LUCIANA ROSSATO

A LUPA E O DIÁRIO: HISTÓRIA NATURAL, VIAGENS CIENTÍFICAS E RELATOS SOBRE A CAPITANIA DE SANTA CATARINA (1763-1822)

PORTO ALEGRE 2005

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

2

LUCIANA ROSSATO

A LUPA E O DIÁRIO: HISTÓRIA NATURAL, VIAGENS CIENTÍFICAS E RELATOS SOBRE A CAPITANIA DE SANTA CATARINA (1763-1822)

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para a obtenção do título de Doutor em História, sob a orientação da Profª. Drª. Susana Bleil de Souza.

Porto Alegre 2005

3

SUMÁRIO

Índice de Gravuras 4

Resumo 5

Resume 6

Agradecimentos 8

Introdução 9

1. Viagens científicas européias ao redor do mundo (séculos XVIII e XIX) 27

2. Os viajantes: alguns dados biográficos 44

3. O relato: diferentes olhares, diferentes perspectivas 65

4. A História Natural como um novo campo do conhecimento 87 4.1. Um novo olhar sobre a natureza 88 4.2. A natureza e os habitantes do Novo Mundo 99

5. Descrevendo a natureza de Santa Catarina 111 5.1. A natureza entre a razão e a emoção 129

6. Núcleos urbanos em meio a natureza 143 6.1. Do espaço urbano 143 6.2. Da população 159

7. Populações de origem africana 175

8. Trabalho e indolência: uma outra cultura 197 8.1. Natureza exuberante versus a pobreza e a indolência dos habitantes locais 209

9. Louis Choris: um artista viajante 223

Considerações Finais 248

Informações Gerais sobre os Viajantes 257

Referências Bibliográficas 258

4

ÍNDICE DE GRAVURAS

Fig. 1 - Plano da Villa de N. S. do Desterro 147

Fig. 2 - Mapa da Vila de Desterro 153

Fig. 3 - Irís Gramínea 231 . Fig. 4 - Lophostachys publiflora Lindau 232

Fig. 5 – Brèsil 235

Fig. 6 - Vue dans l’intérieur de l’Ile de Stª. Catherine (Brèsil) 236

Fig. 7 - Ile de Stª Catherine (Brèsil) 239

Fig. 8 - Vue de la côte du Brèsil vis à vis de l’ile de Stª Catherine 240

Fig. 9 - Vista da vila de Desterro a partir do Hospital 242 5

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar os discursos elaborados pelos cientistas viajantes sobre a Capitania de Santa Catarina, no período que compreende a segunda metade do século XVIII e a primeira metade do século XIX. Esse período é marcado pelo desenvolvimento científico, principalmente da História Natural, que vai influenciar na produção de imagens e representações sobre a América e seus habitantes. Entre os anos de 1763 e 1822, sete viajantes europeus passaram pelo litoral catarinense. Seis deles estavam vinculados aos estudos da

História Natural (botânica, zoologia e mineralogia) e o sétimo era artista viajante, que integrava uma viagem marítima de estudos. A partir do estudo dos relatos de viagens, analisamos como os viajantes construíram seus discursos. Nesses relatos é descrita a natureza da região, suas características e seu aproveitamento pelas populações locais. Além disso, os cientistas viajantes tinham um olhar voltado para o todo, o que significa que se dedicaram a relatar também as características da população local, seu desenvolvimento tecnológico, suas relações de trabalho, entre outros aspectos. Nosso objetivo é perceber como essas descrições estão inseridas no contexto sócio-cultural de quem as produziu, neste caso, os viajantes, que eram cientistas, europeus, originários de sociedades urbanas e em processo de industrialização. Outro aspecto trabalhado foi a produção pictórica sobre a região, de autoria de Louis Choris, que, como outros que retrataram nossas paisagens, criou imagens que se caracterizam por estereótipos e lugares comuns. Esse é um aspecto que se aplica a todos os viajantes: seus relatos são marcados por representações, que de certa forma mostram muito mais sobre a cultura de quem os escreveu do que sobre a região que está sendo descrita.

Palavras-chave: Viajantes, História Natural, Relatos de Viagem

6

RESUME

Ce travail a pour objectif d’analyser les discours élaborés par les scientifiques-voyageurs dans la Capitania de Santa Catarina, pendant la période qui comprend la seconde moitié du

XVIIIème siècle et la première du XIXème siècle. Cette période est marquée par le développement scientifique, surtout de l’Histoire Naturelle, laquelle va influencer la production d’images et les représentations de l’Amérique et de ses habitants. De 1763 à 1822, sept voyageurs européens sont passés sur le littoral du Santa Catarina. Six d’entre-eux étaient liés aux études de l’Histoire Naturelle (botanique, zoologie et minéralogie) et le septième était un artiste-voyageur qui faisait partie d’un voyage maritime d’études. A partir de l’étude des récits de voyages, nous analysons comment les voyageurs ont construit leurs discours. Dans ces récits, la nature de la région, ses caractéristiques et ce dont les populations locales en ont tiré sont décrits. De plus, les scientifiques-voyageurs portaient un regard sur le tout, ce qui signifie qu’ils se sont aussi consacrés à rapporter les caractéristiques de la population locale, son développement technologique, ses rapports de travail, parmi d’autres aspects. Notre objectif est de voir comment ces descriptions sont insérées dans le contexte socio-culturel de ceux qui les ont produites, dans ce cas, les voyageurs qui étaient des scientifiques européens, venus de sociétés urbaines bourgeoises et en phase d’industrialisation. Un autre aspect abordé a été la production picturale sur la région, de la part de Louis Choris. Ce peintre, comme d’autres qui ont peint nos paysages, a créé des images qui sont caractérisées par des stéréotypes et des lieux communs. Ceci est un aspect qui s’applique à tous les voyageurs : leurs récits sont marqués par des représentations qui, d’une certaine façon, en montrent beaucoup plus en ce qui concerne la culture de celui qui les a écrits que sur le région à l’étude.

Mots-clés : Voyageurs, Histoire Naturelle, Récits de Voyage.

7

Ao Aldonei com quem compartilho o pão e os sonhos

8

AGRADECIMENTOS

Inicialmente gostaria de registrar que, para desenvolver este trabalho, contei com o financiamento governamental, através da CAPES, que me concedeu bolsa durante o período de três anos, e também financiou o estágio de quatro meses junto a EHESS/França. Além disso, saliento que minha formação educacional, desde as primeiras letras até a conclusão do doutorado, somente foi possível devido ao ensino público e gratuito. À Profª Dr.ª Suzana Bleil de Souza pela orientação.

Ao Paulo Rogério, amigo de tantos anos, que pacientemente me ajudou, lendo idéias mal esboçadas, desde o projeto até o texto final.

Aos amigos que ajudaram a tornar esta caminhada menos penosa. Em especial: Kátia

Renck, Vanderlei Machado, Carla Rodeghero, Viviani Poyer, Maria das Graças Maria,

Claudia Zanella e Marco Aurélio.

À Claudia Mortari, pela ajuda no que se refere as populações de origem africanas, e ao

Reinaldo Lohn, pela leitura e sugestões.

À Sílvia Arend, colega de doutorado e de viagens, amiga com quem dividi as angústias da escrita.

À minha família que, mesmo distante, sempre me apoiou e me incentivou, e a minha sogra, Dona Maria Ana.

À minha prima, Cristiane, pela correção ortográfica.

Aos funcionários das várias instituições, museus, bibliotecas e arquivos, que contribuíram tornando acessível livros e outros materiais, bem como prestando informações.

As professoras doutoras Sandra Jatahy Pesavento e Maria Angélica Zubaran, que contribuíram com este trabalho ao participarem da banca de qualificação. Aos professores e aos funcionários do departamento de Pós-graduação em História da UFRGS.

Ao Profº Drº Jacques Leenhardt, que me recebeu durante 4 meses na EHESS/França. 9

INTRODUÇÃO

Para Rousseau a botânica era a melhor distração para o homem elegante do século XVIII. Munido de uma lupa e de um manual contendo as denominações científicas das plantas, poderia se distrair com algo que lhe possibilitaria um contato mais profundo com a natureza, e desta forma, com o seu eu interior. Para o cientista viajante, além da lupa (e de outros instrumentos), o diário também era fundamental. Além de coletar espécimes, precisava nomear, descrever suas características e classificar. No diário eram registrados os locais visitados, as coisas e as pessoas que conheceu, bem como comentava sobre os mais diferentes temas, que iam desde as plantas, borboletas e minerais até a vestimenta usada pelas mulheres de determinada região ou país. A partir das anotações registradas no diário de viagem desenvolveria outros textos, tais como os relatórios, apresentados para seus pares em reuniões nas instituições científicas, e os relatos de viagens, que eram escritos para o público em geral.

A lupa, mais do que um instrumento de trabalho, pode ser entendida como uma metáfora do olhar do viajante. Um olhar que tinha a pretensão de tudo ver, em seus mínimos detalhes, mas que, ao mesmo tempo, limitava seu foco à pequena circunferência da lente.

Margarita Pierini comenta que “a Europa vê o que os olhos de Colombo vêem;

Colombo vê com os olhos da Europa.”1 Esse trocadilho do olhar exprime a relação entre o

Velho Mundo e os viajantes, que são seus olhos e ouvidos em terras distantes. A América, bem como outras regiões descobertas pela Europa, foram visitadas e observadas em diferentes momentos por viajantes europeus, os quais eram exploradores comerciais, membros de ordens

1 PIERINI, Margarita. La Mirada y el discurso: la literatura de viagens. In: PIZARRO, Ana (org.). América Latina: Palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial/Ed. da Unicamp, 1993. p. 163. 10

religiosas ou cientistas. Posteriormente, muitos desses escreveriam sobre suas viagens, descrevendo o que tinham visto e vivido nestas regiões “exóticas” e completamente distintas daquilo que constituía a sua realidade. O viajante pode ser entendido como um elo de ligação entre dois mundos diferentes, o europeu, seu continente de origem, e o Novo Mundo. Esses viajantes, fossem cientistas do século XIX ou colonizadores do século XVI, possuíam algo em comum: a necessidade de conhecer, de obter informações e de possuir mapas detalhados das regiões que eram alvo de suas investidas. Os relatos de viagens eram uma leitura útil, instrutiva e agradável, que possibilitava interpretações variadas, estabelecendo relação entre o conhecido e o desconhecido, entre o próximo e o distante, entre o geral e o particular.

Segundo Daniel Roche, a “Europa letrada é leitora de viagens.”2 Leitores que aumentavam a cada edição, da mesma forma como aumentava o número de títulos publicados. De 5.562 títulos publicados nos séculos XVI, XVII e XVIII, relacionados com viagens, 456 foram publicados no século XVI, 1.566 no século XVII e 3.540 no século XVIII e na primeira década do século XIX. Do total de livros elencados como relatos de viagens, 794 tinham como tema a América.

Entre 1500, quando o Brasil foi integrado ao Império Português, até a atualidade, inúmeros estrangeiros que por aqui passaram escreveram sobre a experiência do contato com uma cultura diferente e sobre o “outro” que fazia parte dessa realidade. Entre esses relatos, que podem se apresentar como cartas, diários, memórias, testemunhos, etc., podemos citar a Carta de Pero Vaz de Caminha; A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens, de Hans Staden e os relatos dos cientistas viajantes, como por exemplo, Spix e Martius. Essas três obras, escritas em períodos históricos diferenciados, constituem-se como relatos escritos por estrangeiros a partir de um fator motivador, ou seja, uma viagem, que os confrontou com uma realidade distinta daquela com a qual eles estavam

2 ROCHE, Daniel. Humeurs Vagabondes: de la circulation des hommes et de l’utilité des voyages. : Fayard, 2003. p. 40. 11

habituados. O deslocamento entre o conhecido, a Europa, e o desconhecido, no caso o Novo

Mundo e seus habitantes, motivou-os a registrarem o que viram e viveram. Mas, apesar disso, as diferenças entre esses três documentos e seus autores são inúmeras, como por exemplo, a formação profissional de cada um, o tempo e as condições do contato com o “outro”, o público a quem eram destinados esses relatos e, principalmente, o contexto social e cultural da

época que motivou e influenciou a forma como esses viajantes observaram a cultura local e que foi posteriormente descrita.3 As diferenças entre cada relato contribuem para a importância dessas fontes, bem como das informações que podem ser obtidas através de sua leitura e análise.

Os relatos dos viajantes estrangeiros foram e ainda são muito utilizados como fontes nos estudos de várias áreas, como a História, a Sociologia e a Antropologia. Até a década de 1970, essa documentação foi usada sem maiores análises críticas, sem a preocupação de contextualizar a fala desses viajantes e o local de produção desses discursos.

Ilka Boaventura Leite percebeu que os viajantes são citados por determinados autores, como

Gilberto Freyre para “enfatizar o caráter democrático das relações raciais da sociedade brasileira”, enquanto outros os utilizam para dizer justamente o contrário, ou seja, que as relações sociais no Brasil são marcadas por forte racismo. Entre esses últimos podemos citar

Roger Bastide, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni.4

Esses textos, os relatos de viagens, não podem ser tomadas como insuspeitos ou neutros, o que significa que devemos historicizá-los, uma vez que se inserem em uma

época e uma cultura. Para Eni P. Orlandi é fundamental relacionar os sujeitos enunciadores e

3 Análises sobre esses viajantes e seus relatos: PEREIRA, Paulo Roberto (org.). Os três únicos testemunhos do Descobrimento do Brasil. : Lacerda Ed., 1999. FAGUNDES, Marcelo G. B. Viagens reais a um mundo imaginado: A “História Verídica” de Hans Staden no contexto do século XVI. Florianópolis: TCC/UDESC, 2001. LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Ed. Hucitec/FAPESP, 1997. 4 LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da Viagem: escravos e libertos em no século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. p. 13. 12

os sentidos que são produzidos pelo discurso.5 Salienta também que, para atingir a historicidade das falas, dos discursos produzidos em determinado contexto, é necessário ir além dos textos em si, é necessário compreender sua discursividade, ou seja, a trama discursiva que estabelece os sentidos. Nessa perspectiva, o papel ocupado pelo sujeito é descentrado, deixando de ser considerado como o único responsável pelos sentidos que são produzidos, passando a ser entendido como parte do processo de produção de sentidos. Os silêncios produzidos são outro ponto importante. A predominância de um discurso significa o silenciamento de inúmeras vozes. Segundo a autora, os “discursos sobre” é uma das formas de institucionalização dos sentidos, é uma forma de organizar as diferentes vozes, ou os diferentes discursos, que são reduzidos e organizados.6

Para pensarmos os discursos dos viajantes, optamos pelas reflexões desenvolvidas por Michel Foucault. Seu método parte da análise das condições de possibilidades dos discursos, para o estudo dos enunciados que precedem, encerram e tornam possível a emergência de um discurso, uma vez que estes se “inscrevem dentro de uma série de relações entre instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamento, sistema de normas e tipos de classificações que dão conta deles.”7 Foucault estabelece as relações entre as práticas discursivas e as práticas não discursivas. Seu método de análise postula a necessidade de sair do discurso, da semântica, para dar conta das condições de como este discurso se forma. Para Regine Robin, a contribuição de Foucault é limitada, pois as relações entre as práticas discursivas e as não discursivas são justapostas, sem hierarquia, sem dominância, sem que o nível discursivo seja relacionado ao “conjunto articulado de uma formação social, ao seu jogo complexo de instâncias e de dominâncias.”8 No entanto, Robin

5 ORLANDI, Eni Pulcinelli. Texto e Discurso. Cópia mimeografada. pp. 2-3. 6 ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à Vista!: Discurso do Confronto: velho e novo mundo. São Paulo: Cortez/: Editora da Unicamp, 1990. pp. 18-37. 7 GOLDMAN, Noemí. El discurso como objeto de la historia. In: GOLDMAN, Noemí et. al. El discurso como objeto de la historia/ El discurso de Mariano Moreno. Buenos Aires: Hachette, 1989. p. 24. 8 ROBIN, Regine. História e Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1977. p. 95 13

faz uma distinção. A proposta de análise do discurso de Foucault é diferenciada nos dois trabalhos nos quais ele aprofundou o tema: A Arqueologia do Saber e A Ordem do Discurso.

Enquanto no primeiro o seu interesse volta-se mais para as condições de possibilidade dos discursos e não tanto para os discursos em si, no segundo a abordagem centra-se mais no discurso e coloca de maneira menos central as relações entre as práticas discursivas e não- discursivas.9

Para Foucault, o discurso não é somente aquilo que “manifesta (ou oculta) o desejo” e não pode ser visto simplesmente como “aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação”, uma vez que é o poder pelo qual se luta, o poder do qual desejamos nos apoderar.10 E como outros poderes, o discurso também é normatizado através de procedimentos de controle e de delimitação. Esses podem ser externos ou internos. Os externos, e que funcionam como sistemas de exclusão são três: a palavra proibida e a segregação da loucura, que se enfraqueceram no mundo contemporâneo, e a vontade de verdade, que se reforçou e se aprofundou com o passar do tempo. Os internos são os procedimentos que funcionam a partir de princípios de classificação, de ordenação e de distribuição. Um desses princípios é o que Foucault denomina como comentário, que pode ser representado como as narrativas maiores que todas as sociedades possuem e que se repetem, algumas vezes com variações, repetindo também fórmulas e conjuntos ritualizados de discursos. Fazem parte de nosso sistema de cultura, nos textos jurídicos e religiosos, mas também nos textos “literários” e de certa forma nos textos científicos.11 Outro aspecto é a questão da autoria. Essa não é entendida somente como o indivíduo que falou ou escreveu o texto, mas como o princípio que unifica e significa os discursos, que lhe dá coerência. Nos discursos científicos, a autoria vem se enfraquecendo a partir do século XVII. Já nos discursos

9 Ibidem. pp. 96-97. 10 FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. 7º ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 10. 11 Ibidem. pp. 21-22. 14

literários está acontecendo o contrário, uma vez que a autoria se fortaleceu e continua se fortalecendo no decorrer dos últimos séculos.

Outro dos princípios de controle na produção dos discursos é a organização das disciplinas, que se opõe ao comentário e à autoria, uma vez que o que define uma disciplina são vários aspectos, como o domínio de objetos, um corpus de proposições verdadeiras, um conjunto de métodos, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos. Esse sistema anônimo que está à disposição de quem quiser utilizá-lo se opõe à autoria, enquanto a possibilidade de formular proposições novas se opõe ao comentário, que trata de um sentido já dado e que deve ser redescoberto. Mas o conhecimento das disciplinas não é a soma de tudo o que pode ser verdadeiro sobre determinada coisa, uma vez que os erros também fazem parte dessas áreas do conhecimento. Uma disciplina não comporta tudo o que pode ser aceito, em decorrência de princípios de coerência ou de sistematicidade. Além disso, para que uma proposição pertença a uma área do conhecimento, ela precisa corresponder a certas condições.

Para que uma proposição fosse aceita como “botânica” no fim do século XVII, ela precisava versar sobre a estrutura visível da planta e suas qualidades intrínsecas e não mais seus valores simbólicos ou suas qualidades humanas socialmente relevantes.12

Para Foucault

a forma mais superficial e mais visível desses sistemas de restrição é constituída pelo que se pode agrupar sob o nome de ritual; o ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciação); define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar os discursos; fixa, enfim a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coerção.13

Para analisar as condições dos discursos, seus jogos e seus efeitos, Foucault propõe um método, que compreende 4 exigências que devem ser aprofundadas e que ele

12 Ibidem. pp. 30-32. 13 Ibidem. pp. 38-39. 15

nomeou como a inversão, a descontinuidade, a especifidade e a exterioridade. O princípio da inversão é a necessidade de percebermos o jogo negativo de um recorte e de uma rarefação do discurso no qual normalmente vemos a vontade de verdade, o papel positivo do autor e da disciplina. O princípio da descontinuidade é a não aceitação de um discurso ilimitado, contínuo e silencioso que está à espera de alguém que venha lhe restituir a palavra. Para ele,

“os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também que se ignoram ou se excluem.”14 O princípio da especificidade define que não se deve entender os discursos como se fossem parte de um jogo de significações prévias. Ele deve ser entendido como uma violência que fazemos com as coisas, como uma prática imposta e que contribui para sua regulamentação. E, por fim, o princípio de exterioridade, que propõe que o movimento seja do interior dos discursos, de seus princípios de aparição e de regularidade, para as condições externas de possibilidade, para o que estabelece suas fronteiras. Além desses quatro princípios que definem seu método de análise dos discursos,

Foucault enumera outras quatro noções que servem como princípio regulador da análise: a noção de acontecimento (em oposição a de criação), a noção de série (em oposição a de unidade), a noção de regularidade (em oposição a de originalidade) e a noção de possibilidade

(em oposição a de significação).15

A partir das reflexões de Foucault consideramos que os discursos dos viajantes são delimitados, modelados por parâmetros que são seguidos pelos seus autores, que estão inseridos em um meio, o científico, que possui parâmetros de produção de conhecimento que devem ser seguidos. Esses são distintos em um literato ou mesmo em um indivíduo que viaja e resolve descrever em texto as experiências pelas quais passou. Ao mesmo tempo, apesar dos aspectos que os unem, isto não significa uma homogeneidade no discurso desses viajantes. A despeito da autoria ser nomeada, constata-se a repetição de idéias

14 Ibidem. pp. 52-53. 15 Ibidem. pp. 51-54. 16

em comentários sobre determinada região que, numa outra área de conhecimento, poderia ser considerada como plágio. Nesse aspecto a repetição de comentários e, muitas vezes, de opiniões sobre o outro constitui um aspecto que contribui para reforçar a veracidade do texto produzido. Mesmo estando ancorada na fundamentação teórica da análise do discurso, a leitura desse tipo de documentação nos reserva várias armadilhas, uma vez que as falas dos viajantes estrangeiros permitem múltiplas interpretações.

Quando usamos a designação “viajantes” consideramos que dentro desse grupo inseriam-se diferentes atores, que não possuíam as mesmas posições sociais e nem as mesmas funções intelectuais. Além disso, essa diferenciação também significava formas distintas de financiamento e de divulgação dos resultados da viagem. Essas diferenças, de certa forma, espelhavam as desigualdades internas existentes nas instituições culturais e científicas de seus países de origem.16 Apesar de todos serem denominados pelo mesmo nome, não existe uma unidade entre eles. A maioria dos viajantes era originária do continente europeu, mas alguns aspectos os diferenciavam, como, por exemplo, a forma como seus relatos foram organizados.

Para Mary Louise Pratt, tais relatos podem ser divididos em dois tipos, de acordo com a sua estruturação discursiva. Os relatos anteriores ao século XVIII eram agressivos, colonialistas e imperialistas, enquanto o sujeito viajante que emerge a partir de meados do século XVIII é detentor de uma postura diferenciada, passando de ativo para passivo, tornando-se

“observador” e assumindo a “estratégia da inocência.”17 Segundo a autora, os fatores que motivaram a mudança na forma de descrever o “outro” foram dois: a publicação da obra do

16 OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. Elementos para uma Sociologia dos Viajantes. In: Sociedades Indígenas e Indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero/UFRJ. 1987. p.92. 17 Conceito utilizado por Mary Louise Pratt que consiste em “paradigmas narrativos onde o sujeito europeu é mais passivo e reacionário do que agressivo e pró-ativo”. PRATT, Mary Louise. Pós-colonialidade: projeto incompleto ou irrelevante? In: VÉSCIO, Luiz Eugênio & SANTOS, Pedro Brum. Literatura & História. Perspectivas e Convergências. Bauru, SP: EDUSC, 1999. p. 25. 17

naturalista sueco Carl von Linné18, intitulada Systema Naturae (1735), e a exploração do interior do continente africano pelos europeus.

Os viajantes selecionados para esta pesquisa fazem parte de um grupo específico, o de cientistas viajantes. A motivação para sair da Europa não era o interesse comercial ou a busca de riquezas materiais, como muitos dos viajantes que os antecederam ou mesmo contemporâneos seus. Enquanto os viajantes dos primeiros séculos da colonização da

América estavam presos às narrativas maravilhosas e à exacerbada religiosidade do período, os cientistas viajantes do final do século XVIII e do século XIX estavam imbuídos de um espírito mais científico e investigativo. Eram estudiosos que possuíam as características e o perfil descrito por Charles Darwin: “o amor à ciência; uma paciência ilimitada para refletir longamente sobre qualquer assunto; zelo para observar e colecionar dados; e uma porção de invenção e senso comum.”19 Viajante, qualquer um podia ser, bastava ter gosto pela aventura ou necessidade econômica. Para ser um cientista viajante, no entanto, era necessário estudo, conhecimento e possuir um perfil pré-determinado.

A História Natural, enquanto um novo campo científico, construiu um novo modo de olhar a natureza. Essa não deveria mais ser simplesmente descrita, mas classificada, ordenada e organizada segundo os esquemas criados para a classificação global das plantas, dos animais e dos minerais, conhecidos ou não pelos europeus. A ciência forneceria aos viajantes os procedimentos de observação da natureza e da população que vivia nas regiões visitadas a partir de meados do século XVIII e durante todo o século XIX. A maioria desses viajantes eram cientistas que saíam da Europa para coletar espécimes de plantas e animais para as coleções dos museus de História Natural ou para os Jardins Botânicos. Para a definição do período de estudo e do conjunto de fontes, tomamos como base dois aspectos: o

18 Carl von Linné, ou Linnaeus nasceu em 23 de maio de 1707 na Suécia e morreu em 10 de janeiro de 1778. Formou-se em medicina, mas preferiu dedicar-se ao estudo da botânica. 19 DARWIN, Charles apud. MOREIRA LEITE, Miriam Lifchitz. Livros de Viagem 1803/1900. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. p. 209. 18

desenvolvimento científico da História Natural e os relatos de viagens que versam sobre a região geográfica que decidimos estudar, neste caso a área que atualmente compreende o estado de Santa Catarina.

No primeiro item delimitamos o período que compreende os anos de 1758 a

1858. Em 1758 Carl von Linné publicou a 2º edição de sua obra, Systema Naturae. Nessa edição Linné generaliza a nomenclatura e seu sistema de classificação para todo o reino animal, juntamente com o reino vegetal. Além disso, a partir das contribuições de outros cientistas e do aprofundamento dos estudos, as 15 páginas da primeira edição transformam-se em 1.300 na segunda edição. Apesar das críticas e dos limites de seu método, o estudo marca a definição de um código para designar as espécies vegetais e animais, estabelecendo um sistema de classificação para as novas descobertas. Sua concepção considera que cada espécie

é um dado fundamental e invariante da criação divina.

Um século depois, no verão de 1858, são apresentados publicamente os estudos desenvolvidos por Charles Darwin e por Alfred Russel Wallace sobre a evolução das espécies, na Linnean Society de Londres. Nos dois estudos e na obra A Origem das Espécies, publicada um ano depois, em 1859, foi apresentada a tese de que as espécies animais e vegetais não eram fixas, invariáveis, como se acreditava até então, mas que elas se modificavam, se transformavam devido a vários fatores, entre eles a seleção natural.

Essas mudanças no pensamento científico, da classificação para a genealogia, deveram-se em grande parte à descoberta de novas espécies, que chegavam à Europa de todas as partes do mundo pelas mãos de viajantes, fossem cientistas ou não. No final do século

XVII, Tournefort citava a existência de pouco mais de dez mil plantas conhecidas pela ciência européia. Em 1833, o professor de botânica de Montpellier, Alire Raffenau-Delile, observava que eram conhecidas mais de cinqüenta mil plantas. O aumento no conhecimento foi 19

decorrente das inúmeras viagens científicas, que tiveram seu apogeu entre o final do século

XVIII e o início do século XIX.20

Tomando como delimitação temporal esses aspectos, partimos para os relatos de viajantes que descrevem a região que tínhamos nos proposto a analisar. Entre os vários relatos disponíveis, selecionamos seis cientistas viajantes, que podem ser enquadrados como estudiosos da História Natural, e um artista, que acompanhou uma viagem de estudos científicos. São eles Antoine Joseph Pernetty, Georg Heinrich von Langsdorff, John Mawe,

Adalbert von Chamisso, Auguste de Saint-Hilaire, René Primevère Lesson e o artista Louis

Choris. Entre os anos de 1763 e 1822, esses viajantes europeus conheceram e registraram aspectos da paisagem natural e humana do litoral da Capitania de Santa Catarina. Devemos salientar que a maior parte deles conheceu somente a Ilha de Santa Catarina e o continente próximo. Saint-Hilaire foi o único que esteve em outras vilas da Capitania. Outro aspecto é que, no período estudado, a Capitania de Santa Catarina compreendia uma estreita faixa litorânea, com suas ilhas, entre elas aquela onde estava localizada a administração da

Capitania, a vila de Nossa Senhora do Desterro.

Atualmente, a maioria dos relatos dos viajantes que estiveram no Brasil nos séculos XVIII e XIX foi traduzida e publicada em português e constitui-se em importante documentação para entendermos a forma como a natureza e os habitantes foram descritos pelos estrangeiros que por aqui passaram. No entanto, no nosso entendimento, devemos ir além da publicação desses relatos. Devemos aprofundar os estudos sobre essa produção científica e literária. É necessário contextualizar o local de produção, as influências e as filiações científicas desses viajantes, uma vez que o conhecimento intelectual articula-se com um lugar de produção sócio-econômico, cultural e intelectual.

20 Sobre estas mudanças ver: DROUIN, Jean-Marc. De Lineu a Darwin: os viajantes naturalistas. In: SERRES, Michel (org.) Elementos para uma História das Ciências. Vol. 2. Lisboa: Terramar, 1996. pp. 149-166. 20

Podemos tomar os relatos de viagem como representações sobre a cultura visitada. Partindo desse entendimento, impõem-se alguns cuidados metodológicos no trato com essas fontes. Durante muito tempo postulou-se o caráter insuspeito e a isenção dos viajantes, o que desobrigava o historiador de contextualizar os relatos de viagem. Buscar a historicidade dos relatos é, no entanto, a forma de compreender como eles produzem sentidos, pois a representação, conforme se depreende dos estudos de Roger Chartier, pressupõe um discurso articulado e um lugar de enunciação.

Os textos, e entre eles os relatos de viajantes, têm que ser apreendidos em suas significações e interpretados através do conhecimento de suas determinações fundamentais e nas práticas que os produziam, uma vez que estas “determinam as operações de construção do sentido.”21 As imagens projetadas por esses viajantes sobre a Ilha de Santa Catarina e o litoral próximo constituíram-se a partir de coisas vistas e lidas, lugares comuns em voga que, combinadas em proporções variadas, conforme o autor, projetam representações sobre os lugares visitados e suas relações sociais. Pensar os relatos de viagem a partir da perspectiva da história cultural pressupõe que sua produção e sua circulação estão inseridas num campo de lutas, cujos desafios enunciam-se em termos de poder e dominação.22

Um dos pontos que chama a atenção quando lemos esses relatos é a profusão de temas. Apesar de estarem realizando viagens por regiões desconhecidas com o objetivo principal de coletar e analisar plantas e animais que deveriam ser enviados para instituições científicas européias, esses viajantes escreviam sobre vários assuntos. Descreviam plantas e animais, mas também debruçavam-se sobre assuntos econômicos, políticos, sociais, históricos e etnográficos. Como o homem fazia parte da natureza, tudo o que o envolvia era também do interesse desses estudiosos.

21 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução: Maria Manuela Galhardo. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Ed. Bertrand Brasil, 1991. p. 27. 22 CHARTIER, Roger. Op. Cit. p. 17. 21

Nossa problemática de trabalho é analisar os relatos dos cientistas viajantes que estiveram na Capitania de Santa Catarina durante o período de 1763 a 1822. Esta análise parte do conhecimento de quem era o viajante, de onde ele vinha e quais eram suas influências sócio-culturais. Esses dados são importantes, uma vez que irão influenciar na forma de escrever o relato, na seleção dos temas que serão descritos e das teorias as quais irão recorrer para explicar o que foi visto na região visitada. Como não quisemos nos restringir a salientar como o viajante elaborou seu discurso, em muitos dos temas tratados nos relatos recorremos a obras historiográficas, a fim de melhor entendermos como os autores desses textos selecionaram e registraram aspectos da realidade da Capitania.

O processo de escrita da tese teve como ponto de partida os relatos produzidos pelos viajantes anteriormente citados. O capítulo 1 trata das viagens. Essa breve discussão justifica-se, uma vez que as viagens não podem ser consideradas de uma forma geral.

Diferentes sociedades em diferentes momentos históricos vêem as viagens, os deslocamentos de indivíduos, de maneiras distintas. As viagens que nos propomos a analisar inserem-se no contexto do desenvolvimento das ciências, principalmente da História Natural. Tinham uma lógica diferenciada na sua organização, nas formas de financiamento e nos objetivos.

No capítulo 2, achamos necessário fazer uma biografia de cada viajante selecionado para este estudo. Além de informações sobre nascimento, filiação e formação, acrescentamos também dados sobre sua inserção na sociedade científica, sobre as obras publicadas, incluindo edições e traduções. Esses viajantes eram cientistas que estavam vinculados às Academias, espaços de pesquisa científica. Na França, a Académie Royale des

Sciences foi fundada em 1666, durante o reinado dos Bourbons. Era um exemplo de instituição estreitamente vinculada ao Estado. Na Inglaterra, o protestantismo contribuiu para uma revolução cultural. Para Bacon e muitos pensadores puritanos, a ciência tinha o papel de produzir riquezas, melhorar a saúde, desenvolver o comércio e instaurar o Éden Original na 22

terra.23 No século XVII e XVIII, a ciência estava estreitamente vinculada com as guerras, principalmente na Prússia, na Rússia, nos Reinos de Nápoles e Piemonte. Durante o século

XVIII desenvolveu-se uma comunidade científica internacional, cujos integrantes mantinham correspondência entre si e principalmente tinham a consciência de pertencer a uma elite cultural de dimensão internacional, detentora de características definidas e uma linguagem comum que, em muitos momentos, suplantava as diferenças entre as nações. Com a fundação de academias científicas em vários países europeus, financiadas pelas famílias nobres, como a

Universidade de Göttingen, que era mantida pela casa Hanovre, no final do século XVIII o

“homme de science” entra definitivamente na moda. A ciência triunfa e se legitima aos olhos do público. O homem da ciência é distinto do filósofo, do teólogo e, sobretudo, do homem das letras. Os cientistas podem ser classificados em dois tipos: os profissionais, vinculados as instituições do Estado, como as Academias de Ciência, e os diletantes. Esses últimos estavam vinculados às sociedades de estudo privadas, comuns principalmente na Inglaterra, onde possuíam um enfoque no utilitarismo e no industrialismo.24

No capítulo 3, aprofundamos a questão da escrita do relato de viagem. A partir do estudo desses textos, fizemos uma análise da retórica de cada autor, ou seja, de como cada viajante construiu sua obra, as suas partes, a maneira de descrever e a forma de descrição do que era visto, bem como a relação do texto com as representações produzidas. Em suma, analisamos como era estruturado o trabalho intelectual do viajante e como ele organizou o seu campo de pesquisa. Do que eles falavam? Qual a relação entre a viagem, o relato e a produção de um conhecimento sobre as regiões visitadas?

No capítulo 4 enfocamos o desenvolvimento da História Natural na Europa e as discussões sobre a natureza e o homem que vivia na América. Os viajantes estavam inseridos num ambiente cultural e científico que se encontrava envolvido em intensas discussões sobre

23 FERRONE, Vincenzo. L’homme de science. In: VOVELLE, Michel. L’homme des Lumières. Paris: Éd. du Seuil, 1996. p. 212. 24 Ibidem. pp. 220-232. 23

as características naturais do Novo Mundo. Além disso, naquele momento, o desenvolvimento ou não do ser humano era visto como estreitamente vinculado com a natureza onde estava inserido. A delimitação de uma nova área do conhecimento e, conseqüentemente, as exclusões impostas, os embates de opiniões entre seus integrantes mais ilustres e influentes, os arcabouços téoricos que seriam utilizados para explicar a América, contribuíam na forma como os cientistas viajantes analisariam o mundo novo que eles estavam conhecendo.

O capítulo 5 aprofunda o discurso dos viajantes sobre a natureza na capitania de Santa Catarina. Relatos sobre as matas, as plantas, os animais que existiam nesta região são analisados a fim de percebermos como os viajantes descreveram a região e de que forma os debates sobre a América, que circulavam na Europa, influíram na compreensão da natureza local. Em contraponto ao discurso do viajante, tentamos apreender como os indivíduos que viviam na região entendiam esta mesma natureza. Para isto recorremos a outros textos, de documentos de época a trabalhos historiográficos, que se referem a Santa Catarina mas também a outras regiões do Brasil.

Os capítulos 6, 7 e 8 voltam-se para outro aspecto dos relatos. Os viajantes, apesar de cientistas, não se restringiram a descrever a natureza. Escreveram também sobre as vilas, os homens e mulheres que viviam na região, a forma como a sociedade se organizou, e muitos outros aspectos. Uma das dificuldades dessa fonte, o relato de viagem, é contraditoriamente a riqueza e a quantidade de informações registradas pelos viajantes sobre os mais diversos temas. Os seus olhares percorriam, encantados, surpresos, chocados ou indignados, inúmeros aspectos da região que estava sendo explorada. Mesmo quando o relato foi escrito muitos anos após a viagem, sua escrita acompanhava o olhar disperso que buscava contemplar a totalidade do que era visto e sentido.

Entre os diversos temas e assuntos dos quais os viajantes escreveram, selecionamos os seguintes para aprofundarmos: os núcleos urbanos, seus habitantes, o 24

trabalho desenvolvido e a situação econômica em que se encontrava a região. Esses temas foram escolhidos após a leitura de todos os relatos e a constatação de que alguns assuntos eram tratados pela maioria dos viajantes. Apesar da diferença temporal entre os viajantes selecionados para análise, cuja primeira viagem foi realizada na segunda metade do século

XVIII por Pernetty, que esteve nesta região em 1763, até a última delas, realizada por Lesson, no ano de 1822, os dados por eles relatados eram recorrentes.

Entre esses viajantes, Saint-Hilaire, pelo próprio tamanho de seu relato, que compreende 90 páginas de texto, foi o que mais falas dedicou aos temas selecionados. No entanto, outros autores, mesmo em textos de poucas páginas, como Langsdorff e Mawe, respectivamente 20 e 7 páginas, deixaram registrados vários trechos que se referem ao trabalho que era desenvolvido na região. Langsdorff também se dedicou a descrever características do povo, tema também do interesse de Lesson, que num texto pequeno, de somente 9 páginas, dedicou muitas linhas para descrever os habitantes locais, fossem estes homens ou mulheres, livres ou escravos. Ao examinarmos o tamanho do texto e o espaço que cada viajante dedicou aos diferentes temas selecionados, constatamos que o interesse individual influenciou na escolha dos temas que iriam ser descritos no relato de viagem.

Mesmo sendo todos cientistas viajantes, com um objetivo em comum, isso não significava uma proximidade de interesses. Langsdorff dedicou longos trechos a descrever a música e a dança que ele conheceu na Ilha de Santa Catarina, enquanto Pernetty descreveu a comida que provou quando de um jantar na casa do governador da Capitania, além de outros alimentos desconhecidos, como a banana.25 O relato de viagem, por ser um texto que se diferenciava dos relatórios científicos que eram feitos, muitas vezes coletivamente, junto com os outros membros da expedição, para prestarem contas às instituições que haviam financiado as

25 Os cálculos de páginas tiveram como base as seguintes edições: SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem a Curitiba e Província de Santa Catarina. Prefácio Mário G. Ferri; tradução Regina Regis Junqueira. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia/São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1978. PALMA DE HARO, Martim Afonso (org.) Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. 4º ed. Florianópolis: Editora da UFSC, Editora Lunardelli, 1996. 25

viagens, permitia que seu autor extrapolasse os objetivos puramente científicos. O público leitor, a quem eram voltados esses textos, tinha um interesse distinto dos colegas cientistas.

Os textos falam sobre uma região da América da Sul que atualmente faz parte do estado de Santa Catarina, Brasil. No entanto, não engloba todo o estado, mas somente a região litorânea, e principalmente a Ilha de Santa Catarina, onde atualmente localiza-se a capital do estado. Geograficamente estamos falando do litoral. No que se refere às características étnicas de sua população, esta era constituída majoritariamente por descendentes de portugueses e açorianos. Existia também uma significativa parcela da população de origem africana. Além desses grupos étnicos que formavam a maioria da população, também foi citada pelos viajantes a presença de nativos da América e de europeus de outras nacionalidades. A intenção é ir além de analisar como essas populações foram descritas pelos viajantes, mas construir, a partir desses discursos e das recentes análises elaboradas pela historiografia catarinense, uma nova possibilidade de interpretação da sociedade e da população que vivia na região litorânea de Santa Catarina, mais precisamente na área que se estende da vila de Nossa Senhora da Graça do rio São Francisco até Santo

Antônio dos Anjos de Laguna, costeando o Oceano Atlântico.

O capítulo 9 é dedicado a Louis Choris. O único artista viajante foi contemplado com um capítulo a parte. Analisamos como o desenvolvimento da História

Natural contribuiu para formar uma nova forma de pintar as paisagens, principalmente de regiões não européias. Além disso, buscamos mapear as influências que Choris recebeu, sua formação e quem era o público consumidor dos álbuns ilustrados publicados na Europa e que tinham como tema regiões distantes e desconhecidas.

Os viajantes escreveram relatos onde estão registradas suas impressões e seu testemunho sobre a região visitada. Seu testemunho, além de ser matizado por coisas lidas, era também marcado por distâncias temporais e culturais - viajante, estrangeiro, cientista, 26

citadino, seja nobre ou burguês. Além disso, o viajante encontra-se na postura do observador que lança seu olhar sobre o observado, indivíduos de outras nacionalidades, com outras formas de se relacionar entre si e com o trabalho, e que vão desenvolver outras manifestações culturais e práticas cotidianas. Além da distância entre o viajante e o que ele observa, outro aspecto que precisamos considerar é o próprio texto. Esses relatos foram escritos a partir de informações colhidas na viagem, muitas vezes no contato do viajante com a elite local, fosse ela administrativa, militar ou eclesiástica, que eram seus principais interlocutores. Outra forma de conseguir informações era através da leitura de textos de outros viajantes ou mesmo de documentos oficiais, como no caso específico de Saint-Hilaire. A distância cultural entre o viajante e o que ele vai descrever contribuiu para a escrita de relatos marcados pela negociação, pela troca, entre o conhecimento que estava se desenvolvendo na Europa em relação com a América e o resto do mundo.

27

1. Viagens científicas européias ao redor do mundo (séculos XVIII e XIX)

Durante a segunda metade do século XVIII, e na primeira metade do seguinte, ocorreram muitos empreendimentos internacionais de circunavegação com o objetivo de fazer uma descrição física do mundo.26 Muitos viajantes e mesmo nações, como a França, a Grã-

Bretanha e o Império Russo, justificavam as viagens como necessárias para conhecer o mundo e seus habitantes ou, muitas vezes, em prol do avanço científico. No entanto, elas tinham também outro objetivo, ou seja, relacionar as possibilidades econômicas dos continentes, sobretudo do africano. O Brasil, por fazer parte de uma região “desconhecida” para os europeus, foi alvo de inúmeras expedições científicas, principalmente a partir de 1808.

Antes da transferência da corte portuguesa de Lisboa para o Brasil, a entrada de viajantes era proibida a fim de manter em segredo as informações sobre as potencialidades da colônia, evitando assim a cobiça de outras potências. Alexander von Humboldt, em sua viagem à

América do Sul, realizada no final do século XVIII, foi expulso do Brasil devido à suspeita das autoridades coloniais de que fosse espião. No entanto, mesmo antes de 180827, era permitido que navios, de diferentes bandeiras, atracassem para fazer escala, principalmente no porto do Rio de Janeiro. No caso da Inglaterra, existiam tratados anglo-lusitanos do século

XVII que permitiam a utilização dos portos do Rio de Janeiro, Salvador e Recife aos barcos de bandeira inglesa.

26 Entre elas podemos citar as expedições comandadas por: Louis Antoine de Bougainville (1767-1771), Jean- François de La Pérouse (1785-1789), George Anson (1740-1744), entre outras. O próprio Bougainville, em sua obra Voyage autor du monde, enumera treze viagens. Destas, quatro ocorreram no século XVI, quatro no século XVII, e quatro no século XVIII, sendo a sua a décima terceira. Para mais informações ver MOREIRA LEITE, Miriam Lifchitz. Livros de Viagens: 1803-1900. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997 e MOLLAT, Michel & TAILLEMITE, Étienne. L’importance de l’exploration marítime au siècle des lumières: à propos du voyage de Bougainville. Paris: Editions du CNRS. 1978. pp. 17-40. 27 Sobre as mudanças que ocorreram a partir desta data, ver: LEITE, Ilka Boaventura. Op. cit. Cap. 1: O Brasil sob o olhar estrangeiro. 28

Gostaríamos de levantar alguns questionamentos em relação às viagens e ao ato de viajar por regiões pouco conhecidas ou distantes. Viagens e viajantes existiram muito antes do período que nos propomos a estudar. Entretanto, conforme o contexto histórico no qual seus protagonistas estão inseridos, os sentidos e as finalidades das viagens são distintos.

A fim de melhor entendermos como as viagens eram diferentes dependendo do contexto histórico nos quais estavam inseridas, discutiremos os relatos das viagens elaborados por

Cristovão Colombo, Hans Staden e Jean de Léry.

As grandes viagens marítimas e a incorporação de territórios desconhecidos pelos europeus, a partir do século XV, marcam também uma mudança no tipo de relação estabelecida entre o viajante e os povos visitados. Estas mudanças também são reproduzidas nos relatos de viagens. Exploradores, comerciantes e, em menor escala, religiosos estavam a serviço dos Estados Nacionais que, motivados pelo lucro, financiavam expedições que tinham o objetivo de descobrir novas terras e a expectativa de encontrar riquezas, principalmente ouro. Quando lemos os Diários da Descoberta da América escrito por Cristovão Colombo, a busca pelo disputado mineral era repetidamente manifestada, principalmente no relato da primeira viagem. Trechos onde aparecem referências à palavra ouro são salientados por

Tzvetan Todorov em sua obra A Conquista da América: a questão do outro. Nesse trabalho, que toma a descoberta e a conquista da América a fim de desenvolver uma reflexão sobre o outro e sua estranheza, o autor salienta que Cristovão Colombo falou/escreveu freqüentemente sobre seu objetivo de descobrir riquezas, motivado pela necessidade de acalmar tanto os marinheiros, que estavam assustados pela longa viagem e pelo medo de não retornarem a sua terra, quanto os próprios reis da Espanha, uma vez que foi a expectativa de encontrar riquezas que havia possibilitado os altos investimentos necessários à expedição.

Ainda segundo Todorov, o que impulsionou Cristovão Colombo foi a “vitória universal do cristianismo”, uma vez que sua expansão era “muito mais importante do que o ouro.” Esses 29

dois objetivos estavam vinculados, e a obtenção de um significaria os meios necessários para a implementação do outro.28

Outro exemplo de relato de viagem é o que foi escrito por Hans Staden.

Nascido no principado de Hessen, viajou para a América portuguesa entre os anos de 1548 e

1555, tendo participado de duas expedições: a primeira à capitania de Pernambuco e a segunda à de São Vicente. Foi nessa última que aconteceu o naufrágio e seu aprisionamento entre os Tupinambá. A experiência entre indígenas de costumes antropofágicos e sua fuga do triste destino de ser devorado motivou a escrita de seu relato intitulado História Verídica29.

Staden não era um viajante como os outros. Suas motivações não eram nem a busca da aventura, nem a busca de conhecimentos. Engajou-se como soldado em uma embarcação portuguesa após a derrota do exército de Felipe de Hessen na disputa contra o exército de

Carlos V, que teve, entre outros motivos, a questão religiosa, nesse período marcado pela

Reforma Religiosa e pela Contra-Reforma.

Viajante em decorrência das circunstâncias que o levaram a sair de sua região de nascimento, engajado como soldado em navios estrangeiros, torna-se cronista devido ao inusitado de sua experiência de prisioneiro que conseguiu escapar de ser devorado por índios antropófagos da América. A curiosidade de seus conterrâneos e a necessidade manifesta de agradecer a Deus, que o salvou, levou-o a relatar por escrito sua experiência. Staden viveu nove meses como prisioneiro entre os Tupinambá e seu objetivo, como salienta o próprio título do relato, é descrever uma história verídica. Dessa maneira, ele privilegia uma escrita onde o que viveu é descrito de forma narrativa. Além disso, enfatiza os acontecimentos e

28 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. Tradução: Beatriz Perrone Moisés. 3º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988. pp. 8-9. 29 O relato foi publicado em 1557 com o título de “História Verídica e descrição de uma terra de selvagens, nus e cruéis comedores de seres humanos, situada no Novo Mundo da América, desconhecida antes e depois de Jesus Cristo nas terras de Hessen até os dois últimos anos, visto que Hans Staden, de Homberg, em Hessen, a conheceu por experiência própria, e que agora traz a público com essa impressão”. Deste viajante estão publicados em português as seguintes obras: STADEN, Hans. Hans Staden: os primeiros registros escritos e ilustrados sobre o Brasil e seus habitantes. Tradução: Angel Bojadsen. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 1999; STADEN, Hans. A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens (1548-1555). Tradução: Pedro Süssekind. 2º ed. Rio de Janeiro: Dantes, 1999. 30

experiências no qual foi protagonista ou então observador, a fim de incutir veracidade ao texto. Seu relato afasta-se das descrições fantasiosas de outros viajantes da época. Segundo

Guillermo Giucci, no relato de Staden, a América aparece “não só desmistificada do modelo do maravilhoso que a recobria e deformava, como reconhecida em sua singularidade e em sua diferença radical com o referente europeu.”30

No mesmo ano em que era publicado o relato de Hans Staden na Europa, o francês Jean de Léry partia para a França Antártica. Nascido na região da Borgonha em 1534, era sapateiro e estudante de teologia na cidade de Genebra. A partir da solicitação de Nicolau

Villegaignon, simpatizante da Igreja Reformada, fundador e administrador da colônia francesa implantada na Baía de Guanabara, entre os anos de 1555 a 1567, Léry, juntamente com outros quatorze protestantes, acompanhou os pastores Richier e Cartier e partiu para o

Brasil em 1557, onde permaneceu por um ano no Forte Coligny. Durante este período presenciou os problemas enfrentados na colônia devido à difícil adaptação ao clima, às disputas internas agravadas pelos desmandos de Villegaignon e os enfrentamentos com os portugueses. Sua experiência na América permitiu-lhe conviver com os índios Tupinambá, observando e estudando seus costumes. Em 1558 abandona a colônia e retorna à França, de onde é obrigado a partir devido às disputas entre católicos e protestantes. Morando novamente em Genebra, dedica-se a escrever sobre o período em que viveu na América. Anos depois, em

1578, publicou a obra Histoire d’une Voyage fait en la terre du Brésil. Sucesso imediato, foi traduzido para diversas línguas. No Brasil foi publicado em 1941 como Viagem à Terra do

Brasil e, a partir de 1972, recebeu inúmeras reedições.31

O relato foi escrito com o material retirado do Brasil, a experiência vivida pelo autor do texto. Segundo Michel de Certeau, o texto de Léry “joga com a relação entre a

30 GIUCCI, Guillermo. Viajantes do maravilhoso: o Novo Mundo. Tradução: Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 215. 31 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Alegres Trópicos: Gonneville, Thevet e Léry. Revista USP. São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai. 1989). pp. 84-93. 31

estrutura - que propõe a separação - e a operação - que a supera criando assim efeitos de sentido.”32 Em sua escrita, este viajante estabelece um corte entre o Velho Mundo e o Novo

Mundo, e o que separa estes dois mundos é o Oceano Atlântico. Enquanto a França é o aqui, o litoral do Brasil é o lá embaixo, lá adiante. O interesse principal do viajante, no caso a sociedade tupi, é apresentada como um quadro de “dissemelhanças”. Por este termo podemos entender como o diferente de tudo o que pode ser encontrado na Europa, ou então o que é mais comum, a combinação de formas ocidentais que, cortadas, seriam combinadas de uma forma insólita. Além disso, Léry apresenta o mundo selvagem dividido entre a natureza e a sociedade civil. A divisão aqui/lá transforma-se numa divisão entre natureza/cultura.33

A leitura e a apropriação das construções discursivas elaboradas pelos viajantes em seus relatos ocorreram de maneira distinta. Colombo evoca o mito do paraíso terrestre,

Staden enfatiza as práticas antropofágicas dos índios e Léry passa a imagem de uma terra agradável, citando inclusive casos de franceses que, seduzidos pela vida nos trópicos, por aqui ficaram e se tornaram selvagens.34 Faz-se necessário salientar que as imagens construídas sobre o Brasil e a América repercutiram na Europa, principalmente na França, agindo sobre seus conceitos éticos, políticos, pedagógicos, etc. Influências e referências podem ser encontradas nas obras de Montaigne, Rousseau, Rabelais, Voltaire, entre outros. 35

Cristovão Colombo, Hans Staden e Jean de Léry são alguns do extenso grupo de viajantes que, por diferentes motivos, escreveram os relatos de suas experiências em terras distantes e entre indivíduos detentores de uma cultura diferenciada. Os cientistas viajantes escreviam os relatos com o objetivo de difundir o conhecimento adquirido a partir da viagem realizada, bem como valorizar seu trabalho em prol da ciência. Já o motivo que levava os

32 DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Tradução: Maria de Lourdes Menezes. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 219. 33 Ibidem. pp. 220-221. 34 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Op. cit. p. 90. 35 Sobre a influência americana no pensamento francês ver: FRANCO, Affonso Arinos de Mello. O índio brasileiro e a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937. 32

outros tipos de viajantes a escreverem relatos eram os mais diversos, da mesma forma como eram distintos os motivos de suas viagens. Hans Staden escreveu para agradecer a Deus pela vida, enquanto Jean de Léry aproveita para discutir questões religiosas que agitavam seu país.

As viagens por terras distantes e desconhecidas aumentaram a partir do período moderno. No entanto, nem todos os viajantes, bem como nem todas as viagens, possuíam o mesmo objetivo ou o mesmo significado. Podemos tomar como exemplo as viagens que se desenvolveram e tiveram seu auge na segunda metade do século XVIII e no século XIX, e que tinham como justificativa essencial a busca do conhecimento científico. Elas eram estruturadas e organizadas segundo alguns parâmetros que as distinguiam das viagens que as antecederam, mas isto não quer dizer que podemos inseri-las em um conjunto homogêneo.

Para Lorelai Kury, apesar da existência de diretrizes que preconizavam métodos rigorosos de trabalho, as viagens científicas formavam um conjunto heterogêneo devido às suas motivações, seu desenvolvimento e seus resultados.36 No entanto, devemos salientar um aspecto que as unificavam: o aprendizado através da experiência. O que motivava e justificava os investimentos, fossem eles financeiros ou humanos, era a crença que a obtenção do conhecimento e do aprendizado se daria pelo “contato direto com as coisas do mundo.”37

As expedições científicas foram em sua maioria financiadas por Estados europeus, entre eles a França, a Inglaterra, o Império Russo, caracterizando-se como viagens oficiais. Além disso, ocorreram viagens que foram custeadas por famílias nobres ou pela fortuna pessoal do próprio viajante, como por exemplo, a viagem realizada por Alexander von

Humboldt. Entre as viagens financiadas por instituições públicas ou pelos governos, podemos fazer uma distinção entre expedições marítimas e expedições científicas. Enquanto o primeiro tipo de expedição restringia-se ao estudo das regiões litorâneas e as possibilidades para a navegação, o segundo tipo embrenhava-se no interior dos continentes. A primeira viagem

36 KURY, Lorelei. Histoire naturelle et voyages scientifiques (1780-1830). Paris: L’Harmattan, 2001. p. 148. 37 SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador; a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 110. 33

envolvendo cientistas de vários países europeus que entrou pelo interior do continente americano foi a expedição La Condamine.38

Essa expedição teve início em 1735 e tinha como objetivo responder o seguinte questionamento: seria a terra uma esfera ou um esferóide achatado nos pólos? Para elucidar essa questão, foi montada uma expedição formada por cientistas de diferentes nacionalidades, que contou com o apoio inclusive do rei da Espanha, o qual permitiu a entrada de estrangeiros em seus territórios na América a fim de que os cientistas pudessem fazer as mensurações necessárias próximo à linha do Equador. Enquanto um grupo deslocava-se para as proximidades de Quito, o outro era enviado para o norte, para a Lapônia. Durante o período que a expedição permaneceu na América, ocorreram vários imprevistos: disputas entre os viajantes e com as autoridades coloniais, enfermidades, assassinatos, perda do material arrecadado e das anotações por causa das chuvas, instrumentos danificados, etc.. O grupo francês se desintegrou e cada um teve que encontrar por conta própria a melhor forma de retornar para casa. A expedição foi iniciada em 1735 e mais de uma década se passou antes que os primeiros integrantes começassem a retornar à Europa. O matemático Pierre Bourguer foi o primeiro a voltar e, em 1744, apresentou um relatório à Academia Francesa de Ciências, onde relata os inúmeros sofrimentos e privações dos quais foram vítimas e, ao mesmo tempo trata das mensurações e análises meteorológicas que fizeram no Peru. La Condamine chegou em 1744, após ter descido o Rio Amazonas. O naturalista Joseph de Jussieu permaneceu na

Nova Espanha até 1771, quando foi expulso, com graves problemas de saúde mental. Essa expedição rendeu muitos relatórios e relatos de viagem. Além disso, nos possibilita refletir sobre o papel integrador da ciência, que permitiu a constituição da primeira expedição

38 PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Tradução: Jézio Hernani Bonfim Gutierre. Bauru, SP: EDUSC, 1999. p. 54. 34

científica internacional, passando por cima das rivalidades nacionais presentes na Europa, bem como o seu oposto, a “política e o (anti-)heroísmo da ciência.”39

Além dos problemas e dificuldades que os viajantes deveriam enfrentar no decorrer das viagens, havia também outros obstáculos que não pertenciam ao campo da ciência, mas sim da política. As disputas entre os países europeus interferiam nas viagens, obrigando muitas vezes a mudanças de rota ou mesmo ao cancelamento ou interrupção das mesmas. Exemplo disto é a viagem de Alexander von Humboldt e Aimé Bonpland. Seus planos de viajar para o Egito foram abortados após a ocupação daquela região pelas tropas de

Napoleão Bonaparte, obrigando-os a mudar o trajeto para a América Espanhola. Através dos contatos e das boas relações de Humboldt com membros da corte em Madri, conseguiram autorização para visitar as colônias espanholas. Também foram feitos contatos com a Coroa

Portuguesa com o intuito de conseguir autorização para entrar nos territórios coloniais portugueses na América, mas as negociações não tiveram resultados positivos. Os viajantes não conseguiram autorização devido ao medo por parte da Coroa Portuguesa de que realizassem atividades de espionagem. Como foi comentado anteriormente, somente a partir de 1808, com a transferência da Família Real Portuguesa para o Rio de Janeiro, passa a ser autorizada a entrada de viajantes estrangeiros no Brasil. Antes dessa data, somente era permitido que navios em trânsito fizessem escala para abastecimento. Os portos escolhidos eram geralmente o do Rio de Janeiro e o da Ilha de Santa Catarina. Como essas paradas duravam dias, algumas vezes meses, os estudiosos aproveitavam para realizar coletas de materiais, principalmente botânicos.

No que se refere à Ilha de Santa Catarina, sua escolha era motivada pela posição geográfica, estratégica para os barcos que se dirigiam à região do Rio da Prata e para os que iriam fazer a travessia do Cabo Horn, no extremo sul da América. Alguns barcos

39 Sobre a organização e as disputas presentes na expedição La Condamine ver: PRATT, Mary Louise. Op. cit. pp. 41-55. 35

também ancoravam na Ilha quando, por causa de doenças e epidemias, não era recomendado parar no porto do Rio de Janeiro. Devido a esses fatores, na região ancoravam barcos, muitos deles em expedições de circunavegação, que ficavam o tempo necessário para serem abastecidos com madeira, víveres e água potável, bem como fazer reparos na embarcação, como nos mostra o relato escrito pelo capitão do navio “Nadeshda”, Adam J. von

Krusenstern, chefe da expedição russa de exploração do Pacífico Norte. Segundo ele,

o governador Dom José de Carrado, coronel do exército português, a quem eu estava visitando com o capitão Lisiansky e alguns dos oficiais do navio, imediatamente à nossa chegada, recebeu-nos com grande cortesia. Ele prometeu, com a maior gentileza, oferecer-nos toda a assistência ao seu alcance; ele mandou um sargento para bordo de ambos os navios, o qual foi colocado inteiramente à nossa disposição; mandou fazer uma lista das provisões de que necessitávamos, e ordenou a um oficial, para maior rapidez em procurá-las, a comprá-las no interior da ilha e no continente. Ele determinou que fosse cortada madeira para nós, um pedido que particularmente fiz a ele, já que essa tarefa teria sido muito laboriosa, sob o extremo calor, e poderia resultar em prejuízo à saúde dos marinheiros.40 Além dos viajantes que aqui paravam somente pela necessidade de abastecimento, e aproveitavam para escrever algumas poucas páginas, tivemos outros, que foram além. Embrenharam-se nas matas e nos caminhos, segundo eles, péssimos, a fim de conhecer o interior da Capitania de Santa Catarina. Auguste de Saint-Hilaire a cruzou por terra, no sentido norte-sul. Na época de sua viagem, a Capitania de Santa Catarina era uma das menores do Brasil. Tinha somente três vilas: Nossa Senhora da Graça do Rio de São

Francisco, Nossa Senhora do Destêrro e Santo Antônio dos Anjos da Laguna.41 Com exceção do distrito de Lages42, localizado no planalto serrano, e do povoamento das margens de alguns

40 KRUSENSTERN, Adam Johann von. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. Op. cit. p. 137. O nome correto do governador é Joaquim Xavier Curado, governou a Província de 1800 a 1805. 41 São Francisco foi elevada à vila em 1660 e, em 1847, torna-se cidade. Desterro é elevada à condição de vila em 1726. Em 1823 torna-se a capital da província. Troca de nome em 1894, quando passa a chamar-se Florianópolis. Laguna torna-se vila em 1714 e comarca em 1856. 42 A cidade de Lages, localizada no Planalto Catarinense, foi fundada em 1766 por Antônio Correa Pinto, no caminho que ligava os Campos de Viamão a São Paulo. Seu desenvolvimento foi em decorrência de seus campos de pastagem, ponto de passagem e invernada das tropas de animais que eram levadas do Rio Grande do Sul as regiões das Minas Gerais. Em 1771 foi elevada à categoria de vila como o nome de Nossa Senhora dos Prazeres “das Lagens”. Em 1738, após a criação da Capitania de Santa Catarina, continuou fazendo parte da Capitania de São Paulo até o ano de 1820. 36

rios “as terras ocupadas pelos colonos até 1822 não se estendiam a mais de três léguas do litoral, e nada indica que a partir dessa época eles tenham avançado mais para o interior.”43

Uma característica dessas expedições, fossem elas de circunavegação ou pelo interior dos continentes, era que a maior parte constituíam-se como viagens de grupo, no qual estavam envolvidas várias categorias de estudiosos, como naturalistas, botânicos, geólogos, zoólogos, pintores, entre outros. Apesar de financiadas por seus países de origem, os viajantes muitas vezes recebiam apoio dos governos locais. O governo colonial português e, posteriormente, o Império Brasileiro, ajudava através do fornecimento da licença de entrada e cartas de recomendação direcionadas aos funcionários estatais, ou então, possibilitando a divulgação das pesquisas nas instituições científicas existentes no país. Este intercâmbio permitiu o desenvolvimento de pesquisas e a organização de expedições científicas brasileiras no final do século XIX, com cientistas e financiamento nacional.44

Entre as várias expedições científicas realizadas por países europeus, e que envolvia um conjunto de estudiosos de diferentes áreas de conhecimento, podemos citar a expedição “Rurick”, comandada por Otto von Kotzebue, da qual fizeram parte o pintor Louis

Choris e o botânico Adalbert von Chamisso. Essa expedição partiu da Rússia em janeiro de

1815 e aportou na Ilha de Santa Catarina no final do ano, onde permaneceu durante vários dias, com o objetivo de abastecer os navios, tratar os doentes e realizar estudos. Financiada pelo governo da Rússia, tinha como objetivo concluir a exploração da parte norte do Pacífico.

Entre os anos de 1803 e 1806, o Império Russo havia financiado uma outra expedição naval que iniciou a exploração do Pacífico Norte, estabelecendo relações diplomáticas com o Japão.

Nessa expedição estiveram envolvidos dois navios, “Neva”, sob a chefia do capitão Urey

43 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem a Curitiba e Província de Santa Catarina. Tradução Regina Regis Junqueira. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1978. p. 127. 44 Sobre as relações entre viajantes estrangeiros e as instituições de pesquisas brasileiras ver: LOPES, Maria Margaret. As ciências dos Museus: a história natural, os viajantes europeus e as diferentes concepções de Museus no Brasil do século XIX. In: História da Ciência: o mapa do conhecimento. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: Edusp, 1995. pp. 721-372. 37

Lisiansky e “Nadeshda”, cujo capitão era Adam Johann von Krusenstern, chefe também da expedição. Tanto a primeira como a segunda expedição fizeram uma escala na Ilha de Santa

Catarina e alguns de seus integrantes deixaram registrados em seus relatos de viagem comentários sobre a sua natureza e sua população. Esses relatos e seus autores serão analisados na seqüência do texto, nos próximos capítulos.

Apesar da expedição “Rurick” ser financiada pelo governo russo e sua tripulação ser composta por russos, pelo menos metade dos cientistas envolvidos no projeto eram de outras nacionalidades, como o médico e zoologista Johann Friedrich Eschscholtz, nascido na Estônia, e o botânico Adalbert von Chamisso, nascido na França. O intercâmbio científico entre nações, ou então a presença de cientistas de diferentes países numa expedição não era algo incomum, apesar da competitividade entre as nações européias no que se refere à expansão por terras de outros continentes e pela liderança no desenvolvimento do conhecimento científico. Segundo Mary Louise Pratt, durante a segunda metade do século

XVIII, “a expedição científica tornar-se-ia um catalizador das energias e recursos de intrincadas alianças das elites comerciais e intelectuais por toda a Europa.”45

Um aspecto que gostaríamos de salientar é como esse trabalho dependia de contatos pré-estabelecidos, principalmente com as autoridades coloniais. Georg von

Langsdorff, em sua curta estadia na Ilha de Santa Catarina, teve seu trabalho facilitado por causa desses contatos. Foi através do governador da província que ele soube da existência do

Sr. Matheos Cardoso Caldeira, que vivia na Fazenda São José, no continente.

Para mim foi surpresa das mais agradáveis, saber do governador que havia aqui uma pessoa há muitos anos interessada e dedicada à coleção de insetos. Procurei tirar proveito desta ocasião oportuna [...] meu maior pedido a ele foi que me mostrasse as regiões mas ricas em insetos e que me levasse em suas excursões, no que concordou imediatamente de modo cordial e prestativo.46

45 PRATT, Mary Louise. Op. cit. p. 52. 46 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. Op. cit. p. 170. 38

O conhecimento dos ‘nativos’ e dos moradores locais não era totalmente desprezado pelos viajantes europeus. Eles não eram detentores do conhecimento científico que estava sendo desenvolvido na Europa, não conheciam a nomenclatura científica, mas possuíam um conhecimento empírico que interessava aos cientistas, principalmente no que se referia às plantas e suas utilidades práticas. No caso de Langsdorff, sua coleta de insetos foi facilitada pelo fato de ter um guia experiente. Prestativo, cordial, adjetivos largamente utilizados pelos estrangeiros para descrever os habitantes locais, também foram empregados para definir um indivíduo que não se importou de apresentar para um desconhecido os melhores locais para coletar espécimes animais importantes para o trabalho de um cientista.

Eram muitas vezes através das relações estabelecidas com os habitantes locais que os viajantes conseguiam desenvolver o trabalho pelo qual haviam empreendido tão longa e desgastante viagem. Langsdorff encontrou no litoral Sul do Brasil uma natureza rica e a ajuda dos habitantes locais que lhe permitiu, em sua curta estadia de pouco mais de um mês, aumentar sua coleção de insetos e plantas.

No alvorecer da manhã seguinte, após um bom desjejum, [...] afastamo-nos menos de uma milha alemã da casa e, ao entardecer, voltamos fartamente carregados de insetos e borboletas. Da minha parte caçei tudo o que me vinha pela frente e enchi de insetos e besouros quatro caixotes médios, levados por um pequeno menino.47

A maior dificuldade foi o curto período em que permaneceu em terra firme, e o fato da estadia na Ilha de Santa Catarina ter ocorrido durante o verão. Estes dois fatores eram prejudiciais para o trabalho de um cientista que tivesse como atividade coletar plantas.

Segundo ele,

não consegui investigar mais do que o nome, pois para conseguir as folhas ou pétalas deste feto, teria que arrancar cada caule. Um botânico que pudesse permanecer aqui não apenas dias ou semanas, mas anos, e empreendendo excursões com machadinhas e machados, haveria de se tornar conhecidíssimo pelas descobertas de novos gêneros e novas espécies.48

47 Ibidem. p. 171. 48 Ibidem. p. 172. Nota de rodapé. 39

No final do século XVIII e durante o século XIX, em decorrência das viagens realizadas e do aprimoramento dos métodos de análise, existia a preocupação de instruir os viajantes. A “Société d’Histoire Naturelle de Paris” tinha o cuidado de redigir instruções endereçadas aos viajantes que iriam realizar expedições de coleta. O Museu de História

Natural de Paris redigiu e publicou seis edições (nos anos de 1818, 1824, 1827, 1829, 1845 e

1860) da Instruction pour les voyageurs et pour les employés dans les colonies sur la manière de recueillir, de conserver et d’envoyer les objets d’histoire naturelle, rédigée sur l’invitation de S.E. le Ministre de la Marine et des Colonies par l’administration du Muséum Royal d’histoire naturelle.49 Com a ampliação e o crescente interesse pela história natural, principalmente pela botânica, eram muitos os correspondentes que enviavam coleções naturais para os órgãos de pesquisas, como os Jardins Botânicos. Esse trabalho era realizado muitas vezes por funcionários coloniais, sejam estes administrativos ou militares. Dessa forma era necessário instruir sobre a melhor forma de realizar a coleta e como preservar as espécimes. Linné, cientista que espalhou seus discípulos por várias partes do mundo, também escreveu um texto, o Instructio Peregrinatoris, no qual instruía sobre a melhor forma de levar a cabo a atividade de coleta do material para as pesquisas de História Natural. Os viajantes financiados pelos estados europeus diferenciavam-se dos diletantes, uma vez que os resultados de seus trabalhos eram de interesse de toda a Europa. Dessa forma, eles tinham que seguir algumas instruções, tais como recolher produtos dos três reinos, vegetal, animal e mineral, descrevendo com atenção suas utilidades. No que se refere às plantas, o interesse era pelas sementes, uma vez que estas seriam utilizadas em trabalhos de aclimatação. Existia a preocupação, da parte das instituições científicas européias, de instruir adequadamente os viajantes coletores.

49 Sobre as orientações de viagem e de coleta direcionadas aos viajantes coletores ver: KURY, Lorelei. Op. cit. Cap. III: Les instructions de voyage: orienter le regard, former les gestes. 40

As facilidades para conseguir as espécimes muitas vezes esbarravam nas dificuldades para acondicioná-las adequadamente. Saint-Hilaire, em seus relatos, reclama dos percalços enfrentados para conseguir os materiais necessários para a conservação das amostras que foram coletadas no decorrer da viagem.

Encontrei em São Francisco as mesmas dificuldades que sempre enfrentava quando necessitava dos serviços de um obreiro. Eu já tinha tido bastante sorte em conseguir alguns caixotes de que precisava, mas procurei em vão o couro para revesti-los.50

Para realizar uma viagem de coleta eram necessários alguns materiais, que poderiam ser trazidos da Europa, ou então, caso fosse uma viagem longa e por terra, como a realizada por Saint-Hilaire, poderiam ser adquiridos conforme a necessidade. Uma das maiores dificuldades era a preservação do que era encontrado, o que era agravado pelas dificuldades e deficiências enfrentadas no processo de conservação das espécimes, sejam elas animais ou vegetais. Além disso o que havia sido coletado poderia se perder durante as viagens, devido a naufrágios ou incêndios nos navios, como o que destruiu todo o trabalho de coleta realizado pelo viajante inglês Wallace durante sua viagem de retorno.

O cientista francês e farmacêutico da Marinha René Lesson (1794-1849), que participou da viagem no “La Coquile”, entre os anos de 1822 e 1825, listou os materiais que eram necessários para o bom desenvolvimento do trabalho de taxidermista, num texto publicado em 1828 no Dictionnaire des Sciences Naturelles. Segundo ele, os materiais indispensáveis para a boa conservação do que era coletado, fossem planta ou animal, eram os seguintes:

Álcool etílico incolor: trezentos litros [...] Frascos de vidro forte e branco: trezentos [...] (os frascos e o álcool permitem o transporte dos animais de pequena estatura) Mástique [...]: vinte e cinco quilogramas [...] Sublimado corrosivo, fechado num frasco de vidro, com rolha de esmeril e sempre fechado numa caixa de medicamentos: quinhentos gramas. (o “sublimado corrosivo”, tal como o “sabão arsenical”, servia para tratar as peles, a fim de impedir a sua putrefacção).

50 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 152. 41

Os outros objectos indispensáveis são: 1. Chumbo laminado com a espessura de uma folha de cartão fino, para fazer etiquetas: três pés quadrados. 2. Um saca-bocados, do tamanho de uma moeda, com uma série de dez pequenos números em relevo. Os números assim gravados sobre o chumbo servem para designar cada frasco, e este número é repetido numa lista onde se inscrevem todas as notas relativas ao objecto que nele está fechado. 3. Três espingardas de caça com os respectivos equipamentos [...] 4. Duas caixas de lata um pouco achatadas para a caça e para a botânica. 5. Sabão arsenical, vinte e cinco quilogramas, fechado num pequeno barril. 6. Doze caixas almofadadas e encaixando-se umas nas outras, para insectos. 7. Quinze resmas de papel para plantas e cinquenta quilogramas de papéis velhos para embrulhar os minerais.51

Esse era o material previsto para uma viagem realizada em um navio, durante aproximadamente três anos. A participação em uma viagem de circunavegação poderia facilitar a vida de um viajante em alguns aspectos, como o transporte do material ou o contato com outros cientistas. Os longos percursos em alto mar permitiam que o material coletado fosse analisado durante a viagem. Além disso, muitas vezes o material poderia ser desembarcado em algum porto, de onde seria remetido para a Europa.

Um viajante que se deslocava pelo interior não poderia transportar grandes quantidades de material, o que o obrigaria a adquiri-los no decorrer da viagem, em alguns lugares com grande dificuldade. Karen Macknow Lisboa, em seu trabalho sobre os viajantes bávaros Spix e Martius, nos informa sobre alguns dos materiais necessários para uma expedição botânica e zoológica pelo interior do Brasil. Entre eles estão

livros, mapas, bússolas, botica portátil e outros utensílios de viagem. Entre os instrumentos, um microscópio de Utzchneider e Fraunhofer, um telescópio de Dollond, higrômetros, barômetros, além de sólidos conhecimentos de ciências naturais, que serão testados e ampliados diante de novos espécimes e terras desconhecidas.52

Auguste de Saint-Hilaire deixou registrado, em inúmeros textos e relatos, pormenores sobre a viagem e o trabalho que desenvolvia a serviço do Museu Nacional de

História Natural de Paris. Além disso, escreveu sobre inúmeros aspectos da sociedade

51 LESSON, René. Apud. DROUIN, Jean-Marc. Op. cit. p. 155. 52 LISBOA, Karen Macknow. Op. cit. p. 45. 42

brasileira que conheceu durante os sete anos em que viajou por diversas regiões do país, entre elas a Capitania de Santa Catarina durante os meses de abril e maio de 1820. Em um de seus relatos de viagem deixou registrada a seguinte fala: “Nesse dia não recolhi uma só planta. O tempo estava magnífico, não havia uma nuvem no céu, mas a paisagem era de uma monotonia sem par.”53 Gostaríamos de discutir um aspecto que é pouco trabalhado quando se fala sobre os viajantes: a monotonia. Saint-Hilaire reclamava do calor irritante, da poeira, da sede, da vegetação cerrada, da uniformidade, do tédio. Mas também deixava aparente o que o motivava: o gosto pela História Natural o levara às viagens, após ter esgotado o estudo das espécimes nas regiões próximas de onde havia se criado.54 Para muitas pessoas, contemporâneas dos viajantes e mesmo estudiosos posteriores, a viagem por terras distantes e pouco conhecidas era percebida como uma aventura. No entanto, os elogios dirigidos aos viajantes que se aventuravam nestes empreendimentos nos mostra que essas viagens eram muito mais do que uma aventura. Salientavam-se características como coragem, zelo e abnegação em nome da ciência. Alguns biógrafos vão mais além e reforçam a imagem heróico-romântica dos viajantes.55

Um fator importante, ao qual Lorelai Kury chama a atenção, é que a realização de uma viagem, fosse a serviço de alguma instituição científica, fosse por meios próprios, resultaria em prestígio, uma vez que possibilitaria ao viajante tornar-se um especialista na natureza da região visitada e dessa forma ascender na carreira. Além disso, o viajante adquiria entre seus colegas uma ‘imagem’ de aventureiro, o que é revelador de como o exótico fazia parte do imaginário dos cientistas e sábios do final do século XVIII e início do século XIX.56

53 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 195. 54 SÜSSEKIND, Flora. Op. cit. pp. 108-109. Este trabalho discute como, nas décadas de 30 e 40 do século XIX, a prosa brasileira estabeleceu relações com os relatos de viagens e os desenhos e pranchas dos paisagistas-em- trânsito a fim de constituir a figura do narrador de ficção. 55 Marcus Vinícius de Freitas, em sua pesquisa sobre o cientista viajante Hartt, comenta que se criou uma imagem de doação e amor pela ciência da parte deste viajante, a ponto de seu principal biógrafo defini-lo como um mártir da ciência. Ver: FREITAS, Marcus Vinícius de. Charles Frederick Hartt: um naturalista no Império de Pedro II. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. p. 39. 56 KURY, Lorelei. Op. cit. p. 151. 43

A viagem empreendida por Saint-Hilaire pode ser inserida num contexto mais amplo, ou seja, no conjunto das viagens de exploração que tinham como mote principal o desenvolvimento da ciência. Saint-Hilaire não era um viajante qualquer, era um cientista que estava a serviço de um órgão público francês e que tinha como objetivo fazer coleta de plantas, animais e minerais, entre outros. Esses exemplares iriam enriquecer o acervo de uma instituição científica e, juntamente com outros materiais coletados em regiões distantes do mundo, permitiriam aos pesquisadores desenvolverem trabalhos sobre a natureza e suas possibilidades, principalmente para a agricultura.

As viagens científicas foram empreendidas com a finalidade de desenvolver um conhecimento dentro de um domínio de saber que tinha o status de científico ou então ampliar as informações práticas vinculados à Geografia e à Economia. É importante salientar que essas viagens foram desenvolvidas a partir da segunda metade do século XVIII e em países específicos, tais como a França, a Inglaterra, a Áustria, a Alemanha, a Rússia e, mais tarde, os Estados Unidos. Outro aspecto era a escolha das regiões que seriam visitadas.

Algumas, em determinados períodos, eram priorizadas em detrimento de outras. Um exemplo

é a região amazônica, que durante o século XIX, encontrava-se no centro dos interesses dos viajantes e da ciência. O litoral sul do Brasil não despertou maiores interesses por parte dos estudiosos e viajantes, e os que aqui estiveram, em sua maioria, foi devido ao trajeto escolhido e à necessidade de abastecimento, no caso dos navios.

As viagens no qual estiveram envolvidos inúmeros indivíduos, sejam estes coletores ou cientistas, contribuíram para o avanço das pesquisas e da ciência européia.

Contribuíram também para a elaboração de um conhecimento no qual a América e outras regiões do mundo se inserem de forma periférica. Essas regiões são vistas como locais que tinham a função de fornecer produtos para abastecer a Europa, fortalecendo assim seu sentimento de superioridade. 44

2. Os viajantes: alguns dados biográficos

Antes de nos determos sobre o que escreveram esses viajantes, é necessário tecermos uma breve biografia de cada um deles, que na falta de um critério melhor, será feito segundo o ano em que cada um desses viajantes esteve em Santa Catarina. Para isso utilizaremos informações coletadas em diferentes edições dos relatos e em outras referências historiográficas. A principal fonte, no entanto, será a Biographie Universelle (Michaud)

Ancienne et Moderne editada em Paris no ano de 1854 pela Chez Madame C. Desplaces.

Foram pesquisados os tomos 8, 22, 23, 24, 27, 32 e 37.

Antoine Joseph Pernetty esteve na Ilha de Santa Catarina entre 23 de novembro e 15 de dezembro de 1763. Era membro de uma expedição financiada por Louis Antoine de

Bougainville, o qual tinha a intenção de fundar uma colônia francesa nas Ilhas Malouines.

Pernetty nasceu em 13 de fevereiro de 1716, em Roanne. Abraçou a vida religiosa na

Congregação de Saint-Maur chegando a tornar-se abade de Saint-Germain. Apaixonado pela

História Natural percorreu os entornos de Paris, e desenhou as plantas que recolheu durante esses passeios. Em 1764, após o retorno da viagem, iniciou a escrita de suas memórias, que seriam publicadas pela primeira vez em Berlim no ano de 1769, numa edição de dois volumes contendo 16 pranchas. No que se refere à sua vida religiosa, tentou, juntamente com outros membros beneditinos, mudar as regras da congregação. Acabou abandonando o hábito e partiu para a Rússia. Em 1783 retornou a Paris, lutou e conquistou o direito de não precisar voltar para seu monastério. Durante este período dedicou-se à tradução e edição de inúmeras obras. Envolveu-se em uma discussão pública com Corneille de Pauw sobre a questão da 45

polêmica dos americanos serem ou não uma raça degenerada. Durante a Revolução Francesa foi preso, vindo a morrer em 1801 em Valence. Suas principais obras são Dictionnaire portatif de peinture, sculpture et gravure, avec un traité pratique des différentes maniéres de peintre, publicado em Paris no ano de 1757, no formato in-8º57. Foi traduzido para o alemão e publicado em Berlim no ano de 1764. Dedicou-se ao estudo dos gregos e egípcios com a publicação do Le fables ègyptiennes et grecques dévoilées et réduites au même principe, acompanhado de uma explicação sobre os hieróglifos e sobre a Guerra de Tróia. A primeira edição é de 1758, 2 volumes em in-8º. A segunda edição é de 1786 em 3 volumes no formato in-12º. Publicou mais duas obras: Dictionnaire mytho-hermétique, em 1758, e Lettre à L’abbé

Villain sur l’histoire critique de Nicolas Flamel, em 1762, no tomo I da coletânea Année

Littéraire.

Após essas obras sobre diversos temas, dedicou-se à descrição da viagem empreendida como cientista da expedição de Bougainville. Em 1769, aparece a primeira edição do texto que trata da viagem às Ilhas Malouines, publicada em Berlim em 2 volumes no formato in-8º e intitulado Journal historique d’un voyage fait aux îles Malouines. Em

1770 essa obra foi traduzida para o inglês e publicada no formato in-4º. A 2ª edição, modificada e aumentada com informações sobre história natural foi publicada em Paris, no ano de 1770, em 2 volumes, acompanhada de 16 pranchas, com o título de Histoire d’un voyage aux îles Malouines, fait en 1763 et 1764. Essa edição também foi traduzida e publicada em inglês no ano de 1794. O trecho sobre a à Ilha de Santa Catarina foi traduzida para o português por Carmen Lucia Cruz Lima a partir da edição francesa de 1770 e publicada na obra Ilha de Santa Catarina: relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX.

57 Segundo Manguel, o formato preferido para a edição de livros populares foi o in-octavo. Este formato foi utilizado pela primeira vez pelo mestre-impressor Aldus Manutius, em 1501. O livro em in-octavo era a metade do tamanho de um livro in-quarto. Os livros in-fólio eram do tamanho de uma folha inteira, sem dobras. No formato in-quarto uma única folha resultava numa brochura de 8 páginas, enquanto no formato in-octavo uma única folha resultava numa brochura de 16 páginas. No século XVIII, para produzir obras maiores, as folhas foram dobradas em 12 partes, resultando em libretos de 24 páginas de brochura, o in-12º. Mais informações sobre encadernações e tamanhos dos livros ver: MANGUEL, Alberto. Uma história do livro. Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras. 1997. pp. 149-174. 46

Além das descrições da viagem em que esteve envolvido, Pernetty também escreveu alguns textos em decorrência da polêmica com Corneille de Pauw: Dissertation sur l’Amérique et les Américains contre les Recherches philosophiques de mr. de P***, publicado em Berlim no ano de 1770. No ano seguinte publicou, também em Berlim, 2 volumes intitulados Examen des Recherches philosophiques sur l’Amérique et les Américains et de la

Défense de cet ouvrage. Essas obras foram seguidas pela publicação das respostas de

Corneille de Pauw. Em 1776, Pernetty publicou outra obra: La connaissance de l’homme moral par celle de l’homme physique em 3 volumes no formato in-8º. A discussão travada entre Pernetty e De Pauw será aprofundada no capítulo 4.

Georg Heinrich von Langsdorff era graduado em Medicina pela Universidade de Göttingen. No entanto, preferiu dedicar-se aos estudos da História Natural. Nasceu em 18 de abril de 1774 e faleceu em Freiburg (Breisgau) no ano de 1852, padecendo de distúrbios mentais. Para Marcos Pinto Braga, “Langsdorff foi homem de um destino incomum, marcado pela ânsia do conhecimento e frenética corrida contra o tempo.”58 Formado aos 23 anos, perdeu a memória aos 54 anos e morreu aos 78 anos. Em relação à cidade de nascimento encontramos divergências. Enquanto na Biographie Universelle Michaud consta como tendo nascido em Laisk, na obra Ilha de Santa Catarina: relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX consta como tendo nascido em Wollstein (Hesse). Essa também é a informação que consta na obra Os Diários de Langsdorff, publicado pela Associação

Internacional de Estudos Langsdorff em parceria com a Fiocruz. Era filho do intendente mor

(ou prefeito) de Wollstein e vice-chanceler do Supremo Tribunal de Kalrsruhe, no grão- ducado de Baden. Pela filiação, pelo título de barão e pela sua trajetória acadêmica,

Langsdorff era pertencente a um grupo privilegiado, cuja família estava vinculada aos governantes de sua região de nascimento. Em 1797 viajou para Lisboa, onde exerceu sua

58 BRAGA, Marcos Pinto. Apresentação. In: BECHER, Hans. O Barão Georg Heinrich von Langsdorff: pesquisas de um cientista alemão no século XIX. São Paulo: Edições diá; Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 1990. p. 8. 47

profissão de médico. Aproveitou para aprender o português. Engajou-se na expedição que navegou ao redor do mundo sob o comando de Adam J. von Krusenstern, mas a abandonou antes de seu término. Esteve na Ilha de Santa Catarina e no continente próximo entre 20 de dezembro de 1803 a 04 de fevereiro de 1804. A primeira edição de seu relato apareceu em

1812 com o título Bemerkungen auf einer Reise um die Welt in den Jahren 1803 bis 1807, publicado em Frankfurt. É desta obra a versão para o português que utilizamos e que foi traduzida por Dolores R. Simões de Almeida. Também sobre essa viagem foi publicado

Plantas recueillies pendant le voyage des Russes autour du monde em conjunto com F.

Fischer e publicado em 1810-1818 em Tubingue.

A partir de 1813, tornou-se cônsul Geral da Rússia no Brasil, passando a residir no Rio de Janeiro. Desde o final do século XVII, no governo de Pedro I, a Rússia estava passando por reformas que contribuíram para sua ocidentalização. Elas continuaram durante os governos dos imperadores Alexander I e Nicolau I. No século XVIII a Rússia conquista a

Sibéria, o Extremo Oriente, domina o Alasca e algumas ilhas próximas. Em 1799 é fundada a

Companhia Russo-americana, que controlava os territórios na região Noroeste da América. A partir de 1803 iniciam-se regulares viagens de circunavegação financiadas pelo governo russo. Em 1812, é estabelecido na cidade do Rio de Janeiro o Consulado Geral da Rússia, cargo que Langsdorff assume no ano seguinte, criando uma rede de estabelecimentos consulares pelo Brasil, inclusive em Nossa Senhora do Desterro, cujo cargo de vice-cônsul foi ocupado por Duarte de Souza. Em 1815, Langsdorff foi substituído no cargo e no ano seguinte adquiriu a Fazenda Mandioca, no atual município de Magé, localizado no estado do

Rio de Janeiro. A fazenda tornou-se ponto de encontro e de recepção a inúmeros viajantes estrangeiros que passaram pela região. No ano de 1818 foi à Rússia a fim de preparar a expedição pelo interior do Brasil. Essa expedição durou de 1822 a 1829, e passou por regiões que hoje compreendem os Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato 48

Grosso, seguindo pelos rios que levam à foz do Rio Amazonas. Além de Langsdorff, chefe da expedição, participaram o astrônomo russo Rubzov, o botânico alemão Riedel, bem como o pintor e geógrafo Hercules Florence e o pintor Adriano Amadey Taunay. Além desses estudiosos, integraram a expedição, homens “pretos” e “mulatos”, alguns desses escravos, bem como tropeiros e guias que eram contratados conforme a necessidade.

O material produzido pela expedição de Langsdorff encontra-se guardado no

Arquivo da Academia de Ciências Russa. Microfilmes desses documentos estão arquivados no Núcleo de Estudos Langsdorff vinculado ao Centro de Estudos Avançados

Multidisciplinares e ao Departamento de História da Universidade de Brasília. Fazem parte deste rico material os diários feitos pelo barão de Langsdorff. São 26 cadernos de diferentes formatos que totalizam 1388 páginas escritas em alemão com ortografia arcaica, com palavras em inglês, latim, francês e línguas indígenas. O trabalho de transcrição destes diários foram iniciados em 1936 pelo filólogo V. A. Egerov, continuados nos anos 40 e 60 por Maria

Krutikova e finalizados nos anos 70 por Dimitrij E. Berthels. O material foi publicado em português em 3 volumes.59 A doença forçou Langsdorff a encerrar a expedição, obrigando-o a retornar à Europa. Também não pôde organizar o material, que havia sido duramente coletado. Outra obra de interesse produzida pelo viajante foi a Memória sobre o Brasil para servir de guia a’quelles que nelle se desejão estabellecer, traduzido para o português por A.

M. de Sam Paio, do Rio de Janeiro, e impresso na oficina de Silva Porto, no ano de 1822. É uma obra pequena, de apenas 18 páginas, mas foi escrita com o objetivo de tranqüilizar os estrangeiros sobre a situação política no Brasil, principalmente no que se refere à propriedade de terras. Além disso comenta sobre o clima agradável, a falta de epidemias e as possibilidades agrícolas. Em uma de suas viagens entre a Europa e o Brasil, Langsdorff trouxe

59 SILVA, Danuzio Gil Bernardino da (org.) Os Diários de Langsdorff. Tradução: Márcia Lyra Nascimento Egg e outros. Editores: Bóris N. Komissarov e outros. Campinas: Associação Internacional de Estudos Langsdorff; Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. Vol. 1: Rio de Janeiro e Minas Gerais. Vol. 2: São Paulo. Vol. 3: e Amazônia. 49

colonos para trabalhar na Fazenda Mandioca. Em março de 1822 atraca no porto do Rio de

Janeiro um navio fretado em Bremen e que, além de pessoas pertencentes a sua família e amigos, trazia 29 famílias de colonos alemães, o que totalizava 94 pessoas. O projeto era assentá-los em sua fazenda, o que contou com o apoio do ministro José Bonifácio de Andrada e Silva.

John Mawe nasceu em Derbyshire (Inglaterra) em 1764 e faleceu em Londres em 26 de outubro de 1829. A região onde nasceu e cresceu era rica em minérios. Após viajar por diversas regiões da Grã-Bretanha, realizando estudos e coletando minérios, estabeleceu-se em Londres, onde montou um negócio dedicado ao comércio de minerais. Além do comércio, dedicou-se ao estudo e à escrita de trabalhos sobre minerais, entre eles The Mineralogy of

Derbyshire. No ano de 1804 partiu para a América Meridional a fim de explorar a região do

Rio da Prata. O desejo de empreender tal viagem surgiu em decorrência do trabalho realizado no Gabinete de Madri, onde foi encarregado de examinar as amostras de minérios de seu acervo. Apesar do objetivo da viagem ser mais comercial do que propriamente científico, devido à sua formação, bem como ao meio científico pelo qual circulava, podemos enquadrá- lo no conjunto formado por homens de ciência, pelo interesse voltado para a coleta e pesquisa de minerais. Sua vinda para o Brasil foi conseqüência dos impasses entre a Inglaterra e a

Espanha, que o impossibilitou de continuar na Região do Prata. Por isso, viajou para o Brasil, chegando na Ilha de Santa Catarina em setembro de 1807. Graças às cartas de recomendação do embaixador de Portugal em Londres, foi bem recebido pelo vice-rei do Brasil. Visitou São

Paulo e o Rio de Janeiro, de onde partiu em agosto de 1809, para conhecer as Minas Gerais, acompanhado de uma escolta militar. Foi o primeiro estrangeiro que conseguiu autorização da

Coroa Portuguesa para percorrer as ricas regiões de minérios do Brasil. A edição portuguesa foi feita na Impressão Régia, com licença e autorização do rei D. João VI, constando na capa o brasão de Portugal. Sua gratidão ficou expressa na carta endereçada ao rei de Portugal e que 50

foi publicada no lado direito da primeira página em várias edições do relato, entre as quais a portuguesa de 1819 e a edição norte-americana de 1816:

Debaixo dos auspícios de Vossa Magestade, fiz duas viagens ao interior do , cuja relação se contém nesta obra; e para obedecer às Ordens de Vossa Magestade, as publíco, na minha partida do Rio de Janeiro. Inimigo da facção e parcialidade, fiz os maiores esforços para dar huma relação fiel do que hei visto; e quando descrevo o estado actual da agricultura do paiz, ouso indicar alguns melhoramentos, que parece podem contribuir para augmentar as rendas de Vossa Magestade, e multiplicar os recursos de tão vastos, e ferteis Estados [...] De Vossa Magestade, Mui obrigado servidor João Mawe.60

Esse mesmo relato é publicado em 1812, em Londres, com o título de Travels in the interior of Brazil, particulary in the gold and diamond districts of that country ... including a voyage to the Rio de la Plata, and an historical sketch of the revolution of Buenos

Ayres, no formato in-4º, acompanhado de ilustrações e figuras. Essa obra obtém grande sucesso. Várias vezes reeditada na Inglaterra, foi traduzida para outras línguas, como português, alemão, russo, sueco e francês. Também foi reimpressa nos Estados Unidos da

América. Na França foi publicada em 1816, no formato in-8º, também acompanhado de figuras representando o trabalho nas minas de ouro e diamantes e mapas, sendo um da região de Tejuco, importante área mineradora. A edição norte-americana, publicada em Boston, apesar de reproduzir a carta endereçada ao rei D. João VI da edição portuguesa de 1819, não possui o mesmo conteúdo. Enquanto a primeira contém uma parte referente à passagem por

Santa Catarina, na obra de 1819 não consta nada, sendo priorizada a descrição das Ilhas dos

Açores. Provavelmente foram publicadas outras edições, com modificações, em Portugal. A tradução utilizada nesta tese é de Solena Benevides Viana sobre a edição londrina de 1822, publicada no livro Ilha de Santa Catarina: relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX.

60 MAWE, João. Viagem ao Interior do Brazil, com huma exacta descripção das Ilhas dos Açores por João Mawe, inglez, authorizadas pelo Rei Fidelissimo D. João VI, Nosso Senhor. A benefício da Livraria do Convento de S. Francisco da Cidade: obra promovida pelo R. P. M. Fr. Polidoro de N. S. da Lapa, Leitor de Theologia e Bibliothecario da mesma. Lisboa: Na Impressão Regia, 1819. p. A2. 51

Adalbert von Chamisso (Louis-Charles-Adelaïde Chamisso de Boncourt) nasceu em Champagne (França) em 27 de janeiro de 1781 e faleceu em Berlim em 21 de agosto de 1838. Sua família mudou-se da França no ano de 1792, exilando-se primeiro nos

Países Baixos, e posteriormente, fixando-se em Berlim, onde Louis-Charles, aos quinze anos adotou o nome germânico Adalbert. Mesmo após o retorno de seus familiares à França, permaneceu em Berlim, vinculando-se ao exército prussiano. Dedicou-se ao estudo da língua e da literatura alemã. Juntamente com outros jovens, entre eles Wilhelm Neumann, Karl

Varnhagen von Ense e Louis de La Foye, formou um círculo de amizade e de discussões que, no ano de 1804, publicou o Almanach des Muses. Receberam o encorajamento de Fichte e de

Zacharias Werner. Chamisso freqüentou a casa de Rahel Levin, onde se encontravam escritores, filósofos, inclusive os irmãos Humboldt. Tornou-se conhecido como literato e filósofo, e também como poeta. Publicou em 1814 a obra Histoire merveilleuse de Pierre

Schlémihl, l’homme qui a vendu son ombre, muito bem recebida pela crítica e pelo público leitor. No Brasil foi publicado com o título A singular história de Peter Schemihl, pela

Ediouro em 1993, e como A história maravilhosa de Peter Schemihl, em 2003, pela editora

Estação Liberdade. Sua paixão pela natureza manifestou-se desde a infância, como muitos outros viajantes, mas somente passou a dedicar-se a ela após sua saída do exército. Em 1812, após ter realizado viagens pelas montanhas, consideradas o jardim botânico da Europa, resolveu dedicar-se ao estudo da botânica. Por isso, inscreveu-se na Universidade. Seu indicação para participar da expedição ao Pacífico Norte, comandada por Kotzebue e financiada pelo governo Russo, deveu-se às suas relações e influências. Um amigo facilitou a escolha de seu nome para integrar o grupo de cientistas que fizeram parte na expedição. Seu interesse pela ciência foi, em grande parte, influenciado pela leitura dos relatos de viagens escritos por Cook. Dedicou-se às ciências naturais, principalmente à botânica. Sua função no

“Rurick” era recolher plantas, insetos, sementes e outras amostras que interessassem a ciência. 52

Segundo ele, como estava integrado numa expedição de descoberta levada a cabo pela marinha russa, seu trabalho era limitado pelo cronograma da expedição, o que dificultava seu trabalho de observação, devido à brevidade das escalas. Isto também limitou seu trabalho posterior, o da escritura do relato de viagem. Esse foi publicado numa edição conjunta, no ano de 1819, no qual estavam relatos de vários dos membros da expedição. Após seu retorno da viagem, foi nomeado diretor do Jardim Botânico de Berlim (1818). Somente 15 anos após o fim da expedição, Chamisso retomou suas anotações e escreveu a obra intitulada originalmente Reise um die Welt 1815-1818. Foi traduzida para o francês com o título Voyage autour du monde: 1815-1818. Infelizmente, não encontramos nenhuma edição brasileira dessa obra. O que temos é a tradução de Dolores Simões de Almeida do fragmento que se refere a

Santa Catarina, publicado na coletânea de textos de viajantes que escreveram sobre a Ilha de

Santa Catarina. Além das obras citadas, Chamisso publicou comunicações científicas especializadas e tratados, entre eles o Traité des plantes les plus nuisibles comme les plus utiles, sauvages ou cultivées qui poussent en Allemagne du Nord. Em 1832 tornou-se diretor do Herbário Real e em 1833 da Academia de Ciências de Berlim. Morreu em 21 de agosto de

1838, aos cinqüenta e sete anos.

Auguste de Saint-Hilaire, botânico e viajante naturalista, nasceu em 1779 na cidade de Orléans, França, membro de uma família que possuía muitos domínios e de uma considerável fortuna. Seus ancestrais serviram na marinha e seu pai foi preso durante a

Revolução Francesa. Estudou com os beneditinos de Solesmes e posteriormente foi enviado para a Holanda para estudar comércio a fim de dirigir a refinaria de açúcar da família. Durante o período revolucionário foi obrigado a viver no estrangeiro, o que permitiu que tivesse contato com a língua alemã e inglesa. Após seu retorno à França, passou a dedicar-se totalmente à botânica. Mudou-se para Paris onde travou contato com Laurent de Jussieu e

Desfontaines. Os interesses de Saint-Hilaire estavam voltados para as herborizações, a 53

anatomia e os órgãos reprodutores das plantas, bem como para sua utilização na cura de doenças. Através de contatos políticos conseguiu ser incluído como membro da comitiva diplomática do Duque de Luxembourg, embaixador francês na corte do Rio de Janeiro. Partiu em 1º de abril de 1816 para o Brasil onde permaneceu durante 6 anos. Visitou o Rio de

Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás, São Paulo, Santa Catarina e o Rio Grande do

Sul. Percorreu as bordas do Rio Paraíba e o entorno da cidade do Rio de Janeiro e de Belém.

Também visitou a Província Cisplatina (atual Uruguai) e as antigas missões do Paraguai.

Em dezembro de 1819 foi nomeado correspondente do Instituto da França e posteriormente tornou-se professor de botânica na Faculdade de Ciências de Paris. Foi eleito para a Academia Francesa de Ciências, ocupando a cadeira deixada por Jean Baptiste de

Monet Lamarck. Recebeu o título de Cavaleiro da Legião de Honra e da Ordem de Cristo de

Portugal. Era ligado a várias instituições científicas da Europa, como museus de História

Natural, Jardins Botânicos e outras instituições, tanto na Europa como na América.61

Esteve em Santa Catarina durante o ano de 1820, entre os meses de abril e maio (7 de abril a 6 de junho). Enquanto viajava, Saint-Hilaire fazia anotações em seu diário de viagem, aproveitando os momentos em que parava para o pernoite. Esses apontamentos foram trabalhados quando de seu retorno à França, resultando em diversas obras, como a que iremos analisar, intitulada Viagem a Curitiba e Província de Santa Catarina. Em 1820, quando de sua viagem, Santa Catarina era uma capitania, mas como Saint-Hilaire escreveu seu relato posteriormente, utiliza a denominação de província. Escrita provavelmente em

1847, enquanto vivia e trabalhava em Paris, foi publicada pela primeira vez em 1851 sob o título Voyage dans les provinces de Saint-Paul et de Sainte-Catherine. Integra a obra Voyage

61 Só para termos uma idéia, na folha de rosto de uma obra sua publicada em 1851 em Paris, consta sua biografia e vínculos com instituições: “membre de l’académie des Sciences de L’institut de France, professeur a la faculté des sciences de Paris, chevalier de la légion d’honneur, des Ordres du Christ et de la Croix du Sud, des acadèmies de Berlin, S. Peterbourg, Lisbonne, C. L. C. de Curieux de la Nature, de la Société Linnéenne de Londres, de L’institut historique et geographique Brésilien, de la société d’Histoire Naturelle de Boston, de celle de Genève, Botanique d’Edimbourg, Medicale de Rio de Janeiro, philomatique de Paris, des sciences d’Orléans, etc.” 54

dans l’interieur du Brèsil. Os outros volumes, publicados anteriormente, foram intitulados de

Voyage dans la Province de Rio de Janeiro et Minas-Geraës, 2 volumes in-8º, Paris, 1830;

Voyage dans le district des diamants et sur le littoral du Brèsil, 2 volumes in-8º, Paris, 1833;

Voyage aux sources de San-Francisco et dans la province de Goyaz, 2 volumes, in-8º, Paris,

1847-48. Além desses, há um volume sobre o Rio Grande do Sul, a Província Cisplatina e as antigas Missões do Paraguai. No total, Saint-Hilaire publicou 9 volumes sobre a viagem realizada pelo Brasil, que foram reeditadas e traduzidas para outras línguas. Em 1928, durante a inauguração do busto de Saint-Hilaire no Museu Nacional, Tobias Monteiro, em seu discurso, lamentava o fato desses textos ainda não estarem traduzidos para o português.62 Esse problema foi sanado com sua publicação pela Editora Nacional, na década de 30.

Posteriormente, a partir de 1974, as Editoras Itatiaia, de Belo Horizonte, e Edusp, de São

Paulo, associaram-se para relançar os relatos de viagens de Saint-Hilaire, na coleção

“Reconquista do Brasil”, organizada por Mário Guimarães Ferri.

Ao todo, Saint-Hilaire escreveu 14 obras e 7 dissertações, além de inúmeros artigos em revistas e anais, tais como: Memóries du Muséum, Annales des Sciences

Naturelles, Comptes rendus de l’Institut, Bulletins de la Société Philomatique e Annales de la

Société d’Orléans. No Brasil é mais conhecido devido aos seus inúmeros relatos de viagens, a maioria já traduzidos e publicados, alguns com mais de uma edição. No entanto, além de viajante, Saint-Hilaire desenvolveu importantes trabalhos de pesquisa na área da botânica, entre os quais podemos citar Flora Brasiliae Meridionalis. Paris: Impr. A. Belin, 1825-1833,

3v.; Histoire des plantes plus remarquabels du Brèsil et du Paraguay. Paris: Impr. A. Belin,

1814-1826; Mémoire sur le système d’agriculture adopté par les Brésiliens, et les résultats qu’il a eus dans la province de Minas Geraes Paris: Impr. A. Pilham de la Forest, 1827. A lista é extensa, uma vez que Saint-Hilaire produziu muito, apesar dos problemas de saúde que

62 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem a Província de Santa Catharina (1820). São Paulo: Ed. Nacional, 1936. Prefácio. 55

o obrigavam a passar os invernos na cidade de Montpellier, localizada as margens do Mar

Mediterrâneo. Morreu em 30 de setembro de 1853, aos 73 anos de idade, de um ataque fulminante de apoplexia. Seu herbário brasileiro foi legado ao Museu de História Natural de

Paris, seus desenhos originais da Flora do Brasil foram doados à cidade de Montpellier, juntamente com seus quadros e objetos de arte.

René Primevère Lesson nasceu em 20 de março de 1794, filho de um empregado de escritório da Marinha, em Rochefort. Estudou no colégio da cidade e, ainda jovem, ingressou no corpo de cirurgiões da Marinha. Embarcou na fragata Saale. Passou o ano de 1812 a bordo do Regulus. Em 1816 assumiu o posto de oficial da saúde e pouco após o de farmacêutico da marinha, sendo posteriormente encarregado do Jardim Botânico de

Rochefort. Participou da expedição na corveta La Coquille em torno do mundo, comandada pelo capitão Duperrey na condição de naturalista. Durante os anos de 1822 a 1825, tempo de duração da viagem, foi encarregado das observações sobre todos os ramos da História

Natural. Em 1830 publicou um relato sobre essa expedição, com o título de Journal d’un voyage pittoresque autour du monde, executé par la corvette la Coquille. Juntamente com M.

Garnot, o médico da expedição, redigiu a parte zoológica no relato oficial da mesma viagem, sob o título de Voyage autour du Monde... publicada em 1829, 2 volumes em in-4º, Paris:

Arthur Bertrand, Librarie-Éditeur. Sob o mesmo título foi publicado em 1838 pela P. Pourrat

Frères Éditeurs. O trecho que estamos utilizando foi traduzido para o português por Gilberto

Gerlach e publicado na coletânea Ilha de Santa Catarina: relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX.

Naturalista e antiquário, Lesson teve uma produtiva carreira como estudioso da zoologia, com vários trabalhos publicados. Entre eles podemos citar: Manuel de mammalogia publicado em 1827 na Encyclopédie des Manuels de Roret. Foi seguido de um Manuel d’ornithologie, 2 vol. in-18. Sobre o mesmo tema redigiu um tratado mais completo em in-8º 56

com atlas, publicado no ano de 1830-1831. Publicou também Histoire naturelle des oiseaux- mouches, Paris, 1829-1830, no formato in-8º; Centurie zoologique, ou choix d’animaux rares, com 100 pranchas originais desenhadas por Prêtre, 1830-1831; Histoire naturelle des mammifères et des oiseaux découverts depuis la mort de Buffon, Paris: Livrarie Roret; Manuel d’ornithologie domestique, ou guide des amateurs des oiseaux de volière, publicado na

Encyclopédie des Manuels de Roret. Foi também o responsável pelo artigo “Taxidermie” no

Dictionnaire des Sciences Naturelles. Apesar de dedicar-se à zoologia, também escreveu sobre botânica e sobre medicina. Sobre esses últimos publicou Voyage médical autour du monde exécuté par la corvette la Coquille. Paris, 1829; Manuel d’histoire naturelle médicale, em 1833, 2 vol. em in-18. Em 1835 foi nomeado “premier pharmacien en chef de la marine”.

Em 1847 recebeu o título de oficial da Légion d’honneur. Morreu dois anos depois, em 1849, na cidade onde nasceu e viveu, Rochefort. Seu irmão, Pierre-Adolphe, redigiu a parte de botânica do Voyage de l’Astrolabe e publicou um Voyage aux îles Mangareva a partir das anotações feitas por René Primèvere.

Além desses viajantes, acima biografados, analisaremos também o trabalho realizado pelo artista viajante Louis Choris, que acompanhou a expedição de Kotzebue ao redor do mundo e uma prancha produzida por Jean-Baptiste Debret, onde retrata uma vista de

Nossa Senhora do Desterro. Esse último não pode ser considerado como viajante vinculado ao estudo científico. No entanto, sua obra será analisada a fim de perceber as semelhanças e as diferenças em relação às pinturas de Louis Choris e também para analisarmos como o sistema de estudo e observação da História Natural influenciava o conhecimento produzido por viajantes do século XIX. As biografias desses artistas serão trabalhadas no capítulo 9.

Todos os viajantes, exceto Debret, têm em comum o fato de empreenderem as viagens com o objetivo de fazerem coleta de materiais para serem enviados para instituições científicas sediadas na Europa, principalmente na França, Rússia, Alemanha e Inglaterra. Os 57

viajantes dos séculos XVIII e XIX possuem algumas singularidades, uma vez que estavam imbuídos de um espírito diferenciado dos cronistas do período do descobrimento. Era um espírito mais investigativo e científico, uma vez que eram herdeiros de uma tradição rousseauniana de viajantes da ilustração. Segundo Rousseau, viajar por viajar “é ser um vagabundo. Viajar para instruir-se é todavia um objetivo demasiado vago; a instrução que não tem um fim determinado não é nada.”63

Míriam Moreira Leite comenta que os viajantes eram também colecionadores e classificadores que organizavam tudo o que era coletado em herbários, caixas, gabinetes e elaboravam catálogos. Para isso, utilizavam-se do sistema desenvolvido por Linné (1707-

1778). No entanto, o que mais distingue o viajante naturalista de outros viajantes é que seu

“esquema de percepção do outro, das coisas e da natureza provém da experiência social do viajante no seu grupo de origem, acrescida por uma tradição iluminista, trabalhada e defendida pela ciência do século XVIII.”64 Segundo a autora, naturalista é uma denominação utilizada para definir um indivíduo que transitava por várias áreas do conhecimento científico, as chamadas ciências naturais. Spix e Martius, apesar de dedicarem-se a Zoologia e a

Botânica respectivamente, são considerados como naturalistas, já que sua formação aprofunda temas da História Natural: também dedicam-se ao estudo da Geografia, da Mineralogia, da

Meteorologia, da Paleontologia e da Astronomia.65 Segundo Marie-Noëlle Bourguet, a denominação viajante naturalista somente era utilizada para definir os correspondentes do

Jardin du Roi, mais tarde, Muséum National d’Histoire Naturelle, localizado em Paris.66 A partir das considerações da estudiosa, Saint-Hilaire poderia ser chamado de viajante naturalista, enquanto Chamisso não se enquadraria nesta definição. Devido a essas controvérsias, optamos por utilizar outro termo, o de cientista viajante. Antes de aventurar-se

63 ROUSSEAU, Jean-Jacques apud. PIERINI, Margarita. Op. cit. p. 166. 64 MOREIRA LEITE, Miriam Lifchitz. Op. cit. p. 163. 65 LISBOA, Karen Macknow. Op. cit. p. 33. 66 BOURGUET, Marie-Noëlle. L’explorateur. In: VOVELLE, Michel. L’Homme des Lumiéres. Paris: Ed. Du Seuil, 1996. p. 286. 58

numa viagem, esses homens eram formados como cientistas, se consideravam e eram considerados homens da ciência, com uma formação que os diferenciava da maioria da população. Utilizamos aqui a definição mais simples de cientista, como um indivíduo que se especializa em alguma ciência, no caso em questão, as ciências naturais. Aliás, foi o fato de serem detentores de conhecimentos científicos que os habilitou a empreenderem essas viagens, sendo escolhidos pelos órgãos que as financiaram .

Além isso, outro aspecto que deve ser considerado é como são estabelecidos os vínculos entre os viajantes e os habitantes das regiões com quem eles estão tendo contato e que posteriormente serão descritos nos relatos. Ilka Boaventura Leite salienta que esses vínculos irão influenciar na impressão tomada pelo viajante e que eles se caracterizavam pela transitoriedade e pela indeterminação. O viajante mantinha com os indivíduos do grupo visitado uma relação que se baseava na transitoriedade. A convivência entre eles já estava estabelecida: seria por um determinado número de dias, talvez meses, mas a priori já se sabia que após algum tempo o viajante partiria, rompendo desta forma os vínculos com os que ficariam. Essa característica, além do fato do viajante ser exterior ao grupo, possibilitava-lhe, muitas vezes, ter acesso a informações que não necessariamente faziam parte de seu objeto de estudo.67

Miriam L. Moreira Leite também salienta este aspecto ao discutir a importância dos relatos de viajantes estrangeiros como fonte histórica. Para ela, o fato de ser estrangeiro ao grupo visitado, não somente por ter nascido em outro país, mas principalmente por não compartilhar dos mesmos sistemas de orientação, como a linguagem e a etiqueta, além de não estarem presos a hábitos e relações afetivas, permitiam-lhes observar e descrever o grupo de forma diferenciada.68 As bases sobre as quais eram estabelecidas as relações entre o viajante e os habitantes locais em alguns aspectos são consideradas positivas, enquanto que em outros

67 LEITE, Ilka Boaventura. Op. cit. pp. 96-97. 68 LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Op. cit. p. 162. 59

são vistas como negativas para a análise da sociedade. O fato do viajante “ser de fora” lhe permitia perceber aspectos muitas vezes desconsiderados pelos habitantes locais, uma vez que para esses eram corriqueiros. Por outro lado, não ser detentor dos códigos e normas do grupo visitado poderia induzir a conclusões equivocadas por parte dos “estrangeiros”. Outra questão salientada pela antropóloga Ilka Boaventura Leite é a indeterminação. O fato do viajante não pertencer à comunidade, ser “estrangeiro”, possibilitava-lhe ter acesso a diferentes grupos sociais, o que lhe permitia “ser aceito - ou não - a lugares onde, geralmente, a classe senhorial local evitava penetrar no dia-a-dia.”69

O viajante estrangeiro possuía liberdade maior de circulação, mantendo contato com indivíduos de diferentes grupos sociais, o que lhe possibilitava o acesso a informações e testemunhos tanto de membros da elite (proprietários e funcionários administrativos e militares) como da população pobre e excluída, livre ou escrava, fossem eles descendentes de europeus ou de africanos. Mas, por outro lado, também enfrentavam dificuldades. Estas poderiam estar relacionadas à língua da região visitada, proibições de circulação, ou mesmo à desconfiança gerada por sua atividade ou devido às questões políticas, o que suscitava resistências por parte tanto da população como das autoridades locais. Um caso que ilustra os cuidados tomados pelas autoridades locais foi a vistoria realizada pelo Chefe de Justiça quando da chegada da expedição de Bougainville à baía ao norte da Ilha de Santa Catarina.

Foram interrogados sobre os motivos da viagem, bem como informações sobre o navio.

Segundo o naturalista, esses cuidados eram tomados pelo medo de espionagem. Outro caso foi o relatado por Chamisso. Entre a população local existia a crença de que os russos eram portadores de mau agouro, pois, “chovia constantemente, e, entre a população relacionava-se a chegada dos russos com o mau tempo.”70

69 LEITE, Ilka Boaventura. Op. cit. p. 97. 70 CHAMISSO, Adalbert von. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. Op. cit. p. 234. 60

Além desses dois aspectos - transitoriedade e indeterminação - salientados por

Ilka Boaventura Leite, e que dizem respeito às diferentes categorias de viajantes, devemos ressaltar que no caso do grupo de viajantes selecionados para o desenvolvimento de nossa análise, que engloba os viajantes que partiram da Europa a fim de realizar uma viagem científica, vinculada ao estudo da História Natural, outro aspecto deve ser levado em consideração: sua inserção numa sociedade fundamentada na ciência e no conhecimento.

Os viajantes, além de estrangeiros quanto ao local de nascimento, eram também estrangeiros devido à formação intelectual e social. Esses indivíduos vinham de uma mesma região (a Europa), pertenciam a uma elite intelectual e, como viajantes que tinham a função de fazer coleta de material para o desenvolvimento científico, eram detentores de uma formação que os habilitava a ver, analisar e utilizar determinados aparatos explicativos.

Apesar de todos esses fatores que aparentemente criam uma unidade entre esses indivíduos, devemos salientar que nesse grupo estão envolvidos diferentes e distintos atores sociais. Para desenvolvermos nossa análise, apoiamo-nos no estudo do antropólogo João Pacheco Oliveira

Filho sobre o grupo de viajantes que desenvolveu coletas e pesquisas na região do Alto

Solimões durante o período que compreende os séculos XVII e XIX. Em seu texto, intitulado

Elementos para uma Sociologia dos Viajantes, o autor vai questionar a unidade dos viajantes, uma vez que diferentes atores sociais fazem parte deste grupo, com funções intelectuais diferenciadas, bem como possuem origens e circulação por esferas sociais distintas. Outro aspecto que vai diferenciá-los é sua vinculação com a produção científica, o que significa possibilidades diferentes de financiamento e de divulgação dos resultados de suas pesquisas.71

Uma dessas hierarquias era entre o que poderemos chamar de coletores e cientistas. Os primeiros desenvolviam uma atividade prática, o trabalho de coleta e de identificação das diferentes espécies naturais, ou seja, um trabalho essencialmente técnico.

Enquanto isso os cientistas estavam vinculados ao ensino nas universidades, ao trabalho de

71 OLIVEIRA PINTO, João Pacheco de. Op. cit. p. 92. 61

gabinete e a redação de trabalhos especializados, que tinham como finalidade divulgar o conhecimento, circulando pelas diferentes instituições científicas.72 Existia uma diferenciação entre os estudiosos, dividindo-os entre os coletores, viajantes que tinham a função de recolher e descobrir novas espécies, remetendo-as para os centros de estudos, e os cientistas que recebiam este material, enviado de todos os cantos do mundo, o que possibilitaria o desenvolvimento de suas pesquisas, sistematizando e refletindo sobre este material. A existência dessa hierarquia não significa que não existiram viajantes que também eram cientistas e que desenvolveram suas próprias análises sobre o material coletado. Só queremos salientar que os cientistas, por estarem vinculados a instituições de pesquisa que financiavam vários viajantes coletores, encontravam-se em uma posição privilegiada em relação aos outros estudiosos.

Podemos tomar o exemplo de Auguste de Saint-Hilaire. O naturalista fazia parte da comitiva do embaixador francês no Brasil, duque de Luxemburgo, e sua viagem foi financiada pelo governo de seu país, com a finalidade de fazer pesquisas e enviar coleções ao

Museu de História Natural de Paris. Percorreu, entre junho de 1816 a junho de 1822, as

Capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Província

Cisplatina (atual Uruguai), bem como as Missões Jesuíticas. Coletou 16.000 insetos, 2.005 aves, 129 mamíferos, e formou um herbário de 30.000 plantas contendo 7.000 espécies, mais amostras de minerais e outros animais, como répteis e moluscos. No decorrer do período que permaneceu no país, Saint-Hilaire fazia remessas freqüentes desse material para o Museu de

História Natural de Paris. O material botânico não foi submetido a um inventário taxonômico completo e no que se refere ao material zoológico, a falta de informações precisas referentes ao local e data da coleta impossibilitou que especialistas pudessem utilizá-los.73 Como sua viagem foi financiada pelo governo, e todo o material coletado pertencia ao Museu, outros

72 Ibidem. p. 118. 73 BUARQUE, Sérgio Buarque de (org.) História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II: O Brasil Monárquico. v 3, 5. ed. São Paulo: Difel, 1985. p. 451. 62

estudiosos e cientistas tinham acesso a ele. Os anos após o retorno de sua viagem ao Brasil foram dedicados à elaboração de seus relatos e à análise do material coletado.

Para muitos naturalistas novatos, fazer uma viagem de coleta de material poderia significar um impulso à sua carreira no mundo científico. No entanto, muitos não chegavam a colher os louros da fama. Mais do que descobrir espécies era necessário sistematizar os novos conhecimentos a fim de apresentá-los à comunidade científica européia, e isto poderia levar anos de estudos e pesquisas. Um exemplo disso foi a trajetória de Spix e

Martius após o retorno a Europa. Martius teve tempo para continuar os estudos do material coletado na viagem e usufruir da celebridade que suas descobertas científicas lhe possibilitaram, ocupando cargos em importantes instituições científicas e educacionais. Spix morreu logo após seu retorno, de uma doença contraída durante a viagem, o que não permitiu que ele concluísse seus estudos e “silenciou sua importância no contexto da viagem.”74

Outra diferenciação entre os viajantes refere-se à organização das viagens e às formas de financiamento. Um primeiro tipo são os viajantes que integravam comissões científicas e faziam parte de expedições. Elas eram financiadas por instituições vinculadas a algum país, recebendo subvenção estatal, como por exemplo a expedição comandada por Otto von Kotzebue, financiada pela Rússia, que tinha como objetivo principal descobrir uma passagem entre o Pacífico e o Atlântico na região próxima ao estreito de Bering. Essa expedição tinha como integrantes geógrafos, naturalistas e pintores, como por exemplo

Chamisso e Choris. O segundo grupo é formado por viajantes que realizam expedições individuais, alguns com financiamento de instituições, como Saint-Hilaire, outros por conta própria. A viagem poderia ser financiada pela fortuna pessoal ou então com recursos adiantados que seriam pagos posteriormente, com a remessa de coleções e com a publicação dos relatos das viagens. Diferentes esquemas de financiamento significavam interesses

74 LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Ed. Hucitec/FAPESP, 1997. p. 51. 63

diferenciados que influenciavam na forma de escrever os relatos. Viajantes que integravam expedições científicas não possuíam a necessidade premente de publicar os relatos de viagens, muito menos que estes fossem escritos de forma a atrair um público não científico como os viajantes que financiavam suas viagens através de empréstimos e subscrições. Oliveira

Pacheco não considera que a etnografia produzida pelos viajantes possa ser vista como constituindo uma unidade, uma vez que “os diferentes tipos de viajantes obedecem a pressões econômico-sociais bem distintas e servem-se de esquemas mentais muito diferentes.”75 Mas, a despeito das diferenças no que se refere às formas de organização e financiamento das viagens, os cientistas viajantes possuem pontos de unidade, tais como o fato de serem cientistas que possuem uma qualificação e passaram por um processo de preparação. Além disso, são indivíduos europeus, letrados, provenientes de sociedades urbanizadas que produzem discursos sobre mundos não europeus, não letrados e rurais.76

Outro aspecto que podemos utilizar para definir os viajantes é em relação aos objetivos das viagens. Além do interesse pela coleta de exemplares da flora e da fauna, existia o interesse pela busca de conhecimentos universais, como o estudo da Geografia, da História, dos costumes dos povos. Viajava-se para explorar o mundo físico, mas também o mundo social e o mundo moral. Esse interesse amplo do olhar do viajante é sintetizado na fala de

Humboldt:

Meu relato de viagem [...] não conterá senão o que possa interessar a todo homem culto: as observações físicas e morais, as condições gerais, as características dos povos indígenas, as línguas, os costumes, o comércio das colônias e as cidades, o aspecto do país, a agricultura, a altura das montanhas, a meteorologia.77

Mas, entre todos esses interesses, o olhar dos viajantes naturalistas estava voltado principalmente para a natureza americana, tema este marcado por inúmeras

75 OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. Op. cit. p. 134. 76 PRATT, Mary Louise. Op. cit. p. 72. 77 HUMBOLDT, Alexander von apud. PIERINI, Margarita. Op. cit. p. 166. 64

discussões. Os relatos de viagens não podem ser entendidos como uma peça discursiva independente, mas como uma espécie de encruzilhada onde se encontram uma multiplicidade de discursos. O olhar do viajante é determinado por uma infinidade de referências, de teorias, sobre as quais ele formula seu próprio discurso. Esses viajantes partem da Europa com uma formação e com leituras de outros estudiosos que os antecederam. Entre essas leituras, que eram do conhecimento dos cientistas que trabalhavam com a História Natural, estão os estudos desenvolvidos por Buffon, Linné, Humboldt, etc. Esses estudiosos travaram acirrados debates sobre as características da América e sobre sua natureza, que influenciaram a forma e o conteúdo das descrições produzidas pelos viajantes que estiveram no Brasil.

65

3. O relato: diferentes olhares, diferentes perspectivas

Entre os resultados das viagens encontram-se os textos que foram produzidos pelos viajantes: cartas, relatórios científicos, diários e relatos de viagens. Além disso, caso o viajante tivesse aptidão para o desenho, ou fosse um artista viajante, registraria sua passagem pelas terras visitadas em pranchas ou em seu caderno de campo, podendo ser coloridas ou em preto e branco.78

Nesta parte do texto iremos discutir algumas questões relativas aos relatos produzidos pelos viajantes que estiveram na Capitania de Santa Catarina. Qual a importância que os viajantes, ou seja, os autores dos relatos, davam à produção desses registros da viagem? O que era relatado nestas obras? Esses relatos possuíam características comuns de forma a definir um padrão ou cada viajante tinha uma forma de escrever diferenciada e única?

Já vimos que, conforme a época, as motivações dos indivíduos que empreendiam as viagens eram distintas. A maneira de relatar as experiências vividas também eram distintas? Essas e outras questões serão discutidas no decorrer do trabalho. Não temos a pretensão de respondê- las, mas sim de iniciar algumas reflexões que nos permitam melhor trabalhar com esse tipo de fonte.

Um primeiro ponto é a relação de antecedência e de tutela entre o relato e a viagem. Como o próprio nome estabelece, o relato de viagem torna-se possível a partir da realização da própria viagem. Segundo Roland Le Huenen, “ver, fazer ver e fazer saber será

78 Essas pranchas poderiam ser desenhadas com lápis, ou então, o que é mais comum, pintadas utilizando técnicas diversas, entre elas a da aquarela. A alusão colorida e preto e branco comumente remetem à fotografia. Após a difusão da fotografia enquanto técnica de reprodução, esta também passou a ser utilizada pelos viajantes, mas isto não significa que o desenho tenha sido descartado como instrumento de trabalho. 66

desde o início o programa do viajante.”79 Nem todos os relatos de viagem foram escritos ao mesmo tempo em que a viagem estava sendo realizada. Muitos foram escritos posteriormente, utilizando como referência as anotações feitas durante a viagem e também, em alguns casos, pesquisando em relatos elaborados por outros viajantes que estiveram na mesma região. Não podemos, no entanto, deixar de lembrar que foram publicados inúmeras relatos de viagens imaginárias, onde o ato de viajar faz parte do esforço de evasão e de utopia. Num esforço de fugir da realidade, vista como alienação, inferno e sofrimento, autores de ficção, poetas e místicos escreveram obras nas quais a viagem é o tema principal e o texto está estruturado em forma de relato. Nesses relatos de viagens imaginárias, a viagem não antecede a escrita do relato. Entre as várias obras existentes, podemos citar as Viagens de Gulliver, de J. Swift, escrita em 1722.80

O que caracteriza o relato de viagem em relação a outros tipos de obras literárias? Yasmine Marcil confessa sua dificuldade de definir o que é um relato de viagem.

Segundo ela, no século XVIII esse texto é um tipo de escritura que contempla ou então circula entre a memória, a história, a descrição de aventuras, as informações geográficas.81 Roland Le

Huenen salienta que “o relato de viagem apresenta portanto esta característica de constituir um gênero sem lei.”82 Além disso, sua apresentação também pode ser diversa: diário de viagem, cartas, autobiografias e ensaio antropológico. Mas são esses mesmos autores que definem alguns aspectos comuns. Entre eles salienta-se que o relato tem uma função didática,

79 LE HUENEN, Roland. Qu’est-ce qu’un récit de voyage? In: LITTÉRALES. Nº 7: Les modèles du récit de voyage. Centre de Recherches du Département de Français de Paris X - Nanterre. 1990. p. 16. 80 Fernando Cristovão salienta que “tão natural é a ligação do maravilhoso com a viagem que lhe dá acesso, que também a viagem real dificilmente escapa a ser descrita em termos de ficção. Mas respeitando uma diferença fundamental: na narrativa da viagem real, a estrutura assenta na verdade ou na verossimilhança, sendo os elementos imaginários meros ornatos; na narrativa de viagem imaginária, é ao relato que cabe o papel de ornamento.” CRISTOVÃO, Fernando. Para uma teoria da Literatura de Viagens. In: CRISTOVÃO, Fernando (org.). Condicionantes culturais da Literatura de Viagens: estudos e bibliografias. Lisboa: Edições Cosmos, 1999. p. 51. 81 MARCIL, Yasmine. Recits de voyage et presse periodique au XVIII siècle de l’extrait a la critique. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2000. Thése de doctorat. p. 75 82 LE HUENEN, Roland. Op. cit. p. 14. 67

uma vez que ele tem a preocupação em ser um veículo de informações sobre outras regiões.83

Outros critérios comuns aos relatos de viagens produzidos nos séculos XVIII e XIX referem- se à sua escritura. Os relatos são marcados pela alternância entre narração e descrição, a natureza das descrições, a presença do narrador no texto e a organização do relato segundo um itinerário.84

Antoine Joseph Pernetty inicia seu relato com as seguintes palavras: “Foi a 23

(novembro 1763) que nos apercebemos pela primeira vez da terra do Brasil, cerca de 15 léguas de distância.”85 Aspectos semelhantes podem ser percebidos na forma como Adalbert von Chamisso inicia o seu: “A 9 de dezembro (1815) observamos faixas de água esverdeadas, menos largas do que outras de tonalidade cinza-amarelada. Exalam um cheiro podre muito penetrante.”86 O início da parte referente a Santa Catarina nos dois relatos se dá pelo dia em que a região é avistada. Como muitos outros autores de relatos de viagem, a forma escolhida para iniciar foi a descrição da primeira impressão sobre a terra na qual eles estavam chegando.

Os dois autores utilizam o relato linear, descrevendo os acontecimentos na seqüência temporal e espacial em que a viagem se desenvolveu, muitas vezes com a citação do dia em que os acontecimentos se passaram, o que permite ao leitor acompanhar o desenrolar da viagem.

Mas, em outros aspectos, eles se diferenciam. Pernetty inicia seu relato descrevendo a baía, os fortes e outros detalhes técnicos úteis à navegação. A primeira edição de seu relato foi publicada em Berlim no ano de 1769, seis anos após ter passado pela Ilha de

Santa Catarina. Ele produziu um relato de viagem voltado para o estudo da História Natural.

Do total de páginas que escreveu sobre sua breve passagem pelo Sul do Brasil, ¾ foram dedicadas a descrições de plantas e animais e somente ¼ descreviam os dias passados na Ilha

83 Ibidem. p. 19. 84 MARCIL, Yasmine. Op. cit. p. 71 85 PERNETTY, Antoine Joseph. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. Op. cit. p. 78. 86 CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 232. 68

de Santa Catarina.87 No entanto, essa divisão não é estanque. O inventário das plantas e animais encontrados, suas características físicas, sua utilidade prática são intercalados com histórias do cotidiano das populações locais. Para fazermos uma breve comparação, na obra de Chamisso, não se encontra essa divisão. Comentários pessoais sobre a região, sua população e seus costumes misturam-se com informações de História Natural. Uma possibilidade de explicação para as diferenças na forma de redigir possivelmente se deve ao fato desses autores terem viajado em dois períodos distintos. Pernetty viajou durante os anos de 1763 e 1764, enquanto Chamisso participou de uma expedição de circunavegação realizada durante os anos de 1815-1818. Mais de meio século separam as duas viagens, seus autores e seus respectivos relatos. Meio século de muitas mudanças na Europa e no desenvolvimento da

História Natural.

Gostaríamos de acrescentar a primeira impressão de outro viajante, Langsdorff, que em 1803 estava realizando sua primeira viagem à América. Segundo ele, “o panorama da paisagem à nossa frente, coberta de flores multicolores, prometia-nos a todo instante o maior prazer durante a nossa estada naquele lugar e o mais confortável bem-estar.”88 A beleza, a exuberância da paisagem, nova para ele, foi o que mais lhe impressionou. A natureza, além de campo de estudo, é fonte de prazer e deleite. Por causa da fiscalização alfandegária que enfrentaria no porto do Rio de Janeiro, os gastos e a perda de tempo, o capitão do navio em que viajava Langsdorff preferiu deslocar-se diretamente para a Ilha de Santa Catarina, evitando assim o principal porto da Colônia Portuguesa na América.89

Alguns viajantes deixaram registrados aspectos do trabalho científico que realizavam durante o período da viagem. Saint-Hilaire comenta que, ao final do dia, quando

87 Na edição que estamos utilizando como base para nosso estudo, 20 páginas foram dedicadas a História Natural e 6 páginas para a descrição dos dias passados na Ilha de Santa Catarina. Ver: PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. pp. 80-108. 88 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 161. Para refletir sobre as mudanças na noção de conforto durante os séculos XVIII e XIX, ver: SENNETT, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na Civilização Ocidental. Tradução: Marcos Aarão Reis. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. pp. 273-277. 89 BECHER, Hans. Op. cit. p. 8. 69

paravam para dormir e após um dia de coleta, dedicava-se ao registro em seu diário: “minha cama também foi armada dentro da carroça, sobre as canastras; foi também nela que o prestimoso Laruotte guardou as plantas e que eu escrevi meu diário.”90 Pernetty, por sua vez, registra o trabalho que teve para desenhar uma “mosca luminosa”. Enquanto estava na Ilha de

Santa Catarina ele havia coletado alguns exemplares do inseto, mas como os guardou, ainda vivos, num cartucho de papel para desenhá-los no dia seguinte, os insetos conseguiram fugir após furar o papel. Na região do Rio da Prata também foram surpreendidos pelos mesmos insetos. Desta vez, Pernetty prendeu algumas das “moscas luminosas [...] em uma taça de vidro coberta com uma outra [...] na manhã do dia seguinte tirei uma das taças e piquei-a com um alfinete para fixá-la na madeira da mesa e fazer um desenho.”91 Como podemos deduzir a partir das informações registradas nos relatos produzidos pelos viajantes, eles tinham a preocupação de, além de coletar espécies vegetais e animais, fazer anotações sobre as mesmas, fossem estas escritas ou desenhadas. Esse aspecto era de extrema importância para o estudo científico, como salienta o relatório feito sobre a viagem de Saint-Hilaire e assinado por Geoffroy Saint-Hilaire, Desfontaines, Latreille, Brongniart, De Jussieu e o Barão Cuvier.

No relatório, lido numa sessão da Académie Royale de Sciences, Institut de France, consta que, além da grande quantidade de exemplares coletados, o viajante elaborou um

diário exato de sua viagem, anotou todas as informações que ele pode adquirir sobre a estatística dos países visitados, sobre os costumes dos habitantes, suas línguas, seu comércio, seus hábitos, etc. Viajando mais especialmente para a pesquisa dos vegetais, ele fez a descrição das espécies recolhidas, sobretudo daquelas que os brasileiros fazem uso para a medicina e as artes.92

Como podemos perceber pela citação, a produção escrita de um diário de viagem era valorizada, uma vez que possibilitaria a outros estudiosos obter informações complementares que contribuiriam para o estudo científico do que havia sido coletado. Um

90 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 206. 91 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 21. 92 Rapport sur le voyage de M. Auguste de Saint-Hilaire dans le Brésil et les missions du Paraguay. Elaborado e assinado por Geoffroy Saint-Hilaire, Desfontaines, Latreille, Brongniart, De Jussieu e o Barão Cuvier. Paris, Imprimerie de J. Smith, 1823. p. 07. 70

exemplo de como o material coletado, juntamente com as anotações feitas durante a viagem, renderiam vários anos de estudos, não somente do cientista viajante, mas também de colegas e discípulos, é o caso de Spix e Martius. Logo após o retorno a Munique em dezembro de 1820, os cientistas bávaros dedicam-se à escrita do relato de viagem ao mesmo tempo em que trabalham em suas obras botânicas e zoológicas. Com a ajuda de seu assistente, Spix conseguiu descrever cerca de 550 espécies desconhecidas da fauna do Brasil até 1826, ano em que veio a falecer. A edição de seu trabalho, bem como de seus apontamentos, ficaram sob a responsabilidade de Martius e do professor de zoologia da Universidade de Munique, que assumiu a cadeira anteriormente ocupada pelo estudioso na Academia de Ciências. Martius vem a falecer no ano de 1868. Após 48 anos dedicados ao estudo do material trazido do

Brasil, somente um terço do trabalho havia sido concluído. Foram necessários 66 anos, cerca de 60 botânicos de vários países para descrever as mais de 22.000 espécies de plantas coletadas durante os 4 anos em que permaneceram no Brasil.93

No que se refere à forma de organização do texto, Pernetty e Chamisso o estruturam a partir do tempo cronológico, como muitos outros viajantes. Nesse ponto, os dois relatos se assemelham, enquanto que em outros eles se diferenciam. Um dos aspectos é o que, na ausência de um termo melhor, poderíamos chamar de ‘subjetividade do viajante’. Com esse termo queremos salientar a presença do sujeito. O viajante, na redação de seu texto, se coloca como um indivíduo que não só vivenciou a viagem, mas principalmente foi afetado pela experiência do contato com o novo. Essa característica torna-se cada vez mais presente nos relatos a partir do final do século XVIII. Na citação anterior, que inicia a descrição de

Chamisso sobre a Ilha de Santa Catarina, podemos perceber melhor essa questão quando o autor diz que as águas da região litorânea “exalavam um cheiro podre muito penetrante”. O autor utiliza-se de um sentido, neste caso, o olfato, a fim de acrescentar informações à busca de conhecimentos sobre a região. Na seqüência do texto, o mesmo autor explicita melhor

93 LISBOA, Karen Macknow. Op. cit. Ver Capítulo II. 71

como critérios subjetivos interferem na redação de seu relato de viagem. Apesar de ser um membro de uma viagem científica, os fatores que definem o que deve ser escrito não passam necessariamente por critérios vinculados à ciência. Para ele, “somente aquilo que despertou dentro do meu ser viva impressão é que transmito aos amigos, ainda que me faltem palavras.”94

A presença do autor no texto pode ser constatada através dos tempos verbais.

Em todos os relatos selecionados os autores utilizam o verbo na primeira pessoa do singular ou, o que é mais comum, na primeira pessoa do plural, o que abarcaria também seus companheiros de viagem: vimos, observamos são alguns dos mais usados. O viajante, apesar de suas observações e experiências, se implica no texto, já que se coloca como o sujeito da narração, que é marcado pelo “eu” e pelo “nós”. Além disso, em alguns momentos os autores dos relatos se colocam enquanto um indivíduo que, além de ter estado presente no local que está descrevendo, foi afetado por tudo o que vivenciou. Chamisso, no início de seu texto escreve: “quero ter a franqueza de dizer alguma coisa de útil sobre o Brasil.”95 É ele que vai comentar sobre o país onde estão ancorados. Pernetty também relata, em alguns momentos, opiniões e sensações pessoais, como quando descreve o sabor da banana: “tem também o gosto do marmelo amadurecido demais, quando se a mistura à polpa. Afirma-se que é um alimento muito bom. Eu não achei nada admirável; comi-a crua e cozida, madura e verde, sem apreciar seu sabor.”96 Outro que não consegue abster-se em seu texto, talvez devido às fortes impressões causadas pela paisagem que teria que reproduzir, foi o artista viajante Louis

Choris. Em seus breves comentários explicativos das pranchas que pintou, deixou registrado

94 CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 232. 95 Ibidem. p. 232. 96 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 104. 72

que na Ilha de Santa Catarina “descobrem-se sempre novas ocasiões para se extasiar ante a visão de inesgotável fecundidade da natureza.”97

Como já comentamos anteriormente, o olhar do cientista viajante possui algumas especificidades. Para Ana Maria Belluzzo, “o ver não é uma ocorrência natural e sim um fato histórico, interligado aos critérios de valoração e aos modos operativos de que o homem dispõe.”98 Salienta que as obras produzidas pelos viajantes constituem-se por ser uma história de pontos de vista distintos, de distâncias entre diferentes focos de observação, de

“triangulações do olhar”. Além de observar a vida e a paisagem americana, é necessário analisar a espessa camada da representação que se produziu a partir do olhar desses viajantes.

Essas fontes evidenciam versões, apontam a forma como as culturas se percebem e percebem as outras, estabelecendo diferenças e semelhanças, contribuindo para elaborar identidades, tanto do grupo visitado como das regiões de onde os viajantes vieram, ou seja, da Europa.99

Para entendermos como se constituía a forma de olhar do viajante, um caminho possível, além da análise dos relatos, é compreendermos qual era a concepção de olhar para os europeus, mais especificamente o europeu influenciado pela ilustração. Na obra Encyclopédie, elaborada no século XVIII, entre as várias definições do verbo e substantivo olhar (regarder) existe uma que é a relação entre o olhar e a visão. Essa preocupação não se encontra mais no

Grand Larousse, obra de referência atual. Na Encyclopédie, entre os vários verbetes, encontra-se o que diz que “não se vê sempre o que se olha, mas se olha sempre o que se vê.”

Para o viajante, influenciado pela ilustração, não era suficiente ver, era preciso ver tudo, e para isso era necessário educar o olhar, adestrá-lo, dirigi-lo, para desta forma observar corretamente o objeto. Segundo Sérgio Paulo Rouanet

97 CHORIS, Louis. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. Op. cit. p. 245. 98 BELLUZZO, Ana Maria. A propósito D’o Brasil dos viajantes. Revista USP. São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai. 1989). p. 18. 99 Ibidem. p. 10. 73

o enciclopedista está subentendendo, ao dizer que nem sempre se vê tudo o que se olha, que essa visão parcial é imperfeita, anômala, deficitária, e que o ideal humano é o da visibilidade irrestrita. Ele não pode ser atingido, mas deveria ser constantemente visado. A frase descritiva converte-se, assim, numa frase prescritiva: é preciso ver tudo.100

Os relatos dos viajantes europeus são aqui entendidos enquanto representações sobre o outro, enquanto um instrumento para reconstituir uma determinada visão do passado, mas eles também são, bem como seus autores, parte do acontecer histórico. Nessa perspectiva, entender o contexto que influenciou e formou este cientista viajante é imprescindível para melhor analisarmos suas falas.

A vinculação dos viajantes com sua sociedade de origem, européia, iluminista, e sua formação científica, influenciava a forma como os cientistas iriam observar e descrever as regiões visitadas. Segundo Michel Foucault, o principal fator que diferencia a forma de ver dos viajantes europeus do final do século XVIII e início do século XIX em relação aos viajantes que os antecederam foi o desenvolvimento da História Natural. Para ele a História

Natural nada mais é do que a nomeação do visível. Essa nova forma de olhar, no qual eram aproximadas a linguagem do olhar e as coisas olhadas da linguagem, se constituiu a partir de exclusões e limitações. Por um lado é excluído o gosto, o sabor, o som, uma vez que estes conhecimentos são marcados pela incerteza; por outro ado, a utilização do tato é limitada.

Privilegia-se quase que exclusivamente o olhar, de tal forma que

observar é, pois, contentar-se com ver. Ver sistematicamente pouca coisa. Ver aquilo que, na riqueza um pouco confusa da representação, pode ser analisado, reconhecido por todos e receber, assim, um nome que cada qual poderá entender.101

Mas nem tudo o que é percebido pelo olhar pode ser aproveitado, como por exemplo as cores. Dessa forma, definem-se os objetos da História Natural: linhas, formas, relevos, superfícies. Essa mudança de escala na observação torna-se possível com o uso do

100 ROUANET, Sérgio Paulo. O olhar iluminista. In: NOVAES, Adauto (org.). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 128. 101 FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Tradutor: Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 148. 74

microscópio e de lentes. No entanto, para melhor observar, existe a necessidade de renunciar outras formas de se alcançar o conhecimento, seja ele através dos outros sentidos ou através do ouvir-dizer.102

Esse olhar, além de ser europeu, era também de um cientista, o que significa que era detentor de um esquema próprio de classificação, um esquema estranho, estrangeiro para a grande maioria das pessoas e, principalmente, para aquelas que estavam sendo observadas e que posteriormente seriam descritas nos relatos. Luciana de Lima Martins salienta que o viajante é sempre um estrangeiro, um indivíduo estranho à cultura local, alguém que a todo momento está negociando o que vê, as diferenças culturais com as quais se depara. A partir de seu mundo, o viajante pensa o outro e o seu próprio mundo. A fim de melhor explicar o diferente, ele automaticamente o ordena, o classifica, a partir de seus códigos. Isto não significa que o mundo “de fora”, o mundo que está sendo descrito pelo viajante seja sempre passível de ser ordenado. Assim, existe uma brecha entre a intenção oficial do viajante e o que realmente é produzido, uma vez que nem sempre o que escreve está sob o seu domínio. As descrições de viagem comportam um espaço para a subjetividade, para o que não pode ser controlado neste encontro entre diferentes.103

Na construção da escrita de muito viajantes, principalmente quando descrevem as vilas e as cidades onde se encontram, podemos perceber como o olhar, a visão, é utilizada como a principal forma de se apropriar do local visitado. O texto é escrito de forma a acompanhar o olhar do visitante sobre a cidade, enquanto este se desloca pelas suas ruas.

Auguste de Saint-Hilaire utiliza-se desse recurso quando descreve Nossa Senhora do

Desterro:

A cidade é dividida em duas partes desiguais por uma grande praça, que ocupa quase toda a sua largura e vai em declive suave até a beira da água. A praça é retangular e coberta por uma fina relva, medindo aproximadamente

102 Ibidem. p. 146-147. 103 MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos Viajantes: o olhar britânico (1800-1850). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. p. 36. 75

noventa passos de largura por trezentos de comprimento desde a beira d’água até a igreja paroquial, onde termina. Essa igreja, dedicada a Nossa Senhora do Desterro, prejudica a simetria da praça, já que não tiveram o cuidado de construí-la a igual distância das duas fileiras de casas, além de a colocarem em posição oblíqua em relação à beira do mar. Ela é grande e tem duas torres, mas não me pareceu que tivesse uma largura proporcional à sua altura. Sobe-se até ela por uma pequena rampa margeada por dois muros de arrimo, a qual vai desembocar numa pequena plataforma em meia-lua. Na base desta elevação há uma alta palmeira, cuja elegante folhagem, que se agita à mais leve brisa, contrasta com a imobilidade do prédio ao qual ela serve de ornamento. No seu interior, a igreja tem forro e é bem iluminada, mas achei-a menos limpa do que em geral são as igrejas no Brasil [...]104

E assim ele continua descrevendo as construções da cidade, as capelas, o hospital, a Câmara Municipal, o Palácio do Governo, etc. Na seqüência, seu relato desloca-se para a economia, para a população, para as mulheres, descrevendo-as fisicamente, bem como seu comportamento diante de estranhos. Essas descrições são intercaladas por comparações com a Europa e com opiniões pessoais do viajante.

Outros viajantes também utilizam-se do recurso que transforma a descrição da cidade num guia e que representa o viajante caminhando pela cidade. Pierre Berthiaume salienta a forma como o viajante François-Xavier de Charlevoix descreve Quebec (atualmente uma cidade do Canadá) quando de sua viagem no ano de 1720. Essa forma de apresentar o texto, como se, ao mesmo tempo em que está passeando pela cidade estivesse escrevendo, segundo Pierre Berthiaume é “pura retórica”. Mesmo que Charlevoix tenha tomado notas enquanto passeava, a redação da carta deu-se sobre uma mesa de trabalho e utilizando um mapa da vila de Quebec feito pelo engenheiro Chaussegros de Léry. Segundo o estudioso, o mundo passa a existir a partir do olhar, que lhe dá um sentido, investido pela subjetividade daquele que ordena as coisas, ao mesmo tempo que as esclarece.105

Utilizando as reflexões de Paul Ricouer quando diz que o “fazer narrativo re- significa o mundo na sua dimensão temporal, na medida em que contar, recitar, é refazer a

104 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 170. 105 BERTHIAUME, Pierre. L’aventure américaine au XVIII siècle. Du voyage à l’ecriture. Ottawa: Les presses de l’université d’Ottawa, 1990. p. 351. 76

ação”106, podemos concluir que, no momento em que o viajante se utiliza da palavra escrita para descrever ou narrar o que ocorreu durante sua viagem, seja através de cartas, diários ou monografias, de certa forma ele está refazendo sua viagem, o que viu e sentiu. No entanto, devemos também salientar que o relato, apesar da pretensão de restituir o que ocorreu, é um texto que possui limites e cuja redação enfrenta dificuldades. Segundo Nicole Hafid-Martin, para os cientistas viajantes, os relatos se opõem ao projeto puramente literário. Para eles, a relação de viagem “é um suporte textual muito antes de ser o lugar de uma aventura; também não são jamais a simples transposição dos diários redigidos durante a viagem.”107 Isto significa que o trabalho da redação do relato passa por rever as anotações, ler outros relatos a fim de analisar as mudanças e fazer as correções e retificações que se fazem necessárias.

Entre os viajantes que analisamos, praticamente todos fazem, em algum momento, menção a outros viajantes, mas o que mais se utiliza de referências e faz retificações, sem dúvida, é

Auguste de Saint-Hilaire.

Alguns recursos são largamente utilizados nos relatos. Entre eles encontram-se o inventário do que foi encontrado e as comparações. Pernetty, na segunda parte de seu texto, enumera os tipos de animais e plantas que encontrou na Ilha de Santa Catarina. Cada um é acompanhado por sua respectiva descrição, na qual normalmente consta tamanho, formato, cor e outras informações. Em alguns trechos consta o sabor, quando o que está sendo descrito for comestível, e sua utilidade. O autor, em alguns momentos, utiliza comparações com plantas e animais conhecidos dos europeus a fim de, através delas, possibilitar ao leitor ter uma idéia mais precisa do que está sendo descrito. É o que ocorre quando ele descreve as gralhas, nome “que os portugueses dão a uma espécie de ‘corneille’, cuja plumagem é de um

106 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Volume I. Tradução: Constança Marcondes Cesar. Campinas, SP: Papirus, 1994. p. 124. 107 HAFID-MARTIN, Nicole. Voyage et connaissance au tournant des Lumières (1780-1820). Oxford: Voltaire Foundation, 1995. p. 64. 77

belo azul terno. São, dizem eles, os corvos da região.”108 O inventário do que encontrou e a comparação são recursos utilizados por Pernetty e por outros viajantes, entre eles Saint-

Hilaire, que se utiliza deles para descrever a população, ou então o nível de desenvolvimento da região: “os agricultores da Ilha de Santa Catarina não são nem de longe tão ativos, evidentemente, quanto os camponeses da França e da Alemanha; entretanto, eles me pareceram bem mais industriosos do que comumente os fazendeiros do interior.”109 Os fazendeiros a quem ele se refere provavelmente são os que ele encontrou quando viajou pelo interior das Províncias de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Georg von Langsdorff também utiliza o recurso da comparação ao descrever um tipo de transporte, usado na região:

“estas ‘cadeirinhas’ não são como as nossas, fechadas por portas e janelas de vidro; elas se assemelham a uma poltrona provida de encosto bem vertical, coberta por um baldaquim enfeitado [...].”110 Outros exemplos nos quais o viajante utiliza esse recurso se sucedem nos textos pesquisados.

O que nos interessa é que essa forma de escrever foi utilizada por vários viajantes e constitui um aspecto comum em muitos relatos de viagens. Para Roland Le

Huenen, “o discurso do viajante empenha-se em reconstruir o mundo segundo um modelo conhecido, de reduzir as distâncias e as diferenças, e de projetar sobre a nova realidade a forma de um sentido já conhecido.”111 Isto também é salientado no estudo de Pierre

Berthiaume. Para ele, as comparações inscrevem artificialmente as coisas numa estrutura já conhecida, ao mesmo tempo em que reduzem a especificidade e a singularidade do universo americano.112 Podemos acrescentar que a utilização do recurso da comparação propicia a falsa ilusão de compreender e conhecer, uma vez que insere o novo em categorias mentais conhecidas e largamente utilizadas, da mesma forma que inventariar o que foi coletado,

108 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 97. 109 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 174. 110 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 168. 111 LE HUENEN, Roland. Op. cit. p. 18. 112 BERTHIAUME, Pierre. Op. cit. p. 341. 78

descrevê-lo e posteriormente renomeá-lo com nomes em latim marca uma tomada de posse, a inscrição destas coisas no mundo classificado, ordenado e hierarquizado dos museus. A estrutura que norteia a escrita do relato espelha, de certa forma, o mundo mental dos cientistas e da ciência européia da época.

Um outro recurso utilizado pelos viajantes na escrita de seus relatos é a

‘bricolage’, na qual, para descrever um animal ou outra coisa desconhecida, é montada uma colcha de retalhos utilizando partes de diferentes animais conhecidos. Entre os cientistas viajantes que estão sendo estudados, este recurso não é muito utilizado. Provavelmente devido ao fato de a natureza da América não ser mais totalmente desconhecida, ou então, em decorrência da utilização entre os cientistas viajantes do desenho, recurso que foi mais utilizado do que entre outras categorias de viajantes.

Saint-Hilaire utiliza um método interessante para inventariar os animais e plantas: “entre as espécies comuns posso citar a Sophora littoralis (feijão-da-praia), a

Avicennia nº 1665, a Escrofulariácea nº 1589.”113 Mais adiante ele também utiliza esse recurso enquanto descreve uma região ao sul da Capitania de Santa Catarina:

diante de sua entrada, do lado da lagoa, vêem-se ilhas rasas e pantanosas, cobertas unicamente pela Gramínea nº 1667, as quais servem de refúgio para as garças brancas nº 345, bem como para outras aves aquáticas.114

A utilização da nomenclatura em latim é comum entre os cientistas viajantes, com exceção de Pernetty. O método científico estabelecido por Carl Linné visava classificar as plantas da terra, fossem elas conhecidas ou não, a partir de seu sistema reprodutivo. Este método, que estabeleceu o latim como a língua a ser utilizada para a nomenclatura, se difundiu por toda a Europa na segunda metade do século XVIII. Pernetty, como estudioso da história natural, provavelmente conhecia o método, mas se absteve de utilizá-lo em seu relato.

Seria por que ele não concordava com este método ou por que ele ainda era restrito aos

113 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 175. 114 Ibidem. p. 199. 79

círculos científicos e seu texto tinha o objetivo de ser lido por pessoas que não faziam parte dele? O método de Linné, juntamente com o estudo da botânica, difundiu-se na sociedade burguesa européia no final do século XVIII e no século XIX. Na França revolucionária, a botânica tornou-se a ciência mais representativa, uma vez que o “culto a natureza encetado pelas Sociedades Lineanas que se difundiram pela Europa, inspiravam a idéia de uma educação naturalista, baseada nas leis naturais em oposição ao dogma religioso.”115 Já em relação à numeração utilizada por Saint-Hilaire, não temos certeza, mas provavelmente os números remetessem a alguma obra de referência, onde os animais e as plantas encontravam- se descritos em detalhes, inclusive acompanhados por imagens.

Neste momento gostaríamos de discutir as seguintes questões: para quem esses textos, esses relatos de viagens eram escritos? Quem era o público leitor que motivava os viajantes a redigir textos contando o que viram e vivenciaram? Alguns dados são importantes para pensarmos sobre estas questões. No século XVII, o número de livros publicados cujo tema versava sobre viagem somou 1.566 títulos. No século XVIII, esse número, entre títulos franceses e estrangeiros, somou 3.540 obras. Segundo Yasmine Marcil, a prática de viajar incentiva a leitura, a escrita e a publicação dos relatos de viagem.116 Durante o Siècle des

Lumières117 a literatura de viagem torna-se um gênero vencedor. Nesse período a Europa redescobre as grandes viagens de circunavegação, as viagens através de outros itinerários além do “Grand Tour” e desenvolve a “viagem no quarto, sonho(devaneio, fantasia) a partir de um livro.”118 O relato de viagem permitia àqueles que não viajavam o acesso à regiões distantes, à recantos de outros continentes como a América e a África, ou seja, através da

115 CARNEIRO, Henrique. As influências culturais do sistema de classificação sexual da botânica de Lineu no século XVIII. In: Atas Seminário Internacional Dimensões da História Cultural - Unicentro Newton Paiva, BH. 1999. p. 7. Disponível em: < http: //kant.fafich.ufmg.br/~scientia/ art_carn.htm > Acesso em: 17 abr. 2002. 116 MARCIL, Yasmine. Op. cit. p. 4 117 Segundo Pierre Chaunu este período vai dos anos 1680 a 1780. No entanto esse autor comenta que esta delimitação cronológica não se limita a esses anos, pois as idéias que integram o que é comumente conhecido como período das Luzes não se difundiram de forma uniforme em todas as regiões e entre diferentes grupos sociais. 118 BOURGUET, Marie-Noëlle. Le livre de voyage au siècle des Lumières. In: Encyclopaedia Universalis: le grand atlas des littératures. Paris: Animex Productions, devenir studio. 1990. p. 307. 80

leitura, uma parcela da população européia tinha a sensação de viajar, de conhecer terras e indivíduos até pouco tempo inacessíveis.

Apesar do aumento do número de títulos publicadas entre os séculos XVII e

XVIII, o que deve ter significado também o aumento no número de leitores, o público principal desse tipo de leitura era composto pelos “savants”119 e filósofos. Michèle Duchet, em seu trabalho sobre a história da antropologia francesa do século XVIII, analisa os interesses de Voltaire, De Brosses, barão d’Holbach e Turgot a partir do inventário de suas bibliotecas. Entre os livros da coleção do barão d’Holbach, que foram vendidos em 1789, encontram-se 26 títulos referentes à “História da América”, 17 obras sobre “história oriental” e 31 livros que tratam da “história asiática.” Já a coleção de Voltaire contabilizava 3.867 títulos. Desses, 133 referiam-se à literatura de viagens: 19 coletâneas, coleções ou história geral, 7 viagens ao redor do mundo, 2 livros sobre as terras austrais, 26 sobre as Índias

Ocidentais (sendo que 13 eram sobre a América do Sul), 4 sobre a África, 1 sobre as

“Moluques”, 8 sobre as regiões do Norte e 70 títulos sobre as Índias Orientais (16 referiam-se

à China).120 Esse inventário mostra como a literatura sobre regiões não européias ocupava um lugar importante na biblioteca de muitos estudiosos. No entanto, devemos lembrar que o gosto literário e a curiosidade do público em geral é distinto das necessidades e exigências dos filósofos e dos homens das ciências. Além disso, a análise de inventários de bibliotecas particulares deixa lacunas, uma vez que seu número é muito limitado, bem como as informações recolhidas. Mas, apesar das dificuldades, a autora conclui que a listagem dos títulos permite acompanhar os debates que ocorreram entre 1750 e 1780, principalmente os que se referiam à questão da origem dos americanos, o nascimento e a diversidade das civilizações, as religiões do antigo e do novo mundo.121

119 Savant pode ser traduzido por erudito ou por cientista, quando se refere as ciências. 120 DUCHET, Michèle. Anthropologie et histoire au siècle des Lumières. 1º ed. 1971. Paris: Albin Michel, 1995. pp. 68-71. 121 Ibidem. pp. 68-74. 81

Para Nicole Hafid-Martin, uma característica dos leitores do Siècle des

Lumières é que, mesmo que seu interesse seja a singularidade e o insólito, o que o aproxima do leitor da Idade Média e da Renascença, ele se caracteriza por ser menos crédulo e por exigir uma garantia de autenticidade no que está sendo relatado.122 Carlo Ginzburg, em seu estudo sobre Mennochio, um moleiro que viveu na região do Friuli durante o século XVI, mostra como esse indivíduo leu e se apropriou dos textos aos quais teve acesso. Mais do que ler, extraiu significado dos livros e construiu uma cosmologia que explicava o surgimento do mundo e que se contrapunha às crenças da Igreja Católica. Outro aspecto que caracteriza esse leitor é a leitura repetida. Durante sua vida, Mennochio teve acesso a poucos livros, mas esses foram lidos várias vezes. Robert Darnton analisou outro leitor. Jean Ranson era um comerciante na França setecentista, apaixonado por Rousseau. Entre os anos de 1774 e 1785 escreveu cartas à Société Typographique de Neuchâtel, editora suiça de livros franceses. Suas cartas ao editor, de quem era amigo e antigo aluno, mostra um interesse em saber notícias de l’ami Jean-Jacques. Rousseau vai estabelecer uma nova relação entre o autor e seu leitor. E essa relação foi correspondida por Ranson, como mostram suas cartas ao editor. Comentários sobre sua vida eram intercaladas com referências a Rousseau, com suas idéias sobre os deveres entre maridos e esposas, de mães e pais com seus filhos bem como sobre amamentação ao seio e o amor materno. As cartas de Ranson possuem as características estabelecidas por Rousseau para tratar das coisas da vida. A banalidade foi substituída pela seriedade e pela moralidade. As cartas tinham um tom íntimo e sentimental. Segundo

Darnton, com a obra La Nouvelle Héloïse, Rousseau ensinou o público a digerir os livros, de forma que a obra era absorvida pela vida. Seus leitores atiravam-se à leitura com uma paixão que nos é estranha.123

122 HAFID-MARTIN, Nicole. Op. cit. pp. 61-62. 123 Ver GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. Tradução: Betania Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987 e DARNTON, Robert. O 82

Daniel Roche fala que as leituras de viagens tinham múltiplas utilidades.

Permitiam uma aproximação do conhecido com o desconhecido, do próximo com o distante e do geral com o particular. Mas como esses textos eram lidos pelos europeus? Tanto os letrados, os escritores e filósofos, como as pessoas da sociedade buscavam nos relatos um conjunto de referências que lhes permitia compreender ou recusar as diferenças, organizar sua capacidade para aceitar as mudanças, possibilitando-lhes integrar as novidades.124

Em seu estudo sobre as leituras camponesas, Chartier mostra como o entendimento que os citadinos letrados possuíam sobre os camponeses e seus hábitos de leitura foi “construído no cruzamento da experiência com a imagética, indício simultaneamente de um conhecimento do campo, visitado, percorrido, e dos arquétipos partilhados da rusticidade.”125 Ressaltam-se duas características sobre a leitura camponesa: os textos, em sua maioria religiosos, eram lidos em voz alta em serões onde participava a família, normalmente após a ceia. Essas imagens pertencem a um repertório de representações na qual a sociedade rural é apresentada como patriarcal, fraterna, comunitária, enquanto o campo é apresentado como bucólico e de uma simplicidade natural, ao contrário da sociedade corrompida encontrada nas cidades. Essas representações foram difundidas ao mesmo tempo em que o campo, juntamente com seus habitantes, era visto como uma terra de preconceitos e de ignorância, onde os homens esclarecidos deveriam desenvolver sua missão de educadores.

No que se refere ao serão, este era mencionado como um “lugar de trabalho em comum, do jogo e da dança, dos contos e das canções, da confidência e dos mexericos, praticamente nunca como espaço da leitura comunitária em voz alta.”126 Nesse sentido, as representações dos serões camponeses revelam mais sobre as expectativas dos letrados do final do século

XVIII do que a própria realidade dos camponeses. As reflexões de Chartier sobre a leitura e o grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. Tradução: Sonia Coutinho. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. Capítulo 6. 124 ROCHE, Daniel. Op. cit. pp. 30-37. 125 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Op. cit. p. 150. 126 Ibidem. p. 160. 83

interesse expresso pela quantidade de relatos de viagens encontrados nas bibliotecas de alguns filósofos nos remetem a importância deste tipo de leitura na construção de uma imagem para a própria Europa e sua cultura. Travar contato com a cultura de outros povos através dos relatos permitiu o fortalecimento de uma identidade européia. A imagem dos outros e de si mesmo vai estar presente no momento de estabelecer as bases das relações entre os grupos, sejam eles

étnicos ou nacionais.

No século XVIII o relato de viagem é percebido como útil. Segundo Yasmine

Marcil, esse gênero literário se firmou no decorrer do século XVII como um meio de informação e como um instrumento de pesquisa, que permitia ao leitor ter informações do mundo. Para os filósofos é um instrumento para o desenvolvimento de uma ciência do homem e do mundo natural.127 A principal crítica feita aos relatos de viagens refere-se à sua veracidade. Segundo o Dictionnaire Français de Richelet, publicado em 1759, a maior parte dos relatos são mal feitos e cheios de exageros e de contradições. No entanto, os relatos de viagens são classificados pelas livrarias do século XVIII como história, o que confirma a percepção dominante de que o relato é um meio de conhecimento.128 Conselhos voltados para os viajantes que porventura desejassem escrever um relato e para que esse tivesse credibilidade foram dados por Louis-Mayeul Chaudon na obra Nouvelle Bibliotheque d’un

Homme de Goût publicado em 1777. Para ele, uma escrita simples, sem excessos e frases inúteis confirma a credibilidade de um relato.129 Além da forma de escrever, outros fatores que contribuem para aumentar a credibilidade de um texto de viagem são o domínio da língua e o tempo que o viajante permaneceu no local visitado. Entre os viajantes que estiveram no litoral de Santa Catarina, Langsdorff e Saint-Hilaire falavam português. O primeiro havia morado em Portugal antes de sua viagem e o segundo já estava no Brasil desde 1816, visitando e realizando estudos em outras regiões. Sobre os outros não temos informações

127 MARCIL, Yasmine. Op. cit. p. 36. 128 Ibidem. p. 41. 129 Apud. MARCIL, Yasmine. Op. cit. p. 47. 84

precisas. A Expedição de Bougainville, da qual fazia parte Antoine Joseph Pernetty, utilizou como intérprete um português que havia permanecido em Paris durante 4 anos, como pajem do embaixador de Portugal na França. Esse recurso era utilizado por muitos dos estrangeiros que aqui chegavam, mas devemos salientar que o não conhecimento da língua local dificultava o contato com as pessoas e a troca de informações sobre a região. Pernetty conhecia o latim, mas sua tentativa de conversar nesta língua com um padre franciscano, que estava presente no jantar oferecido pelo governador da Capitania de Santa Catarina130, não foi bem sucedida. Segundo ele, “o bom padre ignorava esta língua, e acredito que este defeito é comum em quase todo o clero no Brasil.”131

Os relatos de viagens têm importância distinta para os viajantes e para os cientistas viajantes. Enquanto para os primeiros ele é o resultado público da viagem, para os segundos, seu papel limita-se a ser um comentário das observações feitas e dos resultados alcançados no decorrer da viagem.132 Talvez isso explique o longo tempo entre a viagem e a escritura do relato de muitos dos cientistas viajantes. Para estudiosos como Saint-Hilaire era mais premente analisar o que foi coletado do que escrever um relato voltado para o público leigo. Para Nicole Hafid-Martin, o que levava os viajantes que haviam empreendido viagens científicas a escreverem seus relatos, durante o Siècle des Lumières, era uma combinação entre o interesse das instituições em difundir o conhecimento e o interesse cada vez maior do público por esse tipo de leitura. Para as instituições que haviam financiado a viagem, era proveitoso divulgar os resultados, uma vez que poderiam reverter em mais investimentos, sejam públicos ou privados. Para o viajante, era o reconhecimento pelo trabalho empreendido.133 Além disso, ao longo do século XVIII, a demanda do público e as aspirações

130 A capitania de Santa Catarina compreendia a Ilha de Santa Catarina, atualmente pertencente ao município de Florianópolis, vilas como Laguna e São Francisco e algumas regiões do continente, como São José da Terra Firme, São Miguel, bem como outras áreas ocupadas a partir do final da década de 40 do século XVIII por colonos açorianos. 131 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 82 132 BERTHIAUME, Pierre. Op. cit. p. 327. 133 HAFID-MARTIN, Nicole. Op. cit. p. 57. 85

dos viajantes garantiram para a literatura de viagem um grande sucesso e contribuíram para o enriquecimento das diversas disciplinas constituídas. Além desses interesses, existiam outros, como a divulgação das informações coletadas nas diferentes regiões por onde viajaram a fim de possibilitar o avanço dos estudos científicos, e mesmo intenções humanitárias. Dessa forma, é um conjunto de finalidades que vai permitir e sustentar a publicação dos relatos, e todos eles relacionados com o projeto fundamental, que é o desenvolvimento do conhecimento.

Além dos aspectos considerados, para alguns estudiosos, como Silvia

Figueirôa, também devemos levar em consideração as diferenças entre textos científicos, diário de campo e relato de viagem. Enquanto o primeiro era tido como “necessariamente

‘objetivo’ e, portanto, expurgado de tudo que possa cheirar a subjetividade”134, os outros dois tipos de textos permitiam tratar de outros aspectos, como o cotidiano das expedições. A procedência das informações relatadas eram basicamente três: observações pessoais, testemunhos recolhidos no local e o testemunho dos viajantes anteriores. Muitas vezes, o autor fazia correções nas informações divulgadas por algum de seus antecessores. Já no que se refere ao conhecimento dos habitantes locais este era re-elaborado de forma a se adaptar aos canônes científicos desenvolvidos e utilizados pelos viajantes. Segundo Miriam Moreira

Leite,

o diário de campo costuma ser um instrumento de trabalho científico, realizado com vistas à elaboração de relatórios completos e minuciosos ou da publicação de livros, através de desdobramentos da continuidade e do inter-relacionamento dos dados anotados apressadamente, como lembretes, e da organização lógica de seu conteúdo para um público mais amplo, mesmo que conserve a forma atraente do diário. Escrito para uso próprio, o diário de campo conserva a espontaneidade do pensamento ingênuo, que não entra em confronto com o leitor. A ausência de um público dispensa uma comunicação mais cuidadosa e mais conforme às convenções lingüísticas e científicas.135

134 FIGUEIRÔA, Silvia. Apresentação. In: Os Diários de Langsdorff. Op. cit. p. XXXIX. 135 MOREIRA LEITE, Miriam. Prefácio. In: Os Diários de Langsdorff. Op. cit. p. XLV. 86

A partir desses relatos serão difundidas diferentes imagens sobre a América e seus habitantes. Até este momento salientamos como a busca e a divulgação do conhecimento influenciava e motivava a escrita dos relatos de viagens. Nosso interesse é analisar como as discussões que estavam sendo travadas na Europa, entre cientistas e estudiosos, influenciou na forma como os viajantes descreveram a natureza e a organização social na América.

87

4. A História Natural como um novo campo do conhecimento

Na ânsia de tornar compreensíveis o mundo e a natureza, são estabelecidos códigos e categorias mentais que mudam ou são modificadas conforme o contexto histórico.

Essas categorias são importantes, uma vez que é a partir delas que vemos, entendemos e ordenamos o mundo ao nosso redor. Ao mesmo tempo que temos consciência que elas existem, e que sociedades e culturas distintas possuem outras categorias, sabemos que uma vez inseridos nelas, torna-se difícil percebermos de outra maneira o que nos cerca. Para Keith

Thomas “o sistema de classificação dominante toma posse de nós, moldando nossa percepção e, desse modo, nosso comportamento.”136

Os cientistas viajantes que analisamos eram detentores de um sistema de ordenação e de compreensão do mundo que foi moldado numa época, o Siècle des Lumières, num espaço geográfico, a Europa, e num meio intelectual, as academias de ciências e os jardins botânicos. Essas características comuns não significam, no entanto, que os discursos proferidos, veiculados através de seus relatos de viagens, são homogêneos. Através deles podemos perceber que existiam diferenças e divergências entre os cientistas da História

Natural, como também existem em outras áreas do conhecimento.

Nosso objetivo neste capítulo é analisar os discursos que circulavam pela

Europa sobre a natureza da América, uma vez que esta era entendida de maneira distinta pelos cientistas e filósofos envolvidos nas discussões. Além disso, os debates que eram travados na

136 THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais, 1500-1800. Tradução João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 62 88

época vinculavam estreitamente o espaço físico e suas características com o desenvolvimento do ser humano.

4.1. Um novo olhar sobre a natureza

A forma como o homem passou a interagir com a natureza sofreu grandes transformações no período moderno. Na Inglaterra, a crença de que o mundo havia sido criado para servir ao homem, submetendo-se as suas necessidades e desejos, modifica-se e abre espaço para uma outra visão sobre a relação homem/natureza. Essa visão tradicional era fundamentada nos filósofos clássicos, como Aristótoles, mas principalmente na Bíblia.

Segundo essa, inicialmente, no Jardim do Éden, a convivência entre homens e animais era pacífica. Com a expulsão do paraíso, a terra degenerou e o homem precisou lutar, através do trabalho árduo, pela sua sobrevivência. Surgiram pestes, pulgas e outros insetos. Os animais tornaram-se ferozes e passaram a atacar os homens, obrigando estes últimos a torná-los submissos através da força. Após o Dilúvio, a autoridade dos homens sobre os animais é renovada. Segundo Thomas Keith, entre os pregadores ingleses dos séculos XV ao XVIII, era corrente que as criaturas bestiais haviam sido criadas por Deus para servirem aos seres humanos, para seu uso, e não por si mesmas. Essas necessidades poderiam ser práticas, morais ou estéticas. Os pássaros e os macacos haviam sido criados para nosso contentamento, o boi e o cavalo para labutar em nosso lugar, os cães para demonstrar lealdade e os piolhos 89

porque incentivavam a higiene. A teologia da época iria lançar os alicerces da dominação do

homem sobre a natureza, distintamente de algumas religiões orientais. 137

Concepções como essas sobre a natureza modificaram-se a partir de influências diversas, como por exemplo, a própria re-interpretação do legado judaico-cristão, a industrialização, a urbanização e o desenvolvimento de novas áreas da ciência. Para a cultura francesa do final do século XVIII e início do século XIX, o papel da natureza era central e, ao mesmo tempo, origem primeira da felicidade social e o terreno onde o homem civilizado exercia seu domínio, sua autoridade. É nesse período que o domínio da natureza aparece como a seqüência lógica do progresso humano.138

Carl von Linné, naturalista sueco, publicou em 1735 a primeira edição do

Systema Naturae (O Sistema da Natureza). Na obra, publicada em latim, e que teve doze edições entre 1735 e 1768, a sistemática de classificação era dividida em classe, ordem, gênero e espécie. Os minerais eram divididos em pedras e fósseis, os animais em seis classes acrescentado da sétima, o homem, e os vegetais em 24 classes. A continuidade dos estudos e o aperfeiçoamento do método resultou na publicação, em 1751, da obra Philosophia Botanica e, em 1753, do estudo intitulado Species Plantarum. Em 1763, publica Genera Morborum, onde os vegetais são ordenados em 11 classes e 325 gêneros. A partir desses estudos, difunde-se a nomenclatura binária que denomina as plantas utilizando o nome do gênero seguido pelo nome de sua espécie. É na botânica que seu sistema classificatório obtém melhores e inovadores resultados. Primeiramente, porque ao reino vegetal é aplicado um sistema artificial de classificação baseando-se na observação de seus órgãos reprodutores. Em segundo lugar, devido a sua reforma da nomenclatura das plantas, quando cria também uma nova língua para

137 Ibidem. pp. 21-30. 138 KURY, Lorelei. Op. cit. p. 10. 90

a descrição das plantas, distinta de tudo o que havia, e que descartava o conhecimento acumulado.139

Os objetos de estudo da história natural, a partir da publicação do trabalho de

Carl von Linné serão descritos seguindo “os seguintes passos: nome, teoria, gênero, espécie, atributos, uso e, para terminar, Litteraria.”140 Para ele a linguagem, as crenças, as histórias que se tinha em relação à determinada planta deveriam ser deixadas em último plano, o que possibilitaria que o próprio objeto analisado, com suas características, aparecesse. Segundo

Michel Foucault, na Idade Clássica (século XVII e parte do século XVIII), o estudo da

História passa a ser entendido de uma forma diferente: o estudioso deve pousar “um olhar minucioso sobre as coisas” e “transcrever, em seguida, o que ele recolhe em palavras lisas, neutralizadas e fiéis.”141 Esse novo significado, a partir do qual a História é entendida, passa a influenciar também o entendimento da História Natural. A História passa a ser feita a partir de uma nova vinculação das coisas ao olhar e ao discurso, e os documentos dessa nova ciência tornam-se

espaços claros onde as coisas se justapõem: herbários, coleções, jardins; o lugar dessa história é um retângulo intemporal, onde, despojados de todo comentário, de toda linguagem circundante, os seres se apresentam uns ao lado dos outros, com suas superfícies visíveis, aproximados segundo seus traços comuns e, com isso, já virtualmente analisados e portadores apenas de seu nome.142

Um fator positivo que contribuiu para a difusão do método linneano foi a utilização do Latim, língua nacional de ninguém, o que o colocava acima das rivalidades nacionais. Este fator, combinado com o fato de seu autor ser de um país secundário na

“disputa econômica e imperial global”, aumentou a receptividade e a difusão de seu sistema

139 DURIS, Pascal. Linné et la France (1780-1850). Genève: Droz, 1993. pp 28-34. 140 FOUCAULT, Michel. Op. cit. 1992. p. 144. 141 Ibidem. p. 145. 142 Ibidem. p. 145. 91

na Europa. Além disso, a abordagem de Linné, segundo Mary Louise Pratt, conseguiu

“combinar o ideal de um sistema classificatório de todas as plantas com uma sugestão concreta e prática, de como construí-lo.”143 A natureza deveria ser organizada, ordenada, e para Linné “o fio de Ariadne em Botânica é a classificação, sem a qual só existe o caos.”144

Ou seja, as formas de vida, vegetais e animais, deveriam ser retiradas da natureza e reordenadas segundo os critérios europeus de ordem e unidade global. Além disso, esse sistema classificatório rompia com o conhecimento nativo, uma vez que os viajantes não precisariam mais depender do saber local sobre as plantas, seus nomes e suas funções na natureza.145

Keith Thomas salienta que uma das mudanças relacionadas com a difusão do sistema lineano na Inglaterra, a partir de 1760, foi o aprofundamento do abismo entre “os modos popular e erudito de ver o mundo da natureza”, principalmente devido à introdução das terminologias em latim. Segundo ele, o que influenciou a implantação desse método único de classificação na Inglaterra foram vários motivos: primeiro, o interesse em padronizar os nomes das plantas, substituindo suas nomenclaturas locais ou regionais em decorrência do crescimento do mercado nacional de plantas e flores. O segundo motivo deve-se ao fato de muitos dos nomes antigos possuírem conotação religiosa ou então serem considerados grosseiros.146

Na Inglaterra, o sistema lineano passou a ser aceito no início da década de

1760. Entre seus divulgadores podemos salientar o avô de Charles Darwin, Erasmus Darwin, que, em 1789, publicou um livro chamado “The loves of the plants”. A obra foi traduzida e publicada na França, em 1799. Nessa obra, um “poema erótico-botânico”, o autor faz

143 PRATT, Mary Louise. Op. cit. p. 56. 144 Linné apud PRATT, Mary Louise. Op. cit. p. 56. 145 Ibidem pp. 66-67. 146 THOMAS, Keith. Op. cit. pp 97-101. 92

analogias entre a fecundação das plantas a partir do número de estames e pistilos, a disposição destes nas plantas e se os estames e pistilos são visíveis ou não.147 Linné descrevia flores cujo estame e pistilo encontravam-se na mesma flor como “esposos que dormem na mesma cama”.

Além disso, as inúmeras variantes de flores encontradas na natureza possibilitavam outras metáforas: o número de estames era considerado o número de machos, que poderiam ser encontrados em quantidades variadas numa mesma flor; os estames inférteis eram chamados de eunucos; os pistilos femininos poderiam ser monogâmicos ou poliândricos, conforme a flor. Na botânica, o sistema de classificação artificial criado por Linné era baseado nos elementos da fecundação. A descrição do número de pistilos e estames, e a proporção e a situação nas quais se dava a polinização, era carregada de conotações sexuais, o que acarretou reações contrárias de setores da sociedade inglesa. Ao mesmo tempo que gerou reações escandalizadas, podemos pensar que através da botânica determinados grupos sociais poderiam falar de um tema que se tornara tabu: a sexualidade. A partir de 1810, o sistema lineano passa a perder espaço e a ser substituído por outros esquemas de classificação na

Inglaterra e em outros países.

A França também foi palco de reações contrárias ao sistema desenvolvido por

Linné. Seu principal contestador foi Georges Louis Leclerc, mais conhecido como Conde de

Buffon, nascido em 1707 em uma rica família burguesa e que ascendeu à nobreza. Iniciou seus estudos com os jesuítas e posteriormente dedicou-se ao direito, à medicina e à botânica.

Em 1739, Buffon ocupou o cargo de intendente do Jardin du Roi, atualmente Jardin des

Plants, onde localiza-se o Museum d’Histoire Naturelle. Essa instituição, a partir do século

XVIII, tornou-se o principal centro de estudos da natureza no país. Na direção do estabelecimento, esforçou-se para aumentar suas coleções através de contatos com estudiosos

147 Sobre este aspecto ver: CARNEIRO, Henrique. Op. cit. pp. 50-55. 93

de toda a Europa que lhe enviavam animais, plantas, minerais ou então informações sobre os estudos que estavam sendo desenvolvidos. Ampliou o número de alas do Jardin du Roi e conseguiu doações de coleções. Em 1748, Buffon anunciou seu plano de elaborar uma vasta obra, intitulada História Natural, geral e particular. O estudo teria como objetivo descrever a natureza inteira, desde os minerais até o homem. O plano previsto era escrever 15 volumes entre os anos de 1749 a 1789. Apesar de contar com vários ajudantes, não conseguiu cumprir o programa, uma vez que este exigia informações e conhecimentos não disponíveis na época.

Após sua morte foi publicado o sétimo e último volume. Os três primeiros volumes contaram com uma edição de 1.000 exemplares que esgotaram em seis semanas.148

A oposição entre Buffon e Linné em relação à classificação refere-se a diferentes regimes teóricos: enquanto Linné sustentava que toda a natureza poderia ser inserida numa taxonomia, Buffon a considerava muito rica, demasiadamente diversa, o que impossibilitava seu ajustamento a um quadro rígido.149 Para Linné, classificar é procurar as características gerais que permitem determinar grandes conjuntos diferenciados (classes) onde está inserida uma espécie, não em função de todas as suas propriedades, mas de algumas delas, que estão presentes nas outras espécies. No que se refere aos vegetais, suas características gerais são determinadas a partir dos órgãos de reprodução. Era sobre esse aspecto que se fundamentava a crítica de Buffon ao sistema lineano. Recusava-se a aceitar que, para classificar, devia observar somente algumas partes específicas dos vegetais e animais e não mais o conjunto. Além disso, Buffon defendia o princípio de que tudo o que existia na natureza deveria servir para a classificação dos corpos naturais: sua reprodução, seu nascimento, sua alimentação, seus costumes, o lugar de sua habitação, os serviços que eles podiam nos render, entre outros aspectos. Segundo Giulio Barsanti

148 DEL CAMPO, Angelina Martín. Introducción. In: BUFFON. Del Hombre: escritos antropológicos. 1º ed. francesa: 1749. Tradução: Angelina Martín Del Campo. México: Fondo de Cultura Econômica, 1986. pp.8-10. 149 FOUCAULT, Michel. Op. cit. 1992. p. 140. 94

a controvérsia aconteceu porque Linné considerava, de maneira mais restrita, o que é ‘verdadeiramente’ natural (quer dizer, fundamental, primeiro e essencial), ao contrário de Buffon que não considerava nenhuma propriedade natural como acessória, derivada, insignificante: Linné se dedicava a distinguir as qualidades primeiras das qualidades secundárias dos corpos, enquanto Buffon não o fazia.150

Outro estudioso que de certa forma contribuiu para a difusão do método de

Linné na França foi Antoine-Laurent de Jussieu. Em 1770 ele entrou no Jardin du Roi a fim de desenvolver seus estudos. Dois anos depois tornou-se doutor em medicina e, em 1773, apresentou um estudo sobre a família dos ranúnculos na Academia Real de Ciências.

Apoiando-se nos trabalhos de Linné, Bernard de Jussieu, seu tio, e de Adanson, Jussieu propôs uma nova forma de classificar, no qual determinou seis características que eram definidas a partir da frutificação, da semente, e que iria estabelecer a ordem ao qual pertenceria o vegetal. Na França, os métodos que eram utilizados naquele momento eram o de

Tournefort, que apesar de precisar de reforma, tinha bastante espaço nos meios científicos devido à influência de Bernard de Jussieu, Adanson e Buffon. O de Linné também era utilizado, devido principalmente a sua divisão em gêneros e a nomenclatura. O método proposto por A-L de Jussieu combinava as famílias naturais do método de Tournefort e a divisão em gênero e a nomenclatura de Linné. Nos anos de 1773-1774, o método foi adotado pela École de Botanique de Paris. Por esse método, a semente, e não mais o órgãos sexuais da plantas (pistilos e estames), passou a ser utilizada para definir o centro das divisões iniciais da ordem natural. As diferenças permitiam separar as plantas em três grandes ordens, posteriormente divididas em classes, gêneros e espécies. Em 1789, A-L de Jussieu publicou seu estudo intitulado Genera Plantarum, no qual estão estabelecidas 100 famílias (que ele chama de ordem) e 1754 gêneros; destes, 76 até hoje são usados. Mas sua grande contribuição foi a vulgarização do método natural na França. Além disso, apesar das críticas ao método de

Linné, também viu os pontos positivos que inclusive foram incorporados na criação de seu

150 BARSANTI, Giulio. Linné et Buffon: Deux visions différentes de la nature et de l’histoire naturelle. In: Revue de Synthèse. III.ªS. Nºs 113-114, Janvier-juin 1984. Paris: CNRS. p. 97. 95

método. No entanto, independente do método, fosse ele artificial como o de Linné, ou natural como o de Adanson e de Jussieu, todos eles supunham a fixidez das espécies. Isso somente vai ser superado com Lamarck.151

Em decorrência dos estudos de Linné, Buffon e outros cientistas, o campo do conhecimento da história natural passou a ser marcado por uma mudança na forma de olhar, ou seja, constituiu-se um novo campo de visibilidade. Aproximou-se o olhar e as coisas que são olhadas da linguagem, nomeando as coisas que são visíveis. A partir do século XVII, a observação das coisas passou a ser vinculada com a renúncia e a exclusão de outros conhecimentos. Privilegiou-se o olhar em detrimento dos outros sentidos, como o olfato e o tato. Como dizia Rousseau, para herborizar era necessário utilizar somente um instrumento, a lupa. A partir da difusão do sistema classificatório linneano, as viagens e seus relatos foram organizados de forma diversa. Fosse ou não um cientista, o viajante passou a ser influenciado pelos métodos de coleta e de estudo das plantas, principalmente devido ao fato da pesquisa científica ter se tornado mais popular, uma vez que qualquer um, após o estudo do sistema, poderia inserir as plantas em sua ordem ou classe, ou mesmo em seu gênero. Ao mesmo tempo em que ocorreu uma democratização do conhecimento científico entre os letrados, ocorreu a exclusão do conhecimento popular sobre as plantas e os animais, que era baseado essencialmente nas utilidades práticas que a natureza oferecia aos seres humanos.

Como uma tentativa para melhor compreendermos de que maneira a natureza e a história natural inseriam-se na sociedade francesa letrada, citaremos a obra escrita por Jean-

Jacques Rousseau, intitulada Os Devaneios do Caminhante Solitário. Trata-se de dez textos, iniciando com a Primeira Caminhada, escrita no outono de 1776, e encerrando em 12 de abril

151 DURIS, Pascal. Op. cit. pp. 139-155. 96

de 1778, com a Décima Caminhada. Em 2 de julho desse mesmo ano, Rousseau morre após ter realizado um de seus passeios matinais, quando aproveitava para coletar e herborizar plantas. Para ele, as caminhadas significavam um contato com o não-eu, a natureza, além de contribuir como um estímulo à meditação. Além disso, elas também eram motivadas pela busca interior do autor da plenitude de seu ser, “sem obstáculos e em que posso verdadeiramente dizer que sou o que desejou a natureza.”152 Dos dez textos, é o sétimo que nos interessa. Nesse texto, o tema são as observações e os relatos das atividades botânicas, às quais voltara a dedicar-se nos últimos anos de vida, após ter se desfeito de todo seu material de botânica.

Segundo Rousseau, a botânica é o estudo que melhor se adequa aos indivíduos solitários e ociosos, uma vez que, para observar as plantas, os únicos equipamentos necessários são um estilete e uma lupa. Para o autor, o hábito de procurar nas plantas somente drogas e remédios manteve afastada a atenção das pessoas de gosto do reino vegetal. O trabalho de Linné “retirou um pouco a botânica das escolas de farmácia para devolvê-la à história natural e aos empregos econômicos.”153 A coleta de espécimes vegetais ainda era relacionada à cura de doenças. Rousseau comenta que as pessoas que ele encontrava em suas andanças para coletar plantas o tomavam como ajudante de cirurgião e lhe solicitavam ervas para tratar doenças, tanto em seres humanos ou em animais.154 Essa confusão, por parte da população em geral, no que se refere ao trabalho realizado pelos viajantes e estudiosos da natureza, principalmente da botânica, também ocorreu no Brasil. Em sua passagem pela região de Garopaba, litoral sul de Santa Catarina, Auguste de Saint-Hilaire foi tomado como

152 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os devaneios do caminhante solitário. Tradução: Fúlvia Maria Luiza Moretto. 2 ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986. p. 31. 153 Ibidem . p. 94. 154 Ibidem. p. 94. 97

médico e forçado por uma mulher a ir até sua casa ver um doente, que se encontrava paralítico há muitos meses.155

O interesse difundido entre os europeus em relação à natureza, principalmente a botânica, conjugado com a política dos governos europeus de apropriar-se e controlar esse conhecimento, criou e ampliou a demanda por novas áreas e profissionais relacionados à

História Natural. Entre os novos campos profissionais, estavam os artistas especializados em botânica e zoologia, tipógrafos, cientistas coletores, entre outros. Também havia a necessidade de melhores meios de armazenamento e transporte do material coletado que era enviado para formar Jardins Botânicos abertos ao público. O interesse pela História Natural motivou uma maior demanda por obras que descrevessem as viagens empreendidas por países e regiões distantes. Era através dessas obras que se estabelecia a relação entre a ciência e o público em geral. Além da demanda do público europeu, outro motivo foi o interesse dos países do velho continente em fazer um “mapeamento sistemático da superfície do mundo” relacionado à necessidade de descobrir “recursos comercialmente exploráveis, mercados e terras para colonizar.”156 Um exemplo desse interesse, não tão inocente da busca de conhecimento, fica explícito na citação a seguir, que mostra qual era o objetivo da viagem empreendida por Auguste de Saint-Hilaire: “prestar à ciência e a seu país informações importantes sobre a flora e a fauna do Brasil, contribuindo para enriquecer o herbário do

Museu de Paris e descobrir plantas próprias à tintura para serem introduzidas na Guiana

Francesa.”157 Essa viagem, como as outras empreendidas no século XIX, tinha uma finalidade prática, um interesse econômico.

Na França, alguns fatores contribuíram para a aceitação do método criado por

Linné entre os cientistas. Além da utilização do latim, da concisão na forma de descrever e

155 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 192. 156 PRATT, Mary Louise. Op. cit. p. 65. 157 SAINT-HILAIRE apud. OLIVEIRA, Paulo Rogério Melo de. O Naturalista e os Selvagens: a visão de Saint-Hilaire sobre os índios Guarani no Rio Grande do Sul. Florianópolis: Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. CFH/UFSC. 1996. p. 25. 98

nomear as espécies naturais, outro fator foi a eclosão da Revolução Francesa, em 1789. Com ela, a autoridade intelectual de Buffon, seu principal opositor e intendente do Jardin du Roi, passou a ser questionada pelo poder instituído, devido a sua vinculação com o antigo regime.

O método desenvolvido por Linné é divulgado como uma alternativa a Buffon. Conseguiu uma maior aceitação entre os revolucionários e também de alguns profissionais da ciência, como os anatomistas, os químicos, os matemáticos e os mineralogistas. A partir de 1818, a obra de Linné conhece um grande sucesso, devido principalmente à multiplicação das

Sociedades Linneanas na França e no mundo.158

A utilização da obra Systema Naturae difundiu-se entre cientistas e amadores no estudo da botânica. Rousseau, em suas caminhadas, quando ficou hospedado no Lago de

Bienne a utilizava a fim de descrever as plantas encontradas em seus passeios matinais pela ilha.159 Entre os cientistas que utilizavam o Systema Naturae em seus estudos e no trabalho de descrição e catalogação de novas espécies vegetais temos Alexandre Rodrigues Ferreira.

Luso-brasileiro, nascido na Bahia, em 1756, faleceu em Lisboa, em 1815. Estudou filosofia natural em Coimbra e foi membro da Academia de Ciências de Lisboa, encarregado pela

Coroa Portuguesa de realizar uma expedição científica pela região do Rio Amazonas. Entre os anos de 1783 e 1793, estudou a flora e a fauna da colônia portuguesa na América do Sul, coletou material a fim de montar uma coleção de espécimes naturais, depositada na Academia de Lisboa. Além disso, fez importantes anotações sobre os costumes e hábitos da população da região. Suas anotações de viagem foram publicadas com o título Viagem Filosófica pelas

Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (1783-1793). O material coletado na viagem foi furtado pelas tropas de Napoleão Bonaparte quando estas invadiram

Portugal, e levadas para o Museu de História Natural de Paris. É importante lembrar que o interesse em relação às riquezas naturais da América Portuguesa era grande, principalmente

158 DURIS, Pascal. Op. cit. pp. 28-30. 159 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Op. cit. p. 73. 99

porque a região era protegida pela Coroa, que, com raras exceções, limitava a entrada de expedições científicas de outros países da Europa.

4.2. A natureza e os habitantes do Novo Mundo

Outro ponto de intensos debates e divergências entre os estudiosos europeus referia-se à imagem, fosse ela negativa ou positiva, que foi construída sobre o Continente

Americano e seus habitantes. As primeiras descrições da natureza americana surgiram a partir dos primeiros contatos dos europeus com a nova região. Entre elas, salienta-se os escritos de

Gonzalo Fernández de Oviedo, Padre Acosta, Herrera e Padre Cobo, que vieram a público nos séculos XVI e XVII. O tema, no entanto, continuou gerando discussão, na qual estiveram envolvidos detratores e admiradores da natureza americana. A polêmica tornou-se mais intensa entre os anos de 1750 e 1900. Nela estiveram envolvidos, diretamente ou não, cientistas, religiosos, filósofos, literatos, entre outros. Muito material foi escrito, muitos debates foram travados, com direito à réplica e até tréplica, como foi o embate entre De Pauw e Pernetty, na França do século XVIII.

Essas vozes e penas digladiando-se publicamente foi tema de pesquisa do estudioso italiano Antonello Gerbi, editado em português com o título de O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750 - 1900). Uma primeira versão desse trabalho foi publicado em 1943, em Lima. Posteriormente, em 1955, foi publicada na Itália uma outra edição, com inúmeros acréscimos e com outro título: La disputa del Nuovo Mondo: storia di una polemica: 1750-1900. Novas edições, novos acréscimos e, em 1996, o livro foi traduzido e 100

editado no Brasil. Tomando como base esse trabalho discutiremos, na seqüência do texto, as idéias e teses que eram debatidas nos meios científicos europeus sobre a América e os americanos. Esta discussão justifica-se, uma vez que nos relatos dos viajantes que estão sendo analisados, entre os assuntos tratados encontram-se descrições da natureza e dos habitantes da

América, mais especificamente, do litoral de Santa Catarina. Como já discutimos anteriormente, os viajantes estavam inseridos num meio intelectual e seu olhar é determinado por uma infinidade de referências, de teorias, sobre as quais ele formula seu próprio discurso.

Dessa forma, os relatos de viagens não podem ser entendidos como uma peça discursiva independente, mas como uma espécie de encruzilhada onde se cruzam uma multiplicidade de discursos.

No século XVIII difundiu-se pela Europa a tese da “debilidade” ou

“imaturidade” das Américas. Segundo Antonello Gerbi, a tese nasceu com Buffon, a partir de sua leitura dos relatos de viajantes que haviam visitado a América, uma vez que ele nunca havia empreendido esta viagem. O estudioso defendia que não existiam espécies que possuíam cidadania americana. Para ele, os animais que aqui viviam eram formas degeneradas dos animais que existiam no Velho Mundo. Entre eles, cita como exemplo, a puma e a anta. Enquanto a puma era entendida como uma degeneração do leão, uma vez que era desprovida da juba, a anta era considerada como uma forma debilitada do elefante. Em sua opinião, a experiência mais conclusiva era o que ocorria com os animais domésticos que, transplantados do Velho para o Novo Mundo, acabavam diminuindo de tamanho, com exceção do porco. Outros pontos que utiliza para referendar sua tese sobre a América é a presença de animais pequenos em abundância, o “estado bruto da natureza” e a umidade, comprovada pelo “aspecto pantanoso da paisagem”.

Entre todos esses aspectos, a imagem da América como um continente encharcado difundiu-se e pode ser encontrada na fala de viajantes do século XIX, como 101

Auguste de Saint-Hilaire. Segundo ele, a cidade de São Francisco do Sul, localizada ao norte da Capitania de Santa Catarina, era infestada de mosquitos por causa das matas que a cercavam e também devido à presença de água empossada e brejos.160 Segundo Buffon, a umidade, o clima quente, a vegetação espessa, tudo isto contribuía para a proliferação de répteis, insetos e outros animais de sangue frio. Esses últimos são “as espécies de animais que se arrastam no lodo, cujo sangue é água, e que pululam em meio a podridão” e que “são mais numerosos e maiores em todas as terras baixas, úmidas e pantanosas do Novo Continente.”161

Para ele, a natureza da América era possuidora de répteis e insetos em demasia, o que ocorria devido ao clima, à qualidade da terra, às condições do céu e principalmente ao estado bruto em que a natureza se encontrava na região. Tudo isto, somado ao aspecto pantanoso da natureza, resultava numa paisagem que, “úmida e prolífica mãe de animaizinhos minúsculos e malvados, privada de feras magnânimas, devia apresentar aos olhos de Buffon todos os sintomas de uma repugnante debilidade orgânica.”162

Outro aspecto de sua teoria é a tese de que as espécies grandes eram mais perfeitas e estáveis do que as espécies pequenas. Buffon partia do princípio de que o grande era “melhor” do que o pequeno, que os animais maiores eram superiores e que a força física era um atributo das espécies mais perfeitas. Essa visão aponta para os motivos do estudioso desqualificar os índios devido a sua debilidade física. Além do grande ser superior ao pequeno, o fixo era superior ao mutável e o grande era mais fixo do que o pequeno. Para ele,

“alterar-se equivale a decair”, o que significava que o estável, o fixo, era superior ao variável.

Buffon é herdeiro de um pensamento tão antigo como Aristóteles, que dizia que a espécie não muda, e que tem algumas relações com o pensamento corrente na Idade Média, que via toda alteração no curso natural, fosse ela através do nascimento de indivíduos monstruosos ou

160 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 143. 161 BUFFON apud. GERBI, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). Tradução: Bernardo Joffily. 1º ed. 1955. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 23. 162 GERBI, Antonello. Op. cit. p. 24. 102

então qualquer outro acontecimento incomum, como o prenúncio de catástrofes. Essas explicações defendidas por Buffon geraram oposições e discordâncias, como por exemplo a opinião expressa por Diderot, que não concordava com o emprego dos conceitos “grande” e

“pequeno”. Para ele, sua utilização era perigosa para a compreensão da realidade e, além disso, a medição levava ao erro. Posteriormente, com o desenvolvimento de zoologia moderna, e de nova classificação zoológica, desenvolvida por Georges Cuvier, a consideração métrica dos animais foi considerada como um dos primeiros erros a serem superados.163

Na teoria de Buffon estava presente a tendência do século XVIII de estabelecer relação rígida, casual, entre o vivente e o natural, a criatura e o ambiente. No entanto, ele não se incluía no grupo dos “sistemáticos”, influenciados por Linné, contra os quais manifestava sua desconfiança. Este grupo de estudiosos, em vez de observar o tronco, o aspecto, as folhas, observava, “de microscópio em punho”, exclusivamente “os estames e, caso não se possa ver os estames, nada se sabe, nada se viu.”164 Essa era a discordância de Buffon em relação ao sistema de classificação desenvolvido por Linné. Isso não significa que o autor não partilhava, como os seguidores de Linné, da exigência de classificar, ordenar, e “sistematizar” a natureza.

Os cientistas que pensavam a natureza também refletiam sobre os seres humanos. Buffon, em 1749, publicou sua História Natural do Homem, parte que integra os três primeiros volumes da Historia Natural, Geral e Particular. Nessa obra discutiu o lugar ocupado pelo homem no mundo, e o posicionou no centro da natureza e do conhecimento. O homem, entendido como ser único e superior, numa escala de importância, antecedia os animais domesticados que, por sua vez, eram considerados superiores aos animais selvagens e carnívoros, os quais se submetiam às leis da natureza. Para ele, a superioridade do ser humano em relação aos outros animais lhe permitia ser o amo destes, uma vez que eram desprovidos da capacidade de pensar. Partia de um princípio fundamental de que o homem era distinto das

163 Ibidem. pp. 33-37. 164 Buffon apud GERBI, Antonello. Op. cit. p. 31. 103

outras espécies e que possuía uma unidade fundamental que era a faculdade de pensar, de produzir idéias. A partir da utilização dessa faculdade, Buffon fez sua distinção entre os homens. Existiam os estúpidos, os selvagens e os civilizados. Em primeiro lugar estava o homem civilizado que vivia em regiões de clima temperado. Para ele, os seres humanos eram idênticos, faziam parte da mesma espécie, saíram do mesmo molde e as distinções existentes eram devido às diferenças de clima, da alimentação e dos costumes. Esses podiam ser divididos em europeus, chineses, negros e americanos, com suas respectivas variantes. As variantes referiam-se à cor da pele, à forma e ao tamanho dos indivíduos, bem como a maneira de ser dos diferentes povos.165 Buffon não foi o único a escrever sobre os seres humanos, dando especial atenção aos americanos. Outros autores também se debruçaram sobre esse tema. Segundo Michèle Duchet, o pensamento de Buffon fundamentava-se na crença de que a história possuía um sentido que entendia o estado de civilização como seu fim natural. A partir dessa perspectiva, a permanência do homem no estado selvagem remetia à falha, à ausência essencial em relação aos outros seres humanos que já teriam percorrido este processo.166

Seguindo as teses sobre a debilidade da América e dos americanos, no início da segunda metade do século XVIII, foi publicado em Berlim a obra do Abade Corneille de

Pauw167, que radicalizou as teorias em voga sobre o tema. Típico enciclopedista, atacava os jesuítas e a religião, tinha uma firme crença no progresso e “ausência completa de fé na bondade natural do homem.”168 O homem somente tinha a possibilidade de se aperfeiçoar se estivesse inserido na sociedade e, para ele, os homens americanos ainda se encontravam em estado natural, ou seja, eram considerados brutos. No entanto, mais do que um animal

165 Para aprofundar as teorias do Conde de Buffon sobre os seres humanos ver: BUFFON, Georges Louis Leclerc, Conde de. Del Hombre: escritos antropológicos. Tradução: Angelina Martín del Campo. México: Fondo de Cultura Económica. 1986. 166 DUCHET, Michèle. Op. cit. 1995. p. 20. 167 De Pauw possuía cidadania francesa, mas sua origem é tema de discussões. Alguns autores dizem que nasceu em Amsterdam, outros na região da Alsácia. Viveu durante algum tempo na corte de Frederico II, tendo morado em Berlim e em Postdam. 168 GERBI, Antonello. Op. cit. pp. 59-60. 104

imaturo, os americanos eram degenerados e a natureza da América não era imperfeita, mas decaída e decadente. Seu estado era selvagem, sem possibilidade de sair dele. Em seu furor antiamericano, ele falava deles como crianças incorrigíveis e também como velhos precoces.

De Pauw retomou a tese sobre a fraqueza dos indígenas e os condenou como imorais, fracos, ociosos e, desta forma, débeis e desfibrados.

Em seu ímpeto degenerador, De Pauw chegou a conclusões absurdas, como o que falou sobre os Incas e suas cidades. Discordou e negou o que Garcilaso169 escreveu sobre a cidade de Cuzco, dizendo que esta não passava de “um amontoado de pequenas cabanas” que foi completamente destruída pelos espanhóis. Dos Incas, dizia que, enquanto alguns não sabiam ler e escrever, outros não sabiam falar. Segundo ele, tudo enfraquecia na América, até o ferro, o pouco que se achava por aqui era mole e não servia para nada.170 Mas se algo degenera, é porque em algum momento foi melhor. O que levou a essa desgraça o próprio De

Pauw não conseguiu responder a contento. Recorreu a fatores naturais, como o clima, mas também a catástrofes, como tremores de terra, inundações, entre outros flagelos. A tese do dilúvio, baseada nos ensinamentos bíblicos, também foi utilizada por ele para explicar a degeneração do Novo Mundo. Essa degeneração teria sido resultado de um dilúvio, não aquele do Gênesis, mas um outro que ocorreu somente na América, e que de certa forma historicizou a tese de Buffon sobre o continente encharcado. Seu sistema de explicação tinha como base a relação clima/homem versus inanimado/animado. O homem americano não era distinto apenas do homem do Velho Mundo. Por natureza, os homens americanos se distinguiam entre si devido a sua estupidez e a uma ausência total de costumes que não eram encontrados em nenhuma outra parte. Totalmente submetidos à influência do clima, os costumes atrozes ou bizarros encontravam-se em todos as tribos: grosseria, superstições, torturas e antropofagia. Para De Pauw o homem selvagem era um homem sem costumes, sem

169 Garcilaso de la Vega, o Inca. Escreveu Comentarios Reales de los Incas. Também escreveu o Prólogo da Historia Generale del Peru publicada em 1617. De Pauw discordava de suas conclusões sobre os Incas. 170 GERBI, Antonello. Op. cit. p. 56. 105

modos e sem razão, sendo igual em todo lugar. Essa universalidade atestou sua estreita dependência em relação ao meio físico e ao clima. A percepção de que alguns grupos de seres humanos no interior da espécie eram degenerados “disfarça um racismo latente, mas de aparência científica, que encontra, neste caso, na diferença máxima que separa o mundo selvagem do mundo civilizado, uma aparência de justificação.”171

Segundo Michèle Duchet, a obra de De Pauw intitulada Les Recherches philosophiques sur les Américains ocupa um lugar a parte no campo constituído pela história natural ou moral e a ciência do homem na segunda metade do século XVIII. No centro do sistema elaborado por De Pauw estava a relação dominante clima/homem versus inanimado/animado. Os efeitos do clima sobre o físico e a moral da raça americana levavam à degeneração, à depravação e ao reduzido crescimento populacional, o que acabou por favorecer a conquista efetivada pelos europeus. No campo moral, salientou a preguiça, que não permitia que os americanos inventassem ou empreendessem algo. Apesar de referir-se às diferenças entre os tipos americanos, para De Pauw estas eram pouco importantes, não chegando a colocar dúvida sobre suas conclusões: o novo mundo era outro mundo e seus homens possuíam uma natureza diferente. Coletivamente, os americanos eram um “povo- criança” que, despossuídos de inteligência e aperfeiçoamento, não poderiam percorrer os diferentes estados de desenvolvimento e, desta forma, sair do estado de natureza em que se encontravam. De Pauw encontra-se entre os estudiosos que rejeitam as informações dos viajantes sobre os peruanos (incas) e os mexicanos (astecas). Ou seja, aos americanos era negada a possibilidade de ser histórico. Ao contrário do Buffon, o estudioso optou por uma história longa para a América, sendo a natureza a principal causa ativa. Em suma, a degeneração do americano não era um processo, mas um estado original de onde eles não sairiam. A natureza o condicionava a não ter outra “história”. Seu estado era o selvagem, sem

171 DUCHET, Michèle. Op. cit. 1995. p. 18. 106

possibilidade de sair dele.172 As teses de De Pauw contribuíram para o questionamento da tese do bom selvagem, apesar de ter suscitado reações imediatas de inúmeros defensores da missão civilizadora do cristianismo, dos avanços possibilitados pelo governo europeu e pelo comércio no progresso da América e, consequentemente, da sua população.

Entre os opositores a essas teses, o mais enfático foi o abade beneditino

Antoine Joseph Pernetty. Utilizou como base de sua reflexão o fato de tanto De Pauw como

Buffon não terem estado na América e, portanto, não terem conhecido a realidade e a população da qual eles estavam falando. Ele, ao contrário, havia visitado a América e conhecera pessoalmente o tema em discussão. Segundo Gerbi, a obra de De Pauw, “de tom por demais acre e sarcástico, deveria atingi-lo, seja em seu entusiasmo pelo bom selvagem e a natureza virgem, seja em suas tendências religiosas e humanitárias.”173 Em 1769, Pernetty leu sua primeira refutação na Academia de Berlim, publicando um ano depois sua Dissertation sur l’Américains, contre les Recherches philosophiques de mr. De Pauw. Baseando-se na teoria filosófica de Rousseau, salientou a bondade, a robustez, a sapiência e a laboriosidade dos indígenas. Além disso, utilizou-se da autoridade de quem esteve na América e viu com seus próprios olhos para recusar as teses que denegriam a América e seus habitantes. Citou como exemplo os gigantes da Patagônia, para ele o argumento vivo contra a tese da degeneração americana. Comentários sobre a existência de gigantes na América podem ser encontrados em outros autores, como Américo Vespúcio, Pingafetta e o Padre Acosta. Apesar de sua presença ser ridicularizada, estudiosos do século XVIII, como Rousseau, Voltaire e mesmo Buffon, eram partidários na crença de que os patagônios eram detentores de uma envergadura elevada, sendo considerados os gigantes da América. A presença deles era

172 DUCHET, Michèle. Le partage de savoirs: discours historique, discours ethnologique. Paris: Éditions la découverte, 1985. pp. 82-104 173 GERBI, Antonello. Op. cit. p. 79. 107

recusada por estudiosos como Diderot e o abade Raynal, que diziam que gigantes existiam em todos os lugares.174

Para defender a América dos ataques contra sua natureza, Pernetty citou produtos que eram originários da América e que faziam sucesso na Europa, como o açúcar, o cacau, as madeiras nobres etc.. Além disso, lembrou a existência de ursos enormes encontrados no norte da América, das feras da selva do Brasil, dos tigres do Paraguai, tão grandes quanto os do continente africano. Concordou que alguns animais domésticos haviam degenerado em terras americanas, mas não aceitou que se generalizasse uma conclusão a partir de um fato particular, como fazia De Pauw. Além disso, Pernetty viu na região do Prata touros, cabras, ovelhas e cavalos do mesmo tamanho ou maiores do que os encontrados na

Europa. No entanto, no seu afã de defendê-los, acabou caindo no outro extremo, ou seja, idealizar o selvagem denegrindo o europeu.175 A polêmica estendeu-se com a réplica de De

Pauw publicada em março de 1770 e a tréplica de Pernetty, publicada no ano seguinte, em

1771. Outros pensadores acabaram entrando no debate. Entre eles podemos citar La Doucer,

Paolo Frisi, Deslile de Sales, Abade Roubaud, Galiani, entre outros. O debate e as conclusões exageradas defendidas por De Pauw acabaram influenciando em mudanças nas conclusões defendidas por alguns estudiosos, como o próprio Buffon. Em 1777, ele publicou um estudo no qual deixava de lado suas teses degenerativas e passava a defender que a América era um continente jovem e, consequentemente, imaturo. Os americanos não eram ativos como os europeus, mas, após os ataques de De Pauw, deixaram de ser impotentes e débeis.176

Devido a sua influência sobre os viajantes do século XIX, entre eles Auguste de Saint-Hilaire e Louis Choris, é necessário falar sobre a posição de Alexander von

Humboldt na polêmica sobre a América e os americanos. Humboldt viajou pela América

174 Ibidem . pp. 79-81. 175 Para saber mais sobre esta polêmica que se estendeu por vários anos ver: GERBI, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). Tradução: Bernardo Joffily. 1º ed. 1955. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 176 GERBI, Antonello. Op. cit. pp. 130-131. 108

durante 5 anos, de 1799 a 1804. Suas viagens e os posteriores investimentos a fim de tornar público seus estudos consumiram sua fortuna pessoal. Em 1807, publicou Quadros da

Natureza, o primeiro de muitos textos escritos após a viagem a América. Sua produção estendeu-se até a sua morte, em 1859, totalizando 30 volumes, entre eles seu trabalho mais importante, Kosmos. Nessa obra ele definiu sua doutrina sobre o cosmos, entendida como a relação entre a terra e o céu, a ação conjunta das forças do universo. Essa compreensão o levou a analisar o particular inserido no todo. Humboldt não fez comparações entre a América e o Velho Mundo, mas investiu no aprofundamento do conhecimento dos organismos em sua relação com os ambientes e com o universo. Foi o responsável pela difusão dos estudos sobre a geografia das plantas, que estuda a distribuição das mesmas como um processo evolutivo.177

Suas idéias difundiram-se também através de palestras e devido a sua influência entre os cientistas, tanto da França, onde morou por vários anos, como na Prússia.

Humboldt refutou a tese da juventude da América e enfatizou a harmonia, buscando

“compreender cada organismo e cada ambiente em si e em suas relações com o universo.”178

Diferentemente de Buffon e De Pauw, era um estudioso preocupado com a coleta e a observação dos materiais. Diferia também de Linné ao valorizar a observação das espécies em seu ambiente natural e em suas relações com as outras espécies que as cercam, na busca por

“uma visão orgânica do mundo”, muito influenciado por uma “ânsia romântica de totalidade.”179 Segundo Gerbi, sua postura na polêmica sobre o Novo Mundo e seus habitantes foi ambígua. Por um lado aceitava a tese da decadência, enquanto por outro rejeitava totalmente as teses degenerativas de De Pauw. Para ele, o selvagem havia, por vários motivos, embrutecido e se barbarizado. Discordava da tese de ser ele um primitivo, mas sim de que

177 As informações sobre Alexander von Humboldt foram extraídas dos seguinte livros: LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Ed. Hucitec/FAPESP, 1997.; GERBI, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750- 1900). Tradução: Bernardo Joffily. 1º ed. 1955. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. pp. 130-131. MOREIRA LEITE, Miriam Lifchitz. Livros de Viagem 1803/1900. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. 178 GERBI, Antonello. Op. cit. p. 310. 179 Ibidem . p. 308. 109

havia ocorrido uma decadência a partir de uma condição mais elevada de civilização.

Devemos salientar que Humboldt, como os outros pensadores, estava se referindo aos povos da América no século XVIII, ou seja, após mais de dois séculos de colonização européia. O estudioso aproveitou para refutar a possibilidade de primitivismo e colocou dúvidas sobre o valor da civilização. Seu objetivo não era fazer comparações, fossem estas quantitativas ou qualitativas, entre os dois hemisférios, mas sim “compreender cada organismo e cada ambiente em si e em suas relações com o universo.”180 Sua participação na disputa sobre a natureza da América e dos americanos foi, segundo Gerbi, “algo marginal”, e seus escritos não foram motivados, a priori, por este debate. No entanto, seus textos enalteciam a natureza do novo continente, uma natureza que estava em constante movimento, dramática, extraordinária, que fugia ao alcance do conhecimento e do intelecto dos seres humanos. Sua grandeza apequenava o homem, incapacitando-o de torná-la acessível através do recurso da coleta e classificação. Uma natureza tão exuberante que, ao mesmo tempo em que excitava as paixões, dificultava a capacidade de percepção do homem. Segundo Mary Louise Pratt,

Humboldt foi o responsável pela reinvenção da América do Sul antes de tudo enquanto natureza, descrevendo-a, como outros cronistas do século XVI, entre eles Colombo e

Vespúcio,

como um mundo primitivo de natureza, um espaço devoluto e atemporal ocupado por plantas e criaturas (algumas delas humanas), mas não organizado em sociedades e economias; um mundo cuja única história era aquela prestes a se iniciar. Seus escritos também retratavam a América em meio a um discurso de acúmulo, abundância e inocência.181

As discussões em relação a esta nova área do conhecimento - a História

Natural - e principalmente como seu método de estudo foi desenvolvido e delimitado, é importante para analisarmos como os cientistas viajantes desenvolveram uma nova forma de olhar para as coisas e de sistematizar os novos conhecimentos e objetos com os quais tiveram

180 Ibidem . p. 310. 181 PRATT, Mary Louise. Op. cit. pp. 220-221. 110

contato nas regiões para onde eles viajaram. No final do século XVIII e início do século XIX, o olhar europeu para a “natureza profissionalizou-se, almejando legitimidade e precisão científicas, e, ao mesmo tempo, proporcionou deleite, alimentando a curiosidade européia por cenas exóticas.”182

182 MARTINS, Luciana de Lima. Op. cit. p. 9. 111

5. Descrevendo a Natureza de Santa Catarina

Os viajantes tinham como motivação para realizar suas viagens o estudo da natureza local. Como ela foi descrita? De que maneira as concepções de natureza que estavam sendo discutidas na Europa influenciaram na forma como a região do litoral de Santa Catarina foi vista e traduzida posteriormente nos relatos publicados? A cultura e a formação profissional fez com que esses viajantes tivessem uma forma distinta de olhar, como já analisamos anteriormente. Além disso, temos a questão da viagem, que possibilitava aos indivíduos nela envolvidos experiências de estranhamento. Mas esse estranhamento não decorre somente da posição do viajante em relação ao meio em que ele se encontrava, ao seu entorno, mas também pela interioridade que era marcada pelo tempo. Para Sérgio Cardoso, a experiência do viajante

nos faz mais profundamente compreender é que, o “outro”, só o alcançamos em nós mesmos, que o “estranho” está prefigurado no sentido aberto do nosso próprio mundo, inscrito no fluxo e no movimento da sua temporalidade. Compreendemos por ela que o “estrangeiro” está sempre já delineado nas brechas da nossa identidade, na trilha aberta por nossa própria indeterminação.183

As teses sobre a natureza e o homem americano foram amplamente discutidas na Europa e contribuíram para a formação de um olhar prévio dos viajantes que vieram para a

Capitania de Santa Catarina. Além disso, essas imagens e representações não circulavam somente entre os cientistas, mas, de certa forma, também chegavam ao restante da população.

O conhecimento prévio, adquirido pelas leituras de outros autores, acabava gerando

183 CARDOSO, Sérgio. O olhar viajante (do etnólogo). In: NOVAES, Adauto (org.). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 360. 112

expectativas, como a demonstrada por Langsdorff quando esteve no Brasil pela primeira vez.

Deixou registrado que, antes de iniciar as explorações em terra firme, estava

excitado por tão belas imagens de minha fantasia, mal podia aguardar o retorno do sol para visitar a região paradisíaca. Confesso que minhas idéias eram exageradas e tensas, mas apesar disto, quanto mais eu me aproximava da terra, a realidade excedia minha expectativa.184

A imagem da América que esse viajante tinha gravada em mente era de “uma terra que foi agraciada pela natureza em todos os sentidos, uma terra onde tudo viceja com inexcedível beleza e garbo imagináveis.”185 Outros viajantes também acreditavam que a natureza do Novo Mundo era privilegiada, que nesse continente não era necessário trabalhar como no Velho Mundo, que os alimentos cresciam por si mesmos, sem a intervenção do homem, sem seu trabalho. Pernetty, após falar que os habitantes da Ilha de Santa Catarina viviam na ociosidade, uma vez que o “pouco trabalho” era feito pelos escravos, concluiu que

“a terra produz quase tudo o que é necessário para viver, sem que se dêem ao trabalho de cultivá-la.”186 Mesmo vendo e escrevendo sobre a presença e o trabalho dos escravos em terras americanas, Pernetty afirmou que nesta região não era preciso trabalhar, devido a generosidade da natureza. Esse aspecto foi salientado por Sérgio Buarque de Holanda em seu estudo sobre a edenização do Brasil no período de seu descobrimento e colonização. O autor mostra na pesquisa que a América foi retratada como uma cópia do Éden pelos primeiros visitantes, mas esta imagem foi construída em oposição à imagem que os europeus tinham de sua própria terra, a Europa:

Enquanto no Velho Mundo a natureza avaramente regateava suas dádivas, repartindo-as por estações e só beneficiando os previdentes, os diligentes, os pacientes, no paraíso americano ela se entregava de imediato em sua plenitude, sem a dura necessidade - sinal de imperfeição - de ter de apelar para o trabalho dos homens. Como nos primeiros dias da Criação, tudo aqui era dom de Deus, não era obra do arador, do ceifador ou do moleiro.187

184 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 162. 185 Ibidem. p. 162. 186 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 83. 187 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. 5º ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. Prefácio, p. X. 113

Outro aspecto que surpreendeu os viajantes foi a exuberância e a imponência da natureza da América. Para Chamisso, “na Ilha de Santa Catarina, o europeu fica envolvido em uma nova criação cuja abundância em tudo é gigantesca e deslumbrante.”188 Lesson também salientou este aspecto:

Florestas espessas, frondosas, impenetráveis muitas vezes, atapetam as montanhas; [...] o naturalista que visita este litoral com os olhos exclusivamente habituado à criação das zonas temperadas da Europa, não se pode furtar, à vista da produção brasileira, de uma emoção tanto mais forte, que ela sobrepuja ainda à que sua imaginação lhe prometia, após as relações de viagem que ele tivesse lido. Nos primeiros dias ele pode apenas se familiarizar com esta pompa e esta grandeza que por toda a parte se mostra ao olhar. Somente algum tempo depois é que ele se habitua a este luxo de vegetação e ao brilhante adorno dos pássaros ou dos répteis que pululam sobre este solo fecundo.189

A exuberância da natureza americana era entendida em contraposição à da

Europa. Nossa singularidade era vista e compreendida quando em relação com o conhecido, o habitual, ou seja, a natureza européia. E muitas vezes, apesar de nossa riqueza e de nossa imponência natural, a América saía perdendo nas comparações, como podemos observar na fala de Chamisso: “ainda que a América não possa concorrer com as gigantescas espécies animais do Velho Mundo, desde o elefante até a cobra Boa, na natureza brasileira é a variedade e a quantidade que equilibram a falta.”190 Podemos relacionar a fala de Chamisso, que esteve na América em 1815, com as teorias difundidas no século XVIII por Buffon, que defendia que os animais maiores são superiores ao menores. A ausência de animais de grande porte na América, sinal inegável da imaturidade de nossa natureza para os partidários das teorias buffonianas, acrescenta-se a presença abundante de insetos, que faz com que “os brasileiros sofrem das incomodidades de todos os países quentes, atormentados pelos insetos, de cuja picada não podem evitar devido à pequenez de seus tamanhos.”191 A combinação, ausência de grandes espécies de animais e excesso de insetos minúsculos, para os detratores

188 CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 232. 189 LESSON, René Primevère. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. Op. cit. p. 271. 190 CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 232. 191 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 88. 114

da América, é a comprovação de sua imaturidade, quando não de sua degeneração, como já comentamos anteriormente.

Os viajantes que aqui estiveram tinham contato com as discussões que circulavam pela Europa sobre a América. A análise dos relatos dos viajantes possibilita aprofundarmos como essas teorias os influenciaram. Auguste de Saint-Hilaire, por exemplo, descreveu a natureza da Capitania de Santa Catarina de forma ambígua. Em alguns momentos, ou regiões, o clima era agradável, a vegetação exuberante e a terra, fértil. Em outros, a paisagem tornava-se monótona, com locais insalubres. No entanto, apesar de mostrar que a natureza tropical não era homogênea e que havia regiões idílicas, mas também áreas insalubres, Saint-Hilaire continuava pensando que, em um país localizado em “um clima tão quente e em região tão fértil”, os seus habitantes não precisariam “trabalhar tanto quanto na

Europa.”192 Esses discursos eram muito comuns entre os viajantes. A dualidade presente nos comentários dos viajantes remete as discussões sobre a América. Após séculos da chegada dos primeiros europeus no Novo Mundo, não existia consenso entre os filósofos e estudiosos quando se trata em definir a natureza da América e as características de seus habitantes.

Apesar de terem posições definidas antes de partirem da Europa, a experiência pela qual estavam passando não lhes deixou imune. Uma experiência que foi relembrada quando da escrita do relato, alguns anos após a viagem e já na Europa.

Georg von Langsdorff também acreditava que no Novo Mundo a “natureza tudo dá, mesmo sem esforço ou assistência e trato.”193 Segundo ele, o pouco desenvolvimento não era devido à geografia ou ao clima, mas sim à ausência de empenho do governo em povoar melhor essas regiões. Dessa forma, “poder-se-ia formar aqui, através de seus produtos que quase jorram livremente da cornucópia da livre natureza, em poucos anos, um dos centros

192 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 149. 193 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 163. 115

comerciais mais importantes do Brasil.”194 A riqueza, para esses viajantes, não era produzida com o trabalho dos homens, geralmente com a utilização do trabalho escravo, mas “jorrava livremente”.

A fim de melhor descrever o que viam em suas viagens por terras distantes e desconhecidas, os viajantes utilizavam-se da relação entre o semelhante e o diferente, normalmente sendo tomados como padrão o conhecido, o familiar, ou seja, a Europa e sua cultura. Isso era feito tendo em vista que os relatos de viagens seriam lidos por pessoas comuns. Não tão comuns se levarmos em consideração o número restrito de pessoas que tinham acesso à instrução e à leitura na Europa do final do século XVIII e início do século

XIX. Essas pessoas não estavam vinculadas as instituições científicas, mas muitas delas se dedicavam ao estudo da História Natural por diletantismo, moda muito difundida naquele período. O discurso dos viajantes, ao mesmo tempo que tentava definir uma identidade para a população e a sociedade americana, também reforçava, por oposição, uma identidade para a

Europa e seus habitantes.

Como analisamos no capítulo anterior existia uma dicotomia entre o Velho

Mundo e o Novo Mundo. Mas distinções não ocorriam somente entre a Europa e a América, também estavam postas no interior do próprio continente europeu. A sociedade européia nos fins do século XVIII e século XIX era vista como uma sociedade dividida entre “duas nações”: de um lado os ricos-civilizados e no outro lado os pobres-selvagens. Nesse sentido, alguns países, como a França, a Inglaterra e a Prússia se viam como superiores em relação aos outros países, principalmente aqueles localizados às margens do Mar Mediterrâneo, como a

194 Ibidem. p. 163. 116

Itália, a Espanha e Portugal. Era corrente entre os letrados da época a divisão entre duas formas de existência: a instintiva versus a racional. Existia a noção de que, quando mais se desenvolvesse a razão, mais a parte instintiva tendia a recuar. Por essa concepção, o pobre, devido às condições e ao meio em que vivia, era degradado física e moralmente.195 O entendimento de que o avanço da civilização somente ocorreria com o recuo da natureza selvagem também pode ser percebido nas falas dos viajantes que estiveram em Santa

Catarina. Para eles, a natureza da América era um dos fatores que não permitia, ou retardava o

“progresso” de seus habitantes, quando não era diretamente responsável pelo desenvolvimento de homens doentes, uma vez que eles compartilhavam da noção de que o meio e as condições no qual estavam inseridos os seres humanos contribuíam de forma decisiva no seu desenvolvimento material e moral.

Pernetty iniciou a segunda parte do seu relato falando que “falta alguma coisa para que a Ilha de Santa Catarina seja uma moradia encantadora”. A atmosfera carregada de vapores que, com dificuldade, eram dissipados pelo sol e pelo vento, juntamente com os odores fétidos e o ar que não circulava, tinham influências negativas sobre os habitantes locais, que, independente de sua vontade, entregavam-se a inércia. Segundo ele,

o ar insalubre deste clima é verdadeiramente a causa da palidez dos brancos que ali habitam. Destes bosques onde o sol jamais penetra, elevam-se vapores densos que formam brumas eternas no alto das montanhas que cercam a ilha. As partes baixas, muito alagadiças, estão igualmente cobertas desde as seis ou sete da tarde até as oito horas do dia seguinte, quando o sol as dissipa. Estes vapores possuem em geral um odor lodoso que, com a circulação do ar fechada, parece dissiparem-se para dar lugar a outros que se sucedem. Este ar insalubre é corrigido levemente pela quantidade de plantas aromáticas, cujo perfume suave se faz sentir a três ou quatro léguas no mar, levado pelo vento do mar.196

Apesar de todas as dificuldades e malefícios citados, Pernetty constatou que “a ilha [de Santa Catarina] [...] é muito cara aos naturalistas.”197 Novamente era a variedade e a

195 BRESCIANI, Maria Stela. Metrópolis: as faces do monstro urbano. Revista Brasileira de História: Cultura e cidades. nº 8/9. Rio de Janeiro: ANPUH/Marco Zero, 1985. pp. 39-40. 196 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 86. 197 Ibidem. p. 86. 117

riqueza natural que a redimia de seus pecados. Alguns anos depois, também durante o verão, como o viajante acima citado, Langsdorff esteve visitando a Ilha de Santa Catarina e teve outra impressão sobre o clima. Apesar de as noites serem úmidas, “parece que o clima não tem influências perniciosas sobre os moradores”198, exceto na região norte da capitania, onde existiam muitos mangues e águas paradas. John Mawe, que passou por Santa Catarina em

1807, constatou que existiam regiões insalubres, principalmente durante a estação das chuvas.

Nessa época o solo ficava, “em grande parte, inundado, e no verão é infestado por terríveis enxames de moscas e borrachudos, que o tornam quase inabitável.”199 A insalubridade poderia ser corrigida, através da drenagem e da limpeza da área, mas “tal empreendimento é

árduo, e requer um povo mais ativo e prático.”200 Para ele, além da insalubridade do lugar, existia outro problema: os habitantes. Mas, apesar dos insetos e da umidade em regiões e em

épocas determinadas, a “profusão das mais belas flores atesta a amenidade do seu clima. A rosa e o jasmim florescem o ano todo.”201 Aparentemente, o fato de aqui crescerem plantas comuns em seu país de origem, a Inglaterra, era uma prova de que a região tinha aspectos positivos. Encontrar pontos em comum entre as áreas visitadas e as áreas de onde eles vinham era, para alguns viajantes, demonstração evidente do desenvolvimento ou não da natureza local. Caso essas semelhanças se referissem à população, era a comprovação de sua civilidade.

Além de falar sobre a natureza, os relatos continham informações sobre a saúde das populações visitadas e sobre como os habitantes do Novo Mundo utilizavam plantas e outros produtos da natureza para o tratamento das moléstias. A explicação dada pelos viajantes para a maioria das doenças comuns entre os habitantes locais era devido aos miasmas. Saint-Hilaire comentou que o hospital, a Santa Casa de Caridade dos Pobres, apesar

198 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 165. 199 MAWE, John. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. Op. cit. p. 194. 200 Ibidem. p. 194. 201 Ibidem. p. 190. 118

de pequeno, tinha sido construído em uma região alta onde “os ventos renovam ali o ar constantemente”. Isso, mais sua localização afastada da cidade, fazia com que os habitantes estivessem “ao abrigo de todo contágio.”202

A escolha do lugar onde foi construído o hospital seguia os conhecimentos médicos da época. No século XVIII e XIX, até o descobrimento das primeiras bactérias, realizadas em 1882 e 1885, respectivamente por Robert Koch e Louis Pasteur, acreditava-se que as infecções ocorriam devido à ação exercida pelos “miasmas mórbidos” ou “miasmas odoríferos”. Na Europa do início do século XIX, o tifo grassava entre os soldados e também entre os prisioneiros da justiça. Doença transmitida pelo piolho, na época acreditava-se, devido à forma como ela se espalhava, que era por causa do odores que exalavam dos doentes e mesmo das roupas que eles haviam utilizado. Exemplo disso foi a infecção das operárias que trabalhavam numa manufatura localizada na cidade de Gand, Países Baixos, para onde foram enviadas as tendas que haviam abrigado os soldados doentes da Remânia. Na

Inglaterra, os magistrados, após muitos casos de infecção de soldados e membros da corte pelos “miasmas odoríferos”, tinham o hábito de usarem no colarinho um cravo, a fim de dissipar os “odores venenosos”. Segundo os paradigmas médicos da época, acreditava-se que a infecção propagava-se porque o indivíduo doente agia sobre o ambiente em torno de si, alterando-o e, desta forma, permitindo que a doença se alastrasse.

No Brasil, as autoridades médicas, encarregadas de combater a epidemia de febre amarela que se alastrou pela cidade do Rio de Janeiro em meados do século XIX, preocupavam-se com a negligência em relação às condições sanitárias da cidade. Pântanos,

águas servidas e estagnadas, praias que exalavam odores devido às carcaças de animais jogados, bem como outras imundícies, combinados com o calor sufocante e a falta de chuvas não permitiam que o ar circulasse, fazendo com que partículas venenosas se desprendessem

202 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 171. 119

do solo e subissem em direção à atmosfera, segundo alguns doutores mais atentos.203 No que se refere a Desterro, existe um documento da segunda metade do século XIX, escrito pelo Dr.

João Ribeiro de Almeida, médico que residiu em Santa Catarina por causa do serviço militar.

Para ele, um dos fatores que elevava a taxa de mortalidade da vila e a causa de algumas doenças era

...a evaporação d-agua das fontes publicas, pelo excesso de calôr, determina um augmento consideravel de densidade do liquido, que promptamente se putrefaz, pois que contém sem duvida principios organicos em dissolução, que existião no fundo mais ou menos lodoso destas aguas estagnadas.204

Saint-Hilaire aprovou a escolha do local onde foi construído o estabelecimento de saúde, uma vez que localizava-se afastado da vila. Além disso, os ventos constantes contribuíam para evitar a propagação das moléstias. Mais do que um local de tratamento de doenças, os hospitais eram locais onde as pessoas doentes eram isoladas ou deixadas pelos familiares que não tinham condições de cuidá-las. A saúde dos habitantes de Nossa Senhora do Desterro e do restante da província, segundo Langsdorff, estava aos cuidados do cirurgião do regimento, que era o responsável pelos dois hospitais que existiam na vila, um civil e o outro militar.

A primeira referência à existência de um hospital na Ilha de Santa Catarina foi encontrada na Provisão Real de 19 de maio de 1753. Esse havia sido instalado para prestar assistência aos militares, devido à exigência de um cirurgião e também de uma enfermaria para atender os inúmeros casos de epidemias, comuns entre os soldados. Além do atendimento às tropas, também eram atendidos os casais açorianos que se instalaram na Ilha

203 CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. pp. 64-66. Mais informações sobre este assunto ver também: LE GOFF, Jacques et. al. As doenças tem história. Tradução: Laurinda Bom. 2ª ed. rev. Lisboa: Terramar, 1997. 204 ALMEIDA, João Ribeiro de. Ensaio sôbre a salubridade, estatística e pathologia da Ilha de Santa Catarina e em particular da Cidade de Desterro. Apud. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Medicina, médicos e charlatões do passado. Florianópolis: Arquivo Catarinense de Medicina. Edição Cultural. 1977. p. 26. 120

de Santa Catarina e, até 1789, os pobres. Os casais tinham autorização para serem atendidos

às expensas do Estado Português durante os três primeiros anos após sua chegada.

O outro hospital que existia era a Santa Casa da Caridade dos Pobres, que começou a receber seus primeiros pacientes no início de 1789. O hospital foi construído ao lado da Capela do Menino Deus, com a ajuda de doações da comunidade, recolhidas pelo

Irmão Joaquim Francisco da Costa, e de uma pensão anual de 300 mil réis instituída pela

Rainha. Estava localizado na colina Menino Deus, próximo dos bairros da Toca e do Campo do Manejo. A administração do hospital tornou-se encargo da Irmandade do Senhor Bom

Jesus dos Passos. Em 1856, o estabelecimento foi entregue aos cuidados de sete Irmãs de

Caridade, vindas da França, juntamente com dois padres Lazaristas. Após 8 anos, as irmãs deixaram o hospital, que foi entregue aos cuidados de enfermeiros leigos. Esse hospital, ampliado, hoje é conhecido como Hospital de Caridade. Quando da viagem de Saint-Hilaire, em 1820, os militares estavam sendo atendidos nas suas dependências, que ele chamou de

Hospital do Menino Deus. Segundo o viajante, “as salas eram perfeitamente iluminadas, mas o prédio tinha o inconveniente de ser muito baixo, e por causa disso as janelas não podem, em certos casos, ser abertas sem risco para os doentes.”205 Naquela época já havia o projeto de construir um hospital militar. O terreno, localizado no sopé do morro, ao lado do quartel, já havia sido demarcado. 206

Em seu relato, Langsdorff, que era formado em medicina, registrou algumas informações sobre a saúde local. Citou a ocorrência de epidemias, como a desinteria e a

205 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 183. Mais informações sobre a história do Hospital de Caridade ver: COMERLATO, Fabiana. Espaços arquitetônicos do Hospital de Caridade. Florianópolis: TCC/UFSC, 1997. 206 Entre os anos de 1769 e 1796 o atendimento ficou a cargo do cirurgião de fragatas Paulo Lopes Falcão. Após 1777, devido a destruição do prédio onde estava instalado, o Hospital Real passou a ocupar o antigo Hospício dos Jesuítas, que ficava localizado ao lado da Casa da Câmara. Em 1780, o Hospital Real deixa o prédio que havia pertencido aos Jesuítas e é instalado num quartel. Onde se localizava este quartel não temos informações, mas poderia ser no prédio dos Artigos Bélicos, localizado na praça, esquina com a Rua da Pedreira, conhecida também como Rua dos Artigos Bélicos(atual Vítor Meireles). O outra possibilidade é ter sido instalado no pequeno quartel que ficava ao lado do terreno onde hoje se localiza a Igreja de São Francisco. Já em 1841 tem-se informações de que o Hospital Militar estava atendendo nas dependências do Forte Santa Bárbara e em 1872 o Hospital Militar da Boa Vista foi construído nas proximidades do Hospital de Caridade. Ver: CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Notícia I. Florianópolis: UFSC, 1971. 121

varíola, esta última muito prejudicial entre os escravos. Além dessas, eram comuns os problemas de pele, como a sarna e o bicho-dos-pés. Outro problema eram as doenças venéreas, muito difundidas devido aos contatos sexuais precoces. Quando de uma gravidez e parto, registrou que não existia parteira ou médico que acompanhasse as parturientes. Nesse momento a mulher era acompanhada por outras mulheres que já haviam dado a luz. Esse tema era do interesse de Langsdorff que, sempre que possível, quando entre mulheres, desviava a conversa para o assunto. Era crença popular que, para evitar nova gravidez, a mulher devia estender o aleitamento materno, o que ocorria em média até os três ou quatro anos da criança.

Apesar disso, a fertilidade era grande, encontrando-se famílias com 15 a 20 filhos. Para o tratamento aos doentes, além dos hospitais, existiam três estabelecimentos que vendiam remédios, mas que, na opinião do viajante, deixavam muito a desejar, não possuindo um estoque diversificado dos mesmos. Essas informações sobre as condições médicas

são, logicamente, pegadas a esmo, pois ninguém pode esperar um estudo clínico relacionado com o clima, a economia, o modo de vida, usos e costumes da terra, relacionados por um estrangeiro que passa apenas alguns dias ou semanas neste lugar e que não obteve de imediato a confiança dos moradores, podendo assim apresentar os fatos sob um falso prisma.207

Langsdorff, até mesmo por sua formação primeira, analisou com mais cuidado o quadro clínico da Ilha de Santa Catarina, se o compararmos aos outros viajantes. Esses, muitas vezes concluíram que o grande problema era o clima, a combinação de calor e umidade. É o caso de Lesson, que diz que

esta umidade, que está sempre acompanhada de um grande calor durante o verão, contribui para a insalubridade do ar, fazendo aparecer as disenterias e os cólera-morbus [...] os eflúvios que se desprendem das vastas savanas submersas resultam em febres intermitentes que acabam em entupimentos ou em hidropisias.208

207 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 179. 208 LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 273. 122

Felizmente, na opinião de Pernetty, a natureza foi generosa e ela própria providenciou a cura para seus problemas, uma vez que “as florestas estão cobertas de arbustos aromáticos e o perfume que se expande corrige um pouco a impureza atmosférica.”209

Outro interesse, como já comentamos, refere-se às plantas medicinais e às maneiras como as populações locais as utilizavam. Pernetty conheceu a “avenca”, utilizada para os males do estômago. Além disso, foi testemunha da utilização da “tisana”, “uma cozedura das extremidades dos brotos sensíveis e dos pequenos frutos da goiaba que começam a vingar”210, por um negro livre a fim de curar a dor no ventre de um dos membros da expedição, já tratado sem sucesso pelos cirurgiões da fragata. O mesmo negro curou uma mulher que tinha dores nos tornozelos utilizando-se de ervas fervidas da região, cujo líquido resultante foi friccionado sobre a pele. A cura foi rápida, de seis a sete dias. A utilização de ervas e plantas para a cura de doenças é do conhecimento do ser humano há muito tempo e é proveniente da observação do comportamento dos animais e dos efeitos causados no organismo humano quando da ingestão de determinadas plantas. Outras explicações remetem

à tradição e mesmo a lendas e intervenções divinas. Pela fala de Langsdorff podemos perceber que o conhecimento dos afro-descendentes sobre doenças e tratamentos utilizando ervas e plantas era utilizado pela população local. Um conhecimento que não era dispensado nem mesmo pelo viajante. Ao mesmo tempo em que os viajantes vem para a América com uma postura de pessoas que conhecem o que existe de mais avançado no estudo científico, por outro lado eles são dependentes do conhecimento popular, que os habitantes locais possuíam em decorrência da tradição e da observação. Neste sentido, o contato com os “nativos”, como mostra a citação anterior, era valorizado, uma vez que permitia observar a utilidade prática das plantas.

209 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 100. 210 Ibidem. p. 105. 123

A botânica pertenceu durante muito tempo à alçada de médicos, curandeiros e boticários. Registros escritos da utilidade medicinal das plantas foram encontrados no Egito,

3.000 a. C., na China, 500 a. C., na Grécia e no Oriente Próximo, também antes de Cristo. No período medieval desenvolveu-se a prática ervanária, principalmente nos mosteiros. Eram os monges os responsáveis pela reprodução dos documentos médicos e fitoterapêuticos antigos.

O mais famoso foi a Abadia Beneditina de Monte-Cassino, que vinculou-se à escola de medicina criada em Salerno no século IX, e que por mais de três séculos foi o berço da renovação da medicina. Nessa escola eram tratados os cruzados que voltavam da Terra Santa e acolhiam médicos de diferentes regiões, possibilitando a troca de conhecimentos. Foi também em Salerno que veio à luz alguns tratados de medicina, como o Circa instans, de

1150, e que enumerava 229 plantas vegetais. Outras obras que surgiram posteriormente foram o De Vegetalibus, o Grande Alberto e o Pequeno Alberto. Na França, a Escola de Montpellier atuava desde o século XI. O conhecimento sobre ervas ampliou-se com a descoberta da

América e com a invenção da imprensa. Pouco a pouco a botânica afastou-se da ciência do ervanário. Muitas cidades possuíam pequenos jardins que ficavam sob a responsabilidade de médicos ou de boticários. Em Pádua, o jardim botânico, fundado em 1545, era vinculado à escola de medicina. Em Paris, século XVI, existia um pequeno Jardim do Rei, localizado na

Ilha da Cité. A necessidade de um jardim de plantas medicinais a fim de socorrer a população enferma, e também para servir de local de aprendizado para os futuros médicos, levou o Rei a fundar, em 1633, o Jardim Real de Plantas Medicinais, ou Jardin du Roi, atualmente o Jardim de Plantas, localizado na cidade de Paris. Na França, entre 1767 e 1941, existia a profissão do ervanário, regulamentada pelo Estado, inclusive com exame de acesso para os futuros profissionais. Por essas breves informações constatamos que o interesse e a utilização de plantas e outros produtos naturais na cura de doenças era uma prática difundida e muito utilizada pelos europeus.211

211 LE GOFF, Jacques. As plantas que curam. In: LE GOFF, Jacques et. al. As doenças tem história. Tradução: 124

Nos relatos podem ser encontrados inúmeras passagens onde são comentados as utilidades práticas das plantas que estavam sendo coletadas e descritas. Essas eram utilizadas tanto para o tratamento de doenças como para outros fins. Plantas desconhecidas dos europeus, e que eram utilizadas pelos habitantes locais despertavam o interesse dos viajantes, como no relato a seguir:

Em uma casa mais afastada, onde íamos tomar alguns refrigérios, a mulher que nos serviu estava ocupada em rasgar folhas compridas e úmidas, colocando-as às costas, uma espécie de cana muito comum ao longo dos bosques e dos caminhos. Ela tirava uma espécie de filamento verde e muito fino, quase como a seda descruada, tingido de um verde pálido. Ela nos disse que fixava em seguida esta substância filamentosa, para fazer linhas e fios de pesca, e que eles duravam muito tempo. Talvez pudéssemos empregá-los também para outros usos.212

Entre os viajantes analisados, salientamos que Pernetty foi quem demonstrou maior interesse pela utilização medicinal das plantas nativas. Mesmo no relato de Langsdorff, que descreveu as condições de saúde na vila de Desterro, e que era médico, não encontramos novas informações. No entanto, esse desinteresse não significava desconhecimento, uma vez que, ao falar das farmácias, que somavam três na vila, salientou o pequeno estoque de remédios e a ausência de produtos nativos, tais como o bálsamo de copaíba e o óleo de rícino.213 Uma explicação possível para o interesse de Pernetty pode ser o próprio desconhecimento em relação a essas plantas em sua época, meados do século XVIII. Os outros viajantes estiveram na região já no início do século XIX, quando provavelmente as utilidades medicinais de muitas das plantas nativas da América já eram difundidas na Europa.

A riqueza, muitas vezes oculta ou desconhecida, era outro dos interesses dos viajantes quando saíam para realizar a coleta de material. A prioridade não era para o que os homens tinham desenvolvido, o que eles tinham produzido, até porque o que eles encontravam aqui era “menos civilizado” em relação à sociedade de onde eles vinham e com

Laurinda Bom. 2ª ed. rev. Lisboa: Terramar, 1997. pp. 343-357. 212 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 107. 213 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 180. 125

a qual eles estavam acostumados. Esse aspecto dos relatos dos viajantes será analisado de maneira mais aprofundada nos capítulos 6 e 8. O olhar do viajante cientista estava preparado e interessado em observar a natureza, como nos fala Saint-Hilaire: “apressemo-nos a desviar os olhos de todas essas infelicidades para contemplarmos as belezas da região que lhes serve de palco.”214 Era a natureza, sua flora e fauna, que interessava aos cientistas viajantes, este era o seu objeto de estudo. No caso dos estudiosos da natureza que seguiam o sistema de classificação de Linné, o interesse era direcionado para a flor, devido à necessidade de conhecer o sistema reprodutivo a fim de classificar as plantas, como é salientado pelo seguinte comentário: “em outra época do ano eu teria certamente recolhido uma grande variedade de plantas; mas o tempo de floração tinha passado e só ficara o restolho.”215

A riqueza da flora brasileira já era do conhecimento dos europeus, fato salientado por Adalbert von Chamisso ao citar vários estudiosos que estiveram pesquisando no Brasil. No entanto, muito ainda existia a ser pesquisado, uma vez que

tudo era novidade para a ciência. O trabalho de tantos homens, no entanto, é ainda fragmentário. Se alguém reexaminar alguma família que já foi classificada por outrem, vai ter o que acrescentar sempre.216

Podemos constatar pela citação que relatos de outros viajantes foram lidos por

Chamisso antes de escrever o seu próprio relato, ou mesmo antes de embarcar na viagem de estudos. Os relatos, as concepções sobre a natureza e as opiniões do grupo de viajantes formados por cientistas circulavam entre si, influenciando-se mutuamente. Outro ponto que podemos constatar nessa fala é a busca pelo conhecimento e de como este ainda encontrava-se fragmentado, num estágio inicial de desenvolvimento apesar de todos os esforços e investimentos que estavam sendo empreendidos.

Nos relatos de viagem encontramos descrições de plantas, flores, frutos, insetos e animais, alguns extremamente detalhados, mesmo naqueles cuja prioridade não era o estudo

214 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 168. 215 Ibidem. p. 190. 216 CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 233. 126

e descrição da História Natural, como no caso de Langsdorff, que apesar de estar numa viagem de circunavegação e desenvolver o trabalho de coleta e estudos de espécies vegetais e animais, principalmente borboletas, dizia que a “história natural não é o objetivo desta descrição de viagem.”217 No entanto, em algumas passagens de seu texto encontramos descrições da vegetação e animais:

a natureza viçosa, que aqui apresenta uma maior fertilidade e variedade de cores, um esplendor da forma, da riqueza e plenitude que se possa sonhar, povoou ainda esta floresta com uma infinidade de seres; minha atenção voltou-se para os mamíferos, os pássaros, os insetos e anfíbios que nós, europeus, só conseguimos ver, muito raramente, em coleções muito grandes de ciências naturais, empalhados ou em álcool.218

Apesar de inúmeras descrições sobre a natureza de Santa Catarina, o interesse maior do viajante era mesmo as borboletas, no que foi muito feliz, pois encontrou no continente, na região que atualmente pertence ao município de São José, um morador que dedicava-se à coleta destes insetos a anos e possuía uma extensa coleção. O contato com o colecionador nativo foi de grande ajuda para o enriquecimento de sua coleção, uma vez que ele conhecia os melhores lugares para encontrar insetos. Os locais pesquisados tinham tanto insetos que

meu acompanhante não fazia mais do que alfinetar as heroínas caçadas. Como não fora nossa intenção colecionar a esta distância espécies que poderíamos conseguir junto à costa, procuramos caçar apenas nosso objetivo principal, que eram as borboletas gigantes, pegas com uma grande rede fixada de uma distância à outra, como se fosse um caçador à espera de sua presa. Não demorou muito, apareceu a bela “Adonis” e a “P. Epistrophus Weberi”.219

Nessa passagem temos uma descrição de como se desenvolvia o trabalho e a coleta de insetos. Este viajante podia contar com a presença de um acompanhante, “um rapaz português muito vivo” que foi contratado e que “carregava os caixotes e bebidas” enquanto

217 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 179. 218 Ibidem. p. 172. 219 Ibidem. p. 173. 127

Langsdorff “levava as redes, alçapões e receptáculos botânicos para insetos, facas e outras ferramentas.”220

No que se refere aos outros animais, temos descrições detalhadas de alguns no relato de Pernetty. Segundo ele, a singularidade dos animais e das plantas da região compensavam de certa forma o abandono da natureza. O que mais lhe chamou a atenção foi a enorme quantidade de espécies diferentes de pássaros, “onde a natureza parece ter ostentado maior magnificência e variedade.”221 Percebe-se o cuidado de Pernetty em descrever os diferentes animais e também as plantas, muitas vezes apelando para comparações com outros animais, conhecidos do público europeu: “o tamanho do tucano é mais ou menos o do pombo torcaz, com as penas mais compridas, de um cinza azulado, assim como os pés, armados de unhas muito longas.”222 Continua descrevendo-o minuciosamente:

Sua cauda tem aproximadamente quatro polegadas, é às vezes negra e arredondada na extremidade, mais comumente matizada de azul, púrpura e amarelo, sobre um marrom escuro. As costas e as asas são desta última cor, excetuando algumas plumas negras que guarnecem as asas. Sua cabeça é muito grande, pequena em relação ao bico, que tem sete a oito polegadas da raiz à ponta. A parte superior, perto da cabeça, tem quase duas polegadas de base, formando no seu comprimento uma figura mais ou menos triangular e convexa para cima, cujas superfícies laterais são um pouco levantadas e arredondadas.223

Além das plantas e dos animais, os viajantes também se interessavam nas possíveis utilidades do que encontrassem no Novo Mundo e que poderiam vir a ser comercializados. Foi o caso de Mawe quando encontrou conchas de murex genus, um molusco que produz uma tinta vermelha, denominada pelos antigos de púrpura, e que os nativos utilizavam para tingir o algodão. Apesar de cada molusco produzir uma quantidade pequena da substância, o viajante não teve

“dúvidas de que se os apanhassem em maior quantidade, e dissolvessem, pouco a pouco, a substância corante, quando extraída, em água gomada,

220 Ibidem. p. 172. 221 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 95. 222 Ibidem. p. 96. 223 Ibidem. p. 96. 128

obter-se-ia um artigo de comércio de grande valor. Ao menos, a tentativa é digna de ser feita.”224

O interesse econômico estava presente no trabalho desenvolvido pelos cientistas viajantes. Os investimentos para a organização de uma viagem de circunavegação, ou mesmo para uma viagem individual, eram altos e não se justificam somente pelo interesse científico. Além disso, a pesquisa científica e a comercialização dos resultados adquiridos estavam estreitamente vinculados. Um dos objetivos do Jardin des Plants de Paris e que envolvia inúmeros cientistas era o trabalho de aclimatação. As plantas e sementes trazidas pelos viajantes do estrangeiro eram submetidas a modificações a fim de se adaptarem às condições naturais diferentes de sua região de origem. Entre o final do século XVIII e o início do século XIX, André Thouin trabalhou na instituição de pesquisa e foi o principal naturalista francês a dedicar-se à aclimatação. Para ele, esse trabalho possibilitaria o desenvolvimento da agricultura. Além de contribuir para o enriquecimento do país, multiplicando a quantidade de plantas e árvores que poderiam vir a ser úteis à economia doméstica e rural, a aclimatação e a domesticação de espécimes estrangeiras contribuiria para a riqueza e a felicidade do homem.225 Em todas as viagens organizadas pelo Jardin des Plants que Thouin ajudou a preparar tinham entre seus objetivos a coleta de sementes e de espécimes vegetais úteis para a

França e suas colônias.

224 MAWE, John. Op. cit. p. 195. 225 KURY, Lorelei. Op. cit. pp. 210-211. 129

5.1. A natureza entre a razão e a emoção

A partir das falas trabalhadas nas páginas anteriores podemos constatar que existia uma representação de que na América a natureza era rica, farta, provedora. O homem não precisava trabalhar tanto para garantir seu sustento como ocorria na Europa. Mas isso não significava necessariamente um ponto positivo, já que essa fartura, essa facilidade foi responsável pela criação de uma sociedade na qual o trabalho e a previdência não eram valorizados. Outro ponto era que, ao mesmo tempo em que a natureza era farta de animais e plantas úteis para o ser humano, era rica também em insetos perniciosos à sua saúde. A natureza úmida enfraquecia a saúde, da mesma forma como a fartura enfraquecia o caráter dos seres humanos que viviam na região. Apesar da maioria dos viajantes louvarem a natureza americana, bem como outras características locais, em vários momentos eles reproduziram concepções que circulavam há vários anos na Europa, principalmente as referentes à questão da degeneração ou da inferioridade americana.

Não poderíamos encerrar este capítulo sem tentarmos trabalhar melhor a concepção de natureza que está presente nos relatos dos viajantes. Apesar de termos apresentado, no capítulo 4, os debates que circulavam na Europa e que influenciaram na formação dos cientistas, achamos necessário aprofundarmos neste capítulo duas correntes filosóficas, quais sejam o Iluminismo e o Romantismo. No entanto, antes de discutirmos as concepções filosóficas do conceito de natureza, consideramos necessário saber o que os viajantes falaram sobre o que encontraram no litoral de Santa Catarina, principalmente na Ilha de Santa Catarina. Para isto selecionamos algumas falas:

A natureza tudo dá, mesmo sem esforço ou assistência e trato.226

226 Ibidem. p. 163. 130

Estes vapores possuem em geral um odor lodoso que, com a circulação do ar fechada, parece dissiparem-se para dar lugar a outros que se sucedem. [...] A ilha é amaldiçoada pelo homem rico que quer gozar, mas é muito cara aos naturalistas.227

[...] ainda mais quando é o caso de uma terra que foi agraciada pela natureza em todos os sentidos, uma terra onde tudo viceja com inexcedível beleza e garbo imagináveis.228

A natureza, apenas a gigantesca natureza, ficou impressa indelevelmente em minhas impressões.229

Não se pode dizer que a natureza seja risonha no litoral do Brasil. As escuras matas que cobrem as montanhas têm qualquer coisa que lembra os sombrios versos de Ossian; entretanto, a beleza do céu e os brilhantes efeitos de luz resultantes do fulgor do sol tiram à natureza o que ela tem de demasiadamente austero e lhe dão uma majestade desconhecida nas nossas regiões.230

Os discursos dos viajantes sobre a natureza local contemplavam diferentes imagens. A natureza era “viçosa, gigantesca”, um lugar “onde tudo viceja” uma vez que esta

“terra foi agraciada”. Em contraposição, a região era “insalubre” para o homem que desejasse gozar a vida, com matas “sombrias” e uma “majestade desconhecida” que somente se mostrava com os raios de sol. No entanto, ela era muito “cara aos naturalistas”.

Como podemos perceber a partir da leitura desses fragmentos, os cientistas viajantes não possuíam uma opinião consensual no que se referia a natureza encontrada na região de Santa Catarina. Isso não chega a ser uma surpresa se levarmos em consideração os intensos debates que circulavam na Europa em torno da natureza e do homem americano.

Outro ponto que podemos considerar são as diferentes concepções filosóficas, estéticas e literárias do período que possuíam distintas imagens e concepções sobre o campo, a natureza e a sua relação com o homem. No século XVIII e no início do século XIX devemos considerar o Iluminismo e o Romantismo.

O Iluminismo teve como centro de irradiação a França do século XVII e XVIII.

227 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 86. 228 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 162. 229 CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 234. 230 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 141. 131

Mas, segundo Sérgio Paulo Rouanet, ele pode ser entendido como uma tendência não limitada a nenhum período específico, caracterizando-se como uma atitude racional e crítica. Tem como objetivo o uso da razão para construir uma nova sociedade e distingue o movimento da

Ilustração no interior do Iluminisno. A Ilustração é o movimento de idéias que resultou no publicação da Encyclopédie no século XVIII. Organizada por D’Alembert, seu primeiro volume foi publicado em 1751 e o último concluído em 1772. Os autores de seus verbetes foram Rousseau, Voltaire, Condorcet, Buffon e Quesnay, entre outros.231

A Europa das Luzes compreendeu o período entre os anos de 1680 e 1780. No entanto, suas influências mantiveram-se até a Revolução Industrial. Segundo Pierre Chaunu, além do conhecimento ser desigualmente distribuído conforme a região, sua propagação também era influenciava pela religião, a qual estavam vinculados os diferentes grupos sociais. A “Europa dos cérebros” abrangia a região da França, da Inglaterra e do País de

Gales, do Sul da Escócia, dos Países Baixos, de uma parte da Alemanha Ocidental e

Meridional, da Suíça, de uma fração da Áustria alpina e Viena, da Itália do Pó e Veneza, das

Lowlands, da Renânia e de um pedaço do Peel irlandês. Além disso, “a Europa das Luzes só existe no cume, um cume cada vez mais estreito à medida que se passa, no espaço, de oeste para leste, quando se recua no tempo de 1770 para 1680.”232 No Iluminismo, a razão tornou- se o cerne de sua filosofia, a faculdade policiadora da imaginação. Além disso, a análise era o método utilizado para o desenvolvimento do conhecimento, um processo que seguia alguns passos: distinguir os elementos que constituíam determinado objeto de estudo, colecioná-los e por último, compará-los.233 Esses passos também eram seguidos pelos cientistas, principalmente os de áreas vinculadas às ciências naturais. Inspirado na natureza, que era expurgada das imperfeições, o Iluminismo, no entanto, viu-se diante de um dilema: sua

231 ROUANET, Sérgio Paulo. O olhar iluminista. In: NOVAES, Adauto (org.) Op. cit. p. 125. 232 CHAUNU, Pierre. A Civilização da Europa das Luzes. Volume I. Tradução: Manuel João Gomes. Lisboa: Editorial Estampa, 1985. pp. 23-24 e 67-68. 233 MONGELLI, Lênia Márcia de Medeiros. Introdução. In: A Estética da Ilustração: textos doutrinários comentados. São Paulo: Atlas, 1992. pp. 19-20. 132

incapacidade de obter respostas para os problemas do universo, uma vez que por um lado a razão idealizava um mundo perfeito e, por outro lado, a experiência sensível mostrava uma realidade injusta e cruel. Para resolver esse dilema recorreu-se ao conceito de providência.

Seria por meio dela que o homem superaria suas limitações, uma vez que a natureza dotou os seres humanos dos princípios de justiça, o que lhes permitiria o bem comum e o progresso. A bondade do homem era um legado da natureza. Através do diálogo com o natural, o

Iluminismo francês do século XVIII explicava racionalmente a Humanidade.234 Essas concepções começaram a sofrer críticas, por volta de meados do setecentos. Na França, uma dessas vozes pertencia a Jean-Jacques Rousseau, que entrou em conflito com o culto à razão, defendendo os indivíduos da influência nociva da sociedade. Na Inglaterra e na

Alemanha, também surgiram movimentos que se opunham ao Iluminismo, entre eles o

Romantismo.

O Romantismo, enquanto um movimento literário e filosófico, iria redefinir o lugar do homem no mundo e na sociedade, possibilitando espaço para o diferente. Em algumas regiões da Europa difundiu-se entre a elite letrada o gosto romântico pela natureza selvagem. No século XVIII, filósofos e curiosos distraiam-se com a botânica e a zoologia, enquanto no século anterior o interesse esteve voltado para a matemática e a física. O conceito de natureza passou a englobar o sentimento, o instinto, “cujas manifestações, subordinadas a princípio, avultam ao ponto de promoverem, em literatura, explosões emocionais que desmancham de todo a clara linha da razão.”235 Segundo Antônio Cândido, a natureza para os românticos passa a ser considerada o cosmos, o mundo, cheio de graça e imprecisão. A partir dessas mudanças o poeta romântico passa a ter novas posturas, tais como o isolamento e a

234 GOMES, Álvaro Cardoso & VECHI, Carlos Alberto. Introdução. In: A Estética Romântica: textos doutrinários. São Paulo: Atlas, 1992. p. 13. 235 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. São Paulo: Martins Livreiro. 1957, vol. 1. p. 59. 133

crença de possuir uma missão a cumprir. A palavra é entendida como incapaz de expressar toda a grandeza da natureza, sendo feita de forma fragmentária.

A influência das concepções românticas foi destacada por Karen Lisboa em seu estudo sobre os viajantes Spix e Martius. Inspirados em Rousseau, Goethe e também em

Humboldt, esses viajantes, como inúmeros outros, saíram das paisagens conhecidas da Europa em busca de regiões estranhas e esquecidas, atrás de uma natureza original, onde o homem ainda não havia tocado. O gosto por viagens longínquas estava ligado ao Naturgefühl, ou sentimento da natureza. Era a busca por “sentir a natureza” que levou muitos viajantes para regiões não européias. No entanto, o próprio Humboldt preocupava-se com o sentimento exacerbado que a natureza poderia causar. O historiador da natureza, ao se deixar levar pela emoção, prejudicaria o desenvolvimento do trabalho científico.236

Um relato que descreve a natureza numa linguagem onde estão combinadas emoção e ciência encontra-se principalmente na escrita do viajante Chamisso. Nascido na

França, fez toda sua formação acadêmica na Alemanha, uma vez que ainda criança, mudou-se para Berlim. Por causa disso, teve um contato mais estreito com o romantismo alemão. O trecho abaixo nos mostra como a poesia, o pitoresco, o bucólico e a ciência muitas vezes estavam entremeadas, como os cipós que ele descreve:

Cipós emaranhados erguem-se do chão ao cimo das árvores, de lá pendendo para baixo; nos ramos mais altos situam-se alegres jardins de orquídeas e bromeliáceas, etc, com as “Tillandsia usnoides”(“barba-de-velho”) cobrindo as velhas árvores com seus cachos prateados. Aroídeas de folhas largas vicejam junto aos regatos, cáctus gigantescos em forma de colunas compõem grupos separados, esguios e rijos. Regiões arenosas e secas estão cobertas por ervas, samambaias e líquens. Sobre as terras úmidas, alegres palmeiras erguem suas coroas, as rizópodas (“Thizophora”) verdes de folhas largas cobrem os pântanos inacessíveis que margeiam as enseadas do mar.237

O quadro por ele descrito contém plantas típicas das regiões tropicais, como as palmeiras, os cactos, as samambaias, as bromélias, orquídeas, etc. Eram os tipos básicos da

236 LISBOA, Karen Macknow. Op. cit. Ver Capítulo III. 237 CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 233. 134

natureza americana, definidos por Humboldt. Ao mesmo tempo, não deixa de colocar o nome científico de algumas das plantas que formam tão idílico quadro. Tenta estabelecer a difícil combinação entre ciência e poesia. Não esqueçamos que Chamisso, antes de dedicar-se ao estudo da botânica, era poeta e filósofo. Além disso, recebeu influências de Goethe, um dos autores do movimento Sturm und Drang, inspirado no pensamento de Rousseau e que foi um dos precursores do romantismo alemão.238

Outro viajante que foi influenciado pela vertente romântica da História Natural foi Saint-Hilaire. Essa concepção, fundada por Humboldt, baseava-se na concepção de que a ciência teórica não estava separada da ciência prática, e sua finalidade era satisfazer as necessidades humanas, neste caso, das populações européias, e fortalecer as nações que as financiavam. Segundo Lorelei Kury, os viajantes europeus “sentem-se portadores de uma espécie de missão. Sentem-se como irmãos mais velhos dos outros povos, a quem devem ajudar e aconselhar. Para eles, seus interesses são os interesses da humanidade inteira.”239

Além de terem sido influenciados por concepções filosóficas, morais, estéticas, entre outras, os viajantes eram homens urbanos que buscavam na natureza um contraponto à imagem de cidade com a qual eles estavam habituados. No decorrer da história da sociedade desenvolveram-se diferentes imagens referentes à terra e às realizações do ser humano, entre as quais a cidade. Essas imagens são historicamente variadas, positivas ou negativas, dependendo da época e do contexto sócio-econômico e político. O campo foi associado à paz,

à inocência, às virtudes simples, mas também ao atraso, à ignorância e à limitação. A cidade, por sua vez, foi associada ao saber, à luz. Em outros momentos era o lugar do barulho, da ambição e da mundanidade. No caso específico da Grã-Bretanha, imagens evocando um passado feliz no campo foram desenvolvidas em períodos específicos: final do século XVI e

238 Sobre o Romantismo, sua história e suas características ver: GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo. 3º ed. São Paulo: Perspectiva, 1993. 239 Kury, Lorelai. Auguste de Saint-Hilaire, viajante exemplar. Disponível em: http://www2.uerj.br/`intellectus/texto/Lorelei.pdf. Acesso em: 02.dezembro.2004 135

início do século XVII, final do século XVIII e início do XIX e no final do século XIX e início do XX. Esses períodos correspondem às épocas em que ocorreram mudanças na economia rural. A imagem da cidade também mudou: nos séculos XVI e XVII esteve associada à lei e ao dinheiro; no século XVIII, à riqueza e ao luxo; no final do século XVIII e no XIX, à imagem das massas e da turba, enquanto no séculos XIX e XX, à mobilidade e ao isolamento.

Essas imagens, além de serem encontradas em períodos históricos diferentes, diferenciam-se conforme a classe social na qual são enunciadas. Dessa forma, uma imagem, aparentemente semelhante, possui diferenças dependendo de quem a está utilizando: um pequeno proprietário, um aristocrata ou um trabalhador sem terra.240 A partir das reflexões presentes no trabalho de Raymond Williams podemos entender melhor o deslocamento do olhar de alguns viajantes, sua busca pelo exótico, pelo bucólico.

Os viajantes europeus não saíam incólumes do contato com as regiões tropicais, cujos ambientes eram tão diferentes da Europa. Muitos adquiriram doenças, alguns retornavam constantemente, em novas excursões, enquanto outros viveram e morreram na

América. Muitos deles, vivendo na Europa, não conseguiam se desvincular do Novo Mundo.

Um exemplo é o caso de Humboldt. Muitos anos após o fim da viagem, quando vivia em

Paris, a temperatura em seu apartamento era mantida acima dos 30 graus, numa tentativa de reproduzir os trópicos. Em suas obras a América é descrita como um mundo primitivo de natureza, uma região ocupada por plantas e criaturas que não chega a ser organizada em sociedades e economias. Seus interesses voltavam-se para o estudos das relações entre a natureza e os seres humanos, e seus textos contribuíram para a construção de uma paisagem americana onde o acúmulo e a abundância mistura-se com a inocência, construindo uma natureza paradisíaca. Uma natureza que o marcou profundamente.

240 WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Capítulo 25: Cidades e Campos. 136

A geografia, enquanto área do conhecimento, aprofundou algumas discussões em torno do tema. Esse interesse deve-se ao fato de que o conceito de paisagem, de natureza e de cultura são temas caros à sociedade e polêmicos para os estudiosos da área. As dificuldades em analisar as representações sobre as relações dos homens entre si e destes com a natureza foi um dos aspectos que contribuiu para a polêmica entre os estudiosos da geografia. Para Carl O. Sauer, a paisagem, apesar de sua individualidade, estabelecia relações com outras paisagens. Além disso, seu processo de modelagem não era somente físico. Uma

área era composta por uma associação distinta de formas que eram físicas e culturais.241 Além da questão cultural, Edvânia Gomes acrescenta outro aspecto, que se refere aos valores que são atribuídos histórica e culturalmente aos elementos da natureza. São esses valores que determinam suas posições hierárquicas. A paisagem constitui-se como uma representação e reapresentação do mundo, uma vez que “resulta da apreensão do olhar do indivíduo, que, por sua vez, é condicionado por filtros fisiológicos, psicológicos e econômicos, e da esfera da rememoração e da lembrança recorrente.”242 Essas discussões podem ser remetidas para a análise da representação plástica da natureza, de suas formas idealizadas. Além da evocação do conteúdo, busca-se também capturar seu caráter “natural”. Nessas imagens a natureza pode ser apresentada como uma instância selvagem mas também como bucólica, nostálgica, remetendo à idéia de harmonia. Mais do que descrever a natureza da América e de outras regiões do mundo, os viajantes do século XVIII e XIX, principalmente os cientistas, vão construir uma nova paisagem. Uma paisagem onde vão se misturar aspectos racionais, do pensamento científico, largamente difundido na Europa, e a emoção, a sensibilidade, que vai aflorar nesses novos ambientes.

241 SAUER, Carl O. A morfologia da Paisagem. In: ROSENDAHL, Zeny & CORRÊA, Roberto Lobato. Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. pp. 23-24. Para entender melhor as discussões correntes entre os estudiosos da geografia sobre paisagem ver as coletâneas organizadas por ROSENDAHL, Zeny & CORRÊA, Roberto Lobato. Paisagem, tempo e cultura & Paisagem, imaginário e espaço. Foram publicados em vários volumes pela Editora da UERJ, nos anos de 1998 e 2001, respectivamente. 242 GOMES, Edvânia Tôrres Aguiar. Op. cit. p. 56. 137

E os habitantes no Brasil, como eles viam a natureza, exaustivamente descrita pelos viajantes? Segundo Nicolau Sevcenko, no contexto do processo de colonização podem ser percebidas duas formas de percepção da natureza por parte dos colonizadores. O impulso desejante e a intervenção colonizadora propriamente dita. O primeiro refere-se ao sentimento de tudo ver, de sentir o novo, de penetrar no intocado, num ato sensorial de indivíduos que se entregam aos sentidos, do olhar ao cheiro, do tato ao paladar. Jean de Léry é um exemplo de indivíduo detentor desse tipo de percepção. Chamisso também insere-se nesse grupo. São viajantes que transformam o que vêem em paisagem, algo a ser admirado e adorado. A outra forma de percepção refere-se à prática colonizadora propriamente dita. O ato de extrair os recursos naturais, fossem estes minerais ou vegetais, motivou a expansão marítima implementada por muitas nações européias e implicava um contato direto com o meio. Para o colonizador, a paisagem, a natureza intocada era um empecilho, quando não um perigo, na forma de animais ferozes, insetos peçonhentos e também de índios bravios. Nesse sentido, o verde da mata deveria ser eliminado para permitir a ocupação do território pelo europeu. Para tanto foi largamente utilizado o fogo como uma forma de limpar terreno a fim de abrir o caminho para as plantações e também para expurgar todos os perigos, fossem eles de forma animal ou humana. A sensibilidade nativa em relação à natureza americana foi construída na lógica da ocupação predatória, que transformou a paisagem em sertão, em uma região agreste.

A floresta deveria ser eliminada e tornar-se área útil ao cultivo.243

A prática das queimadas, muito difundidas entre os colonizadores, era criticada pelos europeus que passavam pelo Brasil no século XIX, fossem eles cientistas ou não. Além da destruição das florestas, criticava-se também o desperdício de madeira que, ao invés de ser comercializada, era queimada no processo de abrir amplas áreas para o plantio. O fazendeiro

243 SEVCENKO, Nicolau. O front brasileiro na guerra verde: vegetais, colonialismo e cultura. In: Revista USP. São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai. 1989). pp. 110-112. 138

da região das Minas José Vieira Couto, que havia sido aluno de Domênico Vandelli244 na

Universidade de Coimbra, comenta que o agricultor brasileiro

olha para duas ou mais léguas de floresta como se elas não fossem nada, e ele mal as reduziu a cinzas e já lança seu olhar ainda mais adiante para levar a destruição a outras partes; não nutre nem afeição nem amor pela terra que cultiva, tendo plena consciência de que ela provavelmente não irá durar para seus filhos.245

Os fazendeiros da região de Minas Gerais viam a floresta como um entrave que deveria ser eliminado, destruído. No litoral da Capitania de Santa Catarina e na Ilha de Santa

Catarina, na primeira metade do século XIX, com exceção de pequenos trechos desbravados a beira do mar e em torno de alguns rios, todo o resto era ocupado por florestas, desconhecidas e ainda não sondadas em suas profundezas. Louis François Leoncé Aubé, engenheiro francês que visitou a província de Santa Catarina no ano de 1944, com a incumbência de escolher e demarcar as terras dotais da Princesa de Joinville, posteriormente indicado para o cargo de vice-cônsul da França a partir de 1849 e de diretor da colônia D. Francisca entre os anos de

1856 e 1860, redigiu um livro falando sobre a região. Segundo ele, era a floresta virgem,

com a vida exuberante que ela encerra e parece oculta-se no silêncio que a envolve durante o dia, e só quebrado, noite dentro, pelos gritos e movimentos dos hóspedes que alí se acolhem; é a floresta magnificante que, às vezes, oculta o céu e a terra à vista de quem lhe penetra os umbrais e parece fechar-se sôbre si mesma, como um túmulo. Dados alguns passos nesta sombria solidão, o explorador incauto sentir-se-á como o marinheiro sem bússola em meio do Oceano, ou como o viajante sem guia nas catacumbas de Roma, e andará à roda, num círculo fatal, parecendo-lhe nunca mais poder chega à orla que antes havia transposto.246

Para Aubé, a mata era uma “cortina impenetrável” que deveria ser aberta a golpes de facão, que ficava numa das mãos, enquanto na outra, carregava-se a bússola. A sensação de estar perdido sem rumo também foi expressada por Saint-Hilaire, para quem a

244 Doutor da Universidade de Pádua e correspondente de Linné, foi indicado para o cargo de professor na Universidade de Coimbra pelo Marquês de Pombal em 1764. 245 COUTO, José Vieira. Memória sobre a Capitania de Minas Gerais [1799]. Apud. DEAN, Warren. A Ferro e Fogo: a história e a devastação da mata Atlântica Brasileira. Tradução: Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras. 1996. p. 155. 246 AUBÉ, Léonce. A Província de Santa Catarina e a Colonização do Brasil. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. Tradução: Carlos da Costa Pereira. Florianópolis, 2º Semestre de 1944. Vol. XIII. p. 92. 139

visão das florestas virgens inspiravam “uma espécie de terror religioso”. Outros viajantes também deixaram registrados em seus relatos seu desconforto com a natureza indomada encontrada no Brasil. James Wells escreveu que a Mata Atlântica o fazia sentir “uma imperceptível depressão”. Após passar horas andando pela floresta em busca de espécies,

Alfred Russel Wallace sentia “alívio por ver novamente o céu azul e sentir os raios causticantes do sol”. Encantamento e deleite foi o que sentiu Saint-Hilaire ao ver, “após passar diversas horas encerrado em um túnel de árvores”, a vila de São João da Barra, no distrito dos diamantes, na província de Minas Gerais. Warren Dean concluiu que as criaturas e a vegetação da floresta encantavam e fascinavam os viajantes e cientistas quando ordenados e dispostos por categorias nos museus e gabinetes de história natural. No seu habitat natural, dispersas e desordenadas, formavam um quadro intimidante e opressivo. Melhor era substitui- las por paisagens abertas, banhadas pelo sol e antromorfizadas.247

Se para muitos viajantes a floresta virgem assustava e intimidava, para os habitantes locais a mata, a vegetação abundante, significava perigo e muito trabalho. Perigo devido aos animais selvagens e peçonhentos e, muitas vezes, por causa dos índios. Trabalho porque era necessário destruir a floresta para poder plantar. Mas também significava alimento, conseguido através da caça. Langsdorff comentou sobre a destreza dos moradores no uso da betocca, uma espécie de arco que utilizava como munição pequenas pedras ou pelotas de barro seco. Com ele até as crianças conseguiam abater de consideráveis distâncias aves de todos os tamanhos que serviam para aumentar o cardápio. O mesmo viajante reparou a admiração e o estranhamento que causava em seus guias seus constantes pedidos para parar durante as incursões pela mata, a fim de melhor apreciar a beleza das árvores floridas, os diferentes tons de verde e a variedade das samambaias.248

247 DEAN, Warren. Op. cit. pp. 156-157. 248 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. pp. 170-172. 140

Em 1824, chegou à fazenda Mandioca, de propriedade de Langsdorff, localizada no atual município de Magé, um jovem oficial e agricultor chamado J. Friedrich v.

Weech, que recebeu do barão um lote de terra e escravos negros para cultivá-la. Após passar alguns anos no Brasil e na Argentina, onde tentou estabelecer-se como agricultor, voltou para a Baviera, onde aproveitou para escrever sobre sua experiência na América, publicada em

1831. Em um trecho de sua obra mostra como o barão von Langsdorff e seu trabalho de cientista era visto pela população local. Segundo ele, os habitantes locais, fossem brasileiros ou portugueses, “filhos do reino”, eram “ignorantes” e não conseguiam compreender o objetivo das coleções de insetos que eram organizadas pelos cientistas estrangeiros e pelo barão, que muitas vezes pagava a várias pessoas para que coletassem aves e insetos. Não compreendendo a finalidade desse trabalho, achavam que era um divertimento e o chamavam de “administrador de passarinhos e bichos”. Os botânicos eram chamados de “homens de capim” e perguntavam se não havia capim em seus países. Apesar de considerá-los ignorantes, Weech constatou que possuíam uma capacidade de compreensão que não os deixou indiferentes às suas explicações sobre a utilidade das pesquisas científicas.249 Para os habitantes locais da Ilha de Santa Catarina ou de outras regiões do Brasil, o trabalho dos botânicos não era compreendido como uma possibilidade econômica, e a floresta, além de significar trabalho e perigo, era sinônimo de dificuldade para a ocupação dos territórios, para a produção agrícola que possibilitaria a riqueza do indivíduo e o desenvolvimento econômico da região.

O termo natureza tem sua origem no latim nasci, que significa ‘nascer’, homólogo do grego physein, que significa ‘ser gerado’. A partir daí o conceito geral de natureza remete à totalidade, à essencialidade, ao nascimento. Os seres reais, na ciência aristotélica, “surgem com características intrínsecas, mutáveis, mas de vez em quando,

249 WEECH, J. F. v. apud. BECHER, Hans. Op. cit. p. 65. 141

conceptualmente definidas de forma acabada.”250 Essa visão vai ser rompida a partir do desenvolvimento das disciplinas científicas, da inadequabilidade da visão especulativa do saber científico tradicional e também devido à aquisição de novos conhecimentos e fatos observados que não puderam ser enquadrados nas explicações prévias. No século XVII,

Descartes transforma a teoria filosófica da natureza numa teoria científica. É o primeiro a formular uma nova idéia de natureza, um sistema de leis, no qual o mundo é formado por máquinas simples, o mecanicismo cartesiano. A natureza é reduzida a uma estrutura material subdividida em partículas de várias dimensões em movimento. Segundo ele, não foram as descobertas científicas que provocaram uma mudança na idéia de natureza, mas sim a mudança na idéia de natureza que permitiu essas novas descobertas.251

Segundo o antropólogo Philippe Descola, Humboldt foi o primeiro estudioso a estabelecer um vínculo entre a história natural do homem com a história humana da natureza.

Em sua obra Cosmos, tenta compreender a unidade humana a partir da diversidade do meio, a fim de pensar o mundo como indissociável. Para o autor, a cultura ocidental é marcada por uma antinomia entre o homem e a natureza. A natureza é caracterizada pela ausência do homem enquanto o homem caracteriza-se pelo que ele soube dominar de natural em si. Em muitos povos a natureza não existe como esfera autônoma. Nossa singularidade em relação ao resto da existência é relativa, como é relativa nossa consciência do que nos faz humanos.252 A partir das reflexões de Descola, podemos entender melhor o interesse dos viajantes, europeus, cientistas, “civilizados”, pela nossa natureza intacta. Ao mesmo tempo que esse contato gerava desconforto, um sentimento de opressão e mesmo depressão, quando muito prolongado, gerava também um sentimento de prazer, de admiração, ou então, como dizia

250 MICHELI, Gianni. Natureza. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 18. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1985. p. 38. 251 MERLEAU-PONTY, Maurice. A natureza: notas, cursos no Collège de France. Texto estabelecido e anotado por Dominique Séglard. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2000. pp. 09-29. 252 DESCOLA, Philippe. L’anthropologie de la nature. In: ANNALES: histoire, sciences sociales. 57º année. Nº 1. Janvier-février 2002. pp. 9-25. 142

Rousseau, uma possibilidade de encontrar seu “não-eu”. Esta dualidade de sentimentos refletia, de certa forma, as descrições diferenciadas e ambíguas encontradas nas descrições dos viajantes. Abundância versus insalubridade, riqueza natural em contraponto com o não aproveitamento que se refletia na natureza intocada. Se por um lado a natureza intacta, rica em plantas e animais era importante para o desenvolvimento da ciência, por outro lado, o objetivo, a meta idealizada de desenvolvimento, era a natureza domada, organizada, como os campos e jardins europeus ou como os mostruários e os herbários encontrados nos gabinetes de estudo e nos museus. 143

6. Núcleos urbanos em meio a natureza

6.1. Do espaço urbano

Chamisso comenta em uma parte de seu texto, após descrições deslumbradas da natureza que, apesar de ter visitado a vila de Desterro inúmeras vezes, nenhuma lembrança ficou registrada em sua memória. O mesmo ocorreu com relação às pessoas que ele conheceu.

Sua explicação para o esquecimento: a “gigantesca natureza”. A imagem e o contato com a natureza americana foi tão impactante, tão forte que não lhe permitiu lembrar de outros detalhes, a não ser os que se referiam a ela.253

Felizmente o mesmo não aconteceu com os outros cientistas viajantes, que em poucas ou muitas linhas, descreveram o espaço urbano e seus arredores, suas características, seus aspectos pitorescos. O primeiro que esteve na região foi Pernetty, em 1763. Na época a vila era pequena, “composta de umas cento e cinqüenta casas, todas tendo somente o rés-do- chão.”254 Alguns anos depois, em 1807, Mawe também iniciou sua descrição sobre a vila, especificando o número aproximado de habitantes e as condições das moradias, sendo as mesmas “bem construídas, com dois ou três andares, assoalhadas de madeira, jardins tratados, apresentando excelente vegetação e flores”. A vila possuía “várias ruas” e contava com “cinco

253 CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 234. 254 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 82. 144

a seis mil habitantes.”255 A partir das informações deixadas pelos dois viajantes, separados por mais de 44 anos, podemos constatar que a vila de Desterro sofreu mudanças consideráveis. As moradias melhoraram, aparecendo construções assobradadas, que eram feitas de materiais mais resistentes e algumas já contavam com melhorias, como assoalhos de madeira.

Oswaldo Rodrigues Cabral registra que no ano de 1829, a Câmara Municipal proibiu que fossem construídas casas sem a devida licença e instituiu que as construções seguissem regras pré-determinadas de altura e largura, tanto da moradia como das suas aberturas (portas e janelas). Além de normatizar as novas construções, a fim de evitar a edificação de moradias insalubres, a administração também preocupava-se com as velhas casas que, de tão deterioradas, poderiam vir a desabar, causando acidentes e transtornos aos habitantes de Desterro. Nessa época, existiam 29 quarteirões nos limites da cidade256 e 12 distribuídos pelas diferentes freguesias localizadas no interior da Ilha.257 Langsdorff comenta que em 1803 viviam “aqui diversas pessoas abastadas mas poucas ou quase nenhuma delas é rica”, e as moradias eram feitas “de pedra ou de barro seco”. O que chamou a atenção de

Lesson era que as casas eram assoalhadas e “seu interior é simples, asseado e elegante, mas sem luxo.”258 Saint-Hilaire que, como Lesson, visitou a vila de Desterro na década de 20 do século XIX, teve uma boa impressão sobre as condições das moradias, uma vez que

255 MAWE, John. Op. cit. p. 190. 256 A fundação de Nossa Senhora do Desterro ocorreu no ano de 1673 (ou 1675) por Francisco Dias Velho que, juntamente com sua família, 2 padres jesuítas e quinhentos índios domesticados, deslocou-se de São Paulo para a Ilha de Santa Catarina. Após a fundação da povoação, requereu ao governador da capitania duas léguas em quadra onde já se encontrava erigida a igreja de Nossa Senhora do Desterro (1678). Em 1713 foi criada a Freguesia de Nossa Senhora do Desterro, subordinada à vila de Laguna. Freguesia é um misto de organização política e religiosa, que antecede a elevação para vila, em 23 de março de 1726. Nesse momento ocorreu a troca de nome, de Santa Catarina para Nossa Senhora do Desterro. Por decreto de 24 de fevereiro de 1823, a vila de Nossa Senhora do Desterro é elevada à categoria de cidade, passando a chamar-se somente Desterro, conservando-o até 1894, quando mudou seu nome para Florianópolis. Ver: PAULI, Evaldo. A Fundação de Florianópolis. 2 ed. Florianópolis: Lunardelli, 1987. 257 CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Destêrro. Notícia I. Op. cit. p. 235-236. Recorremos a informações contidas na obra desse autor, apesar de não compartilharmos a mesma visão de história. Segundo ele seu livro é uma obra “histórica, verídica, sincera e pitoresca” de Desterro, “é a crônica modesta e simples de gente que não costuma freqüentar as páginas da História.” Apesar das críticas a muitas de suas opiniões e conclusões, Cabral inovou ao recorrer a fontes e documentos pouco utilizados, bem como na escolha dos temas. 258 LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 274. 145

as casas, feitas comumente de tijolo ou de pedra, caiadas e cobertas com telhas são em sua maioria bem conservadas. De um modo geral são maiores do que as comumente encontradas nas cidades do interior, vendo-se muitas de dois pavimentos, com vidraças nas janelas e construídas com bom gosto. Visitei as dos principais moradores da cidade e as achei muito bem mobiliadas.259

A moradia, além de ter a função de dar abrigo a seus habitantes, é também o local de sociabilidades e de trabalho. No seu interior se desenvolvem inúmeras atividades do dia-a-dia. Nos três primeiros séculos da colonização, as moradias localizadas nas vilas eram simples, onde moravam pessoas pobres e com poucos recursos, ou então serviam de abrigo para visitas ocasionais de seus donos, proprietários de sítios e de fazendas. Em geral as moradias eram pequenas, térreas, construídas com os materiais da região. Somente com a diversificação das atividades urbanas é que vão surgir as moradias mais ricas, como sobrados e vivendas, onde habitava a elite local.260

Apesar de alguns viajantes salientarem a presença de casas assobradadas em

Desterro, tendo inclusive alguns pequenos requintes como granito na soleira, como registra

Lesson, no geral as falas deixavam transparecer que a vila não era rica e próspera. No entanto, passava uma impressão de “bem-estar geral sem que haja riqueza”261. No que se refere às moradias de fora da vila, a opinião de Langsdorff é um pouco distinta. Em suas andanças pelo interior da ilha e pelo região continental próxima, foi recebido por colonos, que lhe ofereciam refeição ou pouso em suas casas. Estas eram

pequenas, bem instaladas e geralmente em lugar bastante bem situado. O interior consiste quase sempre em uma sala de estar, um ou dois quartos e uma cozinha. Esta, às vezes também pode estar situada a parte e ainda provida de um quarto que serve para abrigar os escravos negros. Em casas de pessoas mais abastadas, a sala é assoalhada, o que não acontece em casa de pobres. Poucas são cobertas de telhas, pois a maior parte é com folhas de palmeira, cuja espécie ainda é desconhecida.262

259 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 170. 260 ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e Vida Doméstica. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 90. 261 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 163. 262 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 176. 146

Pernetty comentou que as moradias que ele viu, localizadas na costa perto da

Ilha de Anhatomirim, onde seu barco ficou ancorado, eram

construções ao rés-do-chão, como as casas dos nossos paisanos franceses. São ordinariamente cobertas de canas e folhas de bananeiras ou de uma outra espécie de cana ou junco. Normalmente não se vêem chaminés. Os negros escravos aprontam suas comidas sobre um fogo aceso ao meio do quarto e ali vivem sem se incomodarem, no meio da fumaça.263

A partir dessas informações constatamos que as moradias, e as condições de vida das pessoas que viviam na vila ou mesmo nas freguesias eram distintas daquelas em que se encontravam os colonos que viviam no interior. Como Desterro era uma vila estrategicamente importante devido à disputa pelos territórios ao sul, entre as coroas portuguesa e espanhola, muitos milicianos ficavam ali assentados. Em 1737 foi instalada a

Guarnição Militar na Ilha de Santa Catarina. Militares, acompanhados de suas famílias, mudaram-se de Santos para Desterro. Outro fato que estimulou o aumento populacional e também uma melhoria nas condições gerais de vida na vila foi a criação da Capitania de Santa

Catarina, em 1738. No ano seguinte, com sua instalação, criaram-se vários cargos administrativos. Alguns foram ocupados por pessoas que haviam nascido ou já viviam aqui.

No entanto, a maioria do postos foi ocupado por titulares vindos de fora. Essas mudanças, juntamente com a imigração açoriana,264 contribuíram para o povoamento e os melhoramentos da vila de Desterro.

Se tomarmos o esboço feito por José Custódio Sá e Faria em 1754 (Figura 1), podemos constatar que a maior parte do que hoje se constitui o centro da atual cidade de

Florianópolis encontrava-se ainda tomada por matas nativas ou então por plantações. O

“Plano da Villa de Nossa Senhora do Desterro da Ilha de Santa Catarina” foi feito com o

263 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 80. 264 Entre os anos de 1748 e 1756, transferiram-se para o sul da colônia portuguesa na América, em torno de 6.000 pessoas, vindos das ilhas dos Açores e em menor quantidade da ilha da Madeira. Essa emigração não foi espontânea, mas incentiva pela Coroa, que tinha como objetivo garantir seus domínios no sul da América do Sul, região disputada também pela Coroa da Espanha. 147

Figura 1- Plano da Villa de N. S. do Desterro – José Custódio de Sá e Faria, 1754. In: Reis, Nestor Goulart. Imagens pde vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo: Editora da USP/Imprensa Oficial/Fapesp, 2000. p. 225.

objetivo de agenciamento do sítio, e desta forma, segundo Eliane Veras da Veiga, a execução do projeto pode não ter seguido o traçado elaborado por Sá e Faria. Podemos perceber no esboço a provável localização dos edifícios que ocupariam o centro da vila. Destaca-se o espaço reservado para a praça central, ou Largo da Matriz, contornada pela Igreja Matriz no lado contrário ao mar, pela residência do governador em umas das laterais e, no outro, pela 148

Casa de Câmara e outras construções. Na beira do mar, um “trem” da Marinha e o porto de embarque e desembarque. Além desses prédios, outros estão assinalados, alguns já construídos, outros como projeto para futuras construções. O plano também assinala algumas das fortificações projetadas pelo Brigadeiro José da Silva Paes, como o Forte de São

Francisco e as construções no morro Boa Vista, onde foi construída a Capela Menino Deus, no ano de 1762, e posteriormente o Hospital de Caridade dos Pobres. Estão assinalados também dois rios, o rio da Bulha265 e outro localizado entre o centro e o bairro da Figueira, iniciando na Fonte dos Ramos e correndo em direção ao mar.266 A partir desse plano podemos constatar que a vila de Desterro tinha uma função fortemente militar e administrativa, e suas principais construções eram de cunho militar ou político. Destacam-se o pelourinho, a casa do

Governador, a Casa de Câmara, os quartéis e os fortes. Além dessas, estão também representadas as construções religiosas.267

A vila de Desterro, no início da segunda metade do século XVIII, era descrita por Pernetty como “pequena”, e a maior parte da ilha era uma “vasta floresta”, com “algumas pequenas casas espalhadas pela costa”. Além disso, “na vila não se viu quase nenhuma tenda de mercador. Só [...] uma marcenaria e um boticário.”268 Os viajantes que aqui estiveram no início do século XIX encontraram outra situação, muito diferente da relatada por Pernetty. O comércio já havia se desenvolvido e a população local já podia contar com

comerciantes ou mascates e artesões de toda a espécie e muitos gêneros alimentícios são trazidos de todas as partes, diariamente, para o mercado. Nas inúmeras e pequenas lojas encontram-se quase todas as mercadorias, vindas da Europa, necessárias para as comodidades da vida: por exemplo, o ferro, vidros, porcelanas, fazendas de seda e algodão, espelho, lustres, papel, etc. Mas, tudo isto é muito caro como bem se pode supor.269

265 Também conhecido como córrego da Fonte Grande. Com o processo de saneamento no início do século XX o rio foi canalizado e passou a fazer parte da Avenida do Saneamento, atualmente Avenida Hercílio Luz, inaugurada em 1922. 266 Atualmente totalmente desaparecido, nas proximidades da atual rua 7 de setembro e do Largo Fagundes. 267 VEIGA, Eliane Veras da. Florianópolis: Memória Urbana. Florianópolis: Editora da UFSC/Fundação Franklin Cascaes, 1993. p. 40. 268 PERNETTY, Antoine Joseph. Op cit. pp. 85 e 83. 269 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 163. 149

Todos os viajantes que visitaram Desterro falavam de sua praça central ou

Largo da Matriz. Seguindo orientações pré-determinadas, o traçado da praça foi definido a partir da linha do mar. Como no local escolhido a linha do mar fazia uma ligeira curva, as laterais da praça foram se alargando conforme subiam a encosta, onde foi construída a Igreja

Matriz. Medindo mais ou menos noventa passos de largura por trezentos de comprimento, em torno dela foram construídos os principais prédios da cidade, como o Palácio do Governador e a Câmara Municipal, além da Igreja da padroeira que dá nome à vila.270 Na época de Saint-

Hilaire a praça era “coberta por uma fina relva.”271 Esse espaço, a praça central, era o ponto de partida de muitas cidades coloniais portuguesas e espanholas. Foi também por ela que

Paulo Joze Miguel de Brito iniciou sua descrição da vila: “com huma grande praça de figura rectangular, em cujo lado do norte está edificada a Igreja Matriz.”272 Quando da fundação de uma vila pelo Estado Português em sua colônia na América, eram erigidos dois símbolos: o pelourinho e a Câmara Municipal. O pelourinho era a representação física do poder judiciário e o instrumento no qual eram cumpridas muitas das punições estabelecidas pela justiça. Além dessas construções, “está também situado nesta praça o mercado, que funciona uma vez por semana, aos domingos. Ao centro desta praça está um patíbulo em madeira, onde são presos e castigados os negros puníveis.”273 Em Santa Catarina, foram erigidos pelourinhos nas vilas de

São Francisco, Desterro e Laguna. A praça era local de múltiplas atividades: de punição, de procissões, de comércio e outras atividades diversas. Segundo Lisabete Coradini, a praça é o marco central do núcleo urbano, uma vez que é a partir dela que a vila é inventada.274 Era também motivo de disputas, como o que ocorreu por causa da visita do Imperador D. Pedro II, em 1845. Com a visita, a Câmara Municipal conseguiu remover da praça as barraquinhas

270 VEIGA, Eliane Veras da. Op. cit. p. 56. 271 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 170. 272 BRITO, Paulo Joze Miguel de. Memória Política sobre a Capitania de Santa Catharina escripta no Rio de Janeiro em o Anno de 1816. Lisboa: na Typografia da mesma Academia. 1826. Reimpressa pela Sociedade Literaria Biblioteca Catarinense, 1932. p.38. 273 LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 274. 274 CORADINI, Lisabete. Praça XV: espaço e sociabilidade. Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes/Letras Contemporâneas. 1995. p. 17. 150

onde eram comercializados peixes e outros gêneros alimentícios. Além da questão estética, o outro motivo para sua remoção era a concentração de comerciantes, de indivíduos pobres e de escravos em torno da praça, gerando balbúrdia e atos impróprios à moral e aos bons costumes.

Após a partida de Vossa Majestade, retomou-se a discussão sobre o local onde deveriam ficar as barraquinhas. Essa discussão encerrou-se em 1851, com a construção do mercado público na beira do mar, numa das pontas da praça. Em 1896, foi construído um novo mercado público e a praça teve novamente liberado o seu acesso ao mar.

Além das casas que serviam como moradias e para o comércio, os principais prédios públicos da vila foram construídos em torno da Praça da Matriz, como o Palácio do

Governo, ou Casa do Governo, e a Câmara Municipal. Lesson chama esses dois prédios de

Palácio da Administração da Vila e de Palácio da Justiça. Equívocos em relação às denominações dos prédios públicos nos remete à questão de como o que os viajantes viam eram traduzidos para códigos conhecidos. As estruturas políticas e administrativas portuguesas não correspondiam ao do Estado Francês, de onde vinha Lesson. A Câmara

Municipal era mais do que o espaço jurídico, como dá a entender o nome utilizado pelo viajante francês. Além de ser uma prisão, com as celas localizadas no térreo ou no porão, comportava também o poder administrativo da vila. Era nesse espaço que se reuniam os

“homens bons”, indivíduos que, em decorrência de suas posses e de seu prestígio social, eram eleitos para ocupar as cadeiras da câmara municipal. O poder político em Desterro era dividido entre a Câmara Municipal e o Governo da Capitania até a Independência do Brasil e a outorgação da Constituição do Império de 1824, que criou nas províncias os cargos de

Presidente, Secretário e Comandante das Armas, designados pelo Imperador e pelos

Conselhos Gerais, com funções legislativas. As funções das Câmaras Municipais estavam relacionadas à administração da vila, como a aplicação das rendas e outras atribuições, entre 151

elas a elaboração das posturas municipais. Seus membros eram eleitos e o mais votado assumia o cargo de Presidente da Câmara.

Além de concentrar os prédios administrativos, era na Praça da Matriz que erguia-se o principal prédio religioso, a Igreja dedicada a padroeira da vila. Saint-Hilaire descreve-a com sendo

grande e tem duas torres, mas não me pareceu que tivesse uma largura proporcional à sua altura. Sobe-se até ela por uma rampa margeada por dois muros de arrimo, a qual vai desembocar numa pequena plataforma em meia- lua. Na base dessa elevação há uma alta palmeira, cuja elegante folhagem, que se agita à mais leve brisa, contrasta com a imobilidade do prédio ao qual ela serve de ornamento. No seu interior, a igreja tem forro e é bem iluminada, mas achei-a menos limpa do que em geral são as igrejas no Brasil. Medi cerca de quarenta e dois passos desde o altar da capela-mor até a porta. O altar é pouco ornamentado, sendo mais enfeitados os dois outros que o ladeiam obliquamente. Afora esses, há ainda mais dois altares dos lados da igreja, além de duas capelas bastante ricas.275

O local para a construção da primeira capela, que depois foi reformada e aumentada, marcou o futuro núcleo urbano. Francisco Dias Velho erigiu um oratório dedicado

à Nossa Senhora do Desterro, onde os habitantes reuniam-se para as rezas. Com a vinda do

Brigadeiro Silva Paes para a vila de Desterro, como primeiro governador da Capitania de

Santa Catarina, a igreja foi reformada devido à sua “pequenez [...], feita pelo primeiro povoador de pedra e barro e de muy pequena capacidade e cimitria.”276 Na mesma correspondência em que descreve a igreja, solicita sua derrubada e a construção de uma nova, maior, a fim de abrigar todo o povo nos dias de festa. Em 1748, dois anos após a solicitação, foi concedida autorização para sua construção, que somente iniciou no ano de 1753, estendendo-se até o ano de 1772.

Da praça central partiam as ruas, para ambos os lados. Eram estreitas, geralmente retas, alinhadas e regulares. Saint-Hilaire, o único dos viajantes analisados que havia viajado por outras cidades de Santa Catarina e do país, comenta que

275 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. pp. 170-171. 276 Silva Paes. Apud. CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Notícia I. Op. cit. p. 42. 152

comparadas com as outras cidades do Brasil, suas ruas são estreitas, mas em geral bem alinhadas. Só são calçadas defronte das casas, e no entanto, como ocorre com as de Paranaguá e São Francisco, nunca há lama nelas porque o terreno é muito arenoso.277

Eliane Veras faz um contraponto a esse viajante utilizando dois documentos administrativos. Em 1846, o Presidente da Província solicitou ao Presidente da Câmara que fossem tomadas providências a fim de resolver o problema das águas estagnadas nas ruas da cidade. E o mesmo problema continuava em 1889. O presidente da Província José Ferreira de

Mello registrou, em seu relatório, a situação precária do escoamento das águas pluviais na cidade de Desterro.278

Oswaldo Cabral desenvolveu uma pesquisa sobre as vielas e ruas da antiga

Desterro. Utilizando documentos administrativos, entre eles planos urbanos, relatos de viajantes, estrangeiros ou não, fotos antigas e outros documentos iconográficos, o médico e historiador descreveu a implantação e desenvolvimento das ruas, ruelas e becos da cidade.

Utilizou também um croqui encontrado nos Arquivos da Prefeitura Municipal de

Florianópolis, no qual está representado um plano da vila de Desterro no ano de 1819 (Figura

2). Segundo Eliane Veras, o estudo de Cabral é “uma contribuição valiosa para o estudo da paisagem urbana desterrense”. No entanto, em sua pesquisa histórica-urbanística- arquitetônica da cidade de Desterro/Florianópolis, constatou equívocos em relação ao traçado, nomes e direções de algumas das ruas.279 Apesar dos erros cometidos por Cabral na análise do mapa, optamos por apresentá-lo por ser útil para visualizarmos como a cidade cresceu e se organizou, em relação ao plano traçado em 1754 por Sá e Faria.

277 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 170. 278 VEIGA, Eliane Veras da. Op. cit. p. 74. (Nota de Rodapé nº 67) 279 Eliane Veras cita que a Rua da Pedreira no mapa não parte da praça, enquanto no texto, o autor a coloca como partindo da praça entre o prédio dos Artigos Bélicos e a casa do futuro quartel da Polícia. Pelo texto, ela corresponderia a atual Vitor Meirelles. Outros equívocos e erros são melhor analisados pela autora em seu livro Florianópolis: Memória Urbana. Florianópolis: Editora da UFSC/Fundação Franklin Cascaes, 1993. pp. 68-73 e mapa nº 7. 153

Figura 2 – Mapa da Vila de Desterro em 1819 - In: CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro: notícia I. Florianópolis: Editora da UFSC, 1971. p. 123.

Além dos aspectos urbanos anteriormente descritos pelos viajantes que os antecederam, Saint-Hilaire e Lesson acrescentaram um tema novo quando da descrição da vila: a condição do porto. Os outros viajantes falavam da facilidade de conseguir água, mantimentos e madeira para os navios. Langsdorff disse que a província foi beneficiada com

“várias liberalidades; assim, por exemplo, os navios que aqui entram ou saem do porto, pagam muito menos - sejam estrangeiros ou nacionais, do que em outros portos brasileiros.”280

Lesson comentou que o porto é localizado “numa enseada onde fornecem água somente para as embarcações do porto, cerca de cinqüenta pipas.”281 Saint-Hilaire afirmou que a capacidade do porto era restrita, pois somente comportava barcos pequenos, mas para esta descrição citou

280 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 163. 281 LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 274. 154

o que havia escrito o capitão Duperrey. Talvez os cientistas viajantes não se referissem às condições portuárias e de navegação por ser este um tema tratado nos relatórios e diários dos comandantes e capitães dos barcos.

Mawe comentou que “assim que entramos na cidade, distinguimos, no seu aspecto geral e nas maneiras dos habitantes, superioridade acentuada sobre os que deixáramos”282, no caso, os habitantes de Montevidéu. Sua boa impressão em relação a

Desterro é facilmente explicável, uma vez que haviam sidos obrigados a fugir da capital da

Colônia Cisplatina, devido às disputas locais, pois os grupos que haviam sido apoiados pelos ingleses foram derrotados. Mas e os outros viajantes, qual o motivo que os levou a salientar os aspectos positivos da pequena vila? Mesmo considerando que os viajantes foram recebidos pela elite, como nos mostram os jantares no Palácio do Governador, para os quais foram convidados Pernetty e Saint-Hilaire, eles também visitaram e conheceram casas mais modestas, com piso de chão batido, nas quais seus habitantes contavam somente com esteiras de palha para se acomodar no momento das refeições, compostas geralmente por farinha, peixe e laranjas, como eles mesmos descreveram. Esse encobrimento, ou melhor, essa suavização das condições econômicas da vila teria se dado como uma retribuição da hospitalidade recebida? Nesta época, não se negava pouso aos forasteiros que chegavam de surpresa. As distâncias, o povoamento escasso e a ausência de estalagens transformaram a hospitalidade numa necessidade no Brasil colonial.283

O que constatamos é que as falas dos viajantes são contraditórias. Descrevem positivamente alguns aspectos e negativamente outros. De um modo geral, o que eles encontram aqui não supera o que eles tinham em seus países de origem, exceto a riqueza e a abundância natural. Lesson, por exemplo, não teve uma boa impressão das cidades coloniais portuguesas, uma vez que “encontra-se várias tendas de revendedores, espécies de tavernas

282 MAWE, John. Op. cit. p. 190. 283 ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e Vida Doméstica. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). Op. cit. p. 93. 155

onde se dão a beber e a comer, e onde a ralé e os negros vêm se regalar com peixe seco e araque”, mas não tem a oferecer “aos estrangeiros nem hotel, nem restaurante, nem café.”284

Na Inglaterra, país de origem de Mawe, os primeiros cafés foram criados no século XVIII, espaços inicialmente de apoio as estações de coches, tornaram-se posteriormente independentes. Eram locais freqüentados pela classe média e alta, que se encontravam para conversar e discutir questões políticas.285 Em Desterro, os locais públicos de sociabilidade eram, segundo esse viajante, as tavernas. Mas, ao contrário dos cafés, não eram freqüentados pela elite, mas sim pela população pobre. Não eram locais de discussões políticas, uma vez que em 1807 não havia eleições nas quais a população pobre e os escravos participavam. As tavernas, ou tendas de revendedores, eram locais onde os trabalhadores, livres ou escravos, poderiam encontrar comida e bebida. Também eram nesses locais onde resolviam suas diferenças, resultando muitas vezes em balbúrdia e brigas. Outro problema, era a concentração de escravos, muitas vezes até tarde da noite, extrapolando o horário de recolher.

A ausência de alguns espaços de sociabilidade comuns em seu país de origem, seria, na opinião deste viajante, uma mostra do atraso em que se encontrava a cidade? Provavelmente, pior do que a ausência de restaurantes e cafés onde as pessoas pudessem se encontrar, era a constatação de que os locais que os substituíam na América eram as tavernas, locais impróprios, já que eram freqüentados pela “ralé” e pelos “negros” para comer e beber.

A elite possuía outros espaços de sociabilidade. Espaços privados, em ambientes restritos, como os jantares e bailes. Oferecidos pelo governo em homenagem aos viajantes, foram prestigiados por membros do governo, civis e militares, e também por membros da Igreja e pelas famílias locais. Foram nos bailes que as mulheres locais surpreenderam alguns viajantes devido ao luxo e a elegância da indumentária. Saint-Hilaire comentou que a beleza das mulheres de Desterro, com seus cabelos negros, sua pele clara e

284 LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 274. 285 SENNETT, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na Civilização Ocidental. Tradução: Marcos Aarão Reis. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. pp. 277-278. 156

rosada, seus olhos bonitos, era salientada devido a sua desenvoltura e o fato delas não se esconderem dos estranhos, como as mulheres de outras regiões do Brasil.286 Deduzimos que esses jantares e bailes, espaços mais restritos, foram prestigiados por um número reduzido e seleto de convidados. Além de Lesson, que deu a entender que existiam locais específicos para determinados grupos sociais, Pernetty, ainda no século XVIII, salientou uma divisão entre os habitantes da pequena vila. Ele escreveu que passou “em seguida pela vila, que me pareceu, a guarnição ocupa uma parte e a outra é ocupada pelos brancos de um lado e os negros ou mulatos do outro.”287 O viajante percebeu uma separação espacial. Primeiro uma divisão entre o lado militar e o lado civil da vila e depois uma distinção que se dava em decorrência da cor dos seu moradores. Num lado viviam os brancos, e no outro os negros ou mulatos.

A vila de Desterro, como muitas outras vilas, tinha ruas e bairros que se caracterizavam conforme as condições sociais e atividades econômicas de seus moradores.

Em torno da Praça da Matriz estavam localizados, além dos prédios públicos, as moradias da população mais abastada e as casas de comércio. A Rua Augusta (atual Rua João Pinto) e a

Rua da Cadeia (atual Rua Tiradentes) também era área de comércio e de moradia de uma parcela da população mais favorecida. Próximo ao Rio da Bulha e da Ponte do Sabão, localizava-se o Beco Sujo (imediações da atual Avenida Hercílio Luz). Mais acima, ficava o bairro da Pedreira (altos da Rua Saldanha Marinho, onde se localiza o prédio da

FAED/UDESC) e após o bairro da Tronqueira (atual Rua Artista Bittencourt). Também existia o bairro da Toca, na base do morro onde foi construído a capela Menino Deus e o

Hospital de Caridade. Todas essas regiões, Beco Sujo, Pedreira, Tronqueira e Toca, localizadas ao leste da praça, eram locais de moradia das populações pobres, trabalhadores livres e escravizados, estes últimos caso tivessem autorização para morar só. As lavadeiras

286 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 173. 287 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 82. 157

concentravam-se nas regiões próximas às bicas d’água e nas margens do rio da Bulha. No outro lado da cidade, a oeste da praça e na beira do mar, localizava-se a zona portuária e, mais adiante, em direção ao Estreito (onde foi construída a Ponte Hercílio Luz), o bairro da

Figueira, área de moradia e freqüentado por marinheiros, estivadores, soldados. Esta área também era a zona de prostituição da cidade.288

As cidades na América tinham características próprias, que poderiam variar devido a alguns fatores, como por exemplo, a orientação urbanística definida pela metrópole.

Sérgio Buarque de Holanda, em seu texto sobre as cidades coloniais na América Portuguesa e

Espanhola, utiliza o termo “semeador” para explicar a forma como os portugueses implantaram suas vilas no litoral do Brasil. Elas haviam nascido e crescido sem um plano definido, sem desenho preestabelecido, espalhando-se conforme os acidentes geográficos que foram sendo encontrados pelo caminho e que deveriam ser contornados. Cidades como

Salvador e São Vicente cresceram em desalinho. No entanto, o autor chama a atenção para casos como o Rio de Janeiro, onde o esquema retangular esteve presente, muito mais em decorrência da ausência de empecilhos naturais do que pela ação de uma vontade construtora.

No caso da vila de Desterro também podemos perceber um plano pré-traçado que tem ao centro a praça, de onde partem ruas retas formando o clássico desenho de grade. A poucos passos do centro da vila estas ruas dão lugar as ruas curvas e aos becos.

Por outro lado, Sérgio Buarque de Holanda utiliza a expressão “ladrilhador” para pensar a construção das cidades coloniais espanholas, as quais seguiam um plano pré- estabelecido e orientações que definiam a escolha do sítio onde a vila seria construída, o tamanho ideal da praça a fim de melhor cumprir com suas funções, o arruamento a ser aberto, entre outros pontos que eram contemplados na legislação espanhola relacionada ao tema. O

288 Para aprofundar sobre a distribuição populacional na Desterro do século XIX ver: PEDRO, Joana. Mulheres Honestas e Mulheres Faladas: uma questão de classe. Florianópolis: UFSC, 1994; CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Notícia I. Florianópolis: EdUFSC, 1971; MORTARI, Cláudia. Os Homens Pretos do Desterro: um estudo sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (1841-1860). Porto Alegre: Dissertação Mestrado PUC/RS, 2000. 158

traçado dessas cidades mostra o esforço do homem em redesenhar a paisagem. Na opinião de

Sérgio Buarque de Holanda, esse esforço não parece ter sido a principal preocupação dos colonizadores do Brasil, uma vez que “a cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem.”289

As vilas, povoados e outros tipos de concentrações urbanas que foram desenvolvidas pelo ser humano não podem ser entendidas somente como um traçado regular ou não no interior de um determinado espaço. Mais do que um conjunto de edifícios que possuem função pública ou privada, o espaço urbano também comporta os seus interiores. São a Igreja, os hospitais, as lojas, as tavernas, as barraquinhas onde são vendidos os alimentos.

Por interior se incluem as residências particulares com seus quartos e até as vestimentas das pessoas. Esses aspectos são importantes, uma vez que contribuem para definir o espaço das pessoas na “dimensão cênica da cidade”. Além disso, outros espaços também ocupam áreas que ficam sob a influência da cidade: a zona rural. Dela vem os mantimentos, que serão comercializados no mercado da praça. Nela muitos dos que vivem na cidade possuem seus sítios com suas criações e suas lavouras. O espaço rural está estreitamente vinculado com o espaço urbano, quando não complementar a este.290 Nesse sentido, quando falamos na vila de

Desterro, temos em mente não somente as poucas ruas em torno da praça central e da Igreja

Matriz, mas também o seu entorno, indefinido geograficamente, mas econômica, social e culturalmente vinculado, e que formava uma comunidade.

289 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1995. p. 110. 290 ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. Tradução: Pier Luigi Cabra. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 43. 159

6.2. Da população

Antes de aprofundarmos as descrições dos viajantes sobre as populações que viviam na região, fossem elas de origem açoriana, portuguesa ou africana, achamos importante mapear o número de habitantes do local. Se considerarmos as informações contidas na Memória Política sobre a Capitania de Santa Catharina escripta no Rio de

Janeiro em o ano de 1816, escrita pelo ajudante de ordens do governador, Paulo Joze Miguel de Brito, a população da capitania não havia aumentado o projetado a partir das análises do crescimento da população entre os anos de 1774 a 1813. Segundo ele, nesse período a população deixou de crescer em pelo menos 5.609 habitantes, sem que houvessem para isso motivos, como por exemplo, fome, guerras, epidemias, terremotos ou qualquer outro flagelo.

Esse número não se refere somente à vila de Desterro, mas a toda capitania, que naquela

época abrangia basicamente o litoral do atual estado de Santa Catarina, uma vez que a vila de

Lages e todo o território que a compreendia somente foi incorporada à capitania de Santa

Catarina no ano de 1820. Para chegar a essa conclusão, o autor analisou o crescimento populacional utilizando os mapas de população que as Capitanias remetiam anualmente ao

Ministério. Segundo ele, a “Statistica” no Brasil estava muito atrasada. Poucas capitanias tinham a preocupação de enviar para o governo os mapas de população, e os que eram enviados continham omissões, como a proporção de população em relação ao território, bem como dados referentes ao sexo dos indivíduos, se eram livres ou escravos, óbitos, filhos 160

naturais e legítimos, recrutamentos, causas das mortes prematuras, atividades econômicas, etc.291

Langsdorff falou que, em 1803, a população da capitania girava em torno de 25 a 30 mil almas, enquanto que na Ilha de Santa Catarina, era de mais ou menos 10 mil habitantes. Além da vila de Nossa Senhora de Desterro, existiam as localidades no interior da ilha, como as freguesias292 de Santo Antônio de Lisboa, de Nossa Senhora da Lapa do

Ribeirão da Ilha e de Nossa Senhora da Conceição da Lagoa. No continente, existiam as freguesias de São Miguel, São José e Enseada do Brito, todas subordinadas à vila-capital,

Desterro. Além de Desterro, a Capitania de Santa Catarina era composta por outras duas vilas,

Laguna e São Francisco. Essa era a divisão política e administrativa no ano de 1810.

Saint-Hilaire cita dois números diferentes para a população. Um tomando como base os dados oficiais, o outro segundo “pessoas que, por sua posição, deviam estar mais bem informadas.”293 O primeiro fala que a população da Ilha de Santa Catarina era de 12 mil, enquanto o outro fala em 14 mil habitantes. Essa diferença, segundo ele, ocorria por causa das guerras. Para fugir ao recrutamento, muitas famílias escondiam seus homens, dando informações falsas e evitando, desta forma, que fossem convocados para integrarem as tropas que lutavam no sul da Colônia Portuguesa. A pouca confiabilidade nos números e estatísticas oficiais que tratavam da população também foi motivo de reclamação de alguns Presidentes da Província de Santa Catarina. João José Coutinho constatou que, no ano de 1853, “os mapas de população não me merecem confiança alguma, são a meu ver inteiramente imaginários.”294

Alguns anos antes, em 1840, outro Presidente de Província, Francisco José de Andrade,

291 BRITO, Paulo Joze Miguel de. Op. cit. pp. 48 e 52-53. O autor cita a Invasão Espanhola de 1777, mas não a considera um guerra, nem muito menos a vê como uma possível causa na diminuição do crescimento populacional previsto. 292 Freguesia é um misto de organização religiosa e política que antecede a elevação à vila. Geralmente as freguesias tomam o nome da igreja local. 293 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 167. 294 COUTINHO, Dr. João José. Falla que o Presidente da Província de Santa Catharina, dirigio á Assembléa Legislativa da mesma Província, por occasião da abertura de sua Sessão ordinaria em 1 de março de 1853. Desterro, 1853. p. 20 161

também já havia constatado a impossibilidade de poder contar com mapas estatísticos precisos sobre as povoações. Segundo ele, os motivos principais eram dois: o primeiro era a dificuldade de conseguir informações junto às famílias que tinham medo de informar a presença de filhos varões, bem como sua idade, uma vez que estes podiam ser convocados a assentarem praça. O segundo motivo era a pouca dedicação de alguns dos empregados encarregados de elaborar as listas estatísticas e os mapas parciais.295

Mesmo tendo conhecimento das críticas às informações e dados obtidos sobre a população, optamos por reproduzir duas tabelas. A primeira refere-se à população da

Capitania de Santa Catarina. Os números referem-se aos anos de 1810 e 1820 e trazem dados sobre a população no continente e na Ilha de Santa Catarina, que foram citados pelo governador João Vieira Tovar e Albuquerque, no ano de 1821.

Quadro I -1. População da Capitania de Santa Catarina: 1810-1820 1810 1820 Ilha de Santa Catarina 8.864 11.217 (incluso a vila capital) Continente 21.448 27.005

TOTAL 30.448* 28.222** FONTE: Resumo Geral da população da Capitania de Santa Catarina extraído dos mapas dos comandantes dos Distritos. B.N./RJ. Pasta I - 31,29,18. Documentos Nºs. 9,28 e 29. In: BALDIN, Nelma. A Intendência da Marinha da Santa Catarina e a Questão da Cisplatina. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1980. p. 11. * Total: 30.312 ** Total: 38.222 - A soma total que consta na tabela está incorreta.

A população da Capitania não era muito numerosa. Espalhava-se pelo litoral, concentrando-se na vila de Desterro, capital administrativa, e também pelas outras vilas e freguesias, localizadas no litoral. Na tabela acima os dados apresentados são gerais, sem distinção entre sexo e cor. Na obra de Paulo Joze Miguel de Brito, Memória Política..., são

295 ANDRADE, Francisco José de. Relatório apresentado pelo Presidente da Província aos deputados Provinciais de Santa Catarina à Assembléia de Santa Catharina em 1º de março. Desterro, 1840. p. 30. 162

citados dados mais detalhados, como a cor e o sexo da população. No ano de ano de 1810, a

Capitania de Santa Catarina tinha uma população de 30.339 indivíduos. Desses 11.173 eram homens e 12.507 eram mulheres, todos brancos. Entre as populações de “differente côr”, 293 eram homens libertos e 358 eram mulheres libertas, enquanto que 4.633 eram homens escravizados e 2.570 eram mulheres escravizadas.

A segunda tabela refere-se à população do ano de 1849. Apesar de se referir a alguns anos após o nosso período de análise, preferimos reproduzi-la porque traz dados importantes que nos possibilitam analisar a distribuição populacional pela Ilha de Santa

Catarina. Outro ponto importante nesta tabela é que ela mostra dados sobre as freguesias do interior da ilha, sua população, inclusive com informações sobre a quantidade de escravos.

1849 Desterro Ribeirão Lagoa Santo Canasvieiras Rio Antônio Vermelho Brasileiros 5.283 1.769 2.573 2.243 1.787 975 Estrangeiros 354 11 31 10 25 9 Pretos 635 163 172 84 41 68

Livres 77, 85% 72, 2% 78, 8% 83% 84% 64% Escravos 1.784 748 747 477 355 593

Escravos 22, 15% 21, 8% 21, 2% 17% 16% 36% Total 13.737

Fonte: Arquivo Público do Estado de Santa Catarina In: REBELATTO, Martha. “Nem todos gostavam da escravidão”: fugas de escravos em Desterro na década de 50. UFSC: TCC em História, 2004. p. 22.

Infelizmente os dados referem-se à população de um período posterior ao ano de 1822, data em que o último viajante analisado, Lesson, esteve na Capitania. No entanto, optamos por utilizar os dados, uma vez que muitos relatos eram escritos posteriormente, alguns vários anos após a viagem, como por exemplo o relato de Saint-Hilaire, escrito após o ano de 1847, como mostram as fontes nas quais ele pesquisou e que estão citadas em seu texto. O objetivo, ao apresentarmos esses dados, não é propriamente sabermos a quantidade 163

de pessoas que aqui viviam, mas sim sua distribuição entre livres e escravos, descendentes de europeus ou de africanos. Nesse sentido, esses dados nos permitem verificar que, mesmo não tendo uma população escrava que se equiparasse às regiões do norte do país, os indivíduos escravizados compreendiam em torno de ¼ da população. Em algumas freguesias, como a do

Rio Vermelho, essa população era muito significativa. Os viajantes falavam normalmente em

“negros”, não fazendo uma distinção entre os que eram livres e os que eram escravos. Se aos escravos acrescentarmos os pretos livres, a população “de cor”, ou “negra”, torna-se maior. É essa diversidade populacional que surpreendeu os viajantes, principalmente quando este porto era a primeira parada fora da Europa.

Essa população, com a qual os viajantes travaram contato, mesmo que breve, foi tema de inúmeras falas e considerações. Segundo Saint-Hilaire, “a população da Ilha de

Santa Catarina e mesmo a do resto da província é em grande parte originária das Ilhas dos

Açores.”296 O litoral sul do Império Português foi o local para onde foram encaminhadas, entre os anos de 1748 e 1756, mais de 6.000 pessoas vindas das Ilhas dos Açores. Na

Capitania de Santa Catarina foram assentadas na vila de Desterro e de Laguna e em várias outras localidades como Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, São José, Santo Antônio,

Nossa Senhora do Rosário da Enseada do Brito, São Miguel, Nossa Senhora das Necessidades e Vila Nova. Algumas já eram habitadas, outras foram fundadas pelos próprios açorianos. No

“Continente do Rio Grande” estabeleceram-se inicialmente na vila de Rio Grande e suas proximidades. Posteriormente deslocaram-se para as margens do rio Jacuí e das lagoas dos

Patos e Quadros e para os Campos de Viamão.297 Esses imigrantes vieram para cá com o

296 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 173. 297 Sobre as condições e as características dos grupos que se deslocaram das Ilhas Atlânticas para ocupar o Brasil Meridional no século XVIII ver: PIAZZA, Walter. A Epopéia Açórico-Madeirense. 1748-1756. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1992; CABRAL, Oswaldo R. História de Santa Catarina. Rio de Janeiro: Ed. Laudes, 1970; AREND, Silvia M. F. & WAGNER, Ana Paula. A Família Açoriana na América Portuguesa: novos olhares. In: Fronteiras: Revista de História. nº 7. Florianópolis: Imprensa Universitária, 1999. pp. 167-183. 164

objetivo de ocupar os territórios a fim de garantir sua posse ao governo português. Além disso, fugiam do problemas gerado pela superpopulação nas Ilhas dos Açores.

O mesmo viajante fez uma descrição das características físicas dos homens.

Acostumado a descrever plantas e insetos, Saint-Hilaire comenta que

os homens não são corpulentos e sim magros, de um modo geral, e os do campo têm a pele morena. Tanto estes quanto os citadinos nascidos na ilha têm geralmente os ossos malares muito salientes, mas seu rosto afilado, seu nariz comprido e a finura de seus cabelos provam suficientemente que eles não devem sua origem a uma mistura de sangue indígena e caucásico.298

Saint-Hilaire comentou que na Ilha de Santa Catarina, como já não havia mais

índios quando aqui chegaram os açorianos, não ocorreu miscigenação entre os dois grupos, o que, em sua opinião, era a explicação para a grande quantidade de descendentes de açorianos que compunham a maioria da população na província. Descendentes que conservaram “sem alteração as características da raça européia.”299 Contraditoriamente, todo o parágrafo anterior a esse comentário foi utilizado para apresentar uma elaborada teoria sobre como a natureza, na qual estavam inseridos, influenciou no desenvolvimento físico desses mesmos descendentes de açorianos. Sua análise comparativa dos habitantes do Rio Grande do Sul e de

Santa Catarina merece ser citado na íntegra:

Podemos verificar a importância desse último fator se compararmos os habitantes do Rio Grande do Sul com os de Santa Catarina. Tanto uns quanto os outros são oriundos das Ilhas dos Açores, tendo emigrado mais ou menos na mesma época. Lançados em imensos campos cobertos de capim, os primeiros se tornaram criadores de gado; os outros foram levados para uma região coberta de matas e situada à beira do mar; não podiam espalhar-se para muito longe sem muito esforço e trabalho, e então se tornaram pescadores. Obrigados a correr sempre atrás de suas vacas e touros, os colonos do Rio Grande se habituaram a andar a cavalo; já os colonos de Santa Catarina passam a vida em cima de uma canoa. Os primeiros, respirando sempre o ar puro, galopando sem cessar pelos campos, alimentando-se abundantemente da carne de seus rebanhos, adquiriram uma força e uma intrepidez notáveis; sua tez se coloriu de um belo tom rosado. Os outros, que não têm por alimento senão peixes, moluscos e farinha de mandioca, e que muitas vezes respiram os miasmas de um solo pantanoso300,

298 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 173. 299 Ibidem. p. 135. 300 O solo pantanoso ao qual se refere Saint-Hilaire são os mangues, encontrados em várias regiões da Ilha de Santa Catarina, e que posteriormente foram drenados, permitindo sua ocupação. 165

estão longe de ter uma aparência robusta e comumente apresentam uma tez amarelada e um aspecto macilento.301

A explicação para as diferenças entre os habitantes dos campos do Rio Grande do Sul e os homens do litoral de Santa Catarina era a geografia, a alimentação. Em meados do século XIX, difundiu-se na Europa as idéias de Buckle e Ratzel, maiores representantes das idéias da escola determinista geográfica, que defendia a tese de que o meio condicionava o desenvolvimento cultural de uma nação. Henry Thomas Buckle (1821-1862) publicou, em

1845, na Inglaterra, a obra History of the English civilization, na qual tentou demonstrar como as causas físico-climáticas pesavam sobre o homem, mantendo-o miserável e selvagem, debilitando e enfraquecendo sua razão ao mesmo tempo em que exaltava sua imaginação.

Com exceção da Europa, centro do universo e berço da civilização, a América e as outras partes do mundo permaneciam à sombra da civilização. Mesmo sem conhecer pessoalmente o

Brasil, o autor dedicou algumas páginas para explicar as causas da degeneração do país e de sua população. Grandiosidade do mundo externo e pequenez do mundo interno. O contraste motivado pela pujança da vegetação acovardava a mente humana e a tornava incapaz de avançar. Sua situação só não regrediu devido à contribuição que recebeu do estrangeiro.

Segundo ele, o problema nas regiões fora da Europa, e no Brasil, era que uma natureza tão abundante não incentivava o homem a produzir suas obras, pelo contrário, o inibia.302 Saint-

Hilaire escreveu seu relato alguns anos após ter voltado para a França, entre os anos de 1847

(data da última fonte citada por ele no relato) e 1853 (ano em que veio a falecer). Como ele lia em inglês, a probabilidade de ter tido contato com as teorias de Buckle é grande. Além disso, ele elaborou essas conclusões sobre o clima, a vegetação e os açorianos no capítulo intitulado

“Esboço Geral da Província de Santa Catarina”. Nessa parte da obra ele se permite analisar e

301 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 135. 302 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras,1993. p. 36. Sobre as doutrinas científicas que surgiram no século XIX ver o capítulo II. 166

discutir com outras fontes aspectos como a história, a geografia, os costumes, a colonização, entre outros temas relacionados à Capitania de Santa Catarina. Enquanto no restante do relato ele segue um roteiro de escrita que era determinado pelo transcorrer da viagem, onde a descrição do que via era mais importante do que a análise, no capítulo inicial ele se permitiu analisar os aspectos que considerava mais significativos sobre a Capitania.

Em vários trechos nos relatos dos cientistas viajantes podemos constatar a influência das teorias sobre a América, discutidas no capítulo 4. A explicação de Lesson para a palidez dos brancos era em decorrência do “ar insalubre deste clima.”303 O mesmo repete

Saint-Hilaire em outro trecho de sua obra, onde diz que “este local é bastante insalubre, e vários habitantes que visitei apresentavam uma constituição enfraquecida pelas doenças das regiões pantanosas.”304 Constituição fraca e palidez foram algumas das características dos habitantes locais salientadas pelos cientistas viajantes. A natureza na qual estavam inseridos era diretamente responsável pelas condições físicas dos indivíduos, quando não pela sua degeneração, segundo De Pauw, ou pela sua inferioridade, segundo Buffon. Saint-Hilaire sugere que uma das formas que poderiam ser empregadas a fim de amenizar os problemas que existiam nessas regiões era através do contato com colonos estrangeiros. A outra possibilidade era o curso normal da vida: “e se algum melhoramento chegar a ocorrer, será devido apenas ao passar do tempo ou ao exemplo dos colonos estrangeiros [...] os estrangeiros só terão a perder, e os nativos a ganhar com isso.”305 Ao mesmo tempo em que acreditava no melhoramento inexorável que adviria com o passar do tempo, Saint-Hilaire colocou que o deslocamento de indivíduos para a América, e seu contato com nativos inevitavelmente os modificaria para pior. Já os nativos sairiam ganhando, uma vez que teriam a possibilidade de melhorar através do contato com povos superiores.

303 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 86. 304 LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 269. 305 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 149. 167

Segundo Pernetty, “vêem-se na Ilha de Santa Catarina homens de todo o tipo de pele, do negro até o branco.”306 Sobre a presença de populações de origem africana, escrava ou liberta, encontramos falas contraditórias: enquanto Langsdorff surpreendeu-se, uma vez que “a quantidade de escravos negros de ambos os sexos que se vêm aqui é estranha aos olhos desacostumados de um europeu qualquer”307, para Saint-Hilaire o número de negros

é reduzido, mais ainda o de mulatos. Seriam essas opiniões contrárias somente em decorrência do roteiro seguido pelo viajante? Os que vinham pela primeira vez à América, da Europa direto para Desterro, sem passar por outras regiões do Brasil, como por exemplo a capital, Rio de Janeiro, tinham uma imagem diferenciada dos outros viajantes? Ou como disse o próprio

Langsdorff, seria uma questão de se “acostumar” com essa prática? Se for esse o caso, Saint-

Hilaire estava tão habituado com a presença da escravidão e de suas implicações na população que concluiu que aqui eles eram em pequena quantidade, principalmente tendo como parâmetro de comparação outras regiões do Brasil que ele já havia visitado. Como já mostramos anteriormente, em 1849, a população da Ilha de Santa Catarina era composta de mais ou menos ¼ de escravos, espalhados pela cidade de Desterro e pelo interior da ilha, em suas várias freguesias. Outra hipótese que podemos considerar é de que, entre 1803 e 1820, respectivamente anos das visitas de Langsdorff e de Saint-Hilaire, a população desses grupos tenha diminuído. No entanto, como o tráfico internacional de escravos somente cessou vários anos depois, em 1850, não temos nada que nos leva a considerar essa explicação viável historicamente. Retornaremos a esse tema quando discutirmos o que os viajantes escreveram sobre a escravidão.

Em relação às características da população de Desterro, podemos dividir os discursos dos viajantes em duas vertentes, que não se excluem: por um lado eles elogiam a

306 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 82. 307 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 165. 168

hospitalidade, a gentileza da população local para com os estrangeiros, por outro lado, os habitantes da região não são muito dedicados ao trabalho.

Neste primeiro aspecto, o mais expansivo em seus elogios aos habitantes locais foi Langsdorff. Dois aspectos positivos foram salientados por ele, a hospitalidade e a higiene.

Como o viajante já havia residido em Portugal, aproveitou para traçar um paralelo entre os dois povos, no qual diz que “os costumes e hábitos da terra diferenciam-se, em geral, muito pouco dos de Portugal; o clima é diferente, bem como os produtos consumidos, fatores que causam um modo de viver e usos próprios.”308 Um dos pontos que Langsdorff considerou distinto foi a questão a higiene. Aqui, os moradores andavam melhor trajados, não só usando roupas finas e boas, “mas também no seu comportamento geral são muito limpos”, no que se diferenciavam “acentuadamente dos sujos portugueses.”309

Outro aspecto que, provavelmente por ser do interesse pessoal do viajante, recebeu muitos comentários, foi sobre as manifestações musicais encontradas na ilha. Como ele presenciou a passagem do ano de 1803/1804, pôde participar de várias momentos festivos, inclusive uma festa dos “negros” que, segundo ele, recebiam alguns dias de liberdade para se divertirem. Aproveitavam então para dançar ao som de suas músicas nos terreiros montados em “míseras choupanas ou bodegas públicas”. Vencido pela curiosidade, Langsdorff foi testemunha de uma dessas festas, onde acompanhou suas danças e sua música, “digo música, mesmo que não ouvisse um só dos nossos instrumentos europeus de som ou de corda.”310

Diferente foi sua reação ao ser despertado por uma serenata na véspera da festa de reis: a

“encantadora apresentação” constituía-se em uma “suave e calma harmonia de cantos melódicos, acompanhados de flautas e guitarras.”311 Nesses poucos dias em que ficou em

Desterro, Langsdorff concluiu que a música estava muito presente no cotidiano dos habitantes

308 Ibidem. p. 165. 309 Ibidem. p. 164. 310 Ibidem. p. 169. 311 Ibidem. p. 170. 169

locais, fossem eles descendentes de açorianos ou de africanos. O que os distinguia era o tipo de música, mais refinada no caso dos primeiros, enquanto que a dos escravos era uma

“gritaria monótona, uma marcação barulhenta e selvagem do compasso, com as batidas dos chocalhos e palmas indicando à distância o lugar da reunião.”312 Por outro lado, os descendentes de açorianos

à noite, reúnem-se em grupos de pequenas famílias onde, segundo o costume português, dançam, riem, fazem gracejos, cantam e brincam. Os instrumentos mais comuns são a guitarra e o saltério. A música é expressiva, agradável e contagiante, as canções por seu conteúdo, são as costumeiras e falam geralmente do amor e da moça, das saudades e suspiros do coração.313

Outro viajante que elogiou a hospitalidade local foi Chamisso. Essas demonstrações ocorreram principalmente na ocasião de suas excursões por terra em busca de plantas, quando “éramos recebidos com toda hospitalidade pelos habitantes do lugar, que nos convidavam às suas choupanas e nos ofereciam frutas ou qualquer coisa que dispunham em casa”314, sem cobrar nada em troca dos alimentos consumidos.

Lesson escreveu que encontrou os habitantes “quase sempre afáveis, atenciosos, solícitos a [...] oferecer refrescos” mas, ao mesmo tempo, salientou que “tudo, nestas choças, anuncia o pouco cuidado em que vivem as famílias que as habitam, ou mais ainda, indica a carência de recursos em que se encontram estes habitantes.”315 Apesar do pouco cuidado e da falta de recursos, os agricultores locais ainda eram mais industriosos do que os de outras regiões do Brasil, mas obviamente não se igualavam aos da França e da

Alemanha. Em comparações com os europeus, saímos perdendo, uma vez que somos mais indolentes, uma conseqüência de natureza tão copiosa, mas se fôssemos comparados com os habitantes das regiões norte (sudeste) do país, estaríamos em melhores condições. Numa escala que marcasse a preguiça e a indolência, fomos colocados no centro, entre dois

312 Ibidem. p. 169. Pelo código de posturas de 1845 da cidade de Desterro foram proibidos os ajuntamentos de escravos, ou libertos para fazerem batuques, ou qualquer outro tipo de reuniões, como os reinados africanos. Desterro. Código de Posturas. Lei 222 - 10.maio.1845. 313 Ibidem. p. 163. 314 CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 235. 315 LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 267. 170

extremos: os senhores do sudeste, que viviam do trabalho de seus escravos e os europeus, industriosos e trabalhadores.

Viajantes ingleses, franceses e alemães que visitaram a Itália durante os séculos

XVII, XVIII e XIX também tendiam a ver nos nativos, os “italianos”, o mito do nativo preguiçoso, numa versão européia. Eram recorrentes as descrições dos lazzaroni de Nápoles, homens fortes e sadios deitados ao sol sem fazer nada, num dolce far niente que tornou-se parte integrante da imagem que os europeus do norte tinham dos italianos e de sua dolce vita.

Inicialmente a Itália era vista como o centro da civilização devido a sua herança artística da

Antiguidade, o que motivou as viagens do Grand Tour, enquanto que no decorrer do século

XVIII esta imagem transformou-se. Segundo Peter Burke, os viajantes ingleses que escreveram sobre suas experiências na Itália foram influenciados pelo “mito” da Itália, que tornou-se mais agudo no século XIX, e que a viam como parte integrante da distinção norte/sul. O norte visto como o local da cultura e da civilização e o sul como o espaço da natureza e da selvageria.316 O “mito do nativo preguiçoso” expandiu-se, adaptando-se para populações de outras regiões do mundo, de fora da Europa.

Falas nas quais os habitantes locais eram considerados inertes, poucos ativos e ociosos apareciam nos relatos de Pernetty, que esteve aqui em 1763, de Mawe, em 1807, e de

Saint-Hilaire, em 1820.

A inércia característica dos nativos e os perigos que se corre pela presença dos animais ferozes e das serpentes, impediam os oficiais da guarnição e os moradores da região de ir à caça e nos estimulavam a imitá-los.317

Pode-se corrigir a insalubridade deste lugar limpando e drenando o solo, mas tal empreendimento é árduo, e requer um povo mais ativo e prático.318

De qualquer forma, o dinheiro que eles ganhavam não trazia proveito para a região, já que após cada pescaria eles caíam na ociosidade e negligenciam as

316 BURKE, Peter. O discreto charme de Milão: viajantes ingleses no século XVII. In: Variedades de História Cultural. Tradução: Alda Porto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2000. pp. 140-146. 317 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 83. 318 MAWE, John. Op. cit. p. 194. 171

suas terras. Agora eles se vêem forçados a cultivá-las, o que está longe de constituir um mal.319

A inércia os impedia de caçar, de drenar os pântanos, e de cultivar os campos.

Também era a explicação para sua pobreza, uma vez que, quando tinham dinheiro, entregavam-se à ociosidade ao invés de economizar e se prevenirem para os percalços futuros.

Na opinião de alguns viajantes, era a inércia, a preguiça, o espírito pouco prático e inativo da população local o que atravancava o desenvolvimento da região. Apesar de não utilizarem o termo civilizado ou incivilizado para descrever os habitantes locais, os viajantes davam a entender que sua inatividade, sua preguiça, os aproximava dos “selvagens”, dos incivilizados, inclusive copiando algumas de suas técnicas agrícolas, como a queimada. Por outro lado, para virem a alcançar o patamar de desenvolvimento dos europeus, teriam que desenvolver algumas características, como ser previdente, econômico e trabalhador.

O conceito de civilização foi trabalhado pelo sociólogo Norbert Elias. No primeiro volume de sua obra, O Processo Civilizador, o autor distingue os conceitos de

“kultur” e “civilização” para a sociedade alemã e as sociedades francesa e inglesa. Ele coloca que, apesar das diferenças entre esses dois conceitos, um aspecto os aproxima: ambos representam uma “auto-imagem nacional” e cada sociedade considera “axiomático que a sua é a maneira como o mundo dos homens, como um todo, quer ser visto e julgado.”320 Sobre o conceito de civilização, ele expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. Além disso, resume tudo aquilo que uma sociedade possui e que faz com que ela se considere superior as sociedades antigas ou às sociedades contemporâneas “mais primitivas”.

Civilização não significa a mesma coisa para franceses/ingleses e alemães. Para os primeiros, ela representa o orgulho pela importância de suas nações no progresso do Ocidente e na humanidade: as realizações políticas e econômicas, as realizações técnicas, as concepções

319 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 163. 320 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Volume 1: Uma história dos costumes. Tradução: Ruy Jungmann. 2º ed. (1º ed. Suíça, 1939) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. p. 25. 172

morais, as idéias religiosas e a organização social. Significa também as atitudes e comportamentos. Descreve um processo ou seu resultado. Enfatiza o que é comum ou deveria vir a ser na sociedade, de maneira que estabelece uma distinção entre uma forma “civilizada” e “incivilizada” de fazer as coisas e se comportar. Além disso, refere-se a algo que está sempre em movimento, “para frente”. Ao mesmo tempo que delimita distinções entre os que são civilizados e os que não são, também contribui para minimizar as diferenças nacionais entre os povos, enfatizando o que é comum aos seres humanos, entre aqueles que incorporaram os aspectos que delimitam o que é ser civilizado. Já para os alemães, civilização refere-se à aparência externa dos seres humanos. Para ele é o termo kultur que expressa o orgulho por suas realizações, sejam estas intelectuais, artísticas ou religiosas. Não se refere ao comportamento, uma vez que, para os alemães, as atitudes desvinculadas das realizações tornam-se secundárias. Remete aos produtos humanos nos quais está expressa a individualidade de um povo. A kultur delimita as diferenças nacionais, a identidade de cada grupo.321

Essas concepções, civilização e kultur, são melhor compreendidas a partir da análise das diferenças entre as sociedades francesa e alemã no século XVIII, no Antigo

Regime. É nesse período histórico que são definidas as fronteiras, o papel da classe média e da burguesia nessas sociedades e suas relações com a corte, com a aristocracia. Após o fim do período do terror (1794), quando a revolução torna-se mais moderada, a França considera que o processo de civilização em seu país está encerrado. Seu papel passa a ser o de transmitir aos outros - povos e sociedades atrasadas e/ou selvagens - uma civilização existente e acabada. A consciência da superioridade de sua civilização torna-se a justificativa para a conquista de colônias e seu domínio.322 É com essa crença na superioridade da sua civilização que os viajantes empreendem suas viagens de estudos para as “regiões periféricas” e as descrevem.

321 Ibidem. pp. 24-25. 322 Ibidem. p. 64. 173

Essas descrições compõem um quadro sobre a Capitania de Santa Catarina. Enquanto Choris pintou nossa região, os outros viajantes vão utilizar a escrita para construir uma paisagem, onde estarão representados as pessoas que aqui viviam e a cultura que desenvolveram. Para isso vão recorrer a comparações e paralelos, estabelendo relações. A Europa era tomada como o padrão a ser seguido. Sua organização econômica e política, os hábitos de sua população, sua música etc., eram considerados como os mais civilizados e melhores. A partir de seus relatos, podemos perceber como determinados aspectos são considerados mais importantes, uma vez que são indícios de que as populações locais aproximavam-se do que para eles era considerado como mais civilizado. Segundo Edward Said, foi no século XIX, ou mais precisamente na era do imperialismo, que os europeus se constituíram a partir de uma noção estática de identidade. A partir do início do contato entre os europeus e os não-europeus, “a

única idéia que quase não variou foi a de que existe um ‘nós’ e um ‘eles’, cada qual muito bem definido, claro, intocavelmente auto-suficiente.”323

Um fator que colocava as populações locais em um patamar “menos civilizado” do que os europeus era o fato de que, ao invés de transformarem a natureza, eles se adaptavam a ela, muitas vezes incorporando atitudes e práticas dos indígenas. Saint-Hilaire comentou que “a rotina, ajudada por uma culposa indolência, vem-se opondo até agora a esses pequenos melhoramentos, e os agricultores preferem emigrar a abandonar as práticas que herdaram dos selvagens.”324 Segundo Karen Lisboa

o processo civilizador define-se pela oposição entre a história da humanidade e a natureza física, que tem como ponto de partida e justificativa a crença de que o ser humano é a criatura mais perfeita da natureza. E, quanto mais civilizada, mais fortemente a humanidade se opõe à vida das plantas e dos animais.325

323 SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Tradução: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 27. 324 SAINT-HILAIRE, Auguste. Op. cit. p. 178 325 LISBOA, Karen Macknow. Op cit. p. 203. 174

Civilizar, civilização, para esses viajantes, era a natureza transformada pelo homem. Apesar de seres estudiosos da natureza e de necessitarem de áreas intocadas para realizar suas pesquisas e para coletar material, a cultura opunha-se e era superior à natureza.

Mas mesmo nos locais onde encontraram a natureza transformada, lavouras e campos cultivados, construções e vilas, estas não reproduziam, muito menos se igualavam com o que eles estavam habituados a ver em seus países de origem. Além de uma diferença espacial, europeus falando da América, temos também uma diferença cultural. Eram europeus não- portugueses. Como Peter Burke mostrou em seu trabalho sobre os viajantes ingleses na Itália, existia uma diferenciação interna na própria Europa. Uma distinção que opunha o sul ao norte. Portugal, país detentor de extensos territórios na América, que o abastecia com inúmeros produtos, não fazia parte do grupo de países que teve primazia nas inovações científicas e tecnológicas no século XVIII e XIX.

175

7. Populações de origem africana

Os viajantes estrangeiros que visitavam o Brasil, em sua maioria no século

XIX, se deparavam surpresos, alguns chocados, com a presença do trabalho escravo e de uma imensa população “de cor” no Brasil. Mesmo sabendo que o trabalho escravo africano e crioulo era largamente utilizado no país, uma vez que tinham contato com outros viajantes, pessoalmente ou através da leitura de seus relatos, o impacto inicial era grande. Entre os viajantes analisados, todos falaram em algum momento sobre as populações de origem africana. Louis Choris, em uma de suas litografias reproduziu “negros” dançando após um dia de trabalho.

Em seus relatos os viajantes utilizavam diversas denominações quando mencionavam essas populações. As mais freqüentes eram “negros”, “escravos negros” ou somente “escravos”. Outros termos utilizados eram: “mulatos”, “habitantes nativos da

África”. Entre os viajantes, o termo negro era utilizado como sinônimo de escravo. Saint-

Hilaire, ao descrever um incidente ocorrido na localidade do Ribeirão, ao sul da Ilha de Santa

Catarina, utilizou o termo “negro liberto”. Para fazermos um contraponto as falas dos viajantes sobre as populações afro-descendentes utilizaremos estudos historiográficos recentes, sejam eles sobre Santa Catarina ou sobre outras regiões do Brasil. As denominações para se referir às populações de origem africana no Brasil alteraram-se a partir da segunda metade do século XIX, em decorrência das mudanças326 que ocorreram após a proibição do tráfico de escravos da África para o Brasil. Nos processos crimes com os quais trabalhou,

326 Uma dessas mudanças foi o aumento da população de negros e mestiços livres, o que obrigou a utilização de termos diferentes que dessem conta de condições jurídicas distintas, encontradas entre as populações de origem africana. 176

constatou que, até meados do século XIX, estas populações eram definidas pela sua “cor”. A cor “negra” era sinônimo de escravo ou de liberto (preto forro). “Pardos”327 referia-se a mestiços. Esses poderiam ser cativos, forros ou livres.328 Enquanto a utilização da denominação pardo, utilizada para denominar um indivíduo de ascendência africana que havia nascido livre, indicava sua condição de não-branco, ao ser utilizada para qualificar um escravo ou um forro, reduzia-se ao sentido de mulato ou mestiço. O estudo de Hebe Mattos tenta demonstrar que a noção de cor, que era uma herança do período colonial, não mais designava matizes de pigmentação da pele ou diferentes níveis de mestiçagem, mas sim era utilizado como uma forma para “definir lugares sociais, nos quais etnia e condição estavam indissociavelmente ligados.”329 Nos processos crimes, eram as próprias testemunhas arroladas que, muitas vezes, se declaravam pertencentes a um determinado grupo, se autodenominavam.

Nos relatos dos viajantes, ocorria o contrário. O viajante era quem definia, denominando dessa forma a origem e a situação jurídica das populações descritas.

Entre os viajantes analisados, Pernetty e Mawe foram os que menos espaço dedicaram ao tema. O último, no relato de sua viagem para Minas Gerais, também não dedicou muito espaço para falar dessas populações.330 Como nessa região a população escrava era numericamente maior do que na Ilha de Santa Catarina, podemos concluir que esse silenciamento deu-se em decorrência de seu desinteresse pelo tema e não propriamente devido

à quantidade maior ou menor de populações de origem africana, fossem estas escravizadas ou

327 Pardo foi uma categoria que se estruturou na sociedade colonial brasileira, resultado do raciocínio de hierarquização social. Seu significado foi ampliado para dar conta de uma população cada vez maior que não poderia ser classificada como “preto” (escravo ou ex-escravo de origem africana) ou de “crioulo”(escravo ou ex- escravo nascido no Brasil). Pardo, a partir da segunda metade do século XIX, era a “população livre de ascendência africana, não necessariamente mestiça, mas necessariamente dissociada já por algumas gerações da experiência mais direta do cativeiro”. Ver: MATTOS, Hebe Maria. A Escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime em perspectiva atlântica. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista & GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. pp. 154-155. 328 Livre é diferente de forro. O primeiro refere-se a um indivíduo de ascendência africana que nasceu livre, nunca foi escravo, enquanto que forro remete a seu passado de escravo. Na legislação portuguesa um ex-escravo poderia ter sua alforria revogada. Ver: MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: Os significados da liberdade no sudeste escravista, Brasil, séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 154. 329 MATTOS, Hebe Maria. Op. cit. p. 98. 330 LEITE, Ilka Boaventura. Op. cit. p. 107. 177

livres. No entanto, os outros viajantes deixaram registros que nos permitem visualizar a presença desses indivíduos e sua inserção na sociedade local.

A reação dos viajantes à presença e à condição de vida dos escravos foi distinta. Langsdorff, ao andar pela vila de Desterro, ficou chocado com o

grande número destas criaturas abandonadas, nuas, deitadas frente às portas de ruas laterais e oferecidas à venda. Apenas as regiões púbias estavam cobertas com um velho pano rasgado que após alguns dias eram substituídos por um grosseiro tecido azulado.331

Segundo ele, um “europeu qualquer” desacostumado com tantos “escravos negros”, estranhava sua presença. Mas o pior, o que lhe causou revolta, foram as condições em que se encontravam os que estavam à venda, a forma como se dava o comércio dessas

“pobres criaturas”. Após o choque inicial, Langsdorff teceu algumas críticas ao aproveitamento irracional dessa mão-de-obra, como a utilização de escravos em trabalhos que na Europa eram feitos por animais e o tratamento rigoroso e muitas vezes cruel que lhes era administrado. Segundo ele, a necessidade de povoar as costas brasileiras, incrementando a produção e o comércio, deveria ser motivo suficiente para que o governo aconselhasse “o bom tratamento” aos escravos. No entanto, o que ele constatou é que o próprio governo não estava interessado na “melhoria das condições dos escravos, pois justamente aqueles que estão a serviço da Coroa, nos engenhos de açúcar, na pesca a baleia e nas minas, são tratados com mais rigor e maior crueldade.”332 Sua crítica não teve com alvo a utilização do trabalho escravo, mas sim a forma como era feito o comércio dos indivíduos escravizados, uma vez que se encontravam à venda escravos velhos, doentes ou fracos. Além disso, outra coisa que o chocou foi a preocupação, por parte dos compradores, em saber se o escravo já havia contraído varíola, fator de valorização do mesmo, uma vez que ele tornava-se imune a esta doença.

331 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 165. 332 Ibidem . p. 166. 178

Esse viajante, como muitos outros europeus que estiveram no Brasil no século

XVIII e XIX, não se posicionou contra a utilização do trabalho escravo. A historiografia sobre a escravidão possui diferentes visões sobre os fatores que levaram à implantação e à legitimação desta instituição. Enquanto alguns pesquisadores defendem a predominância dos fatores econômicos, em decorrência da expansão comercial, outros enfatizam a importância do pensamento religioso.333 Hebe Mattos considera que a “existência prévia e legítima da escravidão no Império português foi a condição básica para a constituição de uma sociedade católica e escravista no Brasil colonial.”334 O pensamento teológico-jurídico português que naturalizava a escravidão no Império Português era centrado na noção de cativeiro e guerra justa. O cativeiro dos gentios africanos e seu comércio em nome da conversão e da evangelização foi estabelecido pela bula Romanus Pontifex, de 1455. A justeza de uma guerra era decidida pelo soberano e poderia ser baseada em vários fatores, tais como a legítima defesa, a garantia de liberdade para a pregação do evangelho e, até mesmo, em nome da liberdade de comércio.335

Langsdorff não se posicionou contra a escravidão, mas para ele a utilização desta mão-de-obra poderia ser melhor aproveitada. Ao mesmo tempo, considerava que um melhor tratamento da parte dos proprietários para com seus escravos evitaria problemas, tais como fugas e outros tipos de vingança, como por exemplo, os atentados contra a vida dos donos de escravos. Um caso de assassinato, praticado por um escravo contra seu dono, havia ocorrido pouco antes da chegada de Langsdorff à Ilha de Santa Catarina. Alguns anos depois,

333 Sobre este tema ver: NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial. 1777- 1808. São Paulo: Hucitec, 1986; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras/CNPq, 1988; VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e Escravidão: os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986; ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 334 MATTOS, Hebe Maria. A Escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime em perspectiva atlântica. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista & GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Op. cit. p. 143. 335 Para aprofundar esta questão, ver MATTOS, Hebe Maria. A Escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime em perspectiva atlântica. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista & GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. pp. 141-162. 179

o viajante retornou ao Brasil, fixando-se numa fazenda no estado do Rio de Janeiro. Nos documentos sobre a expedição Langsdorff, realizada entre os anos de 1822 e 1829, estão apontadas a presença de 6 “pretos” e 1 “mulatto” entre os carregadores. Além disso,

Langsdorff possuía um escravo, de nome Alexandre, que foi assassinado.336 Apesar de ser proprietário de escravos, em sua viagem para o Brasil, para sua terceira estada (1822-1830),

Langsdorff investiu grande parte de sua fortuna para trazer imigrantes alemães que seriam empregados em sua fazenda, onde pretendia fundar uma colônia agrícola. Ao todo vieram para o Brasil 85 colonos, hábeis em diversos ofícios, juntamente com 9 pessoas, membros da família ou a serviço de Langsdorff. Partiram de Bremen, a bordo do navio Doris, fretado especialmente para a viagem, e chegaram ao Rio de Janeiro no início de 1822. A utilização do trabalho escravo não significava necessariamente a crença de que esta era a mão-de-obra mais eficaz. Pelo dinheiro investido, o viajante acreditava que seus compatriotas seriam mais eficientes para trabalharem em seu projeto de implantar uma comunidade agrícola. A crença na superioridade dos colonos europeus seria devido a quais fatores: étnica, condição jurídica, ou desenvolvimento cultural? Ou seria devido à combinação de todos esses fatores? Os estudos sobre esse viajante não trazem uma posição definida, mas Langsdorff de certa forma antecedeu em vários anos uma discussão sobre a convivência conjunta, e posterior substituição, dos trabalhadores de origem africana escravizados pelos trabalhadores europeus livres.

Ainda segundo o viajante, na Ilha de Santa Catarina, no final do ano de 1803, um escravo que fosse jovem e sadio custava em torno de 150 táleres espanhóis. O preço elevava-se caso tivesse um ofício ou então fosse experiente no trabalho da lavoura. Outro item que contava positivamente era dominar a língua portuguesa. O sexo também era um fator de diferenciação no preço dos escravos. Enquanto “um homem, na flor da idade, comportava

336 Ver documentos fac-símile publicados em anexo na obra de BECHER, Hans. Op. cit. (sem paginação) 180

entre 200 e 300 piastras, a mulher tinha menor valor.”337 Como os viajantes eram de nações diferentes, vieram em épocas distintas e escreviam para um público europeu, utilizaram referências monetárias díspares, o que inviabiliza calcular os preços praticados no comércio local de escravos. Mas, independente do preço, o investimento inicial tendia a ser recuperado,

pois se deve considerar que tudo o que estes escravos ganham como diaristas ou operários pertence não a eles, mas a seu patrão, e que podem ser alugados por seus donos para serviços na lavoura, para remar, pescar, construir, etc., por um preço de acordo com seu trabalho bem semelhante ao que se faz na Europa com os animais.338

A mão-de-obra escrava era utilizada nas mais diferentes atividades. Além de atender às necessidades de seus senhores e dar conta das exigências de funcionamento dos mercados urbanos, outro fator que levava à aquisição de um escravo era o difundido menosprezo ao trabalho manual na sociedade colonial. Segundo Maria Cristina Wissenbach, a visibilidade dessas populações não decorre necessariamente da quantidade numérica, mas sim de sua inserção nas diferentes atividades, dos “atributos que lhes eram conferidos pela organização do trabalho e da vida social.”339 As áreas rurais também demandavam escravos especializados, uma vez que existia uma diversificação de atividades que extrapolava a atividade na lavoura, tais como as atividades domésticas, os trabalhos nas oficinas e no transporte de mercadorias para as vilas e cidades. Também devemos considerar que os núcleos urbanos irradiavam sua ação por um espaço muito maior do que aquele ocupado pela vila propriamente dita. Antes da construção do mercado público, em 1851, em um dos lados da praça da matriz, os produtos alimentícios, como peixes, verduras e outros gêneros, eram vendidos na praia. Os produtos que abasteciam a vila eram expostos em esteiras ou nas próprias canoas que os transportavam de diferentes localidades da ilha e mesmo do continente.340

337 CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 235. 338 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 166. 339 WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos Africanos, Vivências Ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998. p. 64. 340 CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Notícia I. Op. cit. p. 78-80. 181

Segundo Chamisso, os escravos eram importados das colônias portuguesas no

Congo e em Moçambique. O tráfico prosperava, devido às necessidades locais, que necessitava anualmente “uma quantidade de cinco a sete navios negreiros, cada um com uma média de cem negros; eram usados em substituição aos que morriam cada ano nos serviços da lavoura.”341 Esse viajante ouviu comentários de plantadores que diziam preferir consumir as forças de seus escravos o mais rápido possível e investir na compra de um novo escravo do que preservá-los por mais tempo. Sabendo que seus leitores ficariam surpresos com tal prática, preocupou-se em explicar que sua fonte de informação tinha sido fidedigna: “Tais palavras podem soar alheias aos vossos ouvidos europeus, mas foram pronunciadas por um plantador do Novo Mundo!”342

O tráfico de escravos não era feito diretamente entre as costas africanas e o porto de Desterro. Eles vinham dos mercados do norte, principalmente do Rio de Janeiro, e em menor quantidade de outros portos mais ao sul. O porto do Rio de Janeiro tinha um papel central na distribuição de escravos para a região sudeste e para o sul, enquanto o de Salvador abastecia os mercados do norte. Segundo informações veiculadas pela “Gazeta do Rio de

Janeiro” referentes à movimentação portuária no ano de 1812, dos barcos que saíram do porto do Rio de Janeiro em direção a Santa Catarina, 12% deles vinham carregados com escravos.

Segundo a mesma fonte, no ano de 1817, essa percentagem caiu para 5%.343 A maioria das populações de origem africana encontradas em Desterro pertenciam ao grupo Banto (estes eram identificados pelo seu porto de origem: Cabindas, Congos, Moçambiques, Cassanges,

Benguelas e outros). Também haviam outros grupos, em menor número, originários da região

Sehelo-Sudanesa, conhecidos no Brasil como Minas, Cabo-verdes e Songas. No Livro de

341 CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 235. 342 Ibidem. p. 235. 343 A variação na quantidade de escravos comercializados era influenciada por vários fatores. O ano de 1812 foi um ano de expansão econômica, enquanto que o de 1817 foi de retração. Ocorreu uma aceleração no tráfico após 1808, que estendeu-se até o ano de 1825. A partir de 1826 registra-se uma compra desenfreada de escravos devido à negociação com a Inglaterra, para o fim do tráfico atlântico de escravos. FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. pp. 38-49. 182

Registros de Óbitos da Matriz de Desterro, entre os anos de 1779 a 1811, foram registrados

776 falecimentos de escravos. Juntamente com as informações sobre o óbito, consta o grupo, ou nação, ao qual pertenciam os falecidos. Estavam assim distribuídos:

Angolas, 24; Benguelas, 21; Congos, 15; Camundás, 8; Cassangas, 7; Rebolos, 5; Minas, 4; e 1 de cada um dos seguintes: Quissamãs, Guinés, Mojubes, Moçambiques, Mohumbes. Crioulos, filhos da terra, 55; e novos, isto é, recém-chegados, 2. Com a designação de “da Costa”, isto é, africanos, 284; com a “de nação”, também africanos, mas de procedência ignorada, 292. Dos mestiços, 47 eram pardos e 2 apenas eram cabras, isto é, filhos de negros e de bugre.344

Na ocasião de sua passagem por Santa Catarina, Saint-Hilaire constatou que havia uma “grande desproporção entre o número de negros e negras”. Explica essa disparidade populacional a partir de um fator econômico, a pobreza dos habitantes da Ilha de

Santa Catarina. As terras estavam nas mãos de agricultores pobres, que possuíam pequenas extensões de terras, o que lhes dificultava o acúmulo de bens. Dessa forma

quando um proprietário conseguia juntar dinheiro suficiente para comprar um negro, muito tempo se passava antes que voltasse a reunir novas economias, e quando isso acontecia ele preferia comprar outro escravo do sexo masculino e não uma negra, cujos trabalhos sua própria mulher e seus filhos podiam fazer.345

Sobre esse aspecto da escravidão, Jacob Gorender defendeu a tese de que esta desproporção deu-se em decorrência do exercício de uma lógica empresarial que visava maximizar os lucros. Como existia a possibilidade de substituição imediata e a baixos preços de braços escravos, os senhores brasileiros não tinham a preocupação em preservar este trabalhador. Isso somente iria ocorrer com o aumento geral dos preços, após 1850. Era esta lógica que iria orientar o interesse dos senhores brasileiros por escravos dos sexo masculino, já adultos, mais adequados para as tarefas numa propriedade agroexportadora.346 Herbert

Klein considera que a disparidade sexual era determinada pela oferta africana e não

344 CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Memória II Florianópolis: EdUFSC, 1972. p. 88. 345 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 168. 346 GORENDER, Jacob. O Escravismo colonial. 5 ed. São Paulo: Ática, 1988. pp. 335-336. 183

propriamente pela demanda americana. Apesar do diferencial no preço, isto não era suficiente para explicar uma desproporção tão grande, até porque as escravas também estavam presentes nas plantações de açúcar, café e algodão. Para ele, a menor oferta de mulheres para venda nos portos africanos é explicada pela demanda interna por escravas do sexo feminino na própria

África. Livres ou escravas, elas eram mais valorizadas na maioria das sociedades africanas, o que explica o menor número de mulheres que ingressavam no tráfico atlântico de escravos.347

Esses fatores, somados à precariedade das relações afetivas e o desinteresse em incentivar a reprodução natural dos escravos, levou ao desequilíbrio sexual entre os escravos. O desequilíbrio não era somente sexual, mas também etário. Era grande a importação de escravos entre dez e catorze anos e, a cada dez cativos, nove tinham entre dez e 34 anos. A porcentagem de indivíduos menores de dez anos era de 4%. Esses números referem-se à entrada de cativos no porto do Rio de Janeiro na segunda metade do século XVIII.348

A diferença numérica entre os sexos, combinada com a diferença de idade, vai ser um dos fatores que influirá nas relações afetivas e matrimonias entre os escravos. Saint-

Hilaire, ao comentar sobre o casamento entre os cativos, diz que

entre os 2.535 escravos que havia na Ilha de Santa Catarina em 1841, somente 10 eram casados, sendo que na cidade de Santa Catarina [Desterro], particularmente, cujo número de escravos chegava a 1.019 não havia um único que fosse casado.349

Devemos considerar que, para os viajantes, bem como para a elite local e seus representantes políticos e religiosos, somente eram consideradas as relações familiares regulamentadas pela Igreja. Nesse sentido, outros tipos de relações, como o concubinato, estabelecidas entre os cativos, ou destes com indivíduos livres ou libertos, por fugirem ao padrão estabelecido, não eram visibilizadas. Por outro lado, quando relatadas, as relações não

347 Sobre os fatores desta valorização ver: KLEIN, Herbert S. A Escravidão Africana: América Latina e Caribe. Tradução: José Eduardo de Mendonça. São Paulo: Brasiliense, 1987. pp. 166-167. 348 FLORENTINO, Manolo. Op. cit. p. 59. 349 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 168. Saint-Hilaire este na Ilha de Santa Catarina em 1820, mas escreveu seu relato após o ano de 1847. As informações sobre o número de escravos casados foram retiradas de outras fontes consultadas, como relatórios de governo e relatos de outros viajantes. 184

regulamentadas eram descritas como uma amostra da imoralidade que grassava entre as populações de origem africana, ou então como um exemplo da frouxidão moral de seus senhores. Para Saint-Hilaire, o número reduzido de casamentos legais contribuía para “provar, infelizmente, que os habitantes dessa região não são dotados de uma moral muito elevada.”350

Os estudos recentes sobre a família escrava, utilizando documentos como livros de batizados e casamentos de escravos, inventários post-mortem e processos-crimes, têm permitido conclusões distintas sobre os relacionamentos familiares entre os escravos.

Robert Slenes salienta que as pesquisas realizados até este momento no Brasil possuem um caráter fragmentário, referindo-se a regiões restritas, muitas vezes a um município, ou mesmo a uma única fazenda, e abarcando um período curto de tempo. Apesar das dificuldades, esses estudos são importantes porque permitem observar sob novo enfoque as relações amorosas e familiares que os escravos estabeleceram entre si. Essas pesquisas tem mostrado que “durante os períodos e nas áreas onde eram comuns os casamentos legais, regulamentados pela Igreja

Católica, essa foi uma possibilidade de relacionamento que a maioria das mulheres cativas realizava, principalmente nos plantéis que tinham mais de 10 escravos.”351

Mesmo em casos de plantéis menores, podiam ser encontrados casos de famílias legalmente constituídas, apesar dos índices mais reduzidos. Os estudos em plantéis onde o casamento não era freqüente têm mostrado que isto não significava a ausência de relacionamento estáveis, muitos vezes longos, o que é comprovado pela idade dos filhos em comum.352 Segundo Manolo Florentino e José Roberto Góes, a socialização entre os cativos ocorria através das famílias. Enquanto a análise dos inventários mostra somente as relações consangüíneas e matrimoniais sancionadas pela Igreja, os processos crimes mostram que o

350 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 168. 351 MATTOS, Hebe Maria. Op. cit. p. 125. 352 Ibidem. p. 126. 185

amasiamento, uma relação não-sancionada pela instituição religiosa e, muitas vezes, nem pelos senhores, era respeitada entre os ‘parceiros’, entre os companheiros de infortúnio.353

Para Slenes a organização nos grandes complexos cafeeiros e açucareiros da região de Campinas, mesmo criando empecilhos para a formação de grupos de parentela, durante todo o século XIX, não conseguiram evitar a formação de famílias conjugais. Em alguns casos, redes de parentesco extensas foram constituídas, em maior número do que nas propriedades com plantéis menores. Na opinião deste autor,

a família cativa - nuclear, extensa, intergeracional - contribuiu decisivamente para a criação de uma “comunidade” escrava, dividida até certo ponto pela política de incentivos dos senhores, que instaurava a competição por recursos limitados, mas ainda assim unida em torno de experiências, valores e memórias compartilhadas. Nesse sentido, a família minava constantemente a hegemonia dos senhores, criando condições para a subversão e a rebelião, por mais que parecesse reforçar seu domínio na rotina cotidiana.354

Chamisso comentou que os escravos, quando junto de famílias mais pobres, eram melhor tratados do que quando em estabelecimentos maiores: “os escravos que estão nas casas dos senhores ou mesmo junto às famílias mais modestas, têm melhor aspecto humano que os usados unicamente como força motora.”355 Os estudos referentes aos grandes plantéis, localizados no Rio de Janeiro e em São Paulo, mostram que a presença de um maior número de escravos concentrados num mesmo local de trabalho facilitava a constituição das relações familiares, muitas destas consentidas pelos proprietários e regulamentadas pela Igreja. Nas grandes lavouras de café como nas de açúcar, principalmente naquelas que possuíam mais de

10 cativos, os escravos possuíam maiores possibilidades de casar, constituir famílias, e principalmente, mantê-las, inclusive formando redes de parentesco extensas. Essa

353 FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. pp. 80-92. 354 SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 48. 355 CHAMISSO, Adalbert von. Op. cit. p. 235. 186

possibilidade era mais freqüente nessas unidades produtivas do que naquelas que se dedicavam a outras atividades.356

Nos anúncios de vendas de escravos, publicados nas décadas de 50 e 60 do século XIX, nos jornais de Desterro, aparecem casos de crianças que eram disponibilizadas para o comércio. A maioria tinha entre 4 a 12 anos de idade, mas em alguns anúncios eram menores, não tendo mais do que 3 anos de idade. Dos 15 anúncios citados por Cabral, em 2 as crianças eram vendidas junto com suas mães. Nos outros, não existem referências ao que havia ocorrido as mães. Em nenhum desses anúncios cita-se a presença do pai das referidas crianças.357 Duas notícias, uma publicada no jornal “O Mensageiro” do dia 13 de agosto de

1856 e a outra no jornal “O Constitucional” no ano de 1868, falam de famílias escravas que estavam na eminência serem separadas, não fosse a interferência de alguns indivíduos que, compadecidos, evitaram seu desmantelamento. O primeiro anúncio fala de uma escrava e seus

6 filhos menores, colocada à venda em leilão, uma vez que seu dono falecera sem deixar herdeiros. A mãe e 2 filhos foram arrematados pelo comendador Martinho José Callado que, compadecendo-se com seu sofrimento, providenciou a compra dos outros 4 filhos, a fim de evitar a separação. A segunda notícia trata do acontecido no dia 29 de outubro de 1867, quando vários cidadãos de Desterro promoveram uma subscrição a fim de libertarem uma mãe, suas 3 filhas e sua sobrinha, que estavam à venda em praça pública. Assim, as pardas

Clemência, Maria, Francisca, Inocência e outra ainda não batizada, tornaram-se livres.358

A partir dessas notícias, publicadas em jornais, podemos constatar que famílias constituídas durante a escravidão poderiam ser separadas pelo comércio escravo. Não foi o destino das duas famílias citadas nos jornais, mas era o de muitas outras, como podemos constatar pelos anúncios de venda de crianças escravas. Para obtermos maiores informações e análises conclusivas sobre famílias escravas em Santa Catarina, somente com a ampliação de

356 SLENES, Robert W. Op. cit. p. 47. 357 CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Memória II. Op. cit. p. 105. 358 Ibidem. pp. 108-109. 187

pesquisas que aprofundem o tema, utilizando fontes diversas e uma metodologia que permita o cruzamento das parcas e esparsas informações sobre estas populações. As pesquisas realizadas nos últimos anos no Brasil tiveram o importante papel de romper com uma visão etnocêntrica e racista sobre os cativos e suas relações afetivas, que foi corrente na produção historiográfica sobre a escravidão durante várias décadas.359

Deixando de lado o tema da organização familiar dos cativos e passando para suas condições gerais de vida, retornamos as falas dos viajantes. Lesson constatou que a situação dos escravos não era das melhores, não necessariamente por causa de sua situação jurídica, de trabalhadores destituídos da liberdade, mas por causa das condições financeiras de seus donos. Como seus proprietários eram “senhores pouco ricos”, os escravos eram “mal alimentados, mal vestidos e seu aspecto é de uma profunda miséria e um embrutecimento completo.”360 Saint-Hilaire, em sua visita à vila de São Francisco, também constatou que, apesar da presença de escravos, um dos indícios de riqueza no Brasil, a vila havia permanecido pobre. Quando de sua estada na freguesia do Ribeirão da Ilha, foi recebido pelo vigário da paróquia de Nossa Senhora da Lapa que lhe informou que seu rebanho era composto de 1.900 indivíduos; destes, 400 eram escravos do sexo masculino e 100 eram escravas do sexo feminino. Nessa localidade existiam vários engenhos que produziam açúcar e também uma armação de caça de baleia. A posse de escravos era difundida e,

como ocorria no resto da ilha, não havia ali nenhuma família que possuísse mais de um ou dois escravos, mas o desejo de todos os agricultores era estar de posse de algo que satisfizesse ao mesmo tempo sua vaidade e sua indolência.361

Na opinião de Saint-Hilaire, a aquisição de escravos era mais um item que comprovava a indolência dos habitantes locais. Sua análise não passava pela compreensão da

359 Sobre a historiografia da escravidão no Brasil ver: QUEIRÓZ, Suely Robles Reis de. Escravidão negra em debate. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2001. Robert Slenes analisou a historiografia brasileira e norte-americana referente a família escrava em SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. Capítulo I. 360 LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 268. 361 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 188. 188

estrutura econômica colonial, na qual o trabalho estava assentado sobre a mão de obra cativa.

Em Desterro, como em outras regiões do país, a difusão da posse de escravos nos leva a concluir que a escravidão era amplamente aceita pela sociedade. No quadro populacional de

Desterro, a população escrava chegou em torno de 40% da população no ano de 1831. Em relação à Capitania de Santa Catarina, a percentagem é menor. Para o ano de 1810 era de

22,83%. No ano de 1831, 23,99% da população era composta por escravos.362 Como a região que fazia parte da Capitania de Santa Catarina limitava-se ao litoral, e a maior parte da população concentrava-se principalmente na Ilha de Santa Catarina, onde estava localizada a capital da província, Desterro, a presença da população escrava não pode ser negada, ou invisibilizada.363 Além disso, essa população torna-se mais visível uma vez que estava inserida em todas as esferas produtivas da sociedade local, fosse no interior das moradias como domésticas, amas, pagens, etc., fosse na rua, como quitandeiras, artífices, jornaleiros, carregadores, marinheiros, entre outras atividades.

Pelo recenseamento de 1872, podemos ter uma noção de como eram distribuídos os escravos por atividade na Ilha de Santa Catarina. Devemos salientar que esse período é posterior a 1850, quando houve um descréscimo numérico dessa população devido ao tráfico interno, que roubou braços do sul do Brasil em favor da região central, principalmente São Paulo. Entre os 3.978 cativos, 1.072 estavam envolvidos com os serviços domésticos, e desses 915 eram escravos do sexo feminino. Na atividade agrícola, 699 eram homens e somente 26 eram mulheres, totalizando 725 escravos que foram recenseados como lavradores. Os escravos também eram utilizados em atividades diversas como marítimos (35 escravos), operários de edificações (56 escravos), pescadores (25 escravos), artistas (21

362 MORTARI, Cláudia. Os Homens Pretos do Desterro: um estudo sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (1841-1860). Porto Alegre: Dissertação de Mestrado/PUC. 2000. pp. 43-44. 363 Sobre o discurso político e historiográfico que invisibilizou as populações de origem africana no sul do Brasil, principalmente em Santa Catarina ver: LEITE, Ilka Boaventura (org.). Negros no Sul do Brasil: invisibilidade e territorialidade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996. Principalmente os artigos Descendentes de Africanos em Santa Catarina: invisibilidade histórica e segregação e Escravidão e Preconceito em Santa Catarina: história e historiografia. 189

escravos), costureiras (57 escravas), operárias em tecidos (46 escravas), etc. Ao todo foram citadas 15 atividades diferentes nas quais era utilizado o trabalho escravo. Além desses, 713

(381 escravos e 322 escravas) foram citados como sem profissão364, o que não significa que não estavam envolvidos em algum trabalho produtivo. Devemos salientar que na segunda metade do século XIX, a vila de Desterro aumentou sua população e sua estrutura social diversificou-se, o que contribuiu para o surgimento de novas atividades, que provavelmente não existiam no final do século XVIII e início do século XIX, período no qual está centrada nossa pesquisa. Optamos por utilizar esses dados a fim de mostrar como a população escrava estava inserida nas diferentes atividades econômicas da cidade.

Saint-Hilaire salientou que

enquanto que nas regiões auríferas e mesmo naquelas onde a cana-de-açúcar constitui sua única riqueza o número de escravos iguala ou ultrapassa o de homens livres, na Província de Santa Catarina, onde não existem minas de ouro em exploração nem grandes engenhos de açúcar, essa proporção é no máximo de 1 escravo para 5 homens livres. Essa diferença não é evidentemente um sinal de riqueza [...] mas indica um grande progresso no que se refere à moral pública.365

Apesar de citar que o número de escravos nesta região era menor do que em outras regiões do Brasil, Saint-Hilaire, como outros viajantes, ressaltou que sua distribuição entre os proprietários era muito difundida na Capitania de Santa Catarina. Um número maior de famílias tinha poucos escravos, de um a dois escravos. A posse de grande número de escravos por um mesmo proprietário era a exceção e não a regra em Santa Catarina, principalmente no litoral, onde a ocupação foi feita através da imigração de famílias de açorianos que receberam porções de terras menores do que em outras regiões do Brasil. O que as falas dos viajantes dão a entender é que, apesar do número menor de escravos, estes estavam inseridos na sociedade, uma vez que a posse era mais difundida. Através da análise do Livro de Óbitos de Escravos da Matriz referente aos anos de 1804 a 1811, Cabral levantou

364 CARDOSO, Fernando Henrique. Negros em Florianópolis: relações sociais e econômicas. Florianópolis: Insular, 2000. pp. 108-109. 365 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 163. 190

os nomes de alguns habitantes da Ilha de Santa Catarina que eram proprietários de um número relativamente alto de escravos. José Luís do Livramento, Irmão da Ordem Terceira e da

Irmandade dos Passos, um dos fundadores do Hospital de Caridade, proprietário de uma loja de tecidos e de uma casa de molhados na vila, enterrou no período citado, 34 escravos. No mesmo período de 8 anos, outros moradores da vila também perderam um número considerável de escravos, vitimados provavelmente por uma epidemia de sarampo e varíola.366

Outra grande proprietária de escravos foi a Armação de Nossa Senhora da

Piedade, localizada em São Miguel, na parte continental da província, próxima à Ilha de

Anhatomirim. Criada em 1745 para a caça da baleia e seu beneficiamento, foi administrada, entre os anos de 1801 e 1816, pela Real Administração da Pesca de Baleia. Em 1836, sua administração foi repassada pelo governo à Marinha e, em 1847, passou a abrigar uma colônia de alemães. Nos outros períodos (1745-1815/ 1817-1835) a armação foi administrada por particulares, através de concessão. No ano de 1816, o empreendimento mantinha 125 escravos ativos, mas 45 estavam na condição de “encostados”, por causa de alguma doença ou então por outros motivos. Além disso, na temporada de caça, entre os meses de julho a outubro, eram alugados escravos de pequenos proprietários da região. Durante a temporada de 1816,

32 escravos estavam vinculados à armação nessa condição. Além da armação de Nossa

Senhora da Piedade, existiram outras 4 armações de caça de baleias no litoral de Santa

Catarina.

Saint-Hilaire observou que havia uma distribuição de atividades entre os trabalhadores da armação: “Os homens empregados na fabricação do óleo eram escravos, mas na pesca utilizavam-se homens livres, que mereciam mais confiança.”367 Entre os livres, o pagamento era diferenciado conforme a atividade exercida, mais ou menos perigosa, e

366 CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Memória II. Op. cit. pp. 102-103. 367 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 129. 191

conforme o número de baleias abatidas. Assim, os arpoadores recebiam mais do que os timoneiros que, por sua vez, recebiam mais do que os que trabalhavam nos barcos de socorro.

Os trabalhadores envolvidos nessa atividade econômica eram escravos e trabalhadores livres, lavradores pobres. O estudo de Fábio Campos sobre o trabalho escravo na armação de Nossa

Senhora da Piedade acrescenta dados diferenciados. Mostra-nos que os escravos trabalhavam em várias atividades e não somente nas caldeiras. Além disso, os escravos alugados, e não somente os homens livres, eram utilizados para realizar a função de remeiros. Essa atividade era perigosa e por isso, ou pela pressão dos mesmos, era recusada pelos escravos pertencentes

à armação.368 A atividade de caça à baleia, e seu beneficiamento, era uma atividade bastante rentável para Santa Catarina. O óleo era o principal produto, e destinava-se à venda para fora da Capitania. Também se aproveitavam várias outras partes do animal, como as barbatanas, os ossos e a própria carne, que era seca e consumida na comunidade.

Para Saint-Hilaire, Santa Catarina possuía um ponto positivo em relação às outras regiões do país que ele havia visitado. Aqui o trabalho não era aviltado, uma vez que havia menos escravos, o que obrigava muitos colonos a trabalharem suas terras, hábito que não era comum no norte do Brasil. Quando os viajantes falam dos escravos, o tema da preguiça e da indolência também estava presente. A imagem que suas falas transmitem é que essas características, inerentes aos que viviam na América, além de influenciar os colonos, também contaminavam seus escravos, como se o clima e a natureza fossem mais fortes do que os homens. Lesson comentou que o trabalho dos escravos na terra limitava-se à capina da superfície. Quando iam desbravar um terreno restringiam-se a cortar as árvores e atear fogo.

Após a queima, semeavam entre os espaços vazios. Segundo ele, a agricultura colonial para exportação “ainda está por surgir” uma vez que não havia uma demanda externa que justificasse o investimento na produção.

368 CAMPOS, Fábio Israel Vieira de. O trabalho utilizado para a caça da baleia no litoral catarinense - Armação Grande ou de Nossa Senhora da Piedade 1746-1836. Florianópolis: TCC em História/ UFSC. 2002. 192

Os viajantes também salientaram a existência de “mulatos” entre a população local. Pernetty, em 1763, diz que “os mulatos são em maior número, geralmente feios, com um ar selvagem, como se fossem uma mistura de brasileiros com negros.”369 Lesson, em

1822, dividiu a população local em “três classes de habitantes: os brancos, os mulatos e os negros”370, porém os “mulatos” eram mais numerosos e muitas vezes se confundiam com os brancos. O viajante não especificou se esses eram livres ou escravos. Os “negros”, segundo ele, eram majoritariamente escravos. Como já foi comentado no início do capítulo, os viajantes utilizam indistintamente algumas nomenclaturas, não coincidindo com as formas de denominação que as populações de origem africana utilizavam para se auto-identificarem.

“Negros” e “escravos” eram as formas mais utilizadas, separadas, mas muitas vezes juntas. O tempo de permanência, e as dificuldades de comunicação, não permitiram a esses

‘estrangeiros’371 perceberem características peculiares do sistema escravista e das populações que haviam sido submetidas ao trabalho escravo.

Alguns discursos dos viajantes contribuíram para criar estereótipos, como o do liberto arrogante. É o caso do comentário de Saint-Hilaire sobre Manuel, um dos trabalhadores que ele contratou para transportar sua bagagem.

Nada se igualava à arrogância desse homem; na verdade, nada se iguala à arrogância dos negros libertos. Uma vez que a sua cor pode fazer com que sejam tomados, a qualquer momento, por escravos, sua maior preocupação está em desmentir essa condição, e eles se recusam a fazer uma porção de coisas que nenhum homem branco dotado de bom-senso consideraria humilhante.372

A partir de falas dos viajantes podemos perceber determinadas práticas locais, que regulavam as relações entre os escravos e os seus proprietários. Um exemplo é o hábito de alguns proprietários cederem momentos de folga, devido às festividades de final de ano.

369 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 82. 370 LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 274. 371 Estrangeiro nesse contexto não significa somente ter nascido em outro país, mas principalmente ser estrangeiro à cultura e às peculiaridades da sociedade que eles estavam descrevendo. O olhar de fora permite perceber o peculiar, o diferente, mas não se aprofunda a ponto de distinguir algumas características. Muitas vezes esse olhar homogeniza e generaliza aspectos da sociedade local. 372 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 189. 193

Os escravos negros, presos energicamente ao trabalho durante todo o ano, recebem nestas festas de ano novo, apenas por alguns dias, a sua liberdade. Divertem-se então à sua maneira, praticando durante esta época suas danças nativas, às quais observa-se com grande interesse. Apesar de que a melhor descrição que se faça destas danças não represente mais que uma imagem incompleta, vou procurar descrever, com muito esforço, algumas destas cenas.373

Langsdorff continuou seu relato descrevendo uma festa na qual participavam as populações de origem africana, com suas músicas e suas danças. Além dele, Chamisso também comentou que o Natal era considerado a festa das crianças e dos negros. Nessa época eles saíam pelas ruas, dançando, brincando e cantando. Outra prática era ir de casa em casa, em grupos, fantasiados, em busca de pequenos presentes. Não se sabe se essas brincadeiras eram as praticadas pelas crianças ou pelos negros, ou então por ambos. O viajante não especificou, dando a entender que ambos comportavam-se da mesma forma, igualando-os, ou seja, infantilizando os negros. Além dessas festas, havia também as danças realizadas no final do ano, descritas por Langsdorff, e os batuques, que na opinião de Saint-Hilaire era uma

“dança obscena”. Festas onde participavam escravos eram aceitas, principalmente os folguedos dos Ternos de Reis, tanto que, em 1843, a Câmara Municipal de Desterro negou o requerimento de Manoel do Nascimento Gomes, no qual ele pedia a proibição destas festas, que eram realizadas pelas ruas da cidade. No entendimento da Câmara, as festas, bem como os ajuntamentos de escravos “em horas mortas” eram “prática comum.”374

Outro aspecto tratado nos relatos refere-se à “liberdade”. Lesson assinalou que existiam poucos indivíduos de origem africana que conseguiram adquirir sua alforria.

Segundo ele, “o pequeno número de negros livres deve sua liberdade unicamente ao arrependimento e à superstição; não é senão sobre o leito da morte que, sentindo remorso pelo medo da justiça divina, o branco religioso é capaz de uma ação generosa.”375 Essas liberdades

373 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 169. 374 AHMF. Livro de Registro da Correspondência da Câmara Municipal. Apud. MORTARI, Cláudia. Op. cit. p. 53. 375 LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 274. 194

eram motivadas não pela crença de que a escravidão era uma injustiça, mas sim devido ao medo, ao arrependimento que alguns senhores sentiam no momento da morte.

Em estudo realizado tendo como tema as alforrias de escravos no Rio de

Janeiro, Manolo Florentino constatou que no final do século XVIII libertava-se mais do que no início do século XIX. Os meios para conseguir uma carta de alforria eram três: a alforria pela compra, a alforria gratuita e a alforria sob condição. Na documentação analisada entre os anos de 1789 e 1840, o maior número de alforrias foi conquistado através da compra, em segundo lugar ficou a alforria gratuita e em terceiro a alforria sob condição. Essa distribuição pode ser explicada pelo baixo preço dos escravos praticados no período, principalmente antes de 1808, e pelas características do mercado de trabalho na cidade do Rio de Janeiro, que permitia o acúmulo de pecúlio por parte dos escravos, que era revertido para a compra de sua liberdade ou de terceiros. O segundo período, corresponde aos anos 1840-1864. Nesse momento a alforria gratuita suplantou a alforria por compra entre as formas de um escravo alcançar sua liberdade. Em terceiro lugar ficou a alforria sob condição, como no primeiro período analisado. O fator que levou à modificação foi a elevação do preço dos escravos no mercado, o que tornou mais difícil o acúmulo do dinheiro necessário para a realização do negócio. Outro aspecto que o autor analisou é a questão da etnia dos que conquistaram a carta de alforria. Entre os anos de 1840 e 1860, 52% a 55% dos que recebiam alforrias gratuitas eram africanos. Esses dados modificaram-se no período seguinte, de 1860 a 1864, quando os africanos passaram a ser 45% dos alforriados gratuitamente. Com o fim do tráfico, diminuiu a alforria de africanos, o que remete à conclusão de que os números referentes ao acesso à liberdade estavam vinculados à participação demográfica dos escravos africanos e crioulos na população do município do Rio de Janeiro.376 Esses dados dizem respeito à capital da colônia, e depois ao Império do Brasil, e um dos principais portos de entrada de escravos vindos da

376 FLORENTINO, Manolo. Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas de pesquisa. Topoi. Rio de Janeiro, set. 2002, pp. 9-40. 195

África. Não podem ser considerados para a vila de Desterro, mas servem para levantarmos alguns questionamentos ao discurso de Lesson. Seria a alforria gratuita a única, ou mesmo a mais freqüente das formas dos escravos alcançarem a liberdade em Desterro? E até que ponto a religiosidade influenciou nas concessões de alforrias gratuitas? Essas e outras perguntas sobre o tema somente poderão ser respondidos através de pesquisas empíricas.

Outra forma de livrar-se da escravidão era através das fugas ou mesmo dos suicídios. Lesson, em suas andanças pelo interior da Ilha de Santa Catarina, relatou que

“várias vezes encontramos montes de terras removidas, sustentando uma pequena cruz de madeira: era o último marco dos sofrimentos de um pobre escravo negro, o refúgio onde ele quebrara seus grilhões.”377 A fuga era uma das formas de livrar-se da escravidão. Quem a utilizava era principalmente os escravos do sexo masculino, como constatou a pesquisa de

Martha Rebelatto, na qual utilizou como fonte os anúncios de fugas de escravos publicados entre os anos 1849 e 1860, nos jornais que circulavam em Desterro. Outro aspecto que concluiu era que a maior parte dos anúncios, além de descrever características dos escravos fugitivos, oferecia recompensas. Elas tiveram seus valores aumentados durante a década de

50, acompanhando o aumento no valor do escravo no mercado, em decorrência do fim do tráfico internacional. Outra característica que os anúncios deixavam entrever era que muitos dos escravos que haviam fugido tinham sido recém-adquiridos, uma vez que em vários anúncios eram citados o nome e o endereço dos antigos proprietários do fugitivo.378 Isso nos leva a outra questão: os laços afetivos e familiares que os escravos estabeleciam nas propriedades onde eles viviam. Esses relacionamentos, muitas vezes, eram os motivos que levavam a fuga, já que possibilitariam o retorno à convivência com seus entes queridos. Os

377 LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 267. 378 REBELATTO, Martha. “Nem todos gostavam da escravidão”: fugas de escravos em Desterro na década de 50. Florianópolis: TCC em História, UFSC. 2004. pp. 196

jornais de Desterro também noticiaram casos de suicídios, alguns bem sucedidos e outros não.

A maior parte dos casos ocorreu nas décadas de 50 e 60. Os motivos citados foram loucura

(doença mental), delírio em decorrência da “febre das bexigas”, e também a recusa em embarcar para ser vendido para fora da província.379

As falas dos viajantes, que descreviam características da sociedade com a qual tiveram contato, ou então emitiam opiniões sobre a escravidão, podem ser tomadas como uma porta de entrada para vislumbrarmos aspectos de nosso passado. No entanto, como outras fontes, não permitem apreendermos a totalidade de uma sociedade, de um grupo, ou de sua cultura. Apesar de muitos viajantes, em seus relatos, deixarem transparecer um olhar que tentava abarcar o todo do que ele estava vendo e vivendo, suas descrições eram marcadas por recortes e limitações. Outro aspecto a ser considerado: até que ponto as informações que os viajantes citaram em seus relatos não foram adquiridas a partir da convivência com os próprios proprietários de escravos? Saint-Hilaire, por exemplo, utilizou várias fontes que foram produzidas pela elite local. No entanto, os relatos de viajantes, a partir de uma leitura minuciosa e do cruzamento com outras fontes, permitem perceber aspectos da sociedade local e, até certo ponto, aspectos da cultura e do cotidiano que as populações de origem africana criaram na terra para onde eles foram trazidos.

379 CABRAL, Oswaldo. Nossa Senhora do Destêrro. Memória II. Op. cit. pp. 136-137. 197

8. Trabalho e indolência: uma outra cultura

Os indivíduos que habitavam a Ilha de Santa Catarina na segunda metade do século XVIII e na primeira metade do século XIX dedicavam-se a inúmeras atividades econômicas. A principal era a agricultura que, muitas vezes, era combinada com outras atividades como o trabalho nas armações de caça à baleia, a pesca, o fabrico de tecidos no tear, entre outras atividades. Podemos enumerar algumas das atividades desenvolvidas na região a partir dos produtos exportados pelo porto da vila de Desterro, que no ano de 1820 foram

a farinha de mandioca, o arroz, o óleo de baleia, o cal, o feijão, o milho, o amendoim (arachis hypogea), o melado, a madeira para a construção e carpintaria, couros, potes de barro, peixe salgado, tecidos de linho e tecidos feitos com uma mistura de cânhamo e algodão (riscados).380

A lista acima foi elaborada por Saint-Hilaire, a partir de dados coletados na ocasião de sua passagem pela vila de Desterro no ano de 1820. É importante lembrar que ele redigiu seu relato anos depois, quando já estava na França, e utilizando como material de apoio outros relatos e também documentos administrativos e memórias históricas. Essas informações precisariam ser confrontadas com outras fontes. O problema é que, quando elas existem, não se referem ao mesmo período histórico. Para fazermos essas análises, o primeiro material que pensamos foi os livros onde era registrado o movimento do porto de Desterro, tais como os Livros da Alfândega. Mas esse material, da mesma forma como os Livros do

Thesouro Provincial, as Falas e Relatórios dos Presidentes de Província, que encontram-se no

380 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 172. 198

Arquivo Público do Estado de Santa Catarina, não permitem elaborar uma série de dados que possibilitariam o acompanhamento do que foi produzido e comercializado na Capitania, depois Província de Santa Catarina. As fontes são esparsas e não se referem a períodos longos.381 Além disso, a maioria dessas fontes dizem respeito a um período posterior ao da passagem dos viajantes, entre os anos de 1840 e 1889. Esse é o período contemplado pela historiadora Laura Machado Hübener em seu estudo sobre o comércio na cidade de Desterro no século XIX, com ênfase na década de 60, período de maior atividade comercial. Mesmo tendo presente a incompatibilidade temporal entre esta pesquisa e as falas dos viajantes que pesquisamos, utilizaremos algumas das suas informações para entendermos a realidade econômica na qual estavam envolvidos os habitantes de Desterro e da Província. Tomando como base a lista citada anteriormente, elaborada por Saint-Hilaire poucos anos antes do processo de Independência do Brasil, podemos constatar que a província dedicava-se à atividades variadas. Além da agricultura, dedicava-se à pesca, à produção de utensílios em barro, ao fabrico de tecidos, bem como ao trabalho com madeira e com couro. Na listagem não são encontrados aqueles produtos nos quais o país havia se especializado, como por exemplo o açúcar, e que tinha como objetivo o abastecimento do mercado externo, principalmente o europeu.

O trabalho de Darcy Pacheco sobre a Junta da Real Fazenda de Santa Catarina, apesar de contemplar o período de 1817 a 1831, traz um quadro comparativo mostrando a produção e exportação nos anos de 1796 e 1810 na Capitania de Santa Catarina. Para isso ele

381 Segundo Walter Piazza conjuntos de documentos sobre o período colonial e imperial referentes à Santa Catarina encontram-se dispersos em vários arquivos, entre eles o Arquivo Histórico Ultramarino, a Biblioteca Nacional de Lisboa, o Arquivo Histórico Militar, todos localizados em Portugal. Também no exterior, o National Archives de Washington (EUA) possui correspondências referentes à Província, enviadas entre os anos de 1834 e 1874 pelo consulado sediado em Desterro. No Brasil, ele cita o Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional, os Arquivos dos estados de São Paulo, da Bahia, do Rio Grande do Sul, do Paraná e de Santa Catarina. Vários outros arquivos são citados por possuírem pequenas coleções de documentos interessantes para a História de Santa Catarina deste período. Ver: PIAZZA, Walter Fernando. Fontes Arquivais para a História de Santa Catarina. In: SOARES, Iaponan (org.) Arquivos & Documentos em Santa Catarina. Florianópolis: IOESC, 1985. pp. 35-42. 199

utilizou os dados citados nas obras do Governador Miranda Ribeiro e de Paulo Joze Miguel de

Brito.382 A partir dos dados encontrados, foi possível determinar que produtos tiveram um crescimento em sua produção e exportação e quais os que, ao contrário, tiveram redução.

Alguns dos produtos não puderam ter sua taxa de crescimento determinada porque os dados foram citados com medidas diferentes. Entre os produtos que tiveram aumento na produção e na exportação estavam a farinha, o feijão, o trigo, a cebola e o peixe seco. O único que teve um decréscimo, tanto na produção como na exportação, foi o gravatá, um tipo de fibra. As favas e a aguardente obtiveram um aumento na exportação, mas sua produção diminuiu.

Alguns produtos tiveram um crescimento em sua produção, mas como não existem dados sobre a exportação no ano de 1796, não foi possível estabelecer se seu crescimento foi devido

à demanda externa, ou se esta produção era voltada para as necessidades internas. Estes produtos são os couros, as tábuas de madeira, o melado, o algodão, o café, e o fumo. Todos esses produtos eram exportados no ano de 1810, alguns em grandes quantidades como o café.383

Langsdorff também fez uma listagem do que poderia ser encontrado na Ilha de

Santa Catarina. Além de algumas plantações que ele estava habituado a ver, como “coqueiros e bananeiras, plantações de café, açúcar, arroz e algodão”, pode admirar também outras

árvores, como “a Peroba, o Óleo, a Figueira, a Garabisi, a Garaberi, a Garaxuba, a Garabrura, o Cedro, etc.”384 Não especificou se todos esses produtos eram comercializados regularmente com outras regiões ou se sua extração era voltada para o consumo interno. O que Langsdorff especificou foi que

382 Os dados para a elaboração da tabela foram retirados do Relatório do Governador Miranda Ribeiro. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1959. Volume 245 e de BRITO, Paulo Joze Miguel de. Memória Política da Capitania de Santa Catarina. Florianópolis: Sociedade Literária/Biblioteca Catarinense, 1932. 383 Na tabela elaborada por Darcy Pacheco podem ser encontrados dados sobre outros produtos não citados, além dos números relativos dos produtos citados. Ver: PACHECO, Darcy. Um estudo sobre a junta da Real Fazenda de Santa Catarina. Período 1817-1831. Florianópolis: Dissertação de mestrado/UFSC. 1979. p. 32. 384 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 172. 200

os produtos desta terra são muito variados e podem ser usados como fontes inesgotáveis de um rico comércio, se este não fosse tão limitado e dependente do Rio de Janeiro, pois, os moradores daqui só podem vender seus produtos para esta cidade.385

Langsdorff esteve em Santa Catarina no ano de 1803. Em 1807, Mawe passou pela região e registrou que o comércio não era tão restrito assim, uma vez que os produtos da terra eram exportados não só para o Rio de Janeiro, mas também para o Prata. Entre esses produtos estavam os potes de barro, e outros utensílios de cozinha feitos com argila vermelha.

O contrabando de mercadorias entre as regiões foi citado por vários autores que escreveram sobre história econômica, tais como Caio Prado Júnior, Oswaldo Cabral e Laura Hübener.

Alguns dos fatores que facilitavam e muitas vezes incentivavam estas contravenções foram o monopólio das empresas de comércio na época pombalina386, as taxas impostas sobre vários produtos, como por exemplo o sal, os impostos de importação e exportação, a obrigatoriedade de comerciar somente com a metrópole, além de inúmeras regras impostas a fim de garantir a cobrança das taxas. Esses fatores dificultavam o comércio entre as regiões coloniais que não estavam inseridas no comércio externo de grande monta, voltado para o abastecimento da metrópole. Além disso, os portos “periféricos” enfrentavam outras dificuldades, uma vez que suas instalações eram precárias, com poucos fiscais e recursos materiais, tais como embarcações, guindastes, balanças, pesos e medidas. Até o final do Império existiam quatro ancoradouros em Desterro. Estavam localizados na Praia de Fora, na Ilha de Santa Cruz, onde está localizada a Fortaleza de Anhatomirim, e os outros dois em frente a região central da cidade. Somente os dois últimos tinham condições de fazer a devida fiscalização. A

385 Ibidem. p. 166. 386 Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal, foi ministro entre os anos de 1750 e 1777, durante o reinado de Dom José I. Sua administração teve como objetivo tornar mais eficiente a administração portuguesa, modificando o relacionamento entre a metrópole e suas colônias. Criou as Companhias Gerais de Comércio do Estado do Grão-Pará e do Maranhão (1755-1778) e de Pernambuco e Paraíba (1759-1779) que possuíam o monopólio nestas regiões. Estabeleceu privilégios que prejudicaram outros setores comerciais, coibiu o contrabando de ouro e diamantes, expulsou os jesuítas de Portugal e das colônias, entre outras medidas. 201

proximidade com a região do Prata, de colonização espanhola, combinada com a fiscalização precária por parte do governo português, facilitava o comércio ilegal.387

O comércio praticado entre o Brasil e a região do Prata foi incrementado em decorrência da União Ibérica (1580-1640), e manteve-se posteriormente durante o governo de

D. João IV. O Estado Português, a fim de fortalecer sua independência após a restauração, precisava contar com o apoio de outras potências européias. Dessa forma, teve que ceder às exigências internacionais relacionadas ao comércio, permitindo-o sob reservas. Os negociantes ingleses foram os mais favorecidos, principalmente os que já viviam em Portugal.

Autorizou-se a instalação de famílias de comerciantes ingleses em portos do Brasil, como

Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Suas mercadorias tinham um regime de tributação diferenciado em relação aos comerciantes de outras nacionalidades. Em relação à Espanha, mantiveram-se os tratados anteriores, que liberava o comércio entre os dois países, com a exigência de que os navios obtivessem uma permissão, expedida pelo monarca. Exceção aos barcos que viessem da região do Prata trazendo metais preciosos. Eles poderiam comerciar livremente nos portos da colônia brasileira, pagando em moeda e adquirindo os produtos e gêneros necessários. Apesar de Portugal criar obstáculos ao intercâmbio com os vizinhos na

América, o comércio com a região do Prata continuou e em alguns momentos foi incentivado, já que era do interesse de ambas as partes. Em 1711, com o intuito de reprimir os abusos que ocorriam por parte dos navios estrangeiros, baixaram-se ordens proibindo sua aceitação nos portos, a menos que tivessem vindo junto com as frotas de Portugal, ou então que houvessem chegado devido às tempestades, a falta de água e de alimentos. Após receber a ajuda necessária, deveriam prosseguir viagem, sem autorização para fazer negócios. Apesar do esforço do governo metropolitano, o comércio clandestino continuou existindo, em algumas

387 HÜBENER, Laura Machado. O comércio da cidade do Desterro no século XIX. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1981. pp. 20-21. 202

regiões mais intenso do que em outras. As dificuldades de controle por parte da Coroa

Portuguesa acarretou grandes perdas para seus cofres.388

Feliciano Nunes Pires389, presidente da província de Santa Catarina de agosto de 1831 a novembro de 1835, registrou em seu relatório de governo que, no ano de 1834, os portos de Desterro, Laguna e São Francisco receberam 408 embarcações, e dentre estas, 45 eram estrangeiras. O montante importado pela província foi de 132:615$241 réis, enquanto que a exportação foi de 57:262$038 réis para portos de fora do Império e de 287:293$330 réis para portos do Império Brasileiro. Acrescentou, no mesmo relatório, que esses números só não eram maiores devido ao “atrazo da nossa industria agricola”, principal fator por “não termos em maior cópia generos em que façamos com o estrangeiro hua permuta mais ampla e mais directa ...”390

Entre as atividades desenvolvidas na Ilha de Santa Catarina e regiões continentais próximas, estava a fabricação de peças de barro, uma vez que eram encontradas na região continental, “esplêndida argila vermelha, com a qual se fabricam jarros, utensílios de cozinha, grandes potes para água, etc., exportados em quantidades consideráveis para o

Prata e para o Rio de Janeiro.”391 Segundo Mawe, a quantidade de terras utilizadas no plantio havia aumentado nos últimos tempos, devido ao corte de árvores que eram utilizadas em inúmeros produtos, inclusive para a construção de navios, tanto que madeira de boa qualidade escasseava no início do século XIX. Os habitantes locais dedicavam-se também ao cultivo do linho, utilizado para fazer linhas, redes e cordames pelos pescadores, pois “no mar, em redor,

388 HOLANDA, Sérgio Buarque de. O comércio colonial e as companhias privilegiadas. In: História Geral da Civilização Brasileira. A Época Colonial, t. I, v. 2, São Paulo: Difel, 1968. pp. 311-316. 389 Feliciano Nunes Pires nasceu em 21 de dezembro de 1775. Natural da Ilha de Santa Catarina, era filho de Antônio Nunes Ramos, intérprete de inglês e lavrador, e de Maria Joaquina de Jesus Pires. Foi professor de primeiras letras na vila de Desterro. Aos 35 anos foi nomeado professor público de latim em Rio Grande, onde desenvolveu também a atividade como advogado provisionado. Foi eleito deputado por Santa Catarina, e nomeado em 5 de maio de 1831 presidente da Província de SC. Empossou-se em 6 de agosto de 1831 e governou até 4 de novembro de 1835. Exerceu posteriormente o cargo de Inspetor da Alfândega da cidade do Rio de Janeiro e foi presidente da província do Rio Grande do Sul entre 06 de junho de 1837 e 03 de novembro de 1837. 390 PIRES, Feliciano Nunes. Relatório e fala no Governo de Santa Catarina 1833/1835. São Paulo: Arquivo Público do Estado de São Paulo/Florianópolis: Arquivo Público do Estado de Santa Catarina, 1985. pp. 36-37. 391 MAWE, John. Op. cit. p. 190. 203

há abundante variedade de ótimo peixe e saborosas lagostas; o suprimento do mercado é tal que se obtém por um shilling quantidade de peixe suficiente para alimentar doze pessoas.”392

Outros alimentos que Mawe encontrou com facilidade e baratos foram a carne,

mais ou menos da mesma qualidade da de Montevidéu, mais dura e magra [...] porcos, perus, patos, galinhas e ovos, bem como viçosas hortaliças e excelentes batatas encontram-se com fartura e baratos.393

Se esses produtos eram consumidos regularmente pela população ou reservados para o comércio, principalmente com os barcos que passavam pela região, não temos condições de especificar. Podemos, no entanto, comparar a relação de produtos feito em 1807 por Mawe com outra listagem, esta do ano de 1803 feita por Urey Lisiansky, capitão do navio “Neva”. Além dos produtos e da quantidade adquirida, ele registrou também os preços, uma vez que os estava comprando para abastecer o navio. Segue abaixo a listagem:

um porco grande 8.000 réis de tamanho médio 4.000 réis recém-nascido 1.000 réis um boi de corte 7.000 réis ave doméstica 320 réis um pato 480 réis uma réstia de cebola 60 réis mil limões 1.000 réis uma libra de açúcar grosso 75 réis cinqüenta e oito abóboras 3.480 réis um peru 480 réis um cacho de bananas 60 réis 144 libras de arroz 4.000 réis 144 libras de trigo 1.600 réis 1 alqueire ou 72 libras de milho indiano 640 réis 1 arroba ou 32 libras de café 1.600 réis 1 medida ou 4 garrafas de rum 320 réis 1 alqueire de mandioca 480 réis394

O que podemos constatar é que os produtos adquiridos eram bastante variados, alguns comprados em grandes quantidades, como o caso dos limões, provavelmente devido às

392 Ibidem. p. 190. 393 Ibidem. p. 190. 394 LISIANSKY, Urey. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. Op. cit. p. 153. 204

doenças que atacavam os marinheiros, como o escorbuto, motivado pela falta de vitamina C.

Muitos produtos, principalmente frutas e verduras, podiam ter sido adquiridas em maior ou menor quantidade devido à época e a oferta destes para a compra. Os animais eram normalmente comprados e transportados vivos, devido às dificuldades de conservação da carne. Podemos constatar que o capitão do navio deu preferência à aquisição de produtos frescos, tanto os de origem animal como os de origem vegetal. Exceção para os cereais e para o rum.

Além do trabalho na terra, as outras atividades as quais os homens dedicavam- se eram a pesca e o serviço militar. Sobre o primeiro, Saint-Hilaire comentou que dois fatores os levavam a ser pescadores, vivendo a maior parte do tempo no mar: o pendor natural, uma vez que estavam habituados “desde a infância a enfrentar um mar agitado em suas frágeis canoas”, e o temor do serviço militar. Esses dois fatores acabavam causando uma desproporção populacional entre homens e mulheres, com um número maior destas.395 Pelo que podemos constatar pelas falas de Saint-Hilaire e de Lesson, o trabalho como miliciano era combinado com a atividade de agricultor. O primeiro, que participou das festividades de comemoração do aniversário do rei D. João VI em Desterro, comentou que

os milicianos - todos eles agricultores - que estavam na cidade havia vários dias, gastando dinheiro e sem trabalhar, apressaram-se a voltar para suas terras tão logo terminou a cerimônia, e durante toda a tarde dezenas de canoas atravessavam velozmente o canal.396

Além dos milicianos, que eram convocados em momentos específicos, como festas cívicas, batalhas e guerras, havia os soldados que estavam locados nos quartéis e na guarda das fortalezas e dos fortes. Lesson chamava esses indivíduos de “soldados-cidadãos”.

Em função da falta de regularidade no pagamento dos soldos feito pelo governo, eles

cultivam ao redor de suas moradias, hortas que fornecem o sustento a suas famílias. Criam alguns animais de terreiro, e galinheiros com aves

395 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 175. 396 Ibidem. p. 184. 205

domésticas, que eles vendem aos navios que passam, em troca de algum lucro.397

Em 1738 foi criada a Capitania de Santa Catarina e nomeado o brigadeiro José da Silva Paes como capitão-mor. Silva Paes tinha como função criar um sistema defensivo para a Ilha de Santa Catarina, ponto estratégico na ocupação da região meridional da Colônia

Portuguesa na América, pois ficava a meio caminho entre o Rio de Janeiro e a foz do Rio da

Prata, onde localizava-se a Colônia do Sacramento. Mas as fortificações e o deslocamento de militares não foram suficientes para garantir a posse dessa região. Era necessário povoá-la com uma população que ao mesmo tempo a defendesse e produzisse os alimentos necessários para o sustento dos soldados. O edital do Rei de 8 de agosto de 1746 especificava seus objetivos ao incentivar a emigração de famílias açorianas para a região sul de sua colônia na

América. A vinda de famílias jovens e numerosas visava a ocupação, e desta forma a posse desses territórios, garantindo assim sua defesa e seu desenvolvimento econômico. O edital também especificava as regras: homens com menos de 40 anos e mulheres com menos de 30 anos. Também davam preferência às famílias com filhos e que fossem experientes com o trabalho na terra e no trato de animais. Já as mulheres deveriam, além de conhecerem as lidas domésticas, ser hábeis na arte da fiação.398

Ao chegarem às novas terras, os que haviam se aventurado na travessia do

Atlântico eram recebidos pelas autoridades locais que deveriam assentá-los e suprir suas necessidades iniciais, cumprindo as promessas feitas antes do embarque. As famílias recebiam terras, que deveriam ser limpas das matas e cultivadas, e também os utensílios necessários para o início da nova vida: uma espingarda, que não poderia ser vendida, instrumentos de trabalho, como enxada, enxó, martelo, facão, entre outros, alguns animais, como vaca e égua, e farinha em quantidades que variavam conforme o número de membros da família. A doação

397 LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 268. 398 FLORES, Maria Bernardete Ramos. Povoadores da Fronteira: os casais açorianos rumo ao Sul do Brasil. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2000. pp.38-41. 206

de uma espingarda para cada família era para ser utilizada na defesa pessoal, devido aos ataques dos animais bravos e dos indígenas, mas também para ser utilizada em caso de invasões de estrangeiros, principalmente espanhóis.

As mulheres que viviam na região também se dedicavam a alguns trabalhos específicos, entre eles o trabalho com o algodão e o fabrico de tecidos. Pernetty, em 1763, descreveu as portuguesas dedicadas ao trabalho de separar o algodão das sementes manualmente, algo que nas Antilhas era feito com máquinas. Deduziu que “as portuguesas que vi ocupadas neste trabalho faziam disto uma pura diversão, pois, elas o separavam pouco a pouco, pinçando-os somente com os dedos.”399 Após essa etapa, o algodão era fiado e tecido. Era uma atividade desenvolvida em muitas casas. O algodão, antes de ser fiado, deveria ser separado das sementes, pinçando-as como falou Pernetty, ou então batendo-o com martelos, como presenciou Mawe, em uma de suas excursões pelo interior da ilha. Saint-

Hilaire encontrou em todos os sítios a presença de teares, com os quais eram fabricados panos, um “tipo de trabalho que é comum a todas as famílias.”400 Mais do que providenciar o tecido necessário para a família, muitas “mulheres procuram ganhar algum dinheiro com o seu trabalho. Quem passa diante de suas casas ouve-as batendo o algodão; elas fiam e tecem.”401 Como ocorre também em outras passagens do relato de Saint-Hilaire, ele generalizou suas informações. Não falou que encontrou teares nos sítios que visitou, mas em

“todos” os sítios. Não eram algumas, ou a maioria das famílias que se dedicavam à produção de tecidos, mas “todas” as famílias.

Mawe comentou que os habitantes de Desterro eram muito urbanos e corteses com os estrangeiros, e que aqui se encontravam todos os tipos de artífices, tais como alfaiates, sapateiros, funileiros, marceneiros e ferreiros. Também encontrou mulheres que se dedicavam

399 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 106. 400 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 173. 401 Ibidem. p. 174. 207

ao trabalho de fazer renda.402 Descreveu de forma muito positiva a ilha, dizendo que o clima é

ótimo, que tudo o que é plantado produz, sendo inclusive conhecida pelas “deliciosas frutas”.

O algodão, utilizado nas roupas, era por eles mesmo plantado, fiado e tecido. Construíam suas próprias casas, bem como as canoas com as quais se deslocam pela região em busca do peixe.

Em suma, “pode-se dizer, em verdade, que todo homem é mais ou menos um artesão.”403 Esse foi o relato de uma viagem realizada no ano de 1807. Menos de quatro anos antes, Langsdorff afirmou que

os teares estão em estado nascente, os moinhos são escassos; mas, com todas estas imperfeições, não devo me esquecer de que em Nossa Senhora do Desterro são fabricados excelentes objetos de barro [...] e chegam a exportar para o Rio Grande e até para o Rio de Janeiro. Existem aqui ótimas olarias.404

Mawe também constatou a atividade de oleiros em outras regiões da Província de Santa Catarina. Segundo ele, na vila de São José, localizada no continente, seus habitantes,

“se ocupam principalmente em serrar madeira, reduzindo-a a pranchas, fabricar tijolos e plantar arroz”. O ganho com esse trabalho não era muito elevado, mas o padrão de vida local não exigia grandes somas de dinheiro.

Um dos produtos mais exportados durante o século XIX pelo porto de Desterro foi a farinha de mandioca. Vários viajantes comentaram que na região era plantada mandioca, juntamente com outros produtos como café, cana de açúcar, trigo e arroz. Tudo em pequenas quantidades que normalmente eram consumidas na própria localidade ou então se prestavam para uma exportação em pequena escala para a cidade do Rio de Janeiro. No caso da farinha de mandioca, foi produzida em grandes quantidades e com o objetivo de exportá-la para outras regiões do Brasil. Esse produto também era produzido em outras regiões do país, e

Santa Catarina sofria a concorrência com o Rio Grande do Sul e o Espírito Santo na disputa

402 MAWE, John. Op. cit. p. 190-191. 403 Ibidem. p. 195. 404 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 178. 208

pelo abastecimento do principal mercado, o Rio de Janeiro.405 Pernetty registrou uma descrição do trabalho de produzir a farinha e outros produtos extraídos da mandioca.

Os portugueses, nascidos ou simplesmente estabelecidos na Ilha de Santa Catarina e nas costas da terra firme ao redor, empregam para este fim uma grande roda de madeira cujos aros, têm sua superfície extrema cavada em forma de um canal. Este canal está coberto por um ralador de ferro. Aproxima-se a raiz deste ralador, apoiando um pouco em cima, enquanto uma outra pessoa vira a roda, produzindo o efeito de um ralador de tabaco. Esta manobra adianta bastante o trabalho, expelindo em pouco tempo muitas raízes. O sumo branco que goteja das raízes, à medida que se rala, não é conservado. Este sumo se perde num pequeno fosso e escorre pela terra. Faz- se, em seguida, secar estas raízes para reduzi-las a farinha e fazer a caçava. Servem também aos brasileiros para a composição de suas bebidas. Esta operação é muito desagradável, assim como a própria bebida, sabendo-se a maneira com que é feita. São as mulheres que estão encarregadas deste trabalho, sobretudo as mais idosas.406

O pão de fermento, encontrado em geral somente na casa do governador, era substituído nas outras habitações pela caçava, que era feita com a pasta da mandioca cozida.

Esse método rudimentar de ralar a mandioca, produzindo a pasta que depois seria seca ou cozida, conforme o produto para o qual seria destinada, era utilizado na segunda metade do século XVIII. Com o passar do tempo, e com a demanda pelo produto, a tecnologia aprimorou-se. Construíram-se engenhos de farinha, espalhados por várias localidades do interior da ilha e no litoral da Capitania.

Quando os viajantes tratavam do trabalho e das atividades desenvolvidas na

Capitania de Santa Catarina, de um modo em geral falavam da pouca tecnologia existente, da diversidade de produtos que a região produzia e da dificuldade de comercialização. Outro aspecto que chama a atenção são os discursos que transformam o trabalho em diversão, como na fala de Pernetty. Ao invés de falar da dificuldade e do tempo gasto no trabalho de retirar as sementes do algodão, afirmou que as mulheres transformavam a atividade numa diversão. Os trabalhos coletivos, em mutirão, onde várias pessoas estavam envolvidas, muitas vezes cantando, pode ter confundido a percepção dos viajantes.

405 HÜBENER, Laura Machado. Op. cit. p.77. 406 PERNETTY, Antoine Joseph. Op. cit. p. 103. 209

8.1. Natureza exuberante versus a pobreza e a indolência dos habitantes locais

As descrições de encantamento com a natureza exuberante intercalavam-se com outras nas quais era salientada a insalubridade da área devido às águas estagnadas. As representações de que os trópicos eram uma região de fartura e abundância natural eram intercaladas com falas nas quais os viajantes salientavam sua pobreza. Essa combinação entre fartura natural e pobreza humana ajudou a propagar uma imagem de preguiça e de indolência de seus habitantes, uma vez que na região, por causa da abundância, não era necessário trabalhar tanto como na Europa para garantir o sustento.

Langsdorff, em seus inúmeros passeios, conheceu alguns sítios, nos quais era recebido e lhe ofereciam algo para beber e para comer. Essas casas, de propriedade dos colonos, eram bem situadas, mas geralmente pequenas. Langsdorff reparou na ausência de aldeias, ao moldes das que existiam na Europa. No entorno das “choupanas”, os agricultores possuíam suas terras, o que fazia com que as moradias estivessem distantes umas das outras.

Ainda segundo o viajante, “a maior parte das casas está ao longo da costa, com plantações de laranja, café, bananas e algodão em sua volta. Nas proximidades de cada choupana encontra- se, geralmente à sombra dos pés de laranjas, uma fonte de águas cristalinas.”407

Alguns anos depois, também por causa de seus passeios para coletar plantas,

Saint-Hilaire conheceu o interior da ilha. Descreveu os inúmeros caminhos que levavam aos sítios, “de casas muito pequenas, feitas de barro e madeira, cobertas de telhas e em mau estado de conservação, ao redor delas vêem-se laranjeiras e bananeiras e uma plantação de mandioca.”408 Uma das casas onde ele esteve pertencia a uma viúva, que passava

407 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. cit. p. 176. 408 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 150. 210

necessidades. Como seus filhos eram pequenos e seus familiares moravam longe, não tinha como conseguir o peixe para alimentar sua família. Os únicos utensílios que encontrou na casa da pobre senhora foram alguns utensílios de barro.

Lesson escreveu sobre a pobreza das moradias encontradas no interior, que

“anuncia o pouco cuidado em que vivem as famílias que as habitam, ou mais ainda, indica a carência de recursos em que se encontram estes habitantes por não possuírem alguns destes pequenos luxos que permitem maior conforto e bem-estar.”409 As casas tinham “paredes de estuque”, a porta era uma “abertura para a rua”, o telhado era feito com “barrotes de madeira” que sustentava uma cobertura de “folhagens”, o chão, “sem assoalho” e coberto de

“imundícies”, junto com os “objetos grosseiros de uso diário” completavam o quadro descrito por Lesson. Um quadro onde se misturavam a pobreza e o descuido. No entanto, na mesma descrição, ele descreveu o aposento da dona da casa que, “por sua limpeza e pelos simples arranjos que o decoram, tais como alguns utensílios de cobre, uma estampa colorida ou uma madona”, era utilizado para receber. Em pequenos detalhes como esse, constatamos como as populações que eram descritas pelos viajantes, no caso Lesson, escapavam ao estereótipo pré- construído sobre elas. Num lapso do discurso, surgia uma imagem estranha àquela construída e reproduzida sistematicamente sobre as populações locais. A imagem de desleixo, associada algumas vezes à pobreza, outras não, era momentaneamente substituída por outra, a de uma dona de casa que, apesar da pobreza, mantinha seu aposento asseado, inclusive enfeitado com objetos, alguns de culto religioso, outros de trabalho.

Mawe, que esteve na região alguns anos antes de Lesson, comentou que os habitantes não eram ricos. Como a produção local não era superior ao consumo, o “comércio nesta praça é insignificante”. Os quadros de produção e exportação da Capitania elaborados por Darcy Pacheco nos mostram o contrário. A produção de alguns produtos era superior à necessidade local, o que gerava um comércio com outras regiões da colônia e inclusive com

409 LESSON, René Primevère. Op. cit. p. 267. 211

portos do Prata. Continuando as descrições, Mawe salientou que as dificuldades não eram maiores porque, apesar do ganho líquido de uma família ser baixo, suas necessidades e seu consumo também eram reduzidos. Além disso, os habitantes locais não tinham “incentivos para reduzir os entretenimentos do presente, na expectativa de aumentarem as futuras fortunas”410, o que significava que a região continuaria, na previsão desse viajante, muitos anos ainda entregue a inércia econômica. Num outro trecho de seu relato, retomou uma representação recorrente quando se trata dos habitantes locais:

os habitantes cultivam arroz em grande quantidade, assim como café e cana- de-açúcar, mas sua indolência e pobreza são tais que só empregam, na fabricação do açúcar, moendas a mão, formadas por dois rolos horizontais.411

Em poucas linhas podemos constatar como algumas imagens são fortes. Ao mesmo tempo em que citou os vários produtos que eram cultivados “em grande quantidade” pelos agricultores locais e que eram beneficiados com máquinas mais antigas e menos eficientes do que as utilizadas na Europa, o que nos faz deduzir que era empregado mais trabalho humano, o viajante concluiu que os habitantes eram indolentes. Indolência e pobreza.

O não fazer nada, o não trabalho, somente é um problema quando está vinculado com a pobreza. A fala do viajante, quando afirmou que o ganho de uma família era baixo, mas que isto não era um problema pois as necessidades também eram reduzidas, nos permite uma reflexão: qual era o parâmetro de riqueza utilizado pelos viajantes? Como em outras comparações, sua referência era européia. Mawe nos dá a entender que uma vila desenvolvida era aquela que tinha uma vida urbana movimentada. A ausência de cafés, de hotéis, de um comércio movimentado e sortido foi um dos aspectos comentados. Para um indivíduo nascido na Grã-Bretanha e que havia conhecido o movimento e a agitação de sua capital, Londres,

Desterro era uma pequena vila. Em alguns aspectos encontrava-se em piores condições do que

410 MAWE, John. Op. cit. p. 191. 411 Ibidem. p. 194. 212

as vilas do interior da Inglaterra, devido às dificuldades de transporte e de intercâmbio com uma cidade maior.

Saint-Hilaire também reproduziu o discurso, no qual a indolência e a pobreza estão estreitamente vinculadas. No entanto, em algumas passagens de seu relato, preocupou- se em buscar outras explicações para a situação econômica em que vivia a população local.

Uma delas era o abandono ao qual foi submetida a região pelo governo português. Segundo ele

os colonos que ali se estabeleceram em diferentes épocas não receberam ajuda, e a tirania do governo português pesou por muito tempo sobre eles. Essas são as causas mais antigas da pobreza da região, ajudadas mais tarde pela paixão das mulheres pelo luxo, bem como pelo sistema de agricultura adotado em quase todo o Brasil e pelas dificuldade de comunicação.412

Para ele, eram vários os motivos da pobreza na região. Apesar da viagem de

Saint-Hilaire ter contado com a ajuda do governo português no Brasil para se realizar, através de autorizações e cartas de recomendação, o que lhe facilitava o livre trânsito pelo interior, seu relato foi escrito alguns anos depois, já na França e com o Brasil independente de sua antiga metrópole. Nesse contexto era mais fácil expressar sua opinião sobre a atuação da

Coroa Portuguesa no que se refere a suas colônias. Outro motivo elencado por ele seria engraçado, se não contivesse um tom tão misógino. As mulheres e seu gosto exagerado pelos enfeites também contribuía para a pobreza, uma vez que tudo o que elas ganhavam (ao menos ele reconhece o trabalho feminino) de “um modo geral empregam [...] unicamente para satisfazer o seu gosto pelas roupas bonitas.”413 Se as mulheres eram coquetes, levianas a ponto de gastar tudo o que ganhavam com enfeites, os homens pobres também não tinham o hábito de guardar, de economizar. Quando conseguiam algum dinheiro com o trabalho na caça da baleia, ao invés de guardar para o futuro, e cultivar suas terras nos momentos de folga, “eles ficavam à toa quando terminava a pesca e passavam a vida bebendo cachaça,

412 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 134. 413 Ibidem. p. 174. 213

cantando e tocando violão até que o dinheiro acabasse.”414 Esse estereótipo que recai sobre os pescadores manteve-se e aprofundou-se na segunda metade do século XIX, com o incentivo à ocupação de outras regiões da província a partir da imigração de populações européias, majoritariamente de alemães e italianos. Segundo Vilson Farias, entre os vários estereótipos correntes entre os ítalo-germânicos sobre o homem do litoral, o mais comum é que este é malandro, preguiçoso e que não quer trabalhar. O autor não analisa em que momento e como esses discursos foram construídos, em contraposição à imagem do italiano e alemão trabalhador, mas vai por outro caminho, no qual busca mostrar a inverdade desse juízo de valor. Segundo ele, os pescadores-agricultores, descendentes de açorianos, por causa de sua atividade no mar, tinham outro ritmo de trabalho, que não coincidia com os horários comerciais e industriais dos centros urbanos, ou mesmo com o horário de atividade dos agricultores. Acordavam antes do amanhecer, por volta da 4 ou 5 horas da madrugada, dependendo da estação do ano, para preparar a canoa e os apetrechos de pesca. Trabalhavam sem interrupção até o meio da tarde, almoçando no próprio barco. Como acordavam cedo, encerravam o trabalho mais cedo e recolhiam-se também mais cedo. Dessa forma, o horário que podiam freqüentar o boteco, ou a venda, quando aproveitavam para encontrar os amigos era ao final do trabalho, por volta das 4 ou 5 horas da tarde. No mesmo horário em que um pescador estava terminando sua jornada de trabalho, que havia iniciado de madrugada, um agricultor ainda teria muitas horas de labuta.415

Essa representação que recaiu sobre o homem do litoral, principalmente na segunda metade dos século XIX e durante o século XX (e que, remodelada, ainda persiste na atualidade), era corrente também nos discursos dos viajantes. De Pernetty (1763) a Lesson

(1822), todos falaram que os habitantes locais, independente de serem pescadores ou agricultores, viviam na ociosidade, na indolência. Como mostramos anteriormente, no

414 Ibidem. p. 163. 415 FARIAS, Vilson Francisco de. Dos Açores ao Brasil Meridional: uma viagem no tempo: 500 anos, litoral catarinense. 2 ed. Florianópolis: Ed. do Autor, 2000. p. 105. 214

capítulo 5, Peter Burke constatou que a imagem de indolente também era utilizada para descrever os lazzaroni, habitantes das cidades italianas descritas pelos viajantes ingleses do século XVIII e XIX. Os nativos da América também receberam essa pecha, como as populações nativas de outras regiões do mundo. A prática de ver o outro a partir de conceitos e de concepções de sua própria cultura não está restrita aos relatos dos viajantes. O etnocentrismo extrapola o texto e fundamenta-se nas relações que são estabelecidas entre os indivíduos, que podem ser de uma mesma região ou de uma mesma etnia. Os viajantes construíram um discurso, no qual salientavam a diferença, não com o objetivo de analisá-la ou mesmo compreendê-la, mas de uma forma que reforçasse seus valores e sua cultura como os valores, a cultura, que deveria ser difundida e seguida pelos outros.

Muito mais do que interpretar essas passagens, interessa-nos discutir uma postura teórico-metodológica que lhes dê suporte. Podemos tomar os relatos de viagem como representações européias sobre a cultura visitada. O conceito de representação foi incorporado pelos historiadores a partir das formulações desenvolvidas por Marcel Mauss e Émile

Durkheim sobre as mentalidades coletivas. Outros estudiosos também se apropriaram do conceito, entre eles Foucault, que na obra As palavras e as Coisas, publicado em 1966, utilizou-o com o objetivo de caracterizar o regime de verdade na episteme clássica. A representação coloca em cena o mundo dos signos, ordenando-os em quadro. Louis Marin também o utilizou, em 1975, no seu estudo sobre a lógica de Port-Royal e o pensamento de

Pascal. No entanto, ele valorizou o sentido político do conceito, articulando a representação classificatória e as técnicas de poder.416 A contribuição de Marin, um estudioso que trabalhou com a iconografia e o estudo das imagens, foi de obrigar os historiadores a repensar as relações que mantém as modalidades de exibição do ser social ou do poder político com as

416 BOUREAU, Alain. La compétence inductive. Um modèle d’analyse des représentations rares. In: LEPETIT, Bernard (org.) Les formes de l’expérience: une autre histoire sociale. Paris: Albin Michel, 1999. p. 26. 215

representações mentais. Outra preocupação era compreender como os enfrentamentos, os poderes fundados sobre a violência e a força bruta, se transmutavam em lutas simbólicas.417

Tomando a noção de representação como a relação entre uma imagem presente e um objeto ausente, os lógicos de Port-Royal desenvolvem a teoria do signo. O que interessava para Chartier é uma questão histórica colocada por esse grupo que remete à variabilidade e à pluralidade de entendimento das representações do mundo social e natural proposto pelos textos e imagens antigos. Além disso, as formas de teatralização da vida social do Antigo Regime pervertiam as distinções entre representação e representado, entre signo e significado.418 Para exemplificar, ele recorre à crença de que a aparência vale pelo real, como por exemplo o aparato de juízes e médicos. Esse não seria necessário se eles fossem realmente portadores da justiça e do conhecimento de curar. Essa teatralização, onde a “representação é confundida pela ação da imaginação”, leva a uma representação deturpada que é utilizada como “máquina de fabrico de respeito e de submissão”. No mundo antigo, somente os homens de guerra não precisavam afirmar sua força através de representações, uma vez que seu papel era realmente essencial. As lutas de representações adquirem uma importância cada vez maior na longa duração, no processo que tem como objetivo erradicar e monopolizar a violência. Nesse processo, o que está sendo disputado é poder de ordenação e de hierarquização das estruturas sociais.419

Para pensar o conceito de representação, Chartier retorna às sociedades do

Antigo Regime, nas quais a noção de representação ocupava um lugar central e era entendido com um duplo sentido. Numa primeira definição, a representação como dando a ver algo ausente, como, por exemplo, os bonecos de cera, madeira ou couro, que eram colocados sob o féretro real durante os funerais dos soberanos ingleses e franceses. Por outro lado pode ser

417 CHARTIER, Roger. Pouvoirs et limites de la représentation: sur l’oeuvre de Louis Marin. ANNALES HSS, Mars-avril 1994, nº 2, p. 411. 418 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Op. cit. p. 20-21. 419 Ibidem. p. 23. 216

entendida “como a exibição de uma presença, como apresentação pública de algo ou de alguém.”420 Além dessas duas definições, outra também era utilizada: a relação simbólica que leva a representação de uma qualidade moral a partir de propriedades naturais, como por exemplo: o leão é o símbolo do valor.

Esse autor assinala que as determinações que envolvem as percepções do social e suas representações, apesar de aspirarem ser universais, uma vez que se entendem como fundamentadas sobre a razão, na verdade são sempre determinadas pelos grupos sociais, e pelos interesses, nos quais são forjados. Desse modo cada caso, cada discurso, deve ser analisado a partir do grupo que os proferiu, verificando os interesses nos quais estão envolvidos. As representações não são discursos neutros, assim como as estruturas do mundo social não são dados objetivos, mas

são historicamente produzidas pelas práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas) que constróem as suas figuras. São essas demarcações, e os esquemas que as modelam, que constituem o objecto de uma história cultural, levada a repensar completamente a relação tradicionalmente postulada entre o social - identificado com um real bem real, existindo por si próprio - e as representações, supostas como reflectindo-o ou dele se desviando.421

Uma preocupação de Chartier refere-se à clivagem, que atravessa a história, entre a objetividade das estruturas e a subjetividade das representações. Enquanto a primeira seria o campo da história mais segura, que através de documentos seriais, quantificáveis, tenta reconstruir o passado, a segunda estaria ligada ao terreno das ilusões projetadas pelos discursos e afastadas do real. Essa divisão não marcou somente a história, mas também a sociologia e a etnologia, e para superá-la é necessário analisar os esquemas que produzem as classificações e as formas de percepção da realidade social, que são próprios de cada grupo,

420 Ibidem. p. 20. 421 Ibidem. p. 27. 217

“como verdadeiras instituições sociais, incorporando sob a forma de categorias mentais e de representações coletivas as demarcações da própria organização social.”422

Essas enunciações sobre a relação entre representação/mundo social levantam alguns questionamentos: o sentido das representações pode ser apreendido em si mesmo ou deve ser relacionado com o social? Existe a possibilidade de dissociar representação e realidade social? Para Francisco Falcon, as representações podem ser pensadas a partir da noção de diferença e de identidade. A reflexão a partir da noção de diferença, um conceito- chave do discurso histórico, indica a dimensão ou função cognitiva da representação. Por outro lado, a representação pode ser pensada a partir da noção de identidade, que remete para o caráter textual e para a dimensão lingüística do discurso histórico.423 Existe na obra de

Chartier, mais especificamente nos textos que integram a coletânea A História Cultural: Entre práticas e representações, uma tendência dupla: por um lado, a realidade é analisada através de suas representações, sendo estas consideradas com múltiplos sentidos, enquanto que, por outro lado, constata-se a existência de práticas que possuem uma lógica própria e que não podem ser reduzida às representações.424

A discussão de representação desenvolvida por Chartier nos permite pensarmos como os europeus construíram uma imagem sobre a América e os americanos. Imagens que se modificavam dependendo do contexto histórico e das relações estabelecidas entre estas duas regiões que não tinham uma relação de igualdade. Os discursos produzidos pelos viajantes contribuíram para reforçar a superioridade dos europeus em contraponto a inferioridade dos americanos. Uma inferioridade que, segundo os relatos dos viajantes, tinha como base a indolência dos americanos. Esta representação tem que ser pensada no contexto da expansão colonial e imperial, que precisava de justificativas para sua atividade, vista como retentora.

422 Ibidem. p. 18. 423 FALCON, Francisco J. Calazans. História e Representação. In: Representações: Contribuição a um Debate Transdisciplinar. Campinas: Papirus Editora, 2000. p. 41. 424 CHARTIER, Roger. Op. cit. p. 11. Nota de apresentação. 218

Além disso, no século XIX temos que inserir outro aspecto, qual seja, a lógica do liberalismo econômico que estava difundido uma nova relação do homem com o trabalho e com o tempo.

Neste sentido, sociedades que desenvolviam atividades de subsistência eram vistas como incapazes de se desenvolverem de forma autônoma.

Retornando as falas dos viajantes, Saint-Hilaire salientou a pobreza dos sitiantes quando comentou que eles alimentavam-se normalmente de farinha de mandioca, peixe cozido na água e de laranjas, uma fruta muito comum na ilha. Concluiu sua explicação com a seguinte frase:

de acordo com o que já foi dito acima sobre a Ilha de Santa Catarina, tudo indica que essa ilha tende a empobrecer cada vez mais, uma vez que sua população cresce sem parar e que, devido ao errôneo sistema de agricultura adotado na região, assim como em todo o Brasil, as terras produzem cada vez menos. Além do mais, o dinheiro obtido com as exportações é logo gasto, seja em objetos de luxo que são trazidos de fora e têm de ser sempre renovados, seja na aquisição de escravos, que também vêm de fora e que, em sua maior parte, não se multiplica.425

Os gastos com coisas supérfluas, a ausência do hábito de economizar, a pouca propensão para o trabalho, o crescimento populacional, o sistema agrícola implantado que diminui a produtividade das terras, a aquisição de produtos externos, entre eles os escravos, a falta de meios de transporte eficientes, etc., todos estes são fatores que, na opinião de Saint-

Hilaire, não permitiam o desenvolvimento da região.

Um aspecto que chama a atenção na leitura dos relatos é que os viajantes qualificavam os habitantes locais de indolentes, de preguiçosos, mas não de vadios. Uma das explicações remete ao fato do termo vadio carregar um sentido de marginalidade, de indivíduos criminosos, ladrões, degredados. Era uma denominação utilizada para qualificar pessoas que se recusavam a inserir-se na sociedade. Laura de Mello e Souza, em seu trabalho sobre a mineração no século XVIII, discute como a estrutura econômica desenvolvida na colônia, numa região de mineração, propiciou o surgimento de uma sociedade na qual muitos

425 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit. p. 177. 219

indivíduos eram jogadas à marginalidade devido à desclassificação social. Eram homens livres, mas pobres. Como não tinham acesso à terra e às lavras, tinham que submeter seu trabalho a outro. Nesse caso teriam que concorrer com o trabalho escravo, sujeitando-se a exercer os trabalhos que não eram executados pelos cativos. Caso esse homem livre tivesse acesso à terra, muitas vezes acabava perdendo suas lavras e sendo empurrado para a pobreza, devido à cobrança dos impostos e o controle exercido pelo poder metropolitano. O que a autora discute em seu trabalho é que essa marginalidade se constituiu numa situação específica, numa sociedade cuja maior riqueza vinha da mineração e não da agricultura como em outras regiões da colônia. Além disso, era uma área que, por causa da febre do ouro, atraiu muitos indivíduos livres, solteiros ou sozinhos (os casados deixavam suas famílias em sua região de origem, fosse esta a metrópole ou outras áreas da colônia), que iam para as Minas

Gerais em busca do enriquecimento rápido. Para a elite local, os homens livres, despossuídos e marginalizados eram vadios, inúteis, e passaram as ser tratados como se não existissem. Ou melhor, existiam para o aparato policial que os perseguia e os jogava nos cárceres coloniais.

Eram desclassificados que não eram vistos, a ponto de não serem considerados membros da sociedade e a quem era negado o direito de ser cidadão.426

Devemos salientar que a pobreza nem sempre esteve vinculada à marginalidade. A própria Laura de Mello e Souza desenvolve uma discussão na qual analisa como a pobreza e os pobres eram vistos em diferentes contextos históricos.427 No caso dos habitantes do litoral de Santa Catarina, os viajantes davam a entender que a pobreza que grassava entre eles era causada pela indolência e preguiça aos quais os próprios habitantes haviam se entregado. Mas o que era ser rico no Brasil colônia? Nas regiões de mineração,

426 MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. 3. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1990. pp. 215-222. 427 Para aprofundar esta questão ver: MOLLAT, Michel. Os pobres na Idade Média. Rio de Janeiro: Campus, 1989; GEREMEK, Bronislaw. Os filhos de Caim: vagabundos e miseráveis na literatura européia (1400- 1700). São paulo: Companhia das Letras, 1995; HIMMELFARB, Gertrude. La idea de la pobreza: Inglaterra a principios de la era industrial. México: Fondo de cultura económica, 1988. 220

riqueza significava ser proprietário de lavras e de escravos para explorá-las. Na região de criação de gado no Rio Grande do Sul, a riqueza era medida pela quantidade de cabeças de gado. Em várias regiões do Brasil, rico era quem tinha grandes extensões de terra e escravos que a cultivassem.

No litoral de Santa Catarina, a distribuição de terras aos açorianos privilegiou a pequena propriedade. Não por uma questão de política de ocupação, mas porque os próprios colonos optaram por pequenas áreas, para não ficarem afastados de seus vizinhos. Com o passar do tempo e os constantes desmembramentos, algumas propriedades tornaram-se tão pequenas que seus donos não conseguiam mais garantir o sustento da família. A posse de escravos era outro item que demonstrava riqueza. Mas como vimos no capítulo 6, não havia grandes plantéis de escravos na vila de Desterro. Segundo Saint-Hilaire, a maioria das famílias tinha um ou dois escravos. Esse aspecto mostra muito mais a aceitação da escravidão do que a riqueza de seus donos.

A situação econômica na qual estavam inseridos os habitantes locais, as dificuldades enfrentadas para ocupar o território, tendo que enfrentar o pesado trabalho de limpar o terreno para iniciar o plantio de alimentos, a natureza insalubre devido às águas estagnadas que enfraqueciam o corpo, associados à utilização do trabalho escravo foram os fatores que contribuíram, na opinião dos cientistas viajantes, para a indolência dos descendentes de portugueses e açorianos que haviam se estabelecido na região. Para Saint-

Hilaire, essa realidade somente se modificaria com o passar do tempo e com a vinda de imigrantes europeus mais laboriosos, os quais acabariam influenciando positivamente as populações locais. A partir da conclusão de Saint-Hilaire, constata-se que já existia um discurso que inferia maior laboriosidade e eficiência no trabalho de algumas etnias européias, quando em comparação aos habitantes da América. Esse discurso, difundido nos relatos dos 221

viajantes, reproduziu-se e foi utilizado para incentivar a imigração de europeus a partir da segunda metade do século XIX.

Mesmo percebendo a pobreza e as dificuldades enfrentadas no dia-a-dia pelos habitantes da Capitania, os viajantes mantiveram o discurso da natureza provedora, que não necessitava do trabalho humano para gerar riqueza. Enquanto os viajantes viam essa região como tendo sido agraciada “pela natureza em todos os sentidos, uma terra onde tudo viceja com inexcedível beleza e garbo imagináveis”428, José de Souza Azeredo Pizarro e Araújo429, insere outras explicações para a decadência da região. Segundo ele, muitas das dificuldades enfrentadas eram ocasionadas pela política do estado português. A decadência da Capitania foi decorrência dos seguintes fatores:

1º) falta de estradas; 2º) o serviço militar que os membros da Guarda Nacional eram obrigados a prestar e que os obrigava a deixar no abandono suas lavouras e suas famílias; 3º) o costume que tinha o governo de apossar- se das colheitas dos agricultores sem nada lhes pagar.430

No relatório de 1836, o presidente da província, José Mariano de Albuquerque, escreveu que o problema maior era a falta de braços para ocupar a terra, cultivando-a. Sugeriu a importação de trabalhadores da Europa, pois desta forma também resolveriam outro problema: o desenvolvimento das “artes”, neste caso, os instrumentos e máquinas que facilitam o trabalho humano. Através da importação, combinada com a natureza, que “entre os dons de que foi prodiga com este paiz abençoado o favoreceu com hum clima, alem de benigno, próprio para quasi todas as producções de ambos os hemispherios”, seria possível desenvolver a região, substituindo por homens livres os escravos, “esses inertes e aviltados pelos ferros da escravidão que nos fornecia o abominavel trafico de carne humana.”431 José

428 LANGSDORFF, Georg Heinrich von. Op. Cit. p. 162. 429 Citado por Auguste de Saint-Hilaire. Escreveu Memórias Histórias. 430 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. Cit. p. 178. 431 CAVALCANTI, José Mariano de Albuquerque. Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial. Desterro, 5 de abril de 1836. In: Ágora. Transcrição Paleográfica: Neusa Maria Schmitz. Florianópolis/SC. Ano XV. Nº 32. 2º semestre. 2000. p. 33. 222

Mariano de Albuquerque, como Pizarro e Araújo, era um habitante local. Letrados, membros da elite, vinculados à administração da Província, deixaram registradas outras explicações para as dificuldades enfrentadas para desenvolver a região. Dificuldades que não se vinculavam nem à natureza local e tampouco se referiam às características físicas e morais dos descendentes de açorianos e de africanos. O que constatamos é que, de um modo geral, para todos os viajantes, os habitantes locais eram considerados preguiçosos e indolentes, sem fazer distinção entre escravos, livres, pobres ou abastados.

223

9. Louis Choris: um artista viajante

Além dos relatos escritos, também foram produzidas pinturas que tinham como tema a Ilha de Santa Catarina. Entre os viajantes analisados, Louis Choris é o único artista viajante. Outros viajantes, como Pernetty, também desenhavam, mas seu objetivo era acrescentar informações ao que estava sendo relatado nos diários de viagem e ao que estava sendo coletado. Seus desenhos eram voltados para o trabalho científico e não com objetivos artísticos. Nos trabalhos dos viajantes artistas acontecia o contrário: a escrita acrescentava informações ao que era pintado pelo viajante. No livro de viagem de Choris, cada prancha é acompanhada por uma explicação escrita do que foi retratado.

Louis Choris era pintor, desenhista e litógrafo russo. Nasceu em 22 de março de 1795, em uma família alemã que morava em Iekaterinoslav. Foi enviado para estudar no ginásio de Kharkov, onde seu talento para o desenho aflorou. Seus primeiros ensaios chamavam a atenção do naturalista Marschall de Biberstein que, em 1813, o levou para sua primeira viagem de estudos ao Cáucaso, quando tinha apenas 18 anos. Foi convidado a fazer parte da expedição “Rurick”, organizada pelo conde de Romanzov(1754-1826), chanceler do

Império Russo, entre os anos de 1815 e 1818. A expedição tinha como meta principal descobrir uma passagem entre o Pacífico e o Atlântico pelo caminho do Estreito de Bering.

Comandada por Otto von Kotzebue, tal expedição teve uma grande importância do ponto de vista geográfico, pois permitiu um melhor conhecimento do Pacífico. O “Rurick” visitou sucessivamente Tenerife, a Ilha de Santa Catarina, no Brasil, Talcahuanha, na costa do Chile, a Ilha de Páscoa, bem como outras ilhas no Pacífico até o Estreito de Behring. O trajeto feito 224

pelo navio explorou também a costa da Ásia e a costa oeste da América do Norte. Entre as inúmeras pranchas e desenhos que produziu, encontram-se quatro pranchas que retratam paisagens da Ilha de Santa Catarina, que foram publicadas em 1826 com o título de Vues et paysages des regions équinoxiales recueillis dans un voyage autour du monde com introdução, texto explicativo e imagens em cores no formato in-fol., impressas pela editora

Paul Renouard, de Paris. O tempo de permanência na Ilha de Santa Catarina foi pequeno, entre o dia 29 de novembro de 1815 e o dia 16 de dezembro do mesmo ano (ou 11 a 28 de dezembro).432

Em 1819, um ano após o término da expedição, partiu para Paris, onde conviveu com outros artistas e cientistas. Estudou e trabalhou com Jean Baptiste Regnault e no ateliê de M. Gérard, com os quais aprendeu a técnica da litografia. Em 1827 deixou a

França para visitar o México e outras regiões da América. Morreu de forma trágica na cidade de Vera Cruz, México, em 22 de março de 1828, ferido por um golpe de sabre e atingido por uma bala, ao tentar se livrar de assaltantes. Seus trabalhos começaram a ser publicados em

Paris a partir do ano de 1819. Além da obra citada acima, trabalhos seus podem ser encontrados em Voyage pittoresque autour du monde, accompagné de descriptions de mammifères par M. le baron Cuvier et d’observations sur les crânes humains par M. le docteur Gall, publicado em Paris no ano de 1820, em formato in-fol., com figuras e mapas.

Em 1822 surgiu outra edição com o título levemente modificado: Voyage pittoresque autour du monde, avec des portraits de sauvages d’Amérique, d”Ásie, d’Áfrique, et des iles du

Grand Ocean; des paysages, des vues maritimes et plusiers objets d’histoire naturelle. Esse trabalho é acompanhado por descrições e observações do Barão Cuvier, de Adalbert von

Chamisso e do doutor Gall. Foi impresso pela editora Firmin Didot, de Paris. Essas edições possuíam vários fascículos e eram relativamente caras, por isso muitas somente eram

432 A existência de duas datas deve-se, provavelmente, ao fato do Império Russo, onde nasceu Choris, utilizar o calendário Juliano e não o calendário Gregoriano, como no Ocidente. O primeiro tem um atraso de 13 dias em relação ao segundo, o que se manteve até janeiro de 1918. 225

publicadas com a venda antecipada de um número mínimo de obras, de maneira que a venda pagasse a impressão das pranchas. As pessoas que adquiriam os álbuns, muitas vezes os desmembravam a fim de emoldurar as pranchas.

No Brasil não são encontradas traduções completas dessas obras. É possível encontrar partes específicas que foram traduzidas e publicadas em coletâneas, como as quatro pranchas, acompanhadas dos respectivos textos explicativos publicados em Ilha de Santa

Catarina: relato de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. Na biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da USP há uma cópia do Vues et paysages des régions équinoxiales recueillis dans un voyage autour du monde, publicado em Paris pela editora P. Renouard, no ano de 1826. A Biblioteca Mário de Andrade/SP possuí uma cópia do Voyage pittoresque autour du monde, publicado em Paris no ano de 1822 pela editora Firmin Didot. Além desse material impresso, Afonso d’Escragnolle Taunay cita a existência de uma aquarela que reproduz o cenário da prancha V, com pequenas diferenças no ambiente natural retratado e sem a presença dos bailarinos africanos, adquirida por Almeida Prado na Europa.433

No final do século XVIII e na primeira metade do século XIX a América foi tema de inúmeras imagens, reproduzidas em desenhos, pinturas, xilogravuras, litogravuras, etc.. Dessa forma, as paisagens e as populações do Novo Mundo tornaram-se acessíveis a um maior número de pessoas na Europa. A litografia, técnica utilizada para reproduzir as imagens de Choris, difundiu-se no início do século XIX. O procedimento, que utilizava a pedra para a confecção da matriz, era mais preciso do que a xilogravura. Além de permitir a reprodução em massa, possibilitava a confecção de novas criações.434

A utilização de artistas para a produção de imagens sobre regiões pouco conhecidas do Velho Mundo remonta ao período das grandes descobertas. Um exemplo são as

433 TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Cinco peças da velha Iconografia Catarinense. In: Anais do Primeiro Congresso de História Catarinense. Florianópolis: Imprensa Oficial, 1950. Vol. II. pp. 124-139. 434 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 166. 226

imagens produzidas por Franz Post que, juntamente com Albert Eckhout, acompanhou o governador holandês Maurício de Nassau durante o período do domínio holandês no nordeste brasileiro (1630-1654). Inicialmente, a utilização desses artistas tinha como objetivos mapear o relevo, os portos e a geografia das novas regiões. Foi somente no final do século XVIII que as missões científicas se multiplicaram, e os artistas que participavam destas missões passaram a ter outras funções. Continuavam retratando a topografia, mas também dedicavam- se às cidades, aos tipos humanos e os seus costumes etnográficos.435 Marcos Vinicius de

Freitas coloca que no período colonial e imperial brasileiro existiram três diferentes influxos no que se refere à pintura e ao desenho de paisagens. O primeiro foi com a vinda de artistas e cientistas da missão de Maurício de Nassau. Franz Post, Albert Eckhout e Georg Marcgraf foram os artistas que, no século XVII, produziram imagens sobre o Brasil holandês. Post foi quem estabeleceu a palmeira como um dos símbolos do paisagismo tropical. O segundo localizou-se na primeira metade do século XIX e foi marcado por três eventos: a vinda da

Missão Artística Francesa em 1816, a vinda da Missão Científica Austríaca em 1817 e a

Expedição Langsdorff, realizada entre os anos de 1822 e 1825. O terceiro e último influxo foi marcado pela presença do professor Johann Georg Grimm na Academia de Belas Artes, entre os anos de 1882 e 1884. Ele levou seus alunos para fora dos ateliês, para terem contato com a natureza, o que influiria nos padrões acadêmicos da pintura das paisagens.436

O trabalho de Louis Choris recebeu influências, ou vinculou-se, aos dois primeiros momentos. Apesar de não podermos afirmar com certeza se ele teve ou não contato com certos artistas, ou seus trabalhos, podemos levantar algumas considerações. Os trabalhos dos artistas que acompanharam Nassau foram doados a Frederico Guilherme de Brandeburgo.

No ano de 1664 foram publicados em Berlim sob o título de Theatrum rerum naturalium

435 CHENET, Françoise. L’artiste chargé de mission. Le rôle de l’artiste dans quelques missions scientifiques. In: MOUREAU, François (org.) L’oeil aux aguets ou l’artiste en voyage. Paris: Klincksieck, 1995. pp. 136-137. 436 FREITAS, Marcus Vinicius de. Charles Frederick Hartt, um naturalista no Império de Pedro II. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. pp. 120-124. 227

brasiliae. A obra compreende 1460 trabalhos editados em 4 volumes. Em 1814, um estudioso chamado Lichtenstein dedicou vários estudos a essa obra, após localizá-la na Biblioteca de

Berlim. Além disso, Maurício de Nassau presenteou o rei da França, Luís XIV, com 4 quadros de Franz Post. Esses trabalhos realizados pelos artistas holandeses ou estavam na França, em sua capital Paris, ou então estavam sendo objetos de estudo na mesma época que Choris estava fazendo sua formação de artista viajante, o que aumenta as possibilidades dele tê-los analisado. Além disso, Choris provavelmente teve contato com diversos artistas e cientistas de sua época, uma vez que mantinha relações com Alexander von Humboldt, que congregava ao seu redor cientistas, viajantes e artistas, entre eles Rugendas. Artistas e cientistas ou moravam na capital da França, ou então mantinham contato com suas instituições, como por exemplo o

Muséum National d’Histoire Naturelle. Um ano após o término da viagem no “Rurick” (1815-

1818), Choris mudou-se para Paris, e permaneceu na cidade até o ano de 1827, quando deixou a França rumo ao México, onde veio a falecer.

As imagens que tem como motivo a América podem ser divididas em dois tipos. Uma das formas mais freqüentes era a pintura de vistas sobre as cidades da América

Colonial, onde podemos perceber a preocupação dos artistas em registrar o entorno das vilas e seu aspecto geral, inserindo ou não os indivíduos que viviam no local. A outra forma era a produção de imagens da natureza, fosse ela no seu conjunto, como o pregado por Alexander von Humboldt, fosse ela compartimentada, onde animais ou plantas eram pintadas individualmente, em detalhes. No primeiro tipo de imagem, o interesse estava voltado para o que o homem produziu, principalmente as cidades. No outro, o olhar estava voltado para a natureza, em decorrência principalmente do desenvolvimento das ciências naturais.

As cidades da América eram pintadas inicialmente por cima e paulatinamente passaram a ser retratadas de frente e em detalhes, num movimento contrário às vistas das cidades européias, que eram retratadas de frente e posteriormente por cima. As cidades 228

retratadas por cima437, de forma perspectivada, nos mapas em escala reduzida, substituíram as representações de perfil e/ou idealizadas do início da ocupação da América pelos europeus.

Posteriormente, os viajantes passaram a retratar as cidades de frente, a partir do mar, nos conhecidos perfis urbanos. Retrataram os morros e as construções, normalmente capelas, igrejas e construções militares.438 Entre as imagens das cidades existiam os panoramas e as vistas ou vedutas. O panorama tinha o objetivo de mostrar uma visão do todo. Essa moda, inaugurada na Inglaterra pelos irmãos Baker, tornou-se popular no século XIX. Pintura ilusionista, circular e contínua, foi adotada para mostrar o alcance amplo de um campo perceptivo.439 A vista não rompia com a idéia de quadro, nem criava o efeito ilusionista de um olhar que conseguia ver o espaço em 390º como o panorama, onde o observador posicionava- se no centro.

O interesse europeu em retratar as cidades surgiu no século XV, relacionado com a expansão comercial, a secularização da arte e o progresso da imprensa. As primeiras vistas das cidades surgiram nos atlas, onde arte e geografia estavam unidos. No século XVI a produção de vistas e mapas foi ampliada. As cidades eram representadas do ponto de vista de um pássaro (vôo-de-pássaro ou vol d’oiseau), numa tomada globalizante do espaço. Além disso, os mapas eram decorados com produtos da cidade retratada, chamando a atenção para suas riquezas. Nas pinturas do nordeste brasileiro, produzidas por artistas holandeses durante o governo de Nassau, são identificados produtos tropicais, como frutas e animais. Esse tipo de produto, vistas de regiões distantes como a Ásia e a África, tornou-se sucesso na Europa entre

437 Segundo Michel de Certeau “as pinturas medievais ou renascentistas representavam a cidade vista em perspectiva por um olho que no entanto jamais existira até então. Elas inventavam ao mesmo tempo a visão do alto da cidade e o panorama que ela possibilitava. Essa ficção já transformava o espectador medieval em olho celeste.” CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano; 1. Artes de fazer. Tradução: Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis/RJ: Vozes, 1996. p. 170. 438 MARX, Murillo. Olhando de cima e de frente. Revista USP. São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai. 1989) p. 173- 174. 439 Sobre os panoramas e sua inserção na sociedade francesa do século XIX ver: BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século XIX. In: Walter Benjamin: sociologia. São Paulo: Ática, 1991. pp. 30-43. 229

os anos de 1785 e 1860. As vistas que tinham a América como tema começaram a ser publicadas no início do século XIX.440 Valéria Salgueiro salienta que

sendo o álbum de vistas urbanas produzidas pelos viajantes europeus expressão ao mesmo tempo da cultura latino-americana (quanto ao objeto retratado: a cidade) e da cultura européia (quanto à natureza do produto: o álbum ilustrado de vistas), sua história não pode estar divorciada da história mais ampla das vistas urbanas da própria Europa, já que estas compõem sua matriz de origem.441

Devido aos interesses marítimos e comerciais, que somaram-se à difusão de um conhecimento científico baseado na História Natural, difundiu-se a preocupação de registrar de forma mais fidedigna possível as regiões não-européias. Além desses interesses, devemos salientar o aumento na procura e difusão de vistas e pinturas por uma crescente classe média letrada, que utilizava as reproduções na decoração de suas residências. Somou-se a isso a difusão do mercado editorial, conseqüência do maior poder aquisitivo e do aprimoramento técnico, que possibilitava produzir em larga escala gravuras baseadas nas pinturas e aquarelas feitas pelos artistas viajantes, vendidas como álbuns ilustrados.

Madeleine Pinault classifica as obras dedicadas à História Natural em duas categorias: a tendência pitoresca e as coleções iconográficas sobre pergaminho. A tendência pitoresca refere-se à pintura com sujeitos diversos destinados aos gabinetes ou a decoração de construções reais. Essas obras reproduziam imagens de plantas, animais e paisagens, que eram do interesse dos colecionadores, normalmente feitas por artistas renomados que recriavam a ilusão de natureza. Já as coleções iconográficas sobre pergaminho permitiam que as espécies animais e vegetais fossem classificadas e preservadas através da imagem. Além disso, a difusão desse conhecimento científico seria ampliada, principalmente entre os amadores.

Outro aspecto que a autora salienta é a utilização econômica desse tipo de produção iconográfica. Muitos dos desenhos eram utilizados para o estudo da História Natural e da

440 SALGUEIRO, Valéria. Vistas Urbanas nos Álbuns Ilustrados por Viajantes Europeus do Século XIX. Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 4, 1997, p. 103-123. 441 Ibidem. p. 103. 230

anatomia, mas outros eram destinados às manufaturas de tecidos e porcelanas, sendo reproduzidos pelos artesãos. A natureza oferecia inúmeras possibilidades, pois seus temas poderiam ser utilizados nas artes e também nos ofícios.442

Os artistas viajantes que trabalhavam em expedições científicas tinham a função de produzir um material que iria ser utilizado como material de pesquisa e estudo, principalmente quando o tema era científico-natural, como, por exemplo, desenhos da flora e da fauna. Com a expansão do conhecimento científico nos séculos XVII e XVIII houve um estreitamento da relação entre o artista e o cientista na busca de uma representação mais exata e confiável do objeto, fosse ele uma cidade ou aspectos da natureza. Nesse período, devido à expansão da ciência, a arte gráfica passou a ser utilizada como ilustração do conhecimento.

Criou-se uma tensão entre o gosto estético e a demanda por um trabalho que tivesse a preocupação com a exatidão das formas e das cores, já que essas imagens seriam utilizadas para a difusão do conhecimento científico. Por outro lado, difundia-se na Europa uma estética que valorizava o passado, as paisagens naturais, onde era cultivado o gosto pelo pitoresco e pelo sublime numa visão estetizada da natureza, no momento em que na Europa a paisagem estava sendo profundamente transformada devido à Revolução Industrial.443

É nesse contexto que difundiu-se o gosto pelos álbuns e pelos livros de viagens ilustrados, principalmente de paisagens. A natureza passou a ser valorizada por si mesma, ela era a artista. Mas essas paisagens exóticas eram retratadas a partir de lugares-comuns444, o que fazia com que a natureza de lugares distantes fosse ajustada ao gosto europeu, tornando-se assimilável ao público a quem eram destinadas. Entre as pinturas, cujo motivo era a natureza,

442 PINAULT, Madeleine. Le peintre et l’histoire naturelle. Paris: Flammarion, 1990. p. 10. 443 SALGUEIRO, Valéria. Op. cit. p. 109. 444 “Dentre estes lugares-comuns destaca-se a divisão tripartite do espaço pictórico, convenção herdada da arte de paisagem do norte europeu, com suas distâncias bem marcadas em planos - plano da frente, plano do meio, plano do fundo -, cujo primeiro plano foram abordados os aspectos de singularidade e localidade também de nossas paisagens, esquema figurativo que tão bem serviu ao sentido cênico da paisagem do viajante.” SALGUEIRO, Valéria. Op. Cit. p. 116. 231

podemos perceber dois tipos de representação, influenciados respectivamente por Conrad

Gessner e por Alexander von Humboldt.

Conrad Gessner (1516-1565), naturalista e desenhista de talento, produziu no final da vida um estudo sobre dois tipos de Iris, a Iris Gramínea e a Iris da Sibéria (Figura 3).

A última foi desenhada em detalhes e continha anotações explicativas. Sua obra marcou uma ruptura entre uma ilustração botânica puramente artística, onde flores, frutos e animais faziam parte do cenário ou então compunham uma natureza-morta e encaminhou-se para um estudo das plantas, descrevendo-as cientificamente, pressagiando desta forma as futuras pesquisas dos cientistas.

Figura 3 – Íris Gramínea – Conrad Gessner, 1643.

Historia Plantarum. In: www.amo-bulbi .it/tav_ Iris_ Gec. htm. Acesso em: 10. jan. 2005 (detalhe)

Essa forma de retratar a natureza foi ao encontro da teoria científica de Carl von Linné, difundida na primeira metade do século XVIII. No modelo de representação artística influenciada por Linné, o conhecimento era compartimentado e ordenado. O fundamento da ciência clássica era o desenho matemático e o sentido da visão. O melhor exemplo desse gênero de arte eram as reproduções de espécies vegetais (Figura 4). Essas eram recortadas, pintadas em seus detalhes, a partir de vários ângulos, ou seja, 232

individualizadas e posteriormente comparadas e classificadas pelas regras estabelecidas pela

História Natural.

Figura 4: Lophostachys publiflora lindau – Hercule Florence, 1828. In: Expedição Langsdorff ao Brasil 1821-1829. Iconografia do Arquivo da Academia de Ciências da União Soviética. Rio de Janeiro: Edições Alumbramento/Livroarte Editora, 1988, vol. 3. p. 21.

Por outro lado, a concepção artística difundida por Humboldt enfatizava uma visão pictórica que tinha a intenção de abraçar o todo, onde as diversas formas de vida eram consideradas interdependentes. Ele solicitava aos artistas que, em seu trabalho de representar a natureza, não se utilizassem das espécies trazidas das viagens ou então as que se encontravam nas estufas, o que fatalmente remeteria a uma reprodução das plantas deslocadas de seu ambiente de origem. Para ele, as plantas deveriam ser representadas em seu ambiente natural, no que ele denominava de “o grande teatro da natureza tropical.”445 Os interesses de

Humboldt estavam voltados para o estudo das relações entre os seres humanos e a natureza e

445 BELLUZZO, Ana Maria. Op. cit. p. 18. 233

como estas contribuem para a formação da paisagem. Em sua obra Cosmos, a paisagem é entendida como a “representação mental de um espaço real cujo conteúdo é, por excelência, diversificado.”446

Nas litogravuras referentes à Ilha de Santa Catarina, elaboradas por Louis

Choris, a partir de sua passagem por estas paragens no ano de 1815, podemos perceber a influência de Humboldt. O álbum no qual elas foram publicadas, Vues et paysages des régions équinoxiales... foi dedicado a ele. As litografias foram produzidas durante sua estada em Paris, após a viagem e publicadas no ano de 1826. Como artista contratado, muitos dos trabalhos produzidos durante a viagem provavelmente foram desenhos voltados para os estudos científicos e pertenciam aos órgãos que organizaram e financiaram a viagem.

Infelizmente não tivemos acesso a esses trabalhos. As imagens que fazem parte do álbum devem ter sido feitas após seu retorno a Europa, a partir de esboços.

Na obra que estamos utilizando em nossa pesquisa estão reproduzidas 4 pranchas referentes ao Brasil, mais especificamente à Ilha de Santa Catarina, uma vez que a expedição da qual ele participava não parou em outras regiões do Reino Português. O porto do Rio de Janeiro foi evitado por causa do medo de doenças, comuns devido à insalubridade da cidade. A sujeira e a falta de condições de higiene foi retratada por viajantes estrangeiros que permaneceram no Rio de Janeiro, como Charles Expilly. A primeira impressão, quando o barco entrou na baía “após os sofrimentos e privações da longa travessia, fica-se deliciosamente comovido com o esplendor do panorama que se estende diante dos olhos”. A decepção no entanto, não tarda: “Que decepção, meu Deus, quando se sai do ancoradouro!

[...] As casas do Rio, construídas em terreno úmido, não têm fossas. Todos os detritos domésticos são atirados de qualquer maneira em barris que de noite os escravos despejam no

446 GOMES, Edvânia Tôrres Aguiar. Natureza e Cultura: representações na paisagem. In: ROSENDAHL, Zeny & CORRÊA, Roberto Lobato. Paisagem, imaginário e espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. p. 66. 234

mar.”447 Era através da leitura e da troca de informações entre os viajantes que muitas das expedições eram organizadas.

A primeira coisa que chama a atenção nas pranchas é o espaço ocupado pela natureza. Ela é representada grande e exuberante, enquanto os seres humanos e sua produção cultural, como por exemplo as casas, aparecem de forma marginal, em segundo plano, apesar de algumas vezes centralizadas. Isso ocorre na prancha II e IV.448 Na prancha III (Figura 6) a moradia ocupa um plano intermediário, localizado no lado direto, “sombreada por laranjeiras e bananeiras”. Já o indivíduo que é reproduzido enquanto trabalha, carregando cachos de banana, está localizado no primeiro plano, mas sua imagem quase passa despercebida devido

à grandeza das espécimes vegetais que são retratadas, neste caso duas espécies de cactus, o

“opúncia” e o “colosssal”, e os pés de “ananases”. Nos textos explicativos que acompanham as pranchas, Choris afirmou que, em suas andanças pelo interior da Ilha, “fica-se tomado de admiração vendo-se a variedade, a força e as dimensões gigantescas dos vegetais que, num espaço bastante restrito, recobrem o solo.”449 A riqueza e a variedade de espécies vegetais encontradas na flora tropical encantava e surpreendia os viajantes, fossem eles cientistas ou não.

As mudanças científicas que ocorreram na segunda metade do século XVIII iriam influenciar também a sensibilidade dos artistas em relação a natureza. A partir desse momento os cientistas saíram dos gabinetes onde estavam encerrados, estudando as espécies deslocadas de seu contexto natural e passaram a percorrer o mundo, acompanhados de desenhistas e artistas a fim de estudar a natureza ao ar livre. Ao mesmo tempo que estavam

447 EXPILLY, Charles. Apud. MAURO, Frédéric. O Brasil no tempo de dom Pedro II: 1831-1889. Tradução: Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. pp 14-15. 448 Optamos por manter a numeração original do álbum, feita em números romanos. A prancha I retrata uma cena que se passa no convés do barco. 449 CHORIS, Louis. Op. cit. p. 245. 235

Figura 5 – Brèsil – desenho de Louis Choris – (20,7 cm x 26 cm) In: CHORIS, Louis. Vues et paysages de regions équinoxiales recueillis dans um Voyage autour du monde. Paris: Paul Renourd, 1826. Prancha II.

interessados em descobrir, estudar e analisar a natureza, dedicavam-se também às questões históricas, geográficas e etnológicas das regiões visitadas. Além das transformações científicas, escritores e poetas como Jean-Jacques Rousseau e Salomon Gessner450 também tiveram um papel importante na formação do gosto dos artistas e dos amadores pelo paisagens e fenômenos naturais.451

Na prancha II (Figura 5), a primeira que retrata as regiões tropicais, nomeada como

“Brèsil”, as cores e a exuberância da natureza estão colocadas em primeiro plano. Helicônias, philodendrum (popularmente conhecida como costela-de-adão), cactus, bromélias e outras plantas são pintadas ao lado de alguns animais, como o tucano. Apesar de não ser possível identificar as espécies botânicas, somente as famílias, e na reprodução do tucano constatarmos

450 Salomon Gessner .foi escritor, desenhista, pintor e editor de Zurique. Contribuiu para a redescoberta da natureza, combinando tradição bucólica literária ao modo de sentir moderno, à sensibilidade do século XVIII que valorizava a fraternidade, a solidariedade e o desejo de harmonia. Ver: www.letras.up.pt/upi/ilc/vilasboas6.pdf Acesso em: 18.novembro.2004. 451 PINAULT, Madeleine. Op. cit. pp. 245-246. 236

Figur a 6 – Vue dans l´interieur de l´Ile de Stª Catherine (Brèsil) – desenho de Louis Choris – (21cm x 26,6 cm) In: CHORIS, Louis. Vues et paysages de regions équinoxiales recueillis dans um Voyage autour du monde. Paris: Paul Renourd, 1826. Prancha III.

imprecisões na pintura da plumagem, Choris pintou uma imagem dessa região da América que vai ao encontro das representações que se tinha dos trópicos: plantas e animais coloridos, natureza exuberante e exótica e a presença reduzida do ser humano.

No século XVIII, e principalmente na primeira década do século XIX, desenvolveu-se, na História Natural, estudos do que mais tarde seriam chamados de biogeografia, paralelamente à classificação. Humboldt, que viajou pela América Espanhola, desenvolveu estudos sobre a geografia das plantas que influenciaram seus contemporâneos.

De suas conclusões, dois aspectos nos interessam particularmente. Um é o entendimento de que os seres vivos só podiam ser compreendidos quando relacionados com os lugares onde se 237

desenvolveram e com os outros seres vivos com os quais estavam relacionados. O outro aspecto refere-se às impressões estéticas que eram sentidas pelo viajante em cada região por onde passava. Para ele, essas impressões eram parte integrante do trabalho científico, e não podiam ser substituídas por estudos de amostras ou descrições feitas em gabinetes. Foram essas concepções de Humboldt que iriam contribuir para justificar a utilização de artistas viajantes nas expedições.

A arte vinculava-se estreitamente ao trabalho científico. Exemplos dessa vinculação podem ser encontradas em várias expedições, inclusive entre as que transitaram pelo Brasil, e que contaram com artistas, tais como , Hercule

Florence e Thomas Ender.452 Podemos perceber que, em seus trabalhos, Choris seguiu as recomendações feitas por Humboldt. Os esboços, e mesmo alguma pintura mais elaborada, eram feitos tendo a natureza como modelo. O trabalho de reprodução em litografia foi elaborado posteriormente, quando já se encontrava na Europa, mas tendo como base os inúmeros trabalhos realizados durante a viagem. Além de pintor e viajante, Choris também era litógrafo, o que contribuiu na qualidade de suas pranchas, uma vez que ele conhecia as possibilidades de reprodução de seus esboços. Além do contato direto com a natureza que seria o objeto de estudo, Humboldt também estabeleceu o que se denominou o estudo das

“fisionomias das paisagens”. Segundo ele, existiam vegetais sociais e vegetais associais. As plantas que compunham a natureza tropical eram do grupo associal, ou seja, conviviam espécies de tipos diferentes entre si. Era esse, inclusive, um dos aspectos que impressionava os viajantes europeus, acostumados com os bosques europeus, onde havia várias plantas das mesmas espécies, como pinheiros e carvalhos. O grande número de espécies diferentes convivendo juntas, entrelaçando seus galhos e constituindo um colorido composto por vários tons de verde era um espetáculo que os impressionava. A natureza tropical, com seu colorido

452 KURY, Lorelei. Os três reinos da natureza. In: MARTINS, Carlos (org.) O Brasil Redescoberto. Rio de Janeiro: Paço Imperial/Minc IPHAN, setembro/novembro de 1999. p. 30. 238

exuberante nas flores e nos pássaros também foi reproduzido por Choris. A fisionomia da paisagem dos trópicos era composta de algumas espécies básicas, que são encontradas em suas pranchas. Temos a presença de coqueiros, cactos, bananeiras, bromélias e helicônias entre as plantas, e de pássaros coloridos como os tucanos e as araras azuis. Os pássaros típicos dos trópicos são vistos nas pranchas II, III e IV (Figura 7). No caso do pássaro azul e amarelo que aparece nessas pranchas, sua reprodução não corresponde a nenhum tipo de pássaro conhecido, segundo João de Deus Medeiros, professor de botânica da Universidade Federal de Santa Catarina. Somente temos certeza de que o animal que ele desenhou é uma arara, ao lermos o texto que acompanha todas a pranchas. Ainda segundo o professor, as quatro imagens reproduzidas nesse álbum não são úteis para os estudos de taxonomia. Tal fato não ocorre com os desenhos de plantas feitas pelo viajante Martius, que ainda são utilizados nos estudos de botânica. Isso explica-se porque esses desenhos seguiam os preceitos indicados por

Linné, como os feitos por Hercules Florence (ver figura 4). As imagens de Choris são úteis para identificar a paisagem, as transformações causadas pela ocupação humana. Nas obras de

Spix e Martius também são encontradas imagens de paisagens, como a intitulada “Lagoa de aves à margem do Rio São Francisco”. Como nas pranchas de Choris, essas paisagens eram acompanhadas por textos explicativos que citavam as plantas e os animais retratados, alguns sendo nomeados “cientificamente”.

239

Figura 7 – Ile de Stª Catherine (Brèsil) – desenho de Louis Choris – (21,8 cm x 26,8 cm) In: CHORIS, Louis. Vues et paysages de regions équinoxiales recueillis dans um Voyage autour du monde. Paris: Paul Renourd, 1826. Prancha IV.

Na prancha V (Figura 8) a natureza está presente em toda sua grandiosidade, através de altas árvores, como o coqueiro e o mamoeiro (que alcança quase a mesma altura do coqueiro) e de outras espécies como as bananeiras, os cactos e os ananases. Ao fundo aparecem os morros e, à direita, a praia e o mar. O que diferencia essa prancha das outras é a presença de cenas de costumbrismo, que são descrições da vida popular. Em todas as pranchas são reproduzidos indivíduos ou então moradias, mas nessa o tema central desloca-se da natureza para o ser humano. Um grupo posicionado em roda, a sombra de uma jabuticabeira, onde um indivíduo dança e toca um pandeiro, enquanto outro toca um tamborim, mulheres dançam e outros dois encontram-se fora da roda, observando. Segundo

Choris, “pelo fim do dia os negros, para se distraírem de seus trabalhos penosos, reunem-se e 240

dançam: por toda a parte onde esta raça de gente habita, ela se entrega com paixão a este divertimento.”453

Figura 8 – Vue de la cöte du Brèsil vis à vis de l`Ile de Stª Catherine (Brèsil) – desenho de Louis Choris – (20,9 cm x 26,3 cm) In: CHORIS, Louis. Vues et paysages de regions équinoxiales recueillis dans um Voyage autour du monde. Paris: Paul Renourd, 1826. Prancha V.

No momento podemos levantar dois aspectos. Primeiramente o fato de que, como outros viajantes, Choris utilizava o termo “negros”, sem fazer distinção se estes eram livres ou escravos. O outro aspecto foi sua generalização, dizendo que a dança era um divertimento ao qual se entregavam os indivíduos de toda uma “raça”. Seria essa uma conclusão inconseqüente, já que Choris não conhecia tantas regiões onde a presença negra era freqüente, ou ela fora baseada em leituras prévias de outros viajantes? Langsdorff, em seu relato, dedicou um grande espaço para descrever as danças dos negros e sua música, que ele considerava um barulho ensurdecedor. Um dos itens na preparação de um viajante era a

453 CHORIS, Louis. Op. cit. p. 246. 241

leitura de outros relatos, que haviam sido publicados na Europa. Além disso, muitos dos viajantes trocavam correspondências entre si, ou mesmo eram amigos ou colegas nas academias de ciência e museus de História Natural. Essas questões nos remetem à representação sobre a América, sua natureza e seus habitantes que circulavam pela Europa, e que iriam direcionar o olhar do viajante, fosse este um marinheiro, um cientista ou um artista.

Voltando à análise da prancha V, num segundo plano, quase encoberto pelas plantas, encontra-se um casal, descendentes de europeus, provavelmente proprietário de terras, trajado com apuro. O texto explicativo não se refere a eles, como também não comenta sobre o barco representado à direita da prancha. Fala rapidamente sobre as habitações humanas, descrevendo-as como “sítios que a imaginação mais brilhante não poderia crê-las mais agradáveis do que elas são na verdade.”454 Em resumo, pinta um quadro pitoresco, formado por casas envoltas por uma vegetação exuberante, com muitas árvores frutíferas, como bananeiras, mamoeiros e mais afastadas, plantações de milho. Apesar de escrever no texto que a dança era uma distração após o trabalho penoso do dia, o que ele salientou na pintura foram grupos de indivíduos desocupados, reforçando assim o estereótipo dos habitantes locais.

Um outro tipo de pintura produzida pelos artistas viajantes eram as vistas de cidades, como, por exemplo, a “Vista da vila de Desterro a partir do hospital” pintada por

Jean Baptiste Debret. Esse artista não acompanhava uma expedição científica, tal qual Louis

Choris, e suas obras tinham outras finalidades, o que influenciou em sua produção final.

Nosso interesse nessa obra justifica-se pela possibilidade de trabalharmos comparando dois tipos de imagens que tomaram como referência a mesma região. Ambos eram indivíduos europeus, tinham a mesma profissão, produziram essas imagens em períodos relativamente

454 Ibidem. p. 246. 242

próximos455, mas, no entanto, o resultado que emergiu de seus pincéis é distinto, apesar de possuírem alguns pontos em comum. Enquanto para um o central é a vila e o homem que nela habita, para o outro é a natureza. O homem e o resultado de sua cultura torna-se periférico frente à grandeza de uma “natureza ainda selvagem.”456

Figura 9 – Vi sta da vila de Desterro a partir do Hospital – Aquarela de Jean Baptiste Debret – (37 cm x 10,5 cm) In: DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Paris: R. de Castro Maya, 1954. Prancha 70 – L aguna (nomeado incorretamente)

Essas pinturas, como a “Vista da vila de Desterro a partir do Hospital”457

(Figura 9), eram feitas a partir de um ponto alto e com um ângulo aberto, visando dessa forma representar uma visão geral da cidade e de seu entorno. Nessa vista, pintada na primeira metade do século XIX, podemos perceber que não existia uma preocupação em detalhar as construções. Salientavam-se os prédios maiores, como por exemplo a Igreja Matriz, mas

455 Debret produziu sua vista de Desterro entre os anos de 1819 e 1826. Choris produziu entre os anos de 1815, quando esteve na região sul do Brasil e 1822, quando foi publicado o trabalho onde estão reproduzidas as pranchas. Sobre Debret, não existem dados que confirmem sua vinda a Desterro. A pintura foi provavelmente produzida a partir de relatos tomados de outros viajantes. 456 CHORIS, Louis. Op. cit. p. 244. 457 As pranchas 69 e 70 estão com as legendas erradas. Por isso não sabemos qual foi a denominação dada por Debret ou pela editora que as publicou. Escolhemos esse nome por ser o que melhor descreve a imagem reproduzida. 243

devido ao ponto de observação ser distante, outras construções menores não eram percebidas em sua individualidade. O olhar era de longe, sem perceber as particularidades da cidade, de suas construções e de seus habitantes. Uma metáfora da visão dos viajantes em relação à

América. O que era retratado era o que, de certa forma, já fazia parte da imagem européia da região. Uma paisagem idílica, onde a maior parte era tomada pela natureza, tão grandiosa que o trabalho do ser humano, no caso a cidade, ocupava uma espaço reduzido.

O ponto de observação do pintor é o pátio do hospital, atual Hospital de

Caridade, localizado no morro denominado Boa Vista. No primeiro plano da vista podemos perceber alguns temas comuns que são retratados em vistas de outras cidades brasileiras: dois negros carregando um doente, um indivíduo caminhando com a ajuda de muletas e na companhia de uma criança, e outros indivíduos, que pelas roupas parecem ser religiosos.

Debret fazia parte de uma expedição artística que foi financiada pelo governo português, e esteve no Brasil com o objetivo de ministrar aulas na Escola de Belas Artes (que não teve um prédio próprio durante sua permanência no país). Pintou muitas obras a pedido do governo, português e do Império do Brasil, após a Independência, e também muitas cenas urbanas, nas quais retratou o trabalho e o cotidiano de vida dos escravos. Após sua mudança para o Brasil, mudou o estilo e os temas de suas pinturas, influenciado pela experiência e pelo contato com a sociedade colonial. Apesar de ter se dedicado a diversos temas, também foi influenciado pelos interesses do mercado consumidor, neste caso, o europeu. No início do século XIX, vistas de cidades estavam na moda, e Debret reproduziu várias delas, de diferentes cidades, como

Laguna, São Paulo, Santos, São Vicente, entre outras.

Na vista de Desterro, podemos constatar o gosto pelo diferente, pelo pitoresco.

Grande parte da pintura é tomada pelo tema da natureza: vegetação, onde podemos constatar a presença de coqueiros, pelos suaves contornos dos morros ao fundo e pelo mar. O interesse 244

pelo “exótico”, pelo “tropical”, pelo “pitoresco” continua presente, mesmo com o desenvolvimento de um olhar classificador e científico sobre a América e as regiões tropicais.

Mesmo os artistas que, como Debret, não pintavam com o objetivo de produzir um material que iria complementar o trabalho científico, eram influenciados pelos métodos utilizados pelos cientistas para a observação de um país e uma cultura estranha. Na obra que estamos analisando, Debret preocupou-se em retratar a mata e nela incluir as palmeiras, um dos tipos básicos da natureza do Brasil. No entanto, essa natureza é a moldura para a vila, para o que o homem havia produzido. Em outras obras suas, que retratam os escravos no Rio de Janeiro, também incluiu aspectos da natureza local, como na prancha em que retrata os ajudantes dos naturalistas, ou então os negros de ganho vendendo frutas típicas na cidade do

Rio de Janeiro. Mas, apesar de sofrer influências e retratar aspectos que interessavam aos estudiosos, seu objetivo era distinto. Segundo Ana Belluzzo

a atenção de Debret não se dirige para construção da idéia de natureza, nem para o reconhecimento das riquezas naturais, nem de uma humanidade em estado natural. Debret trata de centrar a atenção no estado geral da sociedade, buscando apreendê-la com base no entendimento da transformação da natureza em cultura, do natural em civilizado. A concepção procede da Ilustração francesa, acrescida do interesse pelas particularidades dos povos.458

Jean Baptiste Debret nasceu em Paris no dia 18 de abril de 1768, filho de um escrivão do Parlamento de Paris. Seu pai tinha parentesco com o arquiteto Demaison e os pintores François Boucher e Louis David. Após os estudos básicos, aprofundou-se no conhecimento do desenho e da pintura na escola do célebre pintor Louis David, inclusive acompanhando-o em uma viagem de estudos à Itália. Retornou no ano de 1785 a Paris e apresentou trabalhos na Escola da Academia de Paris. Após vencer o Salão de 1798, tornou-se conhecido, aumentando os convites para executar trabalhos, como pinturas e decorações em casas particulares, cujos temas versavam sobre a História Antiga e fatos militares. Recebeu

458 BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. Vol. 3: A Construção da Paisagem. São Paulo: Metalivros; Salvador: Fundação Emílio Odebrecht, 1994. p. 83. 245

várias encomendas do governo francês, e em 1815, após a morte de seu único filho de 19 anos, resolveu aceitar o convite de Lebreton, o qual estava organizando a Expedição Artística

Francesa a pedido do Marquês de Marialva. Aos 47 anos embarcou em uma viagem para o

Brasil, chegando no Rio de Janeiro em 25 de março de 1816, onde viveu e montou seu ateliê, numa casa no bairro do Catumbi. Permaneceu no país por 15 anos, com a atribuição de desenhar e pintar cenas oficiais e produzir retratos da nobreza, sendo um dos responsáveis pela construção da imagem e da simbologia da corte portuguesa, posteriormente, brasileira.

Após sua chegada ao Brasil, abandonou os canônes do neoclassicismo, procurando adequá-lo ao cenário brasileiro. A partir de 1821, passou a registrar aspectos das cidades, principalmente do Rio de Janeiro, desenhos da paisagem e de costumes locais, como as festas religiosas, a relação entre senhores e escravos, os usos e costumes do país, etc. Teve vários discípulos, apesar dos contratempos sofridos pela Escola de Belas Artes. Entre os anos de 1826 e 1830 realizou diversas exposições. Retornou a Paris em 25 de julho de 1831, onde veio a falecer no ano de 1849, aos 80 anos de idade.459

Para trabalharmos com essas pinturas existe a necessidade de definirmos o que

é iconografia, um termo muito utilizado pelos estudiosos para definir as imagens produzidas pelos artistas, fossem estes viajantes ou não. Erwin Panofsky define iconografia a partir do termo ‘grafia’, que vem do grego grafhein e significa escrever. Para ele, iconografia “é a descrição e classificação das imagens”, sendo um “ramo da história da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contraposição à sua forma.”460 Essa área de estudo possui seus limites, uma vez que ela fornece os dados e informações imprescindíveis para a análise, mas não faz as interpretações. Essa é realizada pela iconologia, que é um método de

459 Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil reproduz várias das imagens produzidas pelo artista. Foi publicada numa edição de luxo, sob os auspícios de Raimundo Castro Maya, detentor dos direitos de reprodução de seus desenhos, litografias e aquarelas. Nessa obra estão reproduzidas as imagens referentes à Capitania de Santa Catarina, que foram produzidas, provavelmente, entre os anos de 1819/1826. Uma cópia desta edição encontra- se na Seção de Obras Raras da Biblioteca Pública Estadual de Santa Catarina, em Florianópolis. Ver: DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Paris: R. de Castro Maya, 1954. 460 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. Tradução: Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg.1º ed. 1955. São Paulo: Perspectiva, 1991. p. 47. 246

interpretação dos valores simbólicos que estão vinculados à época em que determinada obra foi produzida.461

As definições de Panofsky nos remetem às discussões de E. H. Gombrich, quando ele salienta a importância dos lugares-comuns e também do poder das convenções e das tradições de determinada época e cultura sobre a forma que as obras assumem. Segundo ele, “toda representação se funda em convenções.”462 Devemos salientar que as imagens servem de suporte às representações. No nosso entendimento, não podemos utilizar as imagens produzidas pelos viajantes como registros do real, mas sim como uma construção discursiva que foi influenciada pela cultura na qual estes artistas viajantes estavam inseridos, bem como as convenções estéticas e as possibilidades técnicas disponíveis na época. Isso não significa dizer que essas obras não podem ser utilizadas como fontes, mas sim que elas não podem ser tomadas como o real, como uma imagem fidedigna que possui um caráter comprobatório. Outro ponto que gostaríamos de chamar a atenção é que todos os documentos devem ser inseridos e problematizados no seu contexto de produção, e isto também se aplica

às imagens produzidas pelos artistas viajantes.463

Ao analisarmos uma imagem produzida por artistas viajantes, devemos considerar vários aspectos, tais como a formação do artista viajante, a forma como ele produziu seu trabalho e as possibilidades técnicas com as quais podia contar, as influências estéticas européias, bem como outras influências, que podiam ser científicas ou morais. Louis

Choris optou por um tipo de representação artística da Ilha de Santa Catarina e de seus habitantes. Sua escolha priorizou a representação da natureza, com seus tipos específicos que melhor representavam a flora e a fauna da região. Mas, ao mesmo tempo, seus trabalhos reproduzem, de forma marginal em algumas das imagens e no centro das atenções noutras, os

461 Ibidem. p. 53. 462 GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. Um estudo da psicologia da representação pictórica. Tradução: Raul de Sá Barbosa. 1º ed. 1959. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 26. 463 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Morfologia das cidades brasileiras. Introdução ao estudo histórico da iconografia urbana. Revista USP. São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai. 1989). pp. 152-153. 247

tipos humanos que viviam na região. Esses foram representados de forma estereotipada, reforçando uma imagem já existente na Europa sobre os mesmos. O viajante empreendia sua viagem por regiões desconhecidas portando uma postura ambígua: êxtase diante da beleza e do diferente e temor quanto ao desconhecido e os perigos que iria enfrentar. Esses sentimentos confluem para formar experiências mentais que influenciam de certa forma o olhar, uma vez que este sentido não é mecânico, objetivo, mas subjetivo e fluido. Plínio, autor grego, já chamava a atenção para essa característica do olhar: “a mente é o verdadeiro instrumento da visão e da observação, os olhos funcionam como uma espécie de veículo, que recebe e transmite a porção visível da consciência.”464 Desse modo, para analisarmos uma imagem, seja ela uma pintura, uma fotografia, ou um filme, não podemos nos ater somente ao que estamos vendo, ao que estamos enxergando. Precisamos analisar o momento de produção dessa imagem, as influências sofridas pelo artista, os interesses estéticos do período, as possibilidades técnicas disponíveis e também o público para quem o produto artístico era direcionado. Em resumo, não podemos considerar a obra como isolada do contexto em que a mesma foi produzida.

464 Plínio apud PANOFSKY, Erwin. Op. cit. p.15. 248

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente a venda de obras classificadas como livros de viagem encontra-se em alta. As livrarias oferecem títulos para todos os gostos e bolsos, em encadernações de luxo ou populares. Mesmo competindo com outros meios de informação, como revistas especializadas e canais com programas voltados para o tema, os livros de viagem continuam atraindo compradores. Para comprovar, basta ver o espaço dedicado a eles nas estantes das livrarias. Pela oferta cada vez maior de material disponível sobre esse assunto, constata-se que o interesse em viajar aumentou, e aumenta cada vez mais na sociedade atual. A popularização das viagens contribuiu para difundir o interesse por obras que falam sobre regiões distantes.

Os turistas dos séculos XX e XXI distinguem-se em vários aspectos dos viajantes da Época

Moderna, e mais ainda dos cientistas viajantes. O leitor de obras sobre viagens também não tem mais os mesmos interesses. Uma diferença é que quem adquire esse tipo de livro atualmente é alguém que já viajou ou então está organizando uma viagem para o local sobre o qual trata o livro.

Durante os séculos XVIII e XIX, os leitores de livros de viagens eram pessoas que não iriam para muito longe. No entanto eram leitores de livros que falavam sobre regiões distantes, como a América, o interior da África ou as Ilhas do Pacífico. Os relatos de viagens no século XVI eram utilizados por muitos de seus autores para refletir sobre as características da Europa. A partir do relato sobre povos de outras regiões do mundo, principalmente dos nativos da América, alguns autores aproveitavam para criticar a desigualdade, a corrupção e a 249

falsidade de sua sociedade de origem. No século XIX, os autores de livros de viagens utilizavam essa mesma experiência do contato com o outro para referendar o desenvolvimento e a superioridade da civilização européia. Independente das reflexões resultantes, a viagem e todas as suas consequências, como, por exemplo, o contato com sociedades distintas e o sentimento de não pertencimento, possibilitavam a reflexão sobre o outro, mas principalmente sobre si mesmo.

O outro descrito pelos cientistas viajantes, neste caso os habitantes da

Capitania de Santa Catarina, não formavam um grupo homogêneo. Eram indivíduos que se inseriam em diferentes patamares da sociedade local, que possuíam hábitos e costumes distintos daqueles com os quais os viajantes estavam habituados. O olhar do viajante sobre essas populações era um olhar complexo e muitas vezes contraditório. Além das contradições entre os relatos de diferentes viajantes, constatamos contradições no interior do discurso de um mesmo viajante. Seria uma consequência do fato de as teorias sobre a América, elaboradas e amplamente discutidas na Europa, não conseguirem dar conta dos inúmeros aspectos da sociedade local?

Podemos traçar um paralelo entre a descrição do viajante com o trabalho do historiador. O viajante, tal como o historiador, tem a pretensão de dar conta de uma determinada realidade. O primeiro possui uma formação social distinta, devido às diferenças geográficas e culturais. O historiador também tem como objetivo explicar uma sociedade que encontra-se distante, neste caso no tempo, e com características culturais tão distintas que muitas vezes não conseguimos compreender seus códigos. Uma diferença é que, enquanto o viajante possui a pretensão de dar conta do que está observando, do outro, o historidor (pelo menos esta historiadora) acredita que este distante, este outro que está sendo analisado, neste 250

caso o viajante, e as suas falas, não podem ser apreendidos em toda sua complexidade. O que podemos é construir um outro discurso sobre o objeto de nosso estudo, ou seja, os cientistas viajantes e seus relatos.

Mais difícil do que tentar entender como esses indivíduos elaboraram seus discursos, foi buscar um contraponto às informações contidas nos relatos. Descrições da natureza, dos habitantes locais, de sua cultura do trabalho, das condições de vida, e de vários outros aspectos foram analisados tendo como referência estudos historiográficos sobre o assunto, com o objetivo de acrescentar um outro olhar para os temas tratados nos relatos dos viajantes. Quando não podemos contar com estudos específicos sobre Santa Catarina, recorremos a estudos sobre outras regiões do Brasil. Temos claro as especificidades entre as diferentes áreas de ocupação no país, mas, mais do que tentar contruir um quadro explicativo que dê conta da sociedade colonial da Capitania de Santa Catarina, nosso objetivo foi mostrar as características dos discursos dos viajantes, suas contradições e as representações construídas sobre a região.

Nos três primeiros capítulos restringimo-nos a analisar como as viagens científicas inseriam-se no contexto das viagens e quais eram os viajantes que selecionamos para o estudo de seus relatos. Os cientistas viajantes são um grupo específico dentro do imenso conjunto de viajantes. Pela sua formação, pelos objetivos de suas viagens e pela sua inserção na sociedade européia. Escreveram sobre a natureza local, falaram sobre as especifidades e dificuldades do trabalho que estavam realizando, descreveram as vilas, os homens e mulheres que viviam na região, a forma como a sociedade se organizava e muitos outros aspectos. Uma das dificuldades dessa fonte, o relato de viagem, é contraditoriamente a riqueza e a quantidade de informações registradas pelos viajantes sobre os mais diversos temas. Os seus olhares percorriam, encantados, surpresos, chocados ou indignados, inúmeros 251

aspectos da região que estava sendo explorada. Mesmo quando o relato foi escrito muitos anos após a viagem, sua escrita acompanhava o olhar disperso que buscava contemplar a totalidade do que era visto e sentido. Os viajantes escreveram relatos onde estão registradas suas impressões e seu testemunho sobre a região visitada. Um testemunho matizado por coisas lidas, moldado pela distância social e cultural, que muitas vezes diz mais sobre quem escreveu do que propriamente nos permite desvelar as características do grupo que estava sendo o objeto da descrição. O testemunho dos viajantes é marcado por distâncias temporais e culturais - viajante, estrangeiro, cientista, citadino, seja nobre ou burguês. Além disso, o viajante encontra-se na postura do observador que lança seu olhar sobre o observado, indivíduos de outras nacionalidades, com outras formas de se relacionar entre si e com o trabalho, e que vão desenvolver outras manifestações culturais e práticas cotidianas.

Um dos aspectos que gostaria de salientar refere-se a forma como os relatos foram estruturados. As diferenças entre eles são inúmeras, devido ao período em que foram escritos - alguns no final do século XVIII outros durante o século XIX -, a estrutura lingüistica no qual foram redigidos e também as características do público que iria consumir estes relatos, ou seja, os leitores. No entanto, apesar dessas diferenças, alguns aspectos podem ser salientados. Em primeiro lugar, os viajantes, em seus textos, reproduziam as discussões que circulavam pela Europa em relação as características da natureza e do homem americano.

Deixavam explícito sua concepção sobre a natureza, apesar de muitas vezes traçarem comentários que entravam em contradição com seus referenciais. Em segundo lugar, a escrita do relato seguia uma ordem cronológica, o que permite que o leitor acompanhe os passos do viajante, dando a impressão de vivenciar com ele o contato com esta nova região. Mesmo em textos escritos anos após o final da viagem, a forma utilizada era a de um diário. Esta forma 252

dá a falsa impressão de veracidade e cientificidade, como se o autor dissesse: estou descrevendo o que vi, foi assim que se passou. Reforça desta forma uma intenção de verdade do relato e consequentemente de tudo o que é relatado. Esses relatos foram escritos sobre informações colhidas na viagem, muitas vezes no contato do viajante com a elite local, fosse ela administrativa, militar ou eclesiástica, que eram seus principais interlocutores. Outra forma de conseguir informações era através da leitura de textos de outros viajantes ou mesmo de documentos oficiais, como no caso específico de Saint-Hilaire.

No capítulo 4 e 5 aprofundamos o tema da natureza. As discussões que circulavam pela Europa e que influenciaram os viajantes não eram consensuais. Grandeza natural e insalubridade. Degeneração e inferioridade humana. Essas divergências nas teses aparecem nos relatos resultantes das viagens à Capitania. Outro aspecto é a relação do viajante com a natureza que estava sendo descrita. Apesar de ter feito uma longa viagem em busca de espécimes vegetais e animais, e de se deslumbrar com a mata nativa, com sua riqueza, o viajante incomodava-se com a ausência dos confortos urbanos. Muitas vezes o incomôdo era com a própria natureza, com seus excessos, que se manifestavam em forma de insetos e outros inconvenientes. Quando partiam em suas viagens de estudos, os viajantes já conheciam e de certa forma já haviam formado uma opinião sobre o que iriam encontrar, já vinham imbuídos de um padrão sobre o que era melhor, o que era superior. Estes padrões vão se mostrar presentes quando do contato com os habitantes da região da Capitania de Santa

Catarina e vão definir o que vai ser relatado como positivo ou negativo.

No capítulo 6, 7 e 8 voltamos nossa análise para as descrições dos viajantes sobre as vilas, principalmente a de Desterro, seus habitantes e seu trabalho. A presença de padrões podem melhor ser percebidos quando da descrição das vilas. Optei por aprofundar o 253

estudo sobre a Vila de Senhora do Desterro devido a maior quantidade de descrições feitas pelos viajantes e por ter sido a única visitada por todos eles. Suas condições físicas, a forma como foi organizada, a ausência de espaços públicos aos moldes dos países de origem dos viajantes foram alguns dos aspectos salientados. Os viajantes a descreviam seguindo uma certa ordenação: mostrar as principais construções, principalmente as públicas, salientar os benefícios e modificações que o ser humano implantou na região e descrever as características da população. Apesar de algumas características, como a hospitalidade e a higiene serem salientadas como positivas, seus discursos reforçavam o atraso econômico e a inferioridade cultural. Mesmo quando não estava explícito no texto, as referências eram as cidades européias. Essa característica dos relatos, de tomar o que viam a partir de suas referências e explicitá-las, era mais presente quando se referiam à relação dos habitantes locais com o trabalho. Segundo os viajantes, não tinham interesse em economizar, em enriquecer, o que se refletia na relação do homem com a natureza. Não era o homem que transformava a natureza, mas o inverso. A natureza americana havia influenciado negativamente os europeus e seus descendentes, transformando-os em homens que se adaptavam ao meio, como os nativos da

América. Os discursos sobre o trabalho e seu inverso, a indolência dos “nativos”, exemplifica como os relatos vão reforçar uma imagem pré-existente dos americanos. Os habitantes locais tinham outro ritmo de trabalho e de desenvolvimento material que era tomado como indolência. Representações em que o outro é menos laborioso, não aproveitando o que a natureza lhe oferecia não são encontrados somente em relação aos americanos, como nos mostra o trabalho de Peter Burke sobre os relatos de viagens para a Itália escritos por ingleses.

Também eles, o italianos, eram vistos como exóticos e indolentes. Nos relatos dos viajantes europeus do século XVIII e XIX, principalmente daqueles da Europa setentrional, percebemos 254

a repetição de algumas imagens que vai incluir ou excluir os grupos de uma nova representacão sobre o trabalho, qual seja, o trabalho ordenado, economicamente produtivo e que tem como objetivo a transformação da natureza. Mesmo os cientistas, teoricamente mais interessados em encontrar uma natureza intacta a fim de realizar suas pesquisas, menosprezavam a inoperância dos habitantes de Santa Catarina. Saint-Hilaire, o único que conhecia outras regiões do Brasil, reconhecia a “superioridade” dos habitantes locais, principalmente descendentes de acorianos, em relação aos fazendeiros do norte. Mas, ainda segundo esse viajante, sua dedicação ao trabalho não chegava aos pés dos trabalhadores europeus. Na sua opinião isto devia-se a vários fatores, como a escravidão, a atuação do governo português, a influência da natureza, entre outros. Entre os habitantes locais, os viajantes ocuparam-se em registrar aspectos das populações de origem africana. Suas informações foram marcadas por dois aspectos: o olhar europeu e o preconceito que havia em relação a esses indivíduos. As informações registradas eram obtidas junto às elites locais ou então com indivíduos não escravizados. Dessa forma, além de reproduzirem os estereótipos europeus sobre os africanos, também reproduziam os dos proprietários sobre seus escravos.

O capítulo 9 trata de um outro tipo de fonte: as pinturas sobre a região. Louis

Choris produziu, utilizando tintas e cores, uma imagem iconográfica da Ilha de Santa

Catarina. Natureza exuberante e paisagem bucólica. A análise das pranchas feitas por

Choris nos permitem retomar um aspecto que está presente tanto nos relatos de viagens escritos, como nas pinturas produzidas. Mais do que reproduzir o desconhecido, estas obras reproduzem o “já-conhecido”. O diferente vai ser trabalhado nos relatos de uma forma a serem incorporados aos padrões europeus. Nas pranchas, onde os artistas viajantes poderiam mostrar o que era novo, o não conhecido, devido ao fato de trabalhar com a imagem desenhada e pintada, isto não ocorria. O que era pintado e como era pintado, as regras de 255

composição das imagens já haviam sido estabelecidas. Choris reproduzia em suas pinturas o que já era conhecido como representativo do Brasil e dos trópicos. As palmeiras, as araras, as bromélias, as heliconias, todas estas plantas e animais faziam parte da imagem que já havia sido construída sobre as regiões tropicais. Franz Post e Alexander Humboldt foram alguns entre os artistas e cientistas que contribuíram para estabelecer essas espécimes como representativas da natureza das regiões tropicais. Em todas as pranchas, além das espécies tropicais que representavam a natureza da América, reproduziu também a presença do ser humano. Desenhou indivíduos que estão trabalhando ou dançando e moradias entre as plantas.

O que constatamos é que as imagens fazem parte de um padrão de representação das paisagens exóticas que se difundiu na Europa e que era voltado para satisfazer os interesses de um mercado consumidor.

A sociedade e a cultura européia incentivavam as viagens, muito mais do que outras culturas. Um exemplo é o caso das sociedades orientais, entre elas a chinesa. Enquanto os europeus foram aos milhares para a China entre os séculos XVI ao XVIII, pouquíssimos chineses fizeram o caminho inverso. Isso ocorria devido a vários fatores, entre eles a concepção que circulava entre as autoridades de que a China era o umbigo do mundo e de que tinham tudo o que precisavam. Dessa forma não tinham interesse em obter informações sobre os “bárbaros”. Os poucos viajantes chineses estavam vinculados a missionários e não exerciam o papel de informantes aos seus compatriotas, bem como não tinham influência nos círculos letrados. Os viajantes europeus diferenciavam-se dos viajantes chineses pela sua inserção na sociedade e pelo papel de divulgadores das informações sobre os habitantes das terras distantes. A representação que os europeus construíram sobre si e sobre sua própria cultura foi tributária do contato estabelecido internamente entre os diferentes países, mas também a partir do contato com os de fora, com os povos das regiões não européias. 256

Seguindo por essa mesma linha de reflexão, o homem define sua cultura em relação a uma outra cultura, da mesma forma como estabelece seu grau de humanidade a partir de seu distanciamento da natureza, da dominação e do nível de transformação que estabelece sobre o meio ambiente. Muitas das críticas às populações locais fundamentavam-se no fato dos indivíduos se adaptarem à natureza local, ao invés de domá-la. Os cientistas viajantes decreveram a natureza ao mesmo tempo que falavam de sua exuberância e de suas possibilidades de exploração. Para eles o estado natural não compensava o desconforto e a ausência dos avanços que existiam na Europa. De certa forma, a concepção dos viajantes era a concepção bíblica de que a natureza existia em função do homem, e que ele deveria explorá- la. A diferença era que os cientistas percebiam outras possibilidades para seu aproveitamento, além do desmatamento para a abertura de plantações. As pesquisas e o mapeamento das espécies possibilitaria descobrir outras utilidades, muitas delas desconhecidas a olho nu. 257

INFORMAÇÕES GERAIS SOBRE OS VIAJANTES

Nome Início da estada em SC Partida de SC

Joseph Antoine Pernetty 23.11.1763 15.12.1763

Georg H. Von Langsdorff 20.12.1803 04.02.1803

John Mawe 29.09.1807 ?

Adalbert von Chamisso 12.12.1815 27.12.1815

Louis Choris 12.12.1815 27.12.1815

Auguste de Saint-Hilaire 07.04.1820 06.06.1820

Rene Primevère Lesson 16.10.1822 30.10.1822 258

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bibliotecas e Arquivos Consultados

Bibliothèque Centrale du Muséum National d’Histoire Naturelle - Paris. Bibliothèque Sainte-Geneviève - Paris Bibliothèque Centrale de la Sorbonne - Paris. Maison des Sciences de l’Homme/EHESS - Paris. Bibliotèque du Collège de France - Paris. Biblioteca Nacional - Rio de Janeiro. Biblioteca da Universidade Federal Fluminense - Niterói. Biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros/USP - São Paulo. Biblioteca da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/ USP - São Paulo. Biblioteca Pública Mário de Andrade - São Paulo. Biblioteca José Mindlin - São Paulo. Biblioteca Pública de Porto Alegre - Porto Alegre. Biblioteca Setorial de Ciências Sociais e Humanidades/UFRGS - Porto Alegre. Biblioteca Central da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre/PUC - Porto Alegre. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina - Florianópolis. Arquivo Público de Estado de Santa Catarina - Florianópolis. Biblioteca da Faculdade de Educação/ UDESC - Florianópolis. Biblioteca Central/ UFSC - Florianópolis Biblioteca do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina - Florianópolis.

Fontes Manuscritas

BRITO, Paulo Jozé Miguel de. Memória Politica sôbre a Capitania de Santa Catharina. Com hum plano da Ilha e Porto do mesmo nome, e da Terra Firme adjacente, desde a Enseiada da Garoupas athe o Rio de Embaú; e as Tabellas das producções, consumo, exportação, e rendas Reaes da mesma Capitania. Escrita na Corte do Rio de Janeiro, no anno de 1816.

Fontes Impressas Produzidas nos Séculos XVIII e XIX

ANDRADE, Francisco José de. Relatório apresentado pelo Presidente da Província aos deputados Provinciais de Santa Catarina à Assembléia de Santa Catharina em 1º de março. Desterro, 1840.

AUBÉ, Leonce. A Província de Santa Catarina e a Colonização do Brasil. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. Tradução: Carlos da Costa Pereira. Florianópolis, 2º Semestre de 1944. Vol. XIII. pp. 80-94. 259

______. La Province de Sainte-Catherine et la Colonisation au Brésil. Rio de Janeiro: Française de Frédéric Arfvedson, 1861.

AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas Províncias de Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Tradução: Teodoro Cabral. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980.

BRITO, Paulo Joze Miguel de. Memória Política sobre a Capitania de Santa Catharina escripta no Rio de Janeiro em o Anno de 1816. Lisboa: na Typografia da mesma Academia. 1826. Reimpressa pela Sociedade Literaria Biblioteca Catarinense, 1932.

BUFFON, Georges Louis Leclerc - Comte de, Del Hombre, escritos antropológicos. Tradução: Angelina Martín del Campo. [1ª ed.: 1749] México: Fondo de Cultura Económica, 1986.

BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo. Tradução: Enid Abreu Dobránszky. Campinas, SP: Papirus/Editora da Universidade de Campinas, 1993.

CAVALCANTI, José Mariano de Albuquerque. Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial. Desterro, 5 de abril de 1836. In: ÁGORA. Transcrição Paleográfica: Neusa Maria Schmitz. Florianópolis/SC. Ano XV. Nº 32. 2º semestre. 2000.

CAZAL, P. Ayres. Provincia de Santa Catharina - 1817. In: Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. Florianópolis: Typ. da Escola de Aprendizes Artífices, 1918. Vol. VIII. 1º trimestre. pp. 7-22. [trecho extraído da Corografia Brazilica]

CHAMISSO, Adalbert von. Voyage autour du monde. 1815-1818. Traduit de l’allemand par Henri-Alexis Baatsch. Préface de Jacques Brosse. Paris: Librairie José Corti, 1999.

CHORIS, Louis. Voyage pittoresque autour du monde. Paris: de l’Imprimerie de Fimin Didot, 1822.

______. Vues et paysages des regions équinoxiales recueillis dans un voyage autour du monde. Paris: Paul Renouard, 1826.

COUTINHO, Dr. João José. Falla que o Presidente da Província de Santa Catharina, dirigio á Assembléa Legislativa da mesma Província, por occasião da abertura de sua Sessão ordinaria em 1 de março de 1853. Desterro, 1853.

DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Paris. R. de Castro Maya, 1954.

Expedição Langsdorff ao Brasil, 1821-1829 : Rugendas, Taunay, Florence. Texto, classificação científica e comentários por Luiz Emygdio de Mello Filho; reproduções fotográficas Claus C. Meyer. Rio de Janeiro: Alumbramento, 1998.

GOMES, Álvaro Cardoso. A Estética romântica: textos doutrinários. Tradução: Maria Antônia Simões Nunes; Duílio Colombini. São Paulo: Atlas, 1992. 260

HUMBOLDT, Alexandre. Quadros da Natureza. Tradução: Assis Carvalho. Rio de Janeiro: M. Jackson, 2 v., 1952.

KRUSENSTERN, Adam Johann von. In: Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. Organizado por Martim Afonso Palma de Haro. 4º ed. Florianópolis: Editora da UFSC, Editora Lunardelli, 1996.

MAWE, John. Travels in the interior of Brazil, particulary in the gold and diamond districts of that country... including a voyage to the Rio de la Plata, and an historical sketch of the revolution of enos Ayres. Illustrated with five engravings Philadelphia, Boston: Published by M. Carey, nº 121, Chesmut street and, Wells and Lily, 1816.

______. Viagens ao interior do Brazil, com huma exacta descripção das Ilhas dos Açores, ...authorizada pelo rei fidelissimo, D.João VI, Nosso Senhor, a beneficio da livraria do Convento de S. Francisco da cidade : obra promovida pelo R.P.M. frei Polidoro de N.S.da Lapa.... - Título Original: Travels in the interior of Brazil Port. Lisboa: na Impressão Régia, 1819.

MONGELLI, Lênia Márcia. A Estética da Ilustração: textos doutrinários comentados. Tradução: Eliane Pereira Fittipaldi et all. São Paulo: Atlas, 1992.

PALMA DE HARO, Martim Afonso (org.). Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. 4º ed.. Florianópolis: Editora da UFSC, Editora Lunardelli, 1996.

PEREIRA, Paulo Roberto (org.). Os três únicos testemunhos do Descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999.

PIRES, Feliciano Nunes. Relatório e fala no Governo de Santa Catarina 1833/1835. São Paulo: Arquivo Público do Estado de São Paulo/Florianópolis: Arquivo Público do Estado de Santa Catarina, 1985.

Rapport sur le voyage de M. Auguste de Saint-Hilaire dans le Brésil et les missions du Paraguay. Elaborado e assinado por Geoffroy Saint-Hilaire, Desfontaines, Latreille, Brongniart, De Jussieu e o Barão Cuvier. Paris, Imprimerie de J. Smith, 1823.

RIBEIRO, João Alberto de Miranda. A Província de Santa Catarina em 1797 [extracto do relatório dirigido ao conde de Rezende, em 17 de novembro de 1797]. In: Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. Florianópolis: Typ. da Escola Artífices, 1915. Vol. III - 1914. pp. 82-85.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os devaneios do caminhante solitário. Tradução: Fúlvia Maria Luiza Moretto. 2 ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986.

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Tableau general de la province de Saint-Paul. Paris: Arthur Bertrand, 1851. 147 p. (Extrait d' un voyage dans les provinces de Saint Paul et de Sainte- Catherine")

261

______. Viagem a Curitiba e Província de Santa Catarina. Prefácio Mário G. Ferri; tradução Regina Regis Junqueira. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1978.

______. Viagem a Província de Santa Catarina (1820). Tradução e prefácio: Carlos da Costa Pereira. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1936. 252 p. (Série Brasiliana)

______. Voyage dans les provinces de Saint-Paul et de Saint- Catherine. Paris: Arthur Bertrand, 1851. 2 v. (Série Voyage parte 4).

SILVA, Danuzio Gil Bernardino da (org.) Os Diários de Langsdorff . Tradução: Márcia Lyra Nascimento Egg e outros. Editores: Bóris N. Komissarov e outros. Campinas: Associação Internacional de Estudos Langsdorff; Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. Vol. 1: Rio de Janeiro e Minas Gerais. Vol. 2: São Paulo. Vol. 3: Mato Grosso e Amazônia.

STADEN, Hans. A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens (1548-1555). Tradução: Pedro Süssekind. 2º ed. Rio de Janeiro: Dantes, 1999.

Obras Gerais

ADES, Dawn. Arte na América Latina: a era moderna, 1820-1980. Colaboração de Guy Brett, Stanton Loomis Catlin e Rosemary O’Neill. Tradução: Maria Thereza de Rezende Costa. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1997.

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e Vida Doméstica. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

AREND, Silvia M. F. & WAGNER, Ana Paula. A Família Açoriana na América Portuguesa: novos olhares. In: Fronteiras: Revista de História. nº 7. Florianópolis: Imprensa Universitária, 1999. pp. 167-183.

ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. Tradução: Pier Luigi Cabra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Auguste de Saint-Hilaire: 1779-1853. Vários autores. Edição comemorativa do bicentenário do seu nascimento. Porto Alegre: Sulina/ARI, 1982. BALDIN, Nelma. A Intendência da Marinha de Santa Catarina e a questão da Cisplatina. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1980.

BARREIRO, José Carlos. Imaginário e viajantes no Brasil do século XIX: cultura e cotidiano, tradição e resistência. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

BARSANTI, Giulio. Linné et Buffon: Deux visions différentes de la nature et de l’histoire naturelle. In: Revue de Synthèse. III.ªS. Nºs 113-114, Janvier-juin 1984. Paris: CNRS. 262

BECHER, Hans. O Barão Georg Heinrich von Langsdorff: pesquisas de um cientista alemão no século XIX. São Paulo: Edições diá; Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 1990.

BELLUZZO, Ana Maria. A propósito D’o Brasil dos viajantes. Revista USP. São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai. 1989).

BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. 3 v. São Paulo: Metalivros; Salvador: Fundação Emílio Odebrecht, 1994.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século XIX. In: Walter Benjamin: sociologia. São Paulo: Ática, 1991.

BERTHIAUME, Pierre. L’aventure américaine au XVIII siècle. Du voyage à l’ecriture. Ottawa: Les presses de l’université d’Ottawa, 1990.

BOITEUX, Lucas Alexandre. Fontes e a Bibliografia para o estudo da história de Santa Catarina. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. Vol. II, 1913.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. 4º ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BOUREAU, Alain. La compétence inductive. Um modèle d’analyse des représentations rares. In: LEPETIT, Bernard (org.) Les formes de l’expérience: une autre histoire sociale. Paris: Albin Michel, 1999.

BOURGUET, Marie-Noëlle. L’explorateur. In: VOVELLE, Michel. L’Homme des Lumiéres. Paris: Ed. Du Seuil, 1996.

______. Le livre de voyage au siècle des Lumières. In: Encyclopaedia Universalis: le grand atlas des littératures. Paris: Animex Productions, devenir studio. 1990.

BRESCIANI, Maria Stela. Metrópolis: as faces do monstro urbano. Revista Brasileira de História: Cultura e cidades. nº 8/9. Rio de Janeiro: ANPUH/Marco Zero, 1985.

BURKE, Peter. O discreto charme de Milão: viajantes ingleses no século XVII. In: Variedades de História Cultural. Tradução: Alda Porto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. CABRAL, Oswaldo R.. História de Santa Catarina. Rio de Janeiro: Ed. Laudes, 1970.

______. Nossa Senhora do Destêrro. Notícia I. Florianópolis: EdUFSC, 1971

______. Nossa Senhora do Destêrro. Notícia II. Florianópolis: EdUFSC, 1972. 263

______. Nossa Senhora do Destêrro. Memória I. Florianópolis: EdUFSC, 1972.

______. Nossa Senhora do Destêrro. Memória II. Florianópolis: EdUFSC, 1972.

______. Medicina, médicos e charlatões do passado. Florianópolis: Arquivo Catarinense de Medicina, Edição Cultural, nº 1, 1977.

CAMPOS, Fábio Israel Vieira de. O trabalho utilizado para a caça da Baleia no litoral catarinense - Armação Grande ou de Nossa Senhora da Piedade 1746-1836. Florianópolis: TCC em História/UFSC. 41 p.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. São Paulo: Martins Livreiro, vol. 1, 1957.

CARDOSO, Fernando Henrique. Negros em Florianópolis: relações sociais e econômicas. Florianópolis: Insular, 2000.

CARDOSO, Sérgio. O olhar viajante (do etnólogo). In: NOVAES, Adauto (org.). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

CARNEIRO, Henrique. As influências culturais do sistema de classificação sexual da botânica de Lineu no século XVIII. In: Atas Seminário Internacional Dimensões da História Cultural - Unicentro Newton Paiva, BH. 1999. pp. 50-55. Disponível em: < http: //kant.fafich.ufmg.br/~scientia/ art_carn.htm > Acesso em: 17 abr. 2002.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Tradução: Maria de Lourdes Menezes. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano - 1. Artes de fazer. Tradução: Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis/RJ: Vozes, 1996.

CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

CHARTIER, Roger. O Mundo com Representação. Estudos Avançados. 11 (5) São Paulo: USP, 1991.

______. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução: Maria Manuela Galhardo. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Ed. Bertrand Brasil, 1991.

______. Pouvoirs et limites de la représentation: sur l’oeuvre de Louis Marin. ANNALES: histoire, sciences sociales, Mars-avril 1994, nº 2, pp. 407-418.

CHAUNU, Pierre. A Civilização da Europa das Luzes. Tradução: Manuel João Gomes. 2º ed. Lisboa: Editoral Estampa, 2 vol., 1995.

264

CHENET, Françoise. L’artiste chargé de mission. Le rôle de l’artiste dans quelques missions scientifiques. In: MOUREAU, François (org.) L’oeil aux aguets ou l’artiste en voyage. Paris: Klincksieck, 1995.

COMERLATO, Fabiana. Espaços arquitetônicos do Hospital de Caridade. Florianópolis: TCC em História/UFSC, 1997. 49 p.

CONCEIÇÃO, Adriana Angelita da. No vai e vem das cartas: o funcionamento do governo colonial no enredo da Invasão Espanhola na Ilha de Santa Catarina, em 1777. Florianópolis: TCC em História/UFSC. 68 p.

CORADINI, Lisabete. Praça XV: espaço e sociabilidade. Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes/Letras Contemporâneas. 1995.

CORRÊA, Carlos Humberto P. História de Florianópolis - Ilustrada. Florianópolis: Insular, 2004.

COSTA, Maria de Fátima (org.) Percorrendo manuscritos entre Langsdorff e D'Alincourt. Cuiaba, MT: Ed. Universitária UFMT, 1993.

COSTA, Maria de Fátima G. & DIENER, Pablo. Viajando nos bastidores : documentos de viagem da expedição Langsdorff. Tradução: Peter Billaudelle et. al. Cuiabá: EdUFMT. 1995.

COSTA, Maria de Fátima G.; DIENER, Pablo; STRAUSS, Dieter (orgs.) O Brasil de hoje no espelho do Século XX: artistas alemães e brasileiros refazem a Expedição Langsdorff. São Paulo: Estação Liberdade; Instituto Goethe, 1995.

CRISTOVÃO, Fernando (org.). Condicionantes culturais da Literatura de Viagens: estudos e bibliografias. Lisboa: Edições Cosmos, 1999.

DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. Tradução: Sonia Coutinho. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

______. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

DEAN, Warren. A Ferro e Fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. Tradução: Cid Knipel Moreira. 4º ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

DESCOLA, Philippe. L’anthropologie de la nature. In: ANNALES: histoire, sciences sociales. 57º année. Nº 1. Janvier-février 2002.

______. La nature domestique: symbolisme et praxis dasn l’écologie des Achuar. Paris: Editions de la Maison des sciences de L’homme/ Fondation Singer-Polignac, 1986.

______. La selva culta: simbolismo y praxis en la ecología de los Achuar. 3º ed. Cayambe/Equador: 1996.

265

DROUIN, Jean-Marc. De Lineu a Darwin: os viajantes naturalistas. In: SERRES, Michel (org.). Elementos para uma História das Ciências. vol. II. Tradução: Ana Paula Costa et. alli. Lisboa: Terramar, 1996.

DUARTE, Regina Horta. Olhares estrangeiros. Viajantes no vale do rio Mucuri. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/Humanitas Publicações, vol. 22, nº 4, 2002.

DUCHET, Michèle. Anthrolopogie et histoire au siècle des Lumières. 1ºed. 1971. Paris: Éditions Albin Michel, 1995.

______. Le partage de savoirs: discours historique, discours ethnologique. Paris: Éditions la découverte, 1985.

DURIS, Pascal. Linné et la France (1780-1850). Genève: Droz, 1993.

ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Volume 1: Uma história dos costumes. Tradução: Ruy Jungmann. 2º ed. (1º ed. Suíça, 1939) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.

EZEQUIEL, Márcio da Silva. Visões da Pobreza: estudo temático dos viajantes no Rio Grande do Sul do início do século XIX. Porto Alegre: dissertação de mestrado/ Pós- Graduação em história do Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1999. 196 p.

FAGUNDES, Marcelo Gonzales Brasil. Viagens reais a um mundo imaginado: A “História Verídica de Hans Staden no contexto do século XVI. Udesc/Faed: Trabalho de Conclusão de Curso, Florianópolis, 2001. 89 p.

FALCON, Francisco J. Calazans. História e Representação. In: Representações: Contribuição a um Debate Transdisciplinar. Campinas: Papirus Editora, 2000.

FARIAS, Vilson Francisco de. Dos Açores ao Brasil Meridional: uma viagem no tempo: 500 anos, litoral catarinense. 2 ed. Florianópolis: Ed. do Autor, 2000.

FERRONE, Vincenzo. L’homme de science. In: VOVELLE, Michel. L’homme des Lumières. Paris: Éd. du Seuil, 1996.

FLORENCE, Adriana. No caminho da Expedição Langsdorff : memória das águas. São Paulo: Melhoramentos, 2000.

FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

______. Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas de pesquisa. Topoi, Rio de Janeiro, set. 2002, pp. 9-40.

FLORES, Maria Bernardete Ramos. Povoadores da fronteira: os casais açorianos rumo ao Sul do Brasil. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2000. 266

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Tradução: Luiz Felipe Baeta Neves. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.

______. As Palavras e as Coisas. Tradução: Salma Tannus Muchail. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

______. A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. 7º ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001.

FRANCO, Affonso Arinos de Mello. O índio brasileiro e a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.

FRANCO, Maria Sylvia de. Homens Livres na Ordem Escravocrata. 4. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.

FREITAS, Marcus Vinicius de. Charles Frederick Hartt, um naturalista no Império de Pedro II. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.

FREITAS, Patrícia. Margem da Palavra, Silêncio do Número. O negro na historiografia de Santa Catarina. Florianópolis: Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. CFH/UFSC. 1997.

GARCIA, Carla Laner. Nas Ruínas do Passado: cotidiano e projeto civilizador em Desterro, 1830-1850. Florianópolis: TCC em História/UDESC. 2002. 75 p.

GERBI, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). Tradução: Bernardo Joffily. 1º ed. 1955. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

GIUCCI, Guillermo. Viajantes do maravilhoso: o Novo Mundo. Tradução: Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

GOLDMAN, Noemí. El discurso como objeto de la historia. In: GOLDMAN, Noemí et. al. El discurso como objeto de la historia/ El discurso de Mariano Moreno. Buenos Aires: Hachette, 1989.

GOLDMAN, Noemi. Historia y Lenguaje: los discursos de la Revolución de Mayo. Buenos Aires: Editores da América Latina, 2000.

GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. Um estudo da psicologia da representação pictórica. Tradução: Raul de Sá Barbosa. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

GOMES, Edvânia Tôrres Aguiar. Natureza e Cultura: representações na paisagem. In: ROSENDAHL, Zeny & CORRÊA, Roberto Lobato. Paisagem, imaginário e espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001.

GORENDER, Jacob. O Escravismo colonial. 5 ed. São Paulo: Ática, 1988.

267

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. Tradução: Betania Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

______. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Tradução: Frederico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo. 3º ed. São Paulo: Perspectiva, 1993.

HAFID-MARTIN, Nicole. Voyage et connaissance au tournant des Lumières (1780-1820). Oxford: Voltaire Foundation, 1995.

HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Tradução: Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

HAUSER, Arnold. História social da Literatura e da Arte. Tradução: Walter H. Geenen. 3º ed. São Paulo: Mestre Jou, 2 v.,1980-1982.

HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.) História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II: O Brasil Monárquico. 3º v. 5º ed. São Paulo: Difel, 1985.

______. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo I: A Época Colonial. 2º v. São Paulo: Difel, 1968.

______. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. 5º ed. São Paulo: Brasiliense, 1992.

______. Raízes do Brasil. 26º ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1995.

HÜBENER, Laura Machado. O comércio da cidade do Desterro no século XIX. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1981.

ISENBURG, Teresa (org.). Naturalistas italianos no Brasil. São Paulo: Ícone/Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

ISKANDAR, Jamil Ibrahim. Normas da ABNT: comentadas para trabalhos científicos. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2003.

JOLY, Patrick. Les classifications botaniques. In: TASSY, Pascal (org.). L’ordre et la diversité du vivant: quel statut scientifique pour les classifications biologiques? Paris: Fondation Diderot/Fayard, 1986.

KLEIN, Herbert S. A Escravidão Africana: América Latina e Caribe. Tradução: José Eduardo de Mendonça. São Paulo: Brasiliense, 1987.

KOMISSAROV, Boris. Da Sibéria à Amazônia : a vida de Langsdorff. Prefácio: Marcos Pinto Braga. Brasília: Edições Langsdorff, 1992. 135 p.

268

______. Expedicão Langsdorff : acervo e fontes históricas. Tradução: Marcos Pinto Braga. São Paulo; Brasília: Ed. da UNESP; Edições Langsdorff, 1994. 126 p.

KURY, Lorelei. Histoire naturelle et voyages scientifiques (1780-1830). Paris: L’Harmattan, 2001.

______. Os três reinos da natureza. In: MARTINS, Carlos (org.) O Brasil Redescoberto. Rio de Janeiro: Paço Imperial/Minc IPHAN, setembro/novembro de 1999.

______. Auguste de Saint-Hilaire, viajante exemplar. Disponível em http://www2.uerj.br/~intellectus/texto/Lorelei.pdf. Acesso: 02 dez. 2004.

LE GOFF, Jacques et. al. As doenças têm História. Tradução: Laurinda Bom. 2º ed. Lisboa: Terramar, 1997.

LE GUYADER, Hervé. Objectivité et taxinomie: des systèmes et méthodes a la classification naturelle In: TASSY, Pascal (org.). L’ordre et la diversité du vivant: quel statut scientifique pour les classifications biologiques? Paris: Fondation Diderot/Fayard, 1986.

LE HUENEN, Roland. Qu’est-ce qu’un récit de voyage? In: LITTÉRALES. Nº 7: Les modèles du récit de voyage. Centre de Recherches du Département de Français de Paris X - Nanterre. 1990.

LEITE, Ilka Boaventura (org.). Negros no Sul do Brasil: invisibilidade e territorialidade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996.

______. Antropologia da Viagem: escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.

LÉVY, André. Novas Cartas Edificantes e curiosas do Extremo Ocidente por viajantes chineses na Belle Époque: 1866-1906. Introdução, comentário e tradução do chinês André Lévy; tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Ed. Hucitec/FAPESP, 1997.

LOPES, Maria Margaret. As ciências dos Museus: a história natural, os viajantes europeus e as diferentes concepções de Museus no Brasil do século XIX. In: ALFONSO-GOLFARB, Ana Maria & MAIA, Carlos A. História da Ciência: o mapa do conhecimento. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: Edusp, 1995.

MACHADO, Roberto. Ciência e Saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault. 2. Ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981.

MANGUEL, Alberto. Uma história do livro. Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras. 1997.

MARCIL, Yasmine. Recits de voyage et presse periodique au XVIII siècle de l’extrait a la critique. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2000. 2 v. Thése de doctorat. 578 p. 269

MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos Viajantes: o olhar britânico (1800- 1850). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

MARX, Murillo. Olhando de cima e de frente. Revista USP. São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai. 1989).

MATTOS, Hebe Maria. A Escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime em perspectiva atlântica. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista & GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: Os significados da liberdade no sudeste escravista, Brasil, séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

MAURO, Frédéric. O Brasil no tempo de dom Pedro II: 1831-1889. Tradução: Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. 3. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1990.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Morfologia das cidades brasileiras. Introdução ao estudo histórico da iconografia urbana. Revista USP. São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai. 1989).

MERLEAU-PONTY, Maurice. A natureza: notas, cursos no Collège de France. Texto estabelecido e anotado por Dominique Séglard. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

MICHELI, Gianni. Natureza. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 18. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda. 1985.

MOLLAT, Michel & TAILLEMITE, Étienne. L’importance de l’exploration marítime au siècle des lumières: à propos du voyage de Bougainville. Paris: Editions du CNRS. 1978.

MONTES, Maria Lúcia. Raça e Identidade: entre o espelho, a invenção e a ideologia. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz & QUEIROZ, Renato da Silva (orgs.). Raça e Diversidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Estação Ciência: Edusp, 1996.

MOREIRA LEITE, Miriam Lifchitz. Livros de Viagem 1803/1900. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.

MORTARI, Cláudia. Os Homens Pretos do Desterro: um estudo sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (1841-1860). Porto Alegre: Dissertação Mestrado PUC/RS, 2000. 155 p.

MOTA, Rodrigo de Souza. A Interiorização Nômade: navegantes brasileiros dos anos 80. Florianópolis: TCC em História/UDESC. 2003. 70 p.

NOVAIS, Adauto (org.) A outra margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 270

NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial. 1777-1808. São Paulo: Hucitec, 1986

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. Elementos para uma Sociologia dos Viajantes. In: Sociedades Indígenas e Indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero/UFRJ. 1987.

OLIVEIRA PINTO, Olivério M. Viajantes e Naturalistas. In: BUARQUE, Sérgio Buarque de (org.) História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II: O Brasil Monárquico. 4º v. 5º ed. São Paulo: Difel, 1985.

OLIVEIRA, Henrique Luiz Pereira. Os Filhos da Falha: assistência aos expostos e remodelação das condutas em Desterro (1828/1887). São Paulo: Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica. 1990. 330 p.

OLIVEIRA, Paulo Rogério Melo de. O Naturalista e os Selvagens: a visão de Saint-Hilaire sobre os índios Guarani no Rio Grande do Sul. Florianópolis: Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. CFH/UFSC. 1996. 116 p.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à Vista!: Discurso do Confronto: velho e novo mundo. São Paulo: Cortez;/Campinas: Editora da Unicamp, 1990.

______. Texto e Discurso. Cópia xerográfica.

PACHECO, Darcy. Um estudo sobre a junta da Real Fazenda de Santa Catarina. Período 1817-1831. Florianópolis: Dissertação de mestrado/UFSC. 1979. Orientador: Dr. George P. Browne. 153 p.

PANOFSKY, Erwin. Estudos de Iconologia: temas humanísticos na arte do renascimento. Tradução: Olinda Braga de Souza. Lisboa: Editorial Estampa. 1986.

______. Significado nas artes visuais. Tradução: Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1991.

PAULI, Evaldo. A Fundação de Florianópolis. 2 ed. Florianópolis: Lunardelli, 1987.

PEDRO, Joana. Mulheres Honestas e Mulheres Faladas: uma questão de classe. Florianópolis: UFSC, 1994.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Alegres Trópicos: Gonneville, Thevet e Léry. Revista USP. São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai. 1989). pp. 84-93.

PIAZZA, Walter Fernando. A Epopéia Açórico-Madeirense. 1748-1756. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1992.

______. Fontes Arquivais para a História de Santa Catarina. In: SOARES, Iaponan (org.) Arquivos & Documentos em Santa Catarina. Florianópolis: IOESC, 1985.

271

PIERINI, Margarita. La Mirada y el discurso: la literatura de viagens. In: PIZARRO, Ana (org.). América Latina: Palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial - Ed. da Unicamp, 1993.

PINAULT, Madeleine. Le peintre et l’histoire naturelle. Paris: Flammarion, 1990.

PRATT, Mary Louise. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Tradução: Jézio Hernani Bonfim Gutierre. Bauru, SP: EDUSC, 1999.

______. Pós-colonialidade: projeto incompleto ou irrelevante? In: VÉSCIO, Luiz Eugênio & SANTOS, Pedro Brum. Literatura & História. Perspectivas e Convergências. Bauru, SP: EDUSC, 1999.

QUEIRÓZ, Suely Robles Reis de. Escravidão negra em debate. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2001.

REBELATTO, Martha. “Nem todos gostavam da escravidão”: fugas de escravos em Desterro na década de 1850. Florianópolis: TCC em História/UFSC. 2004. 52 p.

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Volume I. Tradução: Constança Marcondes Cesar. Campinas, SP: Papirus, 1994.

ROBIN, Regine. História e Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1977.

ROCHE, Daniel. Humeurs Vagabondes: de la circulation des hommes et de l’utilité des voyages. Paris: Fayard, 2003.

RODRIGUES, André Luiz. O Germe e o Palanque: reflexões históricas sobre o livro de atas da Sociedade Patriótica Catarinense, 1831 a 1836. Florianópolis: TCC em História/UDESC. 2000. 97 p.

ROUANET, Sérgio Paulo. O olhar iluminista. In: NOVAES, Adauto (org.). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Tradução: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SALGUEIRO, Valéria. Vistas Urbanas nos Álbuns Ilustrados por Viajantes Europeus do Século XIX. Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 4, 1997.

______. Grand Tour: uma contribuição à história do viajar por prazer e por amor à cultura. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/Humanitas Publicações, vol. 22, nº 4, 2002.

SAUER, Carl O. A morfologia da Paisagem. In: ROSENDAHL, Zeny & CORRÊA, Roberto Lobato. Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras,1993.

272

SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras/CNPq, 1988

SENNETT, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na Civilização Ocidental. Tradução: Marcos Aarão Reis. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.

SEVCENKO, Nicolau. O front brasileiro na guerra verde: vegetais, colonialismo e cultura. In: Revista USP. São Paulo: USP, nº 1 (mar./mai. 1989).

SIMÕES, Manuel (org.) A literatura de viagens nos séculos XVI e XVII. Lisboa: Editorial Comunicação, 1985.

SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

SILVA, Wilton Carlos Lima da. As terras inventadas : discurso e natureza em Jean de Léry, André João Antonil e Richard Francis Burton. São Paulo: Ed. UNESP, 2003.

SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

SODRÉ, Muniz. Claros e Escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador e a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Cinco peças da velha Iconografia Catarinense. In: Anais do Primeiro Congresso de História Catarinense. Florianópolis: Imprensa Oficial, 1950. Vol. II. pp. 124-139.

TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle, Visconde de. Inocência. São Paulo: Moderna, 1990.

THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais, 1500-1800. Tradução João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. Tradução: Beatriz Perrone Moisés. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

______. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana - 1. Tradução: Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.

VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e Escravidão: os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986

VEIGA, Eliane Veras da. Florianópolis: Memória Urbana. Florianópolis: Editora da UFSC/Fundação Franklin Cascaes, 1993.

273

VENTURELLA, Ana Lúcia Torresini. Le Rio Grande do Sul (1817-1836): images et temoignages des voyageurs français. Paris: These pour le Doctorat / Universite de la Sorbonne Nouvelle - Paris III., 1989. 312 p.

WILDNER, Roberto. Navegadores e Exploradores em Santa Catarina. De 1525 a 1839, retratados em selos. Florianópolis: UFSC/FBB. 1981.

WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos Africanos, Vivências Ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998.

ZUBARAN, Maria Angélica. O eurocentrismo do testemunho: relatos de viagem no Rio Grande do Sul do século XIX. In: Anos 90. Porto Alegre, n.12, 1999. pp. 17- 33.

ZUBARAN, Maria Angélica. Uma viajante belga no Rio Grande do Sul oitocentista: Eurocentrismo e transculturação. In: Textura. Canoas: ULBRA, n. 3. 2000. pp.13-22.

Livros Grátis

( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download:

Baixar livros de Administração Baixar livros de Agronomia Baixar livros de Arquitetura Baixar livros de Artes Baixar livros de Astronomia Baixar livros de Biologia Geral Baixar livros de Ciência da Computação Baixar livros de Ciência da Informação Baixar livros de Ciência Política Baixar livros de Ciências da Saúde Baixar livros de Comunicação Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE Baixar livros de Defesa civil Baixar livros de Direito Baixar livros de Direitos humanos Baixar livros de Economia Baixar livros de Economia Doméstica Baixar livros de Educação Baixar livros de Educação - Trânsito Baixar livros de Educação Física Baixar livros de Engenharia Aeroespacial Baixar livros de Farmácia Baixar livros de Filosofia Baixar livros de Física Baixar livros de Geociências Baixar livros de Geografia Baixar livros de História Baixar livros de Línguas

Baixar livros de Literatura Baixar livros de Literatura de Cordel Baixar livros de Literatura Infantil Baixar livros de Matemática Baixar livros de Medicina Baixar livros de Medicina Veterinária Baixar livros de Meio Ambiente Baixar livros de Meteorologia Baixar Monografias e TCC Baixar livros Multidisciplinar Baixar livros de Música Baixar livros de Psicologia Baixar livros de Química Baixar livros de Saúde Coletiva Baixar livros de Serviço Social Baixar livros de Sociologia Baixar livros de Teologia Baixar livros de Trabalho Baixar livros de Turismo