A Função Intertextual Do Cordel No Cinema De
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Sylvia Regina Bastos Nemer A FUNÇÃO INTERTEXTUAL DO CORDEL NO CINEMA DE GLAUBER ROCHA TESE DE DOUTORADO ORIENTADORA : IVANA BENTES ESCOLA DE COMUNICAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Rio de Janeiro, fevereiro de 2005 2 A Sergio, pelo apoio sem limites e a Marcos e Lívia que conviveram com minhas angústias e ausências. 3 Agradecimentos Agradeço em primeiro lugar a Ivana Bentes pela maneira como conduziu a orientação, incentivando-me, dando-me liberdade para desenvolver um ponto de vista próprio, mas, ao mesmo tempo, questionando-me e contribuindo com sua experiência para ampliar as discussões levantadas durante a pesquisa. Devo muito também a Idelette Muzart Fonseca dos Santos que me acolheu na Universidade Paris X-Nanterre, orientou minhas pesquisas sobre literatura de cordel e me deu oportunidade para participar de jornadas e seminários que possibilitaram a discussão do projeto com especialistas internacionais. Agradeço ainda à CAPES pela bolsa que permitiu minha dedicação exclusiva ao doutorado e pela bolsa-sanduíche concedida pelo período de um ano para realização de um estágio em Paris que foi absolutamente central para os rumos do presente trabalho. 4 “Pois, assim como os cacos de um vaso, para poder se deixar juntar, precisam seguir-se nos mínimos detalhes, no entanto não igualar-se, assim também deve a tradução, em vez de se tornar semelhante ao sentido do original, de maneira amorosa e até no menor detalhe deve ela se conformar, na sua própria língua, à maneira de querer dizer do original, a fim de que ambas línguas como cacos se tornem reconhecíveis enquanto fragmento de um vaso, fragmento de uma língua maior.” (Walter Benjamin. Die Aufgabe des Übersetzers (A Tarefa do Tradutor) citado por Jeanne Marie Gagnebin. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo, Perspectiva, 1994, p 30) 5 Resumo Esperando contribuir para ampliar as discussões sobre o problema da intertextualidade fílmica, o objetivo do presente trabalho é refletir sobre a apropriação da literatura de cordel em Deus e o diabo na terra do sol (1964) e em O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), filmes de Glauber Rocha dedicados à representação do universo social e cultural sertanejo. A preocupação do cineasta com a forma de representação, discutida em seus textos Estética da fome (1965) e Estética do sonho (1971), reflete-se, nos dois filmes estudados, no modo como estes lidam com o cordel. Recusando o tratamento da temática sertaneja pelo cinema político da época, o cineasta procurava retratar o sertão a partir de suas próprias tradições que passavam, contudo, por um processo de transformação visando a sua adaptação, em primeiro lugar, à narrativa cinematográfica e, em segundo, a uma perspectiva política inexistente nas manifestações da cultura popular. Isso explica porque as composições, tanto as canções de Deus e o diabo quanto as falas, inspiradas nos desafios repentistas, de O dragão da maldade, foram feitas por artistas letrados como Sergio Ricardo e o próprio cineasta que escreveu as respectivas letras. Com base nessas questões, o presente trabalho procura verificar o que os referidos filmes retêm da tradição popular do cordel e o modo de expressá-la cinematograficamente. Abstract This work aims to discuss the problem of film intertextuality by the analisys of literatura de cordel appropriation in the films of Glauber Rocha where the sertão, its social and cultural universe, is focused : Deus e o diabo na terra do sol (1964) and O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969). The question of form representation, discussed in his texts Estética da fome (1965) and Estética do sonho (1971), is reflected, in these two films, in the way the cordel is treated in each one. Refusing the approach of the sertão subject by the political cinema of the epoch, the cineaste looked for one kind of expression that incorporated the people’s traditions of the region represented. These traditions, however, were not translated literally. They were, in fact, transformed to be adapted into the cinematographic language and also into the political perspective that originaly inexisted in them. This explains why the compositions of both films, the songs of Deus e o diabo as much as the dialogues inspired by the desafios repentistas of O dragão da maldade, were created by learned artists such as the cineaste himself, and the musician Sergio Ricardo that made its musics. Based on these questions, the present work verifies what the mentioned films keep from the cordel popular tradition and the way they express it cinematographicaly. 6 Sumário Introdução………………………………………………………………………………………… 7 Capítulo 1: A reinvenção da tradição…………………………………………………………….11 1.1 – a adaptação cinematográfica do cordel……………………………………………………..12 1.2 – o cordel e suas histórias…………………………………………………………………….22 1.3 – a literatura de cordel e as novelas de cavalaria.....………………………………………….29 1.4 – o mito do cangaceiro e outros mitos………………………………………………………..35 1.5 – a representação do Nordeste no panorama cultural dos anos 1960………………………...49 Capítulo 2: Deus e o diabo na terra do sol: a função da canção…………………………………64 2.1 – canção e transformação…………………………………………………………………….65 2.2 – o som e a imagem em relação ao ritmo…………………………………………………….73 2.3 – a dupla temporalidade………………………………………………………………………84 2.4 – o efeito de pontuação da canção……………………………………………………………94 2.5 – a canção e a construção dos personagens…………………………………………………103 2.6 – elaboração do ponto de vista narrativo……………………………………………………115 Capítulo 3: O dragão da maldade contra o santo guerreiro : a encenação do desafio…………125 3.1 – o desafio e a performance popular (a participação do público)…………………………...126 3.2 – o espectador e o espetáculo cinematográfico……………………………………………...133 3.3 – o western visto por Glauber Rocha………………………………………………………..145 3.4 – o teatro da violência e o novo espectador…………………………………………………151 3.5 – cultura popular e carnavalização………………………………………………………….161 3.6 – a revolução não pode prosseguir sem(…)..……………………………………………….169 Capítulo 4: Os sertões de Glauber Rocha: 1964 e 1969………………………………………...172 Capítulo 5: O sertão e outros sertões……………………………………………………………186 5.1 – o sertão dos primeiros filmes……………………………………………………………...187 5.2 – o sertão do exílio e depois(...)……………………………………………………………..195 5.3 – o problema do significado em História do Brasil………………………………………...205 Conclusão……………………………………………………………………………………….209 Lista dos filmes citados…………………………………………………………………………212 Bibliografia……………………………………………………………………………………...214 Anexo : DVD, filme de 26 minutos sobre o tema da tese 7 Introdução A construção de imagens do ‘real’ como resultado da produção cinematográfica e das diversas estratégias e técnicas de filmagem tem sido um distintivo importante da comunicação visual frente às demais formas de discurso. Não é à toa que nas reflexões contemporâneas que redefinem a pesquisa no campo da imagem as questões relativas ao ‘real’ estejam no foco das atenções. No cerne destas discussões está a afirmação de que o cineasta, faça ele documentários ou cinema de ficção, nunca abandona sua condição de autor. Ele é parte constitutiva da realidade representada, à qual as imagens, mesmo em se tratando de imagens do ‘real’, não fornecem acesso direto, embora normalmente criem essa ilusão. Nesse sentido, como os estudos da comunicação podem se beneficiar das imagens cinematográficas em sua abordagem do ‘real’? Considerando as imagens como registros frágeis do ‘real’, procuraremos neste trabalho, compreender o tipo de realidade retratada em Deus e o diabo na terra do sol (1964) e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), filmes de Glauber Rocha dedicados à representação do espaço social e cultural do Nordeste. Privilegiando a dimensão do imaginário em sua aproximação do ‘real’, esses filmes constituem experiências importantes no campo da ‘transposição’ da literatura popular oral para a expressão cinematográfica. Partindo do pressuposto de que a literatura de cordel expressa, de certo modo, a visão de mundo do público sertanejo a quem originalmente se dirige, qual seria o sentido de sua ‘apropriação’ por uma manifestação artística dirigida a um público urbano? Como a arte popular do cordel é ‘traduzida’ para as imagens cinematográficas? Como o sertão aparece nessas imagens? Para refletir sobre essas questões realizaremos uma análise da relação intertextual entre a literatura de cordel e os dois filmes de Glauber onde o cordel funciona como elemento estruturador da narrativa. 8 Nesse sentido devemos deixar claro que a ‘transposição’, de que falamos há pouco, não é direta e tampouco literal é a ‘tradução’. Não se trata da representação (tal como o termo costuma ser considerado) cinematográfica da poesia de cordel, mas da tentativa de levar para a tela sentimentos e ações que estão na raiz dessa poesia, mobilizando, por meio da imagem e da fala, os mitos sertanejos que circulam nos folhetos de cordel bem, como a carga de energia mágica, mística e criativa que envolve o cantador e seu público. Assim, aquilo que do cordel os filmes se apropriam não é nada além de seus fragmentos. Pois, sejam quais forem os textos assimilados, o estatuto do discurso intertextual é comparável ao duma super-palavra, na medida em que os constituintes deste discurso já não são palavras, mas sim coisas já ditas, já organizadas, fragmentos textuais. A intertextualidade fala uma língua cujo vocabulário é a soma dos textos existentes.1 Partindo dessas questões (da representação do real, da relação entre o real e o imaginário, da transmissão da tradição e sua