INTERESSE NACIONAL ano 11 • número 44 • janeiro – março 2019 • R$ 30,00 www.interessenacional.com.br e www.interessenacional.com

A Primavera Liberal Gustavo H. B. Franco Conservadores e Liberais Denis Lerrer Rosenfield Evolução do Marxismo e Involução da Democracia Luiz Philippe de Orleans e Bragança Desafios Internos e Externos Para o Novo Governo Rubens Barbosa Condições, Salvo Engano, Para Uma Frente Democrática André Singer Fernando Rugitsky O Brasil Depois da Eleição de 2018 O Que Fazer? (Balanço e Perspectivas da Esquerda Brasileira) Lincoln Secco O Brasil da Transição Civilizada (2003) à Eleição Polarizada (2018). Papel das Instituições Sergio Abreu e Lima Florencio ISSN 1982-8497 INTERESSE NACIONAL

A Revista Interesse Nacional oferece o seu conteúdo impresso na plataforma tablet. Essa inovação digital beneficia o leitor, pois permite o acesso aos artigos Interesse com total mobilidade e interatividade. Nacional A atualização no formato é necessária para acompanhar nossos leitores onde eles estiverem. Para nós, o importante é a qualidade do conteúdo, sem descuidar dos recursos visuais inovadores. INTERESSE NACIONAL Ano 11 • Número 44 • Janeiro–Março de 2019

Editora Maria Helena Tachinardi

Editor Responsável Rubens Antonio Barbosa conselho editorial

André Singer José Luis Fiori Carlos Eduardo Lins da Silva Leda Paulani Cláudio Lembo Luis Fernando Figueiredo Claudio de Moura Castro Luiz Bernardo Pericás Cláudio R. Barbosa Luiz Carlos Bresser-Pereira Daniel Feffer Miguel Lago Demétrio Magnoli Raymundo Magliano Eugênio Bucci Renato Janine Ribeiro Fernão Bracher Ricardo Carneiro Gabriel Cohn Ricardo Santiago João Geraldo Piquet Carneiro Ronaldo Bianchi Joaquim Falcão Roberto Pompeu de Toledo José Gregori Sergio Fausto

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Printed in 2018 www.interessenacional.com • ISSN 1982-8497 Imagem da capa: www.sxc.hu Sumário

ano 11 • número 44 • janeiro–março de 2019

6 Apresentação contendoras, exigindo, por isto mesmo, um profundo conhecimento das circuns- ARTIGOS tâncias. O Brasil enfrenta, hoje, esse de- safio, com posições conservadoras e libe- 9 A Primavera Liberal rais surgindo enquanto condutoras das Gustavo H. B. Franco ações públicas e de seus processos deci- Em tempos recentes, o liberalismo era sórios, em um novo governo que apresen- insistentemente dado como morto, espe- ta uma outra natureza política. De seu cialmente durante o apogeu da era petis- sucesso ou fracasso, depende que o país ta, mas, nesta eleição, alguma coisa mu- recaia ou não na velha oposição entre di- dou. Siglas como MBL, VPR, RAPS e reita e esquerda, cujos termos seriam di- Renova, cuja origem tinha que ver com tados por essa última. Houve, do ponto as mobilizações associadas ao impeach- de vista político e, particularmente, das ment e o anseio por uma “nova políti- ideias uma mudança de paradigma. ca”, adquiriram musculatura ao eleger filiados seus para o Legislativo, através 35 Evolução do Marxismo e Involução de diversas agremiações partidárias, in- da Democracia cluindo o Novo, Rede, Democratas, PPS, Luiz Philippe de Orleans e Bragança entre outros. Muitos dos eleitos são assu- O debate esquerda versus direita no midamente comprometidos com pautas Brasil, no século 21, será diferente. No liberais na economia, coisa que não se lado da esquerda, veremos os partidos via desde que Roberto Campos deixou o adeptos ao marxismo cultural, ao mar- parlamento no começo de 1994. xismo global sobrepostos num contexto de democracia de massa que sempre 23 Conservadores e Liberais alimentou ambos. A direita que surge Denis Lerrer Rosenfield carrega consigo os novos discursos dos O terreno da política é o do choque, do conservadores e liberais, que são opos- conflito e da luta, muitas vezes caracteri- tos integralmente à realidade progres- zado por embates entre direitos divergen- sista existente. Ambos prezam uma eco- tes ou opostos proclamados pelas partes nomia de mercado como força motriz

...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... 3 do desenvolvimento, pouca intervenção mos quatro anos trouxeram à tona dois de Estado em aspectos sociais e um go- obstáculos à constituição da mesma. O verno local, não global, descentraliza- primeiro relaciona-se à dinâmica das do e próximo à realidade das famílias e organizações partidárias, que dificulta das comunidades. Não há nada na or- até mesmo a unidade entre setores da ganização política do Brasil de hoje em esquerda com maior convergência pro- linha com essa propositura. gramática. O segundo refere-se a di- vergências profundas sobre o lugar do 43 Desafios Internos e Externos Para o Estado na promoção do crescimento Novo Governo econômico, que inviabilizam a ação Rubens Barbosa conjunta de setores “democráticos” Na frente interna, a primeira priorida- vinculados a diferentes posições do es- de seria tomar medidas para criar con- pectro político. dições para a volta do crescimento e da geração de emprego. É urgente aumen- 69 O Brasil Depois da Eleição de 2018 tar a produtividade, sanear as finanças Renato Janine Ribeiro públicas e estimular o investimento pri- Quando a evocação do fascismo e do na- vado por meio de um ambiente de negó- zismo fica forte, dado o retrocesso nos cios que propicie a eficiência, o empre- valores que começa com o Brexit e a elei- endedorismo e o crescimento. Na frente ção de Trump, quando no Brasil pela externa, espera-se que o governo pro- primeira vez na história se elege um pre- cure tomar medidas para que o Brasil, sidente cujo plano de governo apresenta uma das dez maiores economias do a educação não como promessa, mas mundo, recupere um lugar adequado como ameaça, não como algo em que ter no cenário internacional. esperança, mas como algo de quem ele tem medo, torna-se importante lembrar 51 Condições, Salvo Engano, Para Uma que, nos tempos em que o fascismo se Frente Democrática aprestava a triunfar, não havia nada des- André Singer sa atividade otimista, promissora de um Fernando Rugitsky mundo melhor, que hoje enxergamos en- Diante do sucesso da extrema-direita tre os jovens, entre os educadores, os sa- na eleição de 2018, a necessidade de nitaristas, os defensores da inclusão so- pensar os meios de resistir à maré au- cial, empenhados em promover uma so- toritária dobrou. Daí a urgência de re- ciedade melhor. É nisso que a esquerda fletir a respeito da frente democrática. deve, mesmo sem ter o monopólio destas O argumento deste artigo é que os últi- pautas, apostar.

4 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... 77 O Que Fazer? semelhanças, não só de personagens, (Balanço e Perspectivas mas também de situações – o enigma Lu- da Esquerda Brasileira) la no início dos anos 1990, a esfinge Bol- Lincoln Secco sonaro nos dias de hoje. O país vive um A questão que permanece é: se o pró- quadro de fragmentação dos partidos po- prio terreno da administração das coi- líticos, de rejeição popular à classe polí- sas desmanchou, como pode a esquer- tica, de louvável – não obstante também da voltar ao poder sem emular a força desestabilizadora – cruzada ética contra militante que a extrema direita cons- a corrupção (Mensalão, Petrolão, Lava truiu nas ruas desde 2013? E sem um Jato). Esses movimentos se dão num con- programa para o caos instituído? Sem texto de visível guinada conservadora ter alternativa à insegurança das pes- que abre caminho para a recuperação e o soas comuns? Sem resolver o drama de crescimento na economia, mas levanta uma economia que expulsa a classe suspeitas de potencial retrocesso na polí- trabalhadora para serviços precários tica. Embora nossas instituições tenham ou o para o desemprego estrutural? Os tido um perfil inclusivo quando de sua vencedores de hoje ofertaram uma rota criação – Ministério do Trabalho, Justiça e um timoneiro. Por pior que ele seja, é Trabalhista, sindicatos, institutos de pre- preferível do que ficar à deriva. Traçar vidência social e empresas estatais – ou cenários diante de tanta incerteza é de sua consolidação como força política muito difícil. Até um acontecimento – Forças Armadas – muitas delas se inesperado pode mudar tudo. Mas, in- transformaram em extrativas. dependentemente disso, caberá à es- querda construir políticas que apontem para rumos seguros em meio à tormen- ta. Reagrupar-se em torno de questões capazes de produzir amplos consensos.

69 O Brasil da Transição Civilizada (2003) à Eleição Polarizada (2018). O Papel das Instituições nos Avanços e Retrocessos Sergio Abreu e Lima Florencio Os personagens de ontem e os de hoje se assemelham. Um olhar sobre o Brasil de 2002 e de 2018 permite visualizar muitas

...... sumário...... 5 Apresentação

s artigos desta edição versam so- O economista Gustavo Franco, um dos bre as perspectivas para a esquer- criadores do Plano Real e filiado ao partido O da e a direita, no País, após as Novo, explica o que chama de “Primavera eleições de 2018. Pela primeira vez, os bra- Liberal”, título do artigo que abre a edição. sileiros passam a conviver com um governo “Em tempos recentes, o liberalismo era in- declaradamente de direita, com todas as sistentemente dado como morto, especial- implicações dessa tendência nos campos mente durante o apogeu da era petista, mas, econômico, social, político, educacional e nesta eleição, alguma coisa mudou. Siglas cultural, nas áreas de política externa e de como MBL, VPR, RAPS e Renova, cuja meio ambiente, entre outras. origem tinha que ver com as mobilizações Ainda é cedo para se detectar os resulta- associadas ao impeachment e o anseio por dos internos e externos da aplicação do no- uma ‘nova política’, adquiriram musculatu- vo pensamento, liberal na economia e con- ra ao eleger filiados seus para o Legislativo, servador nos costumes. Por enquanto, resta- através de diversas agremiações partidárias, -nos entender essa nova matriz ideológica. incluindo o Novo, Rede, Democratas, PPS, O recém-eleito deputado federal pelo entre outros. Muitos dos eleitos são assumi- PSL, Luiz Philippe de Orleans e Bragança, damente comprometidos com pautas libe- diz: “A direita que surge carrega consigo os rais na economia, coisa que não se via desde novos discursos dos conservadores e libe- que Roberto Campos deixou o parlamento rais, que são opostos integralmente à reali- no começo de 1994”, escreve Franco. dade progressista existente. Ambos prezam O cientista político Denis Lerrer Rosen- uma economia de mercado como força mo- field destaca que “valores conservadores e triz do desenvolvimento, pouca interven- liberais passaram a ser representados eleito- ção do Estado em aspectos sociais e um ralmente, expondo um cenário diante do governo local, não global, descentralizado, qual tanto os tucanos quanto os petistas fi- e próximo à realidade das famílias e das co- caram desorientados. A novidade, segundo munidades. Não há nada na organização o autor do artigo “Conservadores e Libe- política do Brasil de hoje em linha com es- rais”, é que “a direita mostrou uma diversi- sa propositura”. dade própria, seja em relação aos costumes

6 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... e aos valores morais e religiosos, seja em gundo refere-se a divergências profundas relação à economia”. Ao lutar contra a cri- sobre o lugar do Estado na promoção do minalidade generalizada e pelo direito à au- crescimento econômico, que inviabilizam a todefesa e à segurança pública, Bolsonaro ação conjunta de setores ‘democráticos’ resgatou valores e princípios que fazem par- vinculados a diferentes posições do espec- te, conforme ensinava Hobbes, da própria tro político”. constituição do Estado, diz o articulista. Os autores concluem: “a extrema-direita neoliberal brasileira, em contraste com o embaixador Rubens Barbosa, editor populismo de direita que está em alta no O responsável desta Revista, faz uma mundo, abre um espaço para a resistência análise dos desafios internos (econômicos, democrática aliar defesa da democracia políticos e sociais) e externos (como buscar com recusa do neoliberalismo. Uma con- um lugar adequado para o Brasil, uma das junção, aliás, que parece ser a condição pa- dez maiores economias do mundo). “O go- ra formação da ampla frente social, cons- verno que se iniciou em 1o de janeiro en- truída desde baixo”. frentará desafios internos e externos e não Renato Janine Ribeiro, professor de filo- terá muito tempo para tomar medidas que sofia na USP e ex-ministro da Educação na permitam ao Brasil voltar a crescer, aumen- gestão de , diz: “quando no tar a geração de emprego e reduzir as desi- Brasil, pela primeira vez na história, elege- gualdades regionais e individuais. Não terá -se um presidente cujo plano de governo muito tempo igualmente para, na política apresenta a educação não como promessa, externa, reinserir o Brasil nos fluxos dinâ- mas como ameaça, não como algo em que micos da economia e do comércio exterior ter esperança, mas como algo de quem ele e para fortalecer a voz do Brasil no cenário tem medo, torna-se importante lembrar internacional”. que, nos tempos em que o fascismo se Artigos de André Singer, Fernando Ru- aprestava a triunfar, não havia nada dessa gitsky, Lincoln Secco e Renato Janine Ri- atividade otimista, promissora de um mun- beiro refletem sobre as perspectivas da es- do melhor, que hoje enxergamos entre os querda e da formação de uma frente demo- jovens, entre os educadores, os sanitaristas, crática, como resposta à eleição do direitis- os defensores da inclusão social, empenha- ta Jair Bolsonaro. dos em promover uma sociedade melhor. É Para Singer e Rugitsky, respectivamente nisso que a esquerda deve, mesmo sem ter professores de Ciência Política e de Econo- o monopólio destas pautas, apostar”. mia da USP, apesar da urgência da consti- Para Lincoln Secco, professor livre do- tuição de uma frente democrática, há dois cente de História Contemporânea na USP, obstáculos a serem enfrentados: “o primei- “traçar cenários diante de tanta incerteza é ro relaciona-se à dinâmica das organiza- muito difícil. Até um acontecimento ines- ções partidárias, que dificulta até mesmo a perado pode mudar tudo. Mas, independen- unidade entre setores da esquerda com temente disso, caberá à esquerda construir maior convergência programática. O se- políticas que apontem para rumos seguros

...... apresentação...... 7 em meio à tormenta. Reagrupar-se em tor- profundas transformações no país – de per- no de questões capazes de produzir amplos fil inclusivo e extrativo – a partir da década consensos. Parte dos dirigentes está surpre- de 1930. Durante a segunda metade da dé- endentemente convencida dessa necessida- cada de 1990 e os primeiros anos 2000, de e realisticamente atada à diversidade de com o saneamento da economia e a moder- interesses que atravessam os partidos. Não nização do Estado, ganharam força as insti- haverá unidade, mas pode haver união em tuições inclusivas. Entretanto, a partir de torno de lutas concretas”. 2008 e, mais claramente na década de 2010, O diplomata de carreira Sergio Abreu e com o governo Dilma, o extrativismo pre- Lima Florencio é autor do artigo “O Brasil valece em nossas instituições. O corolário da Transição Civilizada (2003) à Eleição dessa involução é que, hoje, o país volta a Polarizada (2018). O Papel das Instituições viver uma conjuntura política, econômica e nos Avanços e Retrocessos”. Ele analisa o social que, embora guardando semelhanças papel das instituições brasileiras no proces- com seu início (2002), se apresenta visivel- so político e econômico durante os últimos mente mais sombria”. 15 anos. “As instituições contribuíram para os editores

8 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... A Primavera Liberal

Gustavo H. B. Franco

s resultados das eleições de 2018 membros da agremiação saibam bem o que trouxeram muitas surpresas, gra- significam, isoladamente ou combinadas. É Otas e ingratas, juntamente com completamente acidental que o partido que imensos desafios de interpretação. Os es- surge do nada para se tornar a segunda maior pecialistas debaterão ainda por muitos anos bancada na Câmara dos Deputados na estei- o que se passou nesse pleito que o cientis- ra do sucesso eleitoral de Jair Bolsonaro, o ta político Jairo Nicolau definiu como um PSL, tenha exatamente esta combinação de exemplo de “eleição crítica: uma disputa letras. É menos acidental que o PSL esti- que desestrutura o padrão de competição vesse prestes a sofrer uma espécie de take- partidária vigente”1, e que o ex-presidente -over consentido para trocar de nome para Fernando Henrique Cardoso classificou “Livres” e dedicar-se a uma pauta liberal, como “um tsunami que varreu o sistema inclusive nos costumes, quando a filiação político brasileiro” e que “terminou o ciclo de Bolsonaro destruiu o projeto e resultou político-eleitoral iniciado depois da Consti- na desfiliação em massa daqueles ligados ao tuição de 1988”.2 projeto do Livres, boa parte deles migrando Uma dessas inúmeras novidades, o as- para o Novo. sunto deste artigo, tem a ver com a letra “L”: Apenas dois outros partidos trabalham que aparece meio malversada ou extravia- com a letra “L”, o desconhecido PPL (Par- da em algumas siglas partidárias, às vezes tido da Pátria Livre) e o PSOL (Partido do mesmo junto com a letra “S”, sem que os Socialismo e Liberdade), nenhum dos dois comprometidos com o liberalismo. Até mes- 1 “O triunfo do bolsonarismo”, Piauí 146, novembro de 2018, p. 30. mo o antigo PFL (Partido da Frente Liberal) 2 “Um novo caminho”, O Globo, 02.12.2018. mudou de nome para Democratas, com vis- tas a livrar-se do peso da letra amaldiçoada. Gustavo H. B. Franco é bacharel (1979) e mestre (1982) Em tempos recentes, o liberalismo era em economia pela PUC do Rio de Janeiro e PhD (1986) pela Universidade de Harvard. É professor da PUC desde 1986. insistentemente dado como morto, especial- No setor público, entre 1993 e 1999, foi secretário adjunto mente durante o apogeu da era petista, mas, de Política Econômica do Ministério da Fazenda, diretor da nesta eleição, alguma coisa mudou. Siglas Área Internacional e presidente do Banco Central do Brasil. como MBL, VPR, RAPS e Renova, cuja É sócio fundador da Rio Bravo Investimentos desde 2000. É autor de diversos livros e escreve regularmente para jornais e origem tinha que ver com as mobilizações revistas de grande circulação desde 1988. associadas ao impeachment e o anseio por

...... a primavera liberal ...... 9 uma “nova política” adquiriram musculatu- a ex-presidente concorresse e ajudando a se- ra ao eleger filiados seus para o Legislativo, pultar a narrativa de “golpe”. através de diversas agremiações partidárias, É claro que havia bem mais do que os incluindo o Novo, Rede, Democratas, PPS, ventos liberais em jogo em Minas Gerais, entre outros. Muitos dos eleitos são assumi- como no Rio de Janeiro, onde o governador damente comprometidos com pautas liberais eleito também foi um outsider, e no resto na economia, coisa que não se via desde que do país. O anseio por uma “nova política”, Roberto Campos deixou o parlamento no a liderança pessoal de Bolsonaro e o anti- começo de 1994. petismo se apresentaram em toda parte em A nova legislatura terá, portanto, uma combinações variadas, mas parece indiscu- novidade, uma bancada de índole autentica- tível que o liberalismo, numa forma muito mente liberal na economia, ainda que peque- singular e aclimatada, entranhou-se profun- na, boa parte dela abrigada no Novo, a ino- damente nesse pacote. vação mais relevante no interior do sistema Durante a campanha, o liberalismo se partidário propriamente dito, uma espécie tornou uma espécie de bolsa de grife entre de start-up “disruptiva” em um mercado en- os candidatos fora do campo da esquerda: charcado de velhas práticas. Poucos especia- todas as candidaturas portavam com desta- listas davam importância a temas como pro- que um economista de credenciais liberais, cesso seletivo e treinamento para a escolha como se fora uma apólice de seguro, quando de candidatos, governança interna, discipli- o economista não era o próprio candidato. na partidária e, sobretudo, a recusa em usar o Não há dúvida que Paulo Guedes teve muita fundo partidário, procedimentos novos que importância para consolidar a candidatura caíram no gosto de uma população atenta vencedora de Jair Bolsonaro, o que parece a novas práticas políticas. O compromisso demonstrado pela sua estatura política no estrito com as pautas liberais na economia âmbito do novo governo. potencializou uma “oferta eleitoral” que ad- O que aconteceu para explicar tamanho quiriu um inusitado aspecto “basista” e mul- deslocamento? Seria mesmo um ressur- tiplicou as filiações pelo país. O Novo enrai- gimento político do liberalismo? E de que zou-se de forma profunda e inesperada já em espécie de liberalismo estamos falando? Já sua primeira eleição nacional, lembrando a não estava assentado? dinâmica do surgimento e desenvolvimento do próprio PT, embora, obviamente, em ou- 1. O liberalismo já estava na Constituição, tros extratos sociais, como se verá adiante. mas não vinha sendo praticado O Novo elegeu nove parlamentares para a Câmara Federal, entre os quais o deputado Constituição de 1988, em seu primeiro mais votado no Rio Grande do Sul, e venceu A e mais básico dispositivo, estabelece as eleições para o governo de Minas Gerais que a República tem como um de seus fun- com Romeu Zema, derrotando Fernando damentos “os valores sociais do trabalho e Pimentel (PT) e Antônio Anastasia (PSDB) da livre iniciativa” (art. 1, IV). É de se re- e, como “bônus”, ajudou a afastar Dilma parar que não se trata do trabalho em oposi- Rousseff do Senado, com isso corrigindo a ção à livre iniciativa, ou um contra a outra. “canelada” constitucional que permitiu que Trata-se de um e outra, inclusive e princi-

10 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... palmente porque funcionam conjuntamente, tológicos. Tudo começa com a idealização ou mesmo porque são compostos da mesma de uma sociedade dividida (patrão/emprega- matéria. do), na qual a “parte menos favorecida” é É verdade que, mais adiante, a Carta incapaz de decidir sua própria vida, portan- Magna fala no “primado do trabalho” (art. to, “hipossuficiente”, e precisa ser tutelada. 193), mas isso não quer dizer que a livre Para exercer essa magna função, o Estado iniciativa, e mais precisamente o ofício do cria uma gigantesca estrutura que se orga- empreendedor não seja também trabalho, niza não como política social, mas como um amiúde muito trabalhoso. Talvez fosse mais ramo do Poder Judiciário. Nesse regime, as próprio, inclusive, afirmar expressamente o combinações particulares são sempre precá- contrário, ou seja, que o “trabalho” que cria rias, pois sempre poderão ser desfeitas e re- trabalho, ou seja, o de empreender, possui feitas, sob o patrocínio da Justiça do Traba- imenso valor e deveria receber um tratamen- lho. Há uma espécie de sofisma quanto aos to benigno do Estado em termos gerais, o direitos do trabalhador, pois são definidos que, como se sabe, não é bem o caso. como indisponíveis, portanto não podem ser A Constituição traz pouca coisa sobre a negociados livremente, como se de fato per- empresa, essa instituição que cria empre- tencessem ao trabalhador. Com isso, aumen- gos e riqueza. Há muita atenção dedicada ta a incerteza jurídica e o custo do trabalho, à empresa estatal e destaque para “o trata- assim prejudicando a empresa e o emprego. mento favorecido” à pequena empresa (art. Ainda por cima, a Justiça do Trabalho 170, IX), parecendo indicar que a pequena custou R$ 17 bilhões em 2016 (incríveis empresa precisa de muletas e a grande, de 0,27% do PIB), o que é mais do que toda a maus-tratos. O incentivo passa a ser, curio- justiça do Reino Unido. E pior: o que está samente, para as empresas permanecerem em jogo é bem menos do que custa o me- pequenas, conforme se observa de forma canismo. No ano de 2008, tínhamos 16 mi- recorrente, por exemplo, no debate sobre as lhões de ações trabalhistas, cujo valor médio fronteiras para o enquadramento das empre- era cerca de R$ 15 mil. O custo total da pró- sas no Simples, em oposição ao “complica- pria Justiça do Trabalho, nesse ano, foi de do”, o sistema tributário geral. R$ 9,1 bilhões, ou seja, cerca de R$ 57 mil O fato é que, talvez pela omissão em se por processo. exaltar a iniciativa privada, as leis trabalhis- O absurdo desses números – para não tas e tributárias tratam o “trabalho empresa- falar no malsinado imposto sindical e do rial” como se pertencesse a uma categoria já extinto ministério do Trabalho –, ajuda a inferior, ou fosse uma tentativa de explorar explicar a popularidade da ideia de “menos ou enganar consumidores, trabalhadores e Estado”, quando se trata de regulação do tra- o fisco, e permanentemente em falta com a balho, e também ajuda a entender por que a sociedade. oposição à reforma trabalhista vem das cor- Em nenhum outro tema esse anticapita- porações e sindicatos, e não propriamente lismo brasileiro se mostra mais elaborado dos “clientes” mais importantes, os trabalha- e prejudicial que na regulação do trabalho, dores e, sobretudo, das empresas, as respon- em que a pouca relevância do contrato e a sáveis pela criação de empregos. hipertrofia do Estado atingiram níveis pa- A hostilidade à empresa parece se repetir

...... a primavera liberal ...... 11 no âmbito da legislação tributária, o que dá segundo o figurino corporativista que nos a impressão que o Estado age como potên- oprime desde a colônia, pelo qual, para usar cia estrangeira, jamais interessado no desen- a imagem de Jorge Caldeira4, a cabeça vai volvimento da livre iniciativa e no ambiente ficando cada vez maior que o corpo, como de negócios, mas na extração de impostos um parasita buscando ser maior que seu hos- de entidades empenhadas em esconder-se pedeiro. do fisco. A dura rotina de quem empreende A esse respeito, a campanha eleitoral de parece repetir um enredo muito antigo, as- 2018 produziu uma síntese lapidar da hiper- semelhado àquele descrito pelo historiador trofia estatal, através do frio diagnóstico do Jorge Caldeira para o Brasil Colônia, no governador Romeu Zema: o carrapato ficou qual o empreendedor já existia em grandes maior do que a vaca. quantidades, oculto na “economia de subsis- tência”, e sua sina inescapável era fazer-se 2. A maioria invisível: o liberalismo já invisível a uma metrópole coletora de im- era bem conhecido, sem esse nome postos, a mãe de todos os rentistas3. Não há acidente nas péssimas coloca- liberalismo deveria ser mais popular, ções do Brasil nos rankings de ambiente de Oa julgar pela demografia: conforme a negócios, competitividade e liberdade eco- PNAD, de 92,1 milhões de pessoas traba- nômica. No “Doing Business” para 2019, o lhando no país em dezembro de 2017, 33,3 Brasil aparece na posição 109 de 190 paí- milhões (36%) possuíam carteira assinada, ses, mas na posição 184 no quesito relativo enquanto 27,6 milhões (30%) pertenciam ao cumprimento de obrigações tributárias, ao “grupo empreendedor” ou “sem patrão”: principais e acessórias. Em Liberdade Eco- profissionais liberais, trabalhadores por con- nômica, o Brasil está na posição 154 em 180 ta própria e empregadores de todos os tama- países, conforme a Heritage Foundation, e nhos. São números parecidos, ou seja, há em competitividade, na posição 61 de 63 quase tanta gente empreendendo, ou “cor- países, segundo o índice calculado pelo Ins- rendo atrás” – incluídos os pequenos, mé- tituto IMD, e na posição 80 em 137 países, dios e grandes empresários – do que assa- conforme o World Economic Forum. lariados formais. Muitos desses estão nessa As legislações tributária e trabalhista pa- condição por conta do desemprego, mas uma recem guiadas por um contrato social equi- proporção importante dos empregados com vocado, fundado na desconfiança mútua, carteira é aspirante a empresário, buscando e que leva a um equilíbrio ruim, pelo qual ser dono do seu negócio e do seu tempo. os incentivos estão errados (a desconfiança Ainda de acordo com a PNAD, em de- produz transgressão, ambas se reforçando) e zembro de 2017, tínhamos 11,5 milhões de tudo isso parece inconsistente com o enun- servidores públicos, um número muito pare- ciado básico do princípio da livre iniciativa. cido com o de “sem carteira” (11,1 milhões) A única lógica discernível nesses desvios é a e com o de desempregados (12,3 milhões). que leva ao crescimento do tamanho do Es- São números impressionantes e correlacio- tado, que passa a ser um fim em si mesmo, nados, três vértices de uma sociedade fun-

3 Jorge Caldeira História do Brasil com empreendedores 4 Jorge Caldeira A história da riqueza do Brasil, Rio de São Paulo, Editora Mameluco, 2009 Janeiro, Estação Brasil, 2017, p. 588.

12 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... cionalmente desigual: o excessivamente A pesquisa traz conclusões inesperadas formal e o informal, ou excluído, volunta- para muitos observadores: “a cisão entre riamente ou involuntariamente, e o desem- classe trabalhadora e burguesia não perpassa pregado. São as vítimas e os apadrinhados o imaginário dos entrevistados”, sendo per- de uma regulação do trabalho inadequada. cebido que “o principal confronto existen- O emprego público é uma aspiração anti- te na sociedade não é entre ricos e pobres, ga e um ideal intensamente explorado poli- entre capital e trabalho, entre corporações e ticamente nos últimos governos petistas que trabalhadores. O grande conflito se dá entre promoveram uma farra de concursos públi- Estado e cidadãos, entre a sociedade e seus cos com sérias implicações fiscais. Segundo governantes. Todos são vítimas do Esta- um relatório recente do Banco Mundial, a do que cobra impostos excessivos, impõe massa salarial dos funcionários públicos nas entraves burocráticos, gerencia mal o cres- três esferas foi de 11,6% do PIB em 2006 cimento econômico e acaba por limitar ou para 13,1% do PIB em 2015. O relatório re- “sufocar” a atividade das empresas”. porta que 49% dos servidores são munici- Ainda segundo a pesquisa: “a ascensão pais, 26% são estaduais e 15% são federais5, social está relacionada à coragem, ousadia e mas o achado mais acachapante do relatório disciplina e é tratada como um resultado in- tem a ver com salários: o setor público paga dividual derivado da força de vontade. Mui- muito para padrões internacionais e paga tas vezes, isso significa estabelecer um senti- mais que o setor privado, controlando por mento de solidariedade mais estreito com os variáveis como experiência e escolaridade, próprios empregadores­ do que com aqueles e esse prêmio é de incríveis 67% no serviço que partilham a mesma condição de classe”. público federal, 31% no funcionalismo es- Adicionalmente, a pesquisa advertia: “aten- tadual e inexistente no nível do município6. ção para o discurso que nega o ‘mérito’; ele À luz desses números é certamente para- é importante na construção da identida­de. A doxal que os partidos políticos sistematica- dimensão da vida privada é central para a mente ignorem os 27 milhões de empreen- constituição da subjetividade do indiví­duo. dedores, inclusive por serem os empregado- O campo democrático-popular precisa pro- res dos 33 milhões de assalariados, e levem duzir narrativas contra-hegemônicas (sic) o “primado do trabalho” ao extremo de fazê- mais consistentes e menos maniqueístas ou -lo em aberto detrimento de quem empreen- pejorativas sobre as noções de indivíduo, fa- de e cria emprego, contrariando, inclusive, mília, religião e segurança”. os achados de uma pesquisa que se tornou Com o benefício do conhecimento do famosa feita pela Fundação Perseu Abramo que se passou nas eleições de 2018 é de uma sobre os valores políticos da periferia de São clareza meridiana a observação da pesquisa Paulo7. segundo a qual “há menos a presença de um neoliberalismo enraizado ... e mais de um 5 A partir de números para 2003, que não se sabe se mudaram relevantemente. liberalismo particular das classes populares 6 Banco Mundial “Um ajuste justo: análise da eficiência e que precisa ser melhor compreendido”. equidade do gasto público no Brasil”, 2017, pp. 42, 47 O fato é que era totalmente falsa a obser- passim. vação segundo a qual era difícil explicar para 7 Fundação Perseu Abramo – Partido dos Trabalhadores “Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo” as classes populares o que era o liberalismo,

...... a primavera liberal ...... 13 ou que esta era uma ideia fora do lugar, es- teve um de seus momentos mais decisivos trangeira em seu próprio país. Na verdade, durante os anos do Plano Real, quando o já parecia bem constituído esse “liberalismo país resolveu impasses que vinham desde raiz” na periferia de São Paulo, já bem adap- quando se estabeleceu em definitivo a moe- tado aos abusos particularmente brasileiros da fiduciária. O valor social da estabilidade praticados pelo Estado contra o cidadão, foi uma descoberta fascinante para o país, e em seus múltiplos formatos, da inflação ao representou a aposentadoria de muitas ideias superfaturamento de obras, passando pelos heterodoxas longamente estabelecidas. “gatos” e pelos campeões nacionais. Vale o registro que a ideia de responsabi- A popularidade das pautas liberais não lidade fiscal aparece pela primeira vez com deveria surpreender. esse formato, quando a hiperinflação já ha- via sido vencida e uma nova lei complemen- 3. Imperativos econômicos estabeleceram tar de finanças públicas começa a tramitar firmemente bandeiras liberais em 1999. Essa linguagem era uma pequena novidade revolucionária no debate sobre os últimos anos, houve um movimento moeda e finanças públicas, eis que era im- Ntectônico no pensamento econômico possível, ao menos no plano retórico, postar- brasileiro em razão de alguns imperativos e -se de forma contrária, pois ninguém quer se de experiências catárticas ou paradigmáticas apresentar a priori como defensor da “irres- que alteraram certezas do passado. ponsabilidade”. É verdade que o momento Há, ao menos, quatro eixos a partir dos histórico era singular, a adesão à heterodo- quais pode-se identificar temas e eventos xia havia se transformado em algo como o que produziram revelações e evoluções in- consumo de drogas, porém tendo ultrapassa- variavelmente na direção do que poderia ser do a fase festiva e inofensiva, definida pelo designado como o campo liberal: (i) o de- uso recreativo e moderado, e penetrado pro- clínio do inflacionismo e novo primado da fundamente no terreno da patologia. responsabilidade fiscal; (ii) a obsolescência Curiosamente, quem ideologizou o tema da substituição de importações e do isolacio- da sustentabilidade fiscal e o colocou den- nismo; (iii) a descoberta da defesa da con- tro do receituário neoliberal, referenciada corrência e das agendas “pró-mercado”; e ao Consenso de Washington e imposta pelo (iv) o desafio ao seletivismo e à cultura dos FMI, foi o próprio PT, mesmo antes de che- “gatos”. gar ao poder e ver-se obrigado a adotar o Cada um desses enredos parece levar ao “tripé” (superávit primário, câmbio flutuan- “neoliberalismo”, ao menos na forma pela te e metas de inflação). Podia haver descon- qual o petismo enxerga tal coisa. forto nesse posicionamento, e mesmo uma inconsistência com a fala segundo a qual ha- 3.1. A convergência macroeconômica e via uma “herança maldita” a cuidar. Mas o o colapso das heterodoxias “tripé” foi zelosamente seguido até o petis- mo desafiar esta sabedoria com a Nova Ma- crônica dos embates entre abordagens triz, por volta de 2010, e levar o país à pior Aortodoxas e heterodoxas em matéria recessão de sua história em 2015-16. Em si, monetária e fiscal se estende por décadas e esse desempenho já seria um peso para a

14 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... candidatura Haddad em 2018, a qual, ainda o mesmo dos anos 1960, em torno de 18%. por cima, se apresentou na campanha com A Coreia do Sul estava em 68,7% em 2017, versões ainda mais radicais dessas propostas após sair de 9,5% em 1960 e pular para econômicas obtusas. 31,3% em 1970, quando firmou sua estraté- O fato é que se responsabilidade fiscal gia de “promoção de exportações”. A Coreia e zelo pela estabilidade monetária se tor- tinha uma renda per capita 30% menor que naram valores liberais, conforme definido a do Brasil em 1960, mas em 1980 já tinha pelo petismo, do que se segue que todos empatado conosco, num nível perto de 20% nos tornamos liberais convictos, ao menos da renda per capita dos Estados Unidos. Em nessa acepção restrita. Todos, incluídos os 2017, a Coreia chegou a 65% da renda per tribunais de contas, os órgãos de controle, capita americana enquanto o Brasil chegou mesmo o Ministério Público; quem haveria a 26%. de se alinhar com a irresponsabilidade ape- A Coreia nos deixou para trás de forma nas para evitar algum incômodo resultante simplesmente acachapante. da rotulação? Essa opção pela abertura, segundo se dizia, não estava disponível para os países 3.2. O envelhecimento da fé prote- grandes, mas esqueceram de avisar os chi- cionista, transformada em extrativismo neses. Em 1960, eles se pareciam com a Co- reia em abertura e em 1970 se aproximaram busca da autossuficiência através da da autarquia ao chegar a 4,9% de abertura. Aindustrialização por substituição de im- Mas, o tal “socialismo de mercado” inven- portações, o aumento dos “conteúdos nacio- tado por Deng Xiaoping levou a China para nais”, ou do indefectível “adensamento das um grau de abertura de 19,9% já em 1980 cadeias produtivas” são temas fundadores e daí, na mesma toada, até 48,7% em 2010. da experiência de desenvolvimento econô- Em retrospecto, a estratégia de substi- mico brasileiro tanto quanto a heterodoxia tuição de importações levou uma surra da monetária e o desenvolvimentismo. A partir “promoção de exportações” inicialmente dos anos 1980, contudo, esses conceitos vão proposta na Ásia, mas nada parece diminuir se tornando tão obsoletos e daninhos quanto o formidável acervo de impedimentos ao o inflacionismo, e sua defesa passa a caber comércio exterior que o Brasil ergueu em exclusivamente a grupos de interesse. torno de si, compreendendo tributos, obstá- O isolacionismo foi se tornando uma in- culos administrativos e regulatórios, requisi- conveniência cada vez maior depois de 1980, tos de conteúdo nacional e padrões exóticos, com o aumento da presença estrangeira no como a indefectível tomada de três pinos. E país, com a internet, com a desregulamenta- quando tudo parece falhar, sobrevém o apelo ção cambial, com os acordos comerciais por utilitário, trazido pelos diplomatas: é preciso todo lugar e, sobretudo, com os imperativos reciprocidade, dizem, não vamos entregar da globalização. nada de mão beijada. Como se não fosse em O grau de abertura8 do Brasil continua nosso benefício. A diplomacia brasileira é um notável 8 Importações mais exportações divididas pelo PIB, em exemplo internacional de profissionalismo dólares de PPP, conforme dados do Banco Mundial disponíveis on-line. e competência, inclusive para defender o

...... a primavera liberal ...... 15 indefensável. Sem falsa modéstia, o mes- Suíça. Esse “país” dentro do Brasil expor- mo vale para os economistas. Todos os que tou US$ 66 bilhões em 2015, um número estiveram no serviço público antes de 1994 muito pequeno quando comparado ao que passaram por experiências desse tipo, espe- fazem as filiais em outros países, indican- cialmente quando era preciso dizer a investi- do com muita clareza a imensa dificuldade dores estrangeiros que a economia brasileira das multinacionais no Brasil se conectarem permanecia em perfeita saúde mesmo tendo com suas cadeias internacionais de valor. O taxas de inflação de 30% ao mês. Em re- prejuízo é nosso: essas empresas poderiam trospecto, é preciso confessar: era ridículo. estar exportando (e importando) o dobro ou Dizia-se que a indexação era generalizada, o triplo, e não estaríamos entre os países que a inflação tinha pouco efeito nos preços mais fechados do mundo. relativos e nas variáveis reais, e outras tantas Nesse contexto, está completamente ob- coisas que são vergonhosas de se repetir. soleto associar autarquia com soberania, e Parece-me que algo muito semelhante se mais ainda o argumento da “empresa nas- passa com os responsáveis pelas nossas rela- cente”, tendo em vista o peso das empresas ções internacionais: nosso grau de abertura é estrangeiras no PIB brasileiro. Mais estra- nada menos que indesculpável e defendê-lo nho ainda é evitar que as multinacionais es- nos coloca firmemente no terreno do grotes- tabelecidas no país sejam impedidas de fazer co. Nosso isolacionismo é não apenas vergo- parte de suas cadeias internacionais de valor. nhoso, como reduz as nossas possibilidades Os imperativos que daí derivam são todos de progresso. Exatamente como foi, outrora, no sentido da liberalização e adoção de me- o nosso gosto pelo inflacionismo, um vício lhores práticas internacionais, agendas que que conseguimos largar. A liderança chinesa o petismo converteu em causas neoliberais. teve imensa coragem e lucidez ao abandonar a ideia de autossuficiência e optar por uma 3.3. Concorrência, campeões e cronismo estratégia que lhes conduziu à condição de potência econômica global. Por que não po- defesa da concorrência, atividade es- demos seguir esse exemplo? Asencial numa economia de mercado, A defesa do status quo se torna ainda é recente no Brasil, pois historicamente o mais deslocada quando se tem em conta o Estado era o maior transgressor tanto por avanço espontâneo da internacionalização conta de suas atividades como empresário, da economia depois do Plano Real: con- normalmente com posições de mercado do- forme revelado pelo Censo do Capital Es- minantes, como também em razão de suas trangeiro no Brasil, conduzido regularmente condutas, prevalecendo o intervencionismo pelo Banco Central, em 1995 as empresas pesado a favor das empresas que o Estado estrangeiras produziram 18% do PIB brasi- considerava estratégicas. leiro e em 2015 essa proporção subiu a 33%. A discussão concorrencial era sistema- Tudo se passa como se esse grupo de ticamente engolida pela ideia que o país empresas fosse um país com um PIB de deveria ter uma “política industrial ativa”. US$ 592 bilhões (33% de US$ 1,8 trilhão, Conforme observam os historiadores ofi- o PIB corrente em dólares de 2015), o 21º ciais do Cade, criado em 1962 como o órgão do mundo nesse ano, entre Argentina e de defesa da concorrência, “entre as décadas

16 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... de 1960 até meados dos anos 1980, a atua- pode ocorrer sem alguma forma de favori- ção daquele órgão foi considerada pelos es- tismo, arbitrariedade ou corrupção. Não há tudiosos como pouco expressiva. As razões predominância dos mercados, senão na apa- apontadas para isso, por um lado, passam rência, mas um “controle social” das transa- pelo ambiente econômico e pelo modelo de ções e mercantilização da ação do Estado. desenvolvimento do país. Havia uma políti- É claro que, como as bruxas, a corrupção ca de controle de preços – algo incompatível sempre existiu, mas o que se mostrou iné- com a livre concorrência –, além de estímulo dito foi o “cronismo” controlar os Estados governamental à criação de grandes grupos nacionais, a ponto de estabelecer as agendas econômicos nascidos, muitas vezes, de fu- de políticas públicas e os andamentos maio- sões e incorporação”.9 res da economia, e pior, a “monetização” da As coisas mudaram com a estabiliza- intervenção do Estado. É mais do que sim- ção, inicialmente em razão dos limites fis- plesmente crime organizado. cais e regulatórios à criação de benesses. O O professor Luigi Zingales10 concebeu sistema de defesa da concorrência ganhou uma disjuntiva que procura explicar os mo- nova prioridade a partir de 1994 com a Lei delos econômicos que se organizaram de- 8.884/94, que transformou o Cade em autar- pois da queda do Muro, a partir da natureza quia, assinalou uma nova etapa na efetivida- do relacionamento entre o público e o priva- de das ações pró-concorrência; desde então, do, em que ele distingue dois regimes ide- o assunto foi crescendo em importância, cul- ais, os que designa como “pró-negócio” e os minando com a transferência do Cade para “pró-mercado”. o Ministério da Fazenda e sua integração às “Pró-negócio” é o regime do “cronismo”, ações do Estado orientadas para o aumento em que o público e o privado se embara- da produtividade. lham, mas em uma mistura que está longe Paralelamente a esta evolução, o Brasil de ser anticapitalista. Talvez se possa dizer o viveu uma experiência marcante e traumá- exato oposto: é a privatização do Estado e o tica, conforme documentado a partir das capitalismo degenerado. descobertas da Operação Lava Jato, ao O regime “pró-mercado” é fundado na ver-se envolvido com o que se conhece competição e na impessoalidade, o velho ca- como “cronismo”. pitalismo liberal, como a democracia, o me- A referência a um capitalismo crony lhor de todos os regimes ruins. Não se trata (uma gíria para designar afilhados, capan- de Estado mínimo, nem de qualquer visão gas, comparsas, apaniguados, membros de romântica sobre o modo como o capitalis- uma quadrilha ou irmãos no crime), de am- mo funciona,mas de trabalhar as virtudes pla utilização na literatura econômica e so- do sistema, que deve enfatizar o bom fun- ciológica cresceu em alusão a regimes onde cionamento dos mercados, a concorrência as formas de organização das trocas econô- e a horizontalidade, enquanto o “cronismo” micas são tais que pouca coisa importante procura sempre a seletividade e a arbitrarie- dade. Em vez de competição, meritocracia e 9 Vinícius Marques de Carvalho e Carlos Emmanuel J. Ragazzo (orgs). “Defesa da Concorrência no Brasil: 10 Luigi Zingales “Um capitalismo para o povo: 50 anos” Brasília: Conselho Administrativo de Defesa reencontrando a chave da prosperidade americana” São Econômica – Cade, 2013, p. 43. Paulo, Editora BEI, 2014.

...... a primavera liberal ...... 17 impessoalidade, o regime do “cronismo” es- mais com menos. Uma das soluções mais tabelece a discricionariedade para escolher comuns para o problema foi a proliferação seus “campeões” com bases em prioridades de “gatos”, conforme abaixo descrita. ad hoc e, às vezes, buscando apoio no nacio- O “gato” é um fenômeno social comple- nalismo ou no politicamente correto. xo, uma espécie de jeitinho para se fazer O “cronismo” desembarcou no Brasil pe- um benefício ou um subsídio sem que se las mãos do PT, que, em 2008, passa de uma tenha que discutir seus custos no âmbito postura passiva e envergonhada para outra do orçamento público. O “gato” não está de extroversão, ao atacar cada um dos pres- sujeito a contingenciamento e consiste ti- supostos dos consensos internacionais em picamente numa gratuidade oferecida a um políticas públicas. Na ocasião, o ministro indivíduo ou grupo e cujo custo é “sociali- proclamou, além da crise do zado”, geralmente na forma de sobrepreço neoliberalismo: “O capitalismo precisa ser compensatório. sempre reinventado. Onde está dando mais Na energia elétrica, o assunto está bem certo? Nos países que adotaram o capitalis- organizado: o roubo de energia é tolerado mo de Estado”. pelas empresas concessionárias, pois são Seis anos e muitos escândalos depois, autorizadas a cobrar o custo do “gato” de passando por prejuízos bilionários, é bastan- quem paga as contas. Tudo se passa como te claro que o fracasso dessa nova matriz re- se houvesse um subsídio, expressa ou im- sultou imensamente eficaz para popularizar plicitamente determinado pelas autoridades, algumas das virtudes mais básicas da eco- financiado por um imposto, um “adicional” nomia de mercado, como impessoalidade, na conta, que, todavia, jamais aparece com concorrência e meritocracia. esses nomes e não passam nem perto de en- trar na conta da carga tributária e do tama- 3.4. Seletivismo, clientelismo nho do governo. e a proliferação de “gatos” É muito claro que há gatos no transpor- e “meias-entradas” te público, no saneamento, nos derivados de petróleo, e mesmo na cultura. Esses ga- prática de políticas não horizontais, tos mais sofisticados às vezes são descritos Apara o bem ou para o mal, cria diversos como “subsídios cruzados”, como poderiam tipos de distorções relacionadas com a viola- ser designados como “impostos ocultos”, e ção do princípio da igualdade diante da lei e geralmente seu propósito é favorecer grupos relacionado com o modo de se tratar os desi- especiais e criar uma clientela. Tenha-se cla- guais desigualmente, sobretudo nos assuntos ro: sempre que há uma “tarifa social” para sociais, terrenos normalmente hostis para o algum grupo especial, alguém está pagando liberalismo, áreas restritas às exceções, nas em dobro. quais as políticas sociais lidam com assuntos É fácil ver que a própria inflação tinha para os quais não se faz conta. essa natureza, pois era um imposto sobre Entretanto, a nova realidade de respon- os desprotegidos pela correção monetária, sabilidade fiscal que se estabelece depois de sempre magnanimamente seletiva, tal qual 1994 trouxe o incômodo desafio de se lidar subsídio cruzado provocando transferência com a escassez, definir prioridades e fazer de renda. Processo semelhante ainda preva-

18 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... lece no mundo do crédito, eis que o crédito especialistas estão de acordo com isso, mas “direcionado” é barato enquanto o livre é não se imaginava que a rejeição da sigla se abusivamente caro, sendo que as diferenças convertesse espontaneamente em algo pare- de spread estão inversamente correlaciona- cido com um programa e de enorme resso- das, como se o subsídio para os grupos com nância eleitoral e claríssima índole ideológi- acesso ao crédito barato fosse financiado por ca, conforme acima arguido. A negação do um “imposto” sobre o crédito em geral. petismo, em cada uma de suas disposições É claro que se poderá argumentar que é econômicas, parecia compor uma platafor- justo que os idosos não paguem certas con- ma liberal não apenas funcional como per- tas, ou as crianças, os índios, os agricultores feitamente lógica e adequada para os desa- e os tomadores de crédito habitacional. Mas, fios econômicos do país. o que não parece correto é que essas benes- É curioso observar que os analistas po- ses sejam feitas fora do âmbito do orçamento líticos, tendo em vista a polarização entre público, em que todos os direitos devem se PSDB e PT em todas as eleições desde 1994, apresentar em conjunto, a fim de se subme- imaginaram que o antipetismo fosse desa- ter às restrições orçamentárias decorrentes guar no PSDB. Muitos previram a repetição da responsabilidade fiscal e às prioridades desse duelo, de modo a refletir um padrão já determinadas pelos representantes do povo. amadurecido, e, com isso, perderam de vista Não é por acidente que os “gatos” e es- uma sutileza absolutamente vital para o mo- quemas seletivos em geral entrem para o mento: o grande inimigo histórico do PT não imaginário das pessoas como privilégio era o PSDB, mas o liberalismo. discricionariamente concedido, frequente- Tanto que, desde sempre, para desancar mente em esquemas de clientela ou pior. É os tucanos, o PT os magoava além da conta nesse contexto que programas horizontais chamando-os de “neoliberais”. Era o supre- como o Bolsa Família parecem muito mais mo insulto, o maior dos constrangimentos, adequados que, por exemplo, os programas era o que fazia os tucanos “autênticos”, os sociais implícitos no sistema previdenciário, fundadores, ex-constituintes, baixarem a que produzem mais desigualdade, ao invés cabeça e consumirem-se em dúvidas. Essa de corrigi-la. forma de bullying se estabelece na primei- A horizontalidade implícita num orça- ra presidência tucana e prossegue nos anos mento universal veio se tornar um impera- subsequentes de forma a produzir um curio- tivo, geralmente entendido como uma pauta so e paradoxal sentimento de ambiguidade liberal, face ao descontrole nos tratamen- quanto às realizações tucanas no campo das tos desiguais e compensatórios, fartamente reformas. apropriados pelo rent seeking. Entretanto, o PSDB enfrentou dois pro- blemas que o subtraíram dessa polarização. 4. O antipetismo redefine o liberalismo O primeiro foi a tibieza ao enfrentar escân- no Brasil dalos entre seus filiados, o que o colocou em posição semelhante a todos os outros ão parece haver dúvida que o grande partidos da “política velha”, incluído o PT. Neixo unificador da vitória eleitoral de O segundo era ideológico e vinha de longe. Jair Bolsonaro foi o antipetismo. Todos os Em vez de caminhar na direção do libera-

...... a primavera liberal ...... 19 lismo, nesse formato aclimatado – conforme Paulo Guedes foi um adorno importantíssimo definido pelo próprio PT, inclusive para con- para a campanha de Bolsonaro e o símbolo frontá-lo –, o PSBD resolveu ser um outro do vitorioso casamento de conveniência entre PT, mais ameno e ilustrado, mas sem nun- o antipetismo e o liberalismo. No momen- ca perder a sensação de que eram partidos to em que se desenha o ministério do novo irmãos, separados ao nascer. Não é segredo presidente, contudo, o acessório se tornou que muitos dos maiores líderes tucanos pos- essencial, um superministério, com poderes suem afinidades confessas com o PT, que que nenhum outro titular da economia jamais tentaram em diversos momentos aproximar desfrutou, e uma filosofia econômica funda- as legendas e que repetiram este exercício mental para o destino da nova presidência. recentemente em torno da frente democrá- Ainda que pudéssemos identificar deter- tica contra Bolsonaro proposta por Haddad. minações profundas para essa primavera li- O fato é que o antipetismo, ao menos no ân- beral, tudo parece efêmero e acidental, ainda gulo econômico, não era mais o PSDB, mas que convicto. Bolsonaro não tinha qualquer o liberalismo, e todas as outras causas que o ideia sobre economia, terceirizou o assunto PT atacou durante todos esses anos, incluído e agora parece refém da eficácia desse pro- o conservadorismo nos costumes. grama liberal para lhe assegurar bons núme- O vazio foi ocupado por Jair Bolsonaro, ros para a economia, aos quais está associa- que se apropriou do antipetismo inclusive do o seu sucesso, ao mesmo tempo em que o por que foi capaz de confrontar o PT várias liberalismo parece também refém desse pre- oitavas, além do que os bons modos permiti- sidente polêmico e cheio de idiossincrasias. riam, penetrando profundamente no terreno A dependência mútua é um mero incômodo do grotesco. A partir dessa posição, e diante nesse momento de glória para o candidato de perspectivas eleitorais imensas, Bolsona- recém-eleito e para os liberais, experimen- ro foi buscar o seu economista liberal, a fim tando um inesperado chamado do destino. de complementar a sua “oferta eleitoral”. Mas, pode virar um pesadelo para ambos se Não há dúvida de que o liberalismo de a economia não responder.

20 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... Conservadores e Liberais

Denis Lerrer Rosenfield

deias orientam ações que tanto podem presidida por certas ideias que orientam, en- conduzir ao bem coletivo, por mais va- tão, a nossa escolha. Faz-se então uma espé- Iriadas que sejam as suas significações, cie de retrato do que é tido por real. Quanto quanto podem conduzir à anomia social e, mais apurado for o recorte que nos dá aces- em casos mais graves, a crises institucio- so aos fatos, mais chances se oferecerão a nais. Decisões políticas estão baseadas em uma decisão exitosa. Ou ainda, quanto mais ideias, por mais variáveis que essas sejam. precisa for a “realidade”, selecionada por O quadro de ideias que tínhamos até esta úl- assim dizer, mais próxima estará dos fatos tima eleição era amplamente dominado pela retratados. Se um médico não bem fizer o esquerda, seja em sua vertente dita social- diagnóstico de uma doença, confundindo-se democrata, seja em sua vertente petista, que nos sintomas e em certas abordagens, de ne- remonta à experiência comunista do século nhuma eficácia serão os remédios prescritos. XX, de cunho revolucionário, embora o PT O quadro eleitoral mudou a face do país. tenha oscilado em assumir explicitamente Novos parlamentares, novos governantes. esta tradição. Eram, portanto, essas ideias Os padrões que vinham orientando a condu- que norteavam o processo decisório político. ta dos políticos sofreram uma brusca trans- Decisões políticas são tomadas segundo formação, desde a importância da televisão, determinados padrões de pensamento que que perdeu a sua força em detrimento das orientam nossas escolhas. Há diagnósticos redes sociais, até a afirmação do antipetis- de situações que seguem determinados crité- mo como ideia transformadora. A ideologia rios e concepções, que selecionam dos fatos de esquerda perdeu a sua aderência, abrindo aqueles aspectos que ganharão, propriamen- espaço para a emergência de novas forças. te, o nome de realidade. Aquilo que consi- Forças essas que começam a preencher o deramos como “realidade” é um recorte que vácuo de ideias deixado pelo PT e por seus fazemos dos fatos segundo uma abordagem partidos e movimentos satélites. Mais par- ticularmente, ainda, não estamos diante de Denis Lerrer Rosenfield é professor titular do Departa- uma mera transição de um governo a outro, mento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), autor de diversos livros em português, mas do surgimento de um outro que expõe francês e espanhol, articulista do jornal O Estado de S. Pau- uma natureza própria, em muito distinta do lo, consultor de empresas e entidades empresariais. Publi- cou em 2018 o livro “O Estado fraturado: reflexões sobre a anterior. Ou seja, estamos diante não apenas autoridade, a democracia e a violência”, TopBooks. de uma mudança de governo, mas de um

...... conservadores e liberais...... 21 exercício de poder de outro tipo. e PSDB, como se o destino da sociedade Agora, nesta última eleição, é como se brasileira se reduzisse a optar entre uma a máscara do PT tivesse caído, adotando o social-democracia tucana e um partido que, partido um alinhamento com o “socialismo mascaradamente, dizia seguir a democracia, do século XXI", para além de sua histórica apesar de algumas tendências suas, genui- afinidade política com Cuba. O desprezo namente, sinalizarem para uma forma de pelas regras democráticas e constitucionais, social-democracia. Entretanto, esses últimos personificado na narrativa do “golpe” e da não prevaleceram. Note-se que os tucanos “perseguição política” de Lula, condena- tiveram o objetivo de trazer para o Brasil do em quatro instâncias do Judiciário, bem a experiência do trabalhismo inglês2 e a da ilustra o desrespeito ao Estado de Direito. É social-democracia alemã, embora não usu- como se a Constituição e a lei a eles não se fruíssem de nenhuma base sindical, ao con- aplicassem. Mais concretamente, a novidade trário de seus congêneres europeus. Suas do “socialismo do século XXI” consiste em referências remontariam a Clement Attle, no sua manipulação das regras democráticas Reino Unido, ou a Eduard Bernstein e Willy para a abolição mesma da democracia, ou Brant na Alemanha. seja, as regras democráticas só servem en- quanto instrumentos para a conquista do po- PT e tradição marxista der, passando, depois, a serem desrespeita- das. A implantação da ditadura na Venezuela corre que o PT permaneceu arraigado, segue exatamente este percurso, levando sua Ode uma forma ou de outra, à tradição população à miséria e à violência. marxista e à sua vertente católica da Teo- Foi isto, precisamente, que o PT procu- logia da Libertação, fortemente criticada e rou fazer ao tentar levar um condenado pre- condenada, aliás, pelo Papa Bento XVI3 e, so à presidência da República, como se se antes, com o ainda Cardeal Ratzinger4. Cla- tratasse de uma ferramenta da “soberania ramente, seus referenciais teóricos não eram popular". Talvez o seja, para empregar uma os mesmos, apesar de os tucanos alimentarem expressão de Talmon1, a saber, a da democra- a esperança de uma eventual aliança entre cia totalitária, segundo a qual a dita vontade supostas almas irmãs, que não gozavam en- popular seria ilimitada, cabendo-lhe julgar o tre si de nenhuma fraternidade. Tanto isto é justo e o injusto, o bem e o mal, ao arrepio verdade que os petistas sempre consideraram de qualquer norma constitucional. Não ha- os tucanos como de direita, dizendo com isto veria nenhuma barreira legal a controlar o que a social-democracia não era uma corren- seu exercício. Seria ilimitada, por definição te de esquerda. Os tucanos foram vítimas de arbitrária, e o partido revolucionário seria a sua própria ilusão, reféns de seu autoengano. sua expressão e liderança. Ele “interpreta- 2 O antigo PTB, muito antes do PSDB, tinha suas referên- ria” a soberania popular, via emprego da de- cias ideológicas no trabalhismo inglês. magogia. Seria o seu veículo e o seu senhor. 3 Benoit XVI. Jésus de Nazareth: De l'entrée de Jérusalem As disputas eleitorais, então, articu- à la Ressurection. Paris, Editions du Rocher, 2011. lavam-se em torno da oposição entre PT 4 Instructions on Certain Aspects of the “Theology of Liberation”. Joseph Cardinal Ratzinger. Prefeito da 1 Talmon, Jacob L. Les origines de la démocratie totalitai- Congregação para a Doutrina da Fé, 1984, aprovada pelo re. Paris, Calman Lévy, 1966, Papa João Paulo II, que ordenou a sua publicação. 1984

22 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... Diria que, assim como Willy Brant terminou fazê-lo. Desprezaram profundamente senti- caindo por um obscuro episódio de espiona- mentos e concepções conservadoras da so- gem orquestrado e manipulado pela ex-Ale- ciedade. Enquanto “iluminados”, tentaram manha Oriental, pelos comunistas, os tucanos impor o seu “esclarecimento”. foram logrados pelos petistas. Neste meio tempo, valores básicos da so- Do ponto de vista eleitoral, os valores ciedade foram literalmente desconsiderados. de esquerda eram considerados como bali- O Estado passou a não se ocupar da segu- zas pelos dois contendores, com a preten- rança física e patrimonial das pessoas, como são de que seriam, supostamente, valores se este fosse um assunto social, que seria nacionais, por todos reconhecidos. Ser de resolvido “naturalmente” pela melhoria das direita era uma espécie de nome feio, algo condições sociais. O resultado foi o crime a ser evitado, inclusive, pelos que se reco- generalizado, havendo o politicamente cor- nheciam nesta corrente de pensamento. No reto adotado a posição de defensor dos direi- seu interior, operava uma espécie de jogral. tos humanos, aplicados preferencialmente à Os tucanos faziam uma leve inflexão à di- defesa dos criminosos. No período gover- reita, para capturar os votos dos descon- namental petista, o direito de propriedade, tentes com estes ditos valores “comuns”, valor fundamental de uma sociedade livre, enquanto os petistas faziam um movimen- foi claramente desrespeitado, principalmen- to equivalente em direção ao centro, como te, no campo brasileiro, graças às invasões na famosa Carta aos Brasileiros de Lula do MST e congêneres. A esquerda urbana em sua primeira campanha vitoriosa para aplaudia. Mais recentemente, o mesmo pro- presidente da República. Assinale-se que cesso implantou-se nas cidades brasileiras, este documento não foi jamais reconhecido através de uma outra denominação, MTST, enquanto documento partidário, não repre- não respeitando tampouco o direito de pro- sentando, ideologicamente, o partido. priedade nas cidades. Ambos movimentos, O jogral, durante muitos anos, tornou- de cunho marxista e revolucionário, foram -se extremamente confortável para os dois e são fortemente apoiados pelo PT e por atores, como se nenhuma alternativa exis- outros partidos de esquerda. Apenas para tisse fora deles. Acomodaram-se nos seus lembrar: o MST é uma criação da Comissão respectivos espectros ideológicos, como se Pastoral da Terra, braço esquerdista da Igreja não houvesse qualquer outra forma de vida Católica. Os tucanos, no governo Fernando inteligente. Espelhavam-se um no outro e Henrique, apreciavam estes movimentos de nada mais viam, recusando-se a ver que esquerda e criticavam fortemente os “rura- a própria sociedade estava mudando, não listas”, considerados como “latifundiários”. mais se adequando aos seus padrões men- A afinidade ideológica era explícita. tais. Tão confortáveis se sentiam que pas- Cabe aqui um parêntese a propósito da saram a considerar o “politicamente cor- apropriação esquerdista, ideológica, da dou- reto”, refúgio de uma esquerda que tinha trina dos direitos humanos. Um dos seus ficado momentaneamente órfã com a que- pontos históricos mais importantes consis- da do Muro de Berlim, como se fosse algo te na luta do célebre físico, Andrei Sakha- universal, algo, inclusive, que deveria ser rov, pai da bomba de hidrogênio soviética, colocado goela abaixo dos que resistiam a pelas liberdades em um regime comunista.

...... conservadores e liberais...... 23 Tornou-se ele um símbolo internacional da Brasil, em boa parte, são os que defendem luta pelos direitos humanos5. Segundo ele, políticas liberticidas em seus apoios à Ve- a significação desses direitos provinha do nezuela chavista e de Maduro e à ditadura combate ao totalitarismo, em sua opressão castrista em Cuba. São os mesmos que não das liberdades e dos direitos individuais, respeitam o direito de propriedade nem o dentre os quais destacavam-se a liberdade de Estado Democrático de Direito. São, ain- imprensa, de expressão e de circulação das da, os que apregoam o “controle social dos pessoas. E esta luta, por ser humana, extra- meios de comunicação”, que nada mais é polava os limites territoriais de um Estado do que uma ferramenta para introduzir a determinado, passando a vigorar enquanto censura e cercear a liberdade de imprensa e princípio válido para todos os Estados e, de expressão. Tal controle deveria ser mais neste sentido, humanos em sua acepção de bem denominado “controle partidário – pe- universais. Ou seja, estamos diante dos prin- tista – dos meios de comunicação”. Seria, cípios mesmos do liberalismo político em precisamente, o contrário do que era defen- sua formulação dos valores incondicionais dido por Sakharov. oriundos dos direitos individuais, particular- Ocorre que o PT, no governo da Repúbli- mente importantes na luta contra os regimes ca, demonstrou a sua clara natureza não de- totalitários. Logo, pode-se dizer que a defesa mocrática, apelando para o crime e a corrup- dos direitos humanos, neste contexto que lhe ção enquanto instrumentos de manutenção confere a sua verdadeira significação, pro- do poder. Abandonaram a antiga bandeira da vém dos combates pelas liberdades e contra “ética na política”, entregando-se de corpo e sua opressão e aniquilação totalitárias. Em alma à criminalização da política. O corpo outros termos, poder-se-ia igualmente dizer foi o aparelhamento do Estado em toda a sua que, em termos “ideológicos”, os direitos estrutura; a alma foi a renúncia a qualquer humanos seriam valores da “direita”, e não valor de moralidade pública e de apreço da esquerda. pela democracia, pelo Estado Democráti- co de Direito, como de validade universal. Luta pelos direitos humanos apropriada O Estado passou a ser tido por uma espécie pela esquerda de “coisa sua”, tratando os seus opositores como inimigos, potencialmente, portanto, a ra, a luta pelos direitos humanos foi serem eliminados. Não é mera coincidência Oapropriada pela esquerda, transferin- que seus opositores foram considerados nas do-a para uma luta pelas minorias e, mais últimas eleições “fascistas”, como se este particularmente, tornou-se um instrumento opróbrio os desconsiderasse moralmente e contra os direitos individuais e a própria de- os inviabilizasse politicamente. É o célebre mocracia, no apoio a “movimentos sociais” lema petista do “nós” contra “eles”. Na ver- de tipo revolucionário, que lutam pelo “so- dade, tal formulação nada mais expressa do cialismo”, forma, hoje, mais palatável para que sua difícil convivência com o outro, não a opinião pública do “comunismo”. Isto o reconhecendo. Não consegue nem convi- é, os defensores dos direitos humanos no ver com seus semelhantes, como bem de-

5 Talmon, Jacob L. Mission and Testimony. Brighton, mostraram todas suas jogadas moralmente Chicago, Toronto. Sussex Academic Press, 2015. desprezíveis contra Ciro Gomes e Marina

24 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... Silva nesta e nas últimas eleições, pois seu economia. Note-se que estamos utilizando único objetivo era hegemônico: impor a sua as noções de conservadores e liberais em sua própria posição. acepção inglesa, a la Hayek, e não america- O cenário muda com a atual eleição. A na, em seu significado local de social-demo- polarização PSDB/PT desaparece, esse úl- cracia. Ora, a campanha finalmente vitoriosa timo partido ainda conseguindo chegar ao de Jair Bolsonaro ancorou-se no antipetismo, segundo turno. Note-se, aqui, que tal “feito” enquanto defendendo “não valores” contrá- se deve à região Nordeste e aos setores de rios à vida social e política, como a corrupção baixa renda e escolaridade; ou seja, os “pro- e a imoralidade pública, introduzindo os seu gressistas” estão enraizados nos setores me- próprios valores ancorados nos costumes, na nos escolarizados e de renda até um salário moral e na religião, como os da luta contra o mínimo. Os “esclarecidos” apoiam-se nos aborto, a defesa da família, o direito à posse menos “esclarecidos” da população brasilei- de armas, o combate à ideologia de gênero ra, os que penam em sua labuta pela sobrevi- nas escolas, entre outros. Ao lutar contra a vência e nem conseguem ler adequadamen- criminalidade generalizada e pelo direito à te. Os setores verdadeiramente esclarecidos autodefesa e à segurança pública, resgatou da sociedade brasileira abandonaram os seus valores e princípios que fazem parte, confor- líderes iluminados, com as ressalvas de sem- me ensinava Hobbes, da própria constituição pre de artistas que só a eles representam. do Estado. Acrescente-se, ainda, que a mon- No primeiro turno, tivemos a novidade tagem do novo governo já mostrou a sua afir- do deputado Jair Bolsonaro, que defendeu mação de princípios liberais, concernentes à ideias conservadoras, e do empresário João economia de mercado, a menor intervenção Amoedo, que se reivindicou de ideias libe- estatal, a privatizações e ao controle social rais, embora esse último tenha evitado se da moeda via Banco Central independente. comprometer com temas controversos de Entendeu o novo presidente que sua tarefa costumes como o do aborto. Contudo, o que consiste na síntese entre valores liberais e importa aqui ressaltar é que valores conser- conservadores, na acepção própria que lhes vadores e liberais passaram a ser represen- está conferindo. tados eleitoralmente, expondo um cenário Esta síntese entre valores conservadores diante do qual tanto os tucanos quanto os e liberais não é estranha ao próprio pensa- petistas ficaram desorientados. Os tucanos mento conservador, pois o próprio Burke afundaram enquanto os petistas sobreviven- adotava, em economia, as posições de Adam tes apegaram-se a uma narrativa inverossí- Smith6. Conservadores em relação à tradição mil, procurando desresponsabilizar-se de e às regras institucionais existentes podem seu imenso fracasso na gestão da coisa pú- perfeitamente conviver com uma economia blica, com enorme desequilíbrio fiscal, PIB de mercado livre e concorrencial, baseada de crescimento negativo, inflação fugindo no cumprimento dos contratos e na segu- do controle e juros nas alturas. A corrupção rança jurídica. Contradições podem surgir tomou conta da política. entre conservadores e liberais, mais explici- A direita mostrou uma diversidade pró- tamente, quando esses últimos trazem suas pria, seja em relação aos costumes e aos va- 6 Kirk, Russel. The Conservative Mind. BN Publishing, lores morais e religiosos, seja em relação à 2008. P. 19.

...... conservadores e liberais...... 25 posições para os costumes, defendendo, por tabelecimento da autoridade estatal no país. exemplo, o direito ao aborto, o casamento A questão pertinente será, então, não homossexual e a ideologia de gênero, en- somente a de como a democracia é vista a quanto manifestações mais amplas da li- partir de um determinado conjunto de re- berdade, porém apenas coincidindo politi- gras, mas também a de se esse conjunto é de camente com as posições de esquerda, que natureza a preservar o Estado e a conservar recusam, precisamente, o sentido amplo da a sua autoridade. A ordem social e política liberdade, mormente em suas acepções polí- não nasce de uma suposta “boa” natureza ticas e econômicas. humana, que seria capaz de produzir de uma O pensamento conservador, por sua forma espontânea o “bom” ordenamento so- vez, pode ser igualmente dito em diferen- cial, mas de como um ser humano belicoso, tes acepções. voltado predominantemente para a sua satis- fação própria, vem a ser controlado por um A autoridade estatal conjunto de regras imposto por um Estado, que nasce com a disposição central de assu- primeira que nos interessa caracterizar mir o controle da violência, regrando-a em Adiz respeito ao exercício da autoridade seu emprego. A mentalidade militar, assim estatal, ou seja, à conservação da ordem ins- como a conservadora, parte de um pessi- titucional e constitucional vigente, tal como mismo em relação à natureza humana, nada esta concepção se encontra particularmente predispondo, conceitualmente, ao otimismo. presente no estamento militar, avesso que é Dito ainda de outra maneira, a mentalidade à desordem, à anomia e ao descontrole da militar seria de “direita” ao enfatizar o orde- violência. Huntington bem formula este namento público e o exercício da autorida- ponto: “O homem da ética militar é por es- de, não tolerando a desordem e as irrupções sência o homem de Hobbes”7. Ora, tal for- de violência. mulação é particularmente esclarecedora Os valores. A segunda acepção do pen- não apenas em relação à ética militar, mas à samento conservador que nos interessa res- sua visão de mundo e de orientação na vida saltar concerne aos valores: valores morais, pública. Segundo essa, o ser humano é pro- da tradição, da família e da religião. Cada penso ao egoísmo, ao conflito e à violência, uma destas acepções veicula significados devendo, pois, ser regulado e controlado por históricos específicos que dizem respeito às um Estado forte. Não se trata apenas do que diferentes histórias de cada país. Se tradi- isto significa no caso específico da guerra, ções, por exemplo, são diferentes, o mesmo em que tal formulação encontra toda a sua se pode dizer dos seus valores correspon- pertinência, mas do modo mediante o qual dentes. Ora, isto igualmente vale para os a vida política é concebida, com destaque valores morais, familiares e religiosos, bas- sendo dado, então, ao conceito de autorida- tando observar a própria diversidade das re- de política. A forte presença de militares no ligiões, cada uma delas com suas histórias governo Bolsonaro, em postos chaves, bem particulares, veiculando diferentes normas, mostra a sua preocupação central com o res- regras e liturgias. Neste nosso último pro- cesso eleitoral, constatou-se o forte com- 7 Huntington, Samuel P. O Soldado e o Estado. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 2016, p. 86. ponente político dos valores em geral, com

26 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... especial predominância aos relativos aos cro seja algo a ser condenado. Condenação costumes, à moralidade pública e à famí- do lucro que, aliás, encontramos tanto em lia. Os evangélicos, em particular, fizeram correntes conservadoras quanto de esquerda. valer o seu voto, escolhendo um candidato, No Brasil, em particular, algo que ficou no caso, Jair Bolsonaro, que correspondes- particularmente claro na escolha dos novos se a esta sua concepção. Insurgiram-se con- ministros da Educação e das Relações Ex- tra a influência da ideologia de gênero nas teriores, ganha um complicador particular, escolas, contra o aborto em função de sua na medida em que a defesa dos valores vem ideia própria de vida intrauterina e contra a acoplada a uma concepção conspiratória do criminalidade indiscriminada, propugnan- mundo, que seria controlado e manipulado do, ainda, pelo direito à legítima defesa. pelos agentes do globalismo e do “marxismo Quisera aqui frisar que, embora se possa cultural”. Uma coisa é a defesa dos valores, caracterizar esta pauta normativa como an- outra diferente é submetê-los a um grande tipetista, contra o politicamente correto, ela esquema conspiratório mundial, que teria possui uma significação claramente positi- centros decisórios. O mundo estaria sub- va de afirmação de valores, e não somente metido a uma luta de tipo maniqueísta, com negativa em relação à outra posição. as forças do “mal” procurando controlar as Observe-se que a pauta conservadora consciências individuais e, em particular, os se contrapõe aqui à pauta liberal. Liberais, agentes políticos. Ou seja, o mundo estaria normalmente, pelo menos em uma de suas submetido a uma finalidade voluntarista de acepções, propugnam pela relatividade dos alguns poucos centros de poder, que expan- valores, não aceitando que lhes seja confe- diria os seus tentáculos sobre todos os Esta- rida uma validade absoluta, tanto no nível dos. Trata-se de um conservadorismo de tipo religioso quanto no nível da tradição. A religioso, misturado com um embasamento própria significação liberal nasce do rompi- de tipo político, fundado, por sua vez, em mento com poderes arbitrários e/ou absolu- uma doutrina conspiratória internacional. tistas, o que significa dizer que não admite Haveria uma manipulação global de instau- sua base de sustentação em valores de tipo ração do comunismo, com o apoio de forças religioso, por exemplo. Lutou, isto sim, pela econômicas capitalistas, liberais nesta acep- mais completa separação entre o Estado e ção. Neste sentido, torna-se também antili- a Igreja, não aceitando, de forma alguma, beral ao se posicionar contra a globalização a ingerência desta última nos assuntos pú- como se fizesse parte de uma conspiração de blicos. Sustenta ainda ela, no nível do com- esquerda, enquanto, para os liberais, o livre portamento individual, em que as pessoas comércio é um valor inegociável. Já o gran- têm o direito de perseguir os seus próprios de liberal francês, Benjamin Constant, dizia interesses particulares, segundo regras acei- que o livre comércio e o seu desenvolvimen- tas por todos, de modo que o desejo de cada to tornariam a guerra algo desnecessário, um possa adequar-se aos desejos dos outros. inútil em certo sentido. Não parte ela, ainda, da concepção de que A questão torna-se ainda mais complexa os homens são pecadores e, portanto, devem quando são aplicados estes valores conserva- abdicar dos desejos materiais, da concupis- dores, os tradicionais e, mais especificamen- cência, nem consideram tampouco que o lu- te, os conspiratórios, à educação e às relações

...... conservadores e liberais...... 27 exteriores. Na primeira, torna-se evidente a Estado se encontra em um “estado de na- sua ineficiência, pois não se pode reduzir a tureza” em relação aos demais, afirmando educação a uma pauta normativa de valores, seus interesses específicos e estando, sem- por mais que tenham pertinência, dada a in- pre, preparado para o conflito e, no limite, trodução do marxismo e do politicamente para a guerra, embora privilegie os meios correto enquanto doutrinas educacionais e, diplomáticos do diálogo e da negociação. mesmo, universitárias. A falsificação da his- Diplomacia de um lado, força militar de tória brasileira encontrou ainda um terreno outra. O espaço para a afirmação de valo- particularmente fértil, com a ideologização res é por demais restrito, sobretudo se se de textos didáticos ou das provas do Enem. pautar por valores universais e abstratos, Não foram poucos os estudantes que tiveram mormente ainda se embasados em uma de responder errado a perguntas históricas e cruzada religiosa pelo mundo. A diploma- sociais para acertarem na aprovação dos exa- cia deve estar a serviço dos interesses par- mes. Na verdade, tinham de acertar segundo ticulares de cada Estado, posicionando-se, a ideologia dos seus professores, ao arrepio assim, no tabuleiro internacional, e não da realidade. Contudo, a questão educacional se submeter à suposta fraternidade de es- e universitária é muito mais ampla, envol- querda, nem tampouco a uma mensagem vendo uma educação voltada para o mercado de tipo religioso, que deveria afirmar-se de trabalho, para o sucesso profissional, con- segundo os valores tidos por ocidentais. forme os interesses particulares de cada um. Metternich9, o célebre chanceler, em seu A política de ensino não pode ficar restrita a trabalho de defesa dos interesses do impé- uma disputa de valores conservadores contra rio austro-húngaro, pautava a sua conduta liberais ou contra a esquerda, pois o país tem diplomática pela conservação do atual es- urgências científicas, tecnológicas, sociais, tado de coisas. Isto porque o seu próprio de produtividade e de crescimento muito Estado estava na iminência de sofrer aba- mais prementes. Teorias conspiratórias são los ou, mesmo, de ser dissolvido devido, aqui, especialmente, de nenhuma utilidade, interiormente, ao fato de ser constituído valor esse, aliás, liberal. por diferentes nacionalidades que, então, no cenário mundial, procuravam afirmar-se Dificuldade maior nas relações exteriores politicamente, com o intuito de se tornarem Estados. Numa fina ourivesaria, procurava o que diz respeito às relações exte- conservar o seu status quo interno e externo, Nriores, a dificuldade aumenta ainda em um contexto internacional de extrema mais. O seu domínio é o dos interesses turbulência. Em particular, a França, porta- particulares de cada Estado, segundo as dora dos novos princípios revolucionários, projeções geopolíticas de cada um, seguin- era uma ameaça, o que o fez trabalhar junto do suas próprias concepções de poder no a Napoleão através do arranjo de um casa- cenário mundial. Hegel8 já dizia que cada mento dinástico, visando conter os ímpetos do novo imperador. Procurou impor a sua 8 Hegel, G. W. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Paulo Meneses, Agemir Bavaresco, Alfredo Moraes, 9 Kissinger, Henry. A World Restored. Metternich, Danilo Vaz, Greice Ane Barbieri e Paulo Roberto Castlereagh and the Problems of Peace, 1812-1822. Konzen. Unisinos, Loyola e Unicap, 2010. London, Phoenix, 2000.

28 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... própria pauta conservadora, sabedor de que tica e, mais particularmente, o das relações não tinha força para impor a sua vontade mi- exteriores, não é o de declarações abstratas, litarmente. As suas negociações faziam-se por mais tentadoras que possam ser do ponto tanto com os revolucionários quanto com de vista moral e, mesmo, religioso. O terre- os profundamente religiosos, como o tzar no da política é o do choque, do conflito e da da Rússia, homem particularmente devoto. luta, muitas vezes caracterizado por embates Para ele, o fundamental consistia na conser- entre direitos divergentes ou opostos procla- vação das instituições austríacas, colocando mados pelas partes contendoras, exigindo, a sua imensa habilidade diplomática na pre- por isto mesmo, um profundo conhecimento servação do status quo. das circunstâncias, de suas peculiaridades, Talmon observa, a propósito de outro assim como das especificidades de cada uma chanceler da época, Castlereagh, colega de destas reivindicações de “direitos”. Neste Metternich, em uma formulação sua relativa sentido, ela visa ao compromisso entre os à Santa Aliança, que a Inglaterra não deve- direitos conflitantes. ria dar um cheque em branco às outras po- Eis o desafio hoje enfrentado pelo país, tências, o que serviria de cobertura para re- com posições conservadoras e liberais sur- primir qualquer insurreição revolucionária. gindo enquanto condutoras das ações públi- Embora profundamente conservador, não cas e de seus processos decisórios, em um partiria em uma cruzada contra os revolucio- novo governo que apresenta uma outra na- nários franceses, pois, para ele, interessava tureza política. De seu sucesso ou fracasso, sobretudo o equilíbrio mundial, que favore- depende que o país recaia ou não na velha cia os interesses particulares de seu próprio oposição entre direita e esquerda, cujos ter- Estado. De acordo com o pragmatismo in- mos seriam ditados por essa última. Houve, glês, a política exterior deveria sempre pesar do ponto de vista político e, particularmen- as circunstâncias e as condições particula- te, das ideias uma mudança de paradigma. res, cada fato merecendo um cuidado e um Quem não atentar para esta profunda trans- tratamento específicos10. O terreno da polí- formação corre o risco da desorientação po- lítica, social e econômica. Seria como um 10 Talmon, Mission, p. 337. médico errando no diagnóstico!

...... conservadores e liberais...... 29 Evolução do Marxismo e Involução da Democracia

Luiz Philippe de Orleans e Bragança

s mudanças políticas recentes nos seu pleito pelo poder político caiu por terra e EUA, na Europa e na América Lati- nunca mais voltou. Desde a queda do Muro A na têm colocado em cheque os sis- de Berlim, o marxismo na Europa se limi- temas representativos e as relações exterio- tou à cultura e à educação, sendo que nessas res, forçando algumas revisões para o século áreas as democracias liberais não criavam 21. Quais fatores influenciarão o diálogo po- restrições ou objeções. lítico nesse início de século? Ressalto dois Somente hoje, no entanto, no início do fatores importantes que afetarão a base da século 21, notamos como a cultura e a edu- nossa discussão política: a evolução do mar- cação foram uma plataforma ampla e pode- xismo e a involução da democracia. rosa para a política. O “marxismo cultural” originário da Escola de Frankfurt nasceu Evolução do marxismo: cultural e global como uma crítica a todos os pilares da civi- lização ocidental: religião, indivíduo, famí- pós a queda do Muro de Berlim, em lia, propriedade, constituição, nação-estado, A1989, julgava-se que o marxismo e a es- etc. O marxismo cultural é utilizado desde querda radical estavam terminados. Do pon- o pós-Segunda Guerra Mundial como braço to de vista político europeu isso ocorreu. A auxiliar do marxismo político, mas somente esquerda revolucionária se retraiu politica- com a queda do Muro de Berlim é que ele se mente em todos países do ocidente. Nos paí- torna a ferramenta central. ses do Leste Europeu, que protagonizou dita- No marxismo cultural, crianças e jovens duras comunistas ferozes, a deterioração foi são o alvo e os que mais sofrem seus efeitos mais dramática. Alguns países do Leste Eu- de maneira mais direta e intensa. Nasce com ropeu chegaram a banir a ideologia marxista o intuito de mudar a sociedade pela raiz, e agremiações comunistas no início dos anos propagando uma versão alternativa de valo- 1990, como foi o caso da Ucrânia, Bielorús- res e narrativas históricas, sociais, políticas sia, Romênia, Látvia, Lituânia e Moldávia. e econômicas. Todos os partidos da esquerda Na Europa ocidental, os partidos comunistas se beneficiam do marxismo cultural. Os par- não foram banidos, mas a legitimidade de tidos de esquerda, que promovem o socialis- mo via incremento gradativo da burocracia,

Luiz Philippe de Orleans e Bragança é empreendedor, ativista notadamente os propagadores da social-de- político e deputado federal pelo PSL/SP. mocracia, é que têm sido os maiores benefi-

30 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... ciários, exatamente por serem pragmáticos e capitalismo do que para criar mercados in- não revolucionários. ternos competitivos nos países emergentes. No período seguinte à queda do Muro de Várias outras teorias e pautas globais Berlim, foi a burocracia, e não a revolução, surgiram e se agregaram a esta desde então. que se tornou o único caminho viável para Nos dias de hoje, muitos de nós nos depa- implementar o socialismo. Na retórica social- ramos com algumas desses pautas globais -democrata a função da burocracia é atacar diariamente na mídia, por exemplo: aqueci- as “injustiças sociais” criadas pelas narrati- mento global, migração, direitos humanos, vas do marxismo cultural. Dentro da lógica pobreza, etc. Pois bem, o que não percebe- social-democrata, a regulamentação de todos mos é que a solução proposta pelos globalis- aspectos da vida do ser humano é a maneira tas para erradicar esses “problemas globais” certa para reduzir essas diferenças sociais. O é similar à solução para erradicar as dife- método socializante dos sociais-democratas renças sociais de um país propostas pelos tem sido tributar “excessos”, regulamentar sociais-democratas: tributação, burocracia e comportamentos e controlar escolhas. Esse regulamentação e, é claro, a fortificação de processo reforça o controle central. um poder global central capaz de implemen- Mas, essa lógica não se limitou ao con- tar tudo isso. trole de um país e de uma sociedade. A ló- Quando observamos o contexto global gica do marxismo cultural tem um paralelo através da lógica marxista da “luta entre que se aplica na esfera internacional. classes”, verificamos um universo paralelo Na esfera internacional não há poderes fértil para a existência de sua cara-metade efetivos capazes de aplicar leis em todos global: “luta entre nações”. E sim, vale notar países. Nunca houve e esperamos que isso que vários intelectuais marxistas agem no nunca se materialize. No entanto, é necessá- contexto global desde a criação da ONU, no rio compreender a existência de forças inter- final de 1945. nas e externas dos países que trabalham para Similar à forma como o marxismo cultu- tal objetivo. Segue. ral funciona indiretamente na política, atra- A diversidade de interesses das nações- vés da mudança cultural e do conteúdo aca- -estados do mundo, cerca de 200 países re- dêmico, o “marxismo global” das agremia- levantes, é mais ampla do que a diversidade ções supranacionais age indiretamente pela contida em um só país. Nações têm interes- influência política. Ou seja, a maioria dessas ses díspares, pois vivem momentos evoluti- entidades supranacionais não possui víncu- vos singulares. Muitas dessas diferenças são los explícitos com partidos políticos, mas visíveis. Dessas desigualdades surge toda preferem usar ONGs (organizações não go- sorte de teorias para “pacificar” e “homoge- vernamentais) para criar legislação, sugerir neizar” as nações. e financiar sua aprovação em parlamentos de Uma dessas teorias foi a “teoria de de- diversos países. Não é coincidência que por pendência”, que influenciou países emer- afinidade ideológica os partidos sociais-de- gentes e do terceiro mundo a adotarem po- mocratas são os mais alinhados às demandas líticas restritivas aos interesses dos países dos globalistas nos países do ocidente. desenvolvidos. O intuito desse conjunto de As leis sugeridas por esses partidos afe- ideias era mais para limitar a expansão do tam mudanças que alinham cada vez mais os

...... evolução do marxismo e involução da democracia...... 31 países sob um só comando e influência. Em cionada para essa massa de eleitores inertes. alguns casos essas mudanças abrem o país O eleito desenvolve campanhas eleitorais para a interferência mais direta em questão cada vez mais dirigidas por marqueteiros de politicas públicas de toda espécie. Isso é profissionais, utiliza a estrutura da grande o que chamam de globalismo ou, pela coe- mídia e grandes partidos organizados com rência desse texto, “marxismo global”. inúmeros cabos eleitorais e recursos para Em resumo, verificamos no início do trabalharem a imagem de seus candidatos. século 21 como o marxismo político revo- Na democracia de massa prevalece o dis- lucionário deixará de existir como partido e curso de pautas sociais, pautas de classe ou método político efetivo, dando lugar a duas problemas globais, como por exemplo: fim outras ramificações que ganharão cada vez da fome e da pobreza, combate ao aqueci- mais força: o marxismo cultural e o marxis- mento global, estabelecimento da igualdade mo global. Estes agirão indiretamente na po- de gênero, paz mundial, etc. Todas as suas lítica e mais diretamente na sociedade. pautas são genéricas, ideológicas, com o Quanto mais os cidadãos se preocupam efeito de eliminar a percepção de fronteira com políticas nacionais de desigualdade so- de uma comunidade ou nação-estado. Implí- cial e com questões globais, maior será o po- cita na dialética dessas pautas está a quebra der central no país e a interferência externa. da percepção regional e a imputação da in- capacidade de ação da comunidade local ou A involução da democracia: era da nação em resolvê-las. democracia de massa No minuto em que o eleitor passa a crer que pautas de natureza ideológica e de âm- segundo fator que cria a base para a di- bito supracomunitário são mais importantes Onâmica política no século 21 será o fe- que pautas que afetam a melhoria de quali- nômeno da democracia de massa. São siste- dade de vida de sua comunidade local, ele mas nos quais a população majoritariamente tenderá a eleger candidatos que se propõem reage como uma horda amorfa aos estímu- a atacar esses “grandes problemas”. Nesse los de seus líderes políticos. Esse fenômeno momento, seu poder político fica diminuí- é caracterizado pelo distanciamento entre do, e o poder do político, o representante eleitor e eleito, dependência em serviços pú- eleito, aumenta. blicos e baixa participação da comunidade Esse mecanismo gera ainda mais centrali- local na resolução de problemas que afetam zação de poder e, por isso, passou a ser a ca- a comunidade. racterística política nos países com sistemas Nesse modelo, o eleitor é desmotivado a políticos centralizados. Considerando que o agir como agente político para a resolução sistema central fará sempre de tudo para se de problemas locais. Sua atenção fica vol- manter como força governante relevante, o tada para problemas distantes, nacionais ou mesmo é incapaz de ver o benefício de ter sua até mesmo globais, os quais ele é totalmente força diminuída. Via de regra, se o poder cen- incapaz de resolver. O eleitor passa a formar tral não mitigar a vida política das comuni- parte de uma massa, ou horda, e fica depen- dades locais, o centro político adquire rivais dente de representantes eleitos. políticos locais. Mitigando as forças políticas O eleito, por sua vez, faz campanha dire- locais o centro adquire dependentes.

32 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... Outro aspecto da democracia de massa gressistas ocidentais. O que caracteriza o é o presidencialismo. Poder executivo con- viés político do progressista? A defesa do centrado em uma só pessoa é mais forte e marxismo cultural e do marxismo global tende a criar centralização ao longo do tem- (globalismo como descrito acima) e a ado- po. A maioria dos países presidencialistas ção de uma política social-democrata de têm centralizado sistematicamente a tomada patrimonialização gradual dos meios de pro- de decisões. A função do presidente concen- dução, regulamentação de comportamentos tra, por natureza, o lado de representante do e centralização de políticas sociais. Estado e de governador do povo, e por expe- As eleições de 2018 marcarão o fim da riência, salvo raras exceções, presidentes se hegemonia progressista na representativi- comportam mais como governadores e me- dade política. Uma nova voz política foi nos como protetor das instituições. reintroduzida no poder executivo e no Con- Na América Latina, presidentes à frente gresso Nacional: a dos conservadores e li- de um poder centralizado têm gerado demo- berais. Extinta do diálogo político desde o cracias de massa. Esse é o modelo padrão do Brasil Império, a sociedade e os políticos se qual surgiram as ditaduras no Brasil e nos acostumaram a evitar se denominar publica- demais países da região. mente como conservadores ou liberais. Não Qual seria a alternativa? A real demo- mais, pois nas eleições de 2018 vários polí- cracia, aquela construída nos municípios, ticos foram eleitos exatamente por se posi- nas comunidades e nos distritos. É o mode- cionarem em uma dessas duas matrizes de lo distrital de exercer participação política, pensamento econômico e político. que sempre deu legitimidade aos poderes A partir de 2019, o diálogo político terá públicos e permitiu à sociedade civil par- que considerar esses aspectos que se torna- ticipar mais diretamente. A proximidade ram majoritário nas redes sociais e na so- entre eleito e eleitor, a transparência, a co- ciedade civil. Apesar da representatividade brança e a responsabilidade compartilhada política desses segmentos, num primeiro são as chaves para a constante validação e momento, não estar bem organizada, a pro- legitimação dos representantes. Somente fundidade e amplitude da onda conservado- com o modelo descentralizado, distritaliza- ra e liberal vão forçar instituições públicas, do, de representatividade política, é que se mídia, jornalistas, filósofos, professores, pode pensar em estabelecer um dia a real partidos e políticos da oposição a aprende- democracia. Qualquer outro arranjo leva rem a dialogar com esse novo segmento. ao predomínio da democracia de massa. O debate e o embate no século 21 A realidade progressista: Brasil de 1995 a 2018 emos, portanto, que o debate esquerda Vvs. direita no Brasil, no século 21, será Era Progressista no Brasil nasce com diferente. No lado da esquerda, veremos os AFernando Henrique Cardoso em 1995 partidos adeptos ao marxismo cultural, ao e termina com o fim do governo Temer em marxismo global sobrepostos num contex- dezembro de 2018. O modelo progressista to de democracia de massa que sempre ali- brasileiro seguiu o tom e a batuta dos pro- mentou ambos.

...... evolução do marxismo e involução da democracia...... 33 A direita que surge carrega consigo os Seria esperar demais que o debate atinja novos discursos dos conservadores e li- essa objetividade nesse primeiro momento. berais, que são opostos integralmente à A esquerda ainda predomina nas escolas, na realidade progressista existente. Ambos mídia, nos partidos políticos, nas autarquias prezam uma economia de mercado como de Estado, no funcionalismo público e até na força motriz do desenvolvimento, pouca mentalidade de muitos que se julgam conser- intervenção de Estado em aspectos sociais vadores ou liberais, e, por isso, irá resistir ir- e um governo local, não global, descentra- racionalmente. No entanto, o movimento que lizado, e próximo à realidade das famílias e elegeu Jair Bolsonaro e vários deputados, se- das comunidades. Não há nada na organiza- nadores, governadores em todo Brasil é real e ção política do Brasil de hoje em linha com surge para afetar mudança em todos os aspec- essa propositura. tos políticos, sociais e econômicos do Brasil. O embate é garantido. Eventualmente, Para os incomodados com essa nova rea- a esquerda e a direita acharão o caminho lidade e para os esperançosos com esse novo do bom senso, menos ideológico, e redu- movimento cabe a seguinte reflexão: o jogo zirão o debate a duas questões práticas político é feito de fluxo e refluxo. Conside- fundamentais: rando que a esquerda progressista é dona da realidade atual, é de se esperar que a entrada 1- Qual o dever do Estado e qual o dever da dessa nova visão conservadora e liberal se sociedade? A esquerda favorecerá o Es- dê por ondas graduais de introdução de polí- tado, enquanto a direita julgará em favor ticas de direita. da sociedade. Essa reflexão frustra quem é de esquerda, pois eles terão que inevitavelmente aprender 2- Caso seja do dever do Estado, qual é a a conviver com uma realidade crescente de competência (federal, estadual ou muni- direita, e frustra também quem é de direita, cipal) responsável? A esquerda favorece- pois terão que ter paciência e perseverança a rá o governo federal e a direita os gover- cada ciclo eleitoral para garantir a criação de nos municipais. uma nova realidade.

34 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... Desafios Internos e Externos Para o Novo Governo

Rubens Barbosa

governo que se iniciou em 1o de espera que sejam aprofundadas pelas ações janeiro enfrentará desafios inter- responsáveis e respeitosas de convivência O nos e externos e não terá muito entre o governo e a oposição nos próximos tempo para tomar medidas que permitam ao meses e anos. Brasil voltar a crescer, aumentar a geração Em termos macroeconômicos, o deficit de emprego e reduzir as desigualdades re- fiscal em crescimento imporá medidas de gionais e individuais. Não terá muito tempo contenção e redução dos gastos públicos. igualmente para, na política externa, reinse- O custo do Estado – alta carga tributária, rir o Brasil nos fluxos dinâmicos da econo- custo do financiamento, logística deficien- mia e do comércio exterior e para fortalecer te e burocracia – acarretou forte perda de a voz do Brasil no cenário internacional. produtividade da economia e da empresa Os desafios internos são representados nacional, tornando inadiável uma agenda por uma economia debilitada, recém-saída de competitividade, com reformas estrutu- de uma recessão que trouxe desalento e rais e medidas para reduzir o tamanho do mais de 14 milhões de desempregados e Estado. O futuro governo vai ter de reagir pelo novo capítulo na vida política brasilei- rapidamente na formulação e execução de ra que se inicia com a alternância de poder políticas econômica e comercial em conse- com um governo assumidamente de direita. quência da agenda econômica externa. A realização das eleições de forma transpa- Na frente interna, assim, a primeira rente e sem contestação é mais um exem- prioridade seria tomar medidas para criar plo da consolidação das instituições e da condições para a volta do crescimento e da manutenção da ordem democrática que se geração de emprego. É urgente aumentar a produtividade, sanear as finanças públicas e

estimular o investimento privado por meio Rubens Barbosa é membro do conselho de empresas e traba- lha como consultor de negócios. Entre outros cargos, ele é pre- de um ambiente de negócios que propicie a sidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Fiesp eficiência, o empreendedorismo e o cresci- (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), presidente mento. Para isso, serão necessárias medidas do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior para restabelecer a confiança dos empresá- – Irice, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo, e editor responsável da Revista Interesse Nacional. Foi rios nacionais e estrangeiros, dar segurança embaixador do Brasil em Washington e Londres. jurídica aos investimentos, criar as condi-

...... desafios internos e externos para o novo governo...... 35 ções para que o Brasil volte a crescer de 4% agências reguladoras e livrá-las de interfe- a 5% ao ano de forma sustentável e garantir rências políticas. O tempo para o gradualis- igualdade de oportunidades para todos. mo já se esgotou. O ajuste fiscal terá de ser O Estado brasileiro tem de ser refunda- imediato, do contrário a dívida pública bru- do. Apesar do seu gigantismo, o Estado não ta chegará a 100% do PIB (88% em 2018). conseguiu prover educação e saúde de qua- lidade e segurança pública aos brasileiros. Receita para o crescimento da economia O Estado sofre com a ação dos interesses corporativos e privados. Como foi prome- ara que a economia cresça, o governo tido na campanha eleitoral, espera-se que o Pterá de atuar simultaneamente para re- futuro governo possa garantir que o interes- duzir o tamanho do Estado, estimular a li- se público prevaleça acima de tudo e de to- berdade econômica e deixar que o sistema dos. O combate à corrupção e a redução da de preços funcione. Os empresários seriam violência deveria estar no topo da agenda. responsáveis pelos investimentos e gera- Entre as medidas mais urgentes que de- ção de empregos. Por outro lado, eles es- veriam ser tomadas, surge como inadiável tariam sujeitos à livre concorrência, o que a eliminação do deficit primário do setor significa eliminar barreiras à entrada aos público. Algum tipo de compromisso com negócios, garantir a igualdade de condi- uma meta para voltar a obter um superávit ções de acesso aos mercados e ao crédito, primário até o final do governo. Seria con- implementar controles eficazes contra mo- veniente restaurar o tripé macroeconômico: nopólios e cartéis e que a Justiça assegure superávit primário, taxas de juros fixadas o cumprimento rigoroso dos contratos e da pelo Banco Central para manter a inflação lei. Criar um marco regulatório com regras dentro de metas pré-fixadas e taxa de câm- confiáveis para que o setor privado brasi- bio flutuante. Com o governo quebrado, não leiro e o investidor estrangeiro invistam e haverá alternativa senão reduzir desonera- modernizem a infraestrutura seria uma se- ções e subsídios cruzados, créditos subsi- gunda prioridade. A terceira medida seria diados, isenções fiscais e proteção tarifária. promover uma ampla reforma bancária e do Nos primeiros dias de governo, o presi- mercado de capitais para estimular a con- dente Jair Bolsonaro deveria submeter ao corrência, reduzir depósitos compulsórios, Congresso projetos de reforma da previdên- eliminar créditos direcionados e poupança cia social, tributária, política e da reforma compulsória, permitindo que os bancos pri- do Estado. Medidas concretas deveriam vados e o mercado de capitais voltem a ser ser anunciadas para criar condições para a responsáveis pela expansão do crédito. Fi- execução de um amplo programa de privati- nalmente, e não menos importante, aprovar zações, concessões e PPPs e para extinguir reformas estruturais que aumentem a pro- estatais sem receitas ou que não possam ser dutividade total dos fatores. As principais vendidas. O ambiente de negócios poderia reformas incluiriam a abertura da economia ser significativamente melhorado com uma ao comércio internacional e a promoção de série de medidas visando à simplificação e uma reforma tributária que reduza os custos à desburocratização de processos para os ci- do nosso complexo sistema de impostos e dadãos e as empresas, além de fortalecer as crie o imposto sobre valor agregado (IVA).

36 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... Por outro lado, o presidente eleito Jair comércio, de segurança alimentar, acordo Bolsonaro se deparará com o mais imprevi- de serviços deveriam ser estimulados e am- sível e complexo cenário internacional des- pliados. Um dos grandes desafios da OMC de 1945: multilateralismo (ONU e OMC) e será a forma como serão tratadas dezenas globalização sob ataque com ameaça con- de acordos de livre comércio e as inúme- creta de uma guerra protecionista, colocan- ras regras que estão sendo nele incorpora- do em perigo a ordem liberal. das. As novas regras, em muitos casos, vão O cenário internacional experimentou além das existentes hoje na OMC e o que é mudanças de natureza tectônica, aceleradas mais grave, estão sendo definidas à margem pela crise financeira e econômica de 2008, da própria OMC. que abalaram os fundamentos da globali- Nesse contexto de grandes movimentos zação e do mercado. São exemplos dessas de transformação no comércio internacio- mudanças a gradual transferência do eixo nal, o Brasil esteve por mais de uma dé- econômico e político do Atlântico para o cada com uma equivocada estratégia de Pacífico com a volta ao centro do cenário in- negociação comercial. Colocando todas as ternacional da Ásia sob a liderança da Chi- suas fichas nas negociações multilaterais da na, novo motor do reordenamento produtivo OMC, o Brasil deixou de lado os acordos global; as cadeias globais de valor, a eco- bilaterais. O Brasil esteve na contramão das nomia do conhecimento com rápidas trans- tendências globais e isolado no grande jogo formações tecnológicas e a multipolaridade entre os países desenvolvidos na Ásia e no dos centros de poder econômico e político, hemisfério Norte. tendo como elemento principal o surgimento dos países emergentes como, em especial, a Brasil precisa se abrir mais China, a Rússia, a Índia e o Brasil. A desaceleração da economia global e a frente externa, espera-se que o go- do comércio internacional, com a perspec- Nverno procure tomar medidas para que tiva de recessão nos EUA a partir de 2019, o Brasil, uma das dez maiores economias bem assim com o crescimento do protecio- do mundo, recupere um lugar adequado no nismo, cada vez mais sofisticado, inclusive cenário internacional. Nossa participação por meio de barreiras técnicas, e a com- ativa nas relações exteriores é vital para aju- petição com produtos chineses são fatores dar a manter a paz, a democracia e o enten- complementares que afetam todas as eco- dimento na América do Sul. É também um nomias. O esvaziamento e a paralisia da elemento fundamental para o nosso esforço Organização Mundial de Comércio, devido de abertura econômica, reinserção global ao fracasso das negociações multilaterais do Brasil e de fortalecimento dos laços de da Rodada de Doha, e agora com os ata- cooperação internacional nos assuntos de ques de Trump e com a agenda de reforma segurança, meio ambiente e comércio ex- da instituição, agravam a crise do multilate- terior. O Brasil precisa se abrir mais para o ralismo. Os problemas com a aprovação de mundo, com previsibilidade para os empre- juízes para o Órgão de Apelação tornaram sários no setor privado, com o objetivo de o funcionamento da instituição ainda mais gerar ganhos de produtividade, competiti- complexos. Os acordos de facilitação de vidade e aumento da concorrência e como

...... desafios internos e externos para o novo governo...... 37 parte da estratégia de maior protagonismo ter o papel central na formulação e na exe- do país no cenário político global. cução de nossa política externa e atuar com O desafio é promover uma crescente in- autonomia na coordenação das políticas tegração do Brasil no comércio internacio- nacionais em todas as áreas de negociação nal, tanto no âmbito comercial quanto no internacional e regional, devendo levar em de serviços. Temos tido sucesso em atrair conta as reais necessidades da economia, investimentos estrangeiros diretos, mas po- da segurança, da defesa, do meio ambiente demos atrair muito mais ainda, dadas as di- e dos direitos humanos. mensões do Brasil e as oportunidades aqui As prioridades deveriam ser definidas à existentes. Os efeitos na evolução da eco- luz do atual interesse nacional e das trans- nomia global e do comércio internacional formações do cenário internacional no sé- impactarão as políticas domésticas de con- culo XXI, sem apriorismos ideológicos. tenção do deficit público e da realização das Parece evidente que os principais interes- reformas modernizadoras, que integram a ses estratégicos do Brasil se encontram na agenda de competitividade (reforma tribu- Ásia, em especial com a China, nos EUA tária, trabalhista, da previdência, reforma e na Europa. A integração regional deveria para reduzir o papel do Estado, simplificar merecer uma atenção especial, já que inte- a vida das empresas e facilitar o comércio), ressa ao Brasil ampliar a liberalização co- voltadas para o crescimento e o emprego. mercial, aprofundar os acordos vigentes e a Espera-se que o novo governo responda integração física. Em relação ao Mercosul, a esses desafios e busque restaurar eam- caberia acelerar a recuperação de seus ob- pliar a voz do Brasil no cenário internacio- jetivos iniciais e avançar nas negociações nal e reinserir o país nos fluxos dinâmicos com terceiros países. O relacionamento da economia e do comércio exterior. com a Venezuela deveria merecer atenção Políticas equivocadas nos últimos 15 especial pelo impacto sobre nossos interes- anos colocaram o Brasil em uma situação ses (tráfico de armas e drogas, refugiados, de isolamento nas negociações comerciais, dívida), assim como deveriam ser amplia- de atraso na inovação e tecnologia, de per- das as medidas de coordenação com nossos da de poder e influência, de perda de espaço vizinhos para proteção das fronteiras a fim no comércio internacional e de manufatu- de combater o tráfico de armas e de drogas. ras, além de ter crescido abaixo da média mundial e dos países em desenvolvimento. Ampliar ação diplomática Com uma política de Estado e com visão nos temas globais de futuro, a política externa terá de buscar rever a situação atual e encontrar um lugar as organizações internacionais, o Bra- adequado no mundo, tendo em mente a de- Nsil terá de ampliar e dinamizar sua fesa dos objetivos de longo prazo do desen- ação diplomática nos temas globais, como volvimento nacional. sustentabilidade, energia, tráfico de armas e Será um grave erro do governo retirar de drogas, combate à corrupção, bem como competências do Itamaraty na negociação nos novos temas, como terrorismo, guerra comercial e na promoção comercial com a cibernética, controle da internet e nas ques- saída da Apex. A chancelaria deveria man- tões de paz e segurança, (a ampliação do

38 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... Conselho de Segurança, operações de paz, acordo de salvaguarda tecnológica com os não proliferação). O Brasil tem de continu- EUA para viabilizar o Centro de Lançamen- ar a defender valores que prezamos inter- to de Alcântara, as medidas protecionistas namente, como a democracia e os direitos dos EUA, da UE, da China e da Rússia, as humanos, em especial na América do Sul. negociações dos acordos comerciais, a crise Os Objetivos do Desenvolvimento Susten- na Venezuela e a relação com o Brasil, os tável (ODS) deveriam servir como referên- problemas com os refugiados e as medidas cias no relacionamento externo brasileiro. para fortalecer o controle de nossas frontei- Condutas de governança de alcance global, ras, além da definição do que queremos do tais como o combate à corrupção, transpa- Brics, que se reunirá em nível presidencial rência no trato da coisa pública e adoção de no Brasil. Umas das mais urgentes providên- medidas de compliance no setor público de- cias será reagir à decisão do órgão de apela- veriam ser adotadas e estimuladas de parte ção da OMC sobre o pedido da UE e do Ja- do Brasil nas relações com países e com or- pão para mudanças da política de incentivos ganismos internacionais. O tema ambiental do setor automotriz e de informática. e do desenvolvimento sustentável deveria O debate econômico sobre a abertura merecer um lugar de destaque como um dos da economia ganhará espaço no início do principais ativos externos do Brasil. governo. Será importante que as medidas Apesar de declarações em contrário fei- a serem tomadas garantam previsibilidade tas na campanha, os interesses maiores da para os agentes econômicos privados. Para continuidade da política externa aconselha- tanto, a negociação de novos acordos co- riam que temas sensíveis, como a mudança merciais deveria ter um papel de grande re- da embaixada para Jerusalém e a relação levância, assim como a agenda de competi- com Taiwan, a saída do acordo de Paris so- tividade para a redução do custo Brasil (re- bre mudança de clima, do Mercosul e do forma tributária, da previdência, do Estado, Brics não prosperassem, pelas implicações do custo do financiamento, da logística e políticas e mesmo econômicas e comerciais. da facilitação de comércio e da desburocra- A campanha de descrédito do Brasil no tização), ao lado de uma reforma tarifária exterior, que começou com as versões do que elimine as distorções e as escaladas golpe com o impedimento da Dilma e con- tarifárias. Nesse contexto, a política em re- tinuou com a perseguição de Lula, com a lação ao Mercosul terá de ser repensada e liminar do comitê de direitos humanos da uma Conferência Diplomática, prevista no ONU, com a fraude da eleição sem o ex- Protocolo de Outo Preto de 1994, mas que, -presidente, será alimentada pela radicali- nos últimos 25 anos, nunca chegou a ser zação pós-eleição; se não for respondida convocada, deveria ser proposta pelo Bra- e desmontada no exterior, poderá afetar a sil, a fim de definir os rumos do grupo sub- credibilidade e a confiança no país. -regional nessas negociações comerciais Assim como na área econômica, o novo e reforçar os objetivos de liberalização do governo se defrontará no setor externo com comércio e a abertura de mercados. a necessidade de tomar decisões imediatas. O comércio exterior e a busca de investi- A agenda de temas pendentes não poderá mentos são urgentes prioridades da política esperar por muito tempo: adesão à OCDE, externa. Não se pode adiar uma nova estra-

...... desafios internos e externos para o novo governo...... 39 tégia de negociações comerciais bilaterais nal mais profunda. Esses acordos amplia- (acordos na região e fora dela), regionais rão as cadeias produtivas globais, em que o (Mercosul) e globais (Organização Mundial foco, ao contrário dos acordos negociados de Comércio) para pôr fim ao isolamento até aqui, são as regras existentes dentro do do Brasil, com ênfase na abertura de novos território de cada país-membro, relaciona- mercados e na integração do Brasil às ca- das com o comércio (competição, investi- deias produtivas globais com vistas ao cres- mento, propriedade intelectual, serviços, cimento econômico, ao aumento dos fluxos normas trabalhistas, meio ambiente) e que do comércio exterior e do investimento passarão a ser harmonizadas. externo visando à geração de emprego. De- De última geração, esse acordo será verão ser finalizada a negociação do Mer- modelo a partir de agora para os próximos cosul com a União Europeia e estimulados acordos comerciais que incluirão, além da os entendimentos com Canadá, Singapura, desgravação tarifária, regras que vão além Coreia e EFTA e com o novo grupo de pa- dos entendimentos multilaterais da OMC e íses africanos. As atividades de promoção incidem sobre políticas internas dos países. comercial e de captação de investimentos Estudos preparados pela FGV-Fiesp mos- em inovação e tecnologia deveriam ser am- tram que a quase totalidade delas é compa- pliadas por meio da Apex, que deveria per- tível com o regime jurídico nacional, com manecer integrada ao Itamaraty. a exceção de alguns aspectos das regras de investimento e de propriedade intelectual, Adesão ao acordo de que teriam de se ajustar ao nosso ordena- cooperação transpacífica mento jurídico. Quanto ao Brasil, ainda é cedo para an- omo uma iniciativa ousada, mas im- tecipar as consequências da entrada em vi- Cportante para ampliar as exportações gor do TTP, mas é certo que haverá desdo- nacionais, o novo governo poderia explorar bramentos afetando negativamente os inte- a possibilidade de o Brasil aderir ao acor- resses comerciais brasileiros: poderá haver do de Cooperação Transpacífica, integrada desvio de comércio com a substituição de pelo Japão, os países da Aliança do Pacífi- produtos agrícolas brasileiros por norte- co (México, Chile e Peru) e sete asiáticos -americanos e australianos, mais competi- (Austrália, Brunei, Darussalam, Singapura, tivos e preferenciais no âmbito da parceria. Malásia, Nova Zelândia e Vietnã). Com um Por outro lado, as novas regras impactarão PIB de US$13,5 trilhões e 14% da popula- futuras negociações do Brasil, a começar ção mundial, o TTP vai além de um acordo com a União Europeia, se forem levadas de livre comércio tradicional, limitado à re- adiante no próximo ano. dução ou à eliminação de tarifas e ao exa- Em face da nova realidade do comércio me das barreiras tarifárias e não tarifárias internacional, com inovações trazidas pelos (subsídios, antidumping), controladas nas acordos preferenciais de nova geração, bem fronteiras. O TPP e os outros entendimen- como dos avanços da integração regional tos, como o acordo entre os EUA e a União em outros continentes, é imperativo que o Europeia, inauguram uma forma de inter- Brasil aprofunde as mudanças havidas em dependência econômico-comercial regio- sua estratégia em relação aos acordos pre-

40 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... ferenciais. Mais ainda, avalie o impacto xa influência política e reduzida presença que os modelos preferenciais dos EUA e da comercial dos EUA, além da falta de uma UE, ao serem adotados pelos demais par- visão estratégica e de ações proativas por ceiros internacionais, causarão ao comércio parte do Brasil, cresceu a presença da Chi- externo do Brasil. na e da Rússia. Agora, até a Turquia amplia Uma das características da nova geopolí- também sua atuação a partir da Venezuela. tica global é o reforço do regionalismo. Nes- Declarações do presidente de que as re- se contexto, além da integração comercial, o lações com os EUA ganharão prioridade, Brasil deverá dar prioridade à integração fí- de Eduardo Bolsonaro de que o Brasil está sica na América do Sul e acelerar as obras de pronto a trabalhar com os EUA em todas as infraestrutura para abrir corredores às nossas frentes, não por alinhamento automático, exportações para o mercado asiático. O pro- mas por convicção de que há grande conver- cesso de integração regional, em especial o gência entre os objetivos e a visão de mundo Mercosul, e o relacionamento bilateral com das duas nações abrem caminho para uma os países sul-americanos foram aspectos da relação claramente afirmativa. O ministro política externa em que a retórica oficial foi Ernesto Araújo diz que “o céu é o limite mais efetiva do que os avanços concretos. O na relação bilateral e que temos de pensar Brasil tem de enfrentar o desafio de assumir grande para dar um salto qualitativo na apro- a liderança em nossa região e repensar o pro- ximação com Washington, o que permitirá cesso de integração e o Mercosul. fazermos coisas que seriam impensáveis”, O continente americano passa por signi- que se espera sejam mutuamente benéficas. ficativas transformações políticas e econô- micas que terão consequências na geopo- Eleição de Bolsonaro reforçará lítica regional. O governo de esquerda do parceria com os EUA México e as incertezas nas relações com o vizinho EUA, o governo de direita no Bra- omo desdobramento dessa nova rea- sil e seus efeitos sobre o entorno geográfi- Clidade, não será surpresa se os EUA co, o novo governo de Cuba, a deteriora- responderem positivamente aos acenos de ção das instáveis Venezuela e Nicarágua, aproximação de Brasília. Alto funcionário as dificuldades econômicas na Argentina, a da Administração Trump declarou que “há persistente baixa prioridade da região para um esforço consciente do governo america- a política externa dos EUA, são alguns dos no, vindo do topo da hierarquia, para uma principais elementos de uma gradual trans- aproximação com o Brasil. A percepção é formação das relações políticas, econômi- de que a eleição de Bolsonaro traz alguém cas e comerciais entre os países das Amé- disposto a ser parceiro”. A região não repre- ricas e com o resto do mundo. Na América senta qualquer ameaça à segurança nacio- do Sul, a partir da década de 1990, oito dos nal dos EUA. As questões de imigração, do dez países elegeram governos de centro- tráfico de drogas e a trinca da tirania trum- -esquerda e de esquerda. Em 2019, oito dos piana (Venezuela, Nicarágua e Cuba) não dez países serão governados por presiden- chegam a tirar o sono dos formuladores da tes de direita ou centro-direita. Ao mesmo política externa e de defesa em Washington. tempo, em função do vazio criado pela bai- Segurança, prosperidade e democracia são

...... desafios internos e externos para o novo governo...... 41 objetivos norte-americanos na região. Nos política na Venezuela. Interessa ao Bra- últimos dez anos, os EUA foram excluídos sil a ampliação do mercado regional que, das novas instituições que têm por atribui- em 2019, deve constituir-se em uma área ção acompanhar as relações entre os países de livre comércio. A ação do Brasil para a da região, como a Unasul e a Celac, com to- consolidação da democracia, de defesa e das as implicações políticas e diplomáticas de segurança poderia ser complementada que isso está acarretando. Washington pode com o melhor aproveitamento dos recursos perguntar como o Brasil e os EUA poderiam financeiros do Novo Banco de Desenvolvi- trabalhar juntos para tentar resolver algumas mento do Brics para projetos de integração questões de interesse geral no relacionamen- física na América do Sul, o que propiciaria to entre os países da região. o aumento do intercâmbio comercial entre Tendo sido embaixador nos EUA por todos os países da região. quase cinco anos, seguindo orientação dos governos FHC e no primeiro mandato de Brasil precisa de um modelo Lula, procurei desenvolver ações que resul- de acordos comerciais tassem em maior aproximação entre os dois países. Em termos de comércio, de investi- Brasil deve fazer política de sua cir- mentos e mesmo no cenário internacional, O cunstância geográfica. Com uma es- o Brasil só teria a ganhar com uma rela- tratégia externa, anunciada como “mais ção mais próxima da única superpotência assertiva e com objetivos claramente de- global. A condição para tanto será definir finidos”, a cooperação franca e direta en- muito claramente nossos objetivos e nossa tre Washington e Brasília poderá ampliar agenda nos entendimentos bilaterais. As as- as oportunidades bilaterais de comércio e simetrias em todos os setores entre o Brasil de investimentos e projetar o Brasil como e os EUA tornam difícil aceitar que os ob- o verdadeiro motor da região. Com isso, a jetivos globais e a visão de mundo das duas voz do país no cenário internacional ficará nações sejam comuns, especialmente com reforçada e poderá abrir a possibilidade de as políticas norte-americanas em relação à maior presença brasileira nos foros multila- China, à Síria e ao conflito Israel-Palestina, terais, inclusive na reforma do ONU, quan- por exemplo. As prioridades regionais, sim, do o assunto voltar a ser tratado seriamente. são coincidentes. É evidente a necessidade de o Brasil A nova geopolítica na região oferece adotar um modelo de acordos de preferên- uma oportunidade única – que não existiu cias comerciais que traga um quadro re- para os governos anteriores – de o Brasil, gulatório mais avançado, que ultrapasse a a partir da definição de seus interesses, aci- simples redução de tarifas e que permita a ma de países, grupos, partidos e ideologias, eliminação das barreiras não tarifárias. En- desenvolver uma relação sem alinhamen- tretanto, cabe questionar que regras e mo- tos automáticos com os EUA. Interessa ao delos deve o Brasil adotar. Brasil o encaminhamento de uma solução O trabalho da diplomacia é, em especial, negociada para o restabelecimento da de- o de identificar onde estão os interesses na- mocracia e da estabilidade econômica que cionais e buscar apressar sua realização. traga de volta o crescimento e a pacificação Para a execução dessa ampla agenda

42 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... de reformas para a modernização interna e que vivemos facilitarão a volta rápida da para a projeção externa do Brasil, o governo confiança e do crescimento com estabili- terá de contar com o apoio e o interesse de dade política e econômica. O Brasil, res- nossos parceiros externos, em especial por paldado pelo fortalecimento da economia, meio da finalização do acordo de comércio voltará a ser um polo de atração de inves- com o Mercosul, e o interesse de empresas timentos e voltará a dar sua contribuição na participação de um amplo programa de nos principais fóruns internacionais em logística que vai favorecer o fluxo – impor- favor do livre comércio, da democracia, tação e exportação – de comércio. da segurança, dos direitos humanos e do Políticas corretas para o momento em meio ambiente.

...... desafios internos e externos para o novo governo...... 43 Condições, Salvo Engano, Para Uma Frente Democrática1

André Singer Fernando Rugitsky

s dificuldades1 para formar uma seio pela criminalização de todo o campo frente democrática no Brasil me- popular. De acordo com os cientistas po- Arecem reflexão. O tema circula en- líticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, tre nós desde os protestos de 2015 e 2016, uma das provas dos nove de um processo quando ficou claro que a articulação pela de degradação da democracia “é a negação derrubada de Dilma Rousseff tinha ganha- da legitimidade dos oponentes”. “Políticos do as ruas e que o seu sucesso implicaria autoritários descrevem seus rivais como problemas para o regime implantado sob criminosos, subversivos, impatrióticos ou a égide da Constituição de 1988. As mas- como uma ameaça à segurança nacional ou sivas manifestações pró-impeachment fa- ao modo de vida existente”, escreveram os ziam prever um desfecho perigoso para a norte-americanos.3 Quando a liberdade de maré montante do antilulismo. Embebidos um dos lados da disputa é ameaçada, a de- nas descobertas da Operação Lava Jato e mocracia está em perigo. na extensa repercussão midiática da cruza- No livro O lulismo em crise, procurou- da anticorrupção empreendida pelo “Parti- -se sustentar a ideia de que a congênere do da Justiça”2, os protestos misturavam o brasileira da Operação Mãos Limpas, que “Fora Dilma” ao “Lula Preso”, mostrando varreu a Itália nos anos 1990, deveria ser que, além do inconformismo com a vitória encarada como simultaneamente facciosa petista em 2014, havia, também, um an- e republicana.4 Não haveria espaço aqui para reproduzir os argumentos que leva- 1 Agradecemos a Roberto Schwarz, autor de “Pressupostos, ram à conclusão de que, embora as des- salvo engano, de 'Dialética da Malandragem'ˮ, pela inspi- ração do título. cobertas de desvios bilionários revelassem 2 “Partido da Justiçaˮ é uma metáfora para referir-se aos um sistema de financiamento eleitoral em setores do judiciário, do Ministério Público e da Polícia vigor desde 1945, do qual participaram os Federal que se engajaram de maneira politizada no combate à corrupção. principais partidos dos últimos 70 anos,

3 Steven Levistsky e Daniel Ziblatt. Como as democracias André Singer é professor do Departamento de Ciência Política morrem. Rio de Janeiro, Zahar, 2018, p. 67. da Universidade de São Paulo (USP) 4 André Singer. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do Fernando Rugitsky é professor do Departamento de Econo- governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2018, mia da Universidade de São Paulo (USP) Capítulo 7.

44 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... as investigações sediadas em Curitiba versário no segundo turno de 2014 (Aé- focaram, sobretudo, no Partido dos Tra- cio Neves, do PSDB). Depois, no meio de balhadores (PT) e no ex-presidente Luiz 2015, resolveu limitar a política de auste- Inácio Lula da Silva. Em consequência, o ridade do próprio Levy. Resultado: a man- fio verde-amarelo que ligava os aconteci- datária perdeu o apoio da esquerda e da mentos do mensalão, de 2005, aos do pe- direita, tornando quase impossível a uni- trolão, de 2014, passando pelas manifesta- dade na defesa do governo. A desunião dos ções de junho de 2013, remetia ao caráter progressistas se expressou nas eleições parcial e seletivo das ações anticorrupção. municipais de 2016, em que candidaturas Por consequência, em todos os estágios progressistas se enfrentaram em diversas da via crucis lulista, que desembocou em capitais (chapas únicas poderiam ter feito avenidas coalhadas de camisetas da sele- diferença no Rio de Janeiro, em São Paulo ção canarinho, pedindo a criminalização e, sobretudo, em Porto Alegre), com refle- do partido que governara o Brasil desde xos danosos para o campo popular, apesar 2003, pairava a sombra da interrupção do das advertências em contrário.5 processo democrático. Entretanto, diante do sucesso da extre- À primeira vista, foi justamente o tema ma-direita na eleição de 2018, a necessi- da corrupção que impediu as tentativas de dade de pensar os meios de resistir à maré unidade democrática desde 2015 até a vitó- autoritária dobrou. Daí a urgência de re- ria de Jair Bolsonaro em outubro de 2018. fletir a respeito da frente democrática. O O fato é que a tecnologia de formação de argumento deste artigo é que os últimos frentes mostrou-se insuficiente e, por mais quatro anos trouxeram à tona dois obstá- apelos que fossem feitos, ela não se reali- culos à constituição da mesma. O primeiro zou. No lugar de debates em torno de pontos relaciona-se à dinâmica das organizações mais ou menos comuns, que constituiriam partidárias, o que dificulta até mesmo a um programa mínimo, surgiu a exigência unidade entre setores da esquerda com da “autocrítica”, uma espécie de senha para maior convergência programática. O se- autorizar conversas de alto nível, que nunca gundo refere-se a divergências profundas ocorreram. Mesmo dentro da esquerda, no sobre o lugar do Estado na promoção do processo que acabou por desaguar no im- crescimento econômico, que inviabilizam peachment de 2016, criaram-se não uma, a ação conjunta de setores “democráticos” mas duas frentes: a Brasil Popular e a Povo vinculados a diferentes posições do espec- sem Medo. A despeito de, em diversas oca- tro político. siões, trabalharem juntas, a mera existência No que concerne ao obstáculo inicial, é de duas organizações pretensamente unitá- necessário levar em consideração os interes- rias mostrava a dificuldade de unificação no ses particulares de cada máquina partidária, âmbito da própria esquerda, quem diria, na os quais falam alto nas relevantes conjuntu- relação com setores liberais. ras eleitorais. Não se trata apenas do anseio Adicionalmente, o segundo mandato de por ver os respectivos filiados ocuparem os Dilma foi errático. Primeiro, ela escolheu um ministro da Fazenda, , 5 Ver André Singer. “Por uma frente ampla, democrática e republicana” In Ivana Jinkins et allii (Orgs.). Por que talhado para executar o programa do ad- gritamos golpe? São Paulo, Boitempo, 2016.

...... condições, salvo engano, para uma frente democrática ...... 45 cargos em disputa, mas de entender que a Rede, o PSB6 e o PSDB, igualmente, cami- própria participação nos pleitos é vantajosa nharam separados, revelando-se surdos aos em termos de visibilidade, arregimentação apelos de união do centro quando ficou cla- e levantamento de recursos. Consequen- ro que, sem ela, Bolsonaro iria para o segun- temente, submeter as postulações de cada do.7 No segundo turno, Guilherme Boulos sigla aos desígnios de uma entidade maior (PSOL) e Marina Silva (Rede), apoiaram impõe concessões extraordinárias. A inicia- (PT), mas apenas Boulos tiva do #Queroprévias, excelente coletivo engajou-se de fato na campanha. O caso de que vem agitando há alguns anos a neces- Ciro Gomes (PDT) foi o mais emblemáti- sidade de primárias comuns a diferentes co das dificuldades da formação da frente agrupamentos progressistas, tem esbarrado partidária. Enquanto o seu partido declarou em tais empecilhos, que seriam ainda maio- “apoio crítico” a Haddad no segundo tur- res se a mesma demanda fosse estendida a no, o candidato que ficou em terceiro lugar agrupamentos de centro. evitou manifestar-se abertamente, inclusive Talvez o Brasil não consiga reproduzir saindo do Brasil, e apenas gravou um ví- os exemplos do Uruguai (Frente Ampla) deo na véspera do segundo turno, em que, e do Chile (Concertação), porque aqui contudo, não declarou o voto. O PSDB e o as eleições presidenciais representam um MDB mantiveram-se neutros. jogo de tudo ou nada. O PSDB tornou- Dificuldade semelhante manifestou-se -se um partido relevante apenas depois de no debate sobre os programas econômi- Fernando Henrique Cardoso ter vencido cos, o segundo obstáculo mencionado à os pleitos presidenciais de 1994 e 1998. obtenção de uma frente democrática. No O PT, por seu turno, cresceu por meio das período eleitoral, não foram poucos os que três candidaturas derrotadas de Lula (1989, atribuíram a responsabilidade à candida- 1994 e 1998) e se consolidou depois das tura Haddad, por insistir em uma política quatro vitórias consecutivas (2002, 2006, econômica considerada irresponsável e por 2010 e 2014) para a Presidência da Repú- se recusar a assumir o compromisso com a blica. A experiência “parlamentarista” do austeridade, tida como incontornável pelos PMDB, que entre 1998 e 2014 sobreviveu porta-vozes do “mercado”. Nas discussões sem candidaturas presidenciais, talvez re- sobre a política econômica, muitas vezes a presente a exceção, apenas eficaz em uma insistência na necessidade de uma autocrí- organização voltada para o interior e in- tica do PT ressurgia como pressão para que tensamente regionalizada. o partido se comprometesse a não adotar A necessidade de somar esforços para políticas alheias à austeridade. barrar a ascensão da extrema-direita, nos O que foi interpretado por muitos como dois turnos de 2018, viu-se completamen-

te desatendida. À esquerda, o PT-PCdoB, 6 Por razões a serem pesquisadas, o PSB, depois de lançar o PDT e o PSOL, de um lado, preferiram o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa, preferiu a neutralidade após este se retirar da disputa. ter candidatos puro sangue no turno inicial. 7 Marina Dias. “FHC se reuniu com Alckmin antes de carta A ideia de ouvir as bases em uma “primá- em que pede união de centro”, 21/92/2018. Em https:// ria comum” jamais passou seriamente pela www1.folha.uol.com.br/poder/2018/09/fhc-se-reuniu- com-alckmin-antes-de-carta-em-que-pede-uniao-do- cabeça de nenhum dirigente partidário. A centro.shtml, consultado 2/12/2018.

46 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... intransigência do PT refletia, na realidade, a “cafés com bolo” abriram horizontes para consciência de que uma frente democrática uma oposição à onda autoritária.8 Em cer- amarrada pela defesa da austeridade seria in- to sentido, tais iniciativas dispersas revelam viável. Não apenas porque não conseguiria um impulso democratizante dentro da socie- a adesão dos setores organizados da classe dade que, em junho de 2013, conviveu lado trabalhadora e dos movimentos sociais, cuja a lado com o movimento autoritário. mobilização nos últimos anos foi forjada A vantagem da unidade construída no justamente na resistência à austeridade. Mas chão social é o caráter vivo, horizontal e também porque, como veremos adiante, a de base da iniciativa. Numa sociedade al- insistência na austeridade, cedo ou tarde, tamente estratificada e cortada por diversas coloca a própria democracia em cheque. modalidades de controle, romper as amar- Ambos os obstáculos sugerem as alter- ras do cotidiano e partir para convencer nativas disponíveis à resistência democráti- o vizinho faz enorme diferença. Toda vez ca. Se os partidos não demonstram capaci- que energias coletivas congeladas conse- dade de se unir, a frente terá que se formar, guem furar a carapaça da individualização de início, na base da sociedade. Se as diver- e se fazer presentes, é sinal de que o novo gências em torno da austeridade não podem pode emergir. A novidade, no caso, seria a ser superadas, uma frente democrática terá expansão e a associação dos setores demo- que assumir uma das posições em disputa. cráticos, não apenas nos sindicatos e uni- versidades, mas entre cidadãos dos centros Frente social e das periferias, de juízes e procuradores e associações de bairros, de médicos e enge- ada a experiência infrutífera de quase nheiros a coletivos culturais, de advogados Dquatro anos, talvez a única maneira de e jornalistas a movimentos sociais. os partidos serem compelidos a integrar uma Para arrastar os políticos e obrigá-los a frente seja por meio do deslocamento dos se unirem, entretanto, seria necessário que eleitores. Caso percebam o risco de perder a frente social se generalizasse e encontras- sufrágios, é possível que as burocracias par- se modos de organização nacional. Ocorre tidárias se sintam compelidas a aderir a uma que a função de generalizador e organizador frente social. Mas, para que isso ocorra, tal das agitações moleculares historicamente frente precisaria pré-existir, de tal modo que foi dos partidos. Marx e Engels desvenda- o efeito negativo sobre as siglas que não a ram a charada ao escrever: “Os comunis- integrassem tivesse potência. Mas, será que, tas só se diferenciam dos demais partidos no plano da sociedade, a união encontraria proletários pelo fato de, nas diferentes lutas maior facilidade? Um caso concreto ajuda nacionais dos proletários, (...) ressaltarem a pensar. Dez dias antes do segundo turno e fazerem valer os interesses comuns da de 2018, iniciativas espontâneas de centenas totalidade do proletariado” (grifo nosso).9 ou milhares de grupos bem distintos entre si 8 Cerca de dez dias antes da votação final, espalharam-se ajudaram a que a diferença entre Bolsonaro pequenas bancas colocadas na frente das casas, em que se e Haddad fosse reduzida de 20 para 10 pon- convidava a população a tomar um café, comer um pedaço de bolo e conversar sobre a democracia. tos percentuais, mostrando que a superação 9 Karl Marx e Friedrich Engels. Manifesto do Partido das diferenças entre cidadãos é viável. Os Comunista, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 59.

...... condições, salvo engano, para uma frente democrática ...... 47 Basta trocar “comunistas” por qualquer ou- Apesar dos percalços, a chance de uma tra denominação (trabalhistas, socialistas, regressão autoritária rápida, a partir da assun- democratas etc.) para entender que o papel ção de Bolsonaro, coloca em pauta a cons- das agremiações partidárias é o de genera- trução de um abrangente movimento demo- lizar e organizar. crático no Brasil. A memória do acontecido O PT cumpriu, em seu tempo, tais fun- após o golpe de 1964, em particular, quando ções: era chamado de “partido dos movi- a resistência à ditadura alcançou o auge da mentos”. As Comunidades Eclesiais de campanha das diretas (1984), estimula o de- Base (CEBs) foram, por sua vez, a rede sejo de reencontrar a unidade daquela época. horizontal que tornou viável a construção Se ocorrer o bloqueio da liberdade de expres- do PT. Mas, a guinada neoliberal da Igreja são, de reunião e de organização, que sempre Católica e a conversão do PT ao lulismo, a foi o modo de interromper o lento processo partir de 2002, alteraram completamente o de integração social brasileiro, quiçá a ban- cenário. Na situação contemporânea, a ve- deira unificadora da volta à democracia abri- lha construção de base religiosa foi desfei- gue todas as aspirações de distribuição de ta e o partido se transformou no principal renda, construção de um Estado de bem-estar agente do campo popular, embora não mais social e resgate dos historicamente excluídos, expresse as “novas sociabilidades”. às quais hoje se somam as reivindicações de Talvez na atual crise da democracia, os gênero, de raça e de orientação sexual. movimentos tenham que cumprir a tarefa A experiência histórica mostrou que no por si mesmos. Até aqui tiveram dificulda- bojo do movimento democrático contra o de em fazê-lo. O Fórum Social Mundial, regime militar forjou-se uma nova sociabi- por exemplo, uma experiência riquíssima lidade, a qual foi decisiva para as conquis- no início do milênio, precisaria ter ingres- tas da década de 1980. A Constituição de sado nas lutas concretas dos países para ter 1988 reflete o alcance da democratização cumprido tal papel. Compreensivelmente, “de baixo para cima”. Tal frente possivel- entendeu não ser esta a sua parte, que cabe- mente teria a potencialidade de abrigar ria aos partidos, pois implicaria abrir mão e refletir, sob a divisa da democracia, os do caráter horizontal da iniciativa. A parti- anseios de integração que significariam a cipação direta nos conflitos de poder envol- superação da herança colonial que ainda ve sempre a necessidade de centralização, onera o presente. Mas, como veremos a se- o que destrói antigas relações horizontais guir, além de superar os obstáculos políti- de solidariedade, forjadas quando as re- cos acima mencionados, tal frente teria que des tinham apenas destinação discursiva. discutir, também, a questão da austeridade. Acresce que a construção de organismos nacionais, sobretudo em um país continen- Austeridade tal como o Brasil, envolve custos não dis- poníveis para células democráticas disper- o plano partidário, como menciona- sas. Um contraexemplo a ser analisado é o Ndo, uma frente democrática ver-se-ia do Podemos espanhol, organismo político diante da dificuldade de que seus potenciais que nasceu da movimentação horizontal em integrantes defendem posições econômicas torno da crise econômica. antagônicas. Há, de um lado, aqueles que

48 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... se opõem tanto às medidas autoritárias de- semprego elevado, da diminuição da ren- fendidas por Bolsonaro quanto às políticas da das famílias e do resultante sofrimento econômicas ultraliberais defendidas por social. Nos próximos anos, a continuidade seu representante para o tema, Paulo Gue- tanto das políticas de austeridade quanto des. De outro lado, há aqueles que recusam das condições econômicas adversas para a o autoritarismo, mas defendem uma estra- grande maioria tende a ampliar a adesão, tégia econômica similar à proposta por ele. na sociedade, a uma frente que, simultane- Para além do âmbito partidário, no entanto, amente, defenda a democracia e recuse a o que tal divergência implica? austeridade. No espaço do presente artigo É preciso admitir que a recusa às polí- não é possível entrar em detalhes sobre os ticas econômicas associadas ao PT parece determinantes da crise econômica, mas é não se restringir apenas às agremiações necessário voltar aos eventos dos últimos partidárias, mas ter se difundido para uma anos, a fim de avaliar os possíveis resulta- parcela significativa da sociedade. O con- dos de uma insistência na austeridade. Os traste entre a forma como temas econômi- dados econômicos deixam pouca margem cos foram debatidos em eleições anteriores a dúvidas, implicando, de modo geral, o ar- e na ocorrida em 2018 aponta nessa dire- gumento de que as políticas de austeridade ção. Alckmin, em 2006, apressou-se para em vigor desde 2015 não lograram recolo- vestir a jaqueta com os símbolos de várias car a economia brasileira em uma trajetória empresas estatais, quando suas propostas de crescimento e frustraram sistematica- de privatização ameaçaram retirar-lhe vo- mente as expectativas. tos. Bolsonaro em 2018 apenas desautori- Os defensores mais ardorosos das medi- zou Paulo Guedes quando este propôs au- das de corte argumentavam que um ajuste mentar impostos (isto é, recriar a CPMF), fiscal rigoroso, que sinalizasse o compro- implicitamente chancelando as propostas misso de manter o endividamento público liberais (privatizações inclusive). A inter- em um percurso sustentável, recuperaria pretação segundo a qual a crise econômi- a confiança das empresas e das famílias, ca dos últimos anos foi provocada pelas estimulando-as a gastar. Tais gastos, por políticas irresponsáveis do PT difundiu-se sua vez, aumentariam a produção e, con- amplamente, quem sabe diminuindo resis- sequentemente, a renda nacional, mais do tências ao discurso neoliberal. que compensando o impacto negativo so- No entanto, desde o ponto de vista que bre a atividade provocado pela diminuição adotamos, a aceitação mais ampla das pro- de dispêndios governamentais. No jargão postas liberais está muito próxima de ul- dos economistas, a expectativa recebeu o trapassar a data de validade. A reiteração nome de “contração fiscal expansionista” e da aposta na austeridade, que parece ser o era associada ao trabalho de Alberto Alesi- rumo escolhido pelo governo Bolsonaro, na, professor de economia na Universidade não deverá ter capacidade de recuperar o de Harvard.10 A experiência brasileira entre crescimento econômico e reduzir o desem- prego. Daí ser implausível que se consi- 10 Ver, entre outros, Alberto Alesina e Silvia Ardagna. ga, por muito tempo, atribuir às políticas “Large changes in fiscal policy: taxes versus spending” In Jeffrey Brown (org.). Tax Policy and the Economy. econômicas lulistas a persistência do de- Chicago: University of Chicago Press, 2010, pp. 35-68.

...... condições, salvo engano, para uma frente democrática ...... 49 2015 e 2018, bem como outras experiências gindo em setembro de 2016 um nível que ao redor do mundo, contribuiu para que tal não se observava desde meados de 2013. formulação teórica caísse em descrédito, Tal evolução não logrou, contudo, produzir mesmo entre economistas conservadores.11 os efeitos na atividade econômica previs- A nomeação de Levy para o Ministé- tos por Alesina. Em 2016, o PIB caiu mais rio da Fazenda, no final de 2014, foi uma uma vez, agora 3,3%. Para a maior parte da aposta na austeridade. O investimento pú- sociedade, os dois anos de queda ficaram blico, em 2015, foi reduzido em mais de marcados pela elevação abrupta da taxa de 30%, ao mesmo tempo em que mudanças desemprego, que subiu de 7 para 13% (en- legislativas tornaram o acesso ao seguro- tre janeiro de 2015 e janeiro de 2017). -desemprego e às pensões por morte mais O ano de 2017 não contou uma histó- restrito. Em janeiro de 2015, com a virada ria diferente. Após 36 meses de insistência para a austeridade já indicada, as “expecta- na austeridade, a atividade econômica mal tivas de mercado” divulgadas pelo Banco começa a recuperar-se da queda anterior, Central para a taxa de crescimento do PIB, crescendo apenas 1%, enquanto o desem- naquele ano, era de 0,5%. Na realidade, o prego seguiu estável, entre 12% e 13%. PIB despencou 3,6%. Vale notar, ainda, que uma safra agrícola Seria possível argumentar que a crise extraordinariamente alta e uma concessão política afetou as expectativas dos agentes “keynesiana” da política econômica (a li- naquele ano, impedindo que a política eco- beração do saque das contas inativas do nômica elevasse a confiança e produzisse FGTS) parecem explicar mais o cresci- efeitos positivos. De fato, o índice de con- mento observado do que a austeridade. Em fiança do empresário industrial, divulgado 2018, novamente, a situação não se alterou: pela Confederação Nacional da Indústria de acordo com os dados disponíveis quanto (CNI), que vinha caindo desde o início de este artigo é encerrado (dezembro de 2018), 2014, se estabiliza em 2015, mas não se re- o crescimento do PIB não deve atingir nem cupera. O choque de confiança viria apenas 1,5% e o desemprego custará a cair. com o afastamento de Dilma Rousseff, em A aposta na austeridade não apenas não abril de 2016,sobretudo a consolidação da gerou crescimento, como também não me- aposta na austeridade, que culminaria na lhorou a própria situação das contas públi- aprovação do congelamento real dos gas- cas. Ao cortar os gastos, o governo reduziu tos públicos por 20 anos, a chamada PEC a própria atividade econômica, corroendo a do Teto, proposta pelo dream team liderado base da arrecadação tributária. Como resul- por Henrique Meirelles, traria confiabilida- tado, as receitas caíram mais rapidamente de. Nos seis meses subsequentes, o índice que os gastos, piorando a situação fiscal. de confiança subiu vertiginosamente, atin- Como o cachorro que corre atrás do pró- prio rabo, o governo aprofundou o corte, 11 Para uma narrativa sobre o auge e o declínio da formulação de Alesina, ver Paul Krugman. “The austerity dificultando ainda mais a recuperação das delusion”, The Guardian, 29 de abril de 2015. Uma contas públicas. Um exemplo claro do que refutação empírica cuidadosa da hipótese da “contração fiscal expansionista” pode ser encontrada em FMI. “Will tem sido chamado de austericídio. it hurt? Macroeconomic effects of fiscal consolidation” In FMI. World Economic Outlook: Recovery, Risk, and A trajetória do resultado primário do go- Rebalancing. Washington DC: FMI, 2010, pp. 93-124. verno, segundo estimativa do Ipea, é clara: o

50 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... deficit de 0,6% observado em 2014 amplia- A despeito das incertezas envolvendo -se para 1,9% em 2015 e para 2,5% em 2016. o governo Bolsonaro, a liberdade que o Só a tímida recuperação, observada em 2017 presidente tem dado a Paulo Guedes, na e em 2018, pelo efeito na arrecadação, levou condição de superministro, para compor a uma melhora. Mas, ainda assim, o deficit a equipe da área econômica sugere que se primário de 1,7%, observado em 2017, é pretende dobrar a aposta na austeridade. O mais de um ponto percentual maior do que perfil liberal dos indicados somado às pro- aquele vigente antes da aposta na austerida- postas realizadas na campanha (de acele- de. Nos 12 meses acumulados até setembro rar o ritmo do ajuste fiscal, retirar direitos de 2018, o deficit primário havia se reduzido trabalhistas e privatizar empresas estatais) apenas moderadamente, para 1,3%. indicam o mencionado rumo com clareza. Seria surpreendente se, desta vez, o resul- Novo governo deverá dobrar tado fosse diferente daquele observado nos aposta na austeridade últimos anos. Seria possível argumentar que as condi- luz desse histórico, é espantoso que ções políticas mudaram e, para nós, a acu- À continue a se insistir na saída via ajus- mulação de capital tem determinantes não te das contas públicas, na contramão do que apenas econômicos, mas também políticos. vem sendo discutido sobre política fiscal Em momentos de grande instabilidade polí- ao redor do mundo. Em meados de 2016, tica, por exemplo, decisões de investimen- economistas do Fundo Monetário Interna- to são adiadas. Não há como negar que tal cional (FMI) admitiram a necessidade de efeito explica, ao menos em parte, a trajetó- reavaliar criticamente as políticas neolibe- ria econômica dos últimos anos, marcados rais. No caso da política fiscal, eles men- pela turbulência em torno do impeachment cionam os trabalhos de Alesina e afirmam: e pelas instabilidades do governo Michel “Os custos de curto prazo (da consolidação Temer, especialmente a partir do escândalo fiscal) em termos de produto e bem-estar em torno de Joesley Batista (2017). Legi- menores e desemprego mais elevado fo- timado pela vitória eleitoral, seria possível ram subestimados”.12 Recentemente, Paul antecipar que o governo Bolsonaro teria Krugman foi ainda mais claro, argumen- mais sucesso em estabilizar a política e, tando que a crise brasileira é, ao menos em assim, estimular a economia. Estabilização parte, explicada pela opção equivocada de política não parece ser uma das vocações política econômica que remonta a 2015. E ou das intenções de Jair Bolsonaro, no en- conclui com incredulidade: “Incrivelmente, tanto. A inspiração em Donald Trump e em parece que eles [os integrantes do governo Steve Bannon sugere uma adesão à estraté- brasileiro] compraram a doutrina da auste- gia de alimentar, em vez de superar, a pola- ridade expansionista.”13 rização da campanha eleitoral. Ademais, mesmo que a turbulência po- 12 Jonathan Ostry, Prakash Loungani e David Furceri. lítica arrefeça, é difícil encontrar motivos “Neoliberalism oversold”. Finance and Develoment, 2016, p. 40 (tradução nossa). para uma aceleração econômica signifi- 13 Paul Krugman. “What the hell happened to Brazil? cativa. Do ponto de vista das empresas, a (Wonkish)”. The New York Times, 9 de novembro de capacidade ociosa segue acima da média 2018 (tradução nossa).

...... condições, salvo engano, para uma frente democrática ...... 51 histórica. Alguma reposição de maquinário nômica for orientada para a austeridade. depreciado, após anos de baixo investimen- Previsões econômicas em momentos de to, pode ser antecipada e parece explicar tantas transformações econômicas e políti- parte da recuperação do investimento ob- cas são particularmente difíceis. Episódios servada este ano. Mas, com baixas expec- breves de crescimento, desencadeados por tativas de ocupar a capacidade ociosa e eventos inesperados, não podem ser des- aumentar significativamente suas vendas, cartados. Mas, as evidências sugerem que, não há razão para as empresas expandirem na vigência da austeridade, o crescimento substancialmente a capacidade produtiva, econômico não apenas será episódico e estimulando a economia a partir do inves- instável, como também contribuirá pouco timento. No que concerne às famílias, seria para o longo percurso da integração social. ingênuo antecipar uma retomada significa- Em outras palavras, ainda que os primei- tiva do consumo em um contexto de ele- ros anos do governo Bolsonaro possam ser vado desemprego, queda da formalização e marcados por algum crescimento econômi- renda salarial estagnada. A queda dos juros co, tal expansão não tende a ser suficiente- parece ter dado alguma folga, permitindo mente forte e duradoura para afetar as con- renegociação de dívidas anteriores, mas dições de vida das trabalhadoras e dos tra- isso dificilmente compensa a precariedade balhadores. Inclusive porque as reformas do mercado de trabalho. (tanto as já implementas quanto as pro- Tampouco parece plausível que a eco- postas), ao retirarem direitos trabalhistas e nomia brasileira seja puxada pela econo- desvincularem os gastos públicos, tendem mia mundial. Indícios de que em 2019 a dificultar que os frutos de qualquer ex- possa ocorrer uma desaceleração signifi- pansão que eventualmente ocorra sejam cativa da economia global vêm se acumu- distribuídos mais amplamente. Como nos lando, seja por conta de reversões cíclicas anos 1990, os interesses da classe domi- de algumas economias (em especial, a dos nante serão atendidos não pela acelerada Estados Unidos), seja em decorrência dos acumulação de capital, mas pela generali- efeitos da escalada da guerra comercial zação da acumulação por espoliação.14 deflagrada por Trump. Em outubro, o FMI Se a nossa análise estiver correta, cedo revisou para baixo suas projeções para o ou tarde as expectativas mobilizadas pela crescimento do PIB mundial em 2018 e candidatura Bolsonaro de melhora das 2019 e, recentemente, anunciou que novas condições de vida serão frustradas. Como revisões para menor são esperadas. O mo- no caso do presidente Mauricio Macri, na mento preciso das desacelerações globais Argentina, o otimismo inicial dos “mer- é muito difícil de se prever, mas é razoável cados” terá sido injustificado, embora supor que uma economia mundial envolta muito lucrativo nas especulações de cur- em tantas incertezas dificilmente puxará a to prazo. No momento azado, a mencio- economia brasileira, de modo a compensar nada frente democrática teria condições a demanda doméstica retraída. de pressionar as agremiações partidárias Não se pretende argumentar que a eco-

nomia brasileira permanecerá inevitavel- 14 David Harvey. The New Imperialism. Oxford: Oxford mente estagnada enquanto a política eco- University Press, 2005, capítulo 4.

52 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... a unificar a resistência, desde que aponte ticos. Com diferentes particularidades em não apenas para a defesa da democracia, cada país, o neoliberalismo tem enfrentado mas também para uma política econômi- crescentes problemas de legitimidade (in- ca antiausteridade. felizmente acossado pela extrema-direita), ao trazer consigo desemprego alto e per- Conclusão sistente, relações trabalhistas precarizadas, desigualdade ascendente e serviços públi- esde o início da crise, em 2015, fala-se, cos deteriorados. Em muitos casos, face a Dcom razão, da necessidade de erguer oposições aguerridas, as políticas de auste- uma frente democrática no Brasil, uma vez ridade precisaram do auxílio de expedien- que não se podia subestimar o perigo que tes autoritários para serem implementadas. pairava sobre a democracia no país. Com o Alimenta-se, assim, por duas vias a crise passar do temwpo, a ameaça autoritária se democrática contemporânea: tanto ao im- agravou. Em 2018, por fim, um político que por condições materiais precárias a grandes nega legitimidade a seus opositores, uma contingentes populacionais, quanto ao fra- das provas dos nove do enfraquecimento do gilizar os próprios regimes democráticos. regime, segundo Levitsky e Ziblatt, chegou Mundo afora, a extrema-direita tem pro- à presidência da República. vado que esse contexto é um solo fértil para Vimos, no entanto, como os partidos o seu crescimento. As forças democráticas políticos, envoltos na luta eleitoral, têm se que não assumirem a superação do neoli- mostrado incapazes de construir a necessá- beralismo como programa, ainda que pos- ria unidade democrática. Ao mesmo tem- sam conseguir vitórias pontuais, não terão po, no plano da sociedade, diferenças fo- capacidade de fazer frente ao desafio im- ram deixadas de lado em favor do objetivo posto por esse novo conservadorismo radi- maior de defender a democracia. Exemplo cal e seguirão cultivando o terreno da crise maior emergiu com a espontânea ação con- democrática, ao não oferecer às maiorias tra a candidatura Bolsonaro na reta final do um horizonte de superação da crise social segundo turno de 2018. Imagina-se, assim, e do desemprego. As iniciativas políticas que, talvez, uma auto-organização social que até agora propuseram-se a, simultane- possa obrigar os partidos a se unificarem, amente, defender a democracia e recusar a caso percebam que perderão votos se não o austeridade ainda não tiveram vitórias ex- fizerem. A unificação de movimentos exis- pressivas, mas parecem apontar o caminho tentes nos mais diferentes setores poderia a ser trilhado. constituir uma coalizão à qual as siglas ti- O caso brasileiro parece apresentar uma vessem que aderir. O problema é saber qual particularidade, uma vez que a extrema-di- programa tal frente deveria defender. reita ascendeu eleitoralmente com um dis- Desde o nosso ponto de vista, o fato curso neoliberal extremado. Isso lhe confe- de a austeridade impedir o crescimento e re uma fragilidade maior, ao deixar para a a geração de empregos remete a uma ten- resistência democrática o discurso de crítica são mais geral, que veio à tona com a cri- à austeridade. É uma chance que não deve se internacional iniciada em 2008, entre as ser desperdiçada. Se insistirem nas políticas políticas neoliberais e os regimes democrá- liberais, os setores democráticos brasileiros

...... condições, salvo engano, para uma frente democrática ...... 53 correm o risco de justificar as medidas auto- que está em alta no mundo, abre um espaço ritárias do governo Bolsonaro e de estimu- para a resistência democrática aliar defesa lar um projeto que agrava a fragilização da da democracia com recusa do neoliberalis- democracia brasileira. A ideia de que é ne- mo. Uma conjunção, aliás, que parece ser a cessário realizar concessões ao “mercado” condição para formação da ampla frente so- para evitar o mal maior da escalada autori- cial, construída desde baixo, que as condi- tária é ilusória por subestimar a imbricação ções políticas expostas acima exigem. Um entre austeridade e crise democrática. espaço que não se preenche sozinho, no en- A extrema-direita neoliberal brasileira, tanto, e, que ao não ser construído, pode ser em contraste com o populismo de direita atropelado pelo avanço do autoritarismo.

54 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... O Brasil depois da eleição de 2018

Renato Janine Ribeiro

ui convidado a falar do futuro da es- da extrema-direita nas eleições brasileiras de querda depois desta última eleição, mas 2018, levando a presidência da República e Festou convicto de que não se pode fa- os principais estados, torna muito difícil se- lar dela sem falar do Brasil. Os destinos dos parar o destino, pelo menos nos próximos partidos democráticos estão de tal forma en- anos, da esquerda e da direita democráticas trelaçados com o futuro de nosso País que e o do Brasil. Ficamos mutuamente implica- separá-los é ocioso. Vou dar um tom um tanto dos. Pautas diferentes (nos meios, sobretudo otimista a esta análise, considerando uma tese – lembro Singer) e mesmo os ódios nos di- que sustento em meu livro A boa política 1: vidiram, mas será muito difícil avançar sem que o mundo caminha desde a proto-Renas- uma recomposição do quadro político, o que cença para um respeito maior do Direito, não significa necessariamente uma reestrutu- inicialmente, e, a partir do século XVIII, dos ração dos partidos. Talvez seja mais necessá- direitos, no caso, civis, políticos, trabalhis- rio do que partidos: talvez seja preciso uma tas, sociais e ambientais. Nesta trajetória, há pauta que tenha a sociedade, mais que os es- avanços e longas estases ou mesmo recuos, tamentos políticos, como sujeito condutor. mas o avanço sempre foi retomado. Mais que isso: lembro-me de uma frase de *** Paul Singer, economista de esquerda, numa Depois do afastamento da presidente reunião em 2003 – “Hoje todos os econo- Dilma Rousseff, em 2016, passamos de duas mistas, de direita ou de esquerda, querem a para três forças políticas principais em nosso redução da miséria e da pobreza. O que os país. Durante 20 anos, nosso espaço político distingue são os meios”. Penso que essa frase foi comandado por PSDB e PT, que enqua- é o que distingue direita e esquerda democrá- dravam os partidos menores e garantiam que ticas. Na verdade, a vitória quase esmagadora nenhum aventureiro ou extremista chegasse ao poder. Isso, além de assegurar uma certa 1 São Paulo: Companhia das Letras, 2017. governabilidade, uma vez que os governos de um e outro partido conseguiram no Con- Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia gresso os três quintos necessários para apro- Política na Universidade de S. Paulo (USP). Professor vi- sitante na Universidade Federal de S. Paulo (Unifesp). Foi var emendas constitucionais, que no sistema ministro da Educação no governo de Dilma Rousseff (2015). brasileiro são essenciais para o Executivo

...... o brasil depois da eleição de 2018 ...... 55 Federal governar (nem sempre aprovaram voluntarismo sobre a competência. É difícil tudo, mas aprovaram a maior parte do que prever o que poderá sair de positivo desse quiseram). Esse equilíbrio entre centro-es- governo, embora os empresários e mesmo querda e centro-direita foi vital para o Bra- os partidos de direita tenham esperança em sil. Ele evoca o período de consolidação da algum sucesso seu no plano econômico. III República Francesa, quando, após a der- É neste quadro que se pode discutir o que rota para a Prússia e a guerra civil de 1870, o será o futuro dos grupos mais à esquerda nos regime republicano acabou se firmando, no próximos anos. De esquerda propriamente centro do espectro político. dita, temos hoje apenas o PSOL como uma agremiação presente, que não chega a ser 2018: surge uma extrema-direita perigosa forte, mas é pelo menos muito ativa. Em vá- rios pontos, desde sua fundação a partir de ontudo, desde 2016, as duas forças se uma ruptura com o PT então recém-eleito Ctornaram três. O impeachment foi um para a presidência, o PSOL parece querer divisor de águas, uma espécie de deicídio à retomar a trajetória do partido-mãe, espe- Dostoievski (“se Deus – no caso, as regras cialmente preferindo defender os valores constitucionais – não existe, tudo é permi- progressistas a compor-se com grupos retró- tido”). Partidos de centro-esquerda se con- grados ou corruptos. Os fins não justificam servaram, mas um tanto divididos, como se de forma alguma os meios, entende o PSOL. viu no racha entre PT e Ciro Gomes, nas Com isso não estou dizendo que os demais eleições de 2018. Partidos de centro-direi- partidos sejam desonestos – apenas, que o ta, antes comandados pelo PSDB, desliza- jogo político brasileiro, conduzido por qual- ram para a direita, viram diminuir a rele- quer partido que seja, até mesmo nos regi- vância de seus nomes mais comprometidos mes ditatoriais, sempre passou por acordos com os direitos humanos e se racharam em pouco republicanos para garantir a governa- várias candidaturas. E – principal mudan- bilidade. Nisso, o PSOL é exceção. ça – surgiu uma extrema-direita poderosa, Mas, a força importante do lado pro- com mais da metade dos votos válidos no gressista não é a esquerda, é a centro-es- segundo turno, em sua maior parte fruto da querda. (O nome “esquerda” não me parece decepção com os partidos de centro-direita, apropriado nem para o entorno de Ciro Go- no qual muitos votavam. mes, que chegou a namorar com o chamado A vitória de Bolsonaro representa, em “Centrão” – que eu chamei de “direita sem termos maquiavelianos, um triunfo da virtù ideologia” – nem para o próprio Partido dos somente comparável ao de Collor em 1989. Trabalhadores, que se moderou nos seus Nos dois casos, tratou-se de outsiders, anos de governo). com suas vitórias significando uma derro- Temos aqui um paradoxo. A direita, que ta significativa dos partidos existentes e, se autointitula centro, embora seja mais aparentemente, consolidados. Ambos insis- conservadora do que os partidos clássicos tiram em termos como a força da vontade da direita europeia, como a CDU de Angela (Collor) ou a vontade da força (Bolsonaro). Merkel, despencou em termos de votos, en- A própria composição das equipes ministe- quanto os partidos de centro-esquerda con- riais marcou, nos dois casos, um triunfo do seguiram 45% dos sufrágios válidos no se-

56 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... gundo turno. Portanto, esse lado do espectro a agremiação de Bolsonaro, o antes quase político conserva uma popularidade signifi- inexistente PSL, superá-lo em pouco tempo cativa. Contudo, e esse é o grande problema, pelo mecanismo de adesões. Pior, os partidos essa votação lhes deu poucos cargos no po- de centro-esquerda ficaram isolados. Tem der. Das dez unidades federadas com o PIB a mídia contra eles, os grandes partidos de mais elevado, apenas Bahia e Pernambuco direita, que apoiaram o impeachment, o em- (respectivamente, sexto e décimo no PIB) presariado. Sua travessia do deserto é pior do elegeram candidatos de centro-esquerda. Se que na década de 1990, quando também mal considerarmos o PIB per capita, a situação tinha cargos executivos eleitos de alguma é ainda pior, porque Pernambuco ficará em importância, mas não era alvo de tanto ódio 17º lugar e a Bahia, em 20º. quanto se tornou estes anos. Em termos de comparação, a extrema- Para o Brasil, essa é uma situação deli- -direita elegeu o presidente da República cada, para não dizer coisa pior. Não é ruim e, independentemente do nome do partido, apenas para a esquerda ou centro-esquerda, mas considerando suas declarações e pro- mas para a representatividade das forças gramas, entre os dez maiores PIBs, elegeu políticas. Quando 45% dos votantes não também os governadores de São Paulo, têm força politicamente em quase nenhu- Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Gran- ma nas instituições eleitas, isso torna difí- de do Sul, Paraná, Santa Catarina, Distri- cil a tradução em termos políticos de seu to Federal e Goiás. Embora alguns desses descontentamento ou de seus anseios. Num eleitos pertençam ao PSDB, partido que regime democrático, é essencial que haja foi do centro-direita, esses nomes fizeram vias institucionais para a expressão das sua campanha com valores próximos aos principais vontades. Se levarmos em con- do candidato Bolsonaro, de modo que as- ta, ademais, que essas vontades ocuparam a sistimos a um enorme esvaziamento não só presidência da República durante 13 anos, dos partidos de centro-esquerda, com dois sua exclusão da cena de decisões se torna governadores, como da direita tradicional, traumática. Tal condição, somada à dispo- democrática. À direita, o que resta é optar sição dos eleitos a utilizar a força para o pelo apoio ao governo eleito, o que ela fará enfrentamento de conflitos, pode criar situ- se sua principal pauta for econômica, ou ações de confronto difíceis de administrar. então definir novos projetos democráticos, se valorizar a educação. *** Mas, se os partidos de centro-esquerda Já do ângulo de centro-esquerda, neste tiveram votação nitidamente superior aos da momento, as questões principais dizem res- direita, sua situação não é muito melhor no peito ao futuro do PT e do movimento cirista, quadro político geral. Sim, o Nordeste inteiro as duas forças mais votadas em 2018. O mais escolheu governadores nesta família política, grave é possivelmente o ambiente de rancor mas apenas ele, o que pode resultar num iso- que se criou entre um lado e outro. Para Ciro lamento de uma região tradicionalmente po- Gomes, a recusa do PT a apoiá-lo deu vitória bre (embora se tenha desenvolvido bastante a Bolsonaro. É difícil perdoar isso. Já para o estes anos). Sim, o PT é o partido mais vota- PT, o fato de Ciro viajar para o exterior du- do para a Câmara, mas o ímã do poder fará rante o segundo turno, em vez de entrar em

...... o brasil depois da eleição de 2018 ...... 57 sua campanha, ajudou a extrema-direita a ga- desastrosa o quanto custa essa economia nhar a eleição. É difícil relevar isso. porca, que consiste em deixar, por exem- Some-se a isso que nenhum dos lados plo, dejetos se acumularem numa barragem está disposto a uma reavaliação de suas es- malcuidada como a de Mariana (MG), para tratégias. Não me refiro à constante cobran- depois sua destruição acarretar a extinção da ça, pela direita, de uma autocrítica do PT. vida ao longo de 660 km do Rio Doce. Esse Se a própria direita não faz sua autocrítica foi um tema no qual muito insistiu Marina (e foi por subordinar-se à extrema-direita, Silva, provindo do ambientalismo, mas ao no anseio de obter o impeachment, que o qual nem o governo Temer, de direita, deu PSDB praticamente se liquidou – ao con- importância, nem parece que vá dá-la o go- trário do PT, que perdeu o poder, mas con- verno Bolsonaro, pelo menos levando em tinuou popular). Quem não reconhece seus conta suas declarações insistentes contra o próprios erros não tem legitimidade para acordo de Paris. (A rigor, o governo Dilma cobrar autocrítica dos outros. Mas, a prio- também não lhe conferiu destaque especial). ridade para a esquerda e a centro-esquerda Terceiro ponto necessário, a marca re- me parece ser a necessidade de pensar um gistrada do PT: a inclusão social. Não é novo projeto progressista para o País. Pen- apenas injusto que o Brasil permaneça, após so que isso é mais importante do que a dis- cinco séculos de existência, com níveis tão cussão de nomes próprios. preocupantes de pobreza e tão negativos na O Brasil está hoje com recursos econô- educação e na saúde. É ruim para a econo- micos escassos. Uma política social como a mia. Hoje, qualquer analista sério do Banco petista, que melhorava a vida dos mais pobres Mundial ou de The Economist apontará o sem necessitar, graças a uma economia favo- quanto esse panorama ruim prejudica o de- rável, tirar dos ricos hoje é bem difícil. O que senvolvimento econômico. propor? O que discutir como projeto político? O que quero dizer com isso: em que pe- Tenho insistido em que o Brasil precisa sem os momentos difíceis, em que, em nome de três vetores principais de ação do go- de factoides, como o da escola supostamente verno. É necessário retomar o crescimento sem partido, um presidente eleito descarta o econômico, lema de Aécio Neves na elei- consenso construído ao longo de anos por ção de 2014 e tema constante dos setores educadores do PT ao PSDB e ao DEM no mais conservadores. Mas, não é porque a diagnóstico e nas medidas recomendadas direita insiste mais neste ponto que ele não para a educação, em que pese o retrocesso deveria ser prioridade do lado progressista. civilizacional a que assistimos hoje aqui e É preciso, também, que essa retomada se em outros países, o fato é que o capitalismo dê dentro do mais amplo respeito ao meio avançado e a democracia consolidada che- ambiente, não só para que nossos produ- garam a acordos sobre a convergência entre tos obtenham a certificação que lhes dará medidas socialmente benéficas e economi- acesso aos mercados mais ricos do mundo camente positivas. A oposição histórica en- desenvolvido, mas também para evitar que tre a pauta da economia e a das políticas so- no futuro tenhamos que pagar, caríssimo, ciais pode ser superada. Exemplo feliz dis- o descaso com a natureza. Deveríamos ter so é a questão da licença-paternidade. Sua aprendido com uma experiência histórica adoção, na Constituinte de 1987-88, causou

58 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... zombaria daqueles que consideravam ridí- vida, permitindo assim um aumento da par- culo um homem deixar de trabalhar, ainda cela da vida dedicada ao lazer; são elas que que fosse por poucos dias, ao lhe nascer um nos capacitam a viver esse lazer sob uma filho. Hoje, na Escandinávia, licenças bem forma criativa; deve-se a elas a possibilida- mais longas de maternidade e paternidade de de uma nova harmonia com a natureza; têm sido apontadas como reduzindo pro- não por acaso, num tempo em que muitos blemas de criminalidade e de saúde, física e brasileiros veem com pessimismo o retro- mental, bem como aumentando a qualidade cesso civilizacional fortalecido nas urnas, é da educação e a produtividade econômica. à educação – assim como à pesquisa – que se Penso que esse é um dos caminhos a trilhar dedicam cada vez mais jovens, que querem no debate entre os setores progressistas. uma utopia viável, uma sociedade justa, com igualdade de oportunidades e respeito inten- Pautas do futuro são as da inteligência so à diferença e à diversidade. Quando a evocação do fascismo e do nazismo fica for- ambém há que assumir as pautas do de- te, dado o retrocesso nos valores que começa Tsenvolvimento econômico, em especial com o Brexit e a eleição de Trump, quando aquele que requer grande investimento da in- no Brasil pela primeira vez na história se teligência, isto é, o que diz respeito à ciência elege um presidente cujo plano de governo e à tecnologia. Evidentemente, o que será dis- apresenta a educação não como promessa, tintivo da esquerda nesta pauta serão exigên- mas como ameaça, não como algo em que cias quanto a níveis e qualidade de emprego. ter esperança, mas como algo de quem ele A discussão da previdência social não pode tem medo, torna-se importante lembrar que, continuar, mediocremente, limitada à do seu nos tempos em que o fascismo se apresta- financiamento. Precisamos incluir na pauta o va a triunfar, não havia nada dessa atividade que se fará no tempo crescente pós-trabalho, otimista, promissora de um mundo melhor, que inicialmente não passava de zero a cinco que hoje enxergamos entre os jovens, entre anos de vida após a aposentadoria, mas foi os educadores, os sanitaristas, os defensores aumentando e provavelmente chegará a vá- da inclusão social, empenhados em promo- rias décadas. Antes de perguntar quem paga- ver uma sociedade melhor. É nisso que a rá isso, precisamos discutir o que será isso? esquerda deve, mesmo sem ter o monopó- Cada vez mais vai ficando nítido que este lio destas pautas, apostar. Deve lutar por um tempo deve ser dedicado à cultura e à ativi- consenso dos setores democráticos, incluin- dade física – que, além de fornecerem novos do quem não é de esquerda, mas deve tam- sentidos para a vida, também geram novas bém assinalar que a característica essencial oportunidades econômicas. A tese do ócio da esquerda é a boa distribuição das bênçãos criativo, que na voz de Domenico De Masi do desenvolvimento. E, embora seja essen- tanto público atraiu na década de 1990, tem cial organizar ligas e partidos, entendo que hoje condições de realmente ser implantada pensar este mundo cada vez mais novo em para um número cada vez maior de pessoas. que estamos exige rever projetos, métodos, Na verdade, as grandes pautas do futuro militâncias. Quanto mais cedo pensarmos as são as da inteligência. Foram a ciência e a oportunidades à nossa frente, mais rápido tecnologia que expandiram a expectativa de superaremos os dramas do presente.

...... o brasil depois da eleição de 2018 ...... 59 O Que Fazer? (Balanço e Perspectivas da Esquerda Brasileira)

Lincoln Secco

á semelhanças que não são me- cima conseguiu acuar todos os partidos tra- ras coincidências. Em outubro de dicionais como parte do “sistema”, incluin- H2016, o candidato republicano Do- do o PSDB, acusado de ter a mesma origem nald Trump ameaçou prender sua rival de- socialista que o PT. mocrata Hillary Clinton caso fosse eleito. Não era a primeira vez na história bra- Em outubro de 2018, Wilson Witzel disse sileira que um candidato exótico com um que daria voz de prisão a Eduardo Paes, discurso ameaçador chegava ao Palácio do o seu concorrente ao governo do Rio de Planalto. Sua mensagem evocava algum Janeiro. E, pouco depois, Jair Bolsonaro outsider do passado, como Jânio Quadros prometeu que prenderia seu adversário Fer- ou Fernando Collor de Mello. Mas, o pri- nando Haddad e que este iria “apodrecer na meiro chegou lá depois de uma fulminante cadeia”. carreira como prefeito e governador de São Os gestos pareciam espontâneos, mas Paulo e ainda foi apoiado pela União De- seguiam um roteiro de marketing cujo ob- mocrática Nacional (UDN), um dos pilares jetivo era colocar o adversário na esfera do do mundo político da época. Collor pratica- crime, enquanto o autor da ofensa aparecia mente alugou um partido, porém tinha sido como defensor da lei e da ordem1. Aquele governador de Alagoas e era filho de uma tipo de campanha eleitoral marcava o fim larga tradição pelo lado paterno e materno de uma era. Um movimento de baixo para de sua ascendência familiar2. Collor, apesar do experimentalismo

1 Goldstein, Ariel. Bolsonaro y la regresión democrática en na economia sob uma neófita como Zelia Brasil. Buenos Aires, mimeo, 2018, p.57. Cardoso de Melo, que saía das aulas na USP para um cargo de superministra, ten-

Lincoln Secco nasceu na cidade de São Paulo em 1969. tou atrair o PSDB e montar uma coalizão Ingressou na Universidade de São Paulo em 1987, onde ampla, ainda que sem sucesso. Cercou-se estudou Letras e História e fez toda a sua carreira acadê- mica. É autor, dentre outros, de “A Batalha dos Livros” e 2 O pai, Arnon de Mello, tinha sido senador por Alagoas. O “História do PT” (Editora Ateliê), obra com várias edições avô Lindolpho Collor foi Ministro do Trabalho do governo e traduzida na França. É professor livre docente de História provisório resultante da Revolução de 1930, embora Contemporânea na USP. depois passasse à oposição a Getúlio Vargas.

60 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... de intelectuais como Celso Lafer, Sergio mutatis mutandis, a experiência do mesmo Paulo Rouanet e José Goldenberg; nomeou PDT com Leonel Brizola naquela primeira figuras de reconhecimento suprapartidário eleição da Nova República. Mas, as seme- como Adib Jatene; políticos de forte enrai- lhanças acabam aqui. zamento no sistema político como Jorge É verdade que Bolsonaro está longe de Bornhausen; além de militares e um sindi- ser um elemento externo ao sistema. Foi calista. político profissional desde 1988, teve um Na oposição, o PT emergiu como uma mandato como vereador no Rio de Janeiro alternativa estruturada e permanente. O e sete como deputado federal. Foi, antes, Partido da Frente Liberal (PFL) naufragou oficial do Exército. Contudo, ele nunca foi e o PMDB, então o maior partido no Con- um político influente. Jamais deixou o bai- gresso, nos governos estaduais e em prefe- xo clero de Brasília e, mesmo como militar, rência partidária, sofreu uma derrota aca- teve carreira curta e marcada por críticas chapante. No entanto, o sistema se reconfi- e punições. Formado em 1977, chegou a gurou com o ingresso do PSDB na primeira tenente e tornou-se capitão na reserva em divisão da política oficial. pouco mais de dez anos de atuação (ou 16, Depois de o governo Fernando Henri- contados os anos de aspirante). Esteve, as- que Cardoso ter liderado a implementação sim, longe de pertencer às elites do poder, do Plano Real, a chegada de Lula ao poder civil ou militar. em 2002 também trouxe alguma imprevisi- Além disso, as eleições de 1989 coro- bilidade aos mercados. Mas, antes mesmo avam um processo de fortalecimento da de eleito ele assinou a Carta ao Povo Brasi- militância social, das greves, da luta pela leiro, elogiada pelo professor Delfim Netto. constituinte e de crescimento eleitoral do E o seu primeiro governo não foi nenhuma PT. Depois da administração Carter nos Es- ruptura com o anterior. tados Unidos e sua defesa dos direitos hu- Os conflitos nunca se apaziguaram no manos, os valores democráticos se afirma- Brasil, particularmente no campo. Entre- vam em toda a América Latina, as ditaduras tanto, a memória da resistência à ditadu- estavam derrotadas e os militares negocia- ra, a aceitação do pacto constitucional de vam uma saída mais ou menos honrosa a 1988, a convivência com sindicatos e mo- depender do país. O Brasil havia acabado vimentos sociais e a afirmação de valores de vivenciar o maior movimento de massas democráticos eram traços comuns aos três de sua história. As “Diretas Já” tinham um grandes partidos brasileiros. objetivo claro e os gigantescos comícios De modo semelhante a 1989, a ascen- foram dirigidos por partidos e líderes reco- são de outro candidato pretensamente an- nhecidos, ao contrário de junho de 2013. tissistema, quase 30 anos depois, derrubou Em 2018, a situação era diferente. O já no primeiro turno partidos estabeleci- ativismo social mais surpreendente não dos, como o PSDB e o PMDB. Geraldo era da esquerda, mas da direita; o PT havia Alckmin e Henrique Meirelles lembraram sido defenestrado do poder depois de anos o desempenho pífio de Ulisses Guimarães de desgaste por envolvimento de alguns e Aureliano Chaves em 1989. O terceiro de seus líderes em escândalos de corrup- lugar de Ciro Gomes parecia reproduzir, ção e pela recessão econômica do segundo

...... o que fazer? (balanço e perspectivas da esquerda brasileira) ...... 61 governo Dilma; os Estados Unidos eram Bolsonaro não constituíram um grupo or- liderados por Donald Trump, um político ganizado, e sim “exaltado”, na expressão fora dos padrões de seu próprio país e nada do filósofo Paulo Arantes4. O partido foi afeito à defesa direitos humanos; e, por fim, menos importante que a associação hori- os movimentos de massas que antecederam zontal nas redes sociais. A ideologia não as eleições foram as ambíguas jornadas de apresentou uma base teórica e, verbaliza- junho de 2013 e os protestos pelo impea- da por youtubers sem reconhecimento in- chment da presidente Dilma Rousseff em telectual, hauriu sua força justamente no 2016. Eles não contaram com lideranças anti-intelectualismo. Movimentou, assim, partidárias influentes. o sentimento do homem médio, informado Mesmo desconsiderando os excessos tí- por ideias conspirativas, dogmas religiosos picos da disputa eleitoral, a esquerda jamais e preceitos morais. enfrentara um candidato que ameaçava Não obstante, a vitória de Bolsonaro exterminá-la. Nem concorrera numa cam- não foi um raio em céu azul, sem passado panha sem debate público, baseada princi- e sem história. Quando o mecanismo da palmente nas redes sociais e em aplicativos política oficial começou a girar em falso, de mensagens telefônicas3. Muito menos em 2013, a legitimidade das instituições confrontara um oponente que dispunha de derramou-se nas ruas, nas redes sociais e um ativismo em grande parte voluntário. pelos esgotos do whatsapp. Tratava-se do Dito de outra forma: o PT se acostumara desmoronamento de todo um conjunto de a monopolizar as ruas e agora enfrentava práticas e acordos que sustentaram um pa- pessoas com a camisa da seleção brasileira drão de disputa. de futebol que defendiam convictamente os Mas, agora, não se tratava do habitual seus pontos de vista conservadores. conflito entre tucanos e petistas. Não era ha- bitual que um ex-presidente se visse na obri- Que Fazer? gação de ensinar numa rede social que não havia votado no vencedor, mas que “divergir ão era fácil a dirigentes e intelectuais é direito nas democracias”. O professor Fer- Nacomodados a um ambiente político nando Henrique Cardoso deu a sua “lição” de relativa estabilidade entender o que se exatamente no feriado da República. passava. Desde a implantação da chamada Visivelmente, formara-se um “exército” Nova República, jamais um movimento de com predisposição não só a combater a es- massas autoconfiante se opusera à esquer- querda nas ruas, mas a substituir a direita de- da. Ele parecia dotado de tudo aquilo que se mocrática como um dos polos do circuito fe- recomendaria a qualquer agremiação revo- chado da política oficial. O curto circuito foi lucionária: um “partido de quadros”, com provocado pelos novos movimentos sociais capilaridade nas suas bases sociais, estrutu- da direita militante. Os próprios militares rado em torno de uma liderança e com uma se aproximaram da candidatura Bolsonaro, ideologia estabelecida. a tal ponto que pareciam tutelar o processo Apesar da aparência, os seguidores de eleitoral, segundo a leitura que a Comissão

3 Embora não seja desprezível a exposição gratuita que teve 4 https://www.brasildefato.com.br/2018/11/13/abriu-se- das redes de TV em função do atentado que sofreu. Além a-porteira-da-absoluta-ingovernabilidade-no-brasil-diz- disso. paulo-arantes/

62 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... Executiva Nacional do PT5 fez das declara- pondo-se ironicamente a um general que o ções do general Villas Boas. Nesse caminho considerou no passado um “mau militar”8. argumentativo, depois da militância e do O fato é que nenhum governo desde comando militar, faltava apenas a condução 1930 desmantelou completamente a Era política oferecida pela campanha eleitoral Vargas. A ditadura militar até promoveu o de Bolsonaro para se completar a tríade de avanço estatal sobre a economia durante o uma estratégia completa. governo do general Geisel. Collor fracas- De um ângulo radical, o filósofo Paulo sou em seu intento privatizante. Fernando Arantes captou o momento ao dizer que a Henrique Cardoso reposicionou a iniciati- eleição de Bolsonaro não significou a as- va privada em grandes setores de infraes- censão de um regime fascista. Nem os seus trutura, mas o Estado manteve instrumen- eleitores queriam que suas promessas mais tos regulatórios, influência indireta e a pro- repugnantes se realizassem. O que impres- priedade de outras empresas estratégicas. E sionou é que eles estavam tomados por tal não modificou a estrutura sindical. descrença contra os partidos e instituições Uma agenda oposicionista, portanto, que isso não os afetava “nessa vontade de ser implicaria uma atitude definida sobre a indiferentes a um horror que é anunciado”6. reforma da previdência, a privatização da Petrobras e dos bancos públicos e as leis Balanço e Perspectivas trabalhistas. Pontos de atrito mesmo entre PT e PDT, por exemplo. nicialmente, uma parte da esquerda conti- Os primeiros balanços na esquerda co- Inuou raciocinando como se tivesse sofri- meçaram já durante o segundo turno do do uma simples derrota eleitoral. Contudo, pleito eleitoral. Depois da derrota aparece- diferentemente de 1989, quando Lula per- ram as tentativas de traçar um futuro plau- deu a eleição, mas seu partido estava numa sível de atuação no quadriênio do novo go- tendência de acúmulo de forças sociais, verno e, por fim, gotejaram tímidos acenos agora houve uma derrota política. por uma frente oposicionista. Bolsonaro apresentou-se como admira- Embora a esquerda, lato sensu, possa dor da ditadura, mas desde que abraçou o abarcar um número maior de agremiações, liberalismo econômico mais radical, ficou seguramente é o PT o único partido que claro que ele se referia a uma ala específica desde 1989 monopolizou a representação daquele período: a chamada “linha dura” do chamado “campo popular” da política dos oficiais de médio escalão responsáveis brasileira. por torturas e desaparecimentos. Ao aban- O partido assumiu duas estratégias dis- donar o estatismo e o nacionalismo econô- tintas que se combinaram no final da cam- mico ele se tornou o antiGeisel7, contra- panha. A primeira foi a de Lula. A direção do PT insistiu em desafiar os limites da lei 5 http://www.pt.org.br/nota-do-pt-repudio-a-tutela-militar- e fazer uma pré-campanha aberta pela sua sobre-a-democracia/ candidatura. Paradoxalmente, foi vital para 6 https://www.brasildefato.com.br/2018/11/13/abriu-se- a-porteira-da-absoluta-ingovernabilidade-no-brasil-diz- isso que Lula aceitasse ser preso porque se paulo-arantes/ 8 https://www.institutoliberal.org.br/blog/politica/um- 7 A expressão é de Celso Rocha Barros na Folha de S. Paulo, conselho-para-bolsonaro-esqueca-geisel/ 22 de outubro de 2018.

...... o que fazer? (balanço e perspectivas da esquerda brasileira) ...... 63 tornou um fator eleitoral e, depois da der- moderação do discurso ou à radicalização rota, permaneceu como um fator político. social? Alguns avaliavam que o adversá- A estratégia tinha três pressupostos. Pri- rio tinha sua estratégia montada há alguns meiro: sem aquela campanha, Lula tenderia anos sobre a exploração de temas morais, a ser esquecido na prisão e seria impossível em que a esquerda não teria chances de mobilizar os militantes. O segundo, coro- combatê-lo. Por isso propugnavam um pro- lário do primeiro, era de natureza eleitoral: grama com forte apelo popular. desde a prisão Lula subiu entre 10 e 15 pon- Duas estratégias opostas não podem tos nas pesquisas, atingiu 39% e o seu par- conviver por muito tempo. E para solucio- tido obteve 29% da preferência partidária, nar a contradição é preciso encontrar a for- segundo o Ibope. O terceiro era o calcanhar ma em que seus polos podem se movimen- de Aquiles dessa estratégia: defender a con- tar, um à frente do outro. signa “Eleição sem Lula é Fraude” exigiria Ressaltar a democracia para setores mé- depois explicar ao eleitor que, após a subs- dios antipetistas exigiria que o partido fi- tituição do candidato, ele deveria sufragar zesse um giro em seu programa econômico. o PT numa eleição supostamente ilegítima. Teria que reconhecer com mais ênfase o pro- O PT é um partido eleitoral e jamais blema fiscal, o constante aumento dos gastos passou pela cabeça de seus dirigentes públicos acima do crescimento do PIB, dos boicotar a disputa presidencial. Assim, salários acima da produtividade e opor-se cumpriu o roteiro previsto: trocar o can- aos interesses de corporações estatais. didato, mas manter sua imagem atrelada Havia quem cobrasse a autocrítica do à herança lulista, vista como imprescindí- partido sobre sua forma de governabilida- vel para conquistar as bases mais fiéis no de pela corrupção de aliados e até quem interior do Nordeste. exigisse a indicação prévia de um nome do A outra estratégia foi a “Democrática”. mercado para o Ministério da Fazenda. Uma vez no segundo turno o PT, foi força- Confrontar o discurso social e até an- do a apelar a eleitores não petistas. Buscou tissistêmico em que Bolsonaro liderava, líderes da direita não extremista. Tal busca significava defender uma política de matriz foi infrutífera. Embora, no final do segun- keynesiana ou desenvolvimentista, recusar do turno, houvesse uma avalanche de apoio o chamado giro liberal do segundo governo social muito além do espectro petista, espe- Dilma e acenar com um Estado indutor da cialmente no mundo da cultura, das artes, da retomada de investimentos. mídia convencional e da juventude das ca- O PT tinha, de fato, posições que con- madas médias urbanas, poucos líderes políti- flitavam com a visão habitual dos grandes cos respaldaram Fernando Haddad. Entre os meios de comunicação, especialmente por candidatos, nem Ciro Gomes o fez de modo causa de sua defesa da Venezuela e de Cuba. explícito. Restaram os apoios do democrata Mas, teve um adversário que lhe facilitou a cristão José Maria Eymael, de Marina Silva rotação discursiva, pois sem as credenciais (Rede) e Guilherme Boulos (PSOL). democráticas que o seu tradicional antago- Na cúpula da campanha do PT se esta- nista, o PSDB, possuía. Isso apareceu tanto beleceu um debate interno: o partido deve- nas alocuções de Jair Bolsonaro, quanto em ria se voltar à ampliação das alianças e à casos reais de agressão durante a campa-

64 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... nha9. Por isso, a jornalista Miriam Leitão deles11. A incapacidade de soldar um bloco escreveu que “Bolsonaro sempre teve o dis- político no segundo turno deixava claro que curso autoritário. O PT nasceu, cresceu na o PT tinha uma longa marcha pela frente. democracia e sempre jogou o jogo demo- As duas linhas opostas não podiam con- crático; e governou respeitando as institui- viver, tampouco se afastar. Mais que me- ções democráticas”10. ras táticas12, elas desenhavam estratégias Havia tanto uma estratégia que visava de longo prazo, já que foram resultantes defender valores democráticos quanto ou- de uma derrota ampla da esquerda em três tra que tinha por escopo uma finalidade po- batalhas decisivas: as jornadas de junho de lítica: reconstruir as bases populares. Essa 2013, o impeachment em 2016 e as elei- duplicidade está nos documentos, nas falas ções em 2018. O intelectual petista Breno e nas atitudes que a esquerda produziu ao Altman disse claramente ao defender uma longo do ano de 2018. frente popular: não se trata de “suposto bloco tático de centro-esquerda, mas de um Frente Democrática ou Popular? pacto estratégico”13. Mesmo no início do ano, era perceptível s duas estratégias conduziram ao deba- para os dirigentes que, ainda na hipótese de Ate sobre a natureza de uma frente a ser uma vitória eleitoral, a esquerda não estaria constituída. Curiosamente, a esquerda já em condições de reposicionar-se como força tinha duas: a Frente Brasil Popular, nucle- hegemônica na sociedade brasileira. O PT ada pelo PT e partidos aliados. E a Frente publicou uma resolução intitulada “Por uma Povo sem Medo, basicamente centrada no frente de resistência pela democracia e pelos Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o direitos do povo”, na qual convocava os seus MTST. Ambas tiveram por expressão elei- diretórios regionais e municipais a se inte- toral, respectivamente, as candidaturas Ha- grarem com os movimentos sociais e as duas ddad e Boulos. frentes supracitadas e qualificava o novo pre- Com a débâcle dos democratas de di- sidente da República como “um aventureiro reita e de centro, a esquerda acreditou que fascista”. Isso se deu a 31 de outubro. tinha que lidar com dois caminhos contra- A nota lançada de chofre não fazia ne- postos: o da defesa de instituições em que podia encontrar terreno comum com políti- 11 A reação de Sergio Fausto contra um programa assim é representativa de um espectro da política brasileira que cos conservadores; e o de uma pauta econô- ainda “busca o juste milieu: seria preciso enterrar de vez mica “desenvolvimentista” que a separava o nacional desenvolvimentismo, sem dó nem piedade”. Valor Econômico, 12 de novembro de 2018. Note-se que ele falava acerca da reorganização de um “centro 9 Entre 30 de setembro e 11 de outubro houve 70 ataques, radical”, liberal, mas com preocupação social. entre agressões e ameaças físicas. Em 50 casos, as ações são atribuídas a apoiadores do candidato Jair Bolsonaro 12 Os termos “tática” e estratégia”, de origem militar, (PSL). Contra eles seis, e 15 indefinidas. Mas, este penetraram o jargão da esquerda socialista através da número não incluía as pichações racistas e de suásticas leitura de Clausewitz. Depois, foram vulgarizados pelos em escolas e universidades. https://exame.abril.com.br/ partidos eleitorais de várias correntes. Para definições, brasil/os-impactos-da-polarizacao-politica-na-saude- vide: Clausewitz, C. Von. De la Guerre. Paris: Éditions mental-de-brasileiros/. Houve destruição de livros, cantos de Minuit, 1955; Golbery. Conjuntura política Nacional. homofóbicos, ataques a pessoas com camisas do PT e Rio de Janeiro, José Olympio, 1981, pp. 148-9. do MST e a morte do mestre capoeirista baiano Moa do Katende. Vide Folha de S. Paulo, 9/10/2018. 13 https://blogs.operamundi.uol.com.br/ brenoaltman/2017/08/18/frente-ampla-ou-frente- 10 O Globo, 13 de outubro de 2018. popular/

...... o que fazer? (balanço e perspectivas da esquerda brasileira) ...... 65 nhum balanço político das eleições. Ora, temos culpa de ter construído uma história PT, PDT, PSB, PSOL e PCdoB somaram que, mesmo nessa voragem toda, nós tive- 160 cadeiras no congresso e se tornaram mos esses votos. Nós temos um número o núcleo da oposição parlamentar. Alguns grande de deputados, governadores, não é dirigentes consideraram a possibilidade de pela beleza dos nossos olhos ou por querer atrair as 63 cadeiras somadas do MDB e sermos hegemonistas, é porque temos uma PSDB em torno dos temas constitucionais proposta e, com isso, nós comparecemos à sensíveis à democracia. Para o deputado mesa e nos colocamos à disposição. Nós federal José Guimarães, secretário de As- não queremos mandar em nada, mas tam- suntos Institucionais do PT, a nova frente bém não vamos esconder essa força. Eles poderia abrigar não apenas aliados históri- podem ficar tranquilos, nós temos autocrí- cos do PT, mas também setores do PSDB e tica suficiente para não querer fazer a hege- até mesmo do MDB. monia, o hegemonismo”16. Guimarães tocou ainda num ponto sen- Já na expressão de Valter Pomar, reco- sível. Como combinar uma “ampla frente” nhecido intelectual da esquerda do partido de oposição a Bolsonaro no Congresso com e secretário executivo do Foro de São Pau- uma liderança petista que foi recusada pelo lo, “quem não constrói hegemonia, é hege- PDT? A resposta do petista foi: “protagonis- monizado”. Para ele, há diferentes estraté- mo não significa hegemonismo”. Numa dan- gias na oposição e, “por isto, não se deve ça hermenêutica continuou: “Não podemos tentar colocar toda a oposição numa camisa dar nem guinada à esquerda nem à direita"14. de força, num leito de Procusto. É melhor Enquanto a liderança do PT curtia a trabalhar com uma política de alianças e derrota, os irmãos Gomes anunciavam de frentes diversificadas, que incluam uma um bloco na Câmara dos Deputados com frente popular, em que se encontram as for- PDT, PSB e PCdoB. Os comunistas tive- ças que vertebraram a luta contra o golpe e ram a vice Manuela D’ávila na chapa do contra a extrema-direita” e um movimento PT e foram aliados dos petistas em todas as amplo em defesa das liberdades democrá- eleições desde 1989. O senador eleito Cid ticas17. Gomes defendeu mais tarde que não seria Em visita ao Congresso Nacional, Fer- “nem oposição sistemática nem situação nando Haddad disse que para além da automática”. Faria oposição programática agenda “popular” há “uma frente que pode que se traduziria, apesar disso, na criação galvanizar um apoio ainda maior, que é de um bloco de 17 senadores de várias le- dos direitos civis, porque há pessoas que gendas15. não têm tanto apreço pelos direitos sociais, Gilberto Carvalho, ex-assessor e conse- como SUS e Previdência Pública, mas têm lheiro do presidente Lula, já tinha declara- sensibilidade para pauta ambiental e escola do que “nós não temos culpa de ser o par- pública laica”18. tido do tamanho que nós temos (sic). Não 16 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46087156 14 http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/584237-apos- 17 https://valterpomar.blogspot.com, 7 de novembro de 2018. alianca-eleitoral-pcdob-ja-articula-formacao-de-bloco- sem-o-pt-na-camara 18 https://www.poder360.com.br/partidos-politicos/haddad- estuda-entrar-com-acao-contra-whatsapp-nos-estados- 15 O Estado de S. Paulo, 19 de novembro de 2018. unidos/

66 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... A extrema direita apresentou-se contra sociais, uso de telefones móveis… Poder- o modus operandi tradicional da política. -se-ia passar horas acrescentando elemen- Um novo software que se desconfia não ser tos que concorreriam para o debate que a suportado pelo hardware das instituições esquerda faz, aliás mundialmente, sobre as republicanas. Deveria a esquerda esperar razões de sua perda de apoio social na clas- algum bug, ou seja, um impasse institucio- se trabalhadora urbana. nal? A opção parece muito mais a de se pre- Em comparação com o 2º turno de 2014, parar para uma maratona, na expressão de os votos do PT caíram 7,7 milhões. Destes, Pomar, do que tentar desde logo um sprint. a maior perda foi de 4,8 milhões no Sudes- te. No 2º turno havia 24,1 milhões de votos As Bases em disputa. Destes, Bolsonaro ficou com 8,4 milhões (35% dos votos disputados) e s eleições presidenciais de 2014 e Haddad com 15,6 milhões ou 65% dos vo- A2018 mostraram que o PT se sustentou tos em disputa. eleitoralmente na pobreza rural. Os traba- O crescimento de Fernando Haddad na lhadores urbanos não mais se reconhece- última semana de campanha não foi fruto ram nele. E mesmo nas cidades do ABC apenas de uma reorientação da propaganda paulista, onde ele já foi governo. de televisão e da mensagem do candidato. Num comício nos arcos da Lapa, Rio Resultou de um levante espontâneo de uma de Janeiro, o rapper Mano Brown afirmou militância democrática que foi às ruas. que o PT deixara de falar a linguagem do Embora o uso de fake news e o apoio de povo19. Apesar do tom crítico, a fala foi in- empresas via caixa dois para o candidato corporada por diferentes correntes petistas Jair Bolsonaro tenham sido denunciados ao e interpretada como a necessidade de “vol- Tribunal Superior Eleitoral, intérpretes de ta às bases”. Mas, há um lugar para voltar? posições muito diversas concordaram que A notícia de que a CUT poderia vender sua não foi o uso de novas “armas” o que deter- sede nacional no Brás, em São Paulo, para minou o desfecho da disputa. uma igreja evangélica, foi mais um sinal É verdade que as redes sociais incre- das transformações da classe trabalhadora. mentaram a “velocidade de marcha” dos As mudanças no chão de fábrica, a ro- militantes e a explosão de ondas de opinião botização, terciarização da população eco- pública. Os deslocamentos de votos foram nomicamente ativa, terceirização de fun- assustadoramente rápidos no Rio de Janei- ções, queda na sindicalização, degradação ro, onde o juiz Witzel pulou de um posto de áreas urbanas e “gentrificação” de ou- insignificante nas pesquisas para o primeiro tras, esvaziamento das ruas, dos comícios, lugar em poucos dias. violência e desamparo, trabalho rotativo Essa nova situação colocou as enquetes e precário, pentecostalismo e descenso da e outros instrumentos tradicionais, como o teologia da libertação, ascensão pelo mer- uso de televisão, em segundo plano nas lu- cado de consumo sem correspondente vida tas eleitorais? comunitária e organização política, redes O diagnóstico partiu de intérpretes de posições políticas e institucionais diversas. 19 Folha de S. Paulo, 23 de outubro de 2018. Quando as pessoas dizem que a TV não

...... o que fazer? (balanço e perspectivas da esquerda brasileira) ...... 67 teve importância, é o contrário, segundo des de formação política e ativismo local Marcos Nobre20. Embora o PSL não tivesse terão que se juntar à utilização das novas tempo na TV, o atentado contra Bolsonaro ferramentas de comunicação. A esquerda deu a ele uma exposição desmedida. tinha trocado as ruas por programas caros Tatiana Roque e Fernanda Bruno cha- de marketing na TV e que a conduziram maram a atenção para a destituição dos lu- aos atalhos do financiamento ilegal. Agora gares de mediação da imprensa, dos políti- precisa voltar às ruas e otimizar o uso das cos e dos intelectuais21, mas pode ser que novas tecnologias. as igrejas evangélicas tenham cumprido o Na sua reinvenção da política, a extrema papel de um verdadeiro partido popular nas direita não só se apropriou do meio digi- franjas inorgânicas das grandes e médias tal em troca do analógico e da propaganda cidades que deram a vitória a Bolsonaro. dispersa pela focalizada, mas também re- “Nem tudo foi fake news”, sentenciou o cuperou velhas táticas da esquerda, como cientista político Jairo Nicolau22. Ele acres- o proselitismo, as passeatas, reuniões pre- centou que os vídeos difundidos com eficá- senciais e identificação visual. Para grupos cia pela campanha do PSL eram reforçados com menor poder econômico, o verdadeiro pela ação de pastores e lideranças empre- algoritmo consiste no conhecimento indi- sariais previamente comprometidas. O ex- vidual, na conversa tête-à-tête, no almoço -ministro José Dirceu foi taxativo23: as fake de domingo, na socialização familiar, da news tiveram seu papel porque a esquerda igreja, da festa, do esporte etc. É no chão não estava mais organizada na base da socie- da fábrica, da escola, das torcidas, das as- dade como as igrejas evangélicas estavam. sociações de bairro, sindicatos, dos movi- Paulo Arantes, na entrevista já citada, con- mentos locais, das igrejas e universidades, siderou as fake news irrelevantes para expli- no solo histórico das comunidades que se car como um grupo folclórico sem nenhum dá a disputa por hegemonia. programa conseguiu interpretar e liderar um movimento de massas rumo ao poder. Hegemonia Por uma ironia da história, o avanço tec- nológico parece descartar os produtos da queles que à esquerda do PT denun- Revolução Tecnológica anterior e resgatar Aciavam os limites de seus governos, técnicas de luta ainda mais antigas, como o agora vislumbram as barreiras que o parti- uso da “infantaria” dos partidos, sindicatos do impunha à direita. e movimentos sociais, doravante coorde- A vitória da extrema-direita ocorreu num nadas com o uso intensivo dos robôs e da contexto de interrupção do seu crescimento nova “artilharia” na internet. Possivelmen- no segundo turno, como vimos, o que, soma- te, a ocupação permanente de territórios, a do aos primeiros conflitos com a mídia e o construção de laços comunitários, ativida- congresso antes mesmo da posse, pode reco-

20 https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/14/ locar o PT como polo antagônico reconheci- politica/1542228843_630245.html do na sociedade civil. Mas, ao seu lado, há 21 Folha de S. Paulo, 18 de novembro de 2018. outras forças. Desde uma reconfiguração do 22 Revista Piauí, n. 146, novembro de 2018. centro até outras formações na esquerda. 23 https://www.youtube.com/watch?v=nuizKIA6n9k A disputa interna entre o segundo e o

68 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... terceiro colocados, PT e PDT, tornou-se estratégias será a subordinante e qual a su- inevitável. O PT é grande demais para não bordinada. Se optar pelo discurso popular, ser hegemônico na esquerda. Embora o manterá a campanha pela liberdade de Lula candidato do PDT tenha obtido cerca de 12 em primeiro plano, mas terá que combiná- milhões de votos no primeiro turno, ele não -la à liderança de Haddad ou de outro. Se dispõe de uma rede nacional de movimen- priorizar a defesa da democracia, terá que tos e sindicatos. integrar de maneira subalterna uma frente O fim da contribuição sindical obriga- mais ampla. tória atingiu o patrimônio e funcionamento A contradição não impede que o parti- dos sindicatos e o novo governo prometeu do faça as duas coisas, porque sem apoio atacar todo ativismo social. Mesmo assim, popular prévio não haverá defesa real das essas redes de articulação política perma- liberdades democráticas. E, na visão de necem vitais para a reorganização de qual- muitos dirigentes, com a campanha “Lula quer pretensão da esquerda e até mesmo Livre”, o PT não apenas mantém grande para a manutenção dos conflitos sociais nos parte do seu eleitorado, mas a própria uni- marcos democráticos. dade interna do partido. Ou nas palavras de Retomar os núcleos de base foi uma das Ricardo Musse: o PT sem Lula seria uma promessas da presidente do partido, Gleisi “força sólida, mas muito minoritária”25. Hoffman24. Em 2018, o PT estava estrutu- Cabe lembrar que Lula pode simbolizar a rado em aproximadamente 90% dos muni- democracia para círculos pequenos da es- cípios do país. Nenhum partido na esquerda querda, mas representa uma pauta social tem essa capilaridade social e geográfica. para a maioria de seus apoiadores. Ainda Por outro lado, Fernando Haddad venceu que ele tenha uma trajetória de conciliador, em 11 estados, sendo nove no Nordeste, re- ele se tornou o polo oposto ao bolsonaris- gião em que o PT elegeu seus únicos quatro mo: a negatividade. governadores (o PCdoB venceu no Mara- Todo o sucesso da reinvenção da po- nhão e o PSB em Pernambuco). Embora lítica pela extrema-direita reside numa o partido não tenha se tornado regional, é contradição: ela precisou polarizar para evidente que perdeu força nacional. vencer, mas não pode reconciliar para go- As pautas LGBTQ, feministas, raciais e vernar. Algo que os partidos estabelecidos de direitos humanos tendem a retornar ao no executivo e no congresso conseguiram leito da “luta de classes”. O centro da estra- até 2013, porque acordaram as regras tan- tégia popular passa a ser a formação de um to explícitas quanto ocultas do jogo e sus- bloco de oposição social ao governo e uma tentaram um programa mínimo de gestão alternativa eleitoral para as disputas mu- macroeconômica. O exemplo da Turquia, nicipais de 2020. Uma única oposição, no mutatis mutandis, pode ser evocado. Um entanto, é improvável porque a pluralidade poder autoritário sobre uma sociedade pro- na esquerda é incontornável. fundamente dividida26. Por isso, o próprio Nessa diversidade, o PT continuará sen- do a força hegemônica se definir qual das 25 https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/27/ politica/1540648262_975469.html 24 Entrevista a Juca Kfouri na TVT no dia 6 de novembro 26 Zürcher, E.J. Turkey: a Modern History. London: Tauris, de 2018. 2017, p.X.

...... o que fazer? (balanço e perspectivas da esquerda brasileira) ...... 69 discurso governista reforçará o PT como Mas, a questão que permanece é: se o seu polo antitético. próprio terreno da administração das coisas Além disso, o partido continuará cobrado desmanchou, como pode a esquerda voltar a fazer autocrítica. A estratégia democrática ao poder sem emular a força militante que de aproximação com setores médios exigiria a extrema-direita construiu nas ruas desde acertar contas com o problema da corrup- 2013? E sem um programa para o caos ins- ção. Mas, na citada entrevista de Gilberto tituído? Sem ter alternativa à insegurança Carvalho, ele declarou: “Nós não fizemos das pessoas comuns? Sem resolver o drama antes e vencemos eleição de 2006, 2010 e de uma economia que expulsa a classe tra- 2014. Essa exigência externa que se coloca balhadora para serviços precários ou o para pra nós, e que as pessoas dizem que não gos- o desemprego estrutural? tam e não votam no PT por causa disso, isso Os vencedores de hoje ofertaram uma é bobagem. Não nos iludimos por ela, por- rota e um timoneiro. Por pior que ele seja, que em geral isso é estribo para uma rejeição é preferível do que ficar à deriva. Foi assim que é classista, que é de outra natureza”. que pensou parcela dos seus eleitores. Antes de tudo, é preciso reconhecer Conclusão que o grupo vencedor soube dirigir um amplo movimento massivo de contesta- ara retomar os termos da entrevista cita- ção social; difundiu uma promessa antis- Pda de Paulo Arantes, “abriu-se a portei- sistêmica; promoveu alianças com igrejas ra da absoluta ingovernabilidade no Brasil de base popular; incorporou as demandas (...). Não há mais nenhum tipo de acordo de outros setores corporativos; manteve de concertação social entre as várias cate- uma intransigência “doutrinária” mesmo gorias sociais, empresários, bancos, agro- às expensas do isolamento, da marginali- negócio (…). Não há mais acordo possível zação e do ridículo; e, tolerado, mas não (…). Tanto é que ocorreu o impeachment, apoiado pelas elites, escolheu temas po- que era absolutamente desnecessário”. É pulares, desafiou partidos históricos, lí- na busca desse impossível acordo que a es- deres reconhecidos, teorias consagradas e querda prossegue para ser uma alternativa instituições sólidas. Combateu o sistema a um governo que talvez não entregue se- em nome da ordem. quer uma parte do que prometeu aos seus Pode-se discutir a validade moral dos eleitores. A aposta, não só da esquerda, mas métodos, o conteúdo do programa, a qua- também de um “centro radical” e de libe- lidade dos quadros dirigentes, a consis- rais moderados é que a arquitetura de uma tência da liderança e sua disposição para democracia racionada, em que forças mo- enfrentar o contraditório e suportar as deradas se sucedem no poder e se resumem conjunturas adversas; pode-se dizer que a diferentes formas de gestão de conflitos foi a fortuna que lhe favoreceu; que não sociais, com maior ênfase na igualdade e havia oportunidade histórica para uma al- no aumento da renda do trabalho, ou na efi- ternativa no centro ou na esquerda; citar as ciência produtiva e ganhos do capital, sem- idas e vindas nas declarações públicas e as pre se reconstitui. Basta um período susten- possibilidades concretas de fracasso. Mas, tado de crescimento econômico. o fato é que, ainda assim, ele venceu. O

70 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... patético e limitado para uns, foi o honesto cida dessa necessidade e realisticamen- e forte para outros. te atada à diversidade de interesses que É preciso aceitar a verità effettuale atravessam os partidos. Não haverá uni- della cosa da qual falava Maquiavel. E ver dade, mas pode haver união em torno de nela mesma também possibilidades realis- lutas concretas. tas de mudança. O tempo curto e agitado do dia a dia é a Traçar cenários diante de tanta incerteza mais enganosa das durações, como escrevia é muito difícil. Até um acontecimento ines- o historiador Fernand Braudel. Vistas pelo perado pode mudar tudo. Mas, independen- historiador com distanciamento, as mani- temente disso, caberá à esquerda construir festações de pânico ou excitação da super- políticas que apontem para rumos seguros fície dos acontecimentos são efêmeras e se em meio à tormenta. Reagrupar-se em tor- desfazem na espuma dos dias. Ao político no de questões capazes de produzir amplos não é fácil diferenciar tendências perma- consensos. Gerar regularidades em meio ao nentes e oscilações casuais. Mas, se estiver diversionismo do novo governo. conectado à infraestrutura da sociedade Como já vimos acima, parte dos diri- civil, reconhecerá o trabalho silencioso da gentes está surpreendentemente conven- velha toupeira.

...... o que fazer? (balanço e perspectivas da esquerda brasileira) ...... 71 O Brasil da Transição Civilizada (2003) à Eleição Polarizada (2018). O Papel das Instituições nos Avanços e Retrocessos

Sergio Abreu e Lima Florencio

“É mais fácil ensinar um engenheiro a ser socialista política o padrão de avanço virtuoso e recuo do que um socialista a ser engenheiro” vicioso é visível. Uma transição presiden- Seymour Lipset cial reconhecidamente civilizada no início (Agrarian Socialism)1 do milênio criou as condições necessárias à passagem de uma era de estabilização e Introdução reformismo econômico (FHC) para um pe- ríodo de aprofundamento e ampliação de Brasil foi a economia com a se- políticas sociais (Lula). Entretanto, uma vez gunda maior taxa de crescimento mais, o fantasma do retrocesso econômico e Odo PIB, no período 1900-1987. do impasse político se materializou e aque- Mas, a partir do início da década de 1980 la transição civilizada de 2002 involuiu, em até 2016, a expansão econômica se situou 2015 e 2016, para a maior recessão dos últi- entre as mais baixas do mundo. Também na mos 100 anos, no impeachment e na eleição polarizada de 2018. 1 Exemplo de resistência ao aparelhamento político, em Abundantes e recorrentes são os exem- 1944, na experiência de socialismo agrário na província de Saskatchevan, no Canadá. Defensor de um serviço plos históricos dessa oscilação ciclotímica social isento criticava diretriz partidária destinada a de um país que, ao aproximar-se de uma substituir competência profissional (engenheiro) por fidelidade partidária (socialista). S.M.Lipset, Agrarian trajetória mais sólida de desenvolvimento, Socialism. Citado por Guerreiro Ramos em Administração regride a um padrão de políticas econômi- e Estratégia do Desenvolvimento. Fundação Getulio Vargas. Rio de Janeiro. 1966. P.260. cas insustentáveis e a um modelo político de extrema polarização. Se tomamos apenas o início e o fim de períodos longos, uma vi- Sergio Abreu e Lima Florencio é diplomata de carreira. Em- baixador em Quito, Genebra (ONU) e Cidade do México. Foi são impressionista vai-se formando: o país pesquisador e diretor de Economia e Política Internacional do avança, mas insiste em voltar atrás. É a sín- Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). Mestre drome do retrovisor. em Economia pela Ottawa University. Foi professor adjunto Comparar – sob a ótica das instituições de Latin American Studies da Simon Fraser University ( Van- couver). Atualmente, é professor do Instituto Rio Branco do – essa trajetória de uma década e meia, bem Ministério das Relações Exteriores. como os dois anos que marcam o início e

72 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... o fim desse período – 2003 e 2018 – pode mente associado ao trabalhismo varguista, o lançar alguma luz sobre os sombrios enig- corporativismo era também um reflexo nos mas de hoje. trópicos do fascismo italiano, cuja Carta del Lavoro inspirou a nossa CLT. O corporativismo e a deformação de Como versão local do corporativismo instituições inclusivas em extrativas2 italiano, o trabalhismo de Vargas rejeitava o conflito social e insistia na cooperação en- orporativismo tem sua origem nas cor- tre trabalhadores e patrões, supervisionado Cporações de ofício da Idade Média, que pelo Estado. Assim, próximo ao fascismo, se destinavam a regulamentar as atividades o autoritarismo do Estado Novo tinha como dos artesãos por meio de restrições à entrada um de seus ideólogos Oliveira Viana que, de novos profissionais e de assistência e pro- em seu livro Problemas de política objetiva, teção a seus membros. investia contra a democracia representativa. No Brasil, como assinala Roberto da “Hoje, o centro de gravidade da vida política Matta, o termo tem uma conotação negati- não é mais o Parlamento, e sim o Gabinete.” va, pois sendo “sinalizador de proteção”, re- Apesar dessas afinidades ideológicas, serva de mercado e privilégio, é um enredo como bem lembra José Murilo de Carvalho, incompatível com o esforço de viver, tendo “não se tratava de fascismo ou nazismo, que a igualdade, o mérito e a eficiência como recorriam a grandes mobilizações de massa. valores”. Nesse sentido, corporativismo nos O Estado Novo não queria saber de povo nas remete ao conhecido “Você sabe com quem ruas... Era um regime mais próximo do sala- está falando?” zarismo português, que misturava repressão Historicamente, a Justiça do Trabalho – com paternalismo.” Uma dimensão relevan- criada pela Constituição de 1934 – e a Con- te da Revolução de 30, associada à industria- solidação das Leis Trabalhistas (CLT), de lização e à urbanização foi certa inflexão na- 1943, que incorpora dispositivos anteriores, quilo que ele próprio chamou de “o pecado constituem a base do corporativismo sindi- original da República” – a ausência do povo. cal brasileiro. Esse resistiu, como assinala O propósito político da Justiça do Trabalho Mailson da Nóbrega, às inúmeras transfor- e da CLT era tanto promover a proteção aos mações sociais e econômicas ao longo de trabalhadores como cercear a organização mais de 80 anos e hoje sobrevive como “o coletiva autônoma dos trabalhadores. resquício mais conspícuo da era Vargas”. Essa última característica moldou o papel O corporativismo da era Vargas resulta dos sindicatos brasileiros. Considerados ór- do surto industrial que surge com a crise de gãos do Estado pela própria Constituição de 1929 e traz no seu bojo a ascensão do ope- 1934, essas entidades, ao serem oficializadas, rariado urbano como força social. Intima- assumiam o monopólio da representação da classe (a chamada unidade sindical) e, assim, 2 Instituições inclusivas asseguram direitos de propriedade e oportunidades econômicas não só para a elite, mas deixavam de ser veículos de luta do opera- para um amplo espectro multissetorial da sociedade. riado para se transformar em instrumentos Instituições extrativas defendem apenas grupos de interesse localizados, com exclusão de benefícios para políticos do Estado. Os sindicatos – apoiados o conjunto da sociedade e, assim, não criam incentivos pelo imposto sindical (1941), pago por todos necessários para poupar, investir e inovar. (Why Nations Fail. Daron Acemoglu & James A. Robinson). os trabalhadores do país, sindicalizados ou

...... o brasil da transição civilizada (2003) à eleição polarizada (2018)...... 73 não – tinham como dirigentes os “pelegos”, dade, sua sobrevivência, por mais de oito ligados ao Ministério do Trabalho e, portanto, décadas, alienada das grandes transforma- destituídos de qualquer autonomia. ções no país e no mundo, constituiu o grande Esse marco regulatório refletia, por um equívoco do corporativismo no Brasil. lado, a vocação autoritária do trabalhismo Esse equívoco gerou inúmeras distor- que moldou o corporativismo dos anos 30 e ções, apontadas por Mailson da Nóbrega, 40, mas, ao mesmo tempo, representava vi- sendo duas delas particularmente represen- sível avanço nas conquistas sociais de uma tativas de nossa grave deformação corpora- classe operária urbana até então à margem tiva: (i) o exagerado número de sindicatos do processo político. Mestre em equilibrar autorizados a funcionar no país (cerca de 16 antagonismos, Vargas ampliou direitos e mil), em contraste com 775 no Canadá, 168 garantias da classe trabalhadora, tais como: no Reino Unido, 164 na Dinamarca, 138 na carteira de trabalho, previdência social, fé- Nova Zelândia e 59 na Suécia; e (ii) nossa rias anuais, jornada de oito horas de trabalho condição de campeão mundial de causas tra- e Juntas de Conciliação e Julgamento para balhistas (4 milhões, em comparação com 3 arbitrar conflitos trabalhistas. mil no Japão), em grande medida resultantes Além desses avanços concretos na polí- de uma Justiça do Trabalho que, criada para tica trabalhista, o serviço público foi objeto mediar conflito entre o capital e o trabalho, de racionalização, com o recrutamento de transformou-se na sua maior fonte. pessoal com base em concursos, criação de Essa deformação corporativista responde planos de carreiras, iniciativas essas a cargo em grande medida pelo desvirtuamento de do Departamento Administrativo do Serviço muitas de nossas instituições que, gestadas Público (Dasp), criado em 1938 como órgão nos anos 1930 e 1940 com vocação “inclu- dotado de importantes funções e ligado dire- siva”, foram adquirindo o perfil de institui- tamente à Presidência da República. ções “extrativas”, na conceituação de Ace- Em contraste com a política clientelista moglu e Robinson. da Primeira República, Vargas representou O presente texto interpreta essa defor- um caso raro de um regime ditatorial que mação de nossas instituições como a fonte adotou critérios weberianos para institucio- geradora de muitos dos graves problemas do nalizar a gestão da máquina estatal. Com Brasil de hoje. Assim, cabe indagar onde se muita propriedade, Boris Fausto lembra situariam as origens do desvirtuamento de que “o Estado Novo procurou reformular nossas instituições e quais seriam suas cau- a administração pública, transformando-a sas mais profundas. em um agente de modernização. Buscou-se criar uma elite burocrática, desvinculada da O Brasil de hoje e o papel das instituições política partidária e que se identificasse com os princípios do regime. Devotada apenas a perspectiva de Raymundo Faoro, o aos interesses nacionais, essa elite deveria Ncomportamento do estamento burocrá- introduzir critérios de eficiência, economia tico é responsável, em grande medida, pelo e racionalidade.” patrimonialismo e, nesse sentido, explica Se o saldo desse trabalhismo da era Var- muito de nossa história. Diferentemente gas foi evidentemente positivo para a socie- do determinismo marxista entre estrutura

74 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... econômica e superestrutura politica, Faoro Robinson. Esse modelo institucionalista atribui ampla autonomia ao Estado e daí, ao pode lançar luzes para compreender o Brasil estamento burocrático, embora esse também de hoje. A diferença entre países resulta da seja, em alguma medida, expressão dos “do- diferença entre suas instituições – essa é a nos do poder”. Algumas das ideias de Faoro mensagem central do livro. são retomadas por Guerreiro Ramos, que, Os autores traçam um paralelo entre a entretanto, direciona a análise para o papel trajetória dos países hispano-americanos e da burocracia e das instituições em geral dos Estados Unidos que não têm como di- na promoção do desenvolvimento. Analisa ferenciação os fatores convencionais: geo- mais a fundo a relação entre o estilo do sis- grafia (clima ou solo); economia (recursos tema político e o tipo de burocracia. naturais); política (monarquia versus repú- Nesse contexto, para Guerreiro, a poliar- blica); religião (protestantes versus católi- quia prevalecente em países da Europa Oci- cos); cultura (ética do trabalho versus ética dental e nos EUA, tende a estimular buro- do fidalgo). cracias modernizantes, conforme o modelo O fator diferenciador fundamental reside weberiano de administração racional-legal. no perfil das instituições. A consequência Dentro dessa mesma linha, na poliarquia natural foi a emergência de instituições in- limitada (Brasil), embora a burocracia não clusivas nos Estados Unidos, em contraste exiba aquele padrão, demonstra perfil mo- com instituições extrativas na América La- dernizador, mas apenas em períodos restri- tina. Nas primeiras vigoravam contratos que tos. Isso ocorre porque o grupo no poder o definiam os papéis da Virginia Company exerce em moldes monopolísticos e, assim, e dos colonos. A segunda se ancorava na se apoia ora em um, ora em outro grupo de instituição da encomienda – o indígena era pressão. Essa ciclotimia explica tanto o re- obrigado a pagar impostos e trabalho ao en- curso às “derrubadas”, por meio de golpes comendero, que em troca tinha o dever de de Estado e intervenções militares (Brasil converter os nativos ao cristianismo. pós-Revolução de 1930 até 1985), como a A distinção fundamental entre os dois recorrente eliminação da alternância no po- modelos não residia na economia, pois a Co- der pelo voto (populismo recente na Améri- roa espanhola se tornou a mais rica e afluente ca Latina e no Brasil). da Europa, mas no perfil das instituições. Os Assim, o jurista (Faoro) e o sociólogo exemplos cobrem nações de todos os conti- (Guerreiro) valorizam o papel das institui- nentes – Argentina, México, Barbados, Zim- ções. O primeiro com um olhar cético voltado bábue, Coreia do Norte, em contraste com para o estamento burocrático como veículo Estados Unidos, Grã-Bretanha, Botswana e do patrimonialismo. O segundo com um foco Coreia do Sul. no desenvolvimento e voltado para o papel Episódios ilustrativos incluem também construtivo de burocracias modernizantes. personalidades emblemáticas de seus pa- Essas duas visões convergem, em grande íses – o contraste entre a riqueza de Bill medida, para o modelo institucionalista – Gates e de Carlos Slim. O primeiro, cria- inspirado em Douglas North – presente, com dor de sistemas informáticos e de uma das uma perspectiva mais ampla, no livro Why empresas mais avançadas tecnologica- Nations Fail, de Daron Acemoglu e James mente do mundo. O segundo fez sua for-

...... o brasil da transição civilizada (2003) à eleição polarizada (2018)...... 75 tuna graças a conexões políticas, à espe- clusivas versus instituições extrativas – o culação na Bolsa de Valores mexicana e presente texto parte da premissa de que os com a aquisição da Telmex. A régua que alicerces então assentados por Vargas eram diferencia instituições inclusivas e extrati- do tipo inclusivo. vas é ilustrada com um exemplo bem didá- Na esfera política, a Revolução de 30 foi tico: o hiato entre as instituições na Coreia produto da convergência de duas dissidên- do Norte e na Coreia do Sul – países que cias. No âmbito das oligarquias – o esgota- até no final da Guerra da Coreia, em 1953, mento da política de governadores, com a exibiam homogeneidade em termos de ge- aliança entre Minas e Rio Grande do Sul. No ografia, etnia, economia e cultura. seio do Exército – a emergência do tenen- Ao contrário do que pode parecer, Why tismo como força político-militar, em con- Nations Fail não prega um sermão ultrali- traposição à hegemonia dos generais. Com beral. Instituições públicas inclusivas e um essa base de sustentação – evidentemente aparelho estatal coerente com esse perfil ins- frágil como ficou visível com a Revolução titucional são fundamentais para construir Constitucionalista de 32 –, Vargas construiu um desenvolvimento sustentável e afastar uma complexa engenharia política que com- o fracasso de uma nação. Não há receita de binou cooptação do tenentismo moderado Estado mínimo. com o apoio de setores da oligarquia. O argumento central do presente artigo A criação de instituições foi crucial nes- é que na década de 1930, o Brasil construiu sa engenharia política, como se tornou evi- um conjunto de instituições que moldaram dente com a “estabilidade autoritária” da era muito da trajetória do país. Enquanto naque- Vargas, que culminou na brutal ditadura do la década eram instituições inclusivas, nas Estado Novo. décadas subsequentes –, mas sobretudo a partir dos anos 1980 e, com ênfase nos últi- Vargas rompeu com a engrenagem mos 15 anos – foram mudando de perfil e se política oligárquica deformaram em instituições extrativas. Muitas das razões para essa deformação pesar desse quadro de autoritarismo estão solidamente presentes em nosso país – Apolítico e violações de direitos huma- gigantismo do Estado, privilégios corporati- nos, o período Vargas inaugurou instituições vos, capitalismo de compadrio, privatização que abriram caminho para a ruptura com do público, superproteção tarifária e fiscal a a engrenagem política oligárquica e uma empresas, deformação da justiça trabalhis- maior distribuição de poder para as classes ta, excessiva constitucionalização temática, médias, representadas pela industrialização inflação de direitos sem amparo econômico na economia e pelo tenentismo na política. para assegurá-los, irresponsabilidade fiscal. Na classificação de Acemoglu e Robinson, As instituições que emergiram da Revo- Vargas terá criado instituições inclusivas. lução de 30, do Estado Novo e do segundo Mas, um salto de cerca de seis décadas período Vargas (1951-1954), constituíram e meia, do final do segundo período de Ge- os alicerces do moderno Estado brasileiro. túlio até os dias de hoje, revela que, embora Tendo como referência o modelo binário fortalecidas e dotadas de muito mais ampla de Acemoglu e Robinson – instituições in- participação popular, as instituições-síntese

76 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... da democracia – Legislativo, Executivo e Os estudiosos do envolvimento dos mi- Judiciário – estão sob teste de estresse em litares na política brasileira – Alfred Stepan, consequência de profunda e generalizada José Murilo de Carvalho, entre muitos ou- perda de legitimidade junto à população. A tros – tendem a ressaltar que, historicamente, classe política desacreditada gera um clima a atuação política da corporação se deu em de indignação popular, de divisionismo so- resposta a pressões da sociedade – sobretudo cial e de polarização política. Coincidente classes médias. A resultante dessas pressões com o atual período pré-eleitoral, a conse- pode ser simbolizada na síndrome golpismo quência concreta parece ser a emergência versus legalismo. Assim, em alguns momen- de escolhas políticas pautadas por extremos tos de nossa história, as Forças Armadas atu- situados à esquerda e à direita do espectro aram como agentes de ruptura institucional ideológico. O embate entre os dois lados ga- (Revolução de 30 e Regime Militar de 64), nha agressividade. em outros, como forças legalistas (ultimato Se estivéssemos vivendo cinco décadas para queda de Getúlio em 45, “golpe preven- ou mais atrás, teríamos mais um episódio tivo” do Marechal Lott em 10 de novembro de regresso dos militares ao poder. Regres- de 1955, em favor da legalidade e da posse so ostensivo, como no regime militar de de JK, garantia da posse de Goulart em 1961, 64, ou latente, como nos diversos episódios embora em um regime parlamentarista). que pontuam nossa história política: Estado O Brasil de hoje reflete o legado de Novo de 1937; destituição forçada de Var- grandes inflexões na trajetória recente do gas em 1945; segundo período de Vargas, país. Fim do regime militar; Constituição nos anos anteriores ao suicídio do presidente de 1988; êxito do reformismo econômico em 1954; golpe legalista de Lott para asse- induzido pelo Plano Real e início de políti- gurar a posse de JK; embate entre militares cas sociais não assistenciais protagonizadas contra e a favor de João Goulart assumir a por FHC; conquistas relevantes associadas presidência em 1963; e veto à posse do vice- à ampliação de políticas sociais e ao boom -presidente Pedro Aleixo, por ocasião do das commodities responsável pelo elevado afastamento de Costa e Silva, em 1979. crescimento do PIB induzido por Lula no No passado, ameaças mais graves de primeiro mandato; descontrole fiscal, nova revolta, rebelião, separatismo ou iminên- matriz macroeconômica com resultados cia de revolução tinham como resposta a frustrantes, gestão caótica de empresas es- intervenção de diferentes instituições. No tatais (sobretudo Petrobras e Eletrobras), Império, o poder moderador de D. Pedro retrocesso comprometedor em matéria re- II desempenhou esse papel autoritário de gulatória (politização das agências regula- sufocar levantes populares. Na Primeira doras), uso nefasto e irregular do BNDES República, os conchavos oligárquicos asse- como instrumento de política industrial guraram uma duradoura estabilidade polí- em favor de campeões nacionais, política tica conservadora e civil, com exceção de externa distanciada do interesse nacional alguns períodos de Estado de Sítio (Arthur tanto no front comercial (ausência de acor- Bernardes). No Brasil pós-Revolução de dos de livre comércio), no plano regional 30, os militares desempenharam esse papel (excessiva aproximação com Chávez, Mo- de garantes da ordem. rales e Rafael Correa), corrupção sistêmi-

...... o brasil da transição civilizada (2003) à eleição polarizada (2018)...... 77 ca e caos econômico potencial promovido Embora nossas instituições tenham tido pelo segundo mandato de Lula e pelo go- um perfil inclusivo quando de sua criação – verno Dilma; estelionato eleitoral, descré- Ministério do Trabalho, Justiça Trabalhista, dito político, oposição do PT à política de sindicatos, institutos de previdência social ajustamento promovida por Joaquim Levy e empresas estatais – ou de sua consolida- no segundo mandato de Dilma; impeach- ção como força política – Forças Armadas ment e posse de Temer, expectativas de – muitas delas se transformaram em extra- reversão da estagnação econômica no bojo tivas. Por que e como isso aconteceu? Boa da aprovação de reformas – Teto de Gastos parte da resposta reside no desvirtuamento e Reforma Trabalhista –, da inflexão posi- das nossas instituições, sobretudo nos últi- tiva na gestão das estatais – recuperação mos 15 anos. Foram mudando de perfil e se da Petrobras, avanços na privatização da transformaram em instituições extrativas. Eletrobrás, anúncios de avanços na fusão Muitas das razões para essa deformação Embraer-Boeing (em resposta à associação são vícios inerentes ao patrimonialismo es- Bombardier-Airbus) no início do manda- tudado por Raymundo Faoro, ao papel ape- to Temer; frustração política e econômica nas raramente modernizante apontado por após a divulgação de acusações sérias de Guerreiro Ramos, à incapacidade de insti- envolvimento com corrupção (JBS) por tuições extrativas aproveitarem momentos parte do presidente Temer, estagnação das históricos especiais para marcarem um pon- reformas (Previdência Social); clima pré- to de inflexão e se transformarem em insti- -eleitoral marcado por desempenho mo- tuições inclusivas. desto de candidatos de centro (Alckmim, Uma listagem – mesmo que apenas ilus- Marina, Amoedo e Álvaro Dias) e hegemo- trativa – desses nossos vícios é longa: pro- nia de candidatos nos extremos do espectro funda desigualdade social; sistema educa- político ( Bolsonaro – PSL e Haddad – PT); cional com enormes deficiências e vícios eleição de Bolsonaro. estruturais; gigantismo do Estado; privilé- gios corporativos; capitalismo de compa- Considerações finais drio; privatização do público; superproteção empresarial sob a forma de política tarifária, o longo de pouco mais de sete décadas fiscal ou monetária; deformação da justiça A(1945-2018), muitas instituições brasi- trabalhista; excessiva constitucionalização leiras deixaram de ser inclusivas e se trans- temática; inflação de direitos sem amparo formaram em extrativas, na concepção de econômico para assegurá-los; presidencia- Daron Acemoglu e James Robinson. lismo de coalizão transformado em coop- A crítica presente neste artigo tomou tação; aparelhamento do Estado; corrupção também como referência teórica a categoria em estatais e órgãos públicos; e aguda irres- de estamento burocrático desenvolvida em ponsabilidade fiscal. Os Donos do Poder, por Raymundo Faoro, Esse desvirtuamento de nossas institui- bem como a análise do papel da burocracia ções está associado também ao chamado e das instituições, presente no livro de Guer- efeito voracidade, estudado por Philip Lane reiro Ramos, Administração e Estratégia do e Aaron Tornell, que resulta de duas carac- Desenvolvimento. terísticas encontradas com frequência e in-

78 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... teragindo em alguns países em desenvolvi- uma conjuntura política, econômica e social mento: (i) poucas instituições sólidas; e (ii) que, embora guardando semelhanças com múltiplos e poderosos grupos de interesse na seu início (2002), se apresenta visivelmente sociedade civil. mais sombria. Dado o efeito voracidade, o Estado re- Naquele ano eleitoral de 2002, o “risco distribui, mais que proporcionalmente para Lula” ameaçava os fundamentos de uma determinados grupos, a maior parte da ri- economia saneada pelo Plano Real, mas queza nacional e os benefícios resultantes abalada por forte desvalorização cambial de choques econômicos, como o boom de e pelo overshooting da taxa de juros. Em commodities. 2018, de novo temos o efeito eleitoral de- O citado artigo substitui o ator econômi- sestabilizador sobre uma economia que su- co central da visão neoclássica – a empresa – perou a recessão de mais de 7% do PIB, por múltiplos e poderosos grupos de pressão mas retoma com muita lentidão o cresci- que funcionam com base em um novo con- mento e não avança na reforma mais rele- ceito – o efeito voracidade. Este é responsá- vante (Previdência) para estancar o des- vel por aumentos mais que proporcionais na controle fiscal exponencial. redistribuição de benefícios fiscais que re- Além desse paralelo econômico en- duzem a taxa de crescimento. A saída desse tre 2002 e 2018, o quadro político produz ciclo vicioso se abre com a diluição da con- instabilidade e indefinição comparáveis ao centração de poder dos grupos de interesse contexto do início do milênio. Mas, agre- mais influentes, o que conduz ao aumento gam uma taxa de indignação com a classe na taxa de crescimento do PIB e a respostas política talvez inédita em nossa história. A menos pró-cíclicas a choques externos. falta de legitimidade do atual governo, a Quais as principais conclusões sobre o participação direta do atual presidente em papel das instituições brasileiras no proces- escândalos investigados na Lava Jato e o so político e econômico durante os últimos envolvimento das principais figuras dos 15 anos, com base nos referenciais utiliza- grandes partidos políticos em processos de dos ao longo deste texto – Raymundo Faoro, corrupção explicam o desencanto e a indig- Guerreiro Ramos, Acemoglu, Robinson e nação de uma população que não se sente Lane e Tornell? representada pelo Congresso. As instituições contribuíram para pro- Ao longo dessa década e meia o país fundas transformações no país – de perfil avançou muito, recuou demasiado e surge inclusivo e extrativo – a partir da década de hoje mais dividido, mais desigual, mais po- 1930. Durante a segunda metade da déca- larizado. Os exemplos em ambas as direções da de 1990 e os primeiros anos 2000, com são claros. Os avanços virtuosos são inegá- o saneamento da economia e a moderniza- veis: transição política FHC-Lula altamente ção do Estado, ganharam força as institui- civilizada; preservação do modelo econômi- ções inclusivas. Entretanto, a partir de 2008 co de FHC ao longo do primeiro mandato de e, mais claramente na década de 2010, com Lula; elevado crescimento médio anual do o governo Dilma, o extrativismo prevalece PIB de 4,5% no período 2004-2008; retira- em nossas instituições. O corolário dessa da de 30 a 40 milhões de pessoas da linha involução é que, hoje, o país volta a viver de pobreza; surgimento de uma nova classe

...... o brasil da transição civilizada (2003) à eleição polarizada (2018)...... 79 média constituída por mais de metade da o Plano Real e das demais reformas implan- população total (51%); e ampla projeção tadas por FHC –, o Brasil dos anos Dilma internacional do país dotado de uma das foi um marcante retrocesso de política eco- maiores economias emergentes (8º PIB do nômica, embora não espelhados nos índices mundo) e um promissor membro do agrupa- por trêfegos malabarismos fiscais e monetá- mento Brics. rios, conhecidos como pedaladas. Isso foi verdadeiro em parte dos últimos O resultado dessa trajetória com começo 15 anos. Mas, as virtudes se foram dissi- virtuoso, mas final vicioso, é, hoje, um país pando a partir da metade final do segundo politicamente fragmentado, uma economia mandato de Lula e sofreram robusta inflexão ameaçada de reincidir na recessão de mais para baixo no período Dilma. O tripé ma- de 7% dos anos 2015 e 2016, e um cenário croeconômico foi abandonado, o equilíbrio potencialmente descontrolado para as contas fiscal cedeu lugar ao descontrole das contas públicas, com a explosão dos deficits da pre- públicas, uma nova matriz macroeconômica vidência e os exagerados reajustes do fun- introduziu uma política industrial em defesa cionalismo público, lamentavelmente exem- de supostos campeões nacionais, o BNDES plificados pela recente aprovação de reajuste foi instrumentalizado para encobrir deficits salarial de mais de 16% para o Judiciário. e beneficiar um capitalismo de compadrio, Os personagens de ontem e os de hoje a gestão das estatais foi vítima do congela- se assemelham. Um olhar sobre o Brasil de mentos de preços da gasolina (Petrobras), 2002 e de 2018 permite visualizar muitas das enormes distorções produzidas por re- semelhanças, não só de personagens (Lula/ dução arbitrária das tarifas de energia elé- Haddad, Serra/Alckmim), mas também de trica (sistema Eletrobras) e a política mo- situações – o enigma Lula no início dos anos netária sofreu com o voluntarismo da queda 1990, a esfinge Bolsonaro nos dias de hoje. artificial da taxa básica de juros, que logo A instabilidade política gerada em 2002 pelo voltou ao nível inicial. “efeito Lula” provocou a fuga de capitais, a ameaça de volta da inflação, o overshooting No plano da política externa, foi gritante do dólar à marca recorde de 4 reais. o contraste entre Dilma e seus antecessores Cerca de 15 anos mais tarde, o país vive FHC e Lula. Fernando Henrique conquistou um quadro de fragmentação dos partidos po- a credibilidade externa do país. Lula – apesar líticos, de rejeição popular à classe política, dos muitos equívocos do segundo mandato, de louvável – não obstante também desesta- sobretudo na América do Sul – soube surfar bilizadora – cruzada ética contra a corrupção no boom das commodities e projetou o país (Mensalão, Petrolão, Lava Jato). internacionalmente. Dilma não fez nem uma Esses movimentos se dão num contexto coisa nem outra. Sua política externa teve as de visível guinada conservadora que abre marcas da apatia, da paralisia, das opções ir- caminho para a recuperação e o crescimento refletidas e dos caminhos equivocados. na economia, mas levanta suspeitas de po- Assim, apesar dos avanços econômicos tencial retrocesso na política. promovidos por Lula no primeiro mandato A geografia distanciou o Brasil do teatro e no início do segundo – em grande medida bélico da II Guerra Mundial, dos confrontos derivados da estabilização inaugurada com armados da Guerra Fria, dos atentados deri-

80 ...... interesse nacional – janeiro – março de 2019...... vados dos fundamentalismos religiosos. En- Dilma, à maior recessão econômica em 100 tretanto, não é mais capaz, nos dias de hoje, anos, à louvável mas desestabilizadora cru- de blindar o país dos ventos que generali- zada ética da Lava Jato, ao julgamento pelo zam a crise de representatividade política, a Congresso de dois graves processos de con- emergência de democracias iliberais e os ru- denação de Temer e à prisão de Lula – o lí- mos de uma desconhecida desglobalização. der político com inquestionável supremacia É diante desse mundo lá fora que se in- eleitoral. Essa tempestade perfeita ocorreu sere, aqui dentro, um preocupante cenário. em um quadro de normalidade institucional, Com o resultado eleitoral ficou para trás a liberdade de imprensa e vigência do Estado inquietante regressão a um quadro de insta- de Direito. A solidez institucional foi o pilar bilidade, muito mais ameaçadora do que no dessa sobrevivência democrática. Isso não passado. Instabilidade provocada não mais é pouco. pela novidade Lula de 2002, mas pelo peri- A ameaçadora subida do primeiro parti- go da reedição, em 2019, de um PT sem a do de esquerda ao poder uma década e meia bandeira ética do passado, sem o boom das atrás teve como desfecho a transição civi- commodities, mas com o ressentimento do lizada de FHC a Lula. Hoje, a indignação impeachment e da polarização eleitoral. Se popular e a divisão sem paralelo da socie- essas ameaças foram desfeitas, uma nova in- dade conduziram ao grave surto de polari- quietação surge, com o perfil de um modelo zação política. Entretanto, essa não fechou político que, ao se distanciar do presidencia- as portas para o respeito à vontade popular lismo de coalizão, não se aproximou ainda e, quem sabe, a emergência de um clima de de um claro substituto. recuperação e prosperidade econômica es- Apesar dessas inquietações, dois fenô- sencial à paz social e à democracia. menos mantêm acesa a chama da esperança. O país sobreviveu ao impeachment de Brasília, 3 de dezembro de 2018.

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