Nuit Debout: a nova barricada de ?

Marcia Camargos

ontra as minas terrestres, a caça aos animais selva- gens, o abate de bovinos, “que sofrem como nós”, contra o apartheid palestino, a perseguição aos curdos, a insegurança no bairro chinês, a islamo- fobia, a violência de Estado, as guerras, a Lei do Trabalho ou o governo golpista de Michel Temer. Escolha a sua causa e levante a sua bandeira. Na Place de la République, na interseção entre três distritos, os arrondissements da capital francesa, cabem todos os protestos. Local preferido dos insatisfeitos de plantão, ela tornou-se o ponto de partida ou chegada das manifestações cada vez mais frequentes na cidade. Isso, apesar do Estado de urgência em vigor, dando poderes extraordinários à polícia e proibindo as aglomerações. Resposta do governo François Hollande aos atentados terroristas que se abateram sobre a França, e medida preventi- va contra futuros ataques, foi decretado na tarde de 14 de novembro de 2015 em todo o território nacional. Oficialmente ainda em vigor, acabou re- C laxado, pouco a pouco, diante da crescente pres-

MARCIA CAMARGOS é jornalista e escritora com pós-doutorado em História pela USP.

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são da opinião pública, dos movimentos sociais e e da prosperidade. Na esquerda repousa uma tábua dos sindicatos, que contestam as interdições. Dia com as inscrição “Droits de l’Homme”. sim, dia não, eles fecham o trânsito com passeatas Originalmente Place du Château d’Eau, de todo tipo e tamanho que, não raro, terminam nome derivado da enorme fonte de 1811, saída em confrontos com a polícia, além de detenções da prancheta de Pierre-Simon Girard para trazer e feridos. E embora não se possa falar em ree- água direto de La Villette, era toda decorada dição de maio de 68, quando uma greve geral com leões, assim como a sua sucessora, de 1867, rapidamente superou barreiras de classe, idade segundo projeto de Gabriel Davioud. Mas foi por e etnia, convertendo-se em insurreição popular, ocasião das drásticas remodelações urbanísticas marcando a história do século XX, nota-se um do barão de Haussmann, responsável pelo embe- nítido clima de descontentamento no ar. lezamento e higienização da capital, livrando-a A crise econômica, agravada pelo drama dos das ruelas e becos propícios às barricadas, que a refugiados, que chegam em levas sucessivas, en- praça ganhou o formato atual. O monumento que chem as ruas de sem-teto. Nas periferias, vagam viria a substituir a segunda fonte, criado pelos sem emprego jovens negros ou descendentes de irmãos Léopold e Charles Morice, resultou de árabes que, marginalizados e sem perspectivas, uma competição anunciada em 1879 pela Pre- tornam-se presa fácil dos discursos religiosos feitura de Paris, para comemorar o nonagésimo extremistas. As próximas eleições presiden- aniversário da Revolução Francesa. ciais, que apontam o crescimento da direita, nas Tanto a coluna, que sustenta Marianne, quanto candidaturas de Marine de Le Pen, da Frente as três esculturas em pedra para as quais serve Nacional, e de , galvanizam as também de encosto, assim como outros elementos atenções, desafiando as esquerdas. Nesse contex- decorativos, entre florões, placas e brasão de Paris, to, a Place de la République tornou-se um locus estavam cobertas de pichações. Devidamente re- privilegiado de resistência, talvez nos moldes da cuperadas na recente limpeza, elas mostram, cada Praça Tahrir, no Cairo, no processo da derruba- qual, uma alegoria de um termo da divisa do ideal da do ditador Hosni Mubarak. republicano. São os célebres “igualdade, liberdade Estendendo-se por 3,4 hectares, o equivalen- e fraternidade”, valores iluministas presentes em te a 34 mil metros quadrados, ou quatro campos boa parte dos edifícios públicos do país. Contudo, de futebol, ela presta-se com louvor à função de sua transformação em área 70% pedestre ocorreu acolher os que protestam. Quem não se lembra no mandato do prefeito Bertrand Delanoe, que, em das imagens, veiculadas à exaustão mundo afora, 2008, fez da remodelação da République uma de da multidão que tomou cada centímetro das suas suas principais promessas de campanha. calçadas, logo após o assassinato da equipe de re- dação do jornal Charlie Hebdo? E das homena- OCUPAR E RESISTIR gens, em forma de buquês de flores, velas, cartazes, desenhos, faixas, flâmulas, brinquedos, bilhetes e grafites, que quase submergiam o monumento de “Guerra aos tiranos, paz entre os povos.” 23 metros de altura, sobre o qual desponta uma Com este mote, os integrantes da Nuit Debout figura feminina em bronze? convidam os revoltosos a convergirem rumo a Recolhidos a partir do início de agosto de 2016, um ponto comum, compartilhando o mesmo ob- os objetos, agora armazenados em um arquivo da jetivo. Tarefa nada simples, em face do número Prefeitura, abrem espaço para que melhor se admi- de reivindicações presentes nessa que se tornou re a obra no topo do pedestal. De pé, vestida com a Meca dos revolucionários, independente da uma simples toga, a estátua de Marianne personi- origem, credo ou modus operandi. Para se ter fica a República Francesa nos seus 9,4 metros de uma ideia da multiplicidade de propostas encon- imponência e glória. Na cabeça traz uma coroa de tradas nos limites da Place de la République, louros e um barrete frígio, usado em 1793 pelos basta dizer que no domingo, 24 de setembro, sans-culottes durante a Comuna de Paris. Na mão ao menos dez diferentes causas eram defendidas direita carrega um ramo de olivas, símbolo da paz com ardor por seus ferrenhos militantes.

170 Revista USP • São Paulo • n. 111 • p. 169-172 • outubro/novembro/dezembro 2016 De um lado, moças e rapazes seminus, envol- Pairando sobre esse caldo político-cultural tos em plástico, para simular embalagens a vácuo, como um guarda-chuva protetor, encontra-se a or- pregavam o fim da matança e do consumo da car- ganização autodenominada Nuit Debout. Tradu- ne animal. Sob o sol forte do início de outono, ex- zido para algo como “Noite em Vigília”, procura punham seus corpos tingidos de vermelho como aglutinar e apoiar os setores da sociedade civil que se fossem mercadoria na prateleira refrigerada buscam a praça para ecoar seu desagrado. Surgido de um supermercado. Para reforçar a mensagem, em 31 de março de 2016, no rastro de uma grande logo em frente, um senhor vestido de açougueiro manifestação com cerca de 150 mil pessoas contra oferecia aos transeuntes partes humanas de men- a Lei do Trabalho, realizada duas semanas antes, o tirinha, desafiando-os a experimentar um torno- movimento, que se diz plural e apartidário, busca zelo, coxa ou globos oculares ao vinagrete. Os a convergência das lutas. Seu alvo? A contestação veganos dividiam espaço com os que combatem a global das instituições políticas e do sistema eco- crueldade contra os animais selvagens, igualmen- nômico. Sem porta-vozes, líderes ou hierarquia, te “perseguidos e necessitando nossa proteção”, organiza-se em comissões de coordenação, logís- conforme apontou uma das ativistas. tica, atendimento e comunicação, ao passo que a No extremo oposto, em um lugar fechado, ao tomada de decisões se faz por meio de assembleias qual só se tinha acesso após uma revista de bolsas gerais, democráticas e participativas. e sacolas, como tornou-se praxe para entrar até Servindo de exemplo para outras cidades fran- em lojas e cinemas, erguia-se uma pirâmide de cesas, o coletivo de vigília progressivamente mon- calçados. Era o recado da ONG Handicap Inter- tou uma infraestrutura básica para permanecer no national que, desde 1995, vem lutando contra a local o máximo de tempo possível. Instalam-se proliferação das minas terrestres e uso de armas enfermaria, cantina, turnos de limpeza, de infor- explosivas em zonas povoadas. Uma mostra ao ar mações e de acampamento. Formaram-se equipes livre trazia fotografias e relatos de vítimas e de que incluem estudantes, operários, precarizados, profissionais engajados na remoção e destruição imigrantes, universitários e desempregados de di- dos artefatos que, apenas em 2016, mutilaram 4 ferentes matizes políticas. Como uma ágora gre- mil pessoas em 80 países. Ao final do percurso, ga contemporânea, a praça evoca as ocupações os visitantes eram convidados a contribuir com da Porta do Sol em Madri, pelos Indignados, em um par de sapatos, tênis, bota ou sandália para 2011, e a Syntagma em Atenas, tomada pela “Ge- a montanha simbólica, e a assinar uma petição. ração dos 700 Euros”. Inspira-se ainda, dizem, nas Ao longo da praça, sob tendas, sentados em ações do , movimento que, a baquetas como numa roda de conversa, grupos partir de 17 de setembro de 2011, instalou-se no distintos discutiam todo tipo de assunto, que iam Zuccotti Park, no distrito financeiro de Nova York. da situação na Inglaterra pós-brexit, estratégias Horizontal e espontâneo vinha denunciar a desi- para enfrentar o Medef, o sindicato patronal, à gualdade, a corrupção e a ingerência das grandes situação explosiva da “Jungle” de Calais – como corporações nos negócios do Estado, para seu pró- intitula-se o campo de refugiados daquela cidade prio benefício, em detrimento dos outros 99% da portuária. Enquanto isso, nas laterais, uma pas- população norte-americana. seata multiétnica reunia gregos e baianos. Nela viam-se manifestantes sob o arco-íris gay, outros “NÓS SOMOS MILHÕES” pedindo o boicote aos produtos de Israel. Colom- bianos gritavam pela paz na sua terra devasta- da pelo narcotráfico e membros da comunidade Para embalar as centenas de insatisfeitos que curda reivindicavam a libertação de Abdullah fazem da République uma extensão das suas casas, Öcalan, cofundador do Partido dos Trabalhadores a Orquestra Debout promove sessões quase diárias. do Curdistão, (PKK), condenado à prisão perpé- Sem um corpo artístico fixo nem uma seleção de tua na Turquia. Fechando a marcha, vinham os músicas predeterminada, escolhe o repertório ao brasileiros com o panteão verde-amarelo e carta- sabor do momento. Em uma das demonstrações zes de “Casse toi Temer” e “Fora Temer”. de brasileiros contra o impeachment, pouco antes

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da destituição da presidente Dilma Rousseff, por que este é um movimento informal e espontâneo, exemplo, podia-se escutar os acordes de “Apesar cuja autoestruturação evolui de acordo com as ne- de Você”, de Chico Buarque de Holanda. Era a cessidades. “Estamos abertos a todos, dentro do praça honrando seu viés internacionalista, uma das respeito ao trabalho coletivo. Atuamos de forma prioridades da ocupação. independente e comum, na busca de alternativas Mas nem tudo é paz e amor nesta ilha da Uto- concretas para a elaboração de soluções globais”, pia. Nas noites de 14 e 15 abril, o chefe de polí- continua. Nesta direção, explica, “segue a proposta cia, lamentando a presença de pequenos grupos de transformar os espaços públicos em locais de violentos, mandou a CRS, sigla da Companhia expressão criativa, de práticas solidárias, de troca Republicana de Segurança, criada em 1944 por e difusão de saberes, elevando o nível das consci- decreto do general Charles de Gaulle, disper- ências e das motivações, num clima de igualdade sar os ocupantes. Estes, por sua vez, acusaram a e fraternidade, livre de preconceitos”. forças da ordem de infiltrarem agentes provoca- Indagado qual seria o valor mais importante a dores para desmoralizar a Nuit Debout. Dali a unir essa verdadeira fauna revolucionária, o rapaz uma semana, novos enfrentamentos, com o sal- magro, de cabelos loiros encaracolados batendo do de um automóvel em chamas e a convocação quase na cintura, não hesita: “O anticapitalismo para uma “jornada temática” sobre o tópico da e a oposição incansável ao sistema, com todas as violência. No fim do mês, os ocupantes foram suas injustiças”. Com um distinto sorriso, enumera evacuados com uso de bombas de efeito moral e o extenso cardápio de atividades programadas para balas de borracha. Mesmo sem opor resistência, os meses vindouros. Contemplam, entre a série de e já algemados, alguns acabaram agredidos. Os eventos, uma jornada pela melhoria das condições confrontos prosseguiram no 1o de Maio. Após gerais de trabalho, marcha pelos refugiados e de- incidentes registrados no desfile comemorativo bate sobre a educação popular. Do alto dos seus da data, a polícia ordenou a dispersão da Nuit 34 anos, confidencia que cogitam, no curto prazo, Debout, retirando 600 militantes à força. Em impedir as eleições presidenciais. Como levarão a seguida, em comunicado oficial, o governo en- cabo tão ousado desafio? dureceu o discurso, tornando ainda mais difíceis “Vamos tomar os locais de votação. Ninguém as condições de reunião. Nenhuma das medidas, entra para depositar sua escolha nas urnas.” E, com porém, conseguiu arrefecer os ânimos daqueles uma determinação quixotesca, refletida nos olhos que, nas palavras de Alan, um dos seus ativos azulados, conclui: “Eles precisam ouvir a nossa participantes, não têm nada a perder. Princi- voz. Afinal de contas, somos milhões”. palmente, diz ele, nesta Quinta República que Portanto, para quem vier a Paris, seja a trabalho degrada o meio-ambiente, exerce a dominação, ou a lazer, recomendo fortemente um passeio pela reprime e descrimina, além de sustentar a praça. Inclusive aos céticos e pessimistas – ou so- ditadura do mercado financeiro, empoderando bretudo a eles. Para além da sua relevância como as multinacionais, responsáveis pela corrupção patrimônio histórico e cultural, a Place de la Répu- das instituições. blique vale por esse aspecto humano que revigora “Nós denunciamos as grandes potências que os ânimos, alimentando nosso mirrado arsenal de favorecem os tráficos, o deslocamento de popu- esperança. Mesmo que por poucas e fugazes horas, lações e o comércio de armas”, ressalta, em meio na Nuit Debout aprendemos que sonhar é possível. ao barulho da praça efervescente, para acrescentar Resistir, também.

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