UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS INSTITUTO MULTIDISCIPLINAR PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Descobrimentos portugueses: entre a construção da memória e as relações de poder (Século XV).

Keila Natacha Silva de Lima

Sob a Orientação do Professor Marcelo Santiago Berriel

Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em História, no Curso de Pós-Graduação em História, Área de Concentração Relações de Poder e Cultura.

Nova Iguaçu, RJ Setembro de 2017 1

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Eis o mar, imenso e vasto. Nele vivem inúmeras criaturas, seres vivos, pequenos e grandes. Salmo104:25 4

AGRADECIMENTOS

Ao profº Drº Marcelo Santiago Berriel pelo zelo e dedicação para que este trabalho se realizasse, através de suas assertivas orientações e valiosas sugestões. Ao profº Drº Clínio de Oliveira Amaral pelas suas contruibuições no aprimoramento do estudo e pelo acesso ao seu trabalho, ao profº Fabiano Fernandes pela abertura de perspetivas em seus pareceres. A profª Raquel Alvitos pelo incentivo, ainda na fase inicial deste projeto. Aos professores da pós-graduação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro por suas aulas que permitiram o aprofundamento teórico e metodológico deste trabalho. Aos colegas, que quando preciso, contribuíram com suas críticas e propostas.

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Resumo

LIMA, Keila Natacha Silva de. Descobrimentos portugueses: entre a construção da memória e as relações de poder (Século XV). 98 p Dissertação (Mestrado em História, Área de Concentração Relações de Poder e Cultura.). Instituto Multidisciplinar, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Nova Iguaçu, RJ, 2017.

O presente trabalho consiste em um estudo sobre o período inicial dos descobrimentos portugueses, durante o século XV, e sua relação com o contexto político do reino. A dissertação analisará as crônicas de Gomes Eanes de Zurara, cronista oficial de D. Afonso V (1448-1481) e a construção de uma memória vitoriosa sobre os feitos portugueses em África. Ao passo que este ideal será posto em perspectiva, em que tais empreendimentos marítimos foram permeados de reveses, de avanços e retrocessos que serão considerados a luz da conjuntura do reino ibérico, principalmante, após, a Batalha de Alfarrobeira. Palavras-chave: descobrimentos – memória - D. Henrique – crônicas – Gomes Eanes de Zurara.

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Abstract LIMA, Keila Natacha Silva de. : between the construction of memory and the relations of power (XV centrury). 98 p Dissertation (Master in History, Concentration Area Relations of Power and Culture.). Instituto Multidisciplinar, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Nova Iguaçu, RJ, 2017.

The present article consists of a study on the initial period of the Portuguese discoveries in the XV century and its relation with the political context of the Portuguese kingdom. The dissertation will analyze the chronicles of Gomes Eanes de Zurara, official chronicler of D. Afonso V (1448-1481) and the construction of a victorious memory of the Portuguese acts in Africa. While this ideal will be put in perspective that such maritime enterprises were permeated by troubles, advances and setbacks that will be considered the light of the conjuncture of the Iberian kingdom, especially after the Battle of Alfarrobeira.

Keywords: Discoveries- memory- D. Henrique- Chronics –Gomes Eanes de Zurara

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

CAPÍTULO I- HISTÓRIA, MEMÓRIA E AS CRÔNICAS DE GOMES EANES DE ZURARA 14

1. O Registro da Tomada de 14 2. Tempo: categoria dos estudos historiográficos 16 3. Memória objeto de estudo do historiador 18 3.1. História e Memória 19 3.2. Memória e a relação com contextos históricos 20 4. Crônicas: produção de memória 25 5. A crônica em seu tempo 37 6. A produção cronística em fins da Idade Média 37 7. História e Poder 31 8. Crônica do Tomada de Ceuta e Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné 32 9. História, memória e crônica 34 10. Os sentidos de Estorya e memorya nos prólogos da Crônica da Tomada de Ceuta e Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné 37

CAPÍTULO II - OS DESCOBRIMENTOS EM PERSPECTIVA: ESTUDO SOBRE A HISTORIOGRAFIA RELATIVA AO TEMA, QUESTÕES E ABORDAGENS 41

1. Divergências sobre a guerra em África 41 1.1. D. Pedro e a cronística de Zurara 42 2. Crise das dinastias magrebinas 44 2.1. A importância estratégica de Ceuta 45 2.2. O valor simbólico da expansão 47 3. As leituras dos acontecimentos narrados por Zurara 49 3.1. Século XX e o desmonte das interpretações tradicionais 52 4. A cada novo avanço, novas possibilidades eram aberta na Expansão Marítima 62

CAPÍTULO III - REFLEXÕES SOBRE AS INTERAÇÕES ENTRE HISTÓRIA E PODER: A ESCRITA DA HISTÓRIA E OS ACONTECIMENTOS POLÍTICOS EM TORNO DA ASCENSÃO DE D. AFONSO V AO TRONO 63

1. Estamento, honra e relações de poder 63 2. O Segundo Estado 66 3.D. Afonso V: menoridade, regências, reinado e batalha de Alfarrobeira 68 3.1. A morte de D. Duarte e as animosidades entre os regentes 68 3. 2. O turbulento período da regência e seus efeitos na governaça afonsina 71 3.3. A escrita dos acontecimentos e a escrita da história: a descrição de sobre inicio do reinado do africano e as impressões da historiografia sobre esse período. 72 3.3.1. O balanço sobre a historiografia afonsina e a renovação dos estudos 73 4. Os reis avisnos da Conquista de Ceuta à conquista do Tânger 76 5. A escrita da história através da produção cronística 79

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5. 1. As crônicas sobre D. Afonso V sob investigação: a monarquia e a produção cronística 79 5.1.1. Cronistas portugueses dos reinados de D. Duarte e D. Afonso: Fernão Lopes e Gomes Eanes de Zurara 80 5.1.2. Característcas das crônicas quinhentistas 81 5.1.3. As crônicas produzidas por Gomes Eanes de Zurara e sua relação com o poder régio 81

6. O texto no âmbito do contexto: análise das crônicas de Gomes Eanes de Zurara 83 6.1. Perfil da nobreza nas crônicas de Zurara: servidora e fiel 83

CONCLUSÃO 90

FONTES PRIMÁRIAS 93

BIBLIOGRAFIA 93

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INTRODUÇÃO

Este trabalho começou a partir de uma afirmativa não muito lisonjeira feita por um historiador a D. Afonso V: Oliveira Martins prossegue seu discurso de exaltação da imagem de D. João II, enfatizando que ‘o filho não tinha nada dos loucos desvarios do pai’, que D. Afonso V tinha sido “um aborto, ou um anacronismo medieval, e que ‘Os tempos da coruja tinham acabado’, porque [D. João II] não carecia mais de pactuar com as tontices do pai; rei agora (1481), seria o falcão.1 Essa afirmativa causava certa estranheza, pois, determinava que o governo do rei D. Afonso V2 fora anacrônico, isto é, suas atitudes estariam em descompasso com o seu o tempo. O que se apresentou como um interessante ponto de reflexão, visto que, as ações deste reinado poderiam ser entendidas de outra forma, como situadas em um momento de transição, em que seriam perceptíveis traços de modernidade e de arcaísmo na condução da política portuguesa. Para tratar deste monarca, recorreu-se ao material produzido ao seu respeito. Tem-se, neste sentido, o trabalho de Rui de Pina, que fora cronista do reino português e escrevera uma crônica sob o título de Crônica de D.Afonso V, feita a pedido de D.Manuel I3. Todavia, ainda que o texto fizesse referência ao africano, alcunha recebida por D. Afonso V, como explicou o historiador português Saul Gomes: D. Afonso V é um monarca que portugueses de antanho, mas não, cremos, os seus coevos, cognominaram Africano, inspirados seguramente no clássico e eruditíssimo exemplos de Cipião. Triuinfador na Hispania, correndo a segunda guerra púnica, conquistador de Cartago e vencedor de Aníbal em Zama. Um dos primeiros a usar o cognome de Afonso V como o Africano, que saibamos, foi o erudito renascentista eborense Cristovão Rodrigues Acenheiro, nas suas Crónicas dos Senhores Reis de , em redação por 1530.4 O texto Crônica de D. Afonso V não fora produzido em seu próprio período governo, sob seu requerimento, e como comentou, Gomes, o biografo do décimo terceiro rei de Portugal: “Rui de Pina é o autor da principal biografia afonsina de que dispomos, ainda que este escritor seja sobretudo o cronista de D. João II, como Zurara o fora de D. Afonso V”5. Estas palavras do autor são importantes, pois, ajudam a entender que a produção cronistica estava intimamente ligada ao monarca que a solicitava. Isto é, o cronista como um funcionário régio, dispunha-se a escrever sobre o que seria considerado relevante em cada reinado. No caso do africano, seu cronista fora Gomes Eanes de Zurara, personagem que se integrou a história do reino, por sua ligação a uma figura de renome, D. Henrique, membro da

1 -SILVA, Priscila Aquino. “De Príncipe Perfeito a Rei Pelicano - a construção da imagem de D, João II através da historiografia portuguêsa.” In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA - O HISTORIADOR E SEU TEMPO XVIII, 2006. Anais do XVIII Encontro Regional de História - O historiador e seu tempo. Assis: UNESP, 2006. CD- ROOM. p. 5. 2 D. Afonso V, foi o terceiro rei da dinastia de Avis, décimo segundo monarca português e governou o reino entre os anos de 1448 a 1481. Seu reinado foi marcado pelo inicio conturbado, no qual ele e seu tio D. Pedro, antigo regente, enfrentaram-se em campo de batalha, episódio que ficou conhecido como Batalha de Alfarrobeira, em 1449. Embora, D. Afonso V tenha saído vitorioso do conflito, a batalha contra o duque de Coimbra abalou a confiança no novo rei, com destaque para os reinos estrangeiros, visto que, D. Pedro era reconhecido como um homem proeminente por suas viagens, seus textos e pela governança do reino a época da regência. Passado, estes primeiros tempos, D. Afonso V aventurou-se na conquista de cidades africanas. A alcunha que recebeu, o Africanos, advém do incremento da presença portuguesa em seu reinado. Já o fim de seu governo foi marcado por problemas com Castela e derrotas militares, e, pela progressiva entrada de D. João II, seu filho e sucessor, nos assuntos da governança do reino. 3 Rei português nos anos finais do século XV e inicias do século XVI, de 1469 a 1521. 4GOMES, Saul. D. Afonso V, o africano. 1 ed. - Lisboa: Temas e Debates. 2009. p. 11. 5GOMES, Saul. Ibid. p. 26. 10 primeira nobreza do estado peninsular. Mas, o nome de Zurara tornou-se conhecido por ter participado da nascente burocracia régia, onde ocupou um cargo novo a época, de cronista- mor. Sendo assim, Zurara foi expectador e fruto deste período de mudanças, pois, esteve atrelado a dependências pessoais, típicas do período medieval, mas também, recebeu como cronista-mor do reino gratificações por serviços prestados ao rei. Neste caso, agradecimento por serviços além da ajuda militar, sinal das modificações que então se operavam Gomes Eanes de Zurara escreveu quatro crônicas, dentre as quais, duas serão analisadas neste trabalho, a Crônica da Tomada de Ceuta e a Crônica do descobrimento e conquista da Guiné. Estes materiais foram selecionados, por terem sido as primeiras produções de Zurara, realizadas na sequência da ascensão de D. Afonso V ao trono. Período atribulado, de disputas de grupos sociais com interesses variados, as tensões entre os diversos setores culminaram na Batalha de Alfarrobeira. Este confronto como foi enunciado por Humberto Baquero Moreno6, pode ser entendido como o desdobramento de questões pendentes no interior da sociedade portuguesa. Fissuras que se aprofundavam desde a morte do pai de D. Afonso V. O trabalho de Zurara está para além das crônicas ditas acima, o cronista produziu outras obras, de igual modo a produção de textos no período de D. Afonso V foi extensa e abrangiu diferentes formas textuais além da crônica. No entanto, devido aos limites de tempo e de alcance desta pesquisa tal documentação não foi explorada. Este trabalho foi organizado em três capítulos, que estão dispostos da seguinte forma, o primeiro capítulo se ocupará em tratar como as crônicas produzidas por Gomes Eanes de Zurara ajudam a elucidar aspectos do contexto português em finais da idade média, com ênfase no período inicial da governança afonsina. Para tanto, o capitulo mostrará que a prática da produção de textos sob a orientação do poder régio se consolidava em fins da idade média. Estes escritos se desenvolveram com base em duas tradições, a primeira delas era a tradição do registro dos fatos considerados relevantes. Nesta forma de armazanemanto se buscava a exatidão do momento do acontecimento7, sem que fosse necessário narrá-los, ou evidenciar as causas e consequências dos mesmos. Por outro lado, os textos também eram tributários a outra forma de guardar a informação, que era a escrita de feitos de grandes guerreiros e da realeza. Nesta forma de registro, mais do que a precisão, importava a eloquência da história descrita. A crônica emergiu, portanto, com essa dupla preocupação, de serem textos que contavam os feitos notáveis, ao passo que também tinham a pretensão de ser o relato mais próximo da realidade. Desta forma, a crônica deveria representar a perpetuação dos fatos que mereciam lembrança. O que é interessante notar, era o critério que se estabelecia de quais fatos eram dignos de memória e quais outros poderiam se perder para a força do tempo. As crônicas de Gomes Eanes de Zurara são de especial significado, pois, ajudam a elucidar, o que era preciso ser lembrado no perído afonsino. Chama a atenção que das crônicas de Zurara que se tem a autoria confirmada e que chegaram aos dias atuais, são eles textos cronisticos que tratam da mesma temática, isto é, a presença portuguesa em África. A Crônica da Tomada de Ceuta, primeiro texto de Zurara, foi dedicada a contar a captura da cidade magrebina e a Crônica do descobrimento e conquista da Guiné, dedicada, sobretudo, a D. Henrique e seu papel da exploração da Costa africana. A partir deste primeito capítulo, também se discutirá o sentido da memória e a importância da construção memorialística dos eventos referentes à presença portuguesa em África.

6 MORENO, Humberto Baquero. A Batalha de Alfarrobeira: Antecedentes e Significado Histórico.. 2 ed. - Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1979. 2 vols. 7 O que se constituía em apenas uma tentaiva, pois, a maior parte dos relatos eram retirados das falas de pessoas que vivenciaram determinado acontecimento. 11

Já no segundo capítulo, o trabalho se ocupará de entender o impacto dos textos de Zurara na produção historiográfica, ao passo que a Tomada de Ceuta em 1415 tornou-se o marco do início da expansão portuguesa em África, e, muitas daz vezes foi referenciada como o início da conquista europeia do continente africano. A proposta deste capítulo é analisar as leituras que o texto de Zurara proporcionou, em alguns casos, diretamente tributário ao autor, em outros casos a partir da alusão aos fatos narrados pelo cronista. A partir deste exame será possível vislumbrar que o relato do cronista de D, Afonso V foi de suma importância para construção de uma visão que glorificava os portugueses, bem como elevava sua atuação em outras regiões do planeta, principalmente em África. Ora a narrativa de Zurara foi utilizada para engrandecer a dinastia de Avis, ora para aclamar o passado português, bem como para denunciar um mau governo, visto que, as expedições ao norte do continente africano, também foram interpretadas como um gasto exagerado de rendas e pessoal8. As leituras das crônicas produzidas por Gomes Eanes de Zurara suscitaram o confronto com a produção historiográfica sobre o tema. Assim sendo, o segundo capítulo também se ocupou de fazer um levantamento dos principais autores que se debruçaram sobre o estudo dos primórdios da expansão marítima portugesa, trabalhos que procuraram observar os principais motivos, ou melhor, a convergência de fatores que permitiram os avanços portugueses, sobretudo, a partir do século XV. Dentre os diversos fatores que ajudam a entender o fênomeno das grandes navegações, tanto de ordem social, econômica, cultural e técnica, o terceiro capítulo se ocupará em tratar das questões políticas. Neste sentido, o trabalho se inseriu na perspectiva da nova história política. Esta vertente de análise histórica propõe a renovação a cerca do estudo da política, isto é, a reflexão acerca do poder e suas manifestações, a compreensão da relação entre as maneiras de exercer o poder no interior de uma dada sociedade. Assim, o capítulo se iniciará a partir da reflexão acerca do poder, em seu aspecto relacional no interior de uma sociedade, a forma como esse poder se manifesta e se consolida em meio aos embates dos atores sociais, e como os grupos conseguem impor seus interesses como se fossem interesses gerais. Desta forma, o capítulo buscará entender como a época de D. Afonso V, as viagens ultramarinas se afirmaram como uma política governamental, sobretudo, que configuração social permitiu esse arranjo. Para tanto, o capítulo prosseguirá com ênfase na aristocracia, suas principais prerrogativas, tradições e anseios. Em fins do século XV, este estamento encontrava-se em um estágio específico de seu desenvolvimento, a formação de monarquias mais estáveis no tempo e maiores no espaço, dispensava boa parte de seus serviços militares, ao passo que os crescentes períodos de paz permitiam que o comércio se estabilizasse, e, por conseguinte, comerciantes prosperassem. Tanto que, outros segmentos sociais adquiriam mais espaço no governo, como deram testemunho as cortes a época da coroação de D. Afonso V. O estudo do período permitirá o entendimento que no interior da aristocracia portuguesa se apresentava dois grupos, basicamente, com capacidade de interferir na condução dos assuntos do reino. Estes dois setores foram representados, sobretudo, na figura de D. Pedro, regente do reino, associado aos interesses lisboetas e D. Henrique, ambos tios do monarca. D. Henrique, por sua vez, fora identificado com ensejos da nobreza guerreira. Tal confuguração, chegou ao máximo de tensão na Batalha de Alfarrobeira, vencida no campo de batalha por D. Afonso V e na política, pela nobreza tradicional do reino. Assim sendo, as

8 MICHELAN, Katia Basilino. Ceuta, para além da terra dos mouros: A fabricação histórica de um marco do império português (século XV e início do XVI): Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Franca, 2013. 12 crônicas de Gomes Eanes de Zurara ajudam a entender quais eram os principais interesses deste estamento, bem como seu papel no processo de expansão marítima portuguesa.

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CAPÍTULO I História, Memória e as Crônicas de Gomes Eanes de Zurara.

1. O Registro da Tomada de Ceuta

A 21 de agosto de 1415, o desembarque português na cidade de Ceuta selaria os destinos da cidade magrebina e do reino português. No cerco a cidade, estima-se que padeceram portugueses e um número impreciso de mouros, cinco mil9, dez mil, ou até mesmo doze mil10 de acordo com o cronista. Quanto aos demais habitantes da cidade, na manhã do dia 22, já não podiam estar em sua antiga morada11. A pequena narrativa apresentada sobre a conquista de Ceuta poderia ser tratada como o verídico relato sobre o primeiro passo rumo à ascensão do reino português no que seria sua fortuna, o controle de rotas comerciais que ligariam Ásia, África, América e Europa12. Para o gosto dos historiadores do século XIX, preocupados em demonstrar a verdade dos fatos, a relação de causa e efeito, a narrativa cumpriu o seu papel. Dentre eles o estudioso da matéria, Oliveira Martins, aponta que: Obedecendo pois ao enunciado, dividimos a historia pátria em quatro períodos sucessivos. No primeiro o da dynastia de Borgonha, não nos destacamos ainda bem do systema dos Estados peninsulares: somos um délles, e a independência provém exclusivamente do espírito separatista da Edad-média personalizado no ciúme absolutista dos reis e barões portuguezes. – Depois de Aljubarrota, porém, o sentimento de independencia nacional torna-se porpular, desde quue a Revolução dÁviz o faz coincidir com o interesse particular da região portugueza. Entretanto a vida marítima fôra-se desenvolvendo: e a nova dynastia obedece conquistando o litoral da África aos marroquinos, á corrente histórica peninsular: e inicia, com as navegações e descobertas, um movimento particularmente nacional. Póde então dizer-se que por um momento Portugal esteve á testa da historia da Hespanha13 E ainda continuou o autor, em outra parte do texto: (...) mas, no limitado numero dos nossos nomes celebres, o de D. Henrique está ao lado do primeiro Affonso e de João II. Um fundou o reino, outro fundou o império ephemero do Oriente: entre ambos, D. Hernrique foi o heroe pertinaz e duro, a cuja força Portugal deveu a honra de predecer as nações da Europa na obra do reconhecimento e vassallagem de todo o globo14 Como um estudioso do século XIX e início do século XX, Oliveira Martins, partilhava da perspectiva causuística da história, isto é, um conjunto de causas, que gerariam consequências e que seriam, portanto, explicativas dos processos históricos. Desta forma, os

9 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. 10 A discordância numérica deve-se a ausência sistemática de quantificações a época do ocorrido, a escritura tardia em relação ao momento do fato, a oralidade que era usada como fonte no processo de registro. Estes fatores ajudam a enteder as discrepâncias em relação às quantidades, datações presentes nos textos medievais, mas, no caso da conquista de Ceuta, ainda deve-se levar em conta, a intenção do autor em glorificar os portugueses. 11 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Ibid. p. 247. 12 THOMAZ, Luis Felipe. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994. 13OLIVEIRA, J. P. Martins. História de Portugal. Tomo 1. 7 ed. - Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira Livraria Editora, 1908. p. 52. 14OLIVEIRA, J. P. Martins. Ibid. p. 167. 14 fatos em sequência demonstrariam como pessoas, grupos, civilizações sairiam de um ponto e chegariam ao outro, como no caso dos portugueses, em relação à Conquista de Ceuta, como ponto de partida do posterior domínio das rotas comerciais. Os escritos de Oliveira Martins fazem perceber que na época de seu trabalho, o autor podia afirmar que as conquistas ultramarinas portuguesas expandiram o sentimento de pertencimento nacional. Sendo assim, a ideia de nação, já estaria presente em finais da Idade Média, e que este sentimento nacional, não somente se cristalizava, como também se fazia operar em todo o reino. Além disso, o autor realçou o valor da expansão ultramarina, pois ela teria promovido Portugal ao protagonismo dos reinos ibéricos. Isto foi dito pelo autor de uma maneira bastante positiva, demonstrando o que seria a particularidade do reino lusitano. Por fim, o feito dos portugueses foi reconhecido como aquele que abriu as fronteiras do mundo para os europeus. Sobre a grandeza desse feito, semelhante apontamento fez Francisco Maria Esteves Pereira ao abrir a edição comemorativa de quatrocentos anos da Tomada de Ceuta: Esta narração é a mais circunstanciada e verídica que se conhece; e dela provém todas as memórias e notícias, que escreveram os escritos posteriores. Esta crônica é a epopeia da primeira empreza cometida pelos Portugueses alêm mar; nunhuma obra literária, escrita em língua portuguesa no seculo XV, a iguala em merecimento e valôr estético; e a todas excede pela regularidade da narração e pela eloquência dos discursos dos personagens; nela sente-se por vezes perpassar um sopro épico, inspirado pela grandeza do feito, que foi preparado com cuidado e ponderação, efectuado com o maior valor e constância, e coroado de maravilhosa felicidade.15 Imbuído do interesse de mostrar ao leitor o significado da conquista de Ceuta e a motivação para sua impressão naquele ano de 1915, Pereira nos aponta dois interessantes aspectos sobre a Tomada de Ceuta. O primeiro deles é a importância do evento, dito como a epopeia dos portugueses, a maior história dos lusitanos. Outro aspecto é, que tão importante quanto o evento, é como ficou registrado. No caso da Tomada de Ceuta, isto mereceu especial atenção, visto que, a Crônica da Tomada de Ceuta escrita em torno de trinta anos após o evento, por Gomes Eanes de Zurara, se tornou o relato mais confiável, por isso, o mais reconhecido pra se entender os acontecimento daquela manhã de 21 de agosto. Desta forma, percebe-se que grande parte do que foi escrito sobre o fato, foi tributário aquilo que o cronista registrou. Vale ressaltar que para muitos escritores a Tomada de Ceuta estava além de uma conquista militar, era representativa da história da expansão portuguesa. Além deles, havia outros homens que viam nos fatos ocorridos na cidade do noroeste da África a importância para além do reino, mas, para toda a Europa. Como assim o demonstrou Edgar Prestage ao introduzir a versão inglesa de outra crônica de Gomes Eanes de Zurara: The historical importance os his Chronicles is of the first order. They are contemporary with the events they relate, and contais the history of the Portugueses expeditions to and rule in Mauritania from the reign of João I down to that of Affonso V, and furnish a complete acconunt of all the voyages of discovery along he African Coast, due to the initative of D. Henrique, until 1448. True, the Chronica de Guiné omits to mention some other voyages that were the resulf of private enterprise, for Azurara wrote in the capacity of Chronicler to the King and as a panegyric of the Prince, and never intended to relate discoveries unconnected with his hero and with the land with the land that gives his book its title. The Chronina de Guiné must, of course, always take rank as Azurara´s masterpiece. It was the first

15 PEREIRA, Francisco Maria Esteves . “Introdução” In: ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p. V. 15

book written by a European on the lands south of Cape Bojador, and it restores to us, in great part, the lost work of Cerceita entitled a History of Portugueses Conquestes on the Coast of Africa, on which it is founded, besides making up of the regrettable of the naval archives of the early period of modern discovery16 Embora, Prestage aponte algumas limitações do texto de Zurara, o autor salientou o valor da obra como o primeiro relato europeu sobre o continente africano, sendo esse, o primeiro passo para os demais descobrimentos modernos.

2. Tempo: categoria dos estudos historiográficos.

Quantos outros mais significados poderiam ser atribuídos aos eventos do dia 21 de agosto de 1415? Para os estudiosos da história em fins do século XIX e início do XX, foi o evento fundador da dominação portuguesa, ou mesmo dominação europeia. Afinal, tais homens viram o triunfo da civilização europeia irromper sobre os quatro cantos do planeta, a história os servia para mostrar este caminho inexorável e progressivo. Contudo como escreveu Eric Hobsbawn17: ‘As luzes se apagam em toda a Europa’, disse Edward Grey, secretário das Relações Exteriores da Grã-Bretanha, observando as luzes de Whinterhall na noite em que a Grã-Bretanha e a Alemanha foram à guerra. ‘Não voltaremos a vê-las acender-se em nosso tempo de vida.’ Em Viena, o grande satirista Karl Kraus preparava-se para documentar e denunciar essa guerra num extraordinário drama- reportagem a que deu o título de Os últimos dias da humanidade. Ambos viam a guerra mundial como o fim de um mundo e não foram os únicos. Não foi o fim da humanidade, embora houvesse momentos, no curso dos 31 anos de conflito mundial, entre a declaração de guerra austríaca à Sérvia, a 28 de julho de 1914, e a rendição incondicional do Japão, a 14 de agosto de 1945 – quatro dias após a explosão da primeira bomba nuclear -, em que o fim de considerável proporção da raça humana não pareceu muito distante.(...) A humanidade sobreviveu. Contudo, o grande edifício da civilização do século XX desmoronou nas chamas da guerra mundial, quando suas colunas ruíram. O autor nesse trecho faz referência à série de eventos que marcaram significativas mudanças em relação à percepção do tempo. Pois, cada sociedade mantém certa percepção da temporalidade, uma relação entre o seu presente e o seu passado e futuro. Ou até mesmo, desenvolvem diferentes maneiras de entender o tempo, desligadas das categorias acima citadas. Há nesta constatação influência das transformações que se operaram no estudo do passado, na segunda metade do século XX. Se até o século passado, a história poderia ser vista como a confluência de fatos unidimensionais e progressivos, as várias transformações ocorridas no mundo, alteraram profundamente a maneira como os historiadores tratam sua disciplina. Neste sentido, diz o historiador francês Jacques Le Goff18, que ocorreram três pontos de inflexão pra que esta mudança na maneira de perceber o tempo se operasse: O primeiro deles foi à desconfiança em relação ao progresso técnico e científico, se por um lado os avanços da ciência tinham produzido a melhoria da técnica e da medicina. Por outro, a capacidade humana de destruir, nunca fora tão grande, a angústia atômica vívida nas décadas

16PRESTAGE, Edgar. “Critical Remarks”. In: AZURARA, Gomes Eanes. The Chronicle of the discovery and conquest of Guinea. Vol. 1. Nova York: Burt Franklin, 1896. p. L. 17HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos. O breve século XX 1914-1991. Tradução de Marcos Sanatrrita; revisão técnica Maria Célia Paoli. São Paulo: Companhia das letras, 2006. p. 30. 18LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução: Bernardo Leitão. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. 16 de 1950 e 1960, foi sintomática desta nova conjuntura. Em segundo lugar a aceleração do tempo19, promovida tanto pela rapidez dos transportes, meios de comunicações e etc, ajudaram a estabelecer certa relação com o passado calcada na nostalgia20. Exemplo desta necessidade de salvaguar o passado foi a construção de monumentos, a patrimonialização da cultura, tanto material, como imaterial, levada a efeito a partir dos anos de 1970. A incerteza em relação ao futuro, também modificou a percepção dos tempos. Se antes, o passado era a base das conquistas futuras, o presente não confirmava tais progressos, a humanidade não havia chegado ao seu dito aprimoramento. A disciplina História foi criticada tanto pela psicanálise, pela sociologia como pelo estruturalismo. Críticas, que foram respondidas através da remontagem dos seus temas e métodos, mas também, com a mudança na forma com a qual a disciplina lidava com o tempo. Como disse: Antoine Prost: O tempo da história não é uma unidade de medida: o historiador não se serve do tempo para medir reinados ou compará-los entre si – essa operação não teria qualquer sentido. O tempo da história está incorporado, de alguma forma, às questões, aos documentos e aos fatos; é a própria substância da história21 (...) Assim, a história convida a empreender uma meditação retrospectiva sobre a fecundidade própria do tempo, sobre o que ele faz e desfaz. O tempo, principal ator da história22 Com isso se percebe que o tempo também é entendido como uma categoria histórica, que varia em cada sociedade e no interior da mesma, sendo assim, também se estabelece como parte do ofício do historiador, compreender a relação com o tempo como parte integrante de seu estudo. Como dito pelo historiador francês Roger Chartier23, nos anos de 1960 e 1970, a disciplina tal como era empreendida, sofreu uma série de investidas, salientava-se que a história preocupava-se em estudar as hierarquias, mais do que as relações, como também, as posições ao invés das relações. Para os críticos faltava ancoragem teórica na escolha dos objetos de estudo dos historiadore e em seus métodos de trabalho Diante desse cenário, Chartier comentou duas respostas da historiografia, a primeira delas foi a promoção de novos objetos de estudo, o que representou o cruzamento de fronteiras entre disciplinas, que havia caracterizado o ofício de muitos estudiosos, que possibilitou não só a abertura de novos campos24, mas também o diálogo com outras disciplinas. Em segundo lugar, as novas temáticas foram submetidas ao tratamento das fontes, já consagrado nas histórias econômicas e das sociedades. Tais empreendimentos permitiram a renovação do campo. Ainda diria Lynn Hunt25 sobre a renovação dos estudos da história cultural das últimas décadas26, que os objetos de pesquisa, são também historicamente construídos. Isto é, os temas de estudo não são objetivos, são forjados pela finalidade do pesquisador. A autora

19HARTOG, François. “Ordens do tempo, regimes de historicidade”. In: ______. Regimes de Historicidade. Tradução: Maria Helena Martins et al. Belo Horizonte: Autentica, 2013, p. 17- 42. 20RIOUX, J.P. “Memória Coletiva”. In:______e SIRINELLI, J. F. Para uma história cultural. Tradução: Ana Moura. Lisboa: Estampa, 1998, pp. 307-334. 21PROST, Antoine. Doze lições sobre história. Tradução: Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autentica, 2008. p. 96. 22PROST, Antoine. Ibid. p. 114. 23CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Tradução: Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difusão Editora, 1988. 24 Sobre isso ver:, BARROS, José D' Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. 9 ed. - Petrópolis: Vozes, 2013. 25 A autora ainda referencia os trabalhos de Pierre Bordieu, Michel Foucalt, E. P. Thompson e Natalie Zemon Davis. 26 Mas que, também foi levado ao ofício dos historiadores de outros campos. 17 chama a atenção aos diálogos com a antropologia e a teoria da literatura, que promoveram um novo olhar sobre a documentação, no tocante à própria criação da fonte, isto é, entender o porquê do material ter sido gerado. Desta forma, tratar as palavras não apenas como reflexo da realidade social e política, mas como instrumento de transformação da própria realidade. O tempo como categoria histórica também está submetido a variáveis semelhantes aos das fontes, pois se relaciona profundamente com a sociedade que lhe forjou. O tempo possui um sentido, que é tributário a realidade histórica que o constituiu, como também colabora com a manutenção desta mesma realidade. Quando a sociedade muda, a percepção sobre o tempo se altera, ao passo que a maneira de vivenciar o tempo também transforma as possibilidades no interior de uma determinada coletividade. Parte integrante do estudo sobre as sociedades é entender como se relacionam com o tempo. Assim sendo, não só animada pela perspectiva de seu próprio tempo, a historiografia da década de 1970, debruçou-se sobre os estudos relativos à memória e a produção de diversos trabalhos sobre a temática. Vale acrescentar o que foi dito por Francisco José Silva Gomes27, sendo a temporalidade uma categoria antropológica está relacionada ao grupo, isto é, está alinhada a forma como determinado agrupamento a entende e a representa. Sendo a religião ponto fundamental para os homens e mulheres da Idade Média, partiria desta perspectiva religiosa a explicação e justificativa sobre a percepção do tempo. Desta forma, segundo o autor, grande parte da forma de vivenciar o tempo pelos membros da cristandade, era definida por uma ideia do passado, em que o cristianismo apostólico, a cristandade antiga exercia o papel de mito, pois, era percebida de maneira idealizada, comparada, sobretudo, aquele presente que estava cada vez mais distante da revelação, e por isso decadente. Enquanto o passado era um mito, o futuro seria uma utopia, a espera pelo cumprimento da promessa, da Civitas Dei, assim, o tempo era percebido como intermediário, entre a memória e a promessa. Sendo assim, o passado deveria ser lembrado, ao passo que o futuro deveria ser aguardado. A expectativa da realização do futuro utópico poderia desencadear duas atitudes, uma delas seria a espera pelo cumprimento das profecias e a outra atitude seria a busca da concretização dessas utopias. Como seria o caso de alguns aventureiros que se lançariam na busca de paraísos terrestres, abundantes em alimento e riquezas, embora, o tal paraíso não fosse o celestial, a possibilidade da existência desses lugares mitológicos, estavam profundamente ligados às utopias religiosas propagadas durante o período medieval.

3. Memória como objeto de estudo do historiador.

Os estudos de história e memória, no entanto, faziam-se sob perspectivas diferentes. Exemplo de trabalho sobre memória é o texto clássico de Maurice Halbwachs28, por suas palavras, evidenciava-se o papel integrador reservado à memória, em contraste ao que seria o trabalho crítico do historiador. Sendo assim, a memória seria parte da integridade e mesmo fundamental da identidade da nação, enquanto a história preocupava-se em desconstruir os

27 GOMES, Francisco José Silva. “A cristandade medieval entre o mito e a utopia”. Topoi. Rio de Janeiro, vol.3, n.5, pp.221-231, dez. 2002. 28RIOUX, J.P. “Memória Coletiva”. In:______e SIRINELLI, J. F. Para uma história cultural. Tradução: Ana Moura. Lisboa: Estampa, 1998, pp. 307-334. p. 308. 18 pilares da memória nacional. Enquanto a memória sacralizava, a história laicizava. Como dito por Proust: “O tempo da história constrói-se contra o da memória”29 Este quadro, entretanto, mudaria a partir da década de 1980, como dito anteriormente, as décadas de 1960 e 1970 produziram a expansão dos campos de estudo da história, dentre eles o campo da história oral e da história do tempo presente, pode-se citar como exemplo, os trabalhos de Paul Thompson30 e François Bédarida31. Ora, a ascensão destas áreas de estudos demandara à busca por outra natureza de fonte de trabalho, diferente do tradicional texto escrito tão comum à historiografia. Acrescenta-se a isso, o diálogo com outras áreas do saber, que já utilizavam como fonte a memória, como exemplo a antropologia. A partir destas novas demandas, usou-se como recurso à memória de certas populações, ou de certos grupos no interior de uma dada sociedade. Com isso, ao passo que se ampliou o uso do relato de memórias para o uso da história oral e história do tempo presente, também foi percebido como objeto da crítica histórica. Como disse Pierre Norra: “Dos cronistas da Idade Média aos historiadores contemporâneos da ‘história total, toda a tradição historiográfica desenvolveu-se como exercício regulado de memória e seu aprofundamento e reconstituição de um passado sem lacunas e sem falhas”32 Assim sendo, a memória também foi tomada como construção histórica e como tal está ligada as vicissitudes do tempo, e portanto, é constituída de lutas e conflitos sociais inerente as relações humanas. Desta forma, ao passo que a memória é constituída historicamente, também a história pode ser entendida como prática de memória, quando esta história for constituída de uma narrativa que se pretenda totalizante e com a capacidade de explicar casualmente os fatos. Desta forma, compreender que o material pesquisado pelo historiador é também parte geradora de uma dada realidade, não somente sua testemunha. Como exemplo disso, se tem as crônicas portuguesas do século XV, dá-se ênfase, devido aos limites deste trabalho, ao material produzido por Gomes Eanes de Zurara. A partir disso, os textos são considerados como parte formadora de como a sociedade portuguesa, ou melhor, o paço rememorava o seu passado. Um passado que não era tão distante no tempo, mas ainda assim, uma forma de como aquele presente lidava com determinados fatos pretéritos, como os representava na forma do texto e como influenciaria as percepções futuras sobre estes mesmos fatos.

3.1. História e Memória.

Le Goff na obra História e Memória33 traz à reflexão as relações entre estes dois termos. Para o historiador o tema da memória é crucial, pois, sendo assunto da ordem do social é entendido como memória social, memória coletiva. Portanto, o estudo da memória está na órbita das relações sociais, e, especialmente, das lutas sociais pelo poder. Classes, grupos e indivíduos determinados se assenhoram da memória e do esquecimento, que neste sentido, não lhe é a contrapartida, mas sim, sua complementaridade. Isto se dá, pois, se há algo que se faz digno de memória para determinado grupo, também lhe aponta o que deve ser esquecido. Portanto, o relato histórico é permeado de memórias daquilo

29 PROST, Antoine. Doze lições sobre história. Tradução: Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autentica, 2008. p. 106. 30 THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Paz e Terra, 1992. 31FERREIRA, Marieta de Moraes. “História do tempo presente: desafios”. Cultura Vozes. Petrópolis, vol. 94, n. 3, pp. 111-124, 2000. 32 NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. Projeto História. São Paulo, vol. 10, dez, pp. 7-28, 1993. P. 10. 33LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução: Bernardo Leitão. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. 19 que se convencionou ser válido para a coletividade lembrar, mas também é feito de esquecimento e de silêncios ao sabor do que se pretendeu cristalizar34. Quando dito que as crônicas de Zurara são formas do paço rememorar a história à sua maneira, a afirmativa está em consonância com o que aponta Le Goff, a produção do relato histórico também está na órbita das relações sociais. Como a narrativa da conquista de Ceuta e da Guiné foram conduzidas em meio a esfera do poder real, não se poderia destituí-las de seu caráter também de evidência destas relações de poder.

3.2. Memória e a relação com contextos históricos.

Para melhor analisar a memória, visto a importância de estudá-la à luz dos interesses sociais em que foi produzida, Le Goff a apresentou associada a determinados períodos históricos. Neste intento, Le Goff dividiu seus comentários em cinco partes: 1) a memória étnica nas sociedades sem escrita, ditas "selvagens"; 2) o desenvolvimento da memória, da oralidade à escrita, da Pré-história à Antiguidade; 3) a memória medieval em equilíbrio entre o oral e o escrito; 4) os progressos da memória escrita, do século XVI aos nossos dias; 5) os desenvolvimentos atuais da memória.35 Antes de seguir os dados levantados por LeGoff, há de se considerar um interessante traço da escrita cronísitca portuguesa do século XV. Enquanto em Fernão Lopes36 o texto faz referência ao contexto europeu, em Zurara, o texto aborda as guerras com os chamados infiéis e a permanência em territórios alcançados pelos navegadores portugueses. A pena de Zurara se distinguiu da de Fernão Lopes, preferindo tratar das conquistas do ultramar e construir a partir de sua escrita uma vitoriosa história do reino português, dando especial destaque aos filhos ilustres da dinastia de Avis. Tal diferença no trabalho dos dois cronistas, que trabalharam de forma consecutiva, se deu, pois, Zurara subsituiu Lopes no cargo de cronista-mor do reino, chegando a esta posição sobre os desígneos de D. Afonso V. Tal situação evidencia a ligação entre o texto e o contexto de sua produção, bem como sublinham a importância dos interesses de determinados grupos ou classes que exercem o poder, na construção de uma determinada narrativa sobre o passado, no dizer de LeGoff, tais classes, grupos ou mesmo indivíduos tornam-se senhores da memória e do esquecimento. Para tratar seu primeiro tópico, Le Goff apontou os principais aspectos da memória em sociedades sem escritas, falou sobre a importância dos mitos de origens, narrativas recorrentes nas sociedades orais. Tal memória era fundamental na explicação dos seus hábitos, costumes, crenças e técnicas, transmitidos a partir da figura de homens-memórias, depositários da memória do grupo, cabia a este personagem recontar o que lhe fora transmitido. Sua ação se fazia pela contagem de histórias com alguns pontos centrais, que deveriam ser passados, mas, não era feito de maneira mecânica, antes, possuíam certa liberdade e criatividade. Dinâmica esta que tenderá a se esvanecer com a formulação da escrita. Contudo, diz LeGoff, ainda no período que ele denominou de o desenvolvimento da memória, da oralidade à escrita, da Pré-história à Antiguidade, os mitos de origem também seriam deveras importantes na manutenção da memória coletiva, ao passo que novas temáticas surgiram no horizonte da memória dos agrupamentos humanos, a saber, as sagas de determinadas famílias. Nestas histórias dava-se conta de demonstrar o porquê do domínio de certas famílias, bem como ratificar seu prestígio naquela sociedade. Embora o autor trate especificamente sobre a memória no período medieval, apresentando suas peculiaridades, foi interessante aos

34 Sobre as lutas sociais relacionadas a memória ver: LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução: Bernardo Leitão. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. 35 LE GOFF, Jaques. Ibid. p. 369. 36 Primeiro cronista-mor do reino português. 20 cronistas da casa de Avis tratarem especificamente de prestigiar algumas famílias, como no caso das duas últimas crônicas de Gomes Eanes de Zurara, A crônica de D. Pedro de Meneses37 e A crônica de D. Duarte de Meneses38. Embora, ambas estejam ligadas as suas duas primeiras crônicas sobre a Tomada de Ceuta e Descobrimento e Conquista da Guiné, pela temática da ocupação portuguesa no ultramar, diferenciam-se pelas figuras principais dos textos, enquanto nas duas primeiras Zurara destacou o papel da família real nas expedições africanas, nos dois últimos textos do autor é a família Meneses que ganhou especial destaque39. Além disso, há alguns textos que prestigiariam personagens ilustres da corte portuguesa, como é o caso da Crônica do Condestável de Portugal Dom Nuno Álvares Pereira40, texto que louvou sua atuação na Batalha de Aljubarrota, 1385, conflito decisivo na promoção da família de Avis à casa reinante de Portugal. No decorrer da passagem da memória oral para a escrita, uma figura é chave para o entendimento desta transformação, bem como para a compreensão dos novos usos da memória. Assim apresenta Le Goff a importância dos reis41, diante disso três aspectos deste novo personagem são relevantes para este estudo. O primeiro deles é a formação de um calendário de comemorações, tais datas passaram a ser inscritas e rememoradas a cada ano, através da leitura das inscrições que foram deixadas para serem repetidas. O rei também foi o promotor dos espaços de memória, os arquivos foram montados para resguardar os relatos das vitórias reais, eram utilizados para promover a publicidade e a ostentação do nome do rei e de sua casa. Por fim, a matéria escrita servia para cumprir a justiça do rei, nos arquivos ficavam registrados benefícios, doações para serem usados na ocasião de qualquer espécie de litígio. Assim sendo, a partir da concentração de poderes na figura de um monarca, a memória tornou-se cada vez mais escrita e funcional, serviu à formação de um determinado calendário, isto é, uma forma de governar sobre o tempo, como também passou a ser um repositório da grandeza régia, uma forma de reinar sobre as impressões do povo42 e, por fim, através da memória o rei julgava, legitimando-se como arbitro daquela sociedade. A partir daí a memorização apenas se dava palavra por palavra, a dinâmica da criatividade do narrador ficou para outros tempos. De fato, a formação de arquivos e de uma memória oficial, esteve em Portugal, intimamente ligada com a ascensão do poder monárquico, a saber, pela construção da Torre dos Purgaminhos em 1378, provavelmente no reinado de D. Fernando e reformada no ano de 1459 por Gomes Eanes de Zurara, ainda no reinado de D. Afonso V. Também foi mais ou menos neste período que formalizou-se o cargo de cronista-mor do reino, sendo que o primeiro a ocupar este cargo foi o cronista Fernão Lopes, a partir do reinado de D. Duarte e,

37 Este texto encontra-se na seção de obras raras da Biblioteca Nacional no compêndio Colleção de livros inéditos de história portugueza, dos reinados de D. João I., D. Duarte, D. Affonso., e D. João II. Pub. De ordem da Academia das ciências de Lisboa. Além de Gomes Eanes de Zurara, também são reproduzidos textos de José Correa da Serra, Matteus de Pisano, Rui de Pina e Fernão Lopes. 38 ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica de D. Duarte de Menezes. Edição diplomática Larry King. Lisboa: Universidade Nova Lisboa, 1978. 39 Ao sabor da política de apaziguamento de D. Afonso V ver: AMARAL, Clínio de Oliveira. O culto ao infante santo e o projeto político de Avis. Tese (Doutorado) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. p. 101 40 Embora fosse filho bastardo de D João I, CRÓNICA do Condestável de Portugal D. Nuno Álvares Pereira. Preparação do texto e introd. António Machado de Faria; pref. Manuela Mendonça. - 1 ed. Matosinhos: QuidNovi, 2011. 41 Sobre isso ver: VERNANT, J-P. As origens do pensamento grego. 19 ed. Tradução: Ísis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro: Difel, 2010. 42 SORIA, José Manuel Nieto. Fundamentos ideológico del poder Real em Castilla (siglos XIII- XVI). Madrid: Eudema, 1998. 21 assim permaneceu no cargo durante a regência petrina, até ser substituído por Gomes Eanes de Zurara. Jacques LeGoff começa sua explanação dizendo que foi na Grécia Antiga em que se separou a memória da história. Esta mais pragmática ficou presa ao tempo dos acontecimentos dignos de serem lembrados, que estariam acessíveis através do relato dos observadores dos eventos. Já a memória foi lançada para fora do tempo, tornou-se um aspecto sensível à alma, não mais ao intelecto. A memória laicizada na época romana, tornou-se parte da retórica, da arte de fazer discursos, como também, contato entre os imperadores e seus súditos, através da construção de uma série de monumentos que dialogavam com a memória coletiva dos povos, ao passo que também eram destruídos ou apagados, como parte das lutas pela memória. Já no período medieval a memória ganhou contornos especiais, isto se deu, principalmente pela introdução do cristianismo e pelo domínio intelectual da Igreja, assim sendo, o período medieval destacou-se dos demais pelo investimento em técnicas de memorização. Isto se deu, pois, sendo o cristianismo legado do judaísmo, trouxe consigo uma série de percepções caras aos antigos hebreus, dentre elas a recordação. Os judeus têm como pilar de sua religião a recordação tanto do milagre, como também da ira de Yaveh. Esta maneira de vivenciar a memória adentrou ao cristianismo e tornou a recordação também uma tarefa religiosa, tal aspecto litúrgico também adentrou ao âmbito dos leigos. Ainda no século XV, as crônicas portuguesas foram escritas para que os feitos dos grandes homens não fossem esquecidos43, recordar era preciso, sobretudo, aquilo que não era mais alcançável pela memória, ao que os medievos consideram o limiar de cem anos de um determinado acontecimento, antes que ele fosse esquecido, se não fosse registrado pela escrita. O que era digno de nota, merecia ser lembrado. Diante disso, a alcunha de D. João I, de boa memória, primeiro rei da dinastia de Avis, ganha contornos mais profundos, dando a entender a importância do seu reinado para Portugal nos últimos decênios da idade média, eram dignos de memória, de perpetuação da sua história e consolidação da dinastia de Avis, ao passo que ele também é assim citado na crônica de Zurara44: Ca nam foy algum que seruisse em alguuma maneira aquelle grande príncipe e senhor Rey Dom Joham que ficasse sem marauilhosa satisfaçam de ser seruiço. Nom ajnda segunda a calidade de seu merecimento mais muito milhor e muy grandemente segundo em sua estória em alguumas partes poderees achar. Ca entre os rreis que forom em Portugal ata sua jdade elle foy ávido por mais grande. A forte presença do cristianismo na composição no tecido cultural do Ocidente Medieval influenciou de sobremaneira a escrita dos cronistas sobre a guerra. Principalmente, na baixa Idade Média, quando o ideal de guerra justa apresentado por Santo Agostino, ainda no século IV, ganhou contornos práticos, com a legitimação da guerra por Urbano II, ao convocar o primeiro movimento de Cruzadas em 1066. O termo Guerra justa foi empregado porque os cristãos não deveriam pegar em armas contra os seus próprios irmãos, mas, contra os ditos infiéis, pois, não só estariam combatendo a expansão de outra fé, como também estariam reavendo os lugares santos da tradição cristã. Tal ideal, embora tenha chegado tardiamente a Portugal45, foi recebido entusiasticamente, já que os reinos ibéricos foram formados ao sabor da reconquista cristã sobre terras antes ocupadas por muçulmanos, isto é,

43ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p.12. 44 FRANCO JR, Hilário. As Cruzadas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. 45 BARBOSA, Katiuscia Quirino. A imagem do cavaleiro ideal em Avis à época de D. Duarte e D. Afonso V (1433-1481). Tese (Doutorado) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. 22 se no restante da Europa, os inimigos estavam além de suas fronteiras46, no caso de Portugal e dos reinos espanhóis, tratava-se de uma luta interna. Esta particularidade da Península Ibérica ligou muito fortemente sua identidade a guerra contra os infiéis, sendo este conflito entendido como um serviço cristão de obediência. Isto fica bastante claro nos textos cronísiticos de Zurara, visto que, Portugal foi apresentado como portador de uma missão, a saber, lutar contra os mouros. Clínio Amaral47diz que, além disso, o texto de Zurara apresenta uma série de aproximações entre as regiões do reino e suas conquistas com territórios descritos no Velho Testamento, os personagens da casa de Avis comparados à personagens bíblicos, além de contar a narrativa de suas vidas com muitas semelhanças aos textos hagiográficos. Assim sendo, não só a missão foi sacralizada como também o foram sacralizados o espaço e as personagens. O fato das vidas de santos serem tão importantes na construção da imagem sacralizada da casa de Avis deve-se em muito à importância do culto aos santos na cristandade. Ao que Le Goff48 explica que ocorrera precocemente, nos primórdios da Era cristã, tal afirmação é apoiada, segundo o autor, pela também rápida absorção das celebrações em torno da memória dos mortos. Sendo os santos considerados mortos muitos especiais49, pois, poderiam interceder pelos vivos junto ao poder divino, mais uma vez, a cultura cristã da Idade Média estimulava a memória, pois a vida destes santos deveria ser lembrada. Memória está que era passada tanto oralmente como pela escrita, ao passo que era uma sociedade que valorizava os idosos em certo sentido, visto serem eles capazes de narrar situações e conclusões que haviam sido operadas a muito no tempo, ajudavam a trazer a lembrança sobre determinadas resoluções, como também promover a justiça. Em contrapartida, também foi uma sociedade que valorizava os textos, ao ponto de confiná-los em mosteiros e reproduzi-los, sistematicamente, para que não se perdessem com o tempo. A partir do século XII a escrita ganharia mais importância, as chancelarias, tanto régias como citadinas, começaram a ganhar espaço nos territórios europeus, movimento que começou na França e na Itália, mas que se espalhou por outras regiões da cristandade, como também, a feitura de anais e de crônicas sobre os feitos dos monarcas e das cidades. Mais uma vez a figura do monarca fora basilar para feitura de tais arquivos, embora, no caso das cidades italianas, a administração fosse conduzida na forma de república, mas, em ambos os casos a formação de uma burocracia, mais ou menos centralizadas, figuraram como elementos contundentes na construção desses anais. Durante a época do renascimento uma invenção em particular ajudaria na mudança das relações com a memória, esse objeto foi a imprensa. O que deveria ser lembrado pouco a pouco passou a ser registrado nos impressos. Esta nova forma de lidar com os registros alterou de tal forma o panorama da época, que os livros de memória começaram a desaparecer do cenário europeu. A Reforma Protestante ajudava a esvaziar a memória como atividade intelectual, pois advogava que a memorização seria diferente do aprendizado. De igual modo, também o fez a defesa do método científico, que privilegiava a demonstração em face à memorização. Contudo, a partir do século XVIII percebeu-se um novo florescer da memória, sendo que em campos distintos. Um deles foi favorecido pela propagação da imprensa, que permitiu que um maior número de pessoas tivesse acesso as mesmas informações. O contato com esse

46 HEERS, Jacques. História Medieval. 2 ed. Rio de Janeiro: Difel, 1977. 47 AMARAL, Clínio. A construção do discurso de santidade do Infante santo em Portugal. Os indícios da "criação" de um santo dinástico. Saarbrücken: Novas edições acadêmicas, 2016. 48 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução: Bernardo Leitão. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. 49 VAUCHEZ, Andre. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental- Séculos VIII e XIII. Tradução: Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. 23 tipo de documentação impulsionou a consolidação de certa forma de memória, uma memória coletiva, que ao mesmo tempo não estava registrada nos livros, mas estava registrada na opinião pública. O outro campo que floresceu foi a memória técnica, exemplo desse fenômeno foi a expansão dos dicionários e enciclopédias, pelo menos na Europa, o saber das ciências tornou-se mais acessível à comunidade50. O século XIX, no entanto, fez nascer outra relação com a memória, desta vez bem menos racional, e mais profundamente ligada ao sentimento, foi a memória da comemoração do passado, da nação. Uma invenção do fim do século XIX contribuiria para entrelaçar as relações entre o passado e o sentimento. A invenção da fotografia51, posteriormente, a invenção dos álbuns de família deu conta de construir um passado nostálgico, que garantiria aos familiares identidade e proximidade. Já no século XX, a memória tornou-se material de estudo para várias disciplinas, dentre elas a biologia, psicologia, sociologia e antropologia52. Estudo, pois o ato de memorizar se tornou mais complexo, visto que, a produção humana de conhecimento e de material cresceu absurdamente. A invenção do computador durante a Segunda Guerra Mundial foi sintomática desta nova relação dos seres humanos com os dados, que há muito já não eram contidos pela capacidade de armazenamento humano, mas também, não eram suportados pelos registros históricos. Essa necessidade de debruçar-se sobre o tema memória acalentou preocupações a partir da segunda metade do século XX. Se tratará neste texto de duas delas, sendo a primeira aquilo que foi dito por François Hartog,53 essa experiência de aceleração do tempo, que é evidenciada, sobretudo, por duas características da sociedade contemporânea, sendo elas: os avanços técnicos, que se sucederam rapidamente, principalmente, porque nas sociedades contemporâneas, de lógica capitalista hegemônica, é sempre necessário apresentar novidades aos consumidores, e manter o mercado aquecido com a compra dos lançamentos. Outra motivação para experiência de aceleração é dado pelo tempo midiático, que é o tempo das redes de televisão e, embora Hartog não se referencie diretamente, pode-se acrescentar da internet. Estes veículos tentam mostrar sua eficiência em fornecer as notícias o mais rápido possível, a transmissão ao vivo, é causa e sintoma de uma sociedade acelerada. O autor atenta ao uso dos verbos na conjugação de tempo pretérito, assim as noticiais atuais, já parecem passado enquanto acontecem. As transformações tecnológicas e sociais, aceleradas no decorrer do século XX colaboraram para geração de um forte sentimento de perda e de ruptura com o passado. O desmantelamento das comunidades tradicionais e esvaziamento do sentimento nacionalista contribuíram para a profusão de patrimônializações e tombamentos, a partir da década de 197054. A criação de institutos de memória, a construção de patrimônios e o resguardo de outros já existentes, deram a entender a necessidade de alguns grupos de preservarem o passado. Já no campo das ciências, especificamente da história, o estudo da memória coletiva, primeiramente adentrou a antropologia, que em contato com grupos humanos, que se

50 É necessário também considerar que as práticas de leituras não eram as mesmas, em todos o continente. Sobre isso ver: CHARTIER, Roger. “As práticas de leitura”. In:______. História da vida privada 3: da Renascença ao Século das Luzes. Tradução: Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. pp. 113-162. 51 BORDIEU, Pierre, e BORDIEU, Marie-Claire. “O camponês e a fotografia”. Revista de Sociologia e política. Curitiba, n. 26, pp. 31-39, jun. 2006. 52 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução: Bernardo Leitão. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. 53 HARTOG, François. “Ordens do tempo, regimes de historicidade”. In: ______. Regimes de Historicidade. Tradução: Maria Helena Martins et al. Belo Horizonte: Autentica, 2013, pp. 17-42. 54 NORA, Pierre. "Entre memória e história: a problemática dos lugares". Projeto História. São Paulo, vol. 10, dez, pp. 7-28, 1993.

24 relacionavam de forma bem diferente com seu passado, encontraram na ideia de memória um modo mais profícuo de estudo, do que no conceito de história. Desta forma, a memória pôde ser historicizada, como dito por Pierre Nora55: Da mesma forma que devemos à distância panorâmica o grande plano e o estranhamento definitivo uma hiperatividade artificial do passado, a mudança do modo de percepção reconduz obstinadamente o historiador aos objetos tradicionais dos quais ele havia se desviado, os usuais de nossa memória nacional. Vejam-na novamente na soleira da casa natal, a velha morada nua, irreconhecível. Com os mesmos móveis de família, mas sob uma nova luz. Diante da mesma oficina, mas para uma outra obra. Na mesma peça, mas para um outro papel. A historiografia inevitavelmente ingressada em sua era epistemológica, fecha definitivamente a era da identidade, a memória inelutavelmente tragada pela história (...). Os estudos históricos adotaram também no seu leque de objetos, as memórias coletivas, neste sentido, muito se deve à história oral e a recolha de testemunhos utilizados como fonte historiográfica. Disto apreende-se o desafio de estudar as crônicas régias de fins do século XV, há neste intento a pretensão historicizar de acordo com ciência histórica atual, descortinando-lhe suas configurações sociais, culturais, bem como políticas, em um material que é produto de seu tempo, portanto, apresenta um texto de lugares e pessoas sacralizadas, como também um enredo de glorificação à história da casa de Avis e das conquistas portuguesas.

4. Crônicas: produção de memória.

Sendo assim, as crônicas régias são textos que são marcados pela tentativa de construção de uma determinada memória para o reino. Nas crônicas, as memórias particulares dialogam com a construção de uma história reinol. Particulares porque são feitas a partir de duas fontes, a primeira delas era o relato dos notáveis homens que participaram das campanhas militares, no caso das crônicas de Gomes Eanes de Zurara, as falas do infante D. Henrique são de suma importância. A segunda era a consulta aos manuscritos da Torre dos purgaminhos para conceber a narrativa dos empreendimentos portugueses. Em uma época em que os direitos autorais estavam longe de ser uma realidade, a prática de copiar textos sem evidenciar o autor era recorrente56 Estas memórias se tornaram história, pois foram enquadradas no interior de uma determinada narrativa, passaram a ter começo, meio e fim, mas também possuíam uma função, são crônicas pedagógicas, à medida que ensinam sobre a missão portuguesa, ensinam sobre a lealdade dos súditos57: De verdade vos digo, respondeu Lançarote, que essa era minha principal enteçom enteiramente, ante que vós em ello algua cousa fallasses, e prazme seguir vosso propósito, porque assy me foe mandado pello Iffante meu snõr. E sobre a benevolência do rei58: (...) per que ella he exalçada sobre todas três jerachias dos santos principados, que per este seu jnfindo merecimento pois ella de todas graças

55 NORA, Pierre. Ibid. p. 21. 56 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p. 12. 57 ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné. Paris: Casa de J. P. Aillaud, 1841. p. 272. 58ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p. 7 e 8. 25

he ministrador, nam tanto por meus fracos rrogos como por a singular deuaça, que este glorioso príncipe na sua santíssima pureza sempre ouue, jmpretara per mim tal graça que eu possa escreuer sua estória, segundo seus grandes merecimentos rrquerem (...) As crônicas ligam eventos passados com acontecimentos presentes à época de sua escritura, serviam como aparato de legitimação das expedições em África, estabelecendo a ancestralidade do movimento, retornando-o ao fundador da dinastia de Avis, D. João e o mantendo através de seu filho, que embora não fosse o herdeiro do trono, era seu herdeiro de genio59, conforme Zurara apresentou D. Henrique. Sendo assim, interessa analisar a partir dos registros deixados por Gomes Eanes de Zurara, na Crônica da Tomada de Ceuta e Crônica do descobrimento e conquista da Guiné, quais aspectos da narrativa sobre a expansão portuguesa em África deveriam ser perpetuados sob sua pena. Ciente desta condição em relação ao conteúdo analisado, vale observar a escrita do historiador: De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores.60 Por esta passagem entende-se a dupla montagem que integra um documento, a primeira delas ligada às relações de força que estão em jogo no período da formulação de uma dada fonte, sublinha-se, neste caso, o texto escrito. Com isso se que dizer que toda fonte é uma forma de manifestação do poder, pois, nas palavras de LeGoff: “O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder”61 A partir disso se vislumbra o aspecto monumental inerente as fontes históricas, pois como monumentos, testemunham a forma pela qual determinada sociedade se representa e impõe ao futuro, a maneira de ser apreendida. Neste sentido, os documentos são entendidos também com monumentos, pois, perpetuam uma determinada visão de mundo, que lhes é própria. A segunda forma do documento demonstrar sua capacidade impositiva é através dos estudiosos que se dedicam sobre ele. Assim, a elevação de qualquer artefato ao lugar de documento histórico, cristaliza um modo de entendimento de uma determinada época. Neste caso, diz Le Goff, a crítica ao documento tornou-se imprescindível para historiografia contemporânea, exigência que foi se confirmando durante o século XX, que revelou a impossibilidade da neutralidade que qualquer produção humana possa requerer para si, antes, é imbuída de toda uma série de interesses, da ordem da economia, sociedade, direito, política, cultura, espiritualidade, e, com especial destaque para o uso do poder. Desta forma, os documentos se constituem em instrumentos de poder, a partir de uma dupla constatação, pois, é testemunho desse mesmo poder, ao passo que o manifesta, também o cria, lhe dando legitimidade e sustentação. Sendo assim, provoca a reflexão a cerca das crônicas de Gomes Eanes de Zurara, que afinadas com o poder régio são testemunhos de como a sociedade portuguesa pretendeu ser representar, sendo que esta tentativa é uma parte integrante do momento histórico, não em sua integralidade, pois, a história é contada por um funcionário real, fortemente ligado à casa reinante e aos personagens narrados nas crônicas. Como também, embasada em uma

59 GOMES, Saul. D. Afonso V, o africano. 1 ed. - Lisboa: Temas e Debates. 2009. p. 73. 60 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução: Bernardo Leitão. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. p. 462. 61 LE GOFF, Jacques. Ibid.p. 470. 26 determinada religiosidade, que lhe é característica, mas que também, não totaliza as experiências religiosas do período, antes dá conta de um discurso religioso, muito próximo a uma camada do clero ligada ao poder régio62 e ancorada em certa mentalidade aristocrática, que se percebe como cavaleiros em busca de novas formas de serviço, em que possam acrescentar honra ao nome de suas casas, bem como mercês e acrescentamento advindo dos reis.

5. A crônica em seu tempo.

Rene Rémond em seu texto Do Político63fez a seguinte observação sobre a política: “não segue um desenvolvimento linear: é feita de rupturas que parecem acidentes para a inteligência organizada do real”64. O autor, neste trecho evidencia o que para ele seria uma peculiaridade do domínio da política, isto é, a contingência, aquilo que não poderia ser apreendido na longa duração, visto que, o acontecimento pode não ser previsto. Atenta-se a esta passagem para tratar do uso das crônicas como fontes históricas, não desprezando os diversos aspectos que corroboraram para formulação desde documento65. Pretende-se, no entanto, observar seu caráter político, isto é, como um documento oficial está permeado de um sentido político, no dizer de Rémond, está exposto as vicissitudes de seu próprio no tempo. Há de se considerar a observação feita por Bernard Guenée66, no verbete História, no Dicionário Temático do Ocidente Medieval, a importância de se considerar o patrono do cronista, historiador, nos textos de história durante a Idade Média, e, portanto, no texto de Zurara é preciso não perder de vista que tal trabalho foi constituído ao serviço de D. Afonso V. Por isso, a leitura da crônica deve levar em conta a dupla dinâmica do texto, como um apanágio da dinastia, mas também do monarca reinante. Assim sendo, a produção cronística colabora para o entendimento de aspectos de seu próprio tempo de confecção, isto é, mesmo que a Crônica da Guiné trate dos feitos de D. Henrique, ela estava em consonância com as demandas políticas de seu próprio tempo de produção. Portanto, a memória e a história contida na crônica de Zurara, ajudam a elucidar o que era digno de memória a época de D. Afonso V. Sendo assim, como dito por Hannah Arendt67a política trata da convivência entre os diferentes, é, um campo de relações, ora dos homens, ora com seu tempo e seu espaço. Por isso, o texto pode carregar em si certas tensões da época de sua escrita. No caso das crônicas de Zurara, ainda que o documento não manifeste claramente o interlocutor, ele ajuda a perceber os tópicos que interessavam ser veiculados.

6. A produção cronística em fins da Idade Média.

A obra textual de Gomes Eanes de Zurara estava em consconância com a produção cronística de fins da Idade Média. De acordo com Roger Chartier68 foi a partir dos séculos XII

62 BERRIEL, Marcelo Santiago. Cristão e Súdito representação social franciscana e poder régio em Portugal (1383-1450) Tese (Doutorado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007. 63 REMOND, René. “Do Político”. In:______. Por uma História Política. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996. p. 441-450. 64 REMOND, René. “Do Político”. In:______. Por uma História Política. Ibid. p. 449. 65 A forma da escrita, as referências culturais que a constituíram, bem como sua recepção. 66 GUENEE, Bernard. História. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2006. v. I, p. 523-537. 67 ARENDT, Hannah. O que é a política? Rio de Janeiro: Bertan Brasil, 1999. 68CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Tradução: Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difusão Editora, 1988. 27 e XIII, na Inglaterra, que o Estado substituiu a declaração oral pela fixação escrita, bem foi como na Península itálica onde ocorreu a substituição dos notários pelas chancelarias. No dizer de Chartier, a constituição de uma documentação administrativa e a escrita de crônicas representaram um progresso nas cidades-estados italianas. Segundo Clínio do Amaral e Ana Carolina Lima Almeida69, na região da Península Itálica, se formou uma tradição de textos ligados ao humanismo, preocupados na condução dos assuntos da cidade. No entanto, as crônicas portuguesas ligaram-se à outra tradição, enunciada por Pierre Nora, em seu trabalho Entre história e memória70, quando tratou das Grandes Chronicas de France, produzidas no século XIII, diz o autor, eram feitas como memória dinástica e estabeleceram o modelo de vários séculos que se seguiram. Clinio do Amaral comentou sobre o caráter deste tipo de documentação, tratava-se de promover uma determinada memória do reino. Em seu livro A construção do discurso de santidade do Infante em Portugal71 assim nos diz o autor: A mensagem apresentada por essas crônicas é que os súditos deveriam servir a seu rei e a sua grei, por que eles são representados como pessoas sagradas que lutam pela fé cristã e, por conseguinte, pelo engrandecimento da nação. Enfim, o cronista é o depositário da memória da nação e sua maior obrigação é perpetuá-la à posteridade por meio dos exemplos. A fabricação das crônicas, no final da idade média, estaria diretamente ligada aos mecanismos de produção de memória e identidade. Havia, portanto, subjacente ao ato de escrever uma crônica, um projeto de intervenção da realidade, no sentido de criar uma história verídica sobre determinado acontecimento. Neste sentido, os textos das crônicas ajudaram a criar uma forma de reunir determinados fatos, por meio de narrativas que contribuíram para estabelecer a identidade do reino, ou melhor, identidade do reino sob a perspectiva da casa reinante. O uso do texto cronístico em Portugal recebeu bastante influência do reino Ibérico de Castela. A partir do século treze viu-se multiplicar na Europa uma série de textos para as línguas vernáculas, até aquele momento as transcrições faziam-se para o latim. Estes escritos traziam-se em si um pensamento corrente no período medieval, no qual a palavra escrita seria o registro da verdade. Tais crônicas possuíam uma estrutura narrativa permeada de protagonismo de mártires, de milagres, coincidindo fatos do cotidiano, militar, eclesiástico com eventos escatológicos72. No reinado de Afonso V em Castela e Leão (1252-1284) se deu a criação de um scriptourium, do qual se originou um extenso acervo documental e a formação de uma coletânea de textos. Esta coleção promoveu a construção do repertório documental, que daria base para confecção de crônicas em toda a Península. O governo de Afonso III em Portugal, entre 1248-1279, pode ter marcado um ponto de virada na produção cronística no reino, este monarca promoveu a tradução de diversas crônicas, oriundas da língua árabe e castelhana. Tais traduções foram realizadas no âmbito do poder régio, contrariando o que mais comumente acontecia, que era a produção de texto cronísitico no recinto dos conventos73.

69 AMARAL, Clínio, e ALMEIDA, Ana Carolina Lima. “A ideia de virtude no final da idade média: Um estudo comparativo entre o seu uso político em Florença, no século XIV, e em Portugal na segunda metade do século XV”. Revista Signum. (UEL) Londrina,v. 2, n. 2. p. 211-242, 2011. 70 NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. Projeto História. São Paulo, vol. 10, dez, p. 7-28, 1993. 71 AMARAL, Clínio de Oliveira. O culto ao infante santo e o projeto político de Avis. Tese (Doutorado) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. p. 75. 72 Sobre isso ver: GIANEZ, Bruno. Fernão Lopes (c. 1380/90 -1459): Crônica e História em Portugal (século XIV e. XV). Dissertação (Mestrado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. 73 GIANEZ, Bruno. Ibid.pp. 52-100. 28

Nos século XIV a recolha destas referências, principalmente coletadas a partir do trânsito de traduções na Península Ibérica permitiu a fundação da prosa portuguesa, através do escrito A Crônica Geral de Espanha 1343. Este material intrinsecamente ligado à produção castelhana mostrava a história lusa sob a perspectiva do reino forjado pelos heróis da Reconquista cristã74. Mas, foi a partir da ascensão da Dinastia de Avis que, segundo Susani França que a produção cronistica consolidou-se: Vale aqui um parêntesis para lembrar que, no século XV, em Portugal, graças ao empenho dos príncipes de Avis – D. João I (1383/85- 1433) e seus sucessores, D. Duarte (1433-1438), o Infante D. Pedro (1439- 1448), D. Afonso V (1448-1481) e D. João II (1481-1495) –, nota-se pela primeira vez o desenvolvimento de uma atividade literária mais ou menos regular e sistemática75. Cabe ressaltar que foi no reinado de D. Duarte que se deu a criação do cargo de cronista-mor no reino português, posição ocupada primeiramente por Fernão Lopes76. O autor teve como tarefa escrever sobre a Revolução de Avis77, momento da história portuguesa em que a casa de Avis foi alçada ao governo de Portugal, da qual D. Duarte foi o segundo monarca. Este rei, no entanto, não teria tantos anos de reinado78, e, Fernão Lopes continuou em sua função servindo ao regente D. Pedro, sendo apenas substituído no governo de D. Afonso V, por Gomes Eanes de Zurara79. Este, por sua vez, deu prosseguimento a escrita dos feitos dos homens de Avis, ao escrever a Crônica da Tomada de Ceuta, na qual narrou os acontecimentos prévios a conquista da cidade do norte da África, bem como o cerco e a vitória dos príncipes de Avis em solo africano, esta crônica foi seguida pela Crônica do descobrimento e Conquista da Guiné, na qual, Zurara destacou o protagonismo de D. Henrique, filho de D. João I e personagem destacado dos avanços portugueses em África. O Duque de Viseu foi elogiado em toda crônica da Guiné, assim o descreveu Zurara: Fortelleza de coraçom, e agudeza dengenho, foro em elle em muy excellente graao. Sem compraçom foe cobiiçoso dacabar grandes e altos feitos. Luxurya nem avareza nunca em seu peito ouverom repouso, porque assy foe temperado no primeyro auto, que toda sua vida passou em limpa castidade, e assy que virgem o recebeo a terra. E que posso dizer as sai guandeza, senom que foe extrema antre todollos príncipes do mundo! Este foe o príncipe sem coroa, segundo meu cuidar, que mais e melhor gente teve de sua criaçom80. É possível perceber que a produção cronística em fins da Idade Média, estava alinhada com os desígnios das casas nobres que se consolidavam como casas reinantes em determinados territórios, como dão exemplo os casos das produções em França, Espanha e Portugal. A produção cronística de Avis evidencia a construção de uma memória de louvor à

74 GIANEZ, Bruno. Ibid. PP. 52- 100. 75FRANÇA, Susani Silveira Lemos. “A representação do passado e a moral no século XV em Portugal”. Tempo, Niterói, v.14, n.2 8, p. 145-164, 2010. p. 150. 76 Sobre isso ver: COSER, Miriam Cabral. “A dinastia de Avis e a construção da memória do reino português: uma análise das crônicas oficiais”. Cadernos de Ciências Humanas - Especiarias, v. 10, n.18, jul.-dez. p. 703- 727, 2007. 77LOPES, Fernão. Crônica de D. João. Vol. I e II. Porto: Livraria Civilização, [1945-1949]. 78 D. Duarte governou Portugal entre os ano de 1433-1438. Sobre isso ver: COSER, Miriam. “Modelo mariano e discurso político nas crônicas de Avis”. In: AMARAL, C. O. (Org.) ; BERRIEL, M. S. (Org.) . Religião e Religiosidade na Idade Média: poder e práticas discursivas. 1. ed. Rio de Janeiro: Multifoco, 2012. 79 Apoiador da causa de D. Pedro, inimigo de D. Afonso V na batalha de Alfarrobeira, 1449, aposentou-se do cargo tempos depois da vitória do quinto Afonso. 80ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de guine. Paris: Casa de J. P. Aillaud, 1841. p. 20. 29 dinastia, exemplo disso, é a Crônica de d. João I, escrita ainda a época de D. Duarte, ou como exemplificam as crônicas da Tomada de Ceuta e Descobrimento e Conquista da Guiné, escritas no governo de D. Afonso V, mas que prestam louvor aos príncipes de Avis, filhos de D. João I e, no segundo documento, especificamente a D. Henrique. Estes textos mostravam a continuidade vitoriosa da dinastia, a começar na vitória no interior do próprio reino, na ocasião da Revolução de Avis, e depois narraram as vitórias em solo africano. A respeito desse esforço em evidenciar os triunfos avisinos, o caso apresentado por Geoges Duby em As três ordens e o imaginário do feudalismo81 mostra como o bispo Gerardo de Cambrai, em um contexto de questionamento do papel do bispado, utilizou-se do recurso às bibliotecas e às Escrituras para combater seus opositores, isto se deu, segundo Duby, pois: “recordando o passado para fornecer as provas de uma posse legítima.”82 Embora em um momento diferente da história, pode-se perceber que tanto em relação aos bispos, quanto às dinastias, o relato da história tem a função de prova, isto é, o papel de legitimar, manifestar o porquê de determinado grupo ocupar posições sociais privilegiadas e outros não ocuparem esta mesma posição. No dizer de Clínio do Amaral os atributos e ações, isto é, os serviços prestados pelo quais obtiveram a retribuição divina83. Já o trecho da obra Futuro Passado de Reinhar Koselleck, apresenta um segundo aspecto das narrativas contidas nas crônicas: Assim, a história seria um cadinho contendo múltiplas experiências alheias, das quais nos apropriamos com o objetivo pedagógico; ou nas palavras de um dos antigos, a história deixa-nos livre para repetir sucessos do passado, em vez de incorrer, no presente, nos erros antigos. Assim, ao longo de cerca de 2 mil anos, a história teve o papel de uma escola, na qual se podia aprender a ser sábio prudente sem incorrer em grandes erros84 A partir da leitura deste texto é possível perceber a importância das narrativas contidas das crônicas, pois, foram formadas sob estas duas finalidades. Isto é, primeiramente, possuíam a função de legitimar a governança da casa de Avis, bem como mostrar sua história modelar, assim sendo, os feitos que serviriam de exemplo para o reino. Cabe ressaltar neste sentido, o que foi dito por Roger Chartier: As percepções do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza.85 Desta forma, o autor alerta sobre a necessidade de relacionar o texto como seus produtores, e, no caso da crônica de Zurara, há de se ter em mente que este documento foi produzido no âmbito do poder régio, e, portanto, pode-se dizer que foi elaborado em consonância com as demandas régias do período de sua confecção. Chartier, ainda comenta: “por fim, qualquer análise da escrita de Estado entre os séculos XII e XVII deve ter em conta a mistura do público e do privado que caracteriza a sua produção, a sua conservação e os seus usos.”86

81 DUBY, Georges. As três ordens ou o Imaginário do Feudalismo. 2 ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. 82 DUBY, Georges. Ibid. p. 35. 83AMARAL, Clínio de Oliveira. O culto ao infante santo e o projeto político de Avis. Tese (Doutorado) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. 84KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. Wilma P. Maas e Carlos A. Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto/ Ed. PUC-Rio, 2006. p. 42. 85CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Tradução: Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difusão Editora, 1988, p. 17. 86CHARTIER, Roger. Ibid. p. 219. 30

Quando escreveu estas palavras, Chartier discorria sobre as peculiaridades do trabalho com as documentações oficiais. No caso deste estudo, as crônicas podem ser entendidas também como uma fonte produzida por uma burocracia, que tomava forma em Portugal, em torno do paço e por isso, da figura do poder real. Entende-se ser importante lançar sobre o texto cronísitco um olhar cuidadoso, pois, sendo um documento oficial, feito sob orientação do poder régio, como já dito acima, possuía também o caráter político, isto é, de responder as demandas de seu próprio tempo. Não se quer dizer com isso que as crônicas se ocupem de demonstrar a evolução das instituições que formalizaram o regime monárquico, pois, como foi apresentado por Chartier os limites entre o que era assunto de foro intimo e de foro público87 não estavam delimitados.

7.História e poder.

De acordo com Francisco Falcon88: “História e poder são como irmãos siameses separá-los é difícil; olhar para um sem perceber a presença do outro é quase impossível”89. Assim, Falcon chama a atenção para como o poder se relaciona com a produção histórica. Vale ressaltar, que se faz referência ao poder como no dizer de Falcon: “conceito de poder como um tipo de relação social concebida eventualmente como de natureza plural — os poderes.”90. Desta forma, trata-se de poder como relação de forças que permitem que certas ações sejam tomadas e outras subtraídas. Assim se percebe a estreita relação entre a formação de um determinado regime e a conformação de marcos que lhes servem de sustentação, isto é, de legitimação. A narrativa de sua história tem um papel importante como paradigma de ação também, a escolha do que seria narrado ou não, revelam aspectos da própria conjuntura do período em que o texto foi escrito, das relações de força que estavam atuando em determinada época. A partir disso se atenta ao fato de que foi uma ordem partida do rei para que Zurara narrasse acontecimentos pretéritos à sua própria governança. Entende-se com isso, que a preferência pelo tema das empresas africanas estava alinhada com a correlação de forças que se estabeleceu em Portugal, após a ascensão de D. Afonso V ao trono. E, como tal, revelam aspectos do que era esperado, isto é, a construção de exemplos91, nas relações sociais que deveriam ser seguidos, sobretudo, em meio à aristocracia. Falcon explicita que há duas formas de relacionar história e poder. A primeira delas se dá a partir do estudo sobre o poder, por muito tempo considerado como poder político e como este se manifesta no decorrer do tempo. A segunda, menos explorada, é o conhecimento histórico como forma de exercício de poder. A história, instrumento de poder, posto que seleciona o que será conhecido, a partir dos padrões gerados no interior da sociedade e do agente pordutor do texto histórico. Francisco Falcon ao escrever sobre as mudanças na forma de fabricar o conhecimento histórico evidencia o caráter relacional do texto com as formas de exercício de poder das sociedades em que estão inseridos, sendo a própria maneira de narrar os fatos, uma maneira de manifestar o poder.

87 Sobre as diferentes formas de dominação e a constituição do Estado, caracterizado pela burocracia e racionalidade ver: WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v. 2. Tradução de Régis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Ver. Técnica de Gabriel Cohn. [s. n.]. Editora Unb. Impressão oficial. São Paulo, 2004. 88FALCON, Francisco. “História e Poder”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.p.61-89. 89 FALCON, Francisco. Ibid. p. 61. 90 FALCON, Francisco. Ibid. p. 61. 91FERNANDES, Fátima Regina. “As crônicas régias e as chancelarias régias: a natureza e os problemas de aplicação das fontes medievais portuguesas”. Revista Ágora, Vitória: n. 16, p.77-94, 2012. 31

O autor apresenta a evolução da escrita da história, de maneira tradicional ao repetir os marcos da historiografia Ocidental, Grécia e Roma, Idade Média, Renascimento, Ilustração e Romantismo. Falcon trata do conhecimento histórico em Grécia e Roma, aponta seu caráter fragmentário de histórias no plural, o que não passa desapercebido neste modo de contar história são os grandes homens e as instituições, tão caras a estas civilizações da Antiguidade. Para Idade Média, Falcon escolhe a obra de Santo Agostinho para explicar a visão de uma história única e global, como eclesiástico Santo Agostinho ligava-se à Igreja, instituição que se representava como una e universal. O conhecimento produzido por ele se inseria numa narrativa que englobava vários povos, ao passo que também conectava fatos seculares com a escatologia. Em relação ao Renascimento, Falcon chama a atenção para emergência da crítica erudita das fontes, há de se considerar que também nos séculos XV e XVI, a Europa tornou-se palco de disputas entre poderes leigos e eclesiásticos e legitimar-se através de documentação configurou-se como parte do exercício do poder. Durante a Reforma, Martim Lutero procurou os textos mais antigos do cânone bíblico para basear sua argumentação. Entre os séculos XVIII e XIX, Francisco Falcon destaca duas correntes que pensavam sobre a maneira de escrever a história. A respeito do Iluminismo, Falcon comenta sobre as críticas lanças por estes intelectuais ao modo de se narrar os eventos históricos, como exemplo, os filósofos iluministas criticavam a falta de um sentido para experiência humana através do tempo. Já o Romantismo foi responsável por colocar na discussão historiográfica termos no sigular coletivo, como o povo, nação e etc. Termos que adentraram a retórica política, sendo usado em processos de unificação, guerras e revoluções, por exemplo. Essas duas correntes, no entanto, cederam espaço para historiografia metódica, esta maneira de produzir conhecimento histórico emergiu no mesmo contexto de afirmação do saber científico como o único saber com poder de oferecer a verdade. Neste mesmo período, a academia se consagrou como lugar de fala do conhecimento, sendo que, para se estar neste lugar, era preciso fazer uso do método cientifico, deste modo, a história metódica buscou sua ancoragem tantos nas ciências exatas, como nas biológicas. A disciplina história, alocada no rol de matérias cientifícas, viu seu método de produção de conhecimento92ser duramente criticado. No bojo da afirmação de outros campos de saber, a história metódica foi amplamente repelida por intelecutais integrantes das ciências sociais, como também no interior da própria disciplina. Correntes como Annales, neo- historicismo, marxismo, estruturalismo e etc., além de se afirmarem nas décadas de 1950 e 1960 nos meios acadêmicos, demostraram que a complexidade das relações humanas implicava a ampliação dos conteúdos dos saberes. A partir da década de 70, no entanto, saberes acadêmicos procuraram ampliar o diálogo entre si, a interdisciplinaridade tentou responder as demandas dos novos tempos. A maneira como determinada sociedade, em cada período de seu desenvolvimento deu a conhecer o passado está intimamente ligado com a forma como a mesma se percebe e como que ser vista. A história e o poder, se intrelaçam, lhes dão ancoragem. Portanto, estudar um texto sobre história envolve reconhecer as formas de exercício de poder presentes na escrita.

8. Crônica da Tomada de Ceuta e Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné.

A crônica da Tomada de Ceuta foi escrita por Gomes Eanes de Zurara, no ano de 1449-1450, muito de seu trabalho, acredita-se tenha sido aproveitado de textos já escritos por

92 Método hegemônico, pois, embora haja hegemonia de determinados métodos, teoria e objetos, a produção de conhecimeto histórico apresentou diversas correntes. 32 outros cronistas, com destaque para o escritor Fernão Lopes. Nome importante no paço português do século XV, por ter sido o primeiro a ocupar o cargo de cronista-mor do reino. Este cargo, embora, fosse uma espécie de novidade na constituição da nascente burocracia régia, denotava a importância que ganhava o ato de registrar os feitos notáveis do reino. Neste sentido, o capitollo ij de Zurara na Crônica da Tomada de Ceuta tornou-se bastante interessante para análise, pois nesta parte da obra o autor preocupou-se em registra os motivos pelos quais a escrita foi realizada. A partir deste primeiro capítulo, seguem103 capítulos que trataram do progresso do empreendimento militar que levaria a capitulação da cidade de Ceuta, desde a idealização do projeto, até a captura da cidade, no ano de 1415. Sobre o manuscrito da obra, Francisco Maria Esteves Pereira a descreve como intitulada como A cronica da tomada de Cepta por el Rey Dom Joham o primeiro, e registrou a presença de 11 cópias espalhadas pelo país93, foi impressa segundo Maria no ano de 1644, sendo seguida de outra impressão apenas na virada do século XX, de 1899 a 1900. A impressão da qual Pereira compôs o prefacio foi realizada no ano de 1915, ano do quinto centenário da conquista de Ceuta. A obra foi realizada por Zurara com o objetivo de lembrar os feitos de D. João I94, primeiro rei da dinastia de Avis, que foi alçado ao trono português, após um evento que ficaria conhecido como Revolução de Avis, no ano de 1385. Seu reinado foi longo e próspero para o reino, foi marcado pela assinatura do tratado de paz com o reino vizinho, Castela e pela vitória em Ceuta, cidade importante fora dos limites do continente europeu. Coube a seu filho e sucessor, D. Duarte, instituir o cargo de cronista-mor do reino, cargo que seria ocupado pelo já citado Fernão Lopes, que chamaria D. João I de “o messias de Lisboa”, indicando o papel que o futuro monarca teria em sua crônica, de salvador do reino contra a ameaça estrangeira. Mas, foi no reinado de seu neto, D. Afonso V, após uma complicada crise na sucessão, que se objetivou rememorar os feitos do primeiro rei avisino em Ceuta. A Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné foi terminada em 145395, é um documento que discorre sobre os principais acontecimentos que teriam contribuído para presença progressiva de portugueses na Costa da África. O texto possui 464 páginas, antecedidas por oito páginas, onde estão listados os 97 capítulos e precedido pelo capitollo primeiro. Esta obra, como nos apresentou o Visconde de Santarém96, foi um texto que ficou desaparecido por muitos anos, sendo redescoberto no ano de 1837, na Biblioteca Real de Paris. O autor descreveu o códice original, como um fólio pequeno, executado de maneira suntuosa e escrito em pergaminho, Santarém acrescentou também que estava no melhor estado de conservação, contento 319 páginas e 622 colunas. A escrita desta crônica foi encomendada pelo rei D. Afonso V ao seu cronista-mor Gomes Eanes de Zurara, foi a segunda obra feita a pedido do monarca para o cronista, sendo precedida pela Crônica da Tomada de Ceuta97, e, sucedida pelos textos Crônica do Conde D. Pedro de Meneses98 e Crônica do Conde D. Duarte de Meneses99.

93 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p. LXXV. 94 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Ibid. p.7. 95 GOMES, Saul. D. Afonso V, o africano. 1 ed. - Lisboa: Temas e Debates. 2009. p.189. 96 Responsável pela introdução e notas da edição utilizada para pesquisa, a saber, Chronica do descobrimento e conquista de Guiné 97 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. 98 ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica d do Conde D. Pedro de Meneses. Edição comemorativa do VI centenário da conquista de Ceuta: Imprensa Nacional da Casa da Moeda, 2015. 99 ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica de D. Duarte de Menezes. Lisboa: Universidade Nova Lisboa, 1978. 33

Gomes Eanes de Zurara exerceu o cargo de guarda-mor da Torre do Tombo, a partir de 1454, como também acumulou o ofício de bibliotecário-mor da livraria régia100, viveu aproximadamente, entre os anos de 1420 e 1474, sendo seu pai João Eanes de Zurara, que fora cônego de Coimbra e Évora, não há referências a sua mãe101. Antes de tornar-se cronista oficial do reino, Zurara, segundo Saul Gomes, esteve ligado à casa de D. Henrique102, fato este, que seria atestado pelas comendas que possuía da Ordem de Cristo, da qual D. Henrique era governador. Além destas comendas, durante sua vida, Zurara, ainda receberia outras benesses do monarca português103. Dentre suas obras principais destaca-se a Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné, pois, foi um dos primeiros relatos sobre o encontro entre os europeus e os povos da África subsaariana, na crônica, indiscriminadamente chamados de Guinéus e o território ocupado por eles denominado Guiné. Motivo que foi alegado pelo Visconde de Santarém para publicação do livro, no século XIX: É pois a esta singular e gloriosa excepção que devemos o precioso monumento que vamos dar pela primeira vez ao publico: a ‘Chronica da Conquista da Guiné’ por “Gomes Eannes dÁzurara, escripto que é incontestalvemente não só um dos monumentos mais preciosos da historia da gloria portugueza, mas também o primeiro livro escripto por autor europeo sobre os paizes situados na costa occidental dÁfrica alem, do Cabo do Bojdor, e no qual se coordenarão pela primeira vez as relações de testemunhas contemporâneas dos esforços dos mais intrépidos navegantes portuguezes que penetrarão no famoso mar “Tenebroso” dos Arabes, e passarão alem da meta que te então tinha servido de barreira aos mais experimentados marítimos do Mediterraneo, ou das costas da Europa104. O texto de Santarém, embora, com forte discurso nacionalista, ajuda a demonstrar os principais pontos do relato de Zurara, isto é, a narrativa centrada na ação dos portugueses e a sua crescente presença na costa africana.

9. História, memória e crônica.

Antes de prosseguir, fazem-se necessários alguns apontamentos sobre os usos das palavras história, memória e crônicas, usadas até agora no texto, mas que ainda não foram explicadas. No século XV, de acordo com Joaquim Carvalho de Sousa105há uma espécie de anarquia ortográfica, em favor da fonética, o que quer dizer que era comum que a mesma palavra fosse grafada de forma diferente. Sendo assim, pode-se encontrar palavras escrita de diversas formas sem que se altere o sentido. Como também há vocábulos que permaneceram com a escrita e o significado praticamente inalteradas. Daí que o autor não se preocupou em apontar em seu livro as definições de estorya e memorya.

100 ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de guine. Paris: Casa de J. P. Aillaud, 1841. 101 Sobre isso consultar “Vida de Gomes Eannes de Zurara” in: ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de guine. Ibid. pp. 102 D. Henrique, filho do monarca D. João I, primeiro rei da dinastia de Avis, subiu ao trono após a Revolução de Avis, em 1385. Dentre os principais títulos de D. Henrique estão o ducado de Viseu e o governo da Ordem de Cristo. Recebeu a alcunha de o navegador pela atuação destacada no esforço das conquistas marinhas. Sobre isso ver: SERRÃO, Joel, e MARQUES, A.H. Nova história da expansão portuguesa v.2: A expansão quatrocentista. Lisboa: Estampa, 1998. 103 Sobre isso ver: ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de guine. Paris: Casa de J. P. Aillaud, 1841. 104 ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné. Ibid . p. VII e p. VIII 105 SOUSA, Joaquim Carvalho. Dicionário da Língua portuguesa medieval. 2 ed. Londrina: Eduel, 2009. 34

No entanto, quanto aos escritores de história, o autor aponta duas formas de grafia: hystorico e historiães. Este definido apenas como a palavra equivalente a historiador, aquele, no entanto, Sousa definiu como historiador e cronista. Diante disso, poderia se apontar que o uso de ambas as palavras revelariam o mesmo sentido, ao passo que, não causaria estranheza a Zurara referir-se ao seu trabalho como de historiador106. Já que tanto o cronista, como o historiador teriam a mesma função, a produção da história do reino. Contudo, Bernard Guenée fez alguns importantes apontamentos em seu texto107, no qual ele sinaliza, primeiramente, o historiador na Idade Média era um erudito, assim sendo, para dar forma a um texto reconhecido como histórico era preciso dispor de tempo para os estudos, para o conhecimento dos textos, mas também, para ouvir o relato, visto que, no período medieval a oralidade era deverás importante. Com isso, se quer dizer que não era um trabalho profissional, com isso, para exercê-lo era necessário um patrono que o apoiasse, o que também não significava apoio contínuo. Tal quadro apenas se alterou a partir do estabelecimento de monarquias mais fortes no espaço e menos efêmeras no tempo, que marcaram os últimos séculos da Idade Média, quando se formou uma burocracia laica, em que o patrono, o rei poderia manter escritores especializados neste tipo de ofício. Também, é no final do período medieval em que os textos ocupados em narrar as histórias do reino ganham prólogos, onde seus escritores apresentam seus textos, conscientes da função do seu ofício e de sua obra, e, portanto da importância do trabalho. A maneira como escreviam seguiam a referência deixada por Eusébio de Cesária, que no século IV havia definido que um texto histórico seria caracterizado por um relato pomposo, notadamente dos feitos militares. Já a crônica seria uma coletânea de datas e acontecimento, menos preocupada com a narrativa. No entanto, com o passar do tempo, a feitura dos textos históricos demandou maior rigor da ordem cronológica, já o texto cronístico passou a correlacionar as datas dispersas. A altura do trabalho de Zurara, a crônica já havia se estabelecido como um gênero histórico, isto é, um tipo de produção preocupada tanto com a verdade dos fatos, daí o empenho dos cronistas em ouvir os relatos, estar nos lugares e utilizar do material escrito que dispunha, ao passo que estes fatos também precisavam ser narrados, encadeados em uma relação de causas e efeitos. Já a importância da memória permeava as obras medievais, pois, mais do que produzir uma forma para o texto, a memória estava atrelada ao significado do texto. Nesse sentido, Patrick Geary108 aponta os principais sentidos atribuídos à memória, eram eles ligados ao evento litúrgico, isto é, serviam para repetição dos ritos e das palavras do texto bíblico. A memória também significava o repositório das lembranças comemorativas, isto é, o que deveria ser festejado. Como também, a memória oferecia a legitimidade, sustentava a validade de determinadas leis e conformações territoriais, por fim a memória produzia a consciência, principalmente em relação aos erros que não deveriam ser cometidos.

10. Estorya e memorya no texto de Zurara.

106ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de guine. Paris: Casa de J. P. Aillaud, 1841. p. 38. 107 GUENÉE, Bernard. “História”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2006. v. I, p. 523-537. 108GEARY, Patrick. Memória. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2006. v. II, p. 167- 181. 35

No prólogo da Crônica da Guiné, o autor apresenta suas intenções para escrever a obra, além de apontar que o registro foi feito a partir da ordenação do rei D. Afonso V para que se ficassem anotados todollos feitos notavees109 de D. Henrique, duque de Viseu. Para tanto, chama a atenção neste inicio de obra, a utilização de dois termos, estorya e memorya para justificar a escrita do texto. Neste prólogo de oito páginas, Zurara utilizou-se duas vezes da palavra estorya e quatro vezes da palavra memorya. Com isso, pode-se perceber a importância de contar a história e guardar a memória do reino para obra que se apresentava. O termo estorya apareceu da seguinte forma: (...) per seu mandado foe sobre Tanger , onde se passarom muytas e muy notavees cousas, de que em sua estorya he feita mençam, por que todo o que se segue foe feito per sua ordenança e mandado, non sem grandes despesas e trabalhos, a elle propriemente pode seer atribuyda, ca sem embargo de se em todollos regnos fazerem geeraaes crônicas do rex delles, non se leixa poren screver apartadamente os feitos dalguus seus vassalos, quando o grandor delles he assy notável se que se com razom deve fazer scriptura.110 E outra vez: Semelhantemente elRey dom Ramiro, desejando de nom scoregar da memorya do Espanhoes a grande ajuda que lhe fez o bema venturado apostollo Santyago, quando os livrou do poderyo dos mouros, e prometeo de seer nosso ajudador em todallas batallas que com elles ouvesssemos; fez escreve a estorya desta acontecimento em os privillegios que outorgou dos vodos, os quaaes agora recebe a igreja de Santiago, de todaa a Espanha em que entonces vivyam xpaãos.111 Nos dois casos, a estorya significa a narrativa de um feito notável, que neste contexto, é uma ação primordialmente militar. Sendo assim, ao usar o termo estorya o autor o enquadra na perspectiva de que o texto de história se ocupa em expor um determinado evento do inicio até o seu final, e, como já dito, esse episódio ligava-se a um esforço militar, desde a justificativa para o empreendimento, até a descrição da batalha. Já o uso do termo memorya, no prólogo do Descobrimento e Conquista da Guiné aparece de duas formas, ora ligado ao termo autorizada, ora como contrário ao esquecimento. Da primeira maneira tem-se o seguinte exemplo: (...)viu e soube os grandes feitos do senhor iffante do Henrique duc de Viseu e sñor de Covilhaã, seu muito preçado e amado tyo, os quaes lhe parecerom assy specyaaes antre muytos que alguus principes xpaãos em este mundo fezerom, pareceolhe dos homees autorisada memorya, specialmente pellos grandes serviços que o dicto sñor sempre fazera aos reis passados, e polla grande bem feitoria que pollo seu aazo receberem seus naturaaes112. Este trecho pode ser melhor entendido, em conjunto com o texto abaixo: E coniirando el Rey nosso senhor que non conviinha ao processo de hua soo conquista seer contado per muytas maneyras, posto que todas concorram em hum effeito; porem me mandou sua senhorya que me trabalhannse de as ajuntar e ordenar em este vellume, por que os leedores mais perfeitamente possam aver dellas conhecimento.113

109ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p. 1. 110ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Ibid. p. 4. 111ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné. Paris: Casa de J. P. Aillaud, 1841.p. 6 e p. 7. 112 ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné. Ibid. p. 3. 113 ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné. Ibid. p. 5. 36

A partir da leitura destes trechos, pode-se perceber que autorizada memória é a escritura de um determinado relato, mas, que não admite diversidade na sua composição, isto é, caberia ao cronista selecionar, qual era a verdade do fato, já que ele não poderia ser reproduzido de várias maneiras, portanto, a memória autorizada cristaliza um determinado fato, que é o que deveria ser perpetuada pelo registro escrito. Quanto ao segundo uso de memorya no texto, como aquilo que é contrário ao esquecimento, se manifesta de duas formas. Ora apresentando os motivos pelos quais determinados feitos não deveriam ser esquecidos do passado do reino, ora expondo os motivos pelos quais os descobrimentos e conquista da Guiné não deveriam ser esquecidos especificamente. Da primeira forma tem-se o seguinte texto: E porque tornemos a bemfeitorya per agradecimento a aquelle de que a recebemos, como em começo deste capitollo comecey descrever, seguiremos per exempro aquelle sancto profeta Mouses, oqual desejando de non esqueecerem os bees que Deos outorgou ao povoo dIsrael, per muytas vezes mandava aos recebedores que os screvessem em seus coraçoões, assy com em livro que pode mostrar aos esguuardadores o que teem scripto. (...) E consiirando ainda alguus como per taaes sinaaes nom eram conhecido perfeitamente o que fora feito, segundo veemos que os esteos de Hercolles nom dam a quantos a veem certo saber que os poderm em lembrança de serr conhecido que per elle a Espanha foe conquistada, tomarom costume screver o que doutra guisa compridamente se nom podya lembrar. Em provaçom desto se conta em o livro da rainha Ester que el Rey Assuyero trazia scriotos os notavees serviços que lhe eram feitos, e em certos tempos os fazia leer por laggardoar o que os fezerom. Semelhantemente elRey dom Ramiro, desejando de nom scoregar da memorya do Espanhoes a grande ajuda que lhe fez o bemaventurado apostollo Santyago, quando os livros do poderyo dos mouros, e prometeo de seer nosso ajudador em todallas batallas que com elles ouvesssemos; fez escreve a estorya desta acontecimento em os privillegios que outorgou dos vodos, os quaaes agora recebe a igreja de Santiago, de todaa a Espanha em que entonces vivyam xpaãos114 Pode-se perceber quatro feitos que não deveriam ser esquecidos, no primeiro deles, o cronista compara seu trabalho com o que fora feito por Moisés no Antigo Testamento, isto é, guardar os feitos divinos em favor do povo. Com isso, Zurara aponta o caráter divinal da formação do reino, pois, a lembrança do que receberam no passado revelariam o favor de Deus para com este povo. Na segunda parte do texto, o autor reclama não poder acessar a lembrança da conquista de Hércules na Espanha, pois, a memória do fato legítima o domínio, e por isso também as conquistas do fim da Idade Média não podiam cair no esquecimento, visto que, esta memória legitimava o controle de determinados territórios. Em terceiro lugar, ao descrever o procedimento de Assuero em relação ao tratamento dos escritos, Zurara indica que o registro da memória também servia para confirmação de alianças, baseadas no oferecimento de serviços e na obrigatoriedade do agradecimento. Em fins da Idade Média, em Portugal, isto significava o registro dos serviços dos vassalos, bem como da gratidão régia, que envolvia os atores sociais em uma imbricada relação de obrigações de serviços e gratidão. Por fim, ao descrever o que fora feito por ElDom Ramiro, Zurara chama a atenção a especialidade do reino, pois, este sempre teria seus principais momentos acompanhados de milagres, de um sinal do céu, que ratificaria que o reino teria um grande destino, sobretudo, em relação ao enfrentamento com outros povos.

114ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de guine. Paris: Casa de J. P. Aillaud, 1841. p. 6 e p. 7 37

Quanto à memória dos descobrimentos e conquista da Guiné, assim justifica Zurara115: A primeira por muytas almas que se salvarom, e aynda salvaróm, da linhagem daquestes que já teemos em poder: a segunda por grande benefficios que delles geeralemente recebemos em nossa serventya: a terceira pella grande honra que o nosso regno geeralmente recebe em muytas parte, sojugando tamanho poder de inimigos tan longe de nossa terra. Sendo assim, o cronista apontou os motivos pelos quais os registros dos acontecimentos em África são importantes, primeiro porque confirmaria o favor divino em relação ao reino, enquanto o céu lhes ajuda com a vitória, os reinóis apressam-se em promover a salvação dos povos conquistados. A segunda razão seria porque os registros mostram o acréscimo das riquezas do reino após as conquistas africanas, o que poderia justificar novos avanços. Sobretudo, se existisse alguma contestação a formação de novos empreendimentos marítimos. E, por fim, porque tais conquistas aumentariam o prestígio do reino português em relação aos outros reinos europeus. Já na Crônica da Tomada de Ceuta, os termos memorya e estorya se apresentam de forma mais espaça, sem que o autor tenha se preocupado em melhor definir o que tratava como memória e história. No entanto, se os termos não apresentam as mesmas delimitações que na Crônica do descobrimento e conquista da Guiné, é sob a explicação do procedimento do estoriador, que Zurara permite conhecer as preocupações do escritor de caronicas: E que compridamente em elo esguardar achara que nem o çerquo de Troya nem a passada de Cepiam em Affrica nam form de tanta excellencia. Pois da vitoria que lhe o Senhor Deos outorgou em fim de seus grandes traballos por contrario de suas famosas cauallarias bem poder seer exempro a todollos príncipes do mundo. Muito sufficinetes estoriadores escreueram caualeiros feitos e façanhosas estórias de muitos rreis e duques e príncipes passados. Mas por certo em escretura nam se achara em tam breue tempo huua tam notauel e tam grande filhada por força darmas. Nam por que ella de muitos por sua grande nobreza nam fosse cobiçada e deseiada. Mas por certo com espanto tornauam seus rrostos os que esguardauam seu temeroso sembrante.116 Deste trecho pode-se notar algumas aspectos interessantes da prática de se produzir um texto de história, em fins do século XV. O primeiro aspecto é a comparação do evento que acontecera em Ceuta, com dois fatos pretéritos, que pode se inferir que deveriam ser conhecidos pela erudição da época, no caso dois eventos acontecidos na antiguidade, sendo eles, respectivamente a guerra de Tróia, que culminou com a vitória dos gregos, e a ação de Cipião contra os cartagineses. Esses dois exemplos de Zurara são ilustrativos deste entendimento do passado como este tempo de grandeza em que ocorreram os grandes feitos. No entanto, se por um lado Zurara ratifica a forma de percepção da história, também traz um elemento diferente para análise. Ao comparar os eventos da Antiguidade com os feitos de D. João I, não somente os coloca em igualdade de importância como sugere que a Conquista de Ceuta teria sido mais significativa que o feito dos antigos. Neste sentido, Zurara apresentou uma nova demanda na contação de histórias em fins da Idade Média. O autor aproximou os feitos de seu tempo com aqueles vivenciado em um passado remoto. Sendo assim, o passado do mito tornou-se inspirador, não somente admirável. É possível refletir neste caso, que as transformações vivenciadas em Portugal, bem como na Europa animaram um visão diferenciada do tempo, que se por um lado, ainda reverenciava o passado, percebia-

115 Ainda que coloque que o texto serviria, sobretudo, para louvor a Deus e a D. Henrique. ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné. Paris: Casa de J. P. Aillaud, 1841 p. 7. 116 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p. 9 e p. 10. 38 se um pouco mais atuante na realidade, com maior possibilidade humana de intervir nos destinos. Isto quer dizer que se poderiam produzir feitos de tamanha magnitude, ou mesmo superior, como diz o autor a respeito de Ceuta. Caberia assim ao historiador registrar estes feitos, pois, teria a função de servir como exemplo, D. João I, através da pena do cronista desempenha o papel de protagonismo na conquista de Ceuta, convertendo-se em modelo para os demais. Ainda sobre a prática de escrever história, Zurara ainda registrou: Ora com a graça de Deos começaremos nossa estória departida em capitullos segundo rreal ordenança dos antigos estoriadores, empero nam será tam compridamente contada como foy o feito, por que nos começamos a descreuer trinta e quatro annos depois de sua tomada, e afora os jimpedimentos que ao diante serem contados, no dito tempo faleceram casi a mayor parte das autorizadas pessoas que forom no conselho e feito da dita obra que dello perfeitamente parece sabiam. eos que ficarom per que tínhamos rrezam. Eram tam grandes senhores os quaaes polla excellencia de seu estado forom sempre tam ocupados que perderam lembraça de muy gram parte das circuntancias daquellas cousas, mayormente que o principal destes era o Iffante Dom Anrrique. O qual foy sempre tam ocupado nos feitos do rreino. Desy teue sempre em elle muy grandes encarregos cuja força ocupou muito seu acorso em este feito. a calidade dos quuaes contaremos mais diante proseguindo nossa força. Porem tomando alguum pedaços que ficaram apeganos nas paredes do entendimento deste senhor cheas de muy grandes cuidados e cercadas de feitos estranhos com alguumas migalhas que de fora apanhamos. Trabalharemos de fazer cousa que pareça jnteira segundo a forma do processo que se segue.117 Deste trecho, tem se que a escrita da história de Zurara é feita fragmentada em capítulos, no sentido, que cada parte do texto serve para impulsionar a narrativa para frente, isto é, de forma de cada seção do texto, explique as consequências nos trechos subsequentes. Em segundo lugar, o texto remete ao valor do relato na construção da obra, a Idade Média equilibrava-se entre o valor da memória contada e da história escrita. Portanto, o autor esforçou-se em buscar pessoas que tivessem vívido a montagem e o cerco à cidade de Ceuta, para que estes pudessem contar os fatos decorridos no conflito. Pois a forma de produzir o material histórico à época era a recolha de testemunhos e o registro, evidenciando essa dinâmica entre a memória e a história. No entanto, é preciso notar que como Zurara demonstrou, o testemunho válido era aquele pronunciado por algumas pessoas específicas. Embora, o cronista português não especifique o grupo de pessoas autorizadas, além de mencionar D. Henrique, entende-se que eram os fidalgos. Neste sentido, o valor da estirpe também significava o valor do relato, o que está de acordo com a sociedade portuguesa da baixa idade média, isto é, uma sociedade marcada por hierarquias. Mas também, significa o caráter social e político do texto cronístico. Pois, sendo Zurara um funcionário régio, que para produzir o seu material, contava como sua fonte de trabalho a nobreza, ou parte da maior nobreza do reino, o que carregou o texto da percepção deste grupo sobre o a expedição de Ceuta e Guiné. Por fim, Zurara nos diz sobre a conformação do texto: E por quanto o muy excelente príncipe e senhore elRey Dom Affonso o quinto ao tempo que primeiramente começou a governar seus rregnos soube como os feito de seu auoo ficauam por acabar, consirando como o tempo escorregaua cada vez mais. E que tardando de serem escritos poderiam as

117ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p. 7. 39

pessoas que alij forom falecer, per cuja rrezam se perderia a memória de tam notauees cousas.118 Neste trecho, fica evidente o interesse régio na escrita da história, pois, como parte do exercício do poder, o passado o serve como legitimidade, através da ancestralidade. Sendo assim, ao evocar a figura do avô, D. Afonso V através do texto de Zurara relembra ao reino, a importância da sua casa, dos feitos de seus antepassados para confirmar seu lugar no trono português. Principalmente, por causa de sua complicada emergência ao trono. Outro aspecto, presente no texto é a oposição entre a história e o esquecimento, como o texto sugere, a autoridade em relação ao conhecimento do passado residia nas testemunhas oculares, quando não mais se podia alcançar pela memória esse tipo de relato, denotaria que determinados fatos cairiam no esquecimento. Portanto, o autor dá a entender que, os fatos dignos de nota, sobretudo, aqueles ligados a conquistas militares119, deveriam ser registrados, para que não caíssem no esquecimento. Neste sentido, as conquistas passadas foram importante ponto de sustentação para as grandes casas, lembrar destes fatos tornou-se uma necessidade imperiosa.

118 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Ibid. p. 13. 119 Com destaque para os membros da aristocracia. 40

CAPÍTULO II Os descobrimentos em perspectiva: estudo sobre a historiografia relativa ao tema, questões e abordagens.

1. Divergências sobre a guerra em África.

A partir do que o capítulo anterior apresentou, vê-se que as crônicas de Gomes Eanes de Zurara, a Crônica da Tomada de Ceuta e a Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné possuíam um forte caráter memorialista. Tanto em uma, quanto na outra, o autor demonstrou sua preocupação em produzir um artefato que fosse digno de se perpetuar. Sendo estas obras apresentadas por Zurara como um trabalho de coleta de testemunhos fidedignos, que contariam os relatos da grande aventura portuguesa. Sobre os pergaminhos, os textos do cronista-mor do reino foram escritos para narrar a história portuguesa de autorizada memorya120. Entretanto, este relato conta uma história específica, a história da conquista portuguesa no continente africano. Isto foi dito com o propósito de evidenciar o caráter grandioso pretendido pelo texto quinhentista. A presença dos portugueses em África foi descrita para o leitor como um movimento evolutivo, inexorável e mesmo apreciável. Conforme escreveu Zurara:121 Ouço as prezes das almas inocentes daquellas bárbaras naçoões, em numero casy infundo, cuja antiga jeeraçom desde começo do mundo nunca vyo luz devinal, e pollo teu engenho, pollas tuas despesas infyndas, pellos teus grandes trabalho, som trazidas ao verdadeira caminho da salvaçom (...) Contudo, o exame mais profundo corroborará com a avaliação de que a expansão portuguesa foi permeada de intercalços, não foi linear, sofreu uma série de críticas e, não foi fruto do gênio português afeito a aventura. A conquista foi possível por motivos além da liderança de Avis, visto que, tal empreendimento desenrolou-se em uma conjuntura específica, que a despeito da intenção do texto, foi permeada de intensas dificuldades, dentre as quais se poderiam citar, primeiramente, os vários confrontos com os africanos. Exemplo desta interação dinâmica foi a expedição de conquista do Tânger em 1437. O empreendido foi conduzido durante o do reinado de D. Duarte, que além de ter sido palco da vitória dos tangerinos122, também ocasionou o aprisionamento de um dos irmãos do rei, D. Fernando, que viria morrer em 1443 ainda no cativeiro. Mas que, como dito por Clínio do Amaral:123 Problemas complexos, como, por exemplo, as relações entre leigos e clérigos, entre poder político e poder eclesiástico, as disputas entre os diversos grupos envolvidos na expansão econômica europeia do século XV, são passíveis de serem analisados por meio do infante d. Fernando. Durante o seu período de vida, transitou entre todas essas questões. Em sua visão de mundo, tudo o que se chama modernamente de domínios da história (economia, política e cultura) fazia parte de um todo. Por isso, não se estaria diante de uma espécie de são Luís? Através do infante d. Fernando, é possível analisar o processo de fabricação de um santo, que, embora não fosse canonizado, caiu muito cedo na devoção popular, servindo

120ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de guine. Paris: Casa de J. P. Aillaud, 1841. p. 3. 121ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de guine. Ibid. p. 9. 122 Muçulmanos. 123AMARAL, Clínio. A construção do discurso de santidade do Infante santo em Portugal. Os indícios da "criação" de um santo dinástico. Saarbrücken: Novas edições acadêmicas, 2016. p. 106. 41

aos propósitos de consolidação de Avis, de modo análogo ao que ocorreu com os capetos na França de são Luís. Evidenciando assim, a capacidade dos cronistas portugueses do século XV em construir uma memória vitoriosa do reino, mesmo narrando situações adversas. O processo de embates entre europeus e os habitantes do norte da África e da costa atlântica foi um processo relacional, no sentido em que os lados do conflito tiveram suas iniciativas e seus objetivos. Outro aspecto da presença portuguesa em África que pode ser discutido é a identificação do empreendimento com os habitantes da Península. Muitas das vezes, a história dos descobrimentos portugueses foi apresentada como prolongamento da nacionalidade que já se constituía entre os lusitanos. No entanto, esta concordância, pode ser questionada, sobre essa falta de consenso nos dá testemunho o próprio Zurara, ainda que de maneira periférica em seu texto:124 Nom tardou mujto que as nouas chegaram as cidade, as quaaes fezeram em ella huu nouo aluoriço. Porque todos estauam já casi despercebidos de semelhamte mouimento, por cuja rrezom lhes foy necessário de see trigarem pera tornarem todo a correger ca o espaço era muy breue pera sse mouer tamanho feito. E forom logo dados pregoões, que atta terça feyra per todo o dia fossem todos rrecolhidos a sua frota. Boom he de comsijar que mamdado tam trigoso de semelhates cousas, nom lhes daria gramde espaço pera dormir. Mujtas cousas fallaria aqui se quisesse, açerqua dos desuayrados juízos que sse dauam sobre aquella partida, espiciallmente a gemte do pouoo, culpamdo mujto elRey, porque fazia semelhante mouimento. Dizemdo que o prioll do Espitall com suas sotillezas mouera primeiramente aquelle feiro, e que elle tiraua ajmada el Rey agora de seu sisso. Outros diziam que elRey nom quisera partir, posto que aquelli ajuntamento assy esteuesse feito, vistos os marauilhosos sinaaes que lhe acomteçeram, mas que o prioll jmduzira os Iffantes, e que elles como homees mamçebos deseiadores de cousas nouas, aficaram seu padre tamto que o fezeram partir comtra sua voomtade. O trecho de Zurara ainda que seja para glorificar a tomada de Ceuta em 1415, demonstra que havia discordâncias e temores pra com a organização da esquadra e a possibilidade do conflito. Embora, a contrapartida seja apresentada apenas para ser desqualificada, significa, no entanto que não pôde ser ignorada pelo cronista, mesmo tantos anos depois da ocorrência dos murmúrios.

1.1. D. Pedro e a cronística de Zurara.

Contudo, foi na figura de D. Pedro, duque de Coimbra também irmão de D. Duarte, que se evidenciou essa clivagem do reino em relação à disposição de tomar territórios africanos. Sobre D. Pedro, Zurara em grande parte de seu texto optou pelos silêncios, especialmente, na Crônica do descobrimento e conquista da Guiné, onde omitiu sua regência, bem como sua opção pelo comércio no trato com os africanos, como também pouco revelou sobre o duque de Coimbra, em suas poucas aparições nos primeiros capítulos da conquista de Ceuta. Entretanto nos capítulos posteriores da crônica da Tomada de Ceuta, D. Pedro recebeu alguma atenção do cronista, reservando-lhe espaço em alguns capítulos. Em uma destas passagens, D. Filipa125, em seu leito de morte deu ao filho o cuidado das donzelas do reino. Antes de dizer-lhe estas palavras, D. João I, no capítulo XIX profere as seguintes letras

124 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. 1 ed. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p. 151. 125 D. Filipa de Lencastre, esposa do rei D. João I. 42 em relação às mulheres:126 “Primeyramente que a Rainha era molher, a quall segumdo sua natureza nom lhes poderia deseiar nehuua cousa periojsa.” Assim, descreveu Zurara as palavras do rei de Portugal, mas que podem refletir um consenso generalizado, na qual se percebia a identificação das mulheres como àquelas que eram contrárias ao esforço de guerra. Pois, as mulheres teriam o apreço naturalizado da maternidade, que as colocava como oposição dos conflitos que poriam em risco a vida dos filhos.127 Interessante notar que o cronista pôde ter assim identificado D. Pedro com essa atitude ao narrar a cena de despedida de D. Filipa, deixando ao infante, justamente o cuidado das donzelas do reino 128: E depois tomou a outra espada, e chamou o Iffante Dom Pedro, e disselhe. Meu filho, porque sempre des o tempo de uossa mininiçe vos ui mujto chegado aa homrra e seruiço das donas e domzellas, que he huúa cousa que espiciallmente deue seer emcomemdada aos caualleiros, e porque a uosso jrmaão emcomemdei os pouoos, emcomemdo a ellas a uos, as quaaes uos rroguo que sempre ajjaes em uossa emcomemda. E elle lhe rrespomdeo que lhe prazia mujto, e que assy o faria sem nenhuua duuida. E emtom sse assentou em joelhos, e lhe beyjou a maão. E ella lhe disse que lhe rrogaua que fosse com ella caualheiro, dizemdolhe outras mujtas rrezoçoes, como já dissera ao Iffamte Duarte, e sobre todo lhe lamçou sua beemçam. Mas he de comsijrar com quaaes comtenemças os Iffantes poderam ouuir semelhantes pallavras, ca no trutamento de semelhante rrezoado nom podia seer, que escusassem gramde multidom de lagrimas, as quaaes posto que as elles forçosamente rreteuessem, suas comtenemças estauam muy tristes ouuymdo as pallauras da Rainha, ditas a elles com tamto amor e com tam grame ssido e conhecimento de sua morte. E ella outrossi ueendo ho gramde semtido, que os filhos auiam de seu padecimento, aalem da sua door, auia por ell gramde tristeza. Diferente do que havia requerido aos outros filhos, isto é, o cuidado dos povos, a D. Pedro, a rainha havia encomenda o cuidado das donzelas. Esta fala da rainha chegou aos leitores por meio do texto de Zurara, que por sua vez, era ligado a D. Afonso V, que justamente começou a governar fazendo ferrenha oposição à regência petrina, conflito que apenas terminaria com a morte do infante. Com isso, é possível entender que o texto de Zurara não prestaria grandes elogios ao antigo governante, omitindo realizações, mas também, o destacando dos demais membros da família, possivelmente, apartando seu modelo de ação do que vigoraria no reinado de D. Afonso V, do qual a própria evocação da memória de Ceuta sinalizava uma continuidade nas guerras em África. Embora os problemas entre D. Pedro e o patrono de Zurara, D. Afonso V estivessem além das questões relacionadas à África, tais textos colaboraram com o entendimento da desconfiança durante o período afonsino com relação àqueles que não se integravam ao processo de conquistas ultramarinas. Sobre essa relação ainda caberia uma melhor analise dos debates relacionados às expedições à África, realizadas no período afonsino129, a partir das discussões realizadas pelas reuniões das cortes130, contudo, devido aos limites tempo deste trabalho, espera-se que este assunto volte a ser tratado com maior intensidade em próximas oportunidades.

126ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I Ibid. p. 60. 127 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p. 62. 128ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. p. 128. 129 As conquistas das cidades de Alcácer Ceguer (1458), Anafé (1468/1469), Arzila (1471), Tânger (1464) e Larache (1471). 130Os fólios da chancelaria de Afonso V, que estão disponíveis para consulta no site da Torre do Tombo http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=3815943 43

Além das cisões internas, é interessante notar, a presença de outros reinos no projeto africano, para tanto, tem-se o seguinte exemplo retirados do texto de Zurara131: “Pois que já dissemos dos embaxadores de Castella, e de todo o que sse seguio em sua embaxda, digamos agora todollos outros embaxadores, que vieral a el Rey por rrezam daquella armada que assy fazia, ca a fama della como já dissemo, era muy gramde(...)” Desta forma, os descobrimentos podem ser entendidos para além de um empreendimento português, ainda que o reino tenha desempenhado um papel importante naquela conjuntura, a despeito das próprias querelas internas, das divergências sobre as possibilidades reais de ganhos com estes conflitos, que eram bem custosos ao pequeno território peninsular.

2. Crise das dinastias magrebinas.

Entre outros fatores, a dita epopeia lusitana foi possibilitada por várias condições além do reino ibérico, dentre elas, a condição dos territórios ocupados, de acordo com Joel Serrão e A. H. de Oliveira, a dinastia que governava a região ocupada pelo atual Marrocos eram os Banu-Marim (ou Maríndias). Segundo Ivan Hrbek132, após a queda da dinastia dos Almóadas, o Magreb dividiu-se em três Estados independentes, que ocasionalmente, entrevam em conflito um com ou outro. Pode-se citar que, os Estados do atual Marrocos eram controlados pela citada Dinastia Maríndia, que disputavam com os sultões haféssidas o título de califa, e, por conseguinte, a hegemonia na região magrebina. Contudo, para além do que a disputa entre os reinos possa sugerir, após a queda dos Almoádas, a região do Magreb não conseguiu firmar o poder que outrora tivera. Antes, sofreu com uma sequencia de querelas dinásticas, bem como revoltas, além da crescente pressão de forças cristãs, das quais se poderiam citar, italianos, sicilianos, franceses e dos habitantes oriundos da Península Ibérica. Sobre os marídias, diz Hrbek, suas principais riquezas foram os camelos, cavalos e os escravos. Seu período de maior expansão deu-se durante o século XIII, período no qual o sultão conseguiu organizar uma série de incursões à Península Ibérica, com o objetivo de recuperar os territórios que antes pertenceram à dinastia dos almoádas. Entretanto, no inicio do século XIV, alguns fatores internos do reino, sediado na cidade de Fez, forçaram o afastamento em relação às pretensões externas. Sendo eles uma série de conflitos de poder internos, que obrigaram o deslocamento de forças para o interior do próprio território, que assegurassem a sobrevivência da dinastia. Outro fator que apontou Hrbek para o fim das pretensões externa dos sultões de Fez, foi uma crescente separação entre os interesses das áreas rurais e urbanas, isto é, a formação de poderes no campo, que cada vez mais se impunham, sem a necessidade de se recorrer ao poder central, isolou a dinastia no controle das grandes cidades, apoiando sua defesa na contratação de soldados mercenários. Se por um lado, durante o século XIII, o poder que governava a região do Marrocos apresentava uma serie de deficiências. No governo de Abu l-Hasam, no início do século XIV assistiu-se a retomada de antigas pretensões de hegemonia na região do Magreb. A partir da consolidação da dinastia Maríndia com a retomada da política expansionista e a anexação do reino vizinho, o reino Haféssida, sediado na capital Túnis. Mas, essa guinada na posição do reino de Fez não iria durar muito tempo, após o assassinato de Abu l-Hasam, a região entraria em um período de decadência. Sobre isso Hrbek diz, que quatro razões contribuíram para o

131ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. 1 ed. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p. 101. 132HRBEK, Ivan. “A desintegração da unidade política no Magreb”. In: NIANE, Djibril Tamsir (ed.). História Geral da África, IV: África do século XII ao XVI. Brasília: UNESCO, 2010. p. 89-116.

44 enfraquecimento da região, sendo eles, a dispersão de recursos humanos e materiais através de uma política que colocava o reino em mais de uma frente de batalha, em segundo lugar, a incapacidade do governo maríndia e outros administradores daquela região em lidar com as particularidades dos grupos diversos. Em terceiro lugar, a precária situação financeira e por fim, a falta de coesão interna, evidenciada pelos recorrentes assassinatos de sultões, bem como as fissuras entre os membros da dinastia. Sendo assim, a presença dos interesses europeus na região foi também condicionada pela instabilidade interna do próprio território, do qual se sucederam 17 sultões no curto período de 1358 a 1465. Somou-se a crise política, a decadência econômica potencializada pela queda do comércio transaariano que há muito abastecia a região do Magreb, mas que, perdeu espaço para o Egito, sobretudo, a partir de 1350. Tal conjuntura favoreceu a penetração dos interesses portugueses na região, ainda que também a presença portuguesa tenha colaborado para derrocada definitiva dos maríndias, vistos pela população como incapazes de deter as incursões dos infiéis no reino. Como dito acima, os conflitos também são feitos de intercâmbios e interferências. Contudo, se a presença portuguesa foi marcante na região, ela não foi a única, pois, como apresentou Hrbek, em 1282, Carlos de Anjou ocupou a cidade de Collo. No século seguinte as cidade de Djãrba, Kerkena e Marsã Al-Khariz foram assediadas por sicilianos e aragoneses. Posteriormente, a cidade de Al-Mahdiyya recebeu a presença de franceses e venezianos, já Kerkenna e Djárba de aragoneses. Durante o século XV, a presença de genoveses e venezianos foi constante entre Trípoli e Argel. Em 1399, os castelhanos ocuparam Tetuam. De acordo com tal panôrama é possível perceber a presença cada vez maior dos europeus no Norte da África. A atuação de corsários magrebinos, oriundos, sobretudo de Andaluzia, potencializou a ação dos europeus. Visto que, estes corsários viam também sua ação como uma espécie de guerra santa contra os cristãos que os haviam expulsado, muitos ataques cristão constituíram-se em represálias a estes assaltes. Vale ressaltar que a presença europeia ao longo do Magreb não se deu de forma homogênea, isto é, se por um lado os aragoneses133 preferiam manter uma relação amistosa com o Marrocos, a política de Castela e Portugal consistia na intervenção da região. Contudo, também essa política portuguesa se fez de forma perene de acordo com as vicissitudes de cada período. Pois, diz Hrbek, seguida da vitória em Ceuta, a derrota do Tânger marcaria uma guinada na política expansionista portuguesa, que procuraria evitar o combate direto com os muçulmanos e optaria por contornar a costa Ocidental africana, lucrando com saques e escravizações. Nisto as duas primeiras crônicas de Gomes Eanes de Zurara podem dar certo testemunho desta mudança, visto que, como são textos preocupados em contar a história vitoriosa da ocupação portuguesa em África, foi composta de dois relatos, principalmente, o primeiro encerrado na Crônica da Tomada de Ceuta, que é formado pela narrativa dos preparativos até a capitulação da cidade, mas que, se concentra em torno de somente de uma cidade, de domínio muçulmano. Já a Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné se constitui de pequenas narrativas de batalhas entre portugueses, muçulmanos ou os chamados guinéus ao longo da Costa Africana.

2.1. A importância estratégica de Ceuta.

133 Antes da formação da aliança com Castela, através do casamento de Isabel de Castela e Fernando de Aragão. 45

Sobre a conquista de Ceuta, como marco das conquistas portuguesas em África, vale citar o trabalho de Kátia Brasilino Michelan134, em seu texto a autora faz uma série de apontamento sobre a construção da tomada de Ceuta como um apanágio discursivo, operado, sobretudo, no governo de D. Afonso V (1448-1481) através da crônicas Gomes Eanes de Zurara. Para tanto, a autora utilizou-se de exemplos textuais que demonstram, em primeiro lugar, a relação que havia sido estabelecido entre os europeus, com destaque para os portugueses com a cidade magrebina, e por outro lado, a polêmica que envolvia a cidade de Ceuta e sua manutenção após os acontecimentos de 1415. Ceuta, de acordo com Michelan, estava no horizonte de ambições de certos monarcas europeus, por isso, citou o rei D. Afonso X, de Castela: “E porend' a igreja sua quita e iá, que nunca Mafamede poder haverá, ca a conquistou ela e demais conquistará Espanha e Marrocos, Ceuta e Arzila”.135 Segundo a autora o trecho evidencia que a cidade de Ceuta era cogitada por outros monarcas europeus, além do rei de Portugal. Para uma possível ocupação destacavam-se alguns motivos, eram eles, a proximidade da cidade africana com a cristandade, bem como a continuação de diversos ataques que já eram direcionadas as praças africanas, das quais as Bulas requeridas ao papado para permissão do saque e corso dão testemunha. De certo modo, a ocupação de Jerba, durante os anos de 1284 e 1335, por normandos advindos da Sícilia serviam de exemplo para os reinos cristãos, de que também poderiam avançar e controlar territórios em África. A autora também comentou o sentido que a conquista de Ceuta poderia representar para os cristãos, principalmente, aqueles advindos de reinos gerados pela reconquista. Diz a autora, valendo-se de fontes, inclusive um trecho de Zurara, contido na Crônica da Tomada de Ceuta, no qual o cronista português advoga que um dos motivos para escolha de Ceuta seria a reparação a traição impetrada pelo conde D. Júlio, que teria facilitado a entrada dos muçulmanos pela cidade de Ceuta, a época uma região cristã. A partir desta situação se teria iniciado a ocupação muçulmana e a queda do reino cristão visigodo na Península Ibérica. Tomando como base esta narrativa, a conquista da cidade seria significativa, pois, constituiria uma espécie de reparação ao que acontecera ainda no século VIII. Além do valor representativo de Ceuta, a autora ainda comentou que a cidade possuía um importante valor estratégico frente aos corsários magrebinos que atuavam na região. A captura da cidade, no entanto, não significou que existia consenso sobre o feito dos portugueses. No interior do próprio reino e, mesmo na alta nobreza, havia àqueles que eram partidários da manutenção do controle da cidade e àqueles que eram contrários à conservação da praça. Visto que, a quantidade de gastos materiais e humanos que custavam ao reino. Ao passo que também fora do reino, foram diversas as reações quanto à conquista da cidade. Michelan cita duas dessas reações, a primeira delas foi registrada em Castela, no qual o cronista deprecia o fato, apontando, o excesso de gastos que a manutenção da praça implicava, bem como salientando a debilidade do reino pra os custos do empreendimento. Em contraste com o que foi registrado em terras venezianas, do qual se descreveu a fortuna dos portugueses com louvor. Neste sentido, vale destacar que tanto castelhanos como portugueses possuíam uma percepção combativa em relação aos muçulmanos, e, que, portanto, a presença portuguesa implicava para os castelhanos certa derrota por não terem sido eles a conquistarem a cidade, ao passo, que os venezianos mais interessados em ampliar suas zonas de comércios,

134 MICHELAN, Katia Basilino. Ceuta, para além da terra dos mouros: A fabricação histórica de um marco do império português (século XV e início do XVI): Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Franca, 2013. 135 AFONSO X, o Sábio. Cantigas de Santa Maria. Editadas por Walter Mettmann. Coimbra, 1959, cantigap.169. Apud. MICHELAN, Kátia Basilino Ibid. p. 147. 46 talvez enxergassem no aparecimento de uma cidade convertida em cristã, uma possibilidade de ampliação dos negócios.

2.2. O valor simbólico da expansão.

Vale salientar, que a promoção dos empreendimentos em África, no século XV, fora conduzida pela iniciativa régia, bem como a custas de rendas de parte da aristocracia e pela convocação de auxilio através das cortes. Tal movimento expansionista também se operou, através do processo de sacralização da expansão. Isto é, mais do que necessidades materiais que suprissem o movimento expansionista, também foi necessário a formação de um apanágio simbólico que justificasse a expansão.136 Este processo de tornar sagrada a expansão em solo africano se deu de várias formas, dentre as quais, destacam-se duas. A constante produção de bulas papais que permitiam o acesso dos portugueses a determinados territórios, conquanto também as bulas papais concediam o senhorio das terras ao reino português. Com isso, se quer dizer que ainda que a monarquia portuguesa pudesse montar uma frota capaz de derrotar os muçulmanos, e depois disso, os demais africanos, todo o processo era legitimado pela Igreja. Evidenciando a importância das relações entre o poder temporal e o poder eclesiástico na condução do processo de expansão. Assim sendo, destaca-se que durante as disputas internas no reino português, a Igreja manteve-se apoiando as guerras de conquista.137 Outra importante demonstração de que a expansão marítima se revestiu da legitimação religiosa, se deu a partir da sacralização dos personagens envolvidos na experiência. As narrativas sobre os feitos portugueses mostram os personagens como heróis e os lugares e as situações como relatos bíblicos, através dos cronistas tanto leigos como religiosos, as expedições ganharam contornos de uma epopeia. O movimento expansionista se relacionou profundamente com a religiosidade presente no reino português, sobre isso, duas maneiras de interação podem ser comentadas. A primeira delas, diz respeito aos personagens envolvidos no processo da consolidação da casa de Avis, guerras africanas, navegação no ultramar e o outro de como a expansão marítima foi revestida de sentido religioso. Para tanto, o trecho do artigo de Marcelo Berriel138, levanta algumas questões: Centralizando o controle do reino, fortalecendo seus aparatos administrativos, o poder régio avisino deparou-se com obstáculos e articulou-se para superá-los. Ora limitando as outras instâncias de poder – afirmando-se em detrimento delas –, ora concedendo benefícios – conquistando aliados e calando descontentes –, o poder régio, paulatinamente, sedimentava as ideias de reino, rei e súdito. O clero, grande referência de poder, foi levado em conta nas ações dos reis portugueses. Contudo, como não é um corpo completamente homogêneo, não se pode encarar o clero português de maneira generalizada, mormente em relação ao estudo das ligações com o poder régio. Portanto, focalizamos nossos questionamentos na ordem franciscana, segmento que gozava de uma situação diferenciada no relacionamento com a família real. Quando tratou a respeito do processo de centralização monárquica em Portugal, Marcelo Berriel apontou um dos grupos sociais mais importantes na constituição deste reino, o clero. Segundo o autor, o clero não pode ser definido da mesma forma, antes existiam

136 AMARAL, Clínio de Oliveira. O culto ao infante santo e o projeto político de Avis. Tese (Doutorado) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. 137 AMARAL, Clínio de Oliveira Ibid. p. 44. 138 BERRIEL, Marcelo. “O poder espiritual e a presença franciscana nas crônicas régias portuguesas”. Revista Recôncavo, Uniabeu. 2014, v. 4, n. 7, pp. 41-65. 47 diferenças fundamentais no interior deste estamento. No texto Poder espiritual e a presença franciscana nas crônicas régias portuguesas, o autor demostra que os frades menores tiveram um papel significante no apoio a causa de Avis, pois, sendo a dinastia formada no bojo de uma crise sucessória, que levou o reino a um conflito com seu vizinho, o reino de Castela, requeriu dos súditos algum posicionamento. Na crônica de Fernão Lopes, Crônica de D. João I139, e em menor medida na Crônica de Tomada de Ceuta140, escrita por Gomes Eanes de Zurara foi possível perceber a atuação dos frades menores na luta por Avis. Tanto nos discursos proferidos por eles141, quanto em sua atuação como intermediários nas batalhas entre lusinatos e castelhianos. O destaque, no entanto, fica reservado para atuação dos franciscanos, próximos à família real, atuavam como conselheiros, confessores entre outras funções. Nas crônicas, os conventos franciscanos são lugares de encontro, de realização de cerimônias importantes. Esta ordem mendicante é represetanda como bondosa e justa, tal qual é representado D. João I, sob a perspectiva que insere as crônicas no interior da produção memorialísitca, a forma como os franciscanos são apresentados, ajudam a entender a importância deste segmento do clero na construção do poder da casa de Avis, e em especial no apoio nas expedições ultramarinas. Em contrapartida, o clero secular foi descrito pelos primerios cronistas de Avis de uma forma não muito elogiosa, muitas das vezes foram colocados na posição de traidores, aliados à Castela. Exceção as críticas, é o tratamento dado nas fontes ao Papa, embora sua autoridade seja reconhecidas em relação aos assuntos da Igreja, o governo do reino pertence ao rei D. João I. Além do apoio de parte do clero, o discurso religioso foi imprescendível para consolidação da Dinastia de Avis e da expansão marítima. Na produção do período avisino D. João I foi apresentado como escolhido de Deus e Portugal como povo eleito, sendo D. João I, o escolhido, suas vitóras eram consideradas manifestação da providência divina, e o monarca instrumento da realização dos desígnios celeste: O paradigma da imagem do rei foi sem dúvida alguma a figura de Cristo. Por essa razão, mesmo sem jamais pertencer ao segmento clerical, a imagem e o poder do rei estavam intrinsecamente vinculados ao papel de intermediário entre o mundo e as forças sobrenaturais, desempenhando uma função análoga à instituição Igreja. Em maior ou menor escala, os reis portugueses, mormente os da dinastia de Avis, fizeram tal intermediação. Arrogavam-se missões divinas, guerras sagradas, visões maravilhosas, presságios etc. Tudo para marcar suas relações privilegiadas com Deus. Esses reis religavam elementos de sua época de natureza laica ao religioso, ou até mesmo reliam e atualizavam elementos da tradição cristã142. O trecho retirado da obra de Clínio do Amaral, demosntra o papel do rei na condução da sociedade portuguesa, em fins da Idade Média, ele intermediava as relações entre os componentes da sociedade, e destes com a Igreja, obedecer ao rei tornou-se obedecer ao Papa, que por sua vez, significava servia a Deus. O serviço a Deus conformou-se em seguir as orientações régias e quando os monarcas de Avis lideravam suas esquadras em direção à África, cabia aos súditos seguí-los.

139 LOPES, Fernão. Crónica de D. João I. 2 vols. Introdução: Humberto Baquero Moreno. Lisboa: Livraria Civilização, 1994. 140 ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica da Tomada de Ceuta por El Rei D. João I. Lisboa: Academia das Sciências de Lisboa, 1915. 141 Discursos atribuídos a membros do clero pelos cronistas. 142 AMARAL, Clínio de Oliveira. A construção do discurso de santidade do Infante santo em Portugal. Os indícios da "criação" de um santo dinástico. Saarbrücken: Novas edições acadêmicas, 2016. P. 108. 48

Os avanços ultramarinos, as guerras com os mouros e com os guinéus foram também cosiderados como parte integrante do serviço de Deus, como muitas vezes as crônicas de Avis repetiram. De acordo com Amaral, na construção da imagem do Infante santo é possível verificar elementos da construção da sacralidade da missão portuguesa, a conquista de territórios: Interroga-se, então, dentro do universo da sacralidade, como um membro da família real de uma das mais prestigiadas dinastias europeias foi elevado à categoria de santo e mártir do nascente Estado português? O infante d. Fernando era leigo, príncipe, oitavo filho da inclíta geração, nascido em plena expansão portuguesa, em meio a debates políticos entre a velha nobreza ‘acastelhanada’ e os novos ‘aderentes’ao paço, um "medíocre" diante de seus brilhantes e eruditos irmãos. Porém, as guerras africanas, as lutas internas em torno do poder régio e, principalmente, a necessidade de afirmação do reino em uma Europa cismática e conturbada transformaram- no em uma relevante personagem para a compreensão dessa conjuntura. Em meio a tudo isso, nada melhor que um santo, mártir lutador da causa cristã fora da Europa. Modelo verdadeiro de fiel e súdito, esse ‘piedoso guerreiro’ converte- se em um exemplo para a cristandade agonizante143. A leitura deste trecho permite perceber aspectos importantes da sacralidade que envolveu as empresas africanas. O primeiro deles, diz respeito a possibilidade de servir que foi aberta com as guerras em África, tal como D. Fernando, que em frente aos feitos de seus irmãos poderia passar de desapercebido pela história do reino, as empresas no ultramar abrinham caminho para os homens irem a peleja, o que dento daquele contexto era encarado como positivo. Em segundo lugar, deslocava parte das tensões do reino para fora das fronteiras, assim manteria os cristãos ocupados em guerrear contra os muçulmanos, ao invés de outros cristãos. Na parte final do trecho, Amaral chama a atenção para o papel que o infante santo exerceu como representante do modelo súdito. Pois, tinha como maior ambição servir a fé cristã, tanto que morreu no cativeiro, tonando-se mártir da missão poruguesa de promover a conversão ou a morte do infiel. Na sequencia, a sua fidelidade é ressaltada, que equivale a definir a função do súdito, subordina-se aos deísgnios régios, que representava a vontade divina. Sua história foi convertida em exemplo, como também outros textos relacionados a esse primeiro período da expansão portuguesa, modelo de obediência e fidelidade que deveriam ser repetido, pelos demais súditos da coroa portuguesa.

3. As leituras dos acontecimentos narrados por Zurara.

Contudo, a força do discurso triunfal contido nas páginas, como este contido nas crônicas de Gomes Eanes de Zurara foi de tal forma recebido que se tornaram basilares para várias interpretações que a seguiram, trabalhos como de João de Barros144, do século XVI145, em seu texto sobre a história portuguesa e sua presença no continente asiático, mas, que começa elogiando o texto de Gomes Eanes de Zurara, assim diz Barros: E na aceptaçam defte trabalho e perigo a que me déspues, ante quero fertido por tam ouíado com foy o derradeiro dos trinta e tantos efcriptores que efcreveram a paffágem e expedicam que Alexandre fez em Africa, o qual temeo pouco o que delle pódían dizer tento tantos ante úy: que jmitar o defcuido de muytos , a quem efte trabalho per officio e profiffam competia.

143 AMARAL, Clínio de Oliveira. Ibid. P. 108. 144BARROS, João de. Ásia. Dos feitos portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos Mares e Terras do Oriente. Primeira década. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1932. 145 Produzido sob o governo de D. Manuel (1495-1521). 49

Pois avendo cento e vinte annos (porque de tatos trata efta efcritura) que vóffas armas e padrões de victórias tem tomado poffe, nam fómente de toda a térramarítima de Africa e Asia: mas ainda de outas mayóres mundos de que Alexándre lamentaria por nam ter notícias delles: nam ouue alguém que fe antremeteffe a fer primeiro nefte meu trabalho, fomete Gomezeanes de Zurára, chronifta mor deftes reynos em as coufas do tempo do jnfante dom Anrique (do qual nós confeffanos tomar a mayor parte de feus fundamentos, por na roubar a feu a cuio e. No cometer do qual o trabalho, vendo eu a mageftáde i grandeza da obra, nam fuy tam atrevido que logo como ifto defejey pufeffes mão a ella: ante tomey por cautélla defte cometimento, vfar do nocto que tem os archetetores146. A relação de Barros com Zurara se estende para além da introdução laudatória, mas imprimiu na sua obra os mesmos marcos de tempo e personagens que haviam sido conduzidos por Zurara no século anterior. Desta forma têm-se que o texto de João de Barros, em sua primeira parte, do capitulo primeiro ao capítulo xvj contam a história dos lusitanos rodeando a costa ocidental africana, seus escritos revelam afinidades com o texto de Zurara , sobretudo, A crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné. Pois, Barros evidencia o papel de D, Henrique no processo de expansão portuguesa, o descrevendo como o entusiasta da navegação no reino, tal qual Zurara já o havia definido ao dedicar aos seus feitos a crônica da Guiné. Também é interessante notar a repetição de nomes, que já tinham sido celebrados na crônica de Zurara, foram eles os nomes de Gileánes147, Antam Gonçálvez148 e Nuno Triftam149. Como Zurara, Barros também destinou um capítulo de sua obra para tratar do desacordo que circundava as expedições marítimas150. Assim nomeou João de Barros o capítullo iiij de sua obra: “das murmurações que o póvo do reyno fazia contra éfte descobrimento. E como auendo doze annos que nelle fe profeguia, huu Gileánes paffou o cabo Bojador tam temerófo na opinaim das gentes”151, o que prontamente é revisto no capítulo viij, onde Barros tratou sobre o louvor que os povos ofereceram ao infante, justamente por causa dos chamados descobrimentos. Neste sentido, tanto os textos de Zurara como o de Barros, sendo escritos tributários à casa de Avis trataram de enaltecer a presença portuguesa no continente africano, salientando o papel de membros da casa real, diluindo a oposição às expedições e evidenciando um improvável consenso da custosa aventura marítima. O trabalho de Manuel Faria de Souza, Europa Portugueza152, em contraste com o trabalho de Barros já apresentava algumas significativas mudanças em relação à narrativa das expedições portuguesas em África. Escrita em um contexto político diferentes das obras de Gomes Eanes de Zurara e João de Barros. Faria de Souza escreveu sob período denominando União Ibérica, como a nomenclatura sugere foi uma época de reunião dos reinos Ibéricos. A partir do casamento de Isabel de Castela e Fernão de Aragão, ainda no século XV, já se delineava as fronteiras do território que formaria a futura Espanha. Embora, Portugal continuasse a ter pretensões sob os demais reinos Ibéricos, como dá exemplo a crise

146BARROS, João de. Ibdi. p. 2 e 3. 147ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné. Paris: Casa de J. P. Aillaud, 1841. P. 36. 148ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné. Ibid. p. 70, p. 87 e p. 93. 149 ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné Ibid. p. 77 e p. 99. 150 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. 1ªLisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915 e BARROS, João de. Ásia. Dos feitos portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos Mares e Terras do Oriente. Primeira década. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1932. 151 BARROS, João de. Ásia. Ibid. 1932. p. 12. 152 SOUSA, Manuel Faria. Europa portuguesa. Tomo III. 2. ed - Lisboa: Crasbeeck de Mello, 1680. 50 derradeira do reinado de D. Afonso V, que seria uma das provas desses interesses153 imbricados dos reinos peninsulares. Foi com o desaparecimento de D. Sebastião, no ano de 1578 na batalha de Alcácer Quibir, que se mudaria os rumos da história portuguesa. Este monarca morreria sem herdeiros diretos, o reino então passou para as mãos do cardeal D. Henrique, já idoso, reinou por pouco tempo. Quando faleceu em 1580, o reino por herança familiar foi entregue a Felipe II (1556- 1598), já rei da Espanha, selando então a União dos antes diversos reinos ibéricos. Durante o período da União Ibérica, foi que escreveu Faria de Souza. Seu texto sobre Portugal, diferente dos cronistas anteriores, descreveu a história lusitana de períodos anteriores ao nascimento de Cristo, o autor tratou tantos dos primeiros povos que habitaram a região, passando pela presença romana, e, somente no Tomo 3 de sua obra, Faria de Souza escreveu sobre os acontecimento do reinos entre os anos de 1072 a 1580. Sendo assim, os eventos celebrados tanto na obra de Zurara como na de Barros, na obra de Faria aparecem apenas referenciados. Ainda que também estabeleça Ceuta como ponto de partida da expansão portuguesa, ao sabor do que fora descrito por Zurara, duzentos anos antes, de igual modo, o esforço marítimo foi creditado a D. Henrique. Contudo, no texto de Faria de Souza, a tomada de Ceuta, embora possua o mesmo sentido apresentado por Zurara, isto é, a feitura dos infantes em cavaleiros, a empresa é apresentada como um desvio das funções reais, visto que, ao final do trecho, o autor disse que, após a conquista, o monarca, D. João I, pode voltar aos assuntos de governo, dos quais fora a apartado pelos preparativos da tomada de Ceuta. Sobre os descobrimentos portugueses, Sousa faz duas referências, a primeira delas ao final do capítulo dedicado a D. Afonso V, no qual se deteve a tratar sobre os eventos relacionados à Alfarrobeira, batalha que foi vencida por D. Afonso V, contra seu tio D Pedro e sobre aos eventos relacionados à Batalha do Toro, que por sua vez, foi a derrota do quinto Afonso frente ao poder bélico castelhano. Já a segunda menção aos descobrimentos se faz ao fim do capítulo dedicado a D. João II, desaparecendo esta seção a partir do reinado de D. Manoel. Já no texto de Ignácio Barbosa de Machado dedicado a D. João V (1706-1750), sob o título Fastos Politicos e Militares da Antigua e Nova Lusitana em Que se Descrevem as Acçoens Memoraveis, Que na Paz, e na Guerra Obrarão os Portuguezes nas Quatro Partes do Mundo154, a apresentação dos descobrimentos é feita de forma diferenciada. Tal qual Faria de Souza, Machado também começou sua descrição dos acontecimentos, partindo da antiguidade, no entanto, não se deteve como o primeiro autor, dedicou apenas poucas páginas. Sobre os reinados de Avis, citou em duas seções D. João I, compreendidas nas páginas 12 e 13 na sequência de um trecho dedicado ao casamento de D. Pedro e Inês de Castro e precedendo uma subdivisão sob o título África. A respetio de D. João I, Machado focou suas palavras, sobretudo, no ano de 1399 e no conflito com Castela. O texto publicado no século XVIII, durante a dinastia de Bragança, ofereceu pouco espaço aos reis de Avis, bem como aos eventos de 1385 e 1415. Em seguida, o autor fez seu primeiro comentário sobre a África: No defcobrimento de novas terras fe adiantou o intereffe, a gloria da Coroa Portugueza. Correfpondeo a fortuna com profperos fuceeffos. Ao zelo com que feus pincipes trabalhavão e adquirir fubditos, a Chrifto, e Vaffalos

153 GOMES, Saul. D. Afonso V, o africano. 1 ed. - Lisboa: Temas e Debates. 2009. 154 MACHADO, Ignacio Barbosa. Fastos Politicos e Militares da Antigua e Nova Lusitania em Que Se Descrevem as Acções , Que na Paz, e na Guerra Obrarão os Portuguezes nas Quatro Partes do Mundo. Tomo I Lisboa: Oficina de Ugnacio Rodrigues, 1745. 51

ao feu Eftado, e deftas felicidades ultramarinas foi gloriofo inftrumento o Infante D. Henrique filho delRey D. João I.155 Neste trecho o autor relaciona as descobertas em teritórios africanos como parte integrante da glória do reino, feita a partir do empenho dos príncipes, incansáveis no intento de acrescentar fiéis a Igreja e súditos ao reino, mais uma vez, a figura de D. Henrique foi alçada ao protagonismo de processo. O autor ainda lhe fez menção ao tratar dos descobrimentos, como também, na colonização das áreas ocupadas, principalmente, nas ilhas atlânticas. Machado também deu ênfase as riquezas naturais encontradas e seu acrescentamento à glória do reino. A partir desta seção, o autor fez uma explanação sobre a América, que dedicou a tratar sobre a descoberta do Rio de Janeiro, apenas em algums páginas anteiores Machado tratou sobre a Ásia, bem como além de D. João I, o outro monarca de Avis, que recebeu uma seção do autor, foi D. João III.

3.1. Século XX e o desmonte das interpretações tradicionais.

Já no século XIX, a temática nacionalista ocupou as páginas das obras dos historiadores, como foi tratado no capítulo anterior. Se por um longo tempo, a temática nacionalista ocupou as pesquisas historiográficas, este quadro alterou-se profundamente, a partir das primeiras décadas do século XX. O texto de António Sérgio156 sintetizou parte destas mudanças, quando procurou tratar das condições sociais e econômicas que permitiram os descobrimentos. Outra importante reflexão se deu com a possibilidade de afirmação que o nacionalismo é uma construção histórica e, portanto, suscetível às transformações da passagem do tempo. Esta reflexão interessa, pois, foi a partir do descolamento da história em relação à história nacional, que os trabalhos referentes à expansão marítima puderam explorar outras explicações, para este fenômeno que interligou diversas regiões do planeta. O trabalho de Jaime Cortesão157, publicado ainda na primeira metade do século XX, embora contemple uma espécie de origem nacional a partir da Revolução de Avis, trouxe para sua reflexão, alguns outros aspectos de referências que teriam proporcionado a expansão do reino. Dentre eles, o autor descreveu o crescimento comercial de fins da Idade Média, como um fator de impulso para as conquistas. Contudo, o autor não se deteve neste aspecto, antes, salientou o caráter fortemente religioso da expansão, somado a mudança política que se operou após a emergência da dinastia de Avis, que teriam permitido, segundo o escritor, a origem do sentimento nacional. Ainda sobre o texto de Cortesão, o historiador ressaltou o papel de Ceuta, como primeiro passo para chegada ao Oriente, o que já estaria no horizonte dos portugueses, de igual modo, Cortesão apontou o papel de D. Henrique como regulador da expansão portuguesa. Na obra de Vitorino Magalhães158, o autor tentou demonstrar que o período de descobrimentos portugueses teve inicio na combinação do ideal cavaleiresco e do impulso comercial. Este ideal de cavaleiro teria possibilitado o impulso guerreiro no processo dos descobrimentos, como o próprio desenvolvimento econômico teria motivado a ampliação das áreas de comércio. Já em relação a Ceuta, Magalhães destoa de Cortesão, visto que, aquele autor não considera a cidade magrebina como um fator estratégico das conquistas

155 MACHADO, Ignacio Barbosa. Ibid. p. 13 156 SÉRGIO, António. Breve Interpretação da História de Portugal. Lisboa : Sá da Costa, 1977. 157CORTESÃO, Jaime. Os descobrimentos portugueses. v. 1. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1990. 158GODINHO, Vitorino Magalhães. Os descobrimentos e a economia mundial. v. 1. 2 ed. Lisboa: Editorial Presença, 1963. 52 portugueses, no sentido, em que as áreas mais férteis da região, do atual Marrocos seriam ao sul, não ao Norte, onde estava localizada a cidade. Luís Filipe Thomaz inicia sua obra De Ceuta a Timor 159com um interessante levantamento sobre as principais hipóteses que poderiam explicar o papel dos portugueses no processo das grandes navegações, seu trabalho foi feito de modoa evidenciar os diversos fatores que envolveram o processo de expansão marítima, bem como Thomaz salienta as críticas a estas interpretações. Portanto, valerá explicitar seus escritos para demonstrar a peculiaridade do caso português. Em relação à conquista da praça muçulmana no norte da África, Luís Filipe Thomaz também advoga que a tomada da cidade não se justificaria pelo cultivo do trigo, pois, o autor explicou que mesmo durante a administração portuguesa, o reino teria precisado exportar cereais para Ceuta. Thomaz preocupou-se em sua obra Ceuta a Timor em refletir sobre as causas da expansão a partir do século XV, o autor traz a discussão se os descobrimentos teriam sido originados por questões relacionados ao reino peninsular, ou teriam sido fruto do desenvolvimento europeu, bem como procurou debater sobre as motivações dos descobrimentos, se teriam sido originadas por uma causa determinada, ou se teriam sido resultado da convergência de diversos fatores. Thomaz advoga que o reino de Portugal foi um lugar inesperado para ganhar a importância que o estado teria no processo de expansão, pois, segundo o autor existiria um arcaísmo português frente a outras regiões da Europa, as novidades relacionadas à arte, cultura advinham do centro do continente, notadamente da França. Contudo, ao passo que Portugal se situava na fronteira do mundo europeu, e de suas realizações, o comércio e as cidades já estavam estabelecidos no reino, que muito se aproveitou do desenvolvimento comercial das cidades italianas e de Flandres, pois as cidades portuguesas se consagraram como portos importantes de passagens de mercadorias oriundas dessas regiões. Posto isso, o autor comentou a hipótese de que a expansão europeia teria sido causada pelo desenvolvimento comercial do continente, que teria se estabelecido a partir do século XII. Neste sentido, o autor faz uma ressalva, refutando a explicação que o desenvolvimento do comércio teria trazido riqueza a algumas regiões da Europa, em contraste como Portugal. Segundo essa interpretação, a fuga da pobreza teria motivado o reino à expansão para além de suas fronteiras, o que foi logo contraposto pelo autor. Visto que, o reino tornou-se ponto de passagem de mercadorias. Já para explicar o fenômeno, o autor inicia sua argumentação tratando de condições instrumentais, que foram o desenvolvimento tecnológico da região em relação aos conhecimentos náuticos, sobretudo, por causa dos estudos muçulmanos herdados à época da reconquista. Outro fato instrumental teria sido a geografia portuguesa, que permitiu o reino a ter praticamente metade do seu território voltado para o Atlântico. Diz o autor que tais fatores foram importantes, mas não motivadores do descobrimento. L. F. Thomaz ainda expôs que Portugal reuniu algumas condições prévias para expansão, ainda que não determinantes. Sendo elas, a centralização promovida pelo poder régio, a consolidação de fronteiras e a formação da consciência coletiva nacional. O autor ainda propôs que existiram dois tipos de causas para os descobrimentos, as causas formais, que foram as cruzadas, o espírito franciscano e a filosofia aristotélica. As cruzadas, disse o autor, não mais promovidas pela Republica Christiana e objetivando a reconquista de regiões antes ocupadas por cristãos, mas, motivada pela conquista de territórios muçulmanos e encabeçada por uma política de um Estado Nacional. A essas causas formais seguiram-se causas materiais, sendo elas, o crescimento demográfico e econômico, bem como a proximidade com o litoral e a atividade portuária da região, e, sobretudo, a inclinação para o

159 THOMAZ, Luis Felipe. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994. 53

Atlântico que se assumiu no reino, principalmente por causa do estreitamento das relações entre Portugal e Inglaterra, o que distanciou aquele reino de Castela. Desta forma o casamento de D. João I com D. Filipa Lencastre foi sintomático deste posicionamento político, sobretudo, após um conflito com o reino vizinho, a sequência da morte de D. Fernando, rei de Portugal. Sobre isso disse Thomaz: A política aparentemente vacilante de D. Fernando está por estudar. A tradição que remonta a Fernão Lopes e encontra eco em Camões da ênfase a “fraqueza” do rei e à sua ‘inconstância’, esquece-se com demasiada facilidade que a sua política se inscreve num conflito mais vasto, a Guerra dos Cem Anos, no qual Portugal é aliada da Inglaterra como Castela é da França. D. Fernando intervém em Castela a pedido dos vencidos de 1369 cujos apoios eram no interior as cidades marítimas e no exterior a Inglaterra; e sua intervenção tem por objectivo conduzir o reino vizinho ao campo das potências marítimas e do papa de Roma, que a Inglaterra e as repúblicas italianas sustentam contra o de Avinhão. A avidez da nobreza portuguesa desejava se apoderar de domínios em Castela parece desempenhar também um papel neste contexto, ao lado da que move as cidades portuárias de Portugal, que projectam suplantar as suas rivais do país vizinho, bloqueadas pela frota portuguesa. Parece que a política de D. Fernando representa uma tentativa fruste de conciliar a estratégia atlântica e a estratégia ibérica sujeitando a Meseta à sua obra atlântica. A ideia de uma união ibérica em proveito de Portugal regresserá em 1474-1476, com D. Afonso V, e no fim do século com D. Manuel.160 Este trecho da obra de Thomaz traz a reflexão múltiplos aspectos da conformação do contexto europeu na virada do século XIV para o século XV. Primeiramente, o autor destaca a importância do texto memorialístico, dos quais as crônicas régias são exemplares, na cristalização de determinadas interpretações dos atores sociais, no caso de Thomaz, o autor elucidou o caso de D. Fernando, mas, se poderia pensar em vários outros. Além disso, Thomaz elencou importantes fatores externos que rodeavam a política lusitana, destacou a prolongada Guerra dos Cem Anos e o alinhamento português em relação à Inglaterra, na ocasião do papado de Avinhão, o conflito entre os reinos ibéricos se aprofundou, pois o papado era reconhecido por Castela, mas, repudiado por Portugal. No embate entre as monarquias ibéricas vislumbrou-se a possibilidade de ganhos em terra a partir da conquista proporcionada pela guerra. No entanto, o tratado de paz, entre Portugal e Castela, mobilizaria os esforços guerreiros para outras fronteiras do reino. Por fim, concluiu o autor, três fatores são imprescindíveis para o entendimento do processo de expansão marítima, como também, ajudam a demonstrar o papel de Portugal nessas empresas. O primeiro deles foi a condição da nobreza, não só no reino ibérico, mas, na Europa de modo geral, pois, a sociedade medieval sofreu muitas transformações, sobretudo, a partir do século XII. Dentre estas mudanças destacou-se o aumento demográfico, que de sobremaneira afetou a aristocracia. Com o aumento de segundos e terceiros filhos, sem direitos a herança e ávidos por novas batalhas nas quais pudessem alcançar algum proveito, tornaram-se cavaleiros dispostos a engrossar as fileiras dos exércitos senhoriais. Se por um lado a crise geral do século XIV tenha feito recuar os índices demográfico, não fez retroceder outros fatores que contribuíram para o lugar tradicionalmente ocupado pela nobreza. Sendo esses fatores, o gradativo aumento de importância da burguesia e do comércio, ao passo que também crescia a burocracia estatal e a formação de uma administração de especialistas. Estas nobrezas submetidas as novas contingências, muito insistiram nas empresas marítimas, a escolha de Ceuta para o lugar da peleja, estava de acordo com Thomaz, em sintonia com os anseios da aristocracia. Outro fator para expansão foi a

160 THOMAZ, Luis Felipe. Ibid. p. 58 e 59. 54 busca pelo estabelecimento de novas rotas comerciais, bem como potencializada pela afirmação de um Estado Nacional que poderia coordenar os esforços para um empreendimento de tal porte. Charles Boxer161 propôs uma visão que englobasse diversos aspectos da realidade portuguesa, destacou a combinação de fatores religiosos, econômicos, estratégicos e políticos, como também valorizou a conquista de Ceuta frente aos acontecimentos que se seguiram, do qual faz grande louvor: Porque a característica principal da história da sociedade humana antes dos descobrimentos de portugueses e espanhóis era a dispersão e o isolamento dos vários ramos da humanidade. As sociedades humanas que floresceram e declinavam em toda a América, e em grande parte da África e do Pacífico, eram completamente desconhecidas dos que viviam na Europa e na Ásia. Os europeus ocidentais, com exceção de alguns comerciantes empreendedores, italianos e judeus, conheciam apenas vaga e fragmentariamente as grandes civilizações asiáticas e norte-africanas. Estas, por sua vez, sabiam pouco ou nada da Europa que existia ao norte dos Pirineus e da África ao sul do Sudão (com exceção da faixa de povoados suaílis ao longo da costa oriental africana), e desconheciam tudo acerca da América. Foram os pioneiros portugueses e os conquistadores castelhanos da orla ocidental da cristandade que uniram para o melhor e para o pior, os ramos enormemente diversificados da grande família humana. Foram eles, ainda que vagamente, os primeiros a tornar a humanidade consciente de sua unidade essencial.162 Se o relato de Boxer soa elogioso, sua análise sobre os descobrimentos portugueses foi conduzida de forma bastante crítica. O autor, ao contrário de Thomaz, preocupou-se menos em discutir as origens do processo, mas, principalmente, em debater os aspectos internos do reino que teriam impulsionado o desenvolvimento marítimo. Para tanto, o autor destacou, diversas problemáticas enfrentadas pela sociedade portuguesa. Dentre elas, o clima de intolerância religiosa que havia se cristalizado na Europa e na região ibérica, especificamente, para Boxer, se existiu um período de convivência religioso, esse momento no século XV, já havia se extinguido a algum tempo. Somava-se a intolerância, uma sociedade marcada pela rudeza em todas as estâncias, geograficamente, o reino era desprivilegiado não somente pelo solo, mas também, pelo regime de chuvas, que não produziam ricas colheitas. O clero, segundo o autor, também era despreparado e envolvido em uma série de desvios de comportamento. Além diss, Boxer investiu sua interpretação na evolução da presença portuguesa no ultramar, isto é, seus principais objetivos, bem como nas possibilidades ampliadas a cada novo avanço. Para Boxer, há diversos povos que protagonizaram as viagens marítimas no decorrer do tempo. No entanto, o escritor apontou que a diferença entre esses vários exemplos e a expansão ibérica nos século XV e XVI, está na fixação de portugueses e espanhóis, tanto a partir da formação de feitorias, mas também, na consolidação de uma presença mais intensiva e extensiva, destes reinos europeus. Como dito acima, Boxer demonstrou que esta expansão foi conduzida pela confluência de determinados fatores, para os quais o autor afirma terem certa preeminência de acordo como o período estudado. Para tanto, o sentido de Cruzada teria sido um fator determinante para a promoção de guerras com forte impulso religioso, não só no norte da África, como na região costeira. Além de que a paz163 que havia sido estabelecida no reino ibérico, foi mais um fator de

161BOXER, Charles. O império português 1415-1825. Tradução: Anna Olga de Barros Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 162BOXER, Charles. Ibid. p. 15 e 16. 163 Diferente dos demais reinos ibéricos, os muçulmanos já haviam sido expulsos de Portugal desde o século XIII. 55 diferenciação da Penísula, em contraste com o restante da Europa, envolta em uma série de conflitos. Desta forma, segundo o autor, a opção por estabelecer contatos comerciais com outros povos, não teria sido a primeira inclinação das expedições portuguesas. De acordo com Boxer, a conquista de Ceuta, em 1415, foi mais representativa pela permanência dos lusitanos na região, do que propriamente pela conquista. Permanência essa gerida com muitos sacrifícios, do qual o aprisionamento e morte de D. Fernando seja o exemplo mais significativo. A partir do estabelecimento em Ceuta, a informação sobre a possibilidade de chegar as áreas produtoras de ouro, teria animado a convocação de novas expedições. Diante disso, o autor estabeleceu o ano de 1419 como marco para o inicio dos descobrimentos, sendo assim, ano em que as viagens marítimas passaram a ter como objetivos o descobrimento de outras terras e outras rotas comerciais, além das tradicionalmente estabelecidas. Sobre este período de interação de interesses religiosos e possibilidade de ampliação de mercados, as bulas papais oferecidas aos portugueses, são de especial interesse. As mais importantes dentre elas foram, primeiramente, a Dum diversas, de 18 de junho de 1452, na qual o Papa concedeu ao rei de Portugal, a conquista dos infiéis e pagãos, bem como a captura de seus bens e territórios e a passagens de suas terras ao monarca ibérico. Em segundo lugar, tem-se a bula Romanus Pontifex de 8 de janeiro 1454, que descreveu toda a ação de D. Henrique, o navegador, como também seu empenho na promoção do evangelho. Sendo que neste documento, a intenção de circunavegar a África e converte as populações da Índia fica evidenciada. Por sua vez, a Igreja, deu legitimidade a quaisquer medidas adotadas pela Coroa portuguesa para estabelecer e salvaguardar o monopólio. A terceira bula foi a Inter caetera, de 13 de março de 1456, na qual o Papa reafirmou a bula Romanus Pontifex, como concedeu a Ordem de Cristo da qual D. Henrique era mestre, a jurisdição espiritual sobre as regiões conquistadas. Ao passo que as expedições portuguesas iam avançando ao longo da Costa africana, ainda que não tenha conseguido chegar a fonte produtora de ouro, alcançou o seu comércio e permitiu a entrada maciça do metal no reino. Não só do metal, mas também de uma série de outros produtos, como de escravos. Tal possibilidade de negócios teria animado os comerciantes portugueses, que se tornaram mais dispostos a enveredar no custoso avanço marítimo. A partir do governo de D. João II, segundo Boxer, a Coroa lançou-se a testa dos descobrimentos, não só o patrocinando, mas, lhes dando o objetivo, que seria alcançar o reino de Preste João, com o qual poderia estabelecer uma importante aliança de monopólio de comércio, a despeito dos muçulmanos e dos venezianos. Contudo, a medida que as expedições avançavam, a esperança de encontrar o próspero reino cristão se esvaziava, ao passo que a possibilidade de se chegar as Índias, e participar do comércio de especiairias, se delineava. D. João II morreria antes de levar a cabo este intento, no entanto, D. Manuel, seu sucessor continuaria a empreitada, de chegar a Índia, após o contorno da África, o que foi alcançado por Vasco da Gama, em 1498. Mais interessada nas circunstâncias internas do reino ibérico, sobre os descobrimentos, Fátima Regina Fernandes164 registrou que foi possível devido a uma conjuntura específica. A mudança de linhagem protagonizada pela casa de Avis possibilitou a reorganização dos poderes, o enfraquecimento da aristocracia tradicional, somada a expansão das prerrogativas régias. Neste sentido, Fernandes tratou o caso português como a conformação de um panorama de ruptura e continuidade, ruptura, pois, como já dito se dava uma reorientação das relações de poder, em contrapartida algumas continuidades permaneceram vivas no reino

164 FERNANDES, Fátima R. “A participação da nobreza na expansão ultramarina portuguesa”. In: Revista de estudos Ibero Americanos. Ed. Especial Brasil 500 anos. Porto Alegre: PUC/RS, p. 107-124. 2000. 56 peninsular, sendo uma delas o ímpeto guerreiro da nobreza. Desta forma, os combates na África seriam para autora, uma forma de amenizar as disputas senhoriais no interior das fronteiras. No texto de Joaquim V. Serrão165apontou-se três aspectos da conformação portuguesa, que tornaram possível a era dos descobrimentos, e, que ajudariam a entender o protagonismo português nestas empreitadas. De acordo com Serrão o processo de expansão marítima esteve intimamente ligado à prematura formação do caráter nacional português. Diferente dos demais territórios da Europa, ainda envolvidos com querelas senhorias, a exceção das republicas italianas, mas, que também não puderam construir um estado nacional definido, à época de consolidação desses processos de centralização no continente. Já o outro motivo alegado por Serrão foi o processo de reconquista cristã, neste sentido, deve-se compreender que nos reinos Ibéricos, o ímpeto de reconquista apresentou algumas peculiaridades. Pois, estava presente na formação do reino, isto é, as monarquias peninsulares foram geradas sob a bandeira das guerras de reconquista, ao passo que, os muçulmanos eram uma presença nas fronteiras reinóis. Diferente do que se verificava no auge das Cruzadas, que exigiam toda uma mobilização dos combates para as regiões a serem reconquistadas. Por fim, Serrão comentou que a paz com Castela teria motivado mudanças nas pretensões de Portugal, voltando-se, por isso, ao sul de suas fronteiras, ao sabor da Reconquista Meridiana166. Isto é, eram considerados territórios com direito de conquista, aqueles localizados diretamente ao sul de cada monarquia cristã. No caso de Castela, seria Granada, e no caso de Portugal, cidades ao norte da África. Além de que, como comentam Joel Serrão e A. H. de Oliveira, mesmo nos reinados da dinastia de Borgonha, predecessor de Avis, já se registravam a presença de lusitanos no ultramar, sendo, portanto, um processo de longa duração. Tanto que, a primeira disposição contra os muçulmanos em África data de 1320, ainda que essas expedições contassem com rendas eclesiásticas, isto é, não eram expedições régias. Serrão e Oliveira no volume 4 da Expansão Marítima portuguesa: a expansão quatrocentista167 apresentam um quadro geral sobre a historiografia que se debruçou sobre as causas do fenômeno da expansão. Atenta-se que o estudo dos autores apontam contextos que favoreceram a emergência do comércio marítimo, isto é, não o compreendem em uma relação simples de causa e efeito, mas, da urgência de fatores que contribuíram para eclosão do dito fenômeno. Para efeitos deste trabalho, tratou-se destes autores a partir de sua interpretação sobre o tema, ao invés da cronologia de sua escrita. Assim sendo, tem-se três áreas em que se concentram as interpretações mais comumente encontradas nos trabalhos dos historiadores, conforme apresentados no texto de Serrão e Oliveira. O primeiro deles toma o passado medieval como ponto fundamental para o entendimento da questão. De acordo com estes autores as conquistas portuguesas estavam intimamente ligadas ao ideal cavaleiresco. Nesta prática como nos diz Flori168: Ao mesmo tempo, começa a idealização da Cruzada e o ciclo épico de Godofredo de Bulhão popularizava seu herói, o cavaleiro cruzado. Em meados do século XIII, o tema dos “Novos Bravos” faculta a elaboração de uma espécie de história santa da cavalaria, que, através da Antiguidade e de

165 SERRÃO, Joaquim V. Portugal en el Mundo - un itinerário de dimensión universal. 1 ed. Madrid: Editorial Mapfre, 1992. 166 SERRÃO, Joel & MARQUES, Oliveira (dir.) Nova História da Expansão Portuguesa. v. 4 Lisboa, Editorial Estampa, 1986-98. 167SERRÃO, Joel & MARQUES, Oliveira. Ibid. 168FLORI, Jean. “Cavalaria”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. v. 1. Bauru: Edusc, 2006. p.197 e p. 198. 57

seus modelos (Heitor, Alexandre, César), liga os heróis da cavalaria cristã (Artur, Carlos Magno e Godofredo de Bulhão) aos da cavalaria bíblica (Josué, Davi e Judas Macabeu). Trata-se de uma tentativa de recuperação ideológica. Ao longo da sua história, a cavalaria não deixou de venerar valores que a Igreja oficial condenava. Esta podia, sem dúvida, aprovar a fidelidade vassálica ou monárquica, as virtudes do companheirismo, a exaltação da coragem moral e física dos guerreiros cristãos colocando a espada a serviço da pátria e da Cristandade. Portanto, o cavaleiro ideal é aquele que luta pelo justo na defesa dos mais vulneráveis, e em certos casos seriam homens de profunda devoção cristã. Como nos diz Ana Paula Megiane169 esta forma de comportamento cavaleiresco chegou à Portugal com muitas referências cristãs. Além do mais, foi revivificada pelo conflito conhecido como Reconquista que se deu na Península Ibérica, nos últimos séculos da Idade Média. Este processo se consistiu na tomada do território pertencente aos muçulmanos, por lideranças cristãs. O trabalho de Torquato de Souza170 tratou da relação entre à expansão e o combate à ameaça pirata na costa europeia, mas, pode-se se dizer que ainda tratava-se de um conflito calcado na ideia de uma luta justa. Entretanto, foi nos trabalhos de Baltasar Osório171 e de Alexandre Lobato172, que se justificou os anseios de conquistas por parte dos europeus, ainda ancorado no ideal cavaleiresco, em fins da Idade Média. Pois, sendo o cavaleiro aquele que se dedica à guerra, isto é, na divisão social europeia da época, os papeis eram definidos pelo estrato social, que reservava à nobreza a função guerreira. Que, portanto, se dedicava, então, a encontrar novas áreas, em que pudessem prestar seus serviços militares. No trabalho de Lobato, no entanto, outro aspecto da expansão tornou-se mais evidente, sendo ele, a oportunidade de angariar mais riquezas. Já no livro História de Portugal, Oliveira Martins173 falava sobre o mito de Preste João, uma região que seria localizada entre o continente africanos e asiático (dependendo da narrativa) governada por um rei cristão, que seria repleto de alimento e riquezas174. Este lugar utópico era entendido como um lugar real, que povoava o imaginário dos europeus em fins da Idade Média e os animava à aventura. Todavia, se a promessa de fartura alimentava o sonho, eram os ganhos materiais que mantinham a realidade dos empreendimentos. Neste sentido, os trabalhos de António Sérgio175 e Borges Coelho176 são exemplares de trabalhos que demonstraram os interesses comerciais presente nas conquistas. Isto é, a busca por aumentar as redes comerciais, ampliando as áreas de atuação, principalmente, integrando-se ao comércio marítimo. Como tratou Vitorino Magalhães Godinho177 ao escrever sobre a abertura ao comércio Mediterrânico

169 MEGIANE, Ana Paula Torres. O Jovem rei encantado. São Paulo: Editora Hucitec, 2003. 170SOUZA, Torquato. “Algumas observações sobre a política marroquina portuguesa”. Revista Portuguesa de História. t. 10, Coimbra, 1962, p. 509-554. 171 OSÓRIO, Baltazar. Ceuta e a Capitania de D. Pedro de Meneses (1415-1437). Lisboa: Acadêmia das Ciências de Lisboa, 1933. 172 LOBATO, Alexandre. “Ainda em torno da conquista de Ceuta”. Clio, Lisboa: Revista do centro de história da Universidade de Lisboa, v. 5, p. 21-28, 1985. 173 OLIVEIRA, J. P. Martins. História de Portugal. Tomo 1. 7 ed. - Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira Livraria Editora, 1908. 174 Sobre isso a importância dos lugares de abundância no imaginário europeu ver: DARTON, Robert. O grande massacre de gatos: e outros episódios da história cultural francesa. Tradução de Sonia Coutinho. Recisão Técnica de Ciro Flamarion Cardoso. 2 ed - Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1988 175 SÉRGIO, António. Breve Interpretação da História de Portugal. Lisboa : Sá da Costa, 1977 176 COELHO, António Borges. Raízes da Expansão Portuguesa. 5 ed - Lisboa: Editora Horizonte, 1985. 177GODINHO, Vitorino Magalhães. Os descobrimentos e a economia mundial. v. 1. 2 ed. Lisboa: Editorial Presença, 1963. 58 e Atlântico. Tal feito foi possível pelo incremento dos peninsulares na costa africana, ao menos, inicialmente. Assim sendo, as pesquisas de Jaime Cortesão178 e Joaquim Bensaúde179apontaram o caráter expansionista das conquistas, para os autores a intenção do empreendimento era chegar aos principais pontos de comércio, estabelecidos à época. De modo semelhante, advoga Adão de Fonseca180 que o estabelecimento dos europeus na costa africana estava ligado às necessidades estratégicas, de tomada de território, mas também, do controle comercial. Visto que, neste período deter postos comercias também era privilégio condicionado pela coroa. Desta forma, tanto a ocupação de território, como a prática do comércio estavam condicionados com a preeminência de algum soberano, em uma determinada área. Há, contudo, autores que demonstram que as questões internas foram de importância cabal para o processo de exploração de novas rotas comerciais, nos trabalhos de João Lúcio de Azevedo181, Mario de Albuquerque182 que tais condicionamentos sociais foram delineados. Para tais autores, o desemprego da nobreza ajudaria a explicar a saída para o mar. Isto se deu por algumas razões, tais como o crescimento numérico deste estamento, o que permitiu que muitos membros desta classe ficassem sem terras de herança. O que deveria ser o destino daqueles que pertenciam à aristocracia, tornarem-se senhores nos seus domínios. Não obstante, a essa expectativa, a realidade se impôs relegando, principalmente, aos segundos e terceiros filhos da nobreza a busca por serviços honoríficos, o que significava somar às linhas de combates de senhores de maior importância. Porém, em fins da Idade Média, na Europa algumas casas senhorias conseguiram estabelecer sua soberania à territórios maiores, formando assim reinos mais estáveis e duradouros, nos quais as querelas entre os senhores deveriam ser evitados, para saúde do reino183. Ao passo que também, os conflitos entre os reinos, seguiram-se períodos de tréguas e tratados de paz, como no caso de Portugal e Castela, em 1411. Com isso, tinha-se uma casta social, cuja formação constituía-se no aprendizado da guerra, que se tornou maior em número, mas, com menos ocasiões de acrescentamento de glórias. Essa ociosidade do segundo estado ameaçava à paz do reino, o que teria colaborado para o emprego de sua força combativa em áreas além dos domínios estabelecidos, levando assim à guerra para o exterior das fronteiras. Essa participação da nobreza também figura em interpretações de historiadores como David Lopes184, Dias Dinis185, Luiz Felipe Thomaz186. Nesta perspectiva escreveram Joel Serrão e A. H de Oliveira, sendo assim, advogam a ideia de que o processo de expansão foi uma ação ligada ao contexto da Reconquista que se verificou, sobretudo, na Península Ibérica, nos últimos séculos da Idade Média. Desta forma, como a Reconquista, dizem os autores, foi um processo político e religioso, indissociavelmente. Isto é, à medida que se tratava de conquistas, ações militares, também

178CORTESÃO, Jaime. Os descobrimentos portugueses. v. 1. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1990. 179 BENSAÚDE, Joaquim. A cruzada do Infante D. Henrique. Lisboa: Agência Geral das colónias, 1942. 180 FONSECA, Adão. “Uma carta do condestável D. Pedro sobre a política marroquina de D. Afonso V”. Revista da Faculdade de Letras, Porto: I série, v. 1, 1970. p. 83-96. 181AZEVEDO, João Lúcio de. Épocas de Portugal Econômico. Esboços de História. Lisboa: Liv. Clássica, 1947. 182ALBUQUERQUE, Mario de. O significado das navegações e outros ensaios. Lisboa: Sociedade Nacional de Tipografia, 1930. 183KANTOROWICZ, Ernst H. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. Tradução: Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 184 LOPES, David. A expansão em Marrocos. Lisboa: Teorema o Jornal, 1989. 185 DINIS, Dias. “Os antecedentes da expansão ultramarina portuguesa. Os diplomas pontifícios dos séculos XII a XV”. Revista Portuguesa de História, Coimbra: v. X, p. 1-118, 1962. 186 THOMAZ, Luis Felipe. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994. 59 estavam atrelados a uma determinada conformação de fé, que implicava a militância através da guerra. Serrão e Oliveira elencaram os principais objetivos em torno do processo de expansão, sendo eles, fundamentalmente, a conquista. Mas, essa conquista atrelada ao espírito das Cruzadas, isto é, como um serviço de fé, forma de alcançar a expiação dos pecados e ofício ligada à vontade divina. Essas áreas ocupadas, deveriam ser tomadas e desenvolvidas, sobre a referência dos reinos cristãos, de fato, não tratava-se unicamente de saques às cidades. Pois, sendo parte de um ideal religioso, triunfar a fé era tão importante quanto o ganho militar. Além disso, escreveram Serrão e Oliveira que a conquista produziu, não só o aumento do domínio, mas também, o incremento da honra. Em um período em que o prestígio social estava intrínseco ao domínio de terras, a possibilidade de expandir seus poderes implicava na ida aos lugares em que os combates aconteciam. Ir à guerra, neste sentido, significava a possibilidade de aumento de terras e, portanto, de honra e prestígio. No caso do reino de Portugal, este prestígio era de sobremodo urgente, visto, a fragilidade da independência do reino, que continuaria enfrentando reveses em relação à sua soberania, sobretudo, em relação ao reino de Castela. Ao passo que os autores afirmam o caráter cruzadístico do processo de expansão, acentuando seu matiz religioso, também apontam o papel político desempenhado pelas autoridades eclesiásticas no âmbito do esforço de guerra. Principalmente, no início do processo de ocupação de territórios para além da cristandade europeia. Segundo os autores, já no ano de 1320, o Papa elaborou a primeira disposição contrária aos muçulmanos de África, como também apontam que ainda nos século XIII, as expedições eram mantidas por rendas eclesiásticas e encabeçadas sob as diretrizes do papado. A partir disso, pode-se refletir sobre os textos produzidos á época dos Avis, que deslocaram o protagonismo das ações no Ultramar para casa reinante. A respeito disso, é possível afirmar que durante o século XV, a iniciativa de conquista foi encarnada por membros da família avisina, mas, atenta-se que o processo de ocupação de terras africanas lhes precedeu, não só como uma iniciativa papal, antes de ser um empreendimento régio, mas também, como uma obra dinástica, visto que, D. Fernando da casa de Borgonha já havia empreendido pela presença portuguesa em Àfrica, no ano de 1370. Outro aspecto da conquista que foi levantado por Serrão e Oliveira foi a possibilidade de ganhos materiais engendrados pelas conquistas ultramarinas. Embora, nas crônicas de Zurara tal aspecto seja presente, em algumas passagens, principalmente, nos capítulos da Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné. Essa feição foi apresentada marginalmente nos textos, em contraste com a eloquência ao tratamento dado às conquistas como um serviço a Deus e forma de acrescentamento da honra. Os autores apontam que já nos século XIV e XV, as possibilidades de ganho já estavam claras para o reino, principalmente, com a entrada no comércio de escravos, o que foi apenas sugerido no texto de Zurara187: E assy que onde ante vyvyam em perdiçom das almas e dos corpos, viinham de todo receber o contrario, das almas , em quanto eram pagaãos, sem claridade e sem lume as sancta fe; e dos corpos, por vivrem assy como bestas, sem alg~ua ordenança de criaturas rezoavees, ca elles non sabyam que era pam nem vinho, nem cobertura de pano, nem allojamento de casa, e o que peor era, a grande inorancia que em elles avya, pella qual nom avyam alg~um conhecimento de bem soomente viver em h~ua occiosidade bestial Em contraste com a dita ociosidade, no reino, esses homens e mulheres seriam forçados a uma série de trabalhos.

187ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de guine. Paris: Casa de J. P. Aillaud, 1841. p.185 60

Embora, os autores também tratem da participação do elemento estrangeiro nos empreendimentos em África, o consideram no reinado de D. João II, sucessor de D. Afonso V, como rei de Portugal. No entanto, nas crônicas de Zurara, o incremento estrangeiro aparece sugerido no texto a partir do contato com a Sé, com os reinos vizinhos de Castela e Aragão e mesmo com a participação de estrangeiros nas expedições enviadas a África por D. Henrique. Vale ainda ressaltar o trabalho de John K. Thorton, Os portugueses em Àfrica188, contido na obra coletiva A Expansão Marítima Portuguesa, 1400-1800. Esta obra mais preocupada com a evolução diacrônica do império português do que esmiuçar os fatores que combinados teriam fomentado o alargamento das fronteiras lusitanas. Mas que, trouxe interessantes reflexões sobre o caráter relacional inerente a todo processo de conflito, posto que também se constitua em um encontro. Assim sendo, diz o autor a presença dos portugueses em África, tinha por objetivo promover a guerra contra os muçulmanos, bem como explorar os mares. Isto se dava, uma vez que, segundo Thorton existiriam três alvos na perspectiva lusitana, a chegada ao reino de Preste João, que de acordo com a tradição seria uma próspera área cristã, no qual se poderiam estabelecer relações comerciais, escapando dos seguidores da fé de Maomé. Outra motivação seria a participação no comércio de escravos, que já seria de conhecimento dos europeus, como também, alcançar as rotas de ouro do Sudão, tal como fora dito por L. F. Thomaz quando afirmou que Gênova objetivava chegar ao ouro sudanês, a partir de suas incursões marítimas. Thorton relativizou o papel de marco expansionista da cidade de Ceuta189, antes, diz que a importância da cidade deveu-se mais por causa da possibilidade de transferência das guerras da península para outra região, visto que, a tomada não foi definitiva e, portanto, não teria sido o passo inicial de uma caminhada rumo à hegemonia portuguesa. Para tanto, o autor demonstrou que a conquista se manteve de uma maneira frágil, ao passo que as forças muçulmanas não se deram por vencidas, reagindo em diversas ocasiões, dentre elas, destacam-se, os episódios de Agadir em 1541 e em Alcácer Quibir, em 1578. De acordo com Thorton, as pretensões portuguesas e mesmo europeias inicialmente eram bem modestas, perto do que se operou posteriormente. Pois, segundo o autor o que se objetivava era a exploração do Mar Pequeno¸ porção do Atlântico contínuo ao território português. Para Thorton esse esforço antes de ser exclusivamente peninsular era um esforço, notadamente, italiano, tanto que a primeira participação de Portugal neste tipo de empreendimento marítimo foi com o patrocínio de uma expedição italiana em 1341, liderada por Lanzarolto Malocello. Já e, 1346, foram os catalães liderados por Jaume Feerr que se ocuparam de explorar a região. Se em fins do século XIV já se podia verificar a presença europeia na região do Mar pequeno, verificou-se uma importante virada nesta configuração a partir da primeira metade do século XV. Neste sentido, as expedições portuguesas tiveram grande importância, com os esforços contínuos de D. Henrique no patrocínio destas incursões. De acordo com Thorton, a expedição de Gil Eanes de 1434 e a ultrapassagem do Cabo do Bojador, só teriam sido possíveis pela descoberta da pequena roda, um conjunto de correntes que ligam a costa africana, ilhas atlânticas e o continente europeu. A descoberta destas correntes instrumentalizaram os próximos passos da expansão, ao passo que tal conhecimento só foi possível devido as contínuas expedições. Outro ponto de inflexão sugerido por Thorton foi a incursão liderada por , em 1456, que segundo ele pôde negociar a paz com as potências da Costa Africana, interessante notar que isto se deu no governo de D. Afonso V,

188THORTON, John K. “Os portugueses em África”. In: BETHENCOURT, Francisco e CURTO, Diego Ramada. A expansão marítima portuguesa, 1400-1800. Tradução: Miguel Maia. Lisboa: Edições 70, 2010. 189 Bispado de Ceuta data de 1290, THORTON, John K. Ibid. p. 145. 61 período que fora retratado como de revivência do ideal senhorialistas e, por isso, da profusão de guerras, a despeito dos interesses comercais que poderiam ter sido estabelecidos. O caso de Diogo Gomes é ilustrativo da complexidade do processo, e de como as resoluções são tomadas ao sabor das novas contingências, mais do que um projeto estabelecido e inexorável. Já no ano de 1462 deu-se o acesso aos rios do Senegal e de Gâmbia, aprofundando as relações entre os reinóis e os africanos. Embora, John K Thorton esmiúce as relações entre os portugueses e africanos, para fins deste trabalho, um último tópico comentado pelo autor mereceu destaque. Para Thorton, há três formas de exploração no século XV advindas de Portugal, no início a figura de D. Henrique foi chave no patrocínio das incursões ao Mar Pequeno. A partir da expansão voltada para o Atlântico verificou-se o aumento da participação da pequena nobreza, possivelmente interessada em conquistar proveito e honra na aventura do além- mar, contudo, se verificava a participação de mercadores, provavelmente animados com as novas possibilidades de negócios. Contudo, a partir da década de 1470, a coroa passou a monopolizar as regiões já alcançadas, controlando assim, os negócios e as expedições, o que de acordo com Thorton proporcionou uma bifurcação dos esforços, enquanto a Coroa se ocupava das regiões já estabelecidas, que os grupos de mercadores passaram a explorar o golfo da Guiné. Por fim diz Thorton que em fins do século XV, a Coroa definiu seu papel como promotora de incursões de exploração relegando ao segundo plano a questão da luta contra o Islã. 4- A cada novo avanço, novas possibilidades eram abertas na Expansão Marítima. Sendo assim, a partir do que foi apresentado pelos autores pode-se perceber que toda ação de aproximação de Portugal, com as terras de África, e posteriormente Ásia e mesmo a América, foi conduzida por interesses específicos. Neste sentido, não poderia ser considerado um movimento espontâneo, provocado por um ímpeto inato da nação portuguesa. Antes, foi gerido com objetivos, que se por uma lado poderia ser dito que tais aspirações eram relativamente modestas nos primórdios do século XV, quando a expectativa era o avanço no controle de territórios, ainda no sentido das Cruzadas, isto é, na ocupação de terras muçulmanas. Por outro, essas perspectivas foram se alargando, à medida que os descobrimentos tornaram-se realidades tangíveis, desta forma, a cada novo avanço levado a cabo, mais se alargava as expectativas de controlar rotas, comércio e território. Com relação à tomada da cidade de Ceuta no ano de 1415, é preciso entendê-la como um marco discursivamente construído, no sentido, que foi promovido, principalmente, a partir do texto escrito por Gomes Eanes de Zurara, na segunda metade do século XV. Neste sentido, mais do que um fim, a conquista e permanência na cidade magrebina fomentou o debate a cerca do tema em Portugal, combater em África, comercializar com aqueles povos. Desta forma, foi colocado como marco, retrospectivamente, à época do governo de D. Afonso V, monarca que optou pela permanência do estado de guerra com os infiéis. Diante disso, os eventos de Ceuta ajudavam a legitimar as investidas, bem como glorificar a casa reinante, a dinastia de Avis. Por fim, parte dos autores dedicou atenção à ação de D. Henrique, duque de Viseu, no processo de combate, bem como de colonização de terras do ultramar. Sua importância não deveria ser menosprezada, mas, também há de se ter em mente que sua figura foi de sobremodo exaltada, nas crônicas produzidas Zurara. Mas, mais do que um gênio individual, o personagem D. Henrique deve ser encarado como representativo de certa demanda social, notadamente, que precisava se recolocar nesta nova sociedade, que ia se constituindo em fins da Idade Média. Vale estudar suas ações e posições, à medida que colaboram no entendimento de quais relações de poder se estabeleceram, que permitiu que a escolha pela expansão tivesse se tornado um ato político, acolhido pelo poder monárquico.

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CAPITULO III Reflexões sobre as interações entre história e poder: a escrita da história e os acontecimentos políticos em torno da ascensão de D. Afonso V ao trono português.

Embora Zurara não fosse oriundo do estamento da nobreza, mas, de qualquer forma fosse envolvido em suas relações, bem como por ter ocupado um lugar nas relaçãoes de compromisso baseados no serviço e agradecimento. Dos quais as benesses que recebeu do monarca, a partir e enquanto cronista-mor do reino deram testemunho deste entroncamento de interesses. Através do estudo de suas crônicas é possível percebê-lo como uma espécie de porta- voz de vários dos anseios aristocráticos, não que se quer dizer com isso, que os nobres eram uníssonos, mas, que a parcela governativa a época de D. Afonso V conseguiu imprimir através do texto de Zurara suas impressões sobre o seu papel na expansão africana.

1. Estamento, honra e relações de poder.

O termo dominação aqui tratado será feito como proposto por Max Weber, portanto, entende-se por dominação, quando alguém ou determinada categorias de pessoas consegue impor sua vontade aos demais setores da sociedade. Quando este processo se efetua com maior eficiência, toda a sociedade passa a cooperar com os fins deste grupo que manifesta a dominação, como se fosse um interresse comum.

Vale ressaltar que a referência a obra de Max Weber foi feita, pois, seu trabalho trouxe pertinentes reflexões teóricas sobre as formas de dominação e a relação entre os grupos sociais. Tal reflexão foi acionada para melhor conduzir o estudo sobre o papel da honra nas sociedades estamentais. Há, contudo, de salientar que Weber escreveu na transição do século XIX para o XX e seu trabalho foi anterior a significativas transformações na maneira de interpretar o período medieval., principalmente, relacionada às especificidades da Península Ibérica. Portanto, o uso da sua obra exige cuidados e atenção e quando necessária refutação, à luz das análises historiográficas.

A partir deste primeiro ensejo, alguns outros aspectos do trabalho de Weber serão importantes para o desenvlvimento deste capítulo. Sendo assim:

Todas as áreas da ação social, sem exceção, mostram-se profundamente influenciadas por complexos de dominação. Num número extraordinariamente grande de casos, a dominação e a forma como ela é exercida são o que fazem nascer, de uma ação social amorfa, uma relação associativa racional, e noutros casos, em que não ocorre isto, são, não obstante, a estrutura da dominação e seu desenvolvimento que moldam a ação social e, sobretudo, constituem o primeiro impulso, a determinar, inequivocamente, sua orientação para um ‘objetivo’.190

Este trecho da obra de Max Weber é bastate pertinente para pensar as relações de poder em Portugal, com a expansão marítima. Segundo Weber, a dominação é vista à medida que ela fomenta práticas, que são incorporadas no meio social, como se fossem um desejo de todos, não do grupo que o domina. Com isso, Weber informa sobre a relação intrínseca entre a

190 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v. 2. Tradução de Régis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Ver. Técnica de Gabriel Cohn. [s. n.]. Editora Unb. Impressão oficial. São Paulo, 2004. p. 187. 63 dominação e a ação social, sendo a ação entendida como manifestação que pode ser verificada nas práticas dos agrumentos de uma determinada sociedade. O caso de Portugal, pode ser visto dessa forma, a medida que os grupos aristocráticos191 desempenharam um papel decisivo na governança do reino e direcionaram a sociedade portuguesa a viabilizar o processo, através do aprimoramento dos conhecimento técnico e instrumental para navegação, no financiamenro das embarcações e das guerras por vezes requerido nas cortes.192

Com o estudo da história é possível perceber que as relações humanas, em meio a diferentes sociedades se dão de forma bastante complexa, e, neste sentido, é cabível dizer que mesmo no interior de um determinado grupo social, no caso do nosso estudo da aristocracia portuguesa, do século XV, existiam fiscuras e dissidências. Desta forma, no interior deste recorte social vislumbrou-se a concorrência de interesses e com a importância de sua posição frente aos demais grupos sociais, a posssibilidade de que suas intenções completem-se em ações. Ou até mesmo o primeiro impulso para determinadas ações, pois, a própria ação poderá implicar uma nova configuração nas formas de dominação.

Para o estudo do processo de expansão marítima, em fins da Idade Média, vê-se em Portugal, a inquientação no interior dos estamentos sociais mais elevados, estavam em disputa maneiras de conduzir a ação reinol calcadas nas intenções próprias dos grupos em desconcerto. Assim sendo, o impulso para condução da expansão e dos descobrimentos marítimos esteve intimamente ligado a uma forma de gerir a sociedade e a partir da imposição de um modelo de governo em desalinho aos demais. Partidários de um determinado plano se impuseram aos demais e implicaram a ação social das navegações.

Para tanto, poderia se refletir sobre os interesses que mobilizam os atores sociais envolvidos no impulso pelas viagens por mar, sobre isso Weber traz outro aspecto importante para este estudo, a partir do trecho abaixo:

Como ocorre nas outras formas de poder, também e em especial na dominação, seus detentores não pretendem, exclusivamente e nem mesmo em regra, perseguir, apoiados nela, interesses puramente econômicos, como conseguir para si um farto abastecimento de bens econômicos.193

Conforme apresentado pelo autor os interesses daqueles que exercem a dominação, neste caso, aqueles que poderiam interfeir nos destinos do reino português, poderiam estar calcado em uma série de fins, que não necessáriamente seriam exclusivamente econômicos. Sendo assim considerar, por exemplo, que o impulso da expansão marítima estaria, inevitavelmtente, ligado a setores da sociedade que objetivavam o lucro pelo comércio, seria um equívoco. Visto que, como dito por Weber, os interesses econômicos não são suficiente para explicar a ação social em diversos casos. Pode-se ainda acrescentar a esta reflexão, que o interesse econômico pode estar posto no interior de outras demandas.

Com isso, é interessante notar que o proveito a partir da conquista de cidades, saques e outras intervenções no âmbito da expansão marítima portuguesa, revelam ganhos materiais. Mas, a captura de bens não era o suficiente para mobilizar os esforços que conduziram às

191 Defensores da expansão no continente africano. 192 MORENO, Humberto Baquero. A Batalha de Alfarrobeira: Antecedentes e Significado Histórico. 2 ed. - Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1979. 2 vols. 193WEBER, Max. Ibid. p. 187. 64 navegações inicialmente. Pois, como dito, a própria ação social, pode mobilizar a dominação para Weber. Sendo assim, os primeiros impulsos para as conquistas em África dão conta de explicar somente os momentos inciais, mas, com o passar do tempo, o sentido para a manutenção dos descobrimentos, ocupação ou não de outras regiões do mundo, iriam condizer com as relações de poder determinadas a cada época, e como cada grupo social, coseguiu estabelecer seus projetos como ações de governo.

Sendo assim, é preciso retornar a análise de Weber em relação ao funcionamento de sociedades feudais, tal como o autor nomeia em seu estudo a organização social da Idade Média Ocidental194. De acordo com o autor neste período, as relações eram estabelecidas por laços de fidelidade, alicerçadas em três pilares, o primeiro deles é a formulação de um contrato, escrito ou não, o segundo é a conformação de relações de piedade da comunidade doméstica, para tanto, o estabelecimento de direitos e deveres e o estabelecimento de uma relação carismática ente senhores e vassalos.

Segundo Weber, relação carismática é aquela calcada em uma aliança pessoal, desta forma, o vassalo ligaria-se ao senhor, por entender que nele estão às possibilidades de dispensação de graças. Nos texto de Gomes Eanes de Zurara, mas, sobretudo na Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné este tema das relações entre senhor e vassalo é recorrente, reforçando esta associação de que a partir da benevolência do senhor que são alcançados méritos. A benevolência do senhor é considerada superior ao mérito do vassalo.

Tais arranjos sociais se operavam em regiões ou épocas de econômias não monetária. Isto é, os serviços militares eram recompensados ou, melhor agraciados pela concessão de terras, mormente, embora, existissem outras formas de recompensar os guerreiros, como a concessão de monopólios, rendas da terra e etc. Para tanto, é interessante perceber que a partir da entrada de metais preciosos no reino portugês, sobrtudo, devido ao avanço dos descobrimentos em África, a relação com os empreendimentos marítimos ganharam novos delinemantos, não só com o incremento dos comerciantes, mas também, em uma postura mais ativa da monarquia em relação ao controle das praças.

Desta forma, se contituía um laço entre o guerreiro, através do serviço militar e o suserano, que se tornava, portanto, o senhor pessoal:

Tanto o sentimento de honra do guerreiro quanto a fidelidade do servidor entraram numa união inseparável com o nobre sentimento de dignidade de uma camada senhorial e com suas convenções, existindo entre eles firmes vínculos internos e externos.195

Com isso, vê-se que a formação de tais vículos implicava uma série de compromissos que sustentavam a manutenção do estamento, bem como sua diferenciação do restante da sociedade e a legitimidade do mando. Para tanto, o modo de vida aristocrático demandava a formação de laços de fidelidade e a ocupação das armas, que era o único meio de vida digno

194 Sem perder de vista, que o uso do termo feudal tem suas limitações, sobretudo, porque tenta englobar as complexas formações sociais verificadas na Europa, durante o período medieval, da mesma forma deve ser aplicado com cautela para o estudo de outras formações sociais diferentes no tempo e no espaço. 195WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v. 2. Tradução de Régis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Ver. Técnica de Gabriel Cohn. [s. n.]. Editora Unb. Impressão oficial. São Paulo, 2004. p. 295. 65 para o estamento. As atividades para além da guerra eram consideradas indignas e não deveriam ser realizadas por este grupo social.

Sobre esta conforação estamental, diz o autor:

Mas a seleção pessoal está muito longe de ser o caminho único ou principal da formação de estamentos: os vínculos políticos ou a situação de classe foram, desde sempre, pelo menos igualmente decisivos, e hoje a importância da última é amplamente decisiva, pois, de forma natural, a possibilidade de uma condução da vida "estamentalmente" adequada costuma estar condicionada, entre outras coisas, por fatores económicos. Praticamente considerada, a diferenciação estamental coincide, por toda parte, com uma monopolização de bens ou oportunidades ideais e materiais, na forma que já conhecemos como típica. Ao lado da honra estamental específica, que sempre se baseia em distância e exclusividade, e ao lado de vantagens honoríficas - como o privilégio de usar determinados trajes, de comer determinados alimentos proibidos aos outros por um tabu, o privilégio de usar armas (que tem conseqüências bastante sensíveis), o direito de praticar determinadas artes, não comoprofissional, mas como diletante (por exemplo, de tocar determinados instrumentos musicais) - existem monopólios materiais de todas as espécies. Precisamente estes contribuem, por sua natureza, com os motivos mais eficazes para a exclusividade estamental, ainda que raramente sejam sua fonte única. Para o conúbio estamental, existe ao lado do monopólio sobre a mão das filhas do círculo em questão e com importância pelo menos igualo interesse da família na monopolização dos pretendentes potenciais pertencentes a este círculo, para garantir o sustento destas mesmas filhas. As possibilidades convencionais de preferência para determinados cargos, ao intensificar-se o isolamento estamental, culminam num monopólio legal sobre determinados cargos por parte de determinados grupos estamentalmente delimitados. Determinados bens - de forma típica, por toda parte, as "terras feudais", como também freqüentemente a posse de servos ou outros dependentes e, por fim, determinados ramos de ofícios - transformam-se em objetos da monopolização estamental. E isto tanto em sentido positivo, que somenteo estamento em questão pode possuí-los e exercê-los, quanto em sentido negativo, que este, para conservar seu modo de viver específico, não pode possuí-los nem exercê-los, pois o papel decisivo da "condução da vida" para a "honra" estamental faz dos "estarnentos" os portadores específicos de todas as "convenções": toda "estilização" da vida, quaisquer que sejam suas manifes-tações, é de origem estamental, ou pelo menos, é estamentalmente conservada. Apesar das grandes diferenças, os princípios das convenções estamentais apre-sentam, particularmente nas camadas mais privilegiadas, certos traços típicos. Demodo geral, existe nos grupos estamentalmente privilegiados uma desqualificação estamental do trabalho físico (...).

A honra estamental, especificamente, se dava ao lado das vantagens honorificas, que consistia no monopólio do uso de determinada vestimenta, o uso de armas, o pertencimento ao núcleo das consideradas melhores famílias, que poderiam casar seus filhos. Bem como a preferência de nomeação aos principais cargos administrativos e na distribuição da terra feudal, como foi denominado pelo autor. Sendo assim, de acordo com este modo de vida, as possibilidades de incremento de honra, passavam pela atividade guerreira e, neste sentido, a expansão do século XV deve ser articulada nesta perspectiva, de acréscimo de honra estamental a partir dos serviços prestados além mar. Como também, a ação dos 66

descobrimentos foi operacioalizada a partir de certa configuração de poder, que possibilitaram que tais eventos se desenronlassem quando e como aconteceram.

2. O segundo estado

George Duby em sua obra As três ordens e o imaginário do Feudalismo196 discorreu sobre alguns aspetos da formulção do ideário estabelecido para sociedade medieval, neste sentido, o ideal de uma sociedade tripartida. Segundo o autor, o imaginário das ordens estava interligado as noções de segurança, harmonia e racionalidade. Sendo assim, aqueles que não estivessem arrolados em um estamento eram considerados desvios. Como também, esteve ligado a formação de uma discipliana calcada na desiguladade dos atores sociais, a ordem é, portanto, o fundamento da sacralização da opressão: “Para que os inferiores testemunharem respeito aos superiores e sempre os superiores gratificassem com amor os inferiores.”197

Este príncipio de ordem, segundo Duby era a reflexão do modelo celeste também baseados em hierarquias. A ordem, por conseguinte, seria necessária para se alcançar a paz. Para tanto, mas, do que um estado, as ordens estavam envoltas em ações. O clero deveria interceder pelos cristãos perante Deus, função dita como mais importante e, como apresentado por Duby, um discruso, notadamente, gerado por bispos, sobretudo, em momentos de questionamento do poder dos eclesiásticos. O camponês, o terceiro estado deveria travbalhar na terra, produizir a subsistência dos demais estamentos. Já para o segundo estado ficava reservado, outra função a guerra.

Da nobreza se recrutava os chefes da guerra, eram eles responsáveis pela segurança dos demais estamentos, o que na prática significava o controle dos armamentos e das táticas de guerra, usados, principalmente, para satisfação dos interesses dos próprios senhores da guerra.

A ideologia da nobreza era revestida de três sentidos, o da mutualidade, isto é, a convergência de interesses, o que promoveria a união e o afastamento de determinados membros da nobreza, de acordo como os objetivos em jogo. Mas, que também significava a conformação de uma imbricada relação de alianças. Assim sendo, a reciprocidade deveria ser respeitada, o que quer dizer, que a ajuda, o auxílio, o socorro precisariam ser recompensado. Os interesses careciam de se adequar as relações estabelecidas, o contrário seria entendido como traição, o que era prontamente respondido. Neste sentido, tanto o serviço gerava a necessidade de reconhecimento, como os atos de afronta eram combatidos com firmeza, mesmo que isso significasse ir a guerra.

Estas relações eram, sobretudo, ancoradas na hierarquia, o serviço prestado sempre se dirigia a um nobre de dignidade superior, que por sua vez, lhe reconhecia o ato. O que era visto como uma demostração do amor fraternal dos senhores para com os seus vassalos. Mas, que fundamentava um sistema de manutenção das desigualdades.

196DUBY, Georges. As três ordens ou o Imaginário do Feudalismo. 2 ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. 197DUBY, Georges. Ibid. p. 10. 67

Os trabalhos de José Mattoso198 e Renata Cristina de Souza Nascimento199 apresentam um panorama de como estava organizada a aristocracia portuguesa, no período tratado por Mattoso, como monarquia feudal. Segundo os autores para ser nobre era preciso a união de três condições. A primeira delas era o sangre, isto é, o pertencimento e a comprovação de pertencimento a descendência de certas famílias. O segundo era a distinção de armas, a função guerreira concedia aos aristocratas o privilégio de portar armas. De igual modo, neste estamento, a educação das novas gerações consistia no aprendizado para guerra, o que também ajudava a distingui-los dos demais setores da popoluação, que não recebia nenhum tipo de treinamento. O terceiro aspecto comentado era o exercício do poder. Vale salientar que para ser nobre, mas, do que a nomenclatura era necessário viver de modo aristocrático e, para tanto, era necessário o controle de terras e de seus produtos, bem como o domínio do trabalho de terceiros.

As Ordenações Afonsinas, de 1448, estabeleciam que os nobres eram os defensores. Estavam divididos em quatro instâncias, rico-homem, infanção, cavaleiros e escudeiros. A primeira catergoria de rico-homem, no qual estavam arrolados os principais personagens tratatados neste trabalho. Estes eram a categoria de maior nobreza, no sentido, de serem aqueles que concentravam os maiores poderes. Em números, diz Renata Nascimento, que correspondiam a 10% da aristocracia. A eles estavam disponíveis os cargos administrativos e militares, possuíam por privilégio o poder de jurisdição sobre os domínios, bem como eram isentos de impostos.

Cada rico-homem possuía, em média, dez vasalos, o título de duque, maior gradação da nobreza, foi criado no governo de D. João I e oferecido aos seus filhos, D. Pedro, Duque de Coimbra e D. Henrique, Duque de Viseu. Já os títulos de marquês, barão e visconde foram criados no tempo de D. Afonso V.

Renata Nascimento disse pouco sobre o termo infação, o considerou um tanto quanto confuso. Segundo a autora esta nomenclatura pertencia a aristocracia mais antiga e ruralizada.

Já o termo cavaleiro designava a média nobreza e estava segundo a autora em franco crescimento no século XV. Isso teria sido causado por três motivos, o primeiro deles seria a expansão para o Norte da Àfrica, que ofereceu uma série de oprtunidades de prestação de serviços, e, em contrapartida, o agradecimento em forma de feitura de cavaleiros. O segundo seria o enriquecimento de alguns, através do comércio, o que possibilitou a compra de títulos. O último motivo foi a burocratização do Estado, que permitiu que outro serviços fossem prestados, principalmente, a Coroa, em formas diferentes da tradicional, que eram os feitos militares. Os escudeiros formavam a pequena nobreza, o estrato mais baixo da aristocracia.

3. D. Afonso V: menoridade, regência, reinado e batalha de Alfarrobeira.

3.1. A morte de D. Duarte e as animosidades entre os regentes. D. Afonso V, foi o terceiro rei da dinastia de Avis, décimo segundo monarca português e governou o reino entre os anos de 1448 a 1481. Embora tenha sido aclamado rei

198MATTOSO, José. História de Portugal- A Monarquia Feudal 1096-14800. v. 2.. Lisboa: Editora Estampa, 1997. 199 NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa. “Um perfil de fidalguia: Elementos para o estudo da estrutura nobiliárquica portuguesa no século XV”. Notandum, IJI-Universidade do Porto: 32, p. 125- 149, maio- ago, 2013. 68 no ano de 1438, somente assumiu plenamente os deveres do trono em 1448, aos 16 anos200. A emergência ao poder de D. Afonso V foi acompanhada por uma série de tensões políticas que se originaram na morte de seu pai, D. Duarte. Quando este legou em seu testamento o mando do reino para sua esposa D. Leonor, posteriormente, denominada triste rainha201, vale ressaltar que, sob sua guarda também estaria a educação do herdeiro do trono. Com a morte prematura de D. Duarte deu-se a urgência em preparar o caminho do novo rei. D Leonor que acompanhava o marido, após seu falecimento, convocou os cunhados para poder dar prosseguimento aos processos de entronização do novo monarca. Após a leitura do testamento realizada em Tomar deu-se o começo da disputa entre os partidários de D. Leonor e D. Pedro, duque de Coimbra e irmão do falecido rei. D. Leonor contava com o apoio da nobreza principal do reino, como o conde de Barcelos, que de acordo com Humberto Baquero Moreno202, ambicionava casar sua neta com o jovem rei. Além dele, contavam como partidários de D. Leonor. D. Vasco Fernandes Coutinho, marechal do reino, Pedro de Noronha, que seria arcebispo de Lisboa e seu irmão D. Sancho de Noronha e o futuro conde de Marialva, segundo Saul Gomes em seu livro D. Afonso V, o africano203. Já dentre os partidários de D. Pedro estavam as famílias fidalgas de Lisboa. É interessante notar esses posicionamentos, pois, reverberariam nas ações políticas ao longo do reinado afonsino. Cabe também observar os posicionamentos de D. Henrique, o Duque de Viseu, tio do jovem rei e personagem que seria louvado nas crônicas204 portuguesas, produzidas nos anos do reinado afonsino. Em 1439, ano posterior à morte de D. Duarte foram convocadas cortes para Torres Novas, a tensão entre os diferentes partidários já se mostrava latente. Moreno sugere que o conde Barcelos conspirava contra o duque de Coimbra e a possibilidade deste em anular o testamento. De fato, poderia se dizer que exitia uma disdência entre os Grandes, isto é as famílias aristrocráticas e o Povo, esta nomenclatura representava, principalmente, os habitantes das cidades e participantes das cortes. Estes interessados em reverter os desígnios do testamento e ampliar as prerrogativas de D. Pedro e aqueles receosos do impedimento que D. Leonor poderia sofrer. Moreno sugere que as querelas entre os cunhados, também estavam em consconância com conflitos advindos de outras questões, que não necessariamente ligadas à leitura do testamento. O historiador comentou que dentre eles também existiam problemas relacionadas as casas de Urgel e Trastâmara, que ainda se manifestavam, principalmente, no reino de Aragão. Sendo assim, D. Leonor ligava-se ao partido de seus irmãos, já D. Pedro ao de sua esposa, D. Isabel de Urgel. Deste embate entre os cunhados podem-se destacar quatro momentos importantes, e nestes episódios D. Henrique apareceu como um personagem mediador entre os dois grupos. De acordo com Gomes, o primeiro embate entre a regente e o Duque de Coimbra, se deu quando da realização das Cortes de Torres Novas. A grande questão, neste contexto, era a

200 A regência petrina se estendeu dois anos a mais que a maioridade do rei, pois, esta se deu aos 14 anos. Ver: ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. 1 ed. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. 201 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Ibid. p. 57. 202 MORENO, Humberto Baquero. A Batalha de Alfarrobeira: Antecedentes e Significado Histórico. 2 ed. - Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1979. 2 vols. 203 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. 1 ed. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p. 60. 204 Esses textos são: a Crônica da Tomada de Ceuta por el rei D. João, escrita por Gomes Eanes de Zurara, nos anos de 1449 e 1450 e a Crônica do descobrimento e conquista da Guiné, também escrita por Zurara, em 1453, ambas feitas a pedido de D. Afonso V. Sobre isso ver: BERTOLI, A. L. Uma Leitura Possível da Crônica da Tomada de Ceuta. Sociedade em Estudos, Curitiba: v. 2, n. 2, p. 89-102, 2007. e GUIMARÃES, Jerry Santos. Memória e retórica: mouros e negros na Crónica da Guiné (século XV). In: Simpósio Nacional de História, 27. 2011, São Paulo. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História. São Paulo: ANPUH , 2011, p. 1-16. 69 regência de D. Leonor de Aragão, a pressão se fazia para que D. Pedro assumisse o governo em seu lugar. Embora, D. Leonor não aceitasse a diminuição de suas prerrogativas, precisou lidar com um motim de grandes prorporções na cidade de Lisboa, o que deixava claro a insatisfação popular diante das indicações testamentárias. Nesta ocasião, D. Henrique propôs que a regência fosse feita de maneira quadripartida. A partir desta resolução, D. Leonor tornou-se tutora e curadora do filho, como também, passou a atuar na administração das rendas e ofícios. Já, D. Pedro ficaria responsável pela defesa do reino e o conde de Arraiolos ficaria a cargo da justiça.205 A 10 de novembro os participantes juraram lealdade ao jovem monarca, D. Leonor pressionada aprovou o regimento, mas, não estava satisfeita com o arranjo. No decorre das cortes, privilégios foram concedidos às cidades de Lisboa, notadamente, mas, também as cidades de Porto e Coimbra. O segundo embate entre D. Leonor e D. Pedro, deu-se na ocasião em que a rainha expulsou duas donzelas de seu séquito, que eram ligadas às famílias partidárias de D. Pedro206, ao passo que, também ofereceu a D. Nuno Martins da Silva os direitos dos varejos dos mercadores olisiponenses por sete anos. Acrescidas de notícias que D. Leonor requeria ajuda estrangeira para apossar-se do trono. Tais atitudes da rainha, embora, em relação ao auxílio estrangeiro, o boato tenha sido desmentido pela viúva, foram de tal modo repelidas pela população, sobretudo, lisboeta, que acarretou a formação de uma insurreição popular207. Embora, este levante não tenha gerado um conflito de grandes proporções, serviram para que D. Pedro revindicasse a regência completa do reino e a tutoria do jovem rei. Esta proposta foi consumada nas Cortes de Lisboa, ainda em 1439, sob as alegações que não caberia ao povo ser governado por uma mulher, bem como não seria aceitável a regência partida em dois. Com o apoio de setenta e duas cidades, D.Pedro foi alçado à regência do reino. Nesta ocasião, D. Henrique208 foi responsável por convencer a rainha a levar o filho a Lisboa, já que estavam asilados em Alenquer, de onde D. Leonor não ambiocionava sair e de onde intensifica uma atividade epistolar, no qual requereu, por exemplo, que os fidalgos fossem a Lisboa armados. A partir deste momento, D. Pedro passou a ser o tutor do rei, e D. Afonso V pode dispor de tempo com D. Henrique, visto que, este ficou responsável pelo jovem rei durante os períodos de afastamento de seu outro tio e tutor. Na sequencia das corte de 1439, outros assuntos de relevância para o reino foram tratados, além da concessão de novos privilégios à capital. Em 1440, D. Leonor que estava em Sintra seguiu para Almerim e, posteriormente em fuga, estabeleceu na fortaleza do Crato, de onde deveria começar uma reação às resoluções tomadas anteriormente, que haviam ocasionado a perda da regência e da tutoria do rei menino. De acordo com Humberto Baquero Moreno, o conde de Barcelos fora um dos principais articuladores do escape da rainha, contava-se a esta altura que a aristocracia, principalmente, do norte do reino enviaria apoio à causa da viúva de D. Duarte.

205 “É D. Fernando, filho segundo do precedente e, desde 1422, 3º conde de Arraiolos, depois 1º marquês de Vila Viçosa e 2º Duque de Bragança.” In: MONUMENTA Henricina. v. 2. António Joaquim Dias Diniz. (dir.) – Coimbra: Comissão Excec. Comem. Do V Cent. Da Morte do Infante D. Henrique, 1960. 206 Filhas de Isabel Gomes da Silva e Pêro Gonçalves, vedor da Fazenda e a terceira moça era filha de João Gomes da Silva sobrinha de Álvaro Vaz Almada, que havia sido capitão e alfere-mor da capital. Idem. 7, P.63. 207 Sobre o significado de povos ver: MATTOSO, José. (dir.). História de Portugal. A monarquia feudal (1096- 1480). v. 2. Lisboa: Estampa, 1997. p. 389-396. 208 Embora, de acordo com Baquero Moreno, D. Henrique teria se posicionado ao lado de seu irmão mais claramente. Já a época de Zurara diz que a época de Alfarrobeira, D. Henrique aliou-se ao sobrinho D. Afonso V. Ver, respectivamente: MORENO, Humberto Baquero. A Batalha de Alfarrobeira: Antecedentes e Significado Histórico. 2 ed. - Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1979. 2 vols. p. 45. e ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. 1 ed. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p. 134. 70

As relações entre D. Leonor e os infantes de Aragão, seus irmãos, facilitaria a aproximação de D. Pedro com o condestável D. Álvaro de Luna, de Castela, que nesta ocasião estava em franco conflito com os aliados da mãe do rei de Portugal. Os combates entre os partidários de D. Leonor e D. Pedro foram travados durante os meses finais do ano de 1440. A viúva esperava o apoio da nobreza tradicional, encabeçada pelo conde de Barcelos, mas, a exitação daqueles esvaiu qualquer possibildade de resistência às forças do regente. Sem o apoio dos principais do reino, D. Leonor deixou o Crato e se exilou na Vila de Albuquerque em Castela, onde foi auxiliada, principalmente por D. Maria, rainha de Aragão. Em sua estada no reino de Castela, a viúva de D. Duarte requereu ao rei D. João II auxilio para recuperar sua posição em Portugal, ainda que nenhuma ação tenha sido concretizada, além do envio de emissários a corte regida pelo Duque de Coimbra, as juntas realizadas em Castela foram omissas aos pedidos da rainha. Enquanto, isso o Conde de Barcelos tentava conseguir apoio para causa da triste rainha, o que também não mostrou resultados positivos para monarca, com o tempo o conde de Ourém facilitaria a aproximação de D. Afonso, bastardo de D. João I, com o seu irmão, o duque de Coimbra. Por fim, em 1442, na Corte de Évora foi decidido pelo confisco dos bens de D. Leonor e sua interdição ao reino.209Em relação aos apoiadores que partiram de Portugal com a rainha, seus bens no reino foram confiscados e oferecidos aos aliados de do regente210. Qualquer tentativa de reaver seus poderes no reino vizinho forma esmagados pelos desdobramentos dos acontecimentos verificados em Castela. Se no primeiro momento da guerra civil que se dava em Castela favoreceu os infantes de Aragão, em fins do conflito, o Condestável Álvaro de Luna, com o apoio do regente português, alcançou a vitória, e encerrou por vez a pretensão de D. Leonor em relação a Portugal. 3.2. O turbulento período da regência e seus efeitos na governança afonsina. Saul Gomes aponta que: Como princípio inicial da sua governança absoluta, D. Afonso V parece ter querido recompor a sociedade nacional nos seus equilíbrios anteriores a regência. Preocupava-o a ‘justiça’ para com os que haviam apoiado as posições de sua mãe, D. Leonor, e que, por incompatibilidades diversas com o regente D. Pedro, haviam sido forçados ao exílio ou prejudicados nas suas casas e benesses. Ora tal recomposição brigava com os direitos e posições recentes dos grupos nobiliárquicos que D. Pedro promovera.(...) Entram em conflito, assim, a vontade do rei, naturalmente apoiada por um Conselho Real, em que pontifica, o duque de Bragança, D. Afonso, onde os fiéis de D. Pedro não têm voz activa, em restituir a justiça e o direito aos que tinham sido perseguidos e afastados nos anos de regência, e a composição do tecido político que procurava manter-se no poder, protagonizado socialmente por uma fidalguia e corpo de burocratas régios gravitacionalmente associados à Casa de Coimbra e politicamente reforçados pela ampla concessão que faziam aos homens-bons e ricos burgueses dos concelhos, muito em especial, os mais poderosos e influentes do ponto de vista económico e também demográfico.211 As tensões anunciadas acima dão conta de apresentar os lados de um conflito que desembocaria na Batalha de Alfarrobeira, no ano de 1449. Este conflito, em que os

209A rainha faleceria sem retornar ao reino português. Sobre Leonor de Aragão ver: COSER, Miriam. Modelo mariano e discurso político nas crônicas de Avis. In: AMARAL, C. O. (Org.) ; BERRIEL, M. S. (Org.) . Religião e Religiosidade na Idade Média: poder e práticas discursivas. 1. ed. Rio de Janeiro: Multifoco, 2012. 210MORENO, Humberto Baquero. A Batalha de Alfarrobeira: Antecedentes e Significado Histórico. 2 ed. - Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1979. 2 vols. 211ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. 1 ed. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p.70 71 protagonistas foram D. Afonso V de um lado e D. Pedro por outro, representou o embate entre duas facções da sociedade portuguesa, aquela que havia ascendido aos postos de poder na época da regência, contra aquela que havia perdido espaço, neste mesmo período, e, que encontrou na ascensão de D. Afonso V a oportunidade de reaver suas antigas prerrogativas. E, mesmo parte da nobreza que hesitara em relação a causa da triste rainha, tomou o partido do jovem rei212. Como o trecho sugere, este embate colocava em questão, a justiça régia213, que para D. Afonso V seria a distribuição de benesses para os apoiadores da causa de sua mãe. No entanto, para que isto fosse feito, também deveriam ser desfeitos arranjos travados durante a regência. Tal configuração de poder se tornava mais interessante, pois, do mesmo modo diziam respeito às diferenças sociais dos envolvidos. Isto se deu porque desde o início das animosidades entre D. Pedro e D. Leonor, se estabeleceram dois grupos, que também eram socialmente distintos. Se por um lado, os principais do reino214 apoiavam a rainha, a fidalguia lisboeta manteve seu apoio ao Duque de Coimbra. E, quando da emergência de D. Afonso V estes conflitos políticos e sociais encontraram uma nova forma de se manifestarem. O desfecho do confronto foi a derrota de D. Pedro, mas, que não significou uma vitória para D. Afonso V, pois a maneira que o Duque de Coimbra fora deixado no campo de batalha, um desrespeito à dignidade do antigo regente, repercutiu de forma negativa para o reinado do africano. 3.3. A escrita dos acontecimentos e a escrita da história: a descrição de Rui de Pina sobre o inicio do reinado do africano e as impressões da historiografia sobre esse período. A descrição desses acontecimentos fora feita oficialmente, pela primeira vez, através da escrita de Rui de Pina, cronista-mor do reino, durante o governo de D. João II. Segundo Pina, o rei apresentou-se como uma figura enfraquecida, visto que, o monarca foi descrito como uma peça no jogo político da corte portuguesa, em que o Duque de Bragança215 assumiu o protagonismo da ação contra o Duque de Coimbra. Esta perspectiva interessa a este trabalho, pois, o texto216 serviu de fonte para estudos posteriores. Estes trabalhos trariam consigo o entendimento, que o reinado de D. Afonso V teria sido um período marcado pela fragilidade do poder monárquico e em contrapartida, da

212MORENO, Humberto Baquero. A Batalha de Alfarrobeira: Antecedentes e Significado Histórico. 2 ed. - Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1979. 2 vols. 213 GOMES, Saul. D. Afonso V, o africano. 1 ed. - Lisboa: Temas e Debates. 2009.. p. 41. 214 Sobre os principais do reino ver: MATTOSO, José. (dir.). História de Portugal. A monarquia feudal (1096- 1480). v. 2. Lisboa: Estampa, 1997. p. 369-389. 215 Filho bastardo de D. João I, D. Afonso, Duque Bragança, recebera inicialmente o título de conde e, posteriormente, o título de duque já na época da regência de D. Pedro. Foi retratado na crônica de Rui de Pina como articulador do afastamento do Duque de Coimbra e das animosidades que levaram à Batalha de Alfarrobeira em 1449. Também é citado, recorrentemente, na Crônica da Tomada de Ceuta escrita por Zurara, no entanto, é representado de maneira mais amena, sendo apresentado como um apoiador da causa da conquista de Ceuta. 216 Embora não seja o único texto, a circulação de descrições negativas sobre D. Afonso V estavam também intimamente ligada a percepção dos contemporâneos sobre Alfarrobeira. Como D. Pedro havia viajado por muitas regiões da Europa, sendo reconhecido como e respeitado internacionalmente.Portanto, a crueza das circunstâncias de sua morte, sobretudo, o fato de seu corpo ter sido deixado exposto após a Batalha, somente sendo recolhido na igreja de Alverca Exemplo disto é o relato “non vieram conformes a sua tençam, antes todos sem exceiçam, com apontamentos de muytos louvores e grandes merecimentos do Yfante, enviaram acerca de sua morte muyto repreender El Rey.” Apud: GOMES, Saul. D. Afonso V, o africano. 1 ed. - Lisboa: Temas e Debates. 2009. p. 99 72 revivência do senhoralismo217 em Portugal. Em seu livro D. Afonso V, Saul Gomes apresenta um interessante apanhado sobre as principais interpretações sobre o reinado deste monarca, sobre a perspectiva da fraqueza do monarca. Gomes apresentou os seguintes escritores para o século XVI, o autor destacou Garcia de Resende e a obra Miscelânea218, Damíão de Góis e a Crônica do Príncipe D. João219, já Pedro de Mariz em seu texto Diálogos de Varia Historia220, faz uma diferenciação entre a governança e o caráter do rei, sendo o primeiro identificado como frágil, e o segundo como magnânimo, ainda sobre as obras do século dezesseis, tem-se Duarte Nunes de Leão e a obra Crônicas dos Reis de Portugal221. Sobre a centúria seguinte, Gomes comentou o texto de D. Rodrigo da Cunha, Cronicas del Rey Dom Ioam de Gloriosa Memoria, Oito Deste Nome, e dos Reys de Portugal o X e os dos Rey D. Duarte e D. Afonso V222 e, nesta obra, repetiu-se a narrativa piniana, na qual se destacava a submissão de D. Afonso V aos grandes do reino. No século XVIII, as obras de Manuel Faria e Sousa: Epitone de las Historias Portuguesas, Europa Portugueza e Africa Portugueza223, apresentam uma visão que separa o homem do rei, sendo o primeiro considerado bom e o segundo insuficiente, isto é, um mau rei. Para o século XIX, tanto o trabalho de Oliveira Martins e Braamcamp Freire, respectivamente, História de Portugal224 e Crítica e História225, colaboraram com perspectiva de que o reinado de Afonso V teria sido um período de cessão de poderio régio à nobreza, em contraste com dois períodos de centralização monárquica, encabeçadas por D. Pedro e D. João II, embora Freire seja menos contundente do que Martins, em sua crítica à governança afonsina. Desta forma, é no trabalho de Oliveira Martins, que se fez um mordaz julgamento sobre o período afonsino, neste texto, a figura do quinto Afonso foi depreciada tanto no sentido pessoal, quanto no exercício de sua função régia. Pode-se citar: Oliveira Martins prossegue seu discurso de exaltação da imagem de D. João II, enfatizando que ‘o filho não tinha nada dos loucos desvarios do pai’, que D. Afonso V tinha sido ‘um aborto, ou um anacronismo medieval, e que ‘Os tempos da coruja tinham acabado, porque [D. João II] não carecia mais de pactuar com as tontices do pão; rei agora (1481), seria o falcão226

217 Sobre isso, ver: CARVALHO, João Cerineu Leite de. “O senhorialismo de D. Afonso V no Estado português Avisino do século XV”. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 25., 2009, Fortaleza. Anais do XXV Simpósio Nacional de História – História e Ética. Fortaleza: ANPUH, 2009. CD-ROM 218 RESENDE, Garcia. Miscelânea. Coimbra: fliança editor, 1917. 219 GOIS, Damião de. Chronica do Principe D. Joam, rey que foy destes reynos, segundo do nome, em que summariamente se tratão as cousas substanciaes, que nelles acontecerão do dia de seu nacimento até o em que ElRey D. Affonso seu pai faleceo. Lisboa Occidental: Officina da Musica, 1724. 220 MARIZ, Pedro de. Dialogos de varia historia em que summariamente se referem muytas cousas antiguas de Hespanha c [sic] todas as mais notavees q[ue] em Portugal acontecerão em suas gloriosas conquistas antes e depoia de ser levantado a Dignidade Real, e outras muytas de outros reynos dignas de memoria : com os retratos de todos os Reys de Portugal. Coimbra: Officina de Antonio de Mariz, 1594. 221 LEÃO, Duarte Nunez. Crônica del Rey Dom João de gloriosa memória, o I deste nome, e dos reys de Portugal o X e as dos reys D. Duarte, e Do Afonso V. Lisboa: Officina de Joze de Aquino Bulhões, 1780. 222 CUNHA, Rodrigo da. Crônicas del Rey Dom Ioam de Gloriosa Memoria, Oiti Deste Nome, e dos Reys de Portugal o X e as dos Reys D. Duarte e D. Afonso o V. Lisboa: Oficina de António Álvarez, 1643. 223 SOUSA, Manuel de Faria. Epitome de las Historias Portuguesas. Bruxelas: Oficina de Francisco Foppen, 1677. 224 MARTINS, Oliveira. História de Portugal. 3 ed. Lisboa: Viuva Bertrand, 1882. 225 FREIRE, Anselmo Braamcamp. Crítica e História. Lisboa: Tip. da Antiga Casa Bertrand, 1910. 226 SILVA, Priscila Aquino. “De Príncipe Perfeito a Rei Pelicano - a construção da imagem de D, João II através da historiografia portuguêsa.” In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA - O HISTORIADOR E SEU TEMPO XVIII, 2006. Anais do XVIII Encontro Regional de História - O historiador e seu tempo. Assis: UNESP, 2006. CD- ROOM. p. 5. 73

Ainda, no inicio do século XX, António Sérgio, em Breve Interpretação da História de Portugal227, também apresentou de forma negativa o reinado do africano. Contudo, em contraste com os trabalhos citados acima, nem todas as histórias relativas aos anos de 1448 a 1481 o definem como um período de retrocesso e obscurantismo. Desde o século XV, existiram textos que apresentavam elogios ao quinto Afonso e seu governo, sobretudo, religiosos que apontavam o comprometimento deste com a fé católica, como também sobre a perspectiva da expansão marítima228 e o incremento da presença portuguesa ao longo do Mediterrâneo. 3.3.1- O balanço sobre a historiografia afonsina e a renovação dos estudos. Esta diferença de interpretação segue a distinção da perspectiva de análise, enquanto a historiografia que se debruça sobre os aspectos que levaram a centralização do poder régio em Portugal, dá maior destaque a liberalidade régia, considerada excessiva e que revelariam a inabilidade governativa do monarca. A historiografia, que versa sobre a expansão ultramarina portuguesa, apresenta o reinado do africano como promotor de uma política de avanços militares. No entanto, a historiografia mais recente e, neste sentido, os trabalhos de Serrão, História de Portugal229, Humberto Baquero Moreno, A Batalha de Alfarrobeira230 e Armindo de Sousa, História de Portugal231 trabalham sobre o prisma de avaliar diversos aspectos da sociedade portuguesa quinhentista, e, contextualizar as ações governativas do rei. Assim também, este trabalho se propõe a apresentar uma reflexão sobre como as relações travadas entre os atores sociais puderam produzir um determinado panorama em que a expansão para o norte da África tornou-se uma empresa do poder régio, mas, que também envolvia diversos setores da sociedade portuguesa e, sobretudo, a nobreza232. Enquanto Gomes detém-se no panorama da historiografia portuguesa, os estudos, que utilizam as crônicas régias como fonte sobre o período avisino no Brasil, dão destaque as crônicas de Fernão Lopes e Gomes Eanes de Zurara. A produção historiográfica brasileira sobre a idade média aumentou significativamente a partir do fim da década de 1980, e continuou ascendente nos anos de 1990 e 2000. Embora, o pioneiro trabalho de Eurípedes Simões de Paula date do ano de 1942233, foi no fim do século passado, que um número maior de historiadores brasileiros lançou-se ao estudo do medievo. Neste grupo de pesquisadores destaca-se a prevalência de estudos centrados no mundo ibérico, principalmente, trabalhos voltados para história portuguesa. Dentre as temáticas abordadas, merecem especiais destaques às questões ligadas à relação entre o imaginário e a formulação do poder político, o imaginário como parte integrante das lutas sociais, como também aspectos da construção ideológica dos poderes, tanto da ordem dos poderes senhoriais, leigos e mesmo eclesiásticos, como as práticas sociais. Sobre o período afonsino, dos anos de 1438 a 1481, alguns trabalhos merecem especial atenção são eles: As viagens quatrocentistas no seu quotidiano de Antônio Henrique

227 SÉRGIO, António. Breve Interpretação da História de Portugal. Lisboa : Sá da Costa, 1977. 228 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. 1 ed. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. P. 9-41. 229 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal, A Formação do Estado Moderno (1415-1495). Lisboa: Editorial Verbo, 1980. 2 vols. 230 MORENO, Humberto Baquero. A Batalha de Alfarrobeira: Antecedentes e Significado Histórico. 2 ed. - Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1979. 2 vols. 231 SOUSA, Armindo de. “A monarquia feudal”. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, pp. 313-556. 232 Zurara, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. 233 PAULA, Eurípedes Simões de Comércio varegue e o Grão-Principado de Kiev. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1942. 74 de Oliveira Marques234, Discursos e estratégias de poder na Idade Média Peninsular de Fátima Regina Fernandes235, texto que fala sobre as interações entre a prática discursiva, isto é, como os textos, produzidos a época do reinado de Avis, se integravam as práticas sociais de legitimação do poder. Esta autora também foi responsável pela orientação do trabalho de André Luiz Bertoli236, O cronista e o cruzado: a revivência do ideal da cavalaria no outono da Idade Média portuguesa (século XV), este autor tratou de analisar as crônicas de Gomes Eanes de Zurara e avaliou a importância do ideal cavaleiresco na expansão portuguesa em fins do século XV. No estudo das crônicas vale salientar a dissertação Silvio Galvão Queirós237 Pera Espelho de Todollos.e a tese de Miriam Coser238, Política e gênero: o modelo de rainha nas Crônicas de Fernão Lopes e Zurara (Portugal –século XV). Ainda as pesquisa de Marcelo Santiago Berriel e Clínio do Amaral, respectivamente, Cristão e Súdito: Representação Social Franciscana e o Poder Régio em Portugal239 e O culto ao infante santo e o projeto político de Avis240, ambos tratam da relação entre a religiosidade, tanto como instituição através da Igreja, como prática social, com a política avisina do século XV. Vale ainda destacar o estudo de Douglas Mota Xavier de Lima 241 em que tratou das relações diplomáticas à época da regência petrina e o momento após a Batalha de Alfarrobeira, em 1449, e a tentativa de D. Afonso V em recuperar antigos equilíbrios na balança das relações internacionais, que foram construídos enquanto D. Pedro era regente de Portugal. Como também, Lima em sua tese de doutoramento tratou da importância da diplomacia no governo afonsino, bem como a institucionalização da condução dos assuntos externos e do crescente papel dos embaixadores letrados nas cortes europeias. Há de se considerar também, os trabalhos de Ieda Mello242, Emanuelle Lopes Neto243 e Katiuscia Barbosa244 estes estudos ao sabor de novos olhares para antigos documentos e apoiados nas novas reflexões do campo da historiografia, principalmente, nos textos de história voltados para monarquia avisina. Os trabalhos se inclinaram a criticar a interpretação

234 MARQUES, Antônio Henrique de Oliveira. “As viagens quatrocentista no seu quotidiano”. Signum (Revista da ABREM),Belo Horizonte: nº1, p. 123-144, 1999. 235 FERNANDES, Fátima Regina. Discursos e estratégia de poder na Idade Média. In: ENCONTRO INTERNACIOANAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS. Fortaleza: 2007. Atas do VII Encontro Internacioanal de Estudos Medievais, ABREM/UFCE, 2009. p. 292- 298. 236 BERTOLI, André Luiz. O cronista e o cruzado: a revivência do ideal da cavalaria no outono da idade Média portuguesa (século XV). Dissertação (Mestrado) Departamento de História – Universidade Federal dp Paraná, Curitiba, 2009. 237 QUEIRÓS, Silvio Galvão de, Pera Espelho de Todollos Uivos – A imagem do Infante D. Henrique na Crônica da Tomada de Ceuta. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1997. 238 COSER, Miriam Cabral. Política e gênero: o modelo de rainha nas Crônicas de Fernão Lopes e Zurara (Portugal –século XV). Tese (Doutorado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2003. 239 BERRIEL, Marcelo Santiago. Cristão e Súdito representação social franciscana e poder régio em Portugal (1383-1450) Tese (Doutorado) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007. 240 AMARAL, Clínio de Oliveira. O culto ao infante santo e o projeto político de Avis. Tese (Doutorado) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. 241 LIMA, Douglas Mota Xavier de. O infante D. Pedro e as alianças externas de Portugal (1425-1449). Dissertação (Mestrado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012. E ______. A Diplomacia portuguesa no Reinado de D. Afonso V (1448-1481). Tese (Doutorado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016. 242 MELLO, Ieda Avênia. Rituais e Cerimônias régias da Dinastia de Avis: pacto e conflito na entronização de D. João II. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Departamento de História, Niterói, 2007. 243 NETO, Emmanuelle de Souza Lopes. Um rei justo para uma sociedade perfeita. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2002. 244 BARBOSA, Katiuscia Quirino. A imagem do cavaleiro ideal em Avis à época de D. Duarte e D. Afonso V (1433-1481). Tese (Doutorado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. 75 de que o governo afonsino teria sido um período de retrocesso no processo de centralização promovido pelos reis da dinastia de Avis. No entanto, dentre os títulos levantados pela pesquisa, está o trabalho de Renata Cristina de Sousa Nascimento, cuja tese de doutoramento se intitula Os privilégios e os abusos da nobreza em um período de transição: O reinado de D. Afonso V em Portugal (1448-1481)245, que como sugere seu título,enquadra-se na perspectiva que avalia o reinado de D. Afonso V, como um momento de recrudescimento do centralismo régio e ampliação das jurisdições da nobreza . Tanto os trabalhos produzidos no Brasil quanto em Portugal, tal fraqueza do reinado afonsino se justificaria pelo fato de que, este rei concedeu em demasia benesses à classe senhorial e isto teria provocado o esvaziamento das prerrogativas régias. Isto é, o rei teria concedido poderes à nobreza e um período em que as resoluções convergiam para concentração dos poderes na figura régia. Como nos diz Clínio de Oliveira Amaral246, a dinastia avisina247 teria um projeto de governo estabelecido, constituído por três pilares: a centralização política, expansão africana e um programa de propaganda248. Sob esta perspectiva, o governo afonsino teria falhado, em cercear os privilégios da nobreza, antes, o monarca dispensaria uma série de honrarias e tensas à aristocracia, que em contrapartida, no dizer de Renata Cristina de Sousa Nascimento, cometeriam uma série de abusos de poder em decorrência da excessiva magnanimidade régia: “Alienar o patrimônio real consistiu um marco do governo em estudo. Este fortalecimento das casas senhoriais em detrimento do poder da coroa acentuou ainda mais as características aristocráticas da nobreza”249 Contudo, interessa a esta pesquisa colocar os dados apresentados sob o ponto de vista das relações de poder, neste caso, o cenário político português do século XV. Sendo assim, mais do que um projeto político avisino hermético, se percebeu que os atores sociais agiram, sobretudo, ao sabor do que as circunstâncias permitiram, isto é, no interior das possibilidades oferecidas pelo contexto em que atuaram e das relações que se estabeleceu com os grupos sociais250 envolvidos. Como foi expresso por Marcelo Berriel: “Centralizando o controle do reino, fortalecendo seus aparatos administrativos, o poder régio avisino deparou-se com obstáculos e articulou-se para superá-los. Ora limitando as outras instâncias de poder –afirmando-se em detrimento delas -, ora concedendo benefícios – conquistando aliados e calando descontentes” 251. Por isso, sustenta-se que a preferência pelos empreendimentos em África esteve intimamente ligada a configuração de poder estabelecida após a ascensão afonsina ao trono, notadamente, ao período posterior ao episódio de Alfarrobeira, quando os interesses da antiga

245 NASCIMENTO, Renata Cristina de Souza. Os privilégios e os abusos da nobreza em um período de transição: O reinado de D. Afondo V em Portugal (1448- 1481). Tese (Doutorado) – Departamento de História. Universidade Federal do Paraná, 2005. 246 AMARAL, Clínio de Oliveira. O culto ao infante santo e o projeto político de Avis. Tese (Doutorado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. 247 Ver: COSER, Miriam Cabral. “A dinastia de Avis e a construção da memória do reino português: uma análise das crônicas oficiais”. Cadernos de Ciências Humanas - Especiarias, v. 10, n.18, jul.-dez. p. 703-727, 2007. 248 AMARAL, Clínio de Oliveira. O culto ao infante santo e o projeto político de Avis. Tese (Doutorado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. 249 NASCIMENTO, Renata Cristina de Souza. Os privilégios e os abusos da nobreza em um período de transição: O reinado de D. Afondo V em Portugal (1448- 1481). Tese (Doutorado) – Departamento de História. Universidade Federal do Paraná, 2005. 250 Ver: MORENO, Humberto Baquero. Contestação e oposição da nobreza ao poder político nos finais da Idade Média. Revista da Faculdade de Letras, Porto: s. 2, v. 4, p. 103-118, 1987. 251 BERRIEL, Marcelo Santiago. Cristão e Súdito: representação social franciscana e poder régio em Portugal (1383-1450) Tese (Doutorado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007. 76 nobreza e do jovem rei caminharam para um mesmo ponto. Esta conformação, antes de ser desprovida de sentido, permitiu a formação, ou até mesmo renovação de vínculos, que nesta sociedade significava o compromisso do agradecimento aos serviços prestados, e também a criação de novas situações em que as ligações pudessem ser renovadas. Não diferente do que fora a política portuguesa até aquele momento, o governo do reino promoveu a continuação de um estado de conflito permanente, e de auxilio entre poder régio e aristocracia.252 4. Os reis avisinos da conquista de Ceuta à conquista do Tânger Faz-se necessário comentar sobre a peculiaridade da ascensão da casa de Avis ao trono português. Esta dinastia se iniciou com o mestre de Avis assumindo o governo após uma crise de sucessão, protagonizada por Leonor Teles253, rainha de Portugal apoiada pela antiga aristocracia lusa254, fortemente ligada aos interesses do reino de Castela. Em oposição ao mestre de Avis, filho bastardo do falecido rei D. Fernando, mas que, usufruía do apoio das grandes cidades, Lisboa e Évora255. O desfecho do embate se deu com a coroação de D. João I em 1385, que sendo rei tinha como uma de suas prerrogativas256 a distribuição de honrarias àqueles que o tinham

252 Sobre essa convergência de interesses e estratégias de poder entre o poder régio e aristocracia ver: ROCHA, Cinthia Marina Moreira da. Uma boa morte honra toda a vida: capelas funerárias de reis e nobres em Castela no século XV. Niterói, 2015. Tese (Doutorado em História Social) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015. 253 BARBOSA, Katiuscia Quirino. A imagem do cavaleiro ideal em Avis à época de D. Duarte e D. Afonso V (1433-1481). Tese (Doutorado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. 254 MATTOSO, José. O essencial sobre a formação da nacionalidade. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1984. 255 COSER, Miriam Cabral. “A dinastia de Avis e a construção da memória do reino português: uma análise das crônicas oficiais”. Cadernos de Ciências Humanas - Especiarias, v. 10, n.18, jul.-dez. p. 703-727, 2007. 256 De acordo com Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha o pensamento social e político medieval é calcada na ideia de ordem universal, tal como o cosmo teria uma ordem e um sentido, também o mundo humano e ambos deveriam funcionar em unidade, sendo que, para isso cada parte deveria desempenhar seu papel. Assim sendo, cada grupo ou corpo social tinha como objetivo o pleno exercício da função ao qual foi designado, para que a ordem fosse mantida. Conforme dito pelos autores: “O Poder era, por natureza, repartido; e, numa sociedade bem governada, esta partilha natural deveria traduzir-se na autonomia político-jurídica (iurisctio) dos corpos sociais, embora esta autonomia não devesse destruir a sua articulação natural (cohoerentia, ordo, dispositio naturae) - entre a cabeça e a mão deve existir o ombro e o braço, entre o soberano e os oficiais executivos devem existir instâncias intermediárias. A função de cabeça (caput) não é, pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social (partium corporis operatio própria), mas por um lado representar externamente a unidade do corpo e, por outro, manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada um aquilo que lhe é próprio (“foro”, “direito”, “privilégios”); numa palavra realizando a justiça. E assim é que a realização da justiça – finalidade que o juristas e politólogos tardomedievais e primodernos consideram como o priimeiro e até o único fim do poder político – se acaba por confundir com a manutenção da ordem social e política objectivamente estabelecida.” In: HESPANHA, Antonio Manuel, e XAVIER, Ângelo Barreto. A representação da sociedade e do poder. In: HESPANHA, Anónio Manuel (coord.). História de Portugal: O antigo Regime. Lisboa: Ed. Estampa, 1993. p. 123 Desta forma, pode-se perceber a intrínseca relação entre poder régio e a aplicação da justiça e em termos da sociedade medieval calcada da ideia de ordenamento social, a distribuição da justiça régia compreende em oferecer a cada estatuto social os meios para manutenção das suas prerrogativas. Emmanuelle Batista de Souza Lopes Neto em sua dissertação de mestrado Um Rei Justo para uma Sociedade Perfeita (Portugal -1438-1481), comenta a emergência da centralização régia em fins da Idade Média, a partir da crise dos dois grandes poderes supranacionais, o Papado e o Império. Em contrapartida a esta crise, o poder monárquico se estabeleceu na Europa, apoiado tanto em discurso jurídico que salientava a legitimidade do governo dos reis, como também, em uma perspectiva religiosa que apontava a sacralidade da função régia, tanto a partir da unção dos reis, mas também da sacralização do sangue da casa reinante. Por fim, outro aspecto relevante foi a conformação de uma determinada visão da corporativa da sociedade, na qual cada parte era responsável por uma função a fim de concretizar a ordem legada por Deus. O rei, sendo a cabeça deste corpo era responsável por manter a harmonia deste corpo e, para tanto, sua principal função era dispensar a justiça para cada estado do corpo, dando a cada um o que era seu por direito. 77 apoiado257 no momento da crise, para isso podia dispor dos bens daqueles que foram considerados inimigos de sua causa. É possível se perceber que com a crise sucessória abriu-se caminho para redistribuição de terras, foros e tenças258 em Portugal. No caso específico deste reino, os espólios do inimigo eram, sobretudo, as riquezas das casas tradicionais, o que permitiu ao novo rei oferecer em forma de gratidão aos serviços prestados aos seus apoiadores. Tal situação permitiu que fosse firmando um pacto governativo, no qual se beneficiaram tanto as grandes cidades, como certas casas senhoriais, mas também, e principalmente, o poder régio, que se estabeleceu enfraquecendo a concorrência das casas tradicionais. Com isso, se quer dizer o acrescentamento do poder da casa real, apenas foi possível com a submissão do poder de outras casas. Outro aspecto pertinente ao reinado de D. João I diz respeito à Tomada de Ceuta, em 1415, mas, que não nos deteremos, visto que, este assunto já foi tratado no capítulo anterior, como também sobre a tentativa de conquista do Tânger por iniciativa de D. Duarte. Sobre o período de governo de D. Duarte, a maior parte dos trabalhos publicados, levantados por esta pesquisa, faz referência às obras literárias do período, sobretudo, a obra Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela, que se tornaria uma obra referencial na educação dos infantes, isto é, na maneira que um governante deveria proceder. No reinado de D. Duarte também se deu o desastre da expansão ao Tânger. Na crônica de Rui de Pina, justificou-se essa derrota pelo fato do rei ter levado este empreendimento a cabo porque estava sobre a influência de D. Leonor de Aragão sua esposa. Assim, mesmo antes que o Papa desse as determinações quanto ao projeto, D. Duarte foi ao Tânger, como consequência sofreu a derrota e também de acordo com o cronista, a tristeza pela derrota teria influenciado em sua morte259. Já com relação à regência de D. Pedro, grande parte dos trabalhos de historiografia apontam que este fora um período de centralização política, que seria, portanto, contrastante com o reinado de Afonso V. Entretanto, algumas pesquisas mais recentes têm colocado esta questão sobre outro prisma de análise. Para tanto, faz-se referência ao trabalho de Katiuscia Barbosa no qual a autora abaliza que, mais do que romper com a política até então empreendida pelos monarcas portugueses, as reclamações da aristocracia lusa dirigidas ao regente, giravam em torno da preferência do regente em ofertar benefícios para seus vassalos mais próximos. Assim destaca a autora: Todavia a regência do Infante desagradou sobremaneira os setores mais conservadores da nobreza, visto que sua política de concessão de mercês e benefícios régios favorecia, principalmente, os membros de sua casa e enfraquecia cada vez mais o poder político dos grandes senhores.260 Neste sentido, vale mostrar a opção do Duque de Coimbra em relação à condução do casamento do herdeiro, diferentemente, do que até então havia sido feito durante a vigência da casa de Avis, pois, D. João I casou-se com D. Felipa Lancaster, firmando assim uma união estratégica nas relações internacionais, com a Inglaterra. Esta política matrimonial se manteve quando da ocasião do casamento de D. Duarte, para este fora designado como noiva D.

257 Ver: FERNANDES, Fátima Regina. Dinis, o infante, e Nuno, o condestável: os dois modelos de nobres na época de Aljubarrota. Revista Territórios e Fronteiras. Cuiabá, v. 5, n. 1, jul-dez, p. 57 - 65, 2011. 258 HESPANHA, António Manuel, e XAVIER, Ângela Barreto. As Redes Clientelares. In: MATTOSO, José. História de Portugal. v. 4. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.p. 339-349. 259 COSER, Miriam. “Modelo mariano e discurso político nas crônicas de Avis”. In: AMARAL, C. O. (Org.); BERRIEL, M. S. (Org.) . Religião e Religiosidade na Idade Média: poder e práticas discursivas. 1. ed. Rio de Janeiro: Multifoco, 2012. 260 BARBOSA, Katiuscia Quirino. A imagem do cavaleiro ideal em Avis à época de D. Duarte e D. Afonso V (1433-1481). Tese (Doutorado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.

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Leonor de Aragão, também sob a ótica de alianças com outros reinos. Mas, para D. Afonso, o tio e regente D. Pedro acertou-lhe o casamento com a filha D. Isabel de Coimbra. Ainda que Humberto Baquero Moreno indique que isso tenha sido uma vontade de D. Duarte. Desta forma, o regente rompeu com a política de casamentos até então empreendida e contribuiu para o descontentamento da nobreza do reino. Assim sendo, é possível perceber que grande parte da política de D. Pedro assumiu o caráter de expansão das prerrogativas da casa de Coimbra. Também é interessante notar o que foi dito por Nuno Gonçalves e Mafalda Soares: Até à primeira metade do século XVII, cerca de metade da administração do território estava cometida a senhorios – em 1527-1532, 54,5% do total das câmaras do país estava sob a jurisdição leigos ou eclesiásticos, tendo o número aumentado para 57,6% em 1640 – em que a parte dos leigos com jurisdição continuou a crescer: 37,9% em 1527 e 43,5% em 1640. Diga-se, de resto, que estes dados permitem questionar a periodização da implantação do absolutismo e, mais em particular, a tese que tão amplo eco teve na historiografia portuguesa e que atribui a D. Afonso V (1438--1481) o papel de joguete nas mãos da nobreza pela concessão excessivamente liberal de títulos, terras e mercês e a D. João II (1481-1495) o papel definitivamente disciplinador do grupo nobiliárquico. Como se verá, a oscilação de poder a favor da monarquia resultou bastante mais de factores que na época eram contingentes (recursos ultramarinos) e da consecutiva aplicação das já citadas medidas de ordenamento do espaço social do grupo nobiliárquico do que dos teatrais golpes de força perpetrados por D. João II em 1483 e 1484, não obstante a exemplaridade simbólica de que se revestiram. Assim, as principais diferenças residem nas distintas formas que assumiram as práticas políticas dos agentes e devem, por isso, ser compreendidas em termos diversos daqueles em que a soma das parcelas seja zero. Ou seja, não se trata de avaliar se o poder régio cresceu em detrimento do poder da nobreza, mas sim como evoluíram os difíceis equilíbrios entre as duas partes, podendo-se inclusive admitir que a acumulação de recursos e de funções na coroa não significava linearmente uma qualquer perda de poder político do grupo nobiliárquico.261

Os autores mostram que sob o prisma da análise de distribuição de títulos, terras e mercês o reinado de D. Afonso V não se estabeleceu como um hiato em relação aos demais reis de Avis, pois, manteve a jurisdição de várias porções de terra sob o domínio de senhorios. Este trecho também traz o comentário sobre mais um personagem da história portuguesa, D. João II, o chamado príncipe perfeito262, como os autores apontam, neste reinado se percebeu uma preocupação na criação de símbolos263 que sustentassem um determinado olhar sobre o reinado, o que o texto de Nuno Gonçalves e Mafalda Soares fez, foi colocar em questão a propaganda régia com as informações obtidas pela análise da jurisdição do território português durante as dinastias de Avis e Bragança.

261 CUNHA, Mafalda Soares, e MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Aristocracia, poder e família em Portugal século XV-XVIII”. In: ______.Sociedade, Família e Poder na Península Ibérica para uma História Comparativa/ Sociedad, Familia y Poder en la Península Ibérica. Elementos para um Historia Comparada. Lisboa: Edições Colibri. CIDEHUS- Universidade de Évora/ Universidade Murcia. 2010. p. 47-75. 262 Sobre isso ver: SILVA, Priscila Aquino. Entre o príncipe perfeito e o rei pelicano – os caminhos da memória e da propaganda política através do estudo da imagem de D. João II (século XV). Dissertação (Mestrado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007. 263 Não se quer dizer com isso que a simbologia não existisse antes do reinado de D. João II, mas sim, que seu papel de propaganda política foi mais efetivo neste governo. 79

Este panorama dos reinados de Avis auxilia na percepção de que os monarcas agiram ao sabor das circunstâncias, no sentido que a ação governativa só se fazia possível a partir do apoio de outros grupos sociais, que ora poderiam se aliar ao governante, ora se voltar contra ele, sobretudo, em uma sociedade em que as possibilidades de ascensão social, ou melhor, acrescentamento de status era bem limitada264. Os momentos de abalo da ordem estabelecida permitiam a abertura para conquista de honrarias265. Como disse José Mattoso266, “a busca da honra e do proveito definem a nobreza, enquanto categoria social”. 5. A escrita da história através da produção cronística. 5.1. As crônicas sobre D. Afonso V sob investigação: a monarquia e a produção cronísitica. E, sobre D. Afonso V, o aparente desencontro de informações sobre seu reinado torna- se, então, um interessante convite à reflexão do historiador. Principalmente, porque tais impressões foram feitas a partir do estudo dos documentos gerados no contexto de seu governo, ou no contexto do governo de seus sucessores, como no caso, da Crônica de D. Afonso V267, que fora escrita no reinado de D. João II. Para tentar esmiuçar a questão é interessante que se invista, antes da análise propriamente do conteúdo da fonte, em um trabalho de investigação sobre a natureza do documento estudado. Como visto acima, grande parte dos trabalhos sobre o período avisino têm sido feito a partir da análise das crônicas régias. Daí tem o que foi sugerido por Fátima Regina Fernandes: O que importa destacar nestas obras era a função de referência de poder que esta figura atribuía a todos o seu grupo, uma mitificação com pouca especificidade, capaz de ser atual e ou atualizada em vários contextos, uma estratégia de projeção sócio-política que importava perpetuar e reforçar na ancestralidade da história do reino268. Com isso, percebe-se que a produção cronística estava intrinsecamente ligada a manifestação do poder régio, isto é, como projeção de si próprio e dos grupos sociais que lhes concedia sustentação. Para tanto, ganha ênfase a produção cronística em Portugal do século XV, como também a produção da chancelaria régia, contudo, esta última será tratada mais detalhadamente no próximo capítulo. Assim, a crônica régia também se tornou estratégia de poder, pois, permitiu projetar uma determinada manifestação do poder real e do grupo social a qual pertencia, a nobreza. Bem como criou um passado legitimador e contribuiu na definição de interpretações futuras, pois, o interprete, possivelmente, terá suas primeiras impressões sobre seu objeto de estudo, baseada nas impressões deixadas pelo cronista. Contudo, como escreveu Carlo Guinzburg: “O fato de uma fonte não ser objetva (mas nem mesmo um inventário é ‘objetivo’ não significa que seja inutilizável” 269. Isto quer dizer que também a fonte deve ser contextualizada.

264 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v. 2. Tradução de Régis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Ver. Técnica de Gabriel Cohn. [s. n.]. Editora Unb. Impressão oficial. São Paulo, 2004. 265 KOSELLECK, Reinhart. 'Espaço de experiência' e 'horizonte de expectativa': duas categorias históricas. In:______. Futuro Passado. Rio de Janeiro: Ed. PUC- Rio, 2006. p. 306-327 266 MATTOSO, José. História de Portugal- A Monarquia Feudal 1096-1480. v. 2.. Lisboa: Editora Estampa, 1997. 267 PINA, Rui. Crónica de D. Afonso V. Lisboa Ocidental: Ferreyriana, 1808. 268 FERNANDES, Fátima Regina. “Discursos e estratégia de poder na Idade Média”. In: ENCONTRO INTERNACIOANAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS. Fortaleza: 2007. Atas do VII Encontro Internacioanal de Estudos Medievais, ABREM/UFCE, 2009. p. 292- 298. 269 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 80

Sobre a produção das crônicas no século XV, há de se considerar que esta tradição de crônicas começou na Península Ibérica, na Espanha, no reinado Afonso X270, chegou a Portugal ainda na dinastia de Borgonha (1139- 1383), no governo de Afonso III com a produção da crônica portuguesa271. Durante a Dinastia de Avis, essa iniciativa se deu no reinado de D. Duarte, quando este atribui a tarefa a Fernão Lopes, que se tornaria o primeiro cronista-mor do reino e guardião da Torre do Tombo272. 5.1.1. Cronistas portugueses dos reinados de D. Duarte e D. Afonso: Fernão Lopes e Gomes Eanes de Zurara. Fernão Lopes escreveu as duas primeiras partes da Crônica de D. João, sendo publicadas no ano de 1443, o cronista permaneceu em sua função até o ano de 1454, isto quer dizer que ocupou o cargo não somente no governo de D. Duarte, mas também, na regência petrina. Foi substituído por Gomes Eanes de Zurara, tanto na função de cronista como de guarda-mor da Torre do Tombo. Embora, sua retirada do cargo tenha sido atribuída à idade avançada de Lopes, Saul Gomes, aponta que, principalmente sua retirada se deu devido ao apoio de Fernão Lopes a D. Pedro, nos momentos que antecederam Alfarrobeira273. Isto indica que desde a escolha dos autores das crônicas, já estavam em disputa questões de poder. Assim sendo, a escolha de Zurara estava intimamente ligada a configuração de interesses que se estabeleceu com a chegada de D. Afonso V ao trono português, para tanto, a história do cronista pode ajudar a elucidar esta afirmativa. Embora sejam escassas as referências sobre as origens do cronista, Zurara fora filho do cônego João Eanes de Zurara, não constando referências a sua mãe274. Gomes Eanes de Zurara foi recebido como protegido por D. Henrique. Este último entrou para história sob a alcunha de o navegador, pois, foi um dos principais entusiastas da expansão para além-mar, empreendida pelos portugueses, ao seu redor reuniam-se uma gama de cavaleiros, que esperam acrescentar proveito e honra através dos feitos militares em África. 5.1.2. Características das crônicas quinhentistas. Cabe chamar atenção que durante a Idade Média, as crônicas régias, inicialmente compreenderam um acervo de registros referentes às datas ligadas aos feitos militares. Entretanto, com o passar do tempo e o avanço na montagem de uma burocracia régia, e para o caso da Península Ibérica, com a formação dos reinos cristãos, ao sabor do avanço das guerras de reconquista. Essas crônicas passaram a ter narrativas mais abrangentes, que tentavam salvaguardar a história da dinastia e a história do reino. O modelo de narrativa usado estava baseado em uma concepção aristotélica, a história é a escrita das coisas que se sucederam, e é, portanto, a verdade. No sentido, em que também se opõe a fábula. Para tanto, a crônica como registro histórico, como dito por Susani França275

270 GIANEZ, Bruno. Fernão Lopes (c. 1380/90 -1459): Crônica e História em Portugal (século XIV e. XV). Dissertação (Mestrado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. 271 MIRANDA, José Carlos – “Na génese da Primeira Crónica Portuguesa”. Medievalista [Em linha]. Nº6, (Julho de 2009). [Consultado 09.08.2017]. Disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/. ISSN 1646-740X. 272 Antes disso, no reinado de D. João I fez-se a crônica denominada, crônica de 1419, mas só a partir de D. Duarte que os cronistas passaram a receber tenças régias. Ver: Idem. 34. 273 MORENO, Humberto Baquero. A Batalha de Alfarrobeira: Antecedentes e Significado Histórico. 2 ed. - Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1979. 2 vols. 274 Embora na introdução da Crônica da Tomada de Ceuta, o autor responsável pela introdução da obra, em sua edição de 1915, trace uma possibilidade ser filho de uma criada ou manceba de João Eanes de Zurara, Também lhe são atribuídas a paternidade de Catarina da Silveira, Gonçálo Gomes de Zurara e Felipa Gomes, embora só lhes tenham sido reconhecido o parentesco com Zurara, após a morte deste. In: ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. 1 ed. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915.pág.VII. 275 FRANÇA, Susani Silveira Lemos. Os reinos dos cronistas medievais (século XV).São Paulo: Annablume, 2006. 81 tem seu valor, pois, era considerada uma escrita útil, pois, a história era útil. Assim sendo, a história serviria, pois, promoveria os bons costumes e as virtudes e, principalmente, ela teria o seu valor como exemplo a ser seguido. Note-se que, como apresentado for França, a maior importância do exemplo se dava nos tempos de necessidade, isto é, nos tempos de guerras e confrontos. Com isso, é interessante notar que a primeira crônica do reinado afonsino tenha sido requerida ainda em meio às tensões de Alfarrobeira. Além disso, o exemplo estimularia ações louváveis, porque também, um dos objetivos da história seria assegurar a recompensas dos grandes feitos, para que eles não fossem esquecidos, e como já mencionado no texto, as relações entre, sobretudo, a nobreza e o poder régio davam-se a partir da recompensa pelos serviços prestados, então, de acordo com essa prática social, o texto também serve de registro para que o passado possa ser acionado quando necessário. 5.1.3. As crônicas produzidas por Gomes Eanes de Zurara e sua relação com o poder régio. Com essa tarefa de produzir a história do reino, Zurara foi encarregado pelo rei de continuar o trabalho de Fernão Lopes, escrevendo A Crônica da Tomada de Ceuta , e A crônica do descobrimento e conquista da Guiné. O texto de Zurara, sob a égide do reinado afonsino, privilegiou narrar as campanhas vitoriosas de Portugal no Norte da África como já comentado no capítulo anterior, mas também é interessante notar o exemplo na descrição dos personagens de D. Pedro e D. Henrique. Neste sentido, as crônicas apresentam a história do reino sob a perspectiva do poder, e sendo, o poder considerado relacional, disputa de forças no interior de um dado contexto. A história emitida pelas crônicas ajuda a perceber quais eventos e que grupos se pretendeu perpetuar e servir de exemplo. Isto se percebe, sobretudo, na escolha de D. Henrique para ser exaltado nas crônicas. Como entusiasta do incremento da presença portuguesa nas praças africanas, esta figura dá azo a uma demanda social, a saber, a nobreza militarizada lusa. Para tanto, seguem as palavras de Zurara: E quamto aa encomenda que lhe sua madre seu, elle [D. Henrique] a mamtéue tam compridamente como lhe prometeo, e desto som eu bem certa testimunha, porque uiuendo com elRey Duarte, cuja alma Deos rreceba na bemauemturança do çeeo, ui per mujtas vezes seus gramdes rrequirimentos, que fazia por mujtos senhores fidallgos e cavalleiros, pellos quaaes rremediuavam seus feitos, e acreçemtauam em suas homrras. Vi outrossi que ao tempo que a Rainha Dona Lionor foy em desacordo com ho Iffante Dom Pedro, mujtos fidallgos e escudeiros deste regno forom em tempo de sse perder, se nom acharam em elle amparo a ajuda. E sobre todo aquello que elle tijnha, numca foi neguado a todos aquelles, que sse a elle socorriam, fazemdolhe mujtas merçees a cada hu~u segumdo seu estado.276 Como dito por Francisco Consentino: A indicação de Virginia Rau e as análises contemporâneas sobre a expansão marítima portuguesa de Luís Felipe Thomaz apontam para participação e o envolvimento significativo dos diversos extratos que compunham a nobreza portuguesa no processo expansionista lusitano e na gestão do ultramar. As conquistas e o exercício dos diversos ofícios voltados para a manutenção das terras do ultramar, sejam eles civis ou militares, leigos ou religiosos, comerciais ou administrativos, canalizaram as diversas camadas que compunham a nobreza portuguesa, intermediada pela monarquia portuguesa (...) As resoluções da Lei Mental, o controle dos bens da coroa, no inicio do século XV, e dos bens e comendas das ordens

276 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. 1 ed. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p. 130. 82

militares, na primeira metade do século XVI, deram a monarquia portuguesa as condições e os recursos materiais que permitiram a ela organizar um sistema que se adequou à realidade social de Portugal e às necessidades de suas conquistas. O sistema de remuneração de serviços foi um dos principais instrumentos de estruturação social e institucional não só em seu centro, mas também nos espaços periféricos das conquistas ultramarinas portuguesas. 277 Assim sendo, a expansão se deu sobre a influência de uma ideal de conquista ainda bastante ligado à cavalaria278 e o ideal de cruzada279, mas que somente tornou-se viável a partir do apoio também das grandes casas, que tinham na prestação de serviços a possibilidade de incremento de honrarias. 6. O texto no âmbito do contexto: análise das crônicas de Gomes Eanes de Zurara. 6.1. A utilização do método Análise de Conteúdo na abordagem das crônicas de Zurara. Para efeitos desta pesquisa foi utilizado como método a Analise de Conteúdo explicitado pela autora Laurance Bardini280 que se mostrou bastante profícuo para este trabalho, no sentido em que permitiu costurar categorias de analise isoladas com a unidade de sentido da obra. Neste caso, buscou-se analisar como determinados personagens são representativos de certas demandas sociais, e, como seus interesses são referenciados na obra de Zurara. No entanto, não se quer dizer com isso que toda a complexidade das interações sociais possa ser reduzida as ações de alguns personagens, mas que, fornecem ao pesquisador material para pensar a realidade social em um dado período. A Crônica da Tomada de Ceuta faz menção aos preparativos das conquistas portuguesas sobre uma seção do território africano. Escrita por Zurara a crônica dá conta de apresentar a batalha como o fim do processo de fazer cavaleiros os três filhos de D. João, os infantes D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique. Esta afirmação pode ser percebida na construção do texto, visto que, a narrativa se inicia com a vontade dos infantes em serem sagrados cavaleiros em meio a uma batalha, ao invés de um torneio, como era a primeira proposta do rei. E, por conseguinte, o desfecho da crônica se deu com a feitura dos infantes cavaleiros, após a tomada da cidade africana. Desta forma, tem-se que o desenvolvimento se dá a partir dos planos de conquista até a culminância do processo de tomada e sagração dos infantes. Que em grande parte da narrativa agem em uníssono, haja vista que dos 105 capítulos, nove deles dão conta de mostrar ações protagonizadas pelos três infantes em concordância. Contudo, o método de analise proposto de Bardini aponta que o texto deve seguir a perspectiva da analise qualitativa, isto é, como o texto através de suas partes integrantes dão conta de expressar um sentido para sua construção. Assim sendo, a autora aponta para criação de categorias no interior do texto que ajudam a perceber o sentido da obra. Para tanto, há de se ter em vista a relação com o contexto da produção do texto, neste caso, os primeiros anos do rei Afonso V, após a batalha de Alfarrobeira. É interessante notar como os envolvidos nesta batalha são retratados na crônica que ocorreu cerca de quarenta anos antes de serem passados para o papel.

277 CONSENTINO, Francisco Carlos. “Ofício e nobilitação na monarquia portuguesa durante o Antigo Regime: os governadores gerais do Estado do Brasil”. In:______. Governadores gerais do Estado do Brasil (séculos XVI- XVII): Ofício, regimentos, governação e trajetórias. São Paulo: Annablume: Belo Horizonte: Fapemig, 2009. p. 105-134 278 FLORI, Jean. “Cavalaria”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. v. 1. Bauru: Edusc, 2006, pp. 185-199. 279 CARDINI, Franco. “Guerra e Cruzada”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (coord). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2006. v. I, p. 473-487. 280BARDIN, Laurence. Analise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. . 83

Diante disso, se analisou a maneira como Zurara apresenta a figura de D. Henrique e para isso, foram geridas duas categorias para interpretar esta questão, sendo elas: a predestinação de D. Henrique e as demandas de D. Henrique. A primeira delas revela a influência do ideário de cavalaria, que ainda era bastante forte em Portugal do século XV, tanto como disse Ana Paula Torres Megiani281, este ideal estava presente na construção desse imaginário cavaleiresco e até mesmo em alguns casos, esses sinais, apontavam para uma espécie de messias. Com isso se quer dizer que, nas narrativas cronisticas portuguesas, principalmente, no governo de Avis, tornou-se recorrente apontar um determinado personagem como portador de uma missão, um destino. Uma espécie de guia do povo português, sobretudo em épocas de crise. Sobre a predestinação de D. Henrique tem-se em primeiro lugar seu nascimento, descrito neste temos por Zurara: O do rregno quanto aa sustamcia das primcipaaes cousas em estaa a força da estória, e esto era por duas cousas, a primeira e primcipall por quamto elle [D. Henrique] do vemtre de sua mãe trouxe comssigo abraçada a semelhamça da cruz de nosso Senhor Jesu Christo, por cujo amor e rreuerança sempre teue muy gramde deseio de guerrear aos jmfiees, no quall uiueo e aturou toda sai uida como ao diamte será comtado.282 Já nesse primeiro momento o elemento cristão é referenciado, tanto no sentido de sacralizar os atos de guerra como de apontar o sentido de missão. Denota que a missão não pode ser recusada. E, portanto, santifica a guerra contra os muçulmanos, pois, seria uma missão divina requerida a D. Henrique e, poderia, se inferir, neste sentido, um destino que deveria ser cumprido pela classe guerreira de Portugal. O segundo momento fala sobre a relação entre D. João e D. Felipa. Assim tem-se que, D. João: “Nom foy ail diziam os outros, ca elRey sempie teue este filho por mais homem, que nehuij dos outros pêra feito darmas. e assy sse gloriaua estranhamente de fallar em elle, quamdo lhe disseram que trazia ló sua frota bem corregida do Porto” 283, como também: E assy com esta esperamça deram todos uoz que o Iffamte era morto, e todos pemssauam que eIRey fezesse por ello mostramça de gramde nojo. por cuja rrazom nom ousaua nehuú de lho dizer, mas quamdo sse acertou de lhe seer dito, rrespomdeo elle que nom montaua mujto, pois que morrera em seu offiçio. Mais depois que lhe comtarom a uerdade do feito, ouue elle em sua uoomtade muy gramde prazer, espiçiallmente porque aquelle filho o parecia mais que outro alguú nas feituras do corpo.284 E D. Felipa: Ajmda nos fiqua por dizer da terceira espada, que foi dada ao Iffamte Dom Hamrrique, o quall a Rainha j chamou dizemdo. Meu filho, chegaiuos pêra ca, uistimdo ella sua comtenemça de nova lediçe, e emchemdo sua boca de rriso muy honestamente, e disse. Bem uistes a rrepartiçom, que fiz das outras espadas que dey a uossos jrmaãos. e esta terceira guardey pêra uos, aquall eu tenho que assy como uos sooes forte, assy he ella. E por-que a huú de uossos jrmaãos emcomemdei os pouoos, e a outro as donas e domzellas, a uos quero emcomemdar todollos senhores, caualleiros fidallgos e escudeiros destes rregnos, os quaaes uos emcomemdo que ajaaes em uosso espiçiall emcarreguo. Ca pêro todos seiam delRey, e elle delles tenha espiçiall cuidado, cada huii em seu estado, elles porem aueram mester uossa ajuda pêra seerem mamteudos em dereito, e lhe seerem feitas aquellas merçees que esteuer em rrezom. ca mujtas uezes acomteçe,

281 MEGIANE, Ana Paula Torres. O Jovem rei encantado. São Paulo: Editora Hucitec, 2003. 282ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. 1 ed. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p. 45. 283 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Ibid. p. 152. 284 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Ibid. P. 221. 84

que per emformaçoões fallsas e rrequerimentos sobeios dos pouoos os rrex fazem comtra elles o que nom deuem. Pêra o quall emcarreguo uos eu escolhi, conheçeindo de uos quamto amor lhe sempre ouuestes, e uouos emcomemdo, porque aalem de uossa boa uoomtade uos seia posto por necessidade 285. O cronista ainda acrescentaria: E assy amaua todollos guiadores da nossa samtafíe, e auia gramde ódio aos jmfiees. e nom he duuida que o Iftamte Dom Hamrrique seu filho ouue aquella meesma empressam demtro no o seu uemtre, a quall o fez ao depois sempre comsseguir aquelle deseio, segumdo ao diamte em nossa estoria será comtado 286. Neste sentido, é possível argumentar que o texto de Zurara expõe uma espécie de continuidade entre D. João e D. Henrique, embora, não fosse o herdeiro do trono, era o herdeiro do ímpeto da conquista. Como também mostrava o direcionamento do esforço de guerra, o infiel. E, embora, em grande parte da crônica Gomes Eanes de Zurara se ocupe em afirmar a solidariedade entre os infantes de Avis, há uma interessante passagem em que o autor do texto declara: “E deuees de saber que o Iftamte Dom Hamrrique foy huú homem cujos feitos e estado amtre todos seus jrmaãos teue mayor auamtagem de rrealleza, leixamdo o Iftamte Duarte aque per dereita soçessom comuijnha de o fazer.” 287. Mas, uma vez, o texto se debruça sobre a continuidade entre D. João, D. Henrique e mesmo que indiretamente, também os liga a D. Afonso V, no sentido, de que evoca a ancestralidade das empresas africanas. Como dito anteriormente na escrita das crônicas régias existia a preocupação de contar a história do reino e da dinastia, esta preocupação estava ligada à disposição do poder em se estabelecer arrogando para o seu governo legitimidade através da continuidade, e, portanto, a aproximação de D. Henrique e D. João e de ambos as empresas africanas feitas pelo cronista foi importante, sobretudo, por causa da confusa ascensão de D. Afonso V ao trono. D. Henrique é um personagem bastante representativo na escrita de Zurara. Ora sendo o Duque de Viseu parte integrante da mais alta nobreza do reino e figura importante na transição desde a morte de D. Duarte, a passagem para regência de D. Leonor e, em sequencia a regência petrina. Diante da fissura no seio da aristocracia deixada pela Batalha de Alforrabeira e a opção de D. Henrique pela causa do quinto Afonso, permite vislumbrar as demandas dos setores da nobreza que apoiavam o jovem rei. Isto é sugerido, pois, a partir das crônicas de Zurara percebe-se a interação entre os intentos do navegador com o que seria prática na governança afonsina, haja vista as guerras feitas em África pelo rei até 1473, quando a política do rei voltou-se para as questões entre Portugal e Castela. Com isso, pode-se partir para o segundo tópico apresentado acima, demandas de da aristocracia, simbololizadas nas ações do duque de Viseu, no qual o texto de Zurara exprime nos seguintes termos: Ora disse meu filho, eu nom quero mais o rreposta pêra a derradeira comclusom, por quamto eu meesmo a tenho comsijrada. e esto he que eu acho que nehuúa virtude nom pode seer em perfeiçom sem alguú exercício. E assy todollos offiçios cada huú em sua guisa, primçipallmente dos caualleiros em que sse rrequere fortelleza, o que se os fidallgos e outros boõs homeés deste rregno nom acharem em quem exercitar suas forças, he

285 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Ibid. P.128. 286 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. Ibid. P. 142. 287 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. 1 ed. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p.73. 85

necessário que de duas cousa façom huúa. ou trauaram arroidos e comtemdas amtre ssy 288. Este trecho explicita a forte relação entre política de expansão e a manutenção da guerra. Diante dos desafios de se lidar com a fidalguia militarizada, um dos principais problemas eram os conflitos internos. Para tanto, a guerra com Castela se justificava pelos termos políticos, mas também, por questões religiosas e, deste modo, a fratura no interior da cristandade ocidental, salientada pela existência de Papa em Roma e outro e Avinhão serviu para justificar as animosidades entre os reinos ibéricos289. No entanto, a paz com Castela fez com que os olhares portugueses se voltassem para a cidade muçulmana de Ceuta, e, depois de sua conquista para outras regiões do continente. Este ímpeto pela guerra, não estava somente em Portugal, os ânimos contra os muçulmanos renasceram no panorama internacional com a tomada de Constantinopla pelos otomanos, nos anos de 1453290. O chamado do Papa para este embate, levantou os entusiasmo do quinto Afonso, sem, contudo ter sido levada a cabo uma contraofensiva cristã. Todavia, sobre tal ambiente, os preparativos mais uma vez foram deslocados do cenário da cristandade europeia e, outra vez, voltou-se para o imperativo português sobre o norte da África. Para tanto, Zurara expõe através da fala dos infantes, a voz da aristocracia lusa291: a primeira grande seruiço a Deos. ca se elle semelhante caso engeitasse tarde ou per grande ventura lhe sobreuiria outro semelhante.(...) E a segunda cousa he honrra que se vos dello segue, ca posto que vos Deos desse muitas e grandes vitorias contra vossos jmigos esto foy em defensam de vosso rreino. a qual cousa em muitos lugares vos apresentaua a necessidade, porque vergonhosa cousa seria nenhum grande príncipe que possue nome rreal leixar guerrear seus rreinos que ante nam oferecesse sy e seu corpo pêra defensam delles. E esto he pollo contrairo. por quanto vos por vossa jnleiçam própria sem costrangimento de nenhuúa pessoa vos ofereceis a este perigo e trabalhonam por outra necessidade senam por seruiço de Deos e por acreçentamento de vossa honrra (...) E a terceira cousa he a grandee boõa vontade que tendes de nos fazerdes honrradamente caualeiros o que por outra guisa nom podereis fazer de que se a vos e a nos siga mayor honrra pois que outra nenhuíia conquista nam tendes em que o possaes fazer. 292 A opção pela manutenção do conflito é, por conseguinte, política, no sentido em que a partir de Alfarrobeira a balança de poder pendeu para os interesses da nobreza militarizada, política confirmada pela ação do poder régio. A continuidade da guerra oferecia a oportunidade de acrescentamento da honra, do prestígio, seja para os cavaleiros como para o reino, sobretudo, no âmbito das relações internacionais, principalmente, entre Portugal e o papado. A terceira categoria de análise utilizada por esta pesquisa é denominada lealdade, isto é, entende-se que este tema é recorrente no texto de Zurara e como sugere o método a Análise de Conteúdo da autora Laurance Bardini é preciso refletir sobre a interlocução entre texto e

288 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. 1 ed. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p. 47. 289 GIRARDI, Leonardo. A política pendular de D. Fernado I de Portugal (1367-1383) e sua relação com o Cisma do Ocidente (1378-1383). Cadernos de Clio, Curitiba, n. 3, 2012. p. 45- 69. 290GOMES, Saul. D. Afonso V, o africano. 1 ed. - Lisboa: Temas e Debates. 2009. p. 228-230. 291 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. 1 ed. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p. 29. 292 Na Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné, Zurara expõe que três são os motivos para as empresas em África, sendo elas: a salvação das almas, o beneficio gerado pela serventia e o acréscimo a honra do reino. P. 7 86 contexto. Pois, o discurso produzido visa responder as demandas de uma determinada época. Assim tem-se que o texto trata com insistência sobre a lealdade, em meio ao contexto da emergência de D. Afonso V, como já visto foi um período de disputas dentro da nobreza portuguesa. Desta forma, o texto de Zurara funcionava como um veículo para propagar este valor: a lealdade. Em uma sociedade marcada por relações pessoais, a lealdade entre o rei e seus pares implica uma série de compromissos em que nobreza e o poder régio se impunham. Assim escreve o autor ao narrar um episódio em que um dos servidores de D. Infante, o cavaleiro Lançarote, encontra-se em uma situação adversa: “De verdade vos digo, respondeu Lançarote, que essa era minha principal enteçom enteiramente, ante que vós em ello alg~ua cousa fallasses, e prazme seguir vosso propósito, porque assy me foe mandado pello Iffante meu snõr”293 Nesta passagem, as palavras de Lançarote sintetizam a ideia recorrente no texto de que os homens envolvidos nas expedições cumpriam ordens, e o que faziam era para mostrar sua lealdade ao infante. Para tanto, três aspectos desta lealdade são pertinente, o primeiro diz respeito a D. Henrique e a outros membros da nobreza, que mostrariam sua lealdade ao reino a partir de investimentos nas expedições marinhas, o segundo aspecto trata de um sistema de trocas em que o cumprimento das ordens garantia mercês, recompensas aos homens leais e em contraposição, o terceiro aspecto relegava aos homens que não conseguiam cumprir suas ordens, a vergonha. Sobre o primeiro aspecto Zurara registra: “(...) mas de sua soombra, cujo grande engano foe causa de muy grandes despezas, ca doze annos continuados durou o iffante em aqueste trabalho, mandando em cada hu~u anno a aquella parte seus navyos, com grande gastos de suas rendas, nos quaaes nunca foe algu~u que se atrevesse de fazer aquella passagem.” 294 Logo, o trecho remete aos gastos empreendidos na conquista de territórios em África, promovidos por nobres, dentre eles D. Henrique a quem a crônica se dedicou a louvar. Assim, reforça-se o papel da nobreza no âmbito das conquistas, simbolizados na figura de D. Henrique a quem a lealdade e os esforços a favor dos empreendimentos em África são reconhecidos e, por isso, também propagados através da crônica. Há de se considerar que os empreendimentos em África eram de sobremodo onerosos a Coroa, como também era custoso a manutenção dos territórios ocupados. Os custos das expedições eram a principal denúncia dos grupos contrários à guerra, como argumentou D. Pedro: “enquanto essa estiver ordenada como agora está, que é muito bom sumidouro de gentes de nossa terra e de armas e de dinheiro”.295 O segundo aspecto trata das promessas de mercês em que os portugueses e estrangeiros que serviam a D. Henrique esperavam, isto é, a recompensa pela sua lealdade ao infante. Como no trecho abaixo “(...) e em esto ponho toda a esperança doque mais posso

293ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné. Paris: Casa de J. P. Aillaud, 1841. 294 ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné. Ibid. p .53 e 54 295 Monumenta Henricina. Org. José Manuel Carcia. 15 vols. Vol. III. Lisboa: Presença, 1961. p. 148. Apud MICHELAN, Katia Basilino. CEUTA, PARA ALÉM DA TERRA DOS MOUROS :A fabricação histórica de um marco do império português (século XV e início do XVI): Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, 2013. 87 guaanhar em esta vyagem, o qual nom será pouco pera my, pois conheço do snõr Iffante que me fara mercee e honra por ello deque possa cobrar mayor proveito”.296 Como também nesta passagem : “(...) em nome do iffante seu snõr, o trabalho que filhara por seu serviço, e muyto mais a boa voontade com que o fezera, poendo em sperança de receber por ello outras muyto mayores mercees das que ata ally recebera” 297 E nesta: “E dally fezerom vella dereitamente a Lixboa, onde pagado o dereito ao Iffante, receberom delle honra e mercee”.298 Deste modo, é possível argumentar que o discurso do texto de Zurara conformou-se em apresentar a lealdade como um aspecto positivo e recompensador, pois, aqueles que cumpriam as ordens estariam em posição de receberem mercês pelos seus serviços. O terceiro aspecto importante, neste sentido, era a vergonha destinada aos cavaleiros ou não cavaleiros a serviço do senhor. Assim Zurara registra: Imaãos e amigos! Nos teemos já nossa carrega, como veedes, na qual acabamos a principal força de nosso mandado, e bem nos podemos tornar, se mais nom quisermos trabalhar a allem daquello que nos principalmente foe encomendado; mas quero porem saber de vos outros, se vos parece que he bem que tentemos de fazer alg~ua cousa, perque aquelle que nos ca envyou, possa conhecer alg~ua parte de nossa boa voontade, ca me parece que serya vergonha tornamos assy ante a sua presença, com tam pequeno serviço. 299 Segundo o autor, este discurso fora pronunciado por um Antam Gonçalvez, que fora ordenado cavaleiro300, devido aos serviços prestados a D. Henrique e no trecho é possível perceber que o não cumprimento de uma determinada ordem ou missão era encarado como uma afronta direta ao infante. Portanto, uma falha de lealdade em relação ao seu senhor e por isso gerava vergonha aqueles que não faziam o que fora ordenado. Se por um lado a lealdade era estimada, a vergonha era o seu oposto. O autor a apresenta como uma mácula que deveria ser evitada, portanto, era mais louvável morrer pela causa de seu senhor, do que não cumpri-la: “E porem averam gallardom de Deos todos aquelles que esta estorya leerem, se da morte daquestes fezerem memorya com suas oraçoões, ca pois em serviço de Deos e de seu senhor morrerom, bem aventurada he a sua morte”301. Já em relação a D. Pedro, este não é rechaçado nas crônicas, sua participação na tomada de Ceuta é inscrita na história oficial do reino, embora não seja tão celebrada com a de seu irmão D. Henrique. Nas crônicas do Descobrimento e Conquista da Guiné, os avanços portugueses durante a sua regência são contados, mas, Zurara omite que tenham sido feitos no seu governo ou de alguma forma dirigido por sua administração302. Nesta forma de lidar com a figura de D. Pedro é possível perceber os ânimos após Alfarrobeira, ao passo, que D. Pedro não podia ser esquecido, pois era parte do legado de Avis, também, não poderia ser exaltado sem que com isso a vitória de D. Afonso V em 1449 fosse diminuída. Parece que a resolução

296 ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné. Paris: Casa de J. P. Aillaud, 1841. p. 272. 297 ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné. Ibid.p. 332. 298 ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné. Ibid. p. 351. 299 ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné. Ibid. p.71. 300 Gomes Eanes Zurara trata deste assunto no Capitulo XIII: “Como Nuno Tristan chegou onde era Antam Gonçalvez e como o fez cavalleiro”, a partir da página 77. 301 ZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné. Paris: Casa de J. P. Aillaud, 1841.. 302 GUIMARÃES, Jerry Santos. “Memória e retórica: mouros e negros na Crónica da Guiné (século XV).” In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 27, 2011, São Paulo. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História. São Paulo: ANPUH , 2011, p. 1-16. 88 do texto reverberou de certa forma a política do reino, visto que, ao passo de que no inicio do reinado, D. Afonso tentou reparar as perdas dos partidários de D. Leonor, durante seu reinado também o fez referente aos partidários de D. Pedro a época de Alfarrobeira. Seja por uma questão de justiça régia e por distribuição da magnificência, tais atitudes já estavam sinalizadas no Livro de Ensinança de cavalgar toda sela303, no qual o comportamento dos jovens fidalgos deveria se calcar no ideal cavaleiresco e também na aplicação aos estudos e na leitura de livros. Por outro lado, Zurara não deixou de escrever de forma negativa sobre as cidades, o que estaria em consonância com contexto político em que se deu a produção da Crônica da Tomada de Ceuta, pois, grande parte dos apoiadores de D. Pedro eram da fidalguia citadina: Nom tardou mujto que as nouas chegaram aa cidade, as quaaes fezeram em ella huú nouo aluoroço. porque todos estauam ja casi despercebidos de semelhamte mouimento, por cuja rrezom lhes foy necessário de sse trigarem pêra tornarem todo a correger. ca o espaço era muy breue pêra sse mouer tamanho feito. O e forom logo dados pregoões, que ataa terça feyra per todo o dia fossem todos rrecolhidos a sua frota. Boom he de comsijrar que mamdado tam trigoso de semelhamtes cousas, nom lhes daria gramde espaço pêra dormir. Mujtas cousas fallaria aqui se quisesse, açerqua dos desuayrados juizos que sse dauam sobre aquella partida, espiçiallmente a gemte do pouoo, culpamdo mujto elRey, porque fazia semelhamte mouimento. dizemdo que o prioll do Espitall com suas sotillezas mouera primeiramente aquelle feito, e que elle tiraua ajmda elRey agora de seu ssiso. Outros diziam que elRey nom quisera partir, posto que aquelle ajumtamento assy esteuesse feito, uistos os marauilhosos sinaaes que lhe acomteceram, mas que o prioll jmduzira os Iffamtes, e que elles como homeés mamçebos deseiadores de cousas nouas, aficaram seu padre tamto que ofezeram partir comtra sua uoomtade. 304. Portanto, ao tratar sobre as questões referentes à historiografia de D. Afonso e sobre os efeitos de Alfarrobeira, pretende-se demonstrar que a dinâmica das relações sociais, em um período em que tais relações estavam intrinsecamente ligadas à determinação de certas posições políticas. Significou para Portugal a formação de um contexto que permitiu a conquista de honra e riqueza para fidalguia lusa, como também reforçou o poder régio através da ampliação de bens que estariam à disposição da monarquia para serem distribuídos e concretizou laços de dependência, bem como ajudou a deslocar as tensões de uma nobreza guerreira para fora do reino.

303 Dom Duarte. Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1986 304 ZURARA, Gomes Eanes de. Cronica da tomada de Ceuta por el rei d. João I. 1 ed. Lisboa: Academia de ciências de Lisboa, 1915. p. 151. 89

CONCLUSÃO

Vale salientar que o processo de expansão marítima português, antes de ser um movimento linear, isto é, de avanços contínuos, foi marcado por percalços e até mesmo por retrocessos. Mas que tal empreendimento, contado através das crônicas do século XV, com destaque para as obras de Gomes Eanes de Zurara, tinham como objetivo criar uma memória de exaltação aos feitos portugueses e que este texto foi retomado, em outros momentos da história, para reafirmar o papel dos portugueses na expansão europeia. Como também para engrandecer a presença europeia em África. Desta forma, pôde-se perceber a relação entre a sociedade portuguesa, em fins da Idade Média, com destaque para a corte lusitana e seus principais atores sociais e a produção cronísitica. Neste sentido, o governo de D. Afonso V tornou-se um ponto interessante de observação da temática, visto que, como um reinado que pode ser entendido, como um período de fortes mundanças, dos quais mais do que rótulos de arcaísmo ou modernidade, foi um período em que tomavam forma aspectos da governança que, posteriormente, iriam ser considerados traços de progressos, como o incremento das navegações, refenciado por historiadores como Oliveira Martins305, crítico mordaz de D. Afonso V, como o grande feito digno de nota realizado pelos portugueses, ou mesmo John K. Thorton306, que indicou que no governo afonsino o monopólio da exploração da costa africana passou a coroa, revelando uma política centralista da coroa. Ao passo que ainda estavam bastante presente aspectos do comportamento, tanto político, como social que viriam a ser considerados como retrógrados, como o dito espírito da cavalaria. O chamado último rei cavaleiro307, carregaria em suas ações, as contradições de um governante que teria chegado atrasado ao seu próprio tempo. Através das crônicas de Zurara foi possível vislumbrar que um desses aspectos do pensamento medieval ainda percebida, era a relação com o passado. O texto cronísitco, consagrou-se como um artifício de exaltação da memória. Neste sentido, o recurso da memória objetivava a cristalização de um determinado fato, geralmente lisonjeiro ao rei, ou a casa reinante, a partir desta afirmação de um determinado relato convinha que ele não se perdesse, daí a escrita dos fatos se consolida em contrapartida ao esquecimento. Esta narrativa memorialista, ratificava o caráter divino em relação aos potugueses, e conectava seus feitos militares a desígnios celestiais, a vitoria, neste sentido, era encarada como confirmação de um serviço prestado a Deus. Como também, o registro fundamentava a conquista, bem como o controle. Quando o cronista apresentava histórias antigas em seus relatos indicava a ancestralidade da presença cristã na Àfrica, por exemplo. A narrativa também confirmava alianças, isto é, quais personagens eram dignos de nota, que poderiam reclamar junto ao rei, a recompensa pelos seus serviços à monarquia, ou até mesmo, os serviços de sua família. A memória presente no texto cronístico também engrandece o reino português, o destaca dos demais, revela sua predestinação a grandeza frente aos outros. As crônicas de Zurara também apresentam o acréscimo de riquezas que as expedições poderiam trazer ao reino, a produção de memória operacionalizada pelo cronista para exaltar a manutenção das conquistas, as compara como os heróis do passado, e, em alguns momentos apontava que os feitos portugueses poderiam ser até mesmo superiores aos dos antigos. O passado era a inspiração, notamente, os feitos militares. Desta forma, a história que deveria ser preservada eram as narrativas de guerras e de confrontos. Tanto a Crônica da Tomada de Ceuta, quanto a Crônica do descobrimento e conquista da Guiné dizem respeito a processos

305 OLIVEIRA, J. P. Martins. História de Portugal. v.1. 7 ed. - Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira Livraria Editora, 1908. 306 THORTON, John K. “Os portugueses em África”. In: BETHENCOURT, Francisco e CURTO, Diego Ramada. A expansão marítima portuguesa, 1400-1800. Tradução: Miguel Maia. Lisboa: Edições 70, 2010. 307 GOMES, Saul. D. Afonso V, o africano. 1 ed. - Lisboa: Temas e Debates. 2009. 90 de guerra, bem como ajudam a construir a legitmidade da interferência portuguesa em África. A partir, sobretudo, do recurso a ancentralidade do processo, sinalizando a importância da dinastia de Avis, como também salientar a grandeza da cristandande e dos portugueses através da sua ação nas conquistas do ultramar. Neste sentido, a partir do segundo capítulo foi possível compreender que tal construção perpassou muitas das narrativas posteiores, e, em alguns casos transcorreram as análises ulteriores. O texto cronistico foi bastante eficiente na construção de marcos temporais, como também na promoção de alguns personagens. Bem como a evolução do debate historiográfico relativo ao tema, foi de suma importância pra o desmonte das interpretações tradicionais e lançaram olhar sobre diversas outras questões e peculiaridade do processo de expansão marítica. Diante disso, os autores apontaram os diversos fatores que concorram para que a expansão marítima fosse possível naquele tempo e da maneira em que ocooreu. Foi sustentado por uma série de interesses que foram cambiáveis no tempo, isto é, estavam suscetíveis ao período, em consonância com as diretrizes dos grupos sociais que podiam estabelecer suas demandas como ações governamentais. Por outro lado, os descobrimentos e a permanência dos portugueses nos territórios visitados, ou mesmo, controlados, estiveram também em concordância com a possiblidades materiais, tanto de ordem técnica, mas também, de acordo com as políticas de manutenção da presença portuguesa postas em prática. O marco da tomada da cidade de Ceuta no ano de 1415 foi colocado em perspectiva, pois, sua importância foi, sobretudo, pela construção discursiva que atrubiu a essa batalaha o papel decisivo no processo de expansão marítima. De fato, a conquista da cidade do norte da África, mas, considerá-la como tal e minimizar toda uma série de problemas acarretados pela ocupação da cidade, seus custos tanto material como de pessoal foram recorrentes tópicos de reclamação308. D. Pedro, duque de Coimbra fora um dos porta-vozes deste desagravo. A derrota no Tânger, em 1437, outro exemplo que a expansão ultramrina foi permeada de reveses e que a tomada de Ceuta obteve bastante peso simbólico, mas, a prática destas expedições demandou muitos problemas, debates e discussões, muito tempo depois do assalto a cidade magrebina. Dentre os diversos personagens que recortam as crônicas de Zurara, na Crônica da Tomada de Ceuta e na Crônica do descobrimento e conquista da Guiné, D. Henrique fora uma figura que recebeu bastante destaque através da pena do cronista. Mas, mais do que seu alcance individual, a análise do texto referente ao duque de Viseu foi de sobremaneira indispensável para o entendimento de determinadas ensejos socias, que foram demostrada por Zurara, através a ação do navegador. Como dito acima, muitos foram os fatores que contribuíram pra o processo de expasnão ultramarina. No entanto, no caso de Portugal, tal conjutura foi favorecia pela formação de certo quadro das relações de poder. Neste sentido, os anos inícias do governo de D. Afonso V são pertinentes para o entendimento das diferentes demandas sociais. O conturbado período de ascensão do africano ao trono contribuiu para que as diferentes formas de possibilidades da condução da política lusinata viessem à tona. Tais animosidades chegaram ao ápice, quando da eclosão da Batalha de Alfarrobeira, o acumulo de ressentimentos desde a prematura morte de D. Duarte, acharam ocasião de se manifestar no inicio da governança de D. Afonso V. Parte da nobreza, descontente com os rumos da política portuguesa após a abertura do testamento de D. Duarte e de toda a crise que envolveu sua viúva e o duque de Coimbra. Encontrou no jovem monarca a possibilidade de desfazer parte dos arronjos feitos na regência petrina.

308 MORENO, Humberto Baquero. A Batalha de Alfarrobeira: Antecedentes e Significado Histórico. 2 ed. - Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1979. 2 vols. 91

Após o confronto em Alfarrobeira, integrantes da nobreza saem fortalecidos e o jovem rei precisou lidar com as implicações desta conformação de poderes. Assim sendo, antes do que classificar quais reis foram mais eficientes do que os outros, no processo de centralização do poder. Interessou demonstrar no terceiro capítulo, como em um dado contexto, certas atitudes do monarca são possíveis e em outros períodos não, dependendo da correlação de forças. Com isso, mais do que compreender as estratégias da consolidação da casa de Avis à governança de Portugal, importou entender a articulação dos grupos sociais, que ora promoveram períodos de expansão das prerrogativas régias, ao passo que, em outros momentos, geraram épocas de estagnação destas prerrogativas. Até mesmo contextos em que as demandas da nobreza e do poder régio não foram avessas umas a outra. A análise das crônicas de Gomes Eanes de Zurara permitiu vislumbrar como no campo dos exemplos, as crônicas indicavam como deveriam ser conduzidas as relações entre a nobreza e o poder régio. Desta forma, mostrou a importância do incremento da nobreza nos empreendimento em África e como tais ações desencadeavam uma série de obrigações entre suseranos e vassalos, calcadas no ideário de serviço e gratidão, na lealdade e na relação de dependência entre monarquia e a aristocracia. Para entender essa correlação de forças, buscou-se aprofundar o estudo das questões pertinentes à fundamentação teórica do poder político, como este se constrói a partir da dinâmica dos grupos sociais. Procurou-se investigar como certos anseios de determinados grupos acabam por se impor a toda a sociedade, ainda que estas demandas beneficiem, inicialmente, um determinado grupo. Portanto, este estudo intentou promover análise de como os descobrimentos foram processos interligados a configuração política que se deu em Portugal, sobretudo, após a Batalha de Alfarrobeira e a articução do poder régio com a nobreza de alta estirpe no reino, como também, examinar as possibilidades de estudo deste período, engendrada pela consulta as fontes cronisticas, notadamente, os dois primeiros textos e Gomes Eanes de Zurara e como estes permitem perceber os interesses da aristocracia no incremento da presença portuguesa no ultramar, bem como tratar da construção de um determinado relato sobre os feitos dos lusitanos em África.

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