Humberto Mauro, Octávio Gabus Mendes E Mário Peixoto Em Torno
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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Humberto Mauro, Octávio Gabus Mendes e Mário Peixoto em torno de Ganga Bruta1 Sheila Schvarzman Introdução Embora tenha se consagrado como um dos grandes clássicos do cinema mudo brasileiro, Ganga Bruta (1933) teve sua realização tumultuada por 3 anos de trabalho e adiamentos, terminou por se beneficiar do contato do diretor Humberto Mauro com Octávio Gabus Mendes, autor do roteiro e diretor de Mulher (1931) realizado na Cinédia, o primeiro estúdio brasileiro com pretensões técnicas e industriais, onde aliás Ganga Bruta também foi filmado. O sensualismo, a precisão e a agilidade nos cortes e a ironia no tratamento dos personagens de Mulher influenciam o diretor mineiro, assim como alguns enquadramentos de Limite de Mário Peixoto, filme também realizado com o apoio de Adhemar Gonzaga, proprietário da Cinédia. Neste texto, gostaríamos de aprofundar a análise dos pontos de contato entre Mauro e os outros diretores, e o papel de Adhemar Gonzaga e da Cinédia nesse período fugaz (1930-1933), marcado pela transição do mudo ao sonoro no país, bem como de realizações marcantes do cinema brasileiro. O período que vai de 1929 a 1933 certamente pode ser caracterizado como de amadurecimento do cinema mudo brasileiro, ainda que, cronologicamente, se pudesse ver nessas datas atraso em relação ao cinema americano e europeu2onde o som já se impunha. 1 Este texto é parte da pesquisa de pós-doutoramento sobre Octávio Gabus Mendes financiada pela FAPESP 2 Mas não no caso do cinema latino-americano conforme Paranaguá, Paulo – O Cinema na América Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Realização de filmes significativos, preocupação crítica e reflexiva e o surgimento de um estúdio em bases industriais contribuem decididamente para esse quadro. Esse é o momento em que, passando das pregações à realização, Adhemar Gonzaga e o grupo de jornalistas ligados à revista Cinearte realiza Barro Humano; é também quando o cinema mudo, em seus ensaios de transformação ao sonoro, é motivo de reflexão do grupo do Chaplin Clube na revista O Fã, e é também o instante do surgimento da Cinédia, de onde saem Limite, de Mário Peixoto, em 1930 (cenas de interiores), Mulher, de Octávio Gabus Mendes, em 1932 e Ganga Bruta, de Humberto Mauro, em 1933. Limite e Ganga Bruta encerram um período central do cinema brasileiro. São marcos de um amadurecimento e balizas do fim do ciclo mudo. Esses filmes restaram como paradigmas e linhas mestras de realização do cinema brasileiro. Limite apontaria para o ápice do cinema mudo “de arte”, enquanto Ganga Bruta solidifica o realismo de Mauro, que se encaminha para o sonoro. Em ambos é possível perceber realizações autônomas e inventivas, resultado da elaboração de formas cinematográficas mundiais e elementos próprios, e não apenas o mimetismo de estilos consagrados. Menos do que apontar para as diferenças entre os dois filmes, lembrando de oposições de linhagens que o Cinema Novo cunhou, gostaríamos de pensá-los em seu momento de realização, em seus pontos de contato e influências mútuas, caracterizando desta forma o amadurecimento da forma muda e o papel fundamental de Adhemar Gonzaga, Cinearte e da Cinédia, assim como de O Fã, nesse processo. Se apontamos a Cinédia e o incipiente movimento que busca pensar o cinema brasileiro no fim dos anos 1920 no Rio de Janeiro com Cinearte e o Fã como um elo fundamental entre os dois filmes, é necessário tirar do esquecimento Mulher, filme de Octávio Gabus Mendes realizado em 1931, que terá influência marcante sobre o filme de Mauro e que traz contribuições significativas nesse quadro de clássicos brasileiros, em que não foi devidamente avaliado. Latina, Porto Alegre,LP&M, 1985 Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação CINEARTE, FÃ E CINÉDIA Já são bem conhecidas as preocupações e influências da revista Cinearte e de Adhemar Gonzaga e o seu grupo na configuração imaginária e concreta de um cinema brasileiro nos anos 19203. Tentando dar consistência a esse ideário veiculado pela revista, o grupo realiza entre 1928 e 1929 o filme Barro Humano, onde procurou colocar em prática suas idéias sobre a centralidade do roteiro, ou do “cérebro” na realização de um filme, o papel destacado do subentendimento e da montagem, a preocupação com um enredo que mesclasse sex,gags and charm4 e, consequentemente, uma imagem ´fotogênica´ e aparada do Brasil, tomada de preferência em seus aspectos urbanos e modernos, além de influenciada de maneira profunda pelo cinema norte-americanos. Para tanto, a melhoria das condições técnicas seria determinante para dar conta da imagem moderna a que aspiravam. Acreditavam que o uso correto da técnica permitiria extirpar dos filmes brasileiros sua aparência provinciana5, resultado, sobretudo, das dificuldades de iluminação já de há muito equacionadas pelos estúdios da Europa e dos Estados Unidos. Desta forma, seria possível tirar os filmes brasileiros das varandas e exteriores onde eram demasiadamente filmados6. Descrevendo seu filme para Humberto Mauro, Adhemar Gonzaga gabava-se das tomadas em interiores, possível então pela introdução do arco voltáico: “Ontem, domingo, trabalhei o dia inteiro com o Carlos (Carlos Moreno) e como interior agora é sopa7, fiz cenas dele só passeando por uma bruta sala! Barro já tem 15 interiores fora os de E.[Eva] Schnorer.(...). Vou tirar no Cassino de Copacabana com gente a beça e sem “mats”! Ultimamente tem 3 Gomes, Paulo Emílio Salles - Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, São Paulo, Perspectiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. Xavier, Ismail – Sétima Arte: um culto moderno, São Paulo, Perspectiva, 1978 Schvarzman, Sheila- Humberto Mauro e as Imagens do Brasil, doutoramento, IFCH/Unicamp, mimeo,2000, Bernardet, Jean Claude e Galvão, Maria R.- Cinema- Repercussões em caixa de eco ideológica, São Paulo, Embrafilme/Brasiliense, 1983 , Jean-Claude /Maria Rita, Fernão Ramos 4 Adhemar Gonzaga sintetiza nessas palavras o essencial do que deveria conter um bom filme, depois de sua viagem à Hollywood em 1929. Conforme Correspondência Adhemar Gonzaga, Arquivo Cinédia, 1929 5 Salles Gomes, Paulo. –“O Cinema Visto de Cinearte” IN Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. op. cit.p.295 6 idem 7 A iluminação por carvão é substituída pelo uso do arco voltáico. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação aparecido tipos admiráveis e o interesse de Cinema Brasileiro tem aumentado na sociedade”8 As filmagens muito longas de Barro Humano, que levaram quase dois anos – pois filmavam apenas nos finais de semana –, foram assistidas com muito interesse pelo mineiro Humberto Mauro e pelo paulista Octávio Gabus Mendes, que vieram à Capital Federal especialmente para esse fim. O jovem Mário Peixoto, de volta de sua viagem à Europa, conhece Adhemar Gonzaga e Pedro Lima, e segue também filmagens do famoso grupo. Barro Humano tratava do romance entre jovens da Capital Federal, enquadrados segundo a fotogenia proposta por Cinearte e incluía pela primeira vez no cinema brasileiro o papel de uma moça que, por pobre, tinha que trabalhar9. Apresentado no Rio de Janeiro, o filme é bem recebido pelo público e pela crítica. Entusiasmados, os jovens que gravitavam em torno da revista Cinearte vêem reforçadas na prática suas convicções. Com isso, em 1930 Adhemar Gonzaga cria finalmente a Cinédia, um estúdio onde procurou dar forma ao projeto de cinema brasileiro de moldes industriais e de boa qualidade técnica10. Humberto Mauro é contratado e dirige Lábios sem Beijos, enquanto Octávio Gabus Mendes, crítico, roteirista e diretor em São Paulo, prepara Mulher. Nesse mesmo ano, são rodadas no estúdio as cenas de interior de Limite. Edgar Brazil, fotógrafo de Mauro desde Brasa Dormida, de 1927, é o responsável pela fotografia. Ainda que com grandes problemas financeiros, projetos que não se viabilizam, equipamentos que não chegam, pode-se perceber como, a partir do ideário de Cinearte, a Cinédia torna-se o centro prático de exercício, de troca, de experimentação de limites dessa utopia em torno da criação de um cinema para o Brasil. Mauro, terminado seu próprio filme, foi o diretor de fotografia do ousado Mulher, experiência que se pode ver refletida nas mudanças significativas de tratamento que aparecem em Ganga Bruta. A passagem de Edgar Brazil por Limite também não é sem consequências para o filme de Mauro. 8 Correspondência Adhemar Gonzaga, Arquivo Cinédia, Agosto de 1928 9 Aquino, Carlos e Gonzaga, Alice – Gonzaga por ele mesmo, Rio de Janeiro, Record, 1989. p. 131 10 Foi ali, onde pela primeira vez se usou no Brasil um fotômetro. Ver Noronha, Jurandir – Depoimento gravado ao Museu da Imagem e do Som, .Acervo fonográfico, Rio de Janeiro Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Ao mesmo tempo, é importante lembrar que, ao lado de Cinearte, que pensava um cinema para o Brasil, surge em agosto de 1928 a revista O Fã, do grupo do Chaplin Clube onde se reuniam Plínio Sussekind da Rocha, Octávio de Faria e outros intelectuais. Nesse primeiro cineclube brasileiro eram vistos filmes alemães expressionistas, de King Vidor e obras de F.W. Murnau, como o marcante Aurora, que influencia o cinema mundial, mas sobretudo o americano. Em suas avaliações e reflexão o grupo privilegiava a montagem e o filme mudo como expressão da arte cinematográfica. Segundo Rubens Machado11, sem desdenhar da influência americana, o grupo que se junta em 1928 está preocupado com a pureza do cinema e o fim do cinema silencioso, a verdadeira arte. Eles não podem ser colocados numa oposição que os colocaria do lado da vanguarda, mas na dicotomia entre o filme americano comercial e o filme considerado de arte, tomando partido do filme de arte. Com essas preocupações em mente, têm papel fundamental na elaboração e desenvolvimento de Limite de Mário Peixoto. Em meio a estas duas influencias, a de Cinearte e a de O Fã, pode-se situar Octávio Gabus Mendes, crítico paulista de Cinearte, que, embora rezasse inteiramente pela cartilha de Gonzaga, partilhava também das aspirações artísticas de O Fã.