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CINEMATECA PORTUGUESA-MUSEU DO CINEMA REVISITAR OS GRANDES GÉNEROS: A COMÉDIA (PARTE II) - A COMÉDIA, IMPROVAVELMENTE 8 de Setembro de 2020

IT’S A MAD, MAD, MAD WORLD / 1963 (O Mundo Maluco)

Um filme de Stanley Kramer

Realização: Stanley Kramer / Argumento: William Rose e Tania Rose / Direcção de Fotografia: Ernest Laszlo / Direcção Artística: Rudolph Sternad e Gordon Gurnee / Guarda-Roupa: Bill Thomas / Música: Ernest Gold / Som: John Kean e Walter Elliott / Montagem: Gene Fowler Jr, Robert Jones e Frederic Knudtson / Interpretação: Spencer Tracy (CG Culpepper), Milton Berle (J.Russell Finch), Sid Caesar (Melville Crump), Buddy Hackett (Benjy Benjamin), Ethel Merman (Mrs Marcus), Mickey Rooney (Ding Bell), Dick Shawn (Sylvester Marcus), Phil Silvers (Otto Meyer), Terry-Thomas (J. Algernon Hawthorne), (Lennie Pike), Edie Adams (Monica Crump), Dorothy Provine (Emeline Marcus Finch), e, entre muitos outros creditados ou não creditados no genérico: Eddie Rochester Anderson, Jim Backus, Ben Blue, Joe E. Brown, Lloyd Corrigan, William Demarest, Andy Devine, Peter Falk, , Leo Gorey, Sterling Holloway, Edward Everett Horton, Buster Keaton, Don Knotts, Mike Mazurki, Zasu Pitts, , Jimmy Durante, Jack Benny, Jerry Lewis, etc.

Produção: Casey Productions, para a / Produtor: Stanley Kramer / Cópia digital (DCP), colorida, falada em inglês com legendagem electrónica em português / Duração: 159 minutos / Estreia em Portugal: 10 de Maio de 1965.

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Entre as pequenas histórias relativas à produção de It’s a Mad, Mad, Mad World, há uma que conta que o título do filme, inicialmente (isto é, no início da rodagem, porque previamente houvera outros títulos), era apenas It’s a Mad World. Foi o realizador Stanley Kramer quem, ao longo da trabalhosa e morosa rodagem, foi acrescentando “mads” ao título, tendo chegado a prever, lá para o fim dos trabalhos, que o filme se chamasse It’s a Mad, Mad, Mad, Mad, Mad World. Depois recuou dos cinco para os três “mads”, com receio que o excesso de reiteração estragasse a piada (e também consta, que mais tarde, se arrependeu de ter ficado com o título “curto”). É pena, porque o título com cinco “mads”, esticando a repetição a um ponto absurdo, não seria nada desadequado a um filme que faz exactamente da repetição e do “esticamento”, conduzidos a um absurdo que arrisca a auto-aniquilação, a sua matéria-prima.

Entre os muitos “convidados” de Kramer (gente famosa da comédia americana, uns vindos do mudo, outros da televisão e do “music hall”, nem todos especialmente célebres para as plateias internacionais mas muito familiares a um público americano) também por lá aparece Jerry Lewis. Não fará mal, então, lembrar um conhecido dito de Jean-Luc Godard sobre ele: que “era ainda mais engraçado quando não tinha graça”. Podemos adaptar isso ao filme de Stanley Kramer: o mais “engraçado” de It’s a Mad, Mad, Mad World é justamente não ter assim tanta “graça”; é funcionar por uma lógica de acumulação, repetição, ausência quase completa (mesmo que eventualmente apenas semi-deliberada) de espirito de síntese, que puxa tudo – a duração, a economia narrativa, os diálogos e as piadas verbais, os “gags” e as cenas de acção – ao máximo, sendo que esse máximo se confunde perigosamente com um ponto de esgotamento. Nesse sentido, “it’s a mad, mad, mad, mad, mad film” (com cinco “mads”) porque procurando ser a “comédia total” nos mostra bem como a “comédia” – tornada a regra do jogo – assim “totalitariamente” exposta, parece desligar-se dos seus fundamentos, e cometer uma espécie de suicídio. Reparar-se-á que, no fim, riem mais os actores (a cena no hospital) do que, com toda a probabilidade, riem os espectadores na sala. Esgotada a sua capacidade de rir (e esgotadas eventualmente, para o bem e para o mal, outras coisas, como a paciência), o espectador fica só com o riso do filme, e percebe, se calhar, que esse riso é todo o riso que resta.

O que faz sentido. Em oarte, como logo na altura foi notado, Kramer – mais conhecido pelos seus “dramas temáticos” (que também pelas melhores como pelas piores razão lhe atribuem um lugar singular na história de Hollywood) – não parece dominar muito habilmente os trâmites da comédia (e é forçoso pensar no que teria sido este filme caso ele tivesse sido dirigido por Frank Tashlin ou por Blake Edwards, a lógica cartoonesca de caos organizado do primeiro ou a elegância mordazmente venenosa do segundo). Há questões de ritmo, de “timing”, até da própria mecânica física fundamental aos gags (ver, por exemplo, a sequência da estação de serviço), que parecem falhar demasiadas vezes. Mas, por outra parte, há uma procura de grandiosidade no filme que se assemelha a um “dernier mot”, como se Kramer também quisesse fazer a comédia “definitiva”, o que equivale a dizer, um filme para “matar a comédia”. Eram os tempos dessas coisas, os primeiros anos da década de 1960, quando Hollywood descobrira (ou redescobrira, noutra escala) o “épico”, e a ideia de superprodução. It’s a Mad, Mad, Mad World está para a comédia como o Ben Hur para o drama histórico (ou é, como no drama bíblico de John Huston estreado poucos anos depois, “a maior comédia alguma vez contada”). E, provavelmente, embora sempre noutra escala ainda mais vasta, desde as aventuras de Chaplin e Keaton (este, também convidado de Kramer) os anos 20, a única superprodução cómica de Hollywood. O balão dessas superproduções rebentaria rapidamente – e o da comédia, por certo, rebentou logo aqui.

É por isso que o riso final, depois de o dinheiro que motiva toda a gente do filme se ter perdido definitivamente, nos lembra, mais do que qualquer outra coisa, o final do Treasure of Sierra Madre de John Huston. Semi-involuntariamente, ou vice-versa, Kramer assinou um tratado sobre a frustração. E perante a frustração, o riso é o melhor remédio.

Luís Miguel Oliveira