Na Usp, Teatro Foi Palco De Resistência À Ditadura Militar
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Outubro 2013 Arte & Cultura Revista Adusp NA USP, T E ATRO F OI PALCO de R E SISTÊNCIA À DITA D URA MILITAR Eduardo Campos Lima Jornalista Victor Knoll/Acervo Flávio Império/Sociedade Cultural Flávio Império TUSP encena Os Fuzis de Dona Tereza Juntos, estudantes e artistas construíram no Brasil, até o fim dos anos 1960, uma forte cultura de esquerda. No teatro, destacaram-se coletivos como Teatro de Arena e Grupo Opinião. A USP tornou-se espaço de resistência cultural: surgiram o TUSP (1966), dedicado às peças de Brecht; o Teatro Novo (1968), que optou pelo “Teatro do Absurdo” de Arrabal; os coletivos de “Teatro-Jornal” (1970), inspirados em Boal e apoiados no Arena; grupos na Medicina, Poli, EESC, Direito. Entre os participantes, Heleny Guariba, Cláudia Alencar, Antonio Petrin (todos da EAD), Paulo José... 50 Revista Adusp Outubro 2013 Victor Knoll/Acervo Flávio Império/SCFI Knoll/Acervo Victor André Gouveia, Sérgio Mindlin, Bety Chachamovitz e Cida Previatti em Os Fuzis de Dona Tereza, no Teatro Ruth Escobar, em 1968 O golpe militar de 1964 dispa- a diferentes frentes de atuação na tura integravam o TUSP, mas havia rou um processo de dura repressão sociedade. O grande divisor de águas também alunos de outros cursos, aos movimentos operário e campo- no movimento teatral da universida- como Iara Iavelberg, do Instituto de nês, com intervenção em sindicatos, de foi o Ato Institucional número 5, Psicologia (vide p.61). Desde o prin- prisão de líderes dos trabalhado- imposto em dezembro de 1968. Até cípio, animou o coletivo a possibili- res e desarticulação política geral. o AI-5, os grupos tinham mais liber- dade de desempenhar um trabalho Naquela conjuntura, os estudantes dade para atuar e, eventualmente, ligado à obra e ao pensamento do passaram a desempenhar papel fun- contavam com algum tipo de apoio dramaturgo e encenador alemão damental de resistência. Juntos, es- institucional. O endurecimento da Bertolt Brecht, e o TUSP acabou tudantes e artistas construíram, até repressão levou diversos coletivos montando ou ensaiando apenas pe- o fim da década de 1960, uma forte a desaparecer, ao passo que outros ças dele. A primeira, dirigida por cultura de esquerda — em que o te- radicalizaram suas perspectivas de Paulo José, à época integrante do atro foi um dos polos fortes, com o trabalho. A derrota da guerrilha co- Teatro de Arena de São Paulo, foi A trabalho de coletivos como o Teatro mo proposta política acarretou, em Exceção e a Regra, em que se esmi- de Arena e o Grupo Opinião. Um meados da década de 1970, um novo úça o papel da Justiça como esteio dos espaços de intensa e produtiva movimento estudantil e cultural. da opressão sobre os trabalhadores. convergência artística e estudantil Um dos primeiros coletivos a sur- O público eleito pelo coletivo foi a Universidade de São Paulo, gir com a perspectiva de fazer teatro para essa primeira montagem foi onde grupos de teatro se constituí- de resistência foi o Teatro dos Uni- o operariado, de modo que deze- ram em diversas unidades. versitários de São Paulo (TUSP). O nas de apresentações foram fei- Os diferentes coletivos de teatro grupo se formou em 1966, durante a tas em sindicatos e associações. da USP funcionaram como instân- viagem de uma turma de estudantes Roberto Schwarz, um interlocutor cia para criação artística, formação à Aldeia de Arcozelo, em Paty do muito próximo do grupo (colabo- política e militância, sofrendo as li- Alferes (RJ), onde o diplomata e rava com traduções e adaptações mitações impostas pela repressão e teatrólogo Paschoal Carlos Magno dos textos de Brecht), lembra-se acompanhando, muitas vezes, o mo- organizava um festival de teatro. de uma delas, feita para operários vimento histórico da esquerda rumo Muitos estudantes de Arquite- que ocupavam uma fábrica em Pe- 51 Outubro 2013 Revista Adusp Victor Knoll/Acervo Flávio Império/SCFI rus. “Após a encenação, foi aber- A peça, que trata da necessi- ta a discussão. Cheios de dedos, dade de tomar posição na luta tentávamos explicar que a Justiça contra o fascismo, foi estendida, tem um componente de classe, até com uma porção final que fazia que um dos trabalhadores disse: menção ao Brasil. “Incluímos ‘Vocês estão tentando explicar que uma gravação que fazia referência a Justiça é de classe? Isso nós es- à morte do estudante Edson Luís. tamos cansados de saber’. Achá- Por isso, passamos a intitular a vamos que estávamos trazendo a peça Os Fuzis de Dona Tereza”, maior novidade”, conta Schwarz, explica a engenheira de sistemas que posteriormente se notabiliza- Bety Chachamovitz, uma das fun- ria como um de nossos maiores dadoras do antigo TUSP. “No fim, críticos literários. entrávamos todas com a mesma Era novo, de fato, que um gru- indumentária de senhora Carrar e po conseguisse mobilizar estudan- repetíamos o mesmo texto muito tes, artistas e intelectuais para dis- perto do público, de forma a qua- Bety Chachamovitz cutir os textos e as formulações se intimidá-lo a tomar uma posi- Daniel Garcia brechtianas a respeito do teatro ção”, detalha Marina Heck, hoje épico — forma que procura apre- professora da Fundação Getulio sentar os mecanismos de “funcio- Vargas. namento” da sociedade e promo- ver reflexão sobre eles. A direto- ra e professora da Escola de Arte Dramática (EAD) Heleny Guari- O Teatro Novo, grupo ba, o teatrólogo Augusto Boal e formado por moradores o crítico e também professor da EAD Anatol Rosenfeld participa- do Crusp, optou por ram desses debates. encenar peças de Ionesco e Paulo José deixou o TUSP após a montagem, passando o bastão Arrabal, autores do Teatro para o arquiteto e cenógrafo Flá- do Absurdo. A invasão vio Império, que dirigiu a monta- gem seguinte, Os Fuzis da Senhora do Crusp pelas Forças Celso Frateschi Carrar, apresentada em palcos con- Armadas, em 1968, tirou- vencionais. Entre os que assistiram pela Associação de Universitários à peça estava o ator e encenador lhes os lugares de ensaio Rafael Kauan (Aurk). Mas, por su- Celso Frateschi, diretor do atual e dispersou seus atores, gestão do argentino Miguel Angel TUSP, criado em 1976 por inicia- Fernandez, que assumiu a direção, tiva da Reitoria. “Era uma monta- inviabilizando o TN o grupo acabou enveredando pela gem bem piscatoriana, grandiosa, trilha do Teatro do Absurdo, ence- com muita gente em cena”, descre- nando as peças A Bicicleta do Con- ve, fazendo referência ao diretor Também estudavam Brecht os denado, de Fernando Arrabal, e Ví- alemão Erwin Piscator, proponen- participantes do Teatro Novo do timas do Dever, de Eugène Ionesco. te de um teatro assumidamente Conjunto Residencial da USP No lugar do ataque direto às político e mobilizador. (Crusp), o TN, formado em 1968 questões sociais e políticas, o co- 52 Revista Adusp Outubro 2013 Acervo TN letivo lançava mão de metáforas, patriota Luiz González, produtor muitos recursos, de modo que os subentendidos e alegorias. “Ou se- e contra-regra do coletivo, eram os direitos autorais da peça de Arrabal ja, ferramentas semânticas utiliza- únicos integrantes que tinham ex- não foram recolhidos à Socieda- das quando a prudência indica ser periência prévia na atividade tea- de Brasileira de Autores Teatrais necessário driblar proibições que tral. Os membros do TN tinham que (SBAT). A estreia realizada na sede ameaçam a saúde de quem as deso- cumprir uma rotina de ensaios e la- da União Nacional dos Estudantes bedece”, define Fernandez, que ho- boratórios por vezes exaustiva. Os (UNE), no Rio de Janeiro, naquele je é escritor e roteirista. Essa pers- ensaios eram feitos no Restauran- momento ocupada por outras enti- pectiva estética por vezes gerava te Universitário, onde funcionava o dades, acabou proibida pela justiça. divergências. “A maioria dos nos- centro de vivência após as 20 horas. “Claro que, no clima da época, fize- sos colegas do movimento estudan- O TN mantinha intercâmbio in- mos a estreia assim mesmo, com to- til nos considerava alienados, não tenso com teatros profissionais, que do apoio dos meios teatrais”, conta compreendia nossa radical oposi- auxiliavam os jovens agitadores cul- Kulesza. A apresentação foi inteira- ção”, avalia Wojciech Kulesza, que turais cedendo salas de ensaio e fi- mente acompanhada pela polícia e em 1976 se tornaria professor da gurinos. “Retribuíamos divulgando ocorreu na penumbra, porque qua- Universidade Federal da Paraíba. seus espetáculos na Universidade”, se todas as luzes do teatro foram A estranheza gerada pelas inu- afirma Kulesza. Por vezes, a retribui- desligadas, em represália. Termina- sitadas montagens do TN muitas ção envolvia maiores riscos. Em uma do o espetáculo, o elenco foi pas- vezes funcionava como gancho para ocasião, o coletivo fez a seguran- sear na praia do Flamengo — onde o debate entre a trupe e o público, ça do Theatro São Pedro, onde era a polícia o deteve e o levou para realizado sempre ao fim da apre- apresentada a peça Roda Viva, cujo prestar depoimento. sentação, conforme lembra Marísia elenco sofrera ataque do Comando O recrudescimento da repres- Buitoni, hoje professora da Univer- de Caça aos Comunistas (CCC) em são, no fim de 1968, colocou fim ao sidade do Estado do Rio de Janei- uma apresentação anterior. TUSP e ao TN. Com o decreto do ro. “Era um momento em que está- O TN chegou a receber sub- AI-5, o trabalho político pretendi- vamos mudos, então tínhamos que venção da Reitoria para participar do pelo TUSP tornou-se inviável. gritar esse absurdo”, argumenta. de um festival de teatro em Ou- “Em 1969 a repressão era grande e O diretor Fernandez e seu com- ro Preto. Mas não podia dispor de algumas pessoas do grupo já esta- 53 Outubro 2013 Revista Adusp TN Acervo Fotos: vam na mira da polícia”, conta Bety Chachamovitz.