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A CIDADE E A LENDA: UMA HISTÓRIA SOCIAL DE CANOAS/RS A PARTIR DO “CRIME DA CABEÇA” Matheus Kern Vargas1

Fazia uma típica noite quente de verão na cidade de Canoas, . A virada do primeiro dia de fevereiro de 1976, próximo à meia-noite, o fim de uma amizade conflituosa dava seus últimos suspiros. Foi o momento aproximado em que “Carlinhos”, antigo companheiro de crimes, tirava de seu bolso um canivete e, ao abri-lo, possuía o evidente propósito de desferir por “traição” um golpe letal em sua vítima, seu antigo amigo “Parafuso”. As linhas acima se referem a uma das mais famosas lendas urbanas da Região Metropolitana de . O chamado “crime da cabeça” que, por sua vez, também nomeia a “passarela da cabeça”, marca profundamente a memória dos canoenses há mais de 40 anos e serve como ponto de partido para uma compreensão da história da cidade. Mas qual a importância de um crime em um município como o de Canoas? Qual a relevância de um ato violento para a história do município? Como podemos entender a história da cidade a partir de um crime isolado? Tais são algumas das questões que norteiam o problema de pesquisa perseguido neste trabalho. A pesquisa tem como objetivo realizar uma análise histórica em um micro contexto, utilizando diferentes fontes primárias (como processos-crime, jornais e relatórios de polícia) que possibilitam conhecer, analisar e remontar parte do cenário urbano do Município de Canoas da década de 1970. A narrativa foi baseada em sua maior parte no riquíssimo depoimento do réu, o qual está contido no inquérito policial realizado logo após a consumação do trágico homicídio. Oferecendo maior contribuição para conhecermos os participantes do crime e de seu micro-contexto, o processo-crime referente ao homicídio ocorrido no ano de 1976, em que Adílio Roseno Mendes (Parafuso) e João Carlos Bertotto Paz (Carlinhos) estão respectivamente figurados como réu e vítima, da conta de uma complexa rede de estratégias sociais e situações do cotidiano da época. Estas ajudaram a delinear questões, que não estão simplesmente ligadas à barbaridade do crime em si, mas também percepções sobre o desenvolvimento de bairros, especialmente os periféricos, êxodo rural, práticas de honra e violência, trabalho, lazer, educação e saúde. O crime se desenvolveu a partir da relação que os envolvidos tinham entre si e os ambientes que viviam, como as linhas narradas pelo réu deram conta de evidenciar. Carlinhos,

1 Licenciado em História (UNILASALLE) por exemplo, possuía extensa ficha nas instituições de controle social, portanto, era mal por muitos que o conheciam. Muito embora Parafuso tenha cumprido pena anteriormente por um assalto em , não ostentava tanto deste histórico, dada as proporções comparativas entre os dois. Entretanto, ambos eram reconhecidos como sujeitos perigosos. O processo nos traz uma série de informações que, inicialmente, nos levam à cena obscura do crime. Somente com o progresso em sua análise são percebidas as possíveis motivações e os caminhos que foram tomando até a execução do crime. Os dois principais personagens dessa violenta história tinham muito em comum. Residiam na Vila Mathias Velho, considerada na época como “a maior vila operária da América Latina” (RELATÓRIO DE POLÍCIA, 1953, p.1), que era reconhecida pela pobreza de seus habitantes. Houve uma grande penetração advinda, em grande parte, dos muitos migrantes vindos do interior do Estado, como também de regiões marginalizadas e pobres de Porto Alegre. Essa transferência se deu por motivos diferentes motivos, mas alguns deles, mais notáveis, foram as extensas propagandas: empregatícia pela proximidade com a metrópole em desenvolvimento industrial, e também a realizada sobre os lotes ofertados, os quais eram vistos como uma possibilidade de nova perspectiva de vida, pois os valores eram baixíssimos e atraentes. Todavia, as condições que esses novos moradores se assentaram não foram adequadas. A Vila Mathias Velho se encontrava junto ao , ideal para as antigas plantações de arroz, mas não para receber a quantidade de moradores, os quais veriam seus pátios inundados pelas constantes enchentes. Os dias de chuva eram marcados pelo isolamento dos moradores, os quais ficavam ilhados, sem alimento e água potável, perdendo o pouco que possuíam.

As cidades não conseguiram absorver o elevado contingente que se deslocou para o interior dos centros urbanos, em busca de melhores condições de vida [...] O resultado obtido foi um quadro de baixa qualidade de vida e de crescentes tensões sociais. (PENNA; CORBELLINI; GAYESKI, 2000, p.17).

Tanto “Carlinhos” quanto “Parafuso” não possuíam trabalho fixo e apenas viviam dos frutos de assaltos e da venda de balas. Eram jovens de apenas 22 e 23 anos de idade, sem conclusão do primário, o que era a realidade de grande parte dos citados no processo. Mesmo jovens, era atrelado a eles responsabilidades de subsistência familiar, situação que os encaminhou por saídas alternativas, como as que seguem a narrativa. Convidado inúmeras vezes por Carlinhos para assaltar prostitutas, Adílio afirma que sempre se negou a esse tipo de atividade, pois achava que aquilo errado. Essa recusa deixava o amigo aparentemente irritado. Dias depois, Carlinhos avisava o amigo que logo iria “ganhar” uma menina, a qual o mesmo conhecia e demonstrava certo apreço. Decide avisa-la para que ficasse preparada. Sabendo mais tarde da intromissão de seu amigo, Carlinhos passa a realizar as primeiras ameaças a Adílio. Dizia que ainda ia matá-lo e depois colocaria sua cabeça na praça. Sabendo que aquelas palavras vinham de um sujeito violento, resolveu se armar. Entrou em uma borracharia e roubou uma faca, que possuía uma lâmina de quase 30 centímetros de comprimento e estava era suficientemente afiada para sua empreitada. Adílio estava preparado para a possibilidade de um confronto com seu amigo e manteve sua faca na manga de sua camisa, para que a usasse assim que corresse perigo. Quando temia ser pego em uma revista policial, colocava a lâmina sob os trilhos do trem que ainda não possuíam o muro de proteção. O cenário da emboscada se desenhava na Vila Mathias Velho. Desarmado, Parafuso segue até o Bar do Motorista e encontra Carlinhos conversando com um amigo. A conversa flui como se não houvesse qualquer tensão entre os dois. Carlinhos fez uma proposta irrecusável à Parafuso. Ele afirmava que havia roubado uma bicicleta “Monaretta” e queria mostrar a ele no intuito de vendê-la, mas ambos teriam que ir até o Dique para encontrá-la. Lembrando-se das ameaças recebidas, ele acha o local suspeito, mas mesmo assim aceita a empreitada. Sabendo da necessidade de recuperar a sua faca, Parafuso pede para Carlinhos esperar “pois iria tomar uma guaraná”, e toma direção dos trilhos onde havia enterrado a lâmina. Volta a colocá-la na cintura e permanece aguardando por Carlinhos. Próximo à meia-noite, os amigos seguiram pela Avenida Rio Grande do Sul até a altura da parada seis. Dirigiram-se até o dique onde estaria a bicicleta prometida e é quando Carlinhos pede para Adílio que descesse a encosta para que procurasse submerso o produto de seu roubo. Preparado, Adílio ouve o estalar do conhecido canivete de Carlinhos, momento em que consegue se esquivar de um golpe e o aproveita para sacar a sua faca. O duelo não duraria muito tempo. Adílio consegue desferir inúmeros golpes em seu amigo. Ao vê-lo desfalecido no solo de várzea, se lembra das ameaças e decide pela vingança no mesmo estilo. Adílio conta nos mínimos detalhes como se deu o embate e o corte da cabeça, assim como o trajeto que realizou nos seguintes momentos. O mesmo foi até os bares de costume, onde dançou, flertou, alimentou-se e conversou com amigos. Depois de algumas horas seguiu até o local onde estava a cabeça, a esconde dentro de um pacote feito com jornais e as pernas cortadas de uma calça. Pega um táxi com um amigo e segue até a passarela mais movimentada de Canoas, a qual ficava junto a uma delegacia da Brigada Militar. Vai até o centro da mesma e deixa a cabeça de Carlinhos cair, ajeitando-a com o pé para que ficasse com a fronte para cima. Somente no dia seguinte, após fazer uma entrevista de emprego, Adílio é parado por uma viatura da Brigada Militar pedindo para que prestasse depoimento. Chegando à delegacia e vendo pessoas que estavam depondo e não tinham envolvimento algum com o crime, resolveu enfim confessar o crime. A partir desse momento as notícias se espalharam rapidamente em jornais, rádios e televisões, marcando profundamente o imaginário dos canoenses ao longo de mais de quarenta anos do ocorrido.

João Carlos Berttoto, um jovem que viveu uma infância pobre num dos bairros mais pobres de Canoas, e que teve uma vida toda acidentada, pelos caminhos da violência, seguiu rumo do cemitério, prateado por muitos. (FATO ILUSTRADO, 6 fev. 1976, p. 5).

Metodologicamente, a micro-história proporcionou uma visão bastante abrangente do estudo de caso. Sem que se procurasse “contar uma história” pura e simplesmente, nem percorrer um caminho próximo à ficção, alerta ao percorrer a narrativa referenciada. O depoimento e os elementos processuais demonstram alguns dos indícios e “fios” que se pretendeu seguir ao longo do trabalho proposto. E para o prosseguimento, a análise sobre os agentes sociais que constavam ao longo dos autos, proporcionou o surgimento de possibilidades infinitas de interpretação subjetiva. Como o exemplo dos depoimentos colhidos nos inquéritos policiais, os quais são recheados de discursos repetidos, esquecimentos, hesitações e mentiras. Toda a presença e fala são importantes, pois:

É possível encontrar, nas entrelinhas dos depoimentos, evidências de como vítimas, réus e testemunhas descrevem não somente os acontecimentos que os levaram à Justiça, mas também diversos relacionamentos sociais e condutas que eles consideravam corretos ou errados. Mesmo quando mentem ou inventam posturas morais, fazem-no de uma forma que acreditam ser verossímil e, portanto, ajudam a traçar os limites da moralidade comum. (GRINBERG, 2009, p.7).

Uma das bases que diferenciam a micro-história de outras metodologias é o uso da narrativa. Muito embora tenha ares de literatura, a narrativa histórica da qual falamos traz consigo inúmeras análises sobre o assunto que está sendo abordado. Seguindo esse caminho, a pesquisa inicia o seu capítulo principal descrevendo o acontecimento, o crime e o que engloba a vida dos envolvidos no violento homicídio e em espaços um pouco mais abrangentes.

Nada seria mais fiel à micro-história do que apresentar sua face mais nítida por meio da exposição de enredos. Alguns enredos ilustrativos de livros típicos, isto é, livros expressivos de um gênero que privilegia a narrativa como escrita da história.(VAINFAS, 2002, p.77).

Neste trabalho, buscamos reconstruir um micro-contexto da Canoas dos anos 1970, onde Adílio Roseno Mendes, vulgo “Parafuso” e João Carlos Bertotto Paz, vulgo “Carlinhos”, oferecem mais que um crime ou uma lenda para a história do Município, mas também contribuem, para a proposta de conhecer suas estratégias e o que os cercava socialmente. Assim como a escolha e análise da incrível história do moleiro Menocchio por Carlo Ginzburg em O Queixo e os Vermes, que “Se de fato sobressai a esfera religiosa, é porque disso o livro trata e foi nisso que se destacou o personagem central que, não fosse alfabetizado e falastrão, não passaria de mais um moleiro dentre milhares de outros”. (VAINFAS, 2002, p.81). Já no caso do crime cometido por Adílio, a sua escolha como dito anteriormente, não vem apenas pelo crime, também não por ser um homicídio violentíssimo, mas se destaca no âmbito geral de processos judiciais criminais, pois temos uma descrição densa da situação de seus enfrentamentos e detalhes externos que nos transportam para o entendimento do micro- contexto no qual estava inserido.

REFERÊNCIAS CANOAS, Delegacia de Polícia. Relatório de Polícia. 1953. FATO ILUSTRADO, 1976. GRINBERG, Keila. A história nos porões dos arquivos judiciários. PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. PENNA, Rejane; CORBELLINI, D.; GAYESKI, M. Canoas–para lembrar quem somos: Mathias Velho. Canoas: Gráfica Editora La Salle, 2000. RIO GRANDE DO SUL, Departamento de Arquivos do Tribunal de Justiça do. Processo- crime nº 57646. 18/02/1976. VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da história: micro-história. Campus, 2002.