Alô Alô Carnaval (Adhemar Gonzaga, 1936): a Modernidade Urbana Carioca Nos Traços Art Déco De J
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ALÔ ALÔ CARNAVAL (ADHEMAR GONZAGA, 1936): A MODERNIDADE URBANA CARIOCA NOS TRAÇOS ART DÉCO DE J. CARLOS Carlos Eduardo Pinto de Pinto1 As reflexões desenvolvidas nesta apresentação são parte da pesquisa (Quase) sem perder a majestade: a produção de uma história pública sobre o Rio de Janeiro em filmusicais e chanchadas entre o Estado Novo e a inauguração de Brasília. O projeto, atrelado ao Núcleo de Estudos sobre Biografia, História, Ensino e Subjetividades (Nubhes/UERJ), tem como proposta principal decodificar o imaginário sobre o Rio de Janeiro produzido por filmes brasileiros de comédia musical. Parto do pressuposto de que, por meio dessas obras, foram criados sentidos para a história da cidade, em diálogo com políticas culturais em âmbito nacional e local. Em lugar de encará-las como subprodutos culturais, meramente desprezadas por críticos, intelectuais e políticos, as percebo como agentes da criação e divulgação de imaginários diversos, entre eles o construído em torno da então capital da República. Neste trabalho analiso alguns trechos de Alô Alô Carnaval (Adhemar Gonzaga, 1936), um dos filmes carnavalescos mais bem-sucedidos da Cinédia (VIEIRA, 1987: 146), o principal estúdio cinematográfico brasileiro da década de 1930. A empresa foi idealizada e presidida por Adhemar Gonzaga, que é também o diretor da película abordada. Embora o filme não veicule imagens do Rio num sentido estrito (cenas externas enquadrando paisagens), as conexões entre o enredo, as canções e os cenários formam um painel capaz de dar sentido à urbe e a seus habitantes. Entre as coordenadas apontadas acima, o enredo contribui com a presença de dois malandros como protagonistas, costurando os números musicais de um cassino por meio de sua atuação descontraída, marcada por gags cômicas. É reconhecido pela historiografia o papel da malandragem no constructo de certa imagem de nação, baseada em tipos originalmente cariocas, convertidos em “nacionais” por meio da atuação de políticas culturais diversas, ao longo dos anos 1930. Vale enfatizar que, se o malandro como categoria atrelada à ideia de crime (roubo, proxenetismo) foi perseguido e teve sua imagem censurada, o malandro boa- 1 Professor Adjunto do Departamento de História do IFCH/UERJ. E-mail: [email protected] Essa pesquisa conta com apoio financeiro da Faperj. praça, tentando “se dar bem” por meio de pequenos golpes quase inofensivos, sobreviveu no imaginário da cidade e, por conseguinte, do país. Uma figura emblemática representativa do malandro “inofensivo” é o Zé Carioca, personagem de desenho animado concebido na década de 1940 por Walt Disney (como parte da Política de Boa Vizinhança): “(...) o olhar vindo de fora reconhecia no malandro uma síntese local: a mestiçagem, a ojeriza ao trabalho regular, a valorização da intimidade nas relações sociais” (SCHWARCZ, 1998: 199). Vale enfatizar, contudo, a anuência do Estado Novo à criação do personagem (AMANCIO, 2000: 55), o que indica que esse olhar não era apenas “de fora”. Para o que me interessa especialmente nesta apresentação, um dado se configura como primordial: a idealização do Zé Carioca por Disney partiu do esboço de um papagaio-malandro concebido por J. Carlos, o responsável pelos cenários do filme analisado neste trabalho (LOREDANO, 2002: 82). Esse detalhe é indicativo do quanto as criações do desenhista estavam atreladas ao imaginário carioca mobilizado pelo Estado Novo, a ponto de estarem na base da elaboração do papagaio simpático que atuou como um dos embaixadores do Brasil na Política da Boa Vizinhança, ao lado de Carmem Miranda. Os traços J. Carlos – que desenhava desde o início do século, mas ganhara destaque a partir dos anos 1920, trabalhando para revistas ilustradas com grande circulação no Brasil – associavam a estética moderna (em especial, o estilo Art Déco) a paisagens e tipos cariocas. A sua obra é uma das responsáveis por alimentar um imaginário calcado no cosmopolitismo para a então capital da República, comentando, visualmente, ...tudo o que aconteceu em meio século na planta do Rio de Janeiro, a substituição da regata pelo futebol na paixão nacional, as transformações das modas no vestuário e no mobiliário, nos costumes, e o advento dos edifícios, do automóvel, da cozinha a gás, do cinema e da televisão etc. etc. (LOREDANO, 2002: 12) Embora tenha se esmerado em representar a modernidade carioca, o desenhista não se furtou à crítica social e política, sobretudo a respeito dos problemas infraestruturais enfrentados pela cidade. Desse modo, a sua participação como cenógrafo agrega ao filme um universo extracinematográfico formado por sua assinatura, facilmente reconhecida por leitores (mais precisamente, vedores) de estratos sociais tão diversos quanto as propostas editoriais das revistas em que atuava. Como indiquei, a modernidade, em J. Carlos, se associava intimamente com o Art Déco, sobretudo a partir dos anos 1930, década em que o estilo entrou em voga, deixando sua marca na arquitetura, no design de objetos e na decoração dos interiores. Embora haja edifícios mais antigos que poderiam ser considerados Art Déco, o ano de seu nascimento oficial é 1925, quando ocorreu, em Paris, a Exposition Internacionale des Arts Décoratifs et Industriels (CONDE; ALMADA, 2000). A denominação Art Déco (abreviação de Arts Décoratifs), embora vinculada à exposição, só passaria a ser empregada a partir dos anos 1960, quando o estilo já fora suplantando pelas linhas modernistas. No momento de sua propagação, foi nomeado de muitas formas, sendo que a mais comum era “estilo moderno” (que não deve ser confundido com “modernista”). Esta nomenclatura é um indício do que o estilo representava – uma sofisticação que poderia ser mais efusiva ou mais sóbria, mas sempre pautada pela geometrização das formas através de linhas simplificadas que rescendiam a uma ideia difusa de futuro. Em outras palavras, o Art Déco era sinônimo de modernidade e modernização. O Rio de Janeiro iniciou a década de 1930 ganhando dois ícones em estilo Art Déco: o edifício A Noite, primeiro arranha-céu do país, de 1930, e a estátua do Cristo Redentor, de 1931, iniciativa da Igreja Católica que ganharia logo status de “cartão-postal”. Ainda no âmbito das imagens canônicas, está a estação ferroviária Central do Brasil, concluída em 1943. Mas a leitura não seria completa se apenas os ícones urbanos merecessem atenção. É preciso levar em conta que Copacabana, o bairro mais cosmopolita do Rio a partir da década de 1930, ganharia um paredão de edifícios Art Déco à beira-mar, e os interiores de boates, cassinos, cinemas e restaurantes também seriam recobertos pelo estilo. Vale ter em conta que a capitalidade do Rio passava por um momento de reelaboração, em que o Art Déco funcionava como um dos elementos discursivos. A estreia do filme coincidiu com o momento em que as experimentações sociais do prefeito Pedro Ernesto chegavam ao fim (SARMENTO, 2001), devido à mudança de orientação do governo Vargas. Dentro de um ano seria decretado o Estado Novo, com a indicação de Henrique Dodsworth para o governo da capital. Alguns traços elencados para representar o Rio no filme seriam aprimorados ao longo da ditadura, período em que houve um esforço efetivo para se cunhar dada representação da capital em consonância com os valores defendidos pelo regime autoritário2. Tal escolha simbolizava um ideal de cidade e, por sinédoque, de país, agregando valores como industrialização e modernidade – afinal, as linhas geométricas das fachadas, produzidas com material bruto, rescendiam a um futuro objetivo e mecanicista (COSTA, 2011), enfatizado pelo termo “arranha-céu” (O’DONNELL, 2013), comum a muitos dos empreendimentos Art Déco na cidade. Mas não só, pois o design Art Déco, num sentido amplo, também apontava para a liberação sexual e o empreendedorismo (MILLER; DAWES, 2005). Vale enfatizar que não são apenas as criações de J. Carlos que vinculam o filme ao Art Déco – a própria ambientação do cassino é marcada por esse estilo. A sua presença no filme, atuando junto às outras leituras da urbe comentadas acima, formavam uma rede complexa, em que o Rio surgia como uma cidade cosmopolita, simultaneamente afeita às tradições populares. Exatamente a mesma operação simbólica que o Estado Novo faria nos anos subsequentes. Outro elemento fundamental na criação de sentido sobre a cidade são as canções (em sua maioria, sambas e marchinhas), que mobilizavam uma série de atributos atinentes à urbe, bem como a seus habitantes. As comédias musicais ou filmusicais (como eram conhecidos na época de sua criação), formaram a primeira parceria sistemática entre cinema e música no Brasil. Há exemplos anteriores de “filmes cantantes”, sem, no entanto, que houvesse uma produção sistemática aliada aos sucessos radiofônicos e fonográficos, como ocorreria com os filmes da Cinédia. Estes eram realizados tendo em vista o lançamento de canções (sobretudo, de marchinhas) às vésperas do Carnaval, contando com o trunfo de apresentar as imagens de cantoras e cantores inacessíveis para a maior parte do público no Brasil. O próprio título, Alô Alô Carnaval, remete a esse circuito: o “alô”, apropriação do inglês “hello”, além de ser adotado para conversas telefônicas, servia de bordão a locutores de rádio no período; a referência ao Carnaval, por sua vez, denotava a conexão do filme com a festa popular apropriada pelo governo Vargas como sinônimo de cultura nacional, no mesmo movimento 2 A dicotomia entre o governo de Pedro Ernesto e o de Henrique Dodsworth não deve pressupor que o Art Déco tenha sido mobilizado apenas pelo segundo: por ser um estilo bastante maleável, em ambos os períodos serviu tanto à defesa das ideias de objetividade e racionalidade na execução de obras públicas “modernas”, quanto à consolidação de um ideal mais difuso de modernidade, atrelado ao cosmopolitismo. que reelabora o samba, um ritmo local, como ritmo brasileiro. Não à toa, os números musicais analisados a seguir estão associados com o universo do samba e do Carnaval3. Uma leitura mais complexa dessas performances seria conseguida com a incorporação de observações mais complexas a respeito da linguagem cinematográfica mobilizada para sua realização.