Outubro 2013 Arte & Cultura Revista Adusp Na USP, t e a t r o f o i p a l c o de r e s i s t ê n c i a à Di t a d u r a Militar Eduardo Campos Lima Jornalista Victor Knoll/Acervo Flávio Império/Sociedade Cultural Flávio Império

TUSP encena Os Fuzis de Dona Tereza Juntos, estudantes e artistas construíram no Brasil, até o fim dos anos 1960, uma forte cultura de esquerda. No teatro, destacaram-se coletivos como Teatro de Arena e Grupo Opinião. A USP tornou-se espaço de resistência cultural: surgiram o TUSP (1966), dedicado às peças de Brecht; o Teatro Novo (1968), que optou pelo “Teatro do Absurdo” de Arrabal; os coletivos de “Teatro-Jornal” (1970), inspirados em Boal e apoiados no Arena; grupos na Medicina, Poli, EESC, Direito. Entre os participantes, Heleny Guariba, Cláudia Alencar, Antonio Petrin (todos da EAD), Paulo José...

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André Gouveia, Sérgio Mindlin, Bety Chachamovitz e Cida Previatti em Os Fuzis de Dona Tereza, no Teatro , em 1968 O golpe militar de 1964 dispa- a diferentes frentes de atuação na tura integravam o TUSP, mas havia rou um processo de dura repressão sociedade. O grande divisor de águas também alunos de outros cursos, aos movimentos operário e campo- no movimento teatral da universida- como Iara Iavelberg, do Instituto de nês, com intervenção em sindicatos, de foi o Ato Institucional número 5, Psicologia (vide p.61). Desde o prin- prisão de líderes dos trabalhado- imposto em dezembro de 1968. Até cípio, animou o coletivo a possibili- res e desarticulação política geral. o AI-5, os grupos tinham mais liber- dade de desempenhar um trabalho Naquela conjuntura, os estudantes dade para atuar e, eventualmente, ligado à obra e ao pensamento do passaram a desempenhar papel fun- contavam com algum tipo de apoio dramaturgo e encenador alemão damental de resistência. Juntos, es- institucional. O endurecimento da , e o TUSP acabou tudantes e artistas construíram, até repressão levou diversos coletivos montando ou ensaiando apenas pe- o fim da década de 1960, uma forte a desaparecer, ao passo que outros ças dele. A primeira, dirigida por cultura de esquerda — em que o te- radicalizaram suas perspectivas de Paulo José, à época integrante do atro foi um dos polos fortes, com o trabalho. A derrota da guerrilha co- Teatro de Arena de São Paulo, foi A trabalho de coletivos como o Teatro mo proposta política acarretou, em Exceção e a Regra, em que se esmi- de Arena e o Grupo Opinião. Um meados da década de 1970, um novo úça o papel da Justiça como esteio dos espaços de intensa e produtiva movimento estudantil e cultural. da opressão sobre os trabalhadores. convergência artística e estudantil Um dos primeiros coletivos a sur- O público eleito pelo coletivo foi a Universidade de São Paulo, gir com a perspectiva de fazer teatro para essa primeira montagem foi onde grupos de teatro se constituí- de resistência foi o Teatro dos Uni- o operariado, de modo que deze- ram em diversas unidades. versitários de São Paulo (TUSP). O nas de apresentações foram fei- Os diferentes coletivos de teatro grupo se formou em 1966, durante a tas em sindicatos e associações. da USP funcionaram como instân- viagem de uma turma de estudantes Roberto Schwarz, um interlocutor cia para criação artística, formação à Aldeia de Arcozelo, em Paty do muito próximo do grupo (colabo- política e militância, sofrendo as li- Alferes (RJ), onde o diplomata e rava com traduções e adaptações mitações impostas pela repressão e teatrólogo Paschoal Carlos Magno dos textos de Brecht), lembra-se acompanhando, muitas vezes, o mo- organizava um festival de teatro. de uma delas, feita para operários vimento histórico da esquerda rumo Muitos estudantes de Arquite- que ocupavam uma fábrica em Pe-

51 Outubro 2013 Revista Adusp Victor Knoll/Acervo Flávio Império/SCFI rus. “Após a encenação, foi aber- A peça, que trata da necessi- ta a discussão. Cheios de dedos, dade de tomar posição na luta tentávamos explicar que a Justiça contra o fascismo, foi estendida, tem um componente de classe, até com uma porção final que fazia que um dos trabalhadores disse: menção ao Brasil. “Incluímos ‘Vocês estão tentando explicar que uma gravação que fazia referência a Justiça é de classe? Isso nós es- à morte do estudante Edson Luís. tamos cansados de saber’. Achá- Por isso, passamos a intitular a vamos que estávamos trazendo a peça Os Fuzis de Dona Tereza”, maior novidade”, conta Schwarz, explica a engenheira de sistemas que posteriormente se notabiliza- Bety Chachamovitz, uma das fun- ria como um de nossos maiores dadoras do antigo TUSP. “No fim, críticos literários. entrávamos todas com a mesma Era novo, de fato, que um gru- indumentária de senhora Carrar e po conseguisse mobilizar estudan- repetíamos o mesmo texto muito tes, artistas e intelectuais para dis- perto do público, de forma a qua- Bety Chachamovitz cutir os textos e as formulações se intimidá-lo a tomar uma posi- Daniel Garcia brechtianas a respeito do teatro ção”, detalha Marina Heck, hoje épico — forma que procura apre- professora da Fundação Getulio sentar os mecanismos de “funcio- Vargas. namento” da sociedade e promo- ver reflexão sobre eles. A direto- ra e professora da Escola de Arte Dramática (EAD) Heleny Guari- O Teatro Novo, grupo ba, o teatrólogo Augusto Boal e formado por moradores o crítico e também professor da EAD Anatol Rosenfeld participa- do Crusp, optou por ram desses debates. encenar peças de Ionesco e Paulo José deixou o TUSP após a montagem, passando o bastão Arrabal, autores do Teatro para o arquiteto e cenógrafo Flá- do Absurdo. A invasão vio Império, que dirigiu a monta- gem seguinte, Os Fuzis da Senhora do Crusp pelas Forças Carrar, apresentada em palcos con- Armadas, em 1968, tirou- vencionais. Entre os que assistiram pela Associação de Universitários à peça estava o ator e encenador lhes os lugares de ensaio Rafael Kauan (Aurk). Mas, por su- Celso Frateschi, diretor do atual e dispersou seus atores, gestão do argentino Miguel Angel TUSP, criado em 1976 por inicia- Fernandez, que assumiu a direção, tiva da Reitoria. “Era uma monta- inviabilizando o TN o grupo acabou enveredando pela gem bem piscatoriana, grandiosa, trilha do Teatro do Absurdo, ence- com muita gente em cena”, descre- nando as peças A Bicicleta do Con- ve, fazendo referência ao diretor Também estudavam Brecht os denado, de Fernando Arrabal, e Ví- alemão Erwin Piscator, proponen- participantes do Teatro Novo do timas do Dever, de Eugène Ionesco. te de um teatro assumidamente Conjunto Residencial da USP No lugar do ataque direto às político e mobilizador. (Crusp), o TN, formado em 1968 questões sociais e políticas, o co-

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Acervo TN

letivo lançava mão de metáforas, patriota Luiz González, produtor muitos recursos, de modo que os subentendidos e alegorias. “Ou se- e contra-regra do coletivo, eram os direitos autorais da peça de Arrabal ja, ferramentas semânticas utiliza- únicos integrantes que tinham ex- não foram recolhidos à Socieda- das quando a prudência indica ser periência prévia na atividade tea- de Brasileira de Autores Teatrais necessário driblar proibições que tral. Os membros do TN tinham que (SBAT). A estreia realizada na sede ameaçam a saúde de quem as deso- cumprir uma rotina de ensaios e la- da União Nacional dos Estudantes bedece”, define Fernandez, que ho- boratórios por vezes exaustiva. Os (UNE), no , naquele je é escritor e roteirista. Essa pers- ensaios eram feitos no Restauran- momento ocupada por outras enti- pectiva estética por vezes gerava te Universitário, onde funcionava o dades, acabou proibida pela justiça. divergências. “A maioria dos nos- centro de vivência após as 20 horas. “Claro que, no clima da época, fize- sos colegas do movimento estudan- O TN mantinha intercâmbio in- mos a estreia assim mesmo, com to- til nos considerava alienados, não tenso com teatros profissionais, que do apoio dos meios teatrais”, conta compreendia nossa radical oposi- auxiliavam os jovens agitadores cul- Kulesza. A apresentação foi inteira- ção”, avalia Wojciech Kulesza, que turais cedendo salas de ensaio e fi- mente acompanhada pela polícia e em 1976 se tornaria professor da gurinos. “Retribuíamos divulgando ocorreu na penumbra, porque qua- Universidade Federal da Paraíba. seus espetáculos na Universidade”, se todas as luzes do teatro foram A estranheza gerada pelas inu- afirma Kulesza. Por vezes, a retribui- desligadas, em represália. Termina- sitadas montagens do TN muitas ção envolvia maiores riscos. Em uma do o espetáculo, o elenco foi pas- vezes funcionava como gancho para ocasião, o coletivo fez a seguran- sear na praia do Flamengo — onde o debate entre a trupe e o público, ça do Theatro São Pedro, onde era a polícia o deteve e o levou para realizado sempre ao fim da apre- apresentada a peça Roda Viva, cujo prestar depoimento. sentação, conforme lembra Marísia elenco sofrera ataque do Comando O recrudescimento da repres- Buitoni, hoje professora da Univer- de Caça aos Comunistas (CCC) em são, no fim de 1968, colocou fim ao sidade do Estado do Rio de Janei- uma apresentação anterior. TUSP e ao TN. Com o decreto do ro. “Era um momento em que está- O TN chegou a receber sub- AI-5, o trabalho político pretendi- vamos mudos, então tínhamos que venção da Reitoria para participar do pelo TUSP tornou-se inviável. gritar esse absurdo”, argumenta. de um festival de teatro em Ou- “Em 1969 a repressão era grande e O diretor Fernandez e seu com- ro Preto. Mas não podia dispor de algumas pessoas do grupo já esta-

53 Outubro 2013 Revista Adusp Fotos: Acervo TN vam na mira da polícia”, conta Bety Chachamovitz. Quando o coletivo foi convidado a participar do Festi- val Mundial de Teatro Universitário de Nancy, na França, houve uma discussão quanto à justeza de repre- sentar o Brasil naquele momento. Por fim, o TUSP aceitou as passa- gens cedidas pelo governador de São Paulo, Abreu Sodré, por intermédio de Augusto Boal, e foi para o festi- val como viagem de despedida. No retorno, o grupo se dispersou. O golpe que arruinaria o TN foi dado quatro dias após o AI-5, quan- Dácio de Castro, W. Kulesza, Helcio Cremonese, Álvaro X. de Carvalho do tropas do Exército invadiram o Crusp e detiveram seus morado- res. “Acordamos com armamentos apontados para nós”, lembra Ma- rísia. Com o fechamento do Crusp, as reuniões do coletivo eram pre- judicadas por não haver mais onde ensaiar e por se tornar difícil reunir os membros do grupo, que foram morar em diferentes regiões da ci- dade. “A ação era para desmobilizar todo mundo, mas ainda resistimos por um ano”, explica Marísia. Os ensaios passaram a ser feitos no te- atro Ruth Escobar, que cedeu uma Álvaro Ximenes de Carvalho e Wojciech Kulesza sala para o TN, e depois na biblio- teca Anne Frank. Mas as dificulda- des crescentes levaram ao fim do grupo, ainda em 1969. “Resistimos, mas a vida cobrava a gente — como fazer para pagar o aluguel?” O endurecimento do regime não apenas fechava os canais de apoio ins- titucional a grupos de teatro, como co- locava na clandestinidade aqueles que tinham perspectivas mais avançadas de atuação política. “Quando entrei na Geologia, em 1969, o contexto te- atral era zero. Como a repressão po- A turma do TN: Rubens Krakauer, Engles Seriti, Miguel Fernandez (sentado), Marisia Buitoni; lítica era muito forte, ninguém queria na segunda fila, Victor Foroni, W. Kulesza, Dácio de Castro e outros não identificados

54 Revista Adusp Outubro 2013 Fotos: Daniel Garcia O núcleo da Geologia fez uma montagem composta por episódios relacionados à Transamazônica, ao fim da estabilidade no emprego com a instituição do Fundo de Ga- rantia do Tempo de Serviço (FGTS) e ao assassinato do militante de es- querda Olavo Hanssen. Ao mesmo tempo, os estudantes começaram a ramificar a experiência. A convite da atriz Cláudia Alen- car, à época aluna da EAD, o coletivo passou a ocupar uma sala de ensaios da escola. “Ela montou uma esco- linha de teatro-jornal para nós. En- saiávamos todos os dias, na hora do Adriano Diogo Denise del Vecchio almoço”, narra Diogo. Desse centro um núcleo experimental formado por de difusão participavam estudantes jovens artistas que procuravam de- das diversas unidades de ensino da O Teatro-Jornal rompeu senvolver, por indicação de Augusto USP, agrupados num único coletivo a censura e mostrou notícias Boal, formas de teatralizar notícias de teatro-jornal, e, ao mesmo tem- de jornal. Sistematizadas em nove po, distribuídos em coletivos autôno- de jornal e episódios da luta técnicas por Boal, as descobertas do mos. “Houve grupos na Medicina, na estudantil. Como a resistência núcleo resultaram na peça Teatro Jor- Geografia, nas Ciências Sociais, na nal - Primeira Edição, bem como na Psicologia. Às vezes um núcleo se for- armada ao regime, metodologia do teatro-jornal, que se mava, fazia uma peça, e logo depois já o “agitprop” precisava disseminaria rapidamente pela USP. voltava sua atenção à reorganização A ideia era chocar os conteú- do centro acadêmico”, lembra Celso ser clandestino. A repressão dos das notícias uns com os outros Frateschi, um dos componentes do desmobilizou o Teatro-Jornal e com a realidade social, de mo- núcleo inicial do Teatro de Arena. do a estimular reflexão e crítica, Uma das encenações feitas pe- e as organizações denunciar o regime militar e in- lo coletivo de Teatro-Jornal da USP de esquerda na USP centivar a mobilização. Diogo foi partia das notícias sobre a caçada do um dos primeiros universitários a Esquadrão da Morte a Guri, suspeito travar contato com os artistas do de ter assassinado um investigador. Arena, formando um núcleo inicial Na cena em que Guri deixa uma car- nem exibir filmes na faculdade”, rela- de teatro-jornal com seus colegas ta de despedida para sua mãe, todos ta Adriano Diogo, que mais tarde in- de curso. Os artistas passaram a de- os elementos envolvidos ganham um gressaria no grupo guerrilheiro Ação senvolver um trabalho frequente na sentido duplo: o Esquadrão da Mor- Libertadora Nacional (ALN). Universidade. “Fazíamos exercícios te torna-se uma figuração da Opera- Da mesma forma que muitos es- de improvisação, às vezes não com ção Bandeirante (OBAN) e Guri re- tudantes de ensino médio e univer- notícias publicadas na imprensa, presenta os militantes da resistência sitários, Diogo era frequentador as- mas com fatos do interesse dos pró- que eram perseguidos pela Ditadura. síduo do Teatro de Arena. Naquele prios estudantes”, recorda a atriz “Não podíamos falar nem da guer- momento, constituía-se em tal teatro Denise Del Vecchio. rilha nem da OBAN, mas podíamos

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José Antônio Lima e o programa de O Processo de Lucullus falar do Esquadrão da Morte. Então a experiência do Teatro-Jornal pros- dos nos anos mais duros do regime. fizemos essa referência”, descreve o seguisse — mas, enquanto ela perdu- Um deles foi o Centro Acadêmico médico José Antônio Lima, que atua rou, serviu para fomentar a retomada Armando Salles de Oliveira (Caa- hoje como pesquisador do movimen- da militância cultural na USP. so), da Escola de Engenharia de São to corporal humano. Carlos (EESC-USP), que havia for- Os praticantes do Teatro-Jornal mado o Grupo de Teatro Engenharia situavam-se no campo político que Em São Carlos, o Centro de São Carlos (GTESC). O Caaso apostava na resistência armada ao Acadêmico perdeu o presidente, contava com uma grande estrutura regime militar, embora nem todos in- e tinha uma fonte de financiamento tegrassem organizações de esquerda. preso no Congresso da UNE importante, seu curso pré-vestibular. “Como esse trabalho chegou a reunir em Ibiúna, e o vice, forçado a Em 1968, o GTESC contratou bastante gente, as pessoas foram pre- o diretor Dyonísio Amadi, forma- sas. Fomos junto com elas”, explica se afastar após ameaças. do pela EAD. “Quando ele che- Denise, que ficou detida com Frates- Mas a estrutura autônoma gou, perguntou para nós quem já chi por 15 dias. Diversos militantes havia feito teatro. Ninguém levan- do coletivo que tinham ligações com assegurou a encenação tou a mão. Ele disse: ‘Estou perdi- a ALN caíram nas mãos da repressão de peças políticas como o do!’”, diverte-se Ricardo Martucci, política em 1973, entre eles Adriano à época vice-presidente de assun- Diogo, hoje deputado estadual (PT- “Processo de Lucullus” tos culturais do Caaso, atualmente SP). A OBAN já havia sido substituí- e “A Mandrágora” professor aposentado da EESC. O da por outro órgão, o DOI-CODI, ou empenho dos estudantes propiciou Destacamento de Operações de In- um aprendizado rápido, louvado formações do Centro de Operações pelo diretor em texto incluído no de Defesa Interna do II Exército. A Alguns núcleos de atuação cul- programa da primeira peça apre- perseguição implacável às organiza- tural da Universidade conseguiram sentada pelo grupo, O Processo de ções, naquele momento, impediu que manter-se razoavelmente preserva- Lucullus, de Brecht.

56 Acervo de José Antonio Lima Revista Adusp Outubro 2013 Cedida por Felícia Reicher

Gelson Reicher ainda garoto, numa das raras fotos que restaram à família; seu poema de 1969; e o retrato oficial

antes, pelo Teatro de Arena. Martuc- na criação do Show Engenharia, um ci, que começou os ensaios desem- dos momentos mais aguardados da penhando o papel do corrupto Frei Semana Universitária, realizada anu- Timóteo, teve de deixá-lo, por con- almente. Espécie de encenação de ta da baixa assiduidade nos ensaios. teatro de revista, o Show Engenharia “Naquele momento, eu estava muito satirizava fatos ocorridos ao longo do Não só em interpretação se forma- envolvido na política”, conta. O mo- ano anterior. “Aproveitávamos para ram os estudantes de engenharia, que tivo é que Martucci havia assumido a atingir o pessoal de direita da cidade também desempenhavam funções presidência do centro acadêmico, pois e do corpo docente. Era barra pesa- técnicas, atuando como iluminadores Azael Rangel Camargo, o antigo pre- da! Mas era comédia, então a gente e cenógrafos. “Nossos ensaios eram sidente, havia sido preso no 30º Con- passava ileso”, define o professor. em praticáveis no próprio Caaso. Tí- gresso da UNE, realizado clandestina- Em 1970, a nova gestão do Ca- nhamos que esperar o pessoal acabar mente em Ibiúna, e o vice-presidente, aso não quis mais arcar com a con- de comer, porque nosso espaço era o perseguido pela repressão, também se tratação de um diretor profissional restaurante”, recorda Martucci. afastara. Apesar disso, a peça foi apre- e Amadi deixou o GTESC, colo- A montagem seguinte foi de A sentada com êxito ao longo de 1969. cando fim àquela fase. Mas o cole- Mandrágora, de Maquiavel, peça que Além das encenações mais ela- tivo continuou seus trabalhos nos tivera uma encenação famosa, anos boradas, o GTESC empenhava-se anos seguintes.

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Ary Perez, Ana Odila, Claude Breton e Mauro Kaon encenam “Galileu” Mauro Kaon (alto) e Roberto Peixoto

retor italiano Alberto D’Aversa. parte, por causa da enorme estru- Com o agravamento Em 1969, Gelson Reicher, dire- tura do Caoc. “O centro acadêmico tor do Caoc e militante da ALN, en- tinha um restaurante, uma gráfica da violência estatal, carregou-se da direção do GTM. A que editava revista científica de in- o grupo da Medicina encenação dirigida por ele naquele dex internacional, moradia de estu- ano era uma composição de vários dantes e outros espaços, cedidos em radicalizou-se, fazendo esquetes e poemas que tratavam da comodato. Até nisso a faculdade era teatro-jornal e montagens realidade política mais ampla, mas reacionária: eles não tiravam essas também do universo dos ingressantes coisas de nós, mesmo vendo o que de esquetes e poemas no curso de Medicina. Um dos poe- fazíamos”, analisa Lima. políticos. O líder do coletivo, mas de Reicher, lido nessa apresen- Reicher afastou-se do GTM em tação, expõe o desassossego de um 1971, porque teve que passar à clan- Gelson Reicher, militava eu-lírico constrangido a se declarar destinidade — e acabou assassinado na ALN e seria assassinado feliz: “Revoltas?/Loucos.../Até quando em 1972. Lima assumiu a direção e esta insistência?/—É bom, tudo bom./ a dramaturgia, inserindo pequenas pelo regime em 1972 Vive-se!/—É bom, tudo bom./Cresce-se peças de cerca de 40 minutos, que e multiplica-se/—É bom, tudo bom./ dividiam espaço com conjuntos de Pra que inventar estradas,/Está até esquetes. Uma delas foi O Circo, Outro núcleo que conseguiu con- transitável./—É bom, tudo bom.” montada em 1973, em que cada ar- servar sua produção cultural, che- O Show do GTM, apresentado pa- tista circense representava um seg- gando mesmo a radicalizar-se após ra os calouros, canalizava os esforços mento da política de repressão. o AI-5, foi o Grupo de Teatro Medi- do coletivo ao longo do ano. Mas sua O intercâmbio com outros cole- cina (GTM), do Centro Acadêmico atuação ramificava-se em outras ini- tivos da Universidade era promovi- Oswaldo Cruz (Caoc). O GTM já ciativas, inclusive com representantes do não apenas pela articulação do existia havia alguns anos, tendo feito seus, como o próprio José Antônio teatro-jornal, mas também pelas noi- em 1968 uma montagem famosa de Lima, no núcleo de Teatro-Jornal da tes de espetáculos organizadas pelo Noite de Guerra no Museu do Prado, USP. O GTM conseguia prosseguir DCE Livre, no começo da década de de Rafael Alberti, sob direção do di- com sua atuação política, em grande 1970. “Tivemos também um apoio

58 Revista Adusp Outubro 2013 Acervo GTP Daniel Garcia agrária, a história da música brasilei- ra entre 1960 e 1970 (contada lado a lado com a história política) e a conjuntura do Brasil, que combina- va as linguagens noticiosa, cômica e poética para abordar temas como a economia, a cultura e os mecanis- mos da censura. “Ao mesmo tempo, criamos pequenas peças que deno- minávamos de Teatro de Momento, abordando assuntos do cotidiano da Universidade”, conta Souza. Paralelamente, integrantes do GTP e do Grêmio que compunham o comitê cultural da USP contribu- Antonio Kandir em “Galileu” Ary Perez íam com a organização de shows de música para o público universitário. muito grande do pessoal de teatro da “Houve apresentações de Mercedes época, como Sylvio Zilber, Augusto Também o Grupo de Teatro da Sosa, , Tarancón. Boal e Ruth Escobar”, aponta Lima. Poli (GTP), ligado ao Grêmio Poli- Cansei de buscar o Adoniran Barbo- Ele liderou o GTM até 1976, mais ou técnico, conseguiu sobreviver à tor- sa no Bixiga — o cachê dele era uma menos, com um intervalo em 1975, menta do AI-5. “O Grêmio era uma garrafa de Old Eight! Ele vinha de quando um grupo ligado à Liberdade empresa, então não podia ser extinto. graça, sábado à tarde”, lembra Perez. e Luta (Libelu) convidou o diretor Tinha patrimônio: uma editora mui- Era um fenômeno novo na vida cul- Joacir Castro para dirigir Vereda da to grande, o Cursinho Politécnico, a tural da Universidade, que apontava Salvação, de Jorge Andrade. Casa do Politécnico com 80 aparta- para uma geração que não apostava mentos, a gráfica. Era uma máquina mais na guerrilha e buscava construir de resistência”, resume o engenheiro uma atuação cultural de massas. O grupo da Escola Politécnica e artista plástico Ary Perez. Em 1975, o GTP partiu da obra de atravessou diferentes etapas O GTP funcionava como um polo Brecht e montou Galileu, com a orien- importante de formação e discussão tação dos diretores peruanos Hugo da política estudantil apoiando- política. Dele saíram vários presiden- Villavicenzio e Lino Rojas, os quais se na “máquina de resistência” tes do grêmio. “Não houve uma re- alguns membros do grupo haviam co- pressão direta ao grupo”, declara o nhecido em uma viagem. “Pegamos que era o Grêmio. Contribuiu engenheiro Roberto de Souza. Mas a um teatro em construção na Mecâni- para a organização de grandes perseguição ao movimento estudantil ca. Só tinha a estrutura de concreto. deixava marcas no trabalho da trupe. Fechamos com lona e fizemos um ce- shows na Cidade Universitária, “Todo este clima gerava uma tensão nário concretista. Tinha um público de abrindo novos horizontes. permanente e, é claro, afetava o tra- 800 pessoas por noite”, conta Perez. balho teatral”, recorda. Em meados da década de 1970, Criou o Teatro do Momento A cada ano, na época do trote, a esquerda se reorganizava, após a e montou peças como o GTP apresentava-se de sala em desarticulação geral provocada pelo sala e encenava uma peça para os regime militar com suas matanças, “Galileu”, de Brecht calouros. Entre 1969 e 1973, o cole- torturas e prisões nos anos recentes. tivo fez montagens sobre a reforma Em alguma medida, o foco deixava de

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Te a t r o f o r a d o c e n t r o Alguns artistas e coletivos iniciaram Daniel Garcia Heleny escolheu como primeira peça ainda na década de 1960 uma atuação Jorge Dandin, de Molière. “Fiz a primei- fora dos centros de produção cultural ra tradução, que depois foi aprimorada e intelectual, antecipando em alguns durante os ensaios, com várias adapta- anos o movimento que seria marcante ções”, lembra Ulysses Telles Guariba nos anos 1970. Foi o caso do Teatro do Netto, professor de História da USP, Onze, ligado ao Centro Acadêmico XI à época casado com Heleny. A peça de Agosto, da Faculdade de Direito da abordava as relações entre as diferen- USP. Após uma fase inicial de apresen- tes classes sociais, por meio da história tações em teatros regulares, o grupo de um burguês traído por sua esposa adquire caráter marcadamente popular, aristocrata. A cenografia de Flávio Im- mudando de nome, em um momento pério foi um elemento importante da seguinte, para Teatro Popular União e montagem, distribuindo em níveis cada Ulysses Guariba Olho Vivo, que continua ativo até hoje. segmento social. “Tinha um visual claro, Outro núcleo voltado ao teatro fora do centro de fácil entendimento. O palco rebaixado era onde foi o Grupo Teatro da Cidade (GTC), formado por os trabalhadores ficavam”, descreve Petrin. egressos da EAD em Santo André. Em 1967, Heleny A primeira montagem do GTC teve grande êxi- Guariba, professora de dramaturgia na EAD, acabava to. “Foi assistida por 40 mil pessoas. Equipes foram de retornar de um estágio realizado na França com o formadas por amigos e entusiastas que percorriam teatrólogo Roger Planchon, que defendia um teatro sindicatos e escolas da região para organizar os espe- descentralizado e popular. “Ela veio com essa forma- táculos, com debates e muita participação do jovem ção e queria desenvolver a mesma experiência aqui. público”, recorda o professor Guariba. Quando ela soube que na EAD havia vários alunos de Encerrada a temporada da peça, o GTC não con- Santo André, ela nos procurou”, conta o ator Antonio seguiu dar continuidade aos trabalhos com Heleny. Petrin, que à época fazia o último ano do curso de in- “Sem que a gente percebesse, a Heleny começou a terpretação. voltar o foco para a Vanguarda Popular Revolucioná- A turma de alunos de Santo André tinha vivência ria (VPR)”, lembra Petrin. Heleny foi presa em 1970 no teatro amador do ABC — alguns deles eram re- pela Operação Bandeirante (OBAN), sendo solta em manescentes do Centro Popular de Cultura de Santo 1971. Ainda pôde ver uma encenação do GTC, feita André, iniciativa animada pelo diretor e dramaturgo sem sua orientação. Foi para a clandestinidade logo Chico de Assis no começo da década de 1960. A eles depois, sendo assassinada em julho de 1971. O GTC se juntaram outros atores que não eram da cidade, existiu durante 10 anos, contribuindo para a promo- como Antônio Natal e Sônia Braga. ção de outras iniciativas culturais no ABC.

ser o movimento estudantil e passava fizeram oficinas de teatro com os universitário de resistência e abriam a ser o movimento popular. Egres- moradores, eventualmente na com- a história do teatro militante das pe- sos do GTP atuaram na formação panhia de Celso Frateschi. Adriano riferias na década de 1970. Até o fim do Grupo de Teatro da Vila Remo, Diogo chegou a levar a metodologia da década, surgiriam ao menos 2.500 na zona sul de São Paulo. Na mesma do teatro-jornal para escolas da zona grupos amadores, Brasil afora, muitos Vila Remo, e também em bairros da leste, onde lecionava. Esses reencon- deles voltados principalmente para o zona norte, participantes do GTM tros encerravam o capítulo do teatro fortalecimento das lutas populares.

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