POP O corpo-som das cantoras na cultura midiática

Thiago Soares Mariana Lins Alan Mangabeira

(Organizadores)

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DIVAS POP O corpo-som das cantoras na cultura midiática

Thiago Soares Mariana Lins Alan Mangabeira

(Organizadores)

s i a s r e v s n a r { olhares t UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Reitora: Sandra Regina Goulart Almeida Vice-Reitor: Alessandro Fernandes Moreira

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Diretor: Bruno Pinheiro Wanderley Reis Vice-Diretora: Thais Porlan de Oliveira

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO Coordenador: Bruno Souza Leal Sub-Coordenador: Carlos Frederico de Brito D’Andréa

SELO EDITORIAL PPGCOM Carlos Magno Camargos Mendonça Nísio Teixeira

CONSELHO CIENTÍFICO Ana Carolina Escosteguy (PUC-RS) Kati Caetano (UTP) Benjamim Picado (UFF) Luis Mauro Sá Martino (Casper Líbero) Cezar Migliorin (UFF) Marcel Vieira (UFPB) Elizabeth Duarte (UFSM) Mariana Baltar (UFF) Eneus Trindade (USP) Mônica Ferrari Nunes (ESPM) Fátima Regis (UERJ) Mozahir Salomão (PUC-MG) Fernando Gonçalves (UERJ) Nilda Jacks (UFRGS) Frederico Tavares (UFOP) Renato Pucci (UAM) Iluska Coutinho (UFJF) Rosana Soares (USP) Itania Gomes (UFBA) Rudimar Baldissera (UFRGS) Jorge Cardoso (UFRB | UFBA)

www.seloppgcom.fafich.ufmg.br Avenida Presidente Antônio Carlos, 6627, sala 4234, 4º andar Pampulha, Belo Horizonte - MG. CEP: 31270-901 Telefone: (31) 3409-5072 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG) Divas Pop [recurso eletrônico] : o corpo-som das cantoras na cultura midiática / Organizadores: Thiago Soares, Mariana Lins, D618 Alan Mangabeira. – Belo Horizonte, MG: Fafich/Selo PPGCOM/ UFMG, 2020. 266p.

Formato: PDF Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia ISBN 978-65-86963-20-5

1. Comunicação Social. 2. Celebridades. 3. Cultura pop. I. Soares, Thiago. II. Lins, Mariana. III. Mangabeira, Alan. CDD 306

Elaborado por Maurício Armormino Júnior – CRB6/2422

CRÉDITOS DO E-BOOK © PPGCOM/UFMG, 2021.

CAPA E PROJETO GRÁFICO Atelier de Publicidade UFMG Bruno Guimarães Martins

COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO Bruno Guimarães Martins Daniel Melo Ribeiro

DIAGRAMAÇÃO Rafael Mello

O acesso e a leitura deste livro estão condicionados ao aceite dos termos de uso do Selo do PPGCOM/UFMG, disponíveis em: https://seloppgcom.fafich.ufmg.br/novo/termos-de-uso/

Sumário

Prefácio Por uma gramática feminina da música pop 11 Gabriela Almeida

Apresentação 15

I. Tropicalizando Divas Capítulo 1 Divas pop: o corpo-som das cantoras na cultura midiática 25 Thiago Soares

Capítulo 2 Carmen Miranda, uma tropicamp 43 Suzana Mateus

Capítulo 3 Anitta no Rock in Rio: negociações de corpos e territórios em performances de divas pop-periféricas 65 Simone Pereira de Sá Capítulo 4 A fabulosa aventura de uma diva: , top-drag brasileira 81 Rose de Melo Rocha

II. Deusas da Voz Capítulo 5 Divatização: A deificação das mulheres popstars modernas 111 Linda Lister

Capítulo 6 Maria Callas, uma casta chamada Diva 127 Fernando Gonzalez

Capítulo 7 Autoconstrução, canonicidade e exagero: Lady Gaga no Oscar 2015 143 Daniel de Andrade Lima

III. Vidas, mercados, afetos Capítulo 8 This is show business: A cultura dos megaespetáculos pop e a invenção do “padrão ” 165 Mariana Lins

Capítulo 9 Devir diva: experiência estética na peregrinação de fãs de Britney Spears a Las Vegas 181 Alan Mangabeira

Capítulo 10 The Carters: performances, roteiros e dramas de um casal em crise 201 Leonam Della Vecchia Capítulo 11 “The Realest”?: Performance de uma autenticidade pop-rap em “Fancy” 221 Mário Augusto Rolim

Capítulo 12 “Hoy lo intentaré”: as relações performáticas na “Convivência Dulce Amargo” 241 Rafael Chagas Sobre as autoras e os autores 261

Prefácio Por uma gramática feminina da música pop Gabriela Almeida

Os estudos sobre Música e Entretenimento desenvolvidos no campo da Comunicação no Brasil têm se mostrado relevantes por inúmeras razões: é possível apontar, por exemplo, que a abordagem dos processos de produção, circulação e consumo da música popular massiva permite pensar na centralidade da experiência estética e do afeto para a compre- ensão dos fenômenos do mundo histórico no presente. Esses trabalhos também têm permitido discutir a cultura pop, de forma ampla, tomando sua importância social como algo dado, sem que seja mais necessário justificar a análise de objetos dela oriundos a partir de critérios como um valor “objetivo” qualquer que validaria o seu estudo. E quando a pesquisa avança, tomando pontos de partida mais complexos e percorrendo caminhos mais ricos e verdadeiramente inter- disciplinares, produzindo cruzamentos com áreas como a Sociologia, a História, as Artes, a Estética, a Etnografia e a Performance, os estudos de Música e Entretenimento passam a produzir inovação e arejar o campo da Comunicação não apenas em função da atualidade de seus objetos, mas também da originalidade de suas propostas teóricas e metodoló- gicas. 12 DIVAS POP

Os artigos reunidos no livro Divas Pop: O corpo-som das cantoras na cultura midiática de alguma forma refletem o processo de amadureci- mento desses estudos nos últimos quinze anos, ao mesmo tempo em que produzem um gesto político no seu próprio desvio, ao colocar em cena a figura dadiva pop e assumir a centralidade de um recorte de gênero que materializa uma série de tensões e disputas colocadas não apenas no campo da produção e do consumo da música, mas também da crítica e da pesquisa. Seja em termos empíricos, teóricos ou políticos, esse livro guarda uma gramática feminina. Num processo genealógico que remonta ao início do século 19 e à figura de Maria Malibrán e chega no pop contemporâneo, o livro percorre um caminho que vai de Maria Callas (apontada como a primeira e provavelmente maior diva da música do século 20) e Carmen Miranda até Anitta e . Os capítulos do livro costuram um caminho que mapeia: 1) a importância de uma compreensão expandida da noção de performance, fundamental para analisar aspectos centrais das traje- tórias das cantoras analisadas; 2) a relação entre o sistema de crenças e afetos dos fãs e a dimensão essencialmente comercial da trajetória dessas artistas; 3) as relações de gênero e as ambiguidades envolvidas nos papeis desempenhados por cantoras mulheres e drags no mains- tream; 4) os valores que norteiam diferentes noções de autenticidade na música popular massiva e que estão intimamente ligados às rela- ções de gênero mencionadas acima, no caso das divas pop; 5) as formas de reivindicar autenticidade convocadas por essas artistas de quem a autenticidade é frequentemente colocada em suspeita pela crítica, pelos fãs de gêneros musicais que se creem mais autênticos e eventualmente pelos seus próprios fãs; 6) elementos acionados pelas cantoras pop para a construção de uma materialidade visível tanto no seu corpo quanto, de forma mais ampla, no universo estético que constroem para si, e que Thiago Soares denomina de“ corpo camp” e, por fim, 7) as constantes disputas e negociações de diversas ordens que marcam a carreira das divas pop como uma relação permanentemente pendular entre a segu- rança e o risco, o clichê e a renovação. É fundamental que o livro aponte, por exemplo, que a ideia de música pop como banal e efêmera – ou seja, desimportante porque perecível – PREFÁCIO 13 surge em um contexto de crítica e pesquisa sobre música produzidas por homens, predominantemente fãs de rock. Isso faz com que, ao longo das últimas quatro décadas, o pop tenha se consolidado como música de mulher e de LGBTQIA+, voltada a segmentos sociais que manifestam uma abertura maior a expressões que lidam com o exagero e a afetação, com o kitsch, com o espalhafatoso, eventualmente com alguma fragili- dade e delicadeza, ou seja, com aquilo que é considerado tipicamente feminino ou queer. Não por acaso, o rock – justamente o gênero musical que costuma ser colocado como contraponto do pop – alijou as artistas mulheres, com exceção daquelas que conseguiram jogar com a sua própria beleza física para transitar e ocupar os espaços que desejaram, como aconteceu com Nico e . Ou ainda, de outras raras mulheres que tiveram seu trabalho considerado pelas instâncias de consagração da crítica musical (em geral bastante masculinistas) como bom ou sério o sufi- ciente para que pudessem integrar como autoras um certo do cânone do rock, como Patti Smith, Joni Mitchell ou Janis Joplin. Esse cenário se desenhou de modo que o reconhecimento artístico das cantoras mulheres fosse proporcional às suas aparentes qualidades intelectuais e ao domínio autoral que demonstrassem em relação à sua própria obra. Aos homens é designado o mundo sério e intelectualizado do rock e o fã típico de rock ainda hoje em muitos casos se constroi discursivamente com base na distinção, por mais anacrônico que isso possa parecer. Às mulheres e pessoas queer, o colorido, a afetação, o exagero, a dança e a banalidade do pop. Essa própria diferenciação nos diz da dimensão política dos afetos e dos gostos e da competição imagi- nária entre valor artístico e uso do corpo, atributos com pesos bastante desiguais nos contextos de produção e consumo da música popular massiva. Cada capítulo do livro é dedicado a uma cantora, mas, longe de uma abordagem excessivamente descritiva de suas carreiras, os olhares empregados são múltiplos, ainda que alguns autores e perspectivas teóricas apareçam em vários artigos, conferindo unidade à proposta da coletânea. As noções de performance em Diana Taylor e Simon Frith são bastante centrais para as argumentações de alguns dos textos, bem como 14 DIVAS POP

a apropriação das contribuições de Victor Turner sobre peregrinação e ritual para pensar a dinâmica das relações entre fãs e divas e os escritos de Hans Ulrich Gumbrecht sobre experiência estética e produção de presença. Não menos importante, o livro traz uma tradução inédita do texto “Divatização: A deificação das mulheres popstars modernas”, de Linda Lister, publicado originalmente em 2001, que fornece impor- tantes elementos para pensar na constituição das cantoras pop do século 21 como divas e inclusive para questionar, como acontece no livro, por que, de repente, quase qualquer cantora pop é considerada uma diva. A fluidez dos textos, a escrita em primeira pessoa, a assunção do envolvimento pessoal dos pesquisadores com seus objetos sem sacri- fício ao rigor analítico e os relatos de experiências pessoais que são lidas à luz de uma autoetnografia mostram também que, para além das qualidades teórico-metodológicas dos estudos de Música e Entreteni- mento centrados na música pop, eles também são capazes de divertir. É possível, então, que o livro faça sentido não apenas às pesquisadoras e pesquisadores do campo da Comunicação em diferentes etapas de sua formação, mas também a um público interessado em entender as dinâ- micas sociais, econômicas, artísticas e afetivas que envolvem o consumo de música pop, o processo de celebrificação de artistas femininas e o culto às divas no presente. E que essa gramática feminina da música pop possa continuar abrindo espaços para uma dimensão festiva na pesquisa. Apresentação Organizadores

Quando começamos a gostar de divas pop nem havia tanta clareza deste termo “diva pop” – e ainda não há. Sequer havia pesquisas acadê- micas, em mestrados e doutorados, sobre o assunto no Brasil. Nem sabíamos que poderíamos estudar cantoras num exercício de descons- truir afetos, colocá-los em perspectiva. “Divas Pop: O Corpo-Som das Cantoras na Cultura Midiática” é o resultado das conjunções afetivas que nos direcionaram a pensar, com um conjunto de pesquisadoras e pesquisadores, sobre cantoras de música pop universidades brasi- leiras. Reúne doze artigos e ensaios sobre importantes cantoras da cultura midiática, incluindo suas possibilidades de análises, interpre- tações e agenciamentos. É a cristalização da atividade do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop (GruPop) com sede na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Recife, através da interlocução com a rede de pesquisadores de Comunicação e Música no Brasil – contando com suporte e financiamento através do projeto PROCAD-Capes, “Cartografias do Urbano na Cultura Musical e Audio- visual”. 16 DIVAS POP

Os movimentos que levaram à publicação deste livro são eminen- temente coletivos. Trata-se de tentar traduzir, de forma mais ampla, a construção dos objetos, suas metodologias e debates ocorridos no âmbito do GruPop para fomentar discussões sobre cultura pop junto com pesquisadores brasileiros convidados. Aqui abrimos um parênteses mais que necessário: o que faz um grupo de pesquisa numa universidade? As dinâmicas podem variar, mas no GruPop, a cada semestre, elegemos textos a serem debatidos de autores consagrados ou emergentes das diversas áreas do conhecimento: da Comunicação e dos Estudos Culturais, passando pela Antropologia, Sociologia, Filosofia, estudos de Performance, Gênero, Raça, entre outros. As leituras são orientadas a partir das demandas dos projetos de mestrado e doutorado que são aprovados nos processos seletivos anuais do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPE, tentando equilibrar aportes teóricos e metodológicos além de estudos empíricos – para nós sempre importantes nas estratégias de enfrentamento dos objetos e seus problemas de pesquisa. No ano de 2014, um profícuo debate sobre Performance se formou em nossas reuniões, criando interessantes zonas de problematizações sobre a forma com que artistas “atuam” na esfera midiática, suas encena- ções e atos performáticos. Trechos de shows, videoclipes, performances em premiações eram frequentemente trazidos à tona como aparato discursivo para debater estéticas, valores e ações no campo das mídias. Diante de um já consagrado lastro de autores dos estudos de Perfor- mance dentro das pesquisas de Comunicação e Música no Brasil, que derivavam da oralidade (notadamente os escritos de Paul Zumthor), propomos inclinar a mirada para textos que vinham do centro de Performance Studies da Tisch School of the Arts da New York Univer- sity (NYU), notadamente aqueles de Diana Taylor e Richard Schechner. Um livro central para fomentar nossas discussões foi, sem dúvidas, “O Arquivo e O Repertório – Performance e Memória Cultural das Américas”, em que Diana Taylor propõe, a partir de noções como performance e roteiro, metodologias para o debate sobre os enqua- dramentos das ações nas culturas, suas reencenações e apontamentos midiáticos. Sabíamos que estávamos num território sedutor e, também, APRESENTAÇÃO 17 perigoso, uma vez que, em sua obra, Taylor está debatendo marcada- mente ações performáticas teatrais e rituais globais, como a morte de Lady Di, o sucesso do “astrólogo” Walter Mercado, por exemplo. Ao passo que lidávamos, no GruPop, com objetos dos quais somos fãs. Além disso, tínhamos que promover aproximações epistemológicas que resultassem em potencializar as questões de Diana Taylor para o campo das artistas musicais. Perceber como as encenações midiáticas das divas pop compõem roteiros em que o biográfico e o ficcional se amalgamam e criam teias de sentidos e afetos entre fãs e artistas se configura numa das mais interessantes contribuições da obra de Diana Taylor em nossos estudos. Também há uma autorreflexividade nos trabalhos tanto de Taylor quanto de Schechner que nos afetou significativamente. Em que medida os afetos de fãs se infiltram no olhar dos pesquisadores, povoando a inter- pretação? Como proceder teórica e empiricamente diante dos limites do gosto e de sua performance? Em que medida o afeto por estes objetos levam a lugares de reflexão e conhecimento que esgarçam a prática cien- tífica? Como lidar com os melindres do olhar de um fã-pesquisador, como no caso de alguns objetos-pesquisadores do grupo? Na perspectiva pós-colonial, a qual também pontua os estudos de Performance, nos colocamos refletindo sobre os impactos da cultura pop anglófila (e mais marcadamente estadunidense) nas nossas pesquisas – e por extensão na cultura brasileira. Debater as divas pop significa reco- nhecer a forte presença de um imaginário global construído nas indús- trias do entretenimento dos Estados Unidos, que ao mesmo tempo que glorifica valores neoliberais (no corpo, no empreendedorismo, na ênfase no indivíduo) também abre brechas para pensar o coletivo, o político do gênero, da raça, das classes sociais inscritas nas obras destas artistas. Queremos pensar estes fenômenos tanto pela lógica do “soft power” (o que o poder das culturas globais faz com a cultura brasileira), mas sobretudo pelas dinâmicas de consumo que nos inclinam a perguntar: o que nós fazemos com estas divas pop? Se tomarmos a importância que a cantora Anitta passou a ter na cultura musical e midiática brasileira a partir de 2014, primeiramente emulando trejeitos que a ligavam cenica- mente a Beyoncé, para em seguida parecer reivindicar um olhar brasi- 18 DIVAS POP

leiro sobre a diva pop, a partir do videoclipe “Vai, Malandra” e também como a cantora pop brasileira se insere no contexto da América Latina em “Downtown” e “”, temos questões que nos ligam a duplos endereçamentos: o que “eles” fazem de “nós” e o que “nós” fazemos “deles”. Foi na tentativa de pensar a importância da cantora Anitta na cultura brasileira e suas mediações globais que convidamos Simone Pereira de Sá (da Universidade Federal Fluminense – UFF) para integrar esta obra com o artigo “Anitta no Rock in Rio: Negociações de corpos e territórios em performances de divas pop-periféricas”. O trabalho da autora debate uma série de questões presentes nos estudos desenvolvidos no GruPop: performance, territorialidade e o conceito de “pop-periférico” que nos ajuda a compreender as formas com que cantoras brasileiras negociam com o imaginário global. Quase num movimento de buscar as origens dos clichês, dos gestos e das brasilidades reencenadas no corpo de Anitta, o artigo “Carmen Miranda, uma diva tropicamp”, de Suzana Mateus (da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE) ajuda a compreender uma espécie de “grau zero” da ideia de diva na música brasileira. Olhando atentamente para as imagens de Carmen Miranda, emerge na escrita da autora um corpo-som de Carmen Miranda que afeta e é afetado pela tropicalidade camp. É o “carão”, a fechação e o espraiamento da ideia de diva pop que vão sublinhar o ensaio “A fabulosa aventura de uma diva: Pabllo Vittar, top-drag brasileira”, de Rose de Melo Rocha (ESPM-SP), um texto que nos convida a habitar a trajetória e as fabulações da drag queen Pabllo Vittar, cantora que desafia os discursos de ódio e de polarização polí- tica no Brasil com estéticas ora disruptivas, ora conciliatórias, sobre ser LGBTQ+ no país do Carnaval e do assassinato em massa destes sujeitos. Juntamente com o ensaio “Divas pop: O corpo-som das cantoras na cultura midiática”, de Thiago Soares, estes artigos formam a Parte I do livro “Tropicalizando divas”. Na tentativa de pensar um certo cânone dos estudos sobre divas pop, convidamos a professora e pesquisadora da Universidade de Nevada (Estados Unidos), Linda Lister, para compor a publicação com o seu APRESENTAÇÃO 19 artigo “Divatização: A deificação das mulheres popstars modernas”, publicado no periódico “Popular Music and Society” e só agora, vinte anos após sua escrita, traduzido para o português por Daniel de Andrade Lima. A partir do sucesso dos especiais de TV “Divas VH1 Live” que pautou o termo “diva pop” no imaginário global, Linda demarca cate- gorias estéticas que apreendem diferentes matrizes de canto e interpre- tação nos sistemas midiáticos. Trata-se de um texto que oscila leveza e densidade apresentando um vocabulário interessante para abordagem de fenômenos midiáticos. O texto de Lister abre a Parte II da obra intitulada “Deusas da Voz”, que naturalmente teria que ter um escrito sobre ela, Maria Callas. Convi- damos, então, o pesquisador Fernando Gonzalez (ESPM - SP) que estuda a questão da música clássica nos sistemas midiáticos e suas lógicas de distinção e apresenta o artigo “Uma casta chamada Diva”. Nele, o autor discute a gênese da figura emblemática da diva, tomando por base a trajetória da soprano greco-americana Maria Callas e a construção dos mitos femininos no segmento da ópera, apontando como essa narrativa é apropriada e reproduzida pela música pop até a atualidade. Ainda seguindo na questão da voz das divas pop, a performance de Lady Gaga na cerimônia do Oscar de 2015 é o objeto de análise no texto de Daniel de Andrade Lima (UFPE). O autor considera a apresentação da cantora na premiação como um lugar de legitimação e reivindicação do cânone vocal. Ele pontua questões teóricas a partir dos conceitos de Diana Taylor (2013) sobre arquivo e repertório para entender o roteiro performático e as encenações seguidas por Gaga, identificando elementos de negociação com as imagens da fase “mother monster” e a normatividade envolvida na persona do álbum “Joanne” (2016). Se a essência da diva pop se encontra no ambiente operístico, o formato dos espetáculos pop que as mantêm no mainstream, segundo a pesquisadora Mariana Lins, se filia à tradição do teatro musical estadu- nidense. No texto “This is show business: a cultura dos megaespectáculos pop e a invenção do ‘padrão Madonna’”, a autora mapeia e historiciza o modelo de shows adotado pelas divas pop na contemporaneidade, apresentado por Madonna, propondo uma análise estética – com base nas matrizes teatrais da Broadway – daquilo que chama de “padrão 20 DIVAS POP

Madonna”. É o artigo que abre a Parte III desta obra “Vidas, Mercados, Afetos”. Em “Devir Diva: experiência estética na peregrinação de fãs de Britney Spears a Las Vegas”, Alan Mangabeira (UFPB), fã de Britney, analisa a experiência estética de fãs que se deslocam em peregrinações a shows de corpos monumentais, com imagens e tons vocais arqui- vados pela memória, num vértice da utopia da diva. O propósito, nesse texto, não se restringe apenas a pontuar deslocamentos geográficos, mas também tensiona peregrinações do sujeito de maneira metafórica, no seu próprio cotidiano atrelado às biografias performadas por divas na mídia, e por fãs no espaço urbano, em viagens para dentro de si, que revisitam seus próprios fragmentos entrelaçados com a diva. As noções de roteiros e dramas sociais são utilizadas por Leonam Della Vecchia (UFF) para apresentar a vida cênica de Beyoncé no artigo “The Carters: Performances, Roteiros e Dramas de um Casal em Crise”, apresentando uma rica análise com rigor metodológico para debater formas de observar tensões biográficas em articulações com as ence- nações em diferentes materiais, de shows a videoclipes, passando por materiais em redes sociais. Mário Rolim, por sua vez, enfrenta questões de autenticidade no rap branco de Iggy Azalea em duas performances da canção “Fancy”, realizadas pela cantora em duas cerimônias de premiação diferentes: o BET Awards e o Billboard Awards, ambas de 2014. O intuito foi inves- tigar como Azalea agencia e incorpora nessas performances misturas e tensões entre critérios de autenticidade e convenções do pop e do rap, no que ele chama de “autenticidade pop-rap”. O fato de a cantora se declarar como autêntica enquanto rapper e “pop-rapper” torna essas disputas ainda mais complexas, por evidenciarem uma admitida união com uma estética pop em relação à qual rappers geralmente reivindicam sua autenticidade de maneira contrária. Em “’Hoy Lo Intentaré’: as relações performáticas na ‘Convivência Dulce Amargo’”, Rafael Chagas traz uma análise sobre as relações de consumo com o ídolo no espaço do meet & greet e quais reverberações este encontro programado, pago e cerceado acarretam na experiência estética do fã. O autor se detém também a uma análise autoetnográfica APRESENTAÇÃO 21 de sua ida a campo durante a passagem da cantora latina Dulce María, ex-RBD, em passagem pelo Brasil em 2015. O autor tensiona ainda questões mercadológicas e teóricas que se embatem no termo escolhido por Dulce para divulgar o encontro pago com fãs, a “convivência”. Neste cenário, são discutidas noções de produção de presença e de experiência estética. Esta obra é parte dos encontros presenciais, virtuais, de redes de pesquisa em universidades brasileiras, das atividades desenvolvidas no GruPop, mas também no Laboratório de Análise de Música e Audivisual (LAMA), coordenado por Jeder Janotti Júnior, na UFPE, em conjunções com o Laboratório de Pesquisa em Culturas e Tecnologias da Comuni- cação (LabCult), coordenado por Simone Pereira de Sá, na Universi- dade Federal Fluminense (UFF) e com o grupo de pesquisa Juvenália, coordenado por Rose de Melo Rocha (ESPM-SP). Os estudos aqui apre- sentados não seriam possíveis de serem desenvolvidos sem bolsas de pesquisa de mestrado e de doutorado da Fundação de Amparo a Ciência e Tecnologia de Pernambuco (Facepe), da Coordenação de Aperfeiçoa- mento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e dos esforços indi- viduais dos autores em fazer circular uma obra que, esperamos, seja uma fonte de consulta e incentivo a pesquisas sobre cantoras, música pop e, mais amplamente, sobre cultura pop no Brasil.

I Tropicalizando Divas

Capítulo 1 Divas pop: o corpo-som das cantoras na cultura midiática Thiago Soares

Sobre o palco, a imagem. A cantora. Uma voz. Uma dança. Uma biografia. Um corpo que se encena norteado pela noção de clichê. Uma cantora é uma espécie de fantasma de inúmeras outras cantoras. Uma imagem que se ergue sobre outros corpos, trejeitos, olhares, cabelos. Havia algo de Billie Holliday em . Algo de Clara Nunes em Vanessa da Mata. Um quê de Madonna em Britney Spears. De Gal Costa em Tulipa Ruiz. De Rihanna em . Um rosto que é outro. Ou outros. Um corpo em perspectiva. Caleidoscópico. Atos, gestos, expressões que já vimos e somos seduzidos exatamente porque já vimos. O deleite pela repetição. Ou pela reiteração. Entretanto, nem tudo se repete. Há o que fica, mas também o que muda. Queria ampliar aqui a perspectiva delineada por Edgar Morin em seu “As Estrelas – Mito e Sedução no Cinema” (1989), que centra sua análise do corpo das estrelas do cinema a partir de uma relação enfática com o rosto. O rosto como um lugar privilegiado de ser afetado pela experiência do cinema. Tocar a pele-tela de Marilyn Monroe, de Greta Garbo, de Marlene Dietrich. Sobre a ênfase no rosto, natural que Morin 26 DIVAS POP

se atenha a esta perspectiva ao tratar do cinema. No entanto, estou aqui discorrendo sobre música. O rosto não basta. O corpo-som da cantora é a dinâmica que envolve seu rosto, sua voz, as expressões que se dilatam nos músculos da “face gloriosa” (OMAR, 1997) no auge do canto, mas é sobretudo seu corpo musical: as mãos que gesticulam, seguram o microfone com mais ou menos veemência; os ombros que se projetam diante de um suspiro, de um alento, de um momento dramático; os quadris que se movimentam concentrando erotismo no ato de se mover, a malemolência que circunscreve atração ou afastamento; as pernas, no seu jogo de revelar-esconder, um epicentro poético da altivez: o salto alto. O corpo-som das cantoras projeta um senso de musicalidade e movi- mento para as imagens. É, antes de tudo, som nas imagens. O silêncio da análise sobre o rosto e a contemplação da estrela de cinema a partir de Morin, aqui encontra uma gênese oposta: o grito. Uma voz que se projeta e conecta ou inventa corpos. O grito que conecta o “grão da voz” (BARTHES, 1977) ou o “pixel da voz” (SOARES, 2014). O corpo-som das cantoras apresenta a acoplagem da biografia em cena: no eu-lírico da mulher que apresenta o revelar-esconder de personagens e que é ela a personagem de si mesma. Aqui, a vida encontra o artifício – fabulado, aberto, impreciso – partindo das entranhas da indústria fonográfica e do entretenimento. O corpo-som das cantoras é o espaço especulativo em que a vida da mulher é tornada cena: o que ocorrerá quando a cantora entrar no palco? O que daquela força ou fragilidade da vida que acompanhamos por inúmeros paratextos vai se presentificar em atos performáticos ao vivo, em videoclipes, em espetáculos musicais? O que nos interessa é a clivagem, o movimento de enquadramento de um encontro: a artista em suas aparições e o público. Se tomarmos que os estudos de Perfor- mance apontam para gestos de enquadramentos de atos, produções e suas respectivas especulações em esferas micro e macropolíticas, os atos performáticos de divas pop são exímios em contemplar os conjuntos de possibilidades de especulação sobre as relações entre biografia, tomadas de posição, mercado musical e materialização artística. DIVAS POP 27

Por que, de repente, toda cantora é diva? De repente, toda cantora é chamada de “diva”. Ou, em algumas instân- cias, “diva pop”. Nas mídias, nas redes sociais digitais, assistimos a uma banalização do termo. São lojas de roupa, marcas de cosmético, defini- ções sobre beleza, ideias de poder. O que envolve o termo diva? Diva está acima de estrela, acima de atriz ou cantora. Pelo dicionário, a diva é sinônimo de deusa, divindade feminina. Pode ser também relacionada à ideia de musa. Mas, ao longo do tempo, a diva se consagrou como uma dimensão de poder da mulher-artista. Fama, requinte, estilo de vida, celebridade. Uma “vida diva”. Glamour, fuga do presente e sublimação. A tentativa não é de definir a diva pop, mas procurar ampliar o olhar sobre este fenômeno da cultura midiática. Recorro à história da palavra. Seus usos são condicionados a disputas, formas de endereçamento e de engajamento. Pensar a diva pop significa debater de que maneira chegamos a este termo, que encruzilhadas culturais e estéticas trilhamos. O termo “diva” deriva do latim, cuja tradução seria deusa, foi popu- larizado no século 19 e era empregado às cantoras de ópera, passando por naturais adequações e contextualizações, voltando a ser usado na primeira metade do século 20 sobretudo referindo-se à cantora Maria Callas – que popularizou o emprego do termo. A noção de diva alargou- -se ao longo do tempo, sendo empregado à cantora ou atriz que tem qualidades excepcionais, dotada de carisma e virtuosismo, objeto de culto. O imaginário da diva parece requerer plateia de devotos, aplausos fervorosos, exclamações efusivas, pedidos de bis e avalanches de buquês – clichês importantes de serem refutados e reencenados. Ligar artistas a seres divinos, dotados de excepcional característica, foi uma das fartas correntes de pensamento ligados a ideais român- ticos. O gênio, a autor recluso, criador atormentado, o homem heróico, entre outras partituras performáticas, ajudaram a moldar uma noção de divindade para artistas. As divas se notabilizariam pela transformação que causaram na construção da imagem da cantora e sua influência no público. Heloísa Valente (2003) retoma histórias de artistas da ópera. Maria Malibrán (1808-1836), a quem os biógrafos registram como uma pessoa bondosa, doce, lânguida, educada e de aparência frágil, fazia com que 28 DIVAS POP

fosse sempre adulada. Durante a temporada de óperas em Veneza, medalhas foram confeccionadas com seu rosto. Na sua saída do teatro, gondoleiros levantavam remos para que a estrela passasse. Escoltas eram necessárias para garantir sua passagem sem atropelos. Também lhe é atribuída a qualidade de dedicação ao seu papel, cantando “com sangue nos lábios”. Morreu jovem, aos 27 anos, após uma queda de cavalo – gerando ainda mais apelo em função de seu trágico fim. Figuras como Maria Malibán ajudaram a enformar interesse pelas cantoras. Compositores passam, então, a escrever óperas inspiradas na personalidade e nas habilidades vocais das cantoras. Libretos são escritos especialmente para determinada diva. Inicia-se a rivalidade entre elas. Segundo Valente, rivalidade não só restrita às cantoras, mas também entre os castrati – homens que eram castrados para manter a voz jovial e aguda, mobilizando apreciadores, críticos, fofoqueiros, fãs. A mercantilização da imagem da cantora se adensa. Enquanto a diva frágil e doce rivaliza com os castrati, aparece também a cantora cuja beleza física não é primordial. Entra em cena, a “verdade da voz”, o canto “sincero e honesto”. Cantoras gordas trazem novos critérios de autenti- cidade – não apenas a candura ou a beleza. Compositores mudam de atitude e não querem submeter suas composições às vontades das intér- pretes, mas sim, voltar a atenção para eles mesmos. Para Giuseppe Verdi e Richard Wagner, o histrionismo dos fãs e as “firulas” das divas tiravam da ópera seu “peso”. “O comportamento para com a ópera deve ser de respeito e silêncio, como se fosse uma missa” (VALENTE, 2003, p. 49). A figura da diva desviava, causava “ruídos” no “panteão” da ópera. A diva passa a conectar ideias de banalidade e mercantilização.

Pedagogias da extravagância e da beleza Apreciar divas significa experienciá-las. Para além do canto, celebri- zação e extravagância fazem parte de um conjunto de práticas perfor- máticas que constituem roteiros paradigmáticos. Uma nova “dinastia” surge com Adelina Patti, cuja habilidade ao cantar lhe dá permissão para “adulterar” composições. Patti parece apontar para questões em torno da autoria que se dá não na composição, mas na articulação e na interpretação. Heloísa Valente localiza em Patti, a precursora do estre- DIVAS POP 29 lismo da diva – muito antes da existência de Hollywood. Adotando um comportamento extravagante, a cantora começa a fazer exigências cada vez mais absurdas, em função de seu talento e de sua sagacidade. Em chegada à estação de trem de Budapeste, na Hungria, ela era escoltada à distância por seus empregados. Com o tempo, tais adulações não seriam suficientes e ela queria ser recebida como rainha. É necessário que seu empresário garanta que “toda a nobreza local lhe prepare uma recepção grandiosa à sua chegada. Os convidados deveriam portar trajes de gala e os homens, ostentar suas condecorações” (VALENTE, 2003, p.51). Essas exigências tinham também fins propagandísticos. A cantora exigia vagões de luxo exclusivos. Em hotéis, deveriam ser reservados sete quartos para ela e sua comitiva. Durante a temporada em Nova Iorque de La Traviata, em 1882, a cada ato, entrava no palco com um joia diferente. Em viagem à Argentina e ao Uruguai, foi presenteada com joias pelas autoridades locais. Também foi pioneira no uso massacrante de sua imagem, onde foi fotografada em todos os papéis que desempe- nhou. Patti foi precursora ao usar o microfone como mecanismo para estar mais perto de seu público e foi seguida por outras cantoras.

Na evolução da arte lírica e de seus protagonistas, é importante des- tacar que, ao mesmo tempo em que os compositores passam a criar obras em que o papel feminino agora é pálido, a própria temática do feminino, prostituído e exótico cede a uma erotização de porta de loja (Salomé, Lakmé, Taís). A diva traveste-se na pele da mulher sedutora. (VALENTE, 2003, p.53)

A ênfase no corpo, agora longe da candura e mais próximo ao erotismo, se impõe. Lina Cavalieri, uma romana muito pobre, cantora de espetáculo de revista, extremamente popular, sem grandes conheci- mentos na arte lírica, usa de sua beleza e do corpo para o estrelato. A diva parecia se “banalizar” ao ser “terrena” e erótica. O jazz, o cabaré, o cinema, bailes de foxtrot, charleston e tango inserem a dança ao proto- colo performático das divas. 30 DIVAS POP

A diva na música pop Entender a gênese das divas na ópera tanto nos ajuda a compreender os resíduos performáticos das cantoras na cultura midiática quanto aponta para as possibilidades de clivagens de artistas contemporâneas em roteiros performáticos (TAYLOR, 2013). Propõe-se pensar que estudar as divas pop significa debater os enquadramentos e os roteiros propostos a partir de suas aparições, na medida em que as encenações comportam estruturas narrativas que contam com participantes “estru- turados ao redor de um enredo esquemático, com um fim pretendido (apesar de adaptável)” (TAYLOR, 2013, p. 41). Propõe-se estruturar um modo de observar as performances midi- áticas de divas pop como roteiros de uma narrativa que se apresenta encenada: um corpo em cena, as expectativas e reações da plateia, num cenário enunciativo, um contexto sócio-histórico e cultural. Na análise dos roteiros performáticos estão em jogo sumários, esboços, rascunhos de outros roteiros que iluminam ou turvam as dinâmicas no presente. Pensar através da ideia de roteiro performático nos fornece subsídios para reconhecer tanto o implícito das encenações (e tentar resgatar estes implícitos através de dados primários ou secundários) mas também aquilo que se coloca explícito, os clichês das encenações, sobretudo através dos estereótipos e de suas articulações com ações dos campos do mercado e dos ambientes de negócios. Chamamos a atenção para o fato de que investigar performances midiáticas demanda não apenas um olhar atento ao campo do simbó- lico, do que atos performáticos querem propor enquanto “produção de sentido”, mas também para algo da ordem não-hermenêutica, que envolve as materialidades dos corpos e objetos que se afetam e produzem presença – para evocar o termo debatido por Gumbrecht (2010). Ainda que tal presença possa ser “arquivada” midiaticamente, desenha-se o entendimento de que se trata de um processo sempre inacabado, em construção, ainda que certos atos performáticos e seus registros – como shows de música e apresentações teatrais – possam trazer uma ideia de término ou conclusão dos mesmos. Dentro da perspectiva de Taylor, eles não se encerram em si mesmos, são sempre lidos e interpretados em diferentes contextos históricos, à luz dos enquadramentos teóricos e DIVAS POP 31 empíricos de cada época, causando afetações, reverberações e reelabo- rações mesmo após seu suposto fim. O que Taylor está reivindicando é parte do que Derrida (2001) também já mencionou: arquivos são sempre vivos e prontos para serem lidos a partir da perspectiva do presente, evocando uma dimensão processual da performance que apenas “parece” estática em sua relação com a História. Entretanto, é exatamente o fincar histórico que situa os arquivos menos como um reflexo do passado e mais como o que foi possível ser feito naquele contexto, que implicações existiam para que uma encenação fosse produzida do jeito que foi. Observar imagens arquivais de divas pop a partir da perspectiva dos roteiros performáticos possíveis é, de acordo com Taylor, um exercício metafórico em torno também das performances e ações cotidianas, como postula Goffman sempre reelaboradas e reconstruídas. Os roteiros performáticos das divas pop remetem historicamente tanto à aparição das divas da ópera quanto às emergências das cantoras em meio à música pop das décadas de 1930 e 1940, como localiza Roy Shuker (1999). O termo pop se mostra tão nebuloso quanto a tentativa de definição do conceito de popular. A princípio, era utilizado para definir a música “ligeira” norte-americana, mas seu sentido remete à música adolescente dos anos posteriores à década de 1950. Interessa-nos a importância que Shuker vai dar não apenas aos compositores, mas principalmente aos produtores, frequentemente considerados principais forças criativas por trás das artistas pop. Instituições do mercado musical integram produtores, compositores, músicos em registros de processos de gravação. Ajustes de voz, de registros musicais e sonoros, adequações a padrões de gêneros musicais fazem parte das práticas de produção musical da música pop. Debater as divas na esfera da música pop implica em pensar as relações que se estabelecem entre cantoras e produtores musicais, o que as aproximações entre estas estrelas e os produtores apresentam nas disposições sônico-imagéticas e também o que implicam na vida encenada das artistas. Esta perspectiva alinha-se à apontada por Martel (2012), de que entender a gênese da música pop signfica compreender os enlaces produtivos da , a gravadora que propôs comercializar música 32 DIVAS POP

negra para platéias mais amplas (e brancas) e a centralidade do papel dos produtores musicais neste processo. Neste sentido, é funda- mental reconhecer que parte da criação de um “semblante midiático” (GOODWIN, 1992) para grupos de garotas (“girl groups”) na Motown decorre da aproximação entre mulheres-artistas e produtores. As Supremes, do qual se consagrou como principal expoente, integra um conjunto de estratégias pensadas, entre outros, por Berry Gordy – um dos mentores da Motown, no contexto dos Estados Unidos nos anos 1960. Longe de querer retirar o protagonismo das mulheres neste processo, parece ser fundamental reconhecer as estratégias, táticas e tensões das aproximações entre homens produtores e mulheres artistas neste contexto. Entender a relação entre produtores musicais e cantoras signi- fica perceber os enquadramentos em torno da trajetória das mulheres artistas na cultura midiática. A figura de Diana Ross é sintomática das assimetrias de gênero e raça que tomavam lugar na década de 1960 no contexto estadunidense. Ela tinha sido costureira e secretária do escri- tório da Motown antes de se tornar uma das integrantes das Supremes e parte de seu protagonismo é disposto em biografias e análises jornalís- ticas como “em função” de seu relacionamento amoroso com o produtor Berry Gordy – o que a tornou a “primeira dama” da principal grava- dora do mercado musical estadunidense1. A história da cantora que se destaca no grupo, passa a ser alvo de ciúmes das outras integrantes e ganha carreira solo acusada de ser “em função” de seu relacionamento amoroso com um produtor que se reverte em ganhos “artísticos” integra o musical “Dreamgirls” - sucesso da Broadway e levado ao cinema. Este embaralhamento entre vida pública e privada, capital artís- tico a partir de relacionamentos amorosos parece ser uma tônica dos enquadramentos em torno das divas pop. Pensemos em Diana Ross e o produtor Berry Gordy, mas sobretudo em e Ike Turner, que formavam uma dupla musical de enorme sucesso entre os anos 1960 e 1970 e que amalgamavam vida pública e privada com um componente

1. Para mais informações: http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2015/07/diana- ross-foi-secretaria-e-costureira-antes-de-se-tornar-dama-da-motown.html. Acesso em: 4 mai. 2020. DIVAS POP 33 mais cruel para o saldo da vida das mulheres: a agressão física e o assédio nas relações amorosas. A dupla Ike & Tina Turner, que fez sucesso com a faixa “”, também se notarizava pelo amplo noticiário de escândalos na vida matrimonial – evocando um componente nos roteiros performáticos das divas pop: a superação, fuga e rompimento com uma vida pregressa de agressões. Integram esta narrativa, artistas como Billie Holliday, , Whitney , Amy Winehouse – todas cantoras que se envolveram em relacionamentos abusivos com homens e que criaram zonas de especulação e fabulação em torno da força, resis- tência e resiliência em lidar com questões amorosas. É também no campo das relações entre produtores e cantoras que podemos pensar em autorias compartilhadas (BARRETO, 2009), quando parcerias entre artistas e seus produtores geram assinaturas que congregam marcas estilísticas de ambos em obras. Nas análises de Rodrigo Barreto, o autor destaca a profícua parceria entre a cantora Madonna e diretores de videoclipes como Jean Baptiste Mondino, gerando assinaturas em videoclipes que situam o audiovisual como ambiente de um encontro entre dois artistas em sinergia.

O “problema de gênero” das divas pop Importante pontuar que a perspectiva de que a música pop é banal, “ligeira”, fácil e esquecível é uma constante nos escritos sobre história da música popular. Muito desse olhar se deve ao fato de que parte das pesquisas e dos escritos sobre música derivam de fãs de rock, maci- çamente homens, como bem aponta Simon Frith (1996). É sobre este princípio que o autor vai mostrando a política de gostos dentro de uma delimitação dos gêneros musicais: rock, metal, rap como “música de homem”; pop como “música de mulher, de gay”. Embora sempre em tensão, estas máximas vão sendo reiteradas e performatizadas também em valores: músicas boas e ruins a partir do conjunto de perspectivas que emergem dos gêneros musicais em consonância com a perspectiva de gênero. Cabe pensarmos como os “problemas de gênero” (BUTLER, 1992) adentram à esfera da cultura musical, em que artistas, eu-líricos e perso- nagens estão em constante negociação, aparição e desaparecimento. 34 DIVAS POP

Masculinidades e feminilidades em corpos de artistas musicais são efemeridades que se materializam em apresentações ao vivo, video- clipes, shows, redes sociais digitais, sempre mediadas, seja por dispo- sitivos tecnológicos ou por agenciamentos/gerenciamento de carreiras, funcionando também como estratégias de marketing que visam posi- cionar artistas no mercado e diante de (novas) audiências. É, portanto, pensando a diva pop como uma construção performática que lida com valores historicamente construídos dentro do campo da música popular midiática, que precisamos pensar as materialidades do corpo das divas pop como ativadores de experiências entre fruidores e apreciadores de música pop. Se as cantoras parecem sugerir um devir-habitar em suas perfor- mances, cabe discutir, qual a natureza do enlace entre este material simbólico e os corpos afetados por esta disposição. Em sua afecção pelo artifício, o devir-habitar das cantoras enforma pertencimento. Fãs pertencem a divas pop, entendem e fabulam o universo ficcional de suas estrelas. Constroem narrativas em seus cotidianos a partir de vestígios destas artistas. Constroem de um bios cênico (BARBA, 1994) que, para além das noções clássicas da mímese, trabalha sob a “energia de um corpo vivo, crível” que modula e media ações. O conceito de bios cênico, trazido por Eugenio Barba para pensar uma antropologia teatral, parece ser útil para pensar a existência de “comportamentos cênicos pré- -expressivos que funcionam na base de gêneros, estilos e papéis sociais, através da evocação de tradições pessoais e coletivas” (BARBA, 1994, p. 23). Ao trabalhar a ideia de bios cênico, Barba reconhece que, para além das inscrições culturais nos processos performáticos ou ritualísticos, há uma dimensão que parece vazar ao – digamos – “controle” dos aparatos da performance. Existe um tipo de comportamento cênico pré-expres- sivo, que seria formador de uma noção de gênero – ou aqui nos interessa fortemente esta inclinação conceitual de Barba para a questão de gênero - porque estaríamos lidando com a base do que Judith Butler considera como gênero, ou seja,

um processo, um devir, e não um estado ontológico do ser que sim- plesmente somos, o que determina, então, o que nos tornamos, bem DIVAS POP 35

como a maneira pela qual nos tornamos isso? Em que medida alguém escolhe o seu gênero? Na verdade, o que ou quem faz a escolha? E o que determina tal escolha, se é que existe alguma escolha que a deter- mine? (apud SALIH, 2012, p. 67)

É referente ao agenciamento das escolhas que incidem sobre as balizas de gênero, que se abre o espaço de um devir-habitar, ocupado por corpos em performances moventes de gênero. Divas pop e fãs se “encontram” em espaços especulativos, ficcionais, plausíveis e performá- ticos, que promovem pedagogias, ensinamentos, epifanias. A verossimi- lhança da estrutura dramática das divas pop (aparições públicas, brigas, desavenças com empresários, relacionamentos fracassados) conjuga a inserção da ficção na vida, do encontro, sempre tensivo e inacabado, entre personagem e sujeito nas fricções ficcionais. Vejamos como todo o discurso em torno do álbum “21”, da inglesa , lançado em 2011, foi amplificado em função dela assumir que fez o disco para curar um fim de relacionamento. Quatro anos antes, em 2007, Britney Spears, ao lançar seu disco “Blackout”, após o “surto” que a fez raspar a cabeça e trazer à tona evidências de descontrole público, “emprestou” autenti- cidade para a obra, avaliada por críticos como “verdadeira” e “urgente” não só pela qualidade das canções mas muito pelo momento de vida da artista.

“Eu sou meu cabelo” Numa observação da cultura pop de forma mais ampla, o cabelo é o sintoma de afirmação e transformação das artistas, de instaurar novas fases, novos momentos, de definição em torno do belo e do estranho, do usual e do “fora do normal”. Pensando o cabelo como uma metáfora de classe, raça e gênero, através de uma narrativa ficcional, o argentino Alan Pauls em seu romance “A História do Cabelo” (2010) apresenta estágios da vida de um homem sem nome e sua relação obsessiva com o próprio cabelo. A obsessão, a princípio, pode parecer o resultado de algo fútil ou superficial, mas o narrador constroi, pouco a pouco, uma mitologia acerca do ato de cortá-lo. Os diferentes cortes surgem, no início, associados a questões históricas: na época da ditadura, o louro liso é uma marca da burguesia, enquanto o afro, semelhante ao do grupo 36 DIVAS POP

Panteras Negras, é um símbolo de revolta. Nas palavras do autor, o afro é um “signo soberano, posto que desconhece os gêneros e uniformiza homens e mulheres”. Alan Pauls arquiteta a metáfora do cabelo. A princípio, surge como indicador de classe social e ideologia. O protagonista, dotado de uma cabeleira loura, tenta, sem sucesso, converter-se para o corte afro. Ele consegue montar algo “similar” a um afro, mas que parece artificial, como um “burguês fingindo-se de proletário”. Ou seja, a noção de autenticidade surge como um valor da performance e do cabelo. É desta relação entre a natureza biológica do corpo e a sua transformação/ artificialização que emerge o cabelo como uma metáfora da condição existencial de sujeitos em diversos campos do social. Os cabelos são limites e potências do artifício e da invenção. Direcionamos nossa argumentação para pensar outros encaminha- mentos para além do debate sobre as divas pop que se centrou, muito marcadamente, sobre a questão da voz e do grito como estéticas de auten- ticidade, a partir dos escritos de Koestembaum (2001). Nossa premissa é reconhecer outras lógicas de experiências e de valor sobre a diva pop, em consonância com a ideia da particularidade da fruição sobre a diva pop na cultura midiática que prevê outros conjuntos de acepções para se pensar a performance da cantora e suas experiências. A partir da faixa “Hair”, da cantora Lady Gaga, percebe-se a reivindi- cação de liberdade e expressividade de sua vida diante da forma com que lida com seu cabelo: “Eu só quero ser eu mesma e me amar por quem eu sou/ Só quero ser eu mesma e por isso saiba: ‘eu sou meu cabelo’”. (“I just wanna be myself/ And I want you to love me for who I am/ I just wanna be myself/ And I want you to know, I am my hair”). Ao deslocar sua existência para o cabelo, o eu-lírico de Lady Gaga nos chama atenção para uma corporalidade que, a princípio, pode ser vista como ligada a fatores de embelezamento e futilidade. Na sua narrativa, entretanto, o cabelo assume uma centralidade em torno de questões como identidade (“E de manhã eu estou em falta com a minha identidade” - “And in the morning/ I’m short of my identity”), liberdade (“livre como meu cabelo” - “free as my hair”) e micropolítica familiar (“Sempre que estou vestida legal/ Meus pais brigam/ E se eu tô arrasando/ Mamãe vai cortar meu DIVAS POP 37 cabelo à noite” - “Whenever I’m dressed cool/ My parents put up a fight/ And if I’m hot shot/ Mom will cut my hair at night”). A poética presente na canção de Lady Gaga nos direciona a pensar a subjetividade da mulher atravessada pela presença do cabelo como um lugar central de sua relação com o mundo. Do ponto de vista mercado- lógico, demarca diferentes momentos da carreira de artistas, a vivência visual das “eras” - como se referem fãs – ou seja a permanência de uma determinada cantora sob a égide de um determinado álbum orientando suas ações e performances a partir da temática de um material fono- gráfico. Nas performances ao vivo daBorn This Way Ball Tour, Lady Gaga conectava a faixa “Hair” ao discurso identitário de gênero e, no ano de 2011, durante performance no evento I Heart Radio2, dedicou a canção ao fã “little monster” Jamey Rodemeyer, de 14 anos de idade, que cometeu suicídio após reclamar sobre bullying na escola – a quem Gaga se conecta narrativa e liricamente. Cabe pensar junto com a natureza formativa do cabelo da diva pop a dimensão de branquitude e hegemonia que os cabelos loiros ocupam no imaginário global da cultura pop. Das divas do cinema como Veronica Lake e Marylin Monroe e suas reencenações no campo da música em Madonna, Debbie Harry, Britney Spears e Lady Gaga, é preciso reco- nhecer como ao mesmo tempo em que conecta noções identitárias, o cabelo das divas brancas e loiras reforçam regimes de representação (CERVULLE, 2017) que parecem normatizar o belo a partir da chave eurocêntrica, luminosa e divina da branquitude – como critica de forma bastante contundente Richard Dyer em seu livro “White” (2017). Outra cantora que tematizou o cabelo a partir, agora, da experiência racial foi Solange Knowles na faixa “Don’t Touch My Hair” (“Não Toque meu Cabelo”) em que, no primeiro verso da canção, ela já certifica-se: “Não toque meu cabelo/ Quando é o sentimento que eu uso” (“Don’t Touch my Hair/ When it’s the Feeling I wear”). A canção e o videoclipe da faixa situam a especificidade do cabelo para a experiência da mulher negra a partir de um conjunto de práticas junto ao próprio universo feminino que trata das assimetrias raciais no tocante aos padrões de

2. Para ver a performance na íntegra: https://www.youtube.com/watch?v=VFk6n53kUhI. 38 DIVAS POP

beleza, como já tematizaram Davis (2016) e hooks (2005). Se pensarmos na experiência da gravadora Motown, em que artistas negras eram endereçadas para plateias brancas, mais especificamente nas girlbands (bandas de garotas) como , do qual se destacava a líder Diana Ross, era o cabelo a primeira disposição expressiva a ser “domes- ticado”. Utilizando cabelos alisados ou perucas, as cantoras do The Supremes precisavam “domar” sua negritude, acionando um lugar de negociação em que o racismo se constituía como moldura sobretudo estética. Ao pensamos em divas pop negras emblemáticas como Beyoncé, as ambigui- dades na relação com os cabelos emergem, seja a partir do uso frequente de cabelos alisados, loiros e também perucas “naturais” e também sua transição capilar que opera ao longo de sua carreira, ganha tessituras essencialmente afirmativas no álbum “Beyoncé” e se consagra no disco “Lemonade” – de cunho assumidamente ativista e reivindicando pautas em torno da negritude e da mulher. Interessa-nos assim as fabulações possíveis sobre o cabelo na cultura pop. O cabelo no corpo exagerado, intangível, sublimado. O cabelo que é moldado, preso ou solto, como metáfora de aprisionamento ou liber- dade, mas também o cabelo inventado, a peruca, simbologia de perfor- mances de gênero que envolvem sujeitos trans, drag queens ou kings, atos de reinvenção de si a partir de uma premissa fabular. Pensemos na peruca como um artefato não apenas que ficciona o próprio cabelo, mas também como um assentamento identitário como bem mostra o diretor e roteirista Sean Baker numa cena do filme Tangerine“ ” em que o ato de retirar a peruca de uma trans e emprestar a peruca para outra se cons- titui definidor de ideias como solidariedade e amizade. Ou na forma com que drag queens constroem fabulações sobre si a partir das perucas e da artificialidade dos cabelos e que pôde ser midiatizado nas defini- ções sobre si e também nas imitações de drag queens e divas pop no reality show “RuPaul’s Drag Race”, comandado pela drag queen RuPaul. DIVAS POP 39

Considerações finais O que os cantoras sentem quando emitem o som de suas vozes? O que a plateia imagina que as vocalistas estão experienciando? Que ideo- logias estão presentes em músculos, líquidos, ar, disciplina e sublimação que preenchem uma apresentação? A voz sempre carregou nas culturas valores com “auto-retrato, auto-conhecimento, presença” (KOESTEM- BAUM, 2001, p. 205), mas e se pensarmos no acionamentos de outras perspectivas de autenticidade na música e na cultura pop? Ou, refazendo a pergunta: o que cantoras sentem quando deixam seus cabelos esvoa- çantes? O que a plateia imagina que elas estão experienciando? Assim como Wayne Kostenbaum fez com a garganta, o meu movimento de investigação é questionar: quais questões performáticas estão em jogo ao pensarmos o cabelo na cultura midiática? O cabelo para as cantoras é um aparato de encenação na cultura midi- ática. Performatização diante de eventos, sessões de fotografia, video- clipes, shows. Pensamos aqui o cabelo como uma estratégia de caracte- rização de um sujeito-performer que traz à tona ideias de metamorfose, transgressão, vigor. No corpo afetado de cantoras, reencenado por drag queens, a afetação como estética: não só a voz como valor, mas também o caminhar, o rebolar. Pensar a autenticidade que há no olhar, na pose como consciência da performance. Qual a pragmática do “carão” da diva pop? Uma imagem: o cabelo esvoaçante e o ventilador numa clara criação de uma imagem de artificialidade. O cabelo esvoaçante seria para o cabelo aquilo que o grito é para a voz? Nos cabelos esvoaçantes das divas pop, outras imagens: As hero- ínas de cabelos esvoaçantes da Disney, os cabelos de She-Ra (desenho animado), os videoclipes das garotas do Fantástico jogando o cabelo para trás na praia, anúncios publicitários de xampu e condicionador, o cabelo esvoaçante de Kate Winslet na proa do Titanic, a flor no cabelo de Gal Costa na capa de “Gal Tropical”, as disputas de bate-cabelo entre drag queens nas boates gays. Pensar a potência da mímese como ficção, atitude e sobretudo política de resistência. Apoio-me na ideia de mimese como reconhecimento: conhecimento do sujeito e de sua alteridade. Mímese como maneira de espelhar, construir e habitar o mundo. Lembrando Northorp Frye (2014), a mimese estabelece rela- 40 DIVAS POP

ções, agencia, “desvenda uma estrutura de inteligibilidade entre sujeitos e acontecimentos, atribuindo sentido às relações humanas”. A mimese reconhece a tragédia, a comédia, os dispositivos de encenação do coti- diano diante do inevitável. Aquilo que Paul Ricoeur (2010) chama de “imitação criadora”, “duplicação da presença”. Incisão que abre o espaço da ficção entre sujeito e objeto – ficção, entretanto, profundamente marcada pelo real – real mediado. Estou pensando os cabelos das divas pop como aparatos miméticos potentes, a partir da força de imagens que emergem dos dispositivos midiáticos, habitam sujeitos viventes e registram formas de estar no mundo. As divas pop e seus cabelos esvoaçantes falam de uma política do estar no mundo tendo que lidar com estratégias de sobrevivência e enfrentamentos, mas também de opressões e dissensos. É deste quadro de imagens dinâmicas que reitero a potência dos clichês. Ou reconheço que estas imagens fantasmagóricas das cantoras que “assombram” outras cantoras são um espaço de convocação para devires performáticos: um lugar de potência de um corpo utópico, ideal, edificado pelas imagens midiáticas, cenas de filmes, shows, atos perfor- máticos ao vivo. O corpo-som das cantoras traz, em si, um devir-habitar, que se presentifica numa ocupação, por parte dos fãs ou indivíduos que se afetam por aquelas imagens, numa forma de reconhecimento de estraté- gicas lúdicas no cotidiano. A diva pop convoca uma “vontade de teatro”: gosto pelo lúdico, prazer de criação de ilusão, projeção de simulacros, fonte inesgotável de simulacros de si potencializados numa vida em rede que nos convoca cotidianamente a expor fragmentos do cotidiano na tentativa de formação de redes de compatibilidade e afeto mas que também resultam em sistemas de disputa, exclusão e disrupção. DIVAS POP 41

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VALENTE, Heloísa. As vozes da canção na mídia. São Paulo: Via Lettera; FAPESP, 2003. Capítulo 2 Carmen Miranda, uma diva tropicamp Suzana Mateus

Das tantas imagens do universo da cultura pop que nos atra- vessam, está a da diva. A diva pode ser encontrada em muitos lugares: no cinema, no teatro, na música, na moda, na literatura. Em cada um deles, possui suas especificidades, mas, ainda assim, algo parece unir todas essas recorrências sob a retranca de diva. Algo que gira em torno do talento, do sucesso, da beleza, da arrogância, da iconicidade, dentre outros aspectos, mas também algo que parece cada vez mais ligado à veia performática de construir-se como diva, de portar-se enquanto tal – ainda que não anunciando essa qualidade diretamente –, de maneira a receber essa classificação. Como veremos adiante, o termo diva possui sua origem ligada à prima donna, cantora principal da ópera. Na cultura pop, porém, ela adquire um sentido que, embora ainda tenha ligação com essa primeira definição, encontra-se hoje muito mais associada ao “arraso”. Apro- prio-me dessa palavra, muito utilizada na cultura pop, sobretudo nos círculos LGBTQIA+, para pensar em determinadas situações em que artistas (sobretudo da música, já que são elas que me interessam mais detidamente) constroem performances que se querem arrasadoras, no 44 DIVAS POP

sentido de grandiosas ou habilidosas. Com isso, me interessa verificar performances onde aparece o que tenho chamado de sensibilidade diva, ou mesmo de performance diva, a presença de um determinado arranjo sensível e subjetivo que caracterizaria esses momentos artísticos que se querem marcantes. A cultura pop, por seu próprio regime ficcional, onde o consumo de experiências se dá também, e sobretudo, a partir das fabulações cons- truídas em torno dos artistas, de suas trajetórias, narrativas e produções, mostra-se um lugar frutífero para pensar nessas questões em torno da figura da diva, não só porque é nessa cultura onde o termo mais tem aparecido nos últimos tempos, mas também porque a própria natureza espetacularizada desse cenário contribui para a aparição da diva. Como a cultura pop engloba um conjunto mais amplo de expressões midiáticas, estou priorizando apenas uma parte desse conjunto, àquela que se refere à música, e, neste trabalho, mais detidamente à música brasileira, onde se insere Carmen Miranda. Vale destacar, no entanto, que a minha pers- pectiva se volta muito mais para Carmen Miranda enquanto performer, de modo geral, do que especificamente enquanto cantora. Isso acontece porque o que me interessa na música são as performances musicais, as encenações, agenciamentos e narrativas presentes nesse jogo. O interesse em pensar Carmen Miranda reside na tentativa de discutir sua performance observando as ingerências da sensibilidade diva sobre a construção de sua persona e, além disso, de refletir sobre as marcas de colonialidade que essa performance traz consigo, visando, sobretudo, verificar como essas marcas se consolidam como artifício da estética tropicamp1 que Carmen inaugura. Como se sabe, Miranda foi e continua sendo uma das mais importantes invenções artísticas brasi- leiras. Pioneira na divulgação da música brasileira no cenário interna- cional hollywoodiano, ela, além de inventar a si mesma como artista, ajudou também a criar a ideia de brasilidade (PEREIRA DE SÁ, 2002), que segue pautando o nosso imaginário a respeito do que é o Brasil, de modo específico, e a latinidade, de um modo mais abrangente. Entendo

1. Tropicamp, a partir do entendimento de Hélio Oiticica (1971), seria uma espécie de sensibilidade que converge em si as estéticas camp e tropical, como detalharemos mais adiante. CARMEN MIRANDA, UMA DIVA TROPICAMP 45 a brasilidade como um conjunto de caraterísticas estereotípicas pelas quais costumamos ser conhecidos, tais como o jeitinho brasileiro, a sensualidade, o Carnaval, a emoção em lugar da razão, as belezas natu- rais, o bom humor. Todas essas características se constituem também a partir de certas convenções de colonialidade (QUIJANO, 2009), que agenciam a formação dos sujeitos e o modo como eles se narram e são narrados. Foi justamente uma narrativa latina composta por essas marcas que se consolidou em solo norte-americano formando a estética tropicamp – sobre a qual Hélio Oiticica (1971) fala em suas pesquisas artísticas –, que teve como uma de suas principais precursoras a alegoria dos trópicos performada por Carmen Miranda em Hollywood. Como uma das inventoras da diva latina globalizada e, também, como uma das principais ferramentas da política da boa vizinhança norte-americana2, pensar Carmen Miranda como diva, de acordo com as minhas proposições, é colocar em debate a negociação entre a esté- tica tropicamp formadora de sua performance e a sensibilidade diva que tenho reivindicado. Com isso, tento fazer essa análise de modo que sua expressividade não se reduza nem às problemáticas do clichê latino agenciadas pela sua imagem, nem às questões ligadas à performance diva apenas, mas seja enxergada como uma conjunção dessas duas forças, imersas nas contradições da própria narrativa de Miranda. O conceito de performance do qual me utilizo para pensar em todas essas questões é aquele que aparece nos estudos de Diana Taylor (2013), que entende a performance, para além de um evento (tal como os Estudos de Performance de modo geral fazem), também como uma episteme, um campo de saber por meio do qual é possível analisar fenômenos a partir dos sentidos transmitidos “na ação incorporada, na agência cultural e nas escolhas que se fazem” (TAYLOR, 2013, p. 36). Como chamam atenção Amaral, Polivanov e Soares (2018, p. 66), “a premissa da autora

2. Implementada no governo de Franklin D. Roosevelt (entre 1933 e 1945), a política da boa vizinhança foi uma inicia tiva que tinha como propósito manter a hegemonia norte-americana em toda a América, sobretudo naquele momento em que os EUA se preparavam para a Segunda Guerra Mundial e buscavam ter os vizinhos como aliados. Uma das maneiras de atuação dessa política se dava a partir da promoção de filmes e outros produtos culturais que homenageassem a América Latina, apresentando fenômenos culturais desses lugares, a exemplo de Carmen Miranda. 46 DIVAS POP

parece ser a de pensar a performance como um imbricamento entre as linguagens e suas encenações, as situações e contextos de aparições e as dinâmicas de visualidade e fruição”. Para além disso, Taylor também tem o interesse de pensar certos roteiros que se repetem em determi- nadas situações culturais. Esses modelos existem como um conjunto de possibilidades direcionando nosso comportamento expressivo por um caminho já pavimentado, já roteirizado pelo repertório de nossas expe- riências, condicionando, assim, nossas performances. Desse modo, usar essas ideias neste trabalho também me ajuda a pensar no que a narrativa de Carmen Miranda em Hollywood deixa como modelo para artistas de origem latina que viriam posteriormente. Para que este trajeto seja possível, trago no tópico seguinte algumas considerações sobre o feminino enquanto instância de sentido ligada à diva, as origens desse último termo, como ele tem sido pensado nos estudos sobre música/cultura pop e o modo como tenho me apropriado dele para pensar os fenômenos que me interessam; depois, analiso uma performance de Miranda que reconheço como envolta pela sensibili- dade diva, refletindo também sobre a estéticatropicamp e as marcas de colonialidade presentes em sua encenação; por último, apresento minhas considerações finais, onde aponto para a performance diva de Carmen como um modelo que segue, mesmo que despropositadamente, presente na estética de outros artistas.

Do que estamos falando quando falamos de diva? Pensar a diva inevitavelmente nos aciona a ideia de feminino. Não só porque essa é uma palavra feminina, mas também porque seu significado está atrelado a outras palavras e expressões – como deusa, divindade, musa, mulher de beleza excepcional3, superstar, ídolo e artista bem- -sucedida4 – que trazem consigo construções femininas bastante enrai- zadas na cultura ocidental. Para além de seu vínculo com a identidade de gênero feminina, entendo o feminino também como uma instância simbólica capaz de reunir marcas e símbolos que costumeiramente asso-

3. Significações encontradas na versão online do dicionário Michaelis. 4.Significações encontradas na versão online do dicionário Cambridge. CARMEN MIRANDA, UMA DIVA TROPICAMP 47 ciamos a uma ideia hegemônica de feminilidade. São essas marcas que, no meu entendimento, aparecem na performance diva através da perfor- matividade de uma sensibilidade feminina que se projeta de modo gran- dioso, que se quer marcante. A performatividade aqui é pensada a partir de Judith Butler (2003) como uma maneira de encenar expectativas discursivas de gênero, o que evidencia o caráter construído de todas as identidades, como elas se criam na medida em que se fazem e como, ao percebermos esse caráter encenado, podemos identificar os artifícios que as fabricam. Mas, antes de adentrarmos na discussão desse tipo de encenação, acho impor- tante pensarmos numa história da aparição da diva. De maneira recor- tada, o termo diva também funciona como sinônimo de prima donna, expressão usada para designar célebres cantoras de ópera, a exemplo de Maria Callas, que se destacou na música em meados do século XX. É também na ópera que encontramos os primeiros usos desse termo. Como relata Marcio Markendorf:

Proveniente do italiano, diva era o termo com o qual a crítica qua- lificava a soprano que se destacava por suas notáveis apresentações numa companhia de ópera. Prima donna (ou primeira dama), uma variante desse termo, designava a voz feminina que assumia o pa- pel principal no espetáculo. Ao que parece, com a glamourização da ópera, prima donna foi gradativamente sendo substituída por diva, palavra que, de acordo com a raiz latina, significa deusa. Tal alteração não se deu apenas no plano da denotação, mas no plano da conota- ção, pois a diva passou a incorporar a imagem da cantora de ego tem- peramental, arrogante, e egocêntrica. Esse sentido figurado passou a ser empregado também no universo do teatro, do cinema e da moda. Recentemente, a palavra incorporou outro sentido e passou a ser usa- da como o adjetivo preferido pela cultura queer para qualificar ícones femininos da cultura pop. (MARKENDORF, 2008, p. 1)

Embora o autor chame atenção para o fato de que a palavra incorporou outro sentido na cultura pop, me parece que uma linha em comum foi mantida mesmo com esse deslocamento. Acredito nisso tendo em vista que os modelos de deusa e de artista de ego temperamental me parecem ainda ofertantes de características comuns incorporadas na camada de artifício performático que ajuda a construir as divas dos mais diversos 48 DIVAS POP

lugares. Mas a performance diva é composta por muitas outras camadas e rasuras para além dessa, já que estamos pensando mais detidamente em performances construídas não somente a partir do apelo sensível que essas artistas trazem nos repertórios de seus corpos, mas também como isso se dá no cenário midiático. Como partícipe da indústria midiática, a diva encena um roteiro próprio desse lugar, estabelecido através de uma continuidade de ações e jogos performáticos. Quando Beyoncé encena em sua performance outras divas negras norte-americanas, tais como Diana Ross e (KOOIJMAN, 2018; MATEUS, 2018), ela segue um caminho já pavimentado por outras integrantes negras desse cenário, que lhe oferecem um conjunto de possibilidades de atuação, instituindo um certo roteiro (TAYLOR, 2013), do qual não se sabe a origem, mas que segue se repetindo. Nesse sentido, me aproximo de obras e autores que pensam a celebri- zação como um sistema de continuidades que se estabelece na cultura midiática. E que, ainda assim, não deixam de vislumbrar a camada profunda de artifícios que atua na composição célebre. Edgar Morin (1989) aponta para uma perspectiva nesse sentido ao pensar as estrelas do cinema, vinculando o apelo ao sagrado com a construção midiática, de modo que o endeusamento, em lugar de aparecer relacionado a uma noção primordial de divindade, já nos chega como uma metáfora perfor- mática. Em seu livro As Estrelas – Mito e Sedução no Cinema, original- mente escrito em 1957, ele analisa atores e principalmente atrizes que se constroem como estrelas, agenciando em suas performances caracterís- ticas divinas de um Olimpo que se constrói por intermédio da indústria cinematográfica. De acordo com ele:

A estrela é o ator, ou a atriz, que absorve parte da essência heroi- ca – isto é, divinizada e mítica – dos heróis dos filmes, e que, reci- procamente, enriquece essa essência com uma contribuição que lhe é própria. Quando se fala em mito da estrela, trata-se portanto em primeiro lugar do processo de divinização a que é submetido o ator de cinema e que faz dele ídolo das multidões. (MORIN, 1989, p. 26) CARMEN MIRANDA, UMA DIVA TROPICAMP 49

A diva, pelo menos como majoritariamente tem aparecido nas discussões acadêmicas5 e midiáticas6, traz consigo várias similaridades com a ideia de estrela pontuada por Morin, sobretudo no que se refere à sua capacidade de se estabelecer de maneira divinizada e mítica, e como ídolo massificado. De um modo bastante generalista, pensar a diva tem sido muitas vezes reunir numa mesma retranca um conjunto de artistas que obedecem a determinadas características (como as citadas na intro- dução deste texto), considerando também as características específicas do lugar onde ela aparece. Nas divas da música, por exemplo, me parece que a ideia de voz tem sido um dos aspectos centrais, mas, dependendo de que gênero musical esteja em jogo, essa ideia pode variar. Na música pop enquanto gênero7, onde o termo diva mais tem apare- cido nos últimos tempos, tem sido recorrente a abordagem da diva como uma categoria estética8, através do que foi pontuado por Motti Regev (2013) ao pensar o cosmopolitismo estético. Através dele, o autor propõe um caminho para a abordagem de estéticas que tendem a representar e sugerir formas de habitar o mundo a partir de um senso global e trans- nacional. Esse processo resultaria no chamado isomorfismo expressivo,

5. Em relação à diva na música pop, várias abordagens são exemplo disso, como as que aparecem em Mozdzenski (2016) e Mascarenhas & Silomar (2018). 6. Em relação à diva na música pop, ver as discussões do podcast VFSM, do portal Miojo Indie, disponível em: . Acesso em: 29 jan. 2020, e as matérias da sobre a diva Maria Callas, disponível em: < https://www.rollingstone.com/movies/movie-reviews/ maria-by-callas-review-750419/>. Acesso em 29 jan. 2020, e , disponível em: . Acesso em: 29 jan. 2020. 7. Para além de trabalhar com uma noção mais ampla de pop, que aciona uma relação de produtos com uma lógica mercadológica de produção e difusão em massa dentro de premissas da indústria cultural (da qual o cinema, a televisão, a música, dentre outros, fazem parte), Soares trabalha também com a noção de música pop enquanto gênero musical. Em termos estritamente musicais, Soares coloca que música pop seria aquela que opera sob a égide do ecletismo, mas aponta para uma certa formatação: “canções de curta e média duração, de estrutura versos-pontes, bem como do emprego comum de refrãos e estruturas melódicas em consonância com um certo senso sonoro pré-estabelecido” (SOARES, 2015, p. 24). 8. Ver as discussões de Thiago Soares (2012) e Pedro Alves Ferreira Jr. (2018). 50 DIVAS POP

onde culturas distintas se utilizam de matrizes estéticas similares na sua produção cultural. Como qualquer categorização, a definição de diva pop como cate- goria estética está longe de evitar controvérsias. Não são poucas as discussões no universo da cultura pop, principalmente nos portais e demais veículos midiáticos, onde tenta-se resolver a questão do que seria uma diva pop. Há quem pontue que diva na música precisa ser aquela que cante bem, que tenha alguma obra memorável, que seja reconhecida mundialmente, e tenha sua performance marcada por uma postura arrogante e temperamental. Há quem acredite que para ser diva pop basta ser parte do gênero música pop, independentemente de seu tempo de atuação. Há também quem veja a diva para além da identi- dade de gênero feminina, incluindo artistas como no rol de divas. Ou mesmo que cantoras de rock não poderiam ser incluídas nessa mesma lista por representarem uma atitude demasiadamente subver- siva, distante do apelo ao belo e ao polimento mais comumente asso- ciado à figura da diva. Geralmente, essas controvérsias estão enredadas por discussões sobre gêneros musicais e pela confusão em torno do termo pop, que tanto pode apontar para um gênero musical, como para uma lógica de atuação no mercado. Há retrancas como “divas do rock”, que incluem apenas cantoras desse estilo, “divas pop” apenas para cantoras do gênero pop, e o mesmo “divas pop” de uma maneira mais abrangente, pensando o pop como uma lógica de mercado e massificação musical, onde podem ser incluídas tanto as cantoras de rock quanto as do pop. Na tentativa de lidar com esse termo e ao mesmo tempo de pensá-lo para além de um circuito que pressuponha a presença de características demarcadas, como me parece ser o caso ao utilizar uma categoria esté- tica, tenho tentado trabalhar a diva como uma sensibilidade. Parece- -me que assim eu consigo contemplar um conjunto de questões muito caras para o meu entendimento sobre a diva – como a perspectiva de considerar a própria experiência da performance como definidora desse lugar para além de alguns fatores externos, como o reconhecimento ou o tempo de atuação no mercado. Eu posso, por exemplo, ver numa cantora como Anitta uma diva por reconhecer que a sensibilidade diva agencia CARMEN MIRANDA, UMA DIVA TROPICAMP 51 sua performance, o que independe do tempo de sua carreira ou mesmo de sua consagração internacional. É claro que o que chamei aqui de “fatores externos” influenciam no tipo de engajamento que tenho diante de uma apresentação e no modo como essa apresentação é construída, mas me interessa concentrar o olhar numa experiência que se dê no próprio tempo da performance e tudo mais o que existir além disso são construções importantes, mas que giram em torno dessa experiência. Nesse sentido, faço também uma aposta metodológica: estou partindo da performance, ou seja, de um determinado enquadramento, para, então, recorrer a outros sentidos. Em outras palavras, me interessa o que eu consigo apreender da perfor- mance a partir do reconhecimento de uma sensibilidade diva que a envolve e que, partindo disso, me encaminha para outras discussões que sustentam aquele momento, a exemplo dos artifícios que compõem a encenação e como isso vai influenciar nos jogos performáticos que se apresentam. Assim, pensando uma sensibilidade diva, busco esgarçar a própria noção de diva que costumeiramente se tem – como algo mais ou menos fixo e que obedece a determinados requisitos – para, então, apontar performances que reconheço como envoltas por essa sensibilidade. Com isso, estou pensando numa sensibilidade passível de aparecer em qualquer lugar (no cinema, no teatro, na vida cotidiana), mas vislum- brando de modo específico as performances musicais (interesse central do meu trabalho), sejam elas do rock ou do gênero pop, de cantoras muito famosas ou pouco reconhecidas, de mulheres ou homens artistas, de carreiras inteiras construídas agenciando essa sensibilidade ou de um único momento em que ela apareceu, desde que sempre tentando aderir a uma certa virtuosidade. Parece-me que a constituição da diva está ligada a um tipo de virtu- osismo, ou, de outro modo, a um querer virtuoso. Mas isso não se refere diretamente ao tipo de virtuose característica da música erudita do século 19, mas a uma instauração de valor muito mais abrangente. No pop, o valor pode estar na dança, no corpo, na quantidade de elementos que são usados para a manutenção do espetáculo, no investimento para o construir-se como diva. A virtuosidade no pop é muito mais sobre 52 DIVAS POP

fabular, a partir da imagem de um ídolo, as supostas qualidades sobre- -humanas que ele possui. Não é necessariamente sobre qualidades inerentemente raras, mas sobre um processo de criação intensa por parte do artista, dos fãs e da própria mídia dessas qualidades admiráveis e passíveis de existir, para além do cenário midiático, no campo da fabu- lação, na dimensão do fascínio. Por isso, para não me utilizar apenas do virtuosismo, que remete a uma história muito longa e ligada à erudição e às belas artes, que se distancia, dentre outras coisas, da lógica de consumo do universo pop, aproprio-me da palavra “arraso” como conceito nativo para pensar nesses momentos que se querem extraordinários. Arraso é uma palavra muito usada nos círculos LGBTQIA+ (me refiro especificamente àqueles que consomem e partilham a cultura pop, sobretudo através das redes sociais digitais) e na cultura queer brasileira como um todo não só para enaltecer artistas considerados muito bons, mas também para classificar qualquer atitude escandalosa o suficiente para causar algum impacto emocional e/ou subjetivo, mesmo que praticada por um anônimo. A sensibilidade diva seria, então, caracterizada por momentos proje- tados de modo que o artista queira arrasar. Quando falo de uma sensi- bilidade diva, portanto, estou me apoiando principalmente em grandes momentos de artistas em que essa sensibilidade se faz presente como uma aparição performática e efêmera, trazendo em si um momento que se pretende catártico, associado a uma performatividade feminina. Penso, por exemplo, na imagem dramática de Sasha Velour9 retirando sua peruca e deixando cair sobre si pétalas de rosa no ápice da dublagem da música “So Emotional” (1987), de Whitney Houston, durante a final da nona temporada (2017) do reality show RuPaul’s Drag Race. Existe uma construção cênica nessa performance que reivindica, dentre outras coisas, a criação de uma potência performática que se quer diva: os movimentos de Sasha são exagerados, carregados de performatividade feminina, a expressão de seu rosto é dramática, as pétalas acabam por completar esse cenário que, justamente pelo seu excesso, beira o artifi-

9. Performance da drag queen Sasha Velour na final da nona temporada deRuPaul’s Drag Race, disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2020. CARMEN MIRANDA, UMA DIVA TROPICAMP 53 cialismo, se torna camp (SONTAG, 1964). Nessa apresentação, Velour construiu uma performance de dublagem envolta por uma sensibilidade diva mesmo que ela não atue como uma na sua carreira ou mesmo que não tenha acionado essa sensibilidade em outras performances. Naquele momento, entretanto, Sasha acionou, e são esses enquadramentos que me interessam. Para além dessa, muitas outras performances me ajudam a pensar essa sensibilidade. Performances que, mesmo compostas por suas próprias especificidades, estão munidas por uma sensibilidade diva que as aproxima. Mas, vale destacar, estou partindo de uma experiência que se repete para então verificar as diferenças de cada roteiro. Ao falar sobre rasuras e camadas sobrepostas que agenciam a performance diva, aponto também para as particularidades do corpo que se institui como objeto central da encenação. As inscrições de gênero, de raça, de gênero musical, de idade, de nacionalidade, dentre outras, não passam desper- cebidas por esse processo, mas, bem como outras camadas (os roteiros midiáticos e a construção cenográfica, por exemplo), são partes de um arranjo que tem como foco principal esse grande momento que evoca a sensibilidade diva. Assim, munida desse arranjo teórico, passo, agora, a analisar uma performance diva de Carmen Miranda. A cantora, que surgiu na música no início dos anos 1930 e se consolidou como diva da rádio nos anos posteriores, fez carreira, como se sabe, também em filmes hollywoo- dianos. É justamente essa última fase de sua carreira que mais detida- mente me interessa. Com a análise que se segue, tento, a partir de um momento performático, pensar na gama de sentidos investidos em sua criação cênica, sobretudo pensando a estética tropicamp e as marcas de colonialidade presentes em sua performance.

Performance diva em Carmen Miranda Elejo como momento performático, que servirá como ponto de partida para as considerações sobre a performance diva de Carmen Miranda, uma das mais conhecidas apresentações da cantora: o 54 DIVAS POP

número musical “The Lady in the Tutti-frutti Hat”10, que aparece no filme “Entre a Loura e a Morena” (The Gang’s All Here, 1943, dirigido por Busby Berkeley). Faço essa escolha pelo modo como esse número sintetiza os principais elementos da performance diva de Carmen, além de se tratar de uma das apresentações mais cultuadas e icônicas de sua carreira. Partimos do momento em que a plateia, majoritaria- mente branca, vestida com roupas formais em um café, rapidamente é mostrada enquanto espera o espetáculo. Aparece, então, um operador de realejo com um macaco, vestido como uma pessoa, que brinca com um dos espectadores até ir para uma bananeira. Em seguida, aparecem várias mulheres deitadas no chão, usando saias e lenços amarelos, quase como se fossem bananas caídas das bananeiras: no espaço performático encenado, mulheres, frutas e animais se confundem, são todos partes de uma mesma paisagem aparentemente harmônica, que se desenha em torno da ilha cenográfica. A ilha emula uma tropicalidade representativa do gozo: a preguiça, o prazer, a alegria e o corpo feminino são todos símbolos constitutivos dessa encenação. Após a interação das dançarinas, que levantam e sincronicamente saúdam a chegada de algo, surge Carmen Miranda num carro de bois rodeada por vários homens, alguns deles, com o torso à mostra, guiam o carro, enquanto os demais são músicos que dão conta da parte instru- mental da canção. Com essa chegada, diferentes aspectos raciais e étnicos, além das encenações de tais inscrições, passam a fazer parte do cenário. Carmen está sentada quase como num trono repleto de bananas. Vale destacar que as bananas possuem as mais diversas utilidades: são adereços, mulheres, componentes do trono de Carmen, instrumentos musicais. A roupa preta da cantora traz morangos como adereços e em sua cabeça há um turbante também de bananas. Após descer do carro, ela segue sorridente, movimentando as mãos, com os olhos muito abertos, equilibrando o turbante na cabeça enquanto canta e dança com os outros músicos, mas nem por isso deixando de ser o ponto principal da cena. A canção fala de uma moça que se veste de maneira extra- vagante e usa um chapéu de frutas, chamando a atenção de todos, e é

10. Link para o vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TLsTUN1wVrc CARMEN MIRANDA, UMA DIVA TROPICAMP 55 cantada por Carmen em um inglês de sotaque latino bastante marcado, além de misturar palavras também em espanhol. Em determinado ponto, na ausência de Miranda, a narrativa aposta mais detidamente na construção surrealista em torno das bananas e dos morangos, que passam a formar imagens caleidoscópicas, como era comum na estética do cinema de Busby Berkeley. Um trecho longo da performance é composto por esses momentos lisérgicos, onde a música e as imagens das bananas e morangos gigantescos dão ao espetáculo uma atmosfera onírica, que combina com a dimensão de fascínio e utopia ligada ao imaginário de tropicalidade sustentado pela perfor- mance. Depois desses momentos, Carmen volta ao trono de bananas, se despede e se retira da cena. Quando retorna, coloca-se abaixo de um turbante infinito de bananas, com morangos gigantes ao seu redor, cons- truindo uma imagem icônica, onde se evidencia sua sensibilidade diva: é nela onde mais detidamente se cria um aspecto grandioso na imagem de Carmen. Partindo desse momento performático, várias questões podem ser levantadas: quem assiste e quem é assistido, quais as inscrições dos corpos de cada (sexo, raça, aparência), que tipo de entretenimento é construído, e, de uma maneira mais abrangente, como características estereotípicas e/ou culturais são amalgamadas numa performance que parece cons- truir-se enquanto fábula tropical terceiro-mundista dos povos latinos. Todas essas questões, como já dito no início deste trabalho, estão enre- dadas na colonialidade. Como Quijano (2009) sugere, a colonialidade é um conceito vinculado ao colonialismo. Diferente deste, entretanto, pressupõe não apenas um sistema de dominação/exploração, onde o controle de uma determinada nação está sob o domínio de outra, mas diz respeito à continuação desse domínio de maneira profunda e dura- dora, que, mesmo engendrada dentro do colonialismo, ganha corpo nas dimensões sociais e culturais para além dele, ao longo do tempo. Assim, como interpreta Assis (2014), mesmo com a independência e a descolonização, a colonialidade perdura, estando sua existência vinculada à modernidade. Como sugere o autor, existem vários tipos de expressão e exercício da colonialidade. Inclusive, o exercício de criar maneiras de se pensar os povos considerados Outros a partir da lógica 56 DIVAS POP

eurocêntrica que vigora na formação do conhecimento hegemônico. Na performance de Carmen Miranda, o meu interesse é pensar como essas marcas atuam de modo que as narrativas associadas à brasilidade, de modo específico, e à latinidade, de modo mais amplo, são usadas como artifícios constituintes da sensibilidade diva que aparece na perfor- mance da cantora. Embora as discussões em torno da performance de Carmen Miranda e de sua imagem clichê levada à Hollywood, muitas vezes conside- rada adulterada pela política norte-americana, seja vasta, nestes apon- tamentos, procuro atentar para a desnaturalização desse processo, tal como faz Pereira de Sá (2003), ao investir, sim, numa discussão em torno da narrativa que a nossa primeira diva internacional leva à Hollywood, mas atentando para o modo como o próprio construir-se como Outro é também um artifício que lhe constrói enquanto diva. Assim, além de ter algo vibrante na composição da performance descrita, que brinca com bananas e morangos numa ilha tropical, representativa do imaginário latino-americano, comandada por uma cantora exótica e divertida, é nessa performance também onde, acredito, fica evidente o modo como a criação espetacularizada e camp de si está conectada à sensibilidade diva que aparece na cantora. Usar o camp, essa sensibilidade artificializada e exagerada descrita por Susan Sontag (1964), parece funcionar ainda melhor quando pensamos na imagem de Carmen Miranda enquanto ícone queer, reen- cenada sobretudo nos círculos do cinema underground estadunidense, onde figuras como o ator Mario Montez (de nome inspirado na atriz dominicana Maria Montez) se apoderaram de sua sensibilidade diva em suas interpretações. Isso é perceptível em filmes como “Harlot” (1964), de Andy Warhol, no qual Jean Harlow, interpretada por Mario Montez, come eroticamente várias bananas logo após mencionar “that tutti-frutti hat girl”, e, também, na peça Van Victory (1971), de Jackie Curtis, em que Montez se veste de Carmen Miranda. Esses momentos, para além de exemplificar meras referências intertextuais, podem ser interpretados a partir de uma ligação mais complexa e específica que o artista brasileiro Hélio Oiticica (1971) deu o nome de tropicamp. Mas, voltemos algumas casas antes de chegar nesse ponto. CARMEN MIRANDA, UMA DIVA TROPICAMP 57

Ao escolher a performance de “The Lady in the Tutti-frutti Hat” como aquela onde a sensibilidade diva de Carmen melhor se evidencia, o faço também porque é nela onde, no meu entendimento, Carmen se faz diva a partir de uma encenação mitologizada da latinidade, da brasilidade, do Outro. As marcas da colonialidade estão ali compondo um quadro de textura densa, já que a narrativa de Carmen por si só é bastante complexa: ela ocupa o entrelugar da portuguesa branca radicada no Brasil, representante de um dos gêneros musicais brasileiros mais asso- ciados às comunidades negras, responsável por inventar, junto com outros atores, a brasilidade, “a rainha do samba que não sabia sambar”, como diz Caetano Veloso (1997), e que, se foi até certo ponto renegada pelo público, também foi abraçada (principalmente hoje, depois que sua imagem passou por tantas ressignificações) até se tornar uma alegoria do imaginário brasileiro, que, justamente por ter estado em constante disputa, é elucidativa de questões culturais profundas de um país como o Brasil. A performance diva em Carmen se faz num arranjo de contrastes, o que a torna “um signo sobrecarregado de afetos contraditórios”, como aponta Caetano Veloso (1997), que abraçou a imagem da cantora como símbolo do movimento tropicalista brasileiro justamente por seu teor contraditório.

O fato de ela ter se tornado, com o sucesso em Hollywood, uma figura caricata de que a gente crescera sentindo um pouco de vergonha, fa- zia da mera menção de seu nome uma bomba de que os guerrilheiros tropicalistas fatalmente lançariam mão. Mas o lançar-se tal bomba significava igualmente a decretação da morte dessa vergonha pela aceitação desafiadora tanto da cultura de massas americana (portanto da Hollywood onde Carmen brilhara) quanto da imagem estereotipa- da de um Brasil sexualmente exposto, hipercolorido e frutal (que era a versão que Carmen levava ao extremo) – aceitação que se dava por termos descoberto que tanto a mass culture quanto esse estereótipo eram (ou podiam ser) reveladores de verdades mais abrangentes so- bre cultura e sobre Brasil do que aquelas a que estivéramos até então limitados. (VELOSO, 1997, p. 209)

Assim, tendo em vista essa camada de significados trazida por sua performance, se descortinam os artifícios colocados em jogo. Em outras palavras, o construir-se diva de Carmen é forjado sobre um amálgama 58 DIVAS POP

cultural através do qual ela se cria como uma espécie de diva desse Outro latino: todo o seu exagero, nas bananas, nos balangandãs, nos saltos, e, sobretudo, na baiana estilizada, traduz essa tentativa de inventar, a partir de todo um imaginário a respeito da latinidade e do que se entendia por Brasil naquele momento – momento, vale ressaltar, em que o país procurava para si uma identidade (PEREIRA de SÁ, 2003) –, uma diva que se faz a partir de uma narrativa cultural camp e mitologizada. É nesse ponto que voltamos ao conceito de tropicamp. Carmen, assim como a atriz dominicana Maria Montez e tantos outros agentes de uma mesma rede propagada na cultura midiática norte-americana (inclusive os próprios cineastas e produtores hollywoo- dianos de sua época), serviu como mito fundador desse imaginário latino fantasioso (e mais especificamente de uma noção de brasilidade) que tomaria o cenário midiático hollywoodiano daquele momento deixando vestígios até hoje. Assim sendo, como constata Oiticica (1971), Carmen seria um grande exemplo de fenômeno tropicamp, tendo o próprio fenômeno nascido também a partir dela. Essa relação, aparentemente simples, oferece pistas para pensarmos o tropicamp como principal baliza através da qual Carmen se inventa como diva. Mas o que seria, afinal, otropicamp ? Hélio Oiticica, na carta escrita ao amigo Torquato Neto, concede algumas pistas sobre esse fenômeno, que pode ser interpretado como uma junção entre o estereotípico imagi- nário tropical e o movimento tropicalista brasileiro combinados com o exagero e o artificialismo próprios docamp . Para chegar nessas conclu- sões, Oiticica tinha como ponto de partida o cinema underground do cineasta Jack Smith, onde o já mencionado Mario Montez recriava sobre si, para além da atriz Maria Montez, a diva exótica que aparecia em Carmen Miranda. Nas palavras dele:

[...] de tudo que vi e sei, considero JACK SMITH a um tempo PRÉ e PÓS-TROPICÁLIA, fazendo um amálgama de clichês-tro- pihollywood-camp, impressionantes – WARHOL desenvolveu-se mais, como o que é: POP e PÓS - POP, amálgama de POP e clichê- -HOLLYWOOD-AMERICA - a importância e o interesse para nós, da incarnação-personagem MARIO MONTEZ, é justamente essa de que êle é a concreção de clichê-LATINOAMERICA como um todo, que me faz pensar no que SOY LOCO POR TI AMERICA de GIL- CARMEN MIRANDA, UMA DIVA TROPICAMP 59

-CAPINAM foi para a música-TROPICÁLIA no brasil, e ainda mais porque essa imagem-incarnação-personagem foi criada nos states – sem dúvida tudo nasceu sob a tutela de JACK SMITH: MARIA MON- TEZ E CARMEN MIRANDA duas das precursoras do que chamarei aqui de TROPICAMP, e por isso são super-ídolos no underground americano […].11 (OITICICA, 1971, p. 3)

Nessa afirmação, parece claro que, para além de um interesse numa mitologia pop latino-americana que se desenhava na cena cinematográ- fica mencionada e de um desejo por entender as (des)conexões entre as Américas, havia também uma vontade de pensar uma latinidade que se apresentava como subversiva e deslizante. Um artifício capaz de deslocar Carmen Miranda de um contexto hollywoodiano exotizado para o contexto underground de um ícone queer. Esse deslocamento é fruto dos próprios sentidos que a imagem da artista atravessa, que se vinculam em grande medida à arte da montagem drag queen, mas, também, se deve às reencenações dessa figura no cenário underground mediadas pelo tropicamp. Na performance de Carmen, esse conceito, acredito, agencia em torno de si determinados construtos estéticos combinados com acionamentos de ordens políticas – dispostos a partir das relações entre fascínio e assujeitamento que estão imbricadas na construção da latinidade –, que criam a aura artificializada onde a artista atua e se (re) inventa. Nesse sentido, parece haver uma relação entre o tropicamp e a perfor- matividade, tal como pensada por Butler (2003). Embora a autora tenha visado em seus estudos as problemáticas de gênero, acredito que esse conceito nos ajuda a pensar, para além da performatividade feminina na sensibilidade diva, também na identidade latina inventada de Carmen como resultante de um conjunto de encenações que, por sua vez, além de atestarem os artifícios de sua própria criação, servem de modelo tropicamp para o que a imagem de Mario Montez, por exemplo, acio- naria mais tarde. Em Carmen Miranda, portanto, temos uma sensibilidade diva que se constroi a partir de uma estética tropicamp, amalgamando as contradi-

11. O não seguimento das normas gramaticais atuais, bem como a não obediência às regras de pontuação, ocorre pela reprodução original dos escritos de Hélio Oiticica. 60 DIVAS POP

ções da narrativa da artista e a invenção de uma identidade brasileira e latina, além de acionar uma performatividade que lhe endereça a insti- tuir um conjunto de possibilidades de atuação, um roteiro dessa mito- logia latina em solo hollywoodiano, que segue sendo uma influência mesmo nos dias de hoje.

Considerações finais Vestígios do que Carmen Miranda fez ao criar sobre si essa persona diva continuam sendo, mesmo hoje, depois de tantas ressignificações de sua imagem, apoderados pela música pop brasileira. Quando Anitta foi ao Rock in Rio Lisboa 2018 vestida de Carmen Miranda e entoou um “disseram que eu voltei americanizada”, para além de emular uma quase “passada de bastão” de uma diva que se internacionalizou para a outra que investe na internacionalização, houve também um movi- mento de reencenar a sensibilidade diva de Carmen como artifício para a construção de sua própria narrativa. O tropicamp, de novo, entra nessa disputa, afinal, que signos utilizar para se construir enquanto diva latina? Como fazer esse arranjo entre o tropicamp, o espetáculo e a pretensão de ser arrasadora? Há duas performances de Anitta de uma mesma música que parti- cularmente me chamam atenção: o videoclipe de “Banana” (do disco “Kisses”, 2019) e a apresentação dessa canção no Billboard Latino de 2018. A música, que tem participação da cantora estadunidense de origem mexicana Becky G, é composta por trechos em inglês e espanhol, e, até certo ponto, representa uma tentativa das duas artistas de se esta- belecerem como divas latinas. Tanto no videoclipe quanto na apresen- tação na Billboard, a banana é acionada como principal símbolo estético e ganha mais uma configuração: do business de Carmen para o banquete de Mario Montez, agora ela aparece erotizada numa performance que mistura exagero com um tom de ingenuidade e diversão, e que se estabe- lece a partir de uma sensualidade tão marcada que beira o kitsch. Mesmo que não propositadamente, Carmen Miranda acaba sendo acionada nessas performances através da banana, símbolo de tropicalidade e, como vimos, também elemento estético bastante presente na sua cons- trução enquanto diva. CARMEN MIRANDA, UMA DIVA TROPICAMP 61

Assim, um certo imaginário da diva latina e, mais especificamente, brasileira também acaba sendo inventado nessa narrativa, funcionando como um modelo a ser seguido, de modo a ser reincorporado, reen- cenado e revisto nas performances de Mario Montez e de Anitta. A imagem contraditória de Carmen Miranda nos chega como um misto de diva, ícone queer e underground, alegoria da brasilidade, mas também, e nesse ponto voltamos ao entendimento traçado aqui em torno da perfor- mance diva, como exemplo de fruição dessa performatividade feminina que se quer grandiosa conjugada com a narrativa das Américas presente no tropicamp. Tendo tudo isso em vista, com este trabalho, tentei traçar alguns entendimentos em torno de Carmen Miranda que pudessem de alguma forma contribuir para os estudos que já se tem sobre ela, entendendo- -a, assim como Pereira de Sá (2003, p. 25), como fenômeno comunica- cional amplo, que abre “canais de comunicação entre o local e o global” e é percebida, para além de imagem clichê, como “alegoria dos trópicos em Hollywood”. Essa discussão também contribui, por sua vez, para o entendimento de diva que tenho traçado, o que, acredito, propõe um caminho mais aberto em torno da compreensão da figura da diva, além de dar continuidade às discussões já existentes a respeito do termo. Com isso, imagino que a aposta numa sensibilidade diva para pensar perfor- mances musicais pode servir de base para pensar também essa perfor- mance nos mais diversos contextos, com suas devidas particularidades. 62 DIVAS POP

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Capítulo 3 Anitta no Rock in Rio: negociações de corpos e territórios em performances de divas pop-periféricas Simone Pereira de Sá

A cantora Anitta encerrou o ano de 2017 consolidando seu protago- nismo no cenário da música pop brasileira, com videoclipes e músicas no topo das listas de mais vistas e ouvidas e uma agenda de shows bem sucedidos, cujo ápice foi a participação no Réveillon de Copacabana1. Apesar do sucesso, seus fãs se frustraram em razão de a cantora não ter sido convidada para o Rock in Rio daquele ano, reclamando nas redes sociais sobre esta ausência2. A mobilização teve resultados positivos e,

1. 2017 foi o ano em que Anitta anunciou o projeto Check Mate, no qual lançou quarto videoclipes patrocinados pela rede de vestuários C&A, apontado como uma acertada estratégia de marketing da cantora. Ver, dentre outros, a análise de Griebeler sobre a consolidação da marca Anitta a partir deste projeto em:https://lume.ufrgs.br/bitstream/ handle/10183/192954/001087358.pdfsequence=1&is Allowed=y. Sobre sua participação no show do Réveillon de Copacabana na virada de 2017, ver: https://www.papelpop.com/2018/01/anitta-no-reveillon-de-copacabana-teve-vai- malandra-com-orquestra-e-muitos-hits-confira-o-show/. Acesso em: 29 nov. 2019. 2. O festival aconteceu em setembro de 2017. E o clamor pela presença de Anitta cresceu no momento em que Lady Gaga cancelou a sua apresentação e surgiu uma inesperada “vaga” no palco principal do festival, que acabou sendo ocupada pelo grupo Maroon 5. Naquela ocasião, fãs utilizaram a hashtag #AnittanoRockinRio para reivindicar a presença da cantora em substituição a Gaga. Ver em: https://g1.globo.com/musica/rock-in-rio/2017/ noticia/fas-cobram-presenca-de-anitta-no-rock-in-rio.ghtml. 66 DIVAS POP

nos dois anos seguintes, Anitta foi convidada para participar, respecti- vamente, do Rock in Rio Lisboa, em Portugal, em 2018; e do Rock in Rio, no Rio de janeiro, em 2019. E aproveitando a visibilidade, a cantora explorou um conjunto de clichês ligados ao Brasil e à cidade do Rio de Janeiro, sobretudo na abertura dos dois shows. Assim, no festival que ocorreu na capital portuguesa, ela entrou no palco vestida de Carmen Miranda, enquanto no Rio de janeiro, no ano seguinte, acionou a história do em sua abertura. Frente a este contexto, este capítulo apresenta questões em torno da presença e restauração do imaginário ligado às divas pop, a partir da performance de Anitta nestes dois momentos, com foco na discussão sobre a potência dos clichês e na noção de performance enquanto atos de transferência (SCHECHNER, 1988) e de negociação de sentidos em torno de corpos e territórios (TAYLOR, 2015). Assim, tomando-a como uma diva do funk pop, busco debater o contexto de construção das suas performances; e suas negociações, apropriações e tensões com o imagi- nário global da música pop. Ao propor esta abordagem, meu objetivo é dar continuidade a inda- gações que vêm sendo discutidas de maneira mais ampla em pesquisa sobre as formas como o imaginário e a iconografia do pop – sobretudo das divas pop – são encenados, apropriados e performatizados em cenários locais, com foco em questões de performance, corporeidades e cultura popular midiática3. Assim, tomando as imagens das divas pop como “epicentros estéticos” (PEREIRA DE SÁ e PAULO, 2019) que apontam para um tipo de corporeidade que habita o mediascape da modernidade (APPADURAI, 2005), tenho interesse em discutir as zonas de diálogo e de tensão entre o local e o global, a partir das seguintes indagações: o que as performances de Anitta nos shows do Rock In Rio nos revelam enquanto formas de habitar o mundo da cultura pop? Que narrativas se

3. Os projetos são: 1. “Estratégias de visibilidade da música pop-periférica do Brasil contemporâneo: entre o local, o transnacional e o periférico”, financiado com bolsa PQ pelo CNPq; e 2. “Cartografias do Urbano na Cultura Musical e Audiovisual: Som, Imagem, Lugar e Territorialidades em perspectiva comparada”, contemplado pelo edital PROCAD/ CAPES. ANITTA NO ROCK IN RIO 67 constroem através desses roteiros performáticos e qual a potência dos clichês utilizados? Com base na “dramaturgia dos eventos” (TAYLOR, 2013; SOARES, 2018), o argumento que desenvolvo ao longo do capítulo é o de que os dois shows de Anitta podem ser observados sob a moldura dos “quadros de colonialidade” que Taylor discute em seu trabalho e Soares ressoa na sua análise do show do grupo Major Lazer em Cuba. Tratam-se, assim, de performances complementares em torno de uma “narrativa do encontro entre culturas”, na qual elementos como superação e conquista são performatizados pela cantora. Ao trabalhar a partir da retranca mais ampla da cultura pop, pretendo abordá-la a partir do conjunto de tensões que o termo suscita. Tensões advindas do fato de que o pop se enraíza na lógica mercantil, nego- ciando com as exigências do mercado global e acionando um conjunto de clichês; ao mesmo tempo que constrói uma estrutura de senti- mentos, uma matriz de sensibilidade (PEREIRA DE SÁ, CARREIRO e FERRRAZ, 2015) que se conecta à discussão sobre o cosmopolitismo estético (REGEV, 2013), de Jennex (2013) e outros autores sobre as divas pop enquanto ícones culturais que povoam o mediascape da moderni- dade, tal como veremos a seguir. Nesta direção, para além dos binarismos, quero sublinhar e discutir a potência “pop-lítica” dessa sensibilidade bastarda do pop (RINCÓN, 2016 e ROCHA e GHEIRART, 2016), que pode ser vista em ação nas performances de Anitta nestes shows. Para tanto, o trabalho se organiza em duas partes. Na primeira, “Divas pop, cosmopolitismo e performance”, retomo alguns aportes teóricos para a discussão em torno desse trinômio; enquanto, na segunda, “As performances de Anitta no Rock in Rio”, abordo a trajetória deste festival como marca de sucesso e seu lugar na história dos shows de música no Brasil; para então discutir as performances de Anitta nos festivais de Lisboa (2018) e Rio de Janeiro (2019).

Divas pop, cosmopolitismo estético e performance Conforme discutimos anteriormente (PEREIRA DE SÁ, VIANNA; 2019), a palavra diva aparece na música ligada primeiramente às grandes 68 DIVAS POP

cantoras de ópera, as célebres prima donnas, estendendo seu uso ao longo do século XX para se referir não apenas aos ícones culturais do cinema, música e cultura de entretenimento, como mais recentemente, para qualquer mulher poderosa, espetacular e glamourosa. Explorando a relação entre a cultura gay e o culto das divas no ambiente da ópera, Jennex (2012) destaca os clichês, os artifícios e o exagero da representação do amor heterossexual como elementos da performance operística. Na música pop, por sua vez, o termo se refere à linhagem de artistas transnacionais que enfatizam o espetáculo visual, a presença cênica, a coreografia e o desenvolvimento de personagens dramáticos. Diana Ross, Madonna, Britney Spears, Rihanna, Lady Gaga e Beyoncé podem ser vistas como exemplos de uma linhagem de mulheres que encenam formas de estar no mundo “pela ideia de femi- nilidade fortalecida, consciência corporal, entretenimento e aspectos políticos relacionados a mulheres e homossexuais” (EVANGELISTA, SOARES e XAVIER, 2016, p. 96). Em seu artigo, Jennex relaciona a imagem da diva à discussão de Rogers (1999) sobre ícones culturais, entendidos como:

aqueles objetos ou pessoas que se tornam catalisadores de fantasias e identificações para grandes públicos por sua versatilidade e abertura a diversos sentidos, permitindo assim apropriações culturais e cama- das de identificação cultural e multifacetada. (JENNEX, 2013, p. 351)

Além disso, paradoxalmente, os ícones permitem a evocação de senti- mentos de comunidade e diferença. Assim, o que dá vida e sustenta os ícones culturais – nos quais as divas estão inseridas – são as “experiên- cias, lembranças e fantasias” dos indivíduos que as adoram. Relacionar as performances das divas ao contexto da discussão sobre a versatilidade e multivocalidade de ícones culturais nos ajuda a apreendê-las, primei- ramente, a partir de sua presença como parte do imaginário pop trans- nacional que Appadurai (2005) chama de “mediascape da modernidade”, entendido como o arquivo de imagens, memórias e afetos adquiridos através do aparato mediático e que atravessa distintas territorialidades e temporalidades. Ao mesmo tempo, me parece também importante indagar se é possível construir outras linhagens de divas pop que não ANITTA NO ROCK IN RIO 69 tenham como matriz o universo anglo-saxônico – pergunta à qual voltarei ao discutir a concretude da performance de Anitta nos shows. Aqui, torna-se oportuno lançar mão da reflexão de Soares sobre a potência dos clichês. Pois, se o clichê reitera estereótipos e pode vir a reduzir a complexidade das identidades territorializadas, ele também atua como potência comunicativa, capaz de engajar fruidores mundo afora num diálogo transnacional. Desta maneira, as identidades cons- truídas através da cultura pop são atravessadas pelos clichês “que tentam negociar um comum-global e um singular-local agenciados mutua- mente” (SOARES, 2018, p. 36). A utilização da noção de performance, por sua vez, filia-se à perspec- tiva comunicacional e é percebida enquanto “um processo comunicativo ancorado na corporeidade e ao mesmo tempo uma experiência de socia- bilidade, uma vez que supõe regras e convenções negociadas” (PEREIRA DE SÁ, 2010). Trata, conforme Taylor (2013), de uma episteme, uma forma de produzir conhecimento e negociar posições a partir da tangi- bilidade dos corpos4. Assim, a ênfase no caráter mimético e mnemô- nico das performances (ROACH, 1996), que Schechner vai chamar de “comportamento restaurado” são importantes para a reflexão. Um outro ponto da discussão de Taylor (2013) e de Soares (2018) diz respeito à dramaturgia dos eventos musicais, pensada a partir da chave dos roteiros performáticos. Assim, abordando os eventos como performances, os autores ressaltam aspectos tais como a teatralidade, a encenação e a negociação com o outro – outros corpos, outros terri- tórios – como centrais ao processo. Ao mesmo tempo, a noção de roteiro, entendida como a moldura que enquadra os shows de uma certa maneira, nos permite apreender as narrativas que organizam os corpos, gestos, sonoridades e espaço cênico em cada um destes eventos. Roteiro percebido como a “configuração paradigmática que conta com partici- pantes supostamente ao vivo, estruturado ao redor de um enredo esque- mático, com um fim pretendido (apesar de adaptável)”. (TAYLOR, 2013 apud SOARES, 2018)

4. Para uma discussão da noção de performance em perspectiva comunicacional, ver: AMARAL, POLIVANOV e SOARES, 2018. 70 DIVAS POP

Finalmente, a noção de cosmopolitismo estético (REGEV, 2013), refere-se a essa dinâmica de mútua circulação e apropriação entre os ícones globais e locais, definida pelo autor enquanto uma condição cultural mais ampla que atravessa a experiência dos habitantes de dife- rentes países, mesmo aqueles considerados periféricos, em relação aos fluxos culturais hegemônicos. Longe de argumentos maniqueístas sobre a relação de dependência das culturas “periféricas” em relação aos centros globais, o autor discute como as singularidades culturais são atualizadas (e não apagadas) nos processos globais de circulação de bens de consumo e imagens, desta- cando as práticas culturais de negociação entre o local e o global, que pretendo esmiuçar a partir da análise das múltiplas mediações de Anitta no Rock in Rio.

As performances de Anitta no Rock in Rio Porque os fãs de Anitta ficaram tão incomodados com a ausência da cantora do line-up deste festival, que afinal tem no nome um gênero musical – o rock - alheio à trajetória desta artista? Qual a importância de ser convidada para se apresentar no palco deste evento? O Rock in Rio é o maior festival de música brasileiro, já tendo reali- zado vinte edições, sendo oito na cidade sede do Rio de Janeiro e outras doze em cidades de Portugal (Lisboa), Espanha (Madri) e Estados Unidos (Las Vegas). Sua primeira edição ocorreu no Rio de Janeiro, em 1985, no período de transição da ditadura militar para a democracia, quando o Rock BR despontava como um movimento de renovação, que expressava novos anseios de uma camada da juventude urbana, sobre- tudo de classe média. Naquela ocasião, o festival, idealizado por Roberto Medina, através de sua empresa Artplan, trouxe ao Brasil um conjunto de artistas e bandas que jamais tinham sido visitado o País e que tocaram ao lado dos músicos brasileiros, inaugurando um novo padrão de quali- dade nos shows e tornando-se um marco da indústria da música. Ao longo de sucessivas edições, o longevo festival consolidou-se como uma marca de prestígio da indústria do entretenimento e tocar no Rock in Rio é uma vitrine cobiçada por qualquer artista da música ANITTA NO ROCK IN RIO 71 no Brasil, uma vez que o festival acolhe, não sem polêmicas, múltiplos gêneros musicais além do rock5. Conforme afirmou seu criador numa das inúmeras vezes em que foi questionado sobre a presença de artistas pop no line-up: “o Rock in Rio é a celebração de todos os ritmos e todas as tribos” e o rock “é apenas uma bandeira de comportamento” (apud MEDEIROS, 2019, p.11). A explicação é ratificada por sua filha Roberta Medina, “braço direito” do pai:

O rock é o espírito, a atitude, a vontade de construir e empreender. Não é só um estilo musical. Se fosse um evento de rock não teria essa dimensão que tem hoje. Seria um evento de nicho. Para vocês terem ideia, 75% do nosso público possui idades que variam entre 15 e 50 anos. Sempre fomos abertos a todos os gêneros musicais. Temos dois dias dedicados ao rock, um deles ao metal. Mas queremos atender um público diferenciado. Não temos pretensão que todos venham todos os dias ao Rock in Rio. (apud MEDEIROS, 2019, p. 11)

Contudo, mesmo com a declarada abertura a “todos os gêneros” e a constante presença de divas da música pop nacional integrando as diversas edições, tais como Claudia Leitte e Ivete Sangalo, Roberto Medina justificou a ausência de Anitta em 2017 em razão de “não possuir afinidade com a música da cantora”, afirmando que seu estilo não se encaixava com o festival. (apud MEDEIROS, p. 13). Na mesma entre- vista, porém, o empresário declara não descartar o convite a Anitta para se apresentar em uma das edições do festival, uma vez que “a cantora está se aproximando cada vez mais do pop” e que “teve uma reunião com ela e ficou muito bem impressionado com o profissionalismo da artista” 6. Confirmando a “boa impressão”, Anitta é convidada para a edição do Rock in Rio Lisboa no ano de 2018; e para o principal palco de atrações da edição do Rock in Rio, em 2019, no Rio de Janeiro. Vale observar que

5. Medeiros (2019) menciona, em seu trabalho, o embate entre pop e rock, que atravessa a história do festival e que na edição de 2017, tomou as redes sociais através da hashtag #popinrio, utilizada ora ironicamente, pelos roqueiros, ora de maneira positiva, pelos fãs das atrações da música pop. 6. Mais informações: https://www.terra.com.br/diversao/musica/anitta-fora-do-rock-in- rio-roberto-medina-explica-porque-nao-convidou-a-cantora,9ba39cbff8016e97d97d262 244752969l7gbbxjq.html. Acesso em: 28 nov. 2019. 72 DIVAS POP

nesta última edição, entre as inúmeras atrações do festival, foi criado um palco denominado “Espaço Favela”, com apresentações de música, dança e outras manifestações culturais de gêneros musicais variados, inclusive o funk7. Isto demonstra que houve uma mudança da percepção do empresário em relação ao gênero, que até a edição anterior “não se encaixava” na proposta do festival.

Roteiros dos shows de Anitta Os shows de Anitta nos dois festivais têm roteiros bem próximos. São espetáculos com cerca de uma hora de duração, apresentando entre 13 e 15 canções organizadas em blocos de acordo com o gênero e o ritmo. Assim, vamos ter, nos dois shows, os seguintes blocos: 1. o primeiro bloco com canções pop e eletrônicas - tais como “Bang”, “”, “Sim ou Não” e “”; 2. bloco com reggaetons e outros gêneros pop latinos, cantados em espanhol, tais como “Ginza”, “”, “Paradinha”, “Sin Miedo”, “ Fuego” e “Downtown”; 3. bloco de medleys de canções românticas, lentas e/ou do gênero Bossa Nova, tais como “Garota de Ipanema”, “Will I See You”, “Você Mentiu”, “Fica tudo bem”, “Zen”, “Cobertor” e “Ao vivo e a cores”; 4. bloco com as canções que Anitta gravou em parceria com artistas de outros gêneros pop peri- féricos brasileiros, tais como sertanejo e forró – como é o caso do medley de “Loka”/ “Essa mina é louca”/ “Você partiu meu coração”/ “Romance com Safadeza”; e 5. finalmente, encerrando o show, um bloco que recria um baile funk estilizado, com DJs e dançarinos numa roda exibindo passos do funk, no qual se destacam diversos tipos de rebolados típicos do gênero, tais como o “quadradinho”.

7. O Espaço Favela foi inaugurado na edição de 2019. Segundo a organização do festival, trata-se de uma ação para “dar visibilidade à diversidade e pluralidade dos morros”. Idealizado em parceria com a ONG Viva Rio e a Central Única das Favelas (CUFA) o espaço teve programação eclética, com funk, rap mas também samba e música clássica e contou com bares montados por empreendedores das favelas cariocas. O espaço foi criticado por alguns artistas por estetizar a cultura da favela e contribuir pouco para a efetiva diversidade. Mais informações: https://g1.globo.com/pop-arte/musica/rock-in- rio/2019/noticia/2019/09/26/espaco-favela-e-inclusivo-artistas-questionam-acao-do- rock-in-rio-e-criminalizacao-do-lazer-no-morro.ghtml. Acesso em: 28 nov. 2019. ANITTA NO ROCK IN RIO 73

No show de Lisboa, Anitta introduz este bloco com a sua conhe- cida frase: “vocês pensaram que eu não ia rebolar minha bunda hoje?”, levando a plateia ao delírio, seguindo-se a exibição de rebolados e a canção “Vai, Malandra!”, enquanto na versão carioca, o bloco final tem ainda as canções “Favela Chegou” e “Onda Diferente” no grand finale funqueiro8. Nos aspectos cênicos, os shows obedecem aos padrões estabele- cidos pelas grandes divas pop transnacionais, nos quais se destacam os cenários elaborados, com luzes, telões, explosões de fogos e mudanças de ambientação. As trocas de figurinos – em cada show a artista apre- sentou-se com três diferentes looks - têm por base o short ou micro vestido e dialogam com o contexto de cada bloco musical. As coreogra- fias bem ensaiadas, com a presença de dançarinos destreet dance, funk e hip hop, destacam a diversidade de corpos e a presença de homens gays, mulheres trans e mulheres fora do padrão estético hegemônico, numa estratégia já utilizada por outras divas pop tais como Madonna e Beyoncé. Anitta canta ainda com o apoio de playback, recurso também muito usado em outros shows de artistas pop e justificado a partir do esforço que as coreografias exigem9. Porém, se os shows seguem, de forma geral, um roteiro bem pare- cido, suas respectivas aberturas são bastante distintas. Na primeira, em Lisboa, Anitta entra no palco vestida com o traje de baiana, evocando Carmen Miranda; enquanto que na abertura brasileira, é o cantor MC Andinho, oriundo do funk, quem faz as vezes de “mestre de cerimônia” ao abrir o show cantando um medley das canções “Rap das Aranhas”, “Rap da Felicidade” e “Já é Sensação”, para em seguida chamar Anitta ao palco.

8. Ver o set list de cada um dos shows em: https://www.setlist.fm/setlist/anitta/2018/ parque-da-bela-vista-lisbon-portugal-3ea2d73.html (Lisboa); e https://www.setlist.fm/ setlist/anitta/2019/parque-olimpico-rio-de-janeiro--39c653f.html (Rio de Janeiro). Acesso em: 28 nov. 2019.

9. No show do Rio de Janeiro, o uso de playbacks foi criticado e gerou discussões acaloradas na imprensa e nas redes sociais. Para mais informações: https://rd1.com.br/publico-acusa- anitta-de-usar-playback-e-ser-antipatica-durante-show-no-rock-in-rio/. Acesso em 29 nov. 2019. 74 DIVAS POP

Se o entendimento dos eventos como roteiros performáticos nos permite apreendê-los a partir das ideias de teatralidade, encenação e negociação com o outro, proponho perceber estas performances na chave dos “encontros entre culturas”, a partir da moldura dos quadros de colonialidade discutidos por Taylor e por Soares, através do qual Anitta encena uma narrativa de superação e de conquista contra-hegemônica. Neste sentido, as duas aberturas atuam como narrativas complemen- tares: a primeira, que performatiza uma identidade brasileira/funqueira/ periférica de Anitta ao chegar na Europa pela primeira vez, sintetizada no mote “made in Brazil”; a segunda, complementar, é a da identidade periférica/funqueira performatizada no Rock in Rio carioca, quando o funk “venceu”, chegando ao palco principal do Rock in Rio.

Em Lisboa, “made in Brazil” A primeira cena do show de Anitta em Lisboa apresenta dançarinos vestidos de marinheiros, movimentando-se num cenário que remete ao cais de um porto estilizado, cujo centro está ocupado por um grande container, onde se lê: “Made in Brazil.” Container que se abre, a seguir, para revelar Anitta caracterizada como a baiana dos filmes de Carmen Miranda. A menção à cantora é explícita, seja nos trajes e coreografia que eternizaram Carmen nos filmes de Hollywood, seja na escolha da canção “Tico-Tico no Fubá”10, uma das mais conhecidas do repertório da cantora, presente no filme “Copacabana”, de 1947, seja ainda na citação da frase “Disseram que voltei americanizada”, também de uma canção de Carmen Miranda, no momento em que imagens tropicalistas de frutas coloridas são projetadas no cenário11.

10. A canção “Tico-Tico no Fubá” é um choro composto por Zequinha de Abreu. Antes do filme Copacabana, ela aparece na trilha do filme “Saludos Amigos”, desenvolvido pelos estúdios Disney e lançado em 1942, no bojo da chamada “Política da Boa Vizinhança”. No filme, Pato Donald e Pateta visitam cidades da América Latina, inclusive o Rio de Janeiro, na companhia do personagem Zé Carioca – desenvolvido para este filme. Desde então, tornou-se, ao lado de “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, uma das canções icônicas e clichês da identidade brasileira. 11. Mais informações: https://www.facebook.com/dyegomaximo/ videos/1973835802929196/?v=1973835802929196. Acesso em: 20 dez. 2019. ANITTA NO ROCK IN RIO 75

Em seguida, Anitta se despe da saia longa e do turbante, revelando um micro short de lantejoulas amarelas e dá início à canção “Bang”, assumindo a sua persona funqueira sob um fundo de projeções de sua própria imagem no formato dos retratos coloridos da Pop Art, de Andy Warhol, seguidos da palavra “Anitta” e da frase “Funk é cultura popular”. Esta sequência de citações tem a breve duração de não mais do que três minutos. Contudo, é fundamental na construção do roteiro perfor- mático do show, apresentando didaticamente a personagem e sua narra- tiva. Roteiro onde a escolha de Carmen Miranda - entre tantas divas possíveis para serem reverenciadas naquele momento – constitui um pilar central da narrativa. Carmen Miranda é a mais bem sucedida cantora brasileira no exte- rior, tendo estabelecido uma sólida carreira em Hollywood entre os anos 1930 e 1940, lançando internacionalmente a personagem da baiana a partir da inspiração de canção de Dorival Caymmi. E tornou-se, a partir de sua carreira internacional, um clichê da identidade brasileira e da alegria tropical, através de personagens vestidas com turbantes e trajes coloridos e exóticos, eternizadas nos musicais hollywoodianos daquele período (PEREIRA DE SÁ, 2001). Além disto, Carmen lutou contra vários estigmas: o de cantar samba sem ser negra, o de ter se “americanizado” após ir para Hollywood e ainda de ter a voz “pequena”, afinada mas sem grande potência vocal. Por fim, a cantora tem origem portuguesa, mas conquistou o Brasil e o imaginário midiático transnacional a partir dos filmes de Hollywood. Assim, se voltamos à discussão de Taylor (2013) sobre as perfor- mances enquanto atos de transmissão de conhecimento, memória e um sentido de identidade social através do corpo; e de Soares (2018) sobre a potência dos clichês – no caso, um tipo específico de clichês, que é aquele reiterado nos corpos utópicos das divas pop, construídos através de cenas de filmes, shows e outras imagens midiáticas - a incorporação de Carmen por Anitta acena para um conjunto de clichês de brasilidade e reitera uma narrativa de superação – o funk excluído das edições ante- riores do Rock in Rio – e de conquista, através da chegada no espaço simbólico do festival e no continente europeu via Portugal, num esforço de internacionalização de sua carreira. Narrativa essa que se inscreve na 76 DIVAS POP

linhagem de divas pop brasileira que Carmen Miranda inaugurou, ao conquistar em Hollywood sem falar inglês, cantando sambas e trajando figurinos exóticos, cujo ponto alto foi sempre o turbante recheado de frutas tropicais – as mesmas que aparecem refletidas no cenário, no primeiro minuto do show de Anitta em Portugal. Vislumbra-se, assim, uma reivindicação indentitária, que se faz presente ao longo de todo o show e que aparece mais didaticamente na abertura e encerramento, sob o slogan: “Made in Brazil”. Perfor- mance cujo “epicentro estético” não é um discurso elaborado, mas sim a corporeidade de Carmen atualizada por Anitta, que funciona como um cartão de visitas para uma cantora ainda então pouco conhecida no contexto internacional do pop, mas que, abençoada pela anterior, pretende conquistar o mercado internacional cantando gêneros musi- cais do Brasil e da América Latina, sejam os periféricos tais como o funk, sertanejo, forró e o reggaeton, seja a consagrada Bossa Nova; e exibindo, em conjunto com seus dançarinos, corpos, gestos e uma certa ginga malandra aprendida nos bailes funk das favelas do Brasil que imprime marcas corporais específicas e negocia a visibilidade de identi- dades subalternas no contexto global.

No Rio: a favela chegou! Cercado de muita expectativa pelos fãs e pela imprensa brasileira, o show de Anitta no Rock in Rio 2019 foi precedido por entrevistas da artista onde ela anunciou que montou um roteiro para contar a sua história e enfatizar suas origens como cantora vinda da periferia e do funk. Aqui, a abertura do show vai ter, também, um papel estratégico para construir esta narrativa. Nela, temos a presença de MC Andinho, que é o único convidado ao longo de todo o show, cantando funks antigos e antológicos, num cenário clean, onde se destaca o paredão de caixas de som que alude à Furacão 2000, equipe de som que lançou Anitta e que remete muito claramente ao funk e a cultura de periferia12.

12. Para ver a performance: https://www.youtube.com/watch?v=JR2eNR-bAEs. Acesso em 20 dez. 2019. ANITTA NO ROCK IN RIO 77

Nesta trama, o show encena identidades, reiterando a narrativa de superação e de conquista de um território simbólico – o palco prin- cipal do Rock in Rio. E sob a moldura dos quadros de colonialidade, podemos perceber a performance de Anitta como uma resposta da periferia ao centro hegemônico – quando lembramos que, no Brasil, o rock é o outro antagônico do funk; e que os roqueiros são haters que estigmatizam fortemente o funk carioca nas redes sociais, por exemplo. “A favela chegou!” é o mote que a cantora performatiza no palco mais importante do festival, ainda que os ingressos não sejam acessíveis à maior parte dos moradores das favelas cariocas. Assim, ainda que o show do Rock in Rio 2019 apresente um roteiro muito parecido com o show do Rock in Rio Lisboa em termos de reper- tório e coreografias, os cenários, figurinos e sobretudo a abertura com MC Andinho vão modular a performance na direção de reforçar a iden- tidade funqueira da cantora. Outros elementos reforçam a narrativa de conquista nos dois espe- táculos. No show de Lisboa, a cantora faz um breve discurso, antes de iniciar o bloco final do “baile funk”. E ela diz que “hoje é um momento histórico para mim e para todos os funqueiros do Brasil, que nunca pensaram que o ritmo ia chegar tão longe”. Neste momento, as câmeras focalizam a plateia que acena bandeiras do Brasil e de Portugal – outro clichê sempre utilizado nos shows para demarcar as identidades (SOARES, 2018) – enquanto Anitta continua o breve discurso: “Eu prometi que ia fazer o funk ser reconhecido em outros lugares (…) estou aqui representando todos os funqueiros (…) vocês não sabem a dificul- dade que é chegar aqui num dia como hoje”. Já no show brasileiro, ainda que o único agradecimento seja “a ela mesma”, as bandeiras aparecem no telão do cenário emoldurando a performance de “Vai, Malandra!” – a canção que marcou a “volta” de Anitta ao funk em 2017, depois de um período mais voltado para o pop, seguida pelas duas canções finais, que reforçam e radicalizam o clima de baile funk. Pois, enquanto “A favela chegou!” é uma ode ao baile e à favela, a última canção, “Onda dife- rente” trata o tema das drogas recreativas em festas de maneira leve, bem humorada e utilizando expressões cariocas (“a minha onda já bateu”). 78 DIVAS POP

Considerações Finais Argumentei ao longo deste capítulo que os dois shows de Anitta apre- sentam performances complementares em torno de uma “narrativa de conquista” contra-hegemônica. Na primeira, o vetor é “do Brasil para o Mundo”, traduzido no mote “Made in Brazil”; na segunda, da “periferia para o centro”, sintetizado na canção “Favela chegou”, que ela canta ao final, depois de percorrer um repertório composto por diferentes gêneros e performances. Tratam-se, assim, de distintas e complementares ento- nações de “cosmopolitismo periférico”, demonstrando maneiras parti- culares de negociar com a cultura pop global, entre tensões, dissensos e contradições. Longe de uma fórmula dicotômica na qual “mais globalidade” corres- ponderia a “menos localidade”, e que portanto supõe que a entrada do funk pop no mercado global se daria às custas do apagamento das marcas territoriais, estes roteiros apostam em múltiplas encenações do local, reforçando o caráter negociado das performances, seja em termos de sonoridade, de idiomas ou de territorialidades. Um segundo aspecto que gostaria de sublinhar é que esta perfor- mance nos permite pensar numa ampliação da linhagem de divas pop para além do universo anglo-saxônico, a fim de incorporar/corporificar as divas pop periféricas que têm em Carmen Miranda uma precursora. Assim, se performances são “atos de transferências vitais, transmitindo conhecimento, memória e um sentido de identidade social” (TAYLOR, 2013), vislumbro aqui, entre Carmen Miranda e Anitta, uma linhagem de divas malandras que constroem suas performances a partir de gestu- alidades outras – a do gingado do samba ou do funk, por exemplo; e de corpos com outros padrões e memórias que, apesar de inscritos no diálogo com o imaginário transnacional, podem revelar outros balanços, outras bossas e outras gingas movimentadas pelos ventos que sopram nos trópicos da cultura pop. Explorar a potência, as ambiguidades e contradições destas corporeidades é um desafio que não se esgota aqui, merecendo a nossa atenção continuada em outros trabalhos. ANITTA NO ROCK IN RIO 79

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Um prólogo travesti para divas Nos trechos intermediários da canção “A Lenda”1 de Linn da Quebrada, o dilema de uma “bicha esquisita” em fase de transfemini- zação rende uma interpelação irônica, cantada sob a forma do seguinte refrão: “Eu tô bonita?”. Em resposta, o que se escuta é um afirmativo e desdenhoso: “Não, cê tá engraçada”2. A trajetória da trava feminina, que se arrumou “tanto pra ser aplaudida”, recebendo a furiosa recepção de gargalhadas por onde passa, termina, em outras músicas de Linn, com a enunciação de reações apoteóticas, formuladas na chave da recusa e do rechaço ao silenciamento falocêntrico. Após a pré-estreia do documentário Bixa Travesty3, no dia 20 de novembro de 2019, no Espaço Itaú de Cinema, em São Paulo, Linn

1. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=k4DpkHftQJg Acesso em: 22 nov. 2019. 2. A repetição desta estrofe se tornou uma referência constante em diálogos que tenho acompanhado, cotidianamente, entre travestis e mulheres trans, quando, em tom de auto- ironia e brincadeira, chegam para encontros entre amigues e exibem o “look do dia”. 3. Documentário dirigido por Cláudia Priscila e Kiko Goiffman. 82 DIVAS POP

se apresenta extremamente glamourosa, em um impactante vestido vermelho, com longos cabelos trançados e botas pretas de saltos altís- simos. Belíssima, como ela mesma nota, brincando com a plateia, Linn se nomeia mulher, travesti e, em dado momento, como transformista, expressão que, nos anos 1970, se prestava no Brasil como forma de digni- ficação – mas também de certa exotização – de mulheres transexuais e travestis e de homens cisgênero que se travestiam em tempo parcial com alguma ordem de intenção ou efetiva expressão artística. Atravessando a narrativa de Linn e chegando a uma fala recente da talvez mais famosa e longeva transformista de nosso país, a já falecida Rogéria, que se intitulava “a travesti da família brasileira”, o trânsito pela exotização e o escárnio dirigido a mulheres transexuais e a travestis permanece. Entre o riso, o deboche e a agressão, um caminho de linhas tênues pode ser traçado. Mas elas resistem, ou re-existem, como insiste a própria Linn, e o fazem, quando artivistas4, de dentro e nos limiares da cultura pop e das linguagens do entretenimento. E por que razão escolho iniciar minha escrita sobre uma diva drag recorrendo a este prólogo peculiar? Tomo este lugar dissidente e combativo assumido por um sem número de mulheres transexuais e travestis para tecer a abordagem proposta da fulminante trajetória de ascensão e glamourização da artista Pabllo Vittar, diva drag performada pelo jovem Phabullo Rodrigues da Silva5. Pensarei, pois, a constituição desta diva brasileira desde um olhar que a “rasura”, ao mesmo tempo em que se aproxima de sua complexa expressão política e artística. Esta preocupação de fundo desdobra-se em algumas questões correlatas. Qual o lugar das divas brasileiras na constituição desta política de audiovisibilidade dissidente? O que, afinal, acontece quando drags começam a estender sua forma de presença na ocupação do mainstream da cultura e do mercado do entretenimento?

4. Neologismo que articula arte e ativismo, emerge nos anos 70 e é atualizado na primeira década dos anos 2000, em especial para nomear mobilizações que articulam estética e política, propondo a ocupação de espaços públicos, nas cidades e nas redes, a forte mobilização dos corpos, e a reconfiguração mesma dos conceitos pregressos e institucionalizados de arte, estética e política. 5. Que se apresenta cada vez mais fortemente como “a” Pabllo, estando ou não “montada”, para, logo em seguida, reiterar-se como “um homem que usa peruca”, por exemplo. A FABULOSA AVENTURA DE UMA DIVA 83

Quais os enlaces entre glamour, distinção e contestação do normativo na polinização provocada pela presença de drags na música pop contemporânea? E o que significa o estatuto de “diva” alçado pela artista Pabllo Vittar em termos desta potente rede de audiovisibilidades que alicerça enfrentamentos protagonizados por subjetividades histórica e cotidianamente subalternizadas? Parto desta última indagação para uma exploração inicial da parti- cularidade de Pabllo no campo das divas. Trata-se de uma brasileira. E de uma drag. Flertando com o perfil tropicalista tipo exportação de Carmem Miranda, também adepta de saltos altíssimos e maquiagem carregada, quase aos moldes de uma máscara sensual-divertida, Pabllo também namora com o estilo de divas da música pop contemporânea. Seja nas referências explícitas a cantoras emblemáticas do jazz, da disco music, do pop e de toda uma lavra feminina da black music estaduni- dense, como Aretha Franklin, Tina Turner, e Whitney Houston, chegando à emblemática adoração a Beyoncé, Pabllo apro- xima-se de uma estética da glamourização que convive com referên- cias importantes seja às questões raciais e de gênero, seja a um modo muito peculiar de constituir-se como drag global sendo uma diva latina e brasileira. A abordagem que Marcia Ochoa (2004) faz das divas6, lança uma perspectiva original de análise de como se configura este atributo e as existências e práticas subjetivas a ele articuladas em um contexto de dissidência, criminalização e exclusão. Assim, esta pesquisadora colom- biana, radicada nos Estados Unidos, reflete sobre divas constituídas através de vivências estético-corpóreas de negociação e disputa, o que nos parece essencial à compreensão dos marcadores biográficos articu- lados à trajetória artística de Vittar. Ochoa constroi seu estudo desta- cando as tensões e violências iminentes que afetam mulheres, transfor- mistas e homens na relação com o Estado e seus agentes (em especial a polícia militar), e pontua a instabilidade da ideia de cidadania no tocante a transformistas que são trabalhadoras do sexo. É neste cenário

6. Ochoa adota terminologias nativas (diva, louca) enunciadas na cena LGBTQIA+ venezuelana, em especial por travestis, mas se aplicando a outras subjetividades que contestam ou não se encaixam na “normalidade” patriarcal e heteronormativa. 84 DIVAS POP

de tensão e disputa que localiza as pesquisas que desenvolve, como parte de “uma política antinormativa, que privilegia as estratégias locais e a política do desejo para realizar transformações sociais que resistem à marginalização” (OCHOA, 2004, p. 241). Em um claro e assumido viés autoral, Marcia Ochoa implica a teoria e as expressões queer em suas dimensões localmente localizadas e globalmente atravessadas por regimes econômicos, culturais e geopo- líticos excludentes e depolitizantes. Assim, emerge de seus argumentos a proposição de escapar ou ir além do debate sobre identidade e dife- rença, e é neste ponto que se volta às estratégias cotidianas de resistência empreendidas por sujeitos designados a uma pertença minoritária (de gênero, mas também racial, étnica e de classe). Uma destas estratégias consiste justamente de as pessoas se fazerem “fabulosas” (ou também “divas” e “loucas”), “apesar das realidades materiais que as limitam, algo que no melodrama se tem chamado o rechaço da cotidianidade” (OCHOA, 2004, p. 241). A excepcionalidade que conduz uma artista à condição de diva – a despregando da vida comezinha e ordinária – não necessariamente significa uma reiteração de status quo. Burns e Lafrance (2002) sob os auspícios de releituras dos estudos culturais e das teorias feministas, nos fornecem a esse respeito uma outra conceituação, a de “divas disruptivas”. As autoras chegam a esta categoria analisando a Tori Amos, Courtney Love, Me’Shell Ndegéocello e P.J. Harvey, que consideram expressivas de um “espírito dos anos 90” e de uma atuação musical que perturba “as fronteiras da musicalidade feminina ‘aceitável’ em termos tanto socioculturais quando musicais”, sendo disruptivas em relação “aos discursos dominantes de sexo, gênero, raça e credo” (BURNS e LAFRANCE, 2002, p. 12). Tal como se dá na análise que dedicamos às formas de presença pública de Pabllo Vittar, com suas audiovisualidades artísticas incluídas, Burns e Lafrance destacam um ponto de tensão que também nos parece evidente na reflexão sobre Vittar: como se dá uma possível esfera de resistência política em contextos de produções culturais massivas, midi- áticas ou que se vinculam aos circuitos de celebrização, ao negócio da música e do entretenimento. Sobre isto, ponderam que A FABULOSA AVENTURA DE UMA DIVA 85

não poderíamos ter escrito este livro sem acreditar que a articulação de resistência política é possível através de formas mediadas pelos últimos padrões capitalistas de consumo, mesmo se esta articulação invariavelmente envolva o emprego de recursos contaminados e a criação de efeitos tanto de oposição quanto hegemônicos. (BURNS e LAFRANCE, 2002, p. 13)

Pabllo responde à dinâmica de fazer-se fabulosa em contextos de precarização, mencionada por Ochoa (2004), algo já imprimido a sua nomeação, “Phabullo”, ao nascer e viver em regiões e bairros periféricos de um Brasil igualmente periférico7. Citando Rummie Quintero, mulher transgênera que liderou no início dos anos 2000 o projeto de inclusão cidadã “Divas da Venezuela”, Ochoa vai aproximar o conceito de diva ao de transformista e transexual que estejam política e artisticamente enga- jadas na promoção de subjetividade, ao mesmo tempo, que de inserção estrutural. Desta forma pode-se ler o “escândalo travesti”, por exemplo, como recurso estético-político de transformação de determinado estado de coisas. Não seria incorreto articular à performance de “fabulosização” adotada por Vittar recursos estético-corpóreos que se apropriam de um modo de apresentação travesti (no “escândalo”, no “close”, no “carão”, na afronta, no exagero, na hiperestetização) e o “remasterizam” e, em certos aspectos, o ressemantizam, exatamente mediante um know-how drag queen e um savoir-faire glamourizado que bebe das fontes de todo um manancial narrativo mobilizado por divas pop. A inserção de Pabllo Vittar nos circuitos de celebrização, diva drag “pop-lítica” (RINCÓN, 2015), parece respeitar a modelos de exposição bastante convencionais – se considerarmos a “perfeição” de seu corpo e o padrão de registro da própria imagem (sensual, provocante, exibindo boca carnuda, olhos marcados, cabelos lisos e longos, bunda, barriga e pernas em evidência, tal como inúmeras mulheres célebres por seus atri- butos físicos). Por outro lado, existem ordens de inversão. Por exemplo, sabe-se que Pabllo é uma drag, e este é um acordo de recepção tácito estabelecido com parte de suas audiências. Ele permite e pressupõe a brincadeira, o jogo com esta ambivalência drag/não-drag; mulher/

7. Pabllo Vittar nasceu em São Luís (MA) e passou a infância em Santa Inês (interior do Maranhão) e em Santa Izabel do Pará (PA). 86 DIVAS POP

homem; drag/transexual; gay/travesti. Nunes (2017), explorando o conceito zumthoriano de performance, vai aproximá-lo justamente das “noções lúdicas do jogo”, onde o “comportamento corporal” estabelece uma “energia erótica que liga os autores da performance (...) aos espec- tadores” (NUNES, 2017, p. 44-45). Assim, de um lado, Vittar reitera padrões estéticos e corporais atre- lados a uma normatividade cisgênera opressora – para mulheres e travestis – mas, de outro, provoca o status quo, desde quando dizia ser “um menino que faz drag”, ou podemos dizer um homem gay cisgênero que performa uma mulher lasciva, irretocável, perfeita, pronta para a devoração audiovisual, seja por homens, mulheres, travestis. Há um ponto de tensão neste ciclo, e ele incide justamente na relação um tanto nebulosa de Pabllo com a pauta tanto das identidades quanto dos não- -essencialismos de gênero. Dissidente a tempo parcial, a diva drag perturba, provoca, é dese- jada e odiada. Perturbadora, “lacradora”, “afrontosa”, Vittar aciona em sua performance audiovisual e imagética uma dramaticidade que vem do pop (e da cena gay) global, mas mobiliza matrizes melodramáticas latinas, atualizando modos bastante idiossincráticos de adaptação de artistas brasileiros a certa “americanização”, que hoje se desdobram em uma “onda latina” prêt-à-porter. Atendo-se a um contexto de diáspora latina e afrocaribenha, Vargas (2012) volta seu olhar ao que nomeia as “divas dissontantes”, no seu caso, estudando e entrevistando cantoras, musicistas e instrumentistas que desafiaram cânones de narrativas musi- cais chicanas, leia-se de uma larga experiência cultural de mexicanos vivendo nos Estados Unidos. “Essas cantoras e musicistas”, diz Vargas, “representaram estilos instrumentais e vocais inovadores, evocaram novas paixões e políticas do erótico” (VARGAS, 2012, p. 9). A ambiência musical e imagética na qual orbita Vittar também revela enfrentamentos de cânones de gênero e musicalidade. A latina Pabllo, cada vez mais global no comércio de sua imagem, é recorrentemente desqualificada por sua voz muito fina, anasalada, estridente demais, e por momentos flagrantes de desafinação quando “erra o tom” em perfor- mances ao vivo. A brasileira Pabllo, cada vez mais latina tipo expor- tação, é adorada pelo domínio exímio de coreografias impecáveis e pela A FABULOSA AVENTURA DE UMA DIVA 87 atuação carismática e sedutora que caracteriza boa parte de seus video- clipes. No território das imagens, reina absoluta. Assim, podemos falar de uma “diva drag melodramática” gestada em contextos de globalização e de forte base tecnológica. Segundo Vargas (2012), a música sempre representou uma possi- bilidade de resistência contracultural, de auto-representação e empo- deramento cultural para minorias nos Estados Unidos. Como arena de disputas, a música envolveria enfrentamentos ligados a questões raciais, estéticas e de gênero. Pensando na história de audiovisibilização de travestis, transexuais e transformistas no Brasil, sabemos que elas lançam as bases para um, por assim dizer, novo transformismo cult, “bafônico”, catapultado por drags na cena urbana e noturna, seja no universo gay, seja no underground metropolitano e cosmopolita. Para autores como Amanajás (2015), o artista drag queen participa de uma desguetificação da arte transformista, não sendo sinônimo de travesti nem constituindo uma identidade de gênero. Drags, contudo, são asso- ciadas por Amanajás, a uma subjetividade queer, e desde este ponto de vista torna-se difícil, nos dias correntes, separar tão estritamente a arte drag de variadas expressões estéticas e políticas cotidianas adotadas por travestis. De todo modo, é pertinente a concepção sacro-profana do fazer drag, apontada pelo pesquisador, especialmente se a transpu- sermos à dialogia inatingível/tangível que compõe a apresentação, a representação e a recepção de Pabllo Vittar. Não deixa de ser curioso, na história da teatralidade transformista, a recorrência da situação em que homens encenaram mulheres, e não o oposto. Deste ponto de vista, a drag hiperglamourizada que se tornou Pabllo Vittar, de fato, permite questionamentos acerca do que se pode considerar uma adesão irrestrita a modelos femininos objetificados e artificiais, embora saibamos que as próteses que utiliza (cabelo, unhas, cílios, por exemplo) são extremamente comuns ao universo de mulheres cisgênero, transexuais e travestis. Esta reminiscência patriarcal é insistentemente mobilizada em leituras críticas a videoclipes como “K.O” (“Sempre fui guerreira, mas foi de primeira/ Me vi indefesa, coração perdeu a luta, sim/ Adeus bebe- deira, vida de solteira/ Quero sexta-feira/ Estar contigo na minha cama 88 DIVAS POP

juntos coladim”); “” (“!/ Viro sua mente com meu corpo sensual/ Minha boca é quente, vem/ Não tem igual/ Tá todo carente no pedido informal/ Vai passar mal”) e “Paraíso” (“Hoje você vai embora/ Só se eu deixar/ Hoje embaixo do lençol/ O bicho vai pegar”), nos quais vemos Vittar representando mulheres em jogos amorosos com homens cisgênero, musculosos, sedutores, nocauteadas (submetidas?) pelo desejo sexual e, em certo sentido, reiterando a domi- nação masculina. Todavia, vejamos o que diz Amanajás, ao apresentar os primórdios da cena drag contemporânea. Segundo o autor, em meados dos anos 1960 e 1970, drag queens já mesclavam o underground a homenagens a divas do cinema e da música:

As inspirações eram muitas e as grandes divas hollywoodianas e da música pop alicerçaram um imaginário irreverente, fashionista e so- berbo da imagem da mulher que é maior que o mundo. Judy Garland, Marilyn Monroe, Betty Davis, Barbra Streisand, , Diana Ross, Madonna, Etta James e tantas outras proporcionaram a todos os per- sonificadores femininos um vasto material e desejo de magnificar suas performances. (AMANAJÁS, 2015, p. 18)

As divas como mulheres fortes e poderosas são imaginário evocado em videoclipes diversos como “Minaj” (“Eu não sou discreta/ Gosto de arrasar/ (...) Quem manda aqui sou eu/ e vou te enlouquecer”), “” (“Eu não espero o carnaval chegar pra ser vadia/ sou todo dia/ sou todo dia/ (...) Não vem mandar em mim/ Não funciona assim”) e “Sua cara” (“Se você não vem eu vou botar pressão/ Não vou te esperar tô cheia de opção”). Em ambos, as referências à liberdade sexual (e não necessariamente de gênero) estão presentes, seja na performance de Pabllo, nas cenas dos clipes, seja nas letras das músicas. Mas em um videoclipe como “Então vai”, Vittar retoma o elogio às múltiplas configurações de sexualidade e gênero que encontramos em “Open Bar”, mas desta vez em um cenário externo de uma cidade do interior brasileiro. Em “Então vai”, Pabllo mostra-se montada e desmon- tado, com uma cena final em que casais de homens, mulheres cis e transgêneros se beijam, com representações de encontros gays, lésbicos e heterossexuais. Nesse sentido, podemos localizar na expressão pública A FABULOSA AVENTURA DE UMA DIVA 89 de Pabllo, um fazer drag que participa do recente processo de visibi- lização de subjetividades e expressões de gênero não convencionais (embora não necessariamente não-normativas) pela via da arte, e de um estilo de fazer música que entrelaça o periférico urbano, o periférico regional e o pop global pela via dos debates de gênero, com a mobili- zação de recursos tecnológicos de produção e disseminação de sonori- dades e imagens. É importante esta ênfase para compreender a trajetória de Vittar como também a de um jovem nascido e criado, por muitos anos, em regiões consideradas periféricas, notadamente os estados do Mara- nhão e do Pará, nordeste e norte do Brasil e, ambos, com forte tradição musical, seja no plano da produção, seja no tocante à escuta cotidiana. E que, quando se desloca para a região sudeste, o faz inicialmente para um núcleo também relativamente desviante da centralidade, a cidade de Uberlândia, localizada no chamado triângulo mineiro. Também é interessante notar que é a partir destes locais que Pabllo afirma uma existência particular e autônoma se valendo de repertórios musicais e estéticos globais e regionais, que domina amplamente, à despeito de sua decentralização original. A estética drag de Vittar talvez tenha sido, de fato, um importante diferencial a alavancar sua carreira artística. Neste caso, não parece casualidade o fato de seu primeiro videoclipe de sucesso, “Open bar”, ser uma releitura oportuna de uma canção, “Lean on”, de Major Lazer. No clipe, referências a traços de uma filmografia norte-americana adoles- cente, ancorada basicamente no binômio festas e vida louca de uma juventude de classe média, une-se a personagens pouco convencionais do underground LGBTQIA+ brasileiro e reitera um estilo de escutar som, dançando e com a mediação de um DJ. Ser drag, assim, permitiu um duplo engajamento, a um repertório midiático global e a uma gramá- tica local “baladeira”, seja ou não ligada a expressões não normativas de sexualidade e gênero. Em termos de uma expressividade destoante e dissonante, as narra- tivas audiovisuais de Pabllo colocam em circulação uma escrita do desejo, uma eroticidade que para alguns é estranha, abjeta, “não é normal”. Para outros, Vittar é a afirmação tanto da perfeição milime- 90 DIVAS POP

tricamente cultivada, quanto da possibilidade real de inserção da dife- rença, e neste último aspecto podemos associá-la à ideia da “diva disso- nante”, que permite “compreender os modos através dos quais a música tem o poder de reimaginar histórias, identidades sociais, prazer, e possi- bilidades de resistir” (VARGAS, 2012, p. 13). Gostaria de finalizar este tópico trazendo à reflexão a nomeação “divas globais”, expressão adotada por Manalansan IV (2003) e que nos permite uma aproximação às instâncias culturais transnacionais de recepção e consumo de Pabllo Vittar. Manalansan, interessado em refletir sobre experiências de gays filipinos vivendo em Nova York, destaca que, dentre as particularidades locais acionadas neste pertencimento, é notável o advento do que o autor nomeia uma identidade moderna gay globali- zada. Neste aspecto em específico podemos compreender um alcance mais propriamente político da diva Vittar. A condição de diva articula- -se a experiências diaspóricas internas e exógenas, que configuram um lugar reconhecível de pertença e reconhecimento. Inserindo-se, agora claramente, como drag performática e como gay, Pabllo aproxima-se de uma pauta global das minorias LGBTQIA+, e o faz mediante um - por assim dizer - regime de gosto no qual a identidade gay e a estetização drag convivem de par a par em um projeto político de diversão e visibi- lidade, caso que se evidencia, por exemplo, em participações de eventos, premiações e paradas gays internacionais.

Pabllo, a genealogia drag e os artivismos dissidentes Tratamos até agora de categorias possíveis de diva associadas a Pabllo Vittar, considerando para tal o cruzamento ou co-presença de experi- ências regionais, periféricas, bem como de fluxos midiáticos e culturais transnacionais. É nossa intenção neste ponto localizar a ascensão da diva drag Pabllo Vittar em relação a dois percursos históricos. O primeiro deles diz respeito a uma genealogia da ascensão das drags na cena midi- ática, na cultura pop e em formas de sociabilidade e representatividade articuladas ao campo do entretenimento. Tomando por referência os estudos de Santos (2019) constatamos que existe uma longa trajetória de travestilidade com fins artísticos, como na bastante conhecida teatrali- dade do Kabuki. Assim, para localizar, nos tempos atuais, uma configu- A FABULOSA AVENTURA DE UMA DIVA 91 ração específica do fazer drag articulado a um perfil de diva, há que se considerar sua articulação a uma fenomenologia das metamorfoses de gênero com propósitos artísticos. Santos demonstra que a trajetória do travestimento nem sempre signi- ficou um movimento anti-essencialista protagonizado por homens gays ou em vias de transgenerização. Segundo nos apresenta, os percursos da travestilidade reverberam em elementos cênicos bastante especí- ficos, bem como ecoam diferentes ordens de prestígio social. Rastre- ando junto a tais elementos uma possível genealogia drag queen, o autor identifica uma recorrência básica: um corpo socialmente considerado masculino valendo-se de elementos de um universo socialmente consi- derado feminino para atuar cenicamente e com reverberação artística e pública. (SANTOS, 2019, p. 2) A partir de tais enunciações, o autor se aproxima de modalidades específicas de travestimento: aquelas que acontecem em espaços delimi- tados e têm por objetivo entreter. Contudo, ele esclarece que é “a partir do século 20 que se observa, pela primeira vez, o travestimento cênico se apropriar dos elementos que contribuíram para caracterizá-lo contem- poraneamente e metamorfoseá-lo em um formato de entretenimento por si só”. (SANTOS, 2019, p. 9) De imediato, é relevante para a argumentação aqui proposta enfa- tizar dois aspectos desta genealogia em perspectiva de rastreamento de condições de emergência e de atributos específicos que irão constituir o fazer drag tal como hoje o conhecemos. Em primeiro lugar, cabe destacar a centralidade do conceito de corpo/corporalidade como mediador das performances que borram as fronteiras entre masculino/feminino. Em segundo lugar, a ideia de potência cênica, ou teatralidade, aparece como chave de leitura de um percurso que, nos anos 1990, constitui no Brasil o que se convencionou denominar drag queen. Na perspectiva de pensar as performances e as corporalidades drag como corpos cênicos, acionamos o conceito de teatralidade apresen- tado por Nunes (2019). Segundo a pesquisadora, teatralidade remete a questionamentos acerca dos limites do cênico e do espaço público, e a uma ruptura de exclusividade em relação ao teatro propriamente dito. Teatralidade fala ainda de uma perspectiva relacional que envolve 92 DIVAS POP

e implica mutuamente quem performa e quem vê/assiste à performance, “um ato de representação, a construção de uma ficção (...) distinta do fluxo cotidiano” (NUNES, 2019, p. 47). A teatralidade nos serve de base possível para compreender como o corpo de Pabllo, os corpos das audiências (presumidas e efetivas) e os corpos audiovisuais da diva drag (dos videoclipes aos lives, do acervo autoral do Instagram aos selfies registrados por fãs) produzem um liame comunicacional, afetual e sensível que dilata e estende tanto a perfor- mance drag quando a condição de diva. Ambivalente, o ente comunica- tivo Pabllo Vittar ultrapassa a dimensão meramente mimética da mídia e em certo sentido profana a condição de inacessibilidade que caracte- riza divas de outra época e de outras ordens do espetáculo e do visível. E, aqui, a drag torna-se fundamental na vinculação entre Pabllo e consu- midores afeitos à cena e às gramáticas gays e tranvestigêneres, aproxi- mando-se e se deslocando do pedestal da celebrização. Por seu torno a diva, rasurando a drag, estabelece contratos de visibilidade idealizados, com a aura de glamour, fama e estrelato que igualmente conduzem o consumo deste paradoxal universo de um intocável/tangível. O segundo marcador histórico refere-se ao que Colling (2018) nomeia como o boom contemporâneo de expressões artivistas das dissi- dências sexuais e de gênero. Colling insiste no diferencial da adoção do termo pós-identitário “dissidências”, diversamente daquele de “diversi- dade” sexual e de gênero. Nesta perspectiva, o autor evidencia as condi- ções de emergência deste contradiscurso das dissidências, constituindo “potentes estratégias para produzir outras subjetividades capazes de atacar a misoginia, o sexismo e o racismo” (COLLING, 2018, p. 157). E o que propriamente há de novo? Para Colling, uma das particularidades dos artivismos dissidentes que emergiram na última década diz respeito ao fato de que

explicitam suas intenções políticas, ou melhor, que criam e entendem as suas manifestações artísticas como formas distintas de fazer polí- tica, em especial quando contrapostas às formas mais “tradicionais” usadas pelo movimento LGBT e feminista mainstream. (COLLING, 2018, p. 158) A FABULOSA AVENTURA DE UMA DIVA 93

As condições de emergência deste boom artivista enunciado pelo pesquisador estão ancoradas em elementos como a tensão entre o avanço das causas e da militância LGBTQIA+ e o recrudescimento político, com picos notáveis de conservadorismo e de repressão, bem como o caráter normalizador e institucionalista de parte do próprio movimento, o que se choca com desejos de, por exemplo, atuar desde o campo da cultura e desde perspectivas não-binárias e não-essencialistas. Também são elementos importantes para esta compreensão, a articulação de forças rizomáticas, seja na proliferação dos estudos de gênero, na penetração da agenda LGBTQIA+ nas redes sociais, que se massificam, na partici- pação da temática em instâncias midiáticas e na visibilidade assumida por identidades trans e pessoas não-binárias (COLLING, 2018, p. 162). É neste cenário pós-massivo e pós-identitário que surge o fenômeno Pabllo. Ainda que não possamos postular sua total aderência à perspectiva dissidente apontada por Colling (2018), entendemos que Vittar negocia involuntariamente com alguns dos aspectos acima apontados. Diva, drag, pop, Pabllo Vittar, autodidata, segue um percurso relativamente comum a muitos “influenciadores digitais” de sucesso. Cria do YouTube e não do mainstream midiático, pobre e periférico, Vittar explode pelas mãos de um experiente e também jovem DJ e produtor musical, Rodrigo Gorky, do Bonde do Rolê, trio curitibano de funk carioca, que a conhece através do Instagram. Habituado a farejar talentos e referências musicais nas redes sociais e um expert da remixagem, Gorky tornou-se conhe- cido da cena pop nacional pela habilidade em mesclar ritmos brasileiros (no caso de Vittar, o tecnobrega, o calipso, o forró, referências da artista, ou o arrocha, adorado pelo produtor) ao “pop gringo”, como ele mesmo afirma. No entender de Gorky, “Pabllo só por existir já é um pensamento político” (GORKY, 2018, s/p). Se Madonna, o voguing e RuPaul são pontos de virada fundamentais no que entendemos por arte drag na contemporaneirade, Gorky é uma referência essencial na configuração da musicalidade de Pabllo como diva drag brasileira:

E isso é outro ponto importante: a gente nunca fez nada pensando em atingir um grande público, mas só pensando no que a gente gostaria de ouvir numa balada e ver num artista. Tem umas coisas que são 94 DIVAS POP

extremamente não-pop para o mercado brasileiro, mas que a gente forçou tanto que virou uma coisa comum, como misturar essas coisas de arrocha com pop gringo… tinha alguma coisa que faltava, (...). Essa coisa do k-pop, de ter mais de um gênero dentro de cada música, de serem músicas curtas. As músicas são curtas porque você consegue passar a mensagem e o sentimento em dois minutos e meio, você não precisa de quatro minutos. O melhor exemplo disso é o “Commercial ”, dos Residents, cujas músicas só têm introdução, verso e re- frão. É por isso que a gente quer misturar tantos ritmos em uma coisa só pra não perder o interesse”. (GORKY, 2018, s/p)

Encenando esta música que prende a atenção, Vittar exemplifica um modo de escutar música como trilha sonora do cotidiano, cantando-a com amigos, dançando-a na balada e na rua, musicando a sofrência e o fervo. Performar Pabllo, para parcelas expressivas de seus fãs, permite a criação de espaços simbólicos de resistência e afirmação de si, com a valoração do “divar” como protocolo de luta estética para minorias consideradas abjetas, aberrantes, desprezíveis, condenáveis. Neste aspecto em particular, a diva drag aproxima-se da dissidência, estimu- lando a produção de subjetividades por sujeitos subalternizados ou diminuídos por particularidades de sexualidade e de gênero. Vittar é o canal e a afirmação desta condição de possibilidade, muito em especial nos lives que a retratam, parcialmente montada e bastante andrógina (com apliques, unhas ou cílios postiços, mas com roupas comuns, camiseta, jeans e boné, por exemplo), em situações típicas do dia-a-dia de uma artista pop – preparando-se para um show, andando pelas cidades em que realiza turnês, conversando com sua equipe. Atua- liza-se assim a mescla estético-política entre o campo do ficcional, a vida ordinária e os lugares especiais constituídos no âmbito das festas, tal como se deu na origem dos drag balls e no modo como Madonna e RuPaul contribuíram para sua publicização e popularização (SANTOS, 2018).

Uma diva camp-remix Nunca houve uma diva como Pabllo? Por que caminhos uma drag brasileira torna-se uma diva pop, mundialmente re-conhecida? Responder a estas questões nos leva agora a identificar diferentes A FABULOSA AVENTURA DE UMA DIVA 95 camadas ou platôs tecno-comunicacionais que alçaram esta jovem drag ao olimpo das divas pop. Isto significa problematizar o trânsito da diva drag nas ambiências digitais e nas redes sociais como parte de sua estra- tégia mercadológica e também como parte de uma política de audiovi- sibilidade que lastreia práticas de subjetivação próprias e virtualmente compartilháveis. Refiro-me aqui a uma comunicação em rede, que convida à identificação e desperta simultaneamente o rechaço. O que pode uma drag, sendo uma diva pop-tecnológica? Pesquisando memórias audiovisuais referentes à trajetória de Pabllo, percebemos, muito claramente, seu perfil teatralizado, dramático, plástico e cuidadosamente representado. Pabllo, afinal, apresenta-se representando: sua autenticidade é a fabulação, a tradução, de si, da androginia e de uma específica masculinidade/feminilidade. Mas Pabllo é também a diva acessível, que, desmontada, com olheiras aparentes, reclama de cansaço e celebra com os fãs, seus “vittarlovers”, o sucesso de um show, o resultado de um videoclipe. Pabllo, longe dos holofotes, ilumina flashes de seu cotidiano “normal” e de seu corpo excepcional. Não costuma ostentar marcas, não costuma enaltecer um determinado estilo de vida. Contudo, já é habitual ver inseridas na estrutura narrativa de seus videoclipes citações explícitas e mesmo cacofônicas a marcas ou instituições que a patrocinam, como Adidas, Trident, Avon, C&A, Club Social. Quando Pabllo Vittar surge na cena drag e no pop nacional, o faz de maneira muito própria. Entendo que Pabllo possui inegável protago- nismo ao colocar em cena uma expressão artística e subjetiva que tran- sita por diferentes gêneros musicais, audiovisuais e de performances drag. Se, inicialmente, no videoclipe “Open Bar”, há uma caracterização que mescla glamour, frivolidade e deboche, chegamos a equações mais claramente erotizadas e fetichizadas como em “K.O.”, “Corpo sensual” e “Parabéns”. Para além das especificidades de cada videoclipe, sustentamos que a obra Vittar como um todo encaixa-se na perspectiva de uma sensibi- lidade camp, tal como apresentado por Sontag (1987). Um grande guia estilístico camp, com sua “sensibilidade peculiar e fugidia” atravessa fotografias e videoclipes, com a “predileção pelo inatural: pelo artifício 96 DIVAS POP

e pelo exagero” (SONTAG, 1987, p. 318-320). Tão drag e tão Camp, em ambos os aspectos “contém um grande componente de artifício”, com a “predileção por aquilo que está ‘fora’, por coisas que são o que não são” (SONTAG, 1987, p. 322). Sontag também pontua o andrógino, o hiper- sexualizado e o maneirismo como elementos nucleares do camp, e aqui a autora cita os liames estabelecidos com as estrelas de cinema, com sua “melosa e resplandescente feminilidade” ou “nas grandes estilistas do temperamento e do maneirismo”. (SONTAG, 1987, p. 323) O camp como sensibilidade, como estilo e como gosto pessoal também seria “a tentativa de fazer algo extraordinário(...), especial, deslumbrante”, este fabuloso que desestabiliza ou “dá as costas ao eixo bom-ruim do julgamento estético comum”, pois o “gosto camp é, acima de tudo, uma forma de prazer, de apreciação – não de julgamento”. (SONTAG, 1987, p. 330-336) São evidentes em Pabllo, sendo uma drag e sendo uma diva pop, a combinação e a remissão aos traços desta sensibilidade extravagante, lúdica, rebuscada, sexual, que seduz e afronta, inclusive no modo como se apresenta musicalmente. Seus videoclipes são excessivos demais, colo- ridos demais, encenados demais, sensuais e exagerados demais, e sua androginia hiperfeminina exibicionista e caricata é considerada afron- tosa, inconsequente ou frívola demais, inclusive para alguns setores do movimento LGBTQIA+. Além de “questionamento dos sistemas normativos dominantes”, divas disruptivas produzem música que “inquieta e desloca o ouvinte” (BURNS e LAFRANCE, 2002, p. 23). Pabllo Vittar, maga das coreo- grafias, é ruidosa, inclusive quando embaralha ou macula os preceitos canônicos do que seria uma “boa apresentação ao vivo”, e o faz também mediante uma produção e uma técnica de registro audiovisual impe- cável, detalhista e estudada que resulta em videoclipes cujo alcance de recepção é estupendo. Janotti e Soares (2015), em uma interessante análise do “sujeito pop- -cult-descolado” anunciam um diagnóstico, mas também uma visão de mundo que busca apreender “música e cultura pop para além dos bina- rismos: pop x rock, autenticidade x cooptação, local x global”, apresen- tando o pop como uma “nebulosa afetiva”, com “tonalidades afetivas” A FABULOSA AVENTURA DE UMA DIVA 97 próprias e historicamente variáveis e considerando que “nem todo valor é construído de maneira opositiva” (JANOTTI e SOARES, 2015, p. 1-5). Nesta proposta, o popular (e o popular midiático ou popular-massivo) é encarado em sua força disruptiva, no apelo aos sentidos e a uma certa estética da deglutição e do ecletismo. Além disso, observam que

As travessias que circulam através das expressões da chamada Cultu- ra Pop pressupõem abertura para popularização de partilhas sensíveis que podem ser ao mesmo tempo inclusivas (quando conectam par- ticipantes dispersos), exclusivas (quando funcionam como formas de reivindicação de distinções sensíveis), bem como excludentes (quan- do o global pode servir como forma de desqualificação do local). (JA- NOTTI e SOARES, 2015, p. 10)

Pensando na relação que Pabllo estabelece com suas imagens públicas, a cultura pop é efetivamente o local estratégico no qual irá também afirmar uma política – autoral, audiovisual e autobiográfica – de subjetivação. Ou seja, em um primeiro patamar, localizamos os modos de apresentação de Pabllo, reconhecendo, em meio a sua trilha midiática, traços subjetivos que falam, igualmente, de uma construção narrativa de si. Em um segundo patamar, temos as próprias materiali- dades audiovisuais produzidas pela diva drag, aí incluídos seus video- clipes, lives, fotografias, bem como todos os produtos alicerçados por sua presença midiática e pelas reverberações da mesma – entrevistas, participações especiais em programas televisivos, presença em premia- ções, takes não autorizados ou informais. Entendemos, pois, que estas materialidades são representação, mas também geram representação, que podem e muitas vezes são contraditórias ou com efeitos de sentido opostos à intencionalidade da diva drag. Em outro plano, percebemos as teias afetuais e significantes arti- culadas pelos dois patamares anteriores e as suas apropriações pela própria estrutura dos mercados do entretenimento, da indústria fono- gráfica e dos setores que irão apoiar/patrocinar/comercializar a artista. Tensionando estas apropriações e os efeitos de sentido que também elas produzem, identificamos a relação da diva drag com as lutas por representatividade, bem como com as diferentes políticas de visibilidade 98 DIVAS POP

articuladas por minorias e isto não quer dizer que elas não possam ser problemáticas ou questionáveis. Costuma-se nomear “meteórica” à trajetória de celebrização adqui- rida por expoentes do showbiz que, rápido demais, fulgurantemente demais, ascensionam ao olimpo das estrelas. Pabllo se torna o que se torna em menos de uma década. Com uma estética camp e plástica, com um corpo de proporções e afetos sedutores, dança, e não é uma coreo- grafia qualquer. Invariavelmente o corpo de divadrag performado por Pabllo dialoga com um ocultamento – o pênis aquendado – e uma expo- sição – a bunda, a boca, os olhos e o cabelo, que figurino, maquiagem e coreografia colocam em evidência. Assim acontece nos shows (embora em apresentação durante o LA Pride Festival 2019, a cantora pareça não ter se preocupado em disfarçar o volume do órgão genital), e assim se repete no Instagram da artista (onde possui mais de 10 milhões de seguidores8), repleto de imagens de Vittar trajando calcinhas, maiôs e biquínis fio dental, “colocando o bumbum gigante pra jogo”, “quebrando a Internet”, “levando seus fãs à loucura”, como recorrentemente pontuam reportagens e notícias sobre ela. E Pabllo é notícia. Na leitura de Pilger (2018), boa parte do impacto de Vittar deve-se a sua ambiguidade e se beneficia do fato de o mercado se interessar fortemente pela capitalização da diversidade e das diferenças. Assim, o consumo do que a autora chama “o fenômeno Pabllo” seria também paradoxal, característica da relação das audiências com as celebridades, como já o sabemos desde os estudos morinianos sobre os olimpianos e as estrelas de cinema. Todavia, segundo propõe a autora, a condição ambígua da diva drag alimenta os extremos dicotômicos de sua rever- beração, alcançando proporções que as ambiências pós-massivas e das redes sociais ajudam a ressoar. Pilger explora em seus argumentos, o caráter sórdido com que alguns dos consumidores da drag dedicam-se a - por assim dizer - “vigiá-la”, à espreita de deslizes que evidenciem o que, afinal, todos parecem saber: Pabllo é um homem (ou não é uma mulher, ou, como disse recentemente, é um “homem de peruca”), aspecto reve-

8. Dado disponível em: https://www.instagram.com/pabllovittar/. Acesso em: 22 jan. 2020. A FABULOSA AVENTURA DE UMA DIVA 99 lado, no caso focado pela autora, através da suposta exposição involun- tária de parte de seus órgãos genitais durante um show. Valendo-se das proposições de Louro (2004), Pilger propõe uma ênfase específica ao fato de Vittar apresentar-se como drag. Segundo a autora,

A drag queen não quer ser ou parecer uma mulher, ela realiza uma “paródia de gênero”, exagera propositalmente os traços femininos, corporais, comportamentais [que] culturalmente identificamos como femininos. (PILGER, 2018, p.72)

Compreendemos a argumentação da autora, mas entendemos o lugar da drag como pertencente a uma enunciação entre-gêneros que pode – ou não – apelar a estereótipos femininos. É importante pois voltar ao significado de se acoplar a um fazerdrag a adjetivação “diva”. Uma diva drag opera, neste sentido, em um entre-lugar, que não apenas joga com elementos da masculinidade e da feminilidade, mas essencial- mente aponta para a construção sociocultural da ideia mesma da bina- riedade. O que é, afinal, mais “artificial”, uma drag ou a rigidez com que a normatividade conforma como homem e como mulher? Como corpo performático, transformista e transmórfico, a diva drag veste sua corpo- ralidade de toda uma transnaturalidade. Como notava Morin a respeito das divas do cinema, são corpos estelares, espetaculares e especulares, vestidos de imagens e povoados de imaginários. Ou seja, divas forço- samente convivem (e podem ser sufocadas) por seus duplos, por sua imagem estelar, assim como Phabullo não pode mais excluir a persona Pabllo Vittar. Localizamos nas territorialidades midiáticas constituídas por Vittar, o que Gonzatti e Henn (2018) leem como um campo de tensão e nego- ciação não propriamente ambíguo, mas sim ambivalente:

Pabllo Vittar inscreve-se nesse contexto de relações de poder no cam- po do gênero e da sexualidade. Ao mesmo tempo em que constrói para si uma performance drag muito próxima a configuração daquilo que o pop, regulado pelo capitalismo transnacional, atribui a uma fe- minilidade hegemônica (corpo curvilíneo, magro, geralmente loira, com traços e gestos atribuídos historicamente ao feminino), gera pe- turbações ao ter nascido com um pênis e não com uma vagina. Não 100 DIVAS POP

se espera isso de um corpo que deveria ser masculino a um olhar regulatório e contigenciador das possibilidades de estar no mundo. Ao mesmo tempo, ela assume uma fluidez de gênero em suas apari- ções públicas – ora está de “menino”, outra hora “montada”, com as sobrancelhas raspadas, roupas que implodem noções binárias e uma série de outros signos que não se encerram no violento binarismo da sociedade ocidental. Acrescenta-se ainda que a voz e a música pop também recebem marcas generificadas – e o caso da artista, são femi- ninas. (GONZATTI e HENN, 2018, p.567)

A autoetnografia de Brasil (2018), pesquisador e transformista/drag queen, como se nomeia, é um contraponto importante à apreensão de Pabllo como uma drag, e não apenas, como acontecia no início de sua carreira, “um menino gay que faz drag” ou na recente autonarrativa “um homem de peruca”. A abordagem original de Brasil problematiza a dimensão pedagógica da vivência drag, e, neste sentido, nos auxilia a refletir sobre as diferentes pedagogias implicadas no consumo midiático da diva drag Pabllo Vittar. Existe, sob certo aspecto, não apenas uma performance de gênero, mas uma pedagogia de gênero, incidindo dire- tamente na fluidez, no não essencialismo, nesta figura que

está sempre em trânsito, transita entre os gêneros masculino e femi- nino, esta não deixa de ser um “escape” às formas padronizadas (ins- tituídas, estratificadas), de ser homem ou mesmo mulher. Essa figura fascinante, transgressora, é o sujeito desviante que desafia as normas que regulam uma sociedade pretensamente unitária e homogênea. (BRASIL, 2018, p.768)

Vulgar/sofisticado, sério/evasivo, político/cooptado, cult/massifi- cado. Estes compostos de dualidades não se aplicam à diva drag, que, ambivalente, circula e embaralha essas fronteiras, para desespero de críticos e analistas “sérios”. Pabllo Vittar, e o acompanhamos nesta afronta, enfrenta e debocha da seriedade. Corpo cênico e performático, nocauteia com seus refrãos “chiclete” a pureza dos que têm razão. Como figura da contaminação, não poderia ser levada a sério, porque, afinal, não se deveria tomar por sérias as frivolidades e superficialidades. Vittar, diva drag de sabor e paladar tátil, lambe com suas imagens lascivas os olhos-corpos de adoradores e puritanos. Sua estética é tátil, sua política A FABULOSA AVENTURA DE UMA DIVA 101 a da sensualidade, seu ethos é combinatório. Elogio da plasticidade, das apropriações e recriações, Vittar joga com as aparências, brincando nas profundezas lúdicas do entretenimento. Nessa direção, adotamos o remix como a principal chave de leitura em análise anterior (ROCHA e POSTINGUEL, 2017) sobre Vittar, na qual destacávamos duas perspectivas:

Em um primeiro momento, interessa-nos analisar aquilo que chama- remos de “audiovisualidade remix”, compreendendo um pouco mais a ambiência constitutiva de suas produções musicais e de suas ex- ternalidades artísticas. No segundo, refletiremos sobre a cantora que “consome para ser consumida”, com a demarcação da existência de Vittar, enquanto, também, uma constituição remix – “subjetividade remix” –, e considerando, assim, a dimensão política de seu trabalho, identidade e subjetividade. (ROCHA e POSTINGUEL, 2017, p. 9)

Apresentação, representação, comercialização, politização erótica audiovisível são elementos que se entrecruzam na costura desta diva, que, não por acaso, é uma drag, que, não por acaso, é uma drag extre- mamente glamourosa, cujo glamour, não por acaso, remete a uma gramática de androginia, androginia que, não por acaso, alterna-se com uma imagem de mulher extremamente perfeita, perfeição que, não por acaso, apela a atributos artificiais/modificados – o corpo esguio e cada vez mais musculoso, a bunda desenhada, exibida em figurinos provo- cantes e dramáticos, os olhos enormes e a boca carnuda, acentuados por uma maquiagem igualmente perfeita e exagerada. Talvez não seja exagero afirmar que Pabllo, mais do que uma diva drag, seja uma diva Camp-remix.

Diz-me com que cabelo andas, te direi com que voz cantas... É comum ao acompanhar o cotidiano de mulheres trans e travestis deparar-se, em vários momentos, com alguns temas de importância: a empregabilidade, a hormonização, a eliminação dos pelos do rosto, o impacto da modulação vocal, e a aquisição/modificação dos cabelos. Fiquemos com o último. O que nos diriam os cabelos de Pabllo? Para explorar caminhos suscitados por esta indagação estamos tomando por referência a reflexão de Soares (2018) acerca dos cabelos 102 DIVAS POP

das divas pop. Soares também recorre ao camp para propor um desloca- mento analítico e epistêmico que consideramos fundamental. Assim, as divas contemporâneas seriam muito mais do que uma voz excepcional. Elas configuram “corpos musicais” complexos, são um todo performá- tico capaz de fascinar:

A cantora como um corpo que sugere um habitar performático, uma lógica constituída por prazer e encantamento, razão e sublimação, sem que um se oponha a outro. Queremos aqui nos afastar das pers- pectivas que enxergam estes processos como “fugas do real”, delibera- das “válvulas de escape” ou qualquer premissa que se utilize de uma lógica binária de tratamento entre realidade e ficção. (…) Refletir so- bre o imaginário da “diva” significa pensar em uma plateia formada por devotos, que se manifestam sob a forma de aplausos fervorosos, exclamações efusivas, pedidos de bis e avalanches de buquês – clichês importantes de serem refutados e reencenados. (SOARES, 2018, p.2- 8)

O cabelo, em uma diva drag, é parte de um devir, um devir-drag, como propõem Zapatta e Oliveira Jr. (2017). Gadelha (2008), por seu turno, localiza a montagem drag em uma perspectiva ritualística e inici- ática. Escolher um nome e acionar maquinários estéticos fazem parte desta iniciação. Os cabelos de Pabllo são uma chave estilística impor- tante no liame entre a Pabllo dos videoclipes e a Pabllo dos shows. O artifício é o polo conectivo de autoria e autenticidade. Aqui, não importa muito desafinar. Mas é fundamental desfilar, posar com cabelos esvoaçantes, loiros, verdes, negros, lisos ou muito levemente ondulados. Vittar, sabemos, não tem por hábito o uso de perucas ao estilo afro. As perucas de Pabllo Vittar ressoam a possibilidade de movimento e transmutação, embora, também o saibamos, recorrendo a marcadores estéticos de uma ideia de perfeição feminina bastante restritiva: magra, musculosa, alta, com cabelos lisos volumosos e sempre impecavelmente lisos. Soares sublinha “as dimensões estético-performáticas das relações entre divas pop e seus cabelos”. Uma delas nos é exemplar do devir- -Pabllo: as “[p]erucas como ficções capilares e cidadanias de gênero, (...) como um artefato não apenas que ficciona o próprio cabelo, mas também como um assentamento identitário”. (SOARES, 2018, p. 13). Os longos cabelos de Vittar – belamente ficcionais – despertam imaginá- A FABULOSA AVENTURA DE UMA DIVA 103 rios, cenarizam imaginários, ressignificam, pela via da artificialidade, realidades da vida mundana e a interseccionam à experiência da excep- cionalidade artística.

Parabéns! Uma cena clássica do mundo das estrelas do cinema, mas também emblemático do sofrimento de uma mulher e do poder subjugador e destrutivo exercido por um homem, retrata uma deslumbrante e frágil Marilyn Monroe entoando “happy birthday, mister president” (“feliz aniversário, senhor presidente”) a um sorridente e empavonado John Kennedy, a quem se atribuía um caso tórrido com a atriz. Monroe é retratada em documentários biográficos como o corpo feminino modi- ficado – brutalmente, com a extração de parte dos fios capilares – para, platinada e voluptuosa, tornar-se uma diva. Vittar, diva drag, entra em mutação voluntária e a tempo parcial, mesmo impactando, na sua versão desmontada, o rosto jovem de sobrancelhas pela metade, as onipresentes unhas postiças, ambos exigidos para a caracterização do olhar drag. Como se saída de um fim de festa, Vittar, desmontada, é um corpo-reminiscência, habitado por vestígios da “divagem”. Ao final de 2019, assumindo-se diva, Vittar lança o videoclipe “Para- béns”, inspirado em autocelebrações do gênero, protagonizadas por divas pop internacionais, como Madonna, Lady Gaga e Rihanna. O lançamento é programado para o dia em que nasceu Phabullo. Com look inspirado na imago-celebridade Kylie Jenner, Pabllo mais uma vez se faz acompanhar de um homem cisgênero, o cantor Márcio Victor. Se em “K.O.”, um jovem homem negro, simulando um boxeador é o responsável por nocautear a mulher performada por Pabllo, vestida aos moldes das garotas da UFC, em “Corpo sensual”, a parceria com Matheus Carrilho, da pop-psicodélica Banda Uó, marca uma relação um pouco mais horizontal entre a mulher performada, sensualíssima e um tanto andrógina, e o homem cisgênero. Se em “Paraíso”, uma insinuante e um tanto deslocada Pabllo performa a mulher que será dominada pelo macho musculoso e cisgênero, desempenhado pelo cantor Lucas Lucco, em “Parabéns” Pabllo é, literalmente, seu próprio presente. 104 DIVAS POP

Emergindo de um enorme bolo, ao estilo clichê das comemorações de despedidas de solteiro, Vittar assume, embora alternando-o, o prota- gonismo da enunciação. Em seu aniversário, os parabéns também se dirigem ao menino que “tá lindo”, sobre o qual se pergunta a idade e de quem ela “vai comer o bolo”. Quando Márcio Victor assume a narração, é Pabllo a performar a menina que “tá linda”, que quando questionada sussurra ter 18 anos, e quem terá seu bolo comido. Humor, deboche e duplos sentidos passeiam livremente neste aniversário, e também clichês, inclusive aqueles que podem ser associados a preconceitos geracionais e de gênero. Mas Pabllo sorri, coreografando sua potente condição de celebridade e recorrer ao devir-drag é aqui um bom modo de ludicizar e tornar nebulosos posicionamentos sobre binarismo e misoginia, por exemplo. Diva drag ambivalente, exerce seu poder de escrita erótica, jogando (de modo irresponsável?) com uma indistinção de papéis sexuais, mas, e isto é problemático, evitando posicionar-se sobre representações sociais restritivas. normativas e estigmatizantes. Vários de seus segui- dores comemoram Pabllo estar em um clipe dançando e seduzindo “um machão”. Parabéns, drags performam enlaces eróticos com machos clássicos, e isto é provocante, muito provocante, e ainda chocante para algumas pessoas. Mas, vejamos, o que isto pode de fato transformar ou cindir? Não procedemos neste capítulo a uma decupagem de videoclipes de Vittar, nem nos dedicamos propriamente a uma análise formal de suas vocalidades. Assumindo nossa filiação às teorias da imagem e da mídia e à antropologia da comunicação audiovisual, compreendemos Pabllo como fenômeno comunicacional e comportamental que ativa de modo particular o debate sobre gênero e sobre música, mobilizando de maneira bastante própria o universo da celebrização em rede e do consumo expandido do audiovisível, seus atores, personagens e produtos, divas da música aí incluídas. Atentamos ao contexto macro das políticas de audiovisibilidade que caracterizam e constituem a aparição pública de Pabllo, considerando que uma diva pop drag estabelece contratos de leitura e vinculação específicos, com audiências específicas, justamente por ser simultaneamente drag e diva. A FABULOSA AVENTURA DE UMA DIVA 105

Nossa análise ético-estética considerou e problematizou os campos de sentido mobilizados e propiciados pelo acontecimento Vittar, compreendido como um epifenômeno narrativo, estético, midiático e subjetivo expandido, que contempla mas ultrapassa os limites estritos da produção audiovisual. O consumo audiovisual de Pabllo, bem como suas estratégias e políticas de visibilidade, compreendem, pois, disputas de sentido que impactam tanto cânones artísticos (inclusive os advindos de “modernas tradições” do pop), quanto valores sociais hegemônicos ligados a normatividades de gênero e sexualidade, embora nem sempre se possa localizar aí exatamente uma perspectiva dissidente. Vittar, diva drag camp-remix, constitui, em conjunto com suas audiências complexas e também expandidas, posto que localizadas em contextos comunica- cionais pós-massivos e em rede, um corpo cênico partilhado, inclusive no que isto implica de enfrentamentos, dissenso e ambivalências. Distinguimos para tal objetivo, a apresentação, a representação, a monetarização, a comercialização e o plano das politicidades ativadas pela presença do corpo de uma diva drag na sociedade brasileira, no mercado audiovisual e dos “influenciadores digitais”, globais e transna- cionais, e naquele relacionado ao consumo de suas performances, em especial das midiatizadas. Assim, ao nos perguntarmos sobre contextos, características e estratégias de constituição de uma diva drag brasileira, que alcança projeção internacional, entendemos estética como experi- ência partilhada e como campo de negociação, ruptura e disputa. 106 DIVAS POP

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Capítulo 5 Divatização: A deificação das mulheres popstars modernas1 Linda Lister

A adoração de cantoras parece ser um fenômeno cíclico. Em meados do século 19, prima donnas eram celebradas e reverenciadas em óperas do estilo bel canto (“belo canto”), nas quais exibiam suas habilidades vocais. Quando as óperas do bel canto foram revividas, estrelando a soprano Maria Callas, em meados do século 20, o culto da diva ressurgiu. Agora, a passagem do milênio trouxe a deificação da diva para a música popular. Suplementando o termo – às vezes depreciativo – de suas raízes clássicas, o canal de vídeos musicais VH1 usou o starpower2 de cinco cantoras do pop para ajudar a arrecadar dinheiro para a venerável campanha “Salve a Música”. O resultado foi o concerto VH1 Divas Live (1998), favorecendo, na marquise, as cantoras com apelido de um nome só: Celine, Gloria, Aretha, Shania, Mariah. Graças ao sucesso do

1.“Divafication: the deification of modern female pop stars” foi originalmente publicado no periódico Popular Music and Society, em 2001, e traduzido para o português por Daniel de Andrade Lima. 2.Nota do tradutor: o termo starpower é utilizado em inglês para se referir ao poder, tanto performático quanto midiático, de celebridades. A tradução literal gira em torno de algo como “poder do estrelato”. 112 DIVAS POP

evento, o VH1 encenou outra extravagância no ano seguinte, embora com algumas estrelas de talento vocal mais duvidoso (Cher) e status questionável de diva (a diva em treinamento Brandy). Desconsiderando a inclusão kitsch de Elton John, podemos perceber que estes concertos revelam a esmagadora popularidade da adoração da diva. Na maioria das vezes, os divos parecem ser negligenciados. Com exceção de estrelas pop, como a sensação latina Ricky Martin, cantores masculinos parecem estar obtendo sucesso em boy bands como Backs- treet Boys, ‘NSync e 98º3. Enquanto isso, suas contrapartes adolescentes do sexo feminino – a ex-mosqueteira Christina Aguilera e a onipresente Britney Spears – ficam sozinhas na tarefa de reciclar o insípido pop chiclete popularizado na década de 1980 por Debbie Gibson. No reino da música country há também ídolos adolescentes, como LeAnn Rimes e Lila McCann, mas artistas femininas com apelo ao crossover ou ao pop mainstream roubaram os holofotes, como evidenciado por e Faith Hill4. Em ambos os gêneros, os fãs parecem ansiosos para colocar suas divas singularmente escolhidas em seus pedestais pop de “divatização”. Para os propósitos desta discussão, essa nova marca de divas será deli- neada por três diferentes designações. A primeira categoria é composta por “Prima Divas”, cantoras da verdadeira tradição da prima donna operística, que são reconhecidas principalmente pelo puro talento vocal, seja ele sábia ou ingenuamente utilizado. O protótipo desse grupo é

3. O texto foi escrito na época da consagração das boy bands e da formação de um star system que atrelou de maneira muito evidente a televisão, o cinema e a indústria da música nos Estados Unidos. No mercado de música teen, a que a autora se refere, é importante destacar a importância do programa Clube do Mickey (Mickey Mouse Club), de onde surgiram artistas como Justin Timberlake, Christina Aguilera e Britney Spears e também da Disney como um conglomerado midiático que envolvia estúdio cinematográfico, canal de televisão e selo fonográfico que segue consagrando seu modelo de formação de estrelas na cultura pop para adolescentes que alçam à categoria de “divas” quando chegam à fase adulta. 4. Numa atualização do debate promovido por Lister, destaca-se a presença da cantora com notável capacidade de articulaçãocrossover na articulação entre country e pop mainstream, tornando-se, em 2017 a maior estrela pop do mundo, segundo a revista New York. Para ler a reportagem: http://br.eonline.com/enews/taylor-swifteeleita-a- maior-estrela-pop-do-mundo/. Acesso em: 27 fev. 2020. DIVATIZAÇÃO 113

Barbra “a voz” Streisand, cujas “cordas vocais” não podem ser colocadas em questão, independentemente de você amá-la ou odiá-la. Na segunda categoria estão as cantoras inovadoras do final do século 20, as artistas femininas que deram origem a novos aspectos da música pop e, assim, abriram o caminho para o progresso futuro. O expoente óbvio deste tipo é a – apropriadamente chamada – Madonna. Embora seu dom para “causação”, sem dúvida, supere seu talento, não se pode negar a “genialidade para imagem”5 de Madonna (WURTZEL,1998). O terceiro grupo de divas mostra o renascimento da cantora/compo- sitora/artista como sintetizado pelo extremamente bem-sucedido festival “Lilith Fair”. Esta categoria pode revelar as perspectivas mais positivas para as mulheres na música pop. Em vez de simplesmente serem celebradas por sua beleza física ou vocal, essas artistas também são reverenciadas por suas composições, portanto também por suas subjetividades e imaginações. Nas palavras da fundadora do Lilith Fair, Sarah McLachlan, “há uma abundância enorme de mulheres na música que são incrivelmente diversas” (WOODWORTH, 1998). Unir cantoras em um festival de música pode ajudar a combater rótulos “primado- nísticos” como “virago6, megera ou cadela” (CHRISTIANSEN, 1986) e provar que quanto mais divas existem, melhor.

Prima Divas Se Ella Fitzgerald é a rainha do jazz, Billie Holiday é a primeira dama do blues e Aretha Franklin é a rainha da alma, então quem é a rainha do pop? Nos anos 1990, parecia haver um empate entre Whitney Houston, Mariah Carey e . Certamente, todas três têm seus devotos e detratores, mas suas presenças no pódio têm sido inescapáveis. A primeira prima diva pop apareceu realmente no meio dos anos 1980, quando a filha da cantora gospel Cissy Houston, Whitney, trilhou

5. Nota do tradutor: a autora se refere aqui ao termo “imagegenius”, empregado por Wurtzel. O termo articula as palavras “genius” e “image”, gênio e imagem, em um trocadilho, sugerindo genialidade para a gerência da própria imagem. 6. Nota do tradutor: Apesar de vir do latim, o termo virago é mais comum em inglês do que em português. Virago se refere a uma mulher masculinizada, de temperamento ambíguo, e possui, atualmente, tom depreciativo. 114 DIVAS POP

da carreira de modelo à de cantora. Com seu álbum de estreia intitu- lado como o seu próprio nome, Whitney Houston rapidamente chamou a atenção não só por sua aparência de garota de capa de revista, mas por seus vocais poderosos e abrangentes. Embora reconhecessem seus talentos, muitos críticos imediatamente desprezaram suas baladas monocromáticas, porém melódicas e suas melodias fofas e dançantes como sendo um pop soul leve, uma mistura de “gospel artificial e soul de restaurante”, o “unison” de Farber (1991) com vocalismo exagerado. Em sua defesa, pode-se destacar que esta embalagem pop inicial decorreu da própria vinculação de seus primeiros produtores ao universo da música pop propriamente dita, porque álbuns posteriores revelam mais elementos de R&B (“Waiting to exhale”) e influências mais verdadeiras da música gospel (“The preacher’s wife” e “Jesus loves me” da trilha sonora do filme “O guarda-costas”). Seu álbum lançado em 1998, “My love is your love”, inclui vestígios de hip hop e até mesmo de reggae, mas, sem dúvida, Whitney Houston sempre será lembrada como a primeira das rainhas pop do final do século 20 e como a figura tran- sicional entre Diana Ross e Dionne Warwick (esta, inclusive, prima de Whitney Houston) para Brandy e Monica7. A suposta rival de Houston na guerra das divas pop foi a sua parceira de dueto do filme “O príncipe do Egito”. Mariah Carey entrou em cena em 1990, ganhando legiões de fãs com sua “voz pop gospel de grande extensão, flexível e bonita, que soa como a da sua antecessora estilís- tica Minnie Riperton e que encontra principal expressão no registro de apito” (EDWIN, 1994). Desde então, Mariah Carey provou ter poder de permanência no pop, tornando-se a artista feminina de maior sucesso dos anos 1990.

7. A comparação que a autora faz com Brandy e Monica decorre do enorme sucesso que a canção “The boy is mine”, cantada pelas duas, teve no verão de 1998, quando a faixa chegou a ficar treze semanas no topo da parada Billboard - que averigua as músicas mais ouvidas por semana, nos Estados Unidos. Parte do sucesso da música se deu também por supostos boatos de que as cantoras, de fato, não eram amigas, alimentando a indústria de fofocas na época. “The boy is mine” conta a história de duas mulheres disputando o amor de um homem e foi inspirada no dueto de Paul McCartney e , de 1982, “The girl is mine”. DIVATIZAÇÃO 115

Apesar de suas colaborações com artistas de hip hop e de rap em “Butterfly” e “Rainbow”, Mariah é consagrada pelas “baladas arrebatadoramente efusivas e extremamente agudas” (Browne, “Winging it”) como no seu grande single de estreia, “Vision of love”. Enquanto alguns críticos dão crédito extra a Carey por escrever seu próprio material, seu trabalho foi outras vezes descartado como monocromático e homogeneizado. No entanto, raramente alguém encontra falhas em sua voz poderosa8. Na verdade, seu talento vocal é tão estimado que relatos sobre seu alcance vocal têm se tornado notoriamente exagerados, tanto que até o (“The marketing muscle behind Mariah Carey”) erroneamente relatou que seu alcance vocal superava o de um piano. Também admirada por seu amplo alcance vocal está nossa última prima diva, Celine Dion. Depois de entrar no mercado americano cantando duetos de trilhas sonoras de filmes de sucesso (a faixa-título de “A Bela e a Fera” e “When I fall in love” do filme “Sintonia de Amor”), a cantora franco-canadense se tornou, indiscutivelmente, a rainha de baladas poderosas e exageradas. Esta posição foi garantida para sempre pelo enorme sucesso da música tema de Titanic, “”. No entanto, Dion às vezes parece sofrer de uma crise de identidade. No início de sua carreira, ela aspirava a ser uma espécie de versão feminina de Michael Bolton, tendo até atuado como ato de abertura dos shows dele por um período de tempo. Alguns de seus efeitos vocais só podem ser descritos como estilismos “pseudogospéis” que emulam os tipos de Houston e Carey. Em seu álbum de Natal “These are special times”, ela começou a soar, de maneira misteriosa, como o seu ídolo confesso Barbra Streisand, com quem gravou o dueto “Tell him”. Apesar de suas performances intensas e martirizadas, há uma distinta uniformidade e falta de sutileza no canto de Dion, que pode se originar

8. Desde o retorno de Mariah Carey ao topo das paradas de sucesso mundiais com o álbum “The emancipation of Mimi”, em 2005, a cantora enfrenta diversas críticas sobre não conseguir mais alcançar as notas que ela dava no início de carreira, sobretudo no tocante ao “apito” (whistle). Uma performance vocalmente desastrosa e transmitida ao vivo pela rede ABC em 2016 gerou ainda mais controvérsias sobre a capacidade vocal da artista. Mais informações: http://time.com/4620015/mariah-carey-new-years-eve-performance/. Acesso em: 30 jan. 2019. 116 DIVAS POP

de uma incapacidade de expressar a si mesma em qualquer língua que não seja a sua nativa. Embora ela inevitavelmente “dê tudo de si, pare- cendo magoada ou empoderada à maneira que cada número exige, sua voz tem tão pouca personalidade, que também se perde em meio a suas ornamentações” (Browne,”White noise”). Mas, assim como no auge da ópera bel canto, o público ainda reage à emoção visceral das façanhas vocais ornamentadas. O ano 2000 inaugurou a aposentadoria de Dion. Ironicamente, sua saída prematura da indústria poderia ter garantido a sua posição como uma diva deificada, já que nada desperta mais fascínio e devoção em fãs raivosos do que uma carreira gloriosa interrompida. Exemplos vívidos desse fenômeno variam de Maria Callas a Janis Joplin. Mas a partida de Dion também foi interrompida. Ela voltou em 2002 com um novo álbum, “”, e uma residência em Las Vegas que se estendeu, pelo menos, por mais 15 anos. Tanto Whitney Houston quanto Mariah Carey permaneceram no centro das atenções mais por seus problemas pessoais do que por seus cantos. No entanto, isso também se adequa ao comportamento de uma diva. Muito provavelmente, todas as três Prima Divas do Pop continu- arão a ser celebradas por suas qualidades vocais.

Madonnas A segunda categoria de divas é composta pelas inovadoras modernas da música pop e pelas “mães da terra”. Essas artistas femininas conquis- taram sua fama não tomando seu talento vocal como base. Algumas podem até, de fato, ter boas vozes (e outras não), mas, ao contrário da primeira categoria de Prima Divas, seus talentos vocais não são os prin- cipais fatores de reconhecimento. Independentemente do multi-talento e dos variados gêneros que ocupam, todas essas mulheres são notáveis por encontrarem novos nichos para si mesmas quando não podiam se encaixar perfeitamente em qualquer molde preexistente. A mãe da música pop moderna é apropriadamente chamada Madonna. De maneira assumida, ela não é a vocalista ou dançarina mais talentosa, mas a veracidade e tenacidade de sua expressão não podem ser negadas. Madonna aparentemente dominou o meio pop, reinventando- DIVATIZAÇÃO 117

-se e modificando sua própria imagem para encontrar novos públicos e modos de expressão. Depois de estrear como um “boy toy” de jeans e rendas em meados dos anos 1980, ela se tornou a diva inimitável da com “Vogue”, nos anos 90. Explorando todas as cores possí- veis de cabelo, Madonna chamou atenção – enquanto atraía também dúvidas sobre seus verdadeiros talentos – por sua aparente preocupação com sexo, como visto no seu álbum “Erotica”, no seu livro e no seu vídeo controverso “Justify my love”, que teve a exibição proibida em alguns lugares. De fato, toda a carreira de Madonna estiliza simbolicamente a capa- cidade da mulher de usar sua sexualidade para expressar a liberação (WURTZEL, 1998). Só ela sabe se seu exibicionismo é fruto de uma expressão sincera ou de uma autopromoção cuidadosamente planejada. Detratores, porém, não podem negar a perspicácia para negócios de Madonna ou seu poder de permanência na indústria. O talento de Madonna até ganhou algum respeito depois da perfor- mance vencedora do Globo de Ouro como e do seu álbum pós- -parto “” (1998), que foi altamente elogiado pelos críticos por sua mistura única de música techno e espiritualidade oriental. E, apesar dos debates sobre seus métodos ou talento musical, Madonna provou o mérito de sua excelência cultivando a mística do ícone pop feminino. Outra cantora controversa e inovadora é a “Madonna do grunge”, Courtney Love. O que é mais notável sobre Courtney Love é que ela não sucumbiu após o trágico suicídio de seu marido, Kurt Cobain. Em vez de seguir um caminho como o de “A Redoma de Vidro”, ela efetuou sua própria transformação pública. Emergindo da morte de Cobain, a vocalista da banda Hole se metamorfoseou em uma modelo glamourosa da Versace e em uma atriz de cinema. Certamente, Love não é reverenciada pela beleza de sua voz. Os duros “uivos amelódicos da ex-stripper” (Browne, “The Hole truth”) refletem o poder esmagador de sua personalidade impetuosa. Tal como acontece com Madonna, grande parte da imagem de Courtney Love depende de sua sexualidade, mas sua fama também se origina da fascinação sombria do público com sua trágica vida real. Existe uma linha desconfortavel- mente fina entre a expressão sobre e a exploração do suicídio de Cobain 118 DIVAS POP

(como pôde ser visto na foto dos pulsos escarificados da capa do EP “Ask for it”). No entanto, Courtney Love é o expoente perfeito do poder da persona “diva” na cultura popular. No extremo oposto do espectro está Suzanne Vega. Favorecendo o que ela chama de “estética da impessoalidade de T. S. Eliot” (WOODWORTH, 1998) em oposição ao histrionismo de Love, a cantora/compositora de folk ilustra o poder da subestimação. Quem pode esquecer a intensi- dade gritante da acappella de Vega em “Tom’s diner”? Sua entrega vocal é direta e sem adornos, atraindo o ouvido do ouvinte para o conteúdo das letras. “Solitude standing” sintetiza a sutileza hipnotizante de sua arte. Embora ela continue a gravar, Vega não é mais uma força predomi- nante na indústria da música. Ainda assim, foi ela quem pavimentou o caminho para a tendência dos anos 1990 da “garota-com-um-violão” que levou à Lilith Fair. Além disso, a publicação de seus textos musicais (“The passionate eye”) é um testemunho de seu avanço no conceito da poeta enquanto diva. Também conhecida por sua potente e, muitas vezes, obtusa poesia é Tori Amos. Esta diva alternativa é um amálgama complexo de carac- terísticas contraditórias. Ela é a filha rebelde de um pastor e prodígio do piano que virou também uma desistente do Curtis Institute e uma vítima de estupro. Ela toca o cravo enquanto canta obscenidades (“Professional widow” do álbum “Boys for pele”). Quase de pé, ela atra- vessa o banquinho do piano enquanto cria ondulações sonoras em seu amado “Bösendorfer” e se lamenta em “gemidos orgásticos de soprano” (Browne, “Loon service”). Assim como Suzanne Vega pavimentou o caminho para a ideia da mulher cantora/guitarrista, Amos chamou a atenção para a cantora/ compositora no teclado. Como uma versão feminina de Billy Joel, ela traz o treinamento clássico para o idioma popular. Seu pedigree concede sua legitimidade musical, mas também a distância de alguns ouvintes que fogem de suas peculiaridades. No entanto, Amos mantém um fandom semelhante a um culto de devotos e suas manifestações angus- tiadas geraram o trabalho de artistas posteriores como Paula Cole e Fiona Apple. DIVATIZAÇÃO 119

De certa forma, Amos também gerou Alanis Morissette (os concertos que fizeram juntas em 1999 devem ter sido, de fato, eventos intensos). Com seu hino popular à mulher desprezada e moderna, “You oughta know”, Morissette criou uma ligação palpável com viciados em paixão em toda parte. Enquanto a música pode parecer o pior pesadelo de todos os caras por aí, ela é muito significativa pela sua expressividade descarada: “a completa falta de vergonha de Alanis sobre o quanto ela é louca e desprovida de sentimentos, combinada com sua fúria assustadora, é muito inovadora” (WURTZEL, 1988). Como Amos, Morissette tem sua própria parcela de estranhos maneirismos que fazem dela uma pílula difícil de ser engolida9 por algumas pessoas. Ao contrário de Amos, Morissette não é uma musicista consumada: sua habilidade com o violão é fraca – na melhor das hipóteses – e ela provou ser uma flautista terrivelmente ruim em “That I would be good”. Ela também não foi a primeira mulher a xingar ou cantar sobre sexo oral: a queridinha indie Liz Phair foi pioneira em ambos os feitos com “F*** and Run” e “Shatter”, do “Exile in Guyville” (1993). De maneira semelhante a Phair, sua voz crua dificilmente poderia ser descrita como bonita, mas os seus “vocais elásticos e sua faladeira Zen” (Tucker) deram expressão vívida à paixão e à frustração das feministas do fim do século em todos os lugares. As duas últimas figuras madonísticas dificilmente são mencionadas numa mesma fala: Shania Twain e Lauryn Hill. Ambas, no entanto, têm sido parte atuante para o aumento da popularidade dos seus respectivos gêneros musicais. Com a ajuda de seu marido produtor de rock, Twain desenvolveu uma estética neo-Nashville a partir de um feminismo boudoir e de um rock honky-tonk e high-tech (Considine). Embora sua música possa parecer incrivelmente inofensiva e até mesmo banal para alguns, ela chocou o establishment de Nashville ao mostrar, com ousadia, a sua barriga em seus videoclipes. Os puristas de Grand Ole Opry podem até ter se posicionado contra, mas Twain conseguiu vendas impressionantes com seu álbum “Come on over” (1997), que permaneceu entre os dez melhores do país e das paradas pop por mais de dois anos.

9. Nota do tradutor: No original, a autora brinca com o título do terceiro álbum de estúdio de Alanis Morissette: “Jagged little pill”. 120 DIVAS POP

A ex-vocalista dos Fugees, Lauryn Hill, realizou feitos ainda mais impressionantes com sua estreia solo, “The miseducation of Lauryn Hill”. Como Twain, ela atraiu fãs por meio da articulação de vários gêneros musicais. O álbum de Hill combinou R&B, pop e rap em um trabalho pioneiro, que a garantiu uma presença dominante no – para não mencionar que foi vencedora do – Grammy Awards de 1998. Sua forte retidão moral é certamente arrebatadora para alguns, entretanto outros acham sua retórica dura e estridente (Browne, “The miseducation of Lauryn Hill”). De toda forma, Hill traz uma personalidade inovadora e seu trabalho como produtora de discos (para ela e para outros artistas) garante seu lugar de destaque na indústria e, inclusive, já preparou o caminho para artistas como e . As artistas inovadoras nesta categoria são, assim, um grupo alta- mente variado. O que elas compartilham, além de sua popularidade, é a capacidade de criar novos papeis para si no mundo da música pop. Madonna, Courtney Love, Suzanne Vega, Tori Amos, Alanis Morissette, Shania Twain e Lauryn Hill se destacaram como as respectivas divas da dance music, do grunge, da poesia, da habilidade no piano, da angústia pós-feminista, do crossover country e do hip hop.

Liliths Lilith não é a “demônia sedutora” que o reverendo Jerry Falwell censurou quando convocou um boicote a Lilith Fair em 1999. Em vez disso, a figura simbólica “Lilith”, de Sarah McLachlan, representa a mulher cantora/compositora. Certamente as artistas seminais desse gênero são dos anos 1960 e 1970, incluindo Joan Baez, Joni Mitchell e (que foi vergonhosamente maltratada pela maioria dos megalomaníacos no show original do VH1 Divas). O festival Lilith, porém, serviu como uma celebração e colaboração de artistas mulheres que às vezes têm dificuldades em encontrar um fórum no mundo da música rock, dominado pelos homens. Para muitos, Sarah McLachlan é a própria deusa Lilith, adorada por sua voz etérea e límpida e admirada por nutrir os esforços de suas colegas femininas. McLachlan é uma versátil pianista/guitarrista/compositora, e ela “canta como um anjo com uma voz tanto brilhante quanto onisciente” DIVATIZAÇÃO 121

(FARBER, 1997). Como Vega, McLachlan favorece uma sensibilidade discreta em seus modos de expressão, mas, de maneira diferente, ela traz calor e vulnerabilidade para suas melodias exuberantes e assombrosas e letras delicadas, ainda que sombrias. Seu melhor trabalho, “Fumbling towards ecstasy” (1993), é uma mistura evocativa de folk e pop místico. Uma das participantes da Lilith Fair de 1998, Jewel sintetiza a versão rock e bem-sucedida de qualquer narrativa de pessoa que sai da pobreza em direção à riqueza. Após o enorme sucesso de seu primeiro álbum, “Pieces of you” (1995), ela foi transformada de Jewel Kilcher, a garota de dentes tortos do Alasca que vivia em sua van, para Jewel – a sensação da mídia, a pseudopoeta (“A night without armor”) e a estrela de cinema (“Ride with the devil”). Enquanto ela pode até alegar ingenuamente que “a única coisa que vendeu meu disco foi sinceridade” (WOODWORTH, 1998), o fenômeno Jewel deve muito à publicidade, à sua viabilidade politicamente correta e ao apelo de sua “atmosfera de órfã de cafeteria” (Browne, “Pieces of you”). Jewel pode até ser uma mulher atraente, com uma voz decente, capaz de escrever melodias cativantes, mas seu canto revela sérios defeitos, incluindo problemas de afinação e um vibrato errático. Além disso, sua poesia é repleta de clichês e imagens redundantes; Jewel provavelmente não seria tão criticada se não parecesse que ela está se esforçando o tempo todo para ser profunda. A lista de músicas do “Spirit” (1998), por exemplo, é seguida por uma citação concisa, presumivelmente da própria artista: “somos amados para além de nossa capacidade de compreensão”. Evitar os chavões e preciosidades do pop é uma forma direta de , uma atração principal na turnê de despedida de Lilith Fair, em 1999. A música de Crow traz uma dicotomia interessante, arti- culando leveza e suicídio (WOODWORTH, 1998). Em sua mistura de blues-rock com toques de rock clássico, ela consegue representar uma garota festeira, como em “All I wanna do (is have some fun)”, bem como uma amante torturada em músicas como “Anything but down” e “Strong Enough”. Seu estilo arrojado, mas exuberante, atrai um amplo leque de ouvintes, talvez porque sua imagem seja um emblema da mulher moderna empoderada, mas ocasionalmente frágil. Entre os três expo- entes de Lilith discutidos aqui, os fãs provavelmente se identificam com 122 DIVAS POP

o espírito de pelo menos uma das artistas, seja o romantismo pensativo de Sarah McLachlan, o idealismo xaroposo de Jewel ou o realismo duro de Sheryl Crow.

Divatização A proliferação da adoração à diva pode ser devida, em grande parte, ao culto à celebridade que domina a sociedade contemporânea (uma questão examinada pela rainha do grunge Courtney Love em “Celebrity skin”). Em particular, as fãs mulheres parecem ansiosas para identificar modelos tanto para deificar quanto para emular. Talvez Falwell estivesse certo, afinal de contas, o culto a Lilith é uma forma de adoração à deusa, de mulheres celebrando as partes de si mesmas que podem reconhecer em seus ídolos escolhidos. Enquanto suas divas cantam no palco, fãs obedientemente dublam todas as palavras, projetando seus próprios sonhos em seus ídolos femi- ninos enquanto assumem em si, em pequena parte, a persona da diva. No mais, essa prática de “divatização” parece ter removido a conotação depreciativa do termo “diva”, ajudando, assim, a descartar mais um este- reótipo feminino negativo. Desta forma, enquanto a sociedade conti- nuar a abraçar o empoderamento feminino, a deificação da diva irá, sem dúvida, prosperar, dado que a adoração da diva parece liberar tanto as divas adoradas quanto o adorador. DIVATIZAÇÃO 123

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McLachlan, Sarah. Fumbling towards ecstasy. Arista, 1993.

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Phair, Liz. Exile in guyville. Matador, 1993.

Twain, Shania. Come on over. Mercury, 1997.

Vega, Suzanne. Solitude standing. A & M, 1987.

Capítulo 6 Maria Callas, uma casta chamada diva Fernando Gonzalez

A cortesã Violetta e o nobre Alfredo, apesar das diferenças de posição social, iniciam um relacionamento amoroso, para desgosto de Giorgio, pai de Alfredo; atendendo às suas súplicas, Violetta abandona Alfredo e parte para uma festa na casa de sua amiga Floria. Desconfiado de sua fidelidade, Alfredo confronta Violetta, que, mentindo, diz amar o barão Duphol, sendo em seguida reprimida e humilhada por ele. Violetta se desfaz de todos os seus bens e, tomada pela tuberculose, recebe uma carta de Giorgio, arrependido por tê-la colocado contra o filho. Alfredo e Violetta se reconciliam e, em meio a planos para o futuro, ela falece em seus braços. Floria, uma cantora de ópera, visita seu amante, o artista revolucio- nário Mário, na igreja onde ele está trabalhando em uma imagem de Maria Madalena, ao mesmo tempo em que Angelotti, amigo de Mário e ativista de esquerda, se esconde da polícia na capela. Mário, em seguida, é preso e torturado para que Floria confesse o paradeiro de Angelotti a Scarpia, o chefe de polícia, que também é apaixonado por ela. Após a condenação de Mário à morte, Scarpia oferece a Floria uma condenação simulada e um salvo-conduto para o casal, com a condição de passar 128 DIVAS POP

uma noite com ele. Apesar de aceitar a proposta, Floria, incapaz de seguir em frente, mata Scarpia assim que ele termina de preparar o documento. Na manhã seguinte, Floria informa Mário do plano, mas, ao aproximar- -se dele após a execução, percebe que os guardas não cumpriram com o combinado e que Mário está morto; perseguida pelos homens de Scarpia que encontraram seu corpo, Floria se joga do terraço. A soprano Maria é escalada para interpretar o papel principal de uma ópera na cidade de Verona, onde conhece o industrial Giovanni, que começa a cortejá-la; os dois se casam e ele passa a gerenciar sua carreira, fazendo dela uma grande estrela. Durante uma apresentação, um desen- tendimento de programação causa um incidente com outra soprano, Renata, o que faz surgir uma rivalidade entre as duas cantoras que passa a ser acompanhada de perto pelo público e pela crítica. Durante uma festa em sua honra, organizada pela amiga Elsa, Maria conhece o armador Aristóteles, com quem embarca em um relacionamento que leva ao fim de seu casamento com Giovanni. Vivendo o declínio de sua carreira por conta do enfraquecimento de sua voz, tanto por desgaste prematuro como pelos efeitos de uma dieta que resultou na perda de cerca de 36 quilos em um ano, a cantora dedica-se à vida com o novo companheiro. Aristóteles, no entanto, termina o relacionamento com Maria e se casa com Jacqueline; a cantora passa a viver isolada e falece após uma parada cardíaca. Durante a guerra com os romanos, espera-se que a sacerdotisa druida Norma seja capaz de negociar um cessar-fogo e o fim do conflito; ela, no entanto, está em um relacionamento secreto com o romano Pollione, com quem tem dois filhos, o que contraria os votos feitos. Pollione, por sua vez, está apaixonado pela noviça Adalgisa, que nutre os mesmos sentimentos por ele. Buscando os conselhos de Norma sobre estar apai- xonada por um romano, Adalgisa acaba revelando sua paixão para ela, que confronta Pollione e revela para a jovem que ela foi enganada. Após a saída de Pollione para Roma, Adalgisa viaja para tentar convencê-lo a retornar; chegam a Norma as notícias de que, não somente ela falhou, como o romano jurou raptá-la do templo durante a cerimônia sacer- dotal. Tomada pela raiva, Norma anuncia o ataque contra os romanos e realiza os ritos de declaração de guerra, o que inclui sacrifício humano. MARIA CALLAS, UMA CASTA CHAMADA DIVA 129

Apesar da tentativa de sacrificar Pollione, que havia sido capturado tentando invadir o templo, Norma, incapaz de seguir em frente, informa aos soldados que a escolhida deve ser uma sacerdotisa que desobedeceu seus votos e oferece a si mesma em sacrifício. Somente três dessas histórias são fictícias, mas se todas compartilham o mesmo tom é porque a vida da soprano greco-americana Maria Callas poderia facilmente se passar por uma ópera. Desde os primeiros anos, vivendo à sombra de uma mãe dominadora e autoritária – o que resul- taria em conflitos que nunca seriam resolvidos – passando por épocas dedicadas ao canto e à ópera, que a consagraria como um dos maiores nomes do século 20 tanto para o público quanto para artistas e crítica, a história de La Callas encrustou-se no imaginário cultural e fez dela uma referência quando falamos sobre divas e prima-donas. Relacionamentos instáveis e mal resolvidos, relatos de escândalos e temperamentos exal- tados que resultaram no abandono do palco no meio de apresentações, uma mudança física que inseriu Callas nos padrões de beleza vigentes da época – transformando-a num ícone de sofisticação ao lado de nomes como o da atriz Audrey Hepburn – e a decepção com o desgaste prema- turo de sua voz se somaram em um tipo de tempestade perfeita, feita sob medida para uma pungente sociedade midiática que se alimenta ainda hoje de catástrofes pessoais, transformando-as em narrativa mitológica e objeto de consumo (HUFFINGTON, 2002; MARKENDORF, 2010). A ascensão profissional de Callas foi rápida, tanto para os padrões atuais como para os da época; em 1947, a soprano1 fazia uma de suas primeiras temporadas de apresentação relevantes, com seis mornas aparições como a protagonista da ópera de Amilcare Ponchielli, “La Gioconda”, para os 25 mil expectadores da Arena di Verona – críticos exaltaram a qualidade vibrante e o timbre envolvente de sua voz, mas não mostraram mais entusiasmo além de uma avaliação contida2

1. Variedade de voz feminina mais aguda para o canto, sendo capaz de atingir notas que nenhum outro tipo de voz alcança. 2. As resenhas destacavam a “qualidade vibrante [de sua voz] e fácil produção das notas mais agudas” e “um timbre comovente de qualidade reconhecidamente particular”, críticas nada excepcionais para o mundo da ópera. 130 DIVAS POP

(HUFFINGTON, 2002; JELLINEK, 2016). Menos de meia década mais tarde, no entanto, a soprano já cultivava um extenso currículo. Aos vinte e oito anos, Maria Callas havia realizado seu sonho de trabalhar em grandes produções sob o comando dos maiores diretores musicais e cênicos do mundo, entre eles Leonard Bernstein, Herbert von Karajan, Visconti e Zeffirelli. Havia chegado à Itália em 1947, com pouco dinheiro, quase como uma desconhecida. Quatro anos depois, cobrava cerca de trinta mil dólares atuais por apresentação e era considerada a maior do mundo da ópera (Morató, 2010, loc.354)3. O período marca também a atuação do industrial veronês Giovanni Battista Meneghini como agente de Callas, após o casamento dos dois em 1949; apesar dos boatos – esses sempre presentes na vida da soprano – que especulavam sobre desde a felicidade (ou falta dela) de Callas no relacionamento até a sexualidade de Meneghini, “ela gostava dele. Ela gostava de sua estabilidade, ela gostava da maneira como todos o respeitavam, e acima de tudo ela gostava da maneira como ele gostava dela. Ela era o foco de sua atenção”4 (Huffington, 2002, p.67, tradução nossa). Graças à devoção de Giovanni a Callas, e ao seu investimento de tempo, dinheiro e contatos sociais, a carreira da soprano pôde evoluir mais rapidamente do que o normal para uma atividade dependente de um instrumento frágil, que muitas vezes encontra sua maturidade mais tarde. Apesar de associarmos os últimos anos do século 20 às estrelas adoles- centes e aos artistas que ganham fama e notoriedade antes de atingir a maioridade, relatos históricos sugerem de que não há nada de novo em alcançar o estrelato na juventude, arriscando a integridade vocal por assumir uma carga muito pesada de compromissos antes da hora: sopranos como Jenny Lind e Maria Malibran estrearam no palco operís-

3. A sus veintiocho años, María Callas había logrado su sueño, trabajar en grandes producciones a las órdenes de los mejores directores musicales y escénicos del mundo, entre ellos, Leonard Bernstein, Herbert von Karajan, Visconti y Zeffirelli. Había llegado a Italia en 1947, con muy poco dinero en el bolsillo y siendo casi una desconocida. Cuatro años después, cobraba cerca de treinta mil dólares actuales por actuación y era considerada la más grande en el mundo de la ópera. 4. Yet she liked him. She liked his stability, she liked the way everyone deferred to him, and above all she liked the way he like her. She was the focus of his attention. MARIA CALLAS, UMA CASTA CHAMADA DIVA 131 tico aos 17 anos, mesma idade com que Wilhelmine Schröeder-Devrient, musa inspiradora de Richard Wagner, interpretou pela primeira vez o difícil papel de Leonora (na ópera homônima de Beethoven), onde foi vista pela primeira vez pelo compositor. (HUFFINGTON, 2002; JELLINEK, 2016; MORATÓ, 2010; SNOWMAN, 2009). Talvez tenha sido essa elevada demanda pela interpretação de papéis complexos, muitas vezes por diversos dias seguidos e sem intervalos longos o bastante para o repouso vocal, um dos motivos que levaram ao declínio e desgaste do instrumento de Maria Callas. No ano de 1951, aos 28 anos, a soprano já havia estrelado em 14 produções diferentes desde a sua estreia em Verona, incluindo “Tristão e Isolda” (1948-1950), “As Valquírias” (1949) e “Parsifal” (1949-1950), de Richard Wagner, “Aida” (1948-1951), “Nabucco” (1949), “Il Trovatore” (1950-1951) e “La Traviata” (1951), de Giuseppe Verdi, e o complexo papel de Turandot (1948-1949), na ópera homônima de Giacomo Puccini, que Maria riscou de seu repertório depois de uma temporada de apresentações, com medo dos possíveis danos à sua voz. O panteão da ópera, ao longo da década de 1950, foi indiscutivel- mente dividido entre Maria Callas e a italiana Renata Tebaldi. As duas cantoras estavam no ápice, com total domínio sobre seus instrumentos e capacidade de envolver plateias e arregimentar admiradores. O envolvi- mento do público era tamanho que, em mais de uma ocasião, o diretor artístico do teatro La Scala de Milão, Antonio Ghiringhelli, montou a temporada de óperas de tal maneira que cada uma das sopranos ficasse com metade da programação, dando aos fãs de ambas oportunidades iguais de acompanhar suas divas.

Para a temporada de 1952-1953, por exemplo, “Rainha Maria” de- veria comandar a primeira metade em novas produções de Macbeth (1952) e Il Trovatore (1953), de Verdi, e La Gioconda (1952-1953), de Ponchielli. Em seguida, enquanto Maria cumpria seus compro- missos em Roma e em outros destinos, “Rainha Renata” assumiria o comando em Tosca (1953), de Puccini, e Adriana Lecouvreur (1953), 132 DIVAS POP

de Francesco Cilea, durante abril e maio. (JELLINEK, 2016, loc.2058, tradução nossa)5

O experimento bem sucedido continuaria sendo utilizado por Ghiringhelli nas temporadas seguintes; em nome da isonomia, o diretor chegaria ao ponto de revezar as duas sopranos nos prestigiosos concertos de abertura da temporada do La Scala (HUFFINGTON, 2002). Apesar das notáveis diferenças entre as duas artistas, que incluíam até mesmo o tipo de voz que possuíam e o repertório de personagens que interpretavam, Callas e Tebaldi foram protagonistas de uma das mais famosas rivalidades da história da ópera, que apresenta diferentes contornos e ganha ou perde em intensidade, dependendo de quem conta a história. A antipatia teria começado depois de um recital conjunto, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, após o qual Tebaldi apresentou duas músicas como bis, apesar de as cantoras terem combinado que não preparariam nada além do programa da noite. A partir disso, se instauraria um clima de competição que definiria a relação entre as duas por mais de 15 anos, incluindo atitudes como a de Ghiringhelli, voltadas a agradar fãs de ambas, e relatos de críticas e provocações em entrevistas (HUFFINGTON, 2002; JELLINEK, 2016). Declarações e atitudes de ambos os lados, no entanto, como a presença de Callas na apresentação de abertura da temporada 1953 do La Scala, protagonizada por Tebaldi, indicam que talvez a rivalidade existisse mais para atender a uma necessidade do público e da mídia do que propria- mente como resultado de alguma rusga não resolvida entre as sopranos. A mitologia da rivalidade entre artistas não é algo novo: relatos histó- ricos levam-nos, no mínimo, até o começo do século 18, com a compe- tição entre Francesca Cuzzoni e Faustina Bordoni, duas das principais cantoras do Barroco italiano, período compreendido entre os anos 1580 e 1750. Evidentemente, esse tipo de espetáculo de competição pública na ópera não se resume às sopranos; entre os mais conhecidos, estão a rivalidade entre Plácido Domingo e Luciano Pavarotti e a competição

5. Queen Maria was to rule over the first half of the season, in new productions of Verdi’s Macbeth and Il Trovatore, and Ponchielli’s La Gioconda. Then, as Maria would depart to fulfill her obligations in Rome and elsewhere, Queen Renata would take over in Puccini’s Tosca and Cilea’s Adriana Lecouvreur during April and May. MARIA CALLAS, UMA CASTA CHAMADA DIVA 133 entre os barítonos6 italianos Tito Gobbi e Gino Bechi. (INVERNE, 2009; SNOWMAN, 2009). O fato de que, nesses casos específicos, tenhamos dois claros vencedores, uma vez que Gobbi e Pavarotti atingiram popu- laridade consideravelmente maior e participaram de algumas das prin- cipais produções de suas gerações, não significa de maneira nenhuma um atestado de incontestável superioridade vocal. O jogo dos tronos da ópera tem um número muito maior de variáveis do que simplesmente talento ou valor artístico. Foram as artistas do gênero feminino, no entanto, que protagoni- zaram as mais conhecidas e duradouras rivalidades da música. Mais do que uma briga de arrancar apliques e jogar drinques, a competição sempre se resumiu à capacidade de lotar teatros, esgotar produções e, a partir do século 20, vender gravações. A entrada da indústria fono- gráfica marca o começo de um novo capítulo nessa história, intensifi- cando a mitologia que hoje se espalha por uma narrativa transmidiá- tica, trazendo novos capítulos dessas novelas nos mais diversos canais, incluindo declarações em redes sociais, indiretas em letras de músicas e interferências em cerimônias de premiação. Dessa forma, e com acesso quase que imediato a esse tipo de conteúdo, os fãs não mais somente assistem às polêmicas, mas podem efetivamente fazer parte delas, alis- tando-se no exército que sustenta essas guerras midiático-musicais, seja do lado da , seja no squad7 da Taylor Swift. No caso da ópera, a disputa das cantoras líricas na era da gravação significou uma série de confrontos entre artistas que, nada coincidente- mente, sempre tiveram contratos com gravadoras diferentes: enquanto Joan Sutherland gravava pela Decca, sua rival Montserrat Caballé era a musa da RCA, e enquanto a Deutsche Grammophon (DG) trabalhava no lançamento de uma nova “Forza del destino” com José Carreras, a EMI preparava uma versão da mesma obra com Plácido Domingo. Na atualidade, Anna Netrebko arranca aplausos de seus admiradores a cada novo lançamento pela DG, enquanto sua suposta rival, Angela Gheorghiu, acumula triunfos com a EMI. Com Callas e Tebaldi não foi

6. Tipo mais comum de voz masculina, o barítono é o cantor com alcance vocal médio, mais grave do que um tenor, porém mais agudo do que um baixo. 7. Termo usado para designar os fãs da cantora Taylor Swift. 134 DIVAS POP

diferente: enquanto, ao longo das décadas de 1950 e 1960, Maria regis- trava os principais papeis de Verdi e Puccini para a EMI, Renata fazia o mesmo, mas para Decca (ASHMAN, 2009; SNOWMAN, 2009). No primeiro semestre de 1952, depois de cantar oito Normas no La Scala, Maria Callas fazia sua primeira – e última – ópera de Mozart, O Rapto do Serralho e, semanas depois, abria o festival de Florença com Armida, de Giaccomo Rossini, um papel repleto de desafios técnicos, criado para a soprano espanhola Isabella Colbran, uma das principais cantoras da primeira metade do século 19. Único papel feminino no elenco, a personagem-título domina toda a ópera, tanto musical quanto dramaticamente, encerrando a obra em uma carruagem puxada por dragões, cercada por seus demônios, que sob seu comando destroem seu jardim mágico sob uma torrente de chamas (COELHO, 2002). Callas, como já era de se esperar, incendiou o teatro à sua maneira: “durante sua cena final de doze minutos, ela superou os limites de sua voz, atin- gindo um alcance de quase três oitavas8. Tudo chegou ao clímax com uma das mais elaboradas árias de Rossini, interpretada por Maria em uma torrente de som9” (HUFFINGTON, 2002, p.106, tradução nossa). Ao triunfo com Armida seguiram-se duas performances de “I Puri- tani”, de Bellini, em Roma, apresentações na cidade de Verona e a adição de dois grandes papeis em seu repertório, Gilda, do “Rigoletto” de Verdi, e Lucia, a personagem-título de “Lucia di Lammermoor”, de Gaetano Donizetti. Ao todo, somente nos cinco primeiros meses do ano, Callas já somava entre suas aparições cinco Puritanis, uma Vespri, nove Normas, três Trovatores, quatro Raptos do Serralho e três Armidas, imprimindo um ritmo de apresentações que para a sua carreira estaria, durantes esses anos, mais próximo da regra do que da exceção. O que fazia de Maria Callas sucesso garantido em virtualmente qual- quer produção da qual participasse? À primeira vista, e especialmente na

8. Na música, cada oitava corresponde ao intervalo entre duas notas iguais de alturas diferentes, como um dó e o dó mais agudo seguinte, por exemplo. Um alcance de três oitavas corresponderia a um intervalo de 37 teclas de um piano tradicional. 9. (…) during her twelve-minute final scene, she pushed her voice to new limits, spanning almost three octaves. It all came to a climax with one of the most elaborate of all Rossini’s arias, delivered by Maria in a torrent of sound. MARIA CALLAS, UMA CASTA CHAMADA DIVA 135 atualidade, longe do momento em que Callas era ovacionada em todos os palcos que pisava, pode não fazer sentido todo o mito construído ao redor da soprano. Maria, afinal, não possuía a simpatia e afetuosi- dade de Joyce DiDonato, não era um símbolo do padrão de beleza, como Diana Damrau, e não possuía a potente e surpreendente voz de uma Anna Netrebko. Se não existe, no entanto, um consenso entre os críticos sobre quem efetivamente possuía a melhor voz, Callas ou Tebaldi, um ponto parece não estar aberto a discussão: a capacidade de Maria de transformar-se nas personagens que interpretava e sua contribuição para gerações de cantores, estabelecendo um novo parâmetro baseado no seu talento de transportar seu público de maneira quase hipnótica para dentro do que se passava no palco. Essa era, por sinal, uma das qualidades que Callas compartilhava com suas antepassadas Giuditta Pasta e Maria Malibran.

O talento que elas compartilhavam era a habilidade de colorir e pro- jetar suas vozes de uma maneira que deixava muito claras as emoções e motivações das personagens que retratavam. Para o público, não eram somente cantoras no papel-título de Norma – elas eram Norma. Elas sabiam que toda aquela raiva, medo e desespero não seriam ilus- trados da melhor forma possível com uma simples sequência de sons sedutores, e elas tinham o talento e a coragem para inserir seu público no verdadeiro drama do palco, não importando quanto feio ou cho- cante ele fosse. (SOMERSET-WARD, 2002, p.132, tradução nossa)10

Como mais recente representante dessa classe de cantoras, no entanto, Callas parecia ir além. Suas habilidades dramáticas, algo único e que a tornaram uma referência, fizeram com que ela tornasse seus os papéis nos quais se convertia; é impossível, ainda hoje, falar principalmente em Tosca, Violetta ou Norma sem fazer algum tipo de alusão à interpretação estabelecida por Maria para esses papéis, mesmo quando sua voz não se adequava inteiramente a eles (BURROUGHS, 1989; HUFFINGTON,

10. The talent they shared was an ability to color and project their voices in ways that did more than just hint at the emotions and motivations of the characters they portrayed. For their respective audiences, they were not just singers in the title role of Norma – they were Norma. They knew that anger, fear, and desperation were not best illustrated by a stream of beautiful, sensuous sounds, and they had the talent and courage to sweep their audiences into the real drama of the stage, however horrifying and ugly it might be. 136 DIVAS POP

2002; NAFFAH NETO, 2007). Norma, aliás, é um papel que merece destaque neste repertório. A sacerdotisa druida, personagem principal da ópera homônima de Bellini, posa um desafio para qualquer soprano que aspire interpretá-la. Única personagem realmente bem definida e multidimensional da ópera, Norma exige de quem a interpreta a capacidade de retratar toda uma gama de posturas dramáticas, que vão desde o poder e a grandio- sidade da comandante do exército dos druidas até a graça e resignação da mulher profundamente magoada que se sacrifica em uma pira em chamas ao fim da noite, passando pela sacerdotisa reverente e suplicante que canta “Casta Diva”, a ária11 mais famosa da ópera – e talvez de toda a obra de seu compositor. O destaque exigido da capacidade interpre- tativa do elenco operístico está mais ligado aos primeiros momentos da história ópera, mais especificamente no século 17, quando a forma poderia ser descrita mais claramente como um tipo de drama com música. Foi somente com a proximidade do século 18 que a música começou a exercer sua prioridade, com o número médio de árias escritas para uma ópera subindo de uma dúzia, em 1640, para mais de sessenta, em 1670 (SOMERSET-WARD, 2002). Foi o caráter teatral da ópera em sua juventude que levou à consa- gração daquela considerada como a primeira prima-dona, a soprano italiana Anna Renzi. No papel de Deidamia em “La Finta Pazza” (1641), de Francesco Sacratti, uma das primeiras óperas com elementos cômicos apresentada em Veneza, Renzi interpretou a primeira cena de loucura em uma ópera, o que permitiu, alicerçada por seu talento dramático, demonstrar sua impressionante capacidade vocal, dominando séries de arpejos e saltos entre oitavas12, tanto para o registro mais grave, quanto para o registro mais agudo. Renzi alcançou tal nível de popularidade com o público da época que, não só seus admiradores publicaram um livro de poemas escritos em sua homenagem, como no contrato que

11. Nome utilizado para se referir a uma composição para cantor solista dentro de uma ópera. 12. Arpejos são sequências de notas seguidas do mesmo acorde, soadas uma de cada vez. MARIA CALLAS, UMA CASTA CHAMADA DIVA 137 assinou com o impresário13 Girolamo Lappoli, além de um alto salário, estavam inclusos benefícios como receber metade do salário mesmo se a apresentação fosse cancelada e ter todos os figurinos pagos pelo teatro (BAILEY, 2017; COELHO, 2009; SOMERSET-WARD, 2002). Apesar de a figura das prima-donas ter surgido com Anna Renzi, o que inclui até mesmo o uso do termo, que se tornou comum na metade do século 17 para designar as protagonistas do cenário operístico, a verdadeira era das prima donnas foi o século 19:

Antes, os cantores mais famosos e mais bem pagos, especialmente mas não somente na Itália, eram frequentemente os castrati14, en- quanto no princípio do século XX o destaque passou para os tenores. Entre as eras de Farinelli e de Caruso, no entanto, muitas das mais celebradas eram mulheres: Malibran, Pasta, Grisi, Lind, Patti e outras mais. Seus talentos eram enormes, suas rendas prestigiosas, mas uma análise mais profunda revela o quanto elas, e seus colegas homens, tiveram que trabalhar para atingir essa supremacia. (SNOWMAN, 2009, p.227, tradução nossa)15

As prima donnas, como as conhecemos hoje, são em grande parte resultado das transformações sociais, e seus profundos reflexos na cultura musical, registradas ao longo do século 19. Muitas características e idiossincrasias que observamos hoje na cultura musical são em grande parte produto de um contexto cultural transformado por profundas mudanças no cenário socioeconômico.

13. Responsável por organizar e muitas vezes financiar concertos, peças e óperas; nos termos atuais, o impresário seria algo entre um agente e um produtor executivo. 14. Cantores cujo alcance vocal correspondia aos das vozes femininas, resultado de um processo de castração sofrido antes de atingir a puberdade. A prática atingiu seu ápice nos séculos 18 e 19, até ser proibida definitivamente em 1870 na Itália, último país a abandonar o procedimento. 15. Previously, the most famous and highly paid singers, especially but not only in Italy, had often been the great castrati while by the early twentieth century the mantle was falling on the shoulders of the heroic tenor. Between the era of Farinelli and that of Caruso, however, many of the most celebrated were women: Malibran, Pasta, Grisi, Lind, Patti and the rest. Their talents were enormous, their incomes prestigious, but a close reading of their lives reveals how very hard they, and their male counterparts, worked to achieve their supremacy. 138 DIVAS POP

Novas condições econômicas, tecnológicas e demográficas resul- taram na ampliação do público musical do século 19, em grande parte por conta da ampliação do público burguês urbano que vinha se forta- lecendo e se consolidando cada vez mais, enquanto a aristocracia e os regimes monárquicos viam o aprofundamento das fraturas estru- turais de suas antigas fundações. Uma das consequências imediatas desse processo foi a chamada “ampliação do gosto” (TARUSKIN, 2010; TORRES, 2014): agora, não só novos públicos estavam comparecendo às salas de concerto da época como o circuito de apresentações, antes reduzido quase que exclusivamente aos salões dos nobres e aristocratas, estava se expandindo. Enquanto para os diferentes extratos sociais da população este processo de popularização era percebido de maneiras diametralmente opostas – e trazia consequências diferentes na dinâmica social de seus integrantes - para os artistas significava um aumento potencial de público, que, com a nova (ainda que não tão significativa) variedade de opções, deveria passar a ser conquistado.

O caminho mais garantido para o sucesso não seria mais perseguir um público elitizado, assegurando uma carreira num nicho social ex- clusivo, mas perseguir um público amplo, atraindo muitas pessoas e lotando as salas de concerto. A capacidade de espantar, além da de emocionar, tornou-se primordial. Resumindo, começava a era do virtuoso itinerante, que estamos vivendo até hoje. (TARUSKIN, 2010, p.251, tradução nossa)16

A era dos solistas e virtuose do canto e dos instrumentos, que arre- batavam grupos de seguidores que apareciam para admirar o espetáculo do domínio técnico, era importante para o novo mercado musical e foi indispensável para sua consolidação e avanço como segmento, agora, pela primeira vez na história, realmente independente do financiamento dos mecenas, famílias nobres e aristocracia.

16. The surest road to success no longer lay in reaching high, toward a secure career-niche at the most exclusive social plane, but in reaching wide, ‘packing them in’. The ability to astonish as well as move became paramount. The age, in short, of the itinerant virtuoso as born. We are still living in it. MARIA CALLAS, UMA CASTA CHAMADA DIVA 139

Essa foi a era que viu também o artista ganhar autonomia e, alimen- tando-se do mito do heroi romântico solitário – difundido em grande parte através da literatura –, ascender socialmente como um ser diferen- ciado dos demais, com características quase sobre-humanas e talento inatingível pelos outros meros mortais (BLANNING, 2008; VAZONYI, 2010). Não é coincidência que datem desta época os primeiros regis- tros da utilização do termo “diva”, para descrever estas artistas, que se tornavam cada vez mais independentes e ganhavam cada vez mais influ- ência e poder no cenário operístico e musical (COWGILL E PORISS, 2012). Gravitam em torno do arquétipo de prima-dona todo um conjunto de ideias e expectativas de comportamento associados com vaidade, dramatização, irritabilidade, glamour e caprichos de tal forma que essas imagens se tornam muitas vezes indissociáveis de algumas artistas. Essas são muitas vezes baseadas unicamente em episódios da vida privada que, talvez, se fossem vividos por qualquer outra que não uma celebridade, passariam despercebidos ou não despertariam comoção; é difícil, ao falar de Callas, por exemplo, não mencionar o episódio em que, surpreendida no meio de um ensaio, a soprano cuspiu na cara de um oficial de justiça que a entregava papeis referentes ao processo de um ex-agente (COWGILL E PORISS, 2012; SNOWMAN, 2009). Temperamentais ou não, as divas e prima donnas sempre foram mulheres que nadaram contra a corrente quanto às expectativas e costumes da sociedade, o que por si só, incontáveis vezes ao longo da história, já foi considerado suficiente para estampá-las com algum tipo de carimbo “deslegitimador”, desde bruxa até homossexual. Enquanto mulheres eram proibidas de possuir propriedades em seus nomes até boa parte do século 19, prima donnas do mundo da ópera assinavam contratos que garantiam benefícios e alta renda, garantindo em grande parte sua independência da única opção de caminho para uma mulher da época considerada “de respeito”: o casamento. Apesar da instabili- dade a longo prazo, a maioria delas com reflexos nas vidas pessoal e sentimental, observadas na história de vida das divas e cantoras, essa ainda era uma carreira que oferecia um caminho alternativo e que 140 DIVAS POP

começava a ser cada vez mais respeitada entre as diversas parcelas da sociedade (SNOWMAN, 2009). O culto de adoração a divas na contemporaneidade talvez se deva em grande parte à necessidade de se identificar com modelos que ao mesmo tempo fascinam, desafiam e refletem alguma parte de nós mesmos. Dessa forma, “enquanto suas divas cantam no palco, fãs obediente- mente dublam todas as palavras, projetando seus próprios sonhos em seus ídolos enquanto eles mesmos adquirem uma pequena parte da persona da diva” (LISTER, 2001, p.8). Formada num contexto diferente, tanto pela circunstância social quanto por conta das especificidades da carreira operística, Maria Callas talvez possa não se encaixar perfeita- mente nesse modelo, mas era inegável a identificação e empatia geradas por sua persona, não apenas quando pisava no palco. Maria viveu e trouxe para as suas personagens uma gama de dramas humanos, resultado possivelmente de uma vida permeada por situ- ações que evocavam grande investimento emocional e estimulavam o imaginário do público, como o mal resolvido conflito com a mãe Evan- gelina Dimitriadou – que até o fim da vida se mostrou publicamente como uma mãe injustiçada e abandonada pela filha – o casamento com um homem influente e muito mais velho e o romance com Aristóteles Onassis (MORATÓ, 2010; JELLINEK, 2016; HUFFINGTON, 2002). Os – pelo menos – nove anos de relacionamento com Aristóteles Onassis foram alvo de atenção midiática, conforme coincidiam com o declínio de sua carreira, fosse pelo degaste vocal ou por questões pessoais. A devoção pela ópera, no entanto, se converteu em devoção por Aristóteles, especialmente após interpretar Tosca pela última vez e encerrar sua carreira na ópera definitivamente, em 1965, aos 42 anos. O relacionamento chegou ao fim em 1968, quando Onassis abandonou Maria pela ex-primeira-dama dos Estados Unidos, Jacqueline Kennedy, levando muitos a acreditar que a morte da soprano por uma parada cardíaca, em 1977, teria sido na verdade por causa de um coração partido (BURROUGHS, 1989; HUFFINGTON, 2002). MARIA CALLAS, UMA CASTA CHAMADA DIVA 141

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VAZSONYI, Nicholas. Richard Wagner: Self-Promotion and the Making of a Brand. Cambridge: Cambridge University Press, 2010 Capítulo 7 Autoconstrução, canonicidade e exagero: Lady Gaga no Oscar 2015 Daniel de Andrade Lima

Lembro-me de quando assisti pela primeira vez – e em transmissão ao vivo – a apresentação de Lady Gaga no Oscar 2015. O primeiro contato com a performance se deu antes de seu começo, já que os canais de transmissão nos lembravam repetidamente que em breve assisti- ríamos à participação da cantora prestando homenagem ao filme “A noviça rebelde”, originalmente lançado em 1965 sob o título “The sound of music”. Até mesmo os comentadores dos canais brasileiros, no meu caso da TNT, endossavam - como que para gerar ansiedade - que em breve veríamos Lady Gaga e que, como era de praxe nas apresentações da cantora, não poderíamos saber o que esperar. Lady Gaga foi a última atração musical da noite e performou um número apoteótico, trajando um longo vestido branco, acompanhada de uma orquestra de mais de 20 músicos e com um coral – que entrava de “surpresa” para cantar a última música – igualmente grande, em que realizava um medley das principais músicas do filme homenageado. Sem próteses faciais, maquiagens não-convencionais ou qualquer coreografia evidente, a cantora deslocou os clássicos da década de 1960 para seu corpo de cantora pop de 2015, negociando com o ambiente em que se 144 DIVAS POP

inseria e com as músicas que cantava (e com todo o valor que as acom- panha desde o lançamento do filme). Lembro-me de, junto a um grupo de amigos, assistir à performance afetivamente, numa mistura de surpresa – Lady Gaga não colocava em cena o que esperávamos – e de torcida – a apresentação era ao vivo e as músicas vocalmente demandantes – o que em muito remetia à sensibi- lidade que experimentei em outras circunstâncias ao assistir apresenta- ções cênicas, como números circenses, por exemplo. Olhando para trás e rememorando o início de sua carreira, podemos notar em Gaga uma inclinação à reivindicação de talento e ao lugar de virtuose, seja pela potência dos vocais e habilidade com piano em versões acústicas, seja pela constante lembrança em entrevistas de que ela é musicista e compositora e que, assim, possui uma certa autoridade sobre seu trabalho. Nos dias seguintes à apresentação do Oscar, porém, Lady Gaga, que já vinha adquirindo certo respeito musical fora do pop enquanto gênero musical – no mesmo ano a cantora havia lançado o disco de jazz “Cheek to cheek” (Columbia/Interscope, 2014), em parceria com Tony Bennett – pareceu atingir um maior nível de reconhecimento do público de não-fãs que o que possuía antes da performance. Ela havia se apresentado, pois, num palco global, afirmado midiaticamente enquanto local de grande capital cultural e realizado um número que flertava com sensibilidades e discursos em grande parte normativos. À época, porém, assistindo à performance, e lendo os comentários posteriores em redes sociais e sites de notícia17, havia uma intuição em mim de que a aparição de Gaga, por mais que atendesse aos gostos hege- mônicos da cultura hollywoodiana americana, levava ao palco do Oscar um pouco do monstro e do exagero que a artista fabricara durante seus cinco anos de carreira e que, ao fazê-lo, borrava algumas das fronteiras

17. Uma entrevista, viralizada por diversos sites de notícia, me chamou a atenção e indicou para o caminho que seguiria neste artigo: Stephen Sondheim, consagrado compositor de teatro musical americano e entusiasta declarado de Rogers e Hammerstein II – compositores de A noviça rebelde – se referira à performance de Lady Gaga como sendo uma “farsa semi-operística”, externando um incômodo com a apresentação da cantora. Disponível em: . Acesso em: 8 mar. 2018. AUTOCONSTRUÇÃO, CANONICIDADE E EXAGERO 145 entre artifício e autenticidade. Não à toa, poucas horas antes da apre- sentação, Gaga desfilava no tapete vermelho vestindo um look com estranhas luvas vermelhas, que renderam piadas e memes na internet18. Agora, dois anos depois e vendo os rumos que a carreira de Lady Gaga parece tomar, me proponho neste artigo a refletir sobre o uso que a cantora fez do espaço performático em questão e das possíveis sensibili- dades que podemos investigar a partir da sua performance. Para isso, acho importante frisar que a condição de transmissão ao vivo me parece definidora da apresentação – por isso, fiz questão de iniciar o artigo a partir de uma rememoração da experiência de assisti- -la pela primeira vez – e que o uso do corpo, e, mais especificamente, da voz de Gaga carrega sistemas de valores relevantes para sua legitimação enquanto artista. Por último, gostaria de reafirmar que o contexto da apresentação – a cerimônia do Oscar – e as composições interpretadas – músicas de um filme consagrado pela premiação – são também impor- tantes para as negociações de gosto em voga na performance.

“Gaga canta bem!”: TV e malabarismo vocal Ao abordar as relações e fricções entre performance ao vivo e televisão, Auslander (2008, p. 13, tradução nossa) defende que a última é capaz de “remediar a primeira num nível ontológico a partir da sua reivindicação por imediatismo”19. Ao utilizar o termo “performance ao vivo” (live performance, no original), o autor se refere às performances comumente não-midiatizadas pelos meios de comunicação, como teatro, dança etc. e, ao fazê-lo, cria uma distinção importante entre a

18. As notícias, em sua maioria, falavam do triunfo da sua apresentação e exaltavam o seu visual clássico, em contraponto à piada que teria sido o seu look do tapete vermelho. Exemplos a seguir: 1. UOL: https://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2015/02/23/apos-virar- piada-lady-gaga-triunfa-em-tributo-a-novica-rebelde-no-oscar.htm. Acesso em: 8 mar. 2018. 2. Papel Pop: http://www.papelpop.com/2015/02/lady-gaga-faz-apresentacao- impecavel-no-oscar-2015-montagens-do-vestido/. Acesso em: 8 mar. 2018. 19. Whereas film could only remediate the theatre at these structural levels, television could remediate theatre at the ontological level through its claim to immediacy. 146 DIVAS POP

performance televisionada e a não-televisionada, estabelecendo-as como dois meios distintos. Para Auslander, afinal, a televisão oferece um desempenho em si que se difere da performance ao vivo, e até do cinema, em vários aspectos, apesar de estabelecer relações técnicas, culturais e ontológicas funda- mentais com os meios em questão. Em sua perspectiva, a remediação do teatro e do cinema pela televisão é constante, assim como o fluxo contrário: peças se baseiam, muitas vezes, nas tecnologias e meios midi- áticos em suas execuções, assim como os filmes são frequentemente criados num ambiente de reprodutibilidade que prevê sua remediação e transformação em produto televisivo. Neste fluxo de ideia, a existência de performances midiatizadas altera também as condições de existência da performance não-midiatizada. As formas como são pensados os programas de televisão transmi- tidos ao vivo, assim, dependem de dois fatores que se apoiam, por diver- gência ou harmonização, com premissas do filme e do teatro. Dentre alguns dos aspectos relevantes, podemos destacar que enquanto a TV permite intimidade – como é comum na sensibilidade cinematográfica – ela produz, também, a noção de imediatismo – que é normalmente associada ao teatro –, em oposição ao campo da memória ao qual é asso- ciado o cinema.20 Trago estas reflexões relacionais das performances midiatizadas com as não-midiatizadas por atentar para o fato de que o Oscar, por ser uma premiação – acredito que não à toa – gravada num ambiente teatral, reforça seu senso de imediatismo também a partir da evocação de sensi- bilidades caras ao teatro: como os comentadores não cansam de repetir, tudo acontece ao vivo. Ao mesmo tempo, a premiação parece ser pensada de forma autoconsciente em relação ao meio televisivo, voltando-se não apenas para o público presente na ocasião, mas principalmente para a transmissão televisiva – até as pessoas que estão na posição de especta-

20. Concluindo sua argumentação nesse ponto, Auslander pontua: “Here, film is represented as the realm of memory, repetition, and displacement in time. By contrast, television, like direct human vision (and also like theatre, as Goldsmith (ibid.:56) observes later in his essay) occurs only in the now. Unlike film, but like theatre, a television broadcast is characterized as a performance in the present”. (AUSLANDER, 2008, p. 15) AUTOCONSTRUÇÃO, CANONICIDADE E EXAGERO 147 dores no teatro, os convidados e artistas, colocam suas performances no centro da cena por meio da midiatização; esse ponto é especificamente importante porque oferece recursos técnicos e estéticos que ajudam a guiar os roteiros sensíveis que percorrem a transmissão. Na performance de Gaga, por exemplo, podemos observar que uma vez iniciada a apresentação, o áudio do público é cortado e o jogo de câmeras passa a se concentrar exclusivamente no palco: passeamos pelo rosto e corpo da cantora, por detalhes dos instrumentos da orquestra, pelo exuberante cenário, mas nunca pelas celebridades sentadas ao teatro. Uma vez terminada a apresentação, os microfones da plateia parecem ser acionados e a transmissão passa a se alternar, por alguns momentos, entre Gaga em posição de agradecimento e imagens do público, no qual podemos reconhecer Nicole Kidman, Meryl Streep, entre outras celebridades, aplaudindo de pé e efusivamente. Acredito que esta narrativa construída na TV utilizando o ambiente teatral ajude a legitimar a apresentação de Gaga a partir da reação das celebridades que admiramos e a guiar sensivelmente nossas reações. Esse senso de legitimação se acentua quando pensamos que a própria noção de transmissão ao vivo, que condiciona toda sua lógica de produ- tibilidade, prevê a possibilidade de repetição a qual se opõe; estar ao vivo só existe a partir de uma relação de oposição à reprodutibilidade. Como pontua Auslander: “o próprio conceito de performance ao vivo pres- supõe o conceito de reprodução – que o ao vivo só pode existir dentro de uma economia de reprodução” (2008, p. 57, tradução nossa)21. No caso do Oscar, seja no uso de microfone e no abrir e fechar de cortinas ou no nosso controle de volume no televisor e a constante troca de planos das câmeras, todas as técnicas empregadas reforçam o caráter midiatizado da transmissão. Esta reflexão me leva a crer que apesar de a experiência do Oscar ser construída em torno da fruição do ao vivo, ela pode ser pensada a partir da possibilidade de compor uma memória arquival (TAYLOR, 2013), de ser situada e revisitada historicamente na posterioridade. Assim, a fruição do evento é centrada na experiência televisiva do agora, sendo

21. […] the very concept of live performance presupposes that of reproduction—that the live can exist only within an economy of reproduction. 148 DIVAS POP

montada de forma a evocar uma certa teatralidade – que em muito se relaciona com uma espetacularização das ações –, mas também chega a nós a partir da consciência de que toda exibição carrega o peso de sua possível repetição. Esta noção é importante para que estejamos cons- cientes dos conflitos que são negociados ao assistir uma performance no Oscar: não só estamos lidando com um ambiente que agencia questões mercadológicas e normatiza sensibilidades e gostos, mas também com um local que carrega, na efemeridade da performance televisiva, a legi- timação pelo registro arquival. Acredito que, por essas questões, a experiência gerada pelas perfor- mances do Oscar, e de outras premiações, tem particularidades que ajudam a gerar o impacto global que adquirem quando são exibidas. Seja pela formação de memes com o look do tapete vermelho de Gaga, ou pelo frisson gerado pela possibilidade de um erro vocal, a existência da performance enquanto arquivo garante sua reprodutibilidade e, por isso, ameaça preservar em memória reprodutível um momento presente de frustração, por exemplo. Quando torcemos para que Gaga suceda, afinal, torcemos não só pelo que vemos agora, mas pela possibilidade de sua repetição futura. Essa sensação se torna mais forte quando pensamos que a apresen- tação de Gaga foi inclinada ao malabarismo vocal: a cantora performou as músicas do filme que homenageava no tom original, sendo elas, principalmente as originalmente gravadas por , bastante agudas, se comparadas à extensão normalmente empregada por Gaga em performances transmitidas ao vivo22. Ao fazê-lo, Gaga não só gerou um impacto pelo domínio de notas agudas, como o fez de forma impos- tada e exagerada; optou predominantemente pela voz potente, pelo vibrato23, pela sustentação de notas longas.

22. Em entrevista, Julie Andrews reafirma – em meio a parabenizações e exaltando a dificuldade das músicas – a escolha de Lady Gaga por cantar o medley no tom original, chamando atenção para os ensaios que teoricamente teriam se estendido por dois meses. Mesmo que não tenhamos acesso pleno às informações citadas por Andrews na entrevista, gostaria de chamar atenção para a sua performance de exaltação de Gaga, que ajuda a fortalecer a ideia da dificuldade e do virtuosismo vocal da cantora. Disponível em: . Acesso em: 8 mar. 2018. 23. Efeito vocal que resulta na oscilação de altura (frequência) em torno da nota principal. AUTOCONSTRUÇÃO, CANONICIDADE E EXAGERO 149

Em Performing Rites - on the value of popular music (1996), Simon Frith desenvolve argumentações epistemológicas sobre voz que acredito poderem nos ajudar a analisar a persona performada por Gaga no Oscar a partir do uso vocal empregado pela cantora. No livro, o autor desen- volve que, para pensar voz, podemos abordá-la simultaneamente a partir de quatro categorias: entendendo-a enquanto instrumento musical – para levando em conta suas características de musicalidade –, enquanto corpo – em que podemos compreendê-la enquanto fenômeno da fisi- calidade24 –, como pessoa – sublinhando as relações que comumente fazemos entre identidade, realidade e voz, pontuando a instabilidade25 e possibilidade de criação pessoal a partir da voz – e como personagem – em que aborda a voz enquanto instância imaginativa, associando-a com a incorporação de papeis e principalmente com a relação semântica que estabelece com as canções que performa. Tais categorias aparecem de forma concomitante e simultânea ao ouvirmos uma performance vocal e se harmonizam a partir das singu- laridades de cada contexto sociomusical – Frith afirma que na ópera, por exemplo, a voz tende a se destacar mais enquanto instrumento, em detrimento da invenção de um senso de pessoalidade. Ainda assim, o autor reconhece que, mesmo enquanto instrumento, a voz ainda é dotada de características que as situam socialmente: “vozes não podem ser puramente efeitos sonoros; no mínimo, elas também indicam gênero e, portanto, relações de gênero” (FRITH, 1996. p. 187, tradução nossa)26. Acredito que Gaga, ao cantar, fez das canções mais vocais do que verbais, mais sonoras do que enunciadas; dissecou as sílabas em fonemas

24. Neste ponto, Frith (1996) alude diversas vezes à noção de grão da voz, de Roland Barthes. Ver mais em Barthes (2004). 25. Ao se referir às mudanças da voz, com a idade e demais circunstâncias, bem como instrumento de atuação, o autor pontua: “The voice, in short, may or may not be a key to someone’s identity, but it is certainly a key to the ways in which we change identities, pretend to be something we’re not, deceive people, lie” (FRITH, 1996. p. 197). Em tradução nossa: “A voz, em síntese, pode ou não ser uma chave para a identidade de alguém, mas certamente é uma chave para as formas como nós mudamos de identidade, para como fingimos ser algo que no somos, para como engamos pessoas, para como mentimos”. 26. […] voices can’t be purely sound effects; at the very least they also indicate gender, and therefore gender relations […] 150 DIVAS POP

e favoreceu as reverberações das vogais em relação às articulações das palavras. Nos poucos momentos em que suavizou a voz, quando não o fez nas notas mais graves, o fez em notas agudas e geralmente nos finais dos fraseados, empregando um pianíssimo que quase instantanea- mente nos remete ao controle e à técnica vocal. Mesmo fazendo parte de um público que não compreende a fundo técnicas de canto, sabemos as sensações e os movimentos corporais que envolvem o canto. Como traz Frith ao discutir a percepção da voz enquanto corpo:

A voz como expressão direta do corpo é tão importante para a for- ma como a ouvimos como para a forma como interpretamos o que ouvimos: nós podemos cantar junto, reconstruir em fantasia nossas próprias versões cantadas de músicas, de formas que não podemos fantasiar técnicas de instrumentos – não importa o quão esforçados sejamos com nossas guitarras imaginárias – porque com o cantar, nós sentimos que sabemos o que fazer. Nós também temos corpos, gar- gantas e estômagos e pulmões. E mesmo se não consigamos acertar a respiração, a afinação, as durações das notas (e é por isso que nossas performances só soam bem para nós mesmos), nós ainda sentimos que entendemos o que o cantor está fazendo em princípio físico (esta é outra razão de porque a voz parece - de maneira tão diretamente expressiva - um instrumento: não é necessário esforço mental para saber como o barulho vocal foi fabricado). (Ibidem, p. 192, tradução nossa).27

Assim, percebemos, ao ouvi-la e vê-la cantando, as transições de amplitude empregadas no som vocal que ouvimos, a segurança de seu semblante, o fôlego. A voz expansiva que ouvimos e vemos se formar a partir do corpo de Gaga tende a gerar uma sensação dupla: ao mesmo tempo que deixa a voz cheia e potente, nos lembra constantemente do esforço do canto. O microfone, como pontua Frith, possibilita trazer

27. The voice as direct expression of the body, that is to say, is as important for the way we listen as for the way we interpret what we hear: we can sing along, reconstruct in fantasy our own sung versions of songs, in ways we can’t even fantasize instrumental technique- however hard we may try with our air guitars-because with singing, we feel we know what to do. We have bodies too, throats and stomachs and lungs. And even if we can’t get the breathing right, the pitch, the note durations (which is why our performances only sound good to us), we still feel we understand what the singer is doing in physical principle (this is another reason why the voice seems so directly expressive an instrument: it doesn’t take thought to know how that vocal noise was made). (FRITH, 1996, p. 192). AUTOCONSTRUÇÃO, CANONICIDADE E EXAGERO 151 o público para perto, utilizando as vozes de maneiras que em perfor- mances não-mediadas por esse dispositivo seriam impossíveis, e gerar nuances nas apresentações a partir do domínio da utilização da voz em conjunto com o aparelho de mediação sonora. Ainda assim, Gaga canta, ao microfone e para nossas casas, impositivamente, empregando técnicas e construções vocais que prezam pela potência, pela reverbe- ração no espaço, pelo impacto do som no corpo. Penso que a perfor- mance em questão de alguma forma prioriza a voz da cantora, enquanto instrumento e corpo, nos levando a abordá-la enquanto pessoa a partir dos parâmetros apresentados e construídos performaticamente por Gaga em cena. Ouvimos a voz impostada, a potência, a técnica vocal empregada, os agudos e entendemos, em sua performance, aspectos que reforçam ques- tões performativas28, como feminilidade e branquitude (não associamos a apresentação, por exemplo, ao jazz, ao R&B e a outros gêneros que ajudaram a condicionar a forma de cantar de Gaga em outras ocasiões). Todas essas assimilações que fazemos a partir da voz são reforçadas, também, pelo uso do corpo da artista na apresentação: o longo vestido branco de corpete que delineia seu tronco e a saia longa esvoaçante e densa, o também longo cabelo loiro – ondulado, de forma a gerar movi- mento –, os deslocamentos pelo palco, gerados principalmente por ações de deslizar, as gesticulações dos braços, que variam de contro- ladas, voltadas para dentro e lentas a movimentações firmes, extro- vertidas, amplas e lineares29. Quase tudo nos leva aos ideais de beleza tradicionalmente construídos e reproduzidos na Hollywood clássica e passeia, de alguma forma, entre suas jovens mulheres doces e ingênuas e as outras, divas imponentes.

28. Me refiro aqui à noção de performatividade pensada por Butler (1991), que se refere a um processo de socialização mimético, no qual por meio de reincidências e imitações constantes os indivíduos engendram suas expressões. Ao se referir a gênero, por exemplo, Butler levanta que a partir da performance compulsória e dos processos de repetição e imitação, podemos pensar que o “gênero não é uma performance que um sujeito elege fazer, mas gênero é performativo no sentido que constitui como efeito o próprio sujeito que parece expressar” (BUTLER, 1991, p. 25, tradução nossa). 29. Instrumentalizo aqui alguns conceitos de leitura de movimento do sistema Laban- Bartenieff; para mais aprofundamento procurar Fernandes (2006) e Laban (1978). 152 DIVAS POP

Considero, diante destas reflexões, que a performance de Gaga diante do espaço do Oscar, do ao vivo, da possibilidade de adentrar os arquivos num lugar de legitimação, dos valores construídos em cima das canções que interpreta, produz uma espécie de reivindicação, pelo menos a princípio, de um lugar canônico enquanto cantora. Ajuda a construir nela uma persona que em alguns aspectos difere de suas aparições em diversos prêmios de música pop até então, por exemplo. Faço esse esforço, talvez redundante e óbvio, de construir uma análise da apre- sentação que reforce o seu uso de voz, da técnica e dos artifícios perfor- máticos de construção de beleza e feminilidade, por perceber que há uma tendência de apresentações deste tipo serem enxergadas como uma possibilidade de acesso ao que seria “a verdadeira Lady Gaga”, à cantora em seu estado natural, à voz não processada. De 2015 até agora, e principalmente com o lançamento do álbum Joanne (Interscope, 2016), apresentações mais normativas e que apelam a experiências parecidas com a do Oscar têm se tornado mais comuns na carreira de Gaga, o que tem gerado uma narrativa de que, superfi- cialmente se afastando do monstro, a artista estaria se tornando mais real ou tangível. Em contraponto, o universo ficcional e construído que Gaga coloca em cena é pautado, inclusive vocalmente, numa fabricação que me parece trazer adiante o artifício e que joga com o que já foi cons- truído midiaticamente em torno das imagens que a cantora evoca para compor sua performance – seja o monstro ou a glamourosa e ingênua persona do Oscar. Nesse ponto, penso que a voz, por ter a capacidade de nos remeter de forma imaginativa a um corpo e a uma identidade, ajuda a reforçar auditivamente a Gaga que vemos na cerimônia do Oscar, já que ambos – voz e corpo – produzem em cena características que não esperávamos encontrar em sua performance. Tendo abordado a persona performada por Gaga ao cantar as músicas em tributo ao filme “A noviça rebelde”, que até hoje reverbera e é evocada em aparições da cantora na mídia, partirei a seguir para uma análise que possa tornar mais denso o entendimento que tenho construído até então sobre o canto operístico e exagerado emplacado por Gaga na ocasião e diversas vezes depois. Acredito que, voltando os olhos para os exageros da voz e relacionando-os com sistemas de valores e os corpos que cons- AUTOCONSTRUÇÃO, CANONICIDADE E EXAGERO 153 truímos a partir deles, poderemos entender melhor as nuances sensíveis da apresentação que parecem expressar um lugar canônico da perfor- mance de Gaga. Um lugar que remete ao malabarismo e controle vocal, à feminilidade e à branquitude, trazendo consigo também diversas outras questões socioculturais sobre como entendemos a voz, o desejo e o corpo.

As (nem tão) discretas negociações com o monstro Em The Queen’s Throat: (Homo)sexuality and the Art of Singing, Wayne Koestenbaum (1991) investiga os manuais de canto operístico, principalmente os desenvolvidos durante o século 19, para traçar rela- ções entre os estudos de corpo, sexualidade e voz da época. Segundo o autor,

a cultura da voz (e por extensão, o próprio canto operístico) é inse- parável dos discursos dos séculos XIX e XX sobre o corpo sexual, um emaranhado de coros em que ‘homossexualidade’ era um enorme agente, embora taciturno, afogado por dois discursos irmãos e mais falantes – psicanálise e histeria.” (KOESTENBAUM, 1991, p. 209, tra- dução nossa)30

Em seu estudo, o autor entende por voz operística a voz classicamente treinada, que tem impostação, flexibilidade e controle que se distancia da voz comumente falada31. Ele entende que a voz operística evoca técnicas fisiológicas que produzem sentidos sociais e culturais específicos. Creio que, neste ponto, os estudos de Koestenbaum estabeleçam

30. Voice culture (and, by extension, operatic singing itself) is inseparable from nineteenth – and twentieth-century discourses of the sexual body, a choral entanglement in which ‘homosexuality’ was a major though taciturn player, drowned out by two more talkative sibling discourses – psychoanalysis and hysteria. 31. By operatic singing, I mean what we commonly call the ‘classically’ trained voice – a style of tone production (cultivated for religious and declamatory singing even before opera was invented) whose control, volume and flexibility – its distance from speech, its proximity to the purely instrumental – is now closely linked to opera because opera composers made such protracted and inspired used of it. Whether trained for theater, concert hall, church, or parlor, and whether or not it is draped by plot, set, and costume, this kind of voice is suitable for opera, and thus it connotes all that the ‘operatic’ has come to mean (KOESTENBAUM, 1991, p. 206). 154 DIVAS POP

alguns paralelos com os de Frith (1996), por reconhecer, nos aspectos não-semânticos do canto, relações que se dão por meio das fricções performáticas da voz enquanto corpo, instrumento e pessoa. Como abordado anteriormente, tomo que a apresentação de Lady Gaga, a qual me refiro neste artigo, estabeleceu em sua abordagem vocal diversas relações com o canto operístico e com a cultura que gira em torno dele – tanto pelos aspectos técnico-fisiológicos que o envolvem, quanto pelas características culturais que evoca, do lugar canônico à histeria. Ao se referir às relações com o discurso de histeria e psicanálise, Koestenbaum compreende que os estudos de canto e corpo que afetam o entendimento que temos hoje sobre a voz operística é ambivalente: enquanto por um lado percorre um sistema de construção de valor de beleza, por outro também aborda o aparelho fonador e a voz impos- tada como uma espécie de liberação do corpo, que se associa com a perversão. Sobre esta última questão, o autor destaca que os manuais de canto, que alternam funções entre o adestramento e a liberação vocal, se dirigem geralmente para os não-cantores, numa espécie de papel crítico de legitimação do canto da época, mas também de uma busca por enten- dimento, de fora para dentro, do corpo e da voz que se forma como uma tentativa de cura da mudez.

A impossibilidade de cantar é histérica – as cordas vocais são para- lisadas porque lembram (...) de um trauma anterior –; mas o ato de cantar é tão histérico quanto. Coloratura e mudez são, cada uma, uma forma de conversão histérica. (KOESTENBAUM, 1991, p. 206, tradu- ção nossa)32

De acordo com Koestenbaum, os manuais de canto da época eram simultâneos aos primeiros estudos sobre sexualidade e também às primeiras utilizações do termo homossexual. Desta forma, os paralelos entre os estudos do desejo e da voz são diversos. Nos dois espectros de estudo do corpo – de sexualidade e de voz – os pesquisadores enten-

32. The failure to sing is hysterical (the vocal chords are paralyzed because they remember, as Rosalia cannot, a prior trauma); but singing it self is just as hysterical. Coloratura and muteness are each a form of conversion hysteria. AUTOCONSTRUÇÃO, CANONICIDADE E EXAGERO 155 diam que estavam abordando uma formação criada dentro do corpo, que passava por filtros em direção ao ressonador, num caminho de libe- ração de dentro para fora, passível de repressão e controle. A laringe, ainda, é constantemente vista como feminina e comparada ao órgão vaginal, associada à possiblidade de ser porta de saída, expressão e libe- ração, mas também de entrada, corrupção e penetração. Nessa perspec- tiva, a liberação da voz nos embala à liberação do sexo e a seu potencial perverso; esbarrar com o som vocal é, em parte, esbarrar também com a noção do corpo sexual. A voz de Gaga emplacada no Oscar para ser potente, ressoar e vibrar excessivamente, parece se associar às noções de histeria e perversão que Koestenbaum descreve ao pensar o canto operístico. Se, por um lado, todo canto tecnicamente treinado é perpassado por este lugar de controle/liberação, quando pensamos na apresentação de Gaga, pensamos na gradação de excesso, no drama que ao se tornar mais vocal do que verbal, coloca a forma acima do conteúdo. Sontag (1989), ao abordar a sensibilidade camp33, cita as óperas do bel canto34, período ao qual Koestenbaum se refere para pensar o canto operístico, como sendo ingenuamente camp, por dramaticamente exageradas situarem explo- sões de agudo a cada fraseado da partitura. Penso que há uma relação – como a própria Sontag coloca ao associar a sensibilidade do camp com a produção cultural homossexual e urbana norte-americana – do exagero formal, do drama excessivo, com a perversão e o desvio do corpo, que se situam, em alguns aspectos, em campos estéticos próximos. Assim, parece-me que Gaga, ao evidenciar sua voz operística no Oscar, evocou as questões culturais que a relacionam com a histeria e com a perversão, ao mesmo tempo em que afetou algo demarcado pelo

33. O camp, segundo Sontag, é uma sensibilidade que está associada ao inatural; na predileção pelo exagero. É, assim, “uma maneira de enxergar o mundo como um fenômeno estético. Essa maneira, a maneira do camp, não se refere à beleza, mas ao grau de artifício, de estilização” (SONTAG, 1989, p. 320). 34. O termo bel canto se refere a um estilo da ópera italiana que surgiu no fim do século 17 e teve seu auge durante o século XIX. Em tradução livre, significa “canto belo” e representa uma tradição técnica, expressiva e vocal marcada pelo virtuosismo e grande controle da voz – as composições, em geral, demandam uma técnica ágil. O estilo voltou a adquirir grande espaço a partir dos anos 50 com a presença forte de Maria Callas. 156 DIVAS POP

bom gosto para um campo de farsa – pelo menos para parte do público – que em muito se relaciona com pensar o corpo como desviante. Se pensarmos o comentário de Stephen Sondheim sobre a apresentação, trazido na primeira parte deste artigo, por exemplo, podemos fazer uma relação simples entre as palavras utilizadas para descrever a performance de Gaga: travesty35, ridiculous (ridículo), semi-operatic (semi-operático); elas indicam, juntas, uma noção de forjamento, de construção malsuce- dida, da incorporação mascarada de algo que não é inteiro. Nesse fluxo, se anteriormente pontuei que a performance de Gaga reforçava aspectos performativos, como feminilidade e branquitude, que estão associados às normas do que entendemos por belo, penso que o mesmo canto, as mesmas técnicas e a mesma forma de se encenar, por outro lado, nos permitem pensar a voz pelas suas ambivalências do desvio. Se Gaga construiu feminilidade em cena, o fez de forma exage- rada, levando consigo a perversão e a histeria que por séculos foram associadas à mulheridade; já a branquitude que evocou possui um certo senso aristocrático, visto que a cultura de voz classicamente treinada está associada à garantia de posição de classe, a como indicar refina- mento (KOESTENBAUM, 1991, p. 225). Em meio a esse embate, que negocia o corpo liberado com o controle que é socialmente esperado, a feminilidade em seu estereótipo purista com a perversão do exagero, temos um conflito que ajuda a criar a imagem que guardamos de Gaga a partir da performance do Oscar. Tanto Koestenbaum (1991) quanto Frith (1996) abordam o caráter inventivo da voz e a sua importância para a construção do senso de pessoalidade. Koestenbaum levanta que a voz ajuda no processo de autoinvenção e indica que ela tem papel importante na construção de máscaras – termo que o autor usa de forma astuta para embaralhar a noção de máscara facial, que faz parte do aparelho de ressonância, e a social. Indo adiante, Koestenbaum também entende que a voz reflete de alguma forma o histórico e a situação corrente de vida e treino do indi- víduo. Comparada constantemente a mecanismos de fábricas e envolta em metáforas hidráulicas ou sexuais, o autor percebe que a emissão de

35. Em inglês, o termo travesty, grafado desta forma, não se refere à transexualidade, mas à uma fantasia grotesca, à estética burlesca do exagero; a um fingimento grotesco. AUTOCONSTRUÇÃO, CANONICIDADE E EXAGERO 157 voz tende a ser lida como indicativo do aspecto de saúde e de funcio- namento do sujeito: “a voz não pode evitar a confissão do estado de encanamento do corpo; cantar, como um diagrama, indica se os fluidos e sólidos estão circulando, se o sistema de excreção está funcionando” (KOESTENBAUM, 1991, p. 226, tradução nossa)36. Podemos refletir, a partir disso, que a performance de Gaga no Oscar ajuda, também, a cristalizar a imagem que a cantora já vinha reivindi- cando para si ao evocar, por meio da voz, um roteiro da artista que se constrói a partir do treino, do esforço e domínio sobre o corpo. A voz limpa nos indica um autocuidado que talvez se distancie da máscara grotesca, que muitas vezes era associada por fabulação a um suposto uso de drogas na sua fase mais “monstruosa”. Ela nos coloca diante da noção de eficiência que, ao associar o treino com o cuidado do corpo, pode nos fazer entrar numa lógica de entendimento do corpo enquanto economia37. Ainda assim, não podemos esquecer que o monstro que Gaga criou ao longo de sua carreira aparece, em meio às tensões, na performance do Oscar. Até mesmo seus gestos, com as repetições do ato de alisar os cabelos, por exemplo, parece passar por um processo mimético de incor- poração da feminilidade estereotipada que, por repetição, é afetado pela mecanicidade. O contato com a apresentação de Gaga, assim, nos leva a refletir sobre seu processo de construção corporal e vocal que é demar- cado constantemente pelo excesso; seja por reforçar no seu universo ficcional características que se borram com noções identitárias, como as categorias mulher e branca, ou por levar à cena uma forma de encenação vocal que indica o percurso do treino.

36. Voice can’t help but confess the state of a body’s plumbing; singing, a flow chart, indicates if fluids and solids are circulating, if the waste system is functioning. 37. Estou aqui amarrando alguns dos apontamentos de Koestenbaum. No texto, ele afirma que “Of course, voice not only describes the system, but makes the system sensational and sonic – encouraging us, thereby, to love (to quiver as we hear) the ideology of body-as- economy”. (KOESTENBAUM, 1991, p. 226). Em tradução nossa: “Claramente, a voz não só descreve o sistema, mas o faz ser sensível e sônico – nos encorajando, portanto, a amar (a tremer enquanto ouvimos) a ideologia do corpo-como-economia”. 158 DIVAS POP

O ciborgue de Gaga: considerações finais Pensar a voz como componente importante da fabulação do corpo e da construção de personas é importante por nos permitir entender a aparição de Gaga como sendo mais uma das construções de personagem a qual temos acesso a partir da performance de Lady Gaga como um todo. Ainda assim, o material vocal é comumente associado à noção de autenticidade e, por nos levar a entendimentos culturais sobre o corpo e seus processos de construção, bem como por carregar na emissão a ideia de um processo de exteriorização, borra as linhas da ficcionalidade. Iniciei este texto pontuando as questões da experiência pessoal que tive com a performance de Lady Gaga, no Oscar 2015, tentando inves- tigar os possíveis fatores que ajudaram a contribuir com a repercussão provocada pela apresentação da artista. Juntando as peças, pensando a relevância do ao vivo para a experiência, a vocalização que ajuda a afirmar questões performativas e as tensões culturais do canto operís- tico, acredito que grande parte da relevância da performance para a investigação que venho construindo parte da construção de valor que a cerceia; seja pela música que evoca lugares canônicos, pelo uso de voz e corpo ou pela circunstância da apresentação – uma das premiações mais importantes da indústria cultural na atualidade. Somado a tudo isso, creio que a persona composta por Gaga e performada no palco do Oscar baseia-se principalmente na sua consolidação como uma artista prepa- rada tecnicamente para o alto rendimento. Sua performance, assimilada com as normas de gênero e raça, parece ser pautada em levar à cena um corpo que é, em vários aspectos, infalível. Esta imagem do corpo belo e bem produzido e da voz pura e treinada – borrados principalmente pela repetição e pelo excesso de dramaticidade formal – parece nos apontar constantemente para a sua construção. Isto me leva a pensar que uma abordagem possível para, de alguma forma, amarrar a imagem que Gaga leva à cena seja a do ser humano que age sob um entendimento de si “ciborguiano”, como proposto por Donna AUTOCONSTRUÇÃO, CANONICIDADE E EXAGERO 159

Haraway (2016)38. Originalmente, a autora evoca a imagem do ciborgue para pensar um manifesto que toma a ironia como forma e que pretende pensar um feminismo comprometido com o materialismo marxista, se valendo da relações sociais da ciência, mas que se distancie dos mitos de origem de organicidade que tendem a ser essencialistas. Entendo, porém, que a imagem do ciborgue também nos leva a pensar sobre uma forma de estar no mundo que é associada a autoconstrução por meio da técnica. Mais ainda, nos faz refletir sobre as nossas subjetividades, que são atravessadas por uma forma de construir valor em torno da eficácia. Se os fãs de Gaga enxergam sua participação no Oscar, e outras ocasiões parecidas, como uma possibilidade de acesso ao que seria seu eu autêntico, penso que enxergá-la, em certos aspectos, como uma performance ciborguiana permite-nos abrir mão do seu mito de origem, de que ela possui características essenciais e não fabuladas e que, portanto, haveria um ponto de retorno ao qual supostamente pode- ríamos ter acesso. Só conhecemos Gaga, inclusive, por meio da técnica, dos meios de comunicação e dos artifícios que ajudam a formá-la diante de nós, mesmo quando estamos correndo atrás de sua materialidade e daquilo que, assim, teoricamente e de alguma forma, antecederia sua autocriação.

38. Donna Haraway (2016) evoca a ficção do ciborgue como uma forma de pensar a noção de humanidade; para a autora, a subjetividade dos sujeitos tem sido construída em torno de um entendimento de si que é atravessado pelo universo técnico-tecnológico que produzimos, sendo autorreferente a partir de metáforas e analogias com os dispositivos tecnológicos que criamos. Apesar de passar por um longo processo em que reflete sobre as tensões de poder da ciência com a sociedade e refletir sobre as vertentes do feminismo, apontando o entendimento ciborguiano como uma saída para algumas das crises que enxerga no movimento, Haraway pensa o ciborgue como um monstro que borra as fronteiras entre maquinação e animalidade. Em uma de suas conclusões, ela discorre de forma especificamente relevante para pensar a conclusão que desenvolvo sobre a performance de Gaga: “Nossos corpos são nossos eus; os corpos são mapas de poder e identidade. Os ciborgues não constituem exceção a isso. O corpo do ciborgue não é inocente; ele não nasceu num Paraíso; ele não busca uma identidade unitária, não produzindo, assim, dualismos antagônicos sem fim (ou até que o mundo tenha fim). Ele assume a ironia como natural. Um é muito pouco, dois é apenas uma possibilidade. O intenso prazer na habilidade – na habilidade da máquina – deixa de ser um pecado para constituir um aspecto do processo de corporificação. A máquina não é uma coisa a ser animada, idolatrada e dominada. A máquina coincide conosco, com nossos processos; ela é um aspecto da nossa corporificação” (HARAWAY, 2016, p. 96). 160 DIVAS POP

O uso da mídia e do dispositivo da transmissão ao vivo, que consegue amplificar a voz de Gaga, aproximar-nos de seu corpo e dançar junto com seus movimentos fluidos, é o contato que temos enquanto espec- tadores com a voz e corpo de Gaga. Penso que a construção de Gaga, assim, dá-se não só por meio dos artifícios e técnicas corporais, mas pelo uso da tecnologia dos dispositivos midiáticos. A imagem que temos de Gaga é, então, pautada na mediação tecnológica que nos une e nos permite percebê-la. A perversão do exagero que constitui sua performance, que está associada à liberação do corpo, é também parte do que constitui a cano- nicidade da sua voz e ajuda a construir a densidade que é gerada por sua performance. Da mesma forma que temos um contato com Gaga que é atravessado pela eficiência e pela super voz, estabelecemos também a relação com os seus excessos, em uma experiência que nos faz refletir sobre nossos corpos e nossos processos de repressão – sobre como nos distanciamos ou nos aproximamos dos gostos com que Gaga negocia, se assimila e profana. Diante de tudo isso, talvez assistir e pensar a performance de Gaga na cerimônia do Oscar, conhecendo-a pela carreira que constituiu até então, seja dar de cara com os artifícios em que se baseia e evidenciar que, por fazer parte de um universo maquinado, a artista consiga encenar histó- ricos biográficos que redesenham, ainda que de forma confusa e confli- tuosa, a percepção que temos sobre sua própria materialidade. AUTOCONSTRUÇÃO, CANONICIDADE E EXAGERO 161

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III Vidas, mercados, afetos

Capítulo 8 This is show business: a cultura dos mega- espetáculos pop e a invenção do “padrão Madonna” Mariana Lins

Ao longo das últimas quatro décadas, a realização de shows e turnês ganhou protagonismo no escopo estratégico da indústria musical, em função da crise nas vendas de discos e das novas dinâmicas de mercado impostas pela internet. Face ao declínio da receita proveniente do álbum fonográfico, a performance ao vivo, ao lado dos investimentos em publi- cidade, tornou-se o foco das carreiras de praticamente todos os artistas mainstream. No entanto, para as cantoras pop, antes mesmo da crise, o show já adquirira um papel determinante para sua sobrevivência no segmento, já que é no palco onde se materializa o conjunto de elementos neces- sário para distingui-las entre os outros artistas que orbitam a indústria do entretenimento. Entre esses elementos, estão o conceito estético, a narrativa, a música, a dança, os bailarinos, a cenografia, as trocas de figurino e tudo aquilo capaz de flexibilizar os limites da noção do que seria um tradicional show de música. Não se trata, portanto, de artistas interessadas em apenas apresentar suas canções ao público, cantando e/ou tocando, mas de uma perfor- mance que envolve a teatralização extrema desse repertório, produ- 166 DIVAS POP

zindo uma estética que não se restringe somente ao aspecto musical – a virtuose, por exemplo –, senão também a uma gramática cênica e sonora particular. No terreno da música pop, a consagração dos espetáculos musicais de grande porte acontece, nos anos 1980, com dois nomes do mainstream norte-americano: Michael Jackson e Madonna. A magnitude técnica e visual do formato de shows consolidado por eles tem orientado boa parte dos artistas que os sucederam, tornando a cantora Madonna possivelmente a referência mais sólida nesse cenário, dado o refinamento de suas produções, os números expressivos de bilheteria e a longevidade na carreira1. A artista cristalizou o que se confirmaria como uma espécie de padrão de show pop, seguido por cantoras como Britney Spears, Beyoncé, Katy Perry, Miley Cyrus e Ariana Grande, no qual é criada uma narrativa costurada por blocos temáticos, identificados por diferentes cenografias, figurinos, coreografias e encenações, durante aproximadamente duas horas (LIMA, 2017). Tal modelo de apresentação parece guardar semelhanças com a tradição de espetáculos musicais de teatro popularizada pela Broadway2, no início do século 20, coincidindo também com a ascensão da cultura do entretenimento (show business) nos Estados Unidos. Diante disso, proponho aqui oferecer um panorama para tentarmos compreender a construção histórica da ideia de show que vigora na música pop, atual- mente, discutindo também a consolidação desse tipo de espetáculo na trajetória da cantora Madonna.

1. Em atividade desde 1982, a cantora já realizou um total de 10 turnês internacionais: The virgin tour (1985), Who’s that girl tour (1987), Blond ambition tour (1991), Girlie show tour (1993), (2001), Re-invention tour (2004), (2006), Sticky & sweet tour (2008), MDNA tour (2012) e tour (2015). A Sticky & sweet tour é considerada atualmente a maior turnê de um artista solo da história, segundo a revista Rolling Stone, e a terceira maior de todos os tempos, atrás das de Rolling Stones e U2. Disponível em: . Acesso em: 7 mar. 2018. 2. Localizada em Nova York (EUA), a avenida Broadway é célebre por concentrar os principais teatros de Manhattan, desde o século 19, no que ficou conhecido como Theater District. THIS IS SHOW BUSINESS 167

A Broadway e o teatro musical Originado na Inglaterra, após a Restauração da monarquia, em 1660, numa época em que a realeza britânica só permitia oficialmente a reali- zação de espetáculos de canto e dança, o teatro musical começa a se desenvolver a partir de encenações de óperas e “operetas” – obras leves, cômicas e permeadas por canções integradas à ação (HELIODORA, 2008). A partir do século 19, o gênero, já popular no Reino Unido, é então exportado para os palcos norte-americanos e tem como registro de primeira montagem “The Black Crook”3, peça datada de 1866, que carrega elementos do vaudeville4, porém conectando de forma um pouco mais coesa a música e a dança com a narrativa. Ao final do século, prati- camente todos os espetáculos musicais produzidos nos Estados Unidos replicavam a fórmula inspirada no vaudeville, servindo principalmente como veículos para difundir a música popular e promover “shows de habilidades” (WOLLMAN, 2006). Considerado uma forma menor de entretenimento, pelo seu formato heterogêneo e endereçamento às classes mais populares, o vaude- ville também recebia críticas por ser apresentado em teatros luxuosos, exageradamente opulentos, a um público “não digno” de valor (GLASS, 2015). O gênero prevaleceu na Broadway até a emergência do cinema, em meados da década de 1930, na medida em que boa parte dos teatros foi transformada em salas de exibição de filmes, provocando também a migração de atores “vaudevillianos” para a nova mídia em ascensão, como aconteceu com Charlie Chaplin, Mae West e Gene Kelly. É oportuno observar que a forma de estruturação do espetáculo vaudeville – dividido em atos distintos, sem unidade, com performances de tipos variados – pode ser considerada um embrião do modelo de shows pop “blocados” que se consolidaria nos Estados Unidos no século

3. O espetáculo é baseado no livro homônimo do dramaturgo norte-americano Charles M. Barras (1826-1973), com músicas de Giuseppe Operti (1853-1886) e George Bickwell (1815-1891). 4. Gênero teatral de entretenimento, de inspiração francesa, que se populariza nos Estados Unidos após a Guerra Civil Americana (1861-1865), no final do século 19, com espetáculos que incluíam números burlescos, mágicos, acrobatas, cantores, cenas de peças, entre outras atrações variadas e sem muita conexão entre si. 168 DIVAS POP

20. Além disso, a estética burlesca circunscrita pelo gênero também parece apontar traços notadamente incorporados aos megaespetáculos atuais, como o estilo extravagante, paródico, sensual e, muitas vezes, grotesco, tanto da narrativa quanto da mise-en-scène. De raiz italiana, o termo “burlesco” tem origem na palavra “burla”, que significa “brincadeira”, “zombaria”, definindo o caráter essencial- mente satírico das performances dessa natureza. A predominância das artistas femininas, segundo Allen (1991), também se tornou uma das marcas desse tipo de espetáculo.

[...] podemos dizer que o burlesco é uma das várias formas de entrete- nimento do século 19 fundamentadas na estética da transgressão, da inversão e do grotesco. O artista burlesco representa uma construção do que Peter Stallybrass e Allon White chamam de low other (“outro baixo”): algo que é insultado e excluído da ordem social dominante como degradado, sujo e indigno, mas que é simultaneamente objeto de desejo e/ou fascínio. Como diziam, “o low other é desprezado e negado ao nível de organização política e do ser social na medida em que é instrumentalmente constituinte dos repertórios imaginários compartilhados da cultura dominante”. (ALLEN, 1991, p. 26, tradu- ção nossa)5

No rastro da tradição “vaudevilliana”, através da qual o burlesco ganha projeção em Nova York, o cabaré6, outro gênero de filiação fran- cesa, emerge unindo música, dança, comédia e teatro em performances apresentadas em nightclubs (casas noturnas), enquanto o público bebia ou jantava, acomodado em suas respectivas mesas. Durante o período

5. […] we might say that burlesque is one of several nineteenth-century entertainment forms that is grounded in the aesthetics of transgression, inversion, and the grotesque. The burlesque performer represents a construction of what Peter Stallybrass and Allon White call the “low other”: something that is reviled by and excluded from the dominant social order as debased, dirty, and unworthy, but that is simultaneously the object of desire and/or fascination. As they put it, “the low-other is despised and denied at the level of political organization and social being whilst it is instrumentally constitutive of the shared imaginary repertoires of the dominant culture”. 6. Gênero de origem francesa, que se populariza no século 16. THIS IS SHOW BUSINESS 169 da Lei Seca7, entre 1920 e 1933, muitas dessas casas de show, também conhecidas como speakeasies, funcionaram na clandestinidade, por venderem bebidas alcoólicas de forma ilegal e abrigarem apresen- tações de conjuntos de jazz, um gênero musical então marginalizado pela sociedade norte-americana. Duas das principais artistas de cabaré mais lembradas no mainstream são Josephine Baker e Marlene Dietrich, figuras que inspirariam as performances e a concepção visual dos shows de inúmeras “divas pop”, em especial os da cantora Madonna8. É somente a partir da década de 1920, que compositores como George e Ira Gershwin, Oscar Hammerstein II, Irving Berlin e Cole Porter passam a criar peças nas quais a integração entre música e enredo é, de fato, completa. As canções combinadas com os números de dança conseguem produzir personagens mais complexos e contar histórias mais sofisticadas do que as interpretadas nos espetáculos vaudeville, que a essa altura já não gozavam do mesmo prestígio de antes. É o caso das composições nos musicais “Show Boat” (1927), de Hammerstein II; “Anything Goes” (1934), de Porter; e “Shall We Dance” (1937), dos irmãos Gershwin, todos encenados na Broadway.

Tin Pan Alley: a invenção do show business Há uma certa dificuldade de delimitar onde começam ou terminam as influências dos gênerosvaudeville , burlesco e cabaré no formato do teatro musical que se expande, nos Estados Unidos, na primeira metade do século 20. Entretanto, um fator de economia estética parece atravessar boa parte dessas expressões, numa época em que ainda não havia grava- doras, discos, selos e o que se conhece hoje por indústria fonográfica: o

7. Por 13 anos, a Constituição dos Estados Unidos determinou a proibição da fabricação, comércio, transporte, exportação e importação de bebidas alcoólicas, numa tentativa de amenizar os problemas relacionados à pobreza e a violência no país, por meio da 18ª Emenda. 8. Em 1993, Madonna homenageou Marlene Dietrich durante um bloco da turnê The Girlie Show, vestindo smoking, como a artista costumava fazer, e cantando a música “Like a Virgin” numa versão cabaré, em sotaque alemão. Entre 1990 e 2015, a cantora também incluiu blocos temáticos de cabaré, referenciando as estéticas de Marlene Dietrich ou Josephine Baker, em pelo menos outras quatro turnês – Blond Ambition (1990), Re- Invention (2004), MDNA (2012) e Rebel Heart (2015). 170 DIVAS POP

Tin Pan Alley. O termo designa os primeiros editores de música norte- -americana, cujos escritórios se concentravam numa rua conhecida pelo mesmo nome, localizada na região da Broadway (JASEN, 2003). Lá, eles produziam, publicavam e coordenavam a distribuição de partituras de música popular, com finalidade comercial, para diversas cidades do país, como , e Baltimore. Entre 1880 e 1950, os editores do Tin Pan Alley operaram sobre- tudo em Nova York, servindo-se do teatro musical como principal meio de divulgação das faixas compostas pelos seus contratados. No início, como ainda não havia discos, o público não podia comprar suas canções favoritas, gravadas, para ouvir em casa, mas existia a possibilidade de adquirir a partitura para tocá-las quando quisesse. As músicas, portanto, tinham de ser executadas ao vivo, como explica Jasen (2003), para que as pessoas se interessassem em comprar as partituras:

A música era apresentada e promovida em partituras para voz e pia- no. O público era induzido a comprar as partituras quando via e ouvia seus artistas favoritos incorporarem as canções em seus atos, primei- ro no teatro e no vaudeville, depois através de gravações (primeiro em cilindros, depois em discos planos que giravam a 78 rotações por minuto), e depois no rádio, nos filmes e finalmente na televisão. (JA- SEN, 2003, p. 11, tradução nossa)9

O modelo de capitalização musical instituído pelo Tin Pan Alley parece um protótipo para o sistema de produção, edição, promoção e circulação que a indústria fonográfica estabeleceria em alguns anos. Dentro dessa lógica, a performance ao vivo torna-se fundamental para o êxito das vendas e o crescimento da demanda pelas canções, que eram comercializadas pelos “song pluggers” – pessoas destacadas para convencer músicos e cantores a tocarem os lançamentos e, assim, divulgá-los entre o público.

9. The music was presented and promoted in sheet music for voice and piano. The public was induced to purchase the music sheets when they saw and heard their favorite performers incorporate the songs in their acts, first in the theater and in vaudeville, then through recordings (first on cylinders, then on flat discs that turned at 78 revolutions per minute), and later on radio, then in films, and finally on television. THIS IS SHOW BUSINESS 171

O teatro musical então era a vitrine ideal para os compositores, já que oferecia a chance de explorar outros recursos que não apenas voz e piano, sofisticando a execução de seus repertórios no palco, com ceno- grafia, figurinos, coro, bailarinos etc. Irving Berlin, Cole Porter, Oscar Hammerstein II e George M. Cohan, este último considerado o “pai do musical norte-americano”10, eram alguns das dezenas de nomes que integravam o Tin Pan Alley e utilizavam o teatro como principal plata- forma para promover seu material. A atuação do grupo de editores musicais nova-iorquino gerou o que seria conhecido como “show business”, na seara do entretenimento, e propiciou a formação de uma cadeia de produção artística que movi- mentava substancialmente a economia da Broadway. Durante cerca de 70 anos, o Tin Pan Alley funcionou como berço da música popular dos Estados Unidos, contribuindo para sua massi- ficação em todo o país, além de implementar um modelo de negócio que se perpetuaria por décadas. Mesmo com o fim de suas atividades, em virtude do desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, o legado do Tin Pan Alley constitui a primeira amostra do que seria a “música pop” no futuro e reúne alguns dos maiores clássicos da canção norte-americana, como “Give my regards to Broadway” (1904), de George M. Cohan, “God bless America” (1918), de Irving Berlin, e “Happy days are here again” (1929), de Milton Ager e Jack Yellen.

O espetáculo Pensar a performance pop no palco, a partir das influências do teatro musical da Broadway, coloca-nos diante da necessidade de traçar alguns paralelos entre os dois formatos. Antes, contudo, é preciso que se diga que o surgimento do rock’n’roll, na década de 1950, afetou signi- ficativamente a dinâmica dos musicais nova-iorquinos. Como aponta Wollman (2006), o rechaço dos compositores da Broadway em relação ao rock impediu que a sonoridade dos musicais se renovasse, afastando

10. Os espetáculos vaudeville de George M. Cohan introduziram uma vitalidade até então inédita aos musicais, engajando de forma pioneira a narrativa com a composições, a exemplo das produções “Little Johnny Jones” (1904) e “Forty-five minutes from Broadway” (1906). Ver mais em FEWSTER; SHANG; SZUDEK (2015). 172 DIVAS POP

o público mais jovem dos teatros e contribuindo para a iminente deca- dência do Tin Pan Alley.

Inicialmente convencido de que o rock’n’roll era uma moda vulgar e barulhenta que se desvaneceria com o tempo, os compositores de teatro da Broadway simplesmente ignoraram o novo gênero musical. No entanto, no final da década de 1950, o rock’n’roll continuava ape- nas a ganhar impulso, enquanto o Tin Pan Alley estava, sem dúvida, desaparecendo. Um motivo especial de preocupação entre os com- positores da Broadway era o fato de que, enquanto o Tin Pan Alley tradicionalmente atendia a públicos de todas as idades, o rock ‘n ’roll era quase exclusivamente o domínio dos jovens. Na Broadway, a ida- de média das audiências começou a subir, e o musical americano “se tornou teatro para uma América Eisenhower complacente”. (WOLL- MAN, 2006, p. 13, tradução nossa)11

A reconciliação do teatro musical com o rock só aconteceria no final dos anos 1960, após a origem dos conceitos de “rock musical” e “rock opera” a partir de produções como “Hair” (1967), de James Rado e Gerome Ragni, e “Jesus Christ superstar” (1971), de Andrew Llloyd Webber. Ambos carregavam influências estéticas do rock, mas a prin- cipal diferença, segundo Wollman (2006), era a quantidade de diálogos cantados em cada um; o primeiro possuía um número razoável de diálogos falados, enquanto no segundo todos eram musicados. O show pop como se conhece hoje, portanto, parece o produto das muitas transformações que o teatro musical vivenciou e da importância que a ideia de show business adquiriu nesse processo. Em razão disso, não seria imprudente reafirmar o quanto a performance ao vivo das cantoras pop contemporâneas é atravessada esteticamente pela tradição musical da Broadway, evocando padrões e formatos que se expandiriam, para além do tablado, em grandes estádios por todo o mundo. Não por acaso,

11. Initially convinced that rock ’n’ roll was a noisy, vulgar fad that would fade with time, Broadway’s theater composers simply ignored the new musical genre. Yet by the end of the 1950s, rock ’n’ roll was only continuing to gain momentum, while Tin Pan Alley fare was, without question, dying away. Of particular cause for concern among Broadway composers was the fact that while Tin Pan Alley had traditionally catered to audiences of all ages, rock ’n’ roll was almost exclusively the domain of the young. On Broadway, the average age of audiences began to rise, and the American musical “became theater for a complacent, Eisenhower America”. THIS IS SHOW BUSINESS 173

é comum que os shows pop sejam referidos como “espetáculos”, seja na imprensa especializada ou entre o público, por agregarem técnica e visu- almente aspectos que extrapolam os shows de música convencionais. A grosso modo, a estrutura basilar de um espetáculo musical de teatro, de acordo com Kenrick (2003), é composta por libretto (the book) e partitura (score), numa história que se desdobra ao longo de dois atos, com um interlúdio entre eles. O libretto, também presente nas óperas, é considerado o elemento mais importante, pois orienta a narrativa, reunindo a música, os diálogos e a história; seria uma espécie de roteiro. Normalmente, ele é escrito ao mesmo tempo em que se compõe a parti- tura, já que esta define o plot (arco central) para o desenvolvimento dos personagens em cena junto à música e à coreografia. Ela combina uma variedade de estilos musicais suficiente para contemplar diferentes momentos e emoções gerados ao longo do espetáculo – canções lentas, românticas, cômicas, dançantes etc.

Broadway em Madonna Analisando o modelo de show pop atual, sobretudo o que a cantora Madonna começa a realizar a partir dos anos 1980, é possível identificar vários pontos de convergência com o que se produz nos musicais norte- -americanos. Estruturalmente, quase todos os seus shows são divididos em quatro atos – com exceção do primeiro, The virgin tour (1985), e do segundo, Who’s that girl tour (1987). Mesmo sem aderir ao formato que perduraria por décadas, as turnês iniciais já contavam com outros elementos, característicos da Broadway, que marcariam os espetáculos de Madonna: narrativa pontuada por trocas de figurino a cada duas ou três músicas, mise-en-scène, bailarinos e encenações. No decorrer dos anos, profissionais do teatro, como os cenógrafos Jerome Sirlin e John McGraw, o designer de iluminação Peter Morse e o coreógrafo Vincent Paterson foram integrados à equipe de criação, tornando-se peças fundamentais para o “desenho Broadway” conferido aos shows. É o que Paterson explica, em entrevista ao jornal New York Times, durante a turnê Blond ambition (1990): 174 DIVAS POP

Vincent Paterson, o coreógrafo que co-dirigiu o show com Madonna (e que dirigiu e coreografou a turnê Bad de Michael Jackson), nota que “hoje, nós pensamos no visual tanto quanto na música”. Ao con- trário da turnê de Jackson – que, apesar de fortemente orientada para a dança, usava um formato tradicional de concerto de rock – a ideia por trás da Blond Ambition era combinar música, arte performática e dança, além de uma grande dose de truques teatrais utilizados na Broadway. [...] Em seus cenários, desenvolvidos num período de cin- co meses e executados por John McGraw, o cenógrafo, e Peter Morse, o designer de iluminação, o desafio de Ciccone [diretor do show] era “tornar o espetáculo teatral sem alienar o público”. Como ele mesmo reconhece, é uma linha tênue, já que a força tradicional de um show de rock’n’roll era o artista em frente a um microfone que se ligava pouco espontaneamente ao público. (BROWN, 1990, p. 24, tradução nossa)12

Como se pode notar, há uma clara preocupação em afastar esteti- camente a performance da cantora dos shows de rock convencionais. A teatralização da música pop no palco torna-se, então, um traço de distinção entre os dois gêneros, na medida em que gera um processo comunicativo social regido pelo corpo e por uma retórica gestual que abarca não apenas a voz e o movimento, mas um vasto repertório de linguagem e iconografia (FRITH, 1996). Em Madonna, a articulação desses fatores resulta numa performance que Frith (1996, p. 205) define como sendo “não uma maneira de agir, mas de posar”, dialogando com a habilidade do público em compreendê-la ao mesmo tempo enquanto objeto (de sedução ou repulsa) e sujeito – algo muito próximo do que se passava com os artistas burlescos, no século 19.

12. Vincent Paterson, the choreographer who co-directed the show with Madonna (and who directed and choreographed Michael Jackson’s ‘’Bad’’ tour), notes that ‘’today, we think of the visual as much as the song.’’ In contrast to Mr. Jackson’s tour - which, though heavily dance-oriented, used a traditional rock concert format - the idea behind ‘’Blond Ambition,’’ he said, was to combine music, performance art and dance, along with a major dose of theatrical tricks used on Broadway. [...]In his set designs, which evolved over a five-month period and were executed with John McGraw, the set designer, and Peter Morse, the lighting designer, Mr. Ciccone’s challenge was to ‘’make the show theatrical without alienating the audience.’’ As he is the first to acknowledge, it’s a fine line, since the traditional strength of a rock-and-roll concert has been the artist standing in front of a microphone bonding somewhat spontaneously with the audience. THIS IS SHOW BUSINESS 175

É a partir de 1990, com a turnê Blond ambition, que o formato de espetáculo teatral é incorporado oficialmente aos shows de Madonna, com poucas alterações ao longo dos anos. A estrutura consiste em quatro blocos temáticos, separados por três interlúdios – normalmente mistu- rando números de dança e vídeos backdrops13 –, com arcos narrativos em cada um dos blocos. Embora diferentes, todos eles estão integrados à narrativa maior do show, que originalmente se propõe a contar alguma história, passando pelas etapas de introdução, conflito/crise, clímax e desfecho, com pouco ou nenhum espaço para improvisos. Além do arco dramático, outra familiaridade com o teatro musical é a maneira como são utilizados os recursos cenográficos. São em média cinco trocas de cenários14, sete de figurino, várias inserções acrobáticas e efeitos especiais. Os shows também contam com um número expres- sivo de bailarinos (incluindo a própria cantora) que inicia com sete, na Blond ambition tour, e chega a 21 na Re-invention tour (2004), mantendo a média de 20 até a (2015). Outro ponto interessante de observar é o posicionamento da banda no palco. Com exceção das duas primeiras turnês, em 1985 e 1987, os músicos ficam quase sempre à sombra, ao fundo ou lateralmente, pouco expostos aos olhos do público. Na Broadway, os teatros mantêm a área conhecida como “orchestra pit”, geralmente na frente e um pouco mais abaixo do nível do palco, não apenas para acomodar a orquestra de forma adequada, mas de maneira a proporcionar melhor experiência acústica para a plateia. Essa loca- lização se altera no teatro, conforme a dinâmica de cada espetáculo, e pode vir a instalar a orquestra ao fundo também. Nos dois casos, para além da qualidade sonora, parece haver certo interesse em camuflar a origem da música, privilegiando a performance dos atores em cena, em detrimento da dos músicos. Em Madonna, acontece o mesmo. Ao contrário dos clássicos shows de rock, em que a banda é o eixo da performance e também o elemento de distinção, a aproximação do pop com a estética do teatro musical

13. São videoartes ou videoclipes, produzidos especialmente para o show, que costumam ser projetados nos telões do palco durante os interlúdios. 14. Esse número cresce quando os cenários passam a ser substituídos pelos telões e estruturas móveis em LED. 176 DIVAS POP

subverte essa lógica. A exceção acontece apenas quando há algum número inspirado no cabaré, pois requer o piano e o músico em cena, junto a Madonna. No mais, a banda toca em “segundo plano”, favore- cendo o protagonismo da cantora e seus bailarinos, sem haver, inclusive, o ritual de agradecimentos ou apresentação dos membros no final. Em paralelo aos shows, desde a primeira turnê, em 1985, os fãs têm a possibilidade de adquirir, nos locais das apresentações, um artigo oficial bastante apreciado entre colecionadores: o tour book. Trata-se do programa do show, em formato de livro, que inclui um ensaio fotográfico promocional, a ficha técnica completa e, eventualmente, detalhes sobre alguns aspectos criativos. O tour book carrega um pouco do conceito do libretto e dos tradicionais programas de peças, vendidos na Broadway, embora mais sofisticado editorialmente e endereçado aos aficionados pelo artista. Por isso mesmo, figura entre os itens mais disputados do catálogo de merchandising da cantora.

“Padrão Madonna” O modelo de show realizado por Madonna tem norteado as perfor- mances ao vivo das cantoras pop, há pelo menos três décadas. O que parecia ser uma reinvenção estética, fortemente inspirada na cultura dos musicais da Broadway, tornou-se um modelo de negócio milionário na indústria, que segue aplicando a fórmula, com poucas alterações, até os dias de hoje. Em meio à gramática cênica do show business, surgiu também uma cadeia produtiva especializada, que não mais recorre aos nomes da Broadway para adaptar aos estádios e arenas o que funciona no teatro. Atualmente, há engenheiros, arquitetos, iluminadores, dire- tores de arte, coreógrafos, designers, figurinistas, entre outros profissio- nais, exclusivamente dedicados aos megaespetáculos pop. Há empresas focadas unicamente na gestão de turnês mundiais, como a gigante norte- -americana Live Nation15, que cuida desde a promoção até a chegada dos ingressos às mãos do público.

15. A empresa é uma divisão do grupo texano Clear Channel e tem como foco a organização de turnês mundiais e o licenciamento dos nomes de artistas em ações de marketing e merchandising. Entre os principais contratados, estão Madonna, U2, Coldplay, Red Hot Chili Peppers e . THIS IS SHOW BUSINESS 177

A reconfiguração que a indústria musical tem experimentado, com os grandes shows tomando a frente das estratégias de promoção, se reapro- xima do que ocorria na época sem discos fonográficos do Tin Pan Alley. Com a perda financeira nas vendas de álbuns, o consumo de música ao vivo voltou a ser possivelmente a moeda mais valiosa do mercado, tal qual acontecia no final do século 19. Como pondera Herschmann (2017), o alto valor agregado da experiência musical ao vivo também pode ajudar a explicar a razão pela qual ela ainda é capaz de mobilizar afetos, apesar de todas as crises.

[...] a música emerge hoje como élan social, uma espécie de “paisa- gem sonora”, que permite que os indivíduos vivenciem trocas, façam catarses, gerem memórias e identidades coletivas que são atualizadas nos eventos musicais. Os shows são não só um conjunto de produtos e serviços de alto valor agregado, mas também acontecimentos extre- mamente significativos para as vidas dos consumidores. (HERSCH- MANN, 2017, p. 21)

Olhar para o legado de shows que a cantora Madonna construiu, e é importante que se credite o nome dela à criação dos espetáculos, nos revela muito da cultura do entretenimento norte-americano, bem como do que tem sido feito atualmente no segmento. Das estrelas de grande vulto no pop, como Britney Spears, Lady Gaga, Katy Perry e Miley Cyrus, praticamente nenhuma deixou de aderir à fórmula consolidada por Madonna em 1990. Com alguma disrupção no caminho, Gaga talvez seja uma das poucas a arriscar um desordenamento do “padrão Madonna”, como se observa no show The born this way ball (2012), no qual há certa ruptura com a linearidade da narrativização blocada. Nas turnês de Cyrus, Bangerz (2014), Spears, Piece of me (2015), e Perry, Witness (2018), o modelo mantém-se integralmente, com variações apenas na quantidade de uso do playback e no maior número de blocos temáticos e trocas de figurino.

Considerações finais A performance ao vivo está na essência dos artistas que trabalham no segmento musical e, como ressalta Herschmann (2017), sempre foi a área de atuação deles por excelência. A presença dos cantores e músicos 178 DIVAS POP

no palco – ou na rua –, apresentando às pessoas o seu repertório, tem sido a mola propulsora do mainstream desde o Tin Pan Alley, reunindo gente, vivências e afetos na indústria do entretenimento. No seio da Broadway, eles foram peças-chave para fortalecer a tradição dos espetá- culos musicais, que não somente se consolidaram como um dos maiores patrimônios culturais norte-americanos, mas contribuíram com a formação do show business. É, portanto, um negócio, subordinado aos ditames do mercado, porém, historicamente repleto de nuances estéticas muito particulares. No universo da música popular massiva, em que disputas de auten- ticidade são travadas a todo instante, sobretudo entre o rock e o pop, parece no mínimo curiosa a criação de um formato de show que rompe de algum modo com a supervalorização do virtuosismo e oferece outras alternativas para a performance ao vivo. Não é nossa intenção aqui subjugar a relevância da voz ou da habilidade musical, mas sim de propor um olhar mais amplo, a partir de outros elementos estéticos, que dê conta do processo de desenvolvimento de um megaespetáculo pop e da experiência gerada a partir dele. O legado da cantora Madonna nos palcos corrobora a importância de sua figura não apenas enquanto produto bem-sucedido do mains- tream, mas principalmente como uma artista que, em conjunto com sua equipe de marketing e criação, revigorou o mercado de shows, abrindo novos caminhos para futuras gerações de performers. Historicamente, o conceito dos megaespectáculos inaugurado por ela se mostra uma continuidade, talvez com um pouco mais de arrojo, daquilo que já se realizava na Broadway. Madonna, na verdade, parece haver entendido que precisava “embalar” a música pop de forma dife- rente para se sobressair na indústria, complexificando a performance ao vivo e enxergando-a com a minúcia de uma engrenagem. THIS IS SHOW BUSINESS 179

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WOLLMAN, Elizabeth L. The theater will rock: a history of the Rock Musical, from Hair to Hedwig. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2006. Capítulo 9 Devir diva: experiência estética na peregrinação de fãs de Britney Spears a Las Vegas Alan Mangabeira

“You see my problem is this, I’m dreaming away, wishing that heroes, they truly exist.” (Britney Spears)

Um fã é, inevitavelmente, um colecionador. Não falo de uma coleção de objetos físicos necessariamente, mas de uma coleção de memórias a partir de trajetórias, performances, e, talvez, de devires. Enciclopé- dico, o fã parece colecionar suportes que emanem seus ídolos, operando como um ator-dispositivo na reconstrução da cosmologia do idolatrado, através da ansiedade de posse: possuir e ser o ídolo. Curioso que quando perguntados sobre o que colecionam, no caso dos fãs que acumulam objetos materiais, eles respondem que cole- cionam Madonna, Beyoncé, Britney, ou qualquer outra diva, ao invés de falarem que colecionam CDs ou itens da cantora. Talvez este discurso em metonímia seja um indício de que fãs colecionam suportes na tenta- tiva de tornar viva esta narrativa embebida em ficção, que é a narrativa da diva da música pop. Tal discurso implica num processo dentro da comunicação que talvez possa ajudar a entender não apenas o próprio conceito de “fã” e “fandom”, mas também a lógica da experiência estética através da fruição dos produtos de cultura pop. Partindo da ideia de que este tipo de fruição implica percorrer cami- nhos ou trajetórias de consumo em peregrinações sensíveis, proponho 182 DIVAS POP

repensar a noção de fandom engendrada com a experiência esté- tica, através do chaveamento das peregrinações de fãs como forma de consumo da narrativa da diva pop. Parto da hipótese de que o fã se configura como um catalizador para a existência da diva ficcional, a partir de uma peregrinação geográfica ou para dentro de si, e que os traços resultantes deste processo decantam- -se no que proponho chamar de “devir diva”, ancorado no conceito de “devir” como introduzido por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997). Além de um debate bibliográfico, o método autoetnográfico vem contri- buir com este texto ao passo que me coloco como o que Amaral (2008) chama de “pesquisador-insider”, permitindo uma ancoragem das minhas questões biográficas enquanto pesquisador e fã peregrino de Britney. (KOZINETS, 2007; AMARAL, 2008). Neste processo, analiso ainda a peregrinação de Tiffany Bradshaw, uma outra fã de Britney, drag queen que “impersona” sua diva que vai de São Paulo à Las Vegas para assistir ao show de Spears e encontrá-la, imitando-a para a própria Britney.

“You betta work bitch”: do fã ao fandom através da noção de devir Entende-se aqui o devir como um tipo de velocidade, como uma potência de sentimento, a qual se manifesta de forma rápida e feroz, porém sorrateira, tomando o sujeito como um sopro, capaz de canalizar traços de uma outra ordem no corpo do sujeito fã. Estes traços podem ser animalescos, num devir-animal do humano, por exemplo, mas também podem vir do ídolo, da diva, proponho, num devir diva. Neste caso, são características da diva que se manifestam no fã, como uma incorporação visível através de gestos, voz-dublagem, aparência, estilo de vida, discurso, entre outros, que aparecem durante de um consumo em peregrinação, seja ele por um deslocamento geográfico ou uma traje- tória de cotidiano do fã entrelaçada com o cotidiano da diva. Neste sentido, o devir se configura como características externas ao fã, e que se manifestam numa metamorfose em relação de soma com a carga já pré-existente nele: “vive cada coisa em relações de devir, em vez de operar repartições binárias entre ‘estados’: todo um devir-animal do guerreiro, todo um devir-mulher, que ultrapassa tanto as dualidades DEVIR DIVA 183 de termos como as correspondências de relações”. (DELEUZE; GUAT- TARI. 1997, p. 08). Parece útil, inclusive, propor o status de “fã” também como um tipo de devir: por mais que o termo original, “fã”, derive de fanaticus, que no latim indica pertencimento a um templo; sujeito inspirado por uma divindade; entusiasta; frenético, como pontua Henry Jenkins (1992); é possível decantar das três décadas de estudos sobre fãs que a relação do sujeito com o objeto idolatrado não é estática, passando por afinamentos e desafinamentos, tal como qualquer outro tipo de relação social, a depender das fases da vida do fã e da narrativa do ídolo/objeto. Assim, o termo “fã” parece figurar primeiramente na ordem da potência afetiva pelo ídolo, o que contraria uma classificação binária e/ou estanque como vemos na relação entre os termos “fã, não-fã, anti-fã e hater”, a m p l a - mente recorrente nos Estudos de Fãs. O fã não é, e muito menos precisa ser, um sujeito estanque ou binário com relação à diva, adotando um tipo de consumo balizar ou ideal. São, inclusive, as latências, seus diferentes tipos de rompantes, que mantêm a pulsação do star system, tais como movimentos ativistas dos fãs em defesa da diva nesta trajetória de consumo. Pensando o devir como esta possibilidade de fluidez, surge então a tentativa de reconstrução de um corpo utópico idolatrado, pelo fã, num processo extremamente lento de um sujeito que peregrina dentro da narrativa da diva, percorrendo um caminho com alternância de velo- cidade, ancorado numa fruição regurgitativa a partir da literalidade do consumo que traga a diva, proporcionando uma performatização de gosto de diferentes formas, em momentos distintos, na lógica do devir. Pontuo que, independente das inúmeras possibilidades entre tais formas de demonstrar afeto ou de se engajar, algo comumente reduzido, na cibercultura, aos números, a noção de “trabalho” pela diva está presente ao longo de todo esta experiência de consumo, mesmo que de forma oscilante: se em um momento um fã cria um mutirão para colocar a diva em primeiro lugar nas rádios mundiais, outro coleciona materiais físicos, e outro usa a diva como inspiração ao se transformar em drag queen, ou simplesmente incorporar seus trejeitos ou estilo de vida ao seu cotidiano. Enquanto para um fã é importante viajar para ver o show da 184 DIVAS POP

diva, há fã que não queira vê-la ao vivo mesmo quando o show é na sua própria cidade, mas que se importa em ver a filmagem do show, gravada por outro fã, disponibilizada no YouTube. Independentemente de como e para quem a performance de gosto é apresentada, ela parece se consti- tuir através da noção de trabalho. O trabalho permeia toda a construção terminológica do termo “fã”: está presente na noção de pertencimento a um templo, no ato de servir e no “ser inspirado por”. Assim, a diva pop aparece aqui como objeto de trabalho de uma vida. O termo fandom, por sua vez, também ganha destaque nesta lógica, partindo da ideia de que se refere a uma agluti- nação formada por “fan kingdom” ou “reino de fãs”, propondo um cole- tivo de sujeitos que compartilha a mesma devoção a um monarca/ídolo (JENKINS, 1992). Com isso, aponto uma percepção de um tipo especí- fico de engajamento do fã, que desenvolve um trabalho de apropriação ao tomar a diva para si e reconfigurá-la a partir de suas visões pessoais e locais. Essa lógica norteia grande parte da pesquisa sobre fãs, desde o fim dos anos 1980 e começo da década de 1990, até hoje. Assim, a “ressigni- ficação” enquanto elemento definidor do trabalho do fã é tida, a partir de então, como um limiar entre o fã e o consumidor comum – “apre- ciadores”, como chamam Tulloch e Jenkins (1995) –, fazendo com que o nível e o tipo de engajamento do fã com o produto passem a definir o que se entende como “fã”. Em defesa de um consumo por apropriação do objeto idolatrado, John Fiske (1989), um dos primeiros autores a contribuir com os estudos sobre fãs de forma mais detida, critica uma visão desse tipo de experi- ência de consumo demasiadamente ancorada numa apropriação com base na alienação. Fiske aponta que não dependemos exclusivamente do texto consumido ou do seu gênero para nos definirmos enquanto um tipo específico de consumidores de mídia, mas principalmente de como este sujeito opera dentro destes textos. O que possibilita vincular, novamente, o fã com a lógica do devir. Considerar o fã como um status de devir, parece apontar que a ideia de trabalho e engajamento não necessariamente aparecerá de forma DEVIR DIVA 185 linear em toda a experiência de consumo dos produtos de cultura pop, os quais circulam em um sistema. O sistema no qual tais produtos se circunscrevem é descrito por Edgar Morin (1989) em “As estrelas”, obra originalmente de 1957, como star system. E apesar de todas as mudanças de mercado e de técnica que acontecem desde a década de 1930, quando o autor destaca o surgi- mento do estrelato enquanto sistema de consumo no cinema, até hoje, uma coisa permanece a mesma: o que sustenta a mitologia de uma cele- bridade é o amor dos fãs por algo que não existe em matéria, ou seja, que está contido numa ficção, num duplo do ídolo que tem no seu próprio corpo e no corpo do fã, um suporte. A mitologia que se forma diante deste tipo de fruição parece materializar-se nos produtos que levam o nome, imagem e voz dos artistas – mesmo que manipuladas. O amor, para Morin (1989), é um mito divinizador de uma relação idealizada, platônica. Para ele, a fruição das vedetes do cinema repre- senta um sistema que engendra uma doutrina religiosa a um diverti- mento. Há então aqui certo dever com o ídolo e certa magia diante do entretenimento: “o fenômeno das estrelas é simultaneamente estético- -mágico-religioso, sem ser jamais, exceto num limite extremo, total- mente um ou outro” (MORIN, 1989, p. 11). Em tal processo de consumo, descrito por Morin, lida-se com a “presença da falta do ídolo” (SEEL, 2014) , que parece ser arquivada por este colecionismo de trajetórias: o percurso que um fã faz virtualmente para encontrar um arquivo que procura do seu ídolo – em si próprio, na sua memória, ou no ciberespaço – ou para imergir no conteúdo que se assiste/ouve (peregrinação simbólica). O trajeto físico da peregrinação, que envolve o deslocamento do fã que, inebriado pela nostalgia, busca o seu ídolo ou resquícios dele em lugares por onde morou, cenários onde clipes foram gravados, além de concertos e aparições é chamado pere- grinação física ou turismo biográfico. Há, ainda, proponho, dentro da peregrinação, a possibilidade ou necessidade de incorporação do ídolo pelo devir, da manifestação da diva no corpo do fã ao longo do tempo de consumo, como um fã que performatiza seu gosto através de sua própria biografia e conexões sociais, usando seu corpo para dramatizar a diva, como uma terceira possibilidade de peregrinação. 186 DIVAS POP

A noção de diva aqui se faz presente, proponho, ignorando o gênero feminino do termo e num atravessamento de devires: devir fã e devir diva, num cruzamento entre trajetos e peregrinações nostálgicas que provocam experiências estéticas, deslocamentos do sujeito no tempo e espaço, tornando aquele momento em uma epifania, como uma quebra que torna o impossível, possível. A experiência estética é pontuada por César Guimarães (2006) como um meio de transporte, um meio de transtorno. E aqui a observo nos diferentes tipos de peregrinações.

“Slowly, it’s taking over me”: notas sobre peregrinação Dentro dos Estudos de Fãs, um dos primeiros autores a debater sobre o conceito de peregrinação é Roger Aden, professor de comunicação da Universidade de Ohio e autor de “Popular stories and promised lands: fan cultures and symbolic pilgrimages”, obra publicada em 1999. Em 2007, Will Brooker, professor da Universidade de Kingston em Londres, ques- tiona seu antecessor através do texto “A sort of homecoming: fan viewing and symbolic pilgrimage”, propondo uma reconfiguração à ideia expla- nada por Roger Aden. A tese de Aden (1999) é a de que, além da peregrinação física, a que inclui um deslocamento do indivíduo pelo mundo atrás de fragmentos do ídolo, há também a peregrinação simbólica, que pode acontecer sem o deslocamento corporal do sujeito, enquanto se assiste/ouve algo do ídolo ou rememora o mesmo. Para o autor, os dois tipos de peregri- nação são ritualísticos e possuem três grandes fases rituais: (1) sepa- ração (separation), (2) estágio liminar (the liminal stage) e (3) retorno (homecoming), as quais representam respectivamente a saída do fã de seu cotidiano ordinário, a viagem e o encontro com o objeto sacro (a diva) e, por último, seu retorno com a dádiva conquistada e readequação ao cotidiano ordinário. Aden propõe essas três fases a partir da obra de Victor Turner e Edith Turner, lançada originalmente em 1978, “Image and pilgrimage in Chris- tian culture”, e que compõem o ponto de partida dos estudos sobre pere- grinação ao abordar o deslocamento do cristão pelo mundo, guiado pela fé. DEVIR DIVA 187

Para Turner (2008), vivemos em um estado transitório a todo momento, por estarmos numa constante transformação evolutiva oriunda das adaptações socioculturais, as quais escapam às progra- mações genéticas e às categorizações, principalmente em ambientes limites – tal como o fã, proponho – o que nos leva a novas formas de interpretação da experiência sociocultural: “A primeira dessas formas se expressa na filosofia e na ciência, a segunda, na arte e na religião” (TURNER, 2008, p.13). Sendo assim, para Victor, encontraríamos nestes locais-limite, “liminoides”, situações mais propícias ao que ele chama de “drama social”: “em que grupos e personagens conflitantes tentam afirmar seus próprios paradigmas e esvaziar os de seus oponentes” (TURNER, 2008, p. 13). A peregrinação aos locais que se tornaram objeto de desejo não apenas para fãs, mas também para turistas, é apontada aqui então como um desses espaços de dramas sociais, pois é enquanto o fã performatiza ou dramatiza seu gosto pelo ídolo em sua permanência, muitas vezes de forma mais exagerada do que se estivesse sozinho. Um bom exemplo parte da minha própria peregrinação ao show de Britney Spears, em Las Vegas, em novembro de 2017, na qual passei primeiro por , para de lá ir até Vegas, de carro. Em L.A., fui até a calçada da fama visitar a estrela de Britney. Rodeado por turistas que visitavam a calçada na Hollywood Blvd., eu dramatizava meu afeto pela cantora ao me ajoelhar diante de sua estrela marcada naquela calçada com seu nome, e rezar por minha diva, replicando uma ação comum a outros fãs que tiram fotos nesta estrela. No que aproveito para fazer a minha foto, um grupo religioso que protestava contra a indústria de Hollywood se aproxima de mim, passando a intervir na minha dramatização com gritos e frases de ódio por eu estar, para eles, “profanando” o ato de orar. Há aqui o embate entre duas peregrinações, a minha e a dos religiosos que me viam como oponentes e, na tentativa de esvaziar a minha performance, acabaram dando mais força à dramatização. Ao observar mais atentamente as peregrinações religiosas, as quais podem funcionar muitas vezes como autopunição ou pagamentos de promessas, envolvendo votos de fome, longos trajetos percorridos à pé, entre outros, Turner (2008) conclui que os peregrinos se comprometem, 188 DIVAS POP

incondicionalmente, guiados pela fé ou objetivo oriundo dela, como a purificação, já que dificuldades e possíveis desastres tornam o trajeto ainda mais desejável pelo sujeito, transformando a peregrinação em algo ainda mais prazeroso diante do imprevisto. Teríamos então no ato de performatização de gosto para os turistas e fãs, a formação de arenas, nas quais os dramas sociais representam “o processo escalonado dos seus embates” (TURNER, 2008, P. 15). Turner considera a peregrinação através de uma definição base da Enciclopédia Judaica de 1964, a entendendo, inicialmente, como “uma viagem feita a um templo ou local sagrado para cumprir um voto ou para obter algum tipo de bênção divina.” (TURNER, 2008, P. 161), ao passo que adiciona um caráter ritualístico à peregrinação:

O que quero dizer é que há um caráter de rito de passagem, até mes- mo de ritual iniciatório, na peregrinação. Tendo a ver a peregrinação como aquela forma de antiestrutura simbólica institucionalizada (ou talvez metaestrutura) que substitui os principais ritos de iniciação da puberdade nas sociedades tribais como a forma histórica dominante. (TURNER, 2008, p.170)

Trazendo a lógica de Turner para a situação de show de uma diva, aponto ainda a importância destes limiares, que proporcionam drama- tizações no local do show em si: a fila se transforma numa arena importante para dramatizações, enquanto que o espaço reservado para a plateia, dentro do local do teatro ou arena, parece nos mostrar um segundo limiar, e o pós-show, um terceiro. Elenco os três não por uma questão de ordem de importância, mas por uma ordem de aconteci- mento. Na fila, que pode durar meses, dias ou horas, tem-se o maior período de interação social entre os fãs e é onde se dá a primeira disputa, principalmente por seu próprio formato hierárquico ao acionar uma prévia do posicionamento do fã na plateia e conferir um certo status ao fã que chegou primeiro ou que veio de mais longe etc. Nas peregrinações religiosas descritas por Turner (2008), observa- -se certo companheirismo e ajuda mútua entre os cristãos, pois envolve o sacrifício do grupo ou individual, respaldado pela complacência das pessoas que observam aquelas peregrinações, tais como moradores das serras onde a santa foi avistada, que fornecem água para os peregrinos. DEVIR DIVA 189

Nas peregrinações de fãs, muitas vezes, há exatamente o oposto, como observado no filme documentário brasileiro Waiting“ for B”, lançado em 2017 e dirigido por Paulo Cesar Toledo e Abigail Spindel. O filme mostra fãs brasileiros acampando com um mês de ante- cedência na fila do show que Beyoncé fez no Brasil em 2013. O show aconteceria em São Paulo, no estádio Morumbi, onde são sediados jogos de futebol. Enquanto os fãs, em sua maioria LGBTQIA+, acampavam, percebe-se constantemente uma sátira hostil por quem passa pelo local e toma conhecimento do objetivo do acampamento: o show de Beyoncé. O documentário discute a partir daí uma hierarquia da fila e sua organi- zação, os gestos e linguajar próprios que os fãs usam, inspirados na diva, num devir Beyoncé. Os fãs que aparecem no filme, em sua maioria, moram em áreas peri- féricas da cidade e são de origem negra, o que levanta um debate sobre questões sociais de raça, identidade e gênero, a partir da relação deles com a diva. A perificidade, para Turner (2008), é constante nas peregri- nações, pois, como observa, os templos tendem a ficar em locais mais afastados, como se fossem verdadeiras rupturas do cotidiano ordinário, como um oásis em meio ao deserto, ou como uma aparição, um limiar, como um local de experiência estética:

Aqui, o caráter periférico dos centros de peregrinação os distingue da centralidade do estado, das capitais provinciais e de outras unidades político-econômicas (...) Este caráter periférico pode ser considerado um aspecto espacial da liminaridade encontrada nos ritos de passa- gem. Um limen é, literalmente, um “limiar”. Um centro de peregrina- ção, do ponto de vista do ator crente, também representa um limiar, um local e um momento “dentro e fora do tempo”, e este ator - con- forme atesta o testemunho de diversos peregrinos de várias religiões diferentes - espera ter lá uma experiência direta de ordem sagrada, invisível e sobrenatural, seja sob o aspecto material de cura miracu- losa, seja sob o aspecto imaterial da transformação íntima do espírito ou da personalidade. (...) O senso do sagrado do peregrino não é mais privado; é uma questão de representações objetificadas, coletivas que se tornam virtualmente todo o seu ambiente e que lhe dão fortes mo- tivos para crer. Não apenas isso, como também a viagem do peregrino se torna um paradigma para outros tipos de comportamento, sejam eles éticos, políticos, outros. (TURNER, 2008, p. 184) 190 DIVAS POP

Na peregrinação de fã, então, sua própria forma de consumo, apesar de ser desejada para a indústria, muitas vezes é vista como um comporta- mento de margem, periférico, divergente de uma forma “sadia” de gostar de algo ou alguém. Turner ajuda a entender a situação ao falar sobre crianças (meninos) circuncisados num ritual coletivo e que ali eles esta- riam despidos de seus status familiares e castas, por exemplo. Eles eram apenas “as crianças circuncisadas”, numa coletividade, e, por sua vez, criariam laços afetivos entre si que extrapolariam as questões primárias sociais (classes, idade, gênero família etc.), daí surge uma modalidade de relação social que o autor chama de “communitas”, que aqui se rela- ciona diretamente com a noção de fandom: laços criados independente de posições sociais entre sujeitos unidos pelo amor a Beyoncé. Por communitas, Turner (2008) diz se referir ao que Robert Merton chamou de “os arranjos padronizados de conjuntos de papeis, conjuntos de posições e sequências de posições”, da ordem da “comunidade do sentir”, o que me permite ligar o fandom à noção de experiência esté- tica. Trata-se de um vínculo espontâneo que ignora (mas não inverte) as conexões sociais estabelecidas, como na religiosidade. No entanto, Matt Hills (2000, 2013) questiona a associação feita entre fandom e religião, ao passo que os estudos sobre peregrinação ganham destaque na área, uma vez que, para o autor, tal relação impli- caria em dizer que o fã é um indivíduo que busca nos textos narrativos uma “razão para viver” (HILLS, 2000, 2013), coisa que, para Hills, não procede. As autoras Lynn Zubernis e Katherine Larsen (2018), por sua vez, vão retomar esta lógica proposta por Hills e ampliam o debate: para elas, de fato, a relação de que fandom provém ou é igual a movimentos religiosos não faz sentido. No entanto, elas propõem uma inversão na equação, ao dizerem que talvez seja possível pensarmos a religião como algo proveniente dos fãs, ao passo que debatem a peregrinação e trazem o termo “performance de crença” (performance of the belief), ao anali- sarem a experiência do fã ao visitar os locais onde a narrativa dos seus ídolos se passou, tendo em vista que estes locais estarão provavelmente diferentes de como aparecem nos vídeos, fotos ou memória:

Alinhado com nossa compreensão do poder do afeto por mundos imaginários, talvez, do mesmo ímpeto – de criar e refinar narrativas DEVIR DIVA 191

que nos ajudam a entender nosso lugar no mundo, que fornecem di- retrizes para vivermos nossas vidas e nos conecta a algo além de nós mesmos ao mesmo passo que nos conecta ao “sagrado”. (ZUBERNIS; LARSEN; 2018, p. 155, tradução nossa)1

A noção de performance de crença é útil não só para pensarmos a peregrinação, mas toda a experiência de consumo do fã atrelada ao devir, uma vez que ela entra como uma relação completamente imagi- nativa da ficção da diva. Duncan Light (2009) fala sobre tais nuances performativas dentro das peregrinações dos fãs – vistas aqui como performances de gosto –, ao analisar seguidores de Drácula em viagem à Romênia para visitar lugares onde o Conde teria vivido. Por se tratar de uma história com grandes ramificações mitológicas não visíveis na peregrinação, o autor afirma que os peregrinos “não simplesmente encontram esses lugares, eles também o performam” (LIGHT, 2009, p. 241, tradução nossa)2. Para Aden (1999), “as peregrinações simbólicas caracterizam indi- víduos revisitando ritualmente lugares especiais que são imaginados simbolicamente através da interação da história e da imaginação indivi- dual” (ADEN, 1999, p.10)3, propondo que a peregrinação simbólica não acontece ao mesmo tempo que a peregrinação física (turismo biográ- fico). Brooker (2007), ao contrário, propõe uma interdependência entre os dois tipos de peregrinação. Para ele, o percurso físico não invalida a construção de produção simbólica do indivíduo fã, principalmente nas peregrinações de fãs nas quais, assim como os cristãos, vão a locais onde o corpo físico do ídolo não está. Brooker vai além, pontuando ainda uma dependência entre os dois tipos de peregrinações.

1. Align with our understanding of the affective power of imaginary worlds and arise, perhaps, from the same impetus - to create and refine narratives that help us to understand our place in the world, that provide guidelines for living our lives and connect us to something beyond ourselves and to connect to the ‘sacred’. (ZUBERNIS; LARSEN; 2018, p. 155) 2. Tourists do not simply encounter places, they also perform them. 3. Symbolic pilgrimages features individuals ritualistically revisiting powerful places that are symbolically envisioned through the interation of story and individual imagination”. (ADEN, 1999, p. 10) 192 DIVAS POP

Novamente, entra aqui a noção de performance de crença atrelada ao devir:

O objeto do fandom, muitas vezes ausente ou morto, não está lá para ver a performance [do fã] e, portanto, sua importância reside na ação em si e não em quem observa a ação in loco. No entanto, o pensamen- to de gravar essa ação com um celular e compartilhá-la com outros fãs mais tarde pode aumentar o capital do fã. (ZUBERNIS; LARSEN; 2018, p. 154, tradução nossa)4

As autoras Zubernis e Larsen (2018) propõem esta lógica ao descre- verem o momento em que os fãs dos Beatles gravam seus nomes na Abbey Road como uma prova de que estiveram lá e como uma tentativa de deixar um pedaço de si dentro da ficção da banda. Ainda para as autoras, as peregrinações físicas ou geográficas possuem performativi- dades clássicas: repetir poses dos ídolos, encenar textos ditos naquele cenário no qual tal produto foi gravado, tentar levar um pedaço ou algum objeto do local e/ou tentar deixar alguma marca ali gravada. Esta parte da peregrinação torna-se uma área de escalonamento da perfor- mance de gosto do fã, numa tentativa de esvaziar o turista que o observa, numa incorporação do ídolo, como acontece nos shows-residência de Las Vegas.

Live from Las Vegas: o show-residência de Britney e o devir no fã As arenas de disputa através das performances de gosto se destacam em meio às artificialidades urbanas dramatizadas em Las Vegas: um duplo da Torre Eiffel próximo a uma réplica do Cristo Redentor, que está também há poucos passos de uma simulação arquitetônica da ponte do na Las Vegas Blvd. Uma mistura que faz o turista se sentir vislumbrando, literalmente, uma volta ao mundo na mesma velocidade que se percebe a miragem no meio do deserto.

4. The object of fandom, most often absent or dead, is not there to see the performance and therefore its importance lies in the action itself rather than in who observes the action. (Thought recording that action and sharing it with other later can increase the fan’s capital). (ZUBERNIS; LARSEN; 2018, p. 154) DEVIR DIVA 193

Falo sobre uma cidade periférica, arquitetada no deserto Mojave, mas maquiada de centro do entretenimento através da liberação de bebidas alcoólicas a céu aberto, fumo em locais fechados, liberação de jogos e artistas como corpos monumentos. Mas que céu? Las Vegas dramatiza céus no teto dos seus conglomerados hoteleiros. No The Venetian, por exemplo, é sempre fim de tarde por conta da tonalidade que as luzes conferem às pinturas de nuvens no teto que cobrem um córrego arti- ficial, no qual acontece um passeio de barco que imita as gôndolas, com barqueiros que cantam músicas italianas. O rio artificial tem a cor controlada para reproduzir a mesma água que passa por debaixo da Ponte do Suspiros de Veneza, que também é reproduzida nesta miragem palpável. Em meio a paisagens inventadas, os complexos hoteleiros incluem cassinos, shoppings e teatros, onde acontecem os shows fixos da cidade, chamados de residências: um formato de show imutável em sua narra- tiva musical, sempre exaltando a memória do artista em questão num lugar fixo, reencenando seus grandes momentos para, principalmente, turistas, além dos “peregrinos”, tal como um corpo monumento. O hotel em questão se torna a “casa” do artista durante aquele período, mesmo que, na realidade, eles não fiquem hospedados lá durante os shows. Mas com toda a artificialidade urbana de Vegas, quem se importa? O show residência costuma acontecer mais de uma vez na mesma semana, e até duas vezes por dia, durante uma temporada de três meses. Após breves intervalos trimestrais, o espetáculo retorna pelo menos três vezes ao ano, mas sempre dentro do mesmo hotel e com alterações mínimas no set list, quando acontecem. O precursor deste formato narrativo de show foi Elvis Presley, ainda na década de 1960, em parceria com resorts e cassinos, na tentativa de fornecer algo relaxante aos turistas após horas de jogo. Em meio às suas memórias dramatizadas que traziam ao palco da residência utopias do seu próprio corpo, numa narrativa nostálgica para turista apreciar e fã se comover, há o trânsito como peregrinação e o transe na plateia, como na noção de experiência estética proposta por César Guimarães (2006). Elvis se apresentou pela primeira vez em 1969, no antigo Interna- tional Hotel, hoje Westgate Las Vegas Resort & Casino, moldando este 194 DIVAS POP

formato de espetáculo que tem se espalhado, inclusive, por cruzeiros marítimos ao redor do mundo com os , STYX, Enrique Iglesias e Roberto Carlos. No Brasil, após o sucesso do show de Roberto, “Emoções em Alto Mar”, que estreou em 2005 e seguiu com datas até 2019, outros atos nostálgicos nacionais parecem seguir a tendência, como Bel Marques, ex-vocalista do grupo Chiclete com Banana (axé), além de Marcia Fellipe, ex-vocalista da banda Companhia do Forró. Ambos começaram seus shows em 20185. Em Vegas, ao final do primeiro ano de sua residência, Elvis lançou a faixa “Suspicious minds”, que chegou ao primeiro lugar da Billboard, garantindo uma reenergização do seu show, que contou com 700 apre- sentações ao todo, chegando ao fim apenas em 1976. Quase 45 anos depois do show de Elvis e de a cidade apresentar residências de atos dos anos 80, Celine Dion, Elton John, Shania Twain e Lionel Richie, a cena pop de Las Vegas chega a receber Britney com o show “Piece of me”, numa tentativa – que deu certo – de rejuvenescimento do público do complexo de entretenimento construído no deserto, trazendo uma artista que teve seu apogeu em meados dos anos 2000. Britney, no começo do seu show, dubla uma pergunta: “vocês têm certeza que querem um pedaço de mim?”, enquanto apresenta a música “Piece of me”, que também é o nome do show. A resposta da plateia é clara nos ingressos esgotados para o meet & greet (encontro pago com a artista), já tendo chegado a custar 7 mil dólares em 2013, sem incluir o ingresso para o show em si, funcionando apenas como um “upgrade”, que dá direito a uma foto com ela e visita aos bastidores, pouco antes do espetáculo começar, sendo cerca de vinte a quarenta ingressos de meet & greet comercializados por noite. E é para assistir a “Piece of me” que eu e o fã Rafael, incorporando a drag queen Tiffany Bradshaw, saímos do Brasil – ele de São Paulo e eu da Paraíba –, numa pesquisa de campo autoetnográfica. Neste processo de peregrinação, encontro Tiffany: a drag queen dramatizada por Rafael, fã de Britney há quase vinte anos, que se

5. Cruzeiros com shows atraem mais passageiros. Diário do Nordeste. Disponível em: http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/suplementos/tur/cruzeiros-com-shows- atraem-mais-passageiros-1.1911566. Acesso em: 20 abr. 2018. DEVIR DIVA 195 autointitula uma “drag impersonator”, ou uma emuladora de personas, mais pontualmente da diva pop Britney. Rafael costuma se apresentar em boates e eventos no Brasil como drag e está em peregrinação à Las Vegas para assistir ao show da artista, além de conhecê-la no meet “impersonando” Britney para ela própria. A minha convivência com Tiffany e imersão em Las Vegas aconteceu dos dias 01 a 04 de novembro de 2017, onde já a encontro vestida de uma Britney virtual para conhecer a Britney atual. Nesta experiência de peregrinação a Vegas, o corpo do fã se mostra como espaço condutor para a manifestação da fantasmagoria da diva, que ali habita num devir, transparecendo numa performatividade de gosto, num movimento, num gesto. Uma incorporação pelo louvor, pelo arrebatamento, pelo êxtase. Algo presente não apenas em Rafael, mas em mim também. Uma profissão de fé, como diz Morin (1989, p. 61): “O culto das estrelas transforma-se em fetichismo. O amor imponente quer fixar-se num pedaço, num símbolo do ser amado, na falta de sua presença real”. Aqui, o pedaço é o corpo do fã. Na fila, Tiffany chama atenção por sua dramatização visual: afinal, numa cidade que emana um duplo de Veneza, do Rio de Janeiro e do Brooklyn ao mesmo tempo, entre outros, ela parece ser mais Britney do que a própria Britney. Já que seu devir emana uma visualidade que ganha destaque para o olhar do turista, mesmo não sendo este um devir ideal ou melhor que o de qualquer outro fã na fila. Tendo começado há pouco mais de oito anos se montar, ele conta que apesar de já ser fã da Britney, suas primeiras “montações”6 se deram com inspiração nas drags de RuPaul’s Drag Race, um reality show televisivo apresentado por RuPaul, drag que surge anos 1980, mas que inspira ainda hoje por ser uma das mais famosas do mundo, além de apresentar o reality ainda em exibição. Na época, Rafael havia pego um gancho na popularidade do programa no Brasil, por sua adição ao catálogo do Netflix, como conta em entrevista:

6. “Montação” é um termo comum na cena drag e trata ta ação de colocar em seu próprio corpo adereços que visualmente montem uma outra pessoa em cima do sujeito em questão. 196 DIVAS POP

Comecei a transformar minha drag em Britney há mais ou menos uns três anos. Eu sempre gostei da Britney, mas ela não foi minha primei- ra referência quando eu virei drag, porque foi quando eu estava muito focado nas próprias drags do show e também na cena drag brasileira, do bate-cabelo. Então primeiro eu fui tentando criar e descobrir uma identidade minha, descobrir o que a minha drag era. Conforme foi passando o tempo, havia muita homenagem às divas nas boates, e eu comecei a ser chamado para fazer Britney, por que já sou fã, já sei as letras, as coreografias, as roupas, e das outras divas eu não sabia tan- ta coisa. Sempre quando eu fazia Britney, as pessoas elogiavam e eu percebia que eu estava gostando, além de estar crescendo [através da Britney] dentro das pessoas. Então eu fui transformando – no come- ço não era tão impersonator, tão parecido –, aprimorando, deixando cada vez mais próximo [da imagem de Britney]. Por exemplo, tem uma premiação [na televisão], eles [os fãs] assistem e uma semana depois você está com a roupa que ela usou na apresentação. As pes- soas gostam disso. Obviamente também coloco uma pitada de mim, de Tiffany. Acho que todo cover,impersonator , coloca um pouco da sua visão do artista.

Tiffany comenta que sua Britney surgiu não apenas por ela querer “fazê-la, mas por outras pessoas verem a Britney nela, mesmo que esta não fosse a sua intenção original. Aqui, é ainda mais notória a ideia de um devir Britney pela visualidade. Sem entrar na noção de gênero dentro do devir, entendo que a potência da diva figura aqui no âmbito mitológico da divindade, fazendo entender, assim, a noção de diva como um status do ídolo para o fã, independente do gênero sexual do idola- trado. Encontro Tiffany já em drag, na fila do show e, diante dela, tenho uma epifania que me leva direto para o show da Onyx Hotel Tour, turnê de Britney que acompanhei fervorosamente pela internet e televisão, quando morava em Petrolina, interior de Pernambuco. Era um sonho antigo ver aquela Britney de 2004 na minha frente e, naturalmente que entendo não ser a mesma coisa, mas os detalhes de Tiffany afloram minha curiosidade, já que só consegui ver Britney ao vivo, de corpo presente, pela primeira vez em 2011, numa de suas fases mais debili- tadas física e mentalmente. Me pego querendo sentir a textura daquele macacão inspirado na mulher gato que Britney usava na época e que DEVIR DIVA 197 por tantas vezes vi num DVD que eu mesmo fiz, já que a gravadora de Britney, Jive Records, não lançou oficialmente o registro. Destaco, nesta minha tentativa de ter a Britney através da sensação tátil diante de Tiffany, que a materialidade é muitas vezes o que mantém viva a ficção da diva, quando ela não existe nem no suporte (corpo dispositivo) da Britney que eu vi no palco naquela mesma noite de 2017. Para além do corpo do fã, objetos como extensões do corpo do ídolo. O corpo como objeto e os objetos como fetiche. Neste momento no qual toco a roupa de Tiffany, uma pausa dramática: “a percepção estética, por se delongar com o aparecimento de coisas e situações, adquire uma consciência específica da presença, oferecendo àqueles que se renderem a ela, tempo para o momento de suas vidas” (SEEL, 2014, p.26-27). Em Vegas, corpos em cena parecem atuar como duplos que clamam por um enxergar além da aparência de uma superfície. No fã, para além de Vegas, a superfície do corpo é dispositivo para o transtorno que no transe engendra a metamorfose pelo sentido, pelo afeto, por experiên- cias estéticas das aparições e aparências num devir, na poética da fantas- magoria nublar criada pela máquina urbana do ídolo pop que perturba seu cotidiano. Histórias e biografias dos artistas, dos fãs, dos especta- dores, circunscritas num contexto geográfico em que “o indeterminado [se apresenta] no determinado, o que não é realizado no realizado e o que é incompreensível no compreensível se tornam evidentes, gerando assim a consciência para a abertura da presença” (SEEL, 2014, p. 36). A presença aqui é utopia, está e não está, é a sensualidade do objeto que se desnuda em diversas camadas fantasmagóricas e se camufla nelas próprias e na imaginação, na memória, na maquiagem do jogo de luzes e da edição de som. A presença se encontra na peregrinação pelo devir de Britney em mim. De longe, um campo de dramatizações: de um lado, turistas que jogam nas máquinas do cassino – e que ficam no mesmo local que o hall de entrada do show – estranham: afinal, para quê uma fila se os assentos são marcados? E por que há várias pessoas ansiosas atrapalhando a circu- lação do cassino com camisas de Britney? Há um esvaziamento do fã na perspectiva do turista, assim como o contrário também acontece. Dois lugares dentro de um só, que convivem de forma discreta até que um 198 DIVAS POP

comece a atingir a limiaridade do outro: a residência de Britney reorga- niza o cassino, que é ocupado, de forma demasiada, por homens héteros e brancos mais velhos, homens jovens com suas namoradas e mulheres seminuas dançando em cima das mesas. Britney, teoricamente para eles, deveria ser mais uma dessas mulheres, só que numa mesa maior, o palco. “Dê onde você veio?”, me pergunta o senhor que tenta cruzar o cassino. “É sério que vocês vieram para ver um show?”, pergunta ele novamente entrando ainda mais num drama, enquanto abro o casaco para deixar visível minha camisa com o rosto da Britney.

“Feels like the crowd is saying: gimme, gimme more” A diva pop, suas músicas, seus clipes, seus shows, seus escândalos, suas aparições, seu duplo: um corpo fantasmagórico devorado e drama- tizado pelo fã. Mitologia tragada, devir meu, devir na drag. Pois, apesar de toda a visualidade que a drag queen aciona e dramatiza, ou melhor, reivindica, é, ao mesmo tempo, contestada, afinal o devir não é só a semelhança, mas também a diferença. De fato, o corpo de Tiffany catalisa Britney, muitas vezes melhor que a própria diva o faz, mas é importante destacar que o devir se situa num entrelugar curioso, o qual parece não permitir se fixar em lugar algum, se não na efemeridade da memória. Ele, naturalmente, não acontece apenas na peregrinação física. A peregrinação física parece atuar como uma busca pela materiali- zação da ficção, mas talvez resida apenas numa simbiose com a pere- grinação simbólica a possível fixação num pedaço, que se decanta sob o corpo do fã. Mas não necessariamente de uma forma visual, como na drag queen, e sim, através de uma epifania que aciona performances de gosto dentro da nostalgia e que parece figurar no êxtase e na epifania do devir diva que, num arrepio, dubla sua voz e me permite enxergar o mundo numa metamorfose, num devir de um corpo utópico, que não existe em lugar algum. Na nostalgia por um tempo que nunca existiu, mas que, de forma ritualística, pode ser conjurado em diversos momentos do consumo em forma de peregrinação física e simbólica. DEVIR DIVA 199

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Beyoncé e Jay-Z são artistas influentes na indústria fonográfica contemporânea. Cada um - separadamente - foi capaz de conquistar um espaço próprio e legitimado pelas instâncias de consagração da indús- tria do entretenimento1, perpetuando uma carreira profícua na indústria musical. Por serem personalidades reconhecidas, os artistas constroem performances midiáticas que transitam pelos espaços sociais e ambi- ências digitais, performatizando uma versão teatralizada de sua perso- nalidade artística. Nesse sentido, Beyoncé e Jay-Z podem ser definidos enquanto sujeitos que estão constantemente sob a ação de uma atuação conscientemente construída, mesmo quando não estão realizando uma apresentação musical. Esta persona midiática dos artistas nos dá uma chave de acesso interessante para refletirmos sobre os mecanismos corporais colocados em funcionamento em ambientes midiáticos. Beyoncé Knowles é uma cantora pop norte-americana nascida no Texas, estado situado no sul dos EUA. Já em 1997, a artista iniciava

1. Mais informações em: . Acesso em: 15 jul. 2019. 202 DIVAS POP

sua ascensão na indústria musical, sendo uma das três integrantes do famoso grupo estadunidense Destiny’s Child2. A girl group fez sucesso do final dos anos 90 até o início dos anos 20003, tornando-se um dos maiores trios musicais de todos os tempos segundo a revista Billboard4. Após sua trajetória como integrante da Destiny’s Child, Beyoncé lançou o seu primeiro álbum solo em 2003, marcando, assim, o início de uma carreira solo longa e próspera na indústria musical. Shawn Corey Carter, mais conhecido pelo nome artístico Jay-Z, é um rapper, compositor e produtor norte-americano nascido em Nova Iorque. O intérprete se tornou uma das personalidades mais bem suce- didas na carreira artística e empresarial, sendo um dos artistas mais comercializados na história da música mundial5. Foi em 1996 que Jay-Z lançou o seu álbum de estreia, intitulado “Reasonable doubt”, marcando o início de sua carreira musical. Como podemos observar na biografia de ambos, os intérpretes são figuras importantes para a indústria fonográfica desde seus trabalhos de estreia. Mas, conjuntamente, multiplicaram o “poderio” econômico e alastraram influência por toda a indústria da música, tornando-se um importante ponto de referência midiático-global. Beyoncé e Jay-Z começaram a namorar em 2002 e uniram-se em uma cerimônia simples de casamento no ano de 2008, expandindo a sua presença para além dos nichos em que cada artista se encontrava e permitindo construir, a partir da performance deste matrimônio na mídia, uma espécie de insti- tuição sólida e aparentemente inquebrável, capaz de edificar um império artístico-empresarial no interior da indústria do entretenimento.

2. Destiny’s Child foi um trio de R&B norte-americano cuja formação final e mais conhecida incluía Beyoncé Knowles, e Michelle Williams. 3. Mais informações em: . Acesso em: 15 jul. 2019. 4. Mais informações em: . Acesso em: 15 jul. 2019. 5. Em 2018, a revista Forbes estimou o seu patrimônio líquido em 810 milhões de dólares. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2019. THE CARTERS 203

A partir das noções de performance (TAYLOR, 2012; FRITH, 1996; SOARES, 2013), de roteiro performático (TAYLOR, 2013; SOARES, 2018), de drama social (TURNER, 2008) e de coerência expressiva (PEREIRA DE SÁ E POLIVANOV, 2012), o presente artigo busca compreender a maneira como se estrutura a performance deste rela- cionamento romântico nas esferas midiáticas, procurando cartografar as estratégias audiovisuais e performáticas empregadas pelo casal na manutenção de um roteiro dramático-social emblemático. É nossa intenção, também, observar como os rastros e as controvérsias geradas pelas rupturas não intencionadas neste roteiro se articulam nas ambiên- cias digitais, procurando destacar os modos através dos quais o público se engaja e se deixa afetar pelos atos dramáticos deste roteiro performá- tico.

O relacionamento dos Carter como performance midiática Para pensarmos sobre o conceito de performance, precisamos nos deslocar das epistemologias teóricas que canonizam o conhecimento escrito como a única forma de compreendermos o mundo e as expres- sões artísticas que circulam pelas ambiências digitais. Ao darmos ênfase ao conhecimento incorporado (TAYLOR, 2013) como também uma lente metodológica para compreendermos os mecanismos de produção de sentido no contemporâneo, estamos abrindo o leque de possibili- dades metodológicas ao analisarmos também a corporeidade das perfor- mances midiáticas como possíveis lentes de observação empírica do mundo. “Parte do que a performance e os estudos da performance nos permitem fazer, então, é levar a sério o repertório de práticas incorpo- radas como um importante sistema de conhecer e de transmitir conhe- cimento” (TAYLOR, 2013, p. 57), salientando as dimensões biográficas e memorialistas dos corpos como um importante vetor de entrada para a reflexão sobre os mais diversos tipos de expressão simbólica produzidas artisticamente na contemporaneidade. Ao analisarmos certo enquadramento midiático como uma perfor- mance, estamos salientando os modos através dos quais a presença física de um determinado corpo torna visível, reencena e atualiza 204 DIVAS POP

performances passadas, ao mesmo tempo em que imprime no “agora” a diferença essencial que singulariza esta performance. Nesse sentido, estamos menos interessados em compreender a “veracidade por detrás de determinado ato performático”, e sim como tal corpo nos faz ver os fantasmas de um passado que, reativado no presente, transforma-se em uma versão atualizada do que já foi visto inúmeras vezes. A fantasmagoria da performance é uma de suas características mais evidentes, fazendo-nos refletir sobre nossos movimentos e gestos corpo- rais como devedores de um longo histórico de práticas incorporadas, os quais são atualizadas constantemente no momento presente do ato performático. Tal como nos lembra Taylor, “a performance, seja artística ou política, realiza um momento de revisualização” (TAYLOR, 2013, p. 208), sempre apontando em direção ao passado e ao futuro a partir do momento presente.

Em minha opinião, a performance torna visível (por um instante, “ao vivo”, “agora”) o que sempre esteve lá: os fantasmas, os tropos, os roteiros que estruturam a nossa vida individual e coletiva. Esses espectros, que se manifestam por meio da performance, alteram os fantasmas futuros, as fantasias futuras”. (TAYLOR, 2013, p. 207)

Ainda que nossa intenção aqui seja analisar a performance dos corpos em situação, não preocupados em discernir entre o que seria supos- tamente “real” ou “construído” por detrás destes atos performáticos, é interessante observarmos que, no caso analisado por este artigo, os artistas se utilizam de sua própria vida íntima para edificar uma perfor- mance cujas nuances, de muitas maneiras, dão a ver questões que dizem respeito à vida privada do casal. Em outras palavras: Beyoncé e Jay-Z não parecem estar “interpretando um personagem” no sentido estrito do termo, ao mesmo tempo em que, de certa maneira, encenam uma persona midiática em suas performances de forma deliberada, tornando visível um duplo movimento que coloca em jogo questões de autentici- dade na música popular massiva. Conforme iremos discorrer com mais detalhes nos próximos pará- grafos, Beyoncé e Jay-Z se valem do fato de que são artistas influentes na indústria e de que estão em um relacionamento romântico na “vida real” THE CARTERS 205 para fazer circular e manter uma instituição midiática que, para além de romântica, é também social, econômica e política. A performance dos Carters (o casal), portanto, também diz respeito a este jogo intrínseco à performance: ela é, simultaneamente, “real” e “construída” (TAYLOR, 2013, p. 28), lembrando-nos de que assistimos a uma versão teatralizada e romantizada da relação entre os artistas. Simon Frith (1996), ao discorrer sobre o conceito de performance no contexto da música pop, vai sublinhar a questão enquanto um ato social e comunicativo indissociável de sua audiência. Para que a performance faça sentido e seja efetiva, é preciso haver um conjunto de atores que irá interpretá-la segundo um conjunto de referências contextuais que dizem respeito tanto aos endereçamentos estéticos da indústria fono- gráfica e dos gêneros musicais quanto à relação afetiva entre artista e o seu público. Nesse sentido, a performance necessita de uma “leitura disciplinada” dos atores sociais que fazem parte deste enquadramento midiático, os quais irão ler os códigos inscritos na performance artística a partir das convenções próprias da indústria fonográfica. É importante salientar que as performances musicais dos artistas nunca estão isoladas no espaço e no tempo, sendo necessário também que observemos o conjunto de referências externas à música, e que se encontram sedimentadas na cultura popular de um determinado contexto social.

O termo “performance” define um processo social ou comunicativo. Requer uma audiência e é dependente, nesse sentido, da interpreta- ção; é sobre significados. Em outras palavras, a arte performática é uma forma de retórica, uma retórica de gestos nos quais, em geral, movimentos e sinais corporais (incluindo o uso da voz) dominam outras formas de sinais comunicativos, como a linguagem e a icono- grafia. E esse uso do corpo (que obviamente é central para o que se entende aqui por arte performática) depende da capacidade do públi- co de entendê-lo como um objeto (um objeto erótico, um objeto atra- ente, um objeto repulsivo, um objeto social) e como um sujeito, isto é, um objeto imbuído de agência e modelado de determinada forma, um objeto com significado. (FRITH, 1996, p. 205)

Outro ponto que o autor vai chamar a atenção é para a importância da star persona na produção de sentido da performance na música. 206 DIVAS POP

Frith vai sublinhar o fato de que, enquanto ouvintes, fruímos da música e também da performance da música encenada e entoada pelo artista. Nesse sentido, o que está em jogo na performance musical é a forma com que determinado artista irá cantar e gestualizar a canção. Como salienta o autor, “o significado do pop é o significado de estrelas pop, artistas com corpos e personalidades; central para o prazer do pop é o prazer em uma voz, som como um corpo, som como uma pessoa” (FRITH, 1996, p. 2010). Fica claro que o elemento central de qualquer evento relacionado à música pop é o seu enquadramento enquanto uma perfor- mance realizada por um corpo e por uma voz que será gravada, repro- duzida, revisualidada e reencenada diversas vezes ao longo da carreira de um artista, seja em um videoclipe ou em uma apresentação ao vivo. Assim, o elemento mais importante e “permanente” da música pop é a star persona e os seus modos particulares de evocar a fantasmagoria de performances passadas, sempre as atualizando no momento presente. Torna-se essencial tecermos uma rápida discussão acerca das espe- cificidades do videoclipe, o qual encontra-se enredado em uma intrin- cada rede digital no contemporâneo. Tal produto audiovisual, por sua própria ontologia, é uma performance musical gravada e manipulada audiovisualmente (GOODWIN, 1992) ou seja, não acontece “ao vivo”. No entanto, toda vez que um sujeito se coloca diante do videoclipe, a performance registrada audiovisualmente ocorre no “presente” daquele momento em que está sendo assistida. A relação que se estabelece no momento de assistibilidade do videoclipe constroi uma imediata ponte comunicacional entre o artista e o fã - e, pelo menos do ponto de vista do fruidor - tal performance musical é atualizada todas as vezes em que é assistida. Desse modo, apesar de a performance musical no videoclipe não ser “ao vivo”, ela ainda assim faz parte de uma rede sociotécnica no qual o ato performático musical do artista e a sua star persona são elementos centrais na produção de sentido de tal produto audiovisual (VERNALLIS, 2004), fazendo-nos reviver e atualizar constantemente a performance do artista a cada vez que assistimos a um videoclipe. Isso nos leva a refletir sobre o próprio fato de que os vídeos musicais não podem ser analisados como entidades autônomas, e sim como partici- THE CARTERS 207 pantes de uma conjuntura maior que diz respeito aos diversos produtos audiovisuais, musicais e apresentações ao vivo da carreira de um artista inserido nas lógicas da indústria fonográfica. Portanto, ao entendermos a música gravada como uma “performance” desta música registrada em um suporte físico, podemos entender que o videoclipe também se encontra contemplado por esta performance, com a diferença de conter o elemento visual em conjunção com a música gravada. Seguindo as pistas de Thiago Soares (2013), “tentamos empre- ender o argumento de que os videoclipes performatizam as canções que as originam, propondo uma forma de ‘fazer ver’ a canção a partir de códigos inscritos nas próprias canções populares massivas” (SOARES, 2013, p. 145) e a sua inevitável relação com os endereçamentos merca- dológicos da indústria fonográfica e as escolhas estéticas inscritas pelos gêneros musicais. Simon Frith, por sua vez, vai chamar a atenção para o fato de que um determinado ator6 - na performance musical do videoclipe - irá mate- rializar aspectos rítmicos, estruturais e textuais presentes na canção massiva. Um dos pontos que mais nos chama a atenção na argumen- tação do autor é o fato de que ele interpreta o videoclipe enquanto um meio audiovisual que irá tomar como referência as convenções perfor- máticas já presentes há muito tempo na história da música popular, reconfigurando-as em novos dispositivos tecnológicos e em novas ambiências midiáticas. Desse modo, a inventividade criativa do vide- oclipe reside justamente na possibilidade de o artista se apropriar de uma performance musical e fragmentá-la, ressignificá-la e reproduzi-la de uma maneira ideal, através das ferramentas e recursos intrínsecos ao meio audiovisual.

O videoclipe se situa como um desdobramento da performance da canção popular massiva, uma vez que integra a cadeia de produção

6. Aqui entendemos “ator” segundo as diretrizes da teoria ator-rede proposta por Bruno Latour (2012). Este ator, portanto, pode ser tanto um agente humano quanto um agente não-humano. Ou seja, na performance musical materializada pelo videoclipe, este ator pode ser tanto o intérprete principal, como a banda que toca os instrumentos ou até mesmo outro tipo material que participa da construção estética do videoclipe, tais como iluminação, figurinos e efeitos de pós-produção. 208 DIVAS POP

de sentido que articula o sonoro e o visual, sendo ‘regido’ por uma sistemática de construção de imagens que opera com signos visuais ‘inseridos’ na canção e que operam segundo pressupostos das pró- prias performances apresentadas. Nesta lógica, podemos entender o videoclipe como uma nova camada de mediação sobre a canção po- pular massiva. (SOARES, 2013, p. 153)

Tendo todas essas questões em vista, argumentamos que as perfor- mances ao vivo e os videoclipes atuam em conjunto na produção de uma performance midiática do casal Carter no contemporâneo, colaborando para a construção de uma instituição artística, social e econômica no interior da indústria fonográfica estadunidense e global. Seguindo as pistas de Diana Taylor (2013), ao analisar a performance midiática dos Carter como uma performance, podemos empreender a análise de um certo roteiro performático (ou de vários roteiros sobrepostos), que arti- culam uma intenção mercadológica por detrás da fachada sedimentada pelo relacionamento romântico de Beyoncé e Jay-Z.

O roteiro performático dos Carters Ao discorrer sobre o paradigma dos roteiros performáticos, Diana Taylor (2013) parece querer se distanciar da análise textual escrita e verbal - para ela sinônimo de uma epistemologia fortemente enraizada no ocidentalismo literário hegemônico - observando as ações incorpo- radas pelos atores sociais como foco privilegiado de análise. “Ao invés de privilegiar textos e narrativas, poderíamos também ver os roteiros como paradigmas para a construção de sentidos que estruturam os ambientes sociais, comportamentos e consequências potenciais” (TAYLOR, 2013, p. 60). Desse modo, a ideia de roteiro parece ser produtiva ao evocar a noção de “um sumário ou esboço de uma peça, que dá informações sobre as cenas, situações, etc.” e que está em constante transformação ou atualização, pois cada encenação deste roteiro - assim como numa peça teatral - será sempre, de alguma maneira, diferente.

O roteiro inclui aspectos bem teorizados na análise literária, como narrativa e enredo, mas exige também que se preste atenção aos mi- lieux e aos comportamentos corporais como gestos, atitude e tom, que não se reduzem à linguagem. Simultaneamente montagem e ação, THE CARTERS 209

os roteiros moldam e ativam os dramas sociais. (...) As ações e os comportamentos que surgem dessa montagem podem ser previsíveis - uma consequência aparentemente natural dos pressupostos, valores, objetivos, relações de poder, audiência presumida e as grades epistê- micas estabelecidas pela própria montagem. Mas eles são, em última instância, flexíveis e abertos à mudança. (TAYLOR, 2013, p. 61)

A autora sublinha o fato de que “o roteiro como paradigma para se entender as estruturas e os comportamentos sociais pode nos permitir valer-nos tanto do repertório quanto do arquivo” (TAYLOR, 2013, p. 62), não sendo necessário que anulemos o registro arquival ao tratar do repertório incorporado nem vice-versa. Isso significa que tanto as performances musicais registradas em arquivo (aqui preconizadas pelos videoclipes de Beyoncé e Jay-Z) quanto as performances musicais “ao vivo” (shows das duas turnês conjuntas do casal) podem ser levadas em consideração na análise do roteiro performático encenado pelos dois artistas. Em resumo, o roteiro performático pode ser definido de modo geral à partir de quatro eixos principais: 1) no roteiro encontra-se subsumida uma ideia de repetição cumulativa das mesmas ações incor- poradas, encenadas, reencenadas e atualizadas em diferentes períodos históricos; 2) leva em consideração as gestualidades e as nuances não linguísticas na produção de sentido de determinado roteiro; 3) é aberto e flexível, podendo abranger inúmeros “finais” ou mudanças na forma de encenação do drama, ainda que reativando sempre performances que acionem a potência comunicativa dos clichês (SOARES, 2018) e 4) “o roteiro força-nos a nos situar em relação a ele; como participantes, espectadores ou testemunhas, precisamos “estar lá”, como parte do ato de transferência (TAYLOR, 2013, p. 65). A primeira parceria midiática entre Beyoncé e Jay-Z é lançada no ano de 2002. “03 Bonnie & Clyde” é uma música performada por Jay-Z em parceria com Beyoncé Knowles e faz parte do sétimo álbum de estúdio do rapper. A música também foi incluída na versão internacional do primeiro álbum de estúdio da cantora, intitulado “Dangerously in love” e lançado em 2003. O próprio título da canção já nos remete ao casal de criminosos que viajaram pela região central dos EUA durante a primeira metade 210 DIVAS POP

da década de 30. O casal ficou famoso na cultura popular norte-ameri- cana por ter cometido uma série de roubos a bancos, postos de gasolina e pequenos comércios. A dupla também era assassina, tendo matado inúmeros civis e policiais no período em que percorreram o país, até serem mortos em uma emboscada no dia 24 de maio de 19347. Bonnie e Clyde tornaram-se personagens míticos da cultura popular estaduni- dense após se tornarem o enredo de um filme de Hollywood, produzido em 1967 e dirigido por Arthur Penn. No videoclipe protagonizado por Beyoncé e Jay-Z, os artistas revivem a história de amor e crime preco- nizado pelo roteiro estruturado em torno das figuras míticas de Bonnie e Clyde, atualizando a ação para o contexto musical estadunidense do início dos anos 2000. A diferença, aqui, é que o casal escapa com vida da emboscada perpetrada pelos policiais. Os Carters vão retornar a este roteiro em sua primeira turnê conjunta, a On the road tour (2014), no qual irão novamente reencenar o roteiro do casal de criminosos que vivem aventuras perigosas no amor e no crime. Antes do início dos shows internacionais, o casal adotou uma bem-sucedida campanha de marketing8, no qual lançaram um trailer falso para um filme de ação fictício, cujo propósito era propagandear a turnê conjunta. O vídeo estreou em maio 2014 no YouTube, intitulado “RUN”. Em meio a cenas de ação em que Beyoncé e Jay-Z aparecem roubando bancos e atirando com armas de fogo em civis e policiais, o vídeo reencena o roteiro de Bonnie e Clyde, reforçando a ideia dos artistas enquanto um casal “parceiro no crime”. É interessante observarmos, também, que Beyoncé e Jay-Z abrem os shows desta turnê com as músicas “03 Bonnie and Clyde” e “Part II (On The Run)”, faixa que faz alusão ao fato de que o casal escapou dos policiais no fim do videoclipe de 2002, estando agora “em fuga”9. O trailer-vídeo-marketing, assim como o vídeo projetado nos telões dos shows da turnê, materializam a fuga do casal de criminosos em cenas de ação e de amor.

7. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2019. 8. Para assistir: . 9. Tradução para a expressão em inglês “on the run”. THE CARTERS 211

Antes da turnê, no entanto, entre os anos de 2009 e 2013, o casal Carter lançou parcerias musicais e audiovisuais, colaborando para a construção de um roteiro performático bastante emblemático, o qual se relaciona com o enredo de Bonnie e Clyde mas não se limita a este. Aqui vemos nascer e se consolidar o roteiro do amor monogâmico, indestru- tível e eterno. Vemos a encenação de uma relação romântica digna de “contos de fadas”, cujo futuro tinha todos os elementos para se tornar a “história com um final feliz”. A relação romântica se amalgama à cons- tituição de uma vitória do afeto negro em uma sociedade marcada pelo racismo. Ou seja, ao mesmo tempo em que o roteiro do amor romântico se desenha, o corpo negro se constrói como desejado romanticamente. Jay-Z fez participações especiais nos videoclipes de “Crazy in love”, “Deja vu” e “Upgrade u”, todos pertencentes aos dois primeiros álbuns de estúdio de Beyoncé, denominados respectivamente de “Dangerously in love” (2003) e “B’Day” (2006). Depois de sete anos, volta a aparecer nas produções audiovisuais de Beyoncé, participando dos videoclipes de “Drunk in love” e “Partition”, músicas do álbum visual “Beyoncé”, lançado em 2013. Na cerimônia do Grammy Awards10 de 2014, Beyoncé apresentou-se com a canção “Drunk in love”, performando ao lado de Jay-Z no palco da premiação, reiterando mais uma vez o roteiro do “amor romântico” explicitado nos parágrafos acima. No entanto, enquanto uma performance midiática viva e inacabada, o relacionamento dos Carter está suscetível a rupturas (PEREIRA DE SÁ, 2016). Ainda que procure estabelecer uma coerência expressiva (PEREIRA DE SÁ E POLIVANOV, 2012) em torno dos roteiros perfor- máticos, tais rupturas deixam marcas e provocam fissões no roteiro até então harmônico, abrindo rastros digitais inevitáveis e espalhando-se de maneira vertiginosa pelas plataformas da internet em rede.

É este processo que chamamos de coerência expressiva dos atores nas redes sociais. E com esta expressão interessa-nos demarcar este

10. Grammy Award é uma cerimônia de premiação da “Academia Nacional de Artes e Ciências de Gravação” dos Estados Unidos, que presenteia anualmente os profissionais da indústria musical com o prêmio Grammy, em reconhecimento à excelência do trabalho, conquistas na arte de produção musical e provendo suporte à comunidade da indústria musical. 212 DIVAS POP

processo, intensamente complexo, precário, inacabado, de ajuste da “imagem” própria aos significados que se quer expressar para o outro. (...) Processo que se dá em tensão, sujeito a ruídos, uma vez que é sempre atravessado pela relação com os outros atores da rede socio- técnica na qual o usuário se insere. O que nos permite sugerir, talvez, uma ilusão da coerência expressiva, à maneira como Bourdieu fala da ilusão biográfica, a fim de desconstruir qualquer suposição de -es tabilidade, controle ou de concretude do sujeito como resultado do processo. (PEREIRA DE SÁ E POLIVANOV, 2012, p. 581)

O ponto limiar de ruptura parece ser marcado pelo episódio divul- gado com exclusividade pelo canal de televisão TMZ11, em que Solange Knowles, irmã de Beyoncé, aparece em um elevador agredindo fisica- mente o cunhado Jay-Z12. As imagens foram captadas por uma câmera instalada no elevador do local no qual ocorreu uma after-party (festa posterior ao evento) no Baile Met Gala13 de 2014. Após o incidente, nem Beyoncé e nem Jay-Z se pronunciaram abertamente sobre o assunto, fato este que gerou inúmeras controvérsias em rede14. (HENN, 2014) Nesse sentido, podemos pensar no episódio do elevador como uma crise/ruptura do roteiro performático do amor romântico com novos

11. Thirty-mile Zone (conhecida simplesmente TMZ) é um site americano de entretenimento surgido de uma parceria entre o AOL e a Telepictures, ambas pertencentes ao grupo Time Warner. Seu reconhecimento mundial veio quando o artista Michael Jackson faleceu. O TMZ foi a primeira mídia a divulgar sua morte superando grandes redes de notícias mundiais. Horas mais tarde, a informação foi confirmada e o TMZ se tornou oficialmente uma referência de notícias sobre celebridades. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2019. 12. Mais informações em: . Acesso em: 15 jul. 2019. 13. O Met Gala é um evento anual que reúne celebridades, modelos, estilistas e outros grandes nomes da indústria da moda norte-americana. O evento, que oficialmente se chama “Metropolitan Museum of Art’s Costume Institute Benefit” (ou, em português, “Evento Beneficente do Instituto de Vestuário do Museu de Arte Metropolitan”) tem como objetivo levantar fundos para o Departamento de Moda do museu. Disponível em: https:// www.vogue.com/article/met-gala-history-60-seconds-hamish-bowles. Acesso em: 15 jul. 2019. 14. TNT Brasil. Beyoncé x Jay-Z x Solange Knowles: transformando tretas em Lemonade | Tretas TNT. 2018. (08m33s). Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2019. THE CARTERS 213 contornos e dando indícios de que um drama social (TURNER, 2008) estava em curso.

O drama social como método de análise Os videoclipes lançados posteriormente ao incidente no elevador possuem um arco dramático entre si que, unidos sob o roteiro do casa- mento em crise pelas rupturas de um conflito imprevisível, ganham contornos midiáticos e artísticos. A proposta é fazer uma leitura sobre os desdobramentos deste relacionamento à luz do conceito de “drama social” trazido pelo antropólogo Victor Turner (2008). O modelo drama- túrgico proposto por Turner busca identificar unidades processuais que ocorrem, via de regra, em todos os “dramas sociais” que surgem por meio de uma situação de conflito:

Dramas sociais e empreendimentos sociais - bem como outros tipos de unidades processuais - representam sequências de eventos sociais, que, vistas respectivamente por um observador, podem ser mostra- das como tendo uma estrutura. (...). Dramas sociais são, portanto, unidades de processo anarmônico ou desarmônico que surgem em situações de conflito.” (TURNER, 2008, p. 29-30).

Entre fases de cada unidade processual existem situações de ruptura, em que as relações entre os atores que vivem o drama social se modificam e/ou são renegociadas, permitindo um fluxo constante e diacrônico do mundo. É possível, portanto, encarar as rupturas na performance do relacionamento entre Beyoncé e Jay-Z como as unidades processuais de um drama social específico. Se tivermos em mente a transformação dos eventos que cercam esta performance em um enquadramento midiá- tico composto por quatro fases bem definidas, a saber: 1) a ruptura ou fissura social; 2) a crise crescente; 3) a ação corretiva e 4) a reintegração das partes (TURNER, 2008), podemos ler a teatralidade da performance incorporada por ambos os artistas em seus respectivos videoclipes e em suas performances ao vivo como os rastros de um roteiro performático construído, mas que encontra na arena da música popular massiva, o principal palco para o desdobramento das controvérsias ligadas a estes eventos. 214 DIVAS POP

O casamento de Beyoncé e Jay-Z é, então, representado dramatica- mente através de performances audiovisuais, perpetuando um roteiro que encontra-se no limiar entre o “real” da vida cotidiana e a fantas- magoria da performance encenada. Os espectadores acompanham os desdobramentos da crise como se acompanhassem a um filme, gerando controvérsias e disputando afetos na grande rede sociotécnica que se forma ao redor deste roteiro performático (PEREIRA DE SÁ, 2016).

A ruptura A primeira unidade processual proposta por Victor Turner (2008) se caracteriza pela ruptura de relações sociais formais, no qual “tal ruptura é sinalizada pelo rompimento público e evidente” (TURNER, 2008, p. 33). Apesar de não ter havido um divórcio propriamente dito, podemos pensar no episódio do elevador como um importante ponto de inflexão no roteiro performatizado midiaticamente pelo casal Carter. Tal episódio tornou-se um ciberacontecimento (HENN, 2014) que tomou propor- ções gigantescas, afetando o público que acompanhava o casal pelas redes sociais e gerando um rastro de controvérsias15, desestabilizando a narrativa em torno de seu casamento “bem-sucedido”. Após o incidente, Solange Knowles apagou todas as fotos que tinha com a irmã em sua conta no Instagram, ao passo que Beyoncé, pelo contrário, adicionou inúmeras fotos com Solange em sua conta na mesma plataforma16. No dia seguinte ao incidente, a família liberou uma nota de esclarecimento sobre o ocorrido17, não citando diretamente a motivação do incidente, mas deixando claro que os envolvidos haviam conversado e resolvido as suas diferenças. Nenhum membro da família falou abertamente sobre o ocorrido, mas as especulações em torno deste evento povoaram a

15. Mais informações em: . Acesso em: 15 jul. 2019. 16. Clevver News. Beyonce, Jay Z and Solange speak out on elevator attack fight video with statement. 2014. (03m01s). Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2019. 17. Mais informações em: . Acesso em: 15 jul. 2019. THE CARTERS 215 internet. As suspeitas de traição por parte de Jay-Z tornaram-se um dos rumores mais proeminentes, mobilizando fãs em rede.

A crise A segunda unidade processual do modelo dramatúrgico de Turner se caracteriza pela crise crescente após uma situação de ruptura e/ou conflito. Nesta segunda etapa, “há uma tendência de que a ruptura se alargue, ampliando-se até se tornar tão coextensiva quanto uma clivagem dominante no quadro mais amplo de relações sociais relevantes ao qual as partes conflitantes pertencem” (TURNER, 2008, p. 33). Neste cenário, podemos nos referir a esta etapa como uma “escalada da crise”, no qual há um público ponto liminar entre a fase anterior de ruptura e a fase posterior do processo dramático-social, no qual a contenção da crise social imposta não é mais possível. A segunda unidade processual do drama social preconizado pelo casamento dos Carter, portanto, pode ser representada pelo lançamento mundial de “Lemonade”, sexto álbum de estúdio de Beyoncé Knowles e o segundo álbum visual da artista, lançado dois anos após o fatí- dico incidente no elevador, em 23 de abril de 2016. Em “Lemonade”, Beyoncé encena as fases de luto por conta de um relacionamento supos- tamente em “declínio”. Entendido como um dos álbuns mais pessoais da artista, “Lemonade” nos faz reviver um outro roteiro performático, que diz respeito às muitas histórias de amor que sofrem rupturas em sua condição de harmonia, revelando um lado obscuro e supliciante dos relacionamentos romanticamente idealizados. O disco pode ser lido como um manifesto político da cantora ao se “descobrir” mulher e negra após uma crise. O álbum encena o abandono e a traição, a dor pela perda de uma relação romântica e a performatização de um processo de cura. O lançamento de “Lemonade” no mercado mundial trouxe à tona o episódio no elevador, fazendo com que as controvérsias em rede reapa- recessem. Muitos fãs conectaram a obra aos eventos que ocorrem dois anos antes, transformando o álbum em um “alargamento da crise” pree- xistente. 216 DIVAS POP

Ação corretiva A terceira unidade processual do modelo proposto por Victor Turner (2008) é denominado de ação corretiva. “No intuito de limitar a difusão da crise, certos “mecanismos” de ajuste e regeneração (...) são rapida- mente operacionalizados por membros (...) do sistema social pertur- bado” (TURNER, 2008, p. 34) com o intuito de minimizar os impactos da crise subsequente à ruptura e de tentar rearranjar os laços sociais fraturados. Tendo como norte a terceira fase do modelo dramático-social acima proposto, podemos pensar no videoclipe de “Family feud” como um ponto liminar para o roteiro performático vivido pelo casal Carter nas esferas midiáticas. O álbum “4:44”, lançado por Jay-Z no dia 30 de junho de 2017, foi conectado ao álbum de Beyoncé lançado no ano anterior18, como se “4:44” fosse algum tipo de resposta a “Lemonade”. Em um momento da canção “Family feud”19, Jay-Z canta sobre como “ninguém ganha quando a família briga”. Em outro momento, o artista faz refe- rência a Becky - personagem trazida à tona por Beyoncé em um dos versos de “Sorry”20, como a possível pivô da traição do marido - implo- rando-a para que ela lhe deixe em paz. O vídeo musical de “Family feud”, publicado no dia 4 de janeiro de 2018 no canal oficial de Jay-Z na plataforma YouTube e dirigido por Ava DuVernay, traz inscrito um enredo que gira em torno de uma instituição familiar sólida e próspera. Após uma longa introdução não musical, vemos Jay-Z e sua filha Blue Ivy entrando em um templo religioso suntu- osamente decorado. Ao som dos primeiros acordes de “Family feud”, Jay-Z vai até o confessionário e começa a entoar os versos da canção como se estivesse se confessando. A pessoa que está do outro lado do

18. HOLLYSCOOP. Jay-Z finally explains elevator brawl incident with Beyonce’s sister Solange. 2017 (02m45s). Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2019. 19. Yeah, I’ll fuck up a good thing if you let me; let me alone, Becky; a man that don’t take care his family can’t be rich (Yeah, eu irei foder uma coisa boa se você me deixar; deixe- me em paz Becky; um homem que não toma conta da sua família não pode ser rico) em tradução livre. 20. “Sorry” é uma das faixas audiovisuais de “Lemonade” (2016). THE CARTERS 217 confessionário é Beyoncé, que faz uma participação especial na música e no videoclipe. É interessante perceber que, na narrativa visual, a artista encarna o papel do clérigo que ouve a confissão do pecador - ou seja, a pessoa que possui o poder de absolver os pecados de Jay-Z e “apagar” os vestígios de qualquer má conduta perpetrada pelo marido.

Reintegração A quarta e última unidade processual do modelo proposto por Victor Turner caracteriza-se pela “reintegração do grupo social perturbado” (TURNER, 2008, p. 36), ou seja, é a fase liminar do drama social no qual os integrantes de determinada instituição social buscam a reintegração das partes fissuradas, numa tentativa pública de reaver os laços fragmen- tados e integrar-se novamente à estrutura estável ao qual pertenciam no momento anterior à ruptura. Representando a última fase do drama social proposto por este artigo, podemos destacar a segunda turnê conjunta dos Carters, a “On the run II”, que se iniciou em 6 de junho de 2018 nos EUA e o subsequente álbum fonográfico em conjunto lançado pelo casal em 16 junho de 2018, após um dos shows desta turnê. Nesta segunda turnê conjunta, Beyoncé e Jay-Z voltam a encenar o roteiro de Bonnie e Clyde no palco, fazendo um medley da canção “03 Bonnie and Clyde” e “Part II (on the run)”, assim como fizeram em sua primeira turnê em 2014. Vemos também durante todo o show os artistas incorporarem o roteiro do amor român- tico, enfatizando a relação fortificada depois da ruptura e encerrando a performance midiática de seu casamento com um “final feliz”.

Considerações finais A partir da apropriação do modelo dramatúrgico proposto por Victor Turner (2008), e tendo como norte as conceituações sobre performance trazidas por Diane Taylor (2013), Simon Frith (1996) e Thiago Soares (2016), pudemos abarcar uma análise acerca da performance midiática dos Carters à partir das gestualidades inscritas nas personas de Beyoncé e Jay-Z. Utilizando-nos dos produtos audiovisuais e das performances ao vivo dos artistas como corpus empírico, foi possível refletir sobre como estas performances musicais afetam as percepções públicas sobre 218 DIVAS POP

um mesmo acontecimento e/ou evento dramático-social, permitindo- -nos estabelecer um roteiro performático estruturado. Através das unidades processuais que se seguiram à primeira ruptura pública do casal, pudemos ler e interpretar os vestígios e traços das performances incorporadas pelos artistas, permitindo-nos uni-las sob a lente do conceito de drama social e estabelecer um roteiro performá- tico específico a este enquadramento midiático. Roteiro este, importante lembrar, que está a todo momento sujeito a rupturas, tensionamentos e negociações que ocorrem entre o artista, o seu público de fãs e a mídia que circula a sua imagem pelos meandros da cultura pop. THE CARTERS 219

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“First things first” Na abertura de sua canção de maior sucesso comercial, “Fancy” (que ficou sete semanas seguidas no topo da parada pop da Billboard1), a rapper australiana Iggy Azalea canta “First things first, I’m the realest” (“Primeiras coisas primeiro, eu sou a mais real”). A frase remete à expressão “keepin’ it real” (“se manter real”), que costuma ser no rap americano como uma reivindicação de autenticidade (McLEOD, 1999). No entanto, Azalea já foi acusada diversas vezes dentro da comunidade de rap americana de não ser “real” ou autêntica por vários motivos: a) supostamente não escrever suas próprias letras2; b) cantar usando um sotaque associado aos negros (principalmente rappers) do sul dos EUA ao invés do seu sotaque australiano3; c) se referir pouco à sua vivência

1. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2019. 2. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2019. 3. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2019. 222 DIVAS POP

na Austrália em suas letras4; d) supostamente ter colocado implantes na bunda5; e) não ter talento e fazer sucesso por ser branca6; f) e até por não fazer rap “de verdade”7. Claro, isso não significa que ela absolutamente não tenha tido sua autenticidade reconhecida no campo do rap americano. No entanto, neste texto deixo de lado os julgamentos da autenticidade de Azalea feitas por outros para focar nas reivindicações de autenticidade que Iggy faz para si e incorpora em suas performances. Nesse percurso, parto do princípio de que uma análise das performances de autenticidade de Azalea centrada somente nos critérios de autenticidade do rap seria insuficiente, até por conta de sua aproximação de elementos do pop, chegando a se declarar algumas vezes como artista do subgênero “pop-rap”8. Em sua “treta” com o rapper americano Talib Kweli, por exemplo, Azalea, após ser acusada de amar a cultura negra mas não se solida- rizar com violências sofridas pelos negros, respondeu que o “rap é global agora e tem subgêneros. Pop-rap é parte disso. Você vai ter que aceitar o fato de que há pessoas que simplesmente gostam de uma canção boa para se dançar, e às vezes elas são canções de pop-rap. Muitos gostam delas, e vou continuar as fazendo9”, reforçando a ideia de que apesar

4. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2019. 5. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2019. 6. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2019. 7. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2019. 8. Subgênero de rap associado no geral a artistas como The Black Eyed Peas, Pharrell, LL Cool J, e Macklemore, e a uma sonoridade (tanto em termos de batidas quanto de letras) mais “dançante”, melódica e leve (ou seja, com menos referências ou referências mais leves a assuntos como sexo, drogas, crime e violência física) que o rap mainstream, tem samples com menos referências à “música negra americana” e mais puxados da chamada EDM () que o rap mainstream, e refrãos “chiclete” cantados por ou ao estilo de cantores/divas pop. 9. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2019. “THE REALEST”? 223 de afirmar se importar com questões “políticas”10, ela não teria suas canções marcadas por elas, mas não seria menos autêntica por causa disso. Em outra entrevista, desta vez para a rádio americana Power 105 em 2014, Azalea destacou “Fancy” como exemplo de sua descoberta de “seu próprio som” (dando uma ideia de autenticidade pessoal e origi- nalidade) através da mistura entre pop e rap: “sou uma grande esponja […], eu pego o que está ao meu redor, então tem sido legal […] ouvir diferentes sons […] e meio que misturar eles e acho que ‘Fancy’ é um bom reflexo disso”, com o refrão cantado por Charlie XCX dando “um pouco de uma vibração diferente” (RINES, 2015, p. 83) – em relação ao rap mainstream – à canção, com a colocação dessa mistura entre pop e rap como algo positivo podendo ser apontada como um dos critérios de autenticidade dessa chamada autenticidade pop-rap. Dito isso, minha escolha por analisar performances justamente da canção “Fancy” se dá muito por achar que ela é um ótimo ponto de partida para perceber as negociações entre pop e rap por ser uma das canções de Iggy que mais mistura convenções dos dois gêneros, seja por sua sonoridade, que mescla uma batida associada ao rap da Costa Oeste dos EUA com as rimas de Azalea e um refrão “chiclete” que remete a canções de divas pop como Katy Perry e Britney Spears escritas por Max Martin; por sua letra, que traz temas comuns tanto no rap quanto no pop contemporâneos como superioridade em relação a rivais, osten- tação e destreza lírica e sexual; ou pelo fato dela ser cantada por duas mulheres brancas. Esta última informação é bastante importante dentro das disputas e performances de autenticidade envolvendo Azalea, afinal ela causou um impacto no rap não só por ter conseguido em pouco tempo um sucesso comercial que poucos rappers conseguiram, mas também por fazer isso sendo uma mulher branca (o gênero ainda não tinha tido uma rapper branca de sucesso relativamente duradouro) e australiana.

10. Deixando claro que esta é uma visão da própria Azalea, já que não concordo com esta dicotomia entre músicas sérias e políticas e músicas “de entretenimento” e para dançar e escapar, como se as duas coisas fossem totalmente diferentes. Creio que as performances de Iggy podem sim ser vistas como atos políticos, assim como as performances de uma série de outros e outras artistas de músicas “chiclete” que agenciam questões políticas importantíssimas. 224 DIVAS POP

Como afirmou Morrissey (2014, p. 15), a “emergência [de uma rapper branca no hip hop mainstream dos EUA certamente marca um ponto de virada crucial na contínua mediação da noção de real do hip hop”, afinal de contas, considerando que o rap ainda é um gênero associado majoritariamente a jovens negros periféricos americanos e que tem seus critérios de autenticidade bastante ligados a eles, o sucesso de Azalea e suas reivindicações de autenticidade dentro do gênero inevitavelmente causam tensão, com disputas relacionadas a quais critérios de autenticidade serão dominantes. O fato de Iggy se declarar como autêntica enquanto rapper e “pop- -rapper” torna essas disputas ainda mais tensas, por evidenciarem uma admitida união com uma estética pop em relação à qual rappers geral- mente reivindicam sua autenticidade de maneira contrária. Assim, este artigo se propõe a analisar duas performances de “Fancy” realizadas por Iggy em duas cerimônias de premiação diferentes, o BET Awards e o Billboard Awards, ambas de 2014, no intuito de inves- tigar como Azalea agencia e incorpora nessas performances misturas e tensões entre critérios de autenticidade e convenções do pop e do rap, no que eu chamo de “autenticidade pop-rap”. No entanto, antes disso é preciso falar do que entendo como performances de autenticidade e critérios de autenticidade do pop e do rap.

O que é autêntico no rap, e o porquê de Iggy Azalea não ser Pode-se afirmar que a forte associação do rap com os jovens negros americanos tem como uma de suas principais “causas” a própria origem do gênero, que “começou em meados da década de 1970 no [bairro de] South Bronx na cidade de Nova Iorque como parte do hip hop, uma cultura juvenil afroamericana e afrocaribenha composta de grafite,breakdancing e rap” (ROSE, 1994, p. 2). Apesar da série de transformações pelas quais passou o gênero através das décadas, a força dessa associação ainda é perceptível nos critérios do que eu chamo de “THE REALEST”? 225

“noção de autenticidade dominante do rap”11, delineados por McLeod (1999), que apontou que rappers costumam ser vistos como mais autênticos quanto mais se mantém fiéis a si mesmos12; se identificam como negros e “duros” (performando uma masculinidade associada a homens heterossexuais cisgêneros); representam o underground e as periferias e “bairros negros” das metrópoles americanas; e se lembram do legado cultural do hip hop. Enquanto isso, os artistas costumam ser considerados “menos autên- ticos” quanto mais seguem tendências de massa; produzem rap comer- cial; são “suaves” (performando traços ligados à “feminilidade” heteros- sexual ou a identidades queer) e se identificam como brancos ou com a cultura mainstream branca localizada nos (ricos) subúrbios americanos (McLEOD, 1999). Por mais que eu ache que esses critérios continuam dominantes, eles estão longe de serem os únicos a circular no rap, afinal acredito que também tem grande peso no gênero o que eu chamo de “noção de auten- ticidade cosmopolita do rap”, que está em disputa simbólica constante por influência e espaço com a noção de autenticidade dominante. Esta noção cosmopolita é possibilitada pela consolidação do status trans- nacional tanto do consumo quanto da produção de rap, movida pela posição central que o gênero ocupa dentro da cultura pop americana, e, por consequência, mundial, dado o caráter de “americanização da cultura global” que a globalização parece ter.

11. Entendo noção de autenticidade como um conjunto de critérios de autenticidade que se agrupam de forma relativamente coesa, o que não significa que certos critérios não possam fazer parte de diferentes noções de autenticidade. Esses critérios de autenticidade, por sua vez, designariam um determinado fator que, se percebido em determinada pessoa ou obra, ajudaria a conferir a ela o status de autêntica. Assim, esses critérios seriam construções sociais que estariam em disputa permanente para determinar qual noção de autenticidade será dominante dentro de determinado gênero, com diferentes noções se confrontando e se transformando constantemente. 12. A demanda para que os artistas sejam “fieis a si mesmos”, ou mantenham (e transpareçam) o que eu chamo de “autenticidade pessoal”, acredito, é uma característica de praticamente todos os gêneros de música pop contemporâneos. A diferença, claro, é que essa autenticidade pessoal é mais valorizada em determinados gêneros do que em outros, e seus critérios e formas de expressá-la são diferentes de acordo com o gênero ou noção de autenticidade. 226 DIVAS POP

Além disso, também tem influência o próprio processo de populari- zação pelo qual vem passando o rap, tanto em termos de aproximação com o pop (é difícil citar um álbum de uma diva pop americana lançado recentemente que não tenha participação de pelo menos um ou uma rapper, por exemplo) quanto em termos de aumento no seu consumo (em 2017 o rap/R&B ultrapassou o rock como gênero de música mais ouvido dos EUA pela primeira vez, com 25,1% do consumo no país contra 23% do rock, com o rap/R&B quase tão popular no e na Apple Music quanto rock e pop combinados13). Nessa noção cosmopolita, os critérios de autenticidade que associam o rap aos jovens negros periféricos americanos e ao lugar do rap como música “de protesto” ainda são influentes, mas perdem força, enquanto há uma maior valorização do sucesso comercial, de iniciativas de “espa- lhar” o rap e torná-lo mais cosmopolita, da autenticidade pessoal ou do ato de ser fiel a si mesmo (aliada a um certo desinteresse em relação a questões mais “políticas” e “causas sociais”), de fatores estéticos próprios do rap (em detrimento dos “políticos”) no julgamento de artistas, e o afeto pelo rap como legitimador do espaço do artista no gênero (em detrimento de fatores mais “identitários”). Certamente, esses critérios de autenticidade dão muito mais margem para que a autenticidade de Iggy no rap receba julgamentos positivos do que os critérios apontados por McLeod (1999). Contudo, o fato deles ainda serem dominantes acaba tornando difícil para que a autenticidade de Azalea seja reconhecida pelo fato de ela ser mulher, branca, australiana, pelo “sotaque negro” que usa em suas apresentações (colocado como indicação de que não se mantém fiel a si mesma e/ou não se importa com o aspecto mais antirracista do rap). Por essas razões, é de certa forma compreensível que Iggy buscasse se aproximar da estética do pop, cujos critérios de autenticidade tentarei delinear a seguir.

13. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2019. “THE REALEST”? 227

Que “pop” é esse em “autenticidade pop-rap”? Quando uso o termo “pop”, me refiro a ele como gênero musical, o diferenciando da “música pop” (ou “música popular massiva”), que entendo como

ligada às expressões musicais surgidas no século XX e que se valeram do aparato midiático contemporâneo, ou seja, técnicas de produção, armazenamento e circulação tanto em suas condições de produção bem como em suas condições de reconhecimento. Na verdade, em termos midiáticos, pode-se relacionar a configuração da música po- pular massiva ao desenvolvimento dos aparelhos de reprodução e gravação musical, o que envolve as lógicas mercadológicas da Indús- tria Fonográfica, os suportes de circulação das canções e os diferentes modos de execução e audição relacionados a essa estrutura (JANOT- TI JÚNIOR, 2006, p. 3).

Enquanto isso, o pop seria um gênero musical (assim como o rap), considerando o termo como um “suposto ponto de convergência ou tradução entre figura estética, comunidade musicalmente imaginada e uma formação identitária mais ampla”, implicando “uma mediação mútua entre duas entidades históricas auto-organizadas – formações musicais […] e formações socio-identitárias” (BORN, 2011, p. 384). Tentarei deixar mais claras essas formações posteriormente. Ressalto que, apesar do termo “pop” vir sendo usado na música pop com mais frequência desde a década de 1950, originalmente para designar canções (geralmente de rock) de apelo massivo voltadas para um público jovem (SOARES, 2012) e mais tarde rotulando canções mais “leves” e “de entretenimento” (em oposição ao aumento do caráter underground e “artístico” do rock14) (REGEV, 2013, p. 17), o pop ao qual me refiro é o pop “contemporâneo”, que tem como principais cânones ou “fundadores” Michael Jackson e Madonna, se referindo predominante- mente a canções lançadas a partir da década de 1980 de instrumentação predominantemente elétrica e eletrônica, com alto uso de samples e sons obtidos através de computadores, geralmente com uma sonoridade

14. Vê-se algo similar na distinção entre rap e pop, com o rap sendo colocado como mais “autêntico”, “underground”, “político”, e “duro”, como disse McLeod (1999). 228 DIVAS POP

tidas como “chiclete” e divertida, de “curta e média duração, [...] estru- tura versos-pontes-refrão, [e] emprego comum de refrãos e estruturas melódicas em consonância com um certo senso sonoro pré-estabele- cido” (SOARES, 2015) (formação musical). Esse pop estaria associado a um público jovem, majoritariamente branco e predominantemente feminino e/ou queer (formação sócio-identitária) com canções de “divas pop” como Madonna, Britney Spears, Rihanna, Beyoncé e Lady Gaga (e canções de outros gêneros que alcançaram sucesso comercial nas paradas pop). Contudo, o fato de o pop ser associado a uma estética formalmente convencional e voltada para a obtenção de consagração mais comercial (em vez de “artística”) não significa que o gênero não tenha sua noção de autenticidade. Um exemplo é o estudo de Soares (2012) sobre os cantores Britney Spears, Justin Bieber e Lana Del Rey, que concluiu que, por mais que cada um deles agenciasse critérios de autenticidade especí- ficos15, em geral os julgamentos de sua autenticidade por fãs deixa carac- terísticas “puramente” musicais de lado para lidar com outras de ordem performática ou ética. No entanto, para obter um panorama mais amplo sobre a auten- ticidade do pop é preciso ver critérios relacionados a artistas especí- ficos como não sendo os únicos que influenciam o julgamento de sua autenticidade. Entendo esses critérios mais específicos como ligados à sua “autenticidade pessoal”, ou seja, à sua sinceridade, pensando o termo não só como a “congruência entre uma declaração e o sentimento real [por trás dela]”, mas também como uma “iniciativa da sinceri- dade” baseada na tentativa de algum indivíduo de ser fiel a si mesmo (TRILLING, 2014, p. 12); ou à sua autenticidade, versão “moderna” da ideia de sinceridade que dá “importância moral crucial com um tipo de

15. No caso de Britney, o fato dela usar playback na maior parte do show não era um inconveniente, o problema que fazia com que sua performance não fosse julgada positivamente era a falta de execução de coreografias complexas e danças como no começo de sua carreira, ou mesmo parecer “vigorosa” (e não apática); para os fãs de Bieber, o valor da performance estava no fato dele estar próximo dos fãs, seja fisicamente ou através das redes sociais; e, por fim, Lana Del Rey era considerada autêntica justamente por “admitir” abertamente que “não era autêntica”, e sim um construto “feito para fazer sucesso”, o que dava a ela uma imagem de artista sincera (SOARES, 2012). “THE REALEST”? 229 contato comigo mesmo [...], que é vista como em risco de ser perdida, em parte através de pressões em direção à conformidade externa, mas também porque [...] posso ter perdido a capacidade de ouvir essa voz interior” (TAYLOR, 2011, p. 39). No caso da música, essa demanda por autenticidade pessoal se mani- festaria na espera de que o artista deseje “de verdade” expressar o que está expressando. Esses critérios de autenticidade pessoal são contingentes e estão em constante diálogo e tensão com os critérios do que chamo de “autenticidade coletiva”, ou, no caso, “autenticidade de gênero”16. Assim, no pop em geral, acredito que, em adição a critérios ligados a artistas específicos, também são considerados mais autênticos os artistas que se associam a uma identidade “feminina” e/ou queer; são brancos; estão comprometidos com a ideia do pop como um lugar de diversão, artifício e dança, visto que o gênero é associado a uma lógica de epifania que se dá mais por efeitos de presença e se volta mais para o corpo (GUMBRECHT, 2010), geralmente mais que o rap, inclusive; veem o sucesso comercial como algo positivo, não se opondo ao que é ligado ao popular, ao clichê e ao artifício (o que não significa que esses artistas também não busquem legitimação cultural); enfatizam aspectos visuais como parte essencial de sua produção artística (seja através de postagens em redes sociais, figurinos, videoclipes ou shows de forte apelo visual e investimento em cenografia); e focam mais na produção de singles que de álbuns, especialmente álbuns conceituais, associados ao rock (um exemplo foram os frequentes comentários entre fãs de pop de que Rihanna e Beyoncé estariam se desassociando do gênero ao lançarem em 2016 os álbuns “Anti” e “Lemonade”, tidos como mais conceituais que seus trabalhos anteriores, ou do que é costume no pop). Claro, esses não são os únicos critérios vigentes na noção de autenticidade (domi- nante) do pop, e muito menos conclusivos. Por enquanto, ressalto que creio ser possível enxergar Azalea se aproximando de vários dos crité- rios e semblantes midiáticos citados. Analisarei posteriormente como ela negocia com essa autenticidade do pop, na tentativa de formar crité- rios próprios (e do pop-rap).

16. Como apontei nos casos das noções de autenticidade dominante e cosmopolita do rap anteriormente. 230 DIVAS POP

Uma pausa para falar sobre autenticidade e performance Antes de partir para a análise de como Azalea performa uma auten- ticidade pop-rap, quero tentar esclarecer alguns pontos sobre a questão da autenticidade em si. Acredito que, sejam quais forem os tipos consi- derados, “a autenticidade deve sempre ser performada para ser reconhe- cida e aceita como tal” (RODMAN, 2006), ou seja, para que um artista seja considerado autêntico, é preciso que ele transmita materialmente certos traços que podem ser tidos como autênticos através de gestos, cantos, e assim por diante, ou seja, através da performance. Quando falo de performance, me refiro ao termo tanto em referência aos objetos deste estudo, os entendendo como parte das “muitas práticas e eventos [...] que envolvem comportamentos teatrais, ensaiados ou convencionais/apropriados para a ocasião” (TAYLOR, 2013, p. 27), quanto como o ato de analisar eventos como performance, a usando como “uma epistemologia”, com esses dois modos realçando “a compre- ensão da performance como simultaneamente ‘real’ e ‘construída’” (Ibidem, 2013, p. 27). Desta forma, tanto expressões artísticas quanto ações da vida “comum” podem ser vistas como performances na medida em que se vê nelas uma teatralidade, entendida por Diana Taylor (2013, p. 41) como “uma configuração paradigmática que conta com parti- cipantes supostamente ao vivo, estruturados ao redor de um enredo esquemático, com um fim pretendido (apesar de adaptável)”, que trans- mite “um padrão estabelecido de comportamento ou de ação”. Ainda segundo Taylor (2013, p. 41), a “teatralidade, como o teatro, ostenta seu artifício, seu caráter construído”, e “luta pela eficácia, não pela autenti- cidade”. No entanto, a autenticidade ainda assim precisa da performance. Para Charles Taylor (2011, p. 68), se a autenticidade pessoal passa por um ato de “ser fiel a si mesmo”, para que isso ocorra é preciso “dar expressão em nosso discurso e ações ao que é original em nós”, de modo que a revelação desses elementos originais vem “através da expressão”, ou seja, através da performance. Segundo Trilling (2014, p. 21), “nessa tarefa de apresentar o eu, [...] nós interpretamos o papel de nós mesmos, desem- penhamos com sinceridade a função da pessoa sincera, e disso resulta “THE REALEST”? 231 que um juízo que se debruce sobre nossa sinceridade pode muito bem declará-la inautêntica”. Sendo assim, como analisar performances musicais levando em consideração critérios de autenticidade tanto pessoal quanto de gênero? Quais elementos performáticos são acionados por Iggy para remeter às autenticidades do pop e do rap, e materializar uma autenticidade pop-rap? Para Janotti Jr. e Soares (2014, p. 10), a sinceridade na perfor- mance “caracteriza-se por um efêmero e, portanto, aparece diante de circunstâncias enunciativas”; e perscrutá-la “significa se deparar com a sensibilidade dos atos, das ações, dos gestos”. Assim, se a sinceridade na performance aparece diante de circuns- tâncias enunciativas, e se, voltando a citar Taylor (2013), “a performance incorporada torna visível [...] todo um espectro de atitudes e valores” (p. 87), e é “um sistema de aprendizagens, armazenamento e transmissão de conhecimento” (p. 45), creio que um caminho possível seja analisar essas circunstâncias – no caso, as performances de Azalea escolhidas –, observando a partir de suas “performances de autenticidade” as bases para suas apresentações serem vistas como autênticas dentro de deter- minado contexto, seja essa autenticidade pessoal (com a performance transmitindo materialmente uma confirmação de posicionamentos veiculados pela artista em sua “biografia” através do corpo e de uma presença) ou de gênero (com a performance corroborando alinhamentos em relação a determinados critérios e noções de autenticidade). A partir disso, tentarei analisar, baseado nos critérios de autenticidade do pop e do rap discutidos anteriormente, como essas performances de Iggy nos indicam seu posicionamento em relação a esses critérios, e como ela materializa uma noção de autenticidade do pop-rap, ou mesmo critérios de autenticidade pessoal próprios.

A autenticidade pop-rap incorporada Para esta análise foram escolhidas duas performances de Azalea em cerimônias de premiação realizadas em 2014: no Billboard Music Awards, em 18 de maio, onde ela cantou “Fancy” junto com a inglesa Charli XCX, e depois participou da apresentação da canção “Problem” realizada pela americana Ariana Grande; e no BET Awards, em 29 232 DIVAS POP

de junho, onde ela fez uma participação na canção “No mediocre” do rapper americano T.I., e depois cantou “Fancy” (sem Charli XCX). A escolha das performances se dá principalmente por elas terem a canção “Fancy” em comum, o que poderia torná-las bastante semelhantes, mas acaba ressaltando as suas diferenças. Por ser organizado pela revista (e parada de música pop) americana Billboard, o Billboard Music Awards se notabiliza pela sua forte ligação com a música pop mainstream dos EUA, com prêmios sendo influenciados por fatores comerciais como vendas de discos, desempenho de turnês e impacto em mídias sociais. Já o BET Awards é organizado pela rede televisiva Black Entertain- ment Television (BET), e voltado principalmente para artistas negros americanos da música, televisão e cinema. Assim, se as apresentações musicais do Billboard Awards de 2014 foram feitas predominantemente por brancos, no BET Awards de 2014 o único branco além de Azalea a se apresentar foi o cantor americano Robin Thicke. Por isso, a escolha se dá também por considerar estas apresentações como representativas dos dois gêneros nos quais Iggy baseia sua autenticidade: rap e pop. A primeira diferença significativa entre as duas performances está no cenário: na apresentação do BET Awards, a cenografia se limita a um a cadeira no centro do palco (de onde Azalea surge) e imagens de favelas cariocas projetadas em telões, em consonância com o clipe de “No mediocre”, que se passa neste cenário. E, quando T.I. se retira, ao final de “No mediocre”, as imagens de favelas são substituídas por animações com as palavras “IGGY” e “FANCY”. Por mais que a falta de cenografia possa estar mais ligada a uma preferência de T.I., o fato de Iggy usar poucos elementos cenográficos nessa performance faz ela se aproximar da noção de autenticidade do rap, onde se costuma dar menos atenção à “cenografia” em shows que no pop17. Já na apresentação do Billboard Awards, o cenário tem três grandes colunas (de novo com as palavras “IGGY” e “FANCY”), além de telões com animações em um estilo que remete às líderes de torcida

17. Ironicamente, quem mais pareceu investir nisso durante a cerimônia foi Nicki Minaj, provavelmente a rapper mais pop da última década (tanto esteticamente quanto em sucesso comercial), que se apresentou em um cenário bastante diferente das convenções do rap, em meio a cogumelos gigantes e um dançarino fantasiado de coelho. “THE REALEST”? 233 de colégios americanos, como o clipe de “Fancy”. A partir do início de “Problem”, a cenografia passa a se basear no clipe dessa canção, com tons de preto e branco, e as colunas se tornando “jaulas” para os dançarinos. O fato de a performance de “Fancy” no Billboard Awards ter tanto “apelo cenográfico” quanto a de Problem“ ” indica uma aproximação dos crité- rios de autenticidade do pop, onde os shows costumam ser marcados por um grande investimento nessa área, e um afastamento da parte de T.I. (e/ou Iggy) dessa característica na apresentação no BET Awards. Também há diferenças no que se refere ao vestuário. No BET Awards, Azalea se vestiu mais “casualmente”, com legging e top pretos, em conso- nância com T.I., vestido com um conjunto associável à “moda hip hop”18, com calça jeans, moletom verde e camisa branca – até seus sapatos foram parecidos. O figurino de Iggy foi bastante diferente no Billboard Awards, onde ela e Charli XCX cantaram usando top e saia xadrez ao estilo “líder de torcida”. Assim, Azalea se alinhou respectivamente às noções de autenticidade do rap e do pop também através do vestuário, usando uma roupa mais “masculina” e associada à “moda hip hop” no BET Awards, e uma mais “feminina” e que mais parece uma fantasia (se associando a uma ideia de artifício e pastiche) no Billboard Awards. Além disso, enquanto o figurino de Azalea é totalmente diferente do das dançarinas na performance de “No mediocre” (vestidas com jaquetas, shorts e meias com as cores da bandeira do Brasil, ou de passistas de escola de samba) e um pouco parecido com o das dança- rinas que surgem no palco do BET Awards na performance de “Fancy” (com shorts pretos e camisas pretas e brancas), no Billboard Awards seu figurino é quase igual ao das dançarinas que performam durante a execução de “Fancy” (também vestidas de líderes de torcida), o que remete à questão da dança em si. De fato, a maior integração de Azalea com as dançarinas na apresen- tação no Billboard Awards vai além do vestuário, afinal mesmo compa-

18. Não que todos os rappers se vistam assim, claro, ou “todos os rappers negros americanos”, enfim. Uma das grandes influências de Azalea, o rapper Andre 3000, do grupo Outkast, por exemplo, é adorado pela australiana justamente porque ele “não se veste como rappers normais”, segundo ela. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2019. 234 DIVAS POP

rando só as duas performances de “Fancy” é perceptível uma diferença entre elas no que se refere à dança. Nas duas performances há várias dançarinas no palco executando coreografias, mas Azalea parece acom- panha-las pouquíssimas vezes no BET Awards, enquanto no Billboard Awards ela o faz em vários momentos. Claro, isto poderia estar relacionado à quantidade de ensaios, mas as diferenças não se resumem ao acompanhamento das coreografias, afinal estou entendendo dança não “somente [como] uma expressão pública de certos movimentos corporais diante da música, e sim [como] a corporificação indicada na própria expressão musical”, ou “um modo codificado de processar a música” (JANOTTI JÚNIOR, 2006, p. 11). Desta forma, os movimentos em geral de Iggy parecem diferentes, já que enquanto no BET Awards seu gestual parece mais “sério”, “masculino” (restrito aos braços, por exemplo), e ela dança pouco enquanto canta, no Billboard Awards a australiana adota uma postura mais “divertida”, e dança durante toda a performance, de maneira mais como o “feminino” se apresenta no pop (mexendo mais os quadris, por exemplo). Se, como afirma Frith (1998, p. 223), as “convenções de performance de dança são baseadas em gêneros [musicais]”, seguindo “uma combinação de movi- mentos estilizados e naturalizados, de respostas aprendidas e espon- tâneas”, pode-se notar em Iggy uma postura mais alinhada aos crité- rios de autenticidade do rap no BET e do pop no Billboard Awards em termos de dança, afinal rappers geralmente se portam em shows como se estivessem mais preocupados em desafiar seus competidores em uma batalha de MC’s do que “dançar” ou executar coreografias, enquanto geralmente se espera que divas pop pareçam “se divertir” nos shows e/ ou dancem bem. Nota-se ainda esse tipo de materialização performática de posiciona- mentos em relação a gêneros na própria relação aparente entre Iggy e as plateias das duas apresentações, ou entre a plateia e o pop-rap “de Iggy”. Enquanto a plateia do Billboard Awards demonstra uma aprovação “anônima” (seja em planos abertos ou closes de pessoas “desconhe- cidas”) através de filmagens de celular, gritos e danças, indicando uma certa “aprovação” da “plateia do pop”, a plateia do BET Awards também é mostrada dançando e se divertindo ao ver a apresentação de Azalea no “THE REALEST”? 235 geral, mas há bem mais pessoas “conhecidas” (principalmente rappers), assim como algumas sugestões de tensão. A rapper trinidiana Nicki Minaj, por exemplo, aparece dançando e “fazendo pose”, algo que pareceria normal se não fosse por seu discurso ao ganhar o prêmio de “Melhor Rapper Mulher”, onde ela declarou que “quando você ouvir Nicki Minaj cantar, foi Nicki Minaj quem escreveu”, o que muitos interpretaram como uma indireta para Iggy, acusada ocasionalmente de usar “escritores-fantasma”19, um “sacrilégio” dentro dos critérios de autenticidade do rap. Minaj desmentiu os rumores posteriormente20, mas a polêmica nos faz questionar se os sorrisos de Minaj para a câmera durante a apresentação de “Fancy” foram irônicos, assim como os do rapper americano Lil Wayne e de dois jovens negros ao lado dele, aparentemente por conta de algo transcorrendo no palco. Assim, acredito que a postura tensa de Iggy ao fim da performance no BET Awards pode sugerir um reconhecimento de sua dificuldade em ser vista como legítima naquele contexto, ou como uma forma de materialização das tensões envolvidas nas negociações entre pop e rap que ocorrem na(s) performance(s)21. Mas se nessas apresentações específicas Azalea adere seletivamente a critérios de autenticidade do rap e do pop de acordo com o evento em diferentes encenações de identidade, onde estaria a sinceridade em suas performances, e no que se constituiria a autenticidade pop-rap? Bem, o

19. O rapper americano Skeme, inclusive, deu a entender em uma entrevista realizada em 2015 que tinha ajudado a escrever os versos de Iggy em “Fancy”. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2019. 20. BELINELI, Luiz. Nicki Minaj esclarece o “shade” que jogou em Iggy Azalea no BET Awards 2014. Disponível em:

que me parece é que a australiana performa nessas apresentações uma sinceridade para com o discurso veiculado por ela de que o rap também pode ser usado para fins menos “sérios” e “políticos” como dançar e se divertir ao som de uma batida (ou seja, ser mais pop), e ser autentica- mente produzido por pessoas fora do grupo social mais associado a ele. Ela transmite essa sinceridade através da incorporação em suas perfor- mances de uma mistura de traços performáticos associados a rappers e a divas pop, a partir de sua posição como mulher branca australiana. Além disso, Azalea também performa uma autenticidade pop-rap localizada em uma espécie de entre-lugar entre a noção de autenticidade dominante do pop e a noção de autenticidade cosmopolita do rap, em uma mistura entre convenções dos dois gêneros onde o rap se sobrepõe em algum nível (afinal ela se declara uma “pop-rapper”, e não uma “diva pop que faz rap”). Não que não seja influente na autenticidade pop-rap a noção de autenticidade dominante do rap e seus critérios que asso- ciam o gênero aos jovens negros periféricos americanos. No entanto, creio que aqui eles têm menos legitimidade do que na noção cosmopo- lita, enquanto ganha mais ressonância a ideia do “afeto” pelo rap como critério para legitimar a ingressão no gênero, o que teoricamente facili- taria a integração de artistas “não-negros” e tornaria o rap “mais branco”. Também perde influência a atitude underground e “política” do rap, enquanto ganha força uma aderência a valores associados ao pop como a ênfase em aspectos visuais da produção, a busca por canções que façam o ouvinte dançar e se divertir, e uma maior assunção da artificialidade e do pastiche, tornando o pop-rap também mais aberto a participação de artistas mulheres e/ou queer que o rap “tradicional”. Nesse contexto, ser autêntico é misturar estéticas e valores do pop e do rap, com o “compromisso” do rap contra as opressões vividas pelos jovens negros periféricos dos EUA sendo deixado relativamente de lado em favor de uma maior valorização de um certo cosmopolitismo esté- tico (REGEV, 2013) e de associações a elementos da cultura pop ou do pop (como as referências ao filme “As Patricinhas de Beverly Hills” no clipe de “Fancy” e na performance no Billboard Awards), assim como do uso em geral do rap como forma de “se entreter” e dançar, mas não “THE REALEST”? 237 sem as devidas negociações, que por sua vez podem gerar uma série de tensões, claro.

Considerações finais De certa forma, sabe-se que um mesmo indivíduo é composto de vários “eus” ao mesmo tempo, os quais muitas vezes podem se contra- dizer. No entanto, isto certamente não impede as inúmeras tentativas de artistas musicais de performarem o papel de autênticos, relacionadas a uma pressão para manter uma “coerência expressiva” (SÁ; POLI- VANOV, 2012) que não depende somente do artista em questão, e sim de mediações entre ele e o público, e que, seja como for, estará sempre sujeita a ranhuras, questionamentos e tensões. Dito isso, o caso de Iggy me parece bastante revelador de como artistas tentando parecer autênticos acabam tanto manifestando a incor- poração de tensões em suas performances quanto provocando tensões em outros, indicando como a busca por ser fiel a si mesmo pode muitas vezes “passar por cima” de convenções éticas e morais. Exemplos disso, no caso de Iggy, são sua aparente “recusa” em demons- trar solidariedade às dificuldades de encontrar espaço no mercado vivenciadas pelas rappers negras”22, ou absorvendo seu “sotaque negro” justamente dos rappers do sul dos EUA, tão discriminados dentro do rap americano (principalmente por rappers de Nova Iorque e Los Angeles) por seus traços “sulistas”, entre eles o “uso teatral de gírias regionais”, como proposto por Austen e Taylor (2012). Desta maneira, enquanto a busca da autenticidade me parece ser algo defendido e visto sempre como positivo não só por músicos e fãs, mas também por estudiosos de música, acredito que é preciso dar mais atenção às formas como essas buscas podem levar a performances autên- ticas e simbolicamente violentas que ajudam a reproduzir sistemas de opressão baseados em raça, gênero, classe, nacionalidade ou o que seja. 238 DIVAS POP

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Capítulo 12 “Hoy lo intentaré”: as relações performáticas na “Convivência Dulce Amargo” Rafael Chagas

Em abril de 2015, a cantora mexicana Dulce María veio ao Brasil para realizar um único show na cidade de São Paulo. Durante a passagem pelo país, ela produziu uma ação promocional de seu livro “Dulce Amargo: confesiones de una adolescente”, lançado no início do mesmo ano. Em sua agenda, uma tarde de autógrafos estava programada para acontecer na livraria FNAC do bairro de Pinheiros e, em outro momento, um encontro pago com fãs chamado peculiarmente de “convivência”. Essa convivência, exclusiva para pagantes, aconteceu no hotel Stay- bridge Room, acomodação padrão business de São Paulo, com entradas que custavam R$ 1.200,00 por pessoa. Fãs de várias cidades brasileiras se deslocaram até a capital paulista para participar desse momento com a artista - o quarto encontro nesse mesmo formato que Dulce fizera no país. Por ter participado dessa convivência, e por especialmente me interessar na dinâmica do meet & greet enquanto potencializador de consumo da música pop latina no Brasil (LINS, 2015), me deparei com uma série de relações interpessoais que aconteciam naquele espaço e que serão abordadas neste texto. 242 DIVAS POP

Define-se entãomeet & greet (encontrar e saudar, em tradução livre) como “o momento quando os fãs podem encontrar seus ídolos, conversar (...) e tirar fotos com eles, tudo em um período curto de tempo, geral- mente, menos de cinco minutos” (AMARAL, SOUZA e MONTEIRO, 2014). O meet & greet proporciona ao público o contato mais próximo possível do artista, em um ambiente completamente controlado pela equipe de produção, minimizando, assim, eventualidades indesejadas. No entanto, uma série de elementos centrais e periféricos atuam nesse “objeto”, tornando-o um campo de disputas e confraternizações. São várias as tensões estabelecidas entre esses sujeitos, problematizando um evento “frívolo” e colocando-o em uma potencial situação de experi- ência estética. Neste texto, utilizarei a performance enquanto metodologia de análise de fenômenos, seguindo as diretrizes sugeridas por Taylor:

Em um segundo nível, a performance também constitui a lente me- todológica que permite que pesquisadores analisem eventos como performances. Obediência cívica, resistência, cidadania, gênero, et- nicidade e identidade sexual, por exemplo, são ensaiados e perfor- matizados diariamente na esfera pública. Entender esses itens como performance sugere que a performance também funciona como uma epistemologia. (TAYLOR, 2013, p. 27)

O roteiro da “Convivência Dulce Amargo” de Dulce María será orga- nizado de forma que os seis pontos de atenção indicados pela autora sejam contemplados: 1) cena: descrição do espaço físico que a perfor- mance acontecia; 2) corporalidade dos atores sociais: descrição dos indivíduos participantes no evento; 3) ação/comportamento: reação dos atores sociais diante das situações que surgiam ao longo da convivência; 4) sistemas multifacetados: identificação das formas de transmissão, ou de que maneira os atores sociais conseguiriam replicar aquele fenô- meno (gravação de vídeos, por exemplo); 5) situação do autor/leitor em relação ao evento; e 6) reativação: apresentação do fenômeno de forma que ele pudesse ser repetido sem que, necessariamente, seja copiado. “HOY LO INTENTARÉ” 243

“Nada pido, sólo acércate y escúchame un ratito”1

[...] acredito que por estar agora em uma posição onde muitos adoles- centes podem escutar minha voz, quero deixar-lhes uma mensagem, e que saibam que por ter essa carreira, não sou alheia e diferente. [...] também conheço o amor, a alegria, a amizade, as bênçãos, os presen- tes da vida — que são gratuitos —, o triunfo e o sonho pelo qual lutar para vê-lo tornar-se real! (MARÍA, 2014, p. 8, tradução nossa)2

21 de abril de 2015, terça-feira. São Paulo. Naquele dia, no saguão do hotel Staybridge Room, os hóspedes de paletó deram lugar a uma quase centena de crianças, adolescentes e adultos que estavam ali para fechar um tipo não muito comum de negócio. Dulce María, mexicana, na ocasião com 29 anos, era parte essencial desse acordo, já que sua presença era fundamental para concretização. Objeto: um pouco de inti- midade contratada entre as duas partes. Apesar de soar estranho, não falo aqui de encontros íntimos como os que costumam acontecer em hotéis. Dulce, que é cantora, atriz e autora de livros, estava na cidade brasileira para divulgar sua mais recente publicação, “Dulce Amargo: recuerdos de una adolescente”, e realizar o último show da turnê Sin Fronteras no país, resultado do segundo álbum como cantora solo depois de ter saído do grupo RBD, fenômeno midiático latino que destacou-se no mercado mainstream brasileiro entre os anos 2005 e 2008. Na ocasião, a produção da artista repetiu um formato peculiar de potencialização de lucro com o público fiel da mexicana: um evento de socialização chamado “Convi- vência Dulce Amargo”. Denomina-se “convivência” uma forma alternativa de meet & greet, aquele momento em que artista e admirador se encontram por alguns segundos antes ou depois dos espetáculos. A prática de conhecer cantores e bandas em seus camarins deixou de ser simplesmente promo-

1. “Nada peço, apenas aproxime-se e me escute um pouquinho”, em tradução livre. Trecho da música “Lo intentaré” (“Tentarei”, em tradução livre) de Dulce María. 2. “[...] creo que al estar ahora yo en una posición donde muchos adolescentes pueden escuchar mi voz, quiero dejarles um mensaje, y que sepan que no por tener esta carrera soy ajena y diferente [...]. [...] también conozco el amor, la alegría, la amistad, las bendiciones, los regalos de la vida -que son gratis-, el triunfo y el tener um sueño por el cual luchar para verlo ¡hecho realidad!” 244 DIVAS POP

cional, como parte da divulgação de um show em determinada cidade, por exemplo, para se tornar uma nova fonte de renda da indústria da música. Essa convivência de Dulce María, por exemplo, gerou uma receita bruta estimada em R$ 106.800,003. Mais de cem mil reais pagos por menos de 90 pessoas. Soma-se a isso todos os ingressos vendidos para a apresentação musical e, no caso daquela passagem específica, as vendas do segundo livro escrito pela cantora. Certamente, o encontro com a artista representa uma importante parcela no faturamento final da turnê. Mas por que convivência e não meet & greet? O grande argumento de venda desse evento, em detrimento do outro, é o tempo próximo à cantora e a possibilidade de uma interação mais intensa do que nos, se é que podemos chamá-los assim, meets & greets tradicionais — que mais parecem uma linha de produção de automóveis do que uma conversa entre dois seres humanos. Enquanto que o tempo respirando o mesmo ar do artista em um meet & greet é limitadíssimo (entra; abraço; foto; duas palavras; sai; choro é opcional), na convivência com Dulce María você não apenas pode ter seu “momento de glória” como, também, assistir aos outros fãs terem seus momentos individuais, além de simplesmente admirar aquela presença, naquele contexto, por mais tempo. Sim, estar presente na experiência alheia pode ser tão gratificante para aquele grupo de pessoas como na experiência pessoal. É o que chamo de fã voyeur: aquele que se sente realizado presenciando a realização dos outros. Outro ponto de diferenciação entre meet & greet e convivência é a segunda etapa do evento, que costuma durar entre 20 e 30 minutos e tem uma dinâmica similar à de uma coletiva de imprensa: a equipe de produção ou a própria Dulce María escolhe determinados fãs para que eles possam fazer perguntas de qualquer tipo e que serão respondidas (ou não) pela cantora. Esse é o momento que, talvez, mais se aproxime do nome daquele evento. Para Dulce, aquilo pode parecer mais uma

3. Por estar presente na convivência, pude confirmar a quantidade de pagantes com a equipe produtora do evento. Foram 89 pessoas, cada uma pagando R$ 1.200,00 líquidos para a produtora. Houve a cobrança de taxas de conveniência para aqueles que adquiriram o acesso pelo site Clube do Ingresso. “HOY LO INTENTARÉ” 245 entrevista performatizada para que pareça íntima. Para os fãs, é um momento de confraternização com a artista e, principalmente, contem- plação. No caso do evento de abril de 2015, depois de uma longa discussão entre fãs-consumidores (que exigiam o cumprimento do acordo feito no ato da compra do ingresso) com a produtora, ficou decidido que a sala de conferência do hotel seria reorganizada e as cadeiras onde cada um sentaria, sorteadas. Essa solução atendeu fãs e produção local, mas nem tanto a produção da artista. Depois de ter cumprido com o momento cara-a-cara com cada uma das 89 pessoas presentes na convivência, a cantora permaneceu sentada na cadeira que estava e os fãs, sem nenhum sorteio (ou reclamação), sentaram-se em frente a ela ou permaneceram em pé, mesmo, como se estivessem assistindo a alguma apresentação artística de rua. Por ora, gostaria de pinçar duas palavras que se repetiram algumas vezes ao longo dos últimos parágrafos e que parecem ser essenciais em contextos como o meet & greet: experiência e presença. A primeira remete diretamente ao evento em si, ao fato de se sentir algo em deter- minada situação. Já a segunda diz muito sobre a necessidade latente de se estar ali, de estar próximo. As duas palavras fazem ainda mais sentido nessas situações quando analisadas sob a ótica de Martin Seel (2014) e Hans Gumbrecht (2009), tratando-as como elementos estéticos funda- mentais à vida cotidiana. A admiração por um artista se dá por inúmeras chaves, mas a contínua busca pela presença física costuma ser uma das que mais alimentam a idolatria do fã. Independentemente do produto produzido por aquele artista, a busca pelo “eu verdadeiro”, de carne e osso, e que pode nem ter relação direta com a obra, é item motor na relação do fã. Gumbrecht, ao estabelecer que sua noção de presença vai além da “metafísica”, ou seja, que a presença compreende um espaço tangível e factível, diz que:

[...] a nossa relação com as coisas (e especificamente com artefatos culturais) nunca é apenas uma relação de atribuição de sentido. En- quanto usarmos a palavra “coisas” para nos referirmos ao que a tra- dição Cartesiana chama “res extensae”, também e sempre viveremos dentro e conscientes de uma relação espacial com estas coisas. As 246 DIVAS POP

coisas podem estar “presentes” ou “ausentes” para nós, e se elas estão “presentes” elas podem estar perto ou longe de nossos corpos. Cha- mando-as de “presentes”, então, no sentido original do latim “prae- -esse”, estaríamos afirmando que as coisas estão “em frente” de nós, sendo assim tangíveis.” (GUMBRECHT, 2009, p. 12)

No caso dos meets & greets, é essa presença frontal e corporal do artista o elemento-chave para transformação daquele determinado período de tempo em um fenômeno de experiência estética. Seel (2014, p. 7), para defini-la, utiliza-se de um conceito filosófico de evento, -afir mando que “[os eventos] no sentido mais restrito acontecem quando uma ocorrência específica adquire significado de uma forma específica em um determinado momento histórico ou biográfico”. Esses eventos, que “interrompem o continuum do tempo” (SEEL 2014, p. 7), são justa- mente os que diferenciam os episódios cotidianos de atenção a algo (ou seja, percepção estética) daqueles que geram algum sentimento em relação a algo que se torna um importante capítulo na vida do indivíduo (experiência estética). Essa distinção feita por Martin Seel entre percepção e experiência estética pode ser analisada como uma passagem de nível, por assim dizer. Quando a percepção “paralisa” o tempo e torna-se um momento quase que epifânico — e aqui temos uma relação direta com a fala de Gumbrecht (2009, p. 16), quando este apresenta a epifania como a amál- gama da linguagem responsável pela presença intrusiva e inesperada —, ela se torna experiência. Considerando o meet & greet como uma forma de linguagem, temos nele a manifestação de algo que está tanto ausente como presente. Essa epifania explorada por Gumbrecht caminha de mãos dadas com a frágil sensação de proximidade ao sujeito imaginado e intangível, mas que, naquela situação, está simultânea e temporaria- mente tangível, existente entre fã e artista durante o meet & greet. Os encontros com artistas costumam ser apresentados como situa- ções atípicas e, quando acontece, o participante da experiência, inevita- velmente, procura formas de “eternizar” aquele instante: seja através de fotos, seja através de relatos publicados na Internet ou escritos em diários pessoais, seja através de um guardanapo assinado. Há a necessidade da tangibilização do momento, uma prova de que o que era (ou parecia ser) “HOY LO INTENTARÉ” 247 impossível agora tornou-se possível (SEEL, 2014). Os relatos verbais e textuais feitos por fãs pós-experiências desse tipo funcionam como um resgate do passado. Essa é a linguagem que, segundo Gumbrecht, pode criar o efeito de presença do passado no agora, de tornar presente o que se tornou ausente (2009). Proponho, nesse momento, refletir a atuação dos dois principais agentes do meet & greet e desconsiderar os agentes periféricos (segu- rança, produção, imprensa etc.): o indivíduo dotado de fama (artista) e o indivíduo admirador do outro (fã, curioso etc.). Ambos provocam interesse entre si, mas, no momento que os dois interagem, a atenção é voltada para o encontro entre eles, não sobre eles. A potência do evento, portanto, é a interação entre os dois agentes. Apesar da situação teórica entre meet & greet e experiência estética aparentemente possuir um alto grau de afinidade, problematizações são necessárias para a avaliação desse fenômeno no contexto atual. Seel (2014), por exemplo, utiliza como condição necessária para o surgi- mento da experiência estética o fator “imprevisibilidade”, quando afirma que, de repente, o que parecia impossível torna-se possível. Ora, se o momento de encontro com o artista pode ser adquirido com meses de antecedência, comprado no cartão de crédito e planejado financeira e sentimentalmente, ele ainda assim pode ser considerado como um fenô- meno de experiência estética? Ao conversar com alguns dos fãs de Dulce María que tinham parti- cipado da convivência, após a saída do evento, a impressão que tive foi de suspensão de tempo. Principalmente para os que estavam ali pela primeira vez, aquele encontro, que não tinha durado mais que 30 segundos, na verdade pareceu uma eternidade (na utilização semântica mais positiva possível). Essa falsa impressão de tempo é uma “fissura no mundo interpretado” (SEEL, 2014, p. 7). O tempo, que já é abstrato, torna-se ainda mais difuso em um momento de assimilação de experi- ência estética. É por essa abstração que os fãs, no momento em que se encontram com seus artistas favoritos, precisam passar para eternizar as memórias — e aqui, mais uma vez, a presença física do outro e a inte- ração entre eles desempenhando o papel de epicentros dessa explosão estética. 248 DIVAS POP

“Es imposible imaginar mi vida ya sin ti”4

Para Turner, ao escrever nas décadas de 1960 e 1970, as performances revelavam o caráter mais profundo, mais verdadeiro e mais individual da cultura. [...] Para outros, evidentemente, o termo significa justa- mente o oposto: o caráter construído das performances indica sua ar- tificialidade - ela é algo “simulado”, antitético ao “real” e “verdadeiro” (TAYLOR, 2013, p. 28)

Estava lá, em uma grande sala predominantemente branca e bem iluminada. O piso cinza, completamente carpetado, permitia que o ambiente permanecesse sóbrio. Cadeiras confortáveis, acolchoadas e de cor vinho, organizadas em fileiras. Em uma das extremidades, uma grande mesa de madeira com mais quatro cadeiras atrás dela. Na outra, um backdrop com as marcas da W+ Entretenimento5 e do hotel Stay- bridge Room, e, em cada lado dele, um banner promocional de seu mais recente álbum. O clima era tenso. As pessoas estavam entrando na sala e sentando-se onde queriam - preferencialmente próximas à grande mesa. Queriam ficar o mais perto possível do local em que, evidentemente, estaria a mexicana. Mas todos ali sabiam que estavam descumprindo regras. Quem acessasse o site oficial do evento lá mesmo, encontraria, de forma clara e objetiva, a seguinte informação: “Será realizado um sorteio antes do início da convivência que determinará a posição de cada participante próximo a artista”6. Quando todos os 89 fãs se acomodaram aleatoria- mente nas cadeiras, os que entraram por último começaram a questionar à produção e aos outros participantes sobre as regras. “Vocês aí da frente não querem fazer sorteio porque não querem correr o risco de virem aqui pra trás, né?”, eles acusavam. Eu, que estava sentado na segunda fileira, demonstrei apoio ao sorteio, mas imediatamente fui repreendido

4. “É impossível imaginar minha vida sem você”, em tradução livre. Trecho da música “Lo intentaré” (“Tentarei”, em tradução livre) de Dulce María 5. Produtora responsável por trazer a cantora Dulce María ao Brasil em abril de 2015. 6. Disponível em: http://www.dulcemarianobrasil.com/amargo.php. Acesso em: 21 out. 2019. “HOY LO INTENTARÉ” 249 por uma moça ao meu lado: “se você não se importa em ficar perto, fica quieto que a gente se importa”. Durante o jogo de ironias e reivindicações entre os que eram a favor e os que eram contra a reorganização da sala, uma fã “líder” do grupo (vamos chamá-la de Babi), começou a tomar conta da situação. Vestida com uma camiseta branca e uma saia de tule preta, ela segurava um pato7 de pelúcia, alguns presentes embrulhados e um inseparável “pau- -de-selfie”. Foi até a mesa principal, sentou na cadeira que “Dulce vai sentar aqui, né?” e começou a promover uma votação. Repleta de argu- mentos contra o sorteio (ela estava próxima à mesa), a fã pediu que as pessoas a favor de uma reorganização da sala levantassem a mão – a maioria acatou a sugestão. Diante do ato democrático, todos se reti- raram da sala para que a produção do evento pudesse reorganizar a sala de forma que o auditório se tornasse um “U”, com as cadeiras ao redor da mesa principal. Enquanto os fãs esperavam para entrar novamente na sala e ter seu lugar reservado, Babi abordava-os, um a um, para negociar posi- ções, reafirmar que aquela seria a sexta vez que ela participava de um encontro com Dulce María ou que a convivência se resumiria a ela e a cantora — “vocês vão ver”, instigava. Era perceptível, portanto, que ela estava buscando chamar não apenas a atenção de Dulce, como também de todos os outros fãs. Babi é administradora de um grupo de What- sApp, aplicativo de comunicação online, com os fãs habitués de convi- vências (sim, esse tipo de evento é uma prática bastante comum entre os ex-RBDs que visitam o país) e foi ela quem organizou uma surpresa para a artista que deveria ser executada por todos os presentes. Enquanto ainda estávamos na recepção do hotel, antes mesmo de entrarmos na sala, Babi estava distribuindo imagens fotocopiadas de Dulce que deve- riam ser levantadas em momentos específicos da música “Sou fã”, da dupla sertaneja Christian e Cristiano (fiquei com a parte “Sou fã desse sorriso estampado em sua boca” da homenagem). A hora de cantar durante a convivência seria informada por ela, claro.

7. Por conta de sua voz, parte do fandom do RBD ironizava seu canto apelidando-a de “p a t a”. 250 DIVAS POP

Apesar de todo esse esforço para, de alguma forma, atrair para si os olhares da cantora, quando perguntei para Babi se ela preferiria ser amiga ou fã de Dulce, ela escolheu a segunda opção. Argumentou que, se fosse amiga da cantora, ela não sentiria o mesmo “amor” que sente hoje pela artista. No mínimo, curioso. Giorgio Agamben (2009), em determinado trecho de seu livro “O que é o contemporâneo? e outros ensaios”, analisa um quadro de Giovanni Serodine exposto na Galeria Nacional de Arte Antiga em Roma para interpretá-lo como uma espécie de alegoria para a amizade:

O que é, de fato, amizade senão uma proximidade tal que dela não é possível fazer nem uma representação nem um conceito? Reconhecer alguém como amigo significa não poder reconhecê-lo como “algo”. Não se pode dizer “amigo” como se diz “branco”, “italiano” ou “quen- te” - a amizade não é uma propriedade ou uma qualidade de um su- jeito. (AGAMBEN, p. 85, 2009)

Ser amiga de Dulce María, utilizando-se da análise de Agamben, poderia significar para Babi abrir mão da posse momentânea sobre a artista nos meets & greets. Ser amiga de Dulce María, nesse caso, faria com que Babi perdesse toda a atenção comprada (e garantida por regu- lamento) da artista e ficasse à mercê da disponibilidade do indivíduo social. Vamos voltar ao momento de reorganização da sala do hotel. Foi organizada uma fila na entrada do espaço e cada fã, à medida que tinha seu acesso liberado, retirava um papel de uma bolsa plástica que indi- caria em qual das cadeiras ele poderia sentar. O método, por ter sido feito às pressas, seguiu com dificuldade. A equipe não sabia ao certo qual cadeira pertencia a qual fileira e, por conta disso, algumas relo- cações foram feitas ao longo do processo. Eu, por exemplo, mudei de cadeira três vezes (cada vez para mais longe da mesa onde Dulce María sentaria). Enquanto as pessoas iam sentando ao meu lado, tive a oportunidade de conhecer outros fãs e tentar entender um pouco mais o perfil daquele grupo. Uma característica, no entanto, era muito clara: aquele evento era uma peregrinação. Não estavam ali apenas residentes da capital paulis- tana. Fãs de Salvador, Florianópolis, Recife, Belém e outras cidades “HOY LO INTENTARÉ” 251 tinham viajado para participar daquele momento de contemplação. Apesar de se referir às peregrinações religiosas, Turner (2008) aponta alguns fatores como facilitadores de eventos com essas características, tais como o avanço nas comunicações, disseminação e facilidade no acesso a meios de transporte modernos e o impacto da mídia de massa no turismo. Os pontos levantados por Turner transformaram o mercado do entretenimento ao vivo em templos modernos, capazes de atrair verda- deiros devotos a santuários efêmeros na esperança de verem a aparição de seus estimados artistas. A “peregrinação do fã”, ao considerarmos fãs como uma comunidade, pode fazer parte do processo de formação de identidade daquele indivíduo, “nos quais ocorre um desenvolvimento da natureza e da intensidade dos relacionamentos entre os membros do grupo de peregrinação e seus subgrupos” (TURNER, 2008, p. 156). Experienciar situações como essas e viver cada etapa da peregrinação, faz parte dos ritos de passagem deste grupo social, permitindo que cada pessoa, através dos fenômenos de percepção e experiência estética, tenham seus processos particulares de liminaridade. Rostos conhecidos pelos fãs começaram a chegar. Primeiro, o proprie- tário da W+ Entretenimento. Logo em seguida, uma amiga pessoal da cantora, velha conhecida dos “Dulcetes” (como os fãs costumam se chamar) e que costuma acompanhar a artista durante suas turnês pelo mundo. Aquelas duas entradas significavam apenas uma coisa: ela estava chegando. Babi, ao perceber a entrada daqueles dois personagens, pron- tamente saiu de sua cadeira (que, apesar das inúmeras tentativas, não conseguiu ficar em uma tão próxima assim à mesa), presenteou cada um deles e conversou rapidamente com a dupla. O clima, mais uma vez, era tenso. A tensão era nervosa, silenciosa e, ao mesmo tempo, ruidosa. A partir dali, a qualquer momento, Dulce María entraria pela porta e os fãs teriam a oportunidade de vê-la, trocar algumas palavras, tirar fotos com ela. Enquanto permanecíamos atentos à movimentação, a amiga da artista começou a avaliar o espaço e não aprovou o formato em que o auditório estava estruturado. Para chegar até a mesa, depois de cumprir com a etapa de meet & greet da convivência, Dulce teria que atravessar o centro da sala e passar entre as cadeiras 252 DIVAS POP

onde os fãs estavam acomodados. Essa situação não pareceu segura o suficiente para a equipe e o formato do evento foi novamente alterado. Não houve diálogo com o público, muito menos remanejamento de posições. No momento que fosse necessário, os fãs seriam informados. Depois de uma espera de aproximadamente uma hora e meia, eis que a porta se abre novamente e, de lá, surge a cantora mexicana de 29 anos, cabelos vermelhos, recém-chegada de uma gravação para um talk show brasileiro. Vestida de maneira bastante casual, se não fosse maquiagem e penteado, Dulce María foi recepcionada pelos fãs com (muitos) gritos, flashes e acenos. Sua entrada na sala teve uma recepção do público muito semelhante à sua primeira aparição no show que aconteceu no dia seguinte, na casa de shows Audio Club. Ela foi ovacionada. Aquela reação dos fãs me fez perceber que, mesmo com um objetivo de estar próximo, quase que íntimo dela, eles ainda a viam como um objeto de apreciação. Saudando-os com um rápido aceno, Dulce foi encaminhada para uma cadeira, igual ao público, que estava ao lado de outra, vazia, e em frente aos banners promocionais. A equipe pediu silêncio. A cantora agradeceu a presença de todos e o apoio dos fãs ao longo de sua carreira. Eventu- almente, ela era interrompida por gritinhos histéricos de “eu te amo!” e “linda”. Estávamos, de fato, em um show. Um membro da produção local pediu a palavra e informou que os encontros particulares, com direito às fotos com a artista, seriam organizados pelas fileiras de cadeiras. Além dessa informação, a produtora relembrou algumas regras do evento, tais como:

1) A cantora Dulce María receberá um seleto grupo de pessoas para uma convivência exclusiva, com duração dependendo do número de participantes (Máximo 100). No mínimo 1 hora e sem tempo deter- minado para termino (sic);

[...]

3) Cada participante receberá um livro “Dulce Amargo: recuerdos de una adolescente” para ser autografado pela artista e um marcador de livro especial do evento; “HOY LO INTENTARÉ” 253

4) Será permitido a cada participante fazer perguntas a artista sobre o livro, suas inspirações, interagir e tirar 2 (duas) fotos individuais, as fotos serão tiradas pelo fotógrafo oficial da convivência, e estarão disponíveis em até 15 dias após o evento no site ou na fanpage da produtora;

5) Será permitido o uso de câmeras fotográficas para fotografias e filmagens sem uso deflash durante a convivência8,

Apesar da regra oficial informar que o livro seria o item autografado pela cantora, foi permitido que os fãs escolhessem qualquer outro objeto para autógrafo, com a condição de que apenas um objeto poderia ser utilizado para esse fim. A partir daí o processo foi longo, lento e repetitivo. Basicamente, os fãs eram liberados para que se sentassem ao lado de Dulce, trocassem algumas palavras, posassem para o fotógrafo, entregassem seus presentes e conversassem mais um pouco enquanto o autógrafo era dado no objeto escolhido. Nada muito fora do padrão. Os encontros duravam, em média, 1 minuto cada (a minha interação com a cantora durou exatos 42 segundos) e, se passado o tempo e o fã ainda não tivesse se levantado da cadeira, um dos seguranças convidava-o a se retirar. Foram poucos os momentos que fugiram a esse padrão. Durante uma das conversas, Dulce soltou um discreto espirro que veio acompanhado de uma reação do público típica de quando se presencia algo “fofo”. Em outro momento, a cantora estava prestando bastante atenção na história de uma fã que ultrapassou um minuto de duração. Ao perceber que o segurança estava indo em direção à garota, Dulce o interrompeu e pediu mais um tempo com ela. Isso foi um ápice para o público que parti- cipava daquela conversa passivamente. Gritos de apoio à atitude da cantora, comentários do tipo “Tá vendo? Ela realmente se importa com a gente” não paravam de pipocar ao meu redor. Havia uma preocupação declarada entre os participantes sobre o que seria dito para a cantora e de que forma eles deixariam alguma lembrança nela. Os fãs queriam sair daquele momento com memórias

8. Disponível em: http://www.dulcemarianobrasil.com/amargo.php. Acesso em: 21 out. 2019. 254 DIVAS POP

possíveis de serem compartilhadas através de vídeos e fotos e confir- madas por outros fãs presentes. Pelo que pude perceber, a principal estratégia de obtenção de atenção é o vitimismo (foi o caso da menina que teve um acréscimo em seu tempo de meet & greet). Histórias de superação, de como a música ou a artista em si supostamente ajudaram o fã em algum momento difícil, ou desabafos sobre qualquer assunto (doenças, enfrentamentos familiares etc.) costumam ser as escolhidas na hora do contato individual. Eles utilizam o momento como uma espécie de sessão de terapia que, ao invés da busca pela autocompreensão, os pacientes almejam o toque delicado e o olhar interessado da analista. Não interessa ali o diagnóstico/conselho dado por Dulce María: o que interessa é o nível de interação física e emocional que o fã conseguiu conquistar dela. Além da isca emocional, alguns fãs utilizaram outra ferramenta de atenção: presentes inusitados. O fã de Belém levou uma caixa com iguarias do Norte do Brasil — com direito a um peixe que arrancou uma expressão um tanto quanto peculiar da cantora. Outra fã optou pelo fator choque e presenteou a artista com lingeries ousadas e brinquedos sexuais (esse foi um dos poucos presentes que a mexicana decidiu não mostrar ao público). Após o momento de interação particular, Dulce María permaneceu sentada na cadeira que estava e a outra cadeira foi retirada. Os fãs, por sua vez, foram convidados por ela a se sentar no chão, ao seu redor: sem sorteios, sem local marcado e, mais surpreendentemente ainda, sem reclamações. Os locais mais próximos à artista foram escolhidos aleatoriamente, assim como na entrada inicial do evento, mas, dessa vez, sem ressalvas. De alguma forma, o fato de a própria Dulce María ter convidado o público a descumprir as regras tornou aquela reivindi- cação irrelevante. Victor Turner (2008), ao discorrer sobre a represen- tação simbólica das peregrinações, afirma que elas são um dilema entre escolha e obrigação em uma ordem social que é definido pelo status prevalecente. Aqueles indivíduos estavam em suas jornadas particulares e a artista representava o ser humano de maior influência do ambiente — eles estavam ali por causa daquela presença, afinal. Talvez, por isso, a “ordem social” tenha permanecido estável naquele momento, ainda que contra o combinado e combatido previamente. “HOY LO INTENTARÉ” 255

Foram 20 minutos onde alguns fãs fizeram perguntas dos mais variados conteúdos (“você vai mudar a cor do cabelo?”; “como foi ser jurada de um reality show musical?”, “você mudou de agente?” etc.). Dulce respondeu um a um, com o máximo de atenção possível, mostrando-se à vontade com a situação. Poucos foram os momentos constrangedores. Babi (nossa fã-líder), por exemplo, pediu autorização para realizar uma surpresa para ela. A cantora, visivelmente apreensiva, permitiu que ela seguisse o plano. Babi, que momentos antes de pedir a fala já havia pedido que uma colega começasse a filmar a cena, começou a cantar uma música do primeiro álbum da mexicana, “Lo intentaré”. Depois que todo o grupo cantou em coro, junto com a artista, Babi sentou-se novamente e imediatamente pegou a câmera para conferir a filmagem. A última pergunta foi anunciada. Enquanto um dos fãs fazia a pergunta, o manager de Dulce começou a sinalizar aos membros da equipe que aquela seria a última pergunta. Enquanto ela pensava em uma resposta para “depois de tantas conquistas, qual o seu sonho?”, os fãs (que antes estavam pacientemente sentados) começaram a chamar freneticamente pelo nome da artista. Clamavam por Dulce à medida que iam se levantando de seus lugares, como se estivessem preparando- -se para um ataque. O segurança pessoal chama o manager e fala algo em seu ouvido. Logo em seguida, começa a pedir que os fãs que estavam bloqueando a passagem até a porta de saída abrissem caminho. Assim que a cantora termina a resposta, o manager toca em seu ombro, diz algo em seu ouvido, Dulce se levanta rapidamente e os fãs começam a chamar por ela novamente, dessa vez completamente em pé e avançando em sua direção. Ela deslizou para a saída de forma tal que mal conseguiu se despedir do público. Aquele ambiente, em menos de 1 minuto, de repente mostrou-se hostil. Os fãs estavam diante de um apagamento da presença. Eles seriam forçados, então, a se contentar com a onipresença tecnológica da artista, como apontado por Gumbrecht, mas que nada mais é do que uma presença simulada, imaterial. Eles, naquele momento, estavam entrando em um estágio de nostalgia. 256 DIVAS POP

“Obviamente, qualquer nostalgia tem um elemento utópico [...], mas nostalgia comercializada força uma compreensão de tempo específico. Tempo é dinheiro” (BOYM, 2001, p. 38, tradução nossa)9. Esse trecho do livro “The Future of Nostalgia”, de Svetlana Boym se refere diretamente à nostalgia na cultura pop. Os meets & greets e convivências realizadas por esses artistas nada mais são do que a exemplificação clara de que tempo, na indústria do entretenimento, é dinheiro. Quanto mais longo, mais caro. Aquele tempo contratado acabou; para tê-lo novamente, apenas comprando-o quando outra oportunidade surgir. Até lá, os fãs terão que se contentar com o arquivo gerado naquela experiência de formação de repertório e a nostalgia.

“Las palabras ya van a sobrar aquí”10 Através da metodologia de análise do evento como performance, proposta por Taylor (2013), tentei trazer à tona alguns elementos teóricos relacionados à estética e performance, como os conceitos de percepção e experiência estética de Martin Seel e drama social de Victor Turner, por exemplo, relacionando-os diretamente com o fenômeno em si. Dessa forma, foi possível descrever e analisar o evento quase que simultanea- mente, levantando questionamentos e colocando-o em uma posição de produto cultural frutífero para análises comunicacionais. Dessa observação, pude identificar algumas estratégias de relaciona- mento entre fã e artista: um de caráter mais afetivo e outro, mais comer- cial. Marwick e Boyd (2011) definem celebridade como uma prática de performance orgânica e em constante adaptação, envolvendo manu- tenção contínua da base de fãs, intimidade performatizada, acessibili- dade, autenticidade e construção de uma persona consumível. É inte- ressante perceber que, da mesma forma que o artista cria uma “persona” que seja palatável aos gostos do público, os fãs, por sua vez, em contato com esses artistas, também criam “personas” que sejam críveis aos julga- mentos do artista-enquanto-pessoa.

9. Obviously, any nostalgia has a utopian […] element, but commercialized nostalgia forces a specific understanding of time. Time is money. 10. “Aqui as palavras já vão sobrar”, em tradução livre. Trecho da música “Lo intentaré” (“Tentarei”, em tradução livre) de Dulce María. “HOY LO INTENTARÉ” 257

Este não é um artigo com pretensão de se tornar um guia prático para análises de fenômenos como o meet & greet. Utilizando-me das palavras do arquiteto japonês Fumihiko Maki (1964), “esse trabalho não contém respostas, mas busca perguntar as questões corretas para desenhar futuras discussões”. O meet & greet carrega em si várias potên- cias: a relação entre fã e artista além do produto cultural ali envolvido, a formação de identidades sociais do público, a criação de memórias compradas e as novas formas de obtenção de lucro da indústria do entre- tenimento através da experiência estética. São essas potências, portanto, que pretendo trazer à luz nos estudos de Comunicação. 258 DIVAS POP

Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

AMARAL, Adriana; DE SOUZA, Rosana V.; MONTEIRO, Camila. “De Westeros no #vemprarua à shippagem do beijo gay na TV brasileira”: ativismo de fãs: conceitos, resistências e práticas na cultura digital brasileira. In: XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014. Disponível em: http://www.intercom. org.br/papers/nacionais/2014/resumos/R9-2644-1.pdf. Acesso em: 21 de setembro de 2015.

BOYM, Svetlana. The future of nostalgia. Nova York: Basic Books, 2001.

Dulce María no Brasil! - 21 e 22 de abril de 2015. 2015. Disponível em: . Acesso em: 27 fev. 2016.

GUMBRECHT, Hans U. A presença realizada na linguagem: com atenção especial para a presença do passado. História da historiografia, Ouro Preto, n. 3, p. 10-22, set. 2009.

LINS, Rafael C. O meet & greet como intensificador da experiência do show de música pop. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 38., 2015, Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em: 29 fev. 2016.

MAKI, Fumihiko; GOLDBERG, Jerry. Linkage in collective form. The School of Architecture, St. Louis, n. 2, p. 25-51, jun. 1964.

MARÍA, Dulce. Dulce amargo: recuerdos de una adolescente. Cidade do México: Ediciones Urano, 2014.

MARWICK, Alice; BOYD, Danah. To see and be seen: celebrity practice on Twitter. Convergence. International Journal of Research into New Media Technologies, v. 17(2), p. 139–158, 2011. Disponível em http:// www.tiara.org/blog/wpcontent/uploads/2011/07/marwick_boyd_to_ see_and_be_seen.pdf. Acesso em: 10 mai. 2016

SEEL, M. No Escopo da Experiência Estética. In: PICADO, Benjamin; CAMARGOS, Carlos; CARDOSO FILHO, Jorge. Experiência Estética e Performance. Salvador: Edufba, 2014. p. 3-15. “HOY LO INTENTARÉ” 259

TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

TURNER, Victor. Dramas, campos e metáforas: ação simbólica na sociedade humana. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008.

Sobre as autoras e os autores

Alan Mangabeira Professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com ênfase em Estética e Culturas da Imagem e do Som. Mestre em Comunicação e Culturas Midiáticas pela UFPB, e também graduado em Rádio e TV pela mesma instituição. Integra o Grupo de Pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop (GruPop) na UFPE e o Laboratório de Pesquisa em Imagens, Corpos e Afecções (TATO) na UFPB. É fã e colecionador de Britney Spears desde 1998 e administrador do único portal ativo da cantora no Brasil (Brit- neyOnline.com.br). Desenvolve pesquisas etnográficas sobre corpos, espaços, experiências afetivas e fandoms na música pop. Autor do livro “Transmídia: Do Outro Lado do Espelho” (2014).

Daniel de Andrade Lima Comunicador, artista do movimento e mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente, cursa douto- rado em Comunicação, também na UFPE, desenvolvendo pesquisa 262 DIVAS POP

sobre vinculações estéticas e performáticas entre vocalidades e corporei- dades na cultura midiática. Engajado com o campo da somática, cursou Pós-Graduação Lato Sensu em Sistema Laban/Bartenieff de estudos do movimento na Faculdade Angel Vianna, no Rio de Janeiro.

Fernando Gonzalez Mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM-SP. Integra os grupos de pesquisa CNPq Comunicação e Socie- dade do Espetáculo e Juvenália: questões estéticas, geracionais, raciais e de gênero na comunicação e no consumo, sob coordenação do professor Dr. Cláudio Novaes Pinto Coelho e da professora Dra. Rosamaria Luiza de Melo Rocha, respectivamente. Pesquisa questões de comunicação, consumo, cultura, estética, música e teoria crítica.

Gabriela Almeida Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM e Coordenadora do GP Estéticas, Políticas do corpo e Gêneros da Intercom.

Leonam Della Vecchia Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com ênfase em Estéticas e Tecnologias da Comunicação. Inte- grante do Laboratório de Pesquisa em Culturas e Tecnologias da Comunicação (LabCult/UFF). Coordenador da equipe de tradução da Revista Contracampo (PPGCOM/UFF - Qualis B1). Mestre em Comu- nicação pela Universidade Federal Fluminense e bacharel em Cinema pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com Intercâmbio Acadêmico em Motion Pictures pela Universidade de Miami. Atual- mente, desenvolve pesquisas relacionadas ao universo da Música Pop, com ênfase nos Fluxos Audiovisuais da Cultura Digital, Indústria Fono- gráfica, Questões de Raça e Gênero e Estudos da Performance. SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES 263

Linda Lister Professora associada de voz da University of Nevada (Las Vegas) e autora dos livros “Yoga for Singers: Freeing Your Voice and Spirit Through Yoga” (2011) e “So You Want to Sing Light Opera” (2018). É diretora de óperas, tendo recebido o American Prize em Direção de Operas em 2014 e cantora soprano. Seus escritos foram publicados na The Classical Singer, Journal of Singing e American Music Teacher. Site da autora: http://lindalister.com/.

Mariana Lins Doutoranda do PPGCOM-UFPE e integrante do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop (GruPop). Tem graduação em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e mestrado em Comunicação pela Universidade Federal de Pernam- buco (UFPE). Em 2018, participou de extensão universitária em missão discente na Universidade Federal Fluminense (UFF), através do Projeto PROCAD/Capes, e, entre 2019-2020, realizou estágio doutoral, como bolsista Capes, na Universidad de Oviedo (Espanha). Tem experi- ência na área de Jornalismo, com passagens pelas redações da Folha de Pernambuco e do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação. Atua e tem interesse nas áreas de Estudos Culturais, Estudos de Gênero, enve- lhecimento, performance e música pop.

Mário Rolim Graduado em Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde se também formou mestre em Comunicação e atualmente cursa o Doutorado, também em Comunicação. Já publicou diversos trabalhos na área de Comunicação e Música, em diálogo teórico mais frequente com os Estudos Culturais, o Feminismo Negro, a Musicologia e os Estudos de Performance. Seu presente projeto de tese tem como objetivo encontrar novas possibilidades (mais ancoradas na corpo- reidade e no sensível) de percepção e performance da política no rap (assim como em outros gêneros da música pop), buscando pontes com outras áreas como a Filosofia e os Estudos de Dança. 264 DIVAS POP

Rafael Chagas Lins Bacharel em Publicidade e Propaganda pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Sempre se interessou pelo entreteni- mento ao vivo de maneira profissional e pessoal. Atuou durante três anos no Departamento de Marketing do Classic Hall, maior venue de shows de Pernambuco, onde pôde, além de iniciar sua carreira profis- sional, dar origem a seus interesses acadêmicos. Considera-se atuante nos fandoms em que faz parte, sendo fundador de um fã-clube da saga Harry Potter, ativo desde 2004, o Clube da Fênix.

Rose de Melo Rocha Professora titular do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), onde lidera o grupo de pesquisa CNPq Juvenália. É pesqui- sadora do GT CLACSO Infancias y Juventudes, do qual foi uma das fundadoras, e onde atualmente compõe a Coordenação Ampliada e a Equipe de Comunicação. É bolsista produtividade em pesquisa do CNPq, estudando os artivismos musicais de gênero na cidade de São Paulo. Doutora em Ciências da Comunicação (USP), fez estágio pós- -doutoral em Ciências Sociais/Antropologia (PUC-SP). Desenvolve atualmente seu segundo estágio pós-doutoral, em Ciencias Sociales, Niñez y Juventud (CLACSO).

Simone Pereira de Sá Professora titular do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF). É pesquisadora PQ do CNPq e Coordenadora do LabCult - Laboratório de Pesquisa em Culturas e Tecnologias da Comunicação, onde desenvolve pesquisas em torno de aspectos da cultura pop, música periférica brasileira e performances de artistas e fãs em plataformas digitais. Autora de artigos e livros sobre a temática, tais como “Baiana Internacional: aos mediações culturais de Carmen Miranda” (MIS/2001), “Rumos da Cultura da Música” (Sulinas, 2010) e “Som+Imagem” (co-organizacão com Fernando Moraes, 7 Letras, 2012), dentre outros. SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES 265

Suzana Mateus Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), atua como doutoranda da área na mesma insti- tuição desenvolvendo pesquisa sobre as dinâmicas entre divas, corpo- reidades, performances musicais e encenações.

Thiago Soares Professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação na Universidade Federal de Pernam- buco (UFPE), com estágio pós-doutoral na Universidade Federal Flumi- nense (UFF). Bolsista Produtividade em Pesquisa Nível 2 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Coor- denador do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop (GruPop) na UFPE. Autor dos livros “Ninguém é Perfeito e a Vida é Assim: a Música Brega em Pernambuco” (2017) e “A Estética do Video- clipe” (2013). THIAGO SOARES é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com estágio pós-doutoral na Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista Produtividade em Pesquisa Nível 2 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Coordenador do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop (Gru- Pop) na UFPE. Autor dos livros “Ninguém é Perfeito e a Vida é Assim: a Música Brega em Pernambuco” (2017) e “A Estética do Videoclipe” (2013).

MARIANA LINS é doutoranda do PPGCOM-UFPE e integrante do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop (GruPop). Tem graduação em Jornalismo pela Universi- dade Católica de Pernambuco (Unicap) e mestrado em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Em 2018, participou de extensão universitária em missão discente na Universidade Federal Fluminense (UFF), através do Projeto PROCAD/Capes, e, entre 2019-2020, realizou estágio doutoral, como bolsista Capes, na Universidad de Oviedo (Espanha). Tem experiência na área de Jornalismo, com passagens pelas redações da Folha de Pernambuco e do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação. Atua e tem interesse nas áreas de Estudos Culturais, Estudos de Gênero, envelhecimento, performance e música pop.

ALAN MANGABEIRA é professor do Departamento de Comunicação Social da Universi- dade Federal da Paraíba (UFPB), doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com ênfase em Estética e Culturas da Imagem e do Som. Mestre em Comunicação e Culturas Midiáticas pela UFPB, e também graduado em Rádio e TV pela mesma instituição. Integra o Grupo de Pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop (GruPop) na UFPE e o Laboratório de Pesquisa em Imagens, Corpos e Afecções (TATO) na UFPB. É fã e colecionador de Britney Spears desde 1998 e administrador do único portal ativo da cantora no Brasil (BritneyOnline.com.br). Desenvolve pesquisas etnográficas sobre corpos, espaços, experiências afetivas e fandoms na música pop. Autor do livro “Transmídia: Do Outro Lado do Espelho” (2014).

Esta coleção agrupa obras resultantes de parcerias e cooperações acadêmicas entre o PPGCOM-UFMG e outras universidades nacionais e internacionais, cujos projetos

deram origem a textos comuns, abordagens cruzadas e s i sa r e ansv r { olhares t aproximações conceituais marcadas pelo delicado jogo das dissonâncias.