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A voz do morro no de Bezerra da Silva

Adriana Evaristo Borges *

Resumo: O final dos anos de 1970 significou um momento de abertura política e redemocratização do país. A produção cultural ia (re) encontrando seu espaço, vislumbrando novas possibilidades, ao passo que a mão austera da censura sobre os meios de comunicação, gradativamente, tornavam-se mais brandas. É nesse cenário que surge José Bezerra da Silva, um sambista bem ao estilo “bom malandro” de Noel, mas que encontrou um estilo particular de cantar a realidade das favelas cariocas. Um homem que utilizou seu lugar de fala para dar voz ao morro. Desta forma, o objetivo deste trabalho é pensar como a música de Bezerra da Silva, com seu estilo realista e irreverente (que muitas vezes parecia deixá-lo no limiar da marginalidade) encontrou não apenas público, mas espaço junto à indústria cultural num momento ainda delicado por qual passava o Brasil. Palavras-chave: música popular, tradição e modernidade.

passou por um processo de releitura, ou mesmo de reinvenção da tradição e desenvolveu-se em subgêneros (samba de roda, samba enredo, samba canção, , , e até mesmo a , considerada por alguns historiadores como Santuza Cambraia Naves 2 um samba estilizado), intensificando a cada mudança sofrida o debate entre a tradição e a modernidade. O samba desde o início do século XX constituiu-se como um referencial de Dos anos de 1930 aos anos de 1970 o cultura para o Brasil. O processo de samba foi pensado como um referencial popularização desse gênero deveu-se a de nacionalidade e de originalidade um conjunto de fatores determinados cultural e sofreu várias mudanças em pelos campos 1 social, econômico e seu conjunto temático, harmônico e político, que interelacionados acabaram melódico adaptando-se as necessidades por resignificar o samba no que se da indústria cultural e sendo refere a sua forma e ao seu conteúdo. O incorporada e apropriada pelos que significa dizer que, no decorrer dos discursos político e intelectual. anos, principalmente a partir dos anos Pensando rapidamente e de forma linear de 1930 até os anos de 1990, o samba 2 Naves, Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à 1 Neste caso utilizo o conceito de campo Tropicália. 2ª. Ed. – : Ed. Jorge (campus) de Pierre Bourdieu, onde campo é Zahar, 2004. p.31. A autora destaca que a bossa observado como o “espaço social de relações nova, a partir de João Gilberto, constitui-se objetivas”, ou seja, um espaço dinâmico onde numa releitura do samba no que se refere aos ocorrem as relações entre as estruturas sociais, arranjos rítmicos e harmônicos partir da fusão os grupos e os indivíduos. do camerístico com o samba.

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podemos exemplificar essa afirmativa música popular brasileira 3 (na qual o pensando em um subgênero do samba samba está inserido) associada concebido nos anos de 1930 como principalmente à lógica da indústria samba de exaltação que tem como fonográfica passa por um importante referencial a música Aquarela do Brasil, momento de ressignificação. Mas é composta por . Esse importante observar que essa crise não subgênero difere-se do samba em sua foi apenas no campo econômico, mas é matriz, - ou como muitos músicos, ou a também uma crise no universo de própria indústria musical preferem produção dada pela perseguição do denominar como “samba de raiz” – pela regime político “aos artistas mais modificação na temática que não se criativos e valorizados pela audiência e referia mais às mazelas nem ao formação de opinião e gosto” cotidiano dos morros e favelas, na (NAPOLITANO 2005. p. 70). Para linguagem, uma vez que utilizava além do momento de crise na indústria termos pouco usuais ou mesmo cultural, dada pela “crise criativa” foi desconhecidos das massas, como também nos anos de 1970 que se também pela mudança melódica, pois percebe uma retomada na discussão foi gravada com a participação de uma entre a modernidade e a tradição, orquestra sinfônica e finalmente pela sintetizadas na própria concepção de intervenção estatal, já que este música popular brasileira, que se subgênero foi desenvolvido como parte concebe ainda mais hierarquizada a de uma propaganda política durante o partir da concepção da MPB, e nesse governo Vargas. Dos anos de 1940 em sentido, o samba enquanto gênero diante, em razão da popularização do musical e parte desse “complexo rádio, das influências vindas da Europa, cultural plural” que essa sigla passou a dos Estados Unidos e de outras regiões representar também tratou de se do mundo, da intervenção do Estado organizar de acordo com a lógica do seja censurando ou incorporando a mercado. música como parte de um projeto É neste cenário que se pretende analisar político, do crescimento da indústria a obra de Bezerra da Silva e falar sobre fonográfica que organiza , valora e as particularidades de sua produção. É hierarquiza quase tudo o que é bem verdade que a opção por trabalhar produzido no mundo da música, assim com este compositor e intérprete surgiu como pelas transformações sociais que de forma lateral como parte de uma intensificam as diferenças entre as pesquisa que está em andamento sobre classes, o samba pode ser observado Vinícius de Moraes. Observe que não é como centro de um debate passou e o objetivo central deste trabalho passou a ser questionado tanto pelo seu relacionar de forma comparativa as valor enquanto referencial de cultura, quanto pela sua temática e a sua originalidade. 3 Conceito de Marcos Napolitano. O autor Mas é na década de 1970, ainda num concebe que a música popular brasileira, em sua forma fonográfica pode ser definida como momento de repressão e censura das um produto do século XX, adaptada para o liberdades da produção artística mercado urbano. É uma reunião de elementos impostas pelo regime militar, e dos musicais (erudito, folclórico...) e que está traumas sofridos pelos produtores e relacionada com a ascensão da burguesia (e de intérpretes do campo musical, que a novas classes). NAPOLITANO, Marcos. História e Música . História cultural da música popular. 2 ed. Belo Horizonte: autêntica, 2005.

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obras destes dois artistas. No entanto é 1927, Bezerra diz “que sempre teve válido ressaltar as diferenças entre uma uma inclinação musical”, mas não podia e outra, no que concerne o local de fala o apoio da família, uma vez que ser de ambos, as relações que estabelece no músico não era considerado profissão. mundo da música (que concebo também como relações institucionais) e também suas relações com a indústria cultural, uma vez que parte dessa produção acontece num mesmo momento (anos de 1970 e 80) tornando ainda mais instigante as diferenças que se estabelecem entre uma e outra a partir de uma construção de discurso, possibilitando uma melhor localização e compreensão de sua obra.

No entanto, Bezerra se tornou conhecido no universo musical brasileiro a partir do lançamento da série Partido Alto Nota Dez , onde faz um resgate das formas tradicionais do samba desse subgênero (no caso, o partido alto), conquistando reconhecimento e conseguindo se inserir na lógica da indústria fonográfica do período. Os cantados por Bezerra, não mais falavam José Bezerra da Silva, ou apenas de sua infância no Recife, mas do Bezerra da Silva, como era conhecido cotidiano das favelas e dos morros do nas rodas de samba apareceu no cenário Rio de Janeiro, cidade que o acolheu musical no final dos anos de 1960, quando ele saiu de sua cidade aos 18 quando gravou em dois LP’s intitulados anos em busca do pai que havia partido “O rei do Côco” 4 volume um e dois quando ele ainda era uma criança. (1969) onde a temática e o ritmo das Bezerra da Silva se utilizou do seu lugar músicas nada tinham de semelhante de fala para se tornar o porta voz dos com os sambas que anos mais tarde o morros e das favelas. As músicas consagrariam como um ícone do cantadas pó ele buscavam se aproximar gênero. As letras das músicas desse ao máximo de um retrato fiel dos trabalho diziam respeito as suas origens problemas e desigualdades sociais, da e ao seu referencial de cultura, embora violência, da marginalidade, da relação já fizesse muito tempo que ele havia com as drogas, principalmente a saído de sua terra natal. Nordestino, maconha, mas também do cotidiano nascido na cidade do Recife no ano de desse mesmo espaço, onde existem famílias, trabalhadores, gente honesta e 4 Bezerra da Silva, O rei do côco – Tapecar, o malandro, figura cara a todas essas 1975.

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composições pautados por um código “um perfil estético, visual e de ética, regulador das relações sociais comportamental do indivíduo que desse universo. O artista foi um grande canta e eu soma a música em si (...), defensor das comunidades carentes, ou seja, a autoria de uma canção uma vez que denunciou as com sua interpretação, através de frases como” a música do fulano”, desigualdades na relação centro/ quando se sabe que o tal fulano não periferia, vista a partir dessa dicotomia, compõe. A imagem estética dos sempre como o espaço das patologias produtos canção e disco se baseia sociais. na crença e na verossimilhança do Não existem muitos trabalhos nem artista enquanto personagem- pesquisas sobre este artista. Além da criador desses produtos” (TROTTA apud SOUSA, 2009, p.59). sua discografia, que consta de aproximadamente de 28 álbuns, das Uma outra questão importante ao se entrevistas concedidas a jornais e falar de Bezerra da Silva e do conjunto revistas, em 1998, virou objeto de da sua obra é a figura do malandro. Que pesquisa da de acordo com ele é “sujeito antropóloga inteligente”, estando bem próximo do Letícia Vianna no bom malandro de , mas livro: Bezerra da agregando algumas particularidades. È Silva – produto o morador do morro, que valoriza a do morro e boemia, mas que trabalha, que cuida da também um família, que respeita o código de ética documentário em da sua comunidade e justifica suas 2006 Onde a ações por esse mesmo código, como na coruja dorme, de música Malandro Rife 5: Márcia Derraik e “Quando o bom malandro é Simplício Neto. rife,/comanda bonito a transação/ Em razão desses trabalhos sabemos que Não faz covardia com os a grande maioria das músicas cantadas trabalhadores/e aos mais pobres dá por Bezerra foram compostas por leite e pão/Quando pinta um safado autores anônimos, alguns inclusive no seu morro/assaltando operário optaram por utilizar codinomes para botando pra frente/ele mesmo preservar a clandestinidade, uma vez arrepia o tremendo canalha/e depois que o conteúdo de algumas enterra como indigente/Ele é composições era considerado decente!” . Para tornar mais clara na obra de Bezerra a imagem do contraventor. Mas o fato é que Bezerra malandro, ela tem como incorporou de tal forma essas contraponto o otário, que é o composições que tornou-se difícil bandido, o homem sem ética, o desassociá-lo das músicas que cantou. “caguete”, que pode ser observado Assim, ao cantar o cotidiano das na música Prepara o Pinote: “ favelas, ao retratar a violência, ao malandro não conta história/porque declarar-se favorável a utilização da se garante quando é detido/Ele maconha, esteve de acordo com o morre debaixo do pau, amizade/ Estado e a sociedade, muito próximo da mas não cagueta os amigos(...)é aí marginalidade, fazendo com que se que a gente vê, quem é firmeza e quem não é,/porque o sangue puro é mantenha ligado a

5 Bezerra da Silva, Malandro Rife, RCA Vik, 1985.

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cadeado blindado/ele não cagueta e primeiro da minha pesquisa. Neste nem banca o mané”. sentido algumas questões podem se As capas dos seus discos tornam-se um tornar muito relevantes para o meu objeto a parte. As imagens fazem trabalho. referência no que concerne a sua Em primeiro lugar observar o local de proximidade com a vida marginal. Em fala de cada um desses artistas. Ambos boa parte dos discos ele aparece sendo têm como referência o Rio de Janeiro, preso, algemado, fugindo da polícia, ou mas enquanto Vinícius de Moraes podia mesmo encenando o registro de sua ser percebido como um referencial dos ficha criminal, como é o caso do disco interesses das classes médias, Bezerra Partido alto vol.2, que me alguma encontrou nos morros e nas favelas a medida reflete a realidade do cantor que matéria prima para a construção de sua já foi preso várias vezes. Fato que é obra. Vinícius foi plástico no que se revelado por ele em uma entrevista ao refere a sua produção musical. 6 jornal Estado de São Paulo em 1987 , Transitou por diferentes estilos quando diz: musicais, compôs com nomes de “Fui campeão de averiguações. diferentes gêneros, adaptando-se as Naquela época, a polícia queria ver demandas do mercado. No entanto, a carteira assinada. Mas eu Bezerra da Silva centralizou o seu trabalhava por conta própria (...) trabalho no morro, que de acordo com teve uma vez que entrei em cana ele era o lugar da origem e da tradição duas vezes no mesmo dia. Outra do samba. Existe ainda entre eles a vez me prenderam para completar a utilização de temáticas semelhantes, cota. O cara falou: Sei que você não mas que, no entanto se desdobram de deve nada, mas o delegado não vai forma diferente, em função das suas gostar se a gente chegar com o carro vazio. Outra vez, eles pararam experiências. Como é o caso do o camburão em frente ao botequim misticismo inerente à umbanda. No ano e foram tomar café. Quando de 1966, Vinícius compôs com Baden voltaram, eu já tinha sentado lá Pawel uma obra de oito músicas atrás, sem ninguém mandar (...) denominadas por ele como os Afro mas nesse dia eles não me levaram sambas 7. Na contra capa do LP, não. Quando eles me soltavam eu Vinícius de Moraes refere-se a este perguntava: Vocês vão passar lá trabalho como uma forma de amanhã? Eu estou esperando vocês lá”. “carioquizar dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro E é observando essas particularidades brasileiro dando-lhe ao mesmo da obra de Bezerra da Silva que pensei, tempo uma dimensão mais em alguma medida tentar observá-la universal (...) nunca os temas analisando as diferenças e as negros do candomblé tinham sido semelhanças (se é que elas existem) tratados com tanta beleza, como um contraponto à obra de profundidade e beleza rítmica (...)”. Vinícius de Moraes que é o objeto Essas músicas representavam a associação do samba com a sonoridade 6 Trecho extraído de: Bezerra da Silva e o de instrumentos da cultura africana cenário musical de sua época: entre as tradições como os atabaques e afoxés. As letras do samba e a indústria cultural (1970-2005). Dissertação de Mestrado em História. UFG, Goiás 2009. Citado por Sousa, Rainer 7 Vinícius de Moraes e . Os Afro Gonçalves. sambas – Forma, 1966.

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Vinícius na contra capa do LP e nas próprias letras das músicas. A gravação dos Afro sambas de Vinícius de Moraes, deram início a sua carreira como compositor popular. No entanto é importante observar que o conceito de popular é diferente para ambas as obras. Nos anos de 1970, Vinícius de Moraes já estava consagrado pela indústria fonográfica e pela mídia como um importante nome da MPB, ou seja, parte de um grupo seleto, onde “a rigor quase tudo poderia ser considerado MPB. Todos os gêneros e estilos, todas as tradições musicais, todas as posturas, estabeleciam uma relação entre as conservadoras ou radicais, entidades do candomblé e o amor, que é poderiam ter seu lugar no clube, a temática central das composições de desde que prestigiados pelo gosto Vinícius. No que se refere as músicas da audiência que definia a cantadas por Bezerra e sua relação com hierarquia musical. Basicamente ela era composta pelo jovem ou adulto a umbanda. Em músicas como “Vovô intelectualizado e cosmopolita de cantou pra subir” “Pai veio” e “Meu pai classe média, habitante dos grandes é general de umbanda” apresentam-se centros urbanos brasileiros como dizem respeito a sua crença, mas (NAPOLITANO, 2005. p. 73). também explora os “trabalhos” no Bezerra da Silva, só conseguiu se terreiro e mesmo aos que se utilizam da estabelecer como músico nos final dos crença para tirar proveito dos outros. anos de 1970, optando por retratar a Bezerra tornou-se membro da umbanda realidade do seu cotidiano, das suas porque afirma ter sido nela que experiências, incorporando o estereótipo encontrou a salvação numa das vezes do malandro e buscando valorizar as em que tentou suicídio, como revela à tradições do samba. Nesse sentido a Antropóloga Letícia Vianna em sua relação com a indústria fonográfica entrevista para seu livro. Mas também foi sempre de conflitos, uma vez que é o as músicas fazem referência aos mercado quem define o que é bom ou comentários pejorativos que recebem os ruim, melhor ou pior agregando valores praticantes dessa fé. No documentário diferentes as obras , interferindo no Onde a coruja dorme ele diz referindo- prestígio e reconhecimento dos artistas se as diferenças que se estabelecem e hierarquizando as relações internas e entre os praticantes da mesma fé externas no campo musical. situados em lados opostos da trincheira social: Apesar dos conflitos impostos pela “Se for pobre é macumbeiro, se for indústria fonográfica, Bezerra da Silva branco é espiritualista”. vendeu milhões de discos. Seu estilo irreverente, seu humor ácido ao tratar de Em alguma medida esse comentário faz questões como as desigualdades sociais sentido se analisarmos a fala de fez com que conquistasse um grande

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público, além do reconhecimento de sua Referências obra por outros ícones do samba como BORGES, Adriana Evaristo. Presidente Bossa também do rock e do movimento hip- Nova: Um estudo da interface entre Música e hop. Faleceu em 2005 aos 77 anos Política (1965-1960) . Monografia de Graduação deixando seu nome gravado na tradição em História – UFG, Goiás, 2007. do samba e na história da música CALDEIRA, Jorge. A construção do samba . popular brasileira. São Paulo: Mameluco, 2007. DERRAIK, Márcia e NETO, Simplício. Documentário: Onde a Coruja Dorme . Antenna & TV Zero, rio de Janeiro, Brasil, 2006. GOMES, Renato Cordeiro. Bossa-Nova: uma nova afinação . Anos JK. Margens da modernidade. Org. Wander Melo Miranda. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Rio de Janeiro: Casa Lúcio Costa, 2002. NAPOLITANO, Marcos. História & Música – história cultural da música popular . – 2ª ed. – Belo Horizonte: Autêntica 2005. NAVES, Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália . Rio de Janeiro. 2.ed. Ed. Jorge Zahar. 2004. ______. Os 50 anos da Bossa Nova: uma estética despojada . Revista Ciência Hoje. Vol.41, março 2008. SOUSA, Rainer Gonçalves. Bezerra da Silva e o cenário musical de sua época: entre as tradições do samba e a indústria cultural (1970- 2005) . Dissertação de Mestrado em História. UFG, Goiás 2009.

VIANNA, Letícia C. R. Bezerra da Silva produto do morro: trajetória e obra de um sambista que não é santo . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

* ADRIANA EVARISTO BORGES é mestranda pela Universidade Federal de Goiás e bolsista da CAPES.

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