de letra ou arranjo instrumental, mas também a aspectos mais sutis, como andamento, enunciação vocal, projeção da voz, espacialização do som etc.. 15 Existe, ainda, um dado importante que é a temática expressa nas letras das canções e sua função junto aos receptores. Não sendo interesse deste texto estabelecer juízos de valor ou mesmo analisar em detalhes as transformações sofridas por este gênero, bem como os outros que comentarei, a seguir, permito-me encerrar as descrições aqui, já quem sobre o forró, existem trabalhos consistentes desenvolvidos. O diferencial inegável entre a versão tradicional é o forró universitário é que este último não existe sem a alimentação elétrica. 16 No verbete pagode, do Dicionário da MPB Cravo Albim, encontra-se a curiosa observação: “Sua repercussão chegou até a Copa Mundial de 2002, no eixo Japão-Coreia, quando muitos dos jogadores que arrebataram o pentacampeonato para o Brasil, foram filmados e fotografados cantando esse tipo de música.” (ALBIM 2005). 17 Cite-se, por exemplo, a telenovela América (Rede Globo, 2005), cujo argumento centra-se na vida dos peões de boiadeiro e seu entorno. 18 A imagem cult se ratifica, a ponto de convidar para acompanhá-la o pianista Marcelo Bratke, em 2011. 19 Após sucesso na Jovem Guarda, sua carreira arrefeceu-se, até se tornar epígono daquilo que se convencionou designar como “cafona”. Ao que parece, a “conversão” se deu após ter sido convidado para animar o aniversário de 50 anos de Fernando Collor. O vasto repertório de canções bregas parece ter realimentado a sua carreira. Consulte-se: Euforia alagoana: O ex-presidente Fernando Collor fez de seu 50º aniversário o ensaio geral para o regresso à política a partir do ano 2000. In: Época (on-line). epoca.globo.com/edic/19990816/brasil2.htm. Acesso: 30/jun.2012. 20 Conforme estatística divulgada no jornal Folha de São Paulo foi o disco Canções para louvar ao Senhor foi o campeão de vendas pela Polygram em 1998 e o segundo mais vendido em todo o Brasil, sendo superado apenas por Leandro e Leonardo (BMG, 3 000 000). Em 2011, o Ágape Musical, produto conjuminado ao livro Ágape (igualmente best seller, com mais de cinco milhões de exemplares vendidos) (1º de janeiro de 1999, caderno 4, p.1) 21 Na época, anunciou a saída dos palcos em 2012, o que parece verificar-se, atualmente. 22 Para se criar uma imagem “nordestinizada” do candidato, os “marqueteiros” apelaram para o produto nacional e popular, fazendo-o substituir jantares em restaurantes finos, por buchada de bode, em feira popular, montar em jegue etc. Informações colhidas em: http://pecasraras. blogspot.com.br/2010/10/musica-para-eleger-fhc-x-lula-em-1994.html. Acesso: 30. Jun. 2012 23 O depoimento pode ser visto no endereço: http://www.youtube.com/watch?v=rqRRLod-s3I. Acesso: 30. Jun.2012. 24 Aqui reproduzo o termo utilizado por Nelson Motta na entrevista. Referia-se, mais especificamente, ao então presidente José Sarney e a sua relação com a lambada. 25 Aqui cito o compositor , para quem o lema um país de todos não se estende à música de concerto... (cf. palestra proferida para o Centro de Estudos em Música e Mídia -MusiMid, em 24 jun. 2005). http://www.musimid.mus.br/videos.htm. Acesso: 30 jun. 2012. 26 Reproduzo a notícia, conforme assinalado no Terra Notícias, em 19/ 09/2003:“O músico e ministro de Cultura do Brasil, Gilberto Gil, fez hoje um show no Hall da Assembleia Geral da ONU em memória das 22 pessoas que morreram no atentado à sede dessa organização em Bagdá. O concerto também foi realizado pela celebração do Dia da Paz Internacional e foi apresentado pelo próprio secretário-geral da ONU, Kofi Annan, que lembrou o compromisso dessa organização com “a paz e a dignidade humana”. No final do show, Gil levou Annan para cima do palco, onde o secretário- geral tocou atabaque.Gil e Kofi Annan tocam juntos na ONU pela paz”. In: Terra notícias: http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,OI146449- EI865,00-Gil+e+Kofi+Annan+tocam+juntos+na+ONU+pela+paz.html. Acesso: 30 jun. 2012. 27 Sobre o evento, consulte-se a descrição do projeto na página do Ministério da Cultura (Minc) em: http://www.cultura.gov.br/site/2005/03/17/ brasil-na-franca-2/.

248 VALENTE, H. de A. D. Paisagens sonoras, trilhas musicais: retratos sonoros do Brasil. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.239-249.

28 Lula aclamado em show de música brasileira na Bastilha. In Uol: Últimas Notícias. Disponível em : http://noticias.uol.com.br/ultnot/afp/2005/07/13/ ult34u130304.jhtm (13/07/2005). Acesso: 30 jun 2012. 29 Aliás, esta ideia aparece no próprio logotipo do governo, onde a palavra Brasil aparece em letras de cores e estampas diferentes, tal como um bordado feito de retalhos. Como aposto, segue a frase “um país de todos”. 30 Referência aos cruzeiros temáticos, no qual Roberto Carlos é o convidado de honra. Devido ao sucesso, o evento vem se repetindo anualmente, no verão, com saída do porto de Santos, com duração de três dias.

Heloísa de A. Duarte Valente é Pesquisadora do CNPq, Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), com estágio junto à Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS, Paris), e pós-doutoramento junto ao Dept. de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (CTR- ECA-USP). É autora de Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio (São Paulo: Annablume, 1999) e As vozes da canção na mídia (Via Lettera/FAPESP, 2003); e organizadora de diversas obras na área interdisciplinar de música e comunicação. É fundadora Centro de Estudos em Música e Mídia - MusiMid e idealizadora e responsável pelos Encontros de Música e Mídia (desde 2005). Atua como pesquisadora e docente junto ao Programa de Pós-Graduação em Música ECA-USP e no Mestrado em Políticas Públicas da Universidade de Mogi das Cruzes.

249 DIAS, C. E. Resenha: Bossa Nova e Crítica de Liliana Harb Bollos. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.250-253.

PEGA NA CHALEIRA - RESENHAS Resenha: Bossa Nova e Crítica de Liliana Harb Bollos

Carlos Ernest Dias (UFMG, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Review: Bossa Nova e crítica [Bossa Nova and criticism] by Liliana Harb Bollos

BOLLOS, Liliana Harb. Bossa Nova e crítica: polifonia de vozes na imprensa. São Paulo: Annablume, 2010; Rio de Janeiro: Funarte, 2010. 263 páginas. R$ 31,50

O livro Bossa Nova e Crítica – polifonia de vozes na popular. Liliana justifica a permanência de Mário de imprensa, de Liliana Bollos, traz uma importante Andrade como figura central na gênese de uma crítica contribuição aos estudos sobre a Música Popular musical baseada na linguagem artística e não em Brasileira. O trabalho analisa as publicações críticas sobre elementos extrínsecos a ela, contrapondo-se à crítica a Bossa Nova, colhidas em arquivos do IEB - Instituto historiográfica de cunho social estimulada por Silvio de Estudos Brasileiros, do Suplemento Literário do jornal Romero, que ganhou hegemonia na passagem do século O Estado de São Paulo, da revista Clima e sobretudo do XIX para o século XX. Arquivo Tinhorão no Instituto Moreira Sales. O volume, originado na tese de doutorado da pesquisadora, Percorrendo trilhas abertas por José Miguel Wisnik em “O estabelece relações entre a História e a Arte, colocando a Coro dos Contrários” (1983) e por Bruno Kiefer em “Villa hipótese de que a crítica musical no Brasil evoluiu a partir Lobos e o Modernismo na Música Brasileira” (1986), o dos moldes da crítica literária. Para demonstrar isso, o primeiro capítulo analisa as movimentações ocorridas primeiro capítulo discorre sobre a formação da literatura na Semana de Arte Moderna e as polêmicas por ela brasileira e também de sua crítica, explorando obras de provocadas na imprensa, incluindo o famoso confronto Silvio Romero, Machado de Assis e Sérgio Buarque de entre o conservador Oscar Guanabarino e o modernista Holanda. Essa análise permite ao leitor acompanhar a Menotti Del Picchia. O texto pontua a importância das evolução do pensamento crítico no campo da literatura, revistas Klaxon (1922-23) e Ariel, (1922-24) que, após a mas que incidirão, segundo a autora, diretamente sobre Semana, passaram a publicar artigos e produções de caráter a crítica musical erudita e posteriormente sobre a música educativo, com a participação de vários colaboradores.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 12/04/2012- Aprovado em: 04/01/2013 250 DIAS, C. E. Resenha: Bossa Nova e Crítica de Liliana Harb Bollos. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.250-253.

A autora menciona a importância das pesquisas sobre ao leitor conhecer as etapas vividas pela música popular músicas brasileiras publicadas por Mário de Andrade brasileira no século XX, através da análise de minuciosos em diversos livros, mas mantém o foco do trabalho na dados sobre gravações e críticas publicadas no período. análise de sua produção crítica em jornais e revistas. O capítulo percorre uma vasta bibliografia, que inclui Acompanhando a evolução e a conformação de uma os principais especialistas em música brasileira, como crítica musical que oscila entre a crítica ideológica e Lúcio Rangel, Jairo Severiano, José Ramos Tinhorão, José a crítica estética, Liliana explora a ampla influência Miguel Wisnik, Hermano Vianna, Carlos Sandroni, Santuza do escritor e musicólogo sobre a intelectualidade Cambraia Naves, Arthur Nestrovski e Tárik de Souza. musical da primeira metade do século XX. Conceitos amplamente discutidos no meio acadêmico musical Liliana Bollos destaca a publicação de revistas sobre brasileiro, a identidade nacional e o caráter interessado música popular como elemento fundamental no processo da arte brasileira desenvolvidos por Andrade permeiam a de reconhecimento da produção existente nas rádios discussão na segunda metade do primeiro capítulo. Mas brasileiras. A autora analisa publicações como Phono- o foco principal da pesquisa é mesmo o campo da crítica Arte (1928 a 1931), PRA Nove (1938), Radiolândia, ( e do jornalismo musical, ou seja, na análise intrínseca do 1953 a 1963), e principalmente a Revista da Música objeto musical, sem o cunho social e historiográfico que Popular, dirigida por Lúcio Rangel e publicada entre marcaram o projeto nacionalista. Analisando as dicções e 1954 e 1958. Segundo a autora, é na Revista da Música contradições do intelectual no período, o texto investiga Popular, considerada por Tárik de Souza como a “bossa as forças presentes em seu trabalho como crítico de nova” da imprensa musical no Brasil, que a informação música e no seu compromisso de promover uma instrução e a discussão sobre música popular ganha corpo e um e um “amelhoramento” 1 do brasileiro. acalorado espaço para discussão. A professora promove em seu trabalho uma interessante comparação entre os O livro Bossa Nova e Crítica historiciza o lugar da crítica e o perfis da Revista Clima e da Revista da Música Popular. diálogo entre a universidade e a imprensa na interpretação Enquanto na primeira todos os colaboradores são crítica do contexto cultural brasileiro. Valendo-se do livro provenientes da universidade e buscavam a construção Papéis Colados, de Flora Sussekind, Liliana descreve os de um pensamento crítico unilateral, na segunda dois modelos de crítica que se contrapõem a partir dos encontram-se os mais diferentes tipos de colaboradores, anos 1940: a crítica de rodapé, escrita por bacharéis e gerando uma polifonia de vozes, que apesar de algumas jornalistas, e a crítica universitária, desenvolvida por dissonâncias, dialogam entre si. membros da Academia. Antônio Cândido em São Paulo e Afrânio Coutinho no Rio de Janeiro são os dois nomes mais O texto chama a atenção para novos fatos sócio-culturais significativos no segundo modelo, e que viriam a promover que se dão no país nos anos 50, como a polarização entre um estreitamento de laços entre a crítica universitária e o estímulo ao desenvolvimentismo urbano dos anos JK e os suplementos literários dos jornais, entre a literatura de as novas leituras sobre a cultura popular de origem rural, invenção e a grande imprensa. Os trabalhos de Cândido surgidas com as obras de João Cabral de Mello Neto e e Coutinho localizam-se no período de afirmação do Guimarães Rosa. Por outro lado, as transformações modernismo, quando se avalia a produção surgida entre os ocorridas no cenário econômico do Estado Novo iriam anos 20 e 40. Os dois intelectuais pavimentam o caminho influenciar os comportamentos das elites brasileiras nesse para a chegada do movimento concretista em São Paulo período, provocando mudanças nos hábitos de consumo, nos anos 50, em cujo âmbito se revela a produção dos incluindo a TV, o rádio e os gêneros “modernos” por eles “poetas-críticos”, entre eles Décio Pignatari e os irmãos propagados. Entre os pontos abordados, está a influência Augusto e . que a bossa nova, um gênero essencialmente moderno, teria sofrido do jazz, sobretudo do cool jazz, tido como A Revista Clima, publicada entre 1941 e 1944, e que um gênero moderno e sutilmente revolucionário. O livro teve Mário de Andrade como patrono, foi, segundo apresenta minuciosos dados sobre alguns dos principais a autora, o ponto de partida de uma bem sucedida discos lançados no período e que influenciaram o trajetória de intelectuais ligados à Faculdade de Filosofia aparecimento da bossa nova. Entre eles, estão The Birth da USP, que estabeleceriam uma estreita relação com of the Cool de Miles Davis (1949), Julie is her name, da a sociedade através da publicação de artigos e críticas cantora Julie London com o guitarrista Barney Kessel, nos principais jornais do país. O texto aponta ainda Canção do Amor Demais, de Jobim e Vinicius (1958), e as turbulências provocadas pela ditadura militar no Chega de Saudade de João Gilberto (1959). ambiente universitário a partir de 1964, quando muitos suplementos literários foram fechados, ocasionando um Colocada a ideia de que a música popular brasileira atinge afastamento e uma reclusão da universidade com relação a sua maioridade com a Bossa Nova, o texto esboça uma ao contexto cultural. visão de que as proposições do nacionalismo andradiano irão se concretizar no campo da música popular, e não O segundo capítulo do livro inicia abordando as origens mais na música erudita. Essa “fratura” do nacionalismo na da crítica musical e a sua evolução enquanto ramo música erudita, por volta de 1950, vem sendo apontada jornalístico e propagador da cultura. A seção permite por diversos pesquisadores da música brasileira, entre eles

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o compositor e pianista Celso Mojola, cujo depoimento como o letrista Ray Gilbert, o compositor e arranjador Clare oral é citado pela autora (pág. 130). Este considera o Fischer, além dos músicos Stan Getz, João Gilberto, Gerry caso de Cláudio Santoro, compositor que explorou em Mulligan e Tom Jobim, o livro apresenta em detalhes todas sua obra os conceitos nacionalistas, mas que ao compor as tensões e movimentações comerciais geradas por aquele as Canções de Amor com Vinícius de Moraes em 1955, momento de “exportação” da bossa nova. A importância estaria “passando o bastão” do nacionalismo para Jobim, do show para a música brasileira no exterior é revelada de sem que este soubesse propriamente disso. Alternando forma isenta, através do confronto entre diversas críticas e entre opiniões próprias e descrições técnicas dos discos opiniões, evitando-se os preconceitos existentes no Brasil, e a maneira como estes foram concebidos, gravados explicitados por alguns pesquisadores brasileiros. e recebidos pelo mercado, a autora contribui com a discussão sobre a influência do jazz e sobre a retomada do O trabalho de Liliana Bollos contribui também para o samba pela bossa nova, ainda que estes temas já estejam conhecimento dos principais livros sobre música popular bastante explorados na bibliografia sobre o gênero. publicados nos anos 60, durante o calor da discussão sobre nacionalismos e estrangeirismos. Entre esses O terceiro e último capítulo, no qual a autora analisa livros, estão Panorama da Música Popular Brasileira, a recepção da bossa nova pela imprensa, define três de Ary Vasconcelos, de 1964, Música Popular: um tema momentos pontuais da crítica sobre o novo gênero: a em debate, de José Ramos Tinhorão, lançado em 1966 recepção do disco Canção do Amor Demais, lançado e o clássico Balanço da Bossa, de , em 1958, as críticas imediatamente subsequentes ao lançado em 1968. Outras tendências são também Concerto do Carnegie Hall em novembro de 1962, e um contextualizadas, como a tendência nacionalista e último momento no qual, já consolidada a bossa nova, há participante desenvolvida pelos Centros Populares de uma crítica mais cuidadosa e menos tendenciosa sobre o Cultura da UNE e a retomada do samba tradicional por assunto, e que permite uma compreensão maior da música interpretes como João Gilberto. Embora se concentre na em si. Como exemplo disso a autora cita a crítica “Canções questão da crítica musical e na recepção da bossa nova de Modinhas Nossas”, de José da Veiga Oliveira, sobre a pela imprensa e pela crítica, o livro possibilita o contato qual desenvolve extensa análise. Publicada no Suplemento com um amplo painel histórico sobre a música popular Literário do Estado de São Paulo em 28/02/1959, é a única brasileira do século XX, com riqueza de detalhes sobre crítica sobre música popular publicada naquele periódico. os seus protagonistas e sobre as principais gravações e Liliana concentra sua análise na dificuldade exposta publicações, críticas ou não, sobre esta música. pelo crítico em definir se aquela música seria popular ou erudita. Essa discussão encontra lugar na obra de Antônio Reafirmando a hipótese que as leituras críticas sobre Carlos Jobim, tido por muitos como herdeiro de Villa-Lobos música popular tiveram origem no campo da literatura, o em vários aspectos de sua escrita musical. livro propicia o conhecimento das diversas interpretações que o fenômeno da música popular gerou ao longo Realizando um extenso e exaustivo levantamento de do período, seja na crítica promovida pelas revistas críticas sobre música em geral, mas concentrando-se comerciais, quanto na crítica mais especializada e mais naquelas sobre a bossa nova, o texto de Liliana Bollos acadêmica. Nessa última, a autora destaca o trabalho de apresenta um caráter quase investigativo sobre o assunto, Augusto de Campos, que agregou em torno de si um grupo e percorre os principais debates e polêmicas sobre o de escritores, músicos e maestros que desenvolveram a impacto que a bossa nova causou tanto no meio musical ideia de uma crítica “de invenção” e de cunho estético. quanto no meio jornalístico. A autora mostra como as Não apenas intelectuais, mas conhecedores da linguagem críticas sobre música se polarizaram entre as críticas musical, e que por isso mesmo puderam desenvolver um acadêmicas publicadas no Suplemento Literário ou na amplo debate, como se vê no livro Balanço da Bossa, Revista Clima e entre as críticas sobre música popular referência obrigatória para qualquer estudioso da música escritas nas revistas comerciais. A questão das influências brasileira no período em questão. Por sua vez, o livro jazz/bossa nova/jazz é novamente objeto de análise, de Tinhorão explicita uma visão conservadora e não demonstrando o quanto o assunto esteve em discussão, progressista, presa a padrões nacionalistas e avessos a provocando tensões e incompreensões. influências estrangeiras nos ritmos nacionais.

Uma das relevantes contribuições deste trabalho é o O estudo de Liliana Harb Bollos sobre a crítica musical minucioso levantamento de críticas publicadas na imprensa em torno da Bossa Nova vai bem além das proposições sobre um evento até então coberto de obscuridades. Trata- iniciais. Se for verdade que os estudos sobre o Modernismo se do Concerto de Bossa Nova no Carnegie Hall em Nova Musical no Brasil vêm se tornando cada vez maiores, ainda Yorque, em novembro de 1962. Tendo coletado e analisado são poucos os autores que tratam o assunto de forma vinte e duas críticas sobre o assunto, Bollos elucida de forma metódica e isenta de preconceitos como neste trabalho. definitiva para o leitor como se deram os fatos daquele show, A autora presta toda a sua reverência a Mario de Andrade, demonstrando também a tendência negativa da crítica mas consegue relativizar o alcance de suas projeções sobre brasileira com relação ao evento. Envolvendo as principais a cultura musical brasileira, seja por avançar no período figuras da música popular no Brasil e nos Estados Unidos, cronológico, indo até a Bossa Nova, seja por tratar esse

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gênero como algo realizador das propostas do modernismo XX, uma vez que já estamos na segunda década do século musical brasileiro, só que no campo da música popular e XXI e outros impasses se anunciam, que certamente não mais no campo da música de concerto. Nesse sentido, envolverão tanto a produção musical quanto a produção são extremamente elucidadoras as abordagens de aspectos textual e crítica sobre música. presentes no gênero, como a relação entre a poesia e a música, entre a cultura e o mercado, entre o local e o Carlos Ernest Dias é Professor de Oboé, História da estrangeiro e entre a música erudita e a popular. Música Popular e Música e Modernismo na Escola de Música da UFMG, tendo se graduado com o Mestrado A autora enxerga pontos em comum nos trabalhos em Ciência da Arte pela UFF (com a dissertação Antônio de Mário de Andrade e de Augusto de Campos. Para Carlos Jobim: imagens e relações em Matita-Perê e Águas a professora, ambos procuram legar à música seus de Março, 2004) e o Bacharelado em Oboé pela UFMG. elementos inerentes, Mário pela construção, Augusto Estudou oboé com Vaclav Vineck, Luís Carlos Justi, pela invenção (pág. 240). Bollos considera ainda que entre Ricardo Rodrigues e Afrânio Lacerda e foi oboísta da Mário de Andrade e a Bossa Nova, houve a formação de Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, do Teatro Nacional uma crítica moderna brasileira, que passa por Antonio de Brasília e da Orquestra Sinfônica Brasileira no Rio Candido e Afrânio Coutinho, pela Revista Clima, pelo de Janeiro. Coordenou o Festival de Inverno da UFMG Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo (1993-1998), a Banda Sinfônica da UFMG (2004-2008), e pela “invenção” do grupo Noigandres, formado pelos o I Encontro de Estudos da Música popular Brasileira concretistas sob a inspiração de Oswald de Andrade. (2006), e diversos projetos de extensão. Com o CD Imagem (Karmim, 1999) recebeu o Troféu Pró-Música de A autora termina o seu trabalho manifestando sua Minas Gerais na categoria Melhor Arranjador. Foi curador preocupação quanto a não existência de uma crítica que da série Cartografia Musical Brasileira em MG (Rumos reconheça a música popular como fenômeno artístico em Itaú Cultural Música 2000/2001). Participou de shows e primeiro lugar, para depois inseri-la num ambiente ideológico gravações com Juarez Moreira, Marcus Viana e Marco ou sociológico, e que acabam quase sempre caindo nas Antônio Guimarães. Foi o arranjador e instrumentista recorrentes análises sobre os nacionalismos musicais. (oboé, corne inglês e flauta) do CD Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé de Zeca Baleiro e Tendo a concordar com Liliana que necessitamos urgente (2005). Atualmente, é Chefe do Depto. de Instrumentos de estudar, conhecer e superar as dicotomias do século e Canto da Escola de Música da UFMG.

Nota 1 Expressão de Mário de Andrade, citada pela autora.

Carlos Ernest Dias é Professor Assistente da Escola de Música da UFMG, onde ministra as disciplinas Oboé, História da Música Popular e Modernismo e Música Brasileira. Integrou a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, a Orquestra do Teatro Nacional de Brasília e a Orquestra Sinfônica Brasileira. Possui Mestrado em Ciência da Arte pela UFF, Graduação em Oboé pela UFMG e, atualmente, cursa o Doutorado em Música na UFMG. Na música popular, atua como instrumentista (oboé e saxofone), compositor e arranjador, tendo gravado o CDs Imagem (1999) que recebeu o Troféu Pró-Música de Minas Gerais na categoria melhor arranjador. Foi curador da série Cartografia Musical Brasileira (Rumos Itaú Cultural Música 2000 e 2001). Coordenou o Festival de Inverno da UFMG (de 1993 a 1998), a Banda Sinfônica da UFMG (de 2004 a 2008) e o I Encontro de Estudos da Música Popular Brasileira (2006). Atualmente é Chefe do Departamento de Instrumentos e Canto (2011 a 2013).

253 CONCEIÇÃO, K. M. L. da. Resenha: a relação intergeracional no livro Clara na Música Popular. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.254-256.

A Relação intergeracional no livro Clara na Música Popular

Kátia Milene Lima da Conceição (UNESP, São Paulo, SP) [email protected]

Resenha do livro BOLLOS, Liliana Harb. Clara na música popular. São Paulo: Som, 2011; 80p. R$20.

Esta publicação de Liliana Bollos é dedicada ao público livro. Atualizada com a mídia emergente e consciente do juvenil. A protagonista é uma jovem envolta com o valor da internet, a educadora traz atraentes indicações vestibular e questões peculiares dessa fase da vida, nesse meio, pois não se pode excluir as novas tecnologias interessando-se pela música através da descoberta e demais recursos considerados agentes transformadores apaixonante de contextos musicais que a seduzem e a contemporâneos. Estas dicas sugerem analogia com a estimulam a aprofundar seus conhecimentos, inclusive, extensa conectividade, não só com a internet, mas com através de meios e relações afetivas. outros aspectos como as questões afetivas e relacionais da educação musical. O livro Clara na música popular tem oitenta páginas distribuídas em vinte capítulos sucintos, onde A publicação tem uma divisão interessante de temas. aspectos da história da música popular são discorridos Começa com o sonho da Clara passando pelas férias no informalmente, mas inspirador à pedagogia musical nesse interior de São Paulo, a relação com a família, vizinhos, tema emergente para o público adolescente. A proposta sua melhor amiga, as paixões, o vestibular até a entrada é apresentar um texto envolvente e adequado a esta na faculdade. Os assuntos são encadeados de forma faixa etária, já que os adolescentes possuem motivações didática, mas informal, e aspectos da música brasileira pertinentes a essa fase da vida. A linguagem é de fácil (choro, samba, marcha, bossa nova) e do jazz (ragtime, assimilação, o conteúdo estimula o leitor a se aprofundar new orleans, dixieland, swing, bebop) são traçados e no material exposto com algumas sugestões de bancos de relacionados historicamente; longe de ser tedioso para dados de universidades e sites correlacionados no final do um público adolescente.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013 Recebido em: 26/11/2012- Aprovado em: 04/01/2013 254 CONCEIÇÃO, K. M. L. da. Resenha: a relação intergeracional no livro Clara na Música Popular. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.254-256.

No primeiro contato com o livro, a multiplicidade musical simbólica e afetiva. Certas situações de de informações apresenta um conteúdo didático e descobertas podem ser motivadas por contingências simbólico, desencadeando um atraente processo de diversas em várias fases e momentos da vida. Assim como escolhas, dependendo do interesse e do momento a personagem desenvolve a consciência do que está do leitor. Destaco no livro o aspecto intergeracional vivendo e do processo em que está inserida, através de simbolizado nas relações de Clara. Mesmo que não sua relação com questões musicais nesse mesmo núcleo tenha sido a intenção consciente da escritora, já que afetivo, outras pessoas também se deparam com situação o significado estabelecido primariamente pode ser similar, ilustrando o poder mobilizador da música. transformado a cada leitura, a intergeracionalidade está presente no texto de forma envolvente. Se a ideia inicial A escolha por enfatizar a questão intergeracional se não foi relatar estas relações ou abordar este aspecto sobrepõe a exposição do conteúdo musical que obviamente diretamente, com certeza proporcionou a reflexão e o já promove no leitor a curiosidade para buscar maiores desejo de cultivar e reforçar estas relações. informações sobre o que foi narrado. A convivência entre as gerações descrita de forma leve e cativante em um Alguns capítulos merecem destaque por mostrar ambiente harmonioso resulta no aprendizado não só justamente esta relação intergeracional. Em Minha família para a Clara, mas para os demais envolvidos. A troca de e o Samba, Clara demonstra todo o aprendizado que experiências e saberes, o intercâmbio entre diferentes pode desfrutar dessa convivência familiar, configurado gerações exposto neste livro demonstra os ganhos da na educação informal gerada pelos vínculos entre relação intergeracional para os envolvidos no processo, pais, filhos, irmãos e amigos, através da reciprocidade fortalecendo os laços afetivos. Algumas experiências já relacional. O capítulo As férias de Clara ilustra como uma demonstraram que a convivência intergeracional pode convivência prazerosa entre vizinhos, tios e primos pode ser uma das responsáveis pela mudança da imagem da trazer saberes para a vida, que é possível aprender muito velhice em uma concepção positiva, quebrando com mitos em uma conversa e no convívio com a diversidade. As e tabus inerentes ao processo natural e sociocultural do músicas preferidas de meus avós relata o aprendizado envelhecimento no Brasil, rompendo inclusive com o entre gerações, ilustrada por Clara e seus parentes, isolamento dos idosos na sociedade, principalmente com enfocando o poder da linguagem emotiva, da transmissão relação às gerações mais novas. oral repleta de afabilidade, estabelecida também pela relação entre gerações diferentes, que se mostra benéfica A obra mostra, por exemplo, como Clara sente-se e mobilizadora de ação mútua. Quando as pessoas que motivada a interagir com os mais velhos, demonstrando Clara se relaciona discorrem sobre suas lembranças que a relação intergeracional é uma ferramenta que musicais, observa-se como a música foi marcando a trilha realmente promove a aproximação, renovação, respeito, sonora da vida delas, como o fator cultural e arrebatador trocas de experiências, habilidades e saberes. Um recurso da escuta, da memória emocional sonora se presentifica capaz de modificar até uma realidade preconceituosa e se mostra impactante no corpo e no aspecto afetivo anteriormente predominante, um benefício mútuo. cada vez que é rememorada. O capítulo Conversa com Alberto sobre as fases do Jazz, mostra o crescente Continuando com o conteúdo simbólico das entrelinhas do interesse pelo Jazz estimulado pela paixão platônica, livro, em certos trechos há reprodução de representações típica da adolescência, por Alberto, marcada também socioculturais de alguns estilos abordados, absorvidos pelo conhecimento obtido através de curiosas fontes de pelos brasileiros e repetidos em diversos meios. A escritora informações e emoções. situa-os historicamente e tenta ser imparcial, mas não deixa de colocar a representatividade dos estilos ainda O último capítulo, com o título sugestivo O fim será o predominante na contemporaneidade. Porém há certas começo narra as perspectivas que esta experiência trouxe representações que precisam de questionamentos e visão para a Clara estimulando-a a buscar novos horizontes crítica para que não se busque reproduzir sem reflexão de conhecimentos. As “entrelinhas” mostraram o sobre o contexto. No terceiro capítulo a autora coloca aspecto projetivo da música, onde a adolescente pode que é preciso “estudar música clássica para melhorar ter consciência de suas descobertas que refletem o a técnica no instrumento e deixar os dedos bem leves” momento vivido, seu processo de aprendizado e sua (p.18), reforçando uma concepção que já é questionável, relação no contexto. pois logicamente que é necessário um domínio técnico do instrumento, mas a música clássica não é o único É notório observar como existem constructos que estão caminho para chegar a este patamar. No entanto, esta presentes em várias áreas psicopedagógicas e nas artes, concepção, não tira a significância do material, pois ratificando como a música pode ser projetiva de um ainda existe uma lacuna que o conhecimento acadêmico momento presente com questões vivenciadas, nesse tenta preencher satisfatoriamente com materiais que caso por Clara, mas que também podem ser estendidas e consigam realmente atingir o público juvenil, que tem identificadas com outros, inclusive de idades diferentes, motivações e aspirações particulares, nem sempre o que ocorre, por exemplo, com os avós de Clara. Ou seja, fáceis de serem atingidas por alguns professores da em qualquer fase pode existir uma representatividade área, que ainda utilizam como referência, métodos de

255 CONCEIÇÃO, K. M. L. da. Resenha: a relação intergeracional no livro Clara na Música Popular. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.254-256.

musicalização infantil com adolescentes. Este exemplo campos. É doutora em Comunicação e Semiótica, mestre serve para ilustrar a necessidade de reexaminar o que está e bacharel em performance em piano jazz, bacharel e consagrado como certo, refletindo sobre conhecimentos, licenciada em letras, formada em piano clássico, dentre representações, posturas, procedimentos e teorias. O outras qualidades marcantes que a fazem discorrer com saber deve ser reavaliado e reconstruído de acordo com muita propriedade sobre a diversidade e a multiplicidade a demanda histórica e educativa. Não existem métodos do contexto musical em que atua. universais infalíveis, mas sugestões fundamentadas na ciência, em dados históricos, em livros adequados ao Esta obra é recomendada para profissionais da música público que se está trabalhando, norteando, assim, a ação que trabalham ou pretendem trabalhar com adolescentes, do educador musical. assim como demais interessados no tema, incluindo o público para qual foi direcionado o texto: os jovens. É A escritora Liliana Bollos possui diversas publicações interessante por apresentar aspectos desta área, que de em circuitos interdisciplinares de atuação. Circula entre certa forma, ainda está em construção ou reconstrução a área popular e erudita com muita intimidade devido abrangendo a história da música e outras questões a sua ampla vivência e concepção diversificada nestes pertinentes ao contexto juvenil.

Kátia Milene Lima da Conceição é psicóloga e musicista. Formada em piano e vibrafone. Mestre em Música pelo Instituto de Artes da UNESP. Exerce trabalhos camerísticos e como solista na área erudita e popular, além de ministrar aulas de instrumento e teoria musical.

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